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Arte Afro-brasileira: Uma questão em aberto

Por

Raimundo Nonato Ribeiro da Silva

Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia

“A criação plástica é uma expressão de cultura tanto quanto visão estética do mundo. Às

vezes é difícil curvar ou fazer desaparecer as tendências plásticas de um povo ou de

uma classe.”

Mário Barata

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Negada ou deturpada ao longo do tempo, a contribuição dos povos africanos para a

formação da cultura brasileira, mesmo nos dias de hoje é alvo de controvérsias e

especulações, certamente um assunto de difícil abordagem. É do conhecimento geral

que a influência africana em nossa cultura remonta desde os primeiros séculos da

colonização abrangendo toda a nossa história, sendo, portanto base de nossa formação.

Os africanos, na condição de escravos, trouxeram para o Brasil sua cultura, tendo suas

elaborações da vivência com as outras culturas dado a nossa sociedade sua identidade.

Santos (2001) muito apropriadamente, afirma que na cidade de Salvador essa população

preservou grande parte de suas culturas de origem, em diferentes graus de aculturação,

dependendo da maior ou menor retenção dos modelos e raízes africanas e das

circunstâncias sócio-históricas das diversas regiões onde se estabeleceram os vários

grupos étnicos.

Mesmo submetidos à violência, pobreza e discriminação os afro-brasileiros construíram um legado de dignidade, beleza e diversidade. Suas práticas religiosas são marcadas por vigorosas expressões plásticas e estéticas, materializadas nos seus rituais e símbolos sagrados. (SANTOS, 2001, 27)

A autora afirma ainda que “a atividade ritual engendra uma série de outras atividades;

música, dança e recitação, arte e artesanato, cozinha, etc., que integram um sistema de

valores” (idem: p.38) Assim não podemos deste modo conceber o que é o ethos baiano e

consequentemente o brasileiro sem levar em conta essa contribuição que é em verdade

base da nossa cultura e se manifesta de maneira mais explícita ou implícita na medida

em que esses traços africanizantes aparecem reformulados e relidos pelo próprio

processo de aculturação resultando no que reconhecemos hoje por traços culturais

brasileiros . No caso da Bahia a presença africana, especialmente em Salvador e na

região do recôncavo foi preponderante e deixou marcas indeléveis na formação étnica e

cultural. Essa marca pode facilmente ser vista, ouvida e literalmente saboreada. Pode ser

tocada e nos tocar. Contudo essa “proximidade” com as matrizes africanas, longe de

apresentar a pureza ideal que muitos querem, incorporou, como em outras regiões do

país, durante séculos adaptações ditadas pelas circunstâncias sociais e políticas às quais

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a população africana no Brasil estava submetida tanto na sociedade escravista quanto a

que se seguiu a esta.

Afro nas artes visuais

No universo das artes visuais, onde passaremos a analisar o fenômeno que chamamos de

arte afro-brasileira, este bem reflete a situação ambígua do negro na cultura brasileira e

suas complexas relações com a cultura hegemônica.

Até que ponto essa classificação tão utilizada nos confunde ou esclarece a respeito da

apropriação do repertório estético-cultural afro-brasileiro? O presente artigo tem como

objetivo discutir essa questão, para nós uma questão em aberto, campo a ser explorado,

além da simples conjectura, se fazendo necessário abandonar as fórmulas fáceis

generalizantes e preencher as lacunas, antes com pesquisas minuciosas e uma visão

aberta. Sendo necessário reconhecer que a presença e a contribuição do elemento

africano vai muito além do que é admitido.

Na Bahia especialmente a apropriação das matrizes culturais africanas se dá mais

explicitamente pela assimilação dos elementos simbólicos oriundos da tradição religiosa

viva no candomblé que é uma elaboração cultural inter-africana feita no Brasil. Quando

falamos afro-baiano ou afro-brasileiro, estamos nos referindo a uma influência direta da

África sobre a cultura baiana e brasileira? Ou às tradições africanas refeitas em

território brasileiro? Mas como medir essa influência e declará-la pura de outros

elementos? Ao se classificar uma obra de arte como brasileira já não estaríamos

reconhecendo e aceitando a influência e contribuição africanas como elemento

constitutivo de nossa identidade.?, Em alguns momentos a manipulação desses termos

parece querer negar mais do que destacar a importância da participação do negro no que

se convencionou chamar identidade brasileira, ainda que essa contribuição seja a nossa

própria identidade. Parece ter o brasileiro um grande complexo de ver-se ou sentir-se

negro.

Sendo a nossa matriz cultural complexa e de difícil exame posto as dificuldades

encontradas. De fato o que é baiano e brasileiro não deixa de passar por uma

africanidade, é certo, contudo, que essa africanidade não pôde ao longo do processo de

civilização ficar intocada por outros elementos, como também não pode ficar intocada a

cultura portuguesa de além mar. A respeito desse elemento africano na cultura baiana,

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este é certamente uma releitura do que antes era puramente africano, releitura,

reinterpretação, adaptação, recriação, resultado de séculos de aculturação e resistências

que deram aos elementos da cultura africana, oriundos de várias nações, vale dizer, um

caráter eminentemente brasileiro. Porém mesmo diante da predominância de elementos

de origem africana sobre as demais culturas, isso não facilita separar o que é afro-

brasileiro do que não o é. Nesse contexto é muito difícil, senão impossível dizer o que

na cultura brasileira e especialmente a cultura baiana não é de origem africana ou em

certa medida africanizado. Vejamos a visão de um autor respeitado por sua erudição e

interesse genuíno pelo assunto em questão. Clarival do Prado Valadares (1988), ao

analisar a escultura afro-brasileira comenta:

É claro que nas centenas de anos decorridos na escravidão e nos sessenta posteriores, os negros tiveram uma série de contatos com outros tipos de cultura, um dos quais tomou quase sempre em relação a sua, atitudes hostil, forçando-os à aquisição de modos de vida novos. Desse fato resultaram transformações da criação plástica dos negros, com resultados visíveis e, possivelmente, alguns que não são reconhecidos à primeira vista. (VALADARES,1988,p.74).

Para Mário Barata, a grande massa de africanos aqui chegada trouxe consigo suas

técnicas e concepções plásticas, ligadas aos cultos religiosos e essa influência mais

direta ,na Bahia durou até o séc.XX

de toda ou grande parte da América do sul, só o nosso país (Bahia, durante muito tempo, Rio ) parecem ter se conservado de maneira evidente, as técnicas e concepções plásticas africanas. durante esse tempo muitas peças foram trazidas da África ou feitas aqui por africanos até o início do séc.XX. Uma vez cessado esse contato ,formou-se na Bahia um centro de escultura destinado a abastecer os terreiros. Esses escultores eram certamente descendentes de africanos ligados ao culto. (1988:183 )

Barata acrescenta que o estudioso Melville J.Herskovits1 depois de ter estudado grupos

negros na África e na América verificou:

o contato e entre a Bahia e a África ocidental foi mais constante e se prolongou até uma data mais recente do que em qualquer outra região do novo mundo; africanos viviam aqui, falando suas línguas nativas, até o começo deste século vinte fato tão singular no novo mundo como o outro, embora menos conhecido, de somente na Bahia, dentro do novo mundo, haver se preservado de maneira apreciável a tradição artística africana da talha de madeira e do trabalho em metais (1988:187 )

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Das várias fontes confiáveis sobre a presença africana entre a segunda metade do séc.

XIX e princípio do XX. Nina Rodrigues (1976) relatando a presença de africanos na

Bahia diz: “[...] navios a vela para Lagos três a quatro vezes por ano traziam nagôs

negociantes falando iorubano e inglês e trazendo noz de cola, cauris, objetos do culto

jeje-ioruba, sabão, pano da costa [...]” (1976, p.105 ).

Entre a segunda metade do século XIX e primeiros anos do séc. XX, entravam na Bahia

esculturas, outras eram feitas aqui por africanos, conservando assim os caracteres

estilísticos originais, que eram facilitados pela existência de modelos e exigências do

culto e da tradição, que fixavam os dados formais dos objetos. Apoiando-se nesses

argumentos, Mário Barata, como vários outros autores, afirma a maior proximidade da

cultura baiana com África e enfatiza a importância da escultura africana como fonte de

expressão artística que mais diretamente marcou a arte brasileira e baiana. Tendo

explicado sobre a influência direta de escultores africanos, o autor caracteriza a

escultura afro-brasileira da seguinte forma:

1- esculturas que obedecem tendências estéticas negras, sendo obra de arte de padrões novos; 2- esculturas do resultado do confronto entre a tradição africana as de outras origens, correspondendo a novas necessidades e situações; 3- esculturas feitas por africanos ou seus descendentes diretos ligadas à tradição africana, mas descaracterizadas na forma ou na plástica esquecidas ou superadas; 4 esculturas realizadas por descendentes de negros integrados `a cultura branca, sem aspectos estilísticos africanos.(parece ser o caso de Aleijadinho e Mestre Valentim) trabalhando dentro do sentido católico barroco, nesse caso não se relacionam com a estilística negra no Brasil.(BARATA,1988,p.183)

O estudioso não dá, contudo outros exemplos. Mais adiante na obra citada afirma que a

influência da arte africana conservada na Bahia, fez aparecer núcleos de artistas

populares que mantêm vivas as tendências estéticas africanas. A maioria está ligada ao

candomblé e utilizam vários materiais, essa arte se concentra nos arredores da cidade.

formou-se no Salvador um centro de escultura ligado a manutenção dos cultos negros. Seja em certos bairros ,seja nos arredores da cidade, artistas fizeram , até os dias atuais ,orixás, fornilhos de cachimbos, acentos e outras peças metálicas, com aspectos africanos mais ou menos conservados. (1988,p.183 ):

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Podemos então concluir que o que é africano está intrinsecamente ligado ao que é

baiano, e que essa influência por não se limitar a modelos externos a nossa cultura

se manifesta nos seus processos formadores.

Europa, África e Bahia

A investigação acadêmica só muito recentemente vem se afastando dos ranços

etnocêntricos, dos conceitos estreitos e da visão comprometida por preconceitos e

manipulações que orientam para uma leitura de mundo onde o que não pertence à

cultura dominante é reduzido a esquemas interpretativos superficiais, estereotipando e

rotulando erroneamente o que não se enquadra em suas categorias estreitas. Isso

acontece, é claro, com a arte dos povos não ocidentais, que por não se encaixarem aos

conceitos preestabelecidos são submetidos a juízos de valor que consideram sempre o

bom, o elevado e o certo as manifestações artísticas das sociedades ocidentais e seus

pressupostos estéticos. O resto pode ser primitivo, étnico, ingênuo ou qualquer outro

rótulo cômodo que não exija nenhuma investigação mais profunda nem revele nada

além do que está convencionado. Recente também é a valorização da arte africana. Na

Europa ela ganhou nos cubistas admiradores por ser considerada plena de

expressividade “primitiva” e revelar um novo universo estético pleno de vigor. A esse

respeito Argan esclarece com uma explicação que não esconde seu etnocentrismo:

Picasso não estava sendo o primeiro a descobrir a escultura negra: já haviam chegado os fauves e os expressionistas, seguindo os rastros do exotismo e primitivismo de Gauguin. Picasso encontra os novos valores que buscara fora da cultura européia. [...] Não é o motivo do exótico, do selvagem, do aterrador que o interessa, mas a estrutura plástica que exclui as distinções entre forma e espaço. (1992, p.426)

Argan afirma ainda que Picasso não tem a intenção de imitar a arte negra e sim de

romper com a estética européia:

a arte negra, que condensa todo o espaço na estrutura plástica da forma, é o extremo de uma relação dialética, de um problema; o outro extremo é a pintura de Cézanne, que soluciona as formas particulares na estrutura do espaço [...] Picasso resolve isso adotando a arte africana como elemento de ruptura com de um limite histórico. Nesse contexto o fato de Picasso e outros artistas europeus terem sido influenciados pela arte africana para romper com a estética estabelecida, não o faz um artista afro-francês. (1992, p.426)

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Se bem observarmos, quando se diz que artistas europeus foram influenciados pela arte

africana devemos nos acautelar dessa generalização, pois o que os europeus conheceram

foi o objeto de arte africano, destituído do seu contexto, visto apenas como objeto

estético, linhas e volume. Pois pouca coisa de fato os europeus sabiam da arte africana

ou de outros continentes, sempre deturpada por suas visões parciais e generalizantes. A

arte africana, dita primitiva era vista pelo europeu como fetiche, como objeto

“primitivo”, “exótico”, “selvagem”, ligados a cultos fetichistas, alvo de interpretações

raciais equivocadas. Estudiosos proeminentes como Nina Rodrigues, movidos pelo

espírito científico da época viram a arte africana até como prova de uma pretensa

patologia e pretensa inferioridade dos negros.

Por pertencer a outro sistema cultural, o ser e o fazer na arte africana difere da arte

européia obviamente. Na África aquilo que chamamos arte está diretamente ligada à

vida da comunidade e do cotidiano das culturas que as produzem. Sua ligação com o

sagrado é inegável e o conceito de arte como coisa individualizada não é de maneira

alguma a característica mais marcante dessa arte que expressa o interesse da

coletividade e interligação do mundo mágico dos ancestrais ao mundo social; o mítico e

o político. Essa arte também apresenta características funcionais complexas que só é

possível entender conhecendo a cultura de cada povo que a produziu. Outra idéia que

perpassa a mentalidade ocidental é a idéia de uma África homogênea e primitiva com

sua população vivendo ainda no paleolítico. Ora o continente Africano é um grande

mosaico humano, povos e civilizações que coexistem, algumas já extintas, outras em

pleno florescimento. E cada uma a sua maneira produziu arte dentro de recursos

técnicos e estilísticos próprios e ao contrário do que se imagina e se generaliza, a arte do

continente africano não era homogênea, nem estava fechada no tribal. Barata (1988)

aponta três tendências estilísticas dominantes na África que nem sempre estão

separadas, pois como foi dito esse não era um campo tão isolado. Barata (Op.cit.)

afirma: “Havia na África vários centros de estilos e três tendências dominantes; Uma

realista, uma geométrica e outra expressionista.” (que poderia ser uma derivação de uma

combinação entre as duas primeiras) Assim a nossa visão da arte africana é muitas vezes

estereotipada reduzindo a sua plasticidade a uma imagem escultórica de fatura tosca,

ingênua, que se repete no tempo e no espaço não importando o povo em questão.

Caímos assim no velho clichê: ver a arte fora do seu contexto cultural e julgá-la com os

parâmetros de outra cultura, no caso a ocidental.

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O afro na arte brasileira

A partir da definição de arte afro-brasileira feita por Zanini (1983) na obra História

Geral da Arte Brasileira, podemos traçar um paralelo do que está também definido por

arte afro-baiana; Zanini define:

Arte afro-brasileira é uma expressão convencionada artística que, ou desempenha função no culto dos orixás, ou trata de tema ligado ao culto [...] Dentro desse critério são, com justiça, incluídos no campo afro-brasileiro iconografias do caboclo ou da umbanda que nada tem de africano nem no estilo nem na técnica. (1983, p. 977)

Na conceituação de arte afro-brasileira feita por Zanini, há uma concordância com

outros autores ao relacionar artes visuais e patrimônio religioso afro-brasileiro, o que é

afro-brasileiro está diretamente ligado ao culto dos orixás ou indiretamente pela

representação de algum tema correlacionado, contudo o próprio Zanini adverte sobre a

estreiteza do conceito quando ressalta apenas o caráter religioso dessa influência,

relegando o segundo plano outras manifestações da cultura material de conteúdo afro-

brasileiro. Ainda assim o que está convencionado como arte afro-brasileira, não

ultrapassa os limites do fazer religioso, embora saibamos que a influência africana vai

muito além dos terreiros, despejando-se por todas as atividades humanas, sobretudo as

artesanais/artísticas. Raul Lody. afirma afortunadamente:

os espaços sagrados dos terreiros ,embora produzam e os abasteçam objetos de fundo religioso, também expressam na sua plástica objetos não comprometidos com os deuses , o mesmo ocorrendo com a música, a dança, as tradições orais e outras formas de comunicação artística e de propostas afro-baiana, afro-pernambucana, afro-maranhense ou de outras regiões que já consolidaram seus sistemas de fazer, significar e simbolizar.(1995, p.21 )

Podemos acrescentar a isso a afirmação de Valadares:

a contribuição vai além do aspecto estilístico , presente na escultura popular e de origem religiosa o campo é muito mais vasto, é preciso examinar a função das peças na sociedade pois nem só os cultos religiosos utilizam as tradições estéticas africanas o carnaval e outras festas populares foram e são o repositório dessa herança plástica.[...] (1988, p.189)

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Nesse ponto o autor perfila uma série de manifestações populares que não podem

prescindir da visualidade: “ reizados, congadas e bumba-meu-boi, procissões com seus

adereços como máscaras, estandartes, [...]”.(Idem.) Urge portanto o estabelecimento de

um conceito mais preciso e abrangente sobre a arte afro-brasileira.Tanto pelo estudo das

coleções de objetos apreendidos dos candomblés pela polícia e depositados em

instituições públicas ou em coleções particulares, como por uma atenta observação do

patrimônio vivo no cotidiano brasileiro; também observado por Lody:

usuários, construtores e demais casos que implicam os aprendizados de trabalhos artesanais/artísticos, não exclusivamente em situações que levem a um destino religioso, mas também nas convergências e trocas permanentes dos artesãos, artistas, artífices e demais categorias de trabalhadores que expressam, conhecem e detêm um saber afro-brasileiro. (1995, p.240)

Além da arte ritual, outro campo onde alguns autores reconhecem a influência afro-

brasileira é na chamada arte primitiva ou naïf. A respeito dessa arte e dessa atitude

Valladares diz:

E essa permissão e aplauso se referem à determinada arte primitiva, situada em termos de docilidade, de potencialidade anódina, na dose exata em que a pintura naïf deve comportar-se no conjunto das coleções ou das decorações de ambientes privados de aparente clima cultural. (-1968, n 47)

Podemos dizer que, todas essas observações quanto ao termo afro-brasileiro, aplicam-se

ao afro-baiano. Se o termo afro-baiano refere-se a tudo aquilo que remete às matrizes

africanas torna-se difícil dizer o que não é afro-baiano se todas as criações culturais

recebem direta ou indiretamente a influência da vida social da qual faz parte e nossa

sociedade é em essência africanizada e afro-baianizante. Como produzir arte fora do

contexto cultural que vivemos se a própria arte nasce desse contexto e com ele se

interrelaciona? Diz-nos Geertz:

Assim como não podemos considerar a linguagem como uma lista de variações sintáticas, ou o mito como um conjunto de transformações estruturais, tampouco podemos entender objetos estéticos como um mero encadeamento de formas puras. (1997, p. 140).

O autor toma como exemplo a linha, e o seu significado na cultura ioruba, que aponta a

clareza linear e a precisão do traço, como as principais preocupações dos escultores e do

seu público. É o vocabulário de qualidades lineares, que os ioruba usam coloquialmente

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e em referência a um aspecto de interesses muito mais amplo do que simplesmente a

escultura, é sutil e extenso. E não são só suas estátuas, potes e outros objetos

semelhantes, que os ioruba marcam com linhas: fazem o mesmo com seu rosto. Os

cortes que tornam-se cicatrizes servem para indicar posição social, linhagem e status. É

nessa civilização tão importante o traço, que a linha está associada com civilização. Em

ioruba , “este país tornou-se civilizado”, significa: “esta terra tem linhas na face”.

(Op.cit,p.148) Para o autor :

A preocupação constante que os escultores ioruba têm com a linha’ e com formas específicas de linha, nasce, portanto, de algo mais que um prazer desinteressado em suas propriedade intrínsecas, ou de problemas técnicos da escultura, ou mesmo de alguma noção cultural que poderíamos isolar e considerar como estética nativa. Ela surge como conseqüência de uma sensibilidade específica, em cuja formação participa a totalidade da vida-e segundo a qual, o próprio significado das coisas são as cicatrizes com que os homens as marcam. (op.cit. p.149 )

Assim as bases da formação artística não podem estar soltas no vácuo, e sim ligada a

uma coletividade, sendo tão ampla e tão profunda como a vida social não sendo também

como querem alguns um mecanismo elaborado para definir as relações sociais. A

conexão central entre a arte e a vida coletiva então, se encontra num plano semiótico

(nem formalista nem funcionalista) é esta uma conexão ideacional, não mecânica, são

conceitos que buscam um lugar significativo; não ilustrações de conceitos. Isso talvez

explique a sobrevivência de certos traços africanos em nossa cultura material e

espiritual e porque alguns artistas captem com sua aguçada sensibilidade esse

sentimento e faça dele a sua via de expressão, porque talvez ao seu público seja isso que

realmente interesse, esse lugar significativo buscado. E também por isso ainda seja

pouco afirmar que a maior herança artística africana seja a escultura. Quem sabe a nossa

maneira de apreciar as cores e por elas ser afetados, ou quem sabe no nosso paladar e

relação com o comer, com os cheiros e os sons ou ainda em nossa relação com o corpo e

o vestir. Isso dependerá com que instrumentos analisemos as manifestações artísticas, se

tendo como parâmetro uma nova relação com a arte e a maneira de pensá-la ou se com

os olhos do eurocentrismo tendo como medida a maneira de sentir do ocidente, branco

e gregoromanizado e mais recentemente americanizado, e sua parafernália formalista e

ou funcionalista, e suas comparações auto centradas onde o diferente sai perdendo

sempre nas rotulações superficiais e depreciativas , comprometidas com teses que

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buscam afirmar a todo momento a superioridade de alguns povos em relação a outros e

a arte por ser um campo de subjetividades é um fértil território para isso.

Se há uma arte afro-brasileira e afro-baiana, ela é certamente influência, continuidade,

tradição, adaptação, interferência dinâmica de interação com novos meios e usos de

elementos antes africanos, aculturados não perderam, contudo seu sabor e prevaleceram

modificados e renovados em outras formas plásticas outras ideações, mas que sempre

estão remetendo à matriz originária. A despeito da sua falta de exatidão, o termo afro-

brasileiro continua sendo empregado para classificar a obra de alguns artistas.

Concordamos com Zanini (1983 ) ao considerar a qualificação afro-brasileira no campo

das artes, uma qualificação “ambígua e provisória”. Pois essa qualificação ao englobar

artistas de diferentes etnias e tendências estéticas tendo em comum apenas a apropriação

de elementos da cultura religiosa ou popular de origem africana nos revela que é hora de

dizer simplesmente artista brasileiro ou reservar o termo afro brasileiro e afro-baiano

somente para alguns casos específicos.

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