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III Simpsio Nacional de Histria Cultural Florianpolis, 18 a 22 de setembro de 2006
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Tradies e origens intelectuais das histrias de crime no Brasil
Ana Gomes Porto - Unicamp
Em determinado momento do livro Os criminosos na arte e na literatura,1
compilao de conferncias realizadas por Enrico Ferri no ano de 1892, h uma anlise
dos chamados romances e dramas judicirios. O famoso criminologista define-os da
seguinte maneira:
mile Gaboriau foi o inventor dum certo gnero de romances judicirios, depois imitados, e muito em moda h alguns anos. Os folhetins dos jornais e as colees de leitura tinham encontrado a um rico veio de emoes artsticas a explorar no grande pblico. Nesta espcie de obras, o criminoso quase sempre relegado para o segundo plano: figura como um acessrio, um manequim necessrio representao dum crime misterioso, porque o verdadeiro protagonista o polcia, o agente astuto genial e sutilmente lgico, possuindo um faro especial para descobrir um criminoso, entre indcios vagos, insignificantes na aparncia.2
Com muito sucesso na Frana dos anos 60 do sculo XIX, Gaboriau era
conhecido do pblico brasileiro. No ano da sua morte, 1873,Garnier publica duas
tradues de famosos romances, cannicos para os atuais aficionados no reconhecido
gnero (ou sub-gnero, como dizem alguns) do romance policial: O crime de Orcival e
a Corda na garganta. Em 1876, a Gazeta de Notcias apresenta a primeira parte de O
Ventrloquo, do reconhecido folhetinista francs Xavier de Montpin, como um
romance judicirio, imitao de Gaboriau: Logo aos primeiros captulos, fica presa a
ateno para um fato criminoso envolto em grandes mistrios, que hbeis agentes de polcia
conseguem descobrir.3
Em O assassino de Marieta primeira parte de O Ventrloquo existe, no
decorrer da narrativa, uma explicao mais detalhada do romance judicirio. Estas
narrativas teriam influenciado um importante personagem, Jobin, o agente de polcia,
que as devorava nos seus anos de juventude. Este personagem tem papel central na
descoberta do assassino:
1 Ferri, Enrico. Os criminosos na arte e na literatura. Lisboa, Livraria Clssica Editora, 1923, 3 edio. (1edio em francs, 1895). 2 Idem, ibidem, p.87. 3 Gazeta de Notcias, 27 de dezembro de 1876.
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O leitor deve estar lembrado que foi por esse tempo que surgiu na literatura o romance judicirio, com um xito imenso.
Penas delicadas, descrevendo com arte as mltiplas peripcias dos dramas que tem seu desfecho no tribunal do jri, estimularam o pblico j um tanto enfastiado.
Como era natural, o heri dessas hbeis narrativas em que um interesse pungente aumentava a cada linha, e metia, por assim dizer, a faca aos peitos do leitor (relevemos a expresso) foi o agente de polcia, seguindo uma pista, sem hesitar no meio do labirinto de um trama sombrio e complicado, desmascarando o criminoso apesar da sua astcia diablica, e salvando o inocente designado por falsas aparncias vindita das leis4
O assassino de Marieta tem como eixo central do enredo um duplo assassinato
de Marieta e seu pai. Envolto no mistrio e descrito como um crime violentssimo,
comeam as investigaes com a busca de testemunhas, de pistas e da decifrao do
enigma.
Para os nossos interesses, a importncia desta citao est em contextualizar o
surgimento do romance judicirio, na tentativa de perceb-lo em relao a outras
narrativas de crime existentes no momento. Se existem aproximaes entre a definio
do romance judicirio de Ferri e esta, pode-se dizer que esto na importncia dada ao
personagem que decifra um caso misterioso. Neste sentido, o romance judicirio seria,
como bem exps a Gazeta de Notcias aos seus leitores, imitao de Gaboriau.
Em O assassino de Marieta nota-se, porm, uma outra explicao para o
romance judicirio. Inicialmente, o trecho acima chama a ateno para um tipo de
narrativa que descrevia casos que iam para o Tribunal do Jri. A crnica judiciria
parece ter sido, efetivamente, um tipo de narrativa bem prxima ao romance judicirio
e, porque no dizer a sua inspirao. Porm, nem sempre traziam o investigador como
centro da narrativa e sim o criminoso e o desfecho do crime na justia, alm de
julgamentos que pudessem causar curiosidade aos possveis leitores.
Nos jornais brasileiros, provavelmente influenciados pela imprensa francesa, as
crnicas judicirias eram comuns e descreviam minuciosamente algumas sesses de
julgamento, numa narrativa agradvel e, sem dvida, carregada de aspectos literrios.5
Neste sentido, o leitor, deparando-se com a referncia aos dramas do Tribunal em O
assassino de Marieta, no os estranhava e poderia, inclusive, sentir-se familiarizado
com elas.
4 O assassino de Marieta. Gazeta de Notcias, 11 de janeiro de 1877. 5 Por exemplo, as Crnicas do Jri no jornal O Estado de So Paulo e Sesso do Tribunal na Gazeta de Notcias.
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Georges Claretie foi um escritor francs de crnicas do Tribunal e, se o ano
adianta-se um pouco no sculo XX, no deixa de recorrer a uma tradio de cronistas do
mesmo feitio ainda no sculo XIX. A relao com a imprensa parece fundamental,
segundo o que nos conta o prefaciador daquelas crnicas do ano de 1909, Raymond
Poincar: Il reconstituait, avec un art incomparable, toutes les scnes comiques ou tragiques
qui se droulent quotidiennement au Palais. Il dessinait dun traits sr les physionomies des
accuss ou des tmoins; il analysait, avec une impartialit souriante, les rquisitoires et les
plaidoiries.6
O livro, que se refere ao ano de 1909, tem diversas partes, as quais tem como ttulo
os meses do ano para cada ms existem crnicas selecionadas pelo autor como cenas
notveis do Tribunal. No necessariamente encontravam-se os casos de maior
repercusso, mas tambm situaes irnicas e estranhas, como foi o caso de uma
reclamao do diretor de uma escola contra um pai que no queria pagar o trimestre do
curso do filho pois afirma que ele se distrai com a dama da frente:
Personne ne connaissait son nom. On la nommait la dame den face. Et les lves de la classe de seconde de lInstitution Sainte-Marie savaient seulement queelle tait jolie et quelle tait trs blonde. Les jour de soleil, lheure de la classe, elle paraissant sa fentre comme un personnage de srnade, et immdiatement toutes ls petites ttes penches sur ls dictionnaires se levaient pour contempler la dame den face. Pour ces jeunes collgiens toutes ls desses blondes ou brunes de lantiquit, aux corps marmorens, aux yeux couleur de mer, semblaient sincarner dans la dame mystrieuse, qui de sa fentre regardait rouler ls auto-mobiles. Lorsque le rideau de mousseline sabaissait, et que la vision de beaut avait disparu, les jeunes potaches songeaient tristement Galate senfuyant vers ls saules, et lorsque dun geste gracieux la dame den facefaisait bouffer sa chevelure, ils pensaient aux brs blancs dAntigone portant une amphore. Linconnue restait attirante comme l mystre. Les jours de pluie, ctait le dsespoir. La fnetre ferme restait morne, et la version latine semblait plus ardue et le thme plus rude. Mais quand le rideau se soulevait, les marges des dictionnaires ou des traits dalgbre se couvraient de sonnets et de ballades adresss la dame den face qui souponnait point (...).
No Brasil, Alvarenga Netto escreve as Comdias e dramas judicirios7 entre
1913 e 1933, numa referncia explcita ao ttulo de Georges Claretie e chamando a
ateno para uma tradio deste tipo de narrativa: Na Frana e em outros pases, relatos
desta natureza, so feitos anualmente, em livros ou revistas. Em Paris tornaram-se clebres as
obras de tal gnero de Albert Bataille, Sainte Auban e Georges Claretie. Deste tomei
6 Claretie, Georges. Drames et comdies judiciaires. Chroniques du Palais. 1909-1910. Berger-Levrault et Cie diteurs, Paris. 1910. 7 Alm de Alvarenga Netto, outro volume sobre causas clebres seria Causas clebres do Foro Brasileiro. Rio de Janeiro, Typographia Perseverana, 1868.
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emprestado o ttulo Drames et Comedies Judiciaires.8 O autor afirma que as narrativas so
fiis e marcam um registro de algumas tragdias ou dramas sensacionais e no um estudo
de psicologia criminal9 Algumas narrativas so bastante semelhantes crnica de
Claretie. Veja-se, por exemplo, O sorriso de Chin Lin L:
Chin Lin L tinha oitenta anos e vendia amendoim, Lang Fung tambm velho, vendia nougats. Ambos eram chineses e habitantes do beco dos Ferreiros. Uma noite, desavieram-se. Chin Lin L, calmo, frio, espetou uma faca no corao do patrcio. Lang Fung morreu instantaneamente. Quando prenderam Chin Lin L, ele sorriu, ao entrar no cubculo da Casa de Deteno, sorriu ainda. Dia do julgamento no Tribunal do Jri: Chin Lin L est indiferente, lgido. Olha o juiz e sorri. Fala o promotor e ele sorri. Durante a defesa do advogado que lhe deu a Justia, sorri tambm. Nada o comove, nada o emociona. Percorre, o olhar vagaroso pela sala do Tribunal. Parece alheado a tudo. Seus lbios esto abertos num constante sorriso. Faz piedade. To velhinho... Os jurados voltam da sala secreta, trazendo a sentena: 24 anos de priso! Quando o juiz a leu, o chins sorriu. O intrprete anunciou-lhe, em seguida, a deciso. Chin Lin L, no sorriu mais. Duas lgrimas lhe afloraram aos olhos. Chorou...10
Esclarecer de que trata a crnica do Tribunal ajuda no seguinte ponto: o romance
judicirio, muito provavelmente, era uma derivao deste tipo de narrativa e teve a sua
origem na Frana. Alm disso, pode-se dizer que havia uma certa mistura ou confuso
de significados em relao ao que tratava o romance judicirio, que englobava, por
exemplo, histrias centradas na descoberta do crime por um agente ou podia ser
caracterizado por descries romanceadas de cenas do Tribunal, e no necessariamente
descrevendo o desvendamento de um crime.
Porm, outras causas clebres de Alvarenga Netto (como por exemplo, A
estrangulada da rua dos Arcos) possuem um tipo de enredo bem caracterstico de
mistrio, suspense. Nesta crnica, o delegado de polcia descrito como experiente e
inteligente11 e toma parte importante no enredo. Alm da concluso do caso na justia
com a culpabilidade ou no do criminoso, o que toma forma como elemento da
narrativa a descoberta do crime. Portanto, em A estrangulada dos Arcos, a crnica se
inicia com o cadver:
8 Alvarenga Netto, Francisco de Paula. Comdias e dramas judicirios (crnicas de processos clebres). 1913-1933. Rio de Janeiro, Marisa, p.10. 9 Idem, Ibidem, p.9. 10 Idem, Ibidem, pp. 73-4. 11 Idem, Ibidem, p.144.
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Um grito desvairado, quela hora matinal (...) alarmou a todas (...). O grito aflitivo, cheio de angstia, partira de um dos aposentos da casa. A arrumadeira, tendo visto a sua porta mal cerrada, ia fech-la, quando, olhando para o interior, deparou com um quadro que a horrorizou, fazendo-a soltar a exclamao apavorante. Sobre o leito, vira morta, nua, completamente nua, a moradora do quarto. Tinha as mos unidas e amarradas por finas cordas. Pelo pescoo e pela boca, passavam-lhe laadas, tambm de cordas, cujas pontas estavam amarradas cabeceira da cama. A morta era a polaca Fryda Meyertall. Fora assassinada.12
Ao longo da narrativa, que mais poderia ser um conto, o delegado toma parte
importante no enredo e o responsvel pelas investigaes que, como no poderia
deixar de ser, traziam a expectativa da resoluo do caso ao leitor. Criava-se, ou j
estaria fixada neste momento anos 30 a idia de uma polcia eficiente e baseada nos
mais modernos aparatos para o desvendamento do crime, no importando o quo
misterioso fosse o caso.
No caso da crnica do Tribunal, o que deve ser notado a circulao de histrias
de crimes verdicos para um pblico mais ampliado que aquele que comparecia s
sees do jri as quais, como sabemos, eram bastante concorridas.13 Havia um interesse
em torn-los conhecidos e eram descritos de maneira romanceada e agradvel,
certamente interessando um amplo pblico.
Apesar da ausncia de referncias ao romance ingls de crime nos jornais
brasileiros de fins do sculo XIX, houve tambm uma tradio de histrias de
criminosos na Inglaterra, as quais deram subsdios ao famoso romancista de detective
fiction, Arthur Conan Doyle. O Newgate Calendar trazia uma crnica detalhada, ainda
na primeira metade do sculo XIX, dos condenados forca naquele pas, numa espcie
de relato biogrfico do prisioneiro. Segundo Ronald Thomas, estes relatos, muito
populares,14 influenciaram uma produo literria centrada no crime que, por sua vez,
influenciou a detective fiction do final do sculo XIX.15
12 Idem, Ibidem, pp. 133-4. 13 Ver, por exemplo, Cancelli, Elizabeth. A cultura o crime e da lei. Braslia. Editora Universidade de Braslia. 2001. 14By bringing together sensational memoir moral instruction, and legal history into one text, the Newgate Calendar provided its numerous avid readers with ethical warnings about the consequences of a life of crime at the same time it romanticized the rebellious outsider through a titillating and morbidly entertaining glimpse into intrigues of Londons criminal underworld. Thomas, Ronald R. Detection in the Victorian novel. Em David, Deirdre. The Cambridge Companion to The Victorian Novel. Cambridge, Cambridge University Press, , 2001, p.174. 15 Peter Linebaugh analisa o caso de Jack Sheppard, uma histria de um condenado, no captulo 1 de The London hanged. Linebaugh, Peter. The London hanged. Crime and Civil Society in the Eighteenth Century. London, Penguim Books, 1991.
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Para este autor, histrias de crime foram centrais na literatura do perodo
vitoriano e no se concentraram somente no final do sculo XIX, justamente com o
sucesso estrondoso de Sherlock Holmes: (...) classic novels of high Victorian realism
like Mary Barton (1848) or Great Expectation (1861) or Daniel Deronda (1876) turn
themselves into detective stories in the end, not merely by coming to focus on an act of
criminal detection or the discovery of a secret identity late in their complicated plots,
but in the way they dramatize the gradual containment and policing of individual
characters by the pressure of social and professional forces. This is not to claim that
every nineteenth-century novel is a detective story or that the distinctions between these
different kinds of narrative are unimportant. Rather, it points out that the historical
conditions that brought the form into being have found their way (more or less) into
virtually every other kind of literature in the period as well. In this sense, detection is
both a quality of all Victorian novels and a distinctive kind of Victorian novel in its own
right.16
Portanto, a tradio da crnica criminal no foi uma especificidade francesa,
mesmo considerando as caractersticas particulares de cada um dos dois pases
Inglaterra e Frana. No Brasil, a tradio francesa parece ter fincado mais fundas razes.
Os romances judicirios no so sugeridos como um tipo de gnero por Ronald
Thomas, apesar da clara presena da detective fiction na Inglaterra e da sua posterior
influncia em todo o mundo, durante o sculo XX. O Newgate Calendar pode ser
considerado uma narrativa equivalente, porm, especfica do contexto ingls.17Ressalto
ainda, a verificao de Thomas de que havia uma presena disseminada de crimes em
romances clssicos do sculo XIX ingls. As anlises feitas por este autor em muito
podem ajudar a compreender as narrativas de crime no Brasil.
Voltemos, ento, para as crnicas e para um tipo de produo que ainda pode
esclarecer pontos obscuros. Se nelas havia uma descrio detalhada do crime e da sua
resoluo, a literatura voltada para um pblico mais especfico, os policiais, no deixava
de chamar a ateno para uma produo ficcional de narrativas de crime.
Uma quase competio entre os detetives fictcios e reais foi apontada por
Alfredo Niceforo em Novelas sangrentas, artigo publicado no Boletim Policial, 16 Thomas, Ronald R. op. cit., p.170. 17 A particularidade pode ser explicada pela grande quantidade de crimes que foram punidos com a pena capital a partir da elaborao da Lei Negra de 1723. O Newgate Calendar, portanto, uma clara repercusso de fatos da sociedade inglesa do perodo. Sobre a ampliao da pena de morte e a Lei Negra ver Thompson, Edward. P. Senhores & Caadores. A origem da lei negra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
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peridico brasileiro, em 1913.18 Neste texto h a demonstrao de tcnicas de
investigao modernas e a comparao entre o detetive real e o detetive imaginrio
numa competio que transforma Sherlock Holmes e Lecoq em homens quase reais. H
um sentido de evoluo dos descobrimentos tcnicos de investigao policial, sugerindo
inclusive que o romancista teria um manancial inesgotvel para as suas idias caso
considerasse as mais variadas descobertas cientficas ocorridas nos ltimos tempos e a
utilizao destas pelos agentes policiais.19
Elysio de Carvalho, mentor do Boletim Policial20, publica, por volta de 1920, o
livro Sherlock Holmes no Brasil. O ttulo poderia indicar uma anlise das histrias de
Conan Doyle no Brasil, j neste momento, bastante conhecidas.21 Elysio de Carvalho
no foi somente um membro do aparato policial brasileiro, mas tambm um romancista.
Portanto, seria bem razovel imaginar que trataria da fico sherlockiana no Brasil.
Contudo, no. Apesar das referncias ao detetive, segue um caminho muito parecido ao
de Niceforo nas Novelas Sangrentas. Vejamos:
Se no fosse o receio de fazer literatura, diria que Reiss a encarnao viva de Sherlock Holmes, um Sherlock autntico, em carne e osso. A analogia flagrante, apenas com esta vantagem, que o sbio de Lauzanne realiza humanamente tudo quanto fico no detetive ideal de Conan Doyle, e ainda muito mais, e superiormente. Reiss, como Sherlock Holmes, possui esse dom natural que empiricamente se chama faro policial, mas desenvolvido, educado, aperfeioado no trato cotidiano com os intrincados problemas cientficos na descoberta de criminosos, e um e outro utilizam o mtodo de observao e de deduo no estudo do crime. Soma feita, Reiss um tipo de detetive lgico, completo, perfeito, porque possui a profisso, a cincia e a arte da polcia.22
18 Niceforo, Alfredo. O romance policial. Em Boletim Policial, Ano VII, novembro de 1913, n 11. 19 Idem, ibidem, p.144. 20 Elysio de Carvalho foi um autor de produo significativa e variada. Foi anarquista no incio de sua vida adulta. Em 1909, com o romance Five oClock anuncia, explicitamente, a sua renncia s idias anarquistas e passa a fazer carreira no servio pblico: Intelectual internacionalmente conhecido e antenado com o mundo, Elysio de Carvalho veio a destacar-se na pliade daqueles que, no Brasil, pensaram e teorizaram a modernidade republicana na tica do crime, sendo, com certeza, nesse campo do saber, o de produo mais diversificada. Tcnico da Repartio do Servio de Identificao, foi fundador da Escola de Polcia do Rio de Janeiro, tendo sido seu professor e diretor, reunindo experincias que transplantou, posteriormente, para os livros. (...) Publicado entre 1912 e 1915, o boletim [policial] tinha fins doutrinrios e tornou-se o principal instrumento em defesa da estruturao de uma polcia cientfica no Brasil (...).(p.4 Menezes, Len Medeiros de. Elysio de Carvalho. Um intelectual controverso e controvertido. Em Revista Intellectus. Ano 03. Vol.II, 2004. Ver tambm, sobre Elysio de Carvalho, o prefcio de Cassiano Nunes em Obras de Elysio de Carvalho: ensaios.UCB, Braslia, 1997. 21 Por volta de 1920, j eram publicadas as Aventuras extraordinrias de um polcia secreta (Sherlock Holmes) pela Empreza Editora das Aventuras Extraordinrias de um polcia secreta, no Rio de Janeiro. 22 Carvalho, Elysio de. Sherlock Holmes no Brasil. Rio de Janeiro, Casa Moura. s.d. (cerca de 1920), p.13
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Ao longo do livro, h a inteno de mostrar a eficcia da polcia do momento. O
fato curioso que o procedimento para esta comprovao a comparao entre
detetives imaginrios e reais. As histrias de detetive tinham tanta repercusso que uma
pessoa ligada ao aparato policial utilizava-se delas para mostrar a eficincia da prpria
polcia? Qual o interesse de autores ligados investigao judiciria em se reportarem
literatura como um lugar apropriado para o estudo das faanhas detetivescas, utilizando-
as como base para a anlise da realidade?
Carvalho continua a sua anlise de figuras de destaque no mundo investigativo
real. Outra personalidade que supera a inteligncia de Holmes Bertillon23. Num dos
captulos, Carvalho chega a comentar sobre a inveja que Sherlock Holmes tinha de
Bertillon que, segundo ele, excede ao heri imaginrio em saber, em imaginao e em
perspiccia.24 No captulo denominado Sherlock Holmes no uma fico vislumbra-
se uma possvel explicao para o fato da importncia dada ao detetive imaginrio.
Segundo o autor, o tipo de detetive criado pela imaginao de Conan Doyle25 foi
baseado em personagens reais, entre eles um professor de Doyle, o detetive norte-
americano Pinkerton e algumas descobertas cientficas da medicina legal.26
Ou seja, para Elysio de Carvalho, possvel equiparar Sherlock Holmes a
investigadores reais porque se trata de um personagem derivado de uma dada realidade.
A anlise dos indcios tida como um fato e o detetive excntrico de Conan Doyle uma
extenso destes fatos. Assim, o autor pode dizer que a tcnica dos indcios est to bem
desenvolvida entre os reais investigadores que Sherlock Holmes no passa de um bem
fraco tipo de detetive.27 No decorrer do captulo, h a narrao da resoluo de um
crime, considerado por Carvalho como prova de que Sherlock Holmes no somente no
pura imaginao, mas at uma plida cpia da realidade palpitante.28
Sherlock Holmes no Brasil ir, a partir de ento, numa sucesso de captulos
semelhantes queles existentes em Alvarenga Netto. Uma seleo de grandes casos
exibida luz das tcnicas de investigao indiciria, mostrando a eficcia da polcia
investigativa. Portanto, apesar da anlise luz da antropologia criminal e das tcnicas
23 Ver tambm, sobre Bertillon, o livro Carvalho, Elysio de. Alphonse Bertillon. XXVI - Biblioteca do Boletim Policial. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914. As informaes so praticamente as mesmas de Sherlock Holmes no Brasil. 24 Carvalho, Elysio de. op.cit., p.26. 25 Idem, ibidem, p.36. 26 Carvalho, Elysio de. op.cit., p.36. 27 Idem, ibidem, p.38. 28 Idem, ibidem, p.42.
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de investigao judiciria, o livro de Carvalho retoma, em certo nvel, o sentido
daquelas crnicas de causas clebres feitas por Alvarenga Netto.
Para Ronald Thomas, o auge da detective fiction com o personagem de Conan
Doyle paralelo s novas formas de investigao e controle do crime e do criminoso.
Assim, a primeira histria de Holmes, Um estudo em Vermelho de 1887, justamente
do mesmo ano em que Alphonse Bertillon ganha notoriedade com o mtodo de
identificao de criminosos baseado nas medidas e na quantificao de certas partes do
corpo humano.29 Para Thomas, the Sherlock Holmes stories not only provided good
entertainment for the middle-class readers, they also anticipated and popularized
contemporaneous advances in criminological practice as well. Indeed, both Bertillon
and Edmond Locard, another pioneer in forensic medicine and criminology in France,
attributed some of their own innovations to their reading of the Sherlock Holmes
stories. () Locard would even instruct his colleagues and students to read over such
stories as A Study in Scarlet and The Sign of the Four in order to understand the basis
of the practices he was recommending.30
interessante notar que tanto Elysio de Carvalho quanto Alfredo Niceforo
confirmam estes dados fornecidos por Thomas. Os especialistas do crime, na sua busca
pela verdade, pelo domnio do crime com o seu conseqente controle, no abdicam de
nenhuma possibilidade, entre elas a leitura das novelas sangrentas.31 Neste nterim,
parece existir no somente uma tentativa de tornar pblica as descobertas cientficas,
mas tambm mostrar que os agentes reais da polcia so bastante eficientes, mais que
aqueles mostrados nas narrativas detetivescas. Aparentemente, um tipo de produo que
se assemelha s crnicas do Tribunal, requintado pelas anlises da cincia criminal.
Mas, retornemos definio de romance judicirio de Enrico Ferri. Este autor
ainda chama ateno para os dramas judicirios, ou seja, peas teatrais que traziam um
crime como tema central. Para ele, tratava-se de um gnero anlogo ao romance e,
muito comumente, tirado de um folhetim.32 Acrescenta ainda que o pblico aguarda
emocionado e ansioso33 a resoluo do drama que, normalmente, acaba com a
punio dos culpados e o jbilo dos inocentes.
29 Thomas, Ronald R. op.cit., p.185. 30 Idem, ibidem, pp.185-6. 31 Termo utilizado por Alfredo Niceforo. 32 Ferri, Enrico, op.cit., p.106. 33 Idem, ibidem, p.105.
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O que era chamado de romance judicirio parece abranger um grupo de
romances mais amplos que aqueles que, aparentemente, passaram a ser reconhecidos
como romance policial no sculo XX. Thomas, ao chamar a ateno para uma
disseminao de histrias de crime entre toda a literatura do perodo vitoriano repara
este fenmeno. Franco Moretti em Slaughterhouse of literature34 toma o mesmo
procedimento e acaba concluindo que as histrias de Sherlock Holmes estavam imersas
em uma imensidade de outras histrias que no necessariamente se assemelhavam ao
que ele definiu como um padro de histrias de sucesso, determinadas pela busca e
decifrao de pistas, as quais o leitor necessariamente deveria acompanhar: Inevitable
was the tree, not the success of this or that branch: in fact, we have seen how unlikely
the branch of clues was in the 1890s.35
Para os nossos interesses, esta indefinio de sentidos ajuda a delimitar as
histrias de crime no Brasil. Elas circularam em forma de folhetim e livros
principalmente nos anos finais do sculo XIX e houve um efetivo boom de histrias
ficcionais de crime nos anos iniciais do sculo XX. No havia uma referncia explcita
de que se tratavam de histrias policiais ou de romances policiais e muitas delas eram
romances traduzidos do francs ou do ingls, mas tambm de autores brasileiros, entre
eles Carneiro Vilela e Aluzio Azevedo. O que certo que houve uma receptividade e
uma aceitao destas narrativas pelos leitores, pois basta abrir as pginas dos jornais
para notar a presena intensiva das narrativas de crime.
34 Moretti, Franco.Slaughterhouse of literature.Em Modern Language Quarterly, spring, 2000. 35 Idem, ibidem, p.227.
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