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São Paulo2014

D O N I Z E T E V I E I R A

S ã o Pa u lo S e m C a S aA luta de paulistanos para viver com dignidade

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2014 © Donizete VieiraLivro-reportagem apresentado como trabalho de conclusão de curso, uma exigência para a obtenção do título de bacharel em Jornalismo, do curso de Comunicação Social da UniFiamFaam. Diretora dos cursos de Comunicação SocialProfa. Dra. Marcia Avanza

OrientadorProf. Dr. Alex Criado

DiagramaçãoGledson Zfissak

RevisãoGuilherme Rocha Salgado

Fotos de capaEduardo Ogata

Qualquer parte desta publicação somente poderá ser reproduzida, desde que citada a fonte

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Dedico este livro à minha companheira Alice, pelo apoio e incentivo durante todas as etapas deste trabalho.

Aos meus pais por me conceberem, e a toda minha família por compartilharem comigo a realização deste sonho.

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Sumário

C a p í t u lo 1Habitação é direito humano .......................................................................................9

Constituição de 1988 e Estatuto das Cidades ...........................................................13

Assentamentos precários e sem infraestrutura .........................................................16

C a p í t u lo 2Um quarto, um casal, duas filhas e uma sala dividida ......................................17

C a p í t u lo 3Uma casa para duas famílias ....................................................................................25

C a p í t u lo 4Quando o aluguel consome parte da vida ............................................................33

C a p í t u lo 5História de uma vida precária ..................................................................................43

C a p í t u lo 6O “trânsito” na avenida Vinte e Sete ......................................................................51

C a p í t u lo 7História da habitação social no contexto do capital ...........................................59

Vilas operárias .................................................................................................................62

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Lei do Inquilinato ...........................................................................................................63

Banco Nacional da Habitação (BNH) ...........................................................................64

Fundação da Secretaria Municipal da Habitação e Desenvolvimento Urbano (Sehab) ..........................................................................65

Cingapura ........................................................................................................................67

Morar no Centro .............................................................................................................67

Minha Casa Minha Vida ................................................................................................68

Últimos anos ...................................................................................................................69

C a p í t u lo 8Uma nova estratégia ...................................................................................................71

Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) ..................................................................74

Outorga Onerosa ............................................................................................................75

Fundo de Desenvolvimento Urbano ...........................................................................75

Operações Urbanas Consorciadas ...............................................................................76

IPTU progressivo .............................................................................................................77

Cota de solidariedade ....................................................................................................77

Mais qualidade de vida ................................................................................................ 78Eixos de transporte e valorização das áreas térreas ................................................. 78

Agradecimentos ...........................................................................................................80

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Habitação é direito humano

Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 25.1).

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Desde 1948, a habitação é consi-derada direito fundamental, pela Organização das Nações Unidas

(ONU). Além disso, o órgão internacional estabelece os fatores de adequação mínimos para o bem-estar social de homens, mulhe-res e crianças ao redor do mundo. Esse di-reito é reafirmado em vários tratados inter-nacionais. Atualmente, é citado em outros 12 textos da ONU.

O direito à moradia não está basicamen-te restrito a um teto e quatro paredes. O Estado deve garantir um lar e uma comu-nidade que assegurem uma vida com paz, dignidade e saúde, física e mental, a todo ser humano.

De acordo com o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, a adequação da habitação é determinada por fatores sociais, econômicos, culturais, climáticos, ecológicos, entre outros. No en-tanto, é possível identificar certos aspectos do direito que devem ser levados em conta:

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• Segurança jurídica da posse: todos têm o direito de mo-rar sem medo de ser removido ou sofrer ameaças indevidas ou inesperadas. A segurança dessa posse varia de acordo com o sistema jurídico e cultural de cada nação, região, ci-dade ou povoado;

• Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura: toda moradia deve estar ligada às redes de saneamento básico, como água e esgoto encanado, energia elétrica e gás. Em suas imediações devem existir escolas, creches, unidades básicas de saúde e áreas públicas desti-nadas ao esporte e lazer. São fundamentais os serviços de limpeza, coleta de lixo, transporte público, entre outros;

• Acessibilidade: o custo de aquisição ou locação do imó-vel não pode subtrair da renda familiar valor que compro-meta os demais direitos básicos de seus integrantes, como alimentação, educação, lazer etc. Além disso, gastos com energia elétrica, água, gás e manutenção do imóvel não de-vem ser muito onerosos;

• Habitabilidade: as moradias adequadas devem proteger seus habitantes contra frio, calor, chuva, vento e umidade. O imóvel não pode ser vulnerável a incêndio, desmorona-mento, inundação e qualquer outro fator de risco à saúde e à vida de seus habitantes. O tamanho da casa e a quan-tidade de cômodos (quartos e banheiros, principalmente) devem atender de forma confortável ao número de mora-dores. Espaços adequados para lavar roupas, armazenar mantimentos e cozinhar são importantes;

• Não discriminação e priorização de grupos vulnerá-veis: idosos, mulheres, crianças, pessoas com deficiência, pessoas com HIV, vítimas de desastres naturais, entre outras, não só precisam ter prioridade na aquisição de imóveis, como devem ser protegidos contra atos discrimi-natórios. A legislação e as políticas habitacionais devem considerar suas necessidades especiais e garantir bem--estar e direitos;

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• Localização: a moradia deve estar em local com oferta de oportunidades de desenvolvimento econômico, cultural e social. As proximidades da moradia precisam ter trabalho e fontes de renda que garantam meios de sobrevivência, rede de transporte público, supermercados, farmácias, correios e outras fontes de abastecimento básicas. A locali-zação da moradia deve garantir acesso a um meio ambiente equilibrado;

• Adequação cultural: as construções de moradias devem considerar as características socioculturais do povo, preci-sam expressar a diversidade cultural dos moradores e mo-radoras. Mesmo as reformas e projetos de modernização devem respeitar a cultura local.

Para a população de baixa renda, possuir um teto pode não ser tão complicado graças ao famoso “jeitinho brasileiro”. No momento em que o terreno é ocupado ou adquirido chamam--se parentes, amigos, o pedreiro conhecido e vizinhos. Com-pra-se o material necessário e, em pouco tempo, alicerces, paredes e teto estão prontos para abrigar o sonho do morador. Esse é o fenômeno da autoconstrução.

Constituição de 1988 e estatuto das Cidades

Apenas na Constituição de 1988 o direito à moradia foi contemplado no Estado brasileiro. O artigo 182 determina que cabe ao poder municipal ordenar e garantir o desenvolvi-mento urbano a partir do Plano Diretor Estratégico, que deve ser aprovado na Câmara Municipal em cidades com mais de 20 mil habitantes. Além disso, a função social da propriedade deve ser assegurada pelo Poder Executivo por meio do acrés-cimo de uma taxa progressiva no Imposto Predial e Territo-rial Urbano (IPTU), a ser aplicada aos donos de imóveis de-socupados há mais de cinco anos. Caso o imóvel permaneça

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vago, e o proprietário não apresente nenhum projeto de uso adequado, o município pode desapropriá-lo. O pagamento seria feito com títulos da dívida pública, que poderão ser res-gatados no prazo de dez anos.

Já o artigo 183 assegura o direito à propriedade para todo cidadão que ocupar área urbana de até 250m², por mais de cinco anos, desde que não haja oposição ou reclamação da posse nesse período. O imóvel também não pode ser uma área pública e o ocupante não pode ser proprietário de outro imó-vel. Esse direito é conhecido como usucapião.

“Ali no final da década de 1980, os movimentos de luta por moradia ainda estavam começando a se articular para fazer valer seus direitos na legislação, a Constituição esta-va em fase de votação no Congresso, e tudo o que conse-guiram foi a inclusão desses dois artigos. Por outro lado, o movimento conservador era mais organizado e conseguiu a garantia de bons mecanismos de proteção e retenção do acúmulo de bens”, lamenta o urbanista Luis Octávio da Sil-va, que atua como assessor de gabinete na Subprefeitura Sé. Servidor concursado da Secretaria Municipal de Desenvol-vimento Urbano (SMDU) desde 1991, Luis participou em 2009 da criação do Plano Municipal da Habitação, na gestão do prefeito Gilberto Kassab. Na década de 1990 os direitos garantidos pelos artigos 182 e 183 sempre foram questiona-dos e considerados inconstitucionais pelo Judiciário: “Eles sempre alegaram que isso feria o direito à propriedade que também está contemplado na mesma Constituição. No en-tanto, os dois artigos foram importantes para consolidar a questão da habitação social no âmbito das políticas públicas. Até então, todas as iniciativas neste sentido eram temporá-rias e conduzidas por governantes locais, que implantavam novos projetos e abandonavam outros a cada quatro anos, de acordo com as posições ideológicas”.

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Durante muitos anos urbanistas sensíveis às demandas so-ciais e comprometidos com a causa da repartição mais justa do solo buscaram mecanismos que proporcionassem maior equidade aos custos e benefícios da urbanização. “Afinal, não é justo que apenas proprietários e incorporadoras imobiliárias sejam os únicos beneficiários das intervenções urbanísticas fi-nanciadas pelo dinheiro dos impostos pagos por todos os ci-dadãos”, afirma Luís Octávio.

Embora essa luta tenha origem no final da década de 1960, os primeiros resultados foram obtidos somente mais de 30 anos depois, com a aprovação e sanção do Estatuto da Cidade, em 2001, pelo governo federal. Além de regulamentar os ar-tigos 182 e 183 da Constituição, o Estatuto estabelece normas mais específicas para o parcelamento do solo e a verticalização em áreas urbanas. Uma delas é o princípio da Outorga One-rosa, conhecido como Solo Criado, aplicado em áreas planas de loteamentos. Por meio desse dispositivo o poder público exige obras de infraestrutura e instalação de equipamentos comunitários, como praças no entorno de empreendimentos imobiliários. O objetivo é diminuir o impacto causado pelo adensamento populacional.

Em São Paulo, os movimentos de moradia tentam pressio-nar os órgãos públicos a cumprir a obrigação de garantir a fun-ção social da propriedade. Para isso promovem ocupações em prédios e terrenos vagos, mas quando os “proprietários” desses imóveis acionam o Poder Judiciário, o direito à habitação, asse-gurado pela ONU na Declaração Universal dos Direitos Hu-manos, e o princípio da Função Social da Propriedade, garan-tido pela Constituição e Estatuto da Cidade, são solenemente ignorados pela justiça, que normalmente expede mandados de reintegração de posse. Nos últimos anos, em todas as ações desse tipo, os juízes favoreceram “donos” de prédios e terrenos abandonados, com base no direito à propriedade, sem conside-

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rar regras importantes da legislação relacionada às questões de habitação, uso e parcelamento do solo.

Assentamentos precários e sem infraestrutura

Estudo organizado pela Secretaria Nacional da Habitação do Ministério das Cidades constatou que mais de 80% das moradias da cidade de São Paulo foram feitas em áreas precá-rias e sem infraestrutura. “Basta mirar o horizonte nas regiões periféricas e conferir a paisagem”, comenta a pesquisadora Yara Medeiros. As habitações são em sua maioria obra do im-proviso. Construções que ignoram o planejamento urbano e a realidade ambiental da região e muitas vezes causam proble-mas individuais e coletivos.

Apenas na capital paulista existem mais de 900 mil do-micílios inadequados. São casas construídas sem a devida aprovação de projetos e autorização da Prefeitura. Há mui-to tempo essa situação provoca discussões sobre políticas públicas e experiências voltadas à habitação de interesse social, destinada aos que não têm condições de construir ou adquirir a casa própria.

Existem movimentos que buscam consolidar políticas vol-tadas à assistência técnica na área de arquitetura e engenharia, para populações de baixa renda. De acordo com a Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), no Brasil 7,5 mil arquitetos se formam por ano. Esse conhecimento não pode ficar restrito aos brasileiros mais abastados. O merca-do da assistência técnica para engenheiros e arquitetos é pro-missor, mas os profissionais precisam ir às camadas de menor renda. O direito à moradia digna com qualidade de vida pre-cisa ser fundamentado pelo Estado para ser concretizado.

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Um quarto, um casal, duas filhas e uma sala dividida

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Em uma casa de fundos da rua Pro-fessor Shalders, Vila Dalila, a auxi-liar de serviços gerais Mariângela

Ferreira, de 38 anos, também conhecida somente por Ângela, encontrou o melhor lugar para abrigar sua família. No amplo quarto, com espaço para o guarda-roupas e duas camas, uma de casal e outra de soltei-ro, dormem ela, Luiz, seu companheiro, e a pequena Ana Paula, de 4 anos. Como não havia mais um quarto, uma cortina divide a sala do espaço onde dorme Dayane, a outra filha, de 18 anos.

São três famílias vivendo no mesmo ter-reno, mas as casas térreas são separadas por um muro de aproximadamente um metro e meio. A casa 3, na realidade é um puxado sobre a casa 2.

A casa de três cômodos tem sala, quar-to, cozinha, banheiro e um pequeno quintal a céu aberto, onde Ana Paula brinca com Mike, o gato siamês adotado fazia poucos dias. Como todo gato, agora é parte da fa-mília. O felino se diverte espreitando caixas e sacolas como se estivesse empreendendo

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uma caça ao rato; quando se cansa rouba carinho de todos. Mariângela e Luiz dizem que o animal não ama ninguém, mas não contam para a pequena Ana Paula, que adora o ani-mal e o segue em suas peripécias.

Ângela se orgulha de assumir a liderança da família. Procu-rou o imóvel, escolheu o que mais a agradou, negociou com a imobiliária e assinou o contrato de dois anos e meio, para pagar R$ 700 mensais. As contas de água e luz são individuais e não abre mão de pagar a TV por assinatura da NET. O aluguel é a maior despesa da família, cuja renda é a do casal. Ela ganha cerca de R$ 1100, e Luiz R$ 1300. Além disso, alugam a vaga da garagem para a vizinha por R$ 120 e montam uma barraca na feira, aos domingos. Vendem utensílios domésticos, além de cabos para instalação de antenas e pequenas ferramentas. A renda da família chega a aproximadamente R$ 2500.

Até julho de 2014 a situação era bem diferente. Eles mora-vam em uma casa de três cômodos e dividiam o quintal com mais cinco famílias, incluindo o senhorio. O aluguel era de R$ 850, e dividia-se o consumo de água e energia elétrica em uma equação que só o dono entendia. “As contas de água e luz davam mais ou menos 1000 reais, e nós pagávamos 300 por-que éramos a maior família do quintal”. No final do mês as despesas básicas com moradia, água e luz somavam cerca de R$ 1200. A receita da família era menor, e o orçamento ficava apertado no momento de saldar os demais compromissos.

É a terceira vez que Ângela tenta construir sua vida em São Paulo. Na primeira, em 1991, saiu de Minas Gerais com o seu já falecido tio Ivanir. Mas a convivência com a mulher do tio não era fácil, e viu-se obrigada a voltar para Peçanha, sua cidade natal. Peçanha é uma homenagem a João Peçanha Falcão, que liderou a primeira expedição em busca de ouro na região. Em Peçanha, aos 17 anos, Ângela ficou grávida de Dayane. O pai da menina não quis reconhecer a paternidade,

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mas a mãe até hoje faz o melhor possível para suprir as neces-sidades da filha.

Os anos se passaram. Ângela e Dayane foram convidadas por Maria Alice, irmã de Ângela, para morar em São Paulo. Alice foi adotada aos três dias de idade por dona Hilda, uma viúva que morava em São Paulo e já havia criado seus cinco filhos. Dona Hilda soube que a jovem Maria da Conceição Ferreira estava grávida e daria a pequena Alice para adoção. Houve uma enchente que inundou a cidade, e Conceição foi a única sobrevivente de sua família. Sozinha no mundo e sem condições de sustentar a criança, não via alternativa a não ser permitir que outra família educasse sua filha. Ela trabalhava como empregada doméstica na casa dos familiares de dona Hilda, que se prontificou a adotar a criança assim que soube da decisão da mãe. O acordo entre as mães, biológica e adoti-va, previa que a menina fosse orientada desde a infância sobre sua adoção, e que deveria conhecer e visitar sua mãe periodi-camente. E assim aconteceu.

Descendente dos coronéis de Peçanha, dona Hilda, hoje com 96 anos, ainda ganha a vida como senhoria de um cortiço com dez casas, na Vila Dalila.

No início, Ângela e a pequena Dayane, que tinha quatro anos, foram bem recebidas pela anfitriã, mas logo o encanto acabou, e Hilda deslocou Ângela e a filha para morarem em um quarto subterrâneo, em que as paredes cheiravam a mofo. A situação provocou a revolta de Alice que, inconformada, resol-veu alugar uma casa para tirar a irmã e a sobrinha daquele lu-gar, “não foi pra isso que eu trouxe as duas de Minas”, enfatiza Alice. Na época, as três se juntaram na mesma casa em uma relação que mesclava momentos de harmonia e conflitos.

E em desses conflitos Ângela resolveu alugar uma casa para ela e sua filha. Hoje, quando se lembram dos aconteci-mentos, as filhas de dona Conceição riem e não encontram

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explicação para as desavenças do passado. Não se importam e preferem recuperar o tempo perdido proseando, como todo bom mineiro gosta de fazer.

Nessa época, Ângela, que só conseguiu estudar até a quin-ta série em Peçanha, retornaria à escola para terminar o ensino fundamental, no programa do governo federal de Escolariza-ção de Jovens e Adultos (EJA). Na sala de aula conheceu Luiz, que havia se separado havia pouco tempo e morava com o filho na casa de uma irmã. A relação entre os dois foi se estreitando e resolveram morar juntos. Luiz levou seu filho Evandro, com sete anos, e se comprometeu com metade das contas.

No final de 2008 a família resolveu voltar para Peçanha, mas não deu certo. Perceberam que apesar do sossego, a ci-dade não proporcionava boas oportunidades de crescimen-to. Mesmo morando em casa própria, no terreno da família, Ângela não conseguia trabalho para ela e muito menos para Luiz. Lá ficou grávida de Ana Paula. Depois de nove meses estavam de volta a fim recomeçar a vida na maior cidade da América do Sul.

Ângela procurou dona Marcia, sua antiga patroa, que a recontratou como empregada doméstica, mas em seguida lhe propôs o emprego de auxiliar de serviços gerais em sua clínica veterinária, onde trabalha até hoje. Luiz trabalhou em uma empresa, mas ficou desempregado em 2010 e 2011. Dois anos em que Ângela teve que assumir as despesas da casa pratica-mente sozinha. Luiz fazia bicos como ajudante de pedreiro, mas o valor que recebia nunca era suficiente. Em 2012 foi in-dicado por um amigo para trabalhar na Arlete, empresa de confecção de roupas, onde permanece.

Evandro, o filho de Luiz, teve que voltar a morar com a mãe. A relação do garoto com as mulheres da casa estava fi-cando conturbada, e Ângela não achava justo ter que se preo-cupar com a educação de um filho que não era seu.

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Desde o retorno a São Paulo sempre viveram em casas apertadas e precárias, com poucas condições de conforto e dignidade. O aluguel alto consumia grande parte do pouco dinheiro capitalizado pela família.

Ângela afirma que seu desejo era estar perto da irmã, razão de procurar casas na região da Vila Matilde.

A família Ferreira representa o quadro das 67 mil famí-lias que vivem uma situação de Adensamento Excessivo na cidade de São Paulo, ou seja, quando um imóvel abriga mais de três pessoas por dormitório. Nesse caso, as condições de habitabilidade da casa são incompletas, pois nem todos os moradores gozam do pleno conforto que a moradia deveria assegurar. Contornam o problema e vivem da melhor forma possível na casa de três cômodos, com apenas um quarto para quatro pessoas. A cortina na sala é o único limite entre a sala de estar, onde recebem as visitas, e a privacidade da jovem Dayane. Mesmo assim todos sonham com o dia em que es-sas dificuldades serão superadas. Não há perspectivas de uma mudança de casa nos próximos dois anos, tempo que expira o contrato assinado em julho de 2014.

Mas Ângela não tem paciência para estudar e tentar uma faculdade. Entretanto, quer ser empreendedora, talvez dona de uma rede de lojas de roupas, produtos de beleza e, quem sabe um dia, vender uma coleção de vestidos desenhados pela Dayane, que sonha em ser estilista ou fashionista e viajar para os EUA. Ela tem desenhada uma coleção inteira de vestidos e os exibe em seu portfólio. Luiz sonha em fazer sucesso como vocalista da banda de forró que está formando. Ele quer se aposentar e voltar para a casinha que deixou em Peçanha, mas nunca convenceu as mulheres da família. A pequena Ana Paula sabe que é a princesa da casa, e pelo menos por enquan-to isso não muda.

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Uma casa para duas famílias

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Em busca de solução imediata para o problema de moradia, a supervisora financeira Lidiane Aparecida Gui-

marães, de 37 anos, voltou para a casa dos pais com Walter, o marido, e o filho Vitor Hugo, de dois anos. Desde maio de 2013 as duas famílias habitam a casa de três cômo-dos. Um quarto, sala, cozinha e um banhei-ro, espaço exíguo para duas famílias. “Na outra casa, onde pagávamos aluguel, a gente tinha comprado todos os móveis, inclusive para o quarto do meu filho”, relata. “Quan-do viemos para cá tivemos que acomodar todos os nossos móveis”. Transformou o cômodo que deveria ser a sala no quarto da família. Moram na Cidade Vargas, bairro da Zona Sul paulistana, próximo à estação Jabaquara do Metrô.

No mesmo quintal, vivem outras três famílias. Isso porque a casa onde seu Hugo e dona Lucília, pais de Lidiane, vivem há mais de 30 anos, não é própria. “Aqui é as-sim, o proprietário tem uma barraca na feira e vende produtos de empório, como queijos e produtos em conserva. Os homens dessas

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quatro famílias trabalham na barraca, e o proprietário des-conta o aluguel do salário deles”, explica Lidiane. Todas as despesas do imóvel, como IPTU, taxas e reformas, são pagas pelo dono.

Lidiane se casou pela primeira vez aos 24 anos. Saiu de casa e foi morar com o marido em uma casa cedida pelo so-gro. Quando se separou, dividiu o aluguel de uma casa com uma amiga e depois voltou para a casa dos pais. Nessa época viviam juntos ela, a irmã e os pais. Em 2011 começou um re-lacionamento com Walter. Primo da vizinha de Lidiane, ela o conhecia. Em quatro meses de namoro, Lidiane engravidou. Walter morava de aluguel e Lidiane foi viver com ele na Vila Guarani, bairro vizinho, que fica entre as estações Jabaquara e Conceição. Vitor nasceu no ano seguinte.

A casa tinha sala, cozinha, dois quartos e uma garagem; pagavam R$ 500 de aluguel, mas quando o garoto completou um ano, o proprietário pediu o imóvel. “Ele até foi camara-da com a gente, disse que sabia que eu tinha filho pequeno e não ia nem me dar prazo para deixar a casa. Ele falou que eu poderia procurar outra casa com calma”. Lidiane não achava casa para alugar por menos de R$ 1400. “Passamos a procurar casas menores, com um quarto, mas a diferença no valor era muito pouca, coisa de R$ 100”.

Lidiane têm três irmãs. Nessa época, estavam casadas e haviam saído de casa. Após conversar sobre o problema, uma delas disse: “Li, é melhor você se acomodar na casa da mãe até ter condição de financiar uma casa, do que pagar R$ 1500 de aluguel”. A princípio, ela teve receio de falar com Walter. “Ele é uma pessoa muito fechada e não sabia como ia reagir, mas graças a Deus reagiu superbem. Ele disse que pensava assim também, e veio junto comigo”. Moram com seu Hugo e dona Lucília há um ano e meio.

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A convivência é bastante harmoniosa. Walter e Hugo se deram muito bem, e sua mãe até paparica o genro. “Muitas vezes ele pede para eu deixar meus pais em paz”. O peque-no Vitor Hugo é muito apegado aos avós, o que serviu para tornar a família mais unida. Embora o imóvel seja bastante apertado, todos se tratam muito bem e se respeitam bastante. “Eu acho que se a gente tivesse pagando aluguel, passaríamos longos anos nessa situação”.

Passou a procurar casa para comprar, mas se tornou outro desafio. “Confesso que não guardei dinheiro para comprar ou dar entrada em um imóvel, não consegui guardar dinheiro. Só comecei a separar um dinheiro quando apareceu a casa”. Faz pouco tempo financiou um imóvel de condomínio em Mogi das Cruzes, e pretende levar os pais para morar com ela. “Eles não têm casa, e lá vamos estar no que é da gente. Está tudo pronto, é uma casa com dois quartos, sala, cozinha, banheiros e um quintal bem grande, e tem um espaço nos fundos que dá para construir alguma coisa ou fazer uma área coberta”.

Quando Lidiane procurava casa na cidade de São Paulo, chegou à conclusão de que os preços estão fora da realidade da maioria da população. “Só para ter uma ideia, a mesma cons-trutora pela qual comprei essa casa lá, está com um empreen-dimento aqui no bairro, pouco mais perto do metrô, em que um apartamento de 60 metros quadrados está a partir de R$ 600 mil. Isso é mais que o dobro do valor que estou pagando na casa de Mogi”.

Os bairros onde encontrou casas adequadas à sua situação financeira ficam nas regiões afastadas da cidade, como Grajaú e Cidade Dutra. Mesmo assim são casas nas quais precisa-ria fazer reformas ou adaptação. E gastaria mais de duas ho-ras por dia só para chegar ao emprego. Ela trabalha perto do Shopping Plaza Sul, em uma administradora de condomínios,

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e gasta quatro minutos de carro até o trabalho. Walter é assis-tente de departamento de pessoal e trabalha na Lapa; gasta cerca de uma hora e meia de casa até o trabalho. Morando no extremo da Zona Sul, teria de atravessar a cidade, e calcula que gastaria cerca de duas horas até o trabalho. “Tenho uma colega que mora no Grajaú, e sai todo dia às 5h para chegar a tempo. Não ia adiantar quase nada, a gente ia dobrar nosso esforço e nem mudaríamos de ares”.

Outro motivo que levou Lidiane a querer se mudar para Mogi foi a busca por qualidade de vida. Embora ainda esteja na Grande São Paulo, a cidade tem um ar mais puro e clima inte-riorano. “Quando se tem filho se pensa mais no futuro. Por isso preferi buscar uma casa fora de São Paulo”. A curto prazo, ela e o marido pretendem continuar trabalhando nos respectivos empregos. “Vai ser uma mudança muito brusca mudar para lá, mas se deixar o meu emprego aqui não vou conseguir pagar as prestações da casa. No começo, sei que vai ser difícil. Ao mes-mo tempo estou conhecendo mais da cidade, me informando sobre o campo de trabalho, para ver se acho algum emprego que compense largar o trabalho por aqui e ficar por lá”.

A casa em Mogi está pronta. Lidiane já tem a chave, mas a mudança foi adiada para o próximo ano. “Por mim e pela minha mãe teríamos nos mudado, mas quero fazer algumas adaptações e mobiliar a casa. Estou esperando meu pai sair da feira, porque para mim e para o meu marido é mais fácil sair de lá e vir trabalhar aqui. Somos jovens e entramos por volta das 8h30 no emprego. Mas ele sai todo dia às 4h para o trabalho”. Seu Hugo tem 61 anos e está aposentado, mas ainda trabalha na feira. Ele e os colegas esperam que o patrão feche a barraca no próximo ano. Dona Lucília se chateia por ter que ocupar o quarto que seria do neto. Eles tentaram achar uma casa com três quartos ou com uma edícula, mas não en-contraram.

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Lidiane se preocupa com a saúde dos pais. “Embora eles não tenham problemas sérios, precisam de acompanhamen-to, são idosos. Por isso quero os dois por perto”.

A família de Lidiane representa as quase 197 mil famílias que vivem uma situação de coabitação familiar na cidade de São Paulo - duas famílias ou mais se abrigam na mesma casa. Há controvérsias em relação ao assunto, pois estudos conside-ram que filhos optam por morar com os pais mais por questão de cuidado do que por necessidade. No entanto, para os mo-tivos não se confundirem, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) passou a perguntar no último censo se esses filhos ou parentes que viviam na mesma casa tinham a intenção de sair, alugando ou comprando outra casa.

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Quando o aluguel consome parte da vida

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O aluguel de R$ 750 é a maior despe-sa da auxiliar de gabinete Cristia-ne Lopes, de 36 anos. Trabalha na

Subprefeitura Sé. Divorciada há quase dois anos, sustenta os filhos, Lucas, de 12 anos, e Ariele, de 17, com um salário de R$ 1400 e uma pensão no valor de R$ 500, paga por Edson, ex-marido e pai de Lucas. Sua renda bruta é de R$ 1900. Mesmo com a pensão, ela e os filhos “passam aperto”. “Somando as despesas com água, luz, alimentação, transporte e aluguel, gasto quase R$ 1700. Sobram R$ 200 para me virar com meus fi-lhos pelo resto do mês”.

Embora a construção seja antiga e preci-sando de reparos, é boa a casa que alugou. São dois quartos, sala, cozinha, banheiro, um quintal, e na frente uma garagem para dois carros. Conseguiu 50% de desconto no aluguel para cuidar dos cães do proprie-tário. Ele foi morar em um apartamento e precisava de alguém que tomasse conta da Duque e do Bolinha, uma poodle e um bor-der collie, que não pôde levar para a nova

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casa. Por isso, resolveu cobrar pela metade o aluguel. “Quan-do o Lucas viu o Bolinha foi amor à primeira vista, e quando for embora vou levar a Duque, já me apeguei a ela”.

Talvez tenha que sair da casa ainda no início de 2015. “O Edson já atrasou o pagamento da pensão, e por isso fiquei sem pagar o aluguel um mês. O dono pediu a casa, mas está dando um tempo para eu arrumar outro lugar”.

Cristiane tem cadastro na Cohab desde abril de 2009, mas sua vez não chegou. Todo ano ela atualiza os dados, esperan-do ser sorteada.

Além de pagar um aluguel acima de suas possibilidades, sofre com outro drama, comum aos paulistanos: trabalha na região central da cidade e precisa se espremer nos ônibus lota-dos que saem do bairro do Guarapiranga.

Desde a gravidez de Ariele, sua primeira filha, enfrenta o desafio da falta de moradia. Namorou o pai de Ariele desde os 13 anos, mas quando ficou grávida, aos 18, ele disse que só ficariam juntos se ela abortasse. Sem apoio da família e com medo de perder o namorado, tentou duas vezes. “Na última deu hemorragia e fui parar no hospital. A médica que me atendeu falou bem assim:

‘Você já tem 18 anos e pode responder processo. Vai contar o que aconteceu ou vou chamar a polícia”.

Com medo, narrou o que havia acontecido. Foi convoca-da a assistente social e ela tentou falar com o pai da criança, mas ele já havia desaparecido. A assistente social entrou em contato com a mãe de Cristiane. “Ela disse para a minha mãe que se acontecesse alguma coisa comigo ou com a minha filha ela responderia por abandono de incapaz. Minha mãe só me levou para casa porque foi obrigada”.

Foram os piores dias de sua vida. Quando nasceu, Ariele não se adaptou ao leite materno: “Dei leite de caixinha e ela pegou uma bactéria. Passou três meses no hospital”.

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Decidiu procurar emprego, mas entrou em conflito com a mãe ao pedir que cuidasse da menina enquanto trabalhava. A avó se recusou. Resolveu deixar Santo André e mudar-se com a filha para a casa do pai, no Jardim Ângela. “Peguei mi-nha filha e as coisas que tínhamos, mas nos perdemos no Vale do Anhangabaú. Não sabia mais como chegar à casa do meu pai. Para mim, chegar ao Ângela era tão longe como chegar à Bahia. Fui a um bar e pedi que o dono me vendesse uma mamadeira de leite para dar à minha filha. Quando viu minha situação, ficou com dó e me deu o leite e a comida. Ficamos por ali quase uma semana. A gente dormia na rua”.

Dias depois, uma freguesa do bar perguntou aonde ia, e se ofereceu para ajudá-la a encontrar a casa de Eli, seu pai.

Conseguiram localizar a casa, mas soube que o pai já esta-va separado de Elisabeth, a madrasta. “Ela me acolheu, pe-gou minha filha no colo e mandou chamar o meu pai. Che-gou furioso, mas quando pegou a Ariele no colo se acalmou”. Cristiane passou um tempo na casa da madrasta e depois foi morar com o pai. A convivência com ambos foi complicada, e Cristiane mudou-se para a casa de uma tia, no Jardim São Luís. Ela morava em um apartamento do CDHU. Passou a trabalhar com entrega de panfletos em faróis, e recebia R$ 35 por dia. Com esse dinheiro sustentava a filha.

Pouco tempo depois, seu tio teve que renegociar a dívida do apartamento. Havia algum tempo não pagava as parcelas e não tinha como aceitar a proposta feita pelo CDHU. A solu-ção encontrada foi vender o imóvel. Mais uma vez Cristiane e a filha teriam que achar outro lugar para viver.

Conheceu Fabiano, um rapaz que morava no mesmo pré-dio. Eles começaram um relacionamento, e na semana em que marcaram o casamento, Fabiano foi assassinado. Isabel, mãe de Fabiano, ficou sozinha e convidou Cristiane e a filha para morarem em seu apartamento. “Fomos morar eu, a Ariele e

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ela. Morei com ela por muito tempo. Logo arrumei um traba-lho como empacotadora em uma loja do Shopping Iguatemi. O salário era bom e não trabalhava aos domingos”.

A pequena Ariele tinha um ano. Ficou doente e foi inter-nada com pneumonia por quase um mês. Nessa época Cris-tiane descobriu que a menina sofria de bronquite. “Pratica-mente morei no hospital. Nesse primeiro momento o dono da loja me manteve no emprego. Mas ela foi internada nova-mente em menos de 15 dias. Dessa vez foram quase dois me-ses. Como não tinha ninguém para ficar com ela no hospital, precisei faltar de novo e fui despedida, faltando um mês para o Natal”.

O tempo passou e Isabel arrumou um namorado que não se dava bem com Cristiane. Resolveu alugar uma casinha na Vila Missionária. “Nem conhecia o lugar, fui porque uma amiga me indicou. Era só um quarto sem banheiro. Tinha uma cama, um guarda-roupas e uma TV preto e branco. Ar-rumei uma moça para cuidar da Ariele enquanto eu trabalha-va, mas minha filha vivia internada, e fui despedida do em-prego novamente”. Quando Cristiane contou ao dono da casa que estava desempregada, foi expulsa na mesma hora. Nem permitiu que eu pegasse minhas coisas. Peguei o básico e fui para a rua”.

Emanuel, um dos vizinhos, chamou Cristiane para morar em sua casa. Ele era solteiro e vivia com a mãe. “Na segun-da semana que eu estava lá, tentou me agarrar e bati na cara dele. Ele ficou com raiva e falou que ia me mandar embora, mas não mandou. Eu ajudava a mãe dele e saía para procurar emprego. Fazia de tudo para ficar longe dele”. Alguns dias depois Emanuel lhe passou um endereço, e disse que ali ela encontraria trabalho. “Quando cheguei lá era uma casa de prostituição, falei para a dona que não ia aceitar. E ela me dis-se que o Emanuel ia me colocar na rua”.

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E assim aconteceu. “Passei novamente uma semana na rua, com a Ariele”.

Lúcia, uma senhora evangélica, mãe de um dos vizinhos de Cristiane, soube de sua história. Pediu ao filho para convidá--la a morar em sua casa, no Grajaú. Mesmo percebendo que a mulher era “meio fanática”, ela aceitou. E se deu bem com Michel, um dos filhos de dona Lúcia. Pai solteiro, ajudava-o a cuidar da bebê. “Ele trazia fraldas, comprava leite e dividia tudo entre sua filha e Ariele”.

Cristiane começou a se desentender com dona Lúcia. A mulher queria que ela frequentasse sua igreja, mas não houve acordo. Novamente Ariele foi internada. “Dessa vez ela teve sete crises de pneumonia e cinco convulsões, precisava acom-panhar minha filha no hospital, e a mulher ficava me cobran-do frequência na igreja. Isso me irritou a ponto de brigar com ela”. Cristiane foi viver com Edilaine, uma amiga, mas ela se casou e precisou ir embora. Nova mudança. Cristiane foi morar com dona Nair, senhora que conheceu em outra igreja e que passou a ajudá-la. “Ela cuidava de Ariele para poder trabalhar”. Na casa de dona Nair Cristiane descobriu que sua filha tinha talento para música. Aos dois anos e meio de ida-de a menina já cantava durante os cultos. Hoje, aos 17 anos, Ariele sonha em ser cantora evangélica.

Quando tudo parecia estar calmo, resolveu voltar para a casa da mãe, em Santo André, mas acabou morando na casa de Isabel, a ex-sogra, abandonada pelo namorado. Naquela mesma semana Isabel e Cristiane foram à festa de aniversário de uma amiga. E ela conheceu Edson. O rapaz a pediu em namoro, mas ela resistiu: “Não quero mais namorar. Tenho uma filha para criar e não tenho idade para ficar namorando”. Edson propôs: “Vamos fazer um acordo? Finge que é minha namorada, levo você para a minha casa e cuido de você e da sua filha”.

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Foram morar juntos. Passaram-se meses sem qualquer en-volvimento. O acordo durou seis meses. “Quando fazia um ano que estava na casa dele engravidei do Lucas”. Eles mora-vam na casa dos pais de Edson.

Quando Lucas completou um ano, Cristiane alugou uma casa de dois cômodos e levou os filhos. “Tive a iniciativa de arrumar um emprego, alugar a casa e mudar. Depois de uma semana que estava lá ele foi viver conosco. De lá para cá alu-gamos uma casa atrás da outra. Quando a situação era me-lhor, procurávamos uma casa melhor, e quando dava uma caída uma casa mais barata”.

A realidade de Cristiane é a mesma de quase 190 mil fa-mílias que comprometem grande parte da renda para garantir um teto, reféns de um sistema cruel. Pagam para morar na propriedade alheia, sem nenhuma garantia. De 2011 a 2014 o aumento no preço dos aluguéis de São Paulo foi de quase 25%, de acordo com o índice Fipe Zap Imóveis; no mesmo período, a inflação acumulada foi de aproximadamente 16%. Muitas famílias tiveram que procurar casas menores ou com-prometer parcela maior de sua renda para continuar pagando o aluguel.

No final de 2012 Cristiane ficou desempregada. Ela traba-lhava em uma casa de família, e a patroa foi viver nos EUA. Seu Eli trabalha em um estacionamento ao lado da casa de Marcos Barreto, o ex-subprefeito da Sé. Marcos comentou com Eli que estava precisando de uma copeira para servir o café nas reuniões da subprefeitura. Eli indicou a filha, que as-sumiu o cargo comissionado em fevereiro de 2013. Em menos de seis meses deixou a ocupação de copeira e passou a secre-tariar os assessores do gabinete, mas reclama que embora sua responsabilidade tenha aumentado, o cargo e o salário conti-nuam os mesmos. “Não tenho garantia nenhuma; se for dis-pensada amanhã, não recebo nada”. Ela não tem intenção de

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continuar na Subprefeitura. Pretende encontrar trabalho no setor privado.

Cristiane ainda acredita que será contemplada com um apartamento da Cohab, mas enquanto isso não acontece, faz tudo para garantir um futuro melhor aos filhos. Espera que nenhum deles dependa da boa vontade de outras pessoas para alcançar uma vida mais digna.

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História de uma vida precária

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Na rua dos Gusmões, região de San-ta Ifigênia, Centro de São Paulo, cerca de 50 famílias ocupam o

terreno que fica atrás da fachada do imóvel 236. Os imóveis laterais - números 226 e 240 - também estão ocupados. São edifica-ções de dois andares que abrigam parte da comunidade. Mas no terreno aberto entre os prédios, aparentemente o que sobrou de um estacionamento abandonado, estão os barracos improvisados com pedaços de madeira e telhas de zinco. Famílias aprovei-taram as paredes das edificações na lateral para montar o barraco. Lá vive Rildomar José de Lucena, 61 anos. Isolado no que chama de seu canto: mora em um barra-co com paredes formadas por diferentes pedaços de madeiras como peças de mó-veis velhos, coberto por telhas de zinco. O barraco tem cerca de um metro e meio por dois metros. Um espaço de cerca de três metros quadrados, onde Rildomar guarda sua cama de solteiro, um armário de cozi-nha, um rack improvisado para comportar seu aparelho de TV de 20 polegadas e um

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DVD. A TV ele nunca desliga. Passa a tarde assistindo aos programas jornalísticos, recheados de matérias carregadas de sensacionalismo. A porta serve como cabide, e atrás dela fica uma geladeira antiga, um dos primeiros modelos da marca Consul. No outro extremo, no cantinho, há um fogão de qua-tro bocas, no qual prepara as refeições.

Pernambucano de Recife, Rildomar mudou-se para São Paulo em 1975. Pouco ou nenhum trabalho encontrou em seu Estado natal. “Sou homem da capital, não nasci para ficar no mato, trabalhar na roça”. Sempre gostou de dirigir, queria ser motorista. Chegou à cidade de São Paulo e começou a traba-lhar como cobrador de ônibus na Viação São Luís, empresa de transporte coletivo da Zona Sul paulistana. Em pouco tem-po aprendeu a dirigir e se tornou motorista. Foi condutor por muitos anos, e passou pelas principais empresas da Zona Sul, como a Viação Bola Branca e Jurema. Nessa época vivia sozi-nho e morava em uma pensão.

Em 1983, juntou um dinheiro e voltou para Recife. Co-nheceu Fátima, sua primeira mulher aos 30 anos. “A gente se juntou quando ela tinha uns 15 anos. O pai dela ainda me deu um tiro. Ele era fazendeiro e não gostava de mim, mas aí eu roubei ela”. Mudou-se com Fátima para São Paulo; o casal alugou uma casa em Diadema. Voltou a trabalhar como moto-rista, dirigindo um caminhão-pipa para uma empresa de água potável. Viveu com Fátima até 1990, mais ou menos. “A gen-te brigou, dei um dinheiro para ela voltar para Recife, mas ela quis ficar por aí”. Decidiu largar a mulher e virou morador de rua. “Fiquei um ano e pouco na Praça do Patriarca. Dormia debaixo do Viaduto do Chá. Lá vivia uma vida de ‘maloquei-ro’, bebendo cachaça, fumando maconha e transando. Todo mundo faz isso ali debaixo do Viaduto”.

Então conheceu “seu” Pedro, que o auxiliou, conseguindo que um funcionário da Prefeitura cedesse as chaves do ba-

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nheiro que fica no Vale do Anhangabaú para Rildomar cuidar do espaço. Ele moraria por ali mesmo, no banheiro que fica debaixo do prédio histórico do Correio. Em seguida, o dono do Bar Copacabana lhe ofereceu comida para ele lavar as pa-nelas de sua cozinha. Eram panelas monstruosas, e passou anos nesse trabalho. “Eu só comia carne, não queria nem sa-ber de arroz e feijão; fazia dois marmitex, um de carne e outro de macarrão”. O trabalho pesado lhe rendeu uma bursite, e quase perdeu o movimento dos braços. Convidou conhecidos da rua para ajudá-lo, mas ninguém quis. “Só queriam saber da comida que eu levava para eles”.

Nessa época conheceu Tuca, pernambucano que lhe per-guntou apenas de onde era. “Quando falei que era do Recife, ele falou para eu pegar minhas coisas e me levou para mo-rar com ele e a mulher dele, lá no Brás”. Marisa, a mulher de Tuca, era muito formosa e começou um relacionamento com um cara barra pesada da região. Tuca ficou desgostoso, quis se matar, mas antes foi tirar satisfação com o amante da mulher. O homem lhe apontou um revólver, mas ele não se intimidou e enfrentou o oponente. Os dois foram parar na delegacia, onde a mulher defendeu o amante e acusou o marido. Rildo-mar sentiu medo e voltou para o banheiro do Anhangabaú.

Começou a trabalhar com entrega de pães, levando pão francês de uma padaria para bares e lanchonetes. E é o traba-lho com o qual se sustenta até hoje. Ganha menos de meio sa-lário mínimo. “O dono da padaria me paga 15 reais por dia”. Já fez entregas de bicicleta, mas cansou-se. Hoje as entregas são a pé.

No final de 2009 comprou o barraco por R$ 2 mil. “Mas aqui não é lugar para ser humano. Quem vive aqui não é nem pobre, é mendigo. Porque muitas vezes não tem nem o que comer. Sempre trago pão para os vizinhos. Não concordo com muitas coisas que acontecem na comunidade, como a educa-

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ção que os pais dão aos filhos. Um dia dei um pão para um ga-roto que chegou aqui no meu barraco, e fiz uma vitamina para gente tomar. Quando fui pegar o copo, o moleque jogou o pão no chão. Fiquei muito magoado com aquilo. Fui até o barraco da mãe dele e falei para ela ensinar direito o filho dela”.

Para viver ali as famílias precisam “fechar os olhos” e acei-tar uma cruel realidade. “Quando estou por aqui fico dentro do meu barraco. Isso aqui é uma biqueira de crack, não sei nem como você entrou aqui, naquele portão lá da frente só entra quem é morador”, revela. “Fico no meu canto, de vez em quando fumo meu baseado, mas ninguém é trouxa de me encher o saco. Um dia eu estava tão louco com a maconha que nem vi o policial aqui na minha porta. Ele olhou para minha cara e disse assim: ‘Cê tá bem louco, hein, velho?! Quan-tos anos você tem?’. Respondi a verdade: ‘61’. Ele insistiu: ‘Desde quando você fuma maconha?’. Desde que eu tinha 15 anos. No mesmo dia que meu pai morreu, foi o dia que eu fumei meu primeiro baseado”.

O policial entrou no barraco, apanhou a maconha e ia sain-do. “Aí ele me disse assim: ‘Fuma e bebe muito, porque já morre logo’. Respondi: ‘Por quê? Eu estou dando algum tra-balho? É você que veio na minha casa para me perturbar...’. Ele riu e disse assim: ‘Cê é folgado, velho!’. E saiu mesmo dando risada”.

A vida no barraco é difícil. Quando chove, a água fica em-poçada na entrada. No calor, o barraco esquenta como um forno, por causa das telhas de zinco. “No frio parece um con-gelador”. E em um desses dias Rildomar teve sua primeira crise de tuberculose. “Primeiro tirei três litros de água do pul-mão. Isso é água demais. Foi o vizinho aqui do lado que me viu, e disse assim: ‘Velho, cê tá mal!’. Era verdade”.

E lhe mostrou no espelho. Foi com o amigo ao hospital. “Eles me fizeram um monte de exames. Depois me deram

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uns comprimidos vermelhos. Aquilo saía tudo na urina. Pas-sei três meses tomando comprimido, e hoje vou todo mês ao posto para tomar as injeções”.

A energia elétrica é conduzida até os barracos por um ema-ranhado de fios espalhados sobre os corredores. Há barracos com banheiro improvisado. Vários moradores, entretanto, in-cluindo Rildomar, utilizam um banheiro comunitário. “Nin-guém explica por que agora colocaram cadeado no único ba-nheiro da comunidade. Acabo me virando, vou aos bares por aí, os cara que me conhecem me deixam usar o banheiro. Mas e os outros, como é que fica?!”

De acordo com o relatório “Déficit Habitacional no Bra-sil 2010”, produzido pela Fundação João Pinheiro com base nos dados do Censo 2010, a cidade de São Paulo tem quase 25 mil domicílios precários, como o de Rildomar. São casas improvisadas, barracos de madeira e construções adaptadas para moradia que não oferecem as mínimas condições de dig-nidade. Não deveriam servir de abrigo para seres humanos. Rildomar olha para todos os lados e não enxerga uma única possibilidade de sair da situação. Não acredita em nada, nem no governo e muito menos nas pessoas. “Ninguém dá nada de graça, as pessoas sempre querem alguma coisa em troca. O que é que posso oferecer para alguém, assim velho e bichado do jeito que estou?!”, desabafa. “Minha única esperança é que Deus um dia tenha misericórdia de mim e me dê um lugarzi-nho melhor para eu acabar de viver”.

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O “trânsito” na avenida Vinte e Sete

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A cidade de São Paulo tem mais de 240 mil domicílios em setores considerados “subnormais” pelo

IBGE. A Prefeitura trata essas áreas como assentamentos precários, e os urbanistas os classificam como “zonas de ocupação desor-denada”. Todos sabem, entretanto, que são o habitat de famílias que em muitos casos não têm sequer endereço. Nesses locais se concentra a maior parte das moradias pre-cárias da cidade. Comunidades formadas sem acompanhamento dos órgãos públicos. As origens dos assentamentos são diversas: se formaram por ocupações ou loteados por grileiros e posseiros, que usam documentos falsos para se apossar de terrenos, lotes e prédios, alheios ou públicos. A origem do termo grileiro indica envelhecimento força-do dos papéis colocados em uma caixa com grilos; ficavam com a coloração amarelada, provocada pelo excremento dos insetos, o que lhes dava aparência de velhice, sendo, portanto, “autênticos”.

A rotina na avenida Vinte e Sete é bem movimentada. Por volta das 6h, dona Lu-

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zia já está na rua. Mãe de cinco filhos, sustenta a casa sozinha desde que o marido, José, se entregou ao vício do álcool. O mal de José é comum em muitos moradores da rua popular-mente conhecida como “rua das Canas” em decorrência da concentração de botecos adaptados na frente das casas. Pes-soas que tentam completar a renda instalando pequenos esta-belecimentos comerciais improvisados.

Há cerca de dez anos, dona Luzia mora em um casebre de dois cômodos, na margem do córrego que se estende por toda a via. Sua casa é apenas mais uma das dezenas de barracos de madeira que evoluíram para pequenas construções de alve-naria. Há casas com tijolos aparentes, outras foram reboca-das e receberam acabamento externo. Para ampliar o espaço, usam-se colunas e vigas de concreto para erguer a laje sobre o leito do rio. A engenhosidade permitiu até sobrados serem levantados sobre o córrego.

Um dos lados da “avenida” foi ocupado por pessoas que pelo menos em determinado momento da vida não tinham condições de adquirir um imóvel e decidiram pela alternativa que lhes pareceu mais correta. Afinal, não se ocupa uma casa à beira de um córrego ou o que seria a pista de uma avenida, se não por imperiosa exigência.

As casas destoam entre si. Há aquelas que apenas abrigam a família, enquanto ao lado outra ostenta carros populares ou importados na garagem improvisada. Nem todos assim vi-vem por necessidade. Mas deve-se considerar que embora a renda tenha crescido, permitindo a aquisição de automóveis e demais bens duráveis, o preço dos imóveis e do valor venal dos terrenos aumentou acima da capacidade de consumo.

Nada assusta ou causa maior preocupação nos moradores da avenida do que as torrenciais chuvas de verão. As águas que transbordam do leito do córrego já levaram mais do que um pedaço da camada de massa de asfalto que a Prefeitura

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colocou na reduzida área transitável da “avenida” em 2002, na gestão da prefeita Marta Suplicy, a última intervenção do governo municipal no espaço. A água também transborda pe-los ralos e caixa de gordura das casas que ficam alagadas.

Enquanto havia áreas abertas no córrego, totalmente co-berto nos últimos anos, a Prefeitura promovia limpezas pe-riódicas nas margens e no leito para retirar o excesso de lixo, entulhos, sofás, poltronas e todos os tipos de objetos descar-tados. Após reivindicações dos moradores, o lixo da comuni-dade agora é depositado em quatro caçambas, duas na esqui-na com a rua Catharina Marrone e as duas na esquina da rua Augusto de Castro. Elas nunca foram suficientes para todo o lixo. Geralmente, o que não cabe fica amontoado em vol-ta das caçambas. Há moradores que ainda burlam a regra e, por preguiça de carregar os sacos por alguns metros, atiram o lixo no córrego por meio de frestas entre as casas. “Essas pessoas não têm um pingo de consciência. Não entendem que estão causando mal para elas mesmas”, afirma a cozinheira Maria do Socorro Pereira, que mora na região há 16 anos. Ela adquiriu seu terreno de um homem conhecido apenas como “Simão”, já falecido, ainda muito citado pelos moradores. Há quem afirme que era um grileiro, ou proprietário da metade do bairro, loteando seus terrenos. Durante muitos anos ven-deu lotes, despejou famílias quando atrasavam o pagamento das parcelas, e vendia as casas construídas a outras famílias. Tornou-se uma das pessoas mais ricas da região. Seus familia-res têm uma imobiliária, e várias famílias ainda pagam parce-las, e sonham com o dia em que realmente estarão morando às margens de uma avenida. Outras só querem sossego, e temem que isso torne a vida um caos.

Grande parte da região se desenvolveu por meio de lo-teamentos irregulares e clandestinos. Não se sabe quantos ou como os terrenos foram divididos. Diversos comprado-

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res dividiram os lotes e os venderam; houve quem construiu pequenas casas para alugar, formando cortiços. Pais cederam parte do terreno para filhos e netos levantarem a própria casa.

Aos 91 anos, a ex-empregada doméstica Joana de Paula ainda guarda na memória o dia em que se mudou com o ma-rido para o terreno comprado à beira de três nascentes de rios. A água que corria pelo córrego onde hoje é descartado o es-goto da comunidade era limpa e cristalina. “Dava para beber, tomar banho e regar as plantas. Isso aqui era uma grande área descampada, mato para todo lado. Meu marido comprou esse terreno e logo depois o prefeito deu permissão para a gente construir”, relata. Vive na região desde 1941.

Primeiramente construíram uma casa nos fundos do terre-no e fizeram um poço artesiano. No momento da entrevista, chegaram duas mulheres com balde nas mãos. Estavam ha-via três dias sem água. Dona Joana chamou Rogério, um de seus netos, e pediu para ligar a bomba de água: “Água não se nega para ninguém”. No dia anterior os netos distribuíram dezenas de baldes de água.

No terreno de dona Joana há três casas, duas levantadas pelos filhos Ela não sabe detalhes sobre a compra do terreno, pois toda a negociação foi feita pelo marido, então funcionário da Prefei-tura, que trabalhava com serviços de limpeza. “Ele faleceu em 1971 na casa de outra mulher. Sempre soube que não era a única, só exigia que ele não deixasse nossos filhos passar necessidades, e assim ele fez. Até hoje vivo da pensão que ele deixou”.

Dona Joana não estudou, mas fez questão de que todos os filhos e netos tivessem uma educação melhor do que a sua. A primeira instituição de ensino da região foi a Escola Esta-dual Manoel Tabacow Hidal, a cerca de 2 quilômetros de sua casa, próxima à Usina Termoelétrica Piratininga. Quando foi inaugurada, a escola era um barracão de madeira e não existia quadro-negro.

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Após a morte do marido, precisou trabalhar para garantir o sustento dos filhos. Seu primeiro e único emprego foi como em-pregada doméstica. Lavava e cozinhava para uma família que morava na região central, perto da rua Augusta. O trajeto de casa para o trabalho sempre foi desafiador. Enfrentou diversos problemas para continuar no trabalho. “No começo tinha que ir a pé até a esquina das avenidas Interlagos e Nossa Senhora do Sabará. Saía de casa com um sapato velho e outro melhor na bol-sa; aí, quando chegava no ponto, trocava os sapatos e limpava o barro do sapato velho com um pano”. Andava quase 4 quilôme-tros apenas para chegar ali, pois era o único ponto de ônibus da região. Mais tarde foi criada a linha que passava perto de sua casa e ia até o centro. “O ônibus só andava abarrotado, a gente era transportada pior do que gado”. Precisou deixar o emprego aos 51 anos, quando sua coluna não suportava mais a rotina pesada.

Outro desafio é o lixo. Era queimado, mas à medida que a co-munidade foi crescendo o córrego virou depósito de lixo e esgoto.

Sobre o crescimento desordenado do bairro, prefere relati-vizá-lo: “Afinal, todas essas pessoas precisam de um teto”. O que mais a incomoda é o barulho provocado pelos vizinhos no final de semana. De segunda a sexta é a “conversa” das crian-ças que aguardam a perua escolar, pela manhã, bem embaixo de sua janela. “Elas sempre me acordam. Depois perco o sono e não durmo mais”.

A dona de casa Michele Silva, de 37 anos, mora na avenida Vinte e Sete há quase um ano, mas já colocou uma placa de “vende-se” em sua casa. Pagou R$ 28 mil pelo imóvel levan-tado sobre o leito do córrego. Agora, quer R$ 40 mil por uma cozinha, dois quartos e um banheiro, em 25m². O motivo é a chegada de um novo membro da família. “Estou no sétimo mês de gravidez, e a casa já é muito apertada para mim, meu marido e meus outros quatro filhos. Quando o bebê nascer vamos ser sete”. Além do espaço diminuto, Michele reclama

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da vizinhança: “A janela do meu quarto fica de frente para a rua, e o pessoal encosta em plena madrugada para bater papo. É muita falta de respeito”.

De acordo com a Subprefeitura da Cidade Ademar, a avenida Vinte e Sete deveria ser uma via expressa que liga-ria as avenidas Augusto de Castro e Cupecê, atravessando a avenida Yervante Kissajikian. Por meio dessa via o tempo de chegada ao centro da cidade, hoje de cerca de 90 minutos por transporte público, seria reduzido à metade. No entanto, em grande parte de sua extensão, que seriam 3 quilômetros, a via não passa de um corredor estreito por onde consegue transi-tar apenas uma pessoa por vez. Quando começa, no entron-camento com a avenida Augusto de Castro, a via tem a largu-ra de uma viela e afunila até formar um corredor. O mesmo acontece na esquina da rua Catharina Marrone. Em sua área transitável, não chega a 500 metros de extensão. Esse trecho fica próximo dos maiores supermercados da região, de uma infinidade de lojas que vendem de tudo, salões de cabelei-reiro, padaria e duas farmácias. Antes de o desenvolvimento urbano chegar a essa parte da periferia, milhares de pessoas colocaram a vida no caminho.

Hoje, as pessoas se sentem parte do local e não aceitariam começar a vida em outro local. Oram, rezam, invocam en-tidade e forças espirituais para enfrentar a situação. Quem sabe, um milagre... A maioria acorda de madrugada, bebe um pouco de café e vai enfrentar a labuta diária com a certeza de construir um futuro melhor. Um grande número de pessoas não acredita em mais nada – Deus, trabalho e muito menos na justiça. Fazem as próprias regras e vivem à margem da lei. Tentam garantir o sustento do dia seguinte ou uma “viagem” para além da realidade. Todos têm em comum o sentimento de abandono. Ali, na avenida Vinte Sete, não são prioridade das políticas públicas.

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História da habitação social no contexto do capital

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Nos primórdios do Brasil colonial e durante os anos do período im-perial não existiam problemas de

habitação no Brasil. A precariedade das senzalas era problema dos “senhores”, e o governo não tinha responsabilidade sobre isso. No final do século XIX apareceram os primeiros sinais de que o suprimento de moradias seria insuficiente para atender à demanda das classes baixas, que começa-vam a se aglomerar em centros urbanos, como a cidade de São Paulo, onde as opor-tunidades de trabalho na indústria eram abundantes.

O primeiro registro de adensamento populacional na metrópole foi o relatório de um censo de 1873, que apontava con-centração de pessoas pobres vivendo em condições subumanas em casas coletivas de aluguel, popularmente conhecidas como cortiços. Nesse momento a questão da ha-bitação passa a ser interpretada e tratada como problema social. A partir de então reportagens e estudos analisam o assunto e o poder público tenta controlar o proble-

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ma com legislações ineficazes, que proibiam o parcelamento de terrenos e casas para locação, mas não saíam do papel por causa da incapacidade do Estado de fiscalizar. “Nesta época, a maioria das pessoas vivia em casas alugadas, até os membros da alta classe”, relata o urbanista Luís Octavio da Silva.

Vilas operárias

Os pobres normalmente habitavam em cortiços ou mo-ravam em vilas operárias, alternativa que donos de fábricas e industriais encontraram para o problema habitacional dos funcionários mais experientes e dedicados. No entanto, a produção de casas e a formação de vilas eram modestas e não atendiam à demanda da classe operária. Em algumas empresas, para ter direito a uma casa na vila era necessário que pelo menos três integrantes da mesma família fossem funcionários. E na maioria dos casos o operário não podia aderir a greves ou paralisações. Caso contrário, seria expulso da vila. Ou seja, a moradia estava condicionada ao vínculo. Desse modo, a vila operária era considerada pelos empre-sários um investimento pelo qual mantinha controle sobre a mão de obra qualificada. Em 1916, o médico e industrial do ramo de tecidos Jorge Street, fundou a Vila Maria Zélia, considerada a primeira vila operária do Brasil. O nome foi dado em homenagem à primeira filha de Street, que morrera com tuberculose naquele ano.

Quem não possuía ou podia alugar uma casa e não tinha o “privilégio” de morar numa vila operária acabava indo para cortiços. Em sua maioria eram edificações improvisadas para acolher o maior número de famílias e garantir uma boa mar-gem de lucro ao senhorio. Alguns se formaram em mansões adaptadas e outros em corredores de quartinhos. Na maioria das vezes, o banheiro era coletivo.

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O bonde era o sistema de transporte principal, e a maioria das pessoas vivia no Centro. Deslocamentos mais distantes somente de trem.

lei do Inquilinato

Esse modelo de desenvolvimento urbano durou até mea-dos da década de 1930, quando Getúlio Vargas toma o po-der e se torna presidente da República. Cria uma legislação centrada na garantia de direitos para trabalhadores e para a população mais pobre. A Lei do Inquilinato foi sancionada em 1937 e determinava regras mais fortes para a locação de imóveis. O principal modelo de habitação urbana da época perde força por causa das novas regras impostas aos proprie-tários de cortiços.

A partir da década de 1940, o crescimento da cidade muda para o modelo urbano periférico e horizontal. Surgem os primei-ros loteamentos irregulares e clandestinos que revelam o cresci-mento desordenado e a formação de comunidades em favelas. Devido à falta de infraestrutura dessas regiões, quem não tinha água cavava poço; por falta de energia elétrica se usava lampião apenas para iluminação; o transporte era feito por linhas de ôni-bus que circulavam em horários reduzidos. Os bairros mais afas-tados do Centro se formaram sem saneamento básico, coleta de lixo, atendimento médico e escolas. Quando a sociedade come-çou a se organizar para cobrar do poder público, esses serviços chegaram a boa parte da cidade. Ainda assim, quanto mais peri-férica a região, mais lento era o ritmo de sua urbanização.

Para atender à demanda por transporte, que se tornara insuficiente diante do adensamento periférico, foi criada a Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC). Os bondes deram lugar aos ônibus, e as linhas de trens suburba-nos se expandiram para fora dos limites da cidade.

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O crescimento da população, impulsionado pelo êxodo rural, contribuiu para a proliferação de favelas, cortiços e lo-teamentos irregulares e clandestinos espalhados pela cidade. As demandas sociais por habitação e serviços básicos como saúde, educação e transporte cresceram acima da capacidade de atendimento do Estado.

A primeira ação do poder público visando ao atendimento da demanda por habitação popular foram as casas populares financiadas pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI). Criado na era Vargas, o IAPI foi um dos primeiros fundos de aposentadoria do País. Parte do dinheiro arrecadado era aplicado na construção de casas populares, fi-nanciadas pelos próprios trabalhadores.

Banco Nacional da Habitação (BNH)

Em 1964, no início do regime militar, foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH), que passou a captar recur-sos financeiros do Fundo de Garantia por Tempo de Servi-ços (FGTS), contribuição composta por valores recolhidos do empregador e do assalariado, resgatada somente em casos de demissão involuntária. Esses recursos foram aplicados na produção de casas populares.

O urbanista Luís Octavio da Silva destaca que esse sistema tinha uma contradição na concepção, pois fundos de aposen-tadoria e desemprego não seriam capazes de sustentar uma política social por si deficitária. “Enquanto o mercado finan-ceiro registrava taxas positivas estava tudo bem. Esse período de prosperidade durou até o inicio da década de 1970, mas quando surgiu a primeira recessão na economia, causada pela crise do petróleo em 1973, o BNH também entrou em crise. Além de financiar empreendimentos habitacionais o banco emprestava dinheiro para obras de urbanização das prefei-

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turas, que foram as principais responsáveis pela inadimplên-cia”, explica o urbanista.

Fundação da Secretaria municipal da Habitação e Desenvolvimento Urbano (Sehab)

Em 1977 o Brasil começava a luta pela redemocratização, com eleições diretas para administrações municipais e esta-duais. A cidade de São Paulo já estava povoada e os problemas de habitação ainda não eram encarados pelo poder público. A questão era levantada apenas diante de situações de desastres, como deslizamento e alagamento em ocupações nas áreas de risco e de mananciais. A resposta do governo se dava no âm-bito da assistência social. Nesse ano a Secretaria Municipal da Habitação (Sehab) foi criada, com o objetivo de encontrar soluções para o problema habitacional na cidade.

Com a Sehab, foi fundada a Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab), que passou a produzir habitação de inte-resse social nas regiões periféricas da capital. Como os conjun-tos habitacionais da Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste. Para garantir a produção em larga escala e maior apro-veitamento do espaço, a Companhia comprava terrenos em áreas distantes do Centro para baratear o custo da construção. No entanto, não foram computados os valores necessários para garantir a urbanização, que envolvia a construção de malha viária, equipamentos públicos como escolas e postos de aten-dimento médico e a instalação de centros comerciais que aten-dessem às exigências básicas da população. Essa prática causou forte adensamento no extremo da Zona Leste, mas a região permaneceu carente de infraestrutura e serviços básicos.

Na década de 1980 houve distanciamento do governo fe-deral das políticas de habitação social. Coube aos Estados e municípios buscar soluções viáveis para o problema. Soluções

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alternativas foram adotadas. Somente no final da década, em 1989, a prefeita Luiza Erundina começou a implantação da política de urbanização de favelas, que consistia em promo-ver obras de infraestrutura em assentamentos, com condições mínimas de dignidade. Ela criou o Fundo de Atendimento à População em Áreas Subnormais (Funaps), que promovia a política de mutirões de autogestão, dando autonomia aos movimentos organizados para escolher e negociar o valor do terreno, contratar o projeto, comprar materiais e construir as casas. “A experiência foi positiva para todos os envolvidos. A Prefeitura conseguiu reduzir o custo da provisão de casas. E os movimentos de moradia conseguiram se legitimar como parceiros do poder público. A ação provou que era possível conseguir preços menores no mercado imobiliário e na aqui-sição de materiais de construção”, relata Luís Octavio. Além disso, os participantes adquiriam conhecimento dos diversos processos da execução de mutirões, com o suporte do corpo técnico da Prefeitura, que também poupava, evitando contra-tos milionários com empreiteiras.

Na estrutura da Sehab há as Superintendências de Habi e Resolo. A primeira, responsável pelas políticas de urba-nização de favelas e assentamentos precários, e a segunda responde pela regulamentação de loteamentos clandesti-nos e irregulares. Os loteamentos clandestinos são aque-les em que o loteador parcela e comercializa terrenos sem nenhuma deliberação dos órgãos públicos responsáveis. Muitas vezes o loteador nem mesmo é o proprietário do terreno. Já os loteamentos irregulares são aqueles que até foram submetidos a avaliação técnica da Prefeitura, mas na execução do parcelamento os projetos e plantas aprovados foram desrespeitados.

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Cingapura

Durante a década de 1990 a gestão do então prefeito Pau-lo Maluf adotou o Projeto Cingapura, que ganhou esse nome porque em tese copiava a política habitacional do país asiá-tico, que superou o problema da habitação. Na teoria, o ob-jetivo era promover a urbanização de favelas e assentamen-tos precários na capital por meio da verticalização. “O ponto positivo do programa estava na manutenção das famílias no local em que já estavam instaladas. No entanto, os problemas foram identificados na execução, pois a produção de imóveis se dava por meio de empreiteiras contratadas por licitações não muito claras. Há denúncias de cobrança de valores su-perfaturados e construções em terrenos particulares”, afirma o urbanista. Vale lembrar que o programa era financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). De acor-do com ex-prefeito, o programa entregou 20 mil apartamen-tos, reurbanizou 58 favelas e beneficiou 100 mil pessoas.

No final de 2011, o conjunto habitacional da avenida Zaki Narchi precisou ser desocupado. Laudo da Cetesb revelava que as edificações foram construídas em área contaminada com gás metano. O conjunto foi um dos primeiros Cingapura da cidade, onde vivem cerca 2 mil e 800 pessoas. À época, houve diversas manifestações promovidas pelos moradores. Um processo de descontaminação foi iniciado e permitiu que as famílias continuassem em sua residência.

morar no Centro

Apesar das conquistas alcançadas pelos movimentos de luta por moradia nos primeiros anos do século XXI, como o Estatuto da Cidade e a aprovação do primeiro Plano Diretor

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Estratégico, foram poucas as políticas habitacionais execu-tadas na cidade. A gestão da prefeita Marta Suplicy, embora tenha se empenhado na urbanização de favelas e melhorias na qualidade dos transportes, não produziu expressivas uni-dades habitacionais. O objetivo principal estava na descen-tralização da administração pública por meio da criação das subprefeituras. Desse modo, os problemas regionais seriam enfrentados com maior autonomia por gestores mais próxi-mos da população.

O governo Marta Suplicy criou o Programa Morar no Centro, dentro de um conjunto de intervenções na região cen-tral. Em julho de 2001 foi criada, a partir do Decreto 40.753, a Coordenadoria de Reabilitação da Área Central (Procen-tro). De acordo com dados da Sehab, o Programa Morar no Centro produziu 722 unidades habitacionais de 2001 a 2004. Nesse período, foram concluídas 12 mil moradias populares em conjuntos habitacionais produzidos por mutirão. E 51 mil famílias obtiveram a escritura de sua casa por meio dos pro-gramas de regularização fundiária.

O ano de 2005 foi o primeiro da gestão José Serra na ci-dade. Mas sua administração não avançou na política habi-tacional. Embora a Cohab continuasse produzindo novas unidades, as políticas e a garantia dos direitos conquistados na Constituição, no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor ficaram travados pela ineficiência ou apatia do Executivo na condução das políticas habitacionais.

Minha Casa Minha Vida

Em 2009 o governo federal voltou a financiar a construção de moradias populares pelo Programa Minha Casa Minha Vida. O programa subsidia a construção de casas populares e as financia para famílias em três faixas de renda. A faixa 1

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vai até R$ 1,6 mil; a faixa 2 vai até R$ 3,275 mil, e a faixa 3 até R$ 5 mil. De acordo com levantamento da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), de 2009 a 2013 o programa contratou 49 mil unidades habitacionais apenas na região metropolitana do Estado, que abrange a capital e as cidades do entorno. Mas a provisão de imóveis na cidade sempre esteve aquém da crescente demanda. Por outro lado, os governos estadual e municipal reduziram investimentos na área da habitação social.

Últimos anos

Durante as gestões Serra e Kassab, a provisão de casas populares ficou estagnada, os movimentos de moradia fo-ram marginalizados, e as políticas de urbanização de favelas e assentamentos precários não evoluíram. Um dos exemplos mais claros foi o descaso do Executivo com o Conselho Mu-nicipal da Habitação, esvaziado pela falta de reuniões. As eleições para escolher os representantes da sociedade foram canceladas e os representantes do governo travavam as pau-tas, inviabilizando decisões.

Na contramão da habitação social, os valores dos imóveis na cidade cresceram a taxas galopantes, favorecendo a espe-culação imobiliária, setor que mais lucrou no mercado finan-ceiro. De acordo com o índice Fipe Zap-Imóveis, os preços subiram 47,3% de 2011 a 2014, quase o triplo da inflação acu-mulada no mesmo período.

Em 2013 o prefeito Fernando Haddad estabeleceu em seu plano de metas a provisão de 55 mil unidades habitacionais. Esse número ainda é pequeno diante do déficit habitacional, que é de 475 mil casas, segundo o estudo “Déficit Habitacio-nal no Brasil 2010”, produzido pela Fundação João Pinheiro. O prefeito promoveu a revisão do Plano Diretor Estratégico

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(PDE), a lei municipal que determina as regras para o desen-volvimento da cidade nos próximos 20 anos. Houve diversas audiências públicas e oficinas de propostas, nas quais a po-pulação contribuiu com ideias na elaboração do projeto de lei apresentado à Câmara Municipal. O vereador Nabil Bonduki foi o relator do projeto e organizou a participação popular du-rante o processo de definição do texto final, aprovado em julho de 2014, com forte pressão dos movimentos de luta por mora-dia. O mais atuante deles foi o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), liderado pelo ativista Guilherme Boulos. Os manifestantes sitiaram o prédio do Legislativo municipal para forçar os vereadores paulistanos a aprovar o PDE. A nova legislação estabelece instrumentos mais eficientes para conter a especulação imobiliária e facilitar a desapropriação de imóveis vagos pelo poder público, que agora tem o dever de garantir a função social da propriedade pela aplicação dos mecanismos dispostos na nova lei.

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Uma nova estratégia

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Após um processo participativo que durou um ano e quatro meses, a ci-dade de São Paulo aprovou o novo

Plano Diretor Estratégico, lei que estabele-ce as diretrizes que orientarão o desenvol-vimento da metrópole pelos próximos 16 anos. Houve 114 audiências públicas que atraíram mais de 25 mil pessoas, que por sua vez apresentaram mais de 10 mil con-tribuições e 5.684 propostas. Além disso, os sistemas de participação on-line, como o site Gestão Urbana da Prefeitura e o site da Câmara Municipal, receberam outras 4,5 mil colaborações.

O novo PDE tem como principal ob-jetivo humanizar e reequilibrar a cidade, tornando a moradia e o emprego mais pró-ximos, diminuindo desigualdades sociais e territoriais, combatendo a ociosidade de prédios e terrenos que não estão cumprindo a função social. Outros desafios são levar a urbanização às áreas mais afastadas da ci-dade, promover o crescimento no entorno dos chamados eixos de transporte público e

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o incentivo ao uso da bicicleta e formas alternativas de trans-porte em detrimento do automóvel.

Em 2007, o então prefeito Gilberto Kassab tentou revisar o PDE. Mas o processo foi interrompido por causa de denún-cias em relação à falta de transparência e favorecimento de empreiteiras. O Ministério Público abriu inquérito, mas an-tes de as investigações começarem o prefeito suspendeu todo o processo.

Zonas especiais de Interesse Social (ZeIS)

“É um plano para implantar uma política habitacional que atenda a quem precisa”, afirmou o secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando de Mello Franco, na cerimônia de sanção da Lei do Plano Diretor. O novo PDE não só mantém as áreas destinadas para Habitação de Interes-se Social, como amplia as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) em mais de 100%. A ideia das ZEIS está diretamen-te ligada à garantia da provisão das Habitações de Interesse Social. Antigamente, as leis de zoneamento definiam padrões para cada bairro, destinando áreas para uso residencial, outras eram consideradas zonas comerciais ou industriais, mas não existia por parte do mercado imobiliário a intenção de criar zonas ou áreas próprias para construção de moradia popular para a população de baixa renda. “Na verdade, esse instru-mento foi criado com a intenção de fomentar a produção de habitação social pelo próprio mercado imobiliário e forçar a redução do preço da terra, tornando a moradia mais barata”, afirmou o urbanista Luís Octavio da Silva.

Na realidade, as ZEIS deveriam ser discutidas na revisão da Lei de Zoneamento, que começou em outubro de 2014. Mas diante da pressão social em torno da questão da mora-dia, o prefeito Fernando Haddad antecipou a delimitação das

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áreas destinadas para ZEIS já no PDE. O plano determinou que durante a revisão da Lei de Uso e Parcelamento do Solo essas áreas só poderiam ser ampliadas, uma das principais vi-tórias alcançadas pelos movimentos populares de moradia.

outorga onerosa

Em São Paulo, o direito de construir é gratuito desde que a edificação respeite o coeficiente de aproveitamento do ter-reno. O novo PDE estabelece que todas as construções estão restritas a uma vez o tamanho do terreno. Ou seja, se um ter-reno tem 100m², a área edificada não pode exceder 100m². Em alguns países o direito de construir precisa ser comprado pelo proprietário. Em São Paulo, o direito de propriedade se funde com o de construir. Para um empreendedor particular cons-trua acima do coeficiente mínimo, que é igual a um, ele deve pagar ao governo municipal a Outorga Onerosa. Esse valor arrecadado pela Prefeitura é a principal receita do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb).

Fundo de Desenvolvimento Urbano

O PDE determina que 30% dos recursos do Fundurb se-rão destinados à produção de habitações de interesse social. O Fundurb é fundo monetário da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) que tem como objetivo principal financiar programas e projetos urbanísticos e am-bientais que viabilizem as diretrizes do PDE. Os recursos do Fundurb são provenientes de diversas fontes de arrecadação da Prefeitura, como empréstimos e repasses do governo fede-ral; operações financeiras, como a Outorga Onerosa do direi-to de construir e doações de pessoas e instituições privadas ao município. A previsão inicial é que esses recursos financiem as 55 mil unidades habitacionais prometidas até 2016.

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operações Urbanas Consorciadas

Há regiões da cidade, como o entorno das avenidas Faria Lima e Água Espraiada, os distritos Sé e República da re-gião central e a Várzea do rio Tamanduateí, em que a Prefei-tura identificou grande potencial de desenvolvimento urba-no. Nessas áreas o poder público pretende viabilizar obras de infraestrutura urbana e incentivar investimentos do setor privado. Essas regiões são delimitadas em determinado pe-rímetro e denominadas Operações Urbanas Consorciadas (OUC) ou Áreas de Intervenção Urbana (AIU). Elas pos-suem regras específicas que as destacam na lei de zoneamen-to geral da cidade.

Para o proprietário de um terreno localizado dentro de uma dessas regiões construir acima do coeficiente mínimo, deve comprar Certificados de Potencial Adicional de Cons-trução (Cepac). Para cada Operação Urbana Consorciada a Prefeitura leiloa, pelo Bovespa, determinado número de Cepacs; os valores são corrigidos pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O dinheiro que a gestão municipal ar-recada na emissão de Cepacs no mercado é revertido para o Fundurb. A emissão de novas Cepacs ocorre de acordo com o nível de desenvolvimento das operações urbanas. Qual-quer cidadão pode adquirir e vender as Cepacs no mercado financeiro. Atualmente, a cidade de São Paulo tem quatro Operações Urbanas Consorciadas regulamentadas por meio de legislações específicas em diferentes regiões. São elas a da Água Branca e Faria Lima, na Zona Oeste; Água Espraiada, na Zona Sul, e os distritos Sé e República, no Centro. Além destas, o Plano prevê a criação e regulamentação de outras três OUCs nos próximos anos, que são os Arcos Tamandua-teí, Tietê e Pinheiros.

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iPtU progressivo

O novo Plano Diretor Estabelece normas e regras mais fortes que permitem ao Poder Executivo, a Prefeitura de São Paulo, conter a especulação imobiliária. Uma delas começou no dia 31 de outubro de 2014. Nesse dia simbólico (Dia das Bruxas), a Prefeitura de São Paulo começou verdadeira caça às bruxas, notificando os donos de imóveis ociosos para apre-sentarem projetos de utilização das propriedades em no má-ximo um ano.

Caso não obedeçam à determinação, passarão a pagar o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) progressivo. Além do IPTU normal, deverão pagar taxa equivalente a 2% do valor venal do imóvel. Essa taxa será duplicada anualmen-te, até o quinto ano, quando a taxa deve atingir 15% do valor venal do imóvel. Caso nada seja feito nesse período, o imóvel será desapropriado com títulos da dívida pública e a Prefei-tura poderá utilizá-lo para produção de moradias populares.

Cota de solidariedade

A cota de solidariedade é o instrumento pelo qual se esta-belece que os empreendimentos imobiliários de grande porte devem destinar 10% da área computável para a construção de unidades habitacionais de interesse social. Essas unidades podem ser produzidas dentro do próprio empreendimento, construídas em terrenos localizados em áreas urbanizadas ou financiadas pela transferência dos valores correspondentes à cota ao Fundurb.

Esse é um dos pontos do PDE que causam discussões aca-loradas. Os defensores das grandes incorporadoras imobiliá-rias dizem que esse instrumento inviabilizaria a execução de

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grandes empreendimentos na cidade. Por outro lado, urba-nistas alinhados com valores progressistas defendem que é a melhor forma de custear o impacto social causado por esse tipo de empreendimento. “A empregada que vai trabalhar nos apartamentos luxuosos vai sair de longe e pagar condu-ção para chegar ao trabalho. Portanto, é justo que as grandes construtoras assumam parte dessa conta, que até hoje só foi paga pelo Estado”, afirma o urbanista Luís Octavio.

Mais qualidade de vida

Outro objetivo que o PDE tenta alcançar é a qualificação da vida nos bairros, uma das principais demandas da socieda-de durante o processo participativo. E para atender à reivin-dicação, duas das diretrizes foram a restrição mais rígida do coeficiente de aproveitamento dos terrenos e o estabelecimen-to do gabarito máximo de oito pavimentos nos miolos de bair-ros. “Isso permite que a qualidade e a identidade dos bairros sejam preservadas”, afirma o secretário de Desenvolvimento Urbano Fernando de Mello.

O plano mostra a exigência de expansão da rede de par-ques da cidade e busca, na medida do possível, que estejam próximos em todos os bairros.

eixos de transporte e valorização das áreas térreas

Outra iniciativa do plano é direcionar o adensamento populacional aos eixos de transporte, incentivando o uso do transporte público. O PDE tem como principal objetivo a ar-ticulação da cidade com a expansão da rede de transportes. Desse modo, o governo pretende executar serviços urbanos e garantir novas oportunidades de trabalho a toda a cidade, diminuindo a polarização do desenvolvimento do centro ex-pandido e difundindo o crescimento em toda a capital.

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Além disso, o plano prevê incentivos aos empreendimentos imobiliários que destinarem áreas térreas para o uso comum, seguindo o exemplo do Conjunto Nacional, na avenida Paulis-ta. Além de reunir comércios e atrações culturais em um único espaço, o local serve de abrigo e passagem para as pessoas que circulam pela região e contribui para uma cidade mais humana e alinhada com a preservação do meio ambiente.

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Agradecimentos

Para que este trabalho fosse concretizado uma verdadeira equipe foi mobilizada em torno deste projeto. Foram pessoas que dedicaram horas de seu precioso tempo para me auxiliar nesta jornada e sem a ajuda delas não teria conseguido.

Agradeço ao Alex Criado por me mostrar o melhor cami-nho dentro das possibilidades que o tema poderia abordar. Ao Luiz Octávio que foi mais que um colega, foram livros preciosos emprestados e verdadeiras aulas sobre o assunto, ministradas com certo entusiasmo.

Também agradeço a todas as pessoas que tiveram a boa von-tade de me ajudar permitindo que eu pudesse contar suas his-tórias. Elas acreditaram em mim e na seriedade deste trabalho.

Da mesma forma agradeço aos meus colegas da Supervisão de Habitação da Subprefeitura Sé, por me indicar lugares onde eu poderia encontrar personagens e a Eloisa, a colega do curso que me auxiliou na procura do caso mais difícil de encontrar.

Desde já, sou grato a todos que dedicaram parte do seu tempo lendo este livro. Um grande abraço e muito obrigado.

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