01 - Escola noturna - C J Daugherty

315

description

 

Transcript of 01 - Escola noturna - C J Daugherty

Quando todos estão mentindo em quem voce confia? Quando a adolescente problemática Allie Sheridan vai presa de novo, seus pais decidem que já estão fartos. Assim, ela é despachada para a Academia Cimmeria, um colégio interno bem distante dos seus amigos londrinos. A academia é uma bela construção, cheia de adolescentes lindos e milionários do tipo que viaja de jatinho, foi criado pela babá e só faz compras nos endereços mais exclusivos. Em Escola Noturna, primeiro volume de uma trilogia, Allie faz novas amizades e conhece Carter, um rapaz solitário com quem ela sente uma conexão imediata.

–D

UM

epressa!—Querficarcalma?Játôquaseacabando.

Com a mandíbula cerrada, Allie se agachava no escuro, pintando o último AenquantoMarkseajoelhavaaoladosegurandoumalanterna.Asvozesecoavampelocorredorvazio.Ofachodeluz,queiluminavaotrabalhodeAllie,tremeuquandoorapazriu.

Umruídoestaladorepentinofezosdoispularem.Luzespiscaramacimadeleselogoinundaramocorredordaescola.Doisuniformesencontravam-senaporta.Allieabaixoualatadespraydevagar,semtirarodedodobotão,fazendoaletra

seesticarbizarramentepelaportadasaladodiretoratéopisodelinóleosujo.—Corre.Quando as palavras deixaram seus lábios, ela já estava voando pelo amplo

corredor, as solas de borracha dos tênis chiando ocamente no vazio do colégioBrixtonHill.NãoolhouparatrásparaverseMarkestavavindo.

Nãosabiaondeestavamosoutros,masseHarry fossepegooutravez,opaiomataria.Dobrandoaesquinaàspressas,elavirouemumcorredorescuro.No nalviuobrilhoverdedeumasaídadeemergência.

Uma sensação de poder passou por ela ao correr em direção à liberdade. Iaescapar.Iasesafar.

Trombandocontraasportasduplas,empurroucomforçaabarraquedeveriatê-lalibertado.

Elanemsemoveu.Nãoacreditando,empurrounovamente,masaportaestavatrancada.Diabos.Seeunãoestivessevandalizandoocolégio,pensou,alertariaojornallocal.Febrilmente, examinou o corredor. A polícia estava entre ela e a entrada

principal.Aúnicasaídanesteladoestavatrancada.Tinhaquehaveroutrasaída.Prendeuarespiraçãoparaescutar.Vozesepassosvindoemsuadireção.

Apoiandoasmãosnos joelhos,deixouacabeçacair.Nãopodia carassim.Ospais acabariam com ela. Uma terceira prisão em um ano? Já tinha sido ruim osu ciente terem feito com que ela fosse para este colégio miserável. Para onde amandariamagora?

Correuparaaportaseguinte.Um,dois,trêspassos.Tentouamaçaneta.Trancada.Atravessouocorredoratéoutraporta.Um,dois,três,quatropassos.Trancada.Agoraestavacorrendoemdireçãoàpolícia.Istoeraloucura.Masaterceiraportaabriu.Umarmáriodesuprimentos.Deixamoarmáriodesuprimentosaberto,mastrancamassalasdeaulavazias?Essa

escolaécomandadaporidiotas.Esgueirando-secautelosamenteentreasprateleirasdepapel,baldesde limpezae

equipamentoselétricosquenãoconseguiaidenti carnoescuro,deixouaportafecharatrásdesiecontrolouarespiração.

Estavatotalmenteescuro.Allieergueuamãonafrentedorosto—bemnafrentedorosto—enãoconseguiuenxergá-la.Sabiaqueestava lá;podia sentir.Masnãoconseguir vê-la foi algo que a desorientou instantaneamente. Esticando-se para seacomodar, engasgou quandoumapilha pesada de papéis começou a escorregar doalto.Lutouparareequilibrá-la,mesmosemconseguirvê-la.

Do lado de fora da porta, ouvia vozes fracas; pareciamdistantes. Só precisariaesperarmaisalgunsminutosedesapareceriam.Sómaisalgunsminutos.

Estavaquente,abafado.Ficacalma.Contouasrespiraçõespesadas...doze,treze,catorze...Masestavaacontecendo.Aquelasensaçãodeestarpresaemconcreto,incapazde

respirar.Ocoraçãoestavaacelerado,opânicocrescentequeimandonagarganta.Porfavor, cacalma,Allie , imploroua simesma.Maiscincominutosevocêvai

estarsegura.Osmeninosnuncavãocontar.Masnãoestavafuncionando.Sentia-setonta;sufocada.Tinhaquesair.Enquanto escorria suor pelo seu rosto e o chãoparecia balançar embaixodela,

Alliealcançouamaçaneta.Não,não,não...Nãopodeser.

Aquelapartedaportaeracompletamentelisa.Perturbada, apalpou toda a porta impassível, em seguida a parede em volta.

Nada.Nãotinhacomoabrirpordentro.Empurrou a porta, arranhou as bordas com as unhas, mas ela não cedeu. A

respiraçãoveiomaispesadaagora.Estavatãoescuro.Cerrandoasmãosempunhos,bateunaportalisaeinflexível.—Socorro!Nãotôconseguindorespirar.Abramaporta!Nãoobteveresposta.—Meajudem!Porfavor?Detestavao tomde súplicanaprópriavoz.Soluçando, colocouabochechana

portaearfouaobaternamadeiracomasmãos.—Porfavor.Quandoaportaabriu,foitãoderepentequeelacaiuparaafrentedesamparada,

diretonosbraçosdeumpolicial.Eleaseguroucomosbraçosestendidos,apontandoumalanternaemseusolhos,

assimilandoocabelodesgrenhadoeasbochechasmarcadasporlágrimas.Elesorriuporcimadacabeçadelaparaooutropolicial.FoientãoqueAllieviu

Mark,comacabeçaabaixadaesemoboné.Estavapresoàsgarrasdeoutropolicial,queretribuíaosorriso.

P

DOIS

orcimadoconstanteroncodeumadelegaciadepolíciaemumanoitedesexta-feiradeverão,Allieescutouavozdopai,tãoclaramentequantoseeleestivessediantedela.Paroudeenrolarocabeloeolhouansiosamenteparaa

porta.—Nemconsigoexpressarquantoestouagradecido.Sintomuitopeloincômodo

—ouviu.Otomdavozdoseupaieraumqueelaconheciamuitobem:humilhado.Porela.Escutououtravozmasculinaquenãoconseguiuidenti car,eemseguidaopai denovo:—Sim, estamos tomandoprovidências, e eu agradeço seu conselho.Nósvamosdiscutirissoetomarumadecisãoamanhã.

Decisão?Quetipodedecisão?Em seguida a porta se abriu, e seus olhos de cor cinza encontraram os azuis

cansadosdopai.Sentiuocoraçãoapertarumpouconopeito.Amarrotadoecomabarbaporfazer,pareciamaisvelho.Emuitocansado.

Eleentregoualgunspapéisàpolicial,quemalosolhouantesdeacrescentá-losàpilha. Elamexeu numa gaveta e retirou de lá um envelope contendo as coisas deAllie,eoempurrousobreamesaparaopaidela.Semolharparanenhumdosdois,dissemecanicamente:

—Vocêestásolta,aoscuidadosdoseupai.Podeir.Allieselevantou,dura,eseguiuopaipeloscorredoresestreitoseiluminadosatéa

portadafrente.Quandoestavamlá fora, soboar frescodeverão,elarespiroufundo.Oalívio

por estar fora da delegacia semisturou à ansiedade por causa da expressão do pai.Caminharamemsilêncioparaocarro.

Dooutroladodarua,eledestrancouaportadoFordpreto,quedeuoseuapitodeboas-vindasincongruentementealegre.Quandoligouomotor,Allievirou-separaeleansiosa,comosolhoscheiosdeexplicações.

—Pai...Eleolhouparaafrente,comamandíbulatensa.—Alyson.Não.

—Nãooquê?—Nãofala.Só...sentaaí.Depoisdissoocaminhofoisilencioso.Eaochegarememcasa,seupaisaltoudo

carrosemumapalavra.Alliefoidesajeitadaatrásdele,asensaçãodenervosonabocadoestômagoaumentando.

Elenãopareciairritado.Parecia...vazio.Alliesubiuasescadaseatravessouocorredor,passoupeloquartovaziodoirmão.

Nasegurançadopróprioaposento,examinou-senoespelho.Oscabelostingidosderuivonaalturadosombrosestavamemaranhados, tintapretamanchavaa têmporaesquerda,orímelseacumulavasobosolhos.Cheiravaasuorrançosoemedo.

—Bom—disseparaopróprioreflexo—,talvezpudessetersidopior.

Quando acordou na manhã seguinte, já era quase meio-dia. Saindo de baixo dacoberta amarrotada, vestiu jeans e uma camiseta branca. Em seguida, abriucuidadosamenteaporta.

Silêncio.Desceunapontadospéspara a cozinha, onde a luzdo sol entrava atravésdas

janelasgrandes,iluminandoasbancadasdemadeira.Tinhamdeixadoparaelapãoemanteiga,quederretianocalor.Haviaumaxícarapertodobule,comumsachêdechádentro.

Apesardetudo,estavacommuitafome.Cortouumpedaçodepãoeocolocounatorradeira.Ligouorádioparapreencherosilêncio,mas,passadouminstante,odesligou.

Comeu rapidamente, folheando as páginas do jornal da véspera, sem prestarmuitaatenção.Sóquandoacaboufoiquenotouobilhetepertodaportadacozinha.

A–

Voltoàtarde.NÃOsaiadecasa.

–M

Instintivamente, alcançouo telefonepara ligarparaMark,maso aparelhonãoestavanolugardesempre,pertodageladeira.

Apoiando-se contra a bancada de madeira, tamborilou os dedos, ouvindo oconstantetique-taquedorelógioacimadofogão.

Noventaeseistiques.Ouseriamtaques?Comosesabeadif...?—Certo—disse.Endireitou-seebateuamãonabancada.—Dane-se.

Correuparaoquartoeabriuagavetadaescrivaninhaparapegarolaptop.Agavetaestavavazia.Ficouparada, contemplandoo signi cado inerente à ausência do computador.

Seusombrosmurcharamumpouco.

Seus pais não voltaram até o m da tarde. Ela estava esperando ansiosamente—levantava para espiar pela janela cada vez que uma porta de carro batia — masquando nalmentechegaram,adotouumardedesinteresse,mantendo-seencolhidanosofá,assistindoàTVcomosomdesligado.

Amãelargouabolsanolugardesempre,namesadocorredor,eseguiuopaiatéacozinhaparaajudá-loaprepararchá.Atravésdaportaaberta,Allieaviurepousaramão reconfortantemente no ombro do pai só por um segundo antes de ir até ageladeirabuscarleite.

Acoisanãoestáparecendoboa.Algunsminutosdepoisestavamempoleiradosladoaladonosofáazul-marinho

diantedela.Ocabelodopaiestavacuidadosamentepenteado,maseletinhacírculossob os olhos. A expressão damãe era calma,mas seus lábios estavam rijos numalinha.

—Alyson...—opaicomeçouehesitou.Esfregouosolhos,cansado.Amãeassumiuasrédeas.—Nósandamosconversandosobreoquepodemosfazerprateajudar.Ihhhhh...—Vocêobviamentenãoestáfeliznoseucolégioatual—diziamuitoprecisae

lentamente.OsolhosdeAlliedesviaramdeumdospaisparaooutro.—Eagoraquevocêinvadiu,pôsfogonasua chaepichou“Rosséumbabaca”naportadasalado diretor Ross, não é nenhuma surpresa que eles também não estejam muitosatisfeitoscomvocê.

Alliemordeuacutículadodedomindinhoe lutoucontrao impulsode soltarumrisinhonervoso.Riragoranãoajudariaemnada.

—Essa é a segunda escola a nos pedir,muito educadamente, pramandarmosvocêestudaremoutrolugar.Estamoscansadosderecebercartaseducadasdeescolas.

Seu pai se inclinou para a frente e olhou nos olhos deAllie pela primeira vezdesdequeabuscaranadelegacia.

—Nósentendemosquevocêestáseexpressando,Alyson—eledisse.—Nósentendemos que foi assim que você escolheu lidar com tudo que aconteceu,maschega.Pichações,vadiagem,vandalismo...Basta.Vocêjádeixoubemclaro.

Allieabriuabocaparasedefender,masamãelhelançouumolharameaçador.A

meninalevantouospéseabraçouosjoelhos.Agoraeraavezdamãenovamente.—Ontem à noite, o prestativo representante da polícia, que, por sinal, sabia

tudoaseurespeito,sugeriuquetemandássemospraumcolégiodiferente.ForadeLondres.Longedosseusamigos.

Eladisseaúltimapalavracomdesprezo.—Fizemosalgumasligaçõeshojedemanhãe...—amãeparou,olhandoparao

pai, quase incerta, antes de prosseguir— encontramos um lugar especializado emadolescentescomovocê.

Allieseencolheu.—...ehojenósfomosvisitá-lo.Conversamoscomadiretora...—Quefoiabsolutamentegentil—interveioopai.Amãeoignorou.—...eelaconcordouemteaceitaressasemana.—Espera aí...Essa semana?—AvozdeAllie se elevou incrédula.—Mas as

fériasdeverãosócomeçaramháduassemanas!—Vocêvaiserinterna—disseopai,comoseelanãotivessesepronunciado.Allieoencarou,boquiaberta.Interna?Apalavrareverberouemsuamente.Elessópodemestarbrincando,disseasimesma.—...oquevaiserdifícilparaagentepagar,masnósachamosquevaleapena

tentar teprotegerde vocêmesma, antes que jogue sua vida toda fora.Legalmentevocêémenordeidade,masnãovaiserpormuitotempo.—Elebateunobraçodosofá,eAllieoencarou.—Vocêtem16anos,Alyson.Issotemqueparar.

Allieescutouocoraçãobaterforte.Trezebatidas,catorze,quinze...Elanãoconseguiaacreditarnoquãoruimistoera.Erainacreditavelmenteruim.

Níveisrecordesdemaldadeaconteciamnesteexatomomentonorecinto.Inclinou-separaafrentenacadeira.

—Olhasó,euseiqueerrei.Estoumesentindomuito,muitomalporisso—desculpou-seAllie,incorporandoomáximopossíveldesinceridadenavoz.Suamãenão pareceu nada comovida, então ela se voltou para o pai, implorando.—Masvocêsnãoachamqueestãoexagerando?Pai,issoéloucura!

AmãedeAllieolhounovamenteparaopai;destavezcomoolharimponente.Eleolhouparaafilhaentristecidoebalançouacabeça.

—Tarde demais — disse ele. — A decisão já foi tomada. Você começa na

quarta-feira.Eatélánadadecomputador,telefonenemiPod.Enadadesairdecasa.Quandoospaisselevantaram,pareciaqueojuizestavadeixandootribunal.No

vazioquedeixaram,Alliesoltouarespiração,trêmula.

Osdiasseguintessepassaramnumanévoadeconfusãoeisolamento.Eraparaelaterfeitoasmalasesepreparado,masemvezdisso coutentandodemoverospaisdoplanomaluco.

Nãoconseguiunada.Malfalavamcomela.Terçaàtardesuamãelheentregouumenvelope nocordemar m,dominado

porumelaboradoemblemadetintapretaespessaeaspalavras:AcademiaCimmeria.Abaixo daquilo, estava escrito “Informações para os novos alunos” numa belacaligrafiacurvilínea.

As duas folhas no envelope pareciam ter sido digitadas em uma máquina deescrever.Não tinha certeza—nunca tinhavistopapeldemáquinade escrever—,mascadaumadasletraspequenasequadradastinhadeixadoumentalheperceptívelno papel cor de creme espesso. Cada página continha apenas alguns parágrafos; aprimeiraeraumacartadadiretoradaescola,umataldeIsabelleleFanult.DiziaqueestavaansiosaporreceberAllienocolégio.

Ótimo, pensouAllie. A segunda página não tinhamuitomais utilidade que aprimeira.Diziaqueoslápis,canetasepapéisseriamprovidenciadospelaescola.Queo uniforme também lhe seria oferecido.Que deveria escrever as iniciais comumacanetaàprovad’águaou“bordá-las”emtodasasroupasquefosselevarconsigo.Quepoderia levar galochas e uma capa de chuva, pois “o campus da escola é grande erural”.

Passouosolhospelorestodacarta,procurandoahabitualmençãoameaçadoraa“regrasdaescola”,e,comonãopodiadeixardeser,láestava,destacadaemnegrito.

As regras completas sobre o comportamento dos alunos serão entregues na

chegada.Porfavor,leia-asesiga-ascomrigor.Violaçõesaqualquernormaescolar

serãoseveramentepunidas.

Elogoabaixo,maisnotíciasruins:

Apósachegada,alunosnãopodemdeixaraáreaescolarsemautorizaçãodospais

oudadiretora.Permissõesraramentesãoconcedidas.

AsmãosdeAllie tremeramaopegaraprimeirapáginadochão,dobraracartanovamentenoenvelopeecolocá-losobreamesa.

Oqueéisso,umcolégioouumpresídio?

Emseguidadesceuparaacozinha,ondeamãepreparavaoalmoço.—VouligarproMark—anuncioudemaneiradesa adora,aopegarotelefone,

quereapareciamagicamentesemprequeospaisestavamporperto.—Ah,vai?—Amãerepousouafacanabancada.—Seeuvousermandadapracadeia,tenhodireitoaumtelefonema,nãotenho?

—disseAlliecomtomdeindignaçãojustificada.Aquilojátinhaidolongedemais.Amãeaexaminouporuminstante.Emseguidadeudeombros,pegouafacae

voltouacortarumtomateemfatiasfinas.—Ligapraeleentão.Allietevequepensarumsegundoantesdediscar.TinhaotelefonedeMarkna

agendadocelular,entãoraramenteprecisavaselembrardonúmero.Otelefonetocoudiversasvezes.—Fala.—Avozdeleeratãoreconfortantementefamiliarenormalqueporum

instanteAllieachouquefossechorar.—Oi.ÉaAllie.— Allie! Caramba. Por onde você andou? — perguntou. Sua voz soou tão

aliviadaquantoadela.—Trancada—respondeu.Fixouosolhosnascostasdamãe.—Tirarammeu

telefoneemeucomputador.Nãomedeixamsairdecasa.Comoestãoascoisasporaí?

— Ah, o de sempre — disse, rindo. — Os pais estão irritados, a escola estámuitoirritada,masvaipassar.

—Vãoteexpulsar?—Oquê?Docolégio?Não.Vãoteexpulsar?—Parecequesim.Meuspaisestãomemandandopraumpresídioqueinsistem

emchamardeescola.EmalgumlugarnaMongóliaExterior.— Sério?— Ele pareceu sinceramente chateado.—Que droga! Por que eles

estão sendo tão idiotas?Ninguém semachucou.ORoss vai superar.Euvou fazeralgumaespéciedeserviçocomunitário,pedirdesculpaspratodomundoetudovaivoltaraseroinfernodesemprenaescola.Nãoacreditoqueseuspaisestãosendotãomedievais.

—Nemeu.Escuta,osMedievaisdisseramqueeunãovoupoderfalarcomvocêdepois que chegar ao colégio-presídio, mas se quiser me encontrar, o nome éCimmer...

Alinha coumuda.Allie levantouoolharparaveramãesegurandoatomadaquetinhatiradodaparede.Seurostoestavasemexpressão.

—Jáchega—disseela,eretiroutranquilamenteofonedamãodeAllie.

AmãevoltouafatiarotomateenquantoAllie,congelada,olhava xamenteparaela.Numespaçode30segundoselasentiuorostoprimeiroempalidecer,depoisficarvermelho, enquanto ela tentava segurar as lágrimas. Finalmente, deu meia-volta esaiufuriosadali.

—Vocêssãoloucos !—exclamou.Aspalavrascomeçaramemtombaixo,masseelevaramaumberroenquantoAlliesubiaasescadas.Bateuaportadoquarto,eumavezládentroficouparadabemnomeio,olhandoemvolta,aturdida.

Nãoreconheciamaisaquelelocalcomosuacasa.

Quandoamanhãdequarta-feirachegouquenteecomcéuclaro, cousurpresaporconstatarqueestavaaliviada.Aomenosestafasedocastigoestavaencerrada.

Olhouparaoarmárioabertodurantemeiahora tentandodecidiroquevestir.Finalmenteoptouporumacalçajeanspretaejustaeumcoletepretocomapalavra“Encrenca”escritaempratacintilante.Penteouoscabelosruivoseosdeixousoltos.

Estudandooreflexonoespelho,seachoupálida.Assustada.Possofazermelhorqueisso.Pegou o delineador, aplicou um traço espesso nas pálpebras e em seguida

acentuouoscílios comrímel.DepoisolhouembaixodacamaepegouumpardebotasvermelhasDocMartenqueiamatéojoelhoecalçou-assobreojeans.Quandodesceu, alguns minutos depois, ela achou que parecia uma estrela do rock. Suaexpressãoeraamotinada.

A mãe olhou para o modelito e suspirou de forma dramática, mas não dissenada.O café damanhã se passou em um silêncio gelado, e em seguida os pais adeixaram sozinhapara acabarde fazer asmalas.Ela empilhou as roupasna cama esentou entre elas, com a cabeça apoiada nos joelhos dobrados, contando asrespiraçõesatésesentircalma.

Quando foram para o carro naquela tarde, Allie parou e olhou para a casacomumcomumterraço,tentandomemorizá-la.Nãoeragrandecoisa,massempreforasuacasa,comtodaabelezaemocionalqueapalavrarepresentava.

Agorapareciaigualatodasasoutrasdarua.

A

TRÊS

viagemdecarrofoiumatortura.NormalmenteAllie cariafelizemsairdacidade em um dia ensolarado de verão,mas enquanto as ruas lotadas deLondres davam lugar a campos verdes marcados por ovelhas brancas

cochilando no calor, ela sentiu uma onda de solidão. A atmosfera no carro nãoajudou.Ospaismaltomaramconhecimentodesuapresença.Amãeestavacomomapaeocasionalmenteapontavaocaminho.

Encolhidanobancodetrás,Allieencarourancorosaascabeçasdeles.PorquenãopodiamcomprarumGPScomotodomundo?

Já tinha feito essa pergunta a eles diversas vezes,mas o pai só dizia que eramfelizessendo“luditas”eque“todomundodeveriasaberlerummapa”.

Quesedane.Semacessoaomapa,Allie coutentandoentenderexatamenteparaondeestava

indo.Não tinham dito onde era a escola, e os nomes das cidades passavam por ela

(Guilford,Camberley, Farnham...). Em seguida deixaram as estradas principais emdireção ao norte e começaram a percorrer caminhos curvos subindo e descendocolinasempistasminúsculasladeadasporcercasvivasaltasquebloqueavamqualquervisibilidade. Atravessaram vilas (Crondall, Dippenhall, Frensham...). Finalmente,apósduashoras,viraramemumapistadeterraestreita.Opaidiminuiubastanteavelocidade.Aestradapassavaporuma oresta espessaondeeramais frio equieto.Após alguns minutos de impactos e solavancos enquanto ele desviava para evitarburacosfundosnaestrada,chegaramaumportãoaltodeferro.

Pararam.Oroncodomotordocarroeraoúnicoruído.Porumlongominutonadaaconteceu.—Precisa buzinar, apertar uma campainha ou algo assim?— sussurrouAllie,

tomandociênciadagradepretaameaçadora,queseestendiapelasárvores,atéondeelapodiaenxergar.

—Não—disseopai,suavoztambémsoavasussurrante.—Devemtercircuitofechado de TV ou algo assim. Sabem quando alguém chega. Da última vez

esperamossó...Os portões estremeceram e em seguida, com um ruído metálico estalado, se

abriram.Lá dentro a oresta continuava, e o solmal penetrava através dos galhosespessos.

Allieolhoufixamenteparaassombrasàfrente.Bem-vindaaoseunovocolégio,Allie.Bem-vindaàsuanovavida.Enquanto os portões se abriam, ela contou as batidas do coração.Boom-boom-

boom...Trezebatidasepôdeveraestradadiantedela.Agoraseucoraçãoestavatãoalto que Allie veri cou furtivamente se os pais tinham notado. Eles estavamaguardandopacientemente.Opaitamborilavaosdedosnovolante.

Vinteecincobatidaseosportõessefecharamcomumtremor.Opaipassouaprimeiramarcha.Estavamavançando.Sentindo a garganta fechando,Allie se concentrou em respirar.Não queria ter

outro ataque de pânico agora de jeito nenhum. Mas não conseguia afastar umasensaçãoopressoradepavor.

Paradepirar,disseasimesma.Ésómaisumaescola,Allie.Mantenhaofoco.Funcionou;arespiraçãoacalmouumpouco.Opai conduziu o carropor uma estradade cascalhoquepassavapelas árvores

espessas.Depoisdaestradaesburacadadeterraatéchegaraoportão,estaeratãolisaebemconservadaqueocarropareciaflutuar.

Allie continuou contando as batidas do coração; ao longo de 123 delas, nadaalém de árvores e sombras; e então um rufar de tambores coronário quando elessaíramparaaluzeelaviuumaconstruçãoàfrente.

Perdeuaconta.Erapiordoqueelatemia.Parecendoforade lugarà luzfortedosol,aopéde

umacolinaíngremecobertaporárvoresestendia-seumaenormemansãogóticafeitadetijolosvermelho-escuros.Aestruturadetrêsandarestinhasidoarrancadadeoutraépocaecolocadaaquiem...ondequerqueelesestivessem.Otelhadoendentadoseprojetava a adamente em pontas e torres, coberto com o que pareciam adagas deferroforjadoapunhalandoocéu.

Putaquepariu.—Éumaconstruçãotãoimpressionante—observouopai.Amãebufou.—Impressionantementehorrível.Assustadora.Apalavraqueelesestãoprocurandoé“assustadora”.Em contraste com a estrutura intimidante, a estrada de cascalho à frente foi

transformada pelo sol em um pedaço de mar m, curvando-se em direção a umaporta grande de madeira na parede de tijolos escuros. Ao penetrarem a sombraprojetadapelaescola,opaidesacelerou.

Nosegundoemqueocarroparoudesemover,aportaseabriueumamulhermagraesorridentesaiuedesceuasescadas,correndoligeiramente.Oscabeloslourose espessos estavam presos para trás sem muita rmeza com um pregador, e securvavamnaspontascomoseestivessemfelizesemestarali.Alliesentiualívioaovercomoelaparecianormal:osóculosestavampuxadosparacimadacabeça,eelavestiaumcasacodecorcreme,dealgodão,sobreovestidoazul-claro.

Os pais de Allie saltaram do carro e foram falar com ela. Ficando para trásdespercebida,Allie abriu a porta relutantemente e saiudobanco traseirodoFord,quesubitamentepareciabastanteamigávelefamiliar.Nãofechouaporta.

Emvezdesejuntaraogrupo,elaseapoiounocarroeobservoufatigadaacenaquesedesenrolavaàsuafrente.Esperou.Vinteesetebatidasdocoração.

Vinteeoito.Vinteenove.—Senhor e senhora Sheridan, é um prazer revê-los.—A voz damulher era

calorosaealegre;sorriasemesforço.—Esperoqueaviagemnãotenhasidomuitotediosaparavocês.OtrânsitodeLondresparacáàsvezeséterrível.Maspelomenosotempoestáótimohoje,nãoé?

Alliepercebeuqueelatinhaumligeirosotaque,masnãoconseguiaidenti cá-lo.Seria escocês? Acrescentava delicadeza e complexidade às palavras, como se fossemfiligranadas.

Depois que mais gentilezas foram trocadas e a conversa morreu, os três sevoltaramparaAllie.Ossorrisoseducadosdospaisdesapareceram,substituídospelovaziocultivadoaoqualelajáestavadesconfortavelmenteacostumada.Masadiretorasorriucalorosamenteparaela.

— E você deve ser a Allie — pontuou. Escocesa, de nitivamente. Mas quesotaque estranho, muito sutil. — Allie, eu sou Isabelle le Fanult, a diretora daAcademiaCimmeria.PodemechamardeIsabelle.Sejabem-vinda.

Allie couumpoucosurpresaemouviroapelido,emvezde“Alyson”,queeracomoospaissempreachamavam.Eserorientadaachamaradiretorapeloprimeironometambémpareciaestranho.

Masbemlegal.Isabelle estendeu uma mão magra e pálida. Tinha olhos castanhos dourados

estranhamentebonitos,edepertopareciamaisjovemdoqueaparentaraserdelonge.Allienãoquerianadacomaquelelugar—nãoquerianadacomaquelamulher

—,masseviuretribuindoogesto.Quandosuamãofoiapertadanumcumprimento

surpreendentementeforteefrio,esoltadagentilmente,elarelaxouumpouco.Isabellesustentouoolharpormaisumsegundo,eAllieteveaimpressãodeter

detectadosolidariedadenaexpressãodadiretora,antesqueelasevoltassenovamenteparaospaiscomumsorrisoeumdardeombrosemtomdedesculpas.

—Sintomuito,masaregraéqueospaissedespeçamdos lhosaqui.Quandoos alunos atravessam a entrada, dão início às suas novas vidas na Cimmeria, egostamosqueelesofaçamdeformaindependente.

Voltando-senovamenteparaAllie:— Você trouxe muitas malas? Espero que a gente consiga carregar tudo. A

maioria dos funcionários está ocupada nomomento, então acho que teremos quenosvirarsozinhas.

PelaprimeiravezAlliesepronunciou.—Eunãotrouxemuitacoisa.Eraverdade.Ocolégioofereciaquasetudoepermitiatãopoucoqueno mdas

contaselasótinhaduasmalasdetamanhomédio,basicamentepreenchidasporlivrose cadernos. O pai as retirou do porta-malas. Isabelle levantou a maior comsurpreendente facilidade.Trocou algumas gentilezas nais com os pais de Allie eentãoseafastoudeles.

—Estudabastante emandanotícias de vez emquando—disse o pai.Aindaestavadistante,maspareciatriste,edeuumrápidoabraçonafilha.

Amãe retirouumchumaçode cabelodo rostodeAllie, evitandoosolhosdamenina.

—Porfavor,dáumachanceaesselugar.Eligapragenteseprecisar—orientou.PorummerosegundodeuumabraçoforteemAllie,eentãoasoltouevoltouparaocarrosemolharparatrás.

Allie couparada,comasmãosaoladodocorpo,vendoocarrofazeravoltaeretornarpelocaminhodecascalho.Sentiu lágrimasardendonofundodosolhos,ebalançou a cabeça ferozmente para espantá-las. Pegando a mala preta que restava,virounadireçãodeIsabelle,queaobservava.

—É sempre difícil da primeira vez— disse Isabelle, com a voz delicada.—Depoisficamaisfácil.

Dirigiu-seanimadamenteparaosdegraus,falandoporcimadosombros:—Temos uma pequena distância a percorrer. Você vai ver que este prédio

simplesmentenãotemfim.Avozenfraqueceuàmedidaquefoiavançando.Apósuminstantedehesitação,

Alliefoiatrás.—Vouteofereceravisitaguiadanocaminho...—diziaIsabelle,masAlliemal

escutouaoficarboquiabertacomoenormesaguãodeentrada.Ládentroestavapoucoiluminadoefrio,aluzfortedosolentravaemumtom

colorido, ltrado por um vitral no alto.O teto tinha nomínimo seismetros dealturaeerasustentadoporarcosespessosdepedra.Ochãodepedrasforapolidopormilharesdepésaolongodecentenasdeanos,até carliso.Castiçaisdeummetroemeio de altura erguiam-se como sentinelas em cada canto. Algumas paredes eramcobertasporvelhas tapeçarias,apesardeAllienãotê-lasvistomuitobemenquantoapressavaopassoatrásdadiretora.

Do saguão de entrada foram para um corredor amplo com piso de madeiraescura. Isabelle foipara aprimeira sala àdireita.Nelahaviamaisdeumadúziademesasgrandeseredondasdemadeira,cadaqualcomoitocadeirasaoredor.Emumadasparedesficavaumalareiraenorme,bemmaisaltaqueela.

—Estaéasaladerefeições.Vocêvaifazertodaselasaqui—informou,parandouminstanteparaqueAllietomasseciênciaantesdeprosseguirpelocorredor.

A curta distância e do lado oposto do corredor, ela passou por outra entradaarqueada.Estevastosalãotinhapisopolidodemadeira,tetoquasetãoaltoquantoodaentrada,e,demaneirageral,estavavazio.AlareirafaziaIsabelleparecerumaanã,eumenormecandelabrodemetalsependuravanotetoporcorrentes.

—Aquiéosalãoprincipal.Fazemoseventos,bailes,reuniõesecoisasdotipo—disse Isabelle. — Essa é a parte mais antiga da casa. Muito mais velha do que afachada.Maisvelhaatédoqueparece.

Eladeumeia-voltaeretornouparaocorredor.Alliecorreuparaacompanhá-la,arfando ligeiramente por causa do esforço. Isabelle era surpreendentemente rápida.Virandoàesquerda,gesticulouparaoutraporta,explicandoqueeraasalacomum.Em seguida começaram a subir uma escadaria larga de madeira com umimpressionantecorrimãodemogno.Os sapatosde Isabelle faziamumruído suaveenquanto ela subia, o tempo todo contando fatos e números sobre a construção.Allieestavaumpoucoatordoadaportudoaquilo—aescadariaeraeduardiana,ouela tinhadito vitoriana?A salade refeições erada épocadaReforma... ou seriadaépocadosTudor?Amaioriadassalasdeaulaseencontravanaalaleste,masoqueeladissequetinhanaoeste?

Subindodoisandares,Isabellevirouàesquerdaeatravessouumamplocorredor,depois subiu um andar com uma escadaria mais na que conduzia a um longocorredorescuroalinhadocomportasdemadeirapintadasdebranco.

— Aqui é o dormitório das meninas. Vejamos, você está no 329... — Elaapressouopassocorredorabaixoatéonúmerocertoaparecereabriuaporta.

Oquartoeramuitoescuroepequeno,comumaúnicacamademadeira,uma

escrivaninhaeumarmário,todospintadosdebranco.Isabelleatravessouoquartoeabriu uma tranca que Allie não conseguiu enxergar, afastando uma persiana demadeira que cobria uma pequena janela arqueada. Instantaneamente o quarto seacendeucomaluzdouradadatarde.

—Sóprecisadeumpoucodearfresco—dissealegrementeenquantosedirigiaà porta.—Seusuniformes estãono armário, seus pais nos deram seus tamanhos,masaviseagentesealgumacoisanãocouber.Devetertudoquevocêprecisa.Possotedeixaraquipradesfazerasmalas?Ojantaréàssete,vocêsabeondeéasala.Ah,porsinal...

Elavirou.—Eupercebi que você anda tendoproblemasna aula de inglês ultimamente,

então te pus na minha turma. É um seminário especial com uma turma menor;esperoquevocêacheinteressante.

Sobrecarregada com tantas informações, Allie assentiu silenciosamente; então,percebendoanecessidadedepalavras,falouhesitante:

—Eu...euvouficarbem.Isabelleinclinouacabeçaparaolado,observando-aporumsegundo,eassentiu.— Tem muitas informações sobre a escola e as suas aulas no envelope na

escrivaninha—disseela.Allienãotinhanotadooenvelopegrandecomseunomeàprimeiravista,masagoraficouimaginandocomopodianãoterpercebido.

—Algumaperguntaantesdeeuir?Alliecomeçouabalançaracabeçaeparou.Olhouparaospés,emseguidaparaa

frenteoutravez.Puxouabarradacamisahesitantemente.—Vocêéadiretora,certo?Isabellefezquesimcomacabeça,parecendoligeiramenteconfusa.—Entãoporqueestáfazendoissotudo?—Alliefezumgestodevarredura.—Nãoentendi—respondeuIsabelle,claramenteperplexa.—Porqueeuestou

fazendooquê?Allietentouexplicar.— Por que está me recebendo na porta, me levando até o meu quarto, me

mostrandoacasa...Isabellehesitou,cruzandoosbraçosdiscretamente.Avozeragentil.—Allie,seuspaismecontarammuitoaseurespeito.Euseioqueaconteceu,e

sintomuitopeloseuirmão.Seicomoéperderalguémpróximo,eseicomoéfácilsedeixar levar por todo esse... horror, e nuncamais se libertar.Mas você não podepermitir que o que aconteceu destrua a sua vida. Você temmuito a oferecer, e aminhafunçãoéfazercomquevocêpercebaisso.Teajudaraserecuperar.

Isabellefoiatéaportaeapoiouamão.Inspirartrêsvezes,expirarduas.— Vou mandar uma monitora passar aqui pra se apresentar e responder a

quaisquerperguntasquevocêpossater—disseIsabelle.—Elavaiviràsseis,oquedeve te dar tempo de arrumar tudo antes do jantar.Os horários das refeições sãorígidos,porfavornãoseatrase.

Elasaiusemcorrer,masaportasefechoulevementecomumcliquequieto.Allieexpirou.Com o quarto para si, teve tempo para pensar. Por que os pais contaram a

IsabellesobreChristopher?Issosemprehaviasidoassuntoparticulardafamília.Eaestranheza dessa escola? Por que não haviam passado por um único aluno nocorredornocaminhoatéali?Olugarpareciavazio.

Eraesquisito.Ela levantouumamalaparaacama.Abrindo-a,começoua retirarascoisasea

encontrar lugarespara guardá-las.Livros forampara aprateleira estreita ao ladodaescrivaninha.Asroupasforamparaacômoda,masaoabrirasgavetasviuquemuitasjá estavam preenchidas por camisetas, shorts e casacos brancos ou azul-marinhos,comobrasãodaCimmeriaacimadocoração.

Curiosa, abriu o armário e achou saias, camisas e blazers, todos ao estilo douniforme. Revirou o fundo do armário até os dedos tocarem algo leve e no.Retirando os cabides, viu que sustentavam vestidos de várias cores. Isabelle tinhamencionado festas,mas não falou nada sobre a escola providenciar trajes formais.Pegouumvestidoazul-escurodeveludo—pareciaantigo,comumasaiavolumosaqueiaatéojoelhoeumagolaemVsofisticadaebordada.

Ficouolhando,perplexa.Oqueaquilofaziaali?Nuncatinhaidoaumbailedeverdade—nãoeraotipodecoisapromovidapor

suasescolasanteriores.Aideiadecolocarumvestidocaroeiraumafestadegalafezumcalafriodenervosismopercorrerseucorpo.Oqueelafaria?Nãosabiadançar.

Acariciando o tecido suave, tentou se imaginar petiscando canapés e jogandoconversafora.Soltouumarisadaamarga.

Nãoéomeumundo.Allie devolveu as roupas ao armário, fechou a porta de madeira e sentou na

escrivaninha demadeira diante da janela.Da cadeira a vista era do céu azul e dostoposverdesdasárvores.Atardeestavaesfriando,oarcheiravaapinheiroseverão.Ela abriu o envelope e retirou um maço de papéis. Isabelle não estava brincandoquandofalouem“muitas”informações.

Dentro havia um mapa da casa, mostrando onde cavam os dormitórios em

relaçãoàssalasdeaula,dejantareaosalojamentosdosprofessores.Asegundafolhatinhaoshoráriosdasaulas:inglês,história,biologia,álgebra,francês—odesempre.

Nasequênciadapilha,umapastapretanaqualestavaescrito:

Regras

Dentro,folhasemaisfolhas,escritasàmãocomumacaligra aantiquadaadorável.Masantesquepudesseler,alguémbateuàporta.

Aporta seabriueumameninabonitacomuniformedaCimmeria—camisabranca de manga curta com o brasão, saia quadriculada azul-escura que batia nojoelho — entrou.Tinha o rosto sério, pensou Allie. Cabelos lisos, louros quasebrancosnaalturadosombros,eusavasandáliasBirkenstockcor-de-rosa.Allienotouqueoesmaltenasunhasdospésdameninacombinavaperfeitamentecomasandáliaeimediatamentesesentiudesajeitadaemoleca.

Quandofoiaúltimavezqueeupinteiasunhas?Teveasensaçãodequeameninaestavatentandonãoolhar.—Allie?—Elatinhaumavozásperaquenãopareciacombinarcomaaparência.Allieconfirmoucomumacenodecabeçaeselevantoudacadeira.—SouaJules,amonitoradasuaturma.AIsabellemepediuprameapresentar.— Hmm, obrigada. — Allie puxou ansiosamente a bainha da camisa,

imaginandosedeveriatertrocadoderoupa.Fez-seumapausa.Julesergueuumasobrancelhacuriosaetentououtravez.—Elaachouquevocêteriadúvidasqueeupudesseajudararesolver.Allielutouparapensaremperguntasinteressantes.Enãoconseguiu.—Agentetemqueusaruniformetododia?Julesassentiu.—Semprequeagenteestiveremqualquerlugarnoterrenodaescola,usamoso

uniforme.TemumaseçãotodasobreissonospapéisqueaIsabelledeixoupravocê.—Eu estava lendomais oumenos.—Allie gostaria de parar de tropeçar nas

palavras.Julespareciatãoconfiante.—Mastemmuitacoisa.—Émuitacoisapraabsorvernoprimeirodia—concedeuJules.—Achoqueo

meu primeiro dia teria sido péssimo, mas o meu irmão já estava aqui, então eleajudou.Muitosalunostêmparentesqueestudaramaqui,vocêtem?

Alliebalançouacabeça.—Nuncatinhaouvidofalardesselugaratépoucosdiasatrás.Julespareceusurpresacomisso,masdisseapenas:—Bem,entãoémelhoreutemostrarodormitório,embora,prafalaraverdade,

nãotenhamuitacoisalá.Alliedeuumpassoemdireçãoàporta,masJulesolhousigni cativamenteparaa

roupadela.—Porquevocênãocolocaouniformeantes?Corando,Alliecruzouosbraçossobreopeito,masJulesnãopareceunotar.—Euesperoláfora—disseJules.Semesperarresposta,saiu.Assimqueaporta fechouatrásdela,Allie abriuo armário e tirouumacamisa

brancaeumasaiaazulcomoasqueJulesestavavestindoejogouaroupanacama.SeráqueJulesestavatirandosarrodassuasroupas?Nãotinhacerteza,maselaera

tão...perfeita.Claroqueelaestavatirandosarrodemim,Alliepensouamargamente.Éissoque

fazemmeninascomoela.Meninascompedicureperfeita...Desamarrouasbotasviolentamenteeaschutou

parabaixodacama.Meninascomcabeloperfeito...Foiatéoarmáriobuscar sapatosaceitáveis,mas sódesenterrou sapatosOxford

pretoscomsolasdeborrachaemeiasbrancasdecolegial.Fezcarafeiaaocalçá-los.Essasporcariasdemeninasperfeitas.Olhando-senoespelhoatrásdaporta,sesentiudesconfortávelcomamaquiagem

carregada.Julesusavasóbrilholabial.Masagoranãopodiafazernada.Ajeitandooscabeloscomasmãos,saiu.Julesestavaapoiadanaparede.—Agoravocêpareceumadenós—disseemtomdeaprovaçãoaosaírempelo

corredorestreito.Allienãosoubeoquepensararespeito.— Essa área era o alojamento dos serventes — explicou Jules, ignorando a

indignação fervente deAllie.—Mas o prédio foi aumentado ao longo dos anos,entãoébemmaiordoqueantes.Obanheiroéaqui...—Apontouparaaúnicaportanãonumeradapelaqualpassaram.—Éumsópratodomundo,entãovábemcedo,bemtardeousaibaquevaiterfila.

Fizeramacurvanadireçãodaescada.Acasapareciamaischeiaagora,comalunosuniformizadosconversandoerindoportodososcantos.

—EuimaginoqueaIsabelletenhatemostradoasaladerefeições—perguntouJules.—Elatelevouatéasalacomum?

Alliefezquenão.—Éamaisimportantedocolégio—disseJules,guiando-aescadariaabaixo.—

A maioria de nós ca aqui depois das aulas quando não estamos fazendo nossosexames.

—Exames?—perguntouAllie.Julesaolhoucomoquemnãoacreditavaqueelaprecisasseperguntarisso.—Deverdecasa—explicou,abrindoaportaaopédaescada.Entraram em um espaço confortável com sofás de couro.Tapetes orientais se

espalhavampelochão,haviaumpianoemumcantoeprateleirasqueiamdochãoaoteto, abarrotadas de livros e jogos. Várias mesas tinham tabuleiros de xadrezpintados. A sala estava vazia, exceto por uma poltrona no lado oposto, onde ummeninoestavasentado,observando-asporcimadeumlivrodeaparênciaantiga.Eletinha cabelospretos e lisos,boca rme,olhos enormes e escuros emolduradosporcíliosespessos;estavacomospésapoiadoscasualmentesobreumtabuleirodexadrez.SeusolharesseencontrarameAllieteveaestranhasensaçãodequeelesabiaquemelaera. O menino não sorriu, nem disse nada, mas continuou olhando. Após uminstantequepareceumaislongoqueuminstante,eladesviouosolhosedirecionou-osnovamenteparaJules,queaobservavacomexpectativa.

Dizalgumacoisa.—Ééé...Não temtelevisão?Ou... som...—Elaachou terouvidoumarisada

abafadadooutroladodasala,masserecusouaolharnovamenteparaomenino.MaisumavezviuespantonaexpressãodeJules,comoseelativesseperguntadoo

queeraaqueleglobodouradoebrilhantenocéu.—Não,certamentequenão.—AvozdeJulessooudura.—NãotemTV,não

temiPod,nãotemlaptop,nãotemcelular...NãotemséculoXXI,naverdade.Osseuspaisnãotefalaramisso?

EnquantoJuleslistavaascoisasqueosalunosnãopodiamter,ocoraçãodeAllieafundavaacadaequipamentoproibido.Emrespostaàpergunta,balançouacabeçaemsilêncio.

Julespareceuespantada,masserecompôsosuficienteparaexplicar.—Espera-sequeagenteaprendaasedistrairdeformasmaistradicionais.Como

conversaouleitura.Podeacreditar,vãoteocupartantocomtarefasescolaresquenãovaitertempopraTV.—Julessevirouparasairdasala:

—Estátudonoenvelope...Aquela porcaria de envelope.Vou levar a desgraça da noite inteira lendo para

aprendermaissobrequedrogaqueéesselugar.Semvoltaroolharparaomeninonacadeira,seguiuamonitorapelocorredor.

Julestocoulevementeumaportaaopassaremporela.—Essaéabiblioteca:vocêvaificarconhecendo-amuitobem.Atravessaramosalãoprincipaleelaabriuumaportapesadaquelevavaàalaleste

dacasa.

—Asaulas são aqui.Praquemestá começando, émais fácil acharo caminhopelo número.Na folha de horários, cada aula tem o número da sala.Nós todossabemospelonomedosprofessores,masde início issonãovai teajudarmuito, jáqueelesnãopõemosnomesnasportas.Assalasde1a20 camnotérreo,de100a120noprimeiroandar,equalquercoisaacimadissoéterritórioproibidopravocê.

AllielançouumolharsurpresoaJules,masantesquepudesseperguntarporque,Julesfalou:

—Bom,vocêtemmaisoumenos20minutosantesdojantar,eeusugiroqueleiaoqueestánoenvelopeenquantodá tempo.Aquiloémuito importante.Semissoeuachoquevocêvai carmeioperdidaamanhã.Seusprofessoresvãotedaroscadernosemcadaaula,apropósito,entãosóprecisalevarpapelecaneta,deveterosuficientenasuaescrivaninha.

Aessaalturajáestavamsubindoasescadas,voltandoparaodormitório.—Sevocêprecisardemim,omeuquartoéo335,masqualquerpessoaajudase

vocêseperder,tábem?Acenouevoltoupelocorredor,enquantoAllieiaparaoquarto.Deixando aquelasRegrasde aparência esquisitaparadepois, folheou apilhade

papéissobreamesaetentouseconcentrarnasdiretrizesdesaladeaula(“osalunosjádevemestarsentadosemseuslugaresquandooinstrutorforcomeçaraaula...”),masseus pensamentos voltaram para o menino na cadeira de couro. Vasculhou amemóriabuscandoqualquerencontropassado,masnãoachounadaarquivadonaslembranças.Elecertamentepareceureconhecê-la,ou,nomínimo,saberquemelaera.Allierodouolápisentreosdedos,lembrandodecomoosolhosescurosdomeninoaestudaram.

Aoviraroutrapáginaolhouparaorelógio.Porra.Faltavaumminutoparaassete.Ondetinhamidoparar20minutos?Ojantar

estavacomeçando.Saiupelaportaeporpouconãotromboucontraumameninalouradecabelos

curtosquevinhaemdisparadapelocorredor.—Cuidado!—gritouamenina,semdiminuiroritmo.Alliefoiatrás.—Desculpa!Nãotevi.Ameninanãoolhouparatráseasduascorreramescadaabaixoefrearamjuntas

naentradadasaladerefeições.Semtrocarumapalavra,entraramcomomesmojeitoarti cialdedespreocupação,comosetivessemdescidoconversandocasualmentepelocaminho. A menina loura olhou para ela e deu uma piscadela antes de se sentarnaquelaquepareciasuamesahabitual,ajulgarpelaformacomotodosareceberam.

AsalapareciamuitodiferentedaprimeiraimpressãoquetiveraaopassarporelacomIsabelle.Velasacesasbrilhavamnasmesascobertaspor toalhasbrancas.Pratosnascoresdaescolaecoposdecristalcintilavamdiantedecadaassento.Aoacharumacadeiravazia,Alliesesentou.Comosealguémtivesseacionadoobotão“mute”deumcontroleremoto,aconversaàmesaparouinstantaneamente.Seteparesdeolhosaencararamcheiosdecuriosidade.

—Ééé...tudobemseeusentaraqui?—Olhouaoredornervosa.Antes que alguém pudesse responder, a porta da cozinha se abriu e garçons

vestidos de preto surgiram carregando travessas de comida. Alguém colocou umajarradevidrocomáguaàalturadocotovelodela.AtéentãoAllienãotinhasedadocontadoquantoestavacomsedeequisencherocopo,masesperouparaveroqueosoutrosiriamfazer.Ninguémsemexeu.

—Porfavor.Elaprocurouavoz,quetinhasotaquefrancês,eachou-aàsuaesquerda,ondeum

meninodepelemorena,cabelosescurosegrossosebelosolhosazuisaobservava.—Como?—Sentaaqui.Porfavor.Elasorriuagradecida.—Obrigada.Eleretribuiuosorrisoeelaachouquefossederreterevirarumapoçanochão.

Eleeralindo.—Denada.Podemepassaraágua,porfavor?Allieentregouajarrae,paraseualívio,eleencheuocopodelaantes.Elatomou

metade do copo muito depressa, e em seguida se serviu da travessa de bife combatatasqueeleentregou.Osilêncioseabateusobreamesaoutravez,eelaolhouparaele.

Limpouagarganta.—EusouaAllie—disse.Algumacoisalhedissequeelejásabiadisso.—EusouoSylvain.Bem-vindaaCimmeria.—Obrigada—agradeceu,momentaneamentefelizporestarlá.A comida estava deliciosa. Ela não comia nada desde aquele café da manhã

terrível, desconfortável, e agora comia com voracidade. No que punha o últimopedaço de batata na boca, porém, levantou o olhar e reparou que estavam todosolhandoparaela.Opedaçodebatatapareciaenormeeelamastigoucomdi culdadeeaíestendeuamãoatéocopodeágua,quepercebeutardedemaisestarvazio.

Suavemente,Sylvainpegouocopoeencheu-oparaela.Aexpressãodomenino

erasolidáriaeseusolhosclarosbrilhavamàluzdavela.MasenquantoAllietentavapensaremalgointeressanteparadizer,seuspensamentosforaminterrompidos.

—Você é deLondres—disse uma voz, vinda subitamente de uma ruiva dooutroladodamesa.

—Sou.Comovocê...?—Avisaramqueiachegarumaalunanova.VocêéaAllieSheridan.—Aruiva

declaroucompropriedade,comoseestivesserelatandoasnotíciasdodia.ArespostadeAlliefoireservada.—Atéondeeusaiba.Quemsãovocês?—Katie.Nenhumaoutrapessoarevelouonome.Alliesecontorceuumpoucocomosolharesesentiuqueprecisavapreencheros

vaziosdesconfortáveisnaconversa.Maspapofuradonuncaforasuaespecialidade.—Essecolégioé...enorme.—Atrapalhou-se.—Oprédioémeioassustador.— É? — perguntou Katie, soando um pouco espantada. — Eu acho lindo.

Minhafamíliainteiraestudouaqui.Seuspaistambém?Allie fez que não com a cabeça.Katie arqueou uma das sobrancelhas perfeitas

enquantoasduasmeninasquealadeavamcochicharamumaparaaoutra.—Queestranho.—Porqueéestranho?—perguntouAllie.—Amaioriadosalunosaquitemlegado.Eutenho,oSylvaineaJotambém.Allieficouconfusa.—QueméJo?Katiepareceuespantada.—Ameninaqueentroucomvocê.—Srta.Sheridan.—Avoztrovejantevindalogodetrásdacadeirainterrompeu

Katie.Allieviroudeladoparaveroseudono,umhomemcalvoqueaparentavateraidadedoseupai.Eramuitoalto—maisde1,80m—eapesardeestarusandoumternogasto, tinhaposturaquasemilitar.Allie se ajeitouna cadeira.A sala caiu emsilêncio.

—AlguémjálheexplicouasregrassobreasrefeiçõesnaCimmeria?—Oolharqueelelançouaelapareciadedesprezo.

—Já.—AvozdeAllietremeuligeiramente,eelaficoucomódiodisso.—Todososalunosdevemestarnestasalaantesdoiníciodecadarefeição.Você

chegou emcimadahorahoje.Assim comovocê, srta.Arringford.—Ele virou eapontouparaJo,queoolhousemmedo.Voltou-senovamenteparaAllie.—Nãodeixequeissoserepita.Novaounão,dapróximavezqueseatrasar,teráquepassar

peladetenção.Ohomemseafastou,ossapatosemitindoumruídoestaladonasalasilenciosa.

Allie olhou xamente para o prato vazio, sentindo os olhos da sala nela. Suasbochechas coraramde raiva.Tinha chegadodois segundosatrasada.Elenão tinhaodireitodehumilhá-ladaquelaformanafrentedaescolatoda.

Allienãoconseguiaacreditar—tinhaacabadodechegarejáestavaencrencada.Olhandoparaumamesapróxima,viuqueJoolhavaparaela.Brevementeseus

olhares se encontrarame Jo sorriudeum jeitoatrevidoedeumaisumapiscadela,como se nada tivesse acontecido.Allie observou enquanto ummenino esfregou obraço de Jo e ela apoiou a cabeça no ombro dele por um instante, sorrindo poralgumacoisaqueeledisse.

Alliesesentiuaomesmotempomelhorepior.Os outros à suamesa estavam conversando entre si, ignorando-a visivelmente.

TodosmenosSylvain,quepareciapreocupado.—Queméele?—perguntouAllie,abrindoefechandooguardanapodepano,

fingindoqueoquetinhaacontecidonãotinhatantaimportânciaassim.—Osr.Zelazny—respondeu.—ProfessordeHistória.Bastanteintrometido,

comodápraver.Elesejulgaofiscalderegrasdaescola.Eugostariadedizerquevocênãoprecisasepreocupar,masnaverdadeémelhornãoarrumarproblemascomele.Elepodetornarasuavida... infeliz.Seeufossevocê,chegariacedoàsrefeiçõesnospróximosdias.Elevaiestardeolho.

—Ótimo—disseAllieresignada.Quesortedesgraçadaqueeutenho.Emvoltadeles,alunoscomeçaramaselevantaresair.Allieviuquedeixaramos

pratosecoposnasmesas.—Agentenãoajudaatiraramesa?—perguntou,surpresa.AsmeninasemvoltadeKatieriram.Katiepareceuconfusa.—Claroquenão.Osempregadosfazemisso.Allie sevoltouparaSylvain,masacadeiradomeninoestavavazia.Ele já tinha

saído. Ela ouviumais risadinhas e sussurros em volta damesa, e já tinha aturadomuito daquilo por hoje. Então, sem mais uma palavra, se juntou àqueles queestavamindoemdireçãoàporta.

Sentia-secansadaederrotada.OqueelanãodariaparairparaoquartoouvirseuMP3 enquantomandavamensagens paraMark eHarry sobre as pessoas estranhasque tinha conhecido hoje. Mas aquele mundo parecia tão distante do universoabafado e antiquado daCimmeria, onde não existia tecnologia, e as pessoas eram

mimadasdemaisparatirarosprópriospratoselevá-losparaacozinha.Nocorredor,viuqueosalunoscaminhavamemváriasdireções.Algunsestavam

indo para fora, enquanto outros se dirigiam para a sala comum ou a biblioteca.Todospareciamestaremgruposdeamigos,conversandoerindo.

Sozinha,Alliesubiuasescadasemdireçãoaodormitóriofeminino.Vinte equatrodegraus até oprimeiro andar, emais 20 até o segundo,depois

mais17passospelocorredoratéoquarto.Umavezládentro,percebeuquealguémhaviaentradoenquantoelajantava.A

janelaestavafechada,apesardeapersianacontinuaraberta.Acamaestavacobertaporlençóisbrancoseumacolchabrancaafofada,comumcobertorazul-escurodobradocuidadosamente ao pé da cama. As roupas que ela havia jogado no chão tinhamdesaparecido, substituídasporumpardechinelosbrancosmacios.Encontrouduastoalhasbrancasdobradasnacadeira,comumabarradesabãoemcima.Ospapéisnaescrivaninhatinhamsidoajeitadosemumapilhaorganizada.

Alguémporaquiémaníacopororganização.Tirando os sapatos, Allie pegou os papéis e se jogou na cama. Mas só tinha

acabadodelermetadequandoaluzdofimdetardecomeçouadesaparecerdocéu.Bocejousobreafolhadehorários.En ando os pés nos chinelos, pegou a escova de dentes e foi até o banheiro.

Abriuaporta comcerto receio,mas estavavazio.Enquantoescovavaosdentes, seexaminou no espelho. Parecia mais velha agora do que uma semana atrás? Ela sesentiamaisvelha.

Devoltaaoquartofechouapersianasobreajanelaedeitou.Masquandoapagouo abajur o quarto cou inteiramente escuro. Escuro demais. Tateou a mesaprocurando a lâmpada, derrubando o despertador enquanto acendia a luzapressadamente.

Saltando da cama, abriu a persiana. A última luz do dia de verão banhou oquartocomumbrilhosuave.

Assimeramelhor.Apagoua luz eobservouosúltimos re exosdo soldesaparecereme as estrelas

surgirem.Tinhacontado147respiraçõesquandocaiunosono.

—Allie,corre!Ogritoveiodafrentedelanaescuridão.Allienãosabiaporquealguém

achavanecessáriodizeraquilo—jáestavacorrendoomaisrápidopossível.Oscabelosvoavamatrás,eapesardenãoconseguirenxergarasárvorescomclareza—identificavaapenasasformas—sentiaosgalhosagarrandosuasroupas;os

gravetosarranhandoapele.Ochãodaflorestaeradesigualeelasabiaqueiriaacabarperdendooequilíbrio.Nãosepodecorrersemenxergarnadanumbosqueescuro.Éimpossível.

Derepente,logoatrásdesielaouviupassosesentiuoarsemovercomosehouvessealguémbem...

Dedosfirmescortaramapeledoseuombroesquerdoeelaberrou,golpeandoquemquerquefossecomasmãos,afastando-odesi.

Emseguidaescutouumarisadadesdenhosaatrásdesi,e,gritando,foisuspensanoarpormãosquenãoconseguiaenxergar.

Alliesentou-serepentinamente.Porumcurtoinstantenãoteveideiadeondeestava,esearrastouparaocantodacama,costasnaparedeebraçosenvolvendoosjoelhosprotetoramente.

Entãoselembrou.Cimmeria.Colégio.Aquelesonhooutravez.Elaovinhatendoregularmentehásemanas.Todavez

acordavasuando.O quarto ainda estava escuro.O relógio indicava que passava demeia-noite e

meia.Sentia-setotalmentedesperta,ansiosaemeiogrogue,comosenadafossereal.Desceudacamae se apoiounaescrivaninhaparaolhar lá fora.A luaprojetava

umaluzirrealmenteazul.Subiunamesaeabriuajanela,sentindoabrisafrescaaoapoiaroqueixonosbraçosecontemplaraescuridão.Escutouospássarosnoturnoserespirouprofundamente o ar fresco.Adorava aquele cheiro.Agulhas de pinheiro esolobarrento.Erareconfortante.

Derepenteescutoupassos...acimadela?Seriapossível?Esticou-separatentarenxergaroquehaviaacimadajanela,epodiajurarqueviu

umasombrafracasemovendonotelhado.Ficousentadaimóvelporuminstante,escutando,eachouqueestivesseouvindo,

fracamente,umsussurrodevozes.Fechoua janela, testouotrincoparasecerti cardequeestavaseguroevoltou

paraacama.Empoucosminutosestavainconsciente.

A

QUATRO

llieabriuosolhoseviuoquarto inundadopela luz.Noespaçonebulosoentre o dormir e o acordar, ela achou que, com paredes inteiramentebrancaseacolchabrancaantiga,pareciaocéu.

Olhouparaodespertadornaescrivaninha—seisemeia.Algumdianavidajátinhaacordadotãocedoassim?Talvezparaaquelaviagemà

Françacomafamíliaháalgunsanos,masnuncaporvontadeprópria.Nuncasóparairàescola.

Enquantoela se espreguiçava ebocejava,davaparaouvir vozesnocorredor.Oquartoestavafriocomoarfrescodamanhã.

Sentou-seeretaeolhou xamenteparaa janelaaberta.Elanãoa tinha fechadoontemànoite?Lembrava-sedetê-lofeito,masagoraajanelaestavatãoescancaradaquantoestiveraquandoAlliesesentoudiantedeladuranteanoite.

Talvezeusótenhasonhadoquefechei.Desceudacamamurmurandoparasimesma:—Anda logo,Allie.—Puxandoacamisolaecalçandooschinelos, enrolouo

xampueaescovadedentesemumatoalhaeseapressoupelocorredor,ansiosacomasituaçãodebanheirocompartilhadoqueaaguardava.

Emcontrastecomovazioqueecoavananoiteanterior,oamplobanheiroestavaagoratomadoporvaporecheio,mashaviaumchuveiro livre.Aliviadapornãosetratardeumdaqueleslugarescomunitáriosaoestilotodo-mundo-pelado-num-cubo-de-concreto-hostil, Allie entrou, fechou a cortina e se deparou com um vestiárioprivado na frente do cubículo branco espaçoso onde cava o chuveiro. Ambosbrilhandodetãolimpos.

Nãoeratãoruim,naverdade.Tinhabastanteespaço,umganchonoqualpodiapenduraroroupãoeatéumbancolisodemadeiraondepoderiadeixaroschinelossecos.Debaixodojatoquente,elasesentiumelhorquaseimediatamente.Maistarde,comocabelomolhadoenroladonatoalha,encontrouumapialivreparaescovarosdentes e não se importou com quão cheio estava o banheiro. Enrolada em umroupãobrancogrossocomotodomundo,ninguémsabiaqueelaeraaalunanova.

Devoltaaoquarto,vestiurapidamenteouniforme,penteouocabelomolhadoeaplicou uma camada na de rímel. Amão pairou sobre o delineador... e então odeixounabolsa.EstelugarpareciaterumestilodiferentedaescoladelaemLondres.

Elajuntouospapéisecanetasparaodiaeosguardounabolsaqueencontrounoarmário. Pendurando-a no ombro, desceu às sete emponto, bem antes do prazo-limitedeseteemeia.

Quandocruzouaportadeentradadasaladerefeições,parouporuminstante—o lugar tinha se transformado outra vez. Janelas imensas em uma das paredespermitiamaentradada luzdosol,difusaatravésdecortinasbrancas.Asvelascombrilho trêmulo e copos cintilantes tinham desaparecido. Quase todas as mesasestavamvaziasecobertasapenasportoalhasbrancaslisas.Haviacomidaamontoadaemmesas de bufê: dez tipos de cereais, uma panela de mingau exalando vapor epilhasdepãoprontoparasertorrado.Travessasdeprataaquecidascontinhamovos,baconelinguiça.

Aosentirocheirodacomida,descobriuqueestavamorrendodefomeoutravez.Fazendoumpratocomtorrada,queijoeovosmexidos, serviu-sede sucodemaçãantesdesentaraumamesavazia.Nãoreconhecianinguémnasala,oque,decertaforma,erabom.Passoumanteigaegeleiadegroselhanatorradaedeuumamordidagrande.

—Esselugarestáocupado?Tentandonãomastigardebocaaberta,AllieseviroueviuSylvainaoseulado.

Fezquenãocomacabeçaemsilêncioelutouparaengolircomgraça,masfracassou,franzindoorostoenquantoacomidadescia.Pelaprimeiravezachouqueumsorrisohaviaalcançadoosincríveisolhosdomenino.

—Não...querdizer,podesentar.Porfavor.Senta...Sentando-seao ladodelasemqualquer indíciodedesconforto,elemordeuum

pedaçodebacon.—Oquevocêachouda suaprimeiranoite?Teprocureina salacomum,mas

nãoencontrei.OcoraçãodeAlliesaltou,eelaolhoudeterminadaparaoqueijo,demodoque

Sylvainnãovisseoquantotinhaficadofeliz.—Tinhamuitacoisapralerontem.Acheimelhoraprenderomáximopossível

antesdehoje,sabe?Pramepreparar.Diaimportanteetudomais.Eleassentiuedeuumamordidarazoávelnatorrada.—Eulembrodissodomeuprimeirodia.Parecequequeremquevocêaprenda

tudo sobre aCimmeria de uma vez.Acho que a informação que dão pra gente émaiorque...—Adoravelmente,elepareceulutarparaencontraraspalavras—...o

tamanhodaescola,seissofazalgumsentido?Encantada,elanãopôdedeixardesorrir.—Entendiexatamenteoquevocêquisdizer.Édesproporcional.—É.Desproporcional.—Retribuiu o sorriso e o coração de Allie saltou de

novo.Paracomisso,dissecomfirmezaasimesma.Elesóestásendoeducado.Comeramnumsilêncioamigávelduranteumtempo.—Então—eladissedepoisdeumtempo—,todomundo camuitonasala

comum?Parecelegal.Ótimopapofurado,Allie.Sutilpracaramba.Eletomavaumgoledecafécomleiteenãopareceunotar.—Asalacomumeabibliotecasãooslugaresondetodomundo caquasetodas

as noites.Mas no verão, quando tá quente, a gente prefere car lá fora, jogandocroquet noturno. Foi por isso que eu te procurei. Achei que você pudesse quererjogarcomagente.

OgarfodeAllieparounomeiodotrajetoparaaboca.—Vocêsestavamjogandocroquetànoite?Noescuro?—Émaislegalassim.Sabe,aprendiquemuitosjogossãomaisexóticosquando

jogadosànoite.—Seusolhosencararamosdelaporumsegundoamaisdoqueonecessário.

E,simplesassim,Allieperdeuoapetite.Desgrudouoolhardodele, fazendo-opassearpelasala.

Cadeira,mesa,meninacomrabodecavalo,janela,cadeiradenovo...Sentiuocalorsubiràsbochechas.QuandoencarouSylvaindenovo,umligeiro

sorriso se formavanoscantosdos lábiosdele enquantoquebravaabeiradadeumatorradacomseuslongosdedos,observandoorostodela.

Eleestáflertandocomigo.Comcerteza.—Beisebol,porexemplo—continuoupensativamente.—Efutebolnoescuro,

apesardeissopoderserumpouco...pesado.Eleequilibravaumpedaçodebaconnaspontasdosdedosenquantoconsiderava

aspossibilidades.—Têniscomraquetes fosforescentesnumanoitesemluaé incrível.Achoque

vocêiaadorar.Prometoqueeuteencontronapróximavezqueagentejogar.Ondequerquevocêesteja.

Elaobservavacomoseestivessehipnotizadaenquantoelemordiaumpedaço.—Allie.Quebomteverdenovo.—Katiepuxouumacadeiradooutroladoda

mesaesesentou.Seupratoestavaelaboradamentedecoradocomfatiasdefruta.—

ESylvain.Quesurpresa.Seu cabelo longo, ruivo eondulado contrastava comapele clara e translúcida.

Sob a luz suave, parecia iluminada. Estava cercada por um pequeno grupo demeninasimpecavelmentevestidasquepareciamsedivertirobservandoAllie.

Sylvainaolhoufriamente.—Eujáestavadesaída,naverdade.ElesevoltouparaAllie,sustentandooolhardamenina.—Agentetemauladeinglêsjuntos,euacho.VamosestudarRobertBrowning

essasemana,casovocêqueiralerantes.Tevejolá.ElefoiemboraantesqueAlliepudesseperguntarcomosabiaqueaulaselafaria,

masolhoupara trásporum segundoao chegar aobatentedaporta.Quando seusolhosseencontraram,Alliesentiucomosealguémtivessepostoumcobertormornoemseusombros.Quandoelesaiu,elasorriuparaosucodemaçã.

—OSylvainéumamor,nãoé?—OsotaqueelegantedooestedeLondresdeKatie interrompeu o devaneio.Allie levantou o olhar e a viu, observando-a comoquementendeutudo.—Aquelesolhos lindoseosotaqueirresistível.Anamoradadeletambéméumamor,nãoé?—Katievoltou-separaamorenaaoseulado,queassentiueriu.

—OuvidizerqueelamoraemParisagora—KatiecomiadelicadamenteumpedaçodepomeloenquantoAlliesentiaseubalãoemocionalestourar.

Ah.Namorada.Claro.Jáera,então.Não se surpreendeucomogolpe inevitáveldadecepção amorosaprecoce logo

apósoacenderdaesperança.Naverdade,eraassimquenormalmenteaconteciacomela.LogoqueconheceuMark,rolouumclimaentreosdois.Duranteduassemanascouclaroparatodomundoqueeles iriamacabar cando.Atéumanoiteemque

elesurgiucomumalourabaixinhaedesenvoltachamadaCharlotte,quetinhaumatendênciaaminissaiaseesmalterosavibrante.

Depoisdisso,elevirouapenasumamigo.—Quebompra ele—comentouAllie, resignada.—Bom... também tenho

queir.Levantou-seesaiudepressa,contendonoúltimominutooimpulsodeprocurar

umlugarparaondelevaropratoeocopo.Ouvindorisadinhasatrásdesi,endireitouascostasenãoolhouparatrás.

Saindo da sala de refeições, Allie se juntou a outros alunos que cruzavam oamplocorredorcomlambrisdecarvalhoemdireçãoàssalasdeaulanaalaleste.Asparedeserampreenchidasporpinturasaóleo—emsuamaioriaenormesquadrosdehomens e mulheres do século XIX trajando roupas formais e encarando-a

altivamente. Alguns retratavam o prédio da Cimmeria por ângulos diferentes, amaioriaapartirdacolinado ladode foracomuma orestaespessaao fundo.Emumadelas, oprédio eramuitomenordoque agora—anterior à expansão àqualIsabellesereferira.

Suaprimeiraaulaeradebiologia,nasala112.Alliesubiuaescadaatéoprimeiroandareencontrouolocalpróximoàescadaria.

Ospoucosalunosquehaviamchegadomais cedoestavamsentados emduplasemcarteirasorganizadasemlongas leiras,enquantoumhomemalto,deaparênciadistraída,comóculosdearmaçãodemetalecabelocastanhodesgrenhadofolheavapapéisnaentradadasala.

Alliefoiatéele.—Oi.EusouaAlysonSheridan.Sounova.Ele olhou para ela por cima dos óculos e remexeu novamente os papéis,

finalmenteretirandoum,quebalançoutriunfante.— Claro. Uma aluna transferida, que ótimo. Mas está registrada aqui como

“Allie”.Comovocêprefere?—Allie—respondeu,surpresa.EscolassempresereferiramaelacomoAlyson.

MastodosnaCimmeriaaconheciamcomoAllieantesmesmodeencontrá-la.—Então casendoAllie.—Estavaremexendodistraidamenteospapéisoutra

vez.—EusouJeremiahCole.OsalunosnormalmentemechamamdeJerry.Porfavor,sentealiàdireita,emduplacomaJo.

Allieolhounadireçãoemqueeleapontouparaverameninalouradojantardeontemacenandovigorosamente.

—Quebomqueévocê.Esperoquesejaboaembiologia—disseelaassimqueAllieseaproximou.—Euachotodaciênciadiabólica.Filhotesdeanimaismortoseparasitas, oque eles estão tentandonosdizer?Putz, a gente se encrencouontemànoite,nãofoi?Issosempreteacontece?

Ela tinha um sorriso contagiante—dentes brancos e retos, covinhas fundas eadoráveis e rugas em volta do pequeno nariz — e um sotaque cristalino. Allieretribuiuosorrisoantesmesmoqueseucérebropercebessequequeriafazeristo.

—Sempreacontece.Sevocêcomeçaraandarcomigo,certamentevaiaconteceroutravez—respondeuAllie,comumsorrisoperverso.

Josorriuparaela.—Maravilha!Vaiserincrível.EnquantoAllieretiravaocaderno,Josussurrou:—OJerrynãoépegávelpraumvelho?Tiveumaquedinhaporeledurantetodo

omeuprimeiroanoaqui.

Allieexaminouoprofessor.Elepareciaopaidealguém.Umpailegal.Masumpai,aindaassim.

—Acholegalpoderchamarosprofessorespeloprimeironomeaqui—disseela,despreocupadamente.—Meuúltimocolégioeratãorígidoqueagentepraticamentetinhaquechamarosprofessoresde“comandante”.

Rindo,Jopareciaincertaquantoaacreditarnelaounão.—Vocêvaiterquemecontarmaissobreasuavida—disseela.—Pareceser

bemmelhorqueaminha.Nãocontecomisso,pensouAllie.Masapenassorriu.Jomostrouatéondeaturmajátinhachegadonolivro.—Énojento—faloualegremente.—Achoquehojenósvamosdissecar.Comosetivessesidoensaiado,Jerrypediusilêncio.—Hojenósvamosexaminaraconstrução internageraldosanfíbios,graçasao

sacrifíciodesserapazinho.Debaixodacarteira,oprofessorretirouumabandejadedissecaçãocontendoum

sapo morto, arreganhado e preso com a barriga clara curvada para cima,vulneravelmente.

—Ai,porra.—Jofezumacareta.—Quemsabemeresponderporquenósvamosdissecarumsapoenãoalguma

outrapobrecriatura?—perguntouJerry,olhandoparaaturmaporcimadosóculos.—Porqueatormentamosestes inocenteshabitantesdobrejo?Quetalvocê,Allie?Sabe?

Alliesentiuacordesaparecerdasbochechas.—Eu...euacho...—Porqueaanatomiadosapoémuitoparecidacomadohomem.—Avoz,

graveeagradável,veiodetrás.—Osr.Westestácerto,comosempre—disseJerry,olhandofriamenteparao

donodavoz.—Emborapudesseteresperadoaprópriavez.Aanatomiadosapoéalgosemelhanteàhumana...

Allievirouparaverquematinhasalvado,ereconheceuimediatamenteomeninodasalacomum,ontem.Eleolhavaparaelacomaquelesolhosgrandeseescuros,massuaexpressãoaassustou—elepareciaquaserancoroso.

Comumacaretaconfusa,Alliesevoltounovamenteparaafrente.Ciência não era sua especialidade.Tentou não pensar no “sr.West” e, em vez

disso,seconcentrounaauladeJerrysobresapos.Nãovoltouaolharparatrás.

—Vocêanotouummontedecoisa.—Joobservouenquanto saíam.—Acheiomáximo você gostar tanto assimde ciências. Precisodeuma amiga que sejaCDFnisso.

—Nãogostotantoassim—disseAllie,honestamente.—Sóachoquevouterque ralar pra acompanhar. Essa aula é bemmais adiantada que a domeu colégioantigo.

—Essecolégioémuitodifícil—disseJo.—Mastambémélegal.Apesardetermuitasregrasesquisitas.

—Total—concordouAllie.Fingindoajeitaraalçadabolsa,perguntoucasualmente:— Quem é aquele garoto que me salvou da pergunta do sapo? O Jerry o

chamoude“sr.West”.Comumolharconhecedor,Jodiminuiuavozemtomdesigilo.—CarterWest—sussurrou.—Eleéumgato.Masétodoerrado.Entãoacho

queémelhornãoinvestir.Allieficoutãointrigadaquenemsedeuaotrabalhodenegarointeresse.—Todoerradocomo?—Viveemdetenção.Achaquesabetudoequetodososoutrossãosuper ciais.

Eleéirritante.Metadedosprofessoresodeiaessegarotoeosoutrostratamcomoseele fosse, sei lá, lho deles ou coisa do tipo. E é um tremendo mulherengo.Consegueoquequereaíperdeointeresse.ÉmelhorinvestirnesseseuroloaícomoSylvain.

Allieficouvermelha.—EunãotenhorolonenhumcomoSylvain.—Bom,euachoqueele temalgumacoisa rolandocomvocê.—Jocutucou

Alliecomocotovelo.—Naverdade,euouvidizerqueeletemumanamoradaemParis.— Nunca soube disso — Jo parecia verdadeiramente surpresa. — Quem te

contou?—Aruiva.Comoelasechama...Katie?—Ah,aKatie.—AvozdeJotransbordoudesprezo.—MeuDeus,elaéuma

vaca.Nãoescutanadadoqueeladisser.ElasempreteveumaquedapeloSylvaineelenuncaseinteressou.Eladevedetestaromodocomoelesimplesmentegostoudevocê.

Allieconservouaexpressãovazia,maspordentroestavaespumando.EntãoKatietinhamentido.Poisbem.

Távalendo.

Odiafoideesquentarocérebro,comnovasaulas,novosprofessores,novoscolegasde turma e a descoberta da verdade sobre quanto trabalho escolar precisaria fazer.TinhacaídonaturmadeHistóriadeZelazny,oqueachavaqueseriaumpesadelo,mas,paraseualívio,excetoporumbreveolharquandoelaentrounasaladeaula,oprofessoratratoucomotodomundo.

A aula seguinte foi o seminário de inglês de Isabelle, e, assim que entrou, aprimeirapessoaqueviu foiSylvain,esparramadonumacarteira, suaspernas longasesticadasgraciosamente.Eleestavaconversandocomomeninoao ladoquandoelaentrou,masAlliepercebeuqueparouquase imediatamente evirouparaobservá-laenquantoelasedirigiaatéIsabelle.

—Oi,Allie.—Adiretorasorriu.—Comoestásendooseuprimeirodia?—Atéaqui,tudobem—respondeuAllie,mentindoapenasumpouquinho.—Ótimo.—EntregouaAllieumcronogramadocurso.—VamoslerRobert

Browninghoje.Conhecealgumacoisadotrabalhodele?Nahoradoalmoço,AllieleraoquehaviadeBrowningnolivro-texto.—EuliLifeinaLove—respondeu.—Eoquevocêachou?Allieinquietou-se.—Acheilegal.Isabelleinclinouacabeçaparaumdoslados,nãoparecendoimpressionada.—Essaéasuaresenhacompleta?Alliedetestavapoesia,masagoranãopareciaumbommomentoparadizerisso.

Apoiou-senabeiradeumamesaenquantoprocuravaaspalavrascertas.—Prasersincera...pareceu...sabe?,meiopsicopata.Por um segundo, a diretora pareceu prestes a discutir,mas então se conteve e

entregouaAllieoprogramadaaula.—Muitobem.Senteondequiser.Ascarteirasestavamdispostasemumcírculo,oquedealgumaformadi cultava

aescolha.Apósuminstantede incerteza,Allieescolheuumaaesmo.Aosesentar,viuqueSylvainaindaolhavaparaela.Ameninalevantouamãohesitantemente,eelesorriuantesdesevoltarnovamenteparaomeninoaolado.

Isabelleentrounocírculoeseapoiouemumacarteiravazia.—EsperoquetodostenhamlidoumpoucodeBrowningontemànoite.Estou

curiosa para ouvir o que acharam. Ele tinha um estilo único e se rebelava contramuitasdasregrasdapoesiadaépoca,entãopenseiquemuitosdevocêspudessemseidenti carcomaabordagemdele.Imaginoquetodosjátenhamtidoaoportunidadedeconheceranossanovaaluna,Allie.Allie,nãoqueroconstrangê-la,mas,porfavor,

vocêpoderialerasprimeiraslinhas?Ai,quesaco.Levantando-sedesconfortavelmente,segurouolivropróximoaorostoelimpou

agarganta.

“Escapardemim?NuncaAmada!Enquantoeuforeuevocêforvocê,Desdequeomundocontenhanósdois,EuoamorosoevocêadversaEnquantoumseesquivar,ooutrodeveperseguir.”

QuandoIsabelleassentiu,Alliesentou-segraciosamenteàcarteira.— Então, o que Browning está dizendo aqui? — A turma olhou para a

professoraemsilêncio.Allietinhaquasecertezadequesabia,masnãoiadizernadaagora.

—Ésobreobsessão.Allie não tinha visto Carter West entrar, mas ele estava sentado a algumas

carteirasdedistânciadela.Isabellefezquesimcomacabeça.—Podefalarmaisumpouco?—Desdequeelesexistamnomesmoplaneta,eletemqueestarcomela—disse

Carter.—Estáapaixonadoporela,masémaisdoqueamor.Étudo.Eleachaqueelestêmqueficarjuntos,maselanão.Entãoelepassaavidatentandoconvencê-la.

—Umateoriainteressante.—IsabelleolhouparaAllie.—Maisalguém?Allieseencolheunoassento.—Ismay—disseadiretora,voltando-separaumamorenaquepareciafamiliar.

—Podeleraspróximaslinhas?AlliearriscouumaolhadadeladonadireçãodavozdeCarterelogodesviouo

olhar.Eleestavaolhandodiretamenteparaela.

—Qualéadosgarotosdessaescola?—AllieeJocaminhavamatéabiblioteca.Asaulasdodiatinhamterminado,eJoainterceptaranocaminhodevoltaaoquartoesugeriraqueestudassemjuntas.

—Comoassim?—perguntouJo.—Elesficamencarando—respondeuAllie.—Muito.Josorriu.

—Vocêébonita.Enova.Garotosencarammeninasnovasebonitas.—Eunãosoutãobonitaassim.OsgarotosnãomeencaravamemLondres.—Eu te acho bonita— disse Jo.—Talvez eles só...— deu de ombros—

queiramquevocêrepareneles.Asduasriram.Alliefingiusedesequilibrarcomopesodabolsadelivros.—Nãoacreditonaquantidadedetrabalhoqueeuprecisofazer.Joconcordoucomacabeça.—Elesacabammesmocomagentenoverão,porqueseestáaquinessaépoca,é

porquevocê,tipoassim,éumapromessa.—Promessa?—Allieergueuassobrancelhas.—É,sabe,tempotencial?—Jodeudeombros.—En m.Ocolégioémeio,

sei lá, dividido, eu acho.Temgente que estudanele porque temmuito dinheiro.Outros porque os pais são ex-alunos. Mas tem uns que estão aqui porque sãosuperinteligentes. Ficam quase o ano todo estudando, enquanto os outros tiramfériasnoverão.Achoqueagenteestásendopreparadapradominaromundooualgoassim.

Allieficouespantadadeelaconseguirdizercoisasassimsemsoarpretensiosa.—Épor issoqueeunãome incomododepassaroverãoaqui.—Joabriua

portadabibliotecaediminuiuavozaumsussurro.—Acasa casópranós,easpessoasqueficamaquinessaépocadoanosãoasmaislegais.

AvoznacabeçadeAllieareprimia:eunãovimpracáporsersuperinteligente.Ao entrarem no silêncio da biblioteca, ela respirou amistura de couro, livros

velhosevernizdemadeiracítrico.Asalaseexpandiaalémdoqueconseguiaenxergar,através de uma oresta de prateleiras escuras demadeira que chegavam ao teto, aquatrometros emeio das suas cabeças. Cada leira tinha sua própria escada comtrilhos, que dava acesso às prateleiras mais altas. O chão era coberto por tapetesorientais espessos que amorteciam o ruído dos passos. Estruturas de ferro forjadoanciãs,quecertamentejádeviamtersustentadovelas,dependuravam-sedotetoemcorrentes grossas, demodo que os livros nas prateleiras superiores se perdiam nassombras.Mesaspesadasdemadeiracomabajuresdecúpulasverdeseramcercadasporcadeirasdecouro;muitasjáestavamocupadasporalunos,diminuídospormontesdelivrosempilhadosaoredor.

Intimidada pelo aparato de aplicação e ferramentas para estudos, Allie tentavaconter uma onda de insegurança. Já estava tão atrasada: como iria acompanhar oritmo? Pela primeira vez em muito tempo se importava com a possibilidade derepetirdeano.

Ela seguiu Jo, que abriu caminho com destreza até uma mesa muito bem

situada,queofereciaumaboavisãodaáreaprincipaldeestudoaomesmotempoquecavaligeiramenteforadoalcancevisualdabibliotecária.Empilharamoslivrossobre

amesa e se ajeitaramnas cadeiras de couro.Estavam imersas emHistória quandodois braços magros, mas musculosos, envolveram Jo por trás, prendendo-a aoassento.Elaarfou,eemseguidariuquandoummeninolourobonitoapareceupertodoseuombro,beijando-alevementenopescoço.

—Gabe,para com isso!Você aindanão conheceu aAllie.Eprecisa conhecer,porque ela éumadeusa.—Orostode JobrilhoueAllie sentiuumapontadadeinvejaseguidadeumabreveondadeculpaportertidoinveja.

Gabesorriucalorosamente,osolhosâmbarbrilhandoàluzdoabajur.PassandoobraçoaoredordeJo,estendeuumamãofortecomunhasquadradaseclaras.

—Oi,Allie.Nuncaconheciumadeusaantes.Elaretribuiuosorrisoeapertouamãodele.—Pratudotemumaprimeiravez.DeuumbeijinhonacabeçadeJoesesentouàmesa,emfrenteaela,puxandoo

cadernodamenina,paraquepudessevê-lo.—Oquevocêsestãofazendo?Ah,História.Bomteverestudandotãoaplicada.JorolouosolhosparaAllie.—OGabeestáumanonanossafrente.Àsvezesissodeixaelemetido.Eleriuepassouapontadacanetanobraçodela.—Metidonão.Sóexperiente.JosorriunovamentequandoGabesevoltouparaAllie.—EntãovocêéafamosaAllieSheridandequemtodomundotantofala.Allieseespantou.—Todomundotáfalandodemim?Porquefalariamdemim?Elesorriu.—Relaxa.Ésóporquevocêénova.Carnefresca.Nósquepassamosoanotodo

aqui camos um pouco isolados do resto domundo. Então uma aluna nova noverãoéacoisamaislegalquepodeacontecer.Alémdisso,temtodaahistóriacomoSylvain...

AvozdeGabedeixoua frasepairar, carregadade sugestão, e ele e Jo sorriramparaAllie,comoseelativessefeitoalgomaravilhoso.

—Ah,peloamordeDeus.—Alliejáestavafartada“históriacomoSylvain”.—Sintodecepcionar,masnãotemnenhumahistóriacomoSylvain.

JoseinclinouemdireçãoaGabe.—AAllieestáemnegação.Achoqueelestêmtudoaver.Allieolhoufuriosa.

—Nãoestouemnegação.—Dequalquerjeito—disseGabesuavemente—,todomundojápercebeuque

eletáinteressadoemvocê.Enósestamostodosconfusos.—Porqueissodeixavocêsconfusos?GabeolhouparaJo.Elafezquesimdiscretamentecomacabeça.—OSylvainémeio...especial.Ospaisdelesãopessoasimportantíssimas,eleé

de uma família muito tradicional. Ele próprio meio que é interessante também.Muitasgarotasaolongodosanostentaramchamaraatençãodeleeninguémnuncaconseguiu.

Jointerrompeu.—Aívocêapareceuederepenteécomoseeleestivessetodobobo.Alliesesentiapressionada,sensaçãoqueelasempredetestara.—Bom,sintodecepcionartodomundo,maseunãoseiseestouinteressada.Jopareceuexasperada.—Euachoqueelagostadeoutrapessoa.Gabeergueuassobrancelhasparaela,quelançou-lheumolharsignificativo.—OCarter—disseJo,franzindoonariz.—Ah,não.—Gabese inclinou,decidido,nadireçãodeAllie.—Sério.Não

pode.NãooWest.Eleéopiorcaraemquemvocêpodeinvestiraqui.—Obrigado,Gabe.Nãosabiaquevocêseimportava.Allie reconheceuavozgravee ricanoatoe congelouno lugar, tentandoachar

umjeitodesedissolvernocouroenuncamaisservista.Gabenãoseabalou.—Ah,semessa,Carter.Vocêsabequeéverdade.Suareputaçãoporaquinãoé

exatamenteadeumnamoradobomeconfiável.OlhandoparaAlliecomoquempededesculpas,Jojuntourapidamenteoslivros.—Euestavaindoprasalacomumdarumtempoantesdojantar.Vamostodos?ElaeGabeselevantaram,masAllieestavaimobilizadadevergonha.Alémdisso,

sairagorapareceriacovardia.Elaergueudiscretamenteoqueixo.—Não,obrigada.Vouestudarumpouquinhomaisantesdedarumtempo.SobreoombrodeCarter, Jomexeuos lábios emsilênciodizendo“Desculpa”

antesdesairemdireçãoàportacomGabe.Cartersesentoudiantedela,enquantoAllie ngiaescreverumaanotaçãoparasi

mesmanocadernodeHistória.Massuamenteestavagirando.Entãoagoraeleachaqueeutoucaidinhaporele.Edaí?Deixaachar.Elacontouduasinspiraçõeseduasexpirações.

—Oi—disseele.Levantandooolhardocaderno,viuqueeleseinclinavaparaafrente.Seurosto

estavapróximo—osolhosescurosolhandobemdentrodosdela.Divagando,Alliereparouqueoscíliosdeleerambemlongos,eassobrancelhasretasebonitas.

Ela deu um jeito demanter o rosto sem expressão,mas as bochechas coradascertamenteatraíram.

—Achoqueagentenãofoiapresentadooficialmente.EusouCarterWest.—EusouAllieSheridan.—Elafezumesforçoparaquesuavozsaísse rmee

sem constrangimento, e, uma vez na vida, deu certo. Sustentou o olhar dele semmedo.Ouaomenostorceuparaqueestivesseaparentandonãotermedo.

—Eusei—eledisse,ajeitando-secon antenacadeira.Sorriudeformacínicaeeladecaranãoconfiounele.—Agentetemqueconversar.

—Tem?—respondeufriamente.—Sobreoquê?—Você.— Legal — disse Allie. — Bom, minha cor favorita é azul, eu adoro

cachorrinhos.Suavezagora.—Superengraçado—disseele,nãoparecendoachargraça.— Ah, sim — prosseguiu —, eu sou superengraçada. Esqueci de mencionar

antes.Eleestavacomeçandoaparecerirritado.—Bastanteútil,obrigado.Masoqueeuqueriasaberéoquevocêestáfazendo

naCimmeria.Nãoénadacomumentraremnovosalunosnomeiodoverão.Incomodadapelotomdeinvestigação,Allieseinclinouparalongedeleecruzou

os braços. Ele tinha pedido a verdade, mas era muita munição para dar a umestranho.

Alliegirouacanetaentreosdedos.—Ganheiumconcurso?—Engraçada—repetiu,apesardeseurostodizerquenãoera.—Sério.Nunca

tenhamedodeserhonesta;oqueéquetrouxevocêpracá,afinal?Entãoelenãoiadeixaroassuntopralá.Tábom,então.Ergueuoqueixoeolhounosolhosdele.—Eufuipresa.Eledeudeombros.—Edaí?—Trêsvezes.—Ah.—Emumano.

Eleassobioubaixo.— Certo. Mas ser presa não te coloca na Cimmeria. Aqui não é um

reformatório.Porquevocêtáaqui?Alfinetada,Alliepôdesentirairritaçãoaumentar,maslutoucontra.—Prasersincera,nãofaçoideia.Meuspaismedisseramqueeuvinhapracá,e

algunsdiasdepois,aquiestavaeu.Disseramqueesselugaréespecializadoemalunoscomoeu.Sejaláoqueissosignifique.

—Interessante.—Carteraexaminoucomcuriosidade,comoseelafosseumapeçaintrigantenumaestantedemuseu.

Alliefuzilouomeninocomoolhar.—Porqueétãointeressante?—Alunosproblemáticosatévêmpracá,masnãonoverão.Todososalunosdo

verãosãoavançados.UmaondaderancorpercorreuocorpodeAllie,queoencarou.Poracasoeutenho“burrademaispraestaraqui”tatuadonatesta?Arrumouoslivrosempilhas,irritada.—Pelo jeito, é impossível cogitar apossibilidadedeque eu seja inteligente.E

problemática.—Essaúltimapalavraelacuspiu.—Bom,entãoémelhoreuvoltarprosmeusestudos,não?Tenhoquelutarmuitopraacompanhargênioscomovocês.

—Ô!—Pareciaespantado.—Nãosejatãosensível.Sótôtentandoentendervocê.

Issofoioquebastou.DepoisdeKatie,JuleseZelazny,seuspaiseapolícia, jáestavacheia.Enfiouoslivrosnabolsaedeumeia-voltaparaencará-lo.

— Não tenta. Ok? Não tenta me entender. Não tenta me analisar. E,aproveitandooembalo,parademeofender.Vocêmevênaaula,ouveumaconversaeachaquemeconhece.Mas,podeacreditar,vocênãosabenadaameurespeito.

Saiuirritadadabibliotecaesubiuasescadascorrendo....32,33,34degraus...Sódeutempodeelachegaraoquartoantesdea tempestadeexplodir.Abolsa

escapuliudosseusdedosfracose,apoiando-senaporta,Alliedeslizouparaochão.Com o rosto enterrado nas mãos, chorou em silêncio. Por que ela estava aqui?Todosatratavamcomoaidiotadeplantãoqueentrouquandoosegurançaestavadecostas.Podiasentirarespiraçãoenfraquecendoelutoucontraumataquedepânico,masoscontornosdesuavisãocomeçaramaescurecer.

Contouasrespirações,ostacosnochãodemadeira,oslivrosnasprateleiraseospainéis de vidro na janela até sentir que retomava o controle e a vista voltava aonormal.

Quando se sentiu melhor, levantou. Abrindo a porta, veri cou se o corredorestava vazio antes de correr para o banheiro e jogar água no rosto. Ao ajeitar oscabelosparatrás,aportaseabriueJulesentrou.SeusolhosregistraramasbochechasdeAlliemarcadasporlágrimaseumolharpreocupadopassoupeloseurosto.

—Oi,Allie.Comovocêestáseadaptando?Allienãoestavacomvontadede ngir.Mastambémnãoqueriaconversarsobre

oassunto.Sóqueriaestaremoutrolugar.—Tátudoótimo,Jules.—Suaspalavrasestavamcarregadasdesarcasmo,mas

nãoconseguiuevitar.—Todomundoestásendotãogentil.Tátudo...ótimo.AntesqueJulespudessereagir,Allieabriuaportaedisparoucorredorabaixo.Nuncatinhasesentidotãosozinhanavida.

Allie acordou com um susto e se sentou ereta na cadeira demadeira. Estava comdoresnacolunaeoabajurdaescrivaninhacontinuavaaceso.

Quehorassão?Comacabeçanebulosa,virouodespertadorparasi.Duasdamanhã.Devotercaídonosonoemcimadaescrivaninha.Estavasentadadiantedajanelaabertacomumapilhadepapéisespalhadosàsua

frente. Depois do ataque de nervos, ela acabara cando sem fome. Decidiu nãodescerparaojantareficarnoquartoparabotarasleiturasemdia.

AúltimacoisadequeselembravaeradeterlidoAsRegras.Apósterminarodever,lheocorreuquenuncaastinhalidoparavalereretiroua

pilhaespessadepapéisdagavetadaescrivaninha.Eramtãoestranhasedeterminantesqueinicialmenteelanãoacreditounoqueestavalendo.

Bem-vinda,Allie.

AAcademiaCimmeriaéumlocalúnicoparaseaprender,eestamosmuitofelizesemtê-laconosco.Aescolaoperadeacordocomasregrasestabelecidashámuitotempopelosfundadores.

Sigaestasregrasàriscaesuapassagempelaescolaserámemoráveleagradável.Desobedeça-asesuapassagempelaCimmeriapodesermuitobreve.

RegrasdaAcademiaCimmeria.

1.Odiacomeçaàs7damanhãeterminanomáximoàs11danoite.Emhoráriosdiferentesdestes,vocêdevepermaneceremseudormitório.

2.Aflorestaquecercaaescolapodeserperigosa;osalunossãoproibidosdeentrarnelasozinhosapósescurecer.

3.Nenhumalunopodedeixaroterrenodaescolasemautorização.

4.Oacessoàaladosprofessoreséproibido.

5.AlunosdecertasáreasavançadasdeestudoscursamaEscolaNoturna.Apenasalgunspoucoseseletostêmestaoportunidade;quemnãoestiverentreelesnãodeveinterferirnaEscolaNoturna,tampoucoobservá-la.Qualquerumquetentarseráexpulso.

6.AsidentidadesdosenvolvidosnaEscolaNoturnapermanecemsecretas.Qualquerumquetentardesvendá-lassofrerápunição.

7.TODASasatividadesdaEscolaNoturnasãosecretas.Qualquerintegrantequefordescobertodivulgandodetalhesdestasatividadesseráseveramentepunido.

De repente ela voltou a ouvir o barulho que provavelmente a acordara. Era umaespéciede arranhadurano telhado.Allie apagouo abajur e empurrouospapéis deladoparaquepudessesubirnamesaeolhar.

Aprincípionãoouviunada.Então,aolonge,umberro.Algunssegundosdepois,umgritofraco.Allieseinclinouparaespiaraescuridão.Hojeanoiteestavasemluare as nuvens obscureciam as estrelas. Só enxergava a escuridão. De repente, muitoperto,umbarulho—umchiado,comopassossobremadeiravelha.

Queporraéessa?Oquequerquetenhasido,foinotelhado.Láembaixo,teveaimpressãodeveralgumacoisaemdisparadapelogramadoaté

obosque.Prendeuarespiraçãoparaescutar.Aquiloera...umarisada?Apósalgunsminutos,elaouviuumavozsussurrartãobaixoquenãotevecerteza

senãoerasóasuaimaginação:Tátudobem,Allie.Vaidormir.

Ela olhou ao redor do quarto. Estava sozinha. Balançou a cabeça com força,tentandodescobrirseestavaacordadaoudormindo.

—Tô candomaluca—murmurou,efechouajanela,trancando-a rmementeantesdedeitarnacama.

Aocairnosonodenovo,podiajurarterouvidoamesmavozriraolonge.

O

CINCO

toqueagressivodoalarmedespertouAlliedosonoàssetedamanhãdodiaseguinte. Grogue, golpeou-o diversas vezes até encontrar o botão dedesligar.

Sentando-senacama,espreguiçou-sedevagar.Maisumsonhoestranho.Quevozeraaquela?Pareceratãoreal.ElapôsaculpanasRegras.

Essecolégioestámeenlouquecendo.Após um rápido café da manhã, chegou para a aula com alguns minutos de

antecedência. Jo jáestava sentada.Carter,elapercebeu,nãoestava. Jo tinhamuitasperguntas.MalesperouatéqueAlliechegasseàcarteira.

—Oqueaconteceuontemànoitedepoisqueagentesaiude lá?Queazarelechegar quando a gente estava falando dele. O Gabe se sentiu péssimo de ter tecolocadonaquelasituação.

Allie couimaginandoquantodeveriacontar.Lembrou-sedamáximadeCarter:“nuncatenhamedodeserhonesta”.

Mas,pensandobem,oCarteréumbabaca.—Agenteconversouumpouco,maselesópareciainteressadoemsaberoque

euestoufazendonaCimmeria.—Deudeombros.—Eumeirriteiesaí.Jopareceusurpresa.—Porquevocêseirritou?Allietentounãosoaramuadaeinfantil.—Sei lá.Pareceuqueeleachavaqueeunãodeviaestaraqui.Comoseeunão

fosseboaosuficienteparaisso.Joseinclinounadireçãodelaebaixouotomdevozaoníveldeumsussurro.—Allie,vocêsabequeeunãosoufãdoCarter,masissonãoénemumpoucoo

estilodele.Eleémeioqueaúltimapessoaaseresnobecomrelaçãoaqualquercoisa.Eleachaquetodomundoaquiéarrogante.Vivefalandodisso.Éumdosmotivosporqueaspessoasnãogostamdele.

Jerrymandouaturmafazersilêncio.Relutantemente,asduasseviraramparaafrente.Jopegouumpedaçodepapeleescreveufuriosamente.Quandoelecomeçou

adesenharpulmõesnoquadro-negro,aportaseabriueCarterentrou.JodeslizouopapelsobreamesaparaAllie.Dizia:“Vocêdeveterentendidomal.

Aposto.”Allie levantou os olhos do papel e viu Carter observando-a ao passar por ela.

Abaixouosolhosinstantaneamenteecobriuopapelcomamão.Ela suspirou e balançou a cabeça, como se tentasse sicamente livrá-la de

pensamentosloucos,egirouacanetaentreosdedos.Uma,duas,trêsvezes.Emseguida,nabasedobilhete,rabiscou:“Ok.Euacredito”,eopassouparaJo,

quepareceusatisfeita.AllietentoufocarnaauladeJerry.Nãodavaparapassartodasasaulasdistraída

pelapresençadeCarterWest.

—Éque eleme lançaos olharesmais estranhoso tempo todo—disseAllie.—Vivemeencarando.

Ela e Jo estavam na sala de refeições, que já começava a esvaziar depois doalmoço, remexendo folhas de salada nos respectivos pratos e conversando sobreCarter.

Jofranziuonariz.—Eledevesóquererquevocêgostedele.Elequerquetodomundogostedele.—Bem, se for isso, não está funcionandomuito não—disseAllie.—Meu

Deus,éinacreditávelaenergiaqueagentedesperdiçafalandodeumcaradequemagentenemgosta.MecontasobreoGabe.Háquantotempovocêsestãojuntos?

Josealegrou.—Deixaeuver...Agentetájuntohámaisdeumano.Quandovimpracá,eu

tava saindo com um cara chamado Lucas, mas aí eu conheci o Gabe e foi tipoassim...esquece.Eleéocaramaislegalqueeujáconheci.Omaisengraçado.Omaisgostoso.Omais...tudo.—Riudaprópriabobeira.

— Não acredito que vocês estão juntos há um ano — disse Allie. — Nãoconheçoninguémquenamorehátantotempo.

Jopousouogarfo.—AquinaCimmeriaéengraçado.Quem cajuntotendeacontinuarjunto.É

porissoquetodomundofalatantodoCarter.Aquinãotemmuitoissodefoi-só-uma-noite.Nãoseiporquê.Talvezporqueagente queaquidentrotantotempo.Porque,tipoassim,algunsalunosnuncavãopracasa.Ficamaquidireto.Comosefosseacasadeles.Eagenteéafamília.

—Quemfazisso?—perguntouAllie,curiosa.

—Bom,oCarter.EoGabe.Eeu,pelojeito.Allienãoconseguiuconterasurpresa.—Vocênuncavaipracasa?—Éumalongahistória—Jorespondeu,dandodeombros.Elaolhouemvoltadasala,quejáestavaquasevazia.—Ai,porra!Quehorassão?Ambaspegaramasbolsasdelivrosecorreramparaaporta,pelocorredorepelas

escadas.Aoseaproximaremdoprimeiroandarestavamrindohistericamente.—Atrasadasdenovo!—exclamouAllieaodobraremocorredoràspressasese

separarem,cadaumaparaasuaaula.—Comoéqueagentetá?—perguntouJo,rindosemfôlego.AllieparoudiantedaportafechadadaauladeHistóriapararecobraroar,eentão

abriu a porta silenciosamente.No terrível silêncio repentino, os alunos se viraramparaolharparaela.

—Srta.Sheridan—chamouosr.Zelazny,queinsistiaemmanterumquadro-negrodegizàmodaantiganasalaeestavaagoraemfrenteaele,encarando-a.—Aaulacomeçouhádoisminutos.Euseiquevocêénova,massuponhoquejáconheçanossasregrasquantoaatrasos.

Allieassentiumuda.—Sim?Muitobem.Entãomeencontradepoisdaaula.Alliesearrastouatéoassento,olhandoparabaixo.Nãoconsigofazernadadireito.Independentemente do quanto tentasse mudar sua vida, ela não conseguia.

PareciaqueconfusãoestavaemseuDNA.

Ao mdaaula,elaesperouosoutrosalunossaírem, ngindoorganizaroslivrosatéqueasalaestivessepraticamentevazia.Entãofoiatéamesadosr.Zelazny.Eleestavaescrevendoenãoergueuoolharde imediato.Ela limpouagarganta timidamente.Apósuminstante,elelevantouacabeçaeaencaroucomumolhargelado.

—Lamentomuito ter que conversar comvocê sobre atrasoduas vezesna suaprimeirasemana.ÉumpéssimosinalparaoseufuturonaAcademiaCimmeria.Eusei queos outrosprofessoresdizemque você émuitopromissora,masdevodizerqueeunãoestouvendonenhumsinaldisso.

AraivafezosanguesubiratéasbochechasdeAllie,maselamordeuolábioenãodissenada.Eleestendeuumpedaçodepapelescritoàmão.

—Esteéoseuavisodedetenção.Amanhã,àsseisemeiadamanhã,encontreogrupodoladodeforadacapelaeentregueissoaoprofessor.

Allienãopodiaacreditar.—Seisemeiadamanhã?Masamanhãésábado!Afriaexpressãodedesinteressedoprofessornãosealterou.—Eusótedeiumdiadedetenção,srta.Sheridan.Seissoserepetir,apróxima

vaiterumasemana.Allieentrounaauladeinglêscobertaporummantodefrustraçãoquasevisível.

Isabellelhedirecionouumolharquestionador,masAlliebaixouosolhosparaolivroe, quando a diretora começou a aula, se rendeu aliviada aomundo confortável daautopiedadeatéCarterentrarnasalacincominutosdepois.

Isabelleinterrompeuaaula.—Carter,vocêgeralmentechegaumpoucotardeeeuestoudispostaadeixarpra

láumpequenoatraso,masissoéridículo.Vocêtemalgumadesculpa?—Sómeatrasei,Isabelle.—Carterdeudeombros.—Acontece.Adiretorasuspirouefezumaanotaçãonumafolhadepapelquetinhanamão.—Vocêconheceasregras,Carter.Porfavor, queaquidepoisdaaulaprafalar

comigo.QuandocomeçouumadiscussãosobreT.S.Eliot,Alliesedesligou,imaginando

em que consistiria a detenção, e pensando (secretamente torcendo) se Jo tambémteria recebido detenção, para que ela não casse sozinha. Sentiu uma pontinha deculpapordesejarquealgoruimacontecesseàsuaúnicaamiganaCimmeria.

Derepenteseligounovamente,hipnotizadapelacombinaçãodepalavraseavozfamiliarqueaslia.Sempredetestarapoesia,masnuncatinhaouvidopoesiaassim.

“Etemostrareialgodiferentedeambas;Tuasombrapelamanhãarrastando-seatrásdeti,Outuasombraànoiteseerguendoparaencontrar-te.Mostrar-te-eiomedoemumpunhadodepoeira.”

ElaolhouparaooutroladodocírculoeviuCartersentado.Elenãoestavaolhandoparaela,maslhedavaasensaçãodequetinhaconsciênciadoseuolhar.

—Entãooqueeleestádizendoaqui?Oqueelequerdizercom“medoemumpunhado de poeira”? — indagou Isabelle, correndo os olhos pela turma.Impetuosamente,Allie começoua falar e imediatamentedesejouquenãoo tivessefeito.

Isabelleacenouparaelacomacabeça.—Pareceque...—hesitou,masoolhardaprofessoraera rmeepaciente.Allie

pensou e recomeçou.—Quer dizer, pramim parece um alerta. Ele está dizendo

“Tenhamedodemim.Vocêvaisemachucarcomigo”.Isabellefezquesimdenovo.— Acho uma boa observação. Há claramente um aviso ou uma ameaça ali.

Alguémmaistemalgoadizer?—Ésobreamorte.—Carternãoesperousuavez.OcoraçãodeAlliebateumaisdepressa.—Tudosobreoqueeleescreveé impossívelde serparado,é inevitável.Edo

queaspessoasmaistêmmedo?Damorte.Allie xouoolharnacarteira,massabiasemerguê-loqueCarterestavaolhando

paraela.

—OZelaznyétãobabaca!—exclamouJo,furiosa.—Vocêsóchegou,tipo,doisminutosatrasada.Nãoseicomoelepôdefazerissoquandoésósuaprimeirasemana.

No mdascontas,oprofessordefrancêsdeJonempercebeuqueelaseatrasara,poisestavadiscutindoumaviagemaPariscomalgunsalunosavançadosenãotinhanotadoqueaaulajádeveriatercomeçado.EntãoAllie cariasozinhanadetenção.Jotinhapoucaspalavrasdeconfortoparaoferecer.

—Já quei emdetenção tantasvezesqueatéperdi a conta.Éumadroga issoaqui,porqueasregrassãotãodurasesevocêdesviarumpassodelas...—Montouumapistola comos dedos e deuum tirono ar.—Tem semprenomínimodezalunos.Masotrabalhoépesado,seprepara.

Allieestavaconfusa.—Nãoésólerouestudar?OtomdeJofoiseco.—Ah,não.NãonaCimmeria.Aquiétrabalhobraçal.Vocêvaipintaralguma

coisaouapararagrama,plantar,limpar...SóDeussabe.Ésemprealgumacoisaquetefazsuar.Durasóumashorinhas,maspodesersuperchatosederemalgumatarefahorrível.Maspelomenosvocêvaiconheceroutragaleradabagunça.

Allierevirouosolhos.—Ah,ótimo.Quesorteaminha.Comoseeujánãoconhecesseencrenqueiros

obastante.Estavamsentadasàmesadepoisdojantarnasaladerefeiçõessilenciosa;amaioria

dosalunosjátinhaseretirado.Joolhouaoredor.—Vamossairdaqui.Vocêjáconheceuoespaço?Ousó coupresaaquidentro

comesseslivrosempoeiradoseeu?DeuobraçoparaAlliequandosaíramdasala.Àfrentedelas,o uxodealunosse

dividiaemváriasdireções;asduasseguiramafilaparaaporta.

Vagarampelaentrada,quesobaluznoturnanãopareciaoesplendordemar mqueAllierecordavadedoisdiasatrás.Agoraerasóumatrilhacinzadecascalhocomooutra qualquer. O gramado verde da escola se estendia em todas as direções e assombras compridas das árvores se esticavam sobre as duas. Jo seguia à frente pelagrama.

—CadêoGabehoje?—Trabalhandoemumprojetoespecial,achoquevai carocupadoatéotoque

de recolher. — Jo sorriu complacentemente. — Ok, pra você car sabendo.Távendoaquelatrilhaentreasárvoresali?—Apontouparauma leiradepinheirosemfrenteaogramadodaalaleste.Allieconseguiaidenti carumatrilhaconduzindoaobosque.—Éocaminhodacapela.Épraondevocêtemqueiramanhã.

Emseguida,Joapontouparaadireçãooposta,paraumcaminhoque iadaalaoestedocolégioatéasárvores.

—Ali—informouela—, temumacasadeveraneio logodepoisda saídadamata.Àsvezesagentefazpiqueniquelá.

—Eoquetemnamata?Joaolhouconfusa.—Árvores?Allieriu.—Não,querodizer,temmaisprédios?Oucoisasprafazer...?—Achoquetemumascasasafastadasondemoramfuncionáriosouprofessores.

Maseunãotenhocerteza.Naverdade,agentenão fazmuitacoisana oresta,eaescolameioquedesaconselha,porque,seilá,segurança,saúde,essascoisas.Masvocêvaigostardacapela.Ébemantiga.

Caminharam ao redor do lado oeste da casa e seguiram para trás dela, ondedegrausdepedralevavamaterraçosdegramasucessivoscom orescoloridas.Alémdoúltimo tapetede grama, o solo se elevavamarcadamentenuma colinademataesparsa.

— Tem uma torre no alto do morro. — Jo apontou e Allie conseguiuidenti carcomdi culdadeumaestrutura.—Parecequetinhaumcasteloalioualgoassim,masagoraésóruína.Atorreatéqueélegal.Vocêpodesubirlánoaltoevertudo.TemgentequedizqueenxergaatéLondres,maseusóvejoárvoresecampos.

Margeandoosopédomorro,chegaramaumlongomurodepedra.—Oqueéisso?—perguntouAllie.—Vocêvaiver.Algunsminutosdepois, chegaramaumaporta antigademadeira fechadacom

umcadeadodecombinaçãoincompativelmentemoderno.Comavelocidadequesó

seobtémcomaprática,Jogirouastrêsrodasnumeradaseocadeadoabriu.Elaabriuaportaeentrou,desviandoparanãobaternamoldurabaixadaentrada.

Alliefoiatrás,eJofechoucuidadosamenteaporta,guardandoocadeado.—Uau.—Alliearfou,assimilandoojardiminternoenormeebemcultivado.

Havialegumesem leirasdeprecisãomilitar,retascomoocanodeumaespingarda.Árvores frutíferas se acumulavam no fundo, projetando-se acima do muro, aoencontrodosoldatarde.Pelasbordas, oresentornavamemvívidostonsderosa,brancoeroxo.

Umatrilhadepedracercavaojardim,eJosaiuandandoporela.—Bem-vindaaomeulocalpreferidodaCimmeria.—Incrível!Comovocêencontrouissoaqui?Ecomovocêsabeacombinação?—Hmm...foimeioqueporacaso.Nomeuprimeiroano,eutivequetrabalhar

aquinadetenção.Nocomeçoeudetestava,terqueacordaràsseistodososdiaspravirpracá,masno naldasemanaeupercebiaqueiasentirsaudade.Nãoseiporquê.Eumandomuitobemnessenegóciodejardinagem,eesselugaré...tranquilo.

Allie couimaginandooqueelateriafeitoparapegarumasemanadedetenção,mas como Jo não providenciou a informação voluntariamente, resolveu nãoperguntar.Alémdisso,pareciamuitofácilficaremdetençãonesselugar.

Jovirouàesquerdanumcaminhoquecortavaomeiodosjardins,passandoporum chafariz onde uma bela menina de vestido esvoaçante e nariz levementedani cadoviravaumaurnadeáguaeternamentesobreaspedras.Passouaolargodeumcanteirodemirtilosesaiunatrilhadegranitodooutrolado.

—Agoraeuajudodepoisdaaulaenos nsdesemana.Àsvezes,quandoqueroprivacidade,euvenhoaqui.

Emmeioàexuberânciadeglicínias roxascobrindoasparedes,haviaumbancoaltodemadeira. Jo se empoleirounele, assinalandoparaamenina fazeromesmo.Allielevantouospéseabraçouosjoelhos,respirandooaromafrescodasflores.

—Aquiagentepodeconversar—disseJo.—Aliás,essedeveseroúnicolugarnaCimmeriaondeninguémvaiescutar.Comovocêjápercebeu,essaescolaémuitointrometida.Maseaí,comovocêtá?Devesermuitoestranhopravocêestaraqui.Eulembrodosmeusprimeirosdias;esselugarmedavaarrepios.

—Vaiparecerloucura.Maseuodeioissoaqui.Emeioqueadorotambém.Josorriuserenamente.—Naverdadeeuteentendototalmente.—Émuitodiferentedequalquerescolaemqueeu já tenhaestudado, sabe?E

temmuitotrabalho,mas...—Alliepensouporuminstante.—Nãoéaminhavida.Eédissoqueeugosto.Nãoéaminhavidadojeitoqueelatemsidonosúltimos

doisanosequalquercoisaémelhordoqueaquilo.Jorefletiuarespeito.—Quandoeuvimpracá—disseela,aspalavrassaindohesitantes.—Eutinha

sido expulsa da minha última escola depois que me encontraram desmaiada notelhadoaoladodomeuex-namorado.Agentetinhabebidoumpoucodevodcae...Bom.En m,meuspais caramloucosdavida.Masonegócioéqueerapraserumcolégioexcelentemasnaverdadeera...idiota.Asaulaseramfáceisdemais,nãotinhanada pra fazer e era cheio de alunos ricos matando tempo até irem pra algumafaculdadefodona.

Elaabaixouumadaspernaseficoubalançandoopéparaafrenteeparatrás.—Depoisdisso,meuspaismemandarampracá.Achoqueelespensaramqueeu

ia odiar,mas depois queme acostumei às coisas esquisitas, adorei.Adoro como édifícilecomoéestranho.Comoalgunsprofessoressãobizarros.Meioquetemaver.Desdeentãoeu queibem.Ótima,naverdade.Écomoseeuestivesseondetenhoqueestar.

Allieapoiouoqueixonosjoelhosepensouporuminstante.—Minhavidatemsido...meioloucaultimamente.—Elasecaloueaídecidiu

continuar.—Atéumanoemeioatráseratudoperfeito,euacho.Eraafilhaperfeita,tinhanotasperfeitas,meuspaismeamavam.Eumdia...tudoacabou.

ElaparoueolhouparaJo.—Sabe,eunãoconteiessahistóriapraninguém.Nunca.Joassentiueesperou.Allierespiroufundo;suaspalavrasseguintessaíramtodasdeumavez.—Umdiaeuchegueidocolégio,apolíciatavaláemcasa,minhamãechorando

emeupaigritandocomopolicialeeuviaqueelequeriachorartambém.Umcaos.Meuirmãotinhadesaparecido.Enuncaencontraramele.

JopegounobraçodeAllie.—Allie,Jesus!Quehorror.Oqueaconteceu?Ele...—Morreu?Seilá.Agentenuncamaistevenotícias.—Nãotôentendendo.Oqueaconteceu?AvozdeAllieagoraestavamaiscalmaefirme.—Olha,eueoChristopheréramosmuitounidos.Elefoimeumelhoramigoa

vidainteira.Temirmãosquebrigam,agentenuncabrigou.Eagente cavajuntootempotodo.Eleédoisanosmaisvelhodoqueeu,massemprefoimuitopacientecomigo.Não cansava demim como alguns irmãosmais velhos cansamdas irmãsmenores.Quandoeuerapequena,elemeencontravatododiadepoisdaaulaemelevava pra casa. Me ajudava com o dever de casa, via TV comigo. Meus pais

trabalhammuito,maseununcameimporteiporqueoChristophersempretavalá.Eatédepoisqueeucresci,elesemprecuidavademim.Tipo,apareciadepoisdaaula,comosefossecoincidênciaoucoisadotipo.Efaziaodevernamesmahoraemqueeufaziaomeuprapodermeajudarseeuempacasseemalgumapergunta.Mas,maisoumenosunsseismesesantesdeelesumir,elecomeçoua carestranho.Ficavanaruaatémuitotarde,seestressavacomaminhamãeeomeupai.Nuncaestavaporperto, e quando estava, não falava muito. Eu tinha a sensação de que eu tavaperdendo ele umpouco.Quando eu tentava conversar com ele sobre isso, se tavatudobem,eleseafastava.Literalmente,selevantavaesaíadecasaporhoras.Asnotasdelepassaramde excelentes apéssimas.Meuspais estavam totalmente loucos,masnãoconseguiamfazernadapraajudar.Elenãodeixava.

Elaparou, lembrando-sedasdiscussões intermináveis edasportasbatidas.Umpássaronoturnoentoavaumamelodiacomplexa.

Quandoelafalououtravez,otomsaiusememoção.—Eledeixouumbilhete.Meuspaisnãomecontaramoquedizia,masumavez

euouvi aminhamãe falando comalguémno telefone.Ela tinhadecorado.Foi acoisamais cruel que eu já ouvi.Dizia “tô indo embora, não tômagoado, não tôusando drogas. Só não quero mais fazer parte dessa família. Não amo vocês.Nenhumdevocês.Nãomesigam.Nãotentemmeachar.Eunãoprecisodeajuda.Vocêsnuncamaisvãomever”.

—Ai,meuDeus—sussurrouJo.QuandoAllielevantouosolhos,viuqueelesestavamcheiosdelágrimas,quelimpoucomapartedetrásdamão.—Ai,Allie.

Allie se esforçou para se manter distante da história que estava contando,fingindo,comofaziaàsvezes,quetudoaquilotinhaacontecidocomoutrapessoa.

—Eaí tudodesmoronou.Achoque eu tiveumcolapsonervoso.Assim... eunãoconseguiafalar.PasseidiasediassentadanoquartodoChristopher.Nãofuiàescola pormeses.Memandaram pra umpsicólogo, que eu odiava.Minhamãe emeupaibrigavam,eeuera sóuma... chateaçãoqueeles tinhamqueaguentar.Foicomo se ele tivesse tiradoa tampadasnossas vidasquando foi embora, e tudodebomescoou.Elesnãomeamavammais,eeunãosentiamaisnada.

Suspiroutrêmula.—Sentiralgumacoisa coumuitoimportantepramim.Entãoeubebiamuito;

masnaverdadeissoémeioqueoopostodesentiralgumacoisa,sabe?Jofezquesim.—Passeiaandarcomgentequemachucavaunsaosoutros.Memetiemmuita

encrenca.Serpresafoibemassustador,entãofizissoalgumasvezes.Eu...—estendeuo braço esquerdo, mostrando três cicatrizes brancas nas entre o pulso e a parte

interna do cotovelo. — Me cortei por um tempo. E doía, o que era bom. Mastambémera totalmente imbecil.Eparecia falso.Tipo, seévocêque fazcomvocêmesma,nãoédordeverdade.Porissoeunãofaçomais.

Acelerouofinaldahistória,comoseestivesseansiosaparaacabar.—En m,daúltimavezqueeufuipresa,meuspais caramdesacocheio.Eé

issoaí.Elestêmumacasavaziaagora.Eeunãotenhonemisso.Espontaneamente, Joaabraçoucomforça.Entãochegoupara trás ea segurou

pelosombros,olhandoemseusolhos.—Ok. Isso éumamerda.Mas você tá aqui agora.E tá viva.Eu acabeide te

conhecer,Allie,masjáseiquevocêéincrível.Easuafamíliapodeserhorrível,masasuavidaapartirdeagoradependedevocê.Euqueroquevocêprometaquevaidarumachanceaesse lugar.ACimmeriameconsertou.Agoraéaminhacasa, e essaspessoassãoaminhafamília.Podeserigualpravocê.

Allieretribuiuoabraçoesegurouaslágrimas.—Ok—sussurroucomavoztrêmula.—Prometo.JopuxouAlliedemodoqueacabeçadelaseapoiassenoseuombro,e caram

sentadas quietas no banco por um instante, cada uma perdida nos própriospensamentos.Alliesesentiuestranha;deressaca.Cansada.

—Esselugaréengraçado—resmungou.—Otempoparececomprimidoaqui.Nãoacreditoqueeusóchegueihádoisdias.Essavaiseraminhaterceiranoite.Masparecequeeujáestouaquihásemanas.

Joassentiu.—Écomoumavidaconcentrada.Aquiacontecemaisemumasemanadoquelá

foraemummês.Encolhidas no banco, conversaram preguiçosamente enquanto a luz do dia

desbotavaeassombraspreenchiamojardim.—Dápra entenderporquevocê gostadaqui—Alliedisse ao se esticar.—É

meiomágico.Tipoaquele livroqueagente lêquandoé criança,O jardim secreto.Vocêoleu?

Jofezquesimcomacabeça.—Eusempre...AspalavrasdeJoforaminterrompidasporalgumacoisabatendoruidosamente

dooutroladodojardim.Asduassaltaram.—Quediabosfoiaquilo?—perguntouAllie,olhandoemvoltaenotandopela

primeiravezcomojáestavaescuro.—Nãosei—Josussurrou.Olhouparaorelógio.—Saco!Jáestáquasenahora

dotoquederecolher.Nóstemosquevoltar.

Elaselevantou,dandoobraçoparaAllie,eentãoouviramobarulhonovamente.Eemseguidapassos.

—Que...—Josussurrou,eentãolevantouavozegritou:—Quemtáaí?Ospassoscessaram.Asduasficarampetrificadas,ouvindoasbatidasdospróprioscorações.—Jo—Alliesussurrou.—Seráqueé...Asduasescutaramorosnadoaomesmotempo.JoagarrouobraçodeAllie.—Jo,quediaboséisso?—sussurrouAllie.—Nãosei.—Seráqueagente...?—Corre?—É.—Quandoeudissertrês.Um.Dois...O silêncio foi quebradopor um estilhaço que agora parecia vir das sombras a

centímetrosdelas.Asduasgritaramesaíramcorrendopelatrilha.JosegurouamãodeAlliecomfirmeza.

— Fica comigo — disse arfando, e correu para o pomar. No escuroziguezaguearamentreasárvores,eAlliesentiualgumasfrutascaídassendoesmagadassob seus pés.Tentou prestar atenção se ouvia passos além dos dela e de Jo, masestavamindorápidodemais,eraimpossíveldeterminar.

Entãoalgumacoisatocousuacabeçaeelagritou,batendonoaraoredor.Joaarrastou para a esquerda, perto do emaranhado de canteiros de mirtilo, para umjardimderosas.Espinhosrasgavamsuasmãoseroupas.Galhosestalavamsobseuspés.

De repente algumacoisa agarrou Jo e a levantou, arrastando-aparaumquartoconstruídodentrodaparede.Allieaouviatentandogritar,masumamãocobriasuaboca,abafandoosom.

—Shhhh.—GabelevantouumdedoparaoslábioseolhounosolhosdeJo.Jooabraçoueenterrouorostonopescoçodomenino.

Gabe esticouobraçoparaAllie,mas agora alguém estava segurandoos braçosdela também.LevantouosolhosatabalhoadamenteeviuosolhosazuisdeSylvainobservando-afirmementenaescuridãoenquantoapuxavaparaoquartoescuro.

Emsilêncio,elemexeuabocadizendo:—Quieta.

A

SEIS

llie,imóvel,tentavanãorespirar.GabeenvolviaJonumabraçoprotetoreSylvainpuxavaAllieparatrásdesi.Ambosencaravamaportaaberta,comosolhosemalerta.

Alguma coisa fezum ruídode estilhaço aopassarpelo jardim eAllie teveumsobressalto, mas o som agora parecia mais distante. E após alguns segundos...silêncio.

Quandomaisalgumtemposepassousemquenadaacontecesse,GabeeSylvaintrocaramumolhare, comose tivessemrecebidoumsinal, começaramacaminharrapidamenteemdireçãoàporta.Gabeexaminouaáreaaoredor,olhouparatrás,fezumsinalcomacabeçaetodoscorreramemsilêncioparaojardim,dalipelatrilhaatéa porta, chegando ao gramado. Semuma palavra, Jo deu aGabe o cadeado e elefechouaporta.

Pelaprimeiravez,AlliesedeucontadequeosbraçosdeSylvainaindaestavamemvoltadela.Ele tinhaumcheiromarcantedepinheiroouzimbroeela respiroufundo, relaxando nos seus braços. Imediatamente o abraço dele tornou-se maisapertado.

FracosraiosdeluzaindabrilhavamnocéuenquantoGabeosguiavaatravésdeumaportadefundosquedavadiretamentenocorredorcentral.Sobaluz,Allieviuque Jo parecia pálida e se agarrava aGabe com lágrimas nos olhos.Um lete desanguecorriapelabochechadameninaeGabeatocoulevementecomodedo.

—Vocêtámachucada—disseele.—Émelhoragentetelevarpraenfermeira.Ela fez que sim coma cabeça, ele a abraçou e a conduziupelo corredor.Allie

sentiudenovoacuriosaardênciadainveja.Comosetivessepercebido,Sylvaindeuumpassoemdireçãoaelaeexaminouseurosto,ajeitandoseucabeloparatrás.

—Vocêsemachucou?—perguntou.Apreocupaçãonosolhosdelefezcomqueseu coraçãobatessemaisdepressa.AgoraqueSylvainnão estavamais a segurando,sentiu um impulso quase irresistível de se jogar de novo em seus braços e sentiraquelecheiro.Cadapartedoseucorpoqueeletocaraformigava.

Allierespirou,trêmula.

—Sylvain,oqueeraaquilolá?—Nãosei.Algo no tom dele não soava verdadeiro e ela o olhou atentamente.Tinha a

sensaçãodequeestavaescondendoalgumacoisa.Algumacoisaimportante.—AgentetemquecontarpraIsabelleoqueaconteceu—anunciouAllie.Seus

olhosfaiscavamdedeterminação.—Achoquevocêtácerta—eledisse.—Masvamosesperaratéamanhã.Ela

deveestardormindo.Tátodomundobemagoraevocênãoquerparecerhistérica,né?

Aindaqueelaquisessediscordar,entendiaa lógica—a naldecontas,elesnãotinhamvistonada.Masdepoisdaadrenalinanojardimedacorreriadoresgate,elaqueriafazeralgumacoisa.Voltarláparaforaeprocurarpeloquequerquefosse.Ouao menos sentar e conversar sobre o ocorrido. Não ia conseguir dormir de jeitonenhum.

—NãoémelhornósvermoscomoestáaJo?—sugeriuesperançosa.—Elatáok.OGabeestácomela.—Sylvainsecaloueentãocontinuoucom

algumarelutância,comosesoubessequalseriaarespostadeAllie.—Olha,jápassoudotoquederecolher.Émelhorvocêirdeitareamanhãagentecuidadisso.

Allienãoconseguiaacreditarnoqueestavaouvindo.—Fala sério!Não,Sylvain!Euquero falardoque aconteceu.Sejahonesto:o

quevocêviulá?ArespostadeSylvainfoicuidadosamenteconstruída.—Eusintomuito,masnãovinada.Talvez tenhasidoalgumtipodeanimal.

Talvezvocêstenhamincomodadoumaraposaouumtexugo.—Quandoelaabriuabocaparaprotestar,elelevantouamãoparacontê-la.—Vocêtácansada,Allie.Eutambém.Émelhormesmovocêirdormir.

Alliequeria car acordada,masdiscutir se estavaounão cansadanãoparecia amelhordasrazõesparadesrespeitarotoquederecolherepegarumadetenção.

Relutantemente,concordou.—Tábom,então.Boanoite,Sylvain.Seu tomfoibrusco,masquandoela seviroupara irembora,eleapegoupelo

pulsoesegurousuavemente.—Comoassim?Sembeijodeboa-noite?—disse, comuma risadabaixa.—

Sem“obrigadapormesalvar,Sylvain”?Nem“vocêémeuherói,Sylvain”?Nuncasedeveirdormircomraiva,mabelleAllie.

Os olhos azuis dele giraram divertidamente e ele a puxou para perto,envolvendo-anoabraçoqueelatantoqueriaalgunsminutosatrás.

Inicialmente,porpurateimosia,elaresistiu,masquandoelesussurroubrincandoao seu ouvido, “émais legal se você ajudar”, ela se pegou rindo.O sotaque dele,afinal,eratotalmenteirresistíveleaquelesolhoseramincríveis.

Quandoeleabeijounabochecha,deixouoslábiospermaneceremaliumpouco.Arespiraçãodeleeragostosaebem-vindaemsuapele.Allieseapoiounele,torcendoparaqueaquilodurasse.

—Agora—sussurrou-lheaopédoouvido—,vaipracamasozinhaoueutearrastoatélá.

Allieseesforçouparamanteracalma,maspordentroestavaderretendo.—Tá,tábom—respondeu,virando-seantesqueelepudesseperceberoefeito

quetinhaprovocadonela.Maséclaroqueelesabia.—Bonssonhos—eledisseatrásdela,comumarisadasuave.Elacorreuescadaacimasemolharpratrás.

Namanhãseguinte,Allieestavadepéàsseissentindo-seestranhamenteenergizada,comoseaadrenalinadanoiteanterioraindacorresseporsuasveias.Paradadiantedoguarda-roupa, couimaginandooquevestirparaexecutartrabalhosbraçais,optandonalmente por uma calça esportiva, tênis e uma camiseta branca comobrasãoda

escolanopeito.Prendeuocabeloparatráse,pegandoobilhetededetenção,desceurapidamente.

Seu estômago roncava,mas ainda era cedo para o café damanhã. Arriscando,espiou a sala de refeições e viu que estava vazia, só que uma das mesas tinhasanduíches de bacon em uma travessa aquecida ao lado de um balde de pratacontendogelo,cheiodegarrafasdeágua.Entrounasalacomalgumahesitação.

Devemserparaagente,casocontrárioestariamaquiporquê?Pegandoumsanduícheeumagarrafa,olhouemvolta,paraoespaçovazio.—Obrigada—sussurrou,levantandoagarrafadeáguaemsaudação.Mastigouruidosamenteosanduícheenquantoatravessavaosaguãodeentradae

desciaosdegrausda frente.Oarmatutinoestava frioeocéu,nublado.Folhasdegramaesfregavamorvalhogeladoemseuscalcanhares.

Allieachouqueeraatébemagradávelestarsozinhaalifora.Maseunãoiriaquererfazerissotododia.Repassouna cabeça as experiênciasdanoite anterior e ensaioudescrevê-laspara

Isabelledeumjeitoquenãosoassehistéricoouemotivo.Nãoerafácil.Deixandoparatrása linhadasárvoresepenetrandonassombras,ela tremia—

estavamuitosgrausmaisfrioforadoalcancedosol.Ocaminhoerareto,passando

sobpinheirosedesviandodeespinheiros.Folhasvolumosasde samambaias faziamcócegas na batata de suas pernas delicadamente, mas ela mal percebia enquantocontinuavacomadissecaçãomentaldanoiteanterior.

Após cerca de dez minutos, a trilha alcançou um muro baixo de pedra, queseguiaporcercadequinzemetrosatéchegaraumportãoquelevavaaumpátiocomumgramado ligeiramente alto.Umacapela anciãdepedras se situavanocentro, ehavia um pequeno grupo de alunos aglomerados perto da porta, parecendoentediados.Alliesuspiroualiviadaaoperceberqueestavamvestidosmaisoumenoscomo ela. Não vendo ninguém que reconhecesse, cou na beirada do grupo,apoiando-senotronconodosodeumteixo.

Maltinhaseajeitadoquandoaportadacapelaseabriueumamulherapareceunaentrada.Casualmentevestidacomcalçasescurasdelinhoeumacamisabrancadebotão,oscabeloslongoseescurospresossemmuita rmeza.Tinhaumapranchetaemumadasmãos.

—Podemmeentregarasnotificações,porfavor?Na medida em que os alunos foram subindo, ela recebeu os papéis sem

comentários,masquandoAllieentregouodela,amoçaareteve.—VocêdeveseraAllie.—Soavacontentecomoseestivessemseconhecendo

tomando chá na sala de refeições.—A Isabelleme faloumuito de você. Eu souEloise Derleth, a bibliotecária. Você precisa passar lá pra dar um alô. A Isabelledeixoualgunslivrospravocênaminhamesa.

DeuumsorrisoluminosoparaAllieecontinuoureunindoorestantedospapéis.Quando tudo estava em ordem, levantou a voz para que todo o grupo pudesseescutá-la.

— Sei que todomundo está ansioso para saber qual vai ser a tarefa de hoje.Portanto,nãovoufazercomqueesperem.Porfavor,sigam-me.

Alguns alunos reviraram os olhos e riram ao irem atrás. Allie continuou nabeiradadogrupo,travadapelacautela.

Eloiseosguioudandoavoltanacapelaparaumbarracãonosfundosdopátiodaigreja.Eraum local adorável, com lápides envelhecidas se inclinandoembaralhadassobárvorescarregadasdefolhasemmeioaumagramaaltaemacia.Umvelhobancode jardim apodrecia lentamente contra a parede emumapiscinade luz solar.Umhomem com o uniforme de trabalho preto utilizado pelos funcionários da escolaesperavanosfundosdaconstrução.

—Hojevocêsvãolimparopátiodaigreja—explicouEloise.—Osr.Ellisonvaiprovidenciartudodequeprecisameatribuirtarefasparaamanhã.Boasorte!

Comumsorrisoalegre,caminhoubruscamentepelatrilhaeatravessouoportão.

AlliefoiparapertodogrupoquefaziafilaparareceberferramentasdoSr.Ellison.— Vou dividir vocês em equipes. — Ele tinha uma voz de barítono rica e

ressonante,eaoentregarasferramentas,Allie couimpressionadacomseutamanho.Devia ter dois metros de altura; os braços eram grossos e fortes; provavelmente,especulou, por ter passado a vida trabalhando ao ar livre. Sua pele era cor de caféexpresso,eeletinhaumjeitoincrivelmentetranquilizante.

—Essessãoosmeuspodadoresdeervasdaninhas—disse,gesticulandoparaumgrupodemeninosquejátinhaequipadocomferramentasbarulhentas.—Elesvãocortaraoredordaslápidesenquantoestegrupoaqui—apontouparadoismeninoseuma menina que empurravam cortadores de grama em várias direções — faz alimpezageral.

Allie era a última da la. Ao se aproximar, o sr. Ellison cumprimentou-aeducadamentecomacabeça.

—Vocêsdoisvãocuidardosancinhos.Dois?ElaseviroueviuCarteraoseulado,olhandoinocentementeparaojardineiro,

que entregava os ancinhos. Enquanto ela o encarava, atônita, Carter agradeceueducadamente,eentãoviroueseafastou,carregandoosdoisancinhosemumamão.

Elaseapressouatrásdele,saltandocautelosamentepelaslápidesetropeçandonosolodesigualenquantooruídofuriosodeferramentasdejardinagempreenchiaoar.

— O que você tá fazendo aqui?Tá indo pra onde? — perguntou, direta. Equando ele a ignorou: — Ei! Não era pra gente estar trabalhando em vez decorrendo?

CarternãopareceuincomodadocomaatitudedeAllie.—Eupegueidetenção.Porquevocêtáaqui?Equerfazerofavordeseacalmar?

A gente tem que esperar algunsminutos pros cortadores de grama darem algumacoisapragenterecolher.Portanto,estousaindodocaminho.

Ele não parou até chegar à árvore na frente da igreja. Apoiou os ancinhos notroncoeemseguida,pisandoemumaraizprotuberante,subiuemumgalhobaixoondesesentouconfortavelmentecomaspernasparabaixo.Estendendoamãoparaela,ergueuumasobrancelhaemtominterrogativo.

Após hesitar (e se imaginar respondendo “não, obrigada, estou bem em pé”),Allieaceitourelutantemente.NoqueCarterpegouamãodelae levantou-aparaoseulado,apareceualgoemseuolharqueAllienãoconseguiuinterpretareelasentiuacorlhesubirrapidamenteàsbochechas.

Alliedeslizousobreotronconodosoparaseafastardele,eemseguidasesentoucomumapernapenduradaeaoutradobrada,opéapoiadonogalho.Eleviroupara

encará-laesuascostas caramapoiadasnotronco.Girandoumgalhoentreosdedos,examinou-a curioso. Allie observou os cortadores fazendo a grama desaparecer engiunãonotaroolhardeCarter.Dalidecimaconseguiaescutaroruídodaágua

correndo.—Olha—disseCarter—,eutavaquerendofalarcomvocêsozinhaprapedir

desculpas.Ela olhou para ele, surpresa, com a sensação de que ele parecia estranhamente

desconfortável.—Tepasseiaideiaerradanaqueledianabiblioteca—continuou.—Euseique

vocêachouqueeutavadizendoumacoisaqueeunãotava.Achoquevocêtemtantodireitodeestaraquiquantoqualqueroutrapessoa.Ok?Porfavor,acreditanisso.

Apesar de fazer que sim, a expressão dela continuava reservada. Ele suspiroufrustrado.

—Tômesentindopéssimocomisso.Vocêdevemeacharumidiotacompleto.Elafezquesimdenovo,comumquasesorrisoirônico,eeleriu.Elatentounão

sorrirenãoconseguiu.—Sabia...Allie,euesperoquevocêacrediteemmim.Eunãoquisdizeroque

você achou que eu tava dizendo. De jeito nenhum. Detesto os metidinhos dessecolégio.Nãovouserumdeles.Agentepodecomeçaroutravez?

Algumacoisanelanãocon avanele.Mas,pensandobem,algumacoisanelanãoconfiavaemninguém.Edequeadiantavaarrastaresseassunto?

—Claro—respondeuafinal.—Ótimo.Agoranósestamosnocomeçooutravez.—Olhandoparaojardim,

ele disse:—Certo.Bem, isso foi rápido e fofo. Parece que eles estão chegando aalgumlugar.Émelhoragentecomeçar.

Elesaltoudaárvore,aterrissandosuavemente,evirouparaajudá-laadescer.Aodeslizarparaabeiradotronco, foialémdamãoesticadadameninaecomasduasmãosapegoupelacintura,levantando-adaárvorecomfacilidade.Ela cousurpresacomaforçadorapaz.

—Evamostrabalhar—falouele,virandoparapegarosancinhos.AssistindoaoritmogalopantedeCarter,elaoseguiuparaopátio.

As lápides pouco revelavam (Emma Littlejohn, amada esposa de FrederickLittlejohnemãedeFrancesLittlejohn—1803-1849—QueDeuslhedêdescanso),mas ela se descobriu incapaz de passar por qualquer uma sem ler e pensar em seuocupante,imaginandoseteriamtidovidasfelizeseoqueostrouxeraaestelugar.

Quarentaeseis.Nemeramuitovelha,pensou.Suaprópriamãejádeviaternomínimoestaidade.

Oscortadoresjáhaviamseadiantadobastantenagramalonga,eCarterentregoua Allie um ancinho e começou a varrer com habilidade as folhas e reuni-las emgrandesmontes.Elacomeçouavarrerdamelhormaneirapossível,sussurrandoumpedidodedesculpasparacadatúmulo.

Desculpaporincomodar,sra.Coxon(1784-1827).Ésóumminutinho.Masseumonteestavaumcaoseelaperdiametadedagramanocaminhoparaa

pilha.—Vocêémuitoboanisso—falouCarterdemaneirasarcástica.—Calaaboca!—disseela,rindo.—Dáumtempo.Nuncafizissoantes.—Nunca fezoquê?Varreu folhas?—perguntou,parecendoverdadeiramente

surpreso.—É,nuncavarrifolhas—confirmouAllie,dandodeombros.— Como nunca varreu folhas? Seus pais não te mandam fazer nada? —

exclamouemtomdereprovação.—EumoroemLondres,Carter.Agentenãotemjardim,tem,tipo,umpátio

comváriosvasosealgumas oresaoredor.Jálimpeieleváriasvezes,masnuncavarrifolhascomumancinho.

Eletrabalhouemsilêncioporalgunsminutoseemseguidabalançouacabeça.—Londresdevesercheiadegarotosquenunca zeramnadadessetipo.Issoé

tão estranho para mim. Não consigo me imaginar não trabalhando a céu aberto,sujandoasmãos.

Apoiadanoancinho,elaseadmiroucomaeficiênciacomqueeletrabalhava.—Deondevocêé?—perguntouAllie.Carterfezumgestodevarreduraindicandoaterraaoredor.—Vocêestávendo.—Comoassim?Vocêmoraaquiporperto?—Moroaqui.Minhacasaéaqui.Confusa,Allievarreuporalgunsinstanteseemseguidaparououtravez,tirando

umamechadecabelodosolhos.—Masondevocêmoravaantesdevirpracá?Ogarototambémparou.—Lugar nenhum. Foi aqui que eu cresci.Meus pais trabalhavam aqui, eram

funcionários.Eutenhobolsadeestudos.Nuncamoreiemnenhumoutrolugar.—Seuspaissãoprofessores?Aindatrabalhando,elerespondeusemlevantarosolhos.— Não. Meus pais eram funcionários — disse Carter, enfatizando eram e

funcionários.

—Entãoelesnão trabalhammaisaqui?—perguntouAllieaomoveragramacomoancinho.

—Não—negou, a voz soando fria.—Não deixam trabalhar aqui quem jámorreu.

Alliecongelou.Eletrabalhavafuriosamente;elaviaosmúsculossemovendosobacamisa.

Aquijazemosr.easra.West.Empaz.—Ai,meuDeus,Carter.Desculpa.Eunãosabia.Elecontinuouvarrendo.—Claroquenão.Comovocêiasaber?Deixapralá.Largandooancinho,aproximou-sedeleetocou-lheobraço.—Desculpa.Mesmo.Puxandoobraçoparalonge,eleaencarou.—Deixadisso.Evamosfalarsério?Eunãoquero caraquiodiainteiro,então

dáprameajudar?Magoada, ela pegou o ancinho e foi para algumas lápides adiante. Por vinte

minutos trabalharam em silêncio. As costas e os braços de Allie doíam, mas elaacumulouváriaspilhasrespeitáveisdefolhasegrama.OlhouváriasvezesparaCarter,maselenãoparouemnenhummomento.

Gradualmente, o ruído terrível dos equipamentos de jardinagem diminuiu e,após mais ou menos dez minutos, parou de vez quando o último aparador foidesligadoedevolvidoaosr.Ellison,queorganizavacuidadosamenteasferramentas.

—Achoqueacabamosaqui.Allie estava tão perdida no próprio trabalho que as palavras de Carter a

assustarameeladerrubouoancinho.Ao levantá-lonovamente, amechadecabeloescapuliuoutravez,eelaajogouparatrás,distraída.

—Vemcá—disse—,viradecostas.Allie o olhou incerta,mas após um instante de hesitação fez como ele pediu.

Atrásdela,Carterajeitouamecharebelde, xando-agentilmentecomoprendedor.Amenina couimóvel.Olevetoquedorapazemsuanucalhedeuarrepios.Apósalgunssegundosotoqueparou,maselenãodissenada.

QuandoAllie se virououtra vez, ele estava a caminhoda capela carregandoosdoisancinhos.Elacorreuatrásdele,tropeçandoemumtufodegrama.

—Aqui,Bob—disseCarter,entregandoosancinhosaosr.Ellison.—Obrigado.Seencrencououtravez,Carter?—Sempre.O sr. Ellison tinha uma risada grave da qual Allie gostou imediatamente. Ela

sorriuparaeleeenfiouasmãosnosbolsos.—Esperoqueagentetenhafeitoumtrabalhorazoável,sr.Ellison.Elesorriugentilmenteparaamenina.—Pareceótimo,srta.Sheridan.Obrigadopelaajuda.Enquantocaminhavampelatrilha,osr.Ellisongritouatrásdeles:—NãodeixaoCartertecolocaremmaisencrencas.Semesperarporela,Carterseguiupelopátioeemseguidacruzouoportão.Allieconsiderourapidamente sedevia tentaralcançá-lo,masacaboudesistindo.

Emvezdisso,caminhoucalmamentetorcendoparaqueeleseadiantassemuitoemrelaçãoaela.

Algunsminutosdepois,noentanto,aodobrarumacurva,eleestavaparadonocaminho, chutando uma pedra. Evitando seus olhos, ela passou rapidamente, semdizerumapalavra.

—Allie,espera!—chamou.Davaparaouvi-locorrendoparaalcançá-la,masagarotanãosevirou.Quandoelechegou,passouaandaraoladodela,decostasparapoderolharparaoseurosto.—Éoseguinte.Parecequeeumecomporteifeitoumbabacaoutravez.

—Semproblemas—elarespondeufriamente.—Pelomenosvocêsecomportasempredomesmojeito.

Surpreendeu-seaovê-lorir.—Ok,eumereço.Desculpaporeutertedadoumcoice.Ésóqueeusoumuito

sensível em relação a... algumas coisas. — Os olhos de Carter escureceram e elechutouumapedradocaminho.

AlliepensouemChristopherenoquantoelaprópriaerasensívelemrelaçãoaodesaparecimentodoirmão.

—Tudobem—falou.—Jápassou.—Temcerteza?—perguntouCarter.—Absoluta.Claramentesatisfeito,omeninovirouecaminhouaoladodela.—Entãovocêjáserecuperoudeontemànoite?—indagouCarter.Elaolhouparaele,surpresa.—Comovocêsabedeontemànoite?—NinguémtemsegredosnaCimmeria—respondeu.—Euouvidizerquea

Josemachucoucorrendonoescuro.Allie cou pensando quão honesta deveria ser. Queria conversar sobre aquilo

comalguém,mastemiaqueCarterfosseimplicar.—Foiassustador—admitiu.

—Oquevocêviu,exatamente?—Nada—respondeu.—Querdizer,tavaescurodemais.Agentesóouviu...Nãosabiacomoexplicar.—Ouviramoquê?—Osolhosescurosdorapazeramdifíceisdeserlidos.— Eu ouvi alguma coisa rosnar — reconheceu —, feito um cachorro. Mas

tambémouvipassos.Humanos.Oquevocêachaquepodetersido?Querdizer,aspessoasaquitêmcachorro?Tipoosprofessoresou...osfuncionários?

—Ninguémtemcachorro.—Foiarespostacurta.—Bom,alguémtemumcachorro—murmurou.—Oualguémrosna.Eleparoutãoderepentequeelaquasetropeçounele.—Sinceramente?—disseCarter.—Euachoqueeramalgunsdosmeninoste

provocando.Tentandoteassustar.Poralgummotivoelanãoestavaesperandoporisso.—Porquê?—questionou.—Quecoisaidiota.—Porqueelessãoinfantis—declarou.—Eentediados.Evocêénova.Fizeram

pordiversão.Aideiadeumaturminhademeninossedivertindoàscustasdeladefatosoava

plausível. E magoava, apesar de ela ter tentado não demonstrá-lo. Enquantocaminhavampelatrilha,elaolhavaparaochãoengolindoemseco.Masalgumacoisanaexplicaçãodelenãopareciaverdadeira.OqueaconteceucomaJo?Ela tambémestavalá.

Ao pensarmelhor, concluiu que só havia duas possibilidades.Ou o incidentetinhasidoumafarsaelaborada,daqualGabeeSylvainteriamparticipado,ouCarterestavamentindoparaela.

Allieolhouparaelediscretamente.Eleolhavaparaafrente.—Sabe,oGabeeoSylvain salvaramagente—disseela, emtomcasual.—

Elesestavamsabendo?OhumordeCarterescureceu.—Ah,eles salvaramvocês?Quecoisamaisheroica—debochou.Emseguida,

virou-separaencará-la.—OqueéquetárolandoentrevocêeoSylvain,aliás?Vocêchegouaquihápoucosdias,maspelojeitoelejáachaquevocêépropriedadedele.

Elanãoresistiuamorderaisca.— Isso é ridículo.Ninguém é propriedade de ninguém aqui.OSylvain só tá

sendobomcomigo.Elepareceumcaralegal.—Sylvain?Legal?—zombouCarter.—Duvidoseriamentedisso.Allieoencarou.— Quer saber? O Sylvain não foi nada além de legal comigo desde que eu

cheguei.Aocontráriodepraticamentetodomundo.Agarrando-apelobraço,elevirouameninaparaficarcaraacaracomela.—Só...tomacuidado,Allie.Ascoisasnãosãotãonacaraaquiquantoláfora.A expressão deCarter era intensa e ele parecia sincero,mas ela puxou o braço

furiosamente.Antesquepudesseresponder,escutouavozdesedadeSylvain.—Allie.Vocêtáaí.Tavaindoteprocurar.Ele surgiu das sombras, vindo da direção da escola. Carter lançou a Allie um

olhardeaviso,eelaoencarou.—Carter.Claro.Eudeviasaberquevocêestavadedetençãohoje.Vocêsempre

tá — falou Sylvain, em um tom leve e brincalhão, mas havia algo sério nasentrelinhas.

—Evocê,Sylvain,nuncaestá—disseCarter,comavozenvoltaemdesprezoaopassarporSylvaineseguirnadireçãodocolégio.

Compreocupaçãonosolhos,SylvainsevoltouparaAllie.—Aconteceualgumacoisa?Vocêparecechateada.—Nãofoinada—disfarçouAllie,enquantoCarterdesaparecianumacurva.—

Elesóéumpoucobabaca,nãoé?—Acho que essa é a de nição perfeita— concluiu Sylvain.Quando o rapaz

sorria,seusolhospareciamosdeumgato.—Então,comofoiadetenção?Horrível?—Não foi tão ruim assim. Só umabolha— esclareceuAllie. Ela estendeu a

mão direita, onde um inchaço branco havia se formado na palma, embaixo doanular.

—Quehorror!—exclamou.Sylvainergueuamãodelaatéoslábioseabeijousuavemente.Allietremeu.Arrepiosdenovo.—Eudecidiquevocênuncadevefazertrabalho manual — disse. — Não faz seu tipo. Você devia ter empregados teservindo,todavestidadeseda...

OabsurdodaideiafezAllierir.—É,elespodiammeserviruvasenquantoeucontoosmeusdiamantes...—Vocêtábrincando,maspodiaacontecer—disseSylvain.Eleaindaseguravaa

mão da menina e agora a puxava pelo caminho. — Infelizmente, esse não é umencontrosocial.EuvimatévocêporqueaIsabellepediu.Elaqueriatever.

Osmúsculos do estômago deAllie enrijeceram.Não cou realmente surpresaporadiretoraquererencontrá-la,considerandoquejátinharecebidodetenção.Mastorceumuitoparaquenãoestivesseseriamenteencrencada,sóparavariar.

—Ok—falou.—Achoqueissonãoénenhumasurpresa.Enquantocaminhavam,elasevirouparaolharparaele.—Sobreontemànoite...

—Ah,sim—eledisse.—Oataquebrutalnojardim.OtomdeSylvaineradeprovocação,masAllieestavafalandosério.—Quemera?Euescuteipassos,e,tipo,umcachorrooucoisaparecida.—AchoqueospassosquevocêouviuprovavelmenteforammeusedoGabe—

respondeu Sylvain.—E o que você achou que fosse um cachorro devia ser umaraposa.

—Umaraposaquerosna?—perguntouAllie,descrente.—Podiaestarpresaemalgumdosgalpõesenervosa—comentouSylvainedeu

deombros.—Nãoétãoraro.Allieestudouorostodelecomatenção.—OCarterdissequeachavaqueeramunsmeninosmezoando.Sylvainfranziuorosto.— Isso é ridículo. Eu ia saber se isso acontecesse. Acho bizarro ele dizer uma

coisadessas.Poralgummotivo,Alliesentiualíviodeouvi-loresponderassim.—É—disseela.—Foioqueeupenseitambém.Quandoatrilhachegouaogramadodaescola,umpensamentoocorreuaAllie.—Porquea Isabellemandouvocêmebuscaremvezdeumdosalunosmais

novos?—perguntou.—Ah,eutavanumareuniãodemonitoreseagentetavaconversando—disse

ele.—Nãoétãoraro.Elasabequenóssomos...amigos.Alliesevoltouparaele,surpresa.—Eunãosabiaquevocêeramonitor.—Não?—respondeuele,puxando-amaisparaperto.—Bom,agoraquevocê

jásabe,temquefazertudoqueeudisser.Porqueeusouochefe.Rindo,elasesoltoudele.—Ah,éassimquefunciona?Bom,vamosversevaiserassim.Elasaiucorrendonafrente,comSylvainlogoatrás,equandoeleaalcançouna

porta,elanãoconseguiuconterasrisadas.Masaoseesticarparaalcançaramaçaneta,aportaseabriueZelaznysaiu.

OsrisosdeAllieseevaporaram.—Srta.Sheridan—exclamou.Podiasersábado,masmesmoassimoprofessor

deHistóriaestavadeternoegravataesuavoztransbordavareprovação.—Ficofelizemverqueestálevandoamanhãdedetençãotãoasério.

Jáfuipresaporhomensmenosrabugentos,pensouAllie.Masantesquepudessefalar,Sylvainsepôsàfrentedela.—Éminhaculpa, sr.Zelazny.EuencontreiaAlliena trilhaeestava tentando

alegrar ela,queestavamuito tristedepoisdamanhãdifícilnadetenção.Por favor,nãojulgaaAlliepeloqueeufiz.

Zelaznypassouporeles.—Umadetençãoqueelamereceumuito—murmurou.— Claro — concordou Sylvain, conduzindo-a calmamente pelo saguão de

entradaenquantoelalutavaparanãoriralto.Quando estavam longe do alcance dos ouvidos dele, Allie caiu na gargalhada,

masSylvainamandousecalar.—Aquinão,mabelleAllie—sussurrou.—Eleescutabemdemais.Elacobriuabocacomasmãos,abafandoasprópriasrisadinhas.—Nãoqueroteverpresanadetençãoporumasemanainteira—disseSylvain.

—OAugustémuito...sensível.—August?—perguntou.—Osr.Zelazny.Éoprimeironomedele.—Ah.—E agora—disse ele—,preciso te abandonar.A Isabelle está esperandona

primeirasalaàdireita.Boasorte.Curvando-se,beijouamãodela.Allienãosabiaaocertocomoreagir.—Tchau!—disseela,excessivamenteanimada,antesdesairàspressaspelaala

vaziaesilenciosadassalasdeaula.AprimeiraportaàdireitaestavafechadaeAlliebateudeleve.—Podeentrar—respondeuimediatamenteavozcaracterísticadadiretora.Dentro da sala, Allie viu Isabelle sentada àmesa, cercada por pilhas de papel.

Haviaumlaptopabertoaoseulado,queIsabellefechouantesqueAlliepudesseveralgumacoisanatela,masameninaolhoudesejosaparaatampa.

Avidamodernaaindaexiste.—Porfavor,sente-seaí—sugeriuIsabelle,apontandoparaacadeirapróximaa

ela.—Medesculpe,estoufazendoacontabilidade,eissosempreenvolvepreencherumamontanhadepapéis,porissoeuescolhofazerissonumasaladeaula,quetemmaisespaço.

Retirandoosóculos,levantou-seeseesticouantesdesentaraoladodeAllie.—Comofoiadetençãohojedemanhã?— É, acho que foi tudo bem. — Allie deu de ombros. — Quer dizer, deu

trabalho,masfoitudobem.Isabellesorriugentilmenteparaela.—AchoqueoAugustfoimuitoseverocomvocê,eeudisseissopraele.Queria

quevocêsoubesse.Nãoquisdesautorizá-loretirandoapunição,masnãoacheique

foijusta.AspalavrasforamtãoinesperadasqueAllienãoconseguiupensaremnadapara

dizer—ninguémnuncalhepediradesculpasporalgumainjustiçaantes.Nemsabiaqueissoerapossível.

—Obrigada—disseamelhorcoisaqueconseguiupensar,masIsabellepôdeveremseurostooquantoaquilorepresentou.

—OAugustéconhecidopelaseveridade,deformaqueeunãoqueroquevocêsesintaperseguida—prosseguiu.—Elegarantequenenhumasemanasepassesemqueaomenosalgunsalunostrabalhemnosjardinsoubotemordemnassalasvelhasdodepósito.Maseujápediaelequedêmaistempopraquevocêseajusteantesdevoltarateincluirnarotadepunição.

IsabelleexaminavaAlliecomcuriosidade.—Eoincidenteontemànoite;agentetemqueconversarsobreisso.OSylvain

mecontouquealgumtipodeanimalselvagemteassustounojardim?—Bom,agentenãosabeoquefoi—a rmouAllie.—Veiopelojardime...

nosperseguiu,euacho.Agenteachaqueouviuumrosnadooualgoassim.Oquevocêachaquepodetersido?

—Sylvainsugeriuquepodiamserraposas.Defatotemmuitasporaqui—disseIsabelle.

Fazendoumacareta,Allieinclinouacabeçaparaolado.—TemraposasemLondres,maseununcaescuteielasrosnaremouperseguirem

alguém.—Bem,aquiéocampo—disseIsabelle.—Asraposassãomaisselvagensaqui,

asdeLondressãopraticamentedomesticadas.Umafêmeapodesermuitoprotetorados lhotes. Eu pedi aos funcionários do jardim que procurassem por qualqueroutro tipodeanimal,masnãoconsigopensar emmaisnadaquepudesse ter feitoisso.Ficofelizquevocêsestejambem.

Elapareciasincera,eAlliesesentiugratapornãotê-lafeitoparecerumaidiota.MasIsabelleagoraestavamudandodeassunto.

—Comovocêestá,deverdade?Está fazendoamigos?OSylvainmedissequevocêtemsesaídobemequevocêsdois caramamigos, cofelizemsaberdisso.Eleéumdosnossosmelhoresalunos.

Allie couvermelha.EraestranhopensarqueSylvain,quevivia ertandocomela,falaraaseurespeitocomadiretora.

—Tôbem—respondeu,seencolhendoumpouconacadeira.—FiqueiamigadoSylvain,daJo,econhecimaisalgumaspessoas.Todomundoémaisoumenoslegal,menos...

Elamordeuolábio,eIsabelleaolhouencorajadoramente.—Menosquem?Podemecontar.—Ah,sabe?—disseAllie,depoiscruzouedescruzouostornozelos.—AKatie

Gilmore?Elaémeionojentinha.Isabellesuspirou.—Vou ser sincera comvocê,Allie.Àsvezes euachoqueaKatie foiumadas

provas que eu nasci pra enfrentar. Ela foi mimada a vida inteira; temo não estarsendonadapro ssional te contando isso,masachoqueeupossocon aremvocê.Porcausadainfânciaqueteve,elatemdi culdadesdeinteraçãocomalunosquenãosão tão privilegiados quanto ela; foi protegida demais pela riqueza da família.Noentanto,elanãoéimuneapunições,independentementedequãopoderosossejamospais dela. Então, se for longe demais, conta pra Jules ou pra mim — orientouIsabelle.Elapoliuosóculoscomumpanolimpo.—Eunãomeimportariaemvê-latrabalharnojardimporumasemana.Sujarasmãosfariamuitobemaela.

Empolgadaporadiretoraestarsendotãosinceracomela,Allieriuaoimaginaracenaelogoseconteve.MasIsabelletambémestavaachandograçaeelaviuquenãohaviaproblema.

—Algumacoisaalémdisso?—questionouIsabelle,sériaoutravez.—Emsaladeaulaseurendimentoébom.Comcertezatemsesaídomuitobemnaminhaaula.Algumproblemaacadêmico?

Allie fezquenão.Eraverdadequeacargaerapesada,masmais interessantedoquenassuasduasúltimasescolas,eelaperceberaque,naverdade,estavagostando.

—Eavidafamiliar?—perguntouIsabelle.—Eunoteiquevocênãopediupraligarprosseuspaisdesdequechegou.Vocêquerligar?Eufalocomelescomomaiorprazer.

MaisumavezAlliefezquenão.Maisvigorosamentedestavez.—Não quero falar com eles agora— disse, evitando o olhar de Isabelle.—

Queroumtemposemeles.Quandoelalevantouoolhar,Isabelletinhaumaexpressãodifícildeinterpretar,

masalgumacoisadiziaaAlliequehaviacompreendido.—Claro—disse,acrescentando—,massemudardeideiaqualquerdia,ésóme

procurar.Aconversaagoratinhacomeçadoa cardelicadaparaAllie,queseinquietouna

cadeira,torcendoparaserliberadalogo.Nadaescapavaàatençãodadiretora,quese levantou,esticandoocorpo,como

quemespantaocansaço.—Bem,achoqueéhoradeeuteliberarpraalmoçareaproveitarorestodo m

desemana.Sem precisar de outro convite, Allie saltou e se dirigiu à porta,mas a voz de

Isabelleainterrompeuexatamentequandoestavaprestesaabri-la.—Porfavor,Allie—disse—,nãotenhamedodemeprocurarcomnenhum

problema,pormaioroumenorqueseja.Estouaquiprateajudarenãopraarrumarconfusão.Vocêestáseguracomigo.

AspalavraspareceramsinceraseAlliesorriutimidamente.—Podedeixar—falouantesdesairapressada.PôdesentirosolhosastutosdeIsabelleseguindo-apelocorredor.

—Ai,Deus.Porfavor, fazessatorturaacabar—implorouJo,en andoacaranolivrodebiologia.

Sentadaemfrenteàamigaàmesadabiblioteca,Alliejogouumacanetanela.— É — disse Gabe, fechando o próprio livro —, a gente precisa de um

intervalo.Aindatenhoalgumascoisasprafazer,masninguémdissequeeunãopossofazermaistarde.Ésábadodetardeeodiatálindo:quemquerirláprafora?

Semlevantaracabeçadolivro,Jolevantouobraço.—Eu—respondeu,avozabafadapelabiologia.—Allie?—perguntouele,empilhandooslivros.Elafezquenão.—Valeu,masjápasseitempodemaisláforahoje.Achoqueeuvouexploraro

prédiodaescola.AcabeçadeJolevantoueseucabeloseeriçou.—Oprédio é legal. Pede praEloise temostrar as salas de estudo.Elas são o

máximo.Ela parecia bem recuperada da noite anterior; os cortes na bochecha estavam

fechadoscomdoispontosdacordapele,enãohaviamaishematomasvisíveis.Allieaindanãotiverachancedeconversarcomelasobreoqueacontecera—estavaloucaparaquetivessemalgunsminutosasós,masGabequasenãosaíradepertodeJoodiatodo.AgoraeleestavaempilhandooslivrosdeJojuntocomosdele,eosdoisselevantavamparasair.

—Seeunãotevirmais,teencontronojantar?—Allieperguntou,esperançosa.—Fechado—respondeuJo,sorrindo.Quando os dois saíram, Allie se espreguiçou e olhou em volta. A sala estava

basicamentedeserta.ElafoiemdireçãoàmesadeEloise.Atrásdabancadaaltademadeirapolida,ela

preenchiaumafichaantiquadadebiblioteca.

—Hmm...oi?—perguntouAllie,hesitante.— Ah, Allie. Que ótimo ver você de novo — disse Eloise, ajeitando-se. —

Comovaivocê?Ocabelopretodabibliotecáriaestavapresoparatrásnumestilodespojado,com

mechasescapando;óculosdearmaçãoroxaempoleiravam-senapontadonarizfino.— Bem, obrigada. Eu estou estudando ali — informou Allie, apontando na

direçãodasuamesa—eresolvidarumoi.—Veioatrásdoslivrosdequeeutefalei?—Eloiserepousoua cha.—Separei

elespravocê.Elaesticouobraçoparabaixodabancadaepuxouumapilhadelivroscomum

cartãoemcimaquedizia“ParaAllie”.—Achoquesãoleiturasextrasprasuaauladeinglês—explicouEloise.Alliejátinhaseesquecidodoslivrosqueabibliotecáriamencionarademanhã,e,

honestamente,achavaquejátinhaosuficienteparaler.Aindaassim...—Ah,ótimo—falouela,educadamente,colocandooslivrosnabolsa.—Mas,

naverdade,euiasóexploraroprédioeaJodissequeporaquitinhaumassalaslegaisdeestudo,algoassim.

Eloisepareceuconfusaporuminstante,maslogosorriu.—Você deve estar falando dos cubículos lá no fundo. São ótimos.Deixa eu

buscaraschaves.Elaretirouumchaveirodeumganchoatrásdobalcão.Alliea seguiupeloque

pareciam centenas de anos de tapetes orientais e por leiras intermináveis deprateleiras.

—Esselugaréimenso—observou,olhandoparaoteto.— Agradeça por não ter que limpá-lo — respondeu a bibliotecária, em tom

semicantado.—Aliás,sevocêreceberdetençãodenovo,podeteressachance.Allienãopôdedeixarderir.—Porfavor,não.— Não se preocupe — tranquilizou Eloise com um sorriso. — Se for

comportada,nuncavaiacontecer.Elas zeram uma curva e a salamudou ligeiramente.Haviamenos prateleiras

nestaparteemaismesasecadeirasdecouro.—Essa área é reservada para alunos avançados— explicou Eloise, escolhendo

umachavedomolho.—Vamoslá.—Asparedestinhampainéisdemadeiraescura,esculpidos elaboradamente. Eloise inseriu a chave numa fechadura tão habilmenteescondida namadeira que Allie sequer a viu, e uma porta até então virtualmente

invisívelseabriuemsilêncio.—Uau—disseAllie.—Umaportasecreta.—Uaumesmo.—Eloiseolhouparaelaporcimadosóculos.—Essassalasde

estudo camnapartemais antigadaestrutura.Não sabemosqual eraopropósitooriginaldelas.Mas,bem,dáumaolhada.

Ela apertou um interruptor e recuou. Allie entrou em uma sala iluminada demaisoumenos2,5metrosdelargurae1,80metrodecomprimento.Nointeriordoespaço sem janelas havia umamesa comum abajur, uma cadeira de couro e umapequenaestantedelivros.Dominandooespaçohaviaummuralelaboradocobrindoasparedes.Indoatéocentrodasala,Alliedeuumgiroparaassimilartudo.Apinturapareciacontarumahistória:homensemulheresarmadosatéosdentes,lutandoemumcampo,observadosporquerubinsenfurecidossobumcéutempestuoso.

Acenaerafria,pensouAllie.—Comoéquealguémestudaaqui?—indagou.—Eupassariaotempotodo

desviandoprameproteger.— Não parece incomodar ninguém. — Eloise olhou para as espadas

empunhadas,seusolhosilegíveis.—Masnãopossodizerqueeudiscordedevocê.Saiudasala.Apósumaúltimaolhadaemvolta,Allieaseguiu,eEloisetrancoua

porta.—Sãotodasassim?Abibliotecáriaassentiu.—Sãomuitoparecidas.Aspinturasdecadasalacontamumapartediferenteda

mesmahistória.Esteéoretratodabatalhaprincipal.Pareceseraúltimadasérie.Ela foiatéo naldaparedeedestrancououtraportaoculta.Acendendoa luz,

assinalou paraAllie segui-la e entraramna pequena câmara de estudo. As pinturasdestaretratavamasmesmaspessoas,oshomensusandochapéusevestesformais,easmulheres com vestidos longos e trabalhados. Pareciam conversar em um círculo,diantedoquepareciaumaversãomenordoprédioemqueelaestavaagora.

—Nósacreditamosqueestesejaoprimeirodasérie—relatouEloise.—ÉaCimmeria?—perguntouAllie.—Antesdaexpansão—disseEloise.—Apinturaédaquelaépoca, iníciodo

séculoXVIII.—Ésobreoquê?—perguntouAllie.—Umaespéciedeguerra?Eloiseestavaestudandoumdosrostos.— Ninguém mais sabe. A história da escola conta que a casa foi construída

originalmente por uma única família. Alguma espécie de desentendimento osdividiu, e eles essencialmente entraram em guerra entre si.O lado vencedor cou

com a escola.Mas nãohá registro de nada disso nos nossos arquivos, e te digo oseguinte:sehouvesseeusaberia.Souahistoriadoradaescola.

Quandosaíramdasala,Allieestavaperdidanosprópriospensamentos.—Estranho—observou.—Querdizer,comoumacoisatãoimportantepode

simplesmenteseperder?—Coisasseperdem—respondeuEloise.—Principalmenteseninguémquiser

lembrar.—Nãoqueroestudarnessassalasdejeitonenhum—declarouAllie,firme.—Porsortevocêaindatemumanoantesdesetornaravançadaosu cientepra

sentaraqui—comentouEloise, sorrindo luminosamenteparaAllie.—Entãoporenquantoestásegura.

J

SETE

áforadabiblioteca,caminhandopelocorredorrumoàaladassalasdeaula,Allie aindapensavanaspinturas esquisitasque acabarade ver. Semaulas, assalas estavam vazias e silenciosas, notou ela ao subir preguiçosamente a

escadariaepassarpelassalasfamiliaresdoprimeiroandar,rumoaosegundo.Alisóaconteciam aulas avançadas e ela esperava que houvesse um ar de mistério, masdecepcionou-seaoverqueeraigualzinhoaosandaresdebaixo—umcorredoramplocomumpisopolidodemadeiraesalasemambososlados.Comasluzesapagadas,estavacompletamenteiluminadopelaluzdodia,queentravapelasjanelasdassalas.

Ossapatosdesoladeborrachatornavamseuspassosquasesilenciososenquantoelaespiavaasportasabertasdesalasvazias,ondeescrivaninhasaguardavamem leiraspacientesefantasmagóricas.

Nãosoubedizeraocertoquandoouviuasvozes.Talveznametadedocorredor.O murmúrio era baixo e só lhe chamou a atenção quando aumentou por uminstante.

Elaparoudeandar.Alguém gritou e ouviu-se um ruído de batida, seguido por uma onda

preocupadadevozesquepareciamtentaracalmarascoisas.Alliesepreparavaparavoltarquandoumaportano naldocorredorseabriue

umafigurasaiudassombras.Instintivamente,elaseesgueirouparatrásdaportamaispróximaeseescondeu,

escutando. Inicialmente não conseguiu ouvir nada além do som da própriarespiração,mas,passadouminstante,escutouoruídofracodepassosvindoemsuadireção.Contouasrespirações.

...dez,onze,doze...Ospassospararam.Elaparouderespirar.—Allie?—sussurrouCarter,comavozáspera.—Quediabos?Orapaz esticouamãoe agarrouobraçodeAllie,puxando-abruscamente em

direçãoàescada.Ela cousurpresademaisparaprotestarefoitropeçandoaoladode

Carter.Elealevouparaoprimeiroandar,ondevirouagarotaparaencará-la.— O que você tava fazendo no segundo andar? — perguntou, seus dedos

estavamenterradosnobraçodela.— Explorando — respondeu ela, tentando se libertar.Tentou parecer calma,

massabiaquesoavanadefensiva.—Explorandooquê?Assalasdeaula?Fingindoindiferença,eladeudeombros.—É.Tipoisso.Nãoéproibidonemnada,é?—Allie,poracasovocêleuasinformaçõesquetederamquandovocêcomeçou

aqui?Achaqueasregrassãoopcionaispravocê?—indagou.AvozdeletransbordavasarcasmoeagoraAlliesentiaumaraivacrescentenabocadoestômago.

Qualéoproblemadetodomundonessaporcariadeescola?—Liosu cienteprasaberqueeramchatas—rebateu,irritada.—Agoraquer

parardeserpsicopataemedeixarir?—O segundoandar é sópra alunos avançados epraEscolaNoturna—disse

Carter, como se estivesse falando com uma criança. — Você pode arranjar umproblemasériosetepegarem.Nãopodeirlánunca.

Elaconseguiusesoltardamãodele.—Infernodocacete—disse,esfregandooombro.—Queexagero.Pareceaté

queeumateialguém.AexpressãodeCarterpermaneceuinalterada.— Sério, Sheridan. Tô começando a achar que você gosta de se meter em

encrenca.Elavirou-sedecostasparaeleedesceufuriosamenteasescadas,disparandopor

sobreoombro:—Bom,peloqueeuouçoaseurespeito,West,olhaquemfala.Elenãorespondeu.

Allieesperoudoladodeforadasaladerefeiçõesnaquelanoite,inquietaaoobservaros alunos entrando.Katie passou por ela, etereamente radiante. Ela sussurrou algoparaogrupodepuxa-sacosque sempreacercava,e todas riram.AllieviuJulesnomeiodogrupo,semsorrir.

Semconseguirseconter,Allierevirouosolhoseesticoualínguaparaeles,masissosófezcomquerissemmaisalto.

—Queidiota—ouviuKatiedizer,eficouvermelha.Poucosminutos depois, Jo eGabe apareceram, estrelas cintilantes emmeio a

umaconstelaçãodeamigos.Joestavarindodealgumapiadaquenãohaviadadopara

ouvir.Allieesperouquereparassemnela,tentandonãoseimportarseatinhamvistoounão.Mas,segundosdepois,Jolevantouoolharelançou-lheumamplosorriso.Elaavançoupelocorredoreapegoupelamão,arrastando-aparaogrupo.

—Allie!Vocêtáaí.Vemcomigo.Vocêprecisaconhecertodomundo.Àmesa,AlliesesentouàesquerdadeJo,eGabeassumiuolugaràdireita.Em

meioaobarulhoestridentedaconversapré-jantar,Joelevouavozosu cienteparaserouvida.

—Galera,essaéaAllie.Allie,essaéagalera.—Qualé,Jo,sejamaisespecí ca.—Omeninoqueainterrompeueramaisou

menosda idadedeGabe, e estava sentado em frente aAllie. Seu cabelo castanho-clarobrilhanteeralongoosu cienteparacairdeformaatraentesobreoolhodireito.Elesorriuflertando.

—Eunãosouagalera.SouoLucas.Osoutros vaiaram fazendograça,maso sorrisodele era contagiante, e elanão

podedeixarderetribuir.Umporum,osoutrosàmesadisseramseusnomes,rindo.Haviaumamenina

magra chamada Lisa, de cabelo longo, liso e claro, e sorriso hesitante. Ruth eraatléticaeséria,comcabelolouro-escurodesgrenhado,naalturadosombros.EstavasentadaaoladodePhil,quepareciadescoladocomseucabelopretomuitocurtoeóculosdamoda.AllieteveaimpressãodequeRuthePhilsegostavam.

Noinício,houveumzum-zum-zumanimado(“agentetemouvidofalarmuitodevocê...”,“oquevocêtáachandodaCimmeria?”,“OZelaznynãoéum...”,“Shhh!Cuidado, ele tá bem ali...”, “Tá gostando daqui?”) antes de todos mudarem deassunto.

Distraídapeloseventosdodia,Alliebrincoudesinteressadacomacomida,quenestanoitenãoestavamuitoboa.Davaparadistinguirlevementeoruídodechuvabatendo contra as janelas. A tarde toda tinha sido cinza, e agora estava chovendoforte. Estava tão profundamente imersa numa complexa rede dos própriospensamentosquepartesdaconversapassaramporelacomodestroços.

—Vintepáginasatéterça!—Osorrisomaislindo...—Quecarneéessa,aliás?—Carnemisteriosa.Risadas.—Ouviumprofessordizendoquevaichovernospróximostrêsdias.Umcoroderesmungos.Allielevantouosolhos.

—Étãochatoaquiquandochove—Joexplicou.—Asalacomumvaiestarlotada.Émelhoragentechegarlácedo.

Assimqueterminaram,saíramapressadospelocorredor.Joseapoderoudeumsofánomeiodasala,tirandoossapatosesentandoemcimadospés.Allieafundounumapoltronadecouronafrentedela.EstavamseajeitandoquandoGabechegou.

Ele,assimcomoAllie,pareciadistraídonaquelanoite.—Nãoposso car—disse,olhandoparaJocomoquempededesculpas.—É

essadrogadeprojeto.Eleabeijou,sussurroualgonoouvidodelaqueafezsorriresaiuapressado.Finalmente,pelaprimeiravezdesdeanoiteanterior,AllieeJoestavamasós.—Oqueagentefazagora?—perguntouJo.—QuerjogarMaster?—Agoranão—respondeuamenina.Alliechegouparaafrentenacadeiraese

inclinou emdireção a Jo, reduzindo a voz a um sussurro.— Jo, o que foi aquiloontem?OqueoGabeacha?

—Bom,tinhaalgumtipoderaposamalucaoualgoassim...nãosei—disseJo.—Foitudotãorápido.

Desapontada,Allieseinclinouparatrásoutravez.—FoioqueoSylvaindisse,masnãomepareceuumaraposa.—Pareceuoquê?—perguntouJo.Alliebalançouacabeça.—Nãosei.Algumacoisacomdentes.—Umurso?—Josugeriu,atrevida.—Umdragão?Umwookie?—Jo,sério!—Allieestavafrustrada.—Oqueaconteceuontemànoitefoireal.

OGabeeoSylvainlevaramasério.Nãopareceramacharquenósestávamossendobobas.Eles caram...bom,nãoassustados,mastipo,muitonervosos.Agoratenhoaimpressãodequetodomundoquerfazerparecerquenósestávamoshistéricas.Oucomosetivessesidoumagrandepiada.Maseuachoquetinhaalgumacoisalá.

Jofezumgestotranquilizantecomasmãos.—Olha,Allie,comcertezaaconteceualgumacoisa,mastavaescuro,eachoque

ninguémsabesefoiperigosoounão,masnãoacharamnada.—Sorriu.—Possotedizer que foi bem incomum. Não é como se nós sempre fôssemos atacados porcoisasselvagensquerosnam.Nãoseassustatanto.

Allienãoseconvenceu,masnãoqueriaparecerobcecada,entãofezquesimcomacabeçarelutantemente.

—Vocêtemrazão.Tenhocertezaquesim.—Certo,então.Voltandoaoquenósvamosfazerhoje—disseJo.—Senão

forMaster...gamão?Outracoisa?BancoImobiliário?Jogodavelha?

Allie tentou ngir interesse em jogos de tabuleiro para agradar Jo, mas, namelhordashipóteses,osachavachatos.

—Jájogouxadrez?—perguntouJo,afinal.AexpressãodeAlliedevetê-ladenunciado,poisorostodeJoassumiuumfoco

determinado.—Sério?Issoéumescândalo.Bom,voucuidardissoagoramesmo.Saltandodosofá,ajoelhou-sediantedamesanafrentedelasepuxouumestojo

demadeiradotamanhodeumacaixadesapatos.Dedentrodelacomeçouaretirarpeçasacetinadas.Ajeitandoaspretasnoseulado,entregouaAllieocavalobranco.

Allieoergueueemitiuumsomderelincho.Jolhelançouumolharminguante.—Pônei—Alliedissefracamente.—Sério,Allie.Entãovocêodeiajogosdetabuleiro.Tábom.Xadreznãoéum

jogo de tabuleiro. Xadrez na verdade só é mais ou menos um jogo, porque naverdadeéguerra.

QuandoAlliefezumacareta,Joacrescentoufirmemente:—Portanto, xadrez é emocionante— a rmou, apontando em seguida para a

peça queAllie ainda estava segurando.— Isso não é umpônei. É um cavalo quemata.—Indicandoumquadrado,falou:—Põeaqui.

Tentandoparecerséria,AlliecolocouocavaloondeJomandou,mas,lançandoumolharderebeldiaparaaamiga,murmuroubaixinho:

—Cavalinhobonzinho.Joaignorouepegouumpeão.—Estessãoosseussoldados.Sãoosquetêmmenosliberdadeemenospoder,

mascomosedispõemasesacrificarpelosmaispoderosos,vocênãoganhasemeles.Repousou a pecinhade cabeça redonda e retirouumapeça como formatode

umatorredecastelo.—Esta é a sua torre, a fortalezado rei.É aúnicapeçado tabuleiroquepode

assumirlegalmenteolugardoreiaqualquermomento.Opapeldelaéconfundiroinimigo.Olugardelaéaqui.

Ajeitando-a,pegoumaisduaspeças.Namãodireitatinhaumapeçavagamenteparecidacomumminarete.

—Obispo.Habilidosoeperigoso.Temmuitopoder.Eupensonelecomoumgigolôda rainha.—Agora acenou a peça alta e régia namão esquerda.—O rei.Quase sempremais fracodoque vocêpensa, todas aspeçasprotegemele,mas elequasenuncaajudamaisninguém,porque,seajudar,podemorrer.

Allieapoiouoqueixonamão.—IssopareceShakespeare,sóqueémaisidiota.

Jopegouumapeçabrancaesguiaecoroada,eaentregouaAllie.—Arainha.Éumaescrota.Massequiserganhar,vocêtemqueseentendercom

ela.—Ótimo—disseAllie.—Eoqueacontecedepois?Aquehoraseucomeçoa

tedarumasurra?Joentregouaspeçasbrancas.—Sevocêtreinare trabalharduro?Talveznoseu27 o aniversário. Jogoxadrez

desde os cinco anos de idade.Ajeita as suas, igual z com asminhas, e aí eu vouganhardevocêpelaprimeiravez.

AllieorganizouaspeçasespelhandoasdeJo.—Então,mefalaumpoucodosseusamigos—disse,pegandoarainha.—A

LisaeoLucasparecemlegais,maseunãoseidaRuthedoPhil...Joassentiu.—Acho que você vai gostarmuito da Lisa, ela foiminha primeira amiga na

Cimmeria.ARuthélegal,masémeio,nãosei,intensa,euacho.Entãoprecisaestarcom humor pra lidar com ela. O Phil é tranquilo, conta umas piadas péssimasquandosesolta.Maséumpoucotímidocompessoasnovas.

Naqueleinstante,Ruthentroucorrendonasala,arfando,asroupasensopadaseocabelopingando.

—Jo.Paroudiantedelas,comasmãossegurandoaslateraisdocorpo,comosetivesse

corridomuitorápido.Tinhaumapoçad’águanospés.Alliecongelou,aindasegurandoarainha.Jopareciaterperdidoafala,masRuth

nãoesperouqueperguntassenada.—ÉoGabe.

J

OITO

oselevantouemumpulo,espalhandopeçasdexadrezpelochão.—Oque...?—pareciaconfusa,assustada.—Elesemachucou.OPhiltambém.Deuerrado.

AllieselevantouefoiparaoladodeJo.—Oqueaconteceu?Cadêeles?Ruthaestudoucomoolhar;AllieteveaimpressãodeverJofazerumsinalde

positivocomacabeça.—Nocaramanchão—respondeuRuth.—Vamos— chamouAllie, pegando Jo pelamão e puxando-a em direção à

portadasalacomum.Ruthnãofoiatrás.Asduascruzaramcorrendoosaguãodeentrada,deslizaramatépararemnochão

depedraeabriramapesadaportademadeira.Láforaachuvacaíapesada.Alliesaiusemhesitar,masnopédaescadaparouesevirouparaJo.

— Pra que lado? — gritou para ser ouvida sob o barulho da tempestade,enquantoumtrovãorugiasobreelas.

Jo apontoupara alémda ala oeste.Correram em frente à entrada, depois pelagramamolhadaemdireçãoàmata.Alliepodiaouviraprópria respiraçãoapitandonosouvidos,oruídodachuva...emaisnada.

Algunsminutossepassarame,porentreasárvores,elaviuumelaboradogazebovitoriano. Estava vazio. Subiram as escadas e olharam em volta, arfando. Allie securvoucomasmãosnosjoelhos,tentandorecuperarofôlego.

Joapontouparaobosque.—Ali.Allieolhouparaaescuridãochuvosa,masnãoenxergouninguém.Entãoouviuumgritoquepareceuvirdelonge,domeiodomato.Allieolhou

para Jo para ver se ela tambémouvira.A amiga olhava xamente para as árvores,comoslábiosligeiramenteabertosenquantoescutava.

—Vocêtambémouviuisso?—sussurrouAllie.Jocon rmoucomumacenodecabeça,comosolhosaindafixosnafloresta.

—ÉoGabe—sussurroudevolta.Ficaramimóveis,olhando.Maisgritos,masnãoenxergavamnada.Então,após

alguns minutos, vultos entraram em foco, saindo do meio das árvores. AlliereconheceuCartereGabe.Pareciamestarsegurandoalguém.Elanãoconseguiuverquemera.

—MeuDeus.—Jocontinuavasussurrando.Elasselevantaram.Enquantoosmeninos subiamosdegraus até omirante,Allie viuque estavam

feridos.Carter tinhaumcortena testaque sangravamuito.Gabe tinha sanguenasmãosenacamisa.EleolhoufixamenteparaAllie.

—Quediabosvocêstãofazendoaqui?CartervirouparaGabe.—Agoranão,cara.Agentejátemproblemasosuficiente.Delicadamente, eles deitaram a pessoa que estavam carregando. Allie não o

reconheceu,masJosuspirou.—Phil.Ah,não.Gabeolhouparaela,comosolhospreocupados.—Achoqueelevaificarbem.OSylvainfoibuscarajuda.Allie puxou o braço de Gabe, virando-o e revelando um corte no pulso que

sangravaabertamente.—Gabe—arfouJo,empalidecendo.Quediabosestáacontecendo?,Alliepensou,olhandoparaacenadecatástrofeque

sedesenrolavaàsuafrente.Eporquemaisninguémestáperguntandoisso?Ajoelhado ao lado de Phil, Carter arrancou uma tira damanga da camisa e a

amarrou rmemente em torno da perna do menino inconsciente. Em seguidaarrancoumaisumaeaentregouaJo.

—AmarraissoemvoltadopulsodoGabe.Masagarotapareciaincapazdesemover.Segurouotecidobrancocomosenão

soubesseexatamentedoquesetratava.AoperceberomedodeJo,Allieseapresentou.—Deixacomigo.QuandoAllietentoualcançarotecido,Joodeixoucairdamão.Comaataduraartesanalesvoaçando,AlliesevoltouparaGabe.—Esticaamão.GabelevantouobraçoeAllieenrolouatirahabilidosamentenopulsoenamão,

tecendoumaatadurafirme,depoisprendendoapontaparaoajusteficarconfortável.—Mantém amão em cimado coração até o sangramentoparar—disse ela,

automaticamente.

VirandoparaPhil,ameninapercebeuqueCarteraobservava.—Vocêtambémtásangrando—alertouAllie.—Eutôbem.—Dápraver.Alguémdeviaolharessecorte.Ouvindopassosapressadospelagrama,Allielevantouosolhoseviuumgrupo

depessoascorrendoemdireçãoaeles.Aoseaproximarem,notouqueSylvainvinhaàfrente,comZelaznyeJerrylogoatrás.ZelaznyolhouirritadoparaAllie.

—Oqueelaestáfazendoaqui?—perguntouZelazny,emtomacusador.OsolhosdeSylvainencontraramosdeAllieporumsegundoelogoelevoltoua

atençãoparaZelazny.Suavozeratranquilizante.—Maistardeagentedescobre;primeirotemosquecuidardisso.—Qualagravidade?—perguntouJerry,verificandootorniquete.Carterpareciapreocupado.—Nãoestánadabem.Eleprecisadeummédico.Estásangrandomuito.—Evocê?—perguntouJerry.SanguepingavadorostodeCarterparaacamisabrancaensopada,maselenão

levantouoolhar.—Vouficarbem.Sóprecisodealgunspontos.—Tudo bem, você e oGabe podem buscar a enfermeira. Sylvain,me ajuda

comoPhil.Oresto,voltapradentro.Agora.Otomfoifirmeenaúltimapalavratodossemoveramdeumavez.EleeSylvain

carregaramPhil,apoiandoosbraçosdorapaznosrespectivosombroseZelaznyfoiapressado, à frentedeles.Como se tivesse sido sacudida atédespertar, Jo voltou-separaGabeeoabraçou.

AlliefoiatéCarterepôsobraçoemvoltadasuacintura,maselerecusou.—Eutôbem—insistiuele,grosseiramente.Ruborizando,Allieseafastou.—Seéassimquevocêficaquandotábem,nãoqueronemtevermal.Eleriucomdeboche,mascaminhouaoladodela,aumbraçodedistância.—Quediabofoiaquilo,Carter?—perguntouela,assimqueestavamforado

alcance auditivo dos outros.—Por que todomundo virouninja de repente? Foiesquisito.

—Nãofoinada—respondeu.—Umacidente.Acontece.—Acontece?—perguntouela,comavozincrédula.—Umacidentenomato

debaixodetemporal,metadedosalunossaisangrandoatéamorte...acontece?Oolharsombrioqueeledirigiuaelapareceuaindamaisassassinocomosangue

escorrendopeloseurosto.

—Alguémjátedissequevocêémuitoexagerada?—perguntou.—Não—respondeuAllie.—Alguémjátedissequevocêémuitobabaca?Depoisdisso,nãosefalarammais.Enquantoachuvadesabava,elaolhoude ladoparaele,porbaixodecílios tão

cobertos de gotas de chuva que era como enxergar através de uma cachoeira. Eleestavaolhandodiretoparaafrente,comamandíbularija.

Quando chegaram aos degraus da escola, Isabelle estava no alto trajando umacapadechuvabrancaelonga.Achuvaemitiaumruídoplásticoaobaternocapuz.

—Carter.Allie.Vocêsestãobem?Carter,vocêparecepéssimo.—Eutôbem—insistiuCarter.—Sóprecisodealgunspontos.IsabelleoexaminouminuciosamenteeentãosevoltouparaAllie.—Evocê?Semachucou?Alliebalançouacabeça,fazendopingaráguaemcimadoseunariz.—Ótimo.Carter,vaipraenfermaria.Allie,podevircomigo,porfavor?Semesperarporumaresposta,elavoltouparadentroenergicamente.EnquantoAllieseviravaparasegui-la,Carteraagarroupelocotovelo.Elaachou

queelepareciaumavítimadefilmedeterror.—Vemmeencontrarantesdotoquederecolher—eledisse.—Euvouestar

no salão.—Eentão correuparadentroda escola,deixandoumrastrode água aopassar.

Franzindoorosto,Allieoseguiucomosolhospelocorredor.—Atéparece—murmurou,antesdeapressaropassoatrásdeIsabelle.Passarampelasalacomumeentãoporumaportatãoescondidanamadeiraque

Allienãoahavianotadoantes.Ládentrohaviaumescritórioespaçososemjanelas,comlareira.Acornijaesculpidasustentavavelasqueestavamapagadas.Umaparedeera inteiramentecobertapor tapeçaria—umcavaleiroempunhandoumaespadaeumadonzelapertodeumcavalobranco.Isabelle lheentregouumatoalhabrancaemacia, e Allie esfregou a água dos cabelos, em seguida enrolou-a nos ombros,tremendo.Agoraqueestavadentrodacasasentiafrio.

—Senta,por favor—pediuIsabelle,gesticulandoparaduascadeirasdecourodiantedamesa.Sentou-senabeiradamesa,observando-a.Alliepercebeuotimbregravedamúsicaclássicaemitidaporalto-falantesescondidos.—Temcertezadequevocêestábem?—perguntou.QuandoAlliecon rmoucomumgestodecabeça,adiretora prosseguiu.—Ótimo. Só quero conversar com você umminuto e aí teliberopravestirumaroupaseca.Issonãovaidarqualquerproblemapravocê,maseuprecisosaberoqueaconteceuhojeànoite.

Allieolhouparaela,confusa.

—Eunão...?—Querodizer,oquevocêeaJoestavamfazendonocaramanchão?Mecontao

queaconteceudesdeocomeço.Allieenrolouatoalhacommais rmezanosombrosepensourápido.Iriaaquilo

darproblemasparaalguém?Memetiemconfusão?—Agentesótava...procurandooGabe—respondeu,cautelosa.—AJoqueria

fazer uma surpresa se aproximando sem ele perceber, mas a gente não conseguiuencontrar.Aínós fomosatéo caramanchãopra sairda chuva e vimososmeninossaindodobosque.

Sentiadesconfortoemmentirpara Isabelle,mas todaa situaçãoparecia errada.Quando Ruth veio chamá-las, parecia assustada. Estava branca como papel. OinstintodeAllieamandaradarcoberturaaRuth,apesardenãoconhecê-latãobem.

ARuthnãotinhaquenoscontarnada.Isabelleaobservoudeperto.—Edepoisdisso,oqueaconteceu?—Agentepercebeunahoraquetinhaalgumacoisaerrada,masninguémdisseo

quehouve—contou.Aúltimapartepareciaqueixosa,mas sinceramente,porquetodomundoestavatãomisterioso?

—Sóisso?—perguntouadiretora,semdarqualquerindíciodequenãotinhaacreditado,eentãoAllieresolveuqueerahoradeelamesmafazeralgumasperguntas.

— Você sabe o que aconteceu? — perguntou. — O Carter se recusou a mecontar,etodomundotáagindocomoseeutivessefeitoalgumacoisamuitoerrada.

Isabelleseinclinouparaafrente.— Sintomuito, Allie. Eles não tinham que se comportar desse jeito. Você é

novaaquienãotemcomosaber.Nãoseiexatamenteoqueaconteceu,nemcomoosmeninossemachucaram,maspretendodescobrir.

—Ésóqueelesparecerammuitomachucados—disseAllie.Isabelleselevantou.—Achoquepareceupiordoquefoi.Peloquemecontaram,ninguémseferiu

gravemente.Àsvezes, jogos camumpoucoviolentos.Nãoénadacomquevocêdevasepreocupar.Euvouconversarcomosenvolvidos.

IsabellebaixouamãoatéoombrodeAllie eo apertougentilmente enquantocaminhavaaoseuladoatéaporta,quesegurouparaelapassar.

—Obrigada,Allie.Quebomquevocêestábem.NãoprecisasepreocuparcomoPhil;aequipemédicajáestácuidandodele.E couclaroparamimqueasferidasdoGabeedoCartersãosuperficiais.

Ainda que Allie sentisse que devia ter exigido mais respostas, a explicação deIsabellefaziasentido.Garotosestavamsempresemetendoemconfusões—elaviraMark e Harry se machucarem montes de vezes. Ambos já tinham ido parar nopronto-socorro em mais de uma ocasião depois que brincadeiras de piqueterminarammal.

Masoquepoderiateracontecidoatodoseles lánamata?Eporqueninguémmeconta?

De volta ao quarto, ela vestiu saia e suéter secos, deixando largada no chão aroupamolhada.Queriavoltar logo láparabaixo, antesdo toquede recolher,parasabercomoestavatodomundo.

Noqueaplicavabrilho rosa-claroaos lábios em frente aoespelho,noentanto,suamãoparou.SeráqueeuvouatrásdoCarter?

Não que ela quisesse de fato vê-lo; ele fora completamente babaca. Só estavacuriosa.Porqueelequeriaqueseencontrassemasós?Eporquenosalãoprincipal?ElanuncamaisestiveraalidesdequeIsabelleomostrara,nodiadasuachegada.

Elachecouorelógio.Eramsódezhoras.Aindatinhabastantetempoatéotoquederecolher.

Desceu correndo as escadas e então cruzou o corredor nas pontas dos pés emdireçãoaosalão.

—Allie—disseSylvain,seusotaquesedosoacariciou-lheonomeeameninasevirou, encontrando-o logo atrás dela.—Estava torcendo pra te encontrar. Fiqueipreocupado;vocêtábem?

Eleapuxoueabraçoue,depoisdehesitar,Allieretribuiuoabraço.Seusdedosdelicadamentetraçaramumalinhapelascostasdela,descendoatéacintura.

Arrepios.Elechegouparatrásparaolharparaela.—Vocêaindatámolhada.Quebomquenãosemachucou.—Eutôbem.Allie tentou pensar numa desculpa para o que estava fazendo. Sylvain não ia

gostar de saber que ela estava indo encontrar Carter. Mas o que ele não sabia,concluiu,nãoamachucaria.

—EutavaprocurandoaJo...—explicou.—Achoqueela tá comoGabe—disse.OsdedosdeSylvainestavamsobo

queixodeAllieagora,inclinandoacabeçadelademodoqueelaolhasseparaele.Amenina sentia a respiração do rapaz em sua bochecha. Sylvain cheirava a zimbrofresco.—Oque você e a Jo tavam fazendono caramanchão?—perguntou. Seutomeracasual,masalgonaposturadeleemitiasinaisdealerta.—OZelazny cou

bemirritadodeteverlá.Seráqueeletámeinvestigando?—Foiantesdo toquede recolher—discutiuAllie.—Nãoentendoporque

todomundo se importa tantoqueagenteestava lá fora.Agente sóqueria sair.Esaiu.

—Nomeiodeumtemporal.Allieestavacansadadeserinterrogada.—Agenteachouqueseria legal—disse.—Equersaber?Eupodiatefazera

mesmapergunta.Oquevocêtavafazendoláforanomeiodeumtemporal?Eleaexaminoucurioso,comosevissealgodenovo,quenãotinhanotadoantes.—Tácerto, mabelle—disse.PelaprimeiravezAlliesentiuumafriezadistante

navozdeSylvain.Tinhatocadoemumpontofraco.—Como táoPhil?—perguntou ela, tentandomudarparaum terrenomais

seguro.—Ele vai car bem,mas perdeu um pouco de sangue, vai levar uns dias. A

quedafoifeia.QuandoAllieabriuabocaparaperguntaroqueaconteceralá,Sylvainvoltoua

falar.— Melhor você beber alguma coisa quente — disse. — Vem comigo.Tem

chocolatequentenacozinha.—Não—negouAllie,maishistéricadoquea situaçãopedia.Sylvainergueu

uma sobrancelha, surpreso, enquanto ela procurava um motivo. — Eu... precisofazerumacoisa.Vamosconversaramanhã?Eupreciso...

Allie passou correndo pelo rapaz em direção à biblioteca enquanto suasexplicações se esvaneciam. Estava deserta; até a mesa da bibliotecária estava vazia.Correndopor sobreos tapetesmacios, ameninadesapareceuentreasduasestantesmaisaltas.

Elaouviuaportaabrirefechardenovoatrásdesi.Elechamouseunomeduasvezes, suavemente. Após um instante, a porta abriu e fechou outra vez. Só paragarantir,Allie couondeestavapormaisalgunsminutos.Quandonãoouviamaisnadadepoisdecontarlentamenteatéduzentos,saiudeondeestava,abrindoaportadabibliotecaparaespiarocorredor.Sylvainnãoestavaàvista.Suspiroualiviada.

Aporta do salão abriu sem emitir qualquer ruídoquando ela a empurrou.Asluzesestavamapagadas,masAllieenxergouumbrilhofracono naldovastosalãovazio.Caminhouhesitantenaqueladireção.

—Carter?—sussurrou.Umavozsoltouum“uuuuuu”fantasmagóricoqueecoouaoseuredor.

—Paracomisso,West.Eleriu.Aoseaproximarda luz,AllieviuqueCarterestavaesparramadonumacadeira,

comopéapoiadonumamesaentrealgumasvelasacesas.Suatestatinhaumcurativobem-feito.Seguravaumlivro,quederruboudelicadamentenochão.

Tinhaoutracadeirapróximaàdele,paraaqualapontou.—Senta.—Nãomedizoqueeutenhoquefazer—murmurouAllieaosentar.Orapazsorriutristemente.—Desculpa,acheiqueestavasendoeducado.Allieignorouocomentário.—Comotáasuacabeça?Carterdispensouaperguntacomumaceno.—Eutôbem.Fez-seummomentodesilêncio.—Eaí?—perguntouAllie,paraquebrarosilêncio.—Porquevocêquisme

encontraraqui?Eunãodanço,casosejaessaasuaesperança.Ogarotodeudeombros.—Eugostodaqui.Vivoaqui.Nuncadãoumaolhadanessesalão,nãoseipor

quê.Tirandoopédamesa,elevirouparaobservarAllie.—Eusóquerosabercomovocêealourinhaforampararnocaramanchãohoje,

bem na hora que tudo aconteceu. O Gabe largou vocês duas direitinho na salacomum,comjeitodequeiacomeçarumpapodemulhersobre...sapatos,batom,sei ládoquevocês falam.Quinzeminutosdepois,vocêsestãonocaramanchãonomeiodotemporal,amarrandocurativos.Comoissoaconteceu,Allie?

Ameninadesviouoolhar.—AJosóqueriaprocurar...Carterainterrompeu.—Ah,dáumtempo,Allie.EunãosouaIsabelle.SurpreendidapelaveemênciadeCarter,ameninaprocurouporalgoparadizer.—Eu...ahn...Bom...Orapazficouimóvel,estudando-a.AmesmapreocupaçãoinstintivaqueaimpediradecontarparaIsabellelhedizia

quenãodeviacontarparaCartertambém.Maselaprecisavadescobriroqueestavaacontecendoali,esealguémiriasaber,seriaele.

—ARuth.Elaveioebuscouagente.

À luz da vela, os olhos de Carter eram insondáveis. Allie os encarou por umlongoesilenciosoinstante,procurandoumareação,masnãoviunada.

Quandoelefalou,avozsooufria.—OqueaRuthdisse?Allie cruzou os braços sobre o peito, visualizando Ruth à sua frente, com os

cabelosencharcadosepingandonochão.Medonorosto.—EladissequeoPhileoGabetavammachucados.Eumacoisaestranha.Acho

queeladisse“deuerrado”.Carter levantou da cadeira tão depressa que mais tarde ela nem conseguia se

lembrar de ter visto o movimento. Segurando-a pelos ombros, ele parecia umgigante.Allieseencolheu.

Comoslábiosapoucoscentímetrosdosdela,elesussurrouasperamente:—VocênuncapodecontarpraninguémoqueaRuthfez.Jura.Allieoencarou,seuslábiossemovendoumsegundoantesdequalquersomsair.—Tábom,claro.Ok,nãovoucontarpraninguém.Jesus,Carter.Comosesóagorapercebesseoqueestavafazendo,eleasoltou.—Vocêtámeassustando—disseAllie,esfregandooombro.—Qualéoteu

problema?Tentandoparecercasual,eleseapoiounumpilar.—Desculpa.MasaRuthnãodeviaterfeitoissoetemgentequepodeseirritar

sesouber.Eunãoqueroqueelasedêmal,entãovocênãopodemesmofalarnada.—Ei—disseela,friamente.—Ficatranquilo,cara.Ejáqueagentetásendo

honesto,quemsabevocêmecontaoque foiaquilo?Comoéquevocêsacabaramcortadosaospedaçosnomeiodafloresta.

Cruzandoosbraços,Carteraolhoufriamente.Umlongosilêncioseabateu.—Bom,valeupelointerrogatório,pelasameaçasetudomais.Foiótimo.Mas

acho que émelhor eu ir— constatou Allie, armando-se com sua expressãomaisentediada.

Carteraencarou,comosetivessemaisalgoquequisessedizer.Naverdade,deuquaseparaelaapontaroinstanteexatoemqueeleresolveunãofalar.

— Você é boa fazendo curativo — foi o que ele acabou dizendo. — Ondeaprendeuafazeraquilo?NaCrimeia?

Alliepensouemapenasselevantaresair.Mas cou.Nãosabiaaocertoporquê.Talvezcuriosidade.

—EmLondres—respondeu.—Auladeprimeirossocorros.Bandeirantes.Sarcástico,eleergueuumasobrancelha.—Vocêfoibandeirante?Ah,para.

Agarotanãoconseguiaentenderporqueestavamtendoestaconversa informallogo depois de ele partir para cima dela feitoHannibal Lecter,mas decidiu ir naonda.

—Paronada.Euerapequena,masessascoisas cam.Amarrarataduras.Caçarborboletas.Fazergeleia.Seifazerissotudo.

Elegrunhiuumarisadinha,masAllienãoretribuiu.—Carter,deverdade,oqueéquetáacontecendoaqui?Querdizer,oquehouve

comvocêshoje?Vocêsbrigaram?Pareciamuitofeio.Seeletivessebatidoumaportanacaradela,nãoteriasidotãoclaro.Seusolhos

ficaramsemexpressão.—Deixapralá—disparou.—Enãoperguntapramaisninguém.Ninguémvai

tecontarnadaeaspessoasvãoseirritarsesouberemquevocêandaperguntando.—Olhouparaorelógio.—Sãoquase11horas.Agentetemqueir.

Carterapagouasvelaseasalaficouescura.Enquanto caminhava na direção em que achava que a porta estaria, Allie

tropeçouemalgumacoisanaescuridão.Eleasegurou.Porumsegundo caramcaraacara.ApesardeCarterestarencobertopelassombras,Allieachouquepareciaquaseestarsedesculpando.

Masdevoestarenganadaquantoaisso.—Poraqui—indicouo rapaz,conduzindo-apelamãoatravésda salaescura,

comacon ançadealguémquejá zeraissoantesváriasvezes.Asensaçãodosdedosdeleeramornae forte,maselanãooqueria tocando-aagora;andavaduraao ladodele.

Quandochegaramàentradavazia,piscandoosolhosporcausadasluzes,orostodeleestavapropositalmentesemexpressão.

— São onze da noite, Sheridan. Melhor se apressar. Você não quer car emdetençãooutravez.

—É,claro—respondeu,sarcástica.—Sangueetripastudobem.MasaAllieporaídepoisdotoquederecolher?Issoseriaumatragédia.

—Boanoite,Sheridan—cumprimentouele,semhesitar.Elasevirounadireçãodasescadas.—Tábomentão,Carter.

—Vocêtemqueconfiaremmim,Allie.OsolhosdelaencontraramosdeCarter,masameninaresistiu.—Porqueconfiaria?Vocênãoconfiaemmim.Osdoisestavamnosalão,decoradopordiversasvelasacesas—que

cintilavamsobreparapeitos,mesasenumcandelabromuitoalto.Ocalorqueemitiameraintenso.

OsolhosdeCarterbrilhavamcomaluz.—Maseupossoteajudar...Alguémbateuàportacomforça,demaneiraameaçadora.Alliesentiuo

coraçãobaterforte.—Estãoaqui—disseele.Abatidasoounovamente,maisinsistentedestavez.Obarulhoeraquase

ensurdecedoreAlliecobriuosouvidos.—Quemé?Quemtáaqui,Carter?Avozdorapazeraautoritária.—Vocêprecisaconfiaremmim.Confia?Porcimadoombrodele,Alliepôdeverqueaportaestavarachandocoma

violênciadasbatidas.—Confio!—gritouamenina,seatirandonosseusbraços.—Confio!Confio

emvocê.

Engasgando-se,Alliesesentounacama,agarrandoacobertacompulsosfirmes.Umbarulhodealgobatendoa fezsaltar,maseraapenasapersianademadeira

contraaparede,porcausadoventoqueentravapelajanelaaberta.Subindona escrivaninha para olhar pela janela, viu que uma tempestade havia

caído durante a noite — as árvores balançavam, e folhas arrancadas dos galhosvoavamaoventobemacimadela.

Oarestavafresconomomentoqueelatrancouajanelaevoltouparaacama.Cobrindo-se,murmurouemvozalta:—Saidaminhacabeça,CarterWest.

Q

NOVE

uandoasaulasforamretomadasnasegunda-feira,Allieteveadesagradávelsensaçãodequenenhumdoseventosdo mdesemanatinhaocorridodefato.Todossesentaramnascadeirasdesempre,nahoradesempre.EJerry

eZelaznyatrataramexatamentecomosenuncaativessemvistofazerumcurativonomeiodeumtemporal.

Sylvainnãofoiàauladeinglês,masCarterchegouatrasado,comodecostume,eapenas sorriu quando Isabelle o olhou exasperada. Se ele ainda não estivesse decurativonatesta,Alliepoderiaacharquetudoforafrutodasuaimaginação.

No intervalo, encontrou Jo na biblioteca e as duas conversaram aos sussurrossobreoque tinhahavidodepoisque se separaram. JodissequeGabeacabounemprecisandodepontosequeaenfermeira zeracomentárioselogiososaocurativodeAllie.

—Agora, oGabe tá loucopra saber como a gente foi pararno caramanchão,mas... comovocê faloupranãocontarnada sobreaRuth,eunãocontei.Porquevocênãoquerqueeufalepraele?

Allieseinclinoumaisparaperto.—Eunãoposso...Ésó....éimportantequevocênãofalenada.Naverdade,elahaviapassadometadedanoiteemclarotentandoresolveroque

falarpara Jo.Não iriamentir para suaúnica amigade verdadenaCimmeria,mastinhaprometidoaCarterquenãocontaria.

—Eunãoseicomoexplicar.SóouviqueaRuthpodesedarmaloualgoassim.AllieobservouorostodeJoenquantoestaconsideravaaexplicação.—Tudobem,masseeunãocontaraverdadepraele,quemotivoeudoupra

genteestarlá?Allierodavaumacanetaansiosamenteentreosdedos,deformaqueestaacabou

girandosemparardededoemdedodesuamãodireitaatéchegaraomindinho.—AgentepodedizerquetavabrincandodeVerdadeouConsequênciaemeio

queespionandoeles.Ouqueeuquisircorrernachuvaevocêtentoumeimpedir.Joinclinouacabeçaparaolado.

—Dessasduaspéssimasopções,aprimeiraéumpouquinhomelhor.Alliesorriu.—Valeu,Jo.Nosdiasseguintes,muitosboatoscorreramarespeitodoquetinhaacontecido

namatanaquelanoite.Todossabiamqueváriaspessoastinhamsemachucado,mashaviaumaconfusãogeneralizadaquantoaoquetinhasepassado.Osalunosestavamproibidos de circular pelo terreno da escola, o que só piorava a fofoca.NinguémpareciasaberqueAllieeJotinhamestadoláeoboatomaisrepetidoeradequeosmeninosencontraramamesmaraposaqueelas,apesardetodospareceremacharessateoriamuitoimprovável.

Philnãovoltouàsaladeaulanaquelasemana,masRuthdissequeeleestavasesentindomelhor,equelogovoltaria.

Considerandoqueestavamtodos,aosolhosdeAllie,emprisãodomiciliar,pelomenosotempoestavapéssimo.Aolongodasemanaachuvafoiimplacável.Nãofoitãopesadaquantonodomingo,masfoiconstanteeosdiaspermaneceramcinzentos.

Os professores pareciam ter tomado uma injeção de adrenalina educacional, oque logo virou o tema central das refeições e intervalos. Alunos debatiam,horrorizados,aquantidadedetrabalhosdistribuídos.AllieeJo caramnabibliotecatodasasnoitesatéotoquederecolher,tentandoacompanharasaulas.

QuandoAllieencontrouSylvainnaquinta-feiraànoite,aosairdabibliotecaembuscadeumaxícaradechá,estavaexausta.Eleaacompanhounocaminhoatéasaladerefeições.

—Olhasó...Oi,mabelleAllie.Comovai?Nãotevejodesdeofimdesemana.Allie sentiuo coraçãobatermais rápido,mas tentou soar como se encontrá-lo

não fosse nada de mais.Torceu para que não perguntasse em que buraco ela seenfiaraquandofugiudele.

—Voubem.Sótôtentandonãomeenterraremtantasfolhasdedeverdecasaaténinguémconseguirmeencontrarembaixodelas.

Elefezquesimcomacabeça.—Eusei.Derepenteosprofessoresparecemquesósabempassarummontede

trabalhospragente.Allievirou-separaSylvain.—Qualéadeles?Sãosempretãocruéisassim?Elesorriueseusolhosbrilharam.—Não,issoéanormalaténaCimmeria.Provavelmenteelesestãodeixandoos

alunosocupadosdemaispratentaremseaventurarláfora.Allietentouesconderasurpresa.

—Porcausadaquelanoite?—perguntou.—Talvez.Ameninalançouumolharcheiodedesejoparaaportadafrente.—Queriatantoirláfora...—Táentediada, mabelle?—perguntou.Movendo-setãodepressaqueelanão

tevetempodereagir,elepegouamãodelaeapuxouparapertodesi.—Possolerasuamão.Talvezissotedivertisse.Eeuenxergariaasuaalma.

—Vocêsabelermãos?—perguntou,duvidosa,masAlliegostavadasensaçãodamãodelenasua.

—Claro—respondeuSylvaincomumsorriso.—Vocênãosabe?Éfácil.VirandoamãodeAllie,elepassouodedopelaslinhasrasascomumtoquetão

suavequantoobigodedeumgato.—Vocêtemumalinhadavidamuitolonga—murmurou,traçandoumalinha

dopulsoaomeiodapalma.—Ealinhadoseucoraçãoéforte.Távendoessalinhaaqui?—perguntou.Elepassouaspontasdosdedosnumalinhaqueacabavaentreopolegareo indicador.Allietremeucomadelicadezadotoque.—Sabeoqueissomediz?

Muda,Alliebalançouacabeça.—Dizquevocêtáapaixonadaporalguém.Outalvezváseapaixonarembreve.Como corpo formigandopelo toquedele,Allie tentoupensar numa resposta

espirituosa,masantesquepudessefalar,aportadabibliotecaseabriu.Jodisse:— Ei, Allie, não esquece o... — começou, mas quando viu Sylvain, sua voz

desbotou.—Hmm,aicaramba,achoqueeuesquecimeu...Improvisandomuitomal,Jovoltouparadentro.Uminstantemaistardeaporta

reabriueumgrupodealunossaiuconversando.AllieouviuJosussurrandoparaeles:—Não,esperaumsegundo...SylvainsoltouamãodeAlliecomumsorrisocontrariado.—Euqueriaexplorarmelhoresseassuntocomvocêalgumahora—disse.—Tá—disseela,vermelha.—Agente...explora.—Talvezagentepossaseencontrarsábadodepoisdojantarpra...conversar?—Claro—respondeuela,tentandonãoparecerqueestavasemar.Sylvainsorriu.—Ótimo.Teencontronasaladerefeições.Atélá.—Atélá—repetiuelaautomaticamente.

Ao longo da semana, o ritmo de trabalhos escolares não diminuiu emmomento

algum. Para piorar as coisas, na sexta-feira todos os alunos receberam tarefas depesquisaparao mde semana.Quando folhasde exercícios foramdistribuídasnaauladehistória,acaligrafiaimpecáveldeZelaznynapáginaencaravaAllie.

3.000toquessobreoimpactosocioeconômicodaguerracivilnasociedadeagráriadaépoca.

Parasegunda-feira.Semexceções.Semdesculpas.

Abiblioteca coutãocheianatardedesextaquedepoisquetodososassentosforamocupadososalunoscomeçaramaseespalharpelocorredor,ondesentaramnochãoempequenosgrupos,comoslivrosepapéisespalhadosaoredor.

—Estamosparecendorefugiados—sussurrouJo,enquantoelaeAllielevavammontesdelivrosparaumlugarlivrepertodaportadafrentedaescola.

—Éuma loucura.Porquanto tempovãomanter isso?—perguntouAllieaomesmotempoqueequilibravaumaxícaradecháemcimadeumlivrodehistóriacentenárioeseabaixavaparasentar.

—Boapergunta—disseJo,tirandoaxícaradeseupoleiroprecárioantesqueseespatifassenochãodepedra.

—Valeu—agradeceuAllie,ajeitando-secomascostasparaaparede.JotomouumgoledochádeAllie.—Eudeviaterpegadoumdessespramim.Agoravouacabartomandooseu.—Eagentedeviamesmotertrazidobiscoitos.—Somosidiotas.Allieembaralhouoslivros,umarugadeconcentraçãomarcandosuatesta.—CadêoGabehoje?MalvieleeoSylvainessasemana.Joestavaescolhendoumcaderno.—Seilá.Eledissequetinhaumacoisaprafazerequefariaodevermaistarde.— Estranho — disse Allie. — Os professores estão sendo tão duros, mas o

SylvaineoGabenãoparecemseimportar.Jodeudeombros.—Ninguémtámecontandomuitosobreoquetáacontecendo.EueoGabe

tivemosumadiscussãosobreisso,eagentenuncadiscute.—Homemécheiodehistória—filosofouAllie,abrindoolivro.Tendo nalmenteachadoocadernocerto,Joagoraseconcentravaemencontrar

algumacoisanele,efalavadistraídaenquantoviravaaspáginas:—EusóseiqueosmeninosdaEscolaNoturnasaemtodanoiteetenhocerteza

dequetemalgumacoisaavercomaquelanoite.Maséomaiorsegredo.

Allieparoueaencaroucomumapáginafrágileamareladadolivroaindaentreosdedos.

—Peraí.VocêsabequemédaEscolaNoturna?Jogelou,aculpaseespalhandoporsuaexpressão.—Não.Nãoéisso.Querdizer,eumeioque...chutei.Também,temunsque

sãobemdescarados.—Tipoquem?—Naverdadeeunãosei—respondeuJo,cautelosa.—Querdizer,chutando,

podem ser o Sylvain, o Phil, talvez o Lucas, talvez oGabe e oCarter,mas, querdizer,sabelá.

JomentiatãomalqueAllieteriaridosenãoestivessetãosurpresa.—Querdizer,vocêachaqueo seupróprionamorado fazparte,masnão tem

certeza?—perguntou.A amiga olhou em volta para se certi car de que ninguém estava prestando

atenção,entãoseinclinounadireçãodeAllieereduziuavozaumsussurro.—Olha,ésupersecreto,tá?Sealguémfalaalgumacoisasobreissoeoutrapessoa

descobre,arranjamuitoproblema.Tôfalandodeproblemasério.—Entãoagentenãodeviafalarsobreissoagora?—sussurrouAllie.—Não—sussurrouJoemresposta.Allie voltou ao livro, virando uma página após a outra, lentamente, mas sua

mentecontinuavagirandoemtornodoqueJohavialhecontado.Agarotaseinclinouparaafrenteoutravez.—Nenhumamenina?Jolançou-lheumolharexpressivo.—TalvezaJules—moveuabocaemsilêncio.—EaRuth.OsolhosdeAlliesearregalaram.—Nãoépossível—disse,incrédula.Joergueuamãodireita.—JuroporDeus.Elasestudaramemsilênciopormeiahoradepoisdisso,anãoserpelosruídosde

anotaçõessendofeitasepáginassendoviradas.Então,semqualqueraviso,acabeçadeAllielevantou.

—IssoexplicaareaçãodoCarternosábado—disse,comoseaconversanuncativesseparado.

Jopareceuintrigada.—Porquê?Oquê?E...quando?AllieexplicousobreCartertê-latiradodosegundoandar.

—Interessante—falouJoquandoaoutraterminou.—Masnãosabiaqueelesseencontravamaquinoprédio.Eduranteodia?Meioestranho.

Alliegirouacanetadenovo,sujandoamãodetinta.Esfregou-ainutilmente.—Oqueéqueelesfazem,exatamente?Jonãodesgrudouosolhosdolivro.—Nãofaçoideia.Alliecontinuavaesfregandoatintadamão.—SempretiveimpressãodequeoCartersabiamuitobemoquetavarolando.

Issoexplicariaomotivo.Aamigalançou-lheumolhar.—Oquê?—perguntouAllie,inclinandoacabeça.—Nada.Alliepegouacaneta,masJocontinuavaolhandoparaela.—Oquê?—repetiuAllie,empurrando-adeleve.Asduasriram.—Bom,éque..vocêsabe.VocêeoCarter.Allieparouderir.—OquequetemeueoCarter?—Seilá.Elesempreimplicacomvocê.—É,eunotei—respondeuAllie,seca.—Éporqueeleéumpsicopata.—Não.Quer dizer... sei lá.Tem alguma coisa namaneira como ele implica

comvocêquemeinteressa.Alliefranziuorosto.—Jo,dequediabosvocêtáfalando?—Ah,nãoénada.Équeporumtempoeuacheiqueelegostassedevocê,eeu

seiquevocêgostavadele,eagoraécomosevocêsdoisseodiassem.Alliedeudeombros.—Acontece.—Hmmm...—AvozdeJoestavaduvidosa.—Nãotemnadadehmmm—disseAllie.—Tudoqueelefazémedarordens

edizeroquefazereoquenãofazer.Eleébonitoetal,maseunãogostodele.Jodesenhouumaminhocanocadernoecontinuoutraçandoporcimaatéestar

bemescura.Acrescentouumalínguaaforquilhada.—SabetudoaquiloqueeueoGabedissemossobreoCarter?Allieassentiu.—Bom,eraverdade.Sóqueeletádiferentedesdequevocêchegou.Nãovejo

elecomnenhumameninadesdeentão.Allieabriuumsorriso.

—Oquê?Duassemanas inteiras?Assim,falasério.Quantocontrole!Eledeveestarcompletamenteapaixonadopormim.

Tiveramataquesderiso.—Então,falandodecoisasnormaisagora,oSylvainmepediupraencontrarele

amanhãànoitedepoisdojantar—disseAllie.—Achoqueétipoumencontro.—Uuuh,umencontrodeverdade—exclamouJo,sorrindo.—Sério,esquece

tudoqueeudissesobreoCarter.Sótôdebabaquice.MuitomaneiroqueévocêquevaipegaroSylvain.Todasasmeninasvãomorrerdeinveja.

—Tenhocertezadequeissovaifazertodaselasseremmuitolegaiscomigo—rebateuAllie,sarcasticamente,masJoergueuasobrancelhacomoquemsabedoquefala.

—SeoSylvainforseunamorado,elasnãovãoousarsernadaalémdegentis.AntesqueAlliepudesseperguntaroquequeriadizercomisso,elafalou:—Tá,chegadebrincadeira.Agenteprecisade1.500toquesantesdojantar,que

éem...—checouodelicadorelógiodeouronopulso—poucomaisdetrêshoras.—Fascista—disseAllie.Maselajáestavaescrevendo.

Nojantardaquelanoite,todaadiscussãoseconcentrounosboatosdequeoterrenodocolégioagoraestavaabertoaosalunos“noslimitesdoaceitável”.Oproblemaeraqueninguémsabiaoqueissosignificava.

—Querdizer que a gente pode voltar a ir lá fora semmorrer?—perguntouLisa,jogandooslongoscabelossobreumombro.

—Ninguémmorreu,Lisa.Allie achou o tom de Gabe desnecessariamente a ado. Lisa deu de ombros e

mastigouasalada.— Aposto que é totalmente seguro — disse Phil, em tom de voz

intencionalmentecalculado—,maseutavapensandoemirprasalacomum.—Eutambém—emendouGabe,rapidamente.—Eunão.Vousair.Jácanseideficaraquidentro.Avozde Jo foi enfática,mas seusolhosnãocruzaramcomosdeGabe.Ele a

encarava,maselasimplesmenteolhouaoredordamesa,fingindonãonotar.—Jo...—começouele.Otomdeleerasinistro,maselasólhelançouumolhar

dealerta.—Oquê?Jogandooguardanaponamesa,Gabechegouacadeirapara tráse se levantou,

murmurando:

—Perdiafome.Saiufuriososemolharparatrás.Fez-seumbrevesilênciodesconfortávelenquantotodomundo ngianãonotar

oquetinhaacontecidobemdiantedeles.AllieviuPhileLucastrocaremumolhar.Ruth tentou distrair todo mundo com uma história sobre um trabalho de

ciências,massuavozenfraqueciagradualmente.—Tábom,jáacabei.Jo?—disseAllie,leal.Jo sorriu agradecida e a seguiu para fora. Allie esperou até que estivessem

suficientementelongedamesaparatercertezadequenãoseriamouvidas.—Oquefoiaquilo?Joandavaapressadapelocorredoreporumsegundonãorespondeu;quandoo

fez,seutomeraamargo.— Bom, obviamente o Gabe não quer que eu saia porque não é seguro. E

obviamenteelequeragircomoseeufosseumacriançaeeleopai,quepodemedizeroquefazer.Oqueeuodeio.Játenhodoispais inúteis,valeu.Nãoprecisodemaisum.

Elapassoutãodepressapeloelaboradosaguãodeentradaque,quandochegaramà porta da frente, Allie já estava praticamente correndo para alcançá-la. Jo abriu aporta,impaciente,easduaspararamladoaladonoaltodaescada.

—Ok—disseAllie,olhandoparaoinocentecéuazulnoturno.—Mepareceperfeitamenteseguro.

—Esperoquenão—disseJo.—Aúltimaamorrerperde.Rindo,desceuvelozmenteaescadacomAllie logoatrás,ecorrerampelagrama

vazia.Poralgunsminutosdançaramnogramado,rodandoemcírculosnaliberdadedoarfresco.

—Espera—interrompeuAllie,arfando,alcançandoobraçodeJo.—Praondeagentetáindo?

Diminuíramoritmoparaumpassomaisvagaroso.— Boa pergunta. Pra algum lugar onde o Gabe não vá me encontrar e me

arrastarpradentrofeitoumhomemdascavernas—falou.Pensouporuminstante.—Jáfoiàcapela?

Alliefezumacareta.—Não,masjávarriagrama.—Ah,é.Esquecidadetenção.Naverdadeébemlegal.Tempoesiaantiganas

paredesem,tipo,ummilhãodelínguas.Ésupervelha.A capela cava no meio da mata. Allie olhou incerta naquela direção — o

comportamentomaníacodeJoestavacomeçandoapreocupá-la.

—Éseguroiragora?—perguntou.—Querdizer,comtudoissoacontecendo?—Nãodeveser—respondeuJo,comumsorrisoperverso.—Vocêvemou

nãovem?Semolharparatrás,elasaiupelagramaemdireçãoàsárvores.

O

DEZ

sol re etia no cabelo louro e brilhante de Jo enquanto ela corria pelogramado,eAlliehesitouummerosegundoantesdeiratrásdela.Enquantoseus pés a levavam rapidamente pela grama, ela sentia uma onda de

empolgaçãotãopoderosaqueriualtoaoalcançarJoalgunssegundosdepois.—Anda!—gritouaopassarporela.Contudo,assimqueentraramnamata,océuazuldesapareceuecomelea luz.

Nassombras,desaceleraramparaumritmodecaminhadaepartedacoragemdeAllieaabandonou.

—Ésempretãoescuroaqui—observou.Jonãopareciapreocupada.—Florestassãoassim.Vocêsgarotasdacidadenãoentendemocampo.Sótem

uma coisa a se fazer numa oresta assustadora—disse.Deuum empurrão leve ebrincalhãoemAllie.—Correr.

JocorriaàfrentepelatrilhacomAllielogoatrás.Assamambaiasquealinhavamocaminhoesbarravamsuavementecontraoscalcanharesdelas.Suasrisadasecoavamdas árvores, comum somoco.MasAllie ainda estava inquieta.Todosos sonsdaoresta — vento soprando por entre as árvores, o pio de um pássaro, um galho

estalandoembaixodoseupé—faziamseusnervosfraquejarem.Pensandomelhoragora,aquelanãopareciaumaboaideia.—Talvezagentedevessevoltar—disseela,depoisdeumtempo.—Agente

podesójogaralgumjogo,algumacoisaassim.Veroqueosoutrosestãofazendo.Jonãoolhouparatrásaoresponderdeformareconfortante.—Agentejátáquasechegando.Entãoporqueestoutãopreocupada?Algunsminutosdepois,noentanto,Josevirouparaelaesorriu.—Viu?Jáchegamos.Omurodaigrejaestavabemàfrente,enopátiohaviamenosárvoresemaisluz.

Assimqueentrounaclareira,Alliesesentiumelhor,masJojáestavanaporta,pondoasduasmãosnoaneldeferroparalevantaratranca,eemseguidaempurrando-acom

o ombro. A porta abriu com um rugido, e elas entraram. Na capela, o brilhodesbotado do sol era ltrado por vitrais amarelos e vermelhos em cacos de luzcolorida. Apesar do frio natural do piso de pedra e das paredes, o local pareciaaquecido.

Paradanaentrada,Allienãoconseguiaacreditarnoqueestavavendo.—Cacete—sussurrou.Joaestudoucomumolharexperiente.—Legal,nãoé?Alliefoinapontadospésatéomeiodacapelaegiroulentamenteemcírculo.As

paredes estavam cobertas de pinturas. Algumas eram palavras — a maioria,obviamente poemas –, outras eram imagens. A tinta tinha desbotado para umvermelho-ferrugem, amarelo-mar m e preto acinzentado,mas era clara, e era fácilimaginarquãobrilhantetinhasidoumdia.

—Essaaquimedáarrepios—confessouJo,indoatéofundodacapela,ondeumapinturade traços simples retratavaumdiabocomo tridenteespetandoalmasnuasesofredorasemumasériedesinasterríveis,comaajudadealegresdemôniosdeaparênciatroglodita.

Alliefranziuonariz.—Eeeca.—Exatamente.Essaémelhor—falouJoaoapontarparaumapinturapróxima

deumaárvorenodosacheiadefrutosepássaros.Asraízesseenrolavamformandoaspalavras“árvoredavida”.

Aoredordasimagenspintadas,haviapalavrasemlínguasarcaicas.Allieexaminouasletrascirílicasdeumadelas.

—Vocêentendealgumacoisa?—perguntouelaaJo.—Umpouco.Partedissoégrego—explicouJo,apontandoparaabasílica,e

entãovirouparaaparedeaolado.—Ealiéalgumaformadegaélico.Masamaioriaélatim.

Naparedeacimadaporta,haviaumafrasepintadaemelegantesletrasvermelhas.Acorerabrilhanteosu cienteparaqueAllieimaginasseseteriasidorestaurada.Deuumpassoparatrásparaenxergarcomclareza.

—Exitusactaprobat?—pronunciouaspalavraselogoolhoucomdúvidaparaJo.—Sabeoqueissosignifica?

—Oresultadovalidaaação—respondeuJo,semhesitar.Allieolhouparaaspalavras.—Oque isso quer dizer?—devaneou.—Prauma frase do tipo “Oi, bem-

vindoàigreja!”,essaémeioestranha.

—Nãofaçoideia.—Jorodavapelanavecentralnumadançavertiginosa.Allie a observoupor ummomento com cara confusa e logo voltou a atenção

para a pintura elaborada de um dragão, cuja cauda enrolava quase até o chãoenquantoumapombavoavaparaforadoalcancedassuasgarras.

—Issoéincrível—disse,arfante.—E agora que você já viu, a gente pode ir embora?—perguntou uma voz.

Carter estava apoiado no umbral da porta, os braços cruzados preguiçosamente, oolharatento.

Alliedeuumsalto.—Carter!Jesus.Vocêmeassustou.Masela cousurpreendentementealiviadaemvê-lo.Joestavaestranha,eagora

elestodospoderiamvoltarjuntos.Quantomaisgente,maisseguro.Aindaassim,nãoqueriaqueelesoubessedisso.—Vocênãodeviaficarespionandoosoutros—disse,acidamente.Oolhardeleeratranquilo.—Nãotavaespionando.Tavacaminhando.Nãofoiassimquevocêschegaram

aqui?—perguntou.QuandosevoltouparaJo,suavozsetornoumaiscalorosa.—Comovai,Jo?

Ameninaestavanoladoopostodacapela,fingindoexaminarumapintura.—Estamosbemaqui,obrigada,Carter.PodedizerproGabequenãoprecisoda

ajuda dele — atestou. Sua voz era rme, mas Jo não o olhou nos olhos e suamandíbulaestavatravada.

Cartergesticulou,tentandoacalmá-la.—Ei,nãosoucapachodoGabe.Jávaiescurecerláforaeeupenseiemoferecer

escoltaprassenhoritas.Porquê?OGabetáteprocurando?JoolhouparaCartercomexpressãodetédio.—Desiste,Carter.Euseiqueeletemandou.Sempremandaalguémmeseguir.— Sério, Jo, o Gabe não sabe que eu tô aqui — disse. — Vocês brigaram,

algumacoisaassim?OrostodeCarterestavatãosérioqueAllietendiaaacreditarnele,masJosaiude

pertoefoiatéoaltar,omaislongepossíveldele.—Algumacoisaassim—respondeu,friamente.Fingindoexaminaraspinturasdaparede,AlliefoiseaproximandodeCarter,que

aindaestavaparadonaporta.Olhandodepropósitoparaumapinturadelicadadeumarosabranca,sussurrou:—Comovocêachouagente?Tãodiscretamentequantoela,orapazrespondeu:

—Euseguivocês.Seusolhosseencontrarameambososdesviaram.ApeledeAllieformigou.—Oquehouve?—perguntou.OslábiosdeCartermalsemexeramquandoele

falou,masacabeçaseinclinounadireçãodeJo.—Nãosei—respondeu.—Écomoseelafosse...outrapessoa.— Segredo segredo segredo! — interrompeu a voz irritada de Jo, e, ao se

virarem,osdoisaviramnoaltar,comasmãosapoiadasnopúlpito,encarando-os.—Porquevocêsdoisnãotransamdeumavezeacabamcomisso?

AllieencarouJo,boquiaberta.Teveasensaçãodeterlevadoumsoco.Quediabosestáhavendocomela?Mastentoumanterotomofendidodistantedavoz.—Ei,issonãoélegal,Jo.Olha,táescurecendoeeuquerovoltar.Vemcomigo?Allieestendeuamão.Joaexaminouporumsegundoecruzouanaveatéela.—Tábom.Quesedane.Vamos—concordou.Seutomdevozerarazoávele,

aopegarasuamão,Joapertou-a,masAllieteveaestranhasensaçãodequealgoaindanãoestavabem.Quandosaíram,aluzestavacaindoea orestapareciamaisescuraeameaçadoradoqueantes.

Joseequilibrounapontadospésnodegraudafrente.—Ei,Allie,lembraoqueeudissesobreaúnicamaneiradepassarpela oresta

assustadora?Allieaolhouconfusa.—Oque?Correr?Com isso, Jo partiu pela trilha com uma velocidade surpreendente enquanto

CartereAllieficaramnafrentedaigrejaolhando-a.— Que diabo foi isso? — perguntou Carter, olhando para o céu como se

torcesseparareceberalgumaespéciederesposta.—Nãofaçoamenorideiadoquetáacontecendo—disseAllie.—Achoque

elabrigoucomoGabeeagoratá,seilá,muitoperdida.—Ah,queótimo—suspirou.—Acheiqueelajátinhaparadocomisso.AllieolhouconfusaparaCarter.—Oquê?Elajáfezissoantes?—Elacostumavabancara loucasemprequealgumacoisadavaerrado,mashá

muitotemponãofaziaisso—explicou.Elepareciairritado.—Agoratenhoquemecerti carqueelavoltepraescolaouoGabememata.Vocêvai carbem?Voltoetebusco,sequiser.

—Nãoprecisavoltar—respondeu.—Euconsigoteacompanhar.Cruzaramoportãoe,deinício,elaoacompanhoupassoapasso.Masenquanto

corriampeloprimeirotrechoescurodefloresta,algoocorreuaela.—Agentedeixouaportaaberta—disseela,diminuindooritmo.—Oquê?Naigreja?—indagouCarter,parandodecorreremseguida.Primeiro

pareceuincerto,masemseguidadeuumtapanaprópriatesta.—Droga.Temrazão.Émelhoreuvoltarefechar.

Maselenãosemoveu.Olhouparaafrente,nadireçãodaescola,enovamenteparaaigreja,comosenãoconseguissedecidiroquefazer.

VendoaindecisãodeCarter,Alliesoubeoquetinhaquefazer.—Euvolto—disseela.—Eufecho.VocêvaialcançaraJo.—Temcerteza?—perguntou incerto.—Tá escurecendo, e é quase hora do

toquederecolher.Mas Jonãoestava sendo racional e estava sozinhanoescuro.EapesardeAllie

nãoseanimarcomapossibilidadedecruzara orestasozinha,sabiaqueeraocerto.Mastinhaasensaçãodequeelenãoadeixaria,entãoviuqueprecisariaconvencê-lo.

—Nósvamosarrumarproblemase caraberta—observou.—EeurealmentenãoachoqueseriabompraJoserinterrogadapeloZelaznyagora.Alémdisso,eseumaraposaentrarecomerJesus?

Elecaiunagargalhadaeporumsegundotodooestressedeixouseurosto.—Ok—eleconcordou.—Maseuvoltopratepegarassimqueelaentrar.—Nãosepreocupacomigo,nãotenhomedodeescuro—mentiu.—Tátudo

bem.—Valeu,Sheridan—agradeceu.AlliepercebeuoalívionavozdeCarter.Ao

dispararparaaescola,suaspalavrasfinaisflutuaramnabrisa.—Euvolto.—Não!—gritouela.Elenãodeuqualquerindicaçãodeterescutado.AssimqueCartersumiudevista,acoragemabandonouAllie.Eupodiadeixara

portaabertaepronto,pensouaoolharparaatrilha.Talvezninguémsoubessequefoiagente.

Aípensou emcomo seriahorrível se acontecesse alguma coisa comessa capelaincrível.Esechovesseanoitetoda,aÁrvoredaVidafossearruinada,tudoculpasua?

Alliedeumeia-volta,cruzandoapenumbra,devoltaparaacapela.Apiscinadeluzdouradaqueiluminaraojardimjánãoestavamaisláe,quando

Allieatravessouoportão,aportadacapelaseerguiaescancaradacomoumaboca.Respirandofundo,Allieseapressouejogoutodooseupesocontraaporta.Ela

nem semoveu atéque ameninapercebeuque eramantida abertaporumganchopreto demetal.Masmesmodepois de soltá-la da trava, a porta era incrivelmentepesada.Deu-lheumbomempurrãoeestavafechando-acomumrangidorelutantequando, por apenas uma fração de segundo, ela viu alguma coisa se mover nas

sombrasládentro.Alliegelou,olhando xoparaaescuridão.Então,noqueaportacontinuavaa

fechar, ela se mexeu, agarrando-a e ncando os pés no chão para tentar segurá-laaberta. Mas a velha porta tinha vontade própria e nada que ela zesse a pararia.Fechou-secomumabatidaretumbantequepareceuecoaratravésdasárvores.

OcoraçãodeAlliebatiaviolentamenteenquantoelaencaravaaportafechada.Putamerda,oquefoiaquilo?Umagitorepentinodeasasbatendosobresuacabeçafezcomqueeladesseum

salto,maseramsópássarosvoandodeumaárvorepróximaparaocéuescuro.Comamãonoanelpesadodeferroqueserviademaçaneta,Allieconsiderouas

opções.Alguémcertamenteestavaládentro—elatinhavisto.Anãoserquetivessesidoumtruquedoescuro.Melhoreuir.Voltarpraescola,pensou.Sóestouassustada.Então imaginou o queCarter faria se estivesse aqui.Teria aberto a porta sem

hesitareexigidosaberquemestavalá.—Maseleéumpsicopata—sussurrousemconvicção.Nãotinhaimportância,

éclaro.Elajásabiaoqueiriafazer.Girouoanel.Puxando-o com esforço, esgueirou o corpo para dentro sem chegar a cruzar

totalmenteaportaaberta.— Oi? — chamou. O local estava tão escuro agora que ela mal conseguia

distinguirosdesenhosnaparede.—Temalguémaí?Oúnicoruídoqueouviufoioecodaprópriavoz.Masosilêncioqueseseguiu

tinha um peso, como sempre ocorre com silêncios em construções antigas, e elasentiuarrepiosnosombros.Estavaprestesaentrarquandoescutoupassosvelozesnopátiodaigrejaatrásdela.

Rodopiando,Allieseabaixoucomosefossesedesviardeumgolpe...nãohavianinguémlá.

Nãohaviaqualquersomalémdoventosoprandonasárvores.Cerrandoosolhos,espiouomatagalaoredordaigreja.Cadaruídoafaziapular.Quersaber?Foda-se.Usando toda a sua força, empurrou a porta. Enquanto a tranca ainda estava

fazendo barulho ao fechar, ela correu para o portão do pátio da igreja, batendo-oatrásdesidescuidadamente.Semolharparaoslados,correupelatrilha,acelerandoàmedidaqueosmúsculosseesticavam,atéestaremplenadisparadapela oresta.Masao fazer uma curva em alta velocidade no escuro, tropeçou em uma pedra e caiuesparramadanochão,comtantaforçaqueperdeuofôlegoeseengasgoutentando

recuperaroar,apoiandoasmãosnaslateraisdoprópriocorpo.Quandosuarespiraçãonormalizou,retiroucascalhodeumarranhãonapalmada

mãoenquanto reunia coragemparaolharo joelho.Sangue saíadeummachucadosuper cial e escorria pela perna.Torceu para que a aparência fosse pior do que aferida.

Arfandoentredentes,ela se levantoue testouseapernaaguentavasustentarseupeso.Doía,masdavaparaandar.Elasaiumancandopelatrilha,xingandobaixinho.

Ocaminhoagorapareciainterminável.Pareciaquejátinhacaminhadoporhorasquando parou para descansar a perna. Não tinha levado aquele tempo todo parachegaràcapela,tinha?Seráqueelaerraraocaminho?

Umfarfalharvindodasárvoresconteveseuspensamentosinquietos.Elaprendeuarespiraçãoeficououvindo.

—Carter?—elaexperimentouperguntar.Passadoumsegundo,escutoudenovo,masagorapareciavirdooutro ladoda

trilha.Alliesevirou,cerrandoosolhosaotentarenxergaratravésdasárvores.—Oi?—Suavoztremialigeiramente;elatentousoarfirme.—Quemtáaí?Silêncio.—Seissoébrincadeira,nãotemgraça—gritouparaoescuro.Maisuminstanteeelacorreupelatrilha,mancandoomaisrápidoquepodia....25passos,26,27...Osoma adodeumgravetoquebrandoatrásdelaafezpular.Elageloueparou.

Aquelefarfalhardenovo.Sóquemaisperto.Muitomaisperto.Agora,ignorandoador,correupelatrilha,saltandoporcimaderaízes,sentindo

pedras rolando sobospés,masmantendooequilíbrio.Seuspunhos socavamoarnosladosdocorpo.

Maisumminutoeelasevirouparaolharporcimadoombro—atrilhaestavavazia.MasquandoAlliesevirouparaafrentenovamente,alguémestavabemdiantedela.

Ela gritou e escorregou,mas asmãosdeSylvain apegaramepuxaram-naparaperto.

—Ei...ei!—Eleolhoupreocupadoparaela.—Vocêtábem?Tásangrando.Oqueaconteceu?

Suaspalavrassaíramemfrasesquebradasenquantoofegava.—Tinha...alguém...acapela...namata.—Avozestavasemfôlegoeassustada.AsmãosdeSylvainapertaramosbraçosdeAllie.—Alguémtemachucou?Alliebalançouacabeça.

—Não... eu caí.Mas eu ouvi... alguém... perto.Acho que tavame olhando.Ouvirespirar.

—Você tá tremendo.—Sylvain a abraçou.—Vamos, vamos sair daqui.—Comobraçodelelheapoiando,elamancouemdireçãoaocolégio.

Osdoisescutaramospassosaomesmotempo.—Ouviuisso?—Alliesussurrou.Sylvainfezquesimeolhounadireçãodosom,empurrandoAllieparatrásdesi.

Ela espiou por cima do ombro dele enquanto Carter saía da mata. Seu rosto sefechouaoverSylvain.

—Nãosabiaquevocêtavaaqui.—AvozdeCartersooufriaeeleolhouparaAllie.—Oquehouve?Vocêtábem?

SaindodetrásdeSylvain,elafezquesim,sesentindoumaidiota.—Eucaí.Eouvialgumacoisasemexendonafloresta.—Devetersidoeu.Pegueiumatalho.OupodetersidoaRuth,eumandeiela

te buscar.—Virando para Sylvain, Carter falou: — Melhor a gente levar ela devolta.Querqueeufaçaisso?

Sylvainconsiderou,maslogobalançouacabeça.—Não,semproblema.Eua levo.Vocêtemtrabalhoprafazer.Secerti cade

quenãotemnadaporlá.AlliepôdesentirarelutânciadeCarter,masentãoSylvainpuxouseubraçoeela

foicomele.Apernadoíamuitomaisagora,ecaminharestavacadavezmaisdifícil.Elanão

dissenada,masquandoumalágrimaescorreupelasuabochecha,Sylvainnotou.—Éasuaperna?—perguntou,limpandoalágrima.—Desculpa—respondeu.—Touparecendoumbebê.—Nãosejaridícula—ralhouele,esemmaisumapalavraalevantoudochão,

carregando-apelocaminho.—Nãodápravocêmecarregar,eusoumuitopesada—protestou.—Vocêpesatantoquantoumameninapesa—disseele.—Põeosbraçosno

meupescoço.Alliefezcomoelemandou.Agoraquenãoestavamaisapoiadanaperna,ador

diminuiu.Eleé forte,pensou,percebendoqueSylvainnãoestava coma respiraçãomaispesadaemfunçãodoesforço.Maisuminstanteeelaapoiouacabeçanoombrodele, aproveitando a estranha sensação de ser carregada pela primeira vez desde ainfância.

Estavammaispertodaescoladoqueelahaviaimaginado,entãosepassaramsóalgunsminutosatéelecomeçarasubiraescada.Alguémabriuaportaparaosdoise

AllielevantouacabeçaeviuZelaznyàluzdaentrada.—Oqueaconteceu?—grunhiuoprofessorparaela.—Elacaiunoescuro—respondeuSylvain.—Claroqueestavaescuro.Otoquederecolherjápassou—fuzilouZelazny.—Elacaiuantesdotoquederecolher—disseSylvain,protegendo-a,eAlliese

penduroucommaisforçanopescoçodele.—Levaelaatéaenfermeira—disseZelazny,comclaramávontade.—Outra

pessoacaiumaiscedo,elaestánasaladerefeiçõesagora.Entranafila.Enquantooprofessorseafastava,elapôdeouvi-loresmungando:—Purafaltadejeito,sequerminhaopinião...—Nãoprecisodeenfermeira—disseAllie,masSylvaina ignorou, levando-a

diretoparaasaladerefeições.NoqueSylvainapôsnumacadeira,Allieviuaenfermeira,deuniformebranco

comobrasãodaCimmeria,enfaixandoopulsotorcidodeumameninaqueelanãoreconhecia.(“Fuijogartênisànoiteemeferrei”,ameninasuspirouaosair,comobraçoemumatala.)

EstalandoalínguaaoverojoelhodeAllie,aenfermeiralimpouaferidacomumlíquido antisséptico que ardeu tanto que Allie tentou levantar e sair (Sylvain nãodeixou),aplicoupomadaefezocurativotãogentilmentequeelaquasenãosentiu.

SylvainficouaoladodeAllieotempotodo,umamãoapoiadaemseuombro.— Não corra nenhuma maratona nos próximos dias, querida — disse a

enfermeiraenquantoAllieeSylvainsaíampelaporta—,elogovocêvaiestarbem.Allieachavaquedeviaterpassadomuitodotoquederecolheraessaaltura—os

corredoresestavamsilenciososeSylvainaajudouasubiratéodormitóriofeminino.—Querqueeuteleveatéaporta?—perguntouelequandochegaramaotopo,

seusorrisosexytransformandoaofertaemalgoligeiramentemaissafado.—Achoquedaquieuconsigoirsozinha—Allieriu.—Masobrigadaporme

salvar.Outravez.Issotácomeçandoavirarhábitonosso.Quandoelasevirouparaentrar,eleapegoupelamão,puxando-adevolta.Antes

queAllie tivesse tempode reagir, ele se inclinoue abeijou.Foiumbeijo longoeprofundo.Quandoterminou,Allieoencarou,ofegando.

—Denada—sussurrouele.Surpresa,Alliedeuumpassopara trás rápidodemais, tropeçandonospróprios

pés e trombando com a parede atrás de si. Suas bochechas caram vermelhasenquantoelaseajeitava.

—Eu...então...obrigada...Bom,boanoite.Aoviraremancarpelocorredor,viuqueSylvainestavatentandonãorir.

–E

ONZE

ntão...Oqueaconteceuontemànoite?Erasábadodemanhã;asalacomumestavatranquilaeAllieeJosesentavam

em cantos opostos de um sofá de couro. As duas vestiam shorts azul-escuros quebatiam no joelho e camisetas brancas de mangas curtas, e cada uma seguravadistraidamenteumaxícarabrancadechá.

Tinham vindo juntas depois do café da manhã, no qual Gabe não havia sesentadocomelas.

Osolhosazul-clarosdeJoevitavamosdeAllie,percorrendoansiosamenteasalaantesdefinalmenterepousaremnaamiga.

—OGabeàsvezesémeio...controlador.—NaúltimapalavraavozsooutãobaixaqueAllieseinclinouparaouvir.Josecalouporummomentoedepoisacenou,afastandoopensamento.—Eeuodeioisso.Àsvezes.

JofeznovapausaeAllieesperou.—Então—suspirouJo.—Ontemelerealmentetavaagindoumpoucodemais

comosefossemeupai.“Nãofazisso,nãofazaquilo.Nãomequestiona.”Eseeleachaqueeuvoudeixarporissomesmo,támuitoenganado.E...bom,agoraagentenãotásefalando.EletavanasalacomumquandoeueoCarterentramos...—Elainterrompeuasiprópria,olhandopreocupadaparaAllie.—Apropósito,oCartervoltoupratebuscar,né?

Alliefezquesim.—Temessahistóriatambém,masvamosacabardefalardissoprimeiro.Jobebericouochá.—OGabetavalá,etavatãocheiodesi.Étodoo“eudissepranãosair...você

deviatermeouvido”quemedeixa...—Jocerrouopunhodireitoebalançou.—Entãoeudisseoqueeledeviafazercomosprópriosconselhosefuidormir.Desdeentãonãoo vimais.Esperoque vocênão tenha cadomuito apavoradaontemànoite.EurealmentenãoacheiqueoCarterfossetedeixarsozinha.Devetersidoumpoucoassustador,vocênuncatinhaficadoláforaso zinhanoescuro.

AlliesentiuumbrevedesejodeculparJopelapernaferida,masseconteve.

—Tudobem.Agentetavapreocupadocomvocê.Eu...quisqueelefosse.Jopôsaxícaradevoltanamesaelevantouaspernas,abraçandoosjoelhos.—Entãooqueaconteceudepoisqueeusaí?Você coubem?OCarterestava

muitopreocupadocomvocêemuitoirritadocomigoporterfeitoeletelargar.—Tava?—Allie cousurpresa,elepareceramuito irritadoaoencontrá-la.—

Elevoltou.MasàquelaalturaeujátinhaencontradooSylvainnatrilha.Eaconteceuacoisamaisestranha,Jo.

Alliesevirounosofádemodoque cassedefrenteparaJoecruzouaspernas.Reduziuavozquaseaumsussurro.

— O Sylvain meio que mandou o Carter embora. Foi todo “volta protrabalho”.Oqueéisso?DeupraperceberqueoCarternãoqueriair,masfoiassimmesmo.

Jorevirouosolhos.—ÉsóalgumababaquicedaEscolaNoturna.AchoqueoSylvaintáacimadele

nahierarquia.Allie deslizou sobre o sofá, apoiando a cabeça no encosto, e suas pernas se

esticaramnadireçãodamesa,revelandoocurativobrancoelimpo.—Ai,gata,oqueaconteceucomoseujoelho?Alliesorriucomcaradepesar.— Eu caí na trilha ontem à noite. Feito uma idiota. — Levantou a mão

esquerdaparamostraroarranhãonaspalmas.—Vouficarcomcicatrizprasempre.—AimeuDeus,étudoculpaminha.Desculpaporeutertidoumataque,Allie.

AgoraoGabetáirritadoevocêtámachucada.Jesus.Eusouumdesastre.—Pareciaverdadeiramentearrependida.

—Nãosejaboba—disseAllie.—Nãoénada.Quasenemdói.—Eentãoelaarfouelevouasmãosaorosto.—MeuDeus.Nãoacreditoqueaindanãotecontei.OSylvainmebeijou.

—Beijou?—Josesentoureta.—Quando?Eonde,como,porquê?Comasmãosaindanorosto,avozdeAlliesaiuabafada.—Eelemecarregouquandoaminhapernadoeu.—MeuDeus,eletámuitoa mdevocê—Josuspirou.—Essaéacoisamais

heroicadomundo.Mecontadobeijo.Allieespiouporentreosdedosenquantorelatavaoqueacontecera.—Enãofoidaquelesdeamigo,nabochecha,não—concluiu.—Foiumbeijo

deverdade.Delíngua.Joaempurroudebrincadeira.—Então?Foibom?

— É, acho que foi. — Allie se afundou ainda mais nas almofadas, com asbochechasmuitovermelhas.—Ok.Foi.Comcertezafoimuitobom.

—Evocênão temalgum tipode encontrohoje ànoite?— Jo a cutucoudenovoquandoAllieassentiu.—Vaipromeuquartodepoisemeconta tudo—disseJo.

Emseguidasesentouaindamaisreta.—Ei, issome lembraqueobailede verão édaqui a três semanas.OSylvain

deveteconvidarhoje!Oquevocêvaivestir?Contapramim.ElaeratãodesprovidadeautocensuraqueAllietevequerir.—MeuDeus,vocêparececriança.Nãoseinadasobreessebaile.Oquevocêvai

vestir?—Eu comprei o vestido naminha última viagem pra casa.— Jo se alegrou

visivelmenteaodescreverovestidinho justoprateadoede lantejoulaseas sandáliasquehaviaencontradoemumalojanaBondStreet.

ElalançouaAllieumolhardeavaliação.—Vocêtemumvestido?Allieseencolheuumpouco.—Bom...nãoexatamente.Temalgunsnomeuarmário,eum vintagequeeu

adoro.Maseunãoseioquefazercomrelaçãoasapat...—Vempromeuquarto!—Joainterrompeualegremente.—Eutenho,seilá,

ummilhãodeparesdesapatos.Problemaresolvido.—ElaagarrouamãodeAllie.—Agentepodefazeraquilodemeninas-se-vestindo-pra-festa.Penteamosocabeloumadaoutraefazemosamaquiagem.Vamosficarlindas.

Alliehesitoueentãoconfessou:—Olha,eununcafuiaumbaileantes.Nãoumbailedeverdade.Querdizer,os

meuscolégiosmeioquenãofaziamessetipodecoisa.Joafastousuaspreocupaçõescomumaceno.— Você vai amar. É antiquado, mas não é... chato, sabe?Todo mundo ca

lindo.Atéosprofessores.Vocênãovaiacreditarcomoalgunsdeles searrumam.Émuitolegal.QuandooSylvainteconvidar,vocêvaiterquedizersim.

Allieagoraestavaquasedeitadanosofá.—Masoqueeufaçoseelenãoconvidar?Asduas caramsentadasemsilêncioporuminstante,imaginandooverdadeiro

terrorqueserianãoterumpar.—SempredápraircomoZelazny—disseAllie,afinal.—Eleparecelegal.Asduascaíramnagargalhada.

Naquelanoite,quandoaceiaacabou,Allie counasaladerefeiçõescomRuth,Lisae Lucas. Gabe tinha vindo até a mesa buscar Jo alguns minutos antes e todostrocaramolharessigni cativosquandoosdoisseretiraram(“megassessãodeamassosdereconciliaçãoàvista”,previuLisa).

—Achoqueagentedevia ir lápra fora—disseRuth.—Táquenteaquieanoite está tão bonita. Ficamos perto da escola. Podemos só sentar na grama econversar.

Lucaspareciaincerto.Eleabriuaboca,masavozdetrásdeAlliesaiuprimeiro.—Concordo.Éumaboanoiteprajogarcroquet,nãoacham?—Allieseviroue

viuSylvainatrásdela.Lucas olhou para ele e ergueu uma sobrancelha; Sylvain acenou com a cabeça

muitodiscretamente.Lucasdeudeombros.—Okentão.Vamoslá.QuandoAllieselevantou,Sylvainestendeu-lheamãoeelessaíramladoalado.

Eleseaproximoudela.—Achoquevocêvaigostar.Croquetparecechatoduranteodia,masànoiteé

muitomelhor.OhálitodeSylvainfezcócegasnaorelhadeAllieeelatremeudeliciada.Sorriu

paraeleeentãocorreualegremente,puxando-lheamão.—Entãovamos.Semperdertempo.Sylvain riu e correu com ela. Lá fora, os outros pegavam material de um

pequeno galpão de armazenamento perto da entrada principal.Todos ajudaram acolocarastravesnarelva.

—Precisamosdeumsextojogador—observouLucas.—VoubuscaroPhil—disseRuth,apressando-sedevoltaparadentro.AllieviuqueLisaestava candovermelha—elaclaramente cariafelizemser

parceira de Lucas, mas ele ainda não tinha notado. Sylvain interrompeu-lhe odevaneio.

—EnquantoagenteesperaoPhil,temumacoisaqueeuprecisofazer.—Seutomeraprofissional,eelesevoltouparaAllie.—Vocêmeajuda?

—Claro.Ogarotoolhouparaosoutrosdois.—Agentejávolta.Pegando-apelamão,Sylvainapuxouparaalateraldacasatãodepressaqueela

tevequecorrerparaacompanhar.Quandodobraramaesquina,eleparou.Allieolhouemvolta,confusa.—Ondeagente...

Semaviso,eleaempurroucontraaparededepedraeabeijoucomforça.Numinstante,asurpresasetransformouemdesejoeelajogouosbraçosentusiasticamenteao redor do pescoço dele, retribuindo o beijo. Sylvain era, concluiu Allie, muitobomnisso—ameninanuncatinhabeijadoninguémassimantesenãoqueriaqueacabasse.

Quandoeleparou,osdoisestavamofegandoeolhandonosolhosumdooutro.—Desculpa.Nãopodia esperarnemmaisumminuto—disse, arfando, seus

olhosazuissustentandoosdela.—Fazdenovo—pediuAllie,puxandoinsistentementeosombrosdele.Elesorriu.—Jáquevocêinsiste...Osegundobeijofoimaislongo,e,sepossível,maisapaixonado,poisoslábios

dorapazsedirigiramparaopescoçodela,easmãosapertaramseusquadris.—Émelhoragentevoltarprapertodosoutros—sussurrouSylvain,comcara

depena,depoisdealgunsminutos,seuhálitoquentenagargantadela.EleroçounoslábiosinchadosdeAlliecomopolegar.—Apesardedetestardizerisso,elesdevemestarimaginandoondeagenteestá.

—Sãounsbobos—murmurouAllie.Elesorriuedeuumpassoparatrás,apesardeaindaestarsegurandoamãodela.—Agoravamoslájogarcroquet.—U-hu—disseAllie,semânimo.—Croquet.Quandodobraramaesquinadevolta,elaviuquetodosestavamesperandopelos

dois, inclusiveCarter, que conversava comLucas. Seus olhos diziamque ele sabiaexatamenteoqueestavamfazendo.

—Allie! Sylvain.—O tomerade zoação.—Queótimo.Tavam fazendooquê?

Surpresa pela agressividade dele, Allie cou roxa de raiva. Pensou que tiveramummomentonaflorestaemquehaviamseentendidoetalvezpudessemseramigos.

MasagoraCarterpareciapiordoquenunca.Sylvainapuxoumaisparaperto.—Infelizmente,Carter,nossostimesjáestãoorganizados.Agentenãoprecisade

outrojogador.—Eunãovimprajogar—disseCarter,enfatizandoaúltimapalavra.—Vim

sabercomoaAllieestavadepoisdaquedadeontemànoite.Alliepôdesentirosolhosdetodomundoemcimadela.—Eu...tôbem,Carter.Obrigada.—Vacilousoboolhardorapaz,queparecia

desafiá-la,comoseelativessefeitoalgumabobagem.

— Que ótimo. Você parece mesmomuito recuperada. — Suas palavrastransbordavamsarcasmo.—Machucouabocatambém?Ouissoéoutracoisa?

AmãodeAllievoouparacobriraboca,enquantoSylvaindeuváriospassosparaafrente.

—Porquevocêcontinuaaqui,Carter?—perguntoucomfrieza.Carteroencarou,semsemover.—Sóqueriaverseoqueeususpeitavaeraverdade.—Jáviutudoqueprecisavaver?—AvozdeSylvainerabaixaeameaçadora.—Ei,gente—Ruthsecolocouentreosdois.—Peraí.Fiquemcalmos.Não

vamosarrumarumproblemaaqui.Carteraignorou.—Ah,jáviosuficiente,Sylvain.Vocêsabeoqueeuvoudizer,nãosabe?Ruth suspirou e saiu do caminho. Eles agora estavam a menos de trinta

centímetrosdedistânciaumdooutro.Alliefechouosbraçossobreoprópriocorpo.—Nãofaçoideiadoquevocêvádizer,Carter—disseSylvain.—DeixaaAllieempaz.—Carterdeumaisumpasso,oqueodeixouapoucos

centímetrosdeSylvain.—Vocêsabequeissoéerrado.Sylvainsorriucomsatisfação.—Valeupeloconselho,Carter.Agorasugiroquenosdeixejogaronossojogo.FicaramseencarandopormaisuminstanteeentãoCartersevoltouparaAllie.—Nãoacreditaemnadaqueeletedisser.Eleéummentiroso.Apesardeestarbastanteconfusa,Allieempinouoqueixodesafiadoramente.—Nãoprecisodosseusconselhos,Carter.Eutomominhasprópriasdecisões.A menina viu raiva nos olhos dele, que, sem dizer mais nada, saiu rumo à

floresta.AsmãosdeAllieestavamtremendo.Qualéoproblemadele?—Bom,issofoidesagradável—disseSylvain,balançandoumtacocasualmente.

—Vamosjogar?Allie,vamosserdotimeazul?—Allieassentiu,muda,suacabeçaaindazumbindocomoavisodeCarter.

Noqueteveumtempoparaisso,agarrouobraçodeSylvain.—DoqueoCartertavafalando?—sussurrouAllie.Eleafastouocabelodatestadela.—Achoqueelegostadevocê,mabelle.Talvezestejacomciúme.Enquanto ele se afastou para dar sua tacada, Allie franziu o rosto.Talvez ele

estivesse tentandomeafastardoSylvain.Mas,a julgarpela formacomofalaracomela,eradifícilacreditarqueCarterestivesseafimdealgumacoisa.

Allienãoconseguiaimaginarque,depoisdisso,anoiteacabassesendoqualquer

coisa alémde terrível,masno mdas contas atéque foidivertida.As traves erampintadas com tinta fosforescente, o que signi cava que quantomais escuro cava,mais brilhavam.Os tacos tinham luzes ativadas por um botão no cabo. As bolascintilavamnascoresquetinhamsidopintadas.Istotornouogramadogradualmentemaiscoloridoàmedidaqueanoitecaiu.No nal,malenxergavamumaooutro,masconseguiamseguirosmovimentospormeiodos tacos iluminadosedasbolascoloridas.

Ruth eramuito boa emostrou aAllie algumas técnicas sobre comomanter abolarolandoemlinhareta.QuandoAllieconseguiujogarumadasbolasdePhilparaforadaáreadejogo,Ruthriu.

—Teensineibemdemais!Quandoojogoacaboueelescomeçaramaguardaroequipamento,Alliereparou

queestavarindocomRutheseapoiandoconfortavelmenteemSylvain,quepassaraobraçocasualmenteemtornodosseusombros.Osolharesdosdoisseencontrarameelasentiuumformigardeansiedade.

—Vocêtemolhoslindos—disseele.—Sãotransparentes,comoasuaalma.Virando-se,eledesejouboa-noiteaosoutrosesussurrounoouvidodeAllie:—Vemcomigo?Elaassentiuansiosa,suagargantaapertando.Caminharampelasombrapelapartedetrásdaescola.Pertodaportadosfundos,

eleparoueapuxouparaseusbraços,sussurrandodocemente:—Tiveumanoiteótima,Allie.QuebomqueoCarternãoteencheumuitoo

saco.Eletequersópraele.ApesardeAllieduvidardestaúltimadeclaração,nãodemonstrou.Sorriu.—Eutambémmediverti.Eeraverdade,apesardetudo.Emseguidaeleapuxouparapertoeencostouonariznoseupescoçoantesde

levarabocaàdela,eAlliesentiutodasassuaspreocupaçõessedesfazerem.Elefaziaascoisasmaisincríveiscomaqueles lábios.OcoraçãodeAlliedisparavaearespiraçãorateavanoqueelebeijavasuasorelhas,lambendosuavementeoslóbulos.Levantandoosbraços,elagirouospulsosportrásdacabeçadele.

Quando Zelazny gritou “toque de recolher!” pela porta dos fundos algunsminutosmaistarde,Sylvainlevantouacabeçacomardepesar.

Allienãoqueriaqueeleparasse.—Fazdenovo—insistiuela.Elesorriu,comasmãoscalorosasnacinturadamenina.—Toquederecolher.Agentetemqueentrar.

—Maisumavez?Tentadoramente,eleseinclinouparaperto.Elalevantouacabeçaeabriuaboca

ansiosa,maselelhedeuumrápidobeijinhonabochecha.—Pradentro,mocinha,antesquevocêarrumeumadetenção.—Toquederecolher!—gritouZelaznynovamente.—Últimachamada!Sylvainpassouobraçoportrásdosombrosdela,comoquemclamaposse.Aose

juntaremaorestodosalunosnaporta,elespassaramporKatieeJules.QuandoAllieviuovenenonorostodeKatie,sorriucomexpressãocândidaparaela.

Allie:um,Katie:zero.

Q

DOZE

uandoAlliedesceuparaocafénamanhãseguinte,Joaesperavaimpacientedoladodeforadasaladerefeições.

— Como foi? — perguntou sem preâmbulos, seguindo Allie paradentrodosalão.—Mecontatudo.

Enquantoempilhavaovosmexidosetorradanoprato,Allieriudela.—Vocêétãointrometida.—Ele tebeijoudenovo,nãobeijou?—perguntouJo.QuandoAllie fezque

sim,elasoltouumgritinho.—Eletálouquinhoporvocê.Teconvidouprobaile?—Não—respondeuAllie.—Talvezelesógostedemebeijar.— Elevai convidar — a rmou Jo con ante, enquanto se dirigiam à mesa

habitual.—OCarteréqueestavatotalmenteestranhoontem—disseAllie,contandoo

queaconteceu,eJofranziuorosto.—Issoé...bizarro—disseJo.—Achaqueeletácomciúme?—Nunca—con rmouAllie.—Eleme odeia.O jeito como agiu ontem à

noite...foicomoseeurepelisseele.Eeunãoseioquetavarolandoentreeles,masfoimuitopesado.Porumsegundopenseiquefossempartirprabriga.

—OCarternãoousaria—disseJo.—Eleiaarrumarmilhõesdeproblemassezesse isso.Mas edaí?OSylvain gostade você!E comcerteza vai te chamarpro

baile.

Durante a semana, só se falavanobaile—quem iria comquem,oque iriamvestirecomotodospodiambeberchampanheenãohaveriatoquederecolher.

Sylvainestavaenvolvidonumprojetoenorme,porissoelaquasenãooviu.Masamaneiracomoeleaolhavaquandoseviamdeixavaclaroqueanoitedesábadonãotinhasidoumaaberração.Elenãoconseguiamanterasmãoslongedela.Quandoseencontravamnocorredoreleaabraçavaouacariciavaseubraço.Etodasasvezesosencontrosadeixavamligeiramentesemfôlegoecomfomedemais.

Maseleaindanãoatinhaconvidadoparaobaile.

Aomesmotempo,Cartera ignoravaporcompleto.Semprequeoencontrava,eleolhavacomosenãoavisse.Naaula,seusolharesnuncasecruzavam.Eleatratavacomo se ela não existisse.Quando a sexta-feira chegou,Allie estavadeterminada adescobriroqueestavaacontecendo.Sónãosabiaaocertocomofazerisso.

Depois da aula naquela tarde, ela correu para a biblioteca na esperança deencontrarumlivroobscurodepoesiaparaaauladeinglêsdeIsabelle.Quandoabriuaporta,bateuemalguémquevinhanosentidooposto.

—Desculpa—disse,eentãoparou.Doumbral,Carterolhavafuriosoparaela.QuandoelepassouporAlliesemdizernada,ameninadeuumbasta.—Ei!—sussurrourispidamente.—Qualéoseuproblema?—Nenhum.—Suavozestavadistante.— Ah, é? — disse ela. — Então por que você cou tão perturbado? — Se

en andonafrentedele,elaentrounabiblioteca.Ouviuaportasefechandoatrás.EentãoCarterapegoupelobraço,virando-aparaficardefrenteparaele.

—Vocênãopodemechamardeperturbado—sibilounumsussurrodramático.Alliepôdeverquãoirritadoeleestava,masnãodeuamínima.—Possotechamardoquequiser,Carter—falou,sacudindoamãodelepara

longedoseuombro.—Eojeitocomovocêtemagidoultimamentenãoénormal.Ébabacademais.

—Oqueénormal,Allie?—sussurrouirritado.—De nenormalpramim.OSylvainénormal,porexemplo?

Elasentiuumcalafrionaespinha.—Queperguntaéessa?Oqueeletemavercomaformacomovocêmetrata?—Nada— respondeu,mas seus olhos diziam outra coisa. Suas sobrancelhas

estavamabaixadaseAlliesentiaatensãoantesmesmodeelefalarmaisalgumacoisa.—Tudo.Comovocêpodesertãoburra?Penseiquefosseinteligente,masésómaisumameninaburra.Nãosabenadasobreeleousobreessecolégioemesmoassimsepegacomocarapratodomundover.

Osolhosdameninasearregalaram.—Eunão...—Não o quê?— interrompeuCarter.—Não tá caindo nas frases ensaiadas

dele?Porquepramimpareceuqueestava.O menino estava tão furioso que Allie sentiu um pânico crescente ao tentar

argumentar.—Carter,nãotôentendendo!Entãoeutô candocomoSylvain...edaí?Por

quevocêseimporta?Vocêmeodeia.EleestavatãopertoqueAlliesentiaarespiraçãodelenabochecha.Tinhacheiro

deespeciariasecafé.—Achaqueeu teodeio?—Aquelesolhosnegros eprofundos sustentaramo

olhardela.—Nãoaodeio.Sópenseiquefosseinteligente.QuandoAllieabriuabocaparadiscutir,elecolocouodedodelicadamenteem

seuslábios.SeusolhosencararamosdeCarterporumlongosegundo.Sentiaogostodesaldapeledeleemsualíngua.Entãoelepraguejoubaixinho,sevirouesaiu.

—Aperguntadodia,Allie,é:vocêdeveusarocabelopresoousolto?—indagouJo.Elaestavasegurandoumpentededenteslargoseexaminavaatentamenteacabeçada amiga. Era sábado de manhã e elas estavam no quarto de Jo. Allie sentava-sediante do espelho e, por toda a volta, vestidos do armário de Allie e sapatos doestoqueilimitadodeJoascercavam.Joinsistiraqueelasprecisavam“treinar”.

Allieenrolouumamechadecabelonodedoeemseguidaasoltou.—Eissoimporta?ObaileédentrodeduassemanaseoSylvainaindanãome

convidou.Possopintarmeucabelodeverdeefazerummoicano.Josegurouumsapatopertodeumvestido,considerou,entãotestououtropar.—OSylvainvaiteconvidar—afirmouela.—Seidefontesegura.Allieaolhouesperançosa.—Sério?—Sério—Joapontouumsaltoparaelaemtomdeacusação.—Entãovamos

falarsério.Cabelopresoousolto?—Hmm...nãosei.—Pegouumaescovaepassounocabelo.—Então...com

quemoLucasvai?—ComaLisa,éclaro.—AvozdeJosaiuabafadaenquantoelapegavaoutro

pardesapatosdelicados.—EoCarter?—Soubeque ele convidou aClare.— Jo repousouos sapatos.—Achoque

presoficamelhor.—Podeserpreso.QueméClare?—Pequenininha,loura,bonita.Édanossaauladebiologia.Terceira la.Acho

queelafazinglêscomvocêtambém.Elessaíramanopassadoeaíeledeuumforanamenina.Todomundo coucomraivadeleporqueelaéumamor.Parecequeestãovoltando.

Allieseolhounoespelho.PorqueeudariabolapracomquemoCartervai?Elalevantouocabelocomasmãos.—Quebabaca.É,achoquevocêtemrazão.Presoficabom.Josorriu.

—Excelente.Depoisqueagenteescolherumvestidoeuvousaberoquefazer.— Dispôs os três vestidos na cama, avaliando-os criticamente. — Certo.Tira aroupaeexperimentaessesdaí.Hojeagentedecide.

O primeiro vestido que Allie experimentou era preto e justo. Encostava noscalcanhares,tinhagolaaltaedeixavaascostasnuas.Eraincrivelmentesofisticado.

—Adorável—disseJo,estudandoocortedovestido.—Masparapessoasumpoucomaisvelhasquevocê.

—Total.Eupareçoter,tipo,trintaanos.—Allieoretirouporcimadacabeça,jogando-odevoltanacama.Ovestido seguinteerabranco,comumasaia longaelisa,edealcinha.

—Lindo!—declarouJo.—Comcaradeverão.Virginal.AlliefranziuonarizeentãorodopiounafrentedoespelhodeJo.— É meio colado — disse, incerta. O vestido abraçava cada curva, deixando

poucoparaaimaginação.—Masvocêsegarante—a rmouJo.—Ficalindocomseutomdepele,eeu

tenhoumsapatoperfeitopraele.Oúltimo vestido era o favorito deAllie. Seda azul-escura, até o joelho, tinha

umasaiavolumosacomumforrodeorganza.OdecoteemVdecoradocomcontastinha o comprimento ideal na frente e as costas altas. As mangas eram justas eterminavamlogoabaixodocotovelo.Caíacomoumaluva.

Quando Allie puxou o zíper lateral e se virou, Jo exclamou dramaticamente,comamãonocoração:

—Você estámaravilhosa.Esse éumvestidoquevocê tinhaqueusar todososdiasdasuavida.Menosnobailedeverão.

—Porquenão?—Éumvestidodeinverno.Todomundovaiestarusandoroupaslevesdeverão

evocêvai suarnessa sedapesada.Guardaprobailede inverno.Queémuitomaisimportantequeodeverão,aliás.Masescondeessevestidoatélá.Vaiseroquevocêvaiusarnanoiteemqueforchocartodomundo.

Jo parecia tão certa que Allie não viu razão para discutir. Entendia pouco deroupa, pois sempre fora do tipo calça jeans e tênis.Nas raras ocasiões em que searrumara para casamentos, fora suamãe quem escolhera as roupas.Mas tinha queadmitirqueovestidobrancoficavabom.

Jolevantouumpardesandáliasprateadascomsaltobaixo.—Quetal?Perfeitasouperfeitas?—perguntou,radiantedeorgulho.Erguendoasmãoscomoquemserende,Allieriu.—Sãoperfeitas.

—Agora,oseucabelo...Joa fez se sentardenovonacadeira.Passouumpentepelasondasespessasdo

cabelodelaeoprendeuemumrabofrouxo.Semahennaqueusavaemcasaparapintá-lo em tons vibrantes de vermelho, o cabelo de Allie estava desbotando aospoucosparaocastanhonatural.

Jo trabalhou em silêncio por um tempo, mas Allie via que estava pensando.Depoisdeumtempo,elafalou:

—Então,porquevocêseimportacomquemoCartervailevarprobaile?Alliesecontorceu,sentindo-sedesconfortável.—Naverdade,eunãome importo... sóestavacuriosa.Comovocê temtanta

certezadequeoSylvainvaimechamar?Joenrolouumamechadecabelonumcoquelustrosoeoprendeunolugar.—Umpassarinhomecontou.Umpassarinhomuitosábio.—Queriaqueelemeconvidassedeumavez—murmurouAllie,vendooseu

cabeloganharumaaparênciaestilosa.—Todomundojátemcomquemir.— Pronto — exclamou Jo. Ela recuou e sorriu pelo espelho, obviamente

satisfeita.—AsorteédoSylvaindeircomvocê.OscabelosnormalmenterebeldesdeAllieestavamlisosebrilhantes,presosem

um penteado leve com um laço branco de seda, formando um coque. Algumasmechasonduladasemolduravamseurostooval,ressaltandoosolhosdecorcinza.

—Táincrível—suspirouAllie,olhando-seespantada.—Éassimquevocêvaiusarocabelo—disseJo,acrescentando—,segostar.Allieabraçouaamiga.—Amei.Ondevocêaprendeuafazeressascoisas?—Escolademenina—respondeuJoalegremente,enquantorecolhiaossapatos

dochão.—Naqualachoquevocêtambémestámatriculadaagora.Allie cou quieta por tanto tempo que Jo, que estava ocupada guardando os

sapatos,paroueaolhoupreocupada.—Tátudobem?Nãoquisinsinuarnadacomisso.Alliesorriuparaela.—Tudobem,nãosepreocupa.Équeeutiveopensamentomaisestranho.—Qual?—Jovoltouaorganizaroscalçados.— Mesmo com tudo que anda acontecendo, mesmo com o Carter sendo

babaca,oSylvainnãomeconvidandoeasaulassendosuperdifíceis,comtudoisso,achoqueeuestoumeio...feliz.

—Issoéporquevocêélouca.—Joriu.—Não,ésério.Felizmesmo.Pelaprimeiravezemmuitotempo.Sabe,achei

queeuiaodiaresselugar.Estavaprontapraisso.Eminhaantigaversãoteriaodiadopensaremvestidos,bailes,sapatos,cabeloepreocupaçãocomaparência.Maseunãoodeio.Eu...atéquegosto.

Ajoelhadaarrumandotudonoarmário,Joolhouparaela.—Eissoébom,nãoé?—É—respondeuAllie,pensativa.—Achoqueé.

Cerca de uma hora depois, Allie levou os vestidos de volta para o quarto e osguardou no armário. Ajeitou o cabelo num rabo de cavalo, guardandocuidadosamenteoslaçosnagavetasuperiordaescrivaninha.Olhandoparaorelógio,correu — só faltavam 20 minutos para fecharem a sala de refeições depois doalmoço.

—Oi,Allie.—Aoouviravozatrásdesi,virou-seeviuJulescaminhandonamesmadireção.

Ótimo.Exatamenteoqueeuprecisavaagora.—Ah.Oi,Jules.Comosempre,ocabelolourocortadoretodeJulesestavaabsolutamentemacio,

e ela estava com as sandálias Birkenstock cor-de-rosa. Allie pensou novamente noquãoinjustoeraterqueusarosseusprópriossapatos.

—Eutavapensando—disseJules—,vocêvainobaile?Deviair.Seiquevocêénova,maséumaexperiênciaquenãovaiquererperder.Nãoprecisaterumpar.

Alliesearrepiouumpoucocomaúltimafrase.—Sim,eutôplanejandoir—respondeu.—Ah,queótimo!Sabecomoé,talvezvocênuncamaiscurseaescoladeverão

aqui,aíseriapéssimonãoiraobaile.Alliefranziuorosto.—Porqueeununcamaiscursariaaescoladeverão?Julespareceuconfusa.—Ah,nãoquisdizernadacomisso.Ésóque,vocêsabe,normalmenteésópros

melhoresalunos.Euentendoquevocêestáaquipor...outrosmotivos.Alliesesentiucomosetivesselevadoumsoco.—Comoassim?Quemotivos?— Ah, você não sabia? — Jules parecia cada vez mais desconfortável. — A

Isabelle fez um esquema especial pra essa temporada. Depois disso, presumo quevocêvásejuntaraosoutros...aosalunosnormais,sabe?

Allieajeitouosombrosedeuumpassoparaafrente.—Oquevocêtátentandodizer,Jules?Quemeulugarnãoéaqui?

—Não,claroquenão!—Julesdeuumpassoprecipitadoparatrás.—Esperoqueeunãotenhateofe...

—Meofendido?Sim,Jules,vocêmeofendeu.—Virou-seecorreu,ospunhoscerradoscomtantaforçaqueasunhasformaramluascrescentesnaspalmasdasmãos.

Aopédaescada,elasevirounumsolavancoequasetromboucomSylvain,queaseguroucomfacilidade.

—Vocênuncacaminhanormalmentepralugarnenhum?—Eleriu,segurando-a.

—Sóquandoaocasiãoexige—respondeu,avozmaisbruscadoquepretendia.Elarespiroufundoetentouseacalmar.

—Oquehouve?—examinou-acomolhospreocupados.—Tudobem?Alliedeudeombros.—AcabeidetoparcomaJules.É...Ah,nãovaleapena.Elaéumaescrota.Elepareceusedivertir.—Ah,elaàsvezesébem...difícil.Maseunãoalevariatãoasério.Elaédobem.EletinhaumjeitodesorrircomoolharaqueAlliesimplesmentenãoconseguia

resistire,uminstantedepois,elaretribuiuosorriso.—Temrazão.Eunãodevodeixarelameafetar.—Eutavatorcendoprateencontrar,prafalaraverdade.—Sylvainseapoiouna

parede, pegando amão dela, e a puxoumais para perto, para uma conversamaisíntima.

Eleéomáximo.Comoelefazisso?—Queriateperguntarsevocêjátemcompanhiaprobaile.Allie sentiu as bochechas carem vermelhas e o coração acelerar.Tenho que

pareceromaistranquilapossível.Balançouacabeça;—Não,aindanão.Sylvaincontinuavaolhandofixoparaela.—Estavatorcendopravocêaceitarircomigo.Ir pro baile?Querome apaixonar eme casar com você.Ter lhos, comprar uma

casa,morarnaFrança...—Adoraria—respondeucalmamente.—Ótimo.Malpossoesperar.—Elesorriudeformasexyesonolenta.Ficaram parados por um instante, como se relutassem em se separar um do

outro,eentãoelelevantouamãodela,deuumbeijosingeloeasoltou.—Melhoriralmoçarantesquefechem.Elaconcordou.

—Atémaistarde.—Àbientôt.Allie utuouatéasaladerefeiçõesnumanuvemdefelicidadeequasenãoviuJo

namesa de sempre acenando para ela. Estava comendo uma salada verde quandoAllieseaproximou.

—Nãocomonadaalémdesaladaatéobaileounãoentronovestido...oquehouve? — Jo foi tão rápido da declaração para a pergunta, e Allie estava tãoembriagadadeamor,queporumsegundo cousóencarandoaamiga.—Vocêtácomcaradequeaconteceualgumacoisa.Conta,oquefoi?—exigiuJo.

Alliesorriucomcaradesonhadora.—OSylvainmeconvidou.Josaltoudacadeira,gritouedançouaoredordamesa,abraçouAllie.—Eusabia!Nãofalei?Eusou,tipo,onisciente.—Vocêéumgênio—a rmouAllie,rindo.—Achoqueémelhoreutambém

sócomersaladaseforusaraquelevestidobranco.Devoltaaopróprioassento,Jopassouatigeladesalada.—Essevaiseromelhorbailedeverãodetodosostempos.Mas enquanto Allie servia folhas no prato, ergueu os olhos e viu Carter

encarando-afuriosamentenumamesapróxima.Quandoelepercebeuqueelaotinhavisto,selevantouesaiucontrariado.

A

TREZE

sduassemanasatéobailepareceramdurarmeses,eAlliesentiaqueaescolainteiraestavaemestadodeanimação suspensa.Asaulas searrastavam.Osprofessoresserecusavamacederàapatiaeàdistraçãodosalunos,deforma

que os trabalhos se acumulavam, mas, pela primeira vez, a biblioteca estava bemvaziaànoite.

—Se eunão conseguir acompanhar essa semana... que seja—declarou Jo.Adramaticidadedaa rmaçãofoirelativamenteprejudicadapelofatodequeelaestavasentadanacamaebalançandoumatiara.—Semanaquevemeurecupero.

—Eutambém!—Allieestavadeitadanochão,debarrigaparabaixo,folheandouma revista de beleza e contemplando penteados. — Será que eu devia cortar ocabelocurto?—perguntou,levantandoumafotodeumamodeloquepareciaumafada.

JoinclinouatiaranadireçãodeAllie.—Um novo corte de cabelo eleva o espírito, jovemAllie.Nunca se esqueça

disso.Masesseécurtodemaisproformatodoseurosto,sópravocêsaber.Allievirouapágina.—Sábiaspalavras,Josephine.Sábiaspalavras.Noseuquarto,ovestidobrancoestavaconvidativamentependuradonaportado

armário,comossapatosdeJonochãologoabaixo.Todamanhã,aoacordar,eraaprimeiracoisaqueelavia,etodanoiteriscavaumadataemseucalendáriomental.

Ao mesmo tempo que Allie tentava deixar o trabalho escolar em dia, achavaquase impossível seconcentrar.Então,algunsdiasantesdobaile,quandosepegoulendo o mesmo parágrafo do livro de História pela quinta vez, desistiu de vez.Levantando-sedaescrivaninha,seespreguiçoueentão couparadaolhandoopôrdosolpelajanela.

Precisomemexer.Elapegouaroupadecorridaeprendeuocabelonumrabodecavalo.Aodescer

as escadas só passou por outra aluna e, quando se inclinou de forma que fossepossívelolharparabaixoeavistaroandarprincipal,nãoviuninguém.Láfora,osol

batianagramaverdeemacia.Daescadariadaentradadavaparasevervárioscorposcozinhando sobre toalhas e cobertas espalhadas pelo gramado, mas ela nuncaconseguiraentenderoatrativodesedeitaraosol.Emvezdisso,partiuemdireçãoaocaramanchão, correndo em ritmo veloz. Movimentar-se sempre a ajudara a seacalmar,eelamergulhoudecabeçanaatividade.Correndomaisdepressapelatrilha.Contoucadapassosilenciosamente.

—Duzentosenoventaeseis.Duzentosenoventa...—Porquevocêfazisso?AvozpareciatervindodonadaeespantouAlliedetalmaneiraqueelatropeçou

equasecaiu,tendoqueagarrarumgalhoparaservirdeapoio.Carter estava na beira da trilha, com as mãos nos quadris. Ofegando, ela se

curvouparaapoiarasmãosnosjoelhosenquantorecuperavaofôlego.Aoselevantar,jogouorabodecavalosobreoombro.—Queéisso?Vocêestáfalandocomigoagora,Carter?Quehonra.Desdeadiscussãonabiblioteca,Cartervinhaevitando-aeelanãoseincomodara

nemumpoucoempermitirqueeleofizesse.CarteragiucomoseAllienãotivesseditonada.—Essacoisadecontar.Játeouvifazendoissoantes.Porquevocêfazisso?—Nãoédasuaconta,seumaníaco.Agorasaifora.Voltandoparaa trilha,elacomeçouacorreroutravez,maseleacompanhouo

ritmocomgrandefacilidade.—Foiumasimplespergunta.Alliesoltouumganidofrustradoeacelerou,estimuladapelaraiva.Maselenão

ficavaparatrás,eelafinalmentegritouemondascurtas.—Você não. Ignora alguém. Por semanas. E depois. Faz perguntas. Pessoais.

Seu.Babaca.—Temperamental.—Queseja.Osilêncioseabateuenquantoelaseconcentravaemnãofalarcomele.—Allie,nãoconfianoSylvain.—Euestouteignorando.—Nãopossoexplicaromotivo.Maselenãoéquemvocêpensa.Alliediminuiuoritmoeoencarou.—Eoqueissosignifica?Elecomeçouafalareparou.Balançandoacabeça,enojada,elacorreupelatrilha

—apósumtempo,nãoouviamaisospassosdele.Quandootelhadodocaramanchãoapareceusobreasárvores,mesmocomtoda

aquelaraiva,Alliesuspirou.Nãotinhaconseguidovê-lodefatonanoitedachuva.Era lindo — uma construção fantástica, com um telhado estreito e pontudo seerguendo a sete metros e meio, coberto por telhas mouras coloridas e de designelaborado.

Seispilaresdelicadamenteesculpidossustentavamovívidotelhado.Elasubiuosdegraus até o interior a céu aberto, encobertopor sombras, ondeumcorrimãodepedraebancoscirculavamasbordas.Acomodando-senoassentogelado,Allieapoiouoqueixonobraçoeolhouparaafloresta.Carternãoestavaemlugarnenhum.

Doqueeleestavafalando?Seriasóciúme?Ouerasério?Pareciasério.Tentoupensar em algo que Sylvain tivesse feito para deixá-la descon ada.Ele

sempre estavapresentequando ela arranjavaproblema.Ele aprotegeradeZelazny.Sim,Sylvaineramalandro,esim,pareciaserriquíssimo,masnãobancavaoesnobe.Pareciagentil.Carter,poroutrolado,semprefoidifícil,insistente,donodaverdade,ameaçador.

Erabastanteóbvioemquemeladeveriaconfiar.SónãoentendoporqueoCarterseimportatanto.

Naquela noite no jantar, quando Allie chegou à mesa, Jo, Lisa e Ruth estavamconversandoanimadamenteemvozbaixa.

—Temquefazer,Lisa—disseJo.—Éatradição.—Euvoufazer,evocêsabequeeuodeioessetipodecoisa—disseRuth.Claramente relutante,Lisamexeua comidanoprato,os cabelos longos e lisos

caindoparaafrenteaoredordorosto.—Nãosei.Éumpoucoestranho.—Oqueéestranho?—perguntouAllie,puxandoumacadeira.—Oquetem

prajantarhoje?Esperoquesejalasanha.—OMergulho deVerão!—Os olhos de Jo reluziam de entusiasmo.—É

sempre na noite anterior ao baile de verão, e a Lisa não quer fazer.Mas tem quefazer.Eeupenseiquevocêsófossecomersalada.

—Ah,droga—disseAllie.—Tinhameesquecidodacoisada salada.EquediaboéumMergulhodeVerão?

Elaseserviudeumcopod’águadajarranamesa.—Caramba.Esquecicompletamentedetecontar.—JosoltouobraçodeLisae

sevoltouparaAllie.—Étradição.Osalunosdasúltimassériessaemescondidosàmeia-noitenanoiteanterioraobaileprairnadarnolago.

Confusa,AllieolhouparaLisa.

—Qualéoproblema?Vocênãosabenadar?Erguendooqueixo,LisalançouumolharacusatórioaJo.—Nãoésónadar.Contaaverdade.Jorevirouosolhos.—Ok,tábom.Ésemroupa.Precisasertãopudica,Lisa?Vaisersensacional!Allieengasgoucomaágua.—Oquê?Todomundo?Meninosemeninas?Pelados?Ruthaafagounascostas.—Énoescuro,Allie.—Joestavacomeçandoasoarirritada.—Enãoénadade

mais.Vocêsómergulha,saiesevestedenovo.Nãoé lmepornô.Édiversãolegal,semproblema,éumatradição,evocêtemquefazer,porqueeunãoqueroirsozinha.

Allieseinclinouemdireçãoaela.—Deixaeuversetôentendendo:você,eu,aRuth,aLisa,nossosparesdesexta

à noite e um monte de estranhos vamos car pelados num lago. Juntos. Pordiversão.

—Exatamente!—respondeuJoalegremente.—Etodasnósvamos,certo?Lisaparecianauseada.—Com certeza a Allie não está convidada.—Katie estava ao lado damesa,

linda como sempre.— Ela é nova demais na escola. Isso é só para os alunos daCimmeria.

—Ah,nãoenche,Katie.Sério.—Joaencarou,furiosa.Katieficouondeestava.—Ésério,Jo.Nãoachojusto.VoufalarcomaJulessobreisso.—NãopodefalarcomaJules,suaidiota—argumentouJo.—Éextrao cial.

Elanãopodefazernada.—Jo—disseAllie,comosdentestrincados—,quandovocêdissequerolaesse

mergulho?—Quintaàmeia-noite—respondeuamenina,comumbrilhoendiabradonos

olhos.—Ótimo.Euvouestarlá.Katieaolhoufriamente.— Se zer isso, Allie, depois não vai chorando pra Isabelle se alguma coisa

acontecer.Sólembraqueeuavisei.EnquantoKatieseafastava,Alliemurmuroubaixinho:—É,evocêseimportaporqueéminhamelhoramiga,Katie.Jodeuumrisinho.—Esqueceela.Quebomquevocêvai.Touansiosaporissodesdequeentreina

Cimmeria.SeaLisaeaRuthtambémvierem,nóspodemosfazertodasjuntas,evaisermelhorainda.

Parecendo infeliz, Lisa encarava o prato vazio. Allie sorriu para Jo, mas seucoraçãoafundou.Jáestavaarrependidadeterconcordadotãorápido.Mesmoassim,oquepoderiaacontecer?

—Mascomoagente saidaescola semninguémver?—perguntou.—Querdizer,osprofessoressimplesmentedeixamvocêmergulharnuanolagonoescuro?

OolhardeJolherespondeuantesmesmoqueeladissesseumapalavra.—Eles fazem o possível pra impedir.Quer dizer, imagina a fúria dos pais se

alguémsemachucasse?—Sorriualegremente.—Escaparémetadedagraça.Quandoasportasdacozinha seabrirameos funcionários surgiramcarregando

travessasdelasanha,Allieresmungou.—Nãoseioqueépior,serforçadaadeixarpassaralasanhaounadarpeladacom

aKatieGilmore.—EueoGabetemosumplanopraescapar—disseJo.—Vamosconversar

sobre ele depois do jantar. Vem pro meu quarto às oito e a gente monta nossoesquema.—Começouaencheropratodesalada.—Adoroisso.

Àsdezparaasoitodaquelanoite,Allieestavanocorredor,doladodeforadaportadoquartodeJo.Ouvindovozesládentro,levantouamãoparabater...eabaixou-anovamente.Uminstantedepois,serecompôsebateuàporta,girandoamaçanetaeentrandoemseguida.

Jo,Lisa,Ruth,GabeeLucasestavamsentadosemumcírculo.Allieassumiuumlugar no chão entreRuth eLucas, e, levantando os pés, abraçou os joelhos.Gabeestavaapontandoparaumapequenaáreanummapa.

—...então,considerandotudoisso,achoqueaúnicaformaseguraépelaaladassalasdeaula.

Lucaspareciacético.—Espera,tudoqueagentesabeéqueasoutrasportasvãoservigiadas.Porque

nãovigiariamessatambém?—Doismotivos—disseGabe.—PrimeiroporqueAsRegrasa rmamquea

gente não pode ir pra essa ala fora do horário de aula de jeito nenhum, então, aencrenca que a gente ia se meter se zesse isso seria enorme. Segundo, porque émarcadacomoumaportadeincêndiocomalarme.

—Oqueagentevaifazeremrelaçãoaoalarme?—perguntouAllie.ArespostadeGabefoisimples.—Nãotemalarme.

HouveumacomoçãoeGabe,quepareceusedivertircomoespanto,levantouasmãospedindosilêncio.

—Nãotemalarmeemlugarnenhumnesseprédio.Todasasplacasde“alarme”sãofalsas.

AvozquietadeLisainterrompeuosilênciodeespanto.—Porquê?—Nãosei—respondeuGabe.Observando-odeperto,Allieteveaimpressão

dequeestavamentindo.Elesabiaexatamenteomotivo.Sónãoqueriarevelar.Nãotemalarmedeincêndio.Nemalarmecontraroubo.Nadapraalertarninguém

sobrecoisaalguma.—Então—Joafastouaconversasobreoalarme—,comoagenteentranaala

dassalasdeaulasematrairatenção?—Essaeusei—disseLucas.—Agentefazoseguinte...

–A

CATORZE

i!—Pulandoparacimaeparabaixonoescuro,Joagarrouodedodopé.—Shhhh.—ApesardeJonãoconseguirvê-la,Allielevantouumdedopara

oslábioseambascongelaram.Eramonzeemeiadanoitedequinta,eelasestavamnaescada,noescuro,ochão

lustroso demadeira frio contra seus pés descalços.Haviam elaborado o plano atétarde da noite na véspera e conversado sobre ele por metade do dia. Allie tinhaconcluídoquesairdoprédiodocolégiocertamenteseriaamelhorparte.

Agoraestavamatentasaquaisquersons,qualquersinaldequehaviamnotadoapresença delas, mas a velha escola estava em silêncio. Passado um instante,começaramdenovoatatearescadaabaixo,ambaslevandoossapatosnumamãoesesegurandoaocorrimãocomaoutra.Lucasaslembraraqueoantepenúltimodegraurangiaeelasosaltaramcuidadosamente.Quandochegaramláembaixo,AllieolhounadireçãodasaladeIsabelle—nãoseviaqualquerluzporbaixodaporta.

Osolhosdelaestavamseajustandoàescuridão:jáenxergavaumpoucomelhor.Enquantocaminhavamnaspontasdospéspeloamplocorredoratéaentradada

aladassalasdeaula,Allieparou.—Ouviuisso?—sussurrou,malmovendooslábios.Jobalançouacabeça,masentãoambasouviramoruído.Passos.Perto.Alliegirouemcírculos,procurandoumlugarparaseesconder.Pensandorápido,

correu para trás de uma coluna de pedra, puxando Jo consigo. Alguns segundosdepois,umasombraágilesvoaçoupelocorredor.Allieseencolheucontraaparede,mas Jo se inclinou para a frente, cerrando os olhos na escuridão. Antes que Alliepudessecontê-la,elacorreuatrásdasombra.

— Jo! — sussurrou Allie, mas não houve resposta. Ela hesitou por ummomento,pensandonoquefazer,eentãofoiatrásdela.Aprincípionãoconseguiuvernada,masentãoesbarrouemJo,queestavanofinaldosaguãocomLisa.

—Acheiela!—sussurrouJo,claramentecontente.Lisapareciamenos animada, eAllie cou imaginandoporque ela teria vindo.

Fora tão relutanteemtodasasconversas sobreoassunto.Agoraparecia incapazde

car de pé, saltandonervosa de umpé para o outro comoumadançarina ansiosaantesdeumaapresentação,osolhosenormesnorostodelicado.Allieaolhoucomsolidariedade,emseguidaapontouparaaentradadaaladassalasdeaula.

Joassentiu.—EaRuth?—Alliesussurrou.—Táatrasada;nãodápraesperar.Alliegirouamaçaneta.Seaportarangesse,estariammortas.AportaabriusilenciosamentenasdobradiçasqueGabelubrificaranaquelatarde.Entrarameentãocorreramomaisrápidopossívelpelolongocorredor.Aúltima

portaeramarcadacomplacasameaçadorasdeaparênciao cialquealertavamsobrealarmese segurança;havianúmerosparaosquais telefonaremcasodeemergência.Allieimaginouquemiriaatenderseelaosdiscasse.

Paradasporum rápido instante, trocaramumolharnas sombras, e então cadaumacolocouumadasmãosnaporta.QuandoJosinalizou,aem purraram.

Aportaabriusemqualquerruído.Apressadas, tropeçaramporumatrilhacobertadecascalhoquecortavaseuspés

descalços. Saltitavam comicamente, calçando os sapatos e tentando não gritar.Pensandoemquãoridículaspareceriamaqualquerpessoaolhando,Allieabafouumarisada.

—Vaivaivai!—sussurrouJo,ecorreramdescuidadamentepelanoite,esticandoosbraçosumasparaasoutras,atéqueastrêsestivessemdemãosdadas.

Quando chegaram às árvores, Jo e Lisa estavam sem fôlego e pararam uminstante para recuperá-lo. Allie estava ansiosa — ainda estavam perto demais daescola.

—Qualéocaminho?—sibilou.Joapontouparaadireitacomacabeça,eAlliedeusinalparaquesemovessem.Continuaramemumritmomenosacelerado.

Deinício,obosqueestavaquasequeinteiramentesilencioso,masgradualmenteAlliecomeçouaperceberruídossussurradoseosomdegravetosestalando.Esticandoo braço para Jo, apertou a mão dela e apontou com a cabeça para a direção dobarulho.PôdeverosdentesbrancosdeJonaescuridãoquandoaamigasorriu.

—Osoutros—sussurrou.Àmedidaquesedistanciavamdaescola,aspessoas cavammaisdescuidadas,e

logoconseguiramescutaroutrosruídos:risadinhasabafadas,xingamentossussurradosocasionalmentequandoalguémtropeçava, chamados falsosdepássaros seguidosdemaisrisadassufocadas.Alliesentiuatensãoentreasomoplatascomeçaradiminuir.

JoparoutãorepentinamentequeAllieeLisaquasetropeçaramnela.—Chegamos— sussurrou, e desapareceu atrás de um arbusto.Espiandopela

escuridão,Allienão conseguiu vernenhum lago, só árvores e vegetação.Mas ela eLisaseguiramJoparaumcantoafastado.

—Porqueagentetáseescondendo?—sussurrouLisa.— Ninguém pode saber quem está aqui até meia-noite — disse Jo. — É

tradição.—Comovocêsabedetudoisso?—perguntouAllie.—Meuirmãomecontouquandoeleestudavaaqui—explicouJo.Jo tinha um relógio commostrador que brilhava no escuro, e as três caram

olhandoenquantooponteirodosminutossemoviainexoravelmenterumoàmeia-noite.

—CadêaRuth?—perguntouAllie.Joestendeuasmãosvazias.—Erapraelaternosencontradonaescolaounocaminho,entãoimaginoquejá

estejaaquiemalgumlugar.—Veri couorelógio.—Quase—sussurrou,abrindoumsorrisolargo.—Sepreparem.

Allie sentia Lisa tremer. Queria confortá-la, mas ela própria estava muitoassustada.Respiroufundoeolhounadireçãoemqueimaginouqueolagoestivesse.

Euvoumesmofazerisso?Querdizer,queméquenadapelado?Nãoéumacoisaquesóacontecenosfilmes?

Naqueleinstante,umavozgravemasculinarompeuosilênciofazendo-apular.—Tánahora,galera.Abaixemascalças.EnquantoAllieeLisahesitavam,Jocomeçouadesabotoaroshort,masquando

viuqueasduasaindanãotinhamsemexido,parouelançou-lhesumolhardealerta.—Melhorentrarnaonda—falou.—Aessaalturaseriapiorvoltarsemfazer.LisaeAllietrocaramumolhardepavor.—Sevocêfor,euvou—disseLisa,afinal.Allieouviaagoragentecaindonaáguaàsgargalhadas.Suspiroupesadamente.—Ah,dane-se.—Noqueelaabaixouacalça,Jovibrouearrancouoshort.Em

segundosestavamtodasnuas.LisaeAlliecruzaramosbraçosprotetoramentesobreospeitos,masJoagarrouasmãosdeambas.

—Sevãofazer,quesejacomorgulho—declarou,puxando-aspelocaminho.Noescuro,Alliesóviacorposderelancenoqueaspessoaspulavamparadentroe

paraforadeumlagoqueelanãoconseguiaenxergardireitonobreu.—Notrês—disseJo,rindo.—Um.Dois...Saltaramnoescuro,espirrandoáguagelada.Alliemalconseguiaenxergarolago.

O ruído claro das risadas ao seu redor foi abafado e se transformou em silêncioquandoelamergulhou.Surpreendeu-secomaprofundidade;elanuncaforagrande

nadadora.Debatendo-seacaminhodasuperfície,veioaelaamemóriarepentinadeumdiaquentedesol.Tinha7anosdeidade,eChristopheraestavaprovocandoporafundarcomoumapedranapiscina.

—Vocêcorreigualaumcoelho,mastambémnadaigualaumcoelho...—riaele,enquantoelabatiaosbraçosdesgovernadamente.

Agora,aoemergirembuscadear,espalhandoáguaetremendo,nãoviaJonemLisaemlugarnenhum.

—Jo?Comoelaseperderadasduasemsegundos?Masolagoestavalotadodealunos

rindo — nenhum dos quais parecia familiar. Ao se debater na água geladaprocurandoumrostoconhecido,Alliefoi candocadavezmaisempânico.Estavasozinha e nua em um lago repleto de estranhos. Lágrimas quentes de medo evergonha queimaram seus olhos. De repente percebeu que estava lutando pararespirar.Hásemanasnão tinhaumataquedepânico,masagoraestavaencadeandotrêsrespiraçõessofridasenquantolutavaparapermanecerboiando.

Nãoconsigo...respirar...Submergiuporumsegundoe sacudiuaspernas com força tentandochegarde

novoàsuperfície.Embaixodaáguaopédealguématingiusuacanela,eelasentiuumadormuitofortenaperna.Nãogritou—nãotinhaarsuficienteparaisso.

Maisumavezaáguafriasefechousobresuacabeça,emaisumavezelatentousubir.Masdestavezduasmãosfortesaagarrarampelosombros,puxando-aparaasuperfície.Sentiuumaondadegratidão,masaoverquemaestavaajudando,lutouparasesoltaraomesmotempoquetentavacobrirospeitoscomasmãos.

— Tá tudo bem, Allie. Olha pra mim. — A voz de Carter era calma eimperativa e seus olhos estavamgrudadosnos dela.—Respira devagar pelonariz.Nãoolhaprolado.Respiradevagar.

Elatentouexplicarparaelequeestavamorrendo,masnenhumapalavrasaiu.—Inspira—disseele,demonstrando,comolhosqueaencorajavamatentar.—

Eexpira.—Elesopravaarcomforça.Quandoelatentoufazeroqueelepedia,arespiraçãosaiufracaeumaondade

medotomoucontadela.Nãoiriaconseguir.Mastudobem,deverdade.Seeupudersódescansarumsegundo...Seusolhossefecharameaescuridãopareceucobri-la.QuandoCarterlhedeuumtapanorosto,elaseespantoutantoquerespiroupor

reflexo.Aquelaondadeoxigêniorenovousuasesperanças.—Vocêconsegue,Allie.Respiracomigo.—Elasentiuqueeleestavatentando

manteravozfirmeelheocorreuquerealmentepoderiamorrer.

Carter respirou fundo e ela tentou fazer omesmo.Desta vezumpoucode arentrounospulmões.

—Ótimo!—disseele.—Outravez.Ela respiroumais fundo e sentiu a rigidez do peito começar a se soltar. Ele a

encorajava,masAllietremiatãoforteagoraquenaquartarespiraçãobem-sucedidasedebulhouemlágrimas.

—Tátudobem,Allie—disseCarter,colocandoosbraçosgentilmenteaoredordoseupescoço.—Continuarespirando.

Protegendoocorpodela comopróprio, ele a retiroudaágua, levando-aaté amargem. Allie ouvia as pessoas rindo e jogando água ao redor, mas não sabia,tampoucoseimportava,seestavamrindodela.

AvozdeCartersoousuave.—Cadêsuaroupa,Allie?—Nãosei—sussurrou,rouca.Elesorriuummeiosorriso.—Porqueeunãomesurpreendoemouvirisso?—Eleaajudouasairdatrilha

e conseguir relativa privacidade atrás de uma grande árvore.—Fica aqui. Eu vouacharalgumacoisapravocêvestir.

CartercaminhouparadentrodassombraseAllieviuosmúsculossemovendoemseusquadrisecostas,eseforçouacontinuarrespirando.

Eleélindo,pensou.QuandoCarter reapareceu, algunsminutos depois, já tinha vestido um short.

Nasmãostraziaumacamisadehomemeumshortfeminino.—Foiomelhorqueeuconsegui—disse,sedesculpando.Comoeleestavasemcamisa,Allieteveasensaçãodequearoupadehomemque

trouxerafossedelepróprio.Elasevirouenquantovestiaoshorteentãovoltou-separaele,estendendoamão

parapegaracamisa.Carteraentregousemdizernada.Allienãoconseguiaverorostodelenoescuro,masaoseajeitarnacamisa larga sentiuocoraçãobater tãoaltonopeitoqueachouqueelecertamenteestariaouvindo.

—Pronta?—Allienotouqueavozdeletremeu.—Sim.Esticandoamãoparapegaradela,ajudou-aasairdoesconderijodevoltaparaa

trilha.OcalordamãodeCarteraconfortava—seusdedoseramfortes,eAllieosagarrou.

—Nãoconseguiacharnenhumsapatopravocê—explicouorapaz,ansioso.—Vocêpodemachucarospés.Querusarosmeus?Oupossotecarregar?

Apesardepedrasafiadasestaremcortandoseuspés,Alliebalançouacabeça.—Eutôbem—afirmou.Aoseafastaremdolago,osbarulhoserisadasforamsecalandoatrásdeles.Mais

algunsminutoseoúnicoruídoqueescutavameraodasprópriasrespirações.CartercontinuavasegurandoamãodeAllie.

Quandotevecertezadequeestavamsozinhos,Allieparoueoolhou.—Carter...obrigada.Soltando-lheamão,eleolhouparabaixo.—Nãofoinada.—Não,Carter.—Allie pegou amão dele de novo.Quando se olharam, os

olhosdeleestavamtãovulneráveisqueelanãoconseguiudesgrudarosdela.—Foimuito.

Ficaramseencarandoporumlongoinstante,maslogoqueelecomeçouafalar...—Allie!Carter!—AvozdeJo,correndopelatrilhaemdireçãoaelescomGabe

eLisalogoatrás,quebrouoencanto.AgarrandoAlliepelosombros,Joasacudiu,preocupada.—Ondevocêtava?Tátudobem?Teprocureiportodososcantos.Mesmoaofazerquesimcomacabeça,Alliesentiuochoroindesejadovoltar.—Nãoconseguiacharvocês.OCarterme...—virou-separaencará-lo,masele

nãoestavamaislá—...ajudou—sussurrou.

Ocafédamanhãnodiaseguintetranscorreuemsilêncioabsoluto—osalunosquehaviampassado boa parte da noite na oresta eram facilmente identi cáveis peloscabelosdesalinhadoseoscírculossobosolhos.JoeAlliesentaram-sepraticamenteem silêncio, comLisa bocejando ao lado.Nenhumadelas estava com fome.Alliesegurava uma xícara de chá quente, como se fosse a única coisa que lhemantinhaviva,enquantoJoquebravaumpedaçodetorradaempartículasminúsculas.

AlliepassaraanoitenochãodoquartodeJodepoisdevoltaremdespercebidasparaaescola,usandoamesmaportapelaqualhaviamsaídoumahoraantes.

HaviamconversadoatéquatrodamanhãeAllieentãodisseraaJoquesesentiamelhor,masnãoeraverdade.

Querdizer, como superarumataquedepânico, pelada,na frentedametadedaescola?

Aomenos agora ela sabia o que tinha acontecido depois de pularem todas nolago.Duranteanoite,Jocontoutodaahistória.ComoGabeeLucasjáestavamnaágua e tinham visto as meninas se jogando. Que Gabe agarrara Jo assim que elavoltaraàsuperfícieeapuxaraparaondeelesestavamnadando,pertodeumaárvore.

Como ela tinha conseguido agarrar Lisa e arrastá-lamesmo comLisa tentando seesconderdeLucas.EcomoemtodaacomoçãoseperderamdeAllie.

—Olagoencheudegentetãorápidoetavatãoescuroquequandoeuvolteipraondeagentetinhaentradonaágua,ouondeeuacheiqueagentetinhaentrado,nãoteacheiemlugarnenhum—disseraJo.ForamJuleseRuthqueacabaramcontandoaelaquetinhamvistoAlliecomCarter,equeAlliepareciamal.—ARuthacabouindocomaJulesno mdascontas,porqueaJulesnãoqueriairsozinha.Eelaachouque a gente tinha bebido, e que por isso você tava passando mal, e cou meenchendoosaco,porissodemoreiséculosprateachar.

—NãovioSylvainlá,masaverdadeéqueeunãovininguém—disseAllie.—Achoqueelenãofoi—disseJo.—Masbasicamentetodoorestodagalera

foi.Allie,que tinhapreparadoumacamade casacos e suéteresnochão, enterroua

caranotravesseirosobressalentedeJo.—Ficopensando...quantagentemeviutendoumataque?Nacama,Joseespreguiçouebocejou.—Quaseninguém, comcerteza.Achoque, fora a Jules,ninguém te viuhora

nenhuma.—Maselavaicontarpratodomundo.—Nãovai.Elaémonitora.Sabe,elatemodeverdeteapoiaroualgoassim—

disseJo.—Masentão,oqueaconteceuexatamente?AllieexplicousobreoataquedepânicoecomoCarteraresgatara.Nãofaloude

comose sentiraquandoelea retiroudaáguaeaajudoua respirar.Ousobre tê-loolhado se afastando ao luar. Em vez disso, focou em quão calmo ele foi e atranquilidadecomquelidaracomacrise.

Jo pensou por um instante e, quando falou, foi escolhendo palavras comcuidado.

—AspessoasdaquitêmumpéatráscomoCarterporqueeleagecomosefossemelhorquetodomundoeporquejámagooudeverdademuitasmeninasessetempotodo.Fingequegostadelasederepentenãogostamais.E,sabe,eleénadele.Eutôatéumpoucosurpresadeeleteraparecidonolagohojeànoiteouontemànoite—olhouparaorelógio—...essamadrugada.En m.ÉotipodecoisaqueoCartercostumaevitar.Aíaspessoasachamqueele édistante.Maseleàsvezes é legal,deverdade.

Bocejoulongamente.—Muitagentesabequeelenãogostadelasouachaelasfúteis.Eledeixaclaro.— É isso que eu gosto — balbuciou Allie, fechando os olhos. — Ele é tão

honesto.—Honestidadepodeserumacoisaboa—respondeuJo,apagandoaluz.Suas

últimas palavras utuaram da escuridão, desencarnadas.—Mas também pode serruim.

Agora,enquantoelassesentavammexendoocerealnospotes,ninguémpareciaternadaadizer.Lisaeraamaisalegredetodas—sobreviveraaomergulho,eLucasaacompanharaatéaescoladepois.Achavaqueeleestavacomeçandoagostardela.MasatéLisaestavacansada.

— Meu Deus, vou precisar de um cochilo antes de hoje à noite — disse,apoiandoacabeçanamão.—Tôacabada.

—Eutôumcaco—resumiuJo,pegandooaçúcar.—Quemdiriaquedormirservepraalgumacoisa?

—Cacoresumebemaminhasituaçãotambém—disseAllie,bebericandoocháescaldante e bocejando. Ninguém falara nada com ela sobre a noite anterior e,quandoameninaentrounasaladerefeições,nãohouvecochichos.TalvezJotivesserazão e, de tão escuro e lotado, ninguém a tivesse visto car histérica na noiteanterior.

Portradição,asaulasacabavamaomeio-dianodiadobailedeverão.Duranteasaulasdamanhã,Allielutouparasemanteracordada,anotandocoisasquemaistardenãofariamomenorsentido.

Carteraignoroupropositalmentenaauladebiologiae,nadeinglês,elacochilouenquantoesperavaaaulacomeçarenãooviuentrar.Quandolevantouacabeça,eleestava lá,masnãoestavaolhandoparaela.Tudobem.EmoitohorasAllie iriaaobaile comSylvain.Nãoeraomomentodepensar emestarna águanosbraçosdeCarter.Nua.

Elaajeitouospapéissobreamesaetirouolivrodamochila.Não—nãoéomomento.Isabellejáassumiraoseulugarnabeiradocírculodecarteiras.Elaolhouaoredordasala,entendendotudo.—Nossa,algunsdevocêsparecemmuitocansados.Nãodormirambem?Elessemexeramdesconfortavelmentenasrespectivascadeiras.Alguémriu.—Ouvifalarquehouveumaagitaçãonolagoontemànoite.Esperoquevocês

nãotenhamsidoincomodados.Maisrisosnervosos.Aexpressãodadiretoraaobotarosóculoseraenigmática.—Tenho certeza de que a maioria de vocês está sonhando acordada com as

dançasnosbraçosdosrespectivospares,masnósprecisamosteraauladehojeaindaassim — declarou, abrindo o livro. — Pensei em falar de romance hoje. Vamos

começarcomumbelopoema sobreamor secreto.Silentiumamoris foi escrito porOscarWilde, que vocês provavelmente associammais ao humor,mas esta é umahistóriadeamordiretaesimplesmentelinda.

Isabelle leu as duas primeiras estrofes com sua voz rica e poderosa.Perdidanaprosa oral,Alliesedesligouquasequedeimediato,desenhandoumaborboletanocaderno.Estavadecorandoelaboradamenteasasasquandoouviuseunome.

Confusa,seendireitounacadeira.Todosestavamolhandoparaela.—Desculpa?—disse,ficandovermelha.—Bomdia—Isabelledissesarcasticamenteenquantoaturmariabaixinho.—

Eudisse,vocêseimportariadeleraterceiraestrofepramim?Levantando,Alliepegouolivro,limpouagargantaecomeçoualer—começou

rapidamente, mas desacelerou na medida em que as palavras começaram a tomarforma.

MascertamenteparatimeusolhosdemonstraramPorqueestouemsilêncioemeualaúdesemcordas;Seriamelhornossepararmos,eires,TualábiosdemaisdocemelodiaEeuacuidardalembrançaestérilDebeijosnãodadosecançõesnãoentoadas.

Umaondaincontroláveldetristezaseabateusobreela.Porumsegundoachouquepudessechorar,maslutoucontraoimpulso.

Quediaboshádeerradocomigo?—Oqueopoematediz,Allie?HorrorizadadeverqueIsabelleaindafocavanela,tentoupensarnoquedizer.Suavozfoiquaseumsussurro.—Eletemmedodecontarpraalguémcomosesente,mas catristeporaoutra

pessoanãosaberoqueelesente.—Eporqueomedoderevelarossentimentosàpessoa?—perguntouIsabelle.—Porquepodeserqueelanãosintaomesmo.—Nãochegoua ser surpresa

paraAllieque tivesse sidoCartera responder.Elaabaixouosolhosparaocadernoenquanto sua caneta desenhava círculos pequenos e interligados em volta daborboleta.—Entãoeleachamelhornuncachegaradescobrirseforesseocaso.

—Valeapontarqueessepoemapodemuitobemserum“ele”escrevendosobreoutro “ele”,mas, para não desviar a conversa, nós podemos discuti-lo em termosmais convencionais. Então, por que ele achariamelhor assim?— re etiu Isabelle,

cruzandoasalaparaseapoiarnumacarteiravazia.—Elapodesentiramesmacoisa,mas,seelenãoperguntar,nuncavaisaber.

—Eletemmedodesemachucar—sussurrouAllie,acrescentandomaisumeloàcorrentequecriara.

IsabelleolhoudelaparaCarter,curiosa.—Issoexplicaria—disse.—Agora,porfalaremsemachucar,tenhoumpoema

deumtipodiferentepravocês,escritopelaamericanaDorothyParker...Orestodaaulapareceudurarumaeternidade.Quandoacabou,Allieselevantou

rumoàportadecabeçabaixa,decididaanãofazercontatovisualcomninguém.MuitomenosCarter.Foiaprimeiraachegaràescada.Eseuspésbateramcomforçanosdegrausao

subirapressada,contandonacabeça....31,32,33...Nosantuáriodopróprioquarto,fechouaportaeseapoiounela,olhandoparao

espaçoimpecáveletãofamiliar.Oquefoiqueacaboudeacontecer?OCarterestavatentandomedizerquegostade

mim?Oueuestouimaginandocoisas?OSylvaintemrazão?Estava tão cansadaquenão con ava em simesmaparapensar emcoisas sérias

agora.Eacamanaqualnãodormirananoiteanteriorpareciachamá-la.Derrubandoamochilanochão,ajustouodespertadorparaas seisda tardee fechouapersiana,bloqueando a luminosidade. Parou apenas para tirar os sapatos e deitarcompletamente vestida.Era ótimo estar sozinha, e no frescor da escuridão pensoumaisumavezemCarter,antesdeseesquecerdetudoecairnosono.

Q

QUINZE

uandoAllie chegou aoquartode Jo, às seis emeia, ela eLisa já tinhamenchido o cômodo de vestidos e sapatos. Allie estava se sentindomuitomelhor — mais normal. De alguma forma, o sono a tranquilizara.

Independentemente do que acontecesse amanhã, hoje iria se divertir. Aproveitar obaile.Entãoanoitedeontemaconteceu.Edaí?Já tinhapassadoporcoisaspiores.Não se importava com o que ninguém pensava a seu respeito antes de vir para aCimmeria,eissonãoiacomeçaragora.

Lisa,queiaaobailecomLucas(“sócomoamigos,sabe?”),estavacoradadetantaempolgação.

—Euachoessevestidosimplesmenteperfeito.Sua animação era contagiante eAllie imediatamente passou a pensar de forma

maispositivaemrelaçãoatudo.—Vaificarlindo,eutenhocerteza.—Sinceramente,sódepoderpassarumtempocomoGabejávaiserótimo.—

Josuspirou.—Hádiasqueagentemalsevê.—Algumapista do que está acontecendo?—perguntouAllie, pendurando o

vestidobrancosedosonaportadoarmário.Jobalançouacabeça.—Nemumpio.Só“tôtrabalhandonumprojeto...”.—Elaengrossouavoze

utilizou um tom ligeiramente defensivo. Ficou tão parecido comoGabe originalqueLisaeAllieriram.

—É,oSylvainjáémais“éimporrrTANToqueestamosfazENDÔ”—disseAllie,ecaíramnarisadaoutravez.

Uma bandeja prateada de sanduíches cortados em triângulos dominava aescrivaninha de Jo, junto com jarras de suco. Jo insistiu que precisavam comeralguma coisa antes de sair (“ano passado quase desmaiei no baile porque estavaanimadademaispracomerduranteodia”).Magrafeitoumcauledemargarida,Lisamordiscoudelicadamente a bordadeum sanduíchedepepino antes de repousá-loemumguardanapo.Jolhelançoumaisumolhardeaviso.

—Come,Lisa.—Maseunãoestoucomfome...—disseLisa,afastandoosanduíche.Allie,quenãotinhacomidoantesdedormir,pegouumsanduíchedequeijoe

deuumamordidagrande.—MeuDeus,comovocêpodenãoestarcomvontadedecomer?Eutôfaminta.

Mortadefome.Lisa,ainda indecisaquantoacomoprenderocabeloecomeçandoaentrarem

pânico,semdizernadalevantouumarevista,queestavaabertanafotodeumaestrelalouracomumpenteadoelaborado.

—Eu queria que você sóme deixasse fazer amagia acontecer e parasse de sepreocupar com isso—disse Jo.—Eu façomelhor doque isso.Aliás,Allie, voufazerseucabeloagora.TenhoasensaçãoqueodaLisavaidemorarumaeternidade.

Allieenfiouorestodosanduíchenaboca.—Mmhp—respondeu,concordandoenquantosentavanacadeira.— Exatamente. — Jo penteou o cabelo da amiga e começou a girá-lo

suavementecomolaço.—Adorofazerocabelo—revelouAllie,fechandoosolhos.—Écomoreceber

umamassagemnacabeça.—Se esse colégio caro não der certo pramim, de nitivamente vou abrir um

salãoemMayfairemLondres.—Jofezumcoquehabilmenteeoprendeunolugar.—VoubotaronomedeMayHair.

Allieriu.—Vocêpensoumesmonoassunto.Tudobem,então.Seseucolégiocaronão

funcionar,euvousersuaprimeiracliente.ConformeJoprevira,searrumardemorouumaeternidade.SóocabelodeLisa

levouséculos.No m,eapósmuitadiscordância,fezumcoquesimplesquerealçouseupescoçolongoeesbelto.

—Está perfeito.—Lisa sorriu para simesma no espelho.— Jo, você é umgênio.

—Eusei—respondeuJo,alisandooprópriocabeloemumbeloestilogamine.—Masadivinhaquehorassão.

Allieolhouparaorelógioegrunhiu.—Depressa,meninas,agentesótemmaisdezminutos.Pegaramosrespectivosvestidos.—Eusabiaque isso iaacontecer—disseJo,colocandoovestidinhoprateado

porcimadacabeça.Alliepuxouozíperdascostasparaela.—Sabiamesmo.Enosfezumbemdanado.

EnquantoAllieajeitavaolongovestidobranco,Jocalçavaassandáliasdetiraeseviravaparaajudar.

Allieaolhoucomadmiração.—Vocêpareceumaestreladecinema.—Querida,podeatéser,masvocêpareceumaprincesadeumcontodefadas.Lisaestavacomumvestidodesedaazuleprateadocomtirasdelicadas,eumxale

de seda combinando nas costas.Quando nalmente calçou os sapatos, Jo e Allie,irônicas,aplaudiram.

—Vocêtálinda,mas,meuDeus,comodemorapra carpronta—comentouJo.

Lisapegouabolsacarteiraesorriusemrancor.—Todomundodizisso.—Espera!Ninguémsaidoquartoatéeutirarumafoto.—Josacudiunafrente

delasumapequenacâmera.PuxouAlliee Joparaoespelhodecorpo inteiroeelas seespremeramumaao

ladodaoutra, rindo.Quando todas estavamaparecendono re exo, Jo levantou acâmeraebateuafoto.

—Perfeita—disse,verificandoaimagem.—Estamoslindas.—Provavelmenteagentenuncamaisvai carlindaassimdenovo—disseLisa,

sombriamente.AllieeJoaencararamporumsegundoeentãocaíramnagargalhada.—Vocêéimpossível,DonaMelancolia—disseJo,abraçando-a.—Nãomefaz

bagunçaroseucabelo.Saíramjuntaspelaportaàsoitoemponto.Quandochegaramaotopodaescada,

um grupo barulhento demeninos tinha se reunido na base, todos usando gravatabranca.

As meninas caram paradas por um segundo enquanto o grupo levantava osolhosparaelase cavaemsilêncio.ParaAllieoinstantepareceusurreal—comoumsonho.Tinha tido um ataque e quase se afogado no lago ontem à noite, e, noentanto, cá estava apenas algumas horas depois, comum vestido lindo, comboasamigas.Pareciaqueestavavivendoavidadeoutrapessoa.

Sylvain,LucaseGabeestavamnogrupo,masnãohaviasinaldeCarter.Elaseajeitoueencolheuabarriga.Joaencarou,deuumapiscadaeestendeu-lhe

amão.AllieaceitoueseesticouparadaraoutramãoparaLisa.Desceramasescadasjuntas,comosefossemborboletasdesedanumflanarconjunto.

Concentrada em não perder o equilíbrio nos saltos emprestados de Jo, Alliemanteve os olhos nos degraus à frente. Quando levantou o olhar, Sylvain estavadiantedela,sorrindo.ElasoltouamãodeJo.

Sylvain a admirou abertamente ao levantar sua mão, beijá-la e tomá-la nosbraços.

—Vocêtálinda—disseele.Elaviucaloredesejonosolhosdele.Seuestômagotremeu.Levantandooqueixo,elasorriuparaele.—Você também tá.—E estava. Sylvain tinha tudo a ver com aquele terno

escurosobmedida.Ocorterealçavaosombroseotóraxmusculoso.Elesorriuseusorrisoperfeito.

Allie sentiu uma onda repentina de dúvida.Será que eu estou fazendo a coisacerta?SeráqueoCarterestáfalandoaverdade?

Comoseorostodelativessetraídoopensamento,Sylvainpassoulevementeosdedosemsuatesta,alisandoumcabeloinvisível.

—Malposso esperarpradançar comvocê.Vamos entrar.—Suavoz era tãotranquilizadora e osmovimentosmuito seguros.Allie esticouos ombros e entroucomele.

Ao se juntarem ao uxo de alunos lindamente vestidos no salão, viramfuncionáriosde smokingque seposicionavampertodasportas segurandobandejascomtaçasaltasdechampanhe.Cadaumpegouumaaoentrar.

Ládentro,Allieesperavaencontrarumadiscoteca.Emvezdisso,viuumacenaelegantemente anacrônica se desenrolando na sua frente. Havia uma pequenaorquestra emumdos cantos, tocando valsa.Em todos os lugares velas brilhavam:sobreasmesas,noscandelabros,emarandelasnasparedes,nalareira.Vasosde oresbrancascobriamtodasassuperfícies.Asmesasestavamcobertasdelinhobranco;ascadeiras, envolvidas com laços brancos de seda.O cheiro de jasmim utuava pelabrisa.

Isabelle apareceu emumvestidobranco esvoaçante de seda cilhadona cintura,comumcintode cordadourada.Allieolhouparaopróprio vestido e achouque,comparadaaIsabelle,pareciaumamenininha.EsticouobraçoepuxouamãodeJoparachamarsuaatençãoeapontoucomacabeçaparaadireçãodadiretora.

Josorriucomoquementendia.—Oqueagentepodefazer?Nossadiretoraégata.Gabeoslevouatéumamesadecanto.Porummomento, caramtodosparados

aoredordela,deformaalgodesconfortável.—Oquenósestamosesperando?—sussurrouAllieparaJo.—Vocêvaiver.Depois de um momento, Isabelle bateu levemente com uma colher de prata

numataçadechampanhe,easalaficouemsilêncio.

—Bem-vindosao223oBailedeVerãodaCimmeria.Todosaplaudiramanimadamente,eelaesperouqueaspalmasterminassem.—Todoanoestaéumaocasiãomuitoespecial.Nósnosreunimosparacelebrar

a escola, sua história e todos vocês; vocês são o futuro da Cimmeria.Os pais demuitosdevocêsvieramaestebaileanosatrás,eosavósebisavósdeboapartedosalunos antesdisso.Vocês estão agoraonde eles já estiveram. Jovens e esperançososcomoelesforam.Agorafazempartedociclo.Inquebrável.

Isabelleergueuataça.—Aobailedeverão.EàAcademiaCimmeria.—Aobailedeverão—ecoaram.—EàAcademiaCimmeria.—Divirtam-se!—gritouela,rindocomosaplausosruidosos.Quando Sylvain puxou uma cadeira para Allie, ela se surpreendeu com a

formalidade,mas entãonotouqueGabe eLucas tinham feito omesmopor Jo eLisa.

Tradição,pelojeito.Allie, que só tinha tomado golinhos de champanhe no Natal, achou o gosto

parecido comoda cidraque costumava tomar comMark eHarry.Parou e couolhandoparaataça.QuantotempofaziaqueeunãopensavanoMarkenoHarry?

Ficouimaginandocomoelesestariam.Secontinuavamarranjandoproblemas.Oquequerqueestejamfazendo,pensou,correndoosolhospelosalão,nãoénadanemparecidocomisto.

Ergueuataçaoutravez.Osegundogoledechampanhefoimelhor.Foi então que a orquestra começou a tocar umamúsica extraordinária. Soava

exótica,masAllienãoconseguia situá-la.Húngara?Turca?Malcomeçoue jádavaparasentirnoaroentusiasmo,aeletricidade.Algunscasaiscomeçaramadançarumacoreografiacomplexaquepareciaenvolvercírculosdentrodecírculos.Eravertiginosoassistir,eelalogovirouascostas,sentindo-setonta.

—ÉumacançãotradicionaldaCimmeria.—Sylvainavinhaobservando.—Foi escrita pra própria escola há muito tempo por um compositor egípcio queestudouaqui.

—Nuncaouvinadaparecido—disseAllie.Ameninateriapedidomaisinformações,masnaqueleinstantepassaramgarçons

comaperitivoseGabe,SylvaineLucasseserviramdevários.JoeAlliepegaramumcadauma,masLisadispensouabandejacomumaceno.Jofranziuorostoparaela,eLisadeudeombrosinocentemente.

—Étudotãobonito—comentouAllie,mordendoumcamarãofrito.—Começaramapreparar tudoontemdemanhã—disse Jo.—Euouvieles

aquimartelandohojetambém.—Tudoperfeito—declarouSylvain,sorrindoparaAllie.—Achoqueagente

deviadançar.Masvocêtemqueacabarseuchampanheprimeiro.Obediente, Allie tomou mais um gole, franzindo o nariz com a agradável

sensaçãodasbolhasnonariz.—Comotempoagentevaigostandodechampanhe—murmurouela,meio

queparasimesma.Osoutrosriram.—É—disseGabealegremente.—Vaigostandomesmo.—Nãobeberápidodemais—alertouJo,lançandoumolhardeavisoaSylvain.Allieadispensoucomumsorriso.—Lembra,mamãe,eubebiabastante.Jonãopareceusetranquilizar.—OchampanhedaCimmeriaébemforte,Allie.—Elavai carbem—respondeuSylvain.Levantando-se,eleestendeuamão.

—Medáoprazerdessadança?Elasentiuformigamentoscomotoquedele.—Nãofaçoideiadecomodançaressamúsica,Sylvain.Tôprevendoquevaiser

umahumilhaçãoseagentedançar.—Ah,nãoachoquevaichegaraisso.O rosto dele era tão con ante que ela quase acreditou. Foram até a borda da

pistadedançaondeoscasaisaindagiravamemcírculoselaborados.Moviam-secomuma velocidade impressionante e a perfeição derivada da prática, e Allie assistiumaravilhada. Viu Isabelle se movendo graciosamente nos braços de um homembonitoedecabelosescurosqueelanuncaviraantes.ElaeraincrivelmenteeleganteeAlliesuspiroucominveja.

—Comoéquetodoselessabemdançarassim?—Quasetodosnósfizemosaulasdedançadesdecrianças.—Queestranhoaspessoasaindafazeremisso.—É?—ElepuxouAllieparaosseusbraçoselevantouoqueixodela,demodo

queelaolhasseparaseusolhosmaisazuisqueoazul.Emseguidaasegurou rme,comamãodireitana lombardamenina,colocando-amaispertodopeito,amãodireitadelanasuaesquerda.—Parecemuitoestranhopramimquealguémnãofaçaisso. Essa noite eu vou te ensinar uma dança, uma simples. Me segue. Vamoscomeçarbemdevagar.Éesquerda,direita,esquerda,esquerda,direita.Assim.

Eledemonstroueelao seguiucuidadosamente. Inicialmenteolhouparabaixo,para os próprios pés, e pisou nos dedos dele, mas em seguida ele levantou-lhe oqueixocomoindicador,paraqueseusolhosencontrassemosdele.

—Nãoolhaprabaixo.Olhasóprosmeusolhos,elesvãodizerpraondevocêvaiaseguir.Eéesquerda,direita,esquerda,esquerda,direita,semparar.Estápronta?

—Não.Sylvainriu,egirou-aparaapistadedança.— Esquerda, direita, esquerda, esquerda, direita... Esquerda, direita, esquerda,

esquerda,direita...—Alliemurmurouasinstruçõesparasienquantosemovia,masmanteve os olhos no rosto de Sylvain.Rodaram três círculos lentos sem nenhumerro.Eentãoquatro.Cinco!

Allienãoacreditava.—Comoéquevocêtáfazendoisso?—riuincrédula.—Sério,Sylvain,eunão

seidançar.Elemanteveosolhosfixosnela,subindoedescendocomospassos.—Nósestamosconseguindoporquevocêestácon andoemmim.Euconduzo.

Vocêsegue.Émuitosimples—explicoucomumsorriso.—Alémdisso,agenteestáindomuito,muitodevagar...

Na medida em que rodaram e Allie ganhou con ança, Sylvain aumentougradualmenteavelocidade,atéqueestivessemsemovimentandosemproblemaspelapista.

Quando ela estava semovendo com con ança, Sylvain a beijou levemente nopescoço, logo abaixo da orelha. Todos os sentidos de Allie formigaram. Elesussurrou:

—Vocêestátãolindaessanoite,Allie.Obrigadoportervindocomigo.AlliesentiuosanguecorrerparaorostoeseucorporespondeuquandoSylvaina

puxouparaperto.Rodaramdurantetodootempoemsériessuaveseconstantesdecírculos.Allieestavacomeçandoa cartonta—orestodosalãoeraumborrãoemaquarela.Sylvaineelaestavamcompletamentesozinhos.

—Issoéincrível—sussurrouAllie.Apósoquepareceramapenasalgunsminutos,oscírculososconduziramàborda

da pista de dança e ele a levou de novo para amesa, com o braço rme em suacintura.

AcabeçadeAllieestavagirandoeelaseapoiouneleparaterumsuporte.—Tômesentindotonta.—Éadança.Vocênãotáacostumada.Ela voltou a olhar para a pista e observou os dançarinos girarem. Alguns dos

casaisnãoeramexatamenteperfeitosnosseusmovimentoseosoutrospassavamporelesrodopiando,comoáguafluindoemtornodepedras.

Comumamão,Sylvainergueuduastaçasdeumabandejaquepassava.

—Oquevocêprecisaédemaischampanhe.Allieaceitouataçaqueelelhepassoucomumsorrisograto.—Obrigada.Tôcommuitasede.—Abebidaestavageladaerefrescante,eela

engoliurapidamente.—Sabe,estoucomeçandoagostarmuitodechampanhe.ArisadadeSylvaineracalorosaeeleestavatãopertodeAlliequeelaconseguia

senti-lanoprópriocorpo.—Vocêéquetádizendo.AllieprocurouJonamultidãodedançarinos.Seuvestidomuitocurto tornava

fácil vê-la — era certamente o menor do salão. Ela e Gabe rodopiavam comsegurançanapistadedança.AllieviuovestidodeLisaesvoaçandonãomuitolongedeles,enquantoelaeLucasrodavamemcírculosfáceis.

MalnotouSylvaintirarataçavaziadesuamãoeatrocarporumacheia.Observandoosalão,viuRuthePhilindoparaapistadedança,demãosdadas

—Ruthusavaumvestidodesedarosa-claroqueexibiasua guraatlética.AlipertoJerry estava sentado, conversando confortavelmente com Eloise, da biblioteca; elausavaumvestidinhopretosexycomdecotenascostaseoscabelos longosestavamsoltos.

—Elanãoénadavelha—disseAllie,surpresa.—Quem?—AEloise.Sempreacheiquefossevelha.Ouaomenos,assim,maisvelha.Sylvainsorriu.— É, acho que ela quer que as pessoas pensem que ela é mais velha. Se

soubessemqueétãonova,ninguémialevá-laasério.Elaestudavaaquiháseisanos.—Olhouparaabibliotecária,analisando-a.—Muitosexy,Eloise.

Alliesocoulevementeoseubraço.—Ei!Prestaatenção.Lembraqueméoseupar.OsorrisodeSylvaineraendiabrado.—Nuncameesqueceria.E,aliás,achoqueéhoradeomeupardançarcomigo

denovo.Vai,acabadebeber.—Eleterminouaprópriabebidaeesperouatéqueelativesseesvaziadoataçaantesdeestender-lheamão.

Aovoltaremparaapista,elasesentiuumpoucosem rmezaetentousegurarobraçodeSylvainpara se equilibrar.Nessemomento,Carter surgiuna frentedeles.Seus olhares se encontraram e, lembrando da aula de inglês daquelamanhã, Alliesentiuumafaíscadeeletricidade.Notouentãoqueeleestavacomobraçoaoredordeumagarotabaixinhadevestidode tafetá azul.Erabonita, tinha cabelos louros,longoseondulados.AntesqueAlliepudesselhedizerqualquercoisa,eleseviroudeforma bem deliberada e sorriu para a menina, sussurrando alguma coisa ao seu

ouvidoqueafezrir.Alliecorouedevetertensionadoosmúsculos,poisSylvainolhouparaveroque

tinha lhe chamado a atenção. Quando viu Carter, seus olhos se enevoaram e seubraçoseguroucommaisforçaacinturadela.

—Tátudobem?—perguntouSylvaincalmamenteaAllie.Forçandoumsorriso,elaopuxouparaapistadedança.—Tudoperfeito.—Maselanotouquearrastaraaúltimapalavrae franziuo

rostoseconcentrando,tentandoentenderoporquê.Putaquepariu—eutôbêbada?Já?—Vocêparece—disseeleaodaremosprimeirospassosnapista—umanjo.Carterestavabemalinabeiradapista,Allietinhacerteza.Provavelmenteestava

deolhoneles.Comoseupar.Tudobementão.Elalhedariaalgumacoisaparaolhar.PuxouSylvainmaisparaperto.—Masnãomesintocomoumanjo.Elejogouacabeçaparatráseriu,ecomeçaramadançarmaisrápido.Destavez

ospassosdedançaerammaisfáceise,aprincípio,Allierelaxoucomomovimentoeamúsica, e deixou Sylvain escolher a direção que tomavam na pista. Ela sentia acabeça leve e agradavelmente tonta. Sucumbiu à sensação com um suspiro suave,apoiando-se de novo no braço de Sylvain e deixando totalmente por conta delesegurá-la.Sentiuaslufadasdoaraoredordeles.

Sylvain a puxou mais para perto até seus lábios encostarem na orelha dela;quando mordeu o lóbulo, Allie engasgou e teria tropeçado se ele não a estivessesegurandocomtantafirmeza.

DepoisdissoeleficoutantotempocaladoqueAllieolhoupreocupada.—Tátudobem?—Desculpa—disse,comavoztensa.—Vocêéirresistível.—Aexpressãode

Sylvaineratãointensaqueadeixounervosa.Rodopiando,eleos levouparaabeiradapistadedançaedali,apressadamente,

paraforadasala.Sentindo-semeioalta,Alliesegurou-lheamãoenquantoelecorrianoite escura afora, passando por um pequeno grupo reunido perto da porta dosfundos,edalidobrandoaesquinaparaumcantosilencioso,longedasvistasalheias.

Allietentoufalarsemenrolaralíngua.—Ondeagente...?EleaempurroucomforçacontraaparedeeAlliegritoucomoimpacto,ainda

queotenhasentidocomosetivessesidoamortecidoporumaalmofadadelã.—Para!Sylvain,vocêtámemachucando.

Osolhosdelereluziamaoluareelaviualgocomoferocidadeneles.— Nem mais um segundo. — Sylvain a beijou com tanta violência que ela

bateucomacabeçanaparedeemordeualíngua.Lágrimasencheramseusolhoscomogolpe.Elalutouparaescapar,socandoopeitodele,mastudolhepareciaumpouconebuloso e, em mais um segundo, ela não conseguia se lembrar por que estavalutando.

Uma vaga lembrança do alerta de Carter passou pela cabeça dela em meio àconfusão:nãoconfianoSylvain.Eleéummentiroso.

EntãoSylvainlevantouoqueixodeAllieeabeijounopescoço.Porumsegundoelagostou,masentãoorapazmordeuapeledelacomtantaforçaqueamachucouea menina arfou, seu corpo se movimentando involuntariamente contra o dele aotentarescapar.Masnãoconseguiasemover:Sylvainfaziapressãocontraela.AsmãosforamdosquadrisparaosseiosdeAllie,quecomeçouaentrarempânicodeverdade.Uma lágrima correupor suabochecha ao empurrá-lo com força,masnãopareceuprovocarqualquerefeitonele.

—Vocêmequer—sussurrouele.LevouamãoaopescoçodeAllie,segurandocomtantaforçaqueameninatevedificuldadepararespirar.

—Para!—Suavoznãopassavadeumsussurro.ElaarranhouospulsosdeSylvain,maseleerafortedemais.—Fala—disse,pressionandocommaisforça.—Dizquemequer.—Perguntaavocêmesmo,Sylvain.Sevocêforçaalguématequerer,apessoate

querdeverdade?—AvozdeCarterveiologodetrásdeSylvain.SylvainafrouxouapegadaobastanteparaqueAllieconseguisserespirar,masnão

asoltouaosevirarparaencararCarter.Enquantoelarecuperavaofôlego,osorrisodeSylvaineraselvagem.

—Ah,vaiemboradaqui,Carter.Carterpermaneceuondeestava.—Oquevocêestá tentandoforçarelaadizer,Sylvain?Meexplicadireitinho.

Comoseeufosseburro.—Issonãoédasuaconta,Carter.Seuciúmeépatético.—FalaissopraIsabelle.Eaproveitaecontaoquevocêtavaprestesafazercoma

Allie.AívocêspodemterumaconversalongasobreasRegras.Tonta e aturdida, Allie lutou para se libertar enquanto olhava de ummenino

paraooutro.Lambeuoslábiosetentoufalarclaramente.—Carter,oquetáacontecendo?Eunãoestouentendendo...CartermanteveaatençãoemSylvain.—Não,masoSylvainestá,nãoé,Sylvain?

Os olhares dos dois se encontraram num gélido confronto. Por um segundoAllieachouqueSylvainnãofosserecuareimaginouoqueCarterfaria.Masentão,semqualqueraviso,Sylvainasoltoueseafastoudela.

—Tudobem,Carter.Sejaoherói.Salveamenina.Masnósdoissabemosquevocêépatético.Eéamimqueelaquer.

Contraindoosombrosecerrandoospunhos,Carterdeuumpassoenfurecidoàfrente,masantesquepudessesocar,gritoscortaramanoite.CartereSylvaingelaram.

CartersevoltouparaAllie,araivajádistantedoseurosto.Agoraestavaalerta;deguarda.

—Allie,ficaaqui.Nãosaidaqui.Sylvainnemsevoltouparaelaeosdoisjásaíramcorrendonadireçãodooutro

ladodoprédio.Tremendo,Allie couexatamenteondeadeixaram.Quandoesticouamãopara

tocarapartedetrásdacabeçasentiuumgalosobaspontasdosdedos.Comoéqueeufiqueitãobêbada?Equeporcariaéessaqueacaboudeacontecer?Ela cruzouosbraços com força sobreopeito.Estava todadolorida; sabiaque

teria hematomas nos braços ao acordar e sua cabeça doía muito. Sylvain estiveralouco,masAllienãohavialutadodireito.Nãohaviasedefendidodireito.

Bêbadademais,pensou,enojada.Ou...suaexpressãomudou,elepôsalgumacoisanaminhabebida?

Ela não era inexperiente com bebida alcoólica e também nunca tinha cadobêbada com uma lata de cidra. E só havia tomado três taças de champanhe.Enquantoaideiatomavaforma,umolharhorrorizadopassoupeloseurosto.

OSylvainfariaumacoisadessas?Gritosestridentes,antesqueelapudessecompletaropensamento.Osomvinha

deperto;logodaesquina.Elasaltoudevoltaparaassombras,pressionandoacolunacontraaparede.

Ouviuruídosdealgoquebrando;sonsdeluta.Eentão,silêncio.Prendeuarespiração.Maisuminstante,epassosnaescuridão.Correndonasuadireção.Depressa.—Carter?—arriscouperguntar.Ospassospararam.Arfando, Allie se deu conta do erro. A onda de adrenalina lavou o torpor do

álcool e ela se encostou na parede novamente, os tijolos frios contra sua pele. Seencolheuomáximopossível.Apesardenãoconseguirenxergarnada,haviaalguémali;podiasentirapessoaolhandoparaela.Congelada,semrespirar,contouasbatidasdocoração.

...10,11,12...Passosvieramemsuadireçãooutravez.Maisdevagaragora.Jogando-separalongedaparede,Alliecorreupelaesquinaemdireçãoàentrada

daescola.Ospassosaseguiram.Depressa.Elaacelerouopassoparaescapardeleseentãotropeçouemalgumacoisamacia

nochão.Gritando,perdeuoequilíbrioecaiurodopiandonochão.Sobreagramafriaeúmida,elaseencolheutodaecobriuacabeçaesperandoo

ataque.Quenãoveio.Emvezdisso,ouviuospassosseafastaremdepressa,sumindogradualmentenoiteadentro.

Allieficouparadaporuminstanteatétercertezadequeestavasozinha.Sentou-secomcuidado,então,eolhouemvolta.

Suasmãosestavamcobertasporalgumacoisamolhadaegrudenta.Enquantoosolhosseajustavam,viuquetinhatropeçadonumameninadevestidoclaro,deitadadebruçosnochão.Tocouameninacomcuidado,maselanãosemoveu.Comasmãosnosombrosdagarota,virou-adefrente.

—Ei,tátudobem?Entãoelaviu.Eengoliuarespiração.Omundopareceuficaremsilênciototal.Allie se afastou da garota aos tropeços, olhando xamente para o vulto no

escuro.Entorpecida,levantoucambaleandoecaminhouapassoslentosparaaportados

fundos.Ládentroas luzeshaviamseapagadoeocorredorestavaescuroecaótico.Cheiravaafumaça.Aspessoasgritavamepassavamcorrendoporela.Alliesesentiudesencarnada—distanciadadetudoaoseuredor.Olhoudiretoparaafrente,comasmãosensanguentadasabertas,cadaumadeumladodocorpo.

Semparar,pensouasmesmaspalavras:nadadissoéreal.Nãopodeserreal.Nadadissoéreal.Nãopodeserreal...

Ao voltar na direção do salão, a fumaça se tornou mais espessa, fazendo-alacrimejar.Osalão,tãolindomaiscedo,comvelaspiscandoe oresbrancas,estavapegando fogo. As únicas luzes vinham de algumas lanternas carregadas porprofessores, e do próprio incêndio. À meia-luz, meninos de smoking batiam naschamas com toalhas de mesa molhadas enquanto meninas com vestidos de galacarregavamáguausandoqualquercoisaqueconseguissemencontrar:baldesdegelo,vasilhas de ponche, vasos de ores. O chão estava cheio de sapatos de salto altoabandonadosetaçasdechampanhequebradas.

As chamas eram baixas e começavam a apagar; claramente os alunos estavamvencendo a batalha. Mas a fumaça intensa era o principal problema. Era difícil

respirar.—Abreumajanela!—gritoualguém.—Não!— veio uma resposta rme.—Vai piorar os focos de incêndio. Se

precisardarumtempo,vailáprafora.Dealgumamaneira,areconhecívelvozseveradeZelaznytrouxeconfortoaAllie,

queestavanomeiodasala,chocada,semconseguirassimilartudo.—Allie,vocêtábem?—Josurgiuaoseulado,comorostocobertodefuligem,

eumjarrovazionamão.—MeuDeus.Deondeveioosangue?Vocêtámachucada?Derrubandoojarro,pegouamãoensanguentadadeAllie,virando-a,procurando

machucadosaparentes.Alliebalançouacabeça,masporumsegundonãoconseguiuencontrarsuavoz.Seuslábiossemoveram,masnenhumsomsaiu.

—Allie,vocêtámeassustando.—LágrimassurgiramnosolhosdeJo.—Porfavor,porfavor,porfavor,medizquevocêtábem.

Suas palavras incomodaram Allie e, subitamente, a verdade jorrou dela, queagarravaasmãosdeJocomtantaforçaquedeviaestarmachucando-a.

—Ai,meuDeus,Jo.Tevegritose...temsangue...emtodolugar.OsolhosazuisdeJoestavamarregaladosdemedo—asmãosapertaramasde

Alliecomtantaforçaquedoeu.—Allie,porfavor,tentaexplicar,deondeéessesangue?Allieolhoufixamenteparaasmãos.—Jo,essesangueédaRuth.Elatálánosfundos.Agargantadelatá...cortada.

Feio.Euachoqueelatámorta.Engolindoemseco,Jogirougritandodesesperada:—Jerry!AllieviuJocorrer,emmeioaoescuroeàfumaça,nadireçãodoprofessorque

batia em brasas incandescentes com uma toalha de mesa ensopada. O rosto deleestavanegrodefuligem.Eloiseestavaporperto,oscabeloslongosemaranhadosnascostas.Elahaviatiradoossapatoseesguichavaespumadeumextintordeincêndio.

Jofalourapidamente,seurostoempânico.Allienãoentendiaaspalavras.JerryeEloisetrocaramumolhar.Eloiseentregouoextintoraumaprofessorae

osdoissaíramcorrendodosalão.QuandoJovoltouparaoseulado,Allieolhouemvolta.—CadêaLisa?Jomordeuolábio.—Nãoconseguiacharnenhumadevocêsemlugarnenhum.—Entãovocênãoviuelahoranenhuma?—Allieouviuahisterianaprópria

voz,masnãoconseguiaevitar.—Jo,elapodetersemachucado!Podeestar...igualà

Ruth.LágrimasencheramseusolhoseJoagarrou-lheasmãosensanguentadas.—Ficacalma,Allie.Eunãotivecomoprocurarporela.—Olhouaoredor.—

Parecequequasetodoofogojáapagou.Vamosprocurarjuntas.Movendo-se rapidamente, Jo cruzou o salão puxando Allie consigo. Passaram

pelafumaçaqueresistia,verificandotodasaspessoasqueconseguiamencontrar.Nada.—Lánafrente.—Jocorriaàtodaagora,eAllievinhalogoaolado.Mirarama

portadafrenteeentãofrearam.Nohalldeentrada,umcorpofrágilcomumvestidoazuleprateadoestavadeitadoimóvelnochãodepedra,umembrulhocompridoenoesticadodecada ladodela, comoque sopradoemumabrisaque somenteela

podia sentir. Um suporte de vela comprido demadeira estava caído em cima docorpo.

— Ah, não. — As palavras de Jo saíram num sussurro enquanto as meninascorriamparapertodeLisa.

AllieseabaixouepegouamãodeLisa.—Elatáviva—declarou.Jotirouosuportedeveladecimadelaejogou-oparaolado.OcabelodeLisa

tinhacaídona cara eAllieo retirougentilmente, revelandoumcorteprofundonabochecha. Jo soltou um gritinho e sua mão cobriu a boca, os olhos cheios delágrimas.

—Lisa?Lisa,acorda.Támeouvindo?Agenteprecisaquevocêacorde.—Alliepronunciouaúltimapalavracomtantaforçaquepareceureverberar.

Viugotículas caindonovestidodeLisae levouum instanteparaperceberqueestava chorando. Enterrando o rosto nas mãos, soluçou, enquanto Jo chorava aolado.

—Acorda.

N

DEZESSEIS

as horas caóticas que sucederam o ataque, os professores conduziram osalunos à sala de refeições, então de luzes apagadas, e tentaram acalmar opânico.Funcionáriostraziamcaixasdelanternaseasentregavam,enquanto

asenfermeirasmontavamumpostonumcanto.Osferidos zeram lapararecebercurativos nos machucados, veri car queimaduras e colocar talas em tornozelostorcidosouquebrados.

Asala,demaneirageral,estava livreda fumaçaquepermanecianoscorredores,mas, em vez disso, o ar estava tomadopor choros abafados de alunos e conversasbrutalmenteeficientesdaequipemédica.

—Mepassaessescurativos.—Essetornozeloprecisadeumbaldedegelo,temalgumsobrando?—Injeçãodeantibiótico.Lisapermaneciainconscienteefoilevadapordoisfuncionáriosparaopostode

enfermagem.Deinício,JoeAllieinsistiramemircomela,circulandoamacacomopássarosestridentes.MasEloiseasconvenceuaficar.

Eloisetinhaumamanchadefuligememumadasbochechaseaindaestavacomovestidinhopreto.Apesardeossapatosjáteremdesaparecidohámuitotempo,seusolhosestavamacesoseincansáveis.

—Prometoqueelavai carbem.Elaprecisadescansar.Agenteprecisamuitodaajudadevocêsaqui.Porfavor,medigamqueeupossocontarcomvocês.

Aindaquerelutantes,elas zeramquesimeEloiseasmandousubiremparaselimparemdosangueetrocaremderoupa.

Enquantosubiamasescadas,oruídomedonhodasconsequênciasdatragédiaiasumindoaospoucosnosilêncioescurodaaladosdormitórios.JoseguravaamãodeAllie.AcabeçadeAllielatejavaeoestômagorevirava.Achavaquepodiavomitar.

Quandosesepararamnotopo,Jofalou:—Aquiéseguro,né?—Elanãoteriamandadoagentepracásenãofosse—respondeuAllie,massua

vozestavaincerta.

—Tudobem.Sejamuito,muitorápida.Euteencontronobanheiro.Allie abriu a porta doquarto lentamente e correu a lanternapara veri car que

estavavazio.Noescuro,elepareciaestranho—comosenãotivessequalquerligaçãocom ela, e seus pertences tivessem sido colocados ali a esmo. Ela correu até oarmário,agarrandoaroupaqueapareceuprimeiro.

Mais tarde, num banho frio e escuro, iluminado apenas por uma lanternaapoiadanossapatosemprestadosdeJo,elaesfregoufuriosamenteosanguedocorpo.O frio e a água desanuviaram sua cabeça, como se estivesse lavando todos osacontecimentosdanoite.Joesperoupelaamigapertodeumapia,balançandoaluzaoredordorecinto.Ocasionalmenteumachamavaaoutrasóporsegurança.

—Aindatáviva?—Sim.Evocê?—Achoquesim.Quandoacabou,Alliedeixouovestidobrancoestragadoeossapatosprateados

cintilantesnochuveiro.Ela e Jo correrampara o andar de baixo, onde a atmosfera depânicohavia se

transformadonumadesinistraeficiência.Fachos de lanterna esvoaçavam pelos corredores enquanto alunos carregavam

móveis queimados para fora do salão.Do lado de fora da porta dos fundos, umgeradorroncava rmementeecabospretosespessos seesticavamcomocobraspelocorredoratéosalão,ondeholofotesproduziamumbrilhoalienígenanoespaçoaindaemcombustãolatente.

Professores armados de pranchetas orquestravam o trabalho. Alguns secolocavam de pé sobre cadeiras e gritavam instruções, enquanto outros estavamrecolhidosaoscantosempequenosgrupossussurrantes.

JoeAllieestavamladoalado,examinandoorecinto.—Bom,achomelhoragenteacharaEloise—disseAllie,comavoztrêmula.Mas em vez da bibliotecária encontraram Isabelle empoleirada perigosamente

numa cadeira frágil de madeira, emitindo ordens calmamente para professores ealunosquetrabalhavamaoredor.Seuvestidobrancoestavamanchadode fuligem,masforaissoperfeito,apesardeocabeloterescapadodosprendedoreseestarcaídoemondassobreosombros.Pareceualiviadaemvê-las—principalmenteAllie.

Abaixouparapegarasmãosdamenina,eapuxoumaisparaperto.FalandotãobaixoquesóAllieconseguiaouvir,disse:

—Sintomuitoquevocêtenhatidoqueveraquilo.Vocêestábem?AoolharnosolhospreocupadosdeIsabelle,Alliefoivarridaporumatorrentede

emoçõescon itantes.QuischorarporRutheporsimesma.Quisabraçaradiretora

porseimportar.Emvezdisso,combateuaslágrimasefezquesimcomacabeçaparamostrar que estava bem. Dando um aperto nal nas mãos de Allie, Isabelle selevantoudenovo.

— Ok, vocês duas — disse a diretora, totalmente pro ssional outra vez.Entregando-lhesumapranchetacomumlápispenduradoporumacorda,continuou:—Precisotercertezadequenóssabemosondeestátodomundo.Aotodo,tem52alunosaquinessesemestre.Identifiquemtodosquepuderemencontrar.Procuremnaáreacentraldotérreo;nãoprocuremnasalasenemláemcima.Nãosaiamdoprédioemhipótesealguma.

UmgrupodeprofessoresseaproximoueIsabelleviroudecostasparalidarcomeles.

Inicialmente,Allie e Jo caramestressadas—estavamuito escuro e aspessoaspassavam por elas feito borrões. Mas depois bolaram um sistema, marcando osnomes de todos que já tinham visto, e então partindo para os alunos que nãoreconheciam.

Otrabalhoacalmouosnervosdasduas.Foramdesalaemsalariscandonomesda lista enquantoonúmerode alunosdesaparecidosdiminuía.Depoisdemaisoumenosumahora a eletricidade foi restabelecida, o que facilitou a tarefa.O cheiroamargodequeimadopermaneceu,masoarclareougradualmente.

Duranteaquilotudo,Allieteveumaestranhasensaçãodedistância—deestarseassistindonatelevisãoenquantoandavapelaescolafazendooquetinhaqueserfeito.Nãoconseguianemsentiraprópriaexaustão.Seucorposemovia,maselasesentiadesconectadadasações.

Quando o sol surgiu, cerca de 21 alunos da lista ainda não tinham sidoencontrados.EntreelesGabe,Carter,Sylvain,JuleseLucas.

—Ondevocêachaqueelesestão?—perguntouAllie.—NaEscolaNoturna.—Joesfregavaatestaesuavozsoavafatigada.—Eles

são todosdaEscolaNoturna.Procuramosemtodocanto, issoéomáximoqueagentevaiconseguir.Vamosláentregar.

Depoisdeprocuraremnasaladerefeiçõesenabiblioteca,acharamIsabellecomJerry e Eloise no salão vazio. O fedor de madeira e gesso queimados era forte eenjoativo.Aluzaindaestavaapagadaeogeradortinhasidodesligado.Estavaescuro,difícildeenxergar.Umaluzambientedesbotada,oriundadocorredor,brilhavasobreas partículas de fumaça que ainda dançavam pelo ar. Pareciam, Allie pensou,pequenos cristais negros. Dava para ver que uma parede estava completamenteescurecidaatéoteto.Pequenaspilhasdecascalhosaindaardiamsemchamasaquieali.Masforaisso,asalaestavamenosdanificadadoqueelaesperava.

IsabelleexaminoualistarapidamenteeaentregouaJerry,quearevisoueacenouafirmativamentecomacabeça.

—Obrigada,vocêsduas—disseIsabelle.—Fizeramumótimotrabalho.—Masaindatemmuitagentesumida!—protestouAllie.Isabelletinhaolheirassobosolhosavermelhados.PareciatãocansadaqueAlliese

sentiuculpadaporincomodá-la.—Nóssabemosondeelesestão,eestãobem—revelouela,colocandoobraço

emvoltadeAllie.—Nãosepreocupacomeles.—SãooscarasdaEscolaNoturna,né?—OsbraçosdeJoestavam rmemente

cruzadossobreopeito.—VocêsabequeagentenãopodeconversarsobreaEscolaNoturnacomvocê,

Jo.Mas imagino que também saiba a resposta da própria pergunta.—A voz deEloiseestavaaguda.

Josemantevefirme.—Desculpa, Eloise. Só acho que seria bom se nós fôssemos umpoucomais

honestosagoradoquenormalmentesomos.IsabelleapertougentilmenteoombrodeAllieeosoltouantesdesevirarparaJo.—Emuitosprofessoresconcordariamcomvocê—disse,parasurpresadeAllie.

—Masagoranóstemosquesobreviveràspróximas24horas.—Quantaspessoasforam...mortas?—AvozdeAllieestavapequena.—Uma,Allie.—AvozdeIsabelleestavacarregadade solidariedade.—Eeu

sintomuitoquevocêtenhatidoqueveraquilo.Sequiserconversarsobreoassuntocomalgumdenós...estamosaquiaqualquerhora.

Allie, que achava que não pudesse sentir nada, cou surpresa ao sentir umalágrimaescorrendoporsuabochecha.

Deondeveioisso?,imaginou,limpando-a.Desaída,JerryapertouseubraçoeEloiseaenvolveunumabraçocaloroso.—Aguentafirme,querida—sussurrouabibliotecária.Quandoosdoisseretiraram,JosevoltounovamenteparaIsabelle.—ComoestáaLisa?Agentepodeverela?— Ela ainda não acordou. O médico disse que precisa descansar. — Isabelle

olhou preocupada para elas. — Gostaria muito que vocês dessem um tempo efossemcomeralgumacoisa.Euachovocêsláseagenteprecisardevocês.

Apesar de ser difícil sequer imaginar comer, a insistência dela fez Jo e Alliedesceremocorredorescuro.Asensaçãonasaladerefeiçõeseradesilêncioeexaustão.Amanhecia e a luz entrava pelas janelas com uma alegria inadequada. Cansados,alunos sujos se sentavam ou dormiam na maioria das mesas — com pratos

semidevoradosnafrentedeles.Numdoscantosdasala,haviaumamesadebufêcompilhasaltasdesanduíches,egrandesjarrosmetálicosconservavamcaféechá.

Ficaramnafrentedamesa,olhandoparaacomida.Pareciaestranhoseimportaremcomeragora,masdepoisdefazeremosrespectivospratosencontraramumamesadesocupada; empurraram as xícaras e pires usados para terem espaço. Por algumtempo comeram num silêncio de exaustão. Jo sentou com as pernas cruzadas naposição de lótus, os cabelos louro-platinados afofados numa auréola desalinhada.Alliedobrouapernaparapôrumdospésnoassentoeapoiouocotovelonojoelho.Em repouso, seu rosto estava pálido e preocupado. Ela terminou o sanduíche eempurrouoprato.

—Oquevocêviu?—fezaperguntasemqualqueravisoprévio.Jopareceuconfusaporuminstanteeentãoarregalouosolhos.—Ontemànoite?Alliefezquesimcomacabeça.Jorepousouaxícaradechá,esuaexpressãosetornousombria.—Ai,Allie,foiumaloucura.Ondevocêtava?Primeirotavatudolindo,sabe?

Eu e o Gabe estávamos dançando, de repente fez um barulho, que nem umaexplosão, e as luzes se apagaram. Aí cou tudo muito confuso, porque tavatotalmente escuro, todomundo correndo pra onde achava que cava a porta e aspessoascomeçaramagritarquenãoconseguiamsaireaíderrubaramumamesaeofogo começou, e a fumaça foi... horrível. Horrível mesmo. Eu e o Gabe nosabaixamosprapoderrespirare zemostipoumasmáscarasdearcomguardanapos.Nós fomos pra longe do fogo, e aí ele disse que tinha que ir e ver o que tavaacontecendo,tipo,porqueaspessoasnãotavamsaindodosalão.Eaíele...sumiu.

Allieesperoupormais,masJoparou,quebrandoacascadopãoempedacinhos.—Eoqueaconteceu?—cutucouAllie.—Tavaescuro.Eusó...ouviagritoseafumaçaeraumhorror.Achoqueaporta

tavatrancada,algumacoisaassim,porquederepenteeuouviumabatidaeaíveiooar fresco,mas isso piorou o fogo.As pessoas começaram a apagar as chamas comáguaeextintores,aícomeçouadarprasairefoiquandovocêentrou.

Josuspirouedeumaisumamordidanosanduíche,masAllieviuqueelaagoraestavaseforçandoacomer.

—VocêviuoGabedepoisdisso?Jobalançouacabeçaeumalágrimacorreupelasuabochecha.—Eutôtentandonãoserboba.AEloisedissequetodosestãobem,entãoeletá

bem.Ésóqueele...melargouali.Numincêndio.ElaescondeuorostonasmãoseAlliepercebeuqueaamigaestavachorando.

—Ai,amiga...—Allieesticouamãoparaapertarobraçodelaetentoupensaremalgumacoisaparadizer.—Elesecerti couquevocêtavaseguraantes,nãofoi?Foiaprimeiracoisaqueelefez.Esabeoquemais?Elebotaféquevocêéforte,quesabetomarcontadesimesma.Eissoatéqueélegal.

Joconcordoucomacabeça,apesardeclaramentenãoestarconvencida,eentãofechouosolhoseinclinou-sesobrecotovelo.

—Estoutãocansada.AlliepuxouacadeiramaisparapertoeapoiouacabeçadeJoemseuombro.—Eutambém.Emmaisalgunsinstantes,asduasestavamdormindoabraçadas.

O barulho de movimento as acordou pouco tempo depois. O grupo da EscolaNoturnahaviavoltado.

Gabefoioprimeiroaatravessaraporta.Assimqueoviu,Jovooupelasalaeseatirounosbraçosdele.Desaparecerampelaportaconversandoaossussurros.

SylvainvinhalogoatrásdeGabe.Allie,quesentiaquenãotinhatidotempodeprocessaroquesepassaraentreelesnanoiteanterior,aindanãoestavaprontaparavê-lo. Abaixou-se no assento e encarou a xícara vazia, torcendo para que ele não anotasse.

Não tinha tido um segundo para pensar no que se passara entre eles na noiteanterior.Ousobrecomotinhaficadobêbadatãodepressa.

Aopensarnanoiteanterior,passouosdedosdistraidamentesobreocalombonacabeça.Estavamenor,masaindadoía.

QuandoCartereLucasentraram,algunsminutosdepois,Alliesentiuumaondadealívio.Ambospareciamcansadoseimundos—seusrostosmanchadosdesujeiraeoscabelosmolhadosdesuor.

EnquantoCarter fazia o prato e pegava um café, ela aindamantinha a cabeçabaixa,deformaqueelenãoanotou.MasLucasaviuimediatamente.

—AlgumanotíciadaLisa?—perguntou.Elabalançouacabeça.—Nadaainda.Oslábiosdelesecontraíram.—Eutômesentindopéssimopor...Euqueriasóterestadocomela.Percebendoquãodesgastadoederrotadoeleparecia,Allieoabraçou.—AIsabelledissequeelavai carbemeeuacreditonisso.—Elefezquesim

comacabeçanoombrodeAllie.—Émelhorvocêdormir,Lucas.Tácomumacarapéssima.

Lucasconseguiudarumsorriso.—Obrigado,Allie.VocêpareceoCarter,eletavamedizendoamesmacoisa.EnquantoLucasseafastava,AllieprocurouCarter.Estavasozinhosentadojunto

a uma das mesas mais afastadas com as pernas esparramadas. Comia com umaperfeiçãomecânica;olhos xosnoprato, comose realmentenãoquisessevermaisnada.

ElaesperouatéqueCartertivesseacabadodecomerantesdeiratéele.OdesgastedeixaraseurostotãovulnerávelqueAllieperdeuofôlego—pareciaummenininho.Masoolharcautelosoretornouquaseimediatamente.Puxandoumacadeira,elanãoesperouqueeleaconvidasseparasentar.

—Oi—disseAllie.—Oitambém.—AvozdeCarterestavadistante.Elaexaminouorostodele.—Tátudook?—Eutôbem.—Carterolhouparaela.—Tudook?Alliedeudeombros.—Eutôviva.—EusoubedaRuth...Elalevantouamãoporreflexo.—Nãoqueroconversarsobreisso.—Desculpa—disseele.—Aculpanãoésua.—AfastoudamenteimagenssombriasdocorpodeRuth.

—Ésóque...eunãoconsigofalardissoagora.Nãotôpronta.—Tudobem.—Tomouumgoledocafé.Umsilêncioseabateusobreeles.Allieesperoutrêsrespiradas.—Carter?—Quê?—VocêviuoPhil?Eletábem?Carterbalançouacabeça.—Não tá,não.Tá arrasado.Ele se culpapornão ter estado comela quando

tudoaconteceu,coitado.Vaivoltarpracasaporumtempo.Allieabsorveuestainformaçãoantesdefalarnovamente.—Sobreontemànoite...—Allie...—Carterlançouaelaumolhardealerta,maselaoignorou.—Eutavabêbada?Ou,seilá...drogada?Querdizer,eujá queibêbadaantes,e

euseicomose cabêbada,óbvio.Maseusótinhatomado trêstaças.Eeu...Bom,

nãoseiexatamenteoquedeuemmim.—Eutambémnãoseioquedeuemvocê,Allie.Seutomeradeacusação,eelaseinclinouparalongedele,ferida.—Ei.Issonãoéjusto.— Quer saber o que eu acho? — Seus olhos escuros brilharam de raiva

reprimida.—AchoquevocêbebeudemaiseconfiounoSylvain.Eutenteiteavisar.—Eu sei! Eu sei que você tentou.—Ela também estava com raiva,mas sua

raivaeradesimesma.—Aculpafoitodaminha.Eeusintomuitopornãoterteouvido.Fuiburra.Souumaidiota,tábom?Meperdoaagora?

Aexpressãodelesuavizou.—Olha,Allie,ésóque...eujátedisse issoantes.Vocênãotáaquihátempo

su ciente pra entender como as coisas são nessa escola. Só toma cuidado, tá? Ascoisasnãosãosempreoqueparecem.Aspessoasnãosãosemprequemparecemser.

ApesardeotomdeCarterestarmaisgentil,oavisoafezgelar.Que colégio é esse, a nal? Quem é essa gente? Uma sensação de preocupação

queimouseuestômago.Possocon aremalguém?AtémesmonoCarter?Elesemprefoitãoirritante,masseráquejámentiualgumavez?

ElaestudouaexpressãosériadeCarter,entãoesticouamãoetocou-lheobraço.—Obrigada,Carter.Surpreso,eleergueuumasobrancelha.—Peloquê?—Vocêmeioquemesalvoudaminhaburriceontem.Jáforamduasvezesem

24horas.Emalgunspaíseseutedeveriaminhavida,meuprimeirofilho,algoassim.Eleabriuumquasesorriso,maselaaindaviucertareservanosseusolhos.—Só...acreditaemmimdapróximavez,tá?Elafezquesimcomacabeçavigorosamente,mastudoquefaloufoi:—Tá.Aoseinclinarparatrásnacadeiraetomarumgoledocaféqueestavaesfriando,

elecerrouosolhoseos xouemalgumacoisaatrásdela.Allievirou.Dooutroladodasaladerefeições,Sylvainestavasentadosozinho,perfurando-oscomoolhar.Elapôdesentiraraivairradiandodelecomocalor.

Carterretribuiuoolhar,semseesquivar.—Ai,saco—Alliemurmurou.—Vocêvaiterproblemascomele—disseCarter,virando-separaela.—Eleé

poderosoporaquienãovai car feliz senão tiveroquequer.Eoqueelequerévocê.

EncarandoSylvaindestemida,Alliedisse:

—Quepena.Porqueelenãopodemeter.Chegando a cadeira para trás, ela se levantou e foi na direção em que Sylvain

estava sentado, na frente da sala. A expressão dele era intimidante, mas ela agoraestavasóbria.Inclinou-seatéqueasmãosseapoiassemnobraçodacadeiradeSylvaineseurostoestivesseapoucoscentímetrosdodele.

Aofalar,suavozsooucomoumsussurroameaçador.—Aquelefoiopiorencontrodaminhavida.Eentrenós.Acabou.Tudo.Elaesperouapenasosu cienteparacronometraroolharsurpresonorostodelee

entãosevirouparaaporta.Comocantodoolho,viuCartersorrir.

Ao subir as escadas para odormitório feminino, contou cadapasso.Chegando aoquarto,61passosdepois,abriuaporta.

Estava tudo como ela havia deixado horas atrás. As gavetas da cômoda aindaestavamabertas.Asroupasqueelaespalharapelochãoemsuaprocuraapressadaporalgumacoisaparavestirnomeiodamadrugadacontinuavamlá.

Respirandofundo,deuopassodenúmero62paradentrodoquartoeiniciouoprocesso de fazê-lo parecer seguro de novo. Primeiro pegou e guardou as roupas;depois organizou a já organizada escrivaninha e fechou a porta do armário.Finalmente,quando tudoestavaperfeito, fechouapersianaparabloqueara luzdodia, tirou os sapatos e deitou por cimada colcha.Estava totalmente exausta.Mastambémestavaelétricademaisparaconseguirdormir.

Por meia hora virou de um lado para outro enquanto os eventos da noitegiravam em sua mente como os dançarinos do baile.Quem matou a Ruth?... OCarterdevemeacharumavagabunda...Eutavabêbada?AJodissequeochampanheeraforte...MasaRuthtava...Elatava...

ImagensescuraseborradasdocorpoensanguentadodeRuthlhecausaramânsiadevômitoeelasesentouderepente,comocoraçãoaceleradoeasmãosmolhadasdesuor.

Nãoconseguiarespirar.Ar.Precisodear.Saltandoda cama, cambaleou até a escrivaninha e abriu a janela.A luz do dia

inundouoquartoeelarespirouengasgadaoarfresco,caloroso...—Ai!A voz do lado de fora da janela a assustou tanto que ela quase caiu da

escrivaninhaaochegarpara trás.Agarrandoa cadeira como se isso fosseprotegê-la,respiroucomdificuldade.

—Quem...?

—Allie?Oquehouve?—Carter?—elaarfou.—Que...diabos...você...?Ignorandoapergunta,eleesticouobraçopelajanelaeapuxouparaperto—o

corpodeladeslizou com facilidade sobre amadeirapolidada escrivaninha; elanãoteveforçapararesistir.

OsolhosnegrosdeCarterestavamsériosaoobservá-lalutandopararespirar.—Lembraoquevocê feznaquelaoutranoite?Precisa fazeroutravez. Inspira

pelonariz.Lentamente.Eexpirapelaboca.Allietentouassimilaroqueestavaacontecendo.—Vocêtava...meespionando...?Eleaencarou.—Porra,Allie.Quercalarabocaerespirar?Comosolhosnosdele,asmãosdeCarteragarrandoassuas,Allierespirouem

sincronia com ele, asperamente no início, e gradualmente com mais facilidade.Quando ela parecia estar respirando normalmente, ele a soltou e as perguntasexplodiramdela.

—Vocêéumcompleto tarado?Comofoiquesubiuaqui?Ecomoéqueachouomeuquarto?E...

Sentadonoparapeito,Carterriuelevantouasmãos.—Ah,Allie,eumoreiavidatodanessaescola.Conheçocadacentímetrodaqui.

Inclusiveotelhado.Onde,aliás,ébemfácilsubir.Ficomeiosurpresodevocêaindanãotertentadoisso.

Allieprocurouqualquer sinaldequeele estivessementindo,masnãoviunadaalémdeexasperação.

—Vocêveiodoseuquarto?—Elafezumapausa,olhandoemvolta.—Ondeéoseuquarto,aliás?

Carterapontouparaooutroladodaconstrução.—Olha,odormitóriomasculinoénoúltimoandardoprédioprincipal.Minha

janelaéaterceiraalinoandardecima,távendo?Alliecontouasjanelasdosquartosefezquesim.Orapazsevoltounovamente

paraela.—Éfácilirdaquipralá.Derepenteelateveumalembrançadealgumassemanasanteriores.Encarou-o.—Vocêjáveioaquiantes.—Otomeradeacusação.—Logoqueeuvimpra

cá,euachoqueouvialguémforadaminhajanelaumdiademadrugada.Foivocê,nãofoi?

Eleteveadecênciadeparecerconstrangido.

—Ai,cacete.Nãoacheiquevocêtivesseescutado.Desculpa.—Vocêmematoude susto,Carter—disseela.—Oquevocê tava fazendo

aqui?Eleseencolheudesconfortavelmente.—Eu...naverdadetavaindoveroutrapessoaevocêabriuajanelaequaseme

derruboudotelhado.Nãosouumvoyeurnemnadaassim.Lembrando-se do alerta de Jo, sobre ele partir os corações das meninas, Allie

imaginouquemeleteriaidoencontrar.Examinou-o,especulando.Quemdiabosévocê,afinaldecontas,CarterWest?Tê-lonadefensiva fez comque ela se sentissemaisno controle.Ela cruzou as

pernaseapoiouoscotovelosnosjoelhos.—Entãoporquevocêtáaquiagora,Carter?Indoveroutrameninadenovo?Ogarotoseinclinounamolduradajanela,evitandoosolhosdeAllie.Aofazê-

lo,deslocouumapedradorebordoeelaaouviubateratéochão,atrêsandaresdali.—Não.Claroquenão.Nãoénada.Só quei...preocupadocomvocê,seilá—

disse a nal.—Foiumanoitehorrível e você temessas crisesdepânico, então eusó...sabe?...fiqueipreocupado.

Osdois caramseolhandoporuminstante,masosolhosdeCartereramtãoin nitamente escuros que pareciam evocar imagens dos eventos terríveis da noiteanterior.Elacobriuorostocomamãoparabloqueá-las.

—Eunãoparode ver aRuth edeme lembrar...Foihorrível,Carter.Muitohorrível.Tavaescuro,masdeupraverqueagargantadelatavacortada.Tinhatantosangue...Edepoisospassos.Euacheiqueeuiaserapróxima.

—Quepassos?QuandoAllie levantouoolhar,Carter estavaolhando xamentepara ela.Pela

primeira vez lhe ocorreu que, com todo o caos, não tivera chance de contar aninguémoquetinhaacontecidoláfora.

Depoisdeficaremdiacomahistória,eleinsistiunospassosqueelaescutara.—Vocêtemcertezadequeospassosvieramdedentrodaescolaedepoisforam

pralonge?Alliefezquesim.DavaparaverqueamentedeCarterestavatrabalhando.—Quantospassosvocêouviu?Assim,quantaspessoasvocêachaqueestavamlá?

—perguntouele.—Uma, eu acho,mas não sei bem. Eu tava assustada demais. Carter, quem

podeterfeitoisso?Vocêachaquepodetersidoumaluno?Ou...umprofessor?Atéagora,aideianãohavialheocorrido,masderepentetudoestavaparecendo

assustadoramentepossível.Torciaparaqueelerissedela,oudissessequeestavasendo

boba.Masnãofoioqueelefez.Emvezdisso,eleesfregouosolhos.—Nãosei.Achoquenão...masnãoseimais.— Por que não me mataram também? — Sua voz estava lamuriosa ao

nalmentedizeraspalavrasquevinhaevitandodesdeanoitepassada.—Porqueeucontinuoviva?

Carterolhouparaoterrenodaescola.Nãofalounadaporumlongoinstante.Aofazê-lo,suavozestavaáspera.

—Nãosei,Allie.Masseforpossívelqueoassassinotenhatevistoetalvezachequevocêoviu...Bom.Vocêprecisatomarmuitocuidadoapartirdeagora.

Amanhãestavamorna,masAllieestremeceu.Reduziuavozaumsussurro.—Carter,oquetáacontecendo?Osolhosdelese xaramnosdelaeelasentiuoquantoelequeria falaralguma

coisa,masomomentopassoueelebalançouacabeça.—Nãoposso,Allie.Nãoposso.Ela estava tão cansada que não aguentava discutir — há quase dois dias não

dormiadireito.Apoiandoacabeçanamãoefechandoosolhos,elabocejou.—Euquero caracordadaecombaterassassinos,masestoucansadademais—

murmurou.—Émuitoruimestarsozinhaagora,Carter.Queriaquevocêpudesseficar.

Umlongosilênciopairousobreeles,maselacochilouumpoucoenãopercebeuatéCarterfalarnovamente.

—Chegapralá—disseele.Ela abriu espaçopara ele por cimada escrivaninha, ele entrouhabilmente pela

janelaeentãoafechou.Umaondasúbitadeadrenalinaafezsesentirmuitodesperta.—AgentevaiseencrencarmuitoseaJulesdescobririsso—disseela,apesarde

nãoseimportar.—Ah,eusei lidarcomaJules—comentou.Sentando-senochãoao ladoda

cama, ele esticou as pernas com um resmungo de prazer; sua forma esguia caracomprimidanoparapeitoeeledeviaterpassadoanoite inteiracorrendo.—Alémdomais,hojetáumaloucura.Ninguémvaiperceber.Deitanacamaevamostentardormir.

Após um segundo de hesitação, Allie desceu da escrivaninha e subiu na cama.Fingindoindiferença,puxouocobertorazuldopédacamaeentregou-oaele.Masquandoosdedosdeambossetocaram,osdoiscongelaramporumsegundo.

—Precisadeumtravesseiro?—perguntouela,forçandoavozasoarfirme.

—Obrigado,não,assimtábom.—Elesoavacalmo,maselaviucomoestavacomamandíbularijaaodesdobrarocobertor.

Allie se espreguiçou e tentou relaxar, mas seu corpo estava duro — todos osmúsculostensos,comoseestivessemprontosparalutar.Colocouasmãosnorosto.

—Nãoconsigofazerisso.Eununcavoudormir.CarterlevantouumadasmãosdeAlliedorostoeficousegurando-a.—Játeconteiqueeutinhacrisesdepânico?Surpresa,Allierolouparaoladodemodoqueconseguissevê-lo.—Tinha?Quando?—Algunsanosatrás.—Eleestavadeitadodecostas,olhandoparaoteto.—Eu

tavapassandoporumperíododifícilecomeceiateresses...momentos.Umamigomuitobommeajudou.Eumacoisaqueelemeensinoufoiaparardepensarnoquetavameenlouquecendoeemvezdissomeconcentraremcoisasquemedeixavamseguro.Até... feliz.A forçarpensamentosmelhoresnaminhacabeça.Oque te fazfeliz,Allie?

Elapensoumuito.OChristopher,vivo,bemenormal.Fazerpartedeumafamílianormal.Estaraqui.Pelomenosatéontemànoite.

—Nãosei—sussurrou.Carter couquietoporumtempo,segurandoamãodelanopeitodele.Quando

falounovamente,elasentiuavibraçãodavozatravésdaspontasdosdedos.— Imagina... que a gente está em outro lugar. Algum lugar muito bonito.

Talvezemumapraiacomareiabrancaeáguaazul.AllietentouseenxergarcomCarteràsombradeumapalmeira,comareiaentre

osdedosdospés.—Aqui você tá segura—eledisse, coma vozbaixa e rme.—Talvezmais

tarde a gente possa fazer snorkel e ver os peixes nadando. Peixes coloridos. Estávendo?

Concentrando-se nas palavras dele, imaginou poder enxergá-los passando pelaáguacristalina.Começouaouvirorumorrítmicodasondas.AvozdeCartereratãocalmante que seus ombros relaxaram a nal, enquanto cardumes brilhantes depeixinhos tropicais azuis, vermelhos e amarelos se espalhavampor sua imaginação.Sua respiração foi candomais uniforme. Sentiu-se afundandona águamorna—lentaedeliciosamente.

—Élindo.—Estavacomavozpesadadesono.—Ésim—eledisse,aindasegurandosuamão.Mentalmenteemergiudaáguaeviuumnavionohorizonte,comvelasabrindo

enquantocaíanosono.

Q

DEZESSETE

uando Allie acordou, algum tempo depois, estava sozinha, mas tinha asensação nada desagradável de que Carter tinha estado com ela durantequase todo o tempo. Tinha meio que acordado diversas vezes com

pesadelos,enotorporexauridoteveaimpressãodetê-loouvidosussurrar:—Estátudobem.Dorme.Sentando-se,olhouparaodespertador.Faltavampoucoparaassete.Damanhã?Oudanoite?Uma olhada para a janela revelou uma noite de verão.Tinha passado o dia

inteirodormindo.Aoesticarosmúsculos fatigados,suabarrigaroncoutãoaltoquede inícionão

entendeuoqueestavaouvindo.—Morrendodefome—anunciouparaoquartovazio.Saltandodacama,foidiretoparaaporta,eemseguidafreouaosevernoespelho

daparede.Estavacomoscabelosarrepiados,orostomanchadodefuligemeusandoas mesmas roupas que vestira no meio da noite, agora quase irreconhecivelmenteamarrotadas.

Fezumacaretaparasimesma.Ai,droga.Nemeupossosairdessejeito.Pegando uma escova da mesa, forçou-a pelos emaranhados os ondulados,

pulando em um pé só e praguejando para si mesma quando a saia prendeu nossapatosquetinhacalçadoantes.

Aindaabotoandoocinto,correuparaforadoquarto,parandobrevementediantedoespelhoparaesfregarafuligemdorosto,eseapressoupelocorredorvazioatéoprimeiroandar,ondeparou.

Estavaquieto.Estranhamentequieto.Umpensamentohorrível cruzou amentedeAllie:e se todomundo foi embora

enquantoeuestavadormindoesóesqueceramdemim?Apesardesaberqueeraumaideiaabsurda,sentiuumaondademedoaocorrer

pelas escadas vazias, ouvindo apenas o barulho da borracha dos seus sapatos nosdegraus.Mas,aoseaproximardotérreo,viugruposdealunossemovendoemum

silênciotristonhoemdireçãoàsaladerefeiçõesedesacelerou.Sesentiuridícula.Claroquenãotinhamidoembora.Você está sedescontrolando , repreendeu-se, antesde respirarpara se acalmar e se

juntaràmultidão.O cheiro de comida se misturava desagradavelmente ao odor pungente de

madeiraegessoqueimados.Aoolharemvoltaàprocuradeumrostofamiliar,notouquemuitosqueacercavamtinhamcurativosvisíveis.Umdelesestavademuletas.

Nasaladerefeições,abagunçadanoiteanteriorjáhaviasidoremovida,masasmesasnão forampostasparao jantar comos cristais e as louçasde sempre.Haviapilhasdepratos sobre todasasmesas,eosalunosestavampassando-osunsparaosoutros.Nenhumavelabrilhava(depoisdoincêndio, coufelizporisso).Todossesentavamquietoscomoseninguémsoubesseexatamenteoquedizer.

Notou aliviada que Jo, Gabe e Lucas estavam à mesa habitual, e se dirigiudiretamenteparaeles,masentãoCarterfoiparapertodela.

—Oi.Ao virar para olhar nos olhos escuros de Carter, seu estômago revirou.

Repentinamentetímida,enfiouasmãosnosbolsosdasaia.—Oipravocêtambém.—Dormiubem?O rapaz tinha tomado banho e mudado de roupa — ainda estava com as

bochechasrosadasporcausadaáguaquenteeoscabelosestavamúmidosnaspontas.Ocansaçohaviadesaparecidodorosto.

Allie concordou com a cabeça, tentando permanecer calma, como semeninosdormissememseuquartotodososdias.Masocalorsubiuàsbochechas,traindo-a.

—Evocê?Quehorassaiu?—Umahoraatrás,maisoumenos.Cartertinhaumamaneiradefalartãoquietaqueelafoiforçadaaseinclinarpara

pertodeleparaescutar.Faziaatéconversascomunspareceremíntimas.—Precisavatrocarderoupa—prosseguiu.Allieestavacompletamentecientedo

fatoqueseubraçoestavaesfregandonodele.—Nãoquisteacordar,vocêdemoroutantopradormir.

Atensãoentreosdoiserainsuportável.Umdelesteriaquedesviaroolhar,masAllienãoqueriaquefosseela.

O que está acontecendo comigo?, imaginou.Não posso gostar do Carter.Simplesmente...nãoposso.

—É—concordouamenina,semfôlego.—Querdizer...eutambémtivequetrocarderoupa.

Olhandoemvolta,Carterpercebeuquequasetodomundojátinhasentado.—ÉmelhoragenteirouoZelaznyvaicomeçaragritar.Eleaconduziuatéamesaeesperouatéqueestivessesentada.Emseguida,para

surpresadeAllie,puxouacadeiraao ladodela.Carternunca sentavacomogrupodelanasrefeições,eagarotatentounãodemonstraroquantoficoufeliz.

Gabenãoteveosmesmosescrúpulos.— Carter! — disse, inclinando-se para trás na cadeira com um sorriso

provocador.—Quantahonra.Carterdeudeombros.—Ah,sabecomoé,Gabe.Àsvezesprecisoficarpertodevocê.Jo,queaindapareciacansada,seinclinounadireçãodeAllie.—Vocêdormiu?—Acabeiconseguindo—respondeu.—Evocê?— Na verdade não. — Jo sorriu um sorriso cansado. — Mas acho que tô

morrendodefome.Issofazdemimumamápessoa?—Esperoquenão—respondeuAllie.—Parecequemorteedestruiçãocausam

impactonegativonumadietadebaixacaloria.Quempodiaimaginar?—AlguémtemnotíciasdaLisa?—perguntouCarter.FoiLucasquerespondeu.—EncontreiaEloiseháumahoraeeladissequeaLisaestáacordadaebem.A

gentedevepodervisitá-laembreve.Allie se sentiusorrirpelaprimeiravezdesdeanoitepassada.Aatmosfera cou

maisleve,eporumtempoaconversafluiuquasenormalmente.EntãoavozdeLucassedestacouentreosmurmúrios.—Ei,todomundoficousabendodoanúncio?Allieolhouemvoltadamesa,maspercebeuqueninguémsabiadoqueeleestava

falando.—Queanúncio?—perguntouCarter.—AIsabellevaifazeralgumaespéciedegrandeanúnciohojeànoitesobreoque

aconteceu.Tácorrendoumboatodequevãomandartodomundopracasaefecharocolégioatéofimdoverão.

— Não! — Jo pareceu arrasada e Allie olhou para ela, surpreendida pelaveemênciado tom.Gabe colocou amão em seuombro e elaolhoupara ele comolhostranstornados.—Nãopodemmandaragentepracasa.Nãopodem.

—Tenhocertezadequenãovão.—AvozdeGabeera tranquilizanteeAlliedesviouoolharenquantoeletentavaacalmaranamorada.

Asportasdasaladerefeiçõesseabrirameosfuncionáriossurgiramcomostrajes

pretoshabituais, carregandovasilhase travessasqueemitiamvapor.Apesardeestarmorrendodefome,Allieassistiucomumestranhodesinteresseenquantocolocavamacomidanamesa.Comerparecia,decertaforma,tãosempropósito,depoisdetudoqueacontecera.

Sentindoumamovimentação,olhouparabaixoeviuCarterservindoensopadonopratodela.Encontrouoolhodelaesorriuculpado.

— Hmmm... Ensopado delicioso — disse debilmente, e ela se surpreendeurindo.

Carterserviualgunslegumesemseguida,masquandolheentregouumpão,elalevantouasmãos,serendendo.

— Tá bom, tá bom. Para. Vou comer. Prometo. — Deu uma garfadaobediente,mastigandocomfalsoentusiasmo.—Satisfeito?

Ocupado limpando o próprio prato,Carter ignorou o sarcasmo.Aliás, aquelaprimeira mordida foi muito boa, e Allie viu que a segunda desceu com maisfacilidade ainda.No mdas contas, esvaziouoprato e limpouo restodomolhocomopão.Emseguidasentouparatráscomumsuspirosatisfeito.

—Vocêrealmenteestavacomfome—Carterobservou,entretido.—Meuirmãosemprefalaqueeucomoquenemummenino...—Alliefalou

sempensar,eseusorrisofoiemboratãodepressaquantochegou.NuncafalavasobreChristopher.

Omurmúriona sala aumentougradualmentenamedida emqueosboatos seespalhavam sobre o anúncio iminente, e Allie se sentiu aliviada por as coisasparecerem ligeiramente mais normais, ainda que apenas momentaneamente. MasolhouemvoltadamesaeviuqueJopareciaabatidaepreocupadaenquantomexianacomida.Antesquepudessedizerqualquercoisaaela,umavozfaloudafrentedasala.

—Atenção,porfavor.Trajandocalçaspretaseumcasacoazul-claro,Isabelleesperouatétodomundo

caremsilêncio.Ohomemcomquemeladançarananoiteanteriorseencontravaaalgunsmetros dela, com asmãos cruzadas em uma posição de calma. Seus olhosalertaspareciamnotartudo.EntãoAlliesentiuocoraçãoacelerar—Sylvainentroupelaportaeficoupertodela,comosefossepartedeumtriunvirato.

Oqueeleestáfazendo?O rosto de Isabelle estava sombrio, mas Allie cou maravilhada pelo quão

normalelaparecia.— Sei que muitos de vocês passaram a noite em claro, e entendo que estão

cansados.Tambémagradecemosmuitopelosesforçosemapagaroincêndio.

Allie olhou para Carter e viu que ele estava tando Isabelle com uma ligeiracarranca.

— O que aconteceu ontem à noite foi algo sem precedentes na história daCimmeria— prosseguiu Isabelle.—É algo perturbador e que vai exigir bastantetrabalhodanossaparteparareajustarascoisas.Oincêndioporsi sócomprometeuparedes muito antigas. Pedaços da nossa história se foram para sempre. Mas nósvamosrestaurarestaescola,nãotenhamdúvida,eelavaicontinuarcomosemprefoi.

Aplausoshesitantesdosalunosparecerampegá-ladesurpresa,eIsabelleesperouquecessassem.

—Lamentomuito que os eventos de ontem à noite tenham acontecido. Foichocantepara todomundo.Somos solidáriosàquelesqueerampróximosdeRuthJanson, eraumamenina adorável, aindaqueperturbada, e sentiremosmuito a suafalta.Seusuicídiofoiumchoqueterrível.

Allieengasgouecobriuabocacomamão.Suicídio?Doqueelaestáfalando?—Sabemosque algunsde vocêspodem terproblemas em lidar comamorte

dela, e estamos todos, os professores e eu, prontos para ajudar a qualquer hora seprecisarem de aconselhamento ou alguém para ouvi-los. — Os olhos de Isabelletransbordavamcompreensão.—Nãoprecisamsofrersozinhos.

UmmurmúrioatravessouorecintoeAlliepercebeuquealgunsalunosestavamchorando.VirandoparacapturaroolhardeJo,viuqueameninaestavamordendoolábioetentandonãochorar—Gabeaindaestavacomobraçoemtornodela.

—Haveráumamissanacapelanasemanaquevem.Tenhocertezadequeosqueaconheciambemvãoquerercomparecer.

Apósesperaruminstanteparaquetodasaquelasinformaçõesfossemabsorvidas,Isabellecontinuoumaisrapidamente.

—Algunsalunosferidosnoincêndiovãonosdeixaramanhãparaserecuperarememcasa,edesejamostudodebomaeles.Esperamosvê-losdevoltanooutono.Paraaquelesquevãocontinuarnaescola,asobrasdereparaçãodevemdemorarcercadeummês, e temoquehaverá algum transtornonesseperíodo.É incômodo,porémnecessário.Osalão,obviamente,estáproibidoporenquanto.

Isabelledeuumpassoparatrás.—Enquantoisso,otoquederecolherserámaiscedoestanoite;queremostodos

devoltaaosrespectivosquartosatéasnove,eterãoquepermanecerdentrodaescolaotempotodo,pelomenosaolongodaspróximas48horas.

AssimqueIsabelleterminoudefalar,osprofessoresseagruparamaoseuredoreosalunoscomeçaramasedirigirparaaporta,imersosemconversassussurradas.

VirandoparaCarter,Alliesussurrou:

—Quediabos...?Comoslábioscerrados,elebalançouacabeça.OlhandoparaIsabelle,Allieselevantou.—PrecisodescobrirquandovamospodervisitaraLisa.Eualcançovocês.Carterapegoupelobraço,eseusolhoscontinhamumaviso.—Allie...—Consigodarconta—disse,sacudindoamãodele.—Prometoquenãovou

terumataque.QuerosabersobreaLisa.—Teencontrodepois—prometeuCarter,seapressandoatrásdeGabeeLucas.Na beira do grupo de professores, Allie esperou um intervalo na conversa.

Estavam claramente agitados, mas sussurravam tão baixo que ela só conseguiaidentificarumafraseaquieali.

—Perigosodemais...—Mandatodomundopracasa!—fraseditacomgrandeveemênciaporJerry,

quefoirepreendido.—...sobreoNathaniel.EntãoEloiseanotouali.—Podemosajudar,Allie?Todossecalaramaovirarparaolharparaela.Alliecruzouumtornozeloatrásdo

outroemgestoinconscientedenervosismo.—SóestavapensandoseagentepodeveraLisa...IsabelleatravessouogrupoeenvolveuAlliecomumbraço.—Elatábem,Allie.Estáacordada,masumpoucogrogue.Vocêpodevisitá-la

amanhã.Allie sustentouosolhosde Isabellede formadesa adora.Deperto, elaparecia

maisansiosadoqueaparentaraadistância—estavacomolheiras.Masadiretoranãoseesquivoudoolhardamenina.

—Precisademaisalgumacoisa,Allie?—perguntoucalmamente.Por apenas um segundo, Allie se imaginou dizendo “Preciso! Por que você está

fingindoqueaRuthcortouaprópriagargantadeorelhaaorelha?”MasalgolhedissequenãoeraahoraenemolugarparadesafiarIsabelle.—Não...obrigada—respondeuela,seapressandoparaaporta.Logoantesdechegaràsaída,ouviuossussurroscomeçaremoutravez.

Doladodeforadasaladerefeições,Joestavasozinha,apoiadacontraaparede.Parecia menos pálida do que durante o jantar, mas Allie não gostou da maneiracomoelaabriaefechavaasmãos.

JopareceusealegrarumpoucoquandoAlliedeuaboanotíciasobreLisa,masalgumacoisaaindaestavaerrada.

Enquanto as duas subiam as escadas para a ala do dormitório feminino, AllieviroueviuJoolhandoparabaixo,quasechorando.

—Oquefoi,Jo?—perguntou.—Oquetáacontecendo?—Nãoénada,Allie—respondeuela,semolharnosolhosdeAllie,eamenina

sabia que Jo não estava falando a verdade,mas não achou que insistir no assuntofosseajudar.

QuandochegaramaoquartodeJo,Allieentroucomela, repentinamentecommedodedeixaraamigasozinha.Algumacoisaestavaterrivelmenteerrada.Josentouna cama, tirandoos sapatos damaneira habitual,mas estava apertando as própriasmãos.

Allieseinclinouparatrásnaescrivaninha.Falouemumtomcalmo.—Jo,temalgumacoisaqueeupossafazer?— Preciso falar com o Gabe — falou Jo, e em seguida repetiu a frase de

maneirasdiferentes.—Eusó...precisofalarcomoGabe.PrecisoveroGabe.—MasagenteacaboudedeixaroGabe—disseAllie,confusa.Jobalançouacabeça.—Preciso falar com ele sozinha.Estou tendoumataque.Ele vai saber o que

fazer.Examinandoorostopálidodaamiga,Allietomouumarápidadecisão.—Tudobem,não sepreocupa.Euachoele.Me fazumfavoredescansaum

pouquinho,tudobem?Vocêdormiualgumahorahoje?—Maseunãotôcansada—disseJo,sentandonacama.—Tôligadademais

pradormir.—Eutambémestava—disseAllie.—Mastenta, tudobem?Deitaeeu co

aquiatévocêdormir.EuachooGabe,prometo.—Precisofalarcomele.—AvozdeJoestavaarrastadadeexaustão.Seusolhos

se fecharam, mesmo enquanto uma lágrima escorria pela lateral do rosto.Finalmente,elaseapoiounostravesseiros.

—Sódescansaumsegundo—pediuAlliesuavemente.Elaestavapertodaportaaberta;abrisaaindaestavafresca.—VouacharoCartereeletrazoGabeaqui.

—ComovocêvaiacharoCarter?—AvozdeJoestavasonolenta.Olhando pela janela para as sombras compridas na grama abaixo, Allie

respondeu:—EusempreachooCarter.

Quando a respiração de Jo estava rme e regular, Allie fechou silenciosamente ajanelaeapersiana.Emseguidasaiunaspontasdospés,fechandoaportaatrásdesicomumcliquequasesilencioso.

Lá embaixo, encontrou o térreo praticamente vazio. Todos os alunos queestavam por ali tinham desaparecido para os respectivos quartos. Ela não sabia aocertoporondecomeçaraprocurar—nunca tinha idoaodormitóriomasculinoenemsequer tinhacertezaquantoacomochegar lá,excetopelo telhado,oquenãopareciaumaboaideiaagora.

Naquele instante ouviu um barulho estalado pelo corredor e viu Julescaminhando com determinação, com uma prancheta contra o peito. O barulhovinhadassandáliasbatendoacadapasso.

Lembrou-sedaspalavrasdeJoaoperguntarsehaviameninasnaEscolaNoturna.“TalvezaJules...”

Alliesecolocounocaminhodamonitora.—Oi,Jules.Tudobem?—Utilizouseutommaisamigável,eJulespareceuum

poucoespantada.—Oi,Allie.—Eladesacelerou,masnãoparou,eAllieaacompanhou.—SabeondeoGabeeoCarterestão?—Porquê?—perguntouaoutra,desconfiada.Allietentouumaabordagemgentil,porémchateada.—Éumahistórialongaelouca,masoCarterestácomumacoisaminhaeeu

precisodela,eaJoachouqueelepudesseestarcomoGabe.Vocêsabe?Tipo...ondeelesestão?

JulesexaminouorostodeAllie.—Não—respondeufriamente,apressandoopasso.Praguejandoemsilêncio,Alliecorreuatrásdela.—Olha,Jules.Émuitoimportante.Eunãoperguntariasenãofosse.Julesparouevirouparaela.—Eles estão numa reunião na ala das salas onde você não pode entrar, tudo

bem?Massevocê carpertodaporta,provavelmentevaiencontrarcomelesquandosaírem.Poroutrolado,eunãofaçoideiadequantotempovaidemorar.

Aessaaltura,Alliequeriasacudi-la,masnãoiadesistir.—Então—disseela,desenhandoumalinhanochãocomodedãodopé—,

aondevocêtáindo?Colocandoapranchetaembaixodobraço,Julesfingiuumapaciênciaexagerada.—Oquevocêquer,Allie?— Só que se você estiver indo pra essa reunião, podemandar o Carter aqui.

Agora?Oudizpraelequeeutôesperandoaquiequeprecisofalarcomele.Émuitoimportante.

Comcaradequenãoconseguiaacreditarnoqueacabaradeouvir,Julescomeçouaandaroutravez.

—Claro,Allie.Querqueeutragacháechocolatedelá?A nal,nãotenhonadamelhorprafazerhojedoquesersuamensageira.

Ficandoparatrásdela,Allielevantouodedodomeioparaascostasdamenina.— Não, obrigada — disse, com a voz alegre e rme. — Posso pegar meu

própriochá.AvozdeJulesflutuouemretornoquandoameninadobrouaesquina.—Queótimo.Apoiando-senaparede,comosbraçoscruzadossobreopeitoeasoladeborracha

deumdossapatosencostadanoantigopaineldemadeiraatrásdesi,Allieesperou.Depoisdedezminutosescorregoupelaparedeesentounochão,cruzandoaspernas.Naquela posição, a mesa barroca com topo de mármore que estava perto dela aescondia,assimIsabellenãoaviuquandopassouaoseulado,acompanhadaporseuparceirodedança,algunsminutosdepois.

— ... ela precisa saber que oNathaniel tá fora de controle.—Sua voz estavageladaderaiva.—Nãodápraaceitaroqueaconteceuontemànoite.Elatemquefazeralgumacoisaa respeito.Pelomenosescolherumlado.MeuDeus,Matthew,pessoassemachucaram.Criançassemachucaram.Issonãopodecontinuar.

Matthew murmurou em resposta alguma coisa que Allie não conseguiuidentificar.

—Bem,entãovocêvaiterqueseencontrarcomelapessoalmente—Isabelleseirritouenquantoosdoissaíamdoseualcanceauditivo.

As palavras da diretora provocaram um efeito eletrizante em Allie, que seinclinouparaafrentea mdeespiaremvoltadaspesadasbasesdemadeiraesculpidadamesa.

Entãonãofoiumprofessorenemumaluno,a nal.Alliepuxouosjoelhosparapertodocorpoeosabraçouenquantoumaestranhasensaçãodealíviocaíasobreela.Pelomenosoassassinonãoeraalguémqueconsideravacomoamigo.

Maispassos.AllieseinclinououtravezeviuCarterporperto,olhandoparacimaeparabaixo

docorredoramplo.Levantou-seaostropeços.—Carter.—Allie!Aconteceualgumacoisa?AJulesdissequevocêtavameprocurando.

Alliequasesorriu.Nãoacredito.Elafaloupraele.Aproximou-sedeCartereabaixouavoz.—OGabetánessareuniãoquevocêestava?Carterassentiu.—EleprecisairproquartodaJo,elaestátendoumataque—revelouAllie.Carternãopareceusurpreso.—Voufalarcomele.Viquetinhaalgumacoisaerradaduranteojantar,elenão

queriadeixarelasozinha,mas...OsolhosdeAllieestavampreocupados.—Elatámuitoestranha,Carter.Nãopareceela.— Eu disse pra ele que isso ia acontecer. — Fez-se uma pausa enquanto ele

pareciatomarumadecisão.—Allie,agenteprecisaconversar.—Claro.Oquefoi?Carterolhouemvolta.—Não,emparticular.Podemeencontrarnacapeladaquiavinteminutos?Allieoolhoudesconfiada.—Agentenãopodesairdaqui,senãopodemosprovocarafúriadeIsabelle,ejá

passadasnove.—Éahoraperfeita—declarouCarter.—Todomundotáemreunião,oujá

voltou pro quarto por causa do toque de recolher. Os professores estão todosdistraídos.

Alliepensou emdizernão.Aúltima coisaqueprecisava eradeumadetenção.MasCarterpareciamuitodeterminado.Torceuparaqueoquequerqueeletivesseparafalarexplicassepartedoqueestavasepassando.

—Tudobem,masseeuforexpulsavoudedurarvocê.Apesar de os lábios dele terem se curvado em um sorriso, seus olhos estavam

sérios.—Ótimo.Tevejolá.MedáunsdezminutospraavisarproGabedaJo.Depois

corredepressa.Enquantoeleseafastava,Alliemurmurouparasimesma:—Correrdepressa?Penseiquevocêtivesseditoquetodomundoestavaocupado

demaispraperceber.Elamarchoudeum ladoparaooutro impacientemente (391 passos) enquanto

esperavaosdezminutospassarem.Depoisdeoitominutos,elacomeçouasedirigirparaaportadafrente(33passos)comumaindiferençacasual.Aentradaestavaquieta,masquandosuamãotocouamaçanetadaporta,ouviuvozesvindopelocorredor.

Alémdos grandes suportes de velas e das tapeçarias, havia pouconeste espaço,

excetopor umamesade ferro forjado coberta por um tecidopesado.Allie correuparatrásdamesaexatamentequandoEloiseeZelaznydobraramaesquina.

—Vaidemorar?—perguntavaEloiseenquantoospassosseaproximavam.Elapareciairritada.

—Esperoquenão.—Zelaznyabriuaporta.—Masdependedoqueagentedescobrir.

—Porondequercomeçar?Aoatravessaremaporta,AllieescutouarespostadeZelazny:—OndeencontramosocorpodaRuth.Ocliquedafechaduraecoounaentradadepedravazia.Noesconderijo,Alliefranziuatesta.Oqueelesestãoprocurando?PrimeiroachouquenãoiaconseguirsairdejeitonenhumcomZelaznyeEloise

láfora,masentãolembrouqueocorpodeRuthtinhasidoencontradonosfundos.Acapela cavanobosque,próximoaogramadodafrentedacasa.ApesardenãoterescutadooqueZelaznyestavadizendo,seiamcomeçarpelosfundos,eladeveriatertemposuficienteparachegaraoabrigodaflorestaantesquealguémavisse.

Paradaraelestempodesaíremdafrentedaescola,contouatécemantesdeabriraporta.Girousilenciosamenteasdobradiçaseespiouoladodefora.

Nemumaalmaàvista.Saindosobaluznoturna,Alliefechoucuidadosamenteaportaatrásdesi.AcabaradepassardotoquederecolherdasnovehorasestipuladoporIsabelle,eo

sol estava prestes a se pôr ao m do longo dia de verão. No degrau superior,iluminada pelo brilho dourado, Allie olhou para cima durante um longo instantecomo se estivesse tentando absorver a luz para sua alma. Em seguida correu pelogramadoeavançouemdireçãoàfloresta.

Umavezquechegouemsegurançaaobosque(97passos),desacelerouumpoucopara recuperar o ar, em seguida correu pela trilha através das sombras queaumentavam.Tudoestavasilenciosoeobscuro.Quandochegouaopátiodaigreja,cincominutosmaistarde,osilêncioeraopressor.

Se o Carter está aí, certamente não o estou ouvindo. O clique metálico dafechaduraaoabriroportãopareceuecoarpelapacíficaclareira.

Instintivamenteelasedirigiuàárvoreondesentaramnodiadadetenção.Aoseaproximarviuumpécalçadocomumsapatopretopendurado.Esticandoobraço,agarrou-oefoiinstantaneamentepuxada.

—Oi,vocêconseguiu.—Eleestavasentadonomesmogalhoespesso,comascostas apoiadas no tronco. Ao se inclinar para ajudá-la, Allie mais uma vez coumaravilhadacoma forçadeCarter,quea levantoucomfacilidadeparapertodele.

Elaseajeitouemumpontolisoesesentoudefrenteparaorapaz,comosjoelhosdobradoseospésapoiadosnogalhoentreosdois.

—Então...oquevocêquer,Carter?—perguntou,inclinandoacabeça.—Porquequismeencontrarbemaqui,naterradadetenção?

— Porque não queria que ninguém ouvisse, e esse é o único lugar que euconheçoondepossoter100%decertezadequepodemosconversaremsegurança.

Alguma coisa na postura de Carter parecia desconfortável. Ele parecia terdificuldadesemdecidiroquefalar,eelanãoconseguiacapturarosolhosdele.

—Éque...—disseele,eentãoparou.Apósuminstantetentououtravez.—Temalgumascoisasquevocêprecisasaber.

GraçasaDeus,pensouela.Finalmentealgumasrespostas.AllienãoesperouCartercomeçar.—Carter, oque você sabe sobre isso tudo?Porque eles estão ngindoque a

Ruth se matou? A garganta dela estava... Impossível ela ter feito aquilo consigomesma.Ehaviaoutroslá.Euouvi.EaIsabellesabesobreeles.

Carter já tinha começado a interrompê-la antes que ela tivesse mencionadoIsabelle.Agoraelemesmoparoueaencarou.

—OquetefazpensarqueaIsabellesabe?Rapidamenteelarelatousobreterescutadoosprofessoreseemseguidaaprópria

IsabellefalandosobrealguémchamadoNathaniel,ea implicaçãodequeeleestariaenvolvidonosacontecimentos.

Carterpassouosdedosnocabelo.—Então eles acham que ninguém da escola teve nada a ver com amorte da

Ruth,masvãofalarpratodomundoqueelasematou.Allieseinclinou.—Masporquê?Apolícianãovaiolharpraelaeperceber imediatamenteque

nãofoiumsuicídio?CarterencontrouoolhardeAllie.—Quepolícia?Agarotaolhoupasmaparaele.—Estáfalandosério?Achaquenãochamaramapolícia?—Nãochamaram.Nemvãochamar.—Mas...como...?Arespostafoiimediata.—Apolícianãoveioaquiporqueapolícianãofazideiadoqueestáacontecendo

aqui,eninguémvaicontar.NuncavãosaberqueaRuthmorreuaqui.Ocorpodelavaiapareceremumbecoemalgumlugar,eospaisdela,quepassamotempoquase

todonaFrança,vãodizerprapolíciaqueelatinhafugido.Eospoliciaisvãoacreditarporqueopaidelaéumbanqueirodoramodeinvestimentoseamãedelausaroupasdemarca,eessetipodegentenãomente,certo?

Allienãopodiaacreditarnoqueestavaouvindo.—Táfalandosério?Carter,vocêestádizendoquetudoissovaiserencoberto?—Claroquevai,Allie.Existeummotivopeloqualvocênuncaouviufalarna

Cimmeriaantesdevirpracá.—Seutomeraamargo.—Aindanãoentendeu?Nãosabeondeestá?

Allienãosabiaoquedizer.Procurouaspalavrascertas.—Carter,oqueestáacontecendoaqui,sério?—Éissoqueestoutentandodescobrir—disse,olhandoparaopátiodaigreja.

—Olha,aCimmeriaéumlugarmuitoincomumebemcosturado.Todomundoconhecetodomundo.Todomundoestáaquiporummotivo.Lembradequandoagenteteveaquelaespéciedediscussão,quandoagenteseconheceu?Vocêachouqueeutavafalandoquevocênãotinhadireitodeestaraqui?

Enrubescendocomalembrançadahumilhação,Alliefezquesimcomacabeça.—Agentenãorecebealunosnovosquenãotenhamalgumaligaçãofortecoma

escolanomeiodo verão.Tipo se ospaisnão zerempartedo conselho.Ou se afamília inteira não tiver estudado aqui.Coisa assim— explicouCarter.—Eu sóestavatentandodescobrirqualdessascoisasvocêera.Masnãoénenhuma.Vocênãotemqualquerligaçãocomocolégio.

Carterolhoudiretamentenosolhosdela.—Issonãoacontecesimplesmente.Prendendo-se ao galho com os joelhos, Allie mordeu a unha do polegar

enquantotentavaprocessaroqueeleestavadizendo.Anoiteestavainvadindoosoldeverãoeestavamaisdifícilidentificarasfeiçõesdomeninoàluzdesbotada.

— Não sei o que dizer — falou Allie. — Meus pais disseram que a políciarecomendouaCimmeria...oupelomenos—parouparapensar—elesmeioquedisseramisso.Masforamsupersecretosemrelaçãoaoassuntoantesdeagentevirpracá.Nãomedisseramnemonde cavao colégio.Aindanão seionomeda cidademaispróxima.Foitudomuitoapressado,estranhoecomaresdeJamesBond.

Carterbalançouacabeça.— A polícia de Londres não teria recomendado essa escola porque nunca

ouviram falar daqui. Então seus paismentiram.Agora, por que fariam uma coisadessas?

Sentindoocoraçãobater loucamente,Allie tentou respirarnormalmenteenãoentrarempânico.(Cincoinspiradas,quatroexaladas.)

—Quersaber,Carter?—Avozsoouapertadaeelaengoliuemseco.—Temrazão.Eurealmentenãoseiondeestou.

— Então precisa descobrir — disse Carter. — E precisa resolver depressa emquemvaiconfiar.

I

DEZOITO

sto tudo era demais para Allie assimilar. Tremendo, ela abraçou o própriocorpo.—Carter,sevocêtátentandomeassustar,conseguiu.Entãojápodeparar?

Porumlongominutoelenãodissenada,emseguidasuspiroupesadamente.—Desculpadespejar issotudoemcimadevocê.Enãoqueroteassustar.Mas

queroquepercebaquetudoissoémuitosério.—EusoubequeerasérionahoraemquecaíemumapoçadesanguedaRuth

—disparou.—Eutôentendendo,tálegal?Estouentendendoatédemais.Agentetámuitoencrencado.Algumacoisaabsurdaestáacontecendo.Pessoasestãomorrendo.Essaescolaémuitoestranhaeomeulugarnãoéaqui.

Carterdeslizoupelotronco,chegandotãopertodelaqueosjoelhosdosdoissetocaram,eaabraçou.Inicialmenteelatentouafastá-lo,maseleaseguroufirme.

—Desculpa. Eu não devia estar fazendo isso com você. Só não quero que semachuque—disseele.

Respirandotrêmula,elasepermitiurelaxarnosbraçosdeCarter.Ocalordoseucorpopareciaseguro.

Soltando-a,eleseinclinouparatrásosuficienteparaenxergarseurosto.— Eu estava tentando te assustar, mas só porque tenho medo do que pode

acontecer.Onegócio éo seguinte, eu vimaquihojepra te convencer a voltarpracasa.

Surpresa, elaolhouparaCarter enquantoele continuava, agora se atrapalhandocomaspalavras.

—Achoqueteliberampor,tipo,estressementaloucoisadotipo.Allie abriu a boca para discutir, mas Carter continuou antes que ela pudesse

protestar.—Sóqueeudecidiquenaverdadenãoquero.Quevocêvá,querodizer.Oque

estouquerendodizeré...esperomuitoquevocê que.Agentevaidescobriroquefazer.

—Achoquenãotemosoutrasaída—disseAllie,simpli cando—,porqueeu

nãotenhomaispraondeir.No escuro, Allie não conseguiu enxergar os olhos de Carter quando ele

respondeu.—Entãovocêéexatamentecomoeu.Carterolhouparaocéu,ondeorestinhodaúltimaluzagoraestavaseapagando.—Émelhoragenteentrar.Táficandotarde.Saltandodo galho com a leveza de um atleta, ele virou e colocou asmãos na

cinturadelaparatrazê-laparabaixo.AllieagarrouosombrosdeCarterenquantoelea colocava no chão. Os olhos do rapaz prenderam os dela por um segundo, emseguidaelevirouparaoportão.

—Pisafundo,Sheridan—disseele,comavozáspera.—Estoulogoatrásdevocê.Aoseapressarempelatrilhadecascalhos,osoldesapareceuporcompletoecom

oescuroveioainquietação.Allieolhouemvoltaenquantocorriamnocrepúsculodanoite, tentandosentirqualquermovimentoouperigona orestaao redor.Abrisasoprando através dos topos dos pinheiros emitia um chiado lúgubre. Allie pôdeperceberqueCartertinhatotalconsciênciadecadaruído—tinhaolhosatentos—eela se manteve perto dele, igualando cada passo. Nenhum dos dois falou atéchegarem à borda da oresta e a escola se tornar visível. Pararam para recobrar ofôlegonabeiradogramado.

ApesardeAllie saberquenadamais era seguro, cou satisfeita ao ver a escola,comluzesbrilhandoatravésdosvitraischumbados,esealegrouumpouco.

—Muitobem—disseCarter, arfandoapósacorridapela oresta—,vamosfazeroseguinte:provavelmenteninguémtávigiandoaportadafrenteagora.Correomaisrápidopossívelatélá.Euvoulogoatrás.

Allieoolhoudesafiadoramente.—Comosepudessemeultrapassar.Elenãoconseguiuconterosorriso.—Tudobementão.Agenteapostacorrida.—Eoqueovencedorganha?—perguntouAllie,erguendoumasobrancelha.Carterriu.—Voupensaremalgumacoisa.—Oueuvoupensaremalgumacoisa.Um,dois, trêse JÁ!—Allieopegou

desprevenidoaopartir,comosbraçospulsandoeaspernasacelerandopelogramado;elecorreuparareagirantesqueelaabrissemuitavantagem.

—Isso...éroubo—arfouCarteratrásdela.—Aceita—respondeu,acelerando.

Allie tinha que admirar a força dele— apesar de ter começado na frente, eleschegaramaosdegrausquaseaomesmotempo.Lutandoparaseraprimeiraaalcançaraporta,elesbrigaramporespaçoeagarraramamaçanetaaomesmotempo,comamãodeAlliesobreadele.Brincalhões,seempurraramnadisputaparaverquemseriaoprimeiroaabrir.

—Shhh!—sibilouCartersubitamente,eamboscongelaram,escutando.EntãoAllieouviuoqueeletinhaescutadoantes:passosdoladodedentro.Não

ousousemover.Estavamcompletamenteemaranhados—osbraçosdeCarteremvoltadocorpodela,alcançandoaporta,enquantoAllieestavacomumadasmãosnelaeoutranobraçodorapaz.OsmúsculosdosbraçosedopeitodeCarterestavamduros contra o seu corpo. O coração de Allie acelerou ao respirar o cheirocaracterísticodomenino,decaféetempero.ElaosentiutremerelevantouosolhosparaverqueCarteraolhava,comolhostãoescurosquantoanoiteacimadeles.

—Achoquejáforam—sussurrouCarter,comosolhosaindanosdela.Alliefezquesimcomacabeça,nãoousandofalar.—Preparada?—eleperguntou.—Estou.—Seusussurrofoiquaseinaudível.Arrancandoosolhosdosdele,elavirouparaaporta,pressionandonovamenteas

costas contra o calor do corpo dele apenas pelo tempo em que levou para girar amaçaneta.Emseguidaaportaseabriusilenciosamente—osaguãodeentradaestavavazio.

—Agecomnaturalidade—sibilouCarter,empurrando-asingelamenteparaoquarto.

Oempurrãopareceudevolvê-laàrealidade.— Sempre — respondeu ela, empinando o queixo e passeando pelo chão de

pedra.Carterfechouaportaatrásdeamboseelesatravessaramocorredor.Allieaindaestava se recuperandodoquequerque tivesseacabadodeacontecer

entre eles, mas Carter falou do jeito sucinto de sempre, como se nada tivesseacontecido.

—Vocêérápida—observouele.—Sempregosteidecorrer.—Tentouatingiromesmotomcasual.—Gosto

desaberquepossoescapar.Umsorrisoseformounoslábiosdele.—Dealgumjeito, issonãomesurpreende.—Estavampertodaescadaagora.

—Certo.Vouprodormitóriomasculino.Daquivocêvaibem?—Super—elarespondeu.

—Tudobem—disseele,levantandoopunho.—Atémais,então.Alliesocouopunhodele,eemseguidasevoltouparaaescadaria.Masenquanto

Carter desaparecia pelo amplo corredor, ela sussurrou atrás dele, tão baixinho queseriaimpossívelqueescutasse:

—Boanoite,Carter.

Através das janelas, o sol inundava a escadaria principal enquantoAllie a descia namanhã seguinte, os cabelos molhados sobre os ombros. Estava tão desgastada nanoite anterior que dormiu em minutos. Devia ter dormido bem, pois não tinhalembranças de pesadelos, nem de sonhos, por sinal. Agora, depois de um banhoquente,sentia-secomoelamesmapelaprimeiravezdesdeobailedeverão.

A sala de refeições estava movimentada, ainda que menos barulhenta que onormal,masnemJonemGabeestavamemlugaralgum,entãoelasesentouaoladodeLucas.

—Oi—cumprimentouela,malolhandoparaomenino.Seufocoestavanosovosmexidosenobaconempilhadosemseupróprioprato.

LucasmalesperouAlliesentar.—OGabeea Jo sumiramdesdeontemànoite.Aconteceualgumacoisa?—

questionouLucas.Mastigandoentusiasmadamente,elabalançouacabeça.—Nãoviosdoishoje—respondeu,engolindocomesforço.—Sério,tôcom

muitafome.—JáfoiveraLisa?—perguntou.—Não,evocê?Lucasfezquesimcomacabeça.—Hojedemanhã.Elatábemmachucada,mastáacordadaeconversando.PoruminstanteAlliesesentiutãoaliviadaqueseesqueceudecomer.—Ai,Lucas, issoéótimo!Vouachara Jodepoisque sairdaquieagentevai

visitaraLisa.Apóstomarrapidamenteorestodocafédamanhã,Allieseapressouparaoandar

de cima para encontrar Jo, movendo-se com tanta velocidade que estavapraticamentecorrendoquandoumaportaseabriubemnoseucaminho.ElatevequedesviarenquantoKatiesaía,soprandooesmaltedasunhas.

—Querolharporondeanda,Allie?—irritou-se,tirandoamãocomasunhasperfeitasemrosa-clarodocaminho.—Vocêvivecorrendoporessecorredorcomoumamanadadegnus.

— Desculpa, va... quer dizer, Katie. — Allie disse, mantendo a voz doce ao

passarporelaemritmomenosacelerado.MasKatiefoiatrás.—Praondevocêtáindo?TáprocurandoaJo?Allienãovirouparaolharparaela.—Porque,Katie?Vocêéaassessoradeimprensadela?—Nãosejaidiota.Eusótava...preocupadacomela.Não soava nem um pouco preocupada, e Allie sentiu os nervos formigando.

Sinaisdealertaacenderamemsuamente.Parandoondeestava,virou.—Porquetápreocupadacomela?Oquehouve?Katiesoprouasunhascomumafraquezaproposital.—Não aconteceunada. Só vi elahojedemanhãparecendoperturbada. Sabe,

nãosounenhumaespecialista,maselaestavacomcaradequetinhatomadoalgumacoisa.

OestômagodeAllieapertou.—Comoassim,“tomadoalgumacoisa”?AJonãousadrogas.—Eeupenseiquevocêsduasfossemamigas—disseKatie.—Bem,seelanão

te contou, então achoquenão con a emvocê.Então émelhor eunão falarmaisnada.

Fechando asmãos ao ladodo corpo,Allie virounovamentepara adireçãodoquartodeJo.

—Queseja,Katie.VaifazersuasfofocasmaldosaspraJulesouprassuasoutrasamigasidiotas.Masmedeixaforadisso.

—Comtodoprazer—respondeuKatie,caminhandonaoutradireção.—Masvocêtáindoproladoerrado.NaúltimavezqueeuviaJoelaestavaentrandonoseuquarto.Nãonodela.

AllieserecusouareagirecontinuouindoparaoquartodeJo,massemoveuemumritmoaceleradoenquantoaspalavrasdeKatieecoavamemseusouvidos.PorqueJo entraria no seu quarto? Bateu duas vezes à porta antes de abri-la sem esperarresposta.

Oquartoestavavazio.Apersiana encontrava-se aberta,mas todas as luzes estavam apagadas e a cama

amarrotada, mas não parecia que alguém tinha dormido nela. Havia roupasempilhadas no chão de um jeito estranhamente bagunçado. As gavetas daescrivaninha estavam semiabertas, como se Jo estivesse apressada e procurandoalgumacoisa.

DeterminadaanãodarouvidosanadadoqueKatiedissesse,Alliesesentounaescrivaninhaeesperouumpouco,casoJoestivesseporpertoefossevoltarlogo,mas

depoisdeumtempofoiforçadaaadmitirqueissonãoaconteceria.Atravessando o corredor para o próprio quarto, foi mais devagar. Assim que

abriuaporta,teveumavagasensaçãodepavor.Nada estava do jeito que tinha deixado. A luz estava acesa e o quarto, um

desastre.Asgavetasdaescrivaninhatinhamsidoabertasereviradas—canetas,livrosepapéisseencontravamnochão.

Allieolhouemvoltacautelosamenteantesdedarumpassoparadentro,masoquarto estava vazio. Ao atravessar catou os pertences espalhados em um torpor,empilhando papéis e reunindo livros. Ao chegar à escrivaninha viu que estavasegurandosuacópiadasRegras,quetinhamsidorasgadas.

Alguémtinhatraçadoumalinhagrossanaprimeirapáginaeescrito:

ISTOÉUMABABAQUICE!!

Ao virar a folha, ela viu um bilhete atrás. O garrancho furioso estava difícil deentender,maselasoubequeeradeJomesmoantesdelerorecado.

A

Estátudoarruinado.Todomundoestámentindo.Vocêprecisasaberaverdade,masninguém

vaitecontar.Vemconversarcomigo:estounotelhado.NÃOFALAPROGABEondeestou.

J

—Merda.—MesmoenquantoAlliesuspiravaapalavranotouqueajanelaacimadaescrivaninhaestavaescancarada.

Correu de volta para a frente do quarto e fechou a porta. Sua mente estavagirando.Oqueeufaço?Oqueeufaço?

Subindonaescrivaninha,olhoupela janela.Osquartosdodormitório cavamlogoabaixodoporão.Elaseinclinoueolhouparaochão.

Eraumadistâncialonga.Mas Carter já tinha feito aquilo e disse que era fácil. Se ele conseguia, Allie

também era capaz. Respirando fundo, se ajeitou com cautela até estar sentada norebordoondeelehaviaseempoleiradonooutrodia,apoiandoospésnavelhacalhavitorianaabaixo.

—Jo?—sussurrouexperimentando.Nãoobteveresposta.Muito abaixo dela conseguia ouvir vozes e o ruído entrecortado de pessoas

caminhandopelocaminhodecascalhos.Segurando rmeamolduradajanela,testouaforçadacalhaantesde carempé

nela.Erasólida.Viroudemaneiraqueolhasseparaaparedee,agarrandoprimeiroajanelaeemseguidaastelhas,deslizoupelorebordoesubiunele,encontrandoespaçosparaosdedosnostijolos.Umavezlá,parouerespiroucomdi culdade,olhandoemvolta.

—Jo?Umruídochiadoacimadacabeçaafezolharparacima,masAllienãoenxergou

nada.Emseguidaouviuumrisinhoamargo.—Achadonãoéroubado.—AvozdeJosoavairritada.Grunhindocomoesforço,Alliesubiunorebordoseguinte;deláconseguiavero

telhado.Joestavasentadabemnoalto,apoiadaemumachaminé.Seuscabeloseramumverdadeiroemaranhado,eAlliepercebeuqueelatinhachorado.

—Jesus,Jo.Comochegouaí?Ecomoagentevaidescer?Joacenouamãoemsinaldedescarte.—Nãosejatãocovarde,Allie,peloamordeDeus.Searriscadevezemquando,

quetal?—Emseguidasaltoue coudepédestemidamente,seequilibrandobemnapontadotelhado.

Prendendo a respiração,Allie começou aprocuraruma formade chegar lá emcima.Viuumaseçãodenticuladadetelhasondeimaginouqueconseguiriasesegurare subir, e foi cuidadosamente para lá.Depois que começou a subir, viu como astelhasformavamsériesnaturaisdeapoiosparamãosepés.

Masnoúltimotrechoseupéescorregou.Aosesentirdeslizando,tentougritar,masnãosaiunenhumsom.

Seus dedos agarraram um pedaço de alvenaria e se seguraram. Uma vez queconseguiu um apoio sólido, foi sentindo a parede com as pontas dos pés até quelocalizasseumatelhadenticulada.

Assimqueambosospésseajeitaramnotelhado,elaselevantoucomumgrandeesforço,seespalhandonotelhadocomumsaltodeselegante.

Apoiadanachaminé,Jo—quenemsemovimentouparaajudá-la—aplaudiusarcasticamente.

—ParabénspraAllie.ElasubiuprotopodaescadariadosucessodaCimmeriarapidinho.Achoqueelamereceumabebida.Nãoconcordam,plateia?

Abaixandoobraço,pegouumagarrafadevodcaescondidaatrásdospésdelaeaentregouaAllie.Estavapelametade.

—Bebeumpouco.Aplateiaachaquedevebeber.Agorairritadaeaindatrêmulaporcausadaquasequeda,Allieignorouagarrafa.—Queplateia,Jo?Dequediabosvocêtáfalando?Eoquetáfazendoaquiem

cima?

Dandodeombros,Jotirouatampadagarrafaetomouumgole,fazendoumacareta.

— Sabe, isso não melhora com o tempo — disse, tampando novamente agarrafa.—EurealmentecontestoaescolhadevodcadaIsabelle.VocêpensariaqueelatemGreyGooseouAbsolut,masnão.Sóessaporcariarussa.

Comoelapodeestarbêbadaàsoitodamanhã?,questionouAllie.—Jo,vocêpassouanoiteinteirabebendo?—Não!Nãoseja ridícula.Sóasúltimashor...Quehoras são?—Elavirouo

braçoparachecarorelógio,derramandovodcanotelhado.—Ops!Allietentouparecercalma.—Porfavor,senta,Jo,efalacomigo.—Claro,Allie!—Josorriuparaela,tãoalegrementequantoseestivessenasala

de refeições conversandodepois do almoço.—Quero falar com você.Mas estousentadaháhoras.Éótimolevantaremeesticar.

Rodandoemumpé,elaosciloudesgovernadamente.Engasgando-se,Alliecobriuabocacomasmãos,masemseguidaJoseequilibroueriu.

—Essafoiporpouco.OcoraçãodeAllieestavabatendotãoaceleradoqueelatemeusofrerumenfarto.—Porfavor,Jo.Porfavor,sentaefalacomigo.Eutomoavodca.Mas...senta.Comosea ideiativesseacabadode lheocorrer,Joabaixouatéestarsentadano

telhado.Osorrisohaviadesaparecidodeseurosto.Agoraparecialúgubreelágrimascorriamsilenciosamentedosseusolhos.

—Ninguémmeentende,Allie.Nemvocê.Vocêéminhamelhoramigaenãopossotecontaraverdade.Issomedeixatãotriste.

Fungando,pegouagarrafaetomoumaisumgole.EmseguidapassouobraçosobreosolhoseentregouavodcaaAllie.Allieinclinouagarrafae ngiutomarumgole,emseguidasegurouagarrafadescuidadamente,comosetivesseesquecidoqueestavacomela.

Inclinou-separapertodeJo.—Ah,querida,eusintomuitovendovocêtriste.Aconteceualgumacoisa?Joolhouparaelacomoseestivesseirritada.—Claroqueaconteceualgumacoisa,Allie!ARuthestámorta!Elatámorta.E

ninguém nunca vai contar a verdade sobre o que aconteceu. Todo mundo émentiroso.

Levantandoobraço,JoapontouparaAllie.—Evocênãosabenada.Todomundoestáescondendoascoisasdevocêporque

nãosabemporquevocêtáaqui.Ouquemvocêé.Quemévocê,AllieSheridan?

Allielevantouasmãos.—Eusósou...eu,Jo.Nãosouninguém.Balançandoacabeçaveementemente,Jopareceugradualmentemaisirritada.—Não,não,não!Issotambémnãoéverdade.Vocênãosabenada.Realmente

nãosabe.Eissoé...estúpido.Eninguémvaitecontar.Ninguémvaitecontar.—DerepentelevantouoolhareencontrouodeAllienoquepareceuumaparódiadeclarezatotal.—Euseidascoisasenãovoucontar.

Allieengoliuemseco.—Oquevocêsabe,Jo?SabequemmatouaRuth?Jocerrouosolhosmaliciosamente.—Todomundosabeoquetáacontecendo,Allie.Todomundo,menosvocê.

—Acrescentoucomumavozentoada.—Masnãovoutecontar...—Jo,vocêtemquemecontar.—OcoraçãodeAllieestavaacelerado,masela

lutou para manter a expressão vazia. — É muito importante. A polícia tem quesaber.

Balançandoacabeçadeumladoparaooutro,Jopareceuchorosanovamente.—Meuspaisnãomequeremporperto,sabia,Allie?Elesnãodãoamínimapra

mim.Allietentouacompanhar.—Tenhocertezadequedão,Jo.Devemdar.Sãoseuspais.MasmefaladaRu...—Não dão não!— gritou Jo.—Meus pais amam dinheiro, e amam Saint

Tropez,HongKongeaCidadedoCabo.Masnãoamim.Amimnão.Elaestavasoluçandoagora.Enquantoestavadistraída,Allieatravessouotelhado

maisparapertodela—pertoobastanteparaquepudesse,sepreciso,segurá-la.—Ai, Jo.Eunão sabia.—Joestava completamentedescontrolada,masAllie

precisavafazê-laconversarsobreRuth.—MefalaquemmachucouaRuth,Jo.Eaíagentepodeconversarmaissobreasuafamília.

Joaencarou.—Nãotentameenrolar,Allie.Aofalar,Allieescutouumamovimentaçãologoabaixodelas.Antesquepudesse

reagir,Carterapareceu,subindoagilmenteotelhadoparapertodelas.—Olá,meninas.—Avozsooupropositalmentecasual.—Eaí?Atravésdaslágrimas,Josorriuparaele.—CarterWest!Euteamo,CarterWest.Vocêétãobonito,etemessesolhos

escuros profundos. Eu teria te escolhido se não tivesse escolhido oGabe.—Emseguidapareceuconfusaporumsegundo.—Não,euteriaescolhidooLucassenãotivesseescolhidooGabe.Massenãodessecerto,escolheriavocê.De nitivamente.

OutalvezoSylvain.Carternãohesitou.—Eeutambémteriateescolhido,Jo.Porquevocêéameninamaisbonitado

colégio.Sorrindo timidamente,comorosto rubroe inchado,oscabelosarrepiados, Jo

disse:—Sério?Essaéacoisamaisgentilquejámedisseram.Medáumabraço.Saltando sem qualquer aviso, ela cambaleou muito, com os braços rodando.

Allieexclamoueesticouobraçoparasegurá-la,masCarterestavaaoladodeJoemuminstante,envolvendo-aemumabraçoforteerindocomela.

—Cuidado,Jo,agenteestáumpoucoaltoaqui.Elaignorouaspalavrasdele.—Euteamo,CarterWest.VocêémuitomaisgentilqueoGabe.Carteraabaixougentilmenteparaumaposiçãosentadaoutravez,comosolhos

nelaotempotodo.—VocêsabequeoGabeteama,nãosabe?Vocêfalariacomele,seelesubisse

aqui?—OGabenãome ama.Elenão fala a verdade sobrenada.Éummentiroso

como todomundo.—OlhouCarter, analisando-o.—Mas não tenho certeza sevocêtambémémentiroso.

Jo se levantou sem rmeza, afastando as mãos de Carter quando ele tentouajudá-la.

—Carter,vocêsabeoqueoGabeé.AAllienãosabedenada.Masvocêsabe.—ElasevoltouparaAllie.—OGabeé importante,muitomais importantedoquevocê, do que eu ou o Carter. Ele é da Escola Noturna, sabe o que é a EscolaNoturna,Allie?

Carter estava congelado no lugar, olhando xamente para Jo como se nãosoubesseoquefazer.Alliebalançouacabeça.

—Não.Oqueé,Jo?—É um bando demeninos emeninas ngindo que são cavaleiros, soldados,

deuses ou alguma coisa. Acham que vão ser reis domundo.— Jo apontou paraAllie.—Elesnãogostamdevocê,sabia?Achamquevocêéperigosa.Eunãoparoderepetirqueelesestãoenganados,masnãomeouvem!Cadêminhagarrafa?

EnxergandoagarrafaaospésdeAllie,Jodeuumpassorápidoemdireçãoaela.Levantando-se,AlliepegouavodcaeolhouparaCarter semdizernada,masantesquepudessemdecidiroquefazer,Joavançouparaabebida.

Carter se esticou para alcançá-la, mas foi tudo muito rápido; uma telha solta

prendeunopédeJo,queperdeuoequilíbrio.Caindosemcontrole,elaroloupelotelhadoíngremee,comumgritoestridente,desapareceu.

AgarrafadevodcacaiudasmãossemforçadeAllie,roloupelotelhadoeatingiuo chão abaixo com uma batida cristalina. No terrível instante que sucedeu, Allieouviuumavozgritandolonge,epercebeuqueeraadelaprópria.

Carter couolhandoparaoespaçoondeJoestivera,comorostovazio.Eumsegundopareceuseestenderalémdoslimitespermitidospelafísica.

Emseguidaosdoisescutaramumruídoarranhadovindodapontadotelhado.Antes que Allie pudesse reagir, Carter já tinha se jogado de bruços e começado adescer o telhado íngreme para a borda. Allie foi atrás, e ambos viram mãosensanguentadastentandosesegurar.SeatiraramparaJonomesmoinstante.Carteragarrou o pulso esquerdo de Jo, e alguns segundos depois Allie segurou a mãodireita.SobreoombrodeJo,Allieenxergouaquedaíngremeparaochão.

Agora estava ouvindo um resmungo agudo abaixo do telhado, como se Joestivesse assustada demais para chorar. O sangue em suas mãos as tornouescorregadiase,enquantoAllielutavaparasegurá-la,Cartergritoutenso:

—Pegaopulso.AessaalturaAlliejáagarraraobraçodeJo,masporcausadaproximidadecoma

encostaíngreme,tevequeseutilizardetodaasuaforçaparasustentarJosemqueelaprópriacaísse.Puxá-laeraimpossível.OrostodeCarterestavaroxodetantoesforço,masnaposiçãoemqueestavamatéeleestavatendodificuldades.

—Tudobem,vamostentardeumjeitodiferente.Soltaobraçodela—disseele,arfando.—Euvoutentar rodar,para car sentadodireito.Aíconsigoalgumatraçãoprapuxareladevolta.Pegaaminhacinturaesegura rme.—Capturandooolhardela,acrescentou:—Nãodeixaagentecair,Allie.

Tãoapavoradaquenãoconseguiarespirar,Allie fezquesimcomacabeçaparacon rmarquetinhaentendido.SegurandoobraçodeJocomgarrasdeferro,Cartersevirouparasentarcomumrosnadodeesforço.Assimqueeleestavapronto,AlliesoltouobraçodeJoe,movimentando-seomaisdepressaqueconseguia,secolocouatrás de Carter, apoiando os pés com força nas telhas. Enquanto Allie agarrava acinturadele,elegritou:

—Notrês,epuxacomtodaasuaforça.Um,dois...Notrês,Allieenterrouoscalcanhareseaiçou.OtroncodeJoapareceusobreabordadotelhado.CartereAlliepararameemseguida:—Denovo!—gritouCarter.—Puxa!Destavez, Jo subiucompletamente, eosdois alcançaramosbraçosdamenina

parapuxá-ladevoltaemsegurança.Lágrimas de alívio queimaram os olhos de Allie. Ofegante com o esforço,

engatinhouparapertodeJo.—Vocêestábem?—AgarrouasmãosdeJoparaverosmachucadosefranziua

testa.—Ah,Jo—disse.VáriasdasunhasdeJotinhamsidoarrancadasehaviaumcorteprofundonapalmadamãoesquerda,quesangravalivremente.

—Allie?Jo?—AvozdeGabeveiodebaixodeles.CartereAllietrocaramumolhar.MasfoiJoquerespondeu.—Gabe—gritou,soluçando.—Gabe,meajuda!—Jo?—eleberroudevolta,avozcarregadademedo.Alliepôdeouvi-lo subindo rapidamente emdireçãoa elas, aparentementepelo

mesmocaminhopercorridoporCarter.Pulandoparaotelhado,Gabe couparadoolhandoparaelesporumsegundo,

espantado,antesdecorrerparaJo.—Quediabosaconteceu?Oquehouvecomassuasmãos?—Quandoelanão

respondeu,elesevoltouparaCarter.—Carter?AvozdeCarterestavaentorpecidaporumatensãoexausta.— Ela caiu do telhado. Acho que se machucou tentando se segurar. A gente

precisalevarelapraenfermeira.—JesusCristo.—GabeenvolveuJonosbraçosealevantoudemodoqueela

cassedepé,apoiadanele.OlhandoparaCarterporcimadoombro,mexeuabocasememitirsom:—Vodca?

Carterfezquesimcomacabeça.ApesardeGabeparecerentristecido,estavacomavozcalma.

—Estoucomvocê,amor.Voutelevarláprabaixo.Carter,podemeajudar?Voltando-separaAllie,Carterdisse:—Ficaaqui,tudobem?Nãosemexe.Euvoltopratemostrarocaminhoseguro

pradescer.Semfala,Allieassentiu,eCarterfoiatrásdeGabe.Elaouviuosdoisabaixando

Joparao rebordo, e emseguidamanobrando-apela janela.Houveummurmúriobaixo de conversa que ela não conseguiu escutar, e em seguida o ruído deCarterretornando.

Aindasentadanotelhadocomosbraços rmesenvolvendoocorpo,elaestavasebalançandopara trás e para a frente, contando cadamovimento (cento e dezessete,centoedezoito,centoe...)

—Vocêestábem?—CarteragachouaoladodelademodoqueorostoestivessealinhadocomodeAllie.Ameninapôdeverapreocupaçãonosolhosdorapazao

limparcomaspontasdosdedosumalágrimanorostodela.Ajeitando-se,Allieassentiu.—Entãovamossairdessetelhadomaluco—disseCarter.Orapazaajudouaselevantar,emseguidaaconduziupelolocalporondeAllie

havia subido anteriormente, para um pedaço onde o telhado se inclinava maisgradualmente em direção ao parapeito.Dali foimais fácil descer para um peitorilmenosestreito,eemseguidaatravessaracurtadistânciaatéajaneladoquarto.

Doparapeito,pulouparaaprópriaescrivaninha,batendoacabeçacomforçanapartesuperiordamolduradajanela.Ládentroelatitubeoupeloquarto,segurandoacabeçaenquantoCarterdeslizavagraciosamentepelajanelaeolhavamaravilhadoparaAllie.

Apesardetudoquetinhamacabadodepassar,elaoviutentandonãosorrir.—Allie,oquefezcomvocêmesmaagora?Ameninaapontouparaacabeça.—Vemcá.—Eleagarrouobraçodela,puxou-aparasieexaminoubrevemente

acabeça.—Sério,sevocêsobreviveràCimmeria,vaiacabarsemneurônioalgum.Eledeuumbeijonomachucado,seuslábioslevescomoumdesejo.—Pronto.Achoqueesseétodootratamentomédicoqueprecisa.Provavelmentefoicoincidência,masacabeçarealmentemelhorou.—Comovocêachouagente?—perguntouAllie.—AJulesfalouquetalvezhouvesseumproblema.Vimteprocurar.Vocênão

estava,masviaquilo.—Carterapontouparaobilhetenaescrivaninha.—Depoisviajanelaaberta,esomeidoisedois.

—Obrigada,Carter.—AvozdeAllieestavaexaltada.—AchoquevocêsalvouavidadaJo.

—Preferia que vocês não tivessem se encrencado—disse ele,mas sorriu.—AgoravamosacharoGabeeaJoeverificarqueelaestábem?

Allieconcordou,espantadaaoperceberqueestavasorrindoemretribuição.—Obrigada.—Denada—disseele.—Agoratentanãosemachucarenquantoatravessao

corredor.—AllieosocounobraçoquandoCarterabriuaporta,eemseguidapulouparatrás.

Isabelleestavanocorredorláfora,comasmãosnacintura.

A

DEZENOVE

llieeCarterpercorreramocorredorcercadosporIsabelleeMatthew.Allietinhaa sensaçãodequeestavamsendoconduzidos.Nãohouvediscussão.Isabelleapenasdisse:

—Carter,Allie.Venhamconosco,porfavor.Eforam.Caminharam rapidamente para o escritório de Isabelle. A diretora segurou a

porta aberta para eles e entrou por último, antes de sentar na cadeira atrás da suamesa,comMatthewaolado,apoiandoumamãonascostasdacadeiradela.Elanãooapresentou.

—Chameivocêsaquiporquequerosabersecometiumerro—Isabelle xouosolhosemAllie.

—Oque...oquequerdizer?—respondeuAlliecautelosamente.—Violeimuitas regras pra te aceitar nesta escola.—A voz de Isabelle estava

carregadaderaiva.—Errei?Enquanto Allie sentiamedo se desenrolando em seu estômago, ouviu-se uma

batidarápidanaporta.—Entra.—AvozdeIsabelleeraumaordem.Sylvainentrou.Olhouemvolta,evitandooolhardeAllie,emseguidafechoua

portaatrásdesi,eapoiouascostasnela.Comocoraçãoafundando,Alliesevoltounovamenteparaafrente.—Nãoestouentendendo—disse.—Oquefoiqueeufiz?—Deiinstruçõesclarasdequeosalunosnãodeveriamsairedescubroquevocê

nãosóestevenotelhandobebendocomJoArringford,mastambémfoiàcapela.Eutepergunto,oquedevopensar,Allie,alémdequeéumainsubordinada?

Allieaencarou,boquiaberta.Comoelasabesobreacapela?Carterseinclinouparaafrente.—Esperaaí,Isabelle.Elafoipracapelaporqueeupedi.Estivecomelaotempo

todo.Elaesteveemsegurança.—E a Jo estavamuito chateada— disse Allie.—Tivemedo de que ela se

machucasse.Sóestavatentandoajudar.OolhardeIsabelleeragelado.— Uma garrafa que caiu do telhado não acertou um aluno por poucos

centímetros.Seeletivessesidoatingido,nósteríamossidoresponsáveis.Temvidro,evodca,devoacrescentar,espalhadosnafrentedaportadeentrada.

AllieestavatãochocadaefuriosaquetevequeabaixarosolhosparaqueIsabellenão visse a raiva em sua expressão.A Ruth morre, o colégio pega fogo, e ela estápreocupadaemserprocessadaporvidroquebrado?

IsabelletransferiuaatençãoparaCarter:—Eporque,pergunto, você esteve comela o tempo todo?Você conhece as

regras.— Depois do que aconteceu com Ruth e Lisa, a Allie cou nervosa. Estava

pensando em abandonar a escola — explicou Carter. — Queria que ela pudesseconversarlivremente,semmedodeserouvidaporbisbilhoteiros.

Impressionadacomatranquilidadecomqueeleutilizouaverdadepara,bem...mentir,Allie olhoupara Isabelle, para ver como ela estava recebendo.Nãopareciaimpressionada.

— Entendo que a Allie estivesse chateada, mas há lugares onde essa conversapoderia ter sepassadoaquina casa,Carter—disse ela secamente.—Enãogostoquando minhas regras são solenemente ignoradas, principalmente quando foraminstauradasdemaneiratãoclaraetãorecentemente.

Carterestendeuasmãos,comaspalmasparacima.—Bem, então sou eu que devome desculpar, e não ela. Fui eu que sugeri a

capela.Noinícioelaatéserecusouair,porquenãoqueriaviolarasregras,maseuaconvenci.Sealguémfoiinsubordinado,fuieu.Mas zissoporrazõesqueconsidereiválidas.

A voz de Carter estava surpreendentemente con ante, pensou Allie. Seu tommaispareciaodeum lhoacalmandoumamãe irritadadoqueodeumalunosedirigindoaumadiretora.

—Mepermite,Isabelle?—Sylvainolhouparaadiretora interrogativamenteeelalhedirigiuumcurtoacenodecabeça.

—Carter,vocênãosódesobedeceuas instruçõesdeIsabelle,comotambémasminhas— disse, suas vogais francesas elegantes envolvendo cada palavra.—E aofazerisso,colocouaAllieemperigo,eissoéinaceitável.

Pelaprimeiraveznaconversa,Carterpareceutenso.Allieoviucerrarospunhoseemseguidarelaxá-losmuitodeliberadamentesobreocolo.Nãodissenada.

Isabellesuspirou.

— Basta. Carter e Allie, esta foi uma transgressão muito séria às regras queestabeleci ontem ànoite.Entendoque vocês dois ainda estejam chateados comosacontecimentosdanoitedesexta-feira.Docontrário,receberiamdetençãoeumavisopor escrito. Em vez disso, estou apenas alertando quemais uma infração não serápermitida.

—Oquevaiacontecercoma Jo?—Aperguntaexplodiudos lábiosdeAllieantesqueelapudesseseconter.

Isabelledirecionouumolharafiadoaela.—Vamoscomeçarcomoqueexatamentesepassounotelhadohojedemanhã,

Allie,podemos?Alliecontousobreobilhete,sobreternotadoajanelaabertaesobretersubido

paraencontrarJonotelhadoetudoquesucedeu.—Eurealmentenãosabiaoquefazeralémdeajudar—explicou.—Elaestá

bem?—Quatrodasunhasda Jo foramarrancadas—relatou Isabelle—eumadas

mãos sofreu um corte fundo. Ela tá muito machucada. Todos estes ferimentospresumivelmente ocorreram durante a queda. Além disso, está bêbada. Como osmachucados são super ciais e a embriaguez é temporária, ela foi tratada pelasenfermeirasesedada.Vaicontinuarnaenfermariaatéagentedecidirumcastigo.Ospaisdelaserãoavisados.

—Elavai ser... expulsa?—Allie agarrouosbraçosdacadeira comtanta forçaquesuasjuntasembranqueceram.

Isabellepareciareprovadora.— Não vou discutir ações disciplinares envolvendo outros alunos com você,

Allie.Matthew se inclinou para sussurrar alguma coisa ao seu ouvido. Quando

terminou,IsabellesevoltouparaAllie.—Podeir,Allie.GostariadeconversaremparticularcomoCarteruminstante.AllieolhouparaCarter,maseleestavacomosolhos xosàfrenteenquantoela

saíadasala.NotouquetantoSylvainquantoMatthewficaramparatrás.Nemtãoparticularassim.Fechando aporta atrásde si, ela se apoiou tentandoouvir,masnãodavapara

escutarnadaatravésdamadeirasólida.Girando,correupelasescadasparaodormitóriofeminino,parandononúmero

335.Bateu, em seguida deu um salto para trás quando a porta se abriu quase

instantaneamente.

Julesestava,comosempre,imaculada—uniformeengomadoecabeloperfeito.—Allie...Oqueeupossofazerporvocê?Seficousurpresaemvê-la,nãodemonstrou.— Quero visitar a Lisa — revelou Allie —, mas não sei onde ca a ala de

enfermagem,eimagineiquevocêsoubesse.—Ouvi dizer que ela nalmente acordou—disse Jules.—Vai até o térreo,

atravessaaaladassalasdeaula.Depoissobeaescadano m.Énoprimeironívelquechegar.Vaisaberquandovir.

Alliehesitou,desejandoquepudessecon aremJulesobastantepararealmenteconversar com ela. Quando ela não se moveu, a monitora loura ergueu assobrancelhasperfeitamentearqueadaseperguntou:

—Algumproblema?—Ésóque...—Allieenrolouabainhadacamisetaemumdedo—oCarter

me falou que você deu meu recado ontem à noite. Eu queria te agradecer. Nãoprecisava.

Julescruzouosbraçossemmuitafirmeza.—Denada.Maseumesentiriamelhorsevocêfalasseaverdadesobreomotivo

pelo qual queria falar com ele. E agora, com tudo que aconteceu com a JoArringford,estoupensandosedevomearrependerdaminhadecisão.

—Mastudoqueeu zfoitentarajudaraJo!—protestouAllie.—Eunãodeiavodcapraela,nemleveielaprotelhado.Sótenteisalvaravidadela.Nãoentendoporqueissoétãohorrível.

—Bem,porquenãoveiomechamarantes?—perguntouJules.—Porqueeufariaisso?—rebateuAllie.—Vocêsóiatentararrumarencrenca

praela.Julespareceuirritada,mastambém,pensouAllie,umpoucoferida.—Você e a Jo sãominha responsabilidade enquanto estão neste andar, Allie.

Vocênuncadevesecolocaremperigocomofezhoje.EoCartermecontousobreassuas crises de pânico, por que você nãome falou isso? Eu não tô aqui pra te dardetenção,nemgritarcomvocê.Estouaquipraajudar.Masindependentedoqueeufaça,vocêmetratacomoseeufossesuainimiga.

IstofoitãosurpreendentequeporuminstanteAllieficousempalavras.—Eusó...penseiquevocêmedetestasse—disseafinal.— Nunca te detestei — disse Jules. — Você sempre pareceu intimidada por

mim,irritada,eeunãosabiacomotefazerenxergarqueeunãosousuainimiga.—MasvocêéamigadaKatieGilmoreeelameodeiademais.Parasuasurpresa,Julesdeuumarisadabreve.Levantouamãosedesculpando.

—SouamigadaKatie,esim,elateodeia,masésóciúme.ElagostadoSylvaineoSylvaingostadevocê,e issofereossentimentosdelaefazelaparecermalvada.Elatáacostumadaaconseguiroquequer.Masvocêprecisasaberqueissonãotemnadaavercomigo.Eusempre falopraKatiequeelaprecisacrescere tedeixarempaz,mas—deudeombros—elaéumapessoaindependente.

Suaexpressãosetornoumaisséria.—Nãomejulguepelocomportamentodela.Mejulguepelomeu.Agoratímida,Allieesfregouapontadeumpénaoutra.—Desculpa,Jules.Eufuicompletamentebabaca.—Tudobem—disse Jules.—Eudevia ter sentado e conversado comvocê

antes. Sou amonitora e tinha que saber como lidar com esse tipo de coisa.Masgostariamuitoquepudéssemosdeixarissopratrás.

Comumolhardesafiador,elaestendeuamão.—Amigas?Apósumafraçãodesegundodehesitação,Allieaceitou.—Amigas.— Muito bem, agora vai ver a Lisa; ela provavelmente tá solitária lá, sem

companhia—disse Jules, recuandoparaopróprioquarto, acrescentandocom seutommaisoficial:—Esemmaispasseiospelotelhado,porfavor.

Enquanto se apressava pela rota indicada por Jules, Allie reviveu mentalmente aconversaquetiveracomamonitora.

Comopossotererradotantoemrelaçãoaela?Seráquemeenganeitantoassim?Lembrou-se deCarter e Sylvain rindo dela por não gostar de Jules— ambos

pareciamachá-laótima,apesardeSylvainterconcordadoqueelasabiaserdifícil.Masserdifícilnãoéserruim.Costumavaincomodá-laofatodequeosdoisatinhamdefendido.Mastalvez,

setivesseerradonojuízoquefizeradeJules,tudofizessesentido.Tentouselembrardascoisasqueamonitoratinhaditoqueadeixarammagoada,

ederepentesóconseguiaserecordardaexpressãodeespantoquandoAllie coucomraivaouchateada.

MasmesmoassimpareciaestranhoqueJulesderepentequeriaseramigadela.AspalavrasinebriadasdeJonotelhadoapitaramemseusouvidos:“Elesnãogostamdevocê...achamquevocêéperigosa.”

As luzes estavam apagadas na ala das salas de aula, e ela apalpou a paredeprocurando um interruptor. Quando não o achou, andou depressa. Seus passosecoaram enquanto ela praticamente corria pelo corredor, passando por portas que

abriam em salas vagas, onde cadeiras vazias e mesas se dispunham em leirasfantasmagóricasecírculos.

No m do corredor, uma porta sem nenhuma marca tinha um vidro foscoatravésdoqualpassavaaluzdodia.

Parecepromissora.Abriu.Atrásdaportahaviaumaescadariaquelevavaparacima,bastanteiluminadapor

janelasemtodososandares.Oprimeironívelaoqualchegoufoiummezaninoentreo térreo e o primeiro andar. Saindo da escada, entrou imediatamente em umcorredor onde os tetos baixos e os pisos de linóleo contrastavam com os espaçoscrescentes e a madeira polida em outros lugares da casa. Em um dos lados docorredortinhauma leiradeportasbrancasfechadas,cadaqualcomumajaneladevidrofoscosubdivididaporumacruzazulcuidadosamentepintada.Aoutraparedeeraalinhadaporjanelasatravésdasquaisluzearfrescoentravam.

—Olá?—Alliechamou.Suavozecooupelocorredorvazio.Estava tão silencioso que ela se sentiu enervada ao percorrer o corredor

ensolarado.Bateuemcadaportaquepassoueasforçou.Ninguémrespondeu,eastrêsprimeirasquetentouestavamtrancadas.

Masaquartaabriu.Oquartoestavaescuro,comtodasascortinas fechadas.O lugarerapequenoe

tinhaapenasumacama.Alliepôdeverumchumaçobrilhantedecabeloslourosnotravesseiro.—Jo?—sussurrou,dandoumpassoinseguroparadentrodoquarto.—Você

estábem?Nãoobteveresposta,masalgolhediziaqueJoestavaacordada.Deixandoaporta

aberta,atravessouoquartonaspontasdospésparaseajoelharaoladodacama.OsolhosdeJoestavamfechados,masarespiraçãoestavairregular.

—Ei—Alliesussurrou–,vocêestábem?UmalágrimaescapoudoolhodeJoecorreupeloladodorosto.Elalimpou-a

commãoscheiasdeataduras,comoumamúmia.—Nãoqueroconversaragora,Allie.—Estavacomavozroucaeentorpecida.Ferida,Alliepensouemdiscutir,masemvezdissofoiparaaporta.Aoabri-la,

olhou para trás — Jo estava deitada de costas, olhando para o teto como se jáestivessesozinha.

Devoltaaocorredor,Allietentouasoutrasportas.AduasportasdoquartodeJo,espioueviuumrecintoensolarado,pintadodebranco,noqualduas leirasde

quatrocamashospitalareseramseparadasporcortinasbrancasesvoaçandocomumaleve brisa que sussurrava pela janela semiaberta. Apenas uma das camas estavaocupada.

Deitada sob uma coberta branca em uma cama branca, contra uma paredebranca,Lisaestavapálidaecomosolhosfechados—seuscíliosespessosprojetavamsombrascomohematomasnapele.Seuscabeloslongosesedososestavamespalhadospelos travesseiros, e uma atadura grande cobria um dos lados do rosto. Um dosbraçosestavacomumatala.

Allie se assustou com a magreza de Lisa. Será que em algum momento elacomia?Pareciatão...quebrável.

Aosentaremumacadeirademadeiranabeiradacama,emitiuumrangidofracoeLisaabriuosolhos.

Elasorriusonolenta.—Allie.Allie retribuiu o sorriso, mas linhas de preocupação se acumularam entre os

olhos.—Oi.Comovocêestá?Tudobem?Soubequetinhaacordado.Lisa se ajeitou nos travesseiros. Estava comum gesso no pulso, por onde um

soro havia sido passado em algum momento, e hematomas escuros arroxeadosmanchavamapartesuperiordosbraços.

—Tudo bem.Eu tô bemdopada, eu acho.Não sei há quanto tempo estouaqui.

AfragilidadedeLisafezcomqueseusolhosparecessemenormesecomoosdeumacriança,eAlliesentiuumaondainesperadadeinstintodeproteção.

—Nãomuito.—Allietevequepararparapensar.—Querdizer,é...Quediaéhoje?Domingo,euacho.—Enrubesceucomaprópriaconfusão,masLisapareceusatisfeita.

—Ótimo.Penseiquefossemais.—Elaolhoupelajanelaeumasombrapassoupelo seurosto.—Mas jávaiescurecer,nãovai?—Parecia tãoassustadaqueAlliepegousuamãoeaapertou.

—Nãosepreocupa.Vocêtátotalmenteseguraaqui.Lisa não pareceu convencida,mas amedicação parecia afetar sua habilidade de

sustentarumpensamento,euminstantemaistardeelarelaxououtravez.— Lisa, o que aconteceu com você? — perguntou Allie. — A Jo disse que

perdeuvocêquandoasluzesseapagaramenãoteviumaisatéagenteteencontrar...bem,vocêsabe,nosaguãodeentrada.

Comosolhosescurecendo,Lisafranziuorostoseconcentrando.

—Está tudomuito confuso.Lembrodedançar comoLucas.Depois agentedecidiusairpraandarerespirarumpouco.Agenteiapelaportadafrenteporqueadetrásestavalotada.Masaíasluzesseapagaram.Nocomeçonãofoinadademais;aliás,pareceuatédivertido.Asvelasestavamiluminandoaentrada,entãoaindadavapraenxergaretudo.Masaspessoascomeçaramagritar.

“OLucasmemandou car láe falouquevoltavapramebuscar.Ecorreuprosalãopraveroqueestavaacontecendo.”

LisaparoueolhouparaAlliecomolhosvazios.—E foi isso.Nãome lembro demais nada.Tudo não passa de um branco

imenso.Allieafagouamãodaamiga.—AIsabelledissequevocêtábem;teveconcussãooualgumacoisa?Umavezo

meuirmãoteveenãoconseguiuselembrardetercaídoatéduassemanasdepois.—É,aenfermeirafalouqueeubatiacabeçaemalgumacoisaquandocaí,eme

corteidealgumjeito;levei12pontos.—Elatocouocurativoinconscientemente.— E os seus braços? — Inclinando-se mais para perto, Allie levantou

cuidadosamenteasmangascurtasdacamisolahospitalardeLisaparapoderenxergarmelhorapele.—Esseshematomas...parecem...marcasdemão.

Olhandoparaosbraços,Lisafalou:—Parecem?Nãofaçoideiadecomoapareceramaí.Etorciopulsoquandocaí,

euacho.— Eles... — Allie hesitou e recomeçou. — Imagino que tenham te contado

sobreaRuth?Confirmandocomacabeça,Lisapareceuprestesachorar.— Mas não acredito — sussurrou. — Como ela poderia... se matar? Nunca

pareceu tristenemdeprimida.E tinhaváriosplanospro futuro.Queriaviajarpelomundo,sabe?Nãoentendoporqueelafariaumacoisadessas.

Alliepensouemrevelarasprópriassuspeitasarespeitodaversãoo cialdamortedeRuth,masnãoachavaqueLisafosseapessoacertaparacontarisso.Nãoquenãoconfiassenela,eramaisumaquestãodenãoquererpreocupá-la.

Duranteumtempo caramquietaseLisacochilou,masquandoAlliesemexeunacadeira,orangidoaacordounovamente.

—Aindaestáaqui.—AvozsonolentadeLisapareciasatisfeita.—Claroqueestou—respondeuAllie.—Vocênãodeve carsozinhaotempo

todo.Émuitochato.Ondeestãoasenfermeiras?Lisaolhouemvoltacomoseesperassevê-lassaltandodetrásdeumarmário.—Nãosei.Éestranho, carammuitoaquiontem,masquasenãoasvihoje.—

Bocejou.—Mefala,oqueandaacontecendonomundoreal?Oqueestárolando?Allieimaginouoquantodeveriacontar.EmseguidadecidiuqueLisaconheciaJo

melhordoqueela.—Nãomuitacoisa.Ascoisassóestãoumpoucoestranhas.E...Lisa,aJomeio

queteveumataquehojedemanhã,eagoratáseriamenteencrencada.Lisapareceumaisalerta.—Comoassim?Porqueelatáencrencada?AlliecontouaLisaoquetinhaacontecidonaquelamanhãnotelhado.Quando

terminou,esperavaverameninaemchoque,mas,emvezdisso,elaapenasbalançouacabeça.

—Coitadada Jo.Eladeve estarmuitochateada.Queriapoder conversar comela.

—Lisa,oCartermefalouqueelajáfezessetipodecoisaantes...?Lisaassentiu.—Você conhece a Jo—disse.—Ela é absolutamente adorável.Masospais

ignoramela.Sempreaignoraram.Achoqueelafaziaessetipodecoisaprachamaraatençãodeles.Depoissetornouumaespéciedehábito,eusuponho.Elescansaramemandaramelapracá.Maselaéfelizaqui,entãohámuitotemponãoacontecia.Aúnicacoisaqueconsigopensaréqueoqueaconteceunobailefoidemais.

Pareciatriste.—ElagostavamuitodaRuth,sabe?Allieassentiu.—Achoquefazsentido.Masnuncaaviassimantes.Nãosoubeoquefazer.LisaesticouamãoparapegaradeAllieeapertou-a.—Pobredevocê.DeveacharqueaCimmeriaéumasilodeloucos.Naverdade

nãoé.Pelomenosnormalmentenão.—Tudo bem. — Allie pôs a mão em cima da de Lisa. — Quando vão te

liberar?Lisadeudeombros.—Ninguémfalou.Olhandoparaorelógio,Allieselevantou.— É melhor eu ver o que tá acontecendo lá fora. As coisas andam muito

estranhas. Tenho a sensação de que se eu não estiver lá a escola inteira podesimplesmente...explodir.Éassustador.

AbaixouparadarumabraçoemLisa,queparecia tãoraquíticaqueAlliequasenãoaapertou.

Lisasorriuparaela.

—Obrigadaporvirmevisitar.—Euvolto—prometeuAllie.—Esevocêestiverbemosu cienteprafazer

visitas,aJoestáaduasportasdaqui.Masdáumtempopraelarecuperarasobriedadeantes.

Aofecharaporta,AllieouviuLisadizer:—Nãoseesquecedemim...

–O

VINTE

i,Allie!AvozveiodasalacomumenquantoAllievoltavadaalamédicaparaaescola,

eelavirouparaverLucasachamandocomumaceno.—Oi,acabeideveraLisa—disseAllie.—Elaestavabem.—Ótimo!—respondeuele.—Seiqueelaqueriatever.AJotambémfoi?Alliebalançouacabeça.Eleaindanãosabeoqueestáacontecendo?—VocênãofaloucomoGabe?—OtomdeAllieeracauteloso.—Não,nãovioGabe,oCarterouaJo.Vocêsabeoqueestáacontecendo?Eladiminuiuavoz.— Aconteceu uma coisa hoje de manhã. — Relatou brevemente os

acontecimentosdotelhado.Lucasrevirouosolhos.—AimeuDeus.Issodenovonão.Allierecuousurpresa.—Comoassim,“denovo”?— A Jo fazia esse tipo de coisa o tempo todo. Foi por isso que os pais

mandaramelapracá.AJosurtaàsvezes.Bebedemais,sedroga,aíbateoPorschedealguém, invade o casamento de um estranho... Você sabe. O “a-mamãe-não-me-ama”desempre.—Elenãopareceusolidário.—Foiporissoqueeutermineicomela.Todoessedramachatérrimo.Cansa.

—Vocêachaqueelavaiserexpulsa?LucasriucomoseAllietivessefeitoumapiada.—Nunca.Ospaisdelasãomuitobemrelacionadosemilionários.Elapoderia

matar alguém que mesmo assim a deixariam continuar até a formatura, e aindafariamumafestadedespedida.

AntesqueAlliepudesseresponder,eleprosseguiu:—Bom,pelomenosissoexplicaondeaJoeoGabeestão;elaestáencrencadae

ele,tentandoajudar.MascadêoCarter?Allie relatouaversãoeditadadecomoela eCarter tinhamvioladoo toquede

recolhernanoiteanterior.— Espero que ele não esteja encrencado demais — disse Allie ao terminar o

relato.—Ah, a Isabelle vai superar,não sepreocupa.Ela ngequeele é sómaisum

aluno,mastodomundosabequeelaamaelecomosefosseum lho.—Eleaolhouanalisando-a.—Oqueestárolandoentrevocês,aliás?Estãoficando?

Ruborizando,Alliebalançouacabeça.—Não,claroquenão.Sósomosamigos.— Hm-hum. — Lucas não pareceu convencido. — Amigos que fogem pra

florestadepoisdotoquederecolher.Omelhortipodeamizade.OtomdeLucaseradeprovocação,eAlliesentiuacorsubirmaisainda.—Nãosejadoido—disseela.—Sejacomofor,nãoseicadêeleagora.—EsperoqueoSylvainnãoestejapegandopesadocomele.Elevaimorrerde

ciúmedevocêpassartempocomoCarteragoraquedeuumforanele.Allieestavaolhandoparaochãoparaesconderorubordorosto,maslevantoua

cabeça.—Comovocêsabequeeudeiumforanele?Lucassorriunovamente.—Allie,nãoexistemsegredosnaCimmeria,principalmentenoquesereferea

relacionamentos.AKatieGilmoreandairritantementefelizdesdesextaànoite,eestácontando pra todo mundo que o Sylvain te dispensou — revelou Lucas. —Considerando que ele está completamente infeliz, todomundo presumiu que, naverdade,foivocêquedispensouele.Adivinhei,certo?

Allieassentiu.—Ótimo.Elesabeserumcompletobabaca.Éoqueacontecequandoseuspais

sãobilionáriosevocêé lhoúnico.—Lucassorriuendiabrado.—Elenãoébomosuficientepravocê.OCarterébemmaislegal.

Enquanto Allie tentava insistir mais uma vez que ela e Carter eram apenasamigos,Lucasriueainterrompeu:

— Escuta, eu tenho que ir. Vou ver se o Carter voltou pro dormitóriomasculino. Ou o Phil, ou qualquer pessoa, na verdade. Eu tô muito entediado.Talvez seja forçado a estudar se alguma coisa não acontecer logo.Um verdadeiropesadelo.

Contudo,enquantoelesedespedia,umameninaaltaegraciosaseaproximou.—Ouvi você ameaçar estudar, Lucas? Por favor, não. ATerra pode parar de

girarehojetemmacarrãonojantar.Nãoqueroperder.—Tudobem,então—respondeuLucas.—Vouarrumaroutracoisaprafazer,

nãoqueroquepercaoseuespaguete.Allie e amenina se olharam com expectativa durante ummomento até Lucas

notar.—Ah,desculpa.Nãopercebiquevocêsnãoseconheciam.AllieSheridan,essaé

aRachelPatel.Rachel,Allie.Vocêsdeveriamconversar.Podemgostarumadaoutra.Sãoduasmalucas.

—Babaca—Racheldisseafetuosamente.Sentindo-sede foradasprovocaçõesamistosas,Allie examinouos sapatos,mas

depoisqueLucasseafastou,Rachelvirouparaelacomumsorrisolargoqueexibiadentesbrancosperfeitosecovinhas.

—OLucas é legal.Éaquele caraqueé tãomeuamigoqueeununcapoderianamorar.Vocêtemumdesses?

Elatinhapelebronzeadaeolhosemformadeamêndoas,eseus longoscabeloscacheadosestavampresosporumelásticoprateado no.TinhaumsorrisoirresistívelqueAllieseviuretribuindofacilmente.

—Achoquetodomundotem—respondeu,pensandoemMarkemLondres.— Fato. É como uma regra da natureza. — Rachel estudou Allie por um

momento.—Então nalmenteconheçoafamosanovaalunadequemtodomundofala.

Alliegostoudavozdela—eraquasedoce,comumlevetoquedeumsotaquedonorte.

—Ninguémfalademim—replicouAllie,envergonhada.—Temoquefalemsim.Naverdadevocêédaminhaturmadehistória,sabia?

—disseRachel.Allie tentou se lembrar de tê-la visto lá e invocou uma vaga imagem de uma

meninasériaquesempresabiaasrespostasparaasperguntasdeZelazny.—Vocêusaóculos—disse,comumtomnegligentementeacusatório.—Eé

superinteligente,certo?Rachel pegou um par estiloso de óculos de moldura escura do bolso da saia

apenasosuficienteparaqueAllieosvisse.—Confesso.Souumanerdtotal.Nãoconsigoevitar.Eeusóusoosóculospra

enxergarasprojeções.Elapausou,emseguidafalou:—Aspessoasrealmentefalamdevocê,sabe.Alliefezumacareta.—Ah,ótimo.Oqueelasdizem?Comatestaenrugadaenquantopensava,Rachelpassouumalistaresumida.

—Ah, você sabe,primeiroque estava cando comoSylvain,depoisquenãoestavamais;queéamigada Jo,depoisquea Jo surtou;que foivocêqueachouocorpodaRuthnanoitedobaile...—pausou.—Oqueépéssimo,apropósito,seforverdade.

AlliebaixouosolhosearespiraçãodeRachelsibilouatravésdosdentes.—Droga.—Elaolhouparaorelógio.—Praondevocêestavaindo,aliás?Está

ocupada?Alliebalançouacabeça.— Vamos almoçar — disse Rachel enquanto caminhavam pelo corredor. —

Querosabertudo.AlémdahistóriadaRuth,querosaberoqueestásepassandocomaJoArringford.Oquehouve?Ela realmente se jogoudo telhado?A fofoca sobreesseassuntoéinacreditável...

Sentadaemumcantosilenciosodasaladerefeições,comxícarasdecháesanduíches,Allie se viu contando tudo para Rachel. Tudo sobre ter encontrado Ruth e emseguidaLisa,assimcomoahistóriadoseventosdotelhado.Rachelprestouatençãoacadapalavraenquantoosanduíchepermaneciaintocadoàsuafrente.

Porqueconseguiacontaraelacoisasquenãotinhareveladoaninguém,Allienãosabia.Talvezeusóprecisedealguémpraconversarquenãosejaummeninoequenãová se jogardo telhado,pensou.Qualquerque fosseomotivo,nãoparecia capazdedeixardefalarefalar.

Havia algo inerentemente honesto em Rachel. Ela parecia ao mesmo tempoconhecedoraecríticadaCimmeria.Sabia tudosobre todomundodaescola,e,noentanto,claramentemantinhaumadistânciadamaioria.Lucaspareciaserseuúnicograndeamigo,masquandoAllieperguntouporqueelanãosentavacomele,GabeeJonasrefeições,elafezumacareta.

—Nãoéaminha—disse.MasRachelnãoeraexclusivamenteouvinte.Provouserumaverdadeiracolunista

defofocadasintrigasdaCimmeria.—Comovocêsabedissotudo?—Allieperguntouemdeterminadomomento.—Eusimplesmenteescuto—disseRachel.—Você cariaimpressionadacom

oquantoépossívelaprendersesimplesmentesentarquietae ngircuidardaprópriavida.Talvezestejanomeusangue.Meupaiéumaespéciedeinvestigador.

—Tipoumpolicial?—perguntouAllie.—Maisoumenosisso.Quandoasalaesvazioueasduasficaramlásozinhas,Rachellançouumdesafio.—Falaonomedequalquerpessoadestaescolaeeutedigotudosobreela:coisas

sabidasoususpeitadas.—Sério?—Allieriu.—Sério.—Tudobem...KatieGilmore—falouAllie.Rachelsorriu.—Boaescolha.Incrivelmenterica.Opaidelaébanqueiroinvestidor,moraem

Kensington,transacomaempregada.Compraos lhoscomfériasemSeychellesecompra amulher comumAmericanExpress Black.—Serviu-se de um copo desuco.—O irmãodela se formou aquino anopassado, agora estuda emOxford,ondeaprendeafazerdinheiroigualaopapaizinho.

—Impressionante—disseAllie, comumolharde respeito.—Ea Jules?—perguntou.

Rachelfezquesimcomacabeça.— JulesMatheson,muito inteligente, notas perfeitas, aparência perfeita, toda

perfeita. É um pouco assustador. O pai dela é conselheiro da Rainha. O irmãoestudouaquiháalgunsanos,acaboude se formarcomhonrasemHistóriaAntigaemCambridge.Nadadeescandalosoaí.QuersaberdaJo?

Engolindo em seco, Allie hesitou antes de responder. Isto parecia uma certatraição.Mas Jonunca tinha reveladomuito sobre si,naverdade.Edepoisdoquetinhaacontecido...

—Quero—respondeu.—JoArringford—desembuchouRachel.—Filhadobanqueiroeex-ministro

de governo omas Arringford, que atualmente é um executivo do FundoMonetárioInternacionalemoranaSuíça,temcasasemKnightsbridge,naCidadedoCabo, SaintTropez... onde você imaginar.Os pais dela são divorciados.O papaitemumanovamulher,queéseisanosmaisvelhaqueaJo.AmamãepassaamaiorpartedotempomorandoemSaintTropez.Umirmão,deoitoanosdeidade,estudana Eton. A Jo émuito inteligente, tem notas perfeitas. Já teve três surtos e umatentativadesuicídio...

—Para!—disseAllie,tardedemais.—...háumanoemeio—concluiuRachel.—AJotentousematar?—sussurrouAllie.Rachelassentiusombriamente.—NoferiadodeNatal.Ospaisdela...nenhumdosdoisachamoupravoltar

pracasa.Elaficouaqui...tomouunsremédios.Alliesesentiuenjoada.—Como...?

—OLucasqueencontrou,eles sóestavam candoháunsdoismeses.Ocaratinha cadoaquiprapassaroNatalcomela.Quandoelanãodesceupra jantarnodia25,ele subiuatéoquartodelapravercomoestavae...FelizNatal,pessoal—suspirou.—Fizeramuma lavagem estomacal,mandarampro psicólogo.OLucascoudo ladodelao tempotodo.Quandoelamelhorou, terminoucomela.AJo

começouaficarcomoGabetrêssemanasdepois.—Nãofoiàtoa...—AfrasedeAlliepairounoar.—Oquê?—perguntouRachel.—DepoisqueaJo...vocêsabe.OLucasnãopareceusurpreso.—É,bem.Nãoficou—disseRachelsecamente.—Masporquetodomundo,porqueoLucasaindaéamigodela?—Vocêconheceuela—respondeuRachel.Noventaenoveporcentodotempo

ela é ameninamaisdoce e generosaque você já conheceu.Alémdisso, ela éumadeles.

—Umadeles?—perguntouAllie.—Vocêsabe,afamíliaérica,ospaisestudaramaqui,algunsconhecemeladesde

pequena.ElaécompletamenteCimmeria—declarouRachel.EnquantoAllie cavaparadaporuminstante,pensando,umaideialigeiramente

terrívellheocorreu.—Oquevocêsabesobremim?Rachelpareceuhesitante.—Temcertezadequequersaber?Allieassentiu.—Euaguento.Claramentedesconfortável,Rachelpensoucuidadosamenteantesderesponder.—Certo,euseimuitopoucosobrevocê,econsiderooqueseisemfundamento.

— Pausou, parecendo pedir desculpas. — Mas lá vai. O nome Sheridan édesconhecidodetodos,entãovocênãotemlegado,anãoserquesejapeloladodasuamãe.Vocêé lhaúnicaatéondetodossabem.Seuspaistêmempregospúblicosde alguma espécie. Cresceu no sul de Londres.Tem cha criminal. Seus pais temandarampracáporcastigo.Tembolsadeestudos.EncontrouocorpodaRuth.

Allieengoliuemseco.Quandocolocadodestamaneira...—MeuDeus,eupareçoumaperdedora.— Ei, não foi essa a minha intenção. — Rachel pareceu preocupada. — Eu

realmentenãoseimuitosobrevocê.Nãoteachoumaperdedora.Allieconsiderouisto,emseguidaolhoudesafiadoramenteparaRachel.—Evocê?

—Oquetemeu...oquê?—disseRachel,confusa.—Mefalaasfofocasdevocê.Rachelsorriu.—Justo.Tudobem.Deixaeuver.RachelPatel, lhadeRajesheLindaPatel.

NascidaemLeeds.Paiasiático,mãenão.PaifoialunobolsistadaCimmeriaeagoraéumespecialistaemsegurançainternacional;trabalhaparaalgunsgovernos.Assuntosultrassecretos.ÉdoconselhodaCimmeria,muito in uente.Racheltemumairmã,Minal,quetem12anosdeidade.AmãedeRacheltemdoisph.D.,umexcesso,sequer minha opinião, e administra uma empresa privada de pesquisa médica nãomuitolongedaqui,ondeafamíliatemumaresidênciasuntuosademuitosacresdeterra. Rachel tem notas perfeitas em quase todas as matérias, principalmente emciências,equersermédicaquandocrescer.Tudobem?

Alliesorriu,masseusolhosestavamsérios.—Tudobem.Estavamquites.

Jonãoapareceunaauladebiologianasegundademanhã.Sem conseguir lidar com o fato de não saber o que estava acontecendo, Allie

ficoudepoisdaaulaparaperguntaraJerryondeelaestava.—AJotransgrediuseriamenteasRegras,conformevocêsabe,Allie.—Tirouos

óculosdearmação na.—Elarecebeuoqueagentechamadesuspensãoemcasacomocastigo.

—Oqueéisso?—perguntouAllie.Eleesfregouaslentescomumlençobrancoelimpo.—Signi caque,quandoforliberadadaenfermaria,vaiterque carnoquarto.

As refeições e os trabalhos escolares serão entregues lá, mas ela não vai poderparticipardenenhumaatividadenormal.

Alliegirouabainhadacamisabrancanosdedosenquantoconsideravaaspalavrasdoprofessor.

—Quantotempovaificar...suspensa?Jerryequilibrounovamenteosóculosnonariz.— Só uma semana, desde que obedeça às restrições, acompanhe o trabalho

escolarenãoviolemaisnenhumaregra.—EupossoveraJo?Jerrybalançouacabeça.— Sem contato, sinto muito, Allie. Ela deve utilizar esse tempo isolada pra

refletireestudar.

Allieolhouparaochãoenquantoelefalou,masentãolevantouacabeçacomaexpressãocheiadepreocupação.

—Elaestámelhor?Jonãoestava...sabe...normalontem.Portrásdaslentesbrilhantes,osolhoscastanhosdeJerryeramgenerosos.—Nãoavi.PerguntapraEloiseoupraIsabelle,elaséqueestãosupervisionando

ocastigo.Mastenhocertezadequeestábem.Allieassentiu.—Obrigada,Jerry.Então a Jo está encrencada, mas não foi expulsa, Allie pensou ao atravessar o

corredor.OLucastinharazão.FicouimaginandoseJoaindaestaria loucaouse játinhavoltadoaonormal,e

em seguida se sentiu desleal por especular. Mas não podia ngir que osacontecimentosdodiaanteriornãoa zeramquestionarserealmenteconheciaJoounão.

AconversacomJerryquase fezcomqueseatrasasseparaaaulade inglês,eaoentrar, amaioria dos alunos já estava sentada.Allie sentou ao lado deCarter, queestavarabiscandoocantodocaderno.

—Oi.—Oipravocê também.—Ele levantouoolharpara sorrirporumsegundo,

emseguidaretornouaodesenho.—Porondevocêandou?—perguntouAllie,tirandooslivrosdabolsa.—Não

tevejodesdeontemdemanhã.CarterlançouparaAllieumolharcheiodesignificado.—Vocêsabe.Coisas.Elaergueuassobrancelhas,masdeixoupassar.—OJerrydissequeaJovaipassarumasemanaemprisãodomiciliar—disse,

passandoaspáginasdolivro.—Merece—concordouele,acrescentandoemseguida:—umacamisadeforça

tambémnãofariamalnenhumaela.—Bomdia,turma.—AvozdeIsabellesalvouAlliedeterquepensaremum

contra-ataque.—RecentementenóslemosobrasdeT.S.Eliot,enasemanapassadapedi para lerem um trabalho que in uenciou muito a sua escrita, osRubáiyát deOmar Khayyám, notoriamente traduzidos por um homem chamado EdwardFitzGerald.DiscutimososenhorFitzGeraldnasexta-feira...

Depois de tudo que tinha acontecido naquele m de semana, Allie não tinhaqualquerlembrançadaauladesexta-feira.DecidiuqueteriaqueacreditarnapalavradeIsabelle.

— Vamos começar com minha passagem preferida, Quadra LXIX. Clare —Isabelle se voltoupara umamenina loura bonita—, você pode ler pra gente, porfavor?

Alliesentiuumaondadeinvejacomumapontadadeculpa—ClaretinhasidoopardeCarternobaile,eAllievinhaevitando-adesdeentão.Lembrou-sedoolhardeClareparaCartercomumaespéciedeadoração.MasCartertinhapassadootempotodoolhandoparaAllie.

Levantando-se,Clareleucomumavozdocecomoumsino:

ÉumtabuleirodexadrezdenoitesediasOndeodestinobrincacomhomenscomopeças:Movimentosaquieacolá,chequesemortes,E,umporum,voltamàgaveta.

—Obrigada,Clare—disseIsabelle.Aoretomaroassento,ameninalançouumolharesperançosoaCarter,masele

estavacomosolhosgrudadosnocaderno.Quebagunça,pensouAllie,desenhandoumcoraçãopretoemumapáginabranca

docaderno,eemseguidaapunhalando-ocomumaflecha.Isabelleseapoiouemumamesa.—Estaéumaescritaquaseexistencialista,amaioriadevocêsvaiselembrardas

teorias básicas do existencialismo que vimos no começo deste período, se nãolembram,passemnabibliotecaporqueissovaicairnaprova,queeuadorotantopelavisãodesoladoradavidaquantopelohumornegro.Oequilíbrioéúnico.Então,oqueachamqueeleestádizendo?

QuandoAllieleuapassagemnodomingo,teveum ashbackdaauladexadrezdeJoqueacabarainterrompidaháalgumassemanas.Masantesquepudesselevantara mão, a voz de Carter a surpreendeu — não achou que ele estivesse prestandoatençãoàaula.

—Achoqueeletádizendoquenóssomospeões.Equeodestinoescolheoqueacontece comagente; comquemnos casamos,quandomorremos.Mas eo livre-arbítrio?Nósnãotomamosdecisões?Issonãoépoder?

—Precisamente—concordouIsabelle.—Poroutro lado,nosso livre-arbítrionãoéafetadopeloqueodestinonosdá?

—Masissoéumabsurdo.—AvozcaracterísticadeSylvainveiodofundodasala,eAllievirounacadeiraparavê-lo.—Tudodependedenós.Nósdetemostodoopoder.Nãoexistedestino.Comopodeexistir?

—Típico—murmurouCarter.Sylvainoencarou.—Oqueissoquerdizer,Carter?AntesqueCarterpudesseresponder,Isabellesemeteuentreeles.—Fico feliz queosdois estejam levando apoesia tão a sério,masnunca tive

umabriganaminhasalaporcausadeOmarKhayyám,epre ronãoterumaagora.Então, acho que esgotamos minha passagem predileta. A próxima passagem quegostariadeolhar...

Duranteasemanaseguinte,aescolavoltoumaisoumenosànormalidadeentediante.Ocheirode fumaçadesapareceugradualmente, e as reformascomeçaramno salão.Uma caçamba de entulho apareceu do lado externo da ala oeste, e pedia-sefrequentemente que os alunos evitassem o corredor principal entre o salão e acaçamba.Apercussãodemartelos e furadeirasquedistraíabastante logo se tornouumaspectotediosododiaadia.

Lisafoimandadaparacasaparaserecuperardosferimentos.E,semelaeJoporperto,Allie se viu passando quase todo o tempo comRachel. Isto signi cava quepassava o tempo quase todo na biblioteca, pois era lá que Rachel parecia morar.EntãoAllienãosesurpreendeunemumpoucoquandoRachel sugeriuquefossempara a biblioteca estudar na tarde de sexta-feira. Lucas veio juntomeio contra suavontade,alegandoterumtrabalhoparasegundanoqualaindanemtinhatocado.

Rachelseprovouacompanhiaidealparaosexercíciosdeciências,considerandoquesabiatudo.

—Vocêrealmenteéumgêniodasciências—maravilhou-seAllie,fazendoumacareta enquanto Rachel explicava a estrutura biológica da tênia, com os olhosrelativamentebrilhantesdeinteresse.

Levantandoosolhosdoslivros,Lucasdisse:—Porquevocêachaqueeusouamigodela?Nãoécomoseelafosselegal,ou

coisadotipo.Rachel deu uma cotovelada nas costelas de Lucas, e em seguida se voltou

novamenteparaAllie.— Meu negócio é a ciência, mas você pode me ajudar com francês, que

definitivamentenãoéaminha.—NãofalaemfrancêscomaAllie—alertouLucas.Quandoasduasolharam

confusasparaele,Lucasmexeuabocasemfalar:—Sylvain.—Ah,não.—Allieenterrouorostonasmãos.—Muitocedo?—perguntouLucas.

Alliefezquesimcomacabeça,masRachelestavalutandoparanãorir.—Quê?—perguntouAllie.— É que — disse Rachel, rindo — você terminou com oSylvain. É como

terminarcom,seilá,Deusoucoisadotipo.RacheleLucasagoraestavamrindodescontroladamente.— Basicamente todas as meninas desse colégio querem car com ele e você

simplesmenteodispensou.Alliesentiuorostoruborizar,eolhouemvoltaparasecerti cardequeninguém

tinhaescutado.—Queremcalaraboca?—sibilouAllie.—Sério!Enquanto tentavam se controlar, comRachel limpando lágrimas de tanto rir,

Allievirouaspáginasdolivro,franzindoorosto.—Eleéumbabaca—murmuroudefensivamente.Isso os ativou novamente, só que desta vezAllie tambémquis rir.Tinha que

admitir,eraumtantoengraçado.Deumjeitohorrível.Naquela noite, depois do jantar, entediada de tanto ir para a biblioteca, Allie

voltou para a sala comum, para ler a tarefa de inglês. Mesmo após uma semanatentandoalcançaramatéria,aindaestavaatrasada.ApesardoincêndioedamortedeRuth, os professores estavam aumentando a pressão, e ela tinha montanhas decapítulosparaler.Antesdasnovedanoiteestavaquasedormindo,encolhidaemumapoltronadecouropertodeumpianoinutilizadoemumcantodasala,comacabeçaapoiadaemumadasmãos,easpalavrasnapáginaasuafrentecomeçandoanadar.Quando um pedaço de papel dobrado em um quadradinho apareceu diante dela,Allielevouuminstanteparanotaroqueestavaacontecendo.

—Seu amigoCartermepediu pra te entregar— sussurrouLucas, colocandoumaênfasesarcásticanapalavra“amigo”.

—Quê?Cadêele?—perguntouAllie,sentando-seeretaeolhandoemvolta.Lucasdeudeombros.—Eupasseiporelenocorredorháalgunsminutos.Tenhoquecorrer.Agente

vaijogarcríquetelánafrente.Olhandoemvoltaparasecerti cardequeninguémaobservava,Alliedesdobrou

opedaçodafolhadecaderno.Acaligra abonitadeCarterpreenchiaapenasalgumaslinhasnocentrodapágina.

AllieAgenteprecisaconversar.Meencontreàs9h30nabiblioteca.Vouestarnaseçãodelatimantigo

nofundodocantoesquerdo.NãodeixaoSylvaintevermeprocurando.C

O coração de Allie bateu mais acelerado. Assim que terminou de ler as palavras,dobrouobilhete aomeiopara escondero recadoeoguardouentre aspáginasdolivro.

Os 20 minutos seguintes passaram lentamente enquanto ela tentava ler, masachava impossível se concentrar. Finalmente, às 09h25, juntou as coisas e, seespreguiçandodeformateatralparaindicarquãocansadaestava,casoalguémestivessedeolho,levantoudacadeira.

—Bem,achoquevoudormir—falouparaninguémantesdesedirigirparaaporta.

Umaveznocorredor,parouefolheouospapéis,esperandoparaversealguémaseguira. Quando ninguém apareceu, foi para a biblioteca, parando para olhar porcimadoombroantesdeabriraporta.

Ládentroviuqueolocalestavacheio,porémsilencioso,eaoatravessarostapetesmacios, virou algumas páginas do caderno como se estivesse procurando algumacoisa.Ocasionalmente olhava os números dos livros nas prateleiras.Como se nãotivesseachadooquequeria,continuava.

Eudeveriaseratriz,pensou.Tãoconvincente.Gradualmentefoipassandopelaparededepainéiselaboradosondeoscubículos

deestudodosformandostinhamaquelesmuraisestranhamenteviolentos,echegouàseçãode línguas antigas.Quantomais avançava,menospessoas via.Ao alcançar asprateleirasdaparededofundo,nãohaviamaisninguémporperto.

Incertaquanto à localizaçãodos livrosde latim,passoupor cada la,puxandolivrospesadosdasprateleirasparaidenti cara língua.Masapesardeterencontradolivrosantigos,comcapadecouro,pilhasemgregoeemárabe,nãoachounadaemlatim.

—Porqueesconderamoslivrosdelatim?—murmurou.—Éalgumaespéciedepiadinhainteligente?Tipo,sequiserleremlatimtemqueiraté...

—Allie.Osussurroqueinterrompeuseuspensamentosaleatóriosveiodealgumlugarà

frente,nocantomaisisoladodorecinto.—Carter?—Aluminosidadeerafraca.EnquantoAlliecerravaosolhosparaver

quemtinhafalado,umamãoseesticoudassombraseapuxouparaoespaçoentreduasenormesestantesdelivros.

—Jesus—disseAllie.—Bastavaumsimples“oi”.Carternãosorriu.— Desculpa. Só quis te trazer aqui antes que todo mundo na biblioteca

começasseaimaginaroquevocêestariafazendonasessãodelínguasantigasfalandosozinha.

—UmtrabalhosobreRomaAntigapraauladehistória.Allie estava muito satisfeita com seu álibi, mas Carter não pareceu

impressionado.—AgenteestáestudandoCromwell.— Eu estou me adiantando — disse defensivamente. — A gente vai ter que

estudarRomaalgumahora.—Muitoconvincente.QuandoAllieassimilouaexpressãosemhumordeCarter,seucoraçãoafundou.—Oque houve,Carter?Qual é a de toda essa trama? Por que não veiome

buscarnasalacomum?—Olha,temosumproblema.—Cruzandoosbraços,eleapoiouascostasem

umaestantecomoseestivessetentandocolocardistânciaentreosdois.—Certo—disseela.—Qualéonossoproblema?—Apartirdeagora,sealguémteperguntaroquevocêviunasextaànoite,você

dizqueaRuthsematou,tudobem?Allieabriuabocaparaprotestar,maselelevantouamãoecontinuoufalando.—Porque até onde todomundo sabe, foi isso que ela fez, tudo bem?Ela se

matou.UmsilêncioseabateuenquantoelapensavanoqueCarterestavafalando.—Maseuseiquenãoéverdade—disseela.—Sabe?—questionou.—Comovocêsabe?Porcausadasuaexperiênciacom

ciênciaforense?Estavaescuro,Allie.Tinhamuitosangue.Vocêseassustou.MasnãotemcomosaberseaRuthsematouounão.Entãoparadebancaradetetive.

—AIsabelletemandouaquipramedizerisso?—perguntouirritada.—Ninguémmemandou.—Elaolhounosolhosdele,procurandoalgumsinal

deevasão,maselenãodesviouoolhar.Carteralcançouamãodela.—Eutôdoseulado,Allie.Deverdade.—Entãonãoentendo!—eladisse,libertandoamão.—Porqueestáfazendo

isso?Euvioquevi.Carterseaproximou.—Olha,Allie,estãoespalhandoquevocêestavacomelaquandoelamorreu.

—Queeu...oquê?—Ameninaoencarou.—Equevocêfoiaúltimapessoaqueviuelaviva,eaúnicaqueviuocorpo.Alliebalançouacabeça.—Eunão...Ogarotoescolheucuidadosamenteaspalavrasseguintes.—Allie,estárolandoumboatodequevocêtevealgumacoisaavercomamorte

daRuth.

N

VINTEEUM

amanhãseguinteAlliedesceuasescadasprecisamenteàs6h43.Seuscabelosestavampresosemumrabodecavaloquebalançouacadapasso.Pareciacansada,porémdecidida.

QuandodeixouCarternanoite anterior, foi aobanheiro e jogou água frianorosto. Ficou lá durante algum tempo, se olhando no espelho, revivendomentalmenteaconversa.

—Como alguémpode achar que eu tive alguma coisa a ver com amorte daRuth?—perguntaraaele,chocada.—Issoéloucura.Agentemalseconhecia.Porqueeuiaquerermachucarela?

—Éumaarmação,Allie.—O rostodele estava sombrio.—TambémestãofalandoquevocêembebedouaJonotelhado,equetem...problemasmentais.—Ela abriu a boca para protestar e ele levantou a mão. — Quem quer que estejaespalhandoessascoisassabequenãoéverdade.Estãoteprovocando.

—Masporquê?Porquealguémiaquererfazerisso?—Algumaspessoassesentemameaçadasporvocê.— Como eu ameaço alguém? — ela perguntou lamuriosa. — Eu não sou

ninguém.—Játedissequenãoachoqueissosejaverdade—disseele.—Enemninguém

acha.—Nãoentendo.—Elapassouosdedospelocabelo,pressionandoastêmporas

com força.—Meus pais são funcionários públicos.Não são ricos.Amaioria daspessoasaquiéfilhademilionários.Comopodemsesentirameaçadospormim?

—Éissoqueagenteprecisadescobrir—disseCarter.Depoisdissonãoconseguiudormir.Agitada, saiudacamaàsduasdamanhãe

abriu a janela para entrar ar fresco.Umahora depois a fechouporque estava comfrio.Emummomentoouviupassospelaportadoseuquarto,eemseguidasilêncio.

Maisdeumavezopensamentopassouporsuamente:seráquefoiaRachel?Eucon einela.Elaéaúnicaquesabedetudo.Nãoconteipramaisninguém.Elaadorafofoca.Maselanãofaria...Faria?

Achavaquetinhacochiladoporvoltadasquatrodamanhã,masnãopormuitotempo.Quandooalarmetocouàs6h15,estavacompletamenteacordada,olhandoparaoteto.

Eagoratinhaqueenfrentarocafédamanhã.

Indoomais cedopossívelpara a salade refeições emumsábado,Allie torciaparaevitaramaioriadaspessoas.ElaeCartertinhamdecididoqueeladeveriaviverodiacomosempre.Maselanãoquerialidar,porexemplo,comKatieGilmoreagora.

Aoentrar,ninguémpareceuprestarnenhumaatençãoindevidaaelaeenquantoenchiaopratocomcerealetorrada,sepermitiuumasensaçãodealívio.Talvez essacoisatodadeboatonãovácausarnada.

Olhouaoredordasalaprocurandoascompanhiashabituais,mastinhadescidotãocedoqueninguémestavalá.

—Oi,Allie.Vemsentarcomigo.—Rachelestavasozinhaaumamesaàdireita.Por um instante Allie hesitou, os pensamentos da noite passada giraram

nauseantes.MaspareceriaestranhonãosentarcomRachel.Rachel éapessoamais ligadanas fofocasdo colégio.Senãomencionarosboatosa

meurespeito,vousaberqueéela.Foiatéameninaerepousouabandejasobreamesa.—Porumsegundoacheiquefosseterquesentarsozinha.— Eu sempre tô aqui cedo — disse Rachel. — Meu pai meio que me

programoupraacordarcedoquandoeuerapequenaeagoraachoquevouserassimprasempre.Éerradoatrapalharosonodecrianças.

Rachel tinha feito um sanduíche de torrada, ovo e queijo, e ao servir leite nocereal,Allietevequeadmiraramaneiracomoelaodevoravasistematicamente.

—Seucaféparecemelhorqueomeu—observou.—Arefeiçãomaisimportantedodia,amiga—disseRachel,mastigando.—Ei,

vocêsoubequeaspessoasestãoespalhandoboatoshorrorososaseurespeito?Alliecongelou,comacolherameiocaminhodaboca.—Ouvialgumacoisa—dissecautelosamente.—Ouviumacoisalouca.Rachelassentiu.— O “a Allie é uma assassina psicopata”? Foi esse que eu ouvi. Soube pela

SharonMcInnon,conhece?Alliebalançouacabeça.—Bem—Rachelestavadandoumamordidanosanduíche—,eumandeielase

foder.UmaondadealívioseabateusobreAllie.NãofoiaRachelentão.Sabiaquenão

tinhasido.—Ecomoelareagiu?—perguntou.— Bem — respondeu Rachel. — Acho que ela está acostumada a me ouvir

dizendoisso,porqueelaéumavaca.Agoraasduasestavamrindo,masaspreocupaçõesdeAllienãoadeixaramrelaxar

pormuitotempo.—Quemestá falandoessascoisas,Rachel?—perguntou.—Sãomentiras tão

horríveis,quemfariaumacoisadessas?—Passeiamanhãtentandodescobrir—falouRachel,franzindoatesta.—Não

sepreocupa.Voudesvendar.Allieergueuaxícaradechá.—Comvocêdomeulado,Rachel,elesnãotêmamenorchance.Masporalgummotivo,Allieaindasesentiadesconfortável.Ao caminhar pelo corredor após o café da manhã, estava perdida em seus

pensamentospreocupados.PossoconfiarnaRachelagora.Certo?Játinhaquasechegadonaescadaquandoavoza adadeKatiecortouosilêncio

damanhãnormaldesábado.—Oi,assassina!Comoestápassandoestamanhã?Allievirouparaencará-la.—Vaisefoder,Katie.—Olhaaboca.—Oslábiosperfeitosdaruivaestavamcurvadosemumsorriso

vil. — A gente tinha que saber que, se te deixasse entrar na escola, ia tudo proinferno.

Seu grupo de puxa-sacos polidas riu ao redor, sussurrando uma para a outraenquantoesperavamumarespostadeAllie.

—Doquevocêtáfalando,Katie?—Allielutouparamanteravoz rme,apesardaraivaquecresciadentrodela.Mesmotentandopensarnamelhormaneiradelidarcomasituação,odesejoopressordesocaracaradeKatieestavafalandomaisalto.Cerrouasmãosempunhos.

Enquantosuabatalhainternaexplodia,Katiedeuumpassoemdireçãoaela.—Soube que você tem problemas de temperamento.—Sua voz era baixa e

maliciosa.—FoiissoqueaconteceucomaRuth,Allie?Elatechateou?Teirritou?Allie sentiu o punho levantando antes que tivesse consciência do que estava

fazendo.MasantesdeacertaronarizempinadodeKatie,alguémaagarrouportráseapuxoutãodepressaqueseuspéschegaramasairdochão.

—Katie,vocênãodeveriaestartendoumdosseusataquesdebulimia?—Avoz

sedosadeSylvainperguntouenquantoAlliesedebatianosbraçosdorapaz.Katieoencarouincrédula.—Nãopodeestarfalandosério,Sylvain.Oquevocêestáfazendo?Porqueestá

defendendoessamaria-ninguém?Oquevocêvênela?Allieparoudelutar,maseleaindaaseguravacom rmeza.Ocalordoseucorpo

nodelatrouxelembrançasdesagradáveis.—Vejoalguémcommaisclassedoquevocêjamaisteránessasuavidamiserável.

—Osolhosazul-clarosvarreramogrupodeamigas.—Eissovalepratodasvocês.Agorapodemcontinuarcuidandodosprópriosassuntos,porfavor.

Apósumbrevemomentodeindecisão,ogrupocomeçouamigrarparaasaladerefeições.Katiefoinafrente,decabeçaerguida.

SóquandoestavamcompletamenteforadealcancevisualéqueSylvainabaixouosbraçosechegouparatrás.

—Queriaquetivessemedeixadobaternela—confessouAllie,ingrata.—Penseinisso—revelou.—Elaéhorrível.Eusó...Deixapralá.—Alliepassouapontadopénochão.

—Obrigada.—Denada.Mas temoque você vá termuitosproblemas agora.Esses boatos

estão...—Sylvaingirouodedonoar—emtodolugar.Eelavaiusar issocontravocê.

—Eusei—disseAllie.—Sóqueriasaberqueméquetáfalandoessascoisas.Eleaolhoucomseriedade.—Quandotodomundoestáfalando,achoquenãoimportamaisquemfalou

primeiro.Masacreditoqueosprimeirosboatostenhamsidoespalhadosporalguémqueteminvejadevocê.

Allieolhouparaaportadasaladerefeições.—TipoaKatie.—TipoaKatie—disseele.— Não tenho certeza. Mas é uma coisa que... ouvi. Vou investigar. E se

descobrir,voufalarcomaIsabelle.Allienãoqueriatergratidãoaele,nãodepoisdoquetinhaacontecido.Masseele

pudesseimpedirqueissopiorasse...—Seriaótimo,Sylvain.— Não se preocupa. Como vocês britânicos dizem, eu te devo uma. — Ela

enrubesceu, mas ele continuou, com o sotaque engrossando na medida em quefalava.—Tenhoquedizerisso,Allie.Nanoitedobaile...Desculpapelojeitoduroque te tratei... Eu sei que te machuquei. Foi errado. Você é diferente das outras

meninascomquemjámeenvolvi.Seiquenãopossotetratarcomoelas.AsbochechasdeAlliequeimaram,maselaoencarou.—Vocênãodeveriatratarnenhumameninaassim,Sylvain.Nunca.ParaespantodeAllie,eleabaixouacabeça.—Temrazão.Absolutment.Porfavor,aceiteminhasdesculpas.— Eu... eu só... Sylvain, não — gaguejou. Não queria perdoá-lo. Queria

continuarcomraiva.Masentãoumpensamentolheocorreu.—Precisosaberumacoisa—disseela.—Vocêcolocoualgumacoisanaminhabebidanaquelanoite?

Elepareceuhorrorizado,enaqueleinstanteelasoubeaverdade.— Meu Deus. Claro que não. O que você pensa que eu sou? — perguntou

Sylvain.—Desculpa—retratou-se.—Maseuprecisavasaber.Porqueascoisas caram

muitoembaçadas.— O champanhe da Cimmeria é forte — disse ele. — Se você não está

acostumado e bebe rápido demais, ele sobe. E eu te deixei tomar rápido, isso éverdade.Etenteitirarvantagemdisso.Foierrado.

Ahumildadeeaaparentehonestidadedelaadeixaramsemescolha.—Estádesculpado,Sylvain—falou.—Jáesqueci.Antesqueelepudesseresponder,elaacrescentou:—Olha,voufugirantesquemaisalguémmechamedeassassinaousedesculpe

por terpraticamenteme estuprado, tá?Não aguentomaisnenhuma emoção antesdasnove.

Antesdevirarparacorrerparaasescadas,eledisse:—Cuidado,Allie.—Seusolhosestavamintensos.—Existeperigodeverdade

aoseuredornomomento.—Ah,ótimo—exclamou, exausta.—Tava torcendopra vocêdizer alguma

coisadessetipo.

Allie jamais teriautilizadoestapalavra,masela seescondeunoquartoduranteboaparte damanhã.Mas antes do almoço já tinha terminado todo o dever de casa eestavaolhandoemvolta,procurandoalgumacoisaparafazer.Eestavacomfome.

Incapazdeencararmaisumarefeiçãonasalalotada,eladesceuumpoucoantesdamaioriadosalunos,pegoualgunssanduíches,guardando-osnabolsacomalgumasgarrafasdeáguaeumamaçã.

Mas ao atravessaro corredorpara aportada frente,umgrupode alunosmaisnovospassouporela,eAllieescutouumdelessussurrar:

—Olhaaíaassassina.

Algunsriram,eoutrosaolharamcommedo.Oquepoderiafazer?Nãopodialutarcontratodos.Entãofingiuquenãoouviue

continuouandando.Aodescerosdegrausdafrente,algunssegundosdepois,umadasamigasdeKatiepassouporelaedesenhouumcírculolargoaoseuredor,comoseelafossetóxica.

—Quenojo—disseamenina,olhando-adacabeçaaospésantesdeseretirarapressada.

Comacabeçaerguida,Alliecontinuou.Masogramadoestavalotadodealunosesticados sobo sol, e ela imaginou escutar sussurros e risadas ao redor.Empoucotempoestavacorrendopelagrama,cruzandoalinhadasárvores.

Longedetodomundo.Nacasadeveraneioparoupararecuperarofôlego.Estavacompletamentevazia

— não via ninguém. Sentada nos degraus, ela abaixou a cabeça até os joelhos erespiroulentamenteatéseacalmar.

Porqueessascoisassempreaconteciamcomela?Porumbreveinstantepensouque tinha encontrado um lugar onde pudesse simplesmente... viver. Onde estavasegura.Ondeeraquaseaceita.

Maserasempreamesmacoisa.Todomundosevoltacontramim.Todomundomeabandona.Queriachorar,masnãopodia.Olhandoparaasárvores,sepermitiupensarem

Christopher.Elenãodesapareceusimplesmente.Primeiroaafastou.Tratou-acomosehouvessealgumacoisaerradacomela.Comosenãoaamassemais.

Agoraestavaacontecendooutravez.Sóquedessavezeracomtodomundo.Bem.Quasetodomundo.Allie tinha Carter. E talvez devesse con ar na Rachel. Havia alguma coisa

inerentemente boa nela. E pelo menos por enquanto ainda tinha Lisa, também.TalvezatéLucas.

Então...nãoestavasozinhadestavez.Apósumtempo,percebeuque realmenteestavamortade fome.Saboreandoa

paz na clareira perto da casa de veraneio, abriu a coberta na grama e comeu ossanduíchesnocalordo sol—completamente sozinha.Semsussurros, semrisadas,semloucura.Maistardeseesticouapoiandoacabeçanabolsa.Empoucosminutosestavadormindo.

Quandoacordou,osoldeverãohaviadescido,eelaagoraestavasobasombraquerapidamenteesfriava.

Juntandoascoisas,voltouparaaescolacomalgumarelutância.Suatardedepaztinhasidotãoagradável,nãoestavaprontapara lidarcomasituaçãonaqualestava

metida.Aproximando-se da casa, percebeu que era mais tarde do que pensava — o

gramadoestavavazio,enocorredorpôdeouviroagitodasaladerefeições.Deviaterpassadodassete;todomundoestavajantando.

Subindoasescadasparaoquarto, sentiuumapontadade fome,emseguida selembroudequetinhaseparadoumsanduícheeunsbiscoitosparaojantar.

Nãovouprecisarencararninguématéamanhãdemanhã.Sabiaqueestavasendocovarde,masnãoseimportava.Contudo, na medida em que a noite avançou, os defeitos no seu plano se

tornaram claros. Não falava com ninguém desde as oito da manhã. Não tinhatelevisão, computador nem video game. Tinha passado o dia lendo, e dormiradurantehoras.Àsonzeemeiaestava sentadanaescrivaninhaolhandoparaa janelaaberta,despertaemuitoentediada.

Luzes foram se acendendo nos quartos ao redor, pois os alunos tinhamregressadodosjogosqueelaosouviupraticandonosgramados.HámeiahoratinhaescutadooberroásperodeZelaznyanunciandoo“Toquederecolher!”,seguidodeumbaixoresmungodevozesepassosnocorredordoladodeforadoquarto.

Agora,deslizandopelaescrivaninhaparaoparapeito,Alliesaltouparaorebordo,menostimidamentedoquedaúltimavez.Suasaiabateucontraascoxasnabrisafriadanoite.SeguindoocaminhoqueCarterhaviamostradono mdesemanapassado,Allietevequepassarporalgumasjanelasparapercorrerorebordoatéopontoondeotelhado se inclinava em um ângulo suave, para poder subir.De lá atravessaria emsegurança o telhado até a construção principal.Ali umponto semelhante formavaumasaídanaturalparaumrebordoquepassavapelasjanelasdosmeninos.

Masalgunsalunosaindaestavamacordados—aindahavialuztransbordandodasduasjanelaspelasquaisteriaquepassarantesquepudessechegaràrelativasegurançadotelhado.

Aochegaràprimeira, espioucautelosamenteatravésdeumcantodovidro.Asluzes estavam acesas, mas o quarto parecia vazio, e ela atravessou, soltando arespiraçãosomentequandojáotinhaultrapassado.

A janela seguinte estava totalmente aberta. Ao se aproximar escutou vozes erisadas.Espiandoointerior,viutrêsmeninasconversando.Umadelas—umagarotabonitacompelemorenaecabeloslisoseescurosquebatiamacimadosombros—estavasentadanacama,nafrentedajanela.Allieareconheceucomoumadaspuxa-sacosdeKatie.

Asoutrasduasestavamnochão,decostasparaela.Mesmoportrás,oscabeloscurtoselourosfaziamcomquefosseimpossívelnãoreconhecerJo.Agarotaaolado

delatinhaumrabodecavaloruivovívidoecaracterístico.Katie.OqueaJoestáfazendocomela?Penseiqueaindaestivessenaenfermaria.Estarrecida,Alliesesegurounostijolosetentoudecidiroquefazer.Asmeninas

pareciamrelaxadasepoderiamconversardurantehoras.Seria impossívelpassarpelajanela sem que a garota na cama a visse. Mas não podia subir no telhado daqui.Estavapresa.

Estava comos dedos doídos pelo esforçode se segurar nos tijolos, e tentandoencontrar uma maneira de mudar de posição no rebordo estreito para car maisconfortável, entãonãoestavaprestandomuita atençãoquandoaspalavrasdeKatieflutuarameelademorouuminstanteparaperceberdequemestavafalando.

—...eeuachoquealgumacoisatemqueserfeita—diziaKatie.—AIsabellenão tem o direito de deixar alguém como ela solta entre nós.Não sabemos nadasobreela.PrimeiroaRuth,edepois...bem.Elapodiatertematadonaqueletelhado,Jo.Éummilagrequetenhasobrevivido.

Espera.Oqueelaestádizendo?EsperouparaqueJodissessequeKatieestavalouca.—Euachavaqueelafosseminhaamiga—disseJo.—Masagoranãocon o

nemumpouconela.Acenanotelhadofoiassustadora.Eupodiatermorrido.Eu salvei sua vida! Allie cou olhando para a parede na frente dela, como se

pudesseperfurá-lacomosolhos.—Claroquepodia—disseKatie.—OlhaoqueaconteceucomaRuth.Nãoé

nenhuma coincidência que aAllie não tenha idobuscar ajuda antes.Ela subiuprapoder carsozinhacomvocênummomentovulnerável.SóDeussabecomovocêsobreviveu.

— O Carter também estava lá. — A puxa-saco falou, soandosurpreendentementerazoável.

—É,oCarterdefatomeajudou...—disseJo,incerta.—Masporqueelenãoimpediueladeteempurrar?—perguntouapuxa-saco.Empurrarquem?Ninguémfoiempurrado!—Porqueeletáapaixonadoporela.—AvozdeKatie transbordoudesprezo,

masAlliesentiuocoraçãoparar.Eleestáapaixonadopormim?Allie sorriu tolamentepara aparedediantede si.

Sério?—Eletambémjáestáacabadoaqui—concluiuKatie.Allieparoudesorrir.—Agentenuncadeveriateraceitadoele—prosseguiuKatie.—Nuncaentendi

aobsessãodaIsabellecomessecara.Olugardelenãoéaqui.Elenãotemlegado,nãocomo ela.Os padrões estão caindomuito.Vou contar promeu pai, ele tem queinterceder.

Seutomsarcásticopareceudivertirapuxa-saco.—IssodeveassustaraIsabelle—riu.—Émelhorque assuste.Ele édo conselho—declarouKatie.—E Jo, você

também precisa escrever pro seu pai. Ele é muito in uente. Conta pra ele o queaconteceuno telhado,queumaalunanova louca tentou tematar, eque a Isabellenãoestáfazendonadaprateproteger.

Allieprendeuarespiração,esperandoqueJodissessequeestaeraumaideiatola.Quenãoparticiparia.QuesabiaqueAlliemereciaestaraqui.

—Tudobem—disseJo.Tudobem?,Alliepensou,traída.Tudobem?Suamimadinha...Alguémbateuàporta.Allieseinclinouparaespiarpelabeiradajanela.Julesestavanaentrada.—Katie,Ismay,podemvircomigoumsegundo?Precisoconversarcomvocês.

—Julespareciaséria,pensouAllie,masKatiesimplesmenterevirouosolhos.— Sério, Jules? — Ela se levantou e passou pela monitora, cada passo

transbordandoirritação.—Quecoisamaischata.Oqueseráqueelaquer?,pensouAllie,observando-assair.Apuxa-saco,queAllieagorasabiaqueprovavelmenteeraIsmay,foi logoatrás.

Joaseguiu.Apesar de estar oprimida pelo desejo de se jogar no quarto e exigir uma

explicação da ex-melhor amiga, Allie esperou exatamente onde estava. Assim quedesapareceramdevista,passoupelajanelacomoumaFúria.Algunssegundosdepois,estavasubindootelhadoparaoprédioprincipaleemseguidadescendopelodecliveparaajanelaabertadeCarter.

Eleestavasentadoàescrivaninhatrabalhandoenãoanotoulogodecara.Allie examinou o rosto dele— assimilando a pele clara e os cabelos escuros e

lisos ligeiramente despenteados. A maneira como seus longos cílios projetavamsombras em forma de pena nas bochechas. Gostava das mãos do rapaz — tinhadedoslongos,porémfortes;asunhaseramquadradaselimpas.

Sentiuumcalorinesperadoseespalharpelocorpoaoobservá-lo.Eleémuitoencantador...Como se tivesse escutado os pensamentos dela, Carter levantou o rosto e os

olharesseencontraram.Comumgritodeespantoele se levantoutãodepressaqueacadeiracaiu.Allie

tentounãoriraltoenquantoelevoltavaàescrivaninhaeolhavapelajanela.—Allie?—Carter pareceu envergonhado e irritado, apesar de ela achar que a

irritaçãoprovavelmentefoisóparaencobriravergonha.—Quediabos...?—Oi—sussurrouela.—Nãoconsigodormir.Quersairprabrincar?Eleabriuajanela.—Vocêémaluca.Entraaquiantesquevocêsemate.—AKatieétãovaca—reclamouaosubirnamesa.Carterergueuassobrancelhas.—Nãotemoquediscutir.—Vocênãoestáentendendo.—Alliefoideumladoparaooutronoquarto.

—Ouvielafalandopelajanela.Elaestátentando“acabarcomagente”eodeianósdois, e agora estáplantandopensamentos terríveis ameu respeitona cabeçada Jo;queeutenteimatarelanotelhado.AchoqueelaestáportrásdessesboatosterríveissobreaRuth.

EnquantoAlliediscursava,elefechouajanelaatrásdela.Emseguidalevantouacadeirademadeiradochãoeaajeitousobamaçanetadaportadoquarto,testandoparaverseestavaestável.

Finalmentesevoltouparaela.—Oqueexatamentevocêouviu?Elacontouoquetinhaacontecidonaquelamanhã—comKatieeasamigas,e

sobre como Rachel já sabia de toda a fofoca antes das sete. Os olhos de CartercerraramquandoAlliemencionouaintervençãodeSylvain,maselenãodissenada.AofalarsobreoquetinhasepassadonoquartodeKatie,orostodeleescureceu.Elapôdeperceberqueeleestavatentandomanteracalma.

—Tudobem,entãoexistemduaspossibilidades—falouCarter.—Ounãofoielaqueiniciouoprimeiroboatoesóestáseaproveitandoparaespalharmaisalgunssobre você e a Jo, ou foi elaque espalhouoprimeiro e essenovo só fazpartedoplanomaligno.—Cartersocouapalmaesquerdacomopunhodireito.—Essavacasocialite.

— O que a gente faz? — perguntou Allie. Então pela primeira vez prestouatençãoaolugarondeestava.—Eporqueoseuquartoémaiordoqueomeu?

Ele tinhaduasprateleirasde livros contraumadela, e espaçoparaumacadeiraextranocanto.AopassoqueasparedeserambrancascomoasdoquartodeAllie,todos os tecidos no quarto tinham tom azul-escuro, atribuindo um clima maismasculino ao cômodo.Allie notou que todas as prateleiras erampreenchidas comlivrosmuitoutilizados.Equehaviaumavelhaboladefutebolnacadeiraextra.Elaapontoupara a camamuitobemesticada e ele fezque simcoma cabeça.Allie se

sentoueesticouaspernas.—Estouaquihámaistempo—Carterdissedistraidamente.Elepuxouacadeiradaescrivaninhaesesentoudiantedela.— Essas fofocas são pra causar o máximo dano possível, até para te fazerem

deixaraescola.Mepareceumacampanha.Praselivrardevocê.Alliedeslizouparaafrenteatéosjoelhospraticamentetocaremosdele.—Tudobem,Carter.Chegade segredos e de toda essa babaquice.Chegou a

hora.Mefaladesselugar.—Allie...Carterseinclinouparalongedela,masAllieignorouoolhardealertaqueelelhe

dirigiu.— Ã-ã. Dessa vez não. Uma pessoamorreu. E outra está tentando arruinar a

minhavida aqui.Atéonde sei,quemmatouaRuthpodevir atrásdemim.Vocêsabedecoisas.Supostamenteémeuamigo.Entãomecontatudo.Agora.

Ele atravessou o quarto e se colocou contra a parede, a postura antes relaxadaagorarígidadeinsegurança,osbraçoscruzados.

—Vocênãoentende,Allie.Nãoposso.Seeufalasse,esealguémdescobrisse...—Carterbalançouacabeça.—Seriaruim.Confiaemmim.

—Comopossocon aremvocêsevocênãomecontaaverdade?—perguntou.Baixinho,murmurou:—TalvezeudevesseperguntarproSylvain...

As bochechas deCarter se avermelharam. Elemarchou de volta para onde elaestavaeseinclinou.

—Quersaberoquevocêsigni caproSylvain?Bem,euteconto.Todoanoeleescolheumaalunanovabonitinha,transacomelaeadispensa.Éissoqueelefaz.Etodasasgarotaspensamquesãotãoespeciais.Aúltimaacabouabandonandoaescolaporquetodomundoestavatirandosarrodela.MasquandoospaisdelaretiraramaofertadeumadoaçãogenerosapraCimmeria,aIsabellealertouqueelenuncamaiszesseisso.—Elecuspiuaspalavrascomosesentissenojoemdizê-las.—Entãoé

issoquevocêrepresentapraele,Allie.Amaisnovaeingênuaconquista.Quepensaqueomeninolindoericoescolheuela.Sóela.

—Para!—Allieoempurroueselevantouemumpulo.Tinhaacabadodefazeraspazes comSylvain, e elepareceu sincero.—Se isso é verdade,porquenãomecontouantes,Carter?

Estavamapoucoscentímetrosumdooutro,ambosfuriosos.AlliepodiasentirnorostoarespiraçãodeCarter.

—Eutentei—declarou.—Só...nãoacheiquefosseacreditaremmim.Maselanãoiadeixá-loescapartãofacilmente.

— Pelo que sei, você também é um arrasador de corações. Como o que oSylvainfazédiferentedoquevocêfaz?

Elefezumacareta,masnãodesviouoolhar.— A diferença é que o Sylvain faz de maldade. Eu não quero machucar

ninguém.Sóestouprocurandoapessoacerta.—Aspessoasdizemquevocêgostadetransasdeumanoitesó—disseAllieem

tomdeacusação.—EssaspessoassãoasmesmasquefalamquevocêmatouaRuth?Nãotinhapensadonisso.— Tudo bem — concedeu. — Então me diz. O que falam sobre você é

mentira?Eleestavacomosolhoscoladosnosdela.— É, Allie. É mentira. Ou no mínimo um exagero. Eu ganhei essa... bem,

reputação,euacho...porquese cocomalguémepercebodecaraquenãovaidarcerto,terminologo.Eapessoanuncaéacerta.—Seusolhosnãopareciamescondernadadela, elaviuapenasvulnerabilidade.—Nãoqueromachucarninguém,Allie.Nãoqueromesmo.Sóqueroameninacerta.

Estandotãopróximadele,elaimaginouquepudessesentirocalordocorpodeleatravessandooespaçoentreosdois,esemsaberexatamenteporqueestavafazendoisso,estendeuamão,comapalmaviradaparaeleeosdedosabertos.

—Tudobem.Acreditoemvocê.Desculpa.Carterpressionouapalmanadela.—Obrigado—dissesuavemente.—Peloquê?—Poracreditar.Eleolhouinterrogativamenteparaasmãosdosdois.—IssoéalgumaespéciedecoisaquesefazemLondres?Quando Allie riu, Carter entrelaçou os dedos nos dela. Ela sentiu arrepios

instantaneamente.—Vocêsdacidadegrandetêmtodasessastradiçõesloucas—disseele.—É—elasussurrou,suagargantafechando.—Vocêsdocamponãosabemo

queestãoperdendo.—Foioque queisabendo.E,vocêsabe,umdia—Carterpuxouamãodela

atéeladarumpassoemdireçãoaele—eugostariamuitodedescobrir.Os rostos estavam tãopróximos agoraque foi inevitável—quando ele tocou

muitosuavementeoslábiosnosdela,elasuspirou,eemseguidacolocouasmãosnanucadele,puxandosuacabeçaparabaixo.

OcalordabocadeCarteraalegrouquando,comumgemidoderendição,eleaabraçou, seus lábios semovendo emdelicados beijinhos de borboleta pelo queixodela.

—Euqueriafazerisso—sussurrouaoouvidodela—hámuitotempo.OcorpointeirodeAllietremeueelaopuxoucommaisforça.Calorseespalhou

porseucorpo.Osbeijosdeleerammaisintensosagora,comosefossedevorá-la.Derepenteeleseafastoucomclaroesforço,sedistanciandoomáximopossível

dentrodoslimitespermitidospeloquarto.Colocou-secontraaparedeoposta,comosolhosescuroseoscabelosbagunçadosondeosdedosdelahaviampassado.

Eleestavaofegante,eelasoubeoqueCarteriadizerantesquefalasse.—MeuDeus,detestotomaraatitudeadulta,masagentedeveria...—Não,temrazão.—Ficaramseolhandoporuminstante.—Muitobem—

disseela.—Então.Temisso.—Sim.Temisso,absolutamente.—Carterriu,umrisoíntimoecaloroso.—

Você... ca aí um minuto, se não tiver problema. Agora, do que a gente estavafalandoantesdesermos...interrompidos?

OsorrisodeletinhaumimpactoquasetãofortesobreocorpodeAlliequantoseubeijo—tinhaasensaçãodequeeraaúnicameninanoplaneta.Estavadifícilseconcentrarnaspalavrasdele.

—Euestava...achoqueestavatepedindopramecontartudo—disseela.OsorrisodeCarterdesbotou.Allielamentouvê-lodesaparecer,masaconversa

precisavaacontecer.—Eutenhomotivospranãotertecontadotudo,Allie.Nãoésóporqueeusou

umbabacaquequeresconderascoisasdevocê.— Eu entendo. — Estavam mais calmos agora, e ela teve a sensação de que

estavaouvindode fato.—Masachoquepreciso saberondeestou.Qualéadessecolégio.Pessoasestãosemachucando.Nãoqueromemachucar,Carter.

Elepareceuperturbado.—Seeutecontar,quebroumjuramento.Eeumantenhoaminhapalavra.Éa

únicacoisaquepodemfalardemim.— Mas não está começando a contestar pra quem fez esse juramento? —

perguntouAllie.—Mefala,Carter.MefalasobreaEscolaNoturna.Eeujuroquenuncavourepetirissopranenhumaalmaviva.

OsolhosdeCarterinvestigaramorostodeAllie,comoseestivesseprocurandoalgumsinalquelhedissessequalseriaacoisacertaasefazer.Finalmenteelesentounacadeira,apontandoparaacama.

—Émelhorsentar—suspirou.—Issopodedemorar.

–A

VINTEEDOIS

primeiracoisaqueprecisasaberéquenãosei tudo—disseCarter.—Souumnovoiniciado,comeceinoúltimoperíodo.Temumanodetreinamento

antesdeteaceitarem.—Tudobem.—Allieestavasentadanacama,abraçandoos joelhos,olhando

atentamenteparaosolhosdele.—Masvocêcresceuaqui.Devesaberalgumacoisa.—Euseioquemecontaram—revelou.—Eécoisamuitoséria.Carterapoiouocotovelonascostasdacadeira.—Esseéoprimeiropassodeumaorganizaçãomaior.Pessoassãorecrutadaspela

Cimmeriaespeci camenteparaentraremnaEscolaNoturna,porqueaspessoasdessaorganizaçãomaiorqueremelasprorestodavida,fazsentido?

Alliepareceuconfusa.—Maisoumenos...—Tudo bem, o que estou dizendo é que você começa a EscolaNoturna na

Cimmeria,depoiscontinuaemOxbridge.E,sevocêédaEscolaNoturna,vaientraremOxford,CambridgeounaLSE,semdúvida.Efazpartedeumclubelá.Então,quando se forma na universidade, vai trabalhar em uma empresa dirigida por ummembrodaorganização.EeventualmentedirigeumaempresaquecontratapessoasquecomeçaramnaEscolaNoturna.Efazoquemandam.Oqueestoudizendoé:issoéprorestodavida.

Franzindoorosto,Allietentouprocessarainformação.—Qualéonomedessegrupomaior?Elebalançouacabeça.— Não faço ideia. Não tenho certeza se tem algum nome. Simplesmente...

existe.— Então... — Allie ainda estava tentando entender. — Você está na Escola

Noturnaagora,equandoterminarvaipra,digamos,Oxford,ondevaiparticipardeumaversãouniversitáriadaEscolaNoturna.Depoisvaitrabalhare carmuitorico...nãoentendo.Issonãoaconteceriadequalquerjeito?Qualéoobjetivo?

Carterreduziuavozaumsussurro.

—Sópossotecontaroquecontampragente,Allie.EoquecontaméqueaEscolaNoturnacontrolaomundo.

—Controlao...—Allieolhoufixamenteparaele—,oquequerdizer?— Quero dizer presidentes, primeiros-ministros, membros do parlamento,

CEOs, jornalistas, as pessoas que você vê naTV, as pessoas sobre as quais lê nojornal,pessoasquecontrolamomundo.AEscolaNoturnaestáemtodolugar.

EnquantoCarterlistavaprofissões,elapareceuhesitante.—Oquê?Todoseles?— Não. Mas muitos. E em todos os níveis. A Escola Noturna comanda

corporações de imprensa. Empresas deTV.Departamentos de governo.Militares.Tudo.Estáemtodososcantos.

—Etudocomeçaaqui?—perguntouincrédula.—Carter,issoéimpossível.—Masnão sei seé sóaqui.Agentevive recebendoalunosde intercâmbiode

outroslugares,tipooSylvain.—Entãoécomoumaespéciede...conspiraçãogigante?—É.Atordoada,elaprocuroualgumsinalnorostodorapazque indicasseque tudo

nãopassavadeumapiadaelaborada.Masnãoencontrounada.—Comofunciona?Carterbalançouacabeça.—Issovaimuitoalémdoquerevelamaosneos.—Neos?—Neófitos—explicou.—Écomochamamagentenoprimeiroano.— Que constrangedor — disse ela secamente. — Então o que elesde fato

revelamavocês?—Agenterecebeagrandeoferta,todoodiscursoda“sociedadedepoder”eum

jantarchiquecomummontedecarasricosusandosmoking,quecostumavamseragente—relatou.

—Tudo bem, mas o que vocês fazem? — perguntou, franzindo a testa. —Digo,aqui,naCimmeria.Todoessetreinamentodevocês,oqueé?

Ogarotorespiroufundo.—MeuDeus,édifícilexplicar.Elestêmtodasessasteoriassobreguerraesobre

estratégiaserabasedetudo,então,seiquepareceestranho,masaprimeiracoisaquefazeménosensinarajogarxadrez.Agentepassadiasjogandoxadrez.Enquantonosalimentamcomcoisassobrecomooscavalossãoguerreiroseospeões,soldados...

—Espera,eujáouviissoantes.—Elaoencarou.—AJomedisseessasexataspalavrasháalgumassemanas.AJoé...?

—DaEscolaNoturna?—Carterpareceudesconfortável.—Nãoexatamente.Opaidelaé,eeleestáinsistindopraqueelaentre,masaIsabelleachaqueelanãoestápronta.A Jo temesses...problemas, você sabe.Entãoelesderamumpré-pré-treinamentopraela,eoGabeficadeolho.

— Quê? O próprio namorado? — Allie cou horrorizada. — Está, tipo...espionandoelapraessescaras?

—Não!—Entãoelepausou.—Bem,maisoumenos,euacho.Maselenãofingequegostadela.

—Não—Allierespondeusarcástica.—Elejamaisfariaisso.Elelevantouasmãosemsinalderendição.—Então—continuouela—,depoisdoxadrez,é...oquê?Jogosdeguerra?É

issoquevocêsfazemànoitenafloresta?Eleassentiu.—Maisoumenos.Treinamentodecombate, técnicasde evasão.Esse tipode

coisa.—Queloucura.Porqueestãoensinandoisso?Vocêssãoapenascrianças.— A guerra é uma estratégia pra vida e pros negócios. E alguns vão acabar

comandandoexércitos.Egovernos.—Carterdeudeombroscomacasualidadedequem falava de um teste de matemática. — Olha, a Cimmeria é isso, até certoponto.EtodomundonessaescolaéligadoàEscolaNoturnadealgumaforma.

CarterdirigiuumolhardiretoaAllie.—Exceto,aparentemente,você.—Excetoeu—atestouela.—Então—disse—,oquevocêestáfazendoaqui?Allie couparada,olhandoparaeleporumlongotempo.Emseguidadeslizou

paraabeiradacama,posicionadaparasaltar.—Nãosei.Masestouprontapradescobrir.Vocêestácomigo?—Emtese...—eledissecautelosamente—sim.Oquetememmente?OrostodeAllieestavavivo,comumamisturadeanimaçãoedeterminação.—Lembraqueontem,nabiblioteca,agentedecidiuqueeudeveria ngirque

não tem nada acontecendo e que ninguém está falando de mim enquanto vocêtentavadescobriroquetárolando?

Carterfezquesimcomacabeça.— Bem, esquece isso.O que quer que esteja se passando aqui, o lugar onde

vamosdescobriréoescritóriodaIsabelle.Vamoslá.Agora.—Nem pensar!—Ele pareceu chocado.— Isso é loucura, Allie. Se formos

pegosnoescritórioda Isabellevãonosexpulsar.Não tenhadúvida.Agentenunca

passariapraumaboafaculdade.Estragariatudo.—Maseuseicomoevitarisso—disseAllie,levantando-secomumsalto.—Como?—Nãosendopegos.Elasedirigiuparaaporta.—Allie...—Ela ignorou o tom de alerta deCarter e abriu a porta,mas ele

esticouobraçoporcimadelaeafechououtravez.—Esperaumminuto.Elereduziuavozaumsussurro.—Oquevocêestáprocurandoexatamente?Oqueachaquevaiencontrar?—Duascoisas—falou.—PorqueaRuthmorreu.Eporqueeuestouaqui.Quando ele não pareceu convencido, Allie levantou a cabeça de forma

desafiadora.—Euvou,Carter.Vouagora.Nãovouesperaratémaistarde,ouatéquetalvez

alguém um dia decida me dar essas informações por pura bondade. Isso não vaiacontecer.Tudo bem? Então, você vem comigo? Ou ser o futuro presidente daCimmeriaLtda.érealmentetãoimportanteassimpravocê?

Carter olhou nos olhos dela durante um longo minuto, e então pareceu sedecidir.

Eleabriuaporta.

–E

VINTEETRÊS

sseéoseupé?Ouodeoutrapessoa?OsussurrodeAlliefoitãosilenciosoquepareceudesaparecernaescuridãoem

voltadela.—Claroqueémeu—sussurrouCarter.—Dequemmaispoderiaser?Estavam caminhando nas pontas dos pés pelo corredor, da escada para o

escritóriodeIsabelle.Aoredordelesavelhacasaestavaanormalmentequieta—nãorangianemsossegava.Eracomoseestivesseprendendoarespiração.

Carterexplicouque,comopartedotreinamento,osalunosdaEscolaNoturnapatrulhavam os corredores da escola à noite, mas não constantemente. Então,durante a descida, se esconderam em um recanto na parede no primeiro andar eesperaramatéumpardesombraspassar,silenciosocomoamorte.

Depoisdisso,Carterconcluiuquetinhammaisdeumahoraatéqueapatrulharetornasse.Entãodesceramasescadas,pulandoodegraubarulhentoquasenofinal.

Agoraestavamdo ladode foradaportapraticamente invisíveldoescritóriodeIsabelle,atéteremcertezadequeadiretoranãoestavaládentro.

—Porqueelaestariaaqui?—sussurrouAllie.—Éumadamanhã.Carterdeudeombros,masseuolharinformouaAlliedequeerapossível.Depoisdenãoescutaremnadapelaporta,ele nalmentedecidiuqueeraseguro

entrar.Comamãonamaçaneta,sustentouosolhosdela.—Três—murmurou—,dois...um...—girouamaçaneta.Aportaestavatrancada.CarterpraguejoubaixinhoeAllieconteveumarisadinha.—PlanoB?Alcançandoobolso,elegirouumarame.—Doisminutos—disse.—Podemarcar.Inclinando-se para baixo, ele en ou o arame emuma fechadura queAllie não

estava enxergando, eomoveu suavemente comaspontasdosdedos, atéque, semaviso,aportaabriu.

—Uau.Menosdedois—revelouadmirada.—Ondeaprendeuafazerisso?

Eleolhouparaela.—Ondevocêacha?—Naigreja?Orapazsorriueempurrouaporta.Abriucomumruídocomoumsuspiro.—É,tábom.—Então—sussurrouAllie entrandono escritório—, comoarrombarportas

ajudaaformarumprimeiro-ministromelhor?Fechandoaportaatrásdeles,Cartertirouumacapadecasimiradecorcremede

umadascadeirasdecouroeapressionoucontraabasedaporta.—Nãofaçoideia—falou.Então, comum clique que pareceu ecoar na escola silenciosa, ele acendeu um

pequenoabajurdemesa.Aoladodomóvel,osdoisolharamaoredordoescritóriodeIsabelle,assimilandoatapeçariadeunicórnioemumaparede,ostapetesorientaisespessos, as prateleiras repletas de livros e revistas e osmuitos armários demognoorganizadamentepreenchidos.UmaxícaravaziadechácomoselodaCimmeriaseencontrava sobre a mesa entre as pilhas de papel. O ar tinha um vago cheiro doperfumecítricocaracterísticodeIsabelle.

—Estoumesentindoumacriminosa—cochichouAllie,derepenteincerta.—Ah, não se sente assim, não— disse Carter.—Agora a gente já tá aqui.

Vamosacabarlogocomisso.Alliesabiaqueeletinharazão.Eratardedemaisparavoltar.—Porondeagentecomeça?Allieestavafalandomaisconsigomesmadoquecomele,masCarterrespondeu

imediatamente.—Eucuidodasprateleirasdelivros.Vocêolhaosarmários.Durantemeiahora trabalharamemumsilêncio apressado.Carter começouno

lado esquerdo da sala e foi de prateleira em prateleira, procurando qualquer coisaestranha.Alliesentounochão,examinandoosarmáriosbaixos.

O primeiro tinha basicamente registros de manutenção, registros telefônicos,recibos — nada que interessasse. O segundo parecia conter registros acadêmicos,provaseoutrostrabalhosescolaresdeanosanteriores.

Assimqueabriuoterceiroarmário,Alliesoubequeestavanocaminhocerto.—Bingo—sussurrou.Carterolhouparaela.—Oqueé?—Registrosdealunos.Orapazparouoqueestava fazendoe foi atéAllie.Procurandoos registrosde

Ruth,elacomeçouapassarpelosJs.Eentãoparou.—Nãoestáaqui.Carterpareceuconfuso.—Temqueestar.Procuraoutravez.—Jansen—murmurouAlliebaixinho.—J-a-n-s-e-n.Não.Nãoestáaqui.—Podeserqueestejanolugarerrado,oucoisadotipo—falou.—Voltapara

ocomeço.Impacientemente,Allie folheouaspastascuidadosamenteetiquetadas,passando

pornomesconhecidos,assimcomoporoutrosquenuncatinhaouvido,atéchegaraumqueafezparar.

—Achou?—perguntouCarter.—Não...Éomeu.Aspontasdosseusdedosestavamemumapastagrossacomseunomeescritono

topocomtintapreta.—Pega.Allieouviuatensãonavozdele.—Vocêacha?—perguntouela.—Duascoisas,lembra?—disseele.—Estamosprocurandoduascoisas.Comrelutância,ela separouapastaeolhouorestodosregistros,pausandono

quedizia“CarterWest”.—Queroseu?Balançandoacabeça,dissecurtamente:—Jáseioquediz.—Tudobem.—Allieolhouoresto.—ApastadaRuthnãotáaqui.—Devemtertirado.—CarterfoiatéamesadeIsabelle.—Podeestarnamesa

dela,vouprocurar.Vocêolhaoseu.Allie cou sentada no chão, olhando para a capa da pasta, com os dedos

posicionadosparaabri-la.Agoraqueomomentohaviachegado,estavacommedo.Eurealmentequerosaberaverdade?Acimadela,podiaouviroruídodeCarterrevirandopáginaseabrindogavetas.

Estavatrabalhandocomvelocidade—elasabiaquenãodispunhademuitotempo.Abriuapasta.As primeiras páginas eram coisas normais: formulários de admissão sem

nenhuma surpresa, transcriçõesdasduasúltimas escolas.Olhando as antigasnotas,elafezumacaretaevirouapágina.

As coisas carammais estranhas.Umacópiada certidãodenascimento.Fotosdela quando criança comos pais.Uma foto dela bebê comumamulher que não

reconhecia,rindoparaacâmera.Havia uma carta endereçada a Isabelle, escrita com a letra damãe de Allie. A

meninaaseguroupertodaluzparaenxergarmelhor.Entãoperdeuofôlego.Palavrasefrasespareciampularparacimadela.

“Precisamosdasuaajuda,Izzy”,“...nãosabemosoquefazer”,“OChristopherpode ter sido levado...”, “não queremos envolver a Lucinda, mas achamos quechegouahora...”,“...perigo...”

“Precisamosdasuaajuda,Izzy?”ElachamaIsabellede“Izzy”?Virou a página. Essa carta, escrita em um papel espesso e caro, continha um

bilhetecomumacaligra aelegantequeelanãoreconhecia.Adataeradejulhodesteano.

Isabelle.Admitaminhanetaimediatamente,sobProtocolodeProteção.Estareiemcontato.Lucinda

Poruminstante,Allieparouderespirar.Porqueessebilheteestánaminhapasta?QueméLucinda?Cada vez mais ansiosa, virou a página. As seguintes tinham cópias de velhos

registrosdaCimmeria,masnãoeramdela.Eramdesuamãe.Com as mãos tremendo, Allie olhou rapidamente cada página, e em seguida

passando-a.Olhandoepassando.Olhandoepassando.Aúltimapáginaeraumbilheteemumcartãoamarelado.Reconheceualetrado

bilheteanteriordeLucinda.

G.MuitofelizemsaberqueminhafilhaestáindobemnaEscolaNoturna.Estánosangue,comodizem.Ficariafelizemreceberatualizaçõessemanaissobreoprogressodelaapartirdeagora.L.S.

Allie derrubou a pasta, como se ela pudesse morder. Mas a voz de Carterinterrompeuseuspensamentosacelerados.

—Ei.Émelhordarumaolhadanisso.Seu tom era sombrio, e Allie se apressou para onde ele estava, segurando um

papelsobalâmpada.ElaespiouporcimadoombrodeCarterparaenxergar.Quandoterminoudeler,olhouparaele,aturdida.

—MeuDeus,Carter.Oqueagentevaifazer?

Depois disso, não caram muito tempo no escritório de Isabelle. Allie devolveurapidamenteapáginaparaolugarnoarmário,enquantoCarterajeitavaamesa.Eledobrouacapa,acolocoudevoltanobraçodacadeiradecouroeemseguidaapagoualuz.

Osdoisseinclinaramcontraaporta,escutandoduranteoquepareceuumlongotempo, em seguida ele abriu a porta e saiu enquantoAllie esperava.Quando tevecerteza de que o corredor estava vazio, voltou para buscá-la. Fecharam a porta,congelandoquandoocliquedofechovoltandoparaolugarecooucomoumgritonaquelesilênciosobrenatural.

Era uma e meia da manhã. Se fossem pegos no corredor agora, não teriamnenhumadesculpa.

Sótinhamdado12passosquando,semaviso,Carterparou.Estendendoobraçoaodobraremaesquinaemdireçãoàescadaria,eleconteveAllie.Depoisdeolharemvolta, o garoto foi para a escuridão embaixo da escada; não precisou dizer umapalavra—elaestavalogoatrásdele.

Puxando-a até que estivesse com o corpo pressionado contra o dele, Cartersussurrouquaseemsilêncioaoseuouvido.

—Temalguémvindoaí.Comacabeçanoombrodele, inalandoocheirodecaféecanela,elaassentiue

virouparaquepudesseveroqueestavaacontecendoemvolta.OsbraçosdeCarteraenvolviamprotetoramente.

Mas então ela tambémouviu os passos.Muito silenciosamente, alguém vinhapelocorredornadireçãodeles.

Allieprendeuarespiraçãoetentoufazerocoraçãobatermenosacelerado.Assistiram enquanto uma gura sombria passou por eles, foi até a porta do

escritóriodeIsabelleetentouamaçaneta.Aodescobrirqueestavatrancada,a gurasedeteveduranteuminstante,comoseestivesseconsiderandoasopções,antesdeseretirar.

QuandoAllieolhouparaCarter comumolhar interrogativo, elepressionouodedonoslábiosdela.Nãosemexeramdurantecincominutos,eentão,depoisqueorapazsaiueolhouemvolta,pegouamãodelaeseapressarampelasescadas.

Conseguiram atravessar o corredor vazio da ala feminina sem serem vistos,chegaramaoquartodeAllie,ondeelafechouaportaatrásdeleseacendeuoabajurdaescrivaninha.

—Quemera?—sussurrouela.

—Nãovi—disseCarter.—Masestavacomuniformedaescola.Entãoéumaluno.

—Achaqueeleviuagente?—perguntou.Elebalançouacabeça.—Nãoolhoupronossolado.Allierelaxouumpouco.—Achoquenãosomososúnicostentandodescobriroquerealmenteandase

passandoporaqui.Aadrenalinaqueaimpulsionouduranteasatividadesnoturnaspareceuescoardo

seucorpodeumavezsó,eelabocejoulongamente.—Nósdoisprecisamosdormir—disseCarter.—Amanhãtemaula,a nalde

contas.—Masagenteprecisaconversarsobreissotudo.—Allietentouseforçara car

maisacordada.—Minhapastaeaquelacarta...—Meencontranacapelaamanhãdepoisdaaula—disseele.—Eeuvoupro

caféàssete,vainamesmahoraeeuprotejovocêdosfofoqueiros.Enquantoisso...dormeumpouco.

Carterabriuajanela,emseguidasevoltounovamenteparaela.—Maisumacoisa.Hojemaiscedo?Nomeuquarto?Allieenrubesceueesperoueledizerquetinhasidoumerro.—Foiincrível.—Elesorriuaquelesorrisosexy,comocabelocaindonosolhos,

epulouajanela.Uma inundaçãode calor se espalhoupelo corpodela.Todoo estresse doque

tinhamdescobertoestanoitedesapareceueelasorriunaescuridão.—Tambémachei—disseela.

Namanhã seguinte,Alliedesceuparao cafédamanhãprecisamente às setehoras.Carterestavaesperandoporelanasaladerefeições.

— Milady está pronta para sua escolta? — perguntou Carter quando ela seaproximou.

—Miladypoderiaassassinarumsanduíchedebacon—disseela.—Quantadelicadeza,Milady.Entraramnasaladerefeiçõesrindo,massentiramafriezadoambientenamesma

hora.—Nossa—murmurouCarter.Intimidadapela sensaçãodeque estavam todosolhandopara ela,Allie foi um

poucomaisparapertodeleenquantoseserviamnobufê.Aoseapressaremparaonde

Rachel estava sentada comLucas,Alliepôdeouviros sussurros e risadas em tornodeles.

TantoRachelquantoLucaspareciampreocupados.—Quedroga—disseLucasaosentarem.—Oqueagentevaifazer?—AchoqueaIsabellevaiterqueintervir—disseCarter.—Nãotemmuito

queagentepossafazer,anãoserqueaAlliequeiraqueagentesigaelaportodososcantos.

—NormalmenteaIsabellenãopermitiriaqueessetipodecoisasaíssetantodocontrole—concordouRachel.

—Talvezelaestejatentandonãodemonstrarfavoritismo—sugeriuLucas.—TodomundosabequeelatemuminteresseespecialemAllie.

— Que seja. — Allie colocou o bacon no pão. — Só o que sei é que vouquebraraKatieseelachegarpertohoje.

Dandoumamordidagigantesca,elalevantouoolharparaverCarterbalançandoacabeça.

—Quê?—perguntoucomabocacheia.—Nada—respondeuele.—Achoqueoque ele estápensando—disseRachel, sorrindo—é “essa é a

nossagarota”.—Atenção, por favor.—A vozde Isabelle ecoou sobre a agitaçãoda sala de

refeições.Osilênciodominouoambiente.Nafrentedasala,comumcasaco lavandaaberto sobreumasaiabrancaeuma

blusa, comum lençode seda sobreoombro,pareciamais sériadoqueAllie já selembravadetervisto.

—Gostariadelembraratodososalunosquebullyingébaseparaexpulsãocomumaúnicaofensa.Esperonãoterquerepetirorecado.

Aosair,seuspassosecoarampelasalalotada.Rachel, Carter e Lucas assentiram quando Allie apontou para si mesma e,

mexendoabocasemfazerbarulho,perguntou:“Foiporminhacausa?”Maistarde,aosedirigiremparaasaulas,estavamdivididossobreseIsabelleteria

feito ou não o su ciente para acabar com a fofoca. Rachel achava que não, masCartereLucasacreditavamqueelafizeratudoquepodiaatéagora.

Aoentrarnaauladebiologia,elaviuqueJo,livredaprisãodomiciliar,jáestavasentadaemseulugarhabitual—oscabeloslourosdefadacuidadosamentepenteadoseaexpressãovencida.

Allienãosabiacomoirialidarcomisso.Nãopodiademonstrarquetinhaouvidoalgoontemànoite, porque como explicaria isso?Enãopodiamudarde lugar—

Jerryiriaquerersaberomotivo.Amelhorcoisaasefazer,concluiu,seriasersuperior.Senãopuderdizernadabom,nãodiganada.EntãosesentouemsilêncioaoladodeJoevirouligeiramenteacadeirademodo

quenão cassede frenteparaela.Contudo, Joclaramente tambémhaviadecididoser superioreasduas sentaram, ladoa lado, semdizerumapalavradurante longosseteminutos,atéJerryentrarecomeçaraaula.

Depoisdaaula,Allieselevantoudolugarefoiparaocorredor.Enãoolhouparatrás.

Noalmoço,JoeGabeevitaramamesahabitual,esesentaramemumcantodasala.Allie se juntou aRachel e Lucas, que, ela observou, estavam sentando juntoscommaisfrequênciaultimamente.

—Oi—disseela,largandoabolsa.—Oquehácomeles?RacheleLucastrocaramumolharqueelanãoconseguiutraduzir.—Afofoca—falouRachelapósumsegundo—équeaJoestavatãobêbada

quenãoconseguemaislembraroqueaconteceunotelhado.Entãoresolveuacreditarnoquedizemsobreosacontecimentos.

—Ah, ótimo—disseAllie, sentando.—Então agora ela acha que eu tenteimatarela?

Osdoisfizeramquesimcomacabeçaemsincronia.—Seriaengraçadosenãofossecomigo—suspirouAllie.—Nãoécomigoeeunãoachograça—ofereceuRachel.—Vocêsnãoacreditamnela?—perguntouAllieesperançosa.—Dejeitonenhum—disseLucas.—Agenteconheceelabemdemais—afirmouRachel.—Olha,voutentarfalar

comaJomaistarde,praverseconsigocolocaralgumjuízonacabeçadela.—Oupelomenosfazercomqueelaselembredoquerealmenteaconteceu.—

CarterpuxouacadeiraaoladodeAllieesentou.—Tipocomoela coutãobêbadaa ponto de quase matar todo mundo. Se quer saber minha opinião, isso é bemconveniente agora que todo mundo sabe que alguma coisa de louco aconteceunaqueledia.Derepenteelanãose lembrade teragido feitoumadoidanodiaemquefoisolta.

—Nãoécaracterísticodelanão lembrar—disseLucas, franzindoo rosto.—Nasoutrasvezesquefezisso,elasempreselembrou.

AdúvidanavozdelefezAlliesentirumapunhaladageladadepreocupação.EseatéoLucaseaRachelcomeçaremaduvidardemim?AísósobraríamoseueoCarter.

Comosesoubesseoqueelaestavapensando,Carterdeuumbeijonacabeçadela.

—Não deixa ela te abater— sussurrou ele, e Allie se viu sorrindo apesar detudo.

TinhaconsciênciadequeLucaseRachelestavamolhandoeentendendotudo,equelogoaescolainteirasaberiaqueestavamjuntos.

—Euestoubem—disseela,comavozfirme.Eeraverdade.

Durante o resto do dia,Allie não podia dizer que tinha sofrido bullying. Em vezdissofoitratadacomoumfantasma—comosenãoestivesselá.

Ninguémde foradoseugrupo imediatodeamigos faloucomela.Mesmoaopassar por Katie no corredor, a menina simplesmente virou a cara e continuouandando.

EnquantoAllievoltavaparaoquartoapóso mdasaulas,Julesaabordounocorredor.

— Só queria dizer que sinto muito pela maneira como todos estão secomportando—disse amonitora.—Conversei ontem com a Isabelle, e ela deuadvertênciasescritasaKatieeasamigas.

—EntãoachaqueaKatieestáportrásdasfofocas?—perguntouAllie.—ConheçoaKatiedesdesempre,Allie.—Julespareciafrustrada.—Masfalei

praelaquenãopodemosseramigasanãoserqueelaconserteisso.Émuitoinjustocomvocê.Eissonãovaiacontecernaminhafrente.Elasabequaléaminhaopinião,eesperoqueelaparecomisso.

—Obrigada, Jules.—A gratidãono tomdeAllie era sincera.—É estranhoouviraspessoasdizendomentirassobrevocê.

—Sealguémteassediarou zerbullying,falacomaIsabelleoucomigo—disseJules.—A gente resolve.Mas, olha, eu sei o que aconteceu entre você e aKatieontem,eprefiroqueissonãoacabeemsocos.

Allieenrubesceuculpada.—Tudobem,tudobem...eutentomecontrolar.QuandoJulessefoi,Allievestiuasroupasdecorridaesaiu.Eramaisumatarde

anormalmente quente— ela sentia o sol em seus ombros enquanto corria para acapela, e decidiu fazer o caminho longo, passando também pela casa de veraneio.Curtiutantoacorridaquequaselamentouquandochegou,masaomesmotempo...tinhaoCarter.

Aoabriroportãoelaoviuimediatamente,encostadonaportaanciãdemadeiradaigreja,olhandoparaela.

—Oi—cumprimentouela,correndopelatrilhadepedra.—Oipra você também—respondeu ele.—Bemnahora.Olha, antesde a

genteentrar,temumacoisaqueagenteprecisafazer.Alcançandoamãodela,eleapuxouparaperto,e,àsombradaentradaabaixoua

boca para a dela. Ela sorriu nos lábios dele e o puxou mais para perto, até quepudesse sentir o calor do corpo dele no seu. Incentivado pela resposta dela, ele abeijou com mais urgência, segurando-a tão rme que seus pulmões pareceramcomprimidos.Quandoparou,umminutodepois,elaestavavermelhaesemar.

—Quebomquejáriscamosesseitem—declarouAllie.—Tambémacho.—Elesegurouaportaparaela.—Entãoagoraesperoquea

genteconsigafocarnascoisasruinseassustadorassemsedistraircomasromânticasedivertidas.

Suavozecoounasparedesdepedraenquantoelechegouparaoladoparadeixá-laentrar.Aopassarporele,Allieparouparapassarosdedostentadoramentenobraçodele,doombroàspontasdosdedos.Arrepiosseformaramnocaminho.

—Ã-hã—disseela,rindo.Eletentouagarrá-la,maseladançouparaforadoseualcance,rindo.—Naigrejanão,Carter.Agentevaiproinferno.—Entãonãomedeixacairemtentação—disseele, seguindo-aalgunspassos

atrás.—Justo—concordouAllie,aindamuitolongedele.—Contandoquevocême

livredomal.—Negóciofechado.AlliedeixouqueCarteraalcançassepertodopúlpito.Eleapuxourindoparaum

bancoescurodemadeiraaoseulado,comobraçosobreseusombros.—Esselugaréincrível—elaexclamou,olhandoaoredor,enquantoopolegar

de Carter levantava a manga curta da sua camiseta e acariciava a pele morna. —Nuncavinadacomoessaspinturasemtodaaminhavida.

—Achoquemuitasigrejaserammaisoumenosassim.—OslábiosdeCarteragoraestavamnaorelhadeAllieeelafechouosolhos,sentindoocorpotremer.—Masmudaram.

—Quechatopraelas—sussurrouAllie.—Nãoé?Obeijofoimaispassionaldestavez,eapósuminstanteelecolocouAllieemseu

colo.Tirandooelásticodorabodecavalodela,elepassouosdedospelocabelodagarotaatécaíremaoredordorostodeleemondassuaves,enquantoelaseinclinavaparaafrenteparabeijá-lo.Virandoacabeça,elepassouoslábiossuavementeentreaorelhaeocantodabocadeAllie.Arespiraçãodelaveioemarfadascurtas.

Mas,apósalgunsminutos,elaseafastou.Comumsuspirolamentoso,Cartera

soltoueeladeslizoudocolodorapazparaobancoaoladodele.—Nãoadiantounadariscarissodalista—disseelacomumsorrisotorto.—Euteaviseisobremedeixarcairemtentação—relembrou.Allieriu.—Comoeupoderiatetentar?Souumaatletatodasuada.Elepuxouumchumaçodoseucabelosolto.—Tentadora.Masapósuminstanteelesuspirou.—Muitobem,entãoagoraagentedevedestruiroclimaadorávelqueagente

criouefalarsobreoquetáacontecendo.TodoocalorpareceuabandonarocorpodeAllieeelaestremeceu.—É,vamosfazerisso.Temcertezaquenãotemmaisninguémaqui?—Estamossegurosaqui—disseeleconfiante.Vamoscomeçarcomasuapasta.Allieconcordou.—Era estranha.Tinha todas as coisas normais do tipo a-Allie-não-é-boa-em-

inglêseummontedepapéisquenãoerammeus.Carterpareceuconfuso.—Tipooquê?—Tipo...osregistrosescolaresdaminhamãe.—Olhouparaelecomumolhar

significativo.—Daqui.—Daqui...tipo,daCimmeria?—Avozdeleseelevouincrédula.—Exatamente.Então, aoqueparece,minhamãe tambémnãoeramuitoboa

emciênciasquandotinhaaminhaidade.Ah,elaestudounaCimmeria,umaescolada qual ela ngiu que nunca tinha ouvido falar até a semana emque vimpra cá.Aliás,elaconheceesselugartãobemquechamouaIsabellede“Izzy”emumacarta.

—Iz...?—Carteraencarou.—Quediabosestáacontecendo?—Nãofaçoideia.Mastemmais.Tambémtinhaumbilhetenaminhapágina

deumapessoachamadaLucindaparaaIsabelle,datadodeummêsatrás.Ordenavaqueelaadmitisse“minhaneta”imediatamentee“aprotegesse”.

Carterexaloucomumassobiobaixo.—NãosuponhoquevocêtenhaumaavóchamadaLucinda.—Umadasminhasavósmorreuantesdomeunascimento.Aoutramorreuhá

doisanos—relatouAllie.—ElasechamavaJane.—Então...—disseCarter.—QueméLucinda?—Allieconcluiuopensamentoporele.—Boapergunta.

TambémtinhaumbilhetecomaletradaLucindapraalgumapessoacomainicial“G”,falandosobrecomoa lhadelaestavaindobemnaEscolaNoturna.Erabem

antigo.Cartertirouoscabelosdosolhosenquantoabsorviatodasessasinformações.—Allie,seuspaisjátedisseramalgumacoisaquefosseverdade,algumdia?Elasesurpreendeuaosentirlágrimasqueimandoseusolhos.—Nãosei—disseela,forçando-asaseremcontidas.Cartersegurouamãodela.— Tudo bem, então vamos resumir. — Ele riscou cada item com uma

batidinha nas costas da mão dela. — Você é péssima em inglês. Sua mãeprovavelmente estudou aqui. A Lucinda é sua avó, ou pensa que é, e seus pais seesqueceramdefalardelapravocê,durantetodaasuavida.EquemquerquesejaessaLucinda, ela é importanteo su cientepradar ordens a Isabelle.—Eleparecia teracabado,masentãoacrescentou:—Ah,eaIsabelletemumapelidoridículo.

Alliesorriuummeiosorrisoparaele.—Éisso,euacho.—Então...nãomuitacoisa.—Não—dissedebilmente.—Nãomuita.—Tudobem, vamos deixar isso assimpor umminuto, porque parece que a

gentevaiprecisardetempoprapensaremcomolidarcomtudoisso.—Eleolhouparaavelhapinturadaárvorenaparede.—Vamosfalarsobreacarta.

AcartaqueeletinhaencontradonamesaeradeNathanielparaIsabelle,edatavade alguns dias atrás. Era curta e furiosa. “O que aconteceu na noite do baile foiapenas uma provinha do que tenho a oferecer”, dizia. “Me dê o que mereço, oudestruireiaCimmeriacomminhasprópriasmãos.”

Indicava uma data e uma hora para uma “conferência no local de sempre”. Anoiteeraamanhã,ahora,meia-noite.Masolugarnãofoidescrito.

—Oqueéumaconferência?—Alliehaviaperguntadonahora,acrescentandoesperançosa:—Temomesmoprefixodeconfraternização.

—Conferênciaéumtermomilitar—Carterhaviarespondido,virandoopapel.—Éumareuniãodeinimigosparadiscutirtermos.

—Ah—disseAllie.—Entãoéumapéssimaconfraternização.Agora,encolhidanobancodaigrejaaoladodeCarter,fezaperguntaquetinha

passadoodialheperturbando.—NósdoisachamosqueoNathanielmatouaRuth?Carterpareciasério.—Nãosei.Elesófaltoudizerissonacarta.Masomaiorproblemaquetenho

comissoé,porquê?Porqueelefariaisso?OqueelequerqueaIsabellenãoquerdar?Eporquequertantoapontodefazerumacoisadessas?

Elagirouumamechadecabelonodedoaoolharparaaárvorenaparede.— Eu li em algum lugar que a maioria das pessoas que são assassinadas são

mortas por pessoas que conhecem elas, tipo família ou namorado. — Soltou amecha de cabelo.—MeuDeus, queria que a gente tivesse encontrado a pasta daRuth.Quer dizer, e se oNathaniel é, tipo, o padrastomalvadodela, ou coisa dotipo?

Carterbalançouacabeça.—Sefossealgumacoisadessetipo,porqueestariafazendoexigênciasaIsabelle,

agindocomoseelestivessemumahistóriaeelativessefeitoalgumacoisaruimcomeleemalgummomento?Pramimnãofazsentido.

—Pramimnadadisso faz sentido—disseAllie.—Onegócio éo seguinte,temtantacoisarolandoqueagentenãosabe.Nãotemcomodescobriroqueestáacontecendoanãoserquealguémnosconte.

Carteraencarou.—Éisso,Allie!Agentevaifazerelescontarem.—Hmm...como?—perguntou,desconfiada.Eleseinclinouparaafrentecomasbochechasrubrasdeanimação.— Simples. A Isabelle vai encontrar o Nathaniel amanhã à noite. Eu sigo a

Isabelle pra reunião. Aí posso ouvir a conversa e a gente decide o que fazer emseguida.

—Ótimaideia—concordouAllie.—Euvoucomvocê.Carterolhoufixamenteparaela.—Masnãovaimesmo.—Vousim.— Allie... — Os olhos dele alertaram-na para esquecer o assunto, mas ela

ignorou.—Porquevocêdeveireeunão?Issoenvolveamimeàminhafamília,e,apesar

deeusabermaisagora,aindanãoestouentendendooqueestáacontecendodefato.—Eletentoufalar,maselalevantouamão.—Éaminhavida,Carter.Eeuqueroentenderquemtábagunçandotudo.

—Podeserperigoso.—Alliepôdeescutarafrustraçãonavozdele.—Evocêpodeserexpulsa.Allie,nãoéumaboaideia.

—Éperigoso—a rmouela.—Maseuvou.Olha,tinhaumacoisanaminhapasta que eu não mencionei. Na carta da minha mãe, ela falou no meu irmão,Christopher.Eeladiz“e seele tiver sido levado”.—Ela se inclinouparaa frente,concentrada. — Não vê, Carter? Eu poderia descobrir o que aconteceu com oChristopher.Precisoir.

PorumlongoinstanteosolhosdeleestudaramorostodeAllie.Elapôdeveromomentoemqueelecedeu.

—Tudobem—concordou,resignado.—Nãogostonadadisso.Masseique,seeunãotedeixarircomigo,vocêvaisozinhaeseencrencaraindamais.

—Obrigada!—Elajogouosbraçosnopescoçodele.—Mastenhoumacondição—apontou,segurando-a.—Agentetemquefazer

domeujeito.Combinado?—Combinado!—respondeuAllie,abraçando-omaisforte.—Agora,quantospontosagenteganhanoinfernoseprofanaressacapela?—

Carterperguntou,inalandoocheirodocabelodela.

S

VINTEEQUATRO

egurando-se no parapeito externo dos dormitórios femininos, AllieatravessoulentamenteemdireçãoaodeclivedotelhadoondeelapodiasubireatravessarparaoquartodeCarter.

Tinhaacabadodepassardohoráriodotoquederecolher.Anoiteestavaescuraesemnuvens—tempoperfeitoparafugir.

Allie já tinhapassadopelaprimeira janela—agora tinhaapenas adeKatienocaminho.Nas pontas dos pés, inclinou-se com cuidadonadireçãodamolduradajanela,paraespiaroladodedentro.

Asluzesestavamacesas,maspareciavazio.Esticandoobraçoparaalcançarooutroladodajanela,passouapressada.Vitória,pensou.Masaodaropróximopasso,elachutoualgumacoisanabeiradacalha—talvez

umatelhaouumapedra,pensariamaistarde—quebateucomforçanochão,como impacto percussivo de um pequeno tambor. Congelada no lugar, Allie nãoconseguiudecidirseseriamelhorseapressarnorestantedatravessiadotelhado—searriscandoafazermaisbarulho—ouficarondeestava,paradacomoumcadáver.

— Quem está aí? — A voz vinha de menos de um metro de distância docotovelodireitodeAllie.

Allie prendeu a respiração.Estava com suas roupas de corrida— legging azul-escura e uma camiseta da mesma cor. Somadas aos tênis também escuros, elaconcluiuquedeveriaestarpraticamenteinvisível.

PensacomoaMulher-Gato,disseasimesma.—Jo?Évocê?—AvozdeKatieperfurouanoite.—OuéaAllie,aassassina

louca?Seforvocê,Allie,sóprateinformar,vouprocuraraJulespratedenunciar.Allietentourespirarnocompassodabrisa,paraqueosomdesaparecesse.Após

alguns minutos, silêncio. Contou até cem, em seguida correu para o declive dotelhadoesubiu,saltandoparaoladodosmeninos.Apráticaestavaajudando-aasetornar mais veloz. Deslizou pelo declive daquele lado até chegar a um cano deescoamento,edeláfoiparaoquartodeCarter.

Ajaneladeleestavaaberta,aluzacesa,eCarterestavadooutroladodoquarto,esperando por ela. Allie teve a impressão de que os olhos escuros de Carter seiluminaramaovê-la.

Quandoelapulouajanela,omeninoseaproximouparalevantá-ladamesa.—Oi—sussurrouCartercomaquelemeiosorrisosexyqueadeixavalouca.—Oipravocêtambém.AlliejátinhadecididonãocontarparaeleoqueKatietinhaditosobredenunciá-

laparaJules—sabiaquenãoseriaprecisomuitoesforçoparaCarterinsistirqueAllieficassenaescolaenquantoelesaíasozinho.

Emvezdisso,ameninaesticouosbraçosepuxouorostodeleparaperto.Algunsminutosdepois,Carter levantouacabeçaparaolharnosolhosdela.Ele

acariciouabochechadeAllie.—Agenteprecisair,seguiraIsabelleedescobrirqueméoassassino.—Quelsaco—disseAllie,levantandooslábiosparamaisumbeijo.—Meualemãoépéssimo,oqueissosignifica?—murmurouele.Allieriucontraabochechadele.—Significa“porquevocêestáfalando?”.Umminutodepoiseleseafastoucomumsuspirolamentoso.—Vamosfazer logoanossaespionagemantesqueagenteesqueçaoquedeve

fazer.Allieajeitouaroupa.—Certo.Vamosdarumshowdebola.—Ui,queconvincente.—Obrigada—disseela.—Passeiodiaensaiando.Carter abriuaporta e se certi coudequeocorredor estavavazioantesdedar

passagemparaela.Desceramasescadas,parandoemcadaandarparaouvir sehaviapassosouvozes.

Na porta dos fundos, ele saiu primeiro outra vez, enquanto ela esperava nasombra,evoltouparabuscá-laquandotevecertezadequenãohavianinguémporperto.

Numritmoperfeito,elescircularamaalalesteparaafrentedacasa,seguindoarota que tinham escolhido mais cedo naquele dia. Na entrada da oresta, seabaixaram atrás da samambaia, se ajeitando para ter uma visão clara da escola.Contanto que a reuniãonão acontecesse em algum lugar atrás do prédio, estavambemposicionados.

—Agora—sussurrouCarter—agenteespera.Acimadeles,umaluacheiaprojetavaumbrilhoazulfantasmagóriconoterreno.

Sobestaluzenxergavamclaramente.Então,quandoumgrupodefigurassombreadassaiupelaportadafrentevinteminutosmaistarde,viramcadamovimento.

Depois que as guras se dirigiram à trilha que levava até a capela, Cartergesticulou para que as seguissem, e correram lentamente pelo caminho, evitandogravetos que pudessem estalar sob seus pés e denunciá-los. Carter correumais oumenos trêsmetros à frente dela, garantindo que os alvos estavam su cientementedistantesparanãoescutaremseuspassos.

Estavam perto da igreja quando ouviram vozes. Recuando, Carter agarrou obraçodeAllieeelespararamnasombradomurodopátiodaigreja.Logoàfrente,oportãode acesso aopátio estava aberto, eCarter entrou sorrateiramenteparaolharemvolta,emseguidaacenouparaqueelaoseguisse.

—Essesdramas,Nathaniel,sãoumsaco.AvozdeIsabelle.Alliepodiaouvi-lacomclareza,masnãoenxergavaninguém.

Ondeelaestava?Carter atravessouaté a árvore, evitandocom facilidade lápides,pedras eoutros

perigos,enquantoelaiacautelosamenteatrás.—Depressa—sussurrouele.Noescuro,Alliefranziuatesta.—Euestouindodepressa.Carter subiu no grande galho baixo, em seguida se inclinou para dar amão a

Allieeapuxouparaoseulado.Dessaforma,osdoisescalaramavelhaárvore,umgalhodecadavez,atéestarembemacimadoportão.Carterestavaemumgalho,eAllielogoabaixo.Elanãoconseguiavê-losemesticaropescoço,masmesmoassimpodiasentiratensãonocorpodele.Eleestavaalerta;posicionado.

Através dos galhos estreitos e retorcidos ao redor, podiam enxergar o rio quecorriaatrásdaigreja,atéolago.Aluacontribuiuiluminandoacena.

Haviaumhomemnamargem,comgramadopradobatendonosjoelhos.Tinhaumenormepastoralemãoaoseulado,paradocomoumaestátua.Isabelleestavaemfrenteaele,namargempróxima,comosbraçoscruzados.Alliepôdeverairritaçãonaposturadadiretora.

Inclinando-separaafrenteemseupoleiro,AllieestudouNathanielcomfascínio.Trajando calças escuras e uma camisa preta de manga curta, ele não eraparticularmentealtonembaixo.Tinhacabelosespessoseescuros,eóculosestilosos.Aliás, sob todos os aspectos tinha uma aparência comum.Mas transpirava poder;maispanteradoqueleão.

Desgrudando os olhos dele, Allie olhou para a diretora. Estava com roupasincomunsparaela—umasimplestúnicapretae leggingcombotasqueiamatéo

joelho.Allieteveasensaçãodequeelaestavatentandoparecerdura.—Aúnicacoisaquequerosaber,Isabelle,éisso.—AvozdeNathanielerade

barítonoenãosoavadesagradável,masalgumacoisanela fezAlliesentirmedo.—Vocêestádispostaafinalmentefazeracoisacerta?

Isabelleignorouapergunta.—O que provocou isso,Nathaniel? Pensei que estivesse satisfeito com nossa

combinação.Oventoaumentoue,poruminstante,Allienãoconseguiuouvirasvozespor

cimadoruídodasárvores.Quandovoltouaescutá-las,Nathanielestavafalando.—...entãoeuconcordeiemfazerascoisasdoseujeito.Fuipaciente.Agoraéa

minhavez.PelaprimeiravezIsabellesemexeu,caminhandoemdireçãoaorio,fechandoo

espaçoentreosdois.—Oquevocêfeznanoitedobailefoiselvagem,Nathaniel.Porquealguémte

dariaocontroledestaescoladepoisdaquilo?—Fizoquetinhaquefazer—disse.—Sevocêtivessehonradoonossoacordo,

nadadaquiloteriasidonecessário.—Oquetinhaquefazer?—AvozdeIsabelleseelevouderaiva.—Mataruma

dasminhasalunasasangue-frioeraumacoisaquevocêtinhaquefazer?Nathanielergueuumasobrancelha.—Umadassuasalunasfoimorta?Nãofaziaideia.Talvezvocêdevesseconversar

comosseusfuncionários.Ninguémfoimortopormimnempelaminhaequipe.AllieviuosombrosdeIsabelleenrijecerem.—Agargantadeumaalunafoicortadadeorelhaaorelha—disseela.—Você

estámedizendoquenãotevenadaavercomisso?Nathanieltinhaosorrisodeumpredador.—Parecequesuaescolaéumlugarmuitoperigoso,diretora.Eunãoiriaquerer

meusfilhosestudandoaqui.Isabelleoolhou,incrédula,eelelevantouamãodireita.—Juroquenósnãotivemosnadaavercomisso.Pelaminhahonra.—Suahonra...—OtomdeIsabelleeradedesdém,masalgumacoisaemsua

vozdisseaAlliequeadiretoraacreditavaemNathaniel.—Deixaeutedizeroqueachoqueestáportrásdissotudo—disseIsabelle.—Achoquevocêtávendoqueaescola é bem-sucedida. Que a maré está virando contra você e suas ideias. E quemuitos no conselho que outrora discordaram de mim agora estão reavaliando asprópriasopiniões.Masvocêétãoarrogantequeaindaquerprovarqueoseujeitoémelhor.

—Já chega disso.—Nathaniel se aproximou da água, o cachorro continuouondeestava,comosolhos xosemIsabelle.—Essassãominhascondições,Isabelle.Você vai falar pros membros do conselho que mudou suas crenças bizarras. Quepercebeu o quanto estava errada. E que quer entregar a direção da Cimmeria pramim.

Cadapalavratransbordavamalícia.SeIsabellesesurpreendeucomalgumacoisadoqueelefalou,nãodemonstrou.

Emvezdisso,soouentretida.—Ah,Nathaniel,nãosejaridículo.Vocêsabequeestascondiçõessãoabsurdas.

Rejeitotodaselas.Ohomemdeuumpassoparatrás.—Entãovaisofrerasconsequências.QuandoNathanielvirouparasair,comocachorroao lado,Isabellegritoupor

trásdele:—ALucindavaisaberquefoivocê,Nathaniel.Elavaicuidardevocê.Nathanieldesapareceuna orestasemolharparatrás.Apósuminstante,Zelazny

eEloisesaíramdetrásdasárvoreseforamatéIsabelle.Conversarambrevemente,eemseguidavoltaramparaa oresta.Quandochegaramàsárvores,outrasduas gurassombreadassejuntaramaeles.

Com as costas pressionadas contra o tronco da árvore, Allie cou sentadacongelada, comospensamentos emum turbilhão.QuandoCarterolhoupara ela,Alliepôdeperceber,pelaexpressãodele,queestavatãoconfusoquantoelaemrelaçãoatudoisso.

—Vamossairdaqui—disseele.Após descerem da árvore, atravessaram o portão;Carter fechou-o atrás deles e

estendeuamão.—Pronta?Allieassentiu.Começaramacorrer.

N

VINTEECINCO

a volta, os professores tiveram algunsminutos de vantagem,masCarterguiouAllieporumcaminhoalternativoatéaescola.Estarotapassavaporumacasinhadepedraemumjardimcheiode ores.Oaromadejasmime

rosasflutuouatéosdoisatravésdabrisa.—Dequeméessacasa?—sussurrouAllie.—DoBobEllison—disse.AcasajátinhaficadomuitoparatrásquandoCarteracrescentou:—Eucrescilá.Allieparou.—Aquelaeraasuacasa?—Continuaandando—Carterfalou,semolharparatrás.—Agentepodefalar

dissodepois.As árvores ao redor formavamdesenhos fantasmagóricos soba luzda lua,mas

comoestavamescapandodamesmaformaquenaida—comCartercorrendotrêsmetrosàfrente—Alliesesentiusegura.Coisasqueaassustaramnopassado—umchiadonomato,oruídodeumgravetoestalandoaolonge—nãoaincomodaramemnada.

MasquandoagarotaouviuavozdeCarter,freou.Elenãoestavafalandocomela.

Carter tinha avançado muito e dobrado uma curva na trilha, então Allie nãoconseguiaenxergá-lo,nemapessoacomquemeleestavafalando,masalgumacoisaestava errada.Agindopor instinto, eladesviouda rota e se escondeu atrásdeumaárvorecercadaporsamambaiasaltas.Umaveznolocal,elaseajoelhoueprendeuarespiração.

—...nada—diziaCarter.Entãoveioaoutravoz—avozdeGabe:—Entãovocêtáfazendoarondasozinho,mesmonãosendooseuturno?AlliepercebeuqueGabenãoestavaacreditandoemCarter.—Porque,qualéoproblema?—perguntouCarter.—Eusemprefaçoisso.

— Hoje não — disse Gabe. — Não ouviu o Zelazny? Depois do toque derecolher,agentesópodesairnosnossosprópriosturnos.Émelhorvocêfalarcomele.Elenãovaigostardisso.

—Tudobem—disseCarter.—Atémaistarde.Allieouviuo ruídodospassosdeCarterdesaparecendoao longe.Em seguida,

escutoupassosevozesvindoemsuadireção—váriaspessoas,pensou. Inclinou-separaespiaremvoltadaárvore.Aoluar,viuGabeconversandocomalguém,masocorpodorapazestavaescondendoquemquerquefosse.

— ... tudoerradoàs vezes, sabe?—reclamavaGabe.—Eleprecisa se ajustar.NãoseiporqueoZelaznyoatura.

—Acreditounele?—perguntouaoutrapessoa.Allienãoestavavendoquemeraenãoreconheceuavoz.

—Nãoligo,naverdade—disseGabe.—Seelecontinuarfazendobesteira,nãovaifazerdiferençaseforverdadeounão.—Orapazcaminhoupelatrilha.—NuncaentendiporqueaIsabelleinsistiupragentedeixareleentrarnaEscolaNoturna.

Naquele instante,umbarulhofortenobosqueatrásdeAlliea fezsaltar.Elaseagachououtravez,abaixodasfolhasdasamambaiaaoredor.

—Quem está aí?—perguntouGabe.A voz dele sooumais próxima eAlliecou estática, como coração saindopelaboca.À luzdo luar, pôde ver queGabe

estavanabordadatrilha,olhandodiretamenteparaela.Conseguiaouvirarespiraçãodele.

ConheciaGabe.Sempreforammaisoumenosamigos.Masalgumacoisaestavamuitoerradaaqui.Elesoavadiferente.Furioso.Atémesmoameaçador.

Todososseusinstintosmandaramqueelacontinuasseescondida.AvozdeLucasveiodamatapróxima.—Soueu,cara.—Jesus.—Gabesoouenojado.—Pegaleve,cara.—Desculpa!Eutropeceinumadrogadeumtronco.Estáescuronasárvores.—Queseja.—Gabevoltouparaatrilha.—Vamoscontinuar.Apósesperarosilênciovoltaretercertezadequeelesestavamlonge,Allievoltou

paraatrilhaeemseguidacorreurapidamentedevoltaparaaescola.Já tinha chegado na entrada da oresta quando uma gura saiu de trás dos

arbustosaoladodatrilhaesecolocounoseucaminho.Dandoumsaltoparatrás,Allie abriu a boca para gritar, mas uma mão tampou seus lábios e um braço aenvolveuenquantoelasedebatiaparasesoltar.

—Allie—murmurouCarter.—Soueu.Paradesedebater.— Jesus.—Ela relaxou nos braços dele.—Você quasemematou de susto,

Carter.—OGabeteviu?—sibilou.Allienegou.—Eumeescondi.Claramentealiviado,eleapontouparaadireita.—Poraqui.Mantendo-se às sombrasnabeiradogramado,derama voltapara aportados

fundos.Deláfoifácilvoltar.Atravessaramsorrateiramenteaporta,masadiscriçãonão foinecessária—os corredores estavamvazios.Ouviramas vozes elevadasquevinhamdoescritóriodeIsabelle,masnão caramporláparaescutarecorrerampelasescadas.

—Quemerdaéessaquetáacontecendo?CarterandoudeumladoparaooutronochãodoquartodeAllie,passandoas

mãospeloscabelosescuros.Sentadanabeiradaescrivaninha,elanãotinhanenhumarespostaparaele.—QueméNathaniel?—murmurouCarterparasimesmo.—Porqueeletá

fazendoisso?—Umcachorro!—disseAlliefutilmente.Carterolhouparaelaeameninaexplicou.—Foiumcachorroqueeuea Joouvimosnaquelediano jardim interno.O

Nathanieldeviaestarlá.— Faz sentido — disse Carter. — Mas continuo não entendendo o que tá

acontecendo.Queméele?—Tudo bem, vamos pensar no que ele disse. Ele falou sobre o conselho—

disseAllie.—DissepraIsabellesereunircomoconselho.CarterolhouparaAllie,inquirindo.—Bem,porqueelepróprionãoprocuraosintegrantes?—perguntou.—Quer

dizer,seeleétãopoderoso.Eseelenãopodesedirigiraoconselho,temqueterummotivo.

—Isso.—Umaexpressãode compreensão se formouno rostodeCarter.—Ouporquejáteveproblemascomeles,ouporquenãogostamdele.

—Ounãoconhecemele.—Allie fezumacareta,pensando.—ONathanielpodesertotalmentedefora.MastiveaimpressãodequeeleeaIsabelleseconhecemmuito bem. Como se fossem dois velhos amigos que se desentenderam, oufamiliaresbrigados,oualgumacoisa.

—É.Ouex-amantes—disseCarter.

Seusolharesseencontraram.— Com certeza — concordou ela. Pensaram nisso por um instante, Allie

balançandoopéeCarterandandodeumladoparaooutro.—E a Lucinda— lembrou Allie, interrompendo o silêncio.—Ela disse “A

Lucindavaisaber”.—Euouvi.—Elegirouecontinuouandando.—OutravezLucinda...—murmurouela,olhandoCarterirdeumladoparao

outro.—Vocêacreditounele?NoNathaniel,querodizer.AchaqueelenãomatouaRuth?

—Nãosei.—Seutomreveloufrustração.—AchoqueaIsabelleacreditounele.—Ótimo—murmurou.—Simplesmenteótimo.—Então isso signi caria...—deixoua frasenoar.Nãoqueriapensarnoque

issosignificaria.Levantandoospésparaamesa,abraçouosjoelhos.—MeuDeus,issoéumpesadelo...Oqueagentefazagora?Carterparoudeandardeumladoparaooutro.—Nãofaçoideia.

Aolongodorestodasemana,Alliesesentiuisolada.Todososalunossentaramnoslugares de sempre e os professores prosseguiram com as aulas como sempre, masnada estava igual. Alguma coisa muito ruim ia acontecer — Nathaniel ia fazeralgumacoisa—e,dentretodososalunos,sóelaeCartersabiamdisso.

Pior, continuava sendo tratada como se fosse invisível pormuitos alunos. Eraignorada quando andava com eles pelos corredores, quando passava por eles nasescadas, quando escovava os dentes no banheiro. E apesar de se recusar a admitir,aquiloestavacomeçandoaafetá-la.Eraumaexperiênciaestranhamenteextracorporalsertratadacomosenãoestivessepresente.

Na quarta de manhã, uma menina que ela não se lembrava ter visto antesderrubouumacanetapertodelanaauladefrancês.QuandoAllieapegoueentregou,ameninaagiucomosenãoestivessevendo,mesmoquandoAllieacenoudeumladoparaoutronafrentedela.Afinal,deixouacanetacairnochão.

—Dane-se—murmurouAllie,voltando-senovamenteparaocaderno.Namanhãdequinta-feira,Julesachamouedissequeestavafazendotudoque

podiaparafazercomqueKatieencerrasseacampanhacontraela.— Estou tentando, Allie, de verdade — disse. — Mas ela é teimosa.Tentei

conversarcomaIsabelle,masnuncasoubequeelaeratãoocupada.Allie sabia perfeitamente bempor que Isabelle estava ocupada,mas não podia

contarissoaJules.—OJerryfaloucomosmeninosedissequeelespoderiamsercastigadossenão

parassem,entãoachoquedevemvoltaraonormal logo.Claro,algunspodem carcommaismedodaKatiedoquedoJerry.—Julespareceudesconfortável.—Masdessavezvaidartudocerto.Operíodoterminaemalgumassemanas,eopróximovaisermelhor...

OunopróximoaKatieenvenenamaisgenteaindacontramim.Eentãoasituaçãovaisetornarimpossível,Alliepensou.

Joaindaestavaevitandoosantigosamigos—nasrefeiçõessesentavacomGabeoucomKatieesualegiãodepuxa-sacos,dooutroladodasalaemrelaçãoàantigamesa.

Allieachouqueelapareciainfeliz.Masprovavelmenteestouimaginando.Na sexta-feira, no entanto, já tinha aguentado o su ciente. Depois da última

aula,atravessouocorredoratéoquartodeJo,batendonaportacomviolênciaantesdeabri-la.

Joestavasentadanacama,lendoumarevistademoda.—Vocêpodiabater—resmungou,irritada.—Eubati.Evocêpodianãoserumavaca—respondeuAllie.Suspirandocompesar,Jovoltouaatençãoparaarevista,passandoapáginacom

umbarulhoagudoeirritado.— Olha, Jo — disse Allie, apoiando-se na escrivaninha —, a gente precisa

conversar...Agora.—Tudobem.Conversa.—Jocontinuouvirandoaspáginas.Crack.Crack.Crack.—Doque você se lembra sobre o que aconteceu no telhado naquele dia?—

perguntouAllie.Os olhos azul-claros de Jo, normalmente calorosos, pareciam duas pedras de

gelo.—Nãome lembrodemuita coisa,mas sei que euquase acabeimorrendode

algumjeito.Involuntariamente,Allieolhoupara asmãosde Jo,ondegesso ainda cobria as

pontasdosdoisdedos.—Onãolembraréqueéoproblemaaqui—declarouAllie.—Porqueeume

lembro.Melembrodetudo.EoquenãoconsigoentenderéporquenenhumavezvocêveioperguntaroquetinhaacontecidopramimouproCarter.

Jofechouarevistacompaciênciaexageradaeolhouparaela.—Nãofuiatévocêporqueeunãocon oemvocê,Allie—disse.—Olha,o

negócio é o seguinte: com uma semana deitada na cama com as mãos cheias deataduras,eutivemuitotempoprapensaremtudo.Epercebiquenãofaçoideiadequemvocêsejaoudeondetenhavindo.Sóseioquevocêmecontou.Etambémseiqueascoisassóderamerradodesdequeagenteseconheceu.

AsbochechasdeAllieenrubescerameelaencarouJo,incrédula.— Você tá me dizendo que acha que o que anda acontecendo aqui é culpa

minha?—Pensa,Allie—disse Jo.—Não é sua culpa, pelomenosumpouquinho?

Parecequeaconfusãotepersegue.TalvezaKatietenharazão.Talvezvocêrealmentesejalouca.

Seutomfoivenenosoeaspalavrasamachucaram.Poruminstante,Allieperdeuafala.

Josupostamenteerasuaamiga.Masentãoempinouoqueixoeencarouagarotacomumolharduro.—Quersaberoqueaconteceunotelhado,Jo?Tudobem.Euteconto.Você

bebeumeiagarrafadevodcaedançounotelhado.Dançou.Sejogoudeumladoprooutrocomoumafadabêbada.Nãosabiaondeestavaenãoseimportoucomquemestava afundando com você.Tanto eu quanto oCarter nos arriscamos para salvarvocênaqueledia.Eagora,euprecisodizer,tôumpoucoarrependida.

Jotentoufalar,masAllieainterrompeu.— Se não acredita emmim, pelo amor deDeus, acredita noCarter. Você o

conhece há anos.Ou acredita na Jules, ela tem tentado falar com você.Mas nãoacredita nas pessoas que só estão te usando pra me atingir. Porque isso é muitopatético.

Comorostorubroderaiva,Jojogouarevistanela.Aovoarpeloquarto,Allieaseguroucomfacilidade.

—Eoqueeumearrependoagoraédeterpensadoquepodiasersuaamiga.—Jodisparouaspalavrascontraela.—Agorasaidaqui.

Lutandocontraaslágrimas,Alliecaminhouaostrancosebarrancospelocorredoremdireçãoaosantuáriodopróprioquarto.

Nãovoudeixarninguémmeverchorando.MasnaquelemomentoRachelsecolocounafrentedelacarregandoummonte

delivros.DeuumaolhadanorostodeAllieepegouamãodela.—Comigo—dissecomfirmeza,puxando-aparaopróprioquarto.Derrubandooslivrossobreaescrivaninha,sentounacamaaoladodela.—Oqueaconteceu?

Efoiosuficiente.Comocorpotremendoporcausadossoluços,AllierevelouoconfrontocomJo

eareaçãodamenina.AcrescentouascoisasqueouviraKatiefalando(masdeixoudeforaapartesobreestarnorebordodajanelaagarradaaumaparede).

RachelsegurouamãodeAllieeouviutudo,estalandoalínguaocasionalmenteem sinal de solidariedade, mas basicamente permitindo que a menina abrisse ocoração.

—Sónãoentendocomoelapôdedizeraquelascoisaspramim...ousobremim—disseAlliefinalmente,enquantoossoluçosdiminuíam.

Rachelesperouatéqueaslágrimascessassempararesponder.—AJotem...problemas—argumentoudiplomaticamente.—Elaéfrágil.A

vidafamiliardelanãoé...boa.Maselatembomcoração.Todosnóssabemosdisso.ElatásendomanipuladapelaKatieepelocordãodaspuxa-sacospraacreditarnessasbobagensaseurespeito.Maseuseiqueissonãoéumgrandeconsolo.Dói,sóqueriaquetivessemaisalgumacoisaqueeupudessefazer.

RachelentregouumacaixadelençosaAllie.—Achoqueelavaiacabarvoltandoaonormal.Equandoissoacontecer,vaise

arrependerdetudoquedisseatéagora.—ÉporissoquevocênuncaandoucomaJoecomaLisa?—perguntouAllie,

secandoosolhos.—PorqueaJoéumpouco,comovocêchamou?Frágil?Rachelhesitouantesderesponder.—Eutivemeupróprio...con itocomogrupodaJohámuitotempo.Lembra

quandotefaleiqueoLucaseraoamigocomquemeununcapoderiaficar?Allieassentiu.— Bem, não foi totalmente verdade. — Rachel olhou para as mãos. — Eu

queimuitoa mdoLucasquandocomeceiaestudaraqui,hádoisanos.Elemeioque cuidou de mim. Não tem muitos alunos asiáticos aqui, e eu era um poucoinsegura.Maselefezcomqueeumesentissetotalmentebem-vinda.Eueranovinha,bem,vocêsabecomoé.Ummeninolegalebonitoteadota...Fiqueicompletamenteapaixonada.

Allieaolhousurpresa,eRacheldeudeombros.— Algumas semanas depois, uma menina loura bonita chega atrasada no

período, oLucasdáumaolhadapra ela e...—elabateu asmãos e as deixou cairseparadas.—OLucasvirameumelhoramigoprasempre.

Allieaolhou,confusa.—Mas...elesterminaram,nãofoi?—Ah, sim.—Rachel revirouosolhos.—Terminaram.Depoisque ela teve

umacrise—suspirou.—Masachoqueumapartedemimnuncaconseguiuperdoá-loporterescolhidoaJoemvezdemim.Eoutrapartenuncaaperdoouporelaterdeixadoelefazeressaescolha.Outalvezsejaamesmapartefazendoasduascoisas.

—Quedroga—disseAllie.Rachelsorriutristemente.—É,umadroga.HásemanasqueRachelvinhasendooportosegurodeAllie.Elapareciamuito

sábia e madura apesar da idade — Allie queria contar para ela sobre o que tinhadescobertocomCarter.Sealguémsaberiaoquefazer,concluiu,seriaRachel.Nãoofez porque prometeu aCarter que não contaria para ninguém.Mas guardar todasaquelasinformaçõeseraalgoimpossível.Enãohaviamaisninguémaquemcontar.TalvezelaeCarterprecisassemdaajudadeRachel.

Olhou para Rachel durante um longo tempo enquanto vivia uma batalhainterna.

—Quê?—perguntouRachel,confusa.Allielimpouasúltimaslágrimasdosolhos.—Precisotecontarumacoisa.

—Vocêfezoquê?AvozincréduladeCarterecoounacasadeveraneio.Eradepoisdojantareosol

estava desaparecendo no céu, dourando os topos das árvores ao redor. Estavamsentadosemumbancodepedrabanhadospelosol.

Allielevantouoqueixoteimosa.—Euconfionela,Carter.Enãopodemossersóosdoislidandocomisso.— Não, mas nós dois deveríamos estar envolvidos na decisão de contar pra

alguém,Allie.Nãovaipermanecer segredopormuito temposeagente sairporaícontando pra pessoas em quem a gente acha que pode con ar, sem conversarprimeiro—eledisse.—Querdizer,eunãosaícontandoproLucas.

AlliepensouemLucasaparecendonobosque.—Nãofazisso—disseelarapidamente.Carterlhelançouumolharaborrecido.— Sério, Allie, quanto você realmente sabe sobre ela? Você já, por exemplo,

paroupraimaginarseelapoderiateralgumacoisaavercomafofocasobrevocêterencontradoocorpodaRuth?

Allieachouqueocoraçãopoderiaterparado.—Quê?Estádizendoque ela teve algumacoisa a ver?—perguntou, lutando

paramanteracalma.

—Estoudizendoquenãosei,nemvocê—respondeu.—Estoudizendoqueelaadora fofocar.Eutôdizendoqueémuitacoincidênciavocê ter faladopraelaederepentetodomundoterficadosabendo.

—Ela não...— hesitou Allie. Em quem podia con ar, na verdade? Por queRachelseriadiferentedeJoouSylvain?Tinhacon adonosdois.Osdoistraíramsuaconfiança.

—Vocênãosabe,Allie.—AvozdeCarterestavamaissuaveagora.—Nãoseiosuficientesobreelaprasaberseagentepodeconfiar.Elasemprefoiquieta.

—Quenemvocê—observouAllie.—Quenemeu—concedeurelutantemente.—Masopaidelaéimportantena

EscolaNoturna.Ele faz a segurança de corporações gigantes, aconselha governos...Eleédedentro,Allie.

—Euseidisso.ARachelmefalouqueopaidelaeraum gurãonoconselho—disse.—MasaRachelnãoédaEscolaNoturna,é?

—Não,eissoéestranho.—Entãoépossívelqueelanãosejadedentro,comoopai—disse.—É.Masvocêsearriscoumuitoemnomedeuma“possibilidade”—declarou.Alliesabiaqueeletinhaumbomargumento.—Temrazão.Desculpa.Voutomarmaiscuidado.Amolecido,elesentoupensandoporuminstante.—Oqueelatedissequandovocêcontoutudo?—perguntou.— Ela não soube o que pensar.Mas tinha quase certeza de ter ouvido o pai

falando sobre um sujeito chamado Nathaniel e reclamando que ele andavaarrumandoencrenca.—Allieolhoucautelosamenteparaele.—Ficouimaginandosedeveriaperguntarsobreissopraele.

—Quê?—CarterquasegritouapalavraeAlliedesviou.—Elanãovaifazerisso—assegurou-oapressadamente.—Elasóqueriaquea

genteconversassesobreessapossibilidade.Elaachaqueagentepodeconfiarnele.—Ai,masquemaldição.—Carterabaixouacabeçanasmãos.—Oquê?—Allieperguntouinocentemente.—Éassimquevocêguardasegredo,Allie?Sério?—Não...querdizer,é.—Dirigiuumolharaele.—Sóconteipraumapessoa,

Carter.Achoquevocêestáexagerando.—Al,agentepodeseferrarmuito.—Eusei—respondeuela,nadefensiva.—Eaí?—disseCarter.—De repente agentedevia tentarnão contar nossos

segredosprosoutros?

Alliecerrouosolhos.—EntãoachoquevocêquerqueeufalepraRachelquevocêpreferequeelanão

contepropai?—É,Allie.Éissoqueeuquero.—Tudobem—respondeuelafriamente.—Agente acaboude ter nossa primeira briga?—perguntouCarter, olhando

paraelacomaquelemeiosorrisoquesempreaderretia.—Não—respondeuAllie.—Achoqueagentebrigoubastanteantesde car,

nãoé?—Éverdade—concordouele.—Seja como for—disse ela—, goste você ounão, agora a gente temmais

alguémpraajudarquandoprecisar.Eelaémuitointeligente.—Issopodeserútil—concedeucommávontade.—É—falou.—Foioquepensei.Carterdeuumsoquinhodelevenoombrodela.Allierespondeufazendocócegas

nele,elogoosdoisestavamrindo.Colocandoobraçonosombrosdamenina,eleabeijounatêmpora.

—Desculpa—disseele.—Eunãodeviater cadotãoirritado.Vai cartudobem.

—Vaificartudobem—declarou—seagentefizerficarbem.Dealgumjeito.—Oquemelembraqueeuqueriatecontaroquedescobrihoje—disse.ApesardeCarterparecer sério, ela achavadifícil se concentrarnaspalavrasdele

quandoolhavanaquelesolhosgrandeseescuros.—Tudobem—disseela,pensandodemaneirasonhadora:elerealmenteémeu.

Porvontadeprópria!—Allie,éimportante.—Desculpa.—Alliesesoltoudeleesentou-seereta.—Podefalar.—AEscolaNoturnaestárecomeçandoafazertreinamentosnomeiodanoite.Alliefranziuorosto.—Oquesignificaisso?— Signi ca que a gente recebe umas instruções muito estranhas. Vamos

patrulharoterritórioemturnos,durantetodaanoite.Vamosnosrevezar,pratodomundo dormir um pouco. — Olhou para as árvores. — Nós já patrulhamos oterritório antes, por questões de treinamento, mas dessa vez é diferente. É muitointenso.Estãodizendoque é umnovoprojetopra ensinar o que eles chamamde“proteção e defesa”. Vão encenar ataques falsos que a gente tem que combater.Disseramatéqueagentepodeterfolgadasaulasdamanhãdepoisdosnossosturnos

danoite.Issonuncaaconteceu.Começahoje,eagentevaipassaro mdesemanainteirotreinando.

Observandoorostodele,Allieviuapreocupaçãoemseusolhos.—EstãosepreparandoproNathaniel—constatouela.Carterassentiu.— Suponho que não tenha a menor chance de ligarem pra polícia pra pedir

ajuda?—Ã-hã.—Então...nadadeescaparduranteanoite?—supôs.—Dejeitonenhum—respondeuele.—Asegurançaestáprestesa carintensa

aqui.—Tudobem—disseelaquietamente.—Entãoeleestávindo.—Ah,sim.—OsolhosdeCarterexaminaramohorizonte.—Eleestávindo.

P

VINTEESEIS

ara Allie, aquele m de semana pareceu se arrastar por uma eternidade,desacelerado por uma mistura tóxica de pavor e solidão. Carter e LucasestavampresosnaEscolaNoturna,entãoacampanhaanti-Allielideradapor

Katiecontinuavafirme.Pelaprimeiravez,percebeuoquantopassaraaseapoiaremCarter.Maloviu,e

quandoo fez, só tiveram tempoparaum rápido abraço.Quandoperguntou a elecomoascoisasestavamindo,ogarotoapenasrespondeu:

—Estáintenso.Mas os olhos de Carter disseram tudo que Allie precisava saber — ele estava

cansado.Epreocupado.Aformaqueencontroudelidarcomissofoinãolidar.Passouamaiorpartedo

tempo na biblioteca. Na semana seguinte seria o m do período, e ela tinhatrabalhospara terminar e testesparaosquais sepreparar.Comtoda a emoçãodasúltimas semanas, ela acabou cando para trás. Depois de tudo que tinha passadonesteverão,nãopretendiatirarnotasruins.

Rachelpassavaodiainteirolá,todososdias,entãoAlliesempretinhacomquemestudar.

—Colegasdeestudo—Rachelgostavadedizer,comumaalegriaindevida.MasassementesdedúvidaplantadasporCartercontinuavamnamentedeAllie.

SeráqueaRachelespalhouboatossobremim?Possoconfiarnela?Racheldavatantoapoioeeratãoabertaehonestaemrelaçãoàscoisasqueisso

pareciaimpossível.MasAlliesabiaquenadaeraimpossível.Amesadabibliotecáriaestavasendocontroladaporalunosvoluntários,fatoque

Rachelobservoucomsobrancelhaserguidas.—AchoqueaEloise estáde folga,praticando jogosdeguerra—murmurou,

depoisqueosvoluntários lhetrouxeramolivroerradopelaterceiravez.—Queriaqueelapudesseesperaratéofimdoperíodo.

—VocêsabiaqueaEloiseera...—Alliegesticulouvagamente.Rachelassentiu.

—Elaéumavelhaamigadomeupai.Achoqueelefoiumdostreinadoresdelaquando era aluna. De qualquer forma, a Eloise não tem segredos para mim. —Fechandoolivro,acrescentou:—Pelomenoséoqueeuacho.Aessaaltura,quemsabe?

—Éassimquemesintoemrelaçãoatudo.—Allienãoolhounosolhosdela.Rachelolhouparaorelógio.—Meio-dia.Querdarumintervaloecomeralgumacoisa?Deixandooscadernosabertossobreamesaparareservaremolugar,foramparaa

sala de refeições. Estava estranhamente quieta — muitos alunos estavam levandosanduíches lápara fora,parao solde mdeverão.Escolheramumamesaemumcantoquietoondepoderiamconversarsemqueninguémasouvisse.

—AlgumanotíciadoCarter?—perguntouRachel.Alliedeudeombros.—Poucacoisa.Eledissequetemmuitotrabalhoequenãoháintervalos.Oque

oLucasdisse?—Amesmacoisa.Rachelmordeuosanduíche,franzindoorosto.Alliepôdeperceberqueelaestava

pensandoemalgumacoisa,masesperouatéqueestivesseprontaparafalar.—Oquevocêvaifazernasférias,Allie?—perguntoua nal.—Seiquevocêe

osseuspaistêm“problemas”.—Fezgestodeaspasnaúltimapalavra.—Masvocêvaipracasa?

A pergunta pegou Allie de surpresa. Com tudo que estava acontecendo, nãotinhapensadonoquefazer.Nãoestavaprontaparavoltarparacasa,paraossilênciosdesconfortáveis e as expressões descon adas. O relógio correndo e osarrependimentoscontidos.Masoquemaispoderiafazer?

—Euachoquevoupracasa—suspirou.—Sabe,nãofalocomosmeuspaisdesde que cheguei aqui. Fiquei com tanta raiva dememandarem pra cá.Depoisquei comraivade teremmentidopramim.Queriaquepercebessemque eunão

tinha ligado e ligassem pramim. Só pra terem certeza de que eu estava bem.—Puxouacascadosanduíche.—Nãoligaram.

Rachelseinclinouparapertodela.—Éoseguinte, sevocênãoconseguirencarar,pode carnaminhacasa.Falei

sobre isso ontem com aminhamãe; contei tudo sobre você. Elame falou pra tedizerqueébem-vindaaqualquerhoraequepode carotempoquequiser.Temosmuitoespaço.

Isso prova, pensou Allie.Ela é minha amiga de verdade. Do contrário não mechamariapracasadela,certo?Éissoqueverdadeirosamigosfazem.

Masseusubconscienteparanoicotinhaumcontra-argumento:quebelamaneirademeespionar.

Mesmo assim, a ideia era tentadora. Passar algumas semanas em uma enormecasa de campo comRachel versus voltar para casa, para seus pais infelizes, discutirproblemasdefamílianacasinhadeLondres?Nãotinhanemcompetição.

Mas.—Rachel,muito obrigada. Posso pensar?— pediu.— Sei que alguma hora

tenhoquelidarcommeuspais.Masnomomentonãovejoporquê.—Eusei.—OsolhosdeRacheleramsolidários.—Deveserdifícil.— Sua família parece tãomaravilhosa— comentouAllie.—Acho que você

ganhoualoteriadafamília.Rachelnãopareceuconvencida.—Vocênãoconhecemeupai.Elequerqueeusigaospassospro ssionaisdele.

Meencheo sacopraentrarnaEscolaNoturnadesdequeeuchegueiaqui.Ele caloucoporeunãoentrar.Enãotámuitofelizporqueeuqueroestudarmedicina.Eleodeiamédicos,dizquesãotodosuns“charlatães”.Agentevivediscutindoporisso.—Terminouosanduíche.—Viu?Afamíliadeninguéméperfeita.

Allienãoestavaacreditando.—É,mastemosimperfeitosetemaminhafamília.Somosimperfeitoscomo

umabombanuclearprestesaexplodiréimperfeita.Rachelriu.—Bomargumento.OclãSheridanclaramentenãoestámuitobemagora.—AllieSheridan?—Umalunomaisnovo,queAllienãoselembravadejáter

visto,estavaàmesadelas,olhandoparaRachel.—Ela.—RachelapontouparaAllie.—Eu—disseAllie,olhandocuriosaparaele.—AIsabelleperguntousevocêpoderiairatéoescritóriodela,porfavor?Allienãoconseguiuconterasurpresa.—Quê?Porquê?Eleaolhousemexpressão.—Allie...—Rachelestavatentandonãorir.—Oquevocêfezdessavez?Alliedeudeombros.—Elaprovavelmentesóquermedizeroquantosouincrível.Denovo.—Ã-hã—disseRachel.—Bem,euvoupassaratardetodanabiblioteca,me

encontraquandoficarlivre.Seelanãotejogarnocalabouçooucoisaparecida.—Muitoobrigada—disseAllie, juntandoas coisas.—Mas tenhoquedizer

que, a essa altura, se eu descobrisse que tem um calabouço aqui, não ia me

surpreender.

OescritóriodeIsabelleestavavazioquandoAlliechegou,masaportaestavaaberta,então amenina sentou emuma das cadeiras. Enquanto esperava, olhou em volta,nervosa, como semesmoagorapudessedescobrirqueela eCarter tinhamdeixadoalgumacoisaforadolugarquefossedenunciá-los.

Isabelle entrou algunsminutos depois, parecendo distraída, com os óculos notopodacabeça.

— Aceita uma xícara de chá? — perguntou, ligando uma chaleira sobre umapequenageladeiraemumcanto.—Euestouprecisandomuitodeuma.

—Claro—respondeuAllieeducadamente,apesardenãoestarcomvontadedetomarchá.

AchaleiraganhouvidacomumroncoenquantoIsabelleprocuravaumaxícaraextra,eemseguidasecerti cavadequeestavalimpa.Quandoochá coupronto,adiretoraentregouumaxícaraaAllie,virandocuidadosamenteaalçaparaqueelanãosequeimasse,eemseguidasentouemumacadeiraaolado.

—Assim estámelhor.—Bebericou o chá, re etindo umpouco, em seguidafocou o olhar em Allie. — Não existe nada de errado com o mundo que nãomelhorecomumaboaxícaradechá.Obrigadapor tervindo,Allie.Nãoquero tetirardosestudospormuitotempo.Mascomo mdoperíodonasexta-feira,queriaconversarcomvocêparadescobrirquemvocêé.Jáestácomagenteháseissemanas,entãojátevetempoparaseadaptar.Seiqueestefoiumperíodoforadocomum,efiqueiimaginandosevocêquerconversarsobrealgumacoisa.

Poruminstante,Allieperdeuafala.Elaestábrincando?IsabelleestavaolhandoparaAlliecomexpectativa,eelasoubequeteriaquedizer

algumacoisa.Oqueeudevofalar?“Bem,oassassinatofoiumpoucoperturbador,eoincêndiome

preocupouumpouquinho.Quase fui estuprada eminha ex-melhor amiga está louca.MaspelomenosvoutirarAemhistória”?

—Certo...—disseela,cautelosamente.Tentou pensar em alguma coisa menos sarcástica para dizer, mas sua cabeça

estavacheiadecoisas sobreasquaisnãopodiaconversar—coisasquenãodeveriasaber.EsabiaqueIsabellenãoestavainteressadaemseudesempenhoembiologia,ouemporqueatrasaraumtrabalhonasemanapassada.

Enquanto seu silêncio se estendia, Isabelle ergueu uma sobrancelha e ofereceuumacordadesalvação.

—Há algum tempo não tem crises de pânico, pelo que sei. Acho que é umprogresso.

Atéaqueleinstante,Allienãotinhanotadoaextensãodetempodesdeoúltimoataque.Masjáfaziamaisdeduassemanas.E,naverdade,agoraqueestavapensando,nãovinhacontandocoisascomtantafrequência.

—É verdade—admitiu.—Achoquenão estou...medescontrolando tantoquantoantigamente.

Isabelleriu.— Bem, as coisas andam estressantes por aqui, mas me parece que você está

lidandomelhorcomoestresse.E cofelizemconstatarisso.—Repousouochá.—Agora,vocêeaJo...

Alliefranziuorosto.Estanãoeraumaconversaquequeriater.—Percebiqueestãomenospróximasdoquecostumavamser,porquê?Hesitante, Allie relatou em linhas gerais o que tinha se passado.Consternada,

Isabellefechouosolhoscastanhosdouradosenquantoescutava.—Vou falar com a Jo— disse, quandoAllie concluiu.—Ela também está

passandopordi culdades.Entãovocêtalveztenhaqueserpacientecomela.Masseiquesuaamizadeéimportanteparaela.

—Eraimportante—murmurouAllie,enfatizandoaprimeirapalavra.—Evoltaráaser—disseIsabelle,confiante.—Sevocêforpaciente.Repousouaxícaradechá.—AcampanhadaKatietambéméumproblemacomoqualestoulidando.Sei

queaJulesfaloucomvocêesintomuitonãotertidotempodefazerissoatéagora.Ando muito ocupada. Mas quero que saiba que a Jules anda me atualizandodiariamenteequetemlutadocontraKatieporvocê.

“Vocêtemsidosurpreendentementepacientecomela,masachoquechegamosaumpontoemquetereiqueconsiderarsuspendê-laseelanãoparar—disseIsabelle.—ElaconhecemuitobemasRegras,assimcomoospaisdela.Escreviparaelessobreisso,maselesnãoresponderam.Entãovoudarumúltimoavisoaelahoje.Agradeçomuitooseucontrole.”

—Cuidado!—disseAllie,antesquepudesseseconter.Adiretoraaolhoucuriosa.—Querdizer...Ospaisdelanãosãodoconselho?Achoquesãosuperpoderosos;

ela vive se gabando disso. Eles seriam... você sabe. Maus inimigos... eu acho. Seforemcomoela.

Isabelleseinclinouparaafrente.—Você émuito gentil por se preocupar comigo, Allie. Fique tranquila, vou

tomarcuidado.Mudandoparaumassuntomenosperigoso,conversaramsobreasmatériaspor

alguns minutos. Isabelle elogiou sua dedicação e observou que as notas tinhammelhoradobastante.AtéZelaznyelogiouotrabalhosobreaGuerraCivil.

—Então,naverdade,minhaúnicapreocupaçãoéoqueaconteceagora—disse.—Comoassim?—perguntouAllie,confusa.— Durante seu período aqui, eu falei várias vezes com a sua mãe. Ela tá

preocupadacomvocê.Seuspaissentemsuafalta.Imediatamente,lágrimasqueimaramosolhosdeAllie,quelutouparacontê-las.

Ficoumuito surpresacomoquanto issoamachucou.Tinhaevitado falar comospais porque estava commuita raivadeles.Masnão sabiaporque elesnão tinhamentradoemcontato.

Aomesmo tempo, se sentia traída pelo que havia encontradono seu arquivo.Isabelle conhecia bem a suamãe e nunca revelou isso. Se seus pais a traíram nãocontando a verdade, Isabelle não fez a mesma coisa? Aliás, não tinham todosmentido?

Talvezhojefosseodiadaverdade.—Vocêconhecebemosmeuspais?—perguntouAllie.AexpressãodeIsabellesealterounamesmahora.Adiretora couvisivelmente

tensa.—Porqueestáperguntandoisso?—rebateu,cautelosa.—Umacoisaqueaminhamãedissequandoestavametrazendoparacáanda

me incomodando—mentiuAllie.—Ela te chamoude “Izzy” semquerer, e emseguidasecorrigiu.Comoseteconhecesse.EdepoisaKatieeaJofalaramqueaquitodomundotinhalegado.Issomefezimaginaroqueeuestavafazendoaquisenãotenholegado.

Elaencarouadiretora.—Eutenholegado,Isabelle?Emoção passou pelo rosto de Isabelle enquanto ela hesitava por mais um

segundo,masnofimarespostafoisimples.—É,Allie.Vocêtemumgrandelegado.

A

VINTEESETE

pósdeixaroescritóriodeIsabelle,Alliefoijogaráguafrianorostoantesdevoltarparaabiblioteca.Aosentar,Rachelaolhoucuriosa.—Oquê?Ocalabouçoestavaocupadooucoisado tipo?—perguntou,

comumsorrisoprovocador.MasaonotarorostovermelhodeAllie,suaexpressãomudouparaumadepreocupação.—Ei,oquehouve?

Allierespondeucomumsorrisoabatido.—Nãofoinada,naverdade.Sóvirouumasessãoinesperadadeterapia.—Detesto quando terapia aparece e te surpreendedesse jeito—disseRachel,

masseuolharcontinuavapreocupado.—Querdarumtempoeconversar?A solidariedade deRachel deixouAllie outra vez com lágrimas nos olhos, e a

meninaassentiu.Nãoqueriachorarnafrentedetodomundo.Rachelaconduziuatéumcantosilenciosoafastadodabibliotecaesaiuembusca

delenços,voltandocomumacaixaeduasxícarasdechá.—Mecontatudo—disse,sentando-se.—Oupelomenostudoquequiserme

contar.Alliecomeçouafalar,masemseguidaparou.Sehojeéodiadaverdade,porque

pararnaIsabelle?Nãoconseguiapensaremumbommotivo.—Antesdetecontar,precisofazerumapergunta—declarou.—Podeserque

temachuque.Masesperoqueentendaporqueprecisoperguntar.OsolhosemformadeamêndoasdeRachelestavamarregaladosdesurpresa,mas

elanãoperdeuacalma.—Tudobem—concordouRachel.—Podemeperguntarqualquercoisa.—Vocêjáfezfofocasobremim?Rachelsequerhesitou.— Antes de te conhecer, sim — revelou. — Porque eu fofoco sobre todo

mundo.Masassimqueteconheci,eupareienuncamaisfizfofoca.Nunca.Olhando-adeperto,Allienãoviuqualquerindíciodehesitação.Nenhumsinal

dequenemsequersesentiradesconfortávelcomapergunta.Simplesmenteparecia...

elamesma.TodososinstintosdeAlliedisseramquepodiaconfiaremRachel.—Aquestãoéque—disseAllie—,todomundoparecementirpramim.Meus

pais.AIsabelle.AJo.Tôperdendoafé...—Emtodomundo?—concluiuRachelnolugardela.Allieassentiu.Rachelcolocouamãonocoração.—Juropelaminhafamília,Allie,nãosouumadasmentirosas.Podecon arem

mim.Dealgumjeito,Alliesabiaqueeraverdade.Inclinando-separaafrente,deuumabraçoemRachel.—Acreditoemvocê.Desculpaporterqueperguntar.—Euentendo—respondeuRachel, retribuindooabraço.—Talvezmaisdo

quevocê imagine.Não esquece, já tô aquiháum tempo.Existeummotivopeloqual escolho não termuitos amigos.Agora,me conta o que aconteceu pra deixarvocêchateada.

AllierelatoubrevementeareuniãocomIsabelleesobreterperguntadoseelaterialegado.QuandocontouarespostadeIsabelle,arespiraçãodeRachelsibilouatravésdosdentes.

—Elaadmitiu?Nossa!Oquevocêdisse?— Eu tentei fazer ela ser especí ca — disse Allie, lembrando-se do olhar de

Isabelle.Elapareciadividida.—Minhamãeestudouaqui,nãoestudou?—perguntaraa Isabelle.—Vocês se

conheceramnessaépoca.Isabelleassentira.—Estudou.Agenteeradamesmaturma.Suamãeeraumadasminhasmelhores

amigas.Alliefranziuatesta.—Entãoporqueeununcaconhecivocê?Enemouvifalarnessecolégio?— É uma longa história, Allie, mas quero que saiba que sua mãe nunca se

desentendeucomigo.ElasedesentendeucomaCimmeria.Ecomaspessoasportrásdaescola—explicou,emumtomsombrio.—Achoquevocêtinhaqueconversarsobreissocomela.Elanãogostariaquefosseeuatecontarahistóriadela.Nãoéumdireitomeu.Maseupossotedizerqueassimqueelacompletouosestudosaqui,deixoutudoisso.Enuncamaisolhoupratrás.Elaodiavaessaescola.Eachoquefoiporissoqueelanuncatecontouarespeito.

Repousandoaxícarasobreamesa,Allielevantouaspernaseabraçouosjoelhos.—Maselamemandoupracá.Isabellefezquesimcomacabeça.

—Porquememandariapraumcolégioqueodiava?—queixou-seAllie.—Elanãoestavaconseguindolidarcomvocê—disseIsabelle.—Eissonãoéculpa

sua, é dela.E ela sabedisso.Depois que oChristopher... fugiu, suamãe mudou.Foidominadapelapreocupaçãoatéquechegouaopontoemqueelanãoconseguiamaisserumaboamãepravocê.

UmaondainesperadadepesarinundouAllie,queseinclinouparaafrenteatéacabeçaestarapoiadanosjoelhos,tentandonãochorar.

—Temandarpracáfoiumadascoisasmaiscorajosasqueelajáfeznavida,Allie—disseIsabellegentilmente.—Elasabiaquevocêestavaencrencadaondeestava.Maspratemandarpracá,elatevequepedirajudaa...aumaspessoasquetinhadeixadopratráshámuitotempo.Eissofoidifícil.

Allieassistiuumalágrimacairnojoelho.—Por que nãome contou antes?—perguntou, com a voz abafada.—Você e

minhamãesãosuperamigasenenhumadasduasmedissenada.Nãoéomesmoquementir?

IsabellecolocouamãonoombrodeAllie.Faloucomavozbaixaecalma.—Elame implorou pra não contar, e eu tive que fazer o que suamãe queria,

porquevocêé lhadela,enãominha.Achoqueelaerrouemnãotedizeraverdade,eelasabequepensoassim.Maseunãopodiatrairacon ançadela.—Elasoavacomosetambémestivesselutandocontraaslágrimasagora.—Mastambémnãoqueriatrairasuaconfiança.Sintomuitopornãotertecontado.

Allierespiroutrêmula.—Vocêestáescondendomaisalgumacoisademim?Fez-seumlongosilêncio.— Adultos — respondera Isabelle com cautela — não podem contar tudo que

sabem para os jovens. Não é assim que as coisas funcionam. Contam o máximo quepodemparaosdeixaremseguros.Então, sim,estouescondendoalgumascoisasdevocê,atéacharquevocêestáprontaprasaberdelas.Mas,porfavor,acreditequevoucontarquandovocêestiverpronta.

AtristezadeAlliefoisuperadapelaraiva.Porqueosadultossempreseachammaispreparados para lidar com assuntos importantes só porque são mais velhos? Por queachamqueissodáaelesodireitodementir?

MasIsabelleaindanãotinhaacabado.—Epartedisso,umaboapartedisso,temquevirdosseuspais.Nãodemim.Você

precisafazeressasperguntasaelesprimeiro,edarachancedeseremhonestoscomvocê.Senãocontarem,ousevocêacharquenãoestãosendohonestos,entãomeprocura.Eucontooquepuder.

— Como eu posso perguntar alguma coisa pros meus pais? — A voz de Allie seelevou.—Eunãoligueipraelesporqueestavaesperandopraversemeligavam.Acheiqueiamtelefonarsesentissemsaudades.Oupelomenosiammandarcartas.Masnãofizeramnadadisso.Sãoinúteis.

— Suamãe não falou com você porque queria te dar um tempo pra pensar—comentouIsabelletristemente.—Éhoradedecidirsevocêquerounãocontinuaraqui.Eseconsegueounãoperdoarasuamãe.Euseisemsombradedúvidasqueelalamentamuitopeloquãodifícilissotemsidopravocê.Porserquemé,elanãoconseguetedizerisso.

Elaacrescentacomumsussurro:—Maseuconsigo.Allieescondeuorostonasmãos,paraqueIsabellenãoavissechorar,massentiua

diretoraaabraçar.Maistarde,quandoseacalmou,Isabelle lhedeuumlençoecolocounovamentea

xícaradechánassuasmãos.—Vocêprecisaentender,Allie —disseela—,queaindatemmuitoaaprender

sobrevocêmesma.Suafamíliatemumahistórialongaeúnica.Suamãerejeitouessahistória, então ela escolheunão te contar sobre ela.Euachoumapena.Você vemdeuma linhagem incrível. Pergunta pra ela. E espero que você perdoe seus pais. Elesfizeramoqueachavamcerto.

Quando Allie terminou de contar a história, Rachel se inclinou para trás noassento.

—Uau—exclamou.—Quecoisamaisintensa.Enãoestounemaíproqueeladiz.Seuspaissãomuito idiotas.Maseutômuitocuriosaprasaberoqueelaquerdizercomsualinhagem.

—SópodeseraLucinda—constatouAllie.—Sejaelaquemfor.—Suamisteriosapossívelavó...—re etiuRachel.—Nãohádúvidasdeque

elaéachave.Vocênãoperguntousobreela?—Não.Medistraícomessamerda-dos-meus-pais-serem-uma-merda.—Eutôficandolouca—disseRachel.—Queméela?—Gostariadesaber.RachellançouumolhardesafiadorparaAllie.—Vocêsabeoquevoufalar.Alliesuspirou.—Seupai...—...sabetudo—concluiuRachelnolugardela.—Deixaeucontarpraeleo

quetáacontecendo.

—OCarternãoquercontarpramaisninguém,principalmentepraummembrodoconselho,comooseupai—disseAllie.—Eleaindaestáirritadocomigoportercontadopravocê.

—Tudobem—concordouRachel.—Masnãoédafamíliadelequeagentetáfalando.Édasuaedaminha.

Racheltinharazão.—Deixaeupensar—disseAllie.—TalveztenhaqueconvenceroCartermais

umpouquinho.—Ok—falouaoutra—,masnãodemoramuitoprapensar.Operíodoacaba

nasexta.

Na segunda-feira, Allie ainda não tinha se decidido quanto ao que falar a Rachelsobrecontaraopaidela.Masquandoentrounasaladerefeiçõesnahoradoalmoço,todosospensamentossobreo mdoperíodo,LucindaeperigodeixaramsuamenteaoverLisana entrada.Ela estavapálida emaismagradoquenunca,masoúnicolembretevisíveldoataqueeraacicatrizvermelhanabochecha.

— Lisa! Meu Deus. — Allie correu para abraçá-la. — Quando você voltou?Comoestá?

—Oi,Allie.Chegueihá algumashoras.—Sorriu abatida.—Meuspaisnãoqueriamqueeuperdesseasprovaseeuestavamesentindomelhor,então...

—Quedroga—disseAllie.—Bem,sejabem-vindadevolta!Ascoisas carammuitoerradassemvocê.Ficofelizqueváficaraquidurantecincodiasinteirinhos.

—Obrigada.—Lisaolhouaoredordasala,claramenteconfusa.—Oqueestáacontecendo?Não temninguémnanossamesa.E a Jo está lá com...—apontouparaocantodasalaondeJoestavasentadacomIsmayeKatie.

Allieassentiu.—Umhorror.AJomeodeiaagora.—Mentira.—Lisaaolhouincrédula.—Não,ésério.Muitacoisaaconteceuenquantovocênãoestavaaqui.Ogrupo

basicamente acabou por enquanto. Está todo mundo dividido. Eu tenho sentadocomaRachelPatelecomoLucasnamaioriadasvezes,seelesestiveremporaqui,ecomoCarter.

—Porquê?Oqueaconteceu?—MeuDeus,éahistóriamaislongadahistóriadaburrice—disseAllie,com

um suspiro. — Con a em mim: a Jo me odeia. Mas de algum jeito estousobrevivendo.

Lisapareciaperdida.

—Nãofaçoideiadeondesentaragora—disseresmungando.OslábiosdeAlliesecurvaramemumsorrisoendiabrado.—Bem, vocêpode sentar coma Jo e aKatieGilmore.Ou comigo e como

Lucas.—Vamos,então—disseLisacomumrisoculpado.ForamatéondeRachele

Lucasjáestavamenchendoospratoscomsanduíches.Duranteoalmoço,serevezaramnorelatodoquetinhasepassadoenquantoLisa

estiveraemcasaserecuperando.Allietentouserjustaaocontarseuladodahistória,masLisanãopareceuterqualquerproblemaemacreditarnopior.

—Ah,Jo...—disseela,balançandoacabeça.—Issooutraveznão.Lucassuspirou.—Foiexatamenteoqueeudisse.Tudopareceumpoucofamiliardemais.—MasbotaraculpanaAlliequandotodomundosabequeelafazessascoisas...

—comentouLisa.—Éumamaldade.—AKatietátirandovantagemdela—disseRachel.—Estáusandoela.EaJo

deveestarmuitomalsetácaindonadela.QuandoCarterapareceuatrasado,deuumbeijolevenacabeçadeAllieantesde

sentarao ladodela.OsolhosdeLisasearregalaram,masAllieestavasorrindoparaCarterenãoseimportoucomofatodeLucasterdadoumasingelacotoveladanascostelasdeLisa.

Fora isso,noentanto,nãohouvenenhumafaíscaentreLisaeLucas.Aliás, emdeterminadomomento,AlliepercebeuLisaolhandopreocupadaparaLucaseRachel,e pela primeira vez notou quão próximos se sentavam, e quão companheirospareciam.

TalvezRachelestivessepensandoemperdoá-lo,afinal.Não gostava da ideia de se encontrar nomeio de um triângulo entre Rachel,

LucaseLisa,mas,aomesmotempo,queriaqueRachel cassecomomeninoqueafaziafeliz.

Umarugadepreocupaçãoseformoubrevementeemseurosto.Porqueoamortemquesersempretãocomplicado?

Àsonzehorasdaquelanoite,Allietirouacaradoslivros.—Comida—murmurou.—Precisodecomida.Ela estava estudandona biblioteca comCarter, Lisa eRachel desde o nal do

jantar. O toque de recolher da biblioteca tinha sido estendido até a meia-noitenaquelasemana,emesmoaessahoraasalacontinuavalotada.

—Voubuscaralgumacoisaprabeber—informouAllie.—Alguémquer?

—Euestoubem—disseLisa,maldesgrudandoosolhosdolivro.Rachelsepronunciou:—Não quero ser pedante,mas a genteacabou de fazer um intervalo há uma

hora.—AAlliegostadosintervalosmaisdoquegostadeestudar—observouCarter.—Eoquetemdeanormalnisso?—disseAllie,selevantando.—Tudobem.

Vocês cam.Euvoltoquandoencontrarcomida.Equandotodosvocêsdesmaiaremdefomemaistarde,nãopensemquevãopodersealimentardemim.

Saindo da biblioteca com os olhos turvos, foi direto para umamesa estocadacom barras de cereais, vasilhas de frutas e jarras de café e chá no lado de fora dabiblioteca. O corredor estava cheio de alunos dando intervalo nos estudos, seespreguiçando,dormindoeconversandoantesdevoltaremaoslivros.

—Café—murmurou,dirigindo-seatéamesa.Ao servir café em uma xícara branca com o brasão da Cimmeria em azul,

examinouacomidacomdesânimo.—Porquenãotembiscoitoaqui?—disse,aninguémemparticular.—Ecadê

ochocolate?Comopossotrabalharnestascondições?—Eutragochocolate.Alliedeuumsaltoegirou,quasederrubandoocafé.—Sylvain,quemaldição.Vocêmeassustou.—Désolé...nãotiveintençãodeteassustar.Ameninanãopareceuconvencida.EnquantoSylvainseserviadecafé,Allievirouparasair.—Bem,foiótimofalarcomvocê...Sylvaindeuumrápidopassoemdireçãoaela.—Allie,espera.Porfavor.Euqueriafalarcomvocê...deverdade.—Ai,meuDeus,precisamesmo?—ConversarcomSylvaineraaúltimacoisa

queelaqueriaagora.—Não,claroquenão—disseele,parecendoferido.—Maseuia carmuito

felizsevocêmedessealgunsminutosdoseutempo.Alliesuspirou.—Tudobem.Desdequevocêprometaquenãovaisedesculparoutravez.OsolhosazuisdeSylvainbrilharam.—Eu não posso prometer que nuncamais voume desculpar,mas eu quero

conversarsobreoutracoisaagora.Contudo,mildescul...—Pronto,chega—disseela,afastando-sedele,masSylvainaseguroulevemente

pelobraço,rindo.

—Eunãoresisti!Porfavor,nãovai.Prometoquenãofaçodenovo.Allienãoteveaintençãodesorrirparaele,masofez.—Tudobem,eudesisto.Oquefoi?—Vocêseimporta...?—Elegesticulouparao mdocorredor.—Émelhora

genteirpraoutrolugar.— A gente não pode ir a nenhum lugar além daqui. — Ela apontou para a

biblioteca.—Jápassadasonze.—Ah,asregrasnãosãotãorígidaspramim.—Quandoelaoolhoucheiade

dúvida,eleacrescentouimediatamente:—Agentenãovaimuitolonge.—Cincominutos.—Ela levantou amão com os dedos abertos.—Depois

tenhoquevoltarpraestudar.—Combinado.Carregandoaxícaradecafé,elaoseguiupelocorredoremdireçãoaosaguãode

entradavazio.Ospassosdelesecoarampelapassagemespaçosa.Assim que caram sozinhos, o comportamento dele mudou. Ele parecia

desconfortável,eolhouemvoltaparasecerti cardequenãotinhamsidoseguidos.AtensãodeSylvainadeixoudesconfortável.

—Então...sobreoquevocêqueriaconversar?—perguntouela.Semqualquer aviso, ele deuumpassopara pertodeAllie e a puxoupara um

abraço.Antesqueameninapudesseseafastar,Sylvainsussurrouaoouvidodela:—Sintodizer,Allie,quevocêestácorrendoperigo.—Sylvain—sibilou—,mesolta.—Porfavor,Allie, ngequeagentetáconversandocomoamigospróximos.—

O tom suplicante de Sylvain a espantou o su ciente para que parasse de tentar seafastar.

—Quediabosestáhavendo?—sussurroueladevolta.—Nãoposso falarmuitacoisa—respondeu—,masacreditoquevocêesteja

correndoperigo.Quealguémvaitentartemachucar.Allie procurou qualquer sinal de que o rapaz estivesse brincando,mas ele não

estavasorrindo.Pelaprimeiravezsentiuumapontadademedo.—Quem,Sylvain?Quemquermemachucar?Ogarotobalançouacabeça.— Não posso contar nada. Não tinha nem que te contar isso. Mas eu tô

preocupadocomvocê.Porfavor,acreditaemmim,éverdade.—ÉoNathaniel?AssimqueAlliefalouaspalavrasamãodelavoouecobriusuaboca.Umafaíscadeinteresseiluminouorostodele.

—ComovocêsabesobreoNathaniel?OCartervaimematar.—Eu...Eusó...devoterouvidoumboatooualgumacoisa...Sylvainaencarou,comoseprocurassealgumapista.—Quemteameaça—disseele suavemente—importamenosdoqueoque

podeacontecersenãotemantivermosemsegurança.Achoquevocêdeve carcomamigosomáximopossível,não casozinhaemmomentoalgum.Principalmenteláfora.

Para Allie, ainda parecia estranho ser Sylvain quem estava lhe contando sobreisso.Elainclinouacabeçaparaolado,desconfiada.

—AIsabellesabe?—Sabe,mas não quer te assustar e acha que pode te proteger.Todomundo

achaquepodeteproteger.Eunãotenhotantacerteza.Porfavor,acreditaemmim.Éumfatoreal.

O calor do corpo dele ainda pressionando o dela era perturbador. Seu cheirofamiliarafezselembrardecomojásesentiraemrelaçãoaele—aosbeijosdele.

DerepenteprecisavaestarlongedeSylvain.Allieexalou.—Certo.Tudobem.Vouficarcomamigosenãovousairmuito.Nãopira.Amenina esperava que ele fosse se retirar naquele instante,mas Sylvian cou

ondeestava,olhandonosolhosdela.—Oquê?Temmais?—perguntouela.—Porfavor,dizquenãotemmais.—Não.AindatôtentandodescobrircomovocêsabesobreoNathaniel.— E eu ainda tô tentando descobrir quem quer me machucar — rebateu

acidamente.—Entãoachoqueagenteempatou.Ela pôde enxergar nos olhos do rapaz algo que parecia re etir suas próprias

emoções con ituosas, e isso tambémapreocupou.Manobrandopara se livrardosbraçosdele,elapegouocaféecomeçouavoltarpelocorredor.Elefoiaoladodela.

Quandochegaramàportadabiblioteca,eledissebaixinho:—Lembradoqueeudisse.Cuidado.—Estoutomando—respondeuameninacomcrueldade.

AllienãoconseguiadecidirsedeveriacontaraCartersobreaconversacomSylvainounão.Tinhaquase certezadequeCarternão caria feliz em saberque ela tinhafaladocomSylvain.Ede nitivamentenãoiagostarqueaconversativesseocorridocomo aconteceu.Mas não contar parecia errado.Não necessariamente como umatraição.Maiscomoumamentira.Umpouco.

MasquandovoltouparaabibliotecaeleestavaguardandooslivrosparairparaaEscola Noturna, então a decisão foi tomada por ela — só teve tempo para umarápidadespedida,enãovoltouavê-lonaquelanoite.Nodiaseguinte,comoelefoiliberadoparadormir,nãooencontrounasaulasdamanhã.Entãonãotevechancedecontar.

Pelomenosfoiassimqueexplicouparasimesma.EparaRachel,que,parasuasurpresa,levouanotíciamuitoasério.

—OSylvain émuito importante naEscolaNoturna,Allie. Ele pode ser umbabacacompleto,massealguémvaisabersobreessetipodecoisa,éele.—Rachelfranziuocenhoaopensarnoassunto.—VocêfaloucomaIsabelle?

EstavamsentadasondeAllieeSylvainhaviamconversadonanoiteanterior,cadauma com uma xícara quente de chá e um biscoito intocado. Apesar de não terninguémemvolta,conversavamaossussurros.

—Deveria?—perguntouAllie.— Isso estáme incomodando.Elenão falouque eu não deveria. Mas me pareceu meio... não sei. Emoff. Como se ela nãoquisessequeeusoubesse.

— Mas se você tá mesmo correndo perigo, por que ela não quereria quesoubesse?—Rachelpareciapreocupada.

—Nãosei,essahistória todasoamuitoestranha.Masoolharnorostodele...mepareceuqueestavarealmentepreocupado.—Allieseinclinouparatráscomumsuspiro.—Temalgumacoisaerrada.

—Deixaeupensar—disseRachel.—Vouteralgumaideia.MasAllietambémachouqueelapareciapreocupada.

ComoavisodeSylvainpairandosobreela,Alliedormiumalnasegunda-feira.Naterça,apósmaisumdiadeaulas intensaseumanoite terminandoumtrabalhonabiblioteca,agarotaestavaexaustaquandosubiuasescadasàmeia-noite.

Seus dentes receberam uma breve visita da escova e já estava semidormindoquandocolocouopijama.

Deixandoajanelaabertaparaabrisanoturnamorna,murmurou:—Boanoite,quarto.Ecaiunumsonotãoprofundoquenãoconseguiaselembrardenenhumsonho.Quandoacordoumaisoumenosduashorasdepois,primeironãosoubeoquea

perturbou.Abriuosolhos.Aindaimersanoborrãoentresonhoevigília,elaviuumagura inclinada sobre a cama, observando-a. De início, achou que estivesse

sonhando.Emseguidaoouviurespirando.

—Carter?—murmurou,semexendo.Allie sentiu mais do que viu o movimento súbito enquanto a gura saltava

agilmenteparaamesaesaíapelajanelacomafacilidadedeumacrobata.NãoéoCarter.Apercepçãoaarrancoudotorporeelasesentounacama,ereta,olhandoparaa

janelaabertaporumafraçãodesegundoantesdepularparaacenderaluz.Oquartoestavavazio,masalguémtinhaestadolá,tinhacertezadisso.Oslivros

epapéisnaescrivaninhatinhamsidobagunçados.Umacanetaquetinharepousadoemumcadernoantesdedormiragoraestavacaídanochão.

Nãofoiumsonho.Forçando-seacontinuarrespirandouniformemente,elasubiunaescrivaninhae

olhoupelajanela,mastudoqueviufoiapaisagem,banhadapelobrilhodesbotadodeumafatiadelua.

Tremendoapesardanoitemorna,Alliefechouajanelaeatrancou—testandoaforçadatrancaantesdevoltarparaacamaeabraçarosjoelhos.Ficouacordadaporumlongotempo.

–T

VINTEEOITO

alvezvocêestivessesonhando—sugeriuCarter,maselaviuqueosmúsculosdorapaztinhamficadotensos.

—Nãoestava—insistiuAllie.—Coisassaíramdolugar.Alémdisso,euviele.Estavam sentados com Rachel na casa de veraneio. As aulas do dia tinham

terminadoháalgunsminutos.Océuestavacinzentoesinistro,masaindanãotinhacomeçadoachover.

—Vocêvêpessoasnossonhos—observou.—Todomundovê.Comopodeter certeza de que não foi o vento que soprou as coisas quando você estavadormindo?

—Vocêsebeliscou,Allie?—perguntouRachel.—Oufezalgumacoisaprasecertificardequeestavaacordada?Àsvezesossonhospodemparecermuitoreais.

—Euvi.—Allieestavacadavezmaisfrustrada.—Porquenãoacreditamemmim?Euestavasentadanacamaenquantoelepulavaa janela.Nãofoiumsonho.Eleestevenomeuquarto.—Ameninaestremeceu.—Eleestevenomeuquarto.

—Ei,tátudobem.—Rachelcolocouobraçoemvoltadela.—Vocêestábem.Agenteacredita.Agente sóquerquevocê tenhacerteza.Contaexatamenteoqueviu.Comoeleera?

Retorcendoorosto,Allietentouselembrardetudo.—EleeramaisbaixoqueoCarteremais leve.Estavatododepretoe tinhaa

peleclara.Tenhoquasecertezadequetinhacabelospraticamentelouros.Duranteumtempopassaramsemmuitoentusiasmoporumalistadetodosos

alunosquepoderiamseencaixarnadescrição,masdescartaramtodos.—Ninguém na EscolaNoturna tem essa aparência— falouCarter.—E só

quemédaEscolaNoturnapodesubirnotelhadonessahora.—QuemédaEscolaNoturnaequemquerquefosseapessoanomeuquarto

ontem à noite — disse Allie. — Carter, tem mais uma coisa que eu preciso tecontar...

Atéaqueleinstante,aindanãotinhafaladoparaelesobreaconversacomSylvain,então revelou tudo de uma vez. EnquantoCarter ouvia, suamandíbula enrijeceu.

Quando ela terminou, o garoto levantou em um pulo, sem dizer uma palavra, emarchoudacasadeveraneioatéabeirada oresta,onde couparadodecostasparaelas.

—Uh-oh—disseAllie,semovimentandocomosefosselevantarecaminharatéele,eemseguidamudandodeideiaesentandonovamente.

—Dáumminutopraele.Elevai carbem—tranquilizouRachel.—Edepoiseuirritoelebastantecomaminhanotícia.

—Notícia?—Allieergueuumasobrancelhacuriosa.—Vamosesperar—respondeuRachel,observandoCarter.—Sóquerocontar

umavez.Allieviuqueeleagoraestavavoltando.Oruborquehavia inundadoseurosto

enquantoescutavaahistóriadelatinhasumidoeCarterpareciamaiscalmo.—Euacreditonele—disseCarter.—Eleéumbabaca,massealguémteriaessa

informação,seriaele.Eletinhaquetercontadopramim.Nãopravocê.—Pareciafurioso.—Maseleéa mdevocê,entãodecidiufazerassim.Tudobem.Agoraagentesabe.

Allie olhouparaRachel, que franziu o rosto antes de se inclinarnadireçãodeCarter.

—Vocênãovaigostardoqueeutenhopradizer.—Oquê?—rosnouele.—Támedizendoqueessediaaindavaimelhorar?—Euconteipromeupaioquetáacontecendo.—Ah,ótimo.Realmentemelhora!—Carterpassouamãonocabelo.—Não

fazia ideiadequeissofossepossível.Sabe,entrevocêsduas, todomundovaisabertudosobreagenteantesdo mdoperíodonasexta-feira.Émelhoragentealugarumoutdoorpra estampar todos os nossos segredos?Talvez possamosmontar umsite,todososnossossegredospontocom.

—Aquinãotemcomputador—relembrouAllie.— Eu tenho total ciência da falta de tecnologia de internet na Cimmeria —

comentouCarter,irritado.—Masobrigadopormelembrar.AlliedesviouparatrásdeRachel.—Sintomuito—disseRachel.—Entendoquevocêsnãosaibamquepodem

con arnomeupai,masacreditem,vocêspodem.EeutôassustadapelaAllie.Entãopegueio telefoneda Isabelle emprestado e contei tudopra ele.Ele sabequeméoNathaniel.

Aúltimafrasepareceupairarnoar.Alliefoiaprimeiraarecobrarossentidos.—Queméele?—perguntouansiosa.

—Onegócioéoseguinte—disseRachel,olhandopreocupadaparaCarter.—Elenãoquermecontar.

—Claroquenão—disseelesarcasticamente.—Maseleétotalmenteconfiável.—Eleé.—Rachelestava lutandoparasemantercalma.—Eledissequenão

podiamecontarisso.Masmeupaimedissealgumascoisassobreele.FalouqueoNathaniel fala sério.Que ele e a Isabelle forammuito próximos, e essas foram aspalavras exatas que ele utilizou, mas que tiveram uma briga e agora o cara estádeterminado a assumir a Cimmeria e a EscolaNoturna, parameio que ocupar olugardela.Emeupaidisseque,seissoacontecesse,seriaumdesastre.EleabominaoNathaniel.Dissequeeleémuitorígido.Provavelmentelouco.Equenãovaimediresforçospraconseguiroquequer.

—Ah,ótimo—disseAllie.—Acoisapiora—prosseguiuRachel.—Algunsmembrosdoconselhoestão

do lado dele. Tem alguma coisa que a Isabelle tá fazendo que eles não estãogostando.Temalgoavercomaorganizaçãomaior.Sejacomofor,algumaspessoasgostariamque a Isabelle sumisse e achamque podem se utilizar doNathaniel praisso.Deixarocaraselivrardelaedepoisselivrardele.Masopapaidissequenãovaidarcertoequeissopoderiaarruinartudo.

“ElevaiconversarsobreissocomaIsabellenasexta,quandoviermebuscar.Masfaloumaisumacoisa.”

RachelolhouparaAlliecomocenhofranzido.—Eledissepravocêtomarcuidado.ImagensdanoiteanterioracenderamnamentedeAllieeameninaestremeceu.

Emseguidaselevantou,comolhosdeterminados.—VamosfalarcomaIsabelle.—Oque...—disseRachel.—Agora?—Agora.—Ela tem razão.—Carter se levantou e foi para o ladodeAllie.— Jánão

tenhomais ideias. E alguém entrou no quarto da Allie ontem à noite. Chegou ahora.

—Bem—Rachelselevantouejuntou-seaeles—,talvezelanãoexpulsetodomundo.

—Evocê temcertezadequenão estava sonhando?—Osolhosde Isabelle erampenetrantes,masAllienãoesmoreceu.

—Tenho—disseAllie,comavozmaisconfiantedoqueestavasesentindo.Depoisqueaabordaramcomahistória,IsabelleconvidouSylvaineMatthewa

se juntarem a eles, e agora estavam todos reunidos no escritório. Allie e Cartersentaram no alto dos armários que revistaram duas semanas antes. Rachel estavasentadadepernascruzadasnochãoabaixodeles.Sylvain,IsabelleeMatthewestavamnascadeirasdecourodadiretora.

Quando Sylvain e Matthew se juntaram a eles, Isabelle apresentou Matthewcomo um “especialista em segurança”, e em seguida solicitou que Allie, Rachel eCartercontassemnovamenteahistória.

Agora,enquantoprocessavamainformação,asalaestavaemsilêncio.—ÉumadaspessoasdoNathaniel—disseSylvain,rompendoosilêncio.Isabelleoolhouincrédulo,maselenãorecuou.—Elesjásabem,nãosabem,Allie?—perguntou,olhandofirmementeparaela.Enrubescendo,Allieassentiu.—ComovocêsabesobreoNathaniel?—perguntouIsabelle,comavoztensa

deraiva.AllieolhourapidamenteparaCarter,eemseguidaparaIsabelle.Suamandíbula

trabalhouenquantopensounoquedizer.—Issorealmenteimporta?IsabellesustentouoolhardeAllieporumlongoinstante,eAllienãoconseguiu

leraexpressãodadiretora.—Não. Suponho que não.—Olhou para Carter e Rachel.—Vocês todos

sabem?Assentiram,mudos.—Muitobem,então.Matthew?—Isabellesevoltouparaoconselheiro.—Quemmaispoderiaser?—perguntouMatthew.—Certo.Faltamdoisdiasparaacabaroperíodo—disseIsabelleparatodos.—

A Escola Noturna já está fazendo o máximo possível para tentar garantir que oterritóriodaescolaestáseguro.Masnãotemosgentesu ciente,entãoalguémentrouenãopercebemosnada.NãoseioquevocêspensamquesabemsobreoNathaniel,maspossofalarqueeleémuitoperigosoevingativo.Eleesteveportrásdepartedoqueaconteceunanoitedobailedeverão.Entãoprecisamosmudarnossaestratégia.Voufalarcomosoutros,masenquantoisso,SylvaineCarter,opapeldevocêsagoraé carpertodaAllieotempotodo.Noiteedia.Pelomenosumdevocêsvaiterqueacompanhá-la constantemente.Nunca saiam do lado dela.Trabalhem em turnos.Combinado?

CarterfezumacarafeiaparaSylvain,masconcordou.Sylvainpareceucompletamenteinocente.—Combinado.

—Allie—Isabelle sevoltouparaela.—Queroquecontinuecomasuavidanormalmente.Vaipraaula.Dormenopróprioquarto.MasnãovaialugarnenhumsemoCarterouoSylvain.

Apesar de não conseguir imaginar como funcionaria (e quando precisasse ir aobanheiro?),Allieconcordoumuda.

—Rachel,seiquevocêjáestáfazendoisso,mas caomáximopossívelcomaAllie.Elavaiprecisardoseuapoio.

—Claro—disseRachel.Isabellecontinuou:—Voufalarcomoseupai,paramecerti cardequeeleconcordacomisso,mas

tenhocertezadequeconcordará.— Agora. — Os olhos de Isabelle passaram pelos alunos. — Por favor, nos

deixem.Temostrabalhoafazer.

Nocorredordo ladode foradoescritório,a tensãonoarera forte.CarteragarroupossessivamenteamãodeAllie.

—Querqueeuassumaoprimeiroturno?—AvozdeSylvainerasedapura.UmtendãotrabalhounamandíbuladeCarter.—Euqueroquevocêvásef...—começou,masAllieagarrouobraçodele.—Carter,não.Calma.—Elaolhouparaosdois.—Vocêspodem carcomigo

atéumterqueirparaalgumlugar,tudobem?Aíooutroassume.Sembriga.Pelomenosnãoentrevocês.

Nenhumdosdoisrespondeu.—VoupassarorestododianabibliotecacomaRachel.Podemosestudartodos

juntos—prosseguiuAllie.—Vaificartudobem.Sãosódoisdias.—Pormimestábom—Sylvainronronou.Carteraindanãotinhasepronunciado,eagoraAllieolhouparaele,acariciando

suabochechatensacomaspontasdosdedos.—Vamos—sussurrou.—Tudobem—concordouentredentes.—Nósdois vamos tomar contade

você.Alliesuspirou.—Ótimo.—Bem...Temumlivrodequímicamechamando—declarouRachel.Allieaolhoucomgratidão.—Eeuaindatenhoqueterminaraquelemalditotrabalhodehistória.Sótenho

quecorrerparaomeuquartobuscarminhasanotações.

—Euvoucomvocê—entoaramCartereSylvain.Osdoisseentreolharam.—Ai,meuDeus—murmurouAllie,exaurida.—Issoéperfeito.

Pelorestodanoite,foraumrápidointervaloparajantar,ostrês caramestudandonabiblioteca,ondearegradoproibidofalarsigni cavaquenãopodiambrigar,peloqueAlliesesentiugrata.Massemprequedavamumintervaloparatomarcafé,tantoSylvainquantoCarter se levantavampara acompanhá-la.Carter fazia cara feiaparaSylvain,quesempredavadeombrosinocentemente.

—Masestoucomsede.—Babaca—murmuravaCarter,pegandoamãodeAllie.AllieviravaparaRachelenquantoeleapuxava,mexendoabocacomorecado:—Meajuda.Rachelsorriasolidariamente.Mais tarde, quando Rachel sugeriu um intervalo para ir ao banheiro, Allie a

seguiuansiosamente.SylvaineCarteresperaramdoladodeforadaporta.—Então,basicamente,esteéomeupiorpesadelo.Meuatualemeuex-futuro

namoradosconstantementedomeulado...juntos.—Alliejogouáguafrianorosto.— O Carter está lidando muito mal com a situação. — Rachel suspirou

enquantoAlliesecavaorosto.—Queriaque,paraobemdele,eletomasseumabelaxícaradecalma.

—Precisamesmo.Nãotenhocomoaguentarissodurantedoisdiasinteiros—disse Allie, aplicando uma leve camada de brilho labial cor-de-rosa. — Vouenlouquecer.

Olhou para o próprio re exo no espelho.O cabelo tinha crescido e a henna,desbotado.Agorasependuravaemondasescurasbrilhantessobreasomoplatas.Seusolhoscinzentosegrandeseramemolduradospor longoscíliosnegroscontraapeleclara.Usavapoucamaquiagem;nãoprecisavademais.Ablusabrancaeasaiaxadrezdouniformeenfatizavamsuascurvaserealçavamsuaspernasatléticas.Percebeuquenãosepareciaemnadacomamolecaquesemprefoi.PelaprimeiravezachouquepudesseenxergaralgumacoisadoqueCartereSylvainviamnela.

Eumudei,pensou,eviuumaexpressãosatisfeitanoespelho.Estoumeio...bonita.—Pronta?—perguntouRachel,jogandoatoalhadepapelnolixo.Allieguardouobrilholabialnobolso.—Pronta.

—Temqueparar,Carter—disseAllie.—São sódoisdias.Eu realmentequero

quevocêfaçaisso.—Masnuncavoumeesquecerdojeitoqueeletetratou...—comentou,com

osombrostensos.—Eusei,maselemepediudesculpaseeuaceitei, entãovocê tambémvai ter

que desculpar— disse ela.—Ele estáme ajudando. A Isabelle quer que a gentetrabalheemunião,então,porfavor,paradesertãomacho.Vocênãoéassim.

Jápassavademeia-noiteeelesestavamsentadosnacamadoquartodeAllie.Asjanelas estavam fechadas e trancadas, e uma barra tinha sido a xada para prendermelhor.IsabelleinsistiaqueumdelespassasseanoitedoladodeforadoquartodeAllie,masosdoisestavaminsistindoemficar.Sylvainestavaláforaagora.

—Desculpa—pediuCarter.—Seiqueestousendociumento.—Vocêacha?—perguntouAllie,rindo.Elesorriuenvergonhado.—Umpouco,talvez.—Eusóquerovocê,CarterWest.—Elasubiunocolodeledemodoque cou

comumapernadecadaladodeCarter,ecomorostoapoucoscentímetrosdodele.—Vocênãoprecisaterciúmedenada.

As mãos de Carter deslizaram pelas costas de Allie enquanto ela abraçava opescoçodele.

—Sóvocê—sussurrouela,seinclinandoparaafrenteparabeijá-lo.Beijaram-se até todos os pensamentos sobre Sylvain desaparecerem e estarem

inteiramentefocadosumnooutro.AsmãosdeCarterdeslizaramparaosquadrisdeAllie,eapuxaramcom rmezacontraoprópriocorpo,eelanãoresistiu.Quandoasmãosdelepuxaramabainhadablusaparaforadasaiaepercorreramsuascostas,suapele formigou. Quando mordeu a orelha dele, Allie sentiu o coração de Carteracelerar.

Quando a garota recuou, ambos estavam sem fôlego; o rostodeCarter estavaenrubescido.

—Euvouseraadultadessavez—disseAllie.—Temqueser?—sussurrouele.Asaiadelahavialevantado,eeleacariciousuas

coxasnuas.— Infelizmente. — Ela se levantou e, inclinando-se para a frente, tocou

levementeoslábiosnosdele,recuandoantesqueCarterpudesseagarrá-la.—Alguémtemqueser,etenhoasensaçãodequenãovaiservocê.

—Nãodessavez—disseele.Passandoasmãosnocabeloparaajeitá-lo,eladisse:—Quebomqueagenteteveessaconversa...

Carterriu.—Vocêvaitentarnãoserciumento?—Voutentar—prometeu.Levantando-se,eletentoualcançá-la,masemdois

segundosAlliejáestavanaporta,eaabriu.—Boanoite,então.—Elaolhouemvoltadoladodefora,atévirqueSylvain

estavasentadodecostasparaaparedeolhandoaportadoquartodela,semexpressão.—Boanoite,Sylvain.

—Boanoite,mabelleAllie.—Elateveaimpressãodesentirarrependimentonavozdele.

Carterpassouporelaaosair,inclinando-separabeijá-lalevemente.—Sevirououvirqualquercoisa,grita,tudobem?—Prometo.Assim que ele saiu, ela vestiu um pijama branco limpo e deitou.Depois que

apagou a luz, repassoumentalmente a noite, lembrando-se da sensação dos lábiosdele.Doquantoeleaqueria.

EmnenhummomentopensouemNathaniel,ouemperigo,ouemprecisardeguarda-costas.Emvezdisso,imersanocalordafelicidade,caiunosono.

Maistarde,imaginariaoqueaacordara.Talvezospassosnocorredor.Ouasvozesdoladodeforadaporta.Dequalquerforma,quandosuaportaseabriusubitamenteealuzacendeu,elajáestavasentadanacama.Eramtrêsdamanhã.

—Levanta,Allie.—O rosto deCarter estava sombrio.—ONathaniel estávindo.

A

VINTEENOVE

llie lutou para manter a calma. Ainda grogue de sono, tentou calçar ochinelo diversas vezes, mas não parecia capaz de fazer os pés deslizaremdentrodeles.

— Deixa. Não dá tempo. — Carter alcançou a mão dela e a puxou para ocorredor,ondeSylvainestavaalerta,esperandoporeles.

—Poraqui—disseSylvain,conduzindo-osparalongedasescadas.—Praondeagenteestáindo?—sussurrouAllie.—Sairdaqui—respondeuCarter.Correram para o m do corredor, onde Jules estava esperando perto de uma

portanãonumeradaqueAlliesemprepresumiusetratardeumarmáriodevassouras.Sem uma palavra ela abriu para revelar uma escadaria estreita e curvilínea, maliluminadaporlâmpadasexpostas.

Correramaumavelocidadeperigosa,Sylvainliderando,AllieeCarternomeio,eJulesatrás.Ninguémfalounada.Quandochegaramláembaixo,Sylvainabriuumaporta que levava a uma sala que Allie nunca tinha visto — um espaço com umaspectodecriptaquepareciatersidotalhadoempedra,compilaresespessosdepedradecalcobertosporelaboradosentalhes,iluminadoporumaluzquepiscava.OchãodepedraestavaempoeiradoefriosobospésdeAllie.

Nãoacredito.Temumcalabouço.—Ondeagentetá?—sussurrouela.—Naadega—respondeuJules.Ela, Sylvain e Carter tinham formado uma espécie de círculo com Allie no

centro.Estavamtodosdecostasparaela,espiandoassombras.—Melhortirarmoseladaqui?—perguntouJules.—AIsabellefaloupratirarsefosseseguro—disseCarter.—Mascomoagente

vaisaber?—Fiquemaqui.—AvozdeSylvainveiodetrásdeAllie.Silenciosamente,eledesapareceunassombras.Osoutrostrês caramondeestavam,emsilêncio.Apóscercadecincominutos,

Sylvainreapareceuegesticulouparaqueoseguissem.Comamesmaformaçãoadotadanasescadas,correramparaumaportaescondida

nas sombras. Ele indicou que esperassem enquanto ele atravessava. Em seguida,voltououtravezeacenoucomacabeçaparaCarter.

Todososseguiramporumaescadaeumaportatãopequenaquetiveramqueseabaixarparapassar.Umavezláfora, caramen leiradoscomascostasnaparededaescola. O braço de Carter se esticou sobre Allie protetoramente, segurando-a nolugar.

A noite estava fria e úmida — nuvens cobriam a lua. De início Allie nãoconseguiuvernada,masseusolhosseajustaramgradualmente.

Lembrava a noite em que ela e Carter seguiram Isabelle para a reunião comNathaniel.Desconfortável,olhouparaabordadafloresta,escuranohorizonte.

Seráqueagoratemalguémlá,olhandopragentecomonósolhamospraeles?Carterpuxouamãodela:estavamindo.Correramemtornodaalaoesteparaos

fundosdaescola,passandopelogramadodopátio,eemdireçãoaojardimfechado.Pedras cortaram os pés descalços de Allie, mas ela ignorou a dor. Logo antes dechegaremaoportãodojardim,Sylvaindesvioudarotaedesapareceu.Umporumoseguiram.

AgrutaparaaqualoslevoueratãobemescondidaatrásdeárvoresemataespessaqueAllienuncatinhanotadoantes.

Nãoconseguiaidenti carosdetalhesnaescuridão,masdavaparasentirqueerafeita de pedra e madeira, e conseguiu identi car vagamente uma estátua de umamulhernuaegraciosadançandonocentro.

Comunicando-se apenas por gestosmanuais,Carter, Sylvain e Jules formaramumescudoprotetornafrentedeAllie,defrenteparaaescola.Allietentou cartãoparadaquantoaestátuaatrásdesi.

Duranteumlongotempo,nadaaconteceu.Alliejátinhacontado137respiraçõesquandoviuJulesgesticularparaumpequenopontodeluzaolonge.Alliecerrouosolhosetentoufocarnele.

Emsegundos,haviamaisum.Eoutro.Emseguida,haviameiadúziadelessemovendocomtantalevezaquepareciam

flutuar.Eestavamseaproximando.AllieestavaentreJuleseCarter,tentandoenxergarmelhor.—Oquesãoeles?—arfou.FoiSylvainquerespondeu.—Nathaniel.Allieficousemar.

—Oqueagentevaifazer?—Esperar—disseJules.Levou cincominutos para os pontos de luz se tornarem tochas iluminadas. E

estavampróximososu cienteparaqueAlliepudesseenxergarasformassombreadasqueassustentavamquandoouviuavozdeIsabellesoar.

—Nathaniel!Paracomisso.Nãoétardedemais.—Euseiquenãoé.—AquelavozfamiliardesdenhosagelouosanguedeAllie.

—Éporissoqueestamosaqui.—Deixaessaescolaempaz—disseIsabelle.—Nãoimportaoquevocêfaça,

nuncavaiteraCimmeria.— Você parece tão segura — comentou Nathaniel. — Mas, pensando bem,

semprefoiarrogante.—ALucindanão quer isso,Nathaniel.—A voz continha um aviso.—Vai

contraasvontadesdelaporsuaprópriacontaerisco.— Se isso é verdade, então cadê ela?— desdenhou.—Não estou vendo ela

correrprateproteger.Enquanto discutiam, alguma coisa no ar chamou a atenção de Allie. Uma

mudançanatemperatura?Ouera...umcheiro?Oqueéisso?SuamãovooueagarrouobraçodeCartercomurgência.—Fumaça.Eutôsentindocheirodefumaça.Cheirandooar,SylvainvirouparaCarterepelaprimeiravezelaviudesesperono

rostodele.—Lá!—Julesapontouparaaaladodormitóriomasculino.Afumaçavazava

pelajaneladosegundoandarechamasdançavamportrásdovidro.—Ai,meuDeus—sussurrouAllie.—Jules,ficacomaAllie—instruiuSylvain.—Carter,vemcomigo.Antesdesegui-lo,CarteragarrouAlliepelosombros.—Ficaaqui.—Estavaescuro,maselapôdeenxergaromedoemseusolhos.Semdizer nada,Allie assentiu, esticando-se para agarrar amãodele com tanta

forçaquedoeu.Eentãoelesumiu.Agorasozinhas,AllieeJulesficaramladoaladoolhandoparaaescola.AvozdeIsabellenãotinhaperdidonemumpoucodaconfiança.— É esse o seu plano, Nathaniel? Destruir o que não pode ter através de

mentiras?De trapaças?De exigências? Sempre soubeque você era desaforado,masissovaitedestruir,enãoaCimmeria.

Eleriu.

—Eunãodeveria carsurpresocomasuaarrogância,Isabelle.Mas,porfavor,nãomeofenda.Soumaisespertodoqueisso.

Uma luz no andar superior chamou a atenção deAllie.Tocando o ombro deJules,elaapontou.Piscouemumajanela.

—Odormitóriofeminino—sussurrouJules,olhando-afixamente.—Oqueagentefaz?—perguntouAllie.—OSylvaineoCartervãocuidardisso—murmurouaoutraemresposta.Masotempopassouenadaaconteceu.Aschamasnaaladasmeninaspareceram

adquirirforçaecrescerrapidamente.Afumaçaagoraestavadensa.—Jules,agentetemquefazeralgumacoisa—disseAlliecomurgência.— Eu prometi ao Sylvain... — argumentou Jules, mas Allie ouviu a

preocupaçãonavozdela.Alliesedecidiu.—Vamosficarjuntas.Vamos.NãoesperouJulessedecidir—correudagrutaemdireçãoàsárvores,masJulesa

alcançourapidamenteeagarrouamangadeseupijama,conduzindo-apelalateraldaescolaparaumaentradalongedeIsabelleeNathaniel.

Correram juntaspelaporta, passandoporum leve torporde fumaça.Estavamemumasalacomprateleirasemaisprateleirasdelivros.

Estamosnosfundosdabiblioteca.Estavamperto de onde havia encontradoCarter há algumas semanas— latim

antigo.Nuncasoubequetinhaumaportaali.—Poraqui—sussurrouJules.Eemseguidadesapareceu.Aturdida,Alliegirouemumcírculoprocurandoporela,masestavasozinha.—Jules?—sibilounaescuridão.—Cadêvocê?Nãoobteveresposta.— Jules?—Allie ouviu opâniconaprópria voz.Respirando trêmula, tentou

decidiroquefazer.Alguma coisa estava errada. Tinha certeza de que Jules não a deixaria... ou

deixaria?Seucoraçãobateuacelerado.Seráqueelametrouxeparaumaarmadilha?Tossiu.Afumaçaestavaengrossando.Derepentesoubeoquefazer.Correupelabiblioteca,passandopelosrecantosdosestudantesepelasmesasonde

já havia sentado tantas vezes com Rachel e Jo, em seguida atravessou a porta dabiblioteca.Tinhaumalarmedeincêndiodolado,eelaopuxou.

Nadaaconteceu.Olhou xamente para ele, espantada. Em seguida lhe veio uma lembrança—

algo que Gabe havia dito antes do mergulho de verão: “Todos os alarmes nessaconstruçãosãofalsos.Nãotemalarmes.”

Sem parar para pensar, correu pela escada principal em direção ao dormitóriofeminino.Aoalcançaroandareviraremdireçãoàpróximaescadaria,viuuma guranofimdocorredor.Ohomemestavacomumatochaacesanamão.

Alliecongelou.Eleaindanãoatinhavisto.Se cassecompletamenteparada,elejamaisanotaria,eentãopoderiasubirparaodormitóriofeminino.

Mas aí ele provocaria mais incêndios. A escola queimaria. Nathaniel venceria.Sentiu-sedividida.Oqueeramaisimportante?Alertarasmeninasoucontê-lo?

Eraumasituaçãoimpossível.Nãohavianinguémparalhedizeroquefazer.Issosempreacontececomigo.UmaondainesperadaderaivaasacudiueAlliedeu

váriospassosnadireçãodeNathaniel.—Ei!Você!—gritouaplenospulmões,eoviupararevirar.Por um curto instante tão longo quanto a eternidade, nenhum dos dois se

moveu,eosdois seencararam.Achamaestavapróximaosu cientedorostodeleparaqueelapudesseidentificarsuasfeições.

—Christopher?—sussurrou.Elaviunosolhosdelequeatinhareconhecidoemaisalgumacoisa.Eentãoele

correu.—Christopher!—Elaberravaagora.—Christopher!Nãomedeixa!Através das lágrimas que corriam pelo seu rosto, ela viu que o rapaz tinha

desaparecido.Omundogirou,eAllieseapoiounaparedeparatersuporte,enquantorespirava

fundo.Masa fumaçaestavaespessademaisagora,eela tossiucomtanta forçaqueachouquefossedesmaiar.

Tudobem,pensou,engasgando,tentandorespirar.Calma,Allie.PodiaescutaraspalavrasdeCarteremsuamente,dizendoparaseconcentrarna

respiração.Respirou várias vezes, curta e rmemente, ltrandoo arpelo tecidodamanga. Quando o mundo parou de rodar, olhou em volta. A fumaça estava seintensificando.

Nãotinhamuitotempo.Puxandoacamisadopijamaporcimadaboca,elasecurvouparabaixoecorreu

orestodaescadaria(17degraus)paraodormitóriofeminino.Abriuaprimeiraportaqueviu.Afumaçaaindanãotinhachegadoali,edavapararespirar.Ameninaqueestavadeitadasesentou.

EraKatie.—Fogo!—gritouAllie, respirando arpuro.—Katie, levanta eme ajuda.A

gentetemquetirartodomundodaqui.—Quê?—AvozdeKatieestavagrogueeconfusa,maselalogofocouemAllie.

—Masque...?—Aescolaestápegandofogo,Katie.Porfavor!Sentindoocheirodafumaça,Katiesaltoudacama.EnquantoAlliecorriaparaforadaporta,gritouporcimadoombro:—Todasasportas!Bateemtodasasportas!Avisaprameseguirem.Katiecuidoudeumladodocorredor,Alliedooutro.Correram,abrindoportas

e,senecessário,sacudindomeninasdacamaparaacordá-las.Allie avançou para o quarto de Rachel, mas a menina já estava acordada,

perturbadapelasvozes.—Meajuda—disseAllie,semfôlego.QuandoAlliechegouàportadeJo,amaioriadasmeninasjáestavaacordada.O

quartodeJoestavacheiodefumaça,eAllieviusuacabeçalouraaindanotravesseiro.Abaixounochãoeengatinhoupeloquarto.

—Jo—bufou,comavozcompletamenterouca.—Acorda.Mas Jonão semoveu.MesmoquandoAllie a sacudiu violentamente, ela não

reagiu.Esticandoamão,AlliedeuumtapanacaradeJo,comforça.Seusolhossemexeram.—Ai—sussurroufracamenteeAlliesentiuumimpulsohistéricoderir.—Levanta,Jo.Vocêtemquelevantar.Comobraço embaixodoombrode Jo,Allie apuxoupara cima,mas ela era

pesada demais para conseguir levantá-la sozinha. Quando Rachel entrou, algunssegundos depois, entendeu rapidamente a situação e colocou o braço no outroombrodeJo.Juntas,levantaram-na.

—Lisa—sussurrouJo.AlliedirigiuumolhardepânicoparaRachel.—EuviaLisa—disseRachel.—Elatánocorredor.EnquantopraticamentecarregavamJoparaforadoquarto,Allieolhouemvolta,

preocupada.—Tátodomundoaqui?—Eucontei.—AvozeradeKatie.—AúnicapessoafaltandoéaJules.Alliesesentiucomosetivesselevadoumsoco.—Elaestavacomigoláembaixo—dissesemfôlego.—Perdiela.

—Vamos sairdaquiprimeiro—disseRachel suavemente.—Depois a gentepodeprocurarporela.

Allieconseguiaenxergararazãonaspalavrasdela.—Poraqui.Os pés de Jo estavam semovendo agora, eRachel conseguia apoiá-la sozinha,

então Allie as conduziu pela rota de Sylvain. Aquela escada ainda estava livre defumaça.

Aochegaremàadega,AllievirouparaKatie.—Contaoutravez.Semhesitar,Katiecalculourapidamente.—Estamostodasaqui.Allie gesticulou para que todas a seguissem e as conduziu pelas escadas até a

porta,rezandoparaqueestivesseaberta.Estava.Saírampela escuridão, tossindo e inalandoprofundamenteo ar fresco.Allie se

afastouosuficienteparaqueninguémpudessevê-la.Entãovomitounagrama.Quandovoltouparaogrupo,Joestavaempésemprecisardeapoio,apesarde

aindaparecerbastantetonta.Allieseajeitouetentouaparentarestarcontrolada.—Jo,vocêpodelevartodomundoparaojardiminterno?—perguntourouca.

—Achoquelávãoficarseguras.Joassentiu,ecaminhoudebilitadapelatrilha.Todasasoutrasforamatrás,exceto

RacheleKatie.—Aondevocêestáindo?—perguntouRachel,desconfiada.—TenhoqueacharaJules—respondeuAllie.—Elapodeestarmachucada.—Entãoeuvoucomvocê—disseRachel.—Rach,não.—Alliepôdeouvirapreocupaçãonaprópriavoz.—Vocêpode

semachucar.— Você também — observou Katie. — E eu vou junto. A Jules é minha

melhoramiga.Nãovamosdeixarvocêfazerissosozinha.—Ai,meuDeus—resmungouAllie.—Meninas,asituaçãoégrave.—Vainafrente,Allie.—AvozdeRachelera rme.—OndevocêviuaJules

pelaúltimavez?Allieasencarouincerta,masotempoestavapassando.Sabiaquenãoiaconseguir

convencê-lasdocontrário.—Nabiblioteca.Temumaportasecreta.—Euseiondeé—falouRachel.

—Sabe?—Claroquesei—disse.—Seitudosobreabiblioteca.Mantendo-seàssombras,correramparaaportaeabriram-na.Afumaçasaiuem

umaondacinzaeespessa.Alliesentiuocoraçãoafundar.Issoeraimpossível.—Fiquemabaixadas—sibilouRachel,eelascaíramsobreasmãoseosjoelhos,

cobrindoasfacescomasroupas.—Ondevocêestavaquandoviuelapelaúltimavez?—perguntouKatieaAllie.Allienãoqueriaresponderquecomaquelafumaçaespessatudopareciaestranho.

Que não tinha certeza. Prendendo a respiração, levantou e olhou em volta, emseguidaabaixououtravez.

Latimantigoevaiemfrente.—Achoqueunsquatrometrosemeioemfrente.Engatinharamparaafrente.Masquandochegaramlá,Julesnãoestavaemlugar

nenhum.Racheltossiu.—Nãoestouvendoela.— Vamos nos dividir. — A voz de Katie saiu abafada pela camisa. — Não

andemmaisdoquetrêsmetrosemdireçõesdiferentes,edepoisagenteseencontradevoltaaqui.

—Cuidado...—acrescentouAllie.Mantendo-se o mais agachada o possível, Allie foi para longe delas,

contabilizandomentalmenteoavanço.Masacabouindomaisdoquetrêsmetrosnom das contas — quando não encontrou Jules, avançou seis. Em seguida sete e

meio.MasJulesnãoestavalá.A fumaça estavamais espessa, e estava difícil enxergarmuita coisa. Seus olhos

arderameaslágrimasborraramaindamaisavisão.Demais.Fuilongedemais.Allie viroupara voltarpara as outras,mas cou instantaneamentedesorientada

—de onde tinha vindo?No escuro e com aquela fumaça, parecia tudo amesmacoisa.Tinhapassadoporaquelaprateleiraaltaantes?Acom livroscomtítulos emcirílico?Jáatinhavistoalgumaveznavida?

Tossiu violentamente. Quando tentou recuperar o fôlego, mesmo através dacamisaafumaçaeratãofortequeeracomoseestivesseembaixod’água.Nãotinhaar.Nãotinhaoxigênio.Suarespiraçãoveioemengasgoscurtoseinúteis.

Quando tentou irmais depressa, os contornos da sua visão começaram a car

pretos.Nãoiaconseguir.Aolonge,ouviuumavozgritar:—Achei!Elaestáaqui.Outravozchamouseunome.Elatentouengatinharemdireçãoaosom,masnão

conseguiusemover.—Aqui—resmungou,mas sabiaqueo somtinha sido fracodemaispara ser

ouvido.Nunca tinha se sentido tão exausta.Se eu pudesse descansar só um pouquinho,

poderiareunirforças.Sóumcochiloevouconseguirajudarmais.Tôtãocansada.Suacabeçaestavamuitopesada.Deixou-secairnochão.Enquanto a inconsciência a envolvia como um cobertor quente, suspirou

aliviada.Derepenteestavavoando,apoiadaporalgoforteecarinhoso.Sucumbiu.Segura.

Protegida.Flutuando.Arcalorosopreencheuseuspulmões,eemseguidasefoi.Encheuospulmõesese

foi.Diversasvezes.Eentãoumalindavoz.—Porfavor,nãonosdeixe.Nãovai.Lábioscalorososnosdela.Arquentenoseucorpo.Foi acometidapor umador e tossiu tão violentamente que seu corpo sacudiu

convulsivamente.Contudo,quandoaconvulsãoparou,foiacariciadaporarfrescoerespirouagradecida.

Abriu os olhos.Estavano colode Sylvain, que a abraçava forte.Ela esticouobraçoetocouseurostoadmirada.

—Porquevocêestáchorando?—sussurrouela.Elenão respondeu.Emvezdisso, a embaloucomoumbebê, como rostono

cabelodela.Escutando-arespirar.

–D

TRINTA

estavezaIsabellechamouabrigadadeincêndio,então?—perguntouAlliecomumsussurrorouco.

—Tipo,pelaprimeiraveznahistória.—Rachelsorriuparaela.—DepoisquevocêeaJulesquasemataramtodomundodesusto.

Era demanhã e estavam sentadas em um quarto na ala dos professores. Allieestavaapoiadaemtravesseiros,agarrandoaxícaradechácomlimãoemelqueRachelhavia trazido para aliviar sua garganta. Rachel estava empoleirada no pé da cama,relatandotudoquetinhaacontecido“depoisquevocêmorreu”.

— Puseram uma máscara de oxigênio em você, apesar de terem tido que tearrancardoSylvainpraisso.—Rachelergueuumasobrancelha.—Elenãoqueriatesoltar.

—EntãofoioSylvainquemeencontrou?—Foi.—Como...?Ele e o Carter evacuaram o dormitório masculino. Então viram o outro

incêndio. O Carter foi buscar os professores. O Sylvain ia evacuar o dormitóriofeminino, mas quando percebeu que estava vazio, foi nos encontrar lá fora —explicouRachel.—EueaKatietínhamosacabadodelevaraJules,evimosquevocênãoestavalá...

Parou a frase nomeio, e Allie percebeu que ela estava chorando. Esticando obraço,apertouamãodaamiga.

—Estoubem—sussurrou.Rachelassentiuelimpouaslágrimasdosolhos.Apósumsegundo,continuou,masagorasuavoztremia.—Quandoagentedissequevocêtinhasumido,ninguémconseguiusegurá-lo.

Elecorreuprabibliotecacomosefosseincapazdesequeimar.Elarespiroufundo.—Nãoteviquandoeletetrouxeprafora,euestavatentandoressuscitaraJules.

Mas a Jo me contou que ele passou um bom tempo te reanimando até vocêrecuperarossentidos.Depoisdissonãoquistesoltar.Achoqueeleestavacommedo

dequevocêfossepararderespirar.—Achoquesim—ecoouAllie.—De qualquer forma, assim que a Isabelle chamou a brigada de incêndio, o

Nathanieleoscomparsasevaporaram,eeuqueriaqueissofosseliteralmenteverdade.—Rachelseinclinouparatrás,apoiando-secontraaparede.—Você,aJulesetrêsfuncionáriosprecisavamdeoxigênio,aJuleseumcara,Peter?Conhece?

Alliebalançouacabeça.—Eleéumdosalunosmaisnovos.Bem,osdoisestãonohospitalporcausada

fumaça.Queriam te levar também,masninguémdeixou.A Isabelle, oCarter e oSylvainnão admitiram.Então te colocaram aqui e oCarter passou a noite inteirasentadopara se certi cardeque você estava respirando.E você estava—concluiualegremente.

—Parabénspramim—resmungouAlliefracamente.—Verdade.Parabénspravocê.—Equalfoioprejuízo?—perguntouAllie.—Não tenho certeza. Sei que três ou quatro salas sofreram perda total.Não

estão deixando ninguém entrar nos dormitórios, e a casa inteira está fedendo afumaça.—Ela franziuonariz.—O incêndionabiblioteca começounamesadabibliotecáriaeseespalhoupelasestantesaoredor.Nãosabemquantoslivrosforamperdidos.

Elapareciaverdadeiramentetriste,eAllietevequeesconderumsorriso.— Acham que os quartos onde os incêndios começaram estavam todos

desocupados,ecomeçaramumincêndioemumsótãoenotérreopertodasescadas—Allielembrou-sedeChristophercomumatochaemchamas—,masaindaestãoinvestigando. A Isabelle tá de um lado pro outro feito uma louca. Tem unsempreiteirosvindohojeàtardeparaavaliarosdanos,etodomundovaipracasa.Agentevaiescrevertrabalhosparasubstituirasúltimasprovas.Achoqueagentepodiainsistiremfazerosnossossobresegurançacontraincêndios.

ArisadadeAlliesooucomoumalixapassandoemumamadeira.—EupossomudarmeutrabalhodehistóriaefalarsobreoGrandeIncêndiode

Londres.—É,né?Pesquisavocêjáfez.Alguémbateuàporta.Allietentoudizer“entra”,massooucomoumsussurro.—Entrez-vous—disseRachel.Joabriueentrounervosa,fechandoaportaatrásdesi.—Oi,Allie.Vocêtábem?Alliesorriufracamente.

— Vou sobreviver, mais uma vez, eu acho — declarou. — A Rachel estavaacabandodemecontartudoqueaconteceuontemànoite.

—Foiumaloucura—disseJo.—Muitoassustador.— Mas todas nós estamos aqui — disse Rachel. — Eu z ressuscitação

cardiopulmonar em uma pessoa de verdade pela primeira vez. Então não foi tãoruim.

—Valeusuperapena—concordouAllie.—Foioquepensei.Parecendodesconfortável,JosevoltouparaRachel.—Detestopedir isso,masvocêse importariaemmedaralgunsminutosasós

com...Rachelsaltoudacama.—Claro.Allie,voubuscarcomidapravocê.Oquevocêquer?AgargantadeAllieestavadoendo.—Algumacoisafria—respondeu.—Nadaapimentado.UmsorrisocarinhosoiluminouorostodeRachel.—Certo.Nadadecomidaapimentada.Deixacomigo,meuamor.Quandoaportasefechouatrásdela,Josesentoucomcuidadonabeiradacama.—Sóqueriatepedirdesculpas.Allie começou a respondeu que não precisava,mas Jo balançou a cabeça. Seu

rostoestavavermelho,eAllienotouqueelatinhachorado.—Vocêsalvouminhavidaontemànoiteearriscouasuaporisso.Acreditoque

você fez amesma coisa no telhado há algumas semanas. AKatieme contou quementiupramimporqueestavacomraivadevocê.

Allieseespantou.—Elafezoquê?Joassentiu.—Vocêtambémsalvouavidadela,vocêsabe.Elapodeserumavaca,masnãoé

umavacaingrata.UmarisadaroucaexplodiudeAllieantesquepudesseseconter,e logoasduas

estavamrindo,apesardeissoterprovocadoumacrisedetosseemAllie.—Eudigopraelaquevocêmefalou—conseguiucrepitar.Quandoseacalmaram,Joaolhouseriamente.—Eu sei que tenho umproblema,Allie. Eu tenho esses... o que o terapeuta

chamade“momentos”emquenãosouracional.Eeunãodeveriabebernunca.Sintomuitoterenvolvidovocê.Euqueriatantoquenuncativesseacontecido.Sepudessevoltar atrás, voltava em um segundo. Mas quero que você saiba que eu tô me

esforçando.—Tudobem—disseAllie,apesardenãoestar.Comosetivesseouvidoseuspensamentos,Jodisse:—Naverdade,nãotátudobem.Euseidisso.—Quebom—disseAlliedelicadamente.MasJonãotinhaacabado.—Naverdade,éoseguinte—explicou—:cadavezqueaconteceéprovocado

por alguma coisa. Costumava ser por causa dos meus pais. Eles faziam algumababaquice,ouseesqueciamdemim,epronto.Masdessavezfoi...oqueaconteceucomaRuth.

ElaolhouparaAllie.—É que... saber uma coisa horrível e não contar pra ninguém... acho que te

enlouquece.Allie sentiua ardênciadeuma lágrima, comodedosgelados em suapele.Não

conseguiadesgrudarosolhosdeJo.—Achoquesim.Oquevocêsabiaquemaisninguémsabia?OsolhosredondoseazuisdeJosustentaramosdela.—EuseiquemmatouaRuth.Enãoaguentei.Saber.Nãopodia...seraúnica.Respira,solta...Allieaencaroufirmemente,enquantoseucoraçãobatianosouvidos.—QuemmatouaRuth,Jo?—sussurrou.—FoioGabe.—AvozdeJoestavaentorpecidade tantopesar.—OGabe

matouaRuth.

Quando Rachel voltou alguns minutos depois com iogurte, sorvete e morangos(“Viu?Nadaapimentado...”),AllieestavaabraçandoJo,enquantoaamigachorava.

PorcimadacabeçadeJo,AlliesussurrouparaRachel:—ChamaaIsabelle.Semdizernada,Rachelcolocouacomidanamesaecorreu.—Vai car tudobem—sussurrouAllie, repetidasvezes, comosenão tivesse

certeza.Sentiu-senauseadaerespiroufundoecalmamenteparatentarestabilizarosprópriosnervosenquantodúvidassurgiamemsuamenterápidodemaisparaqueasrespostasacompanhassem.

FoioGabe?OGabematouaRuth?Porquê?ElaselembroudeterseescondidodeGabenatrilhananoiteemquesaiucom

Carter.Algumacoisanavozdele—umelementoameaçador—ativouuminstintodeautoproteçãoquealevouaseesconder.Naquelemomentotevetantomedodele

quantodeNathaniel.Masassassinato?Aquilopareciainconcebível.Porqueelefariaumacoisadessas?

Ruth era amiga dele. O que a garota poderia ter feito para que o rapaz quisessemachucá-la,quantomaismatá-la?

—Jo,aIsabellevaichegaremalgunsminutosevocêtemquecontaraverdadepraela—disseAllie,rouca.—Vocêfazisso?

Comorostoinchadoevermelho,Joassentiu.— Foi por isso que te contei. Acho que todo mundo precisa saber. Ele é

perigoso.QuandoRachel e Isabelle entraram correndo algunsminutos depois, Jo ainda

estavachorando.Adiretoraestavausandoamesmaleggingpretaeatúnicadanoitedaconferência,echeiravaligeiramenteafumaça.

—Allie?—perguntou,vendoaslágrimasdeJoeorostopálidodeAllie.—Tátudobem?

—AJotemumacoisapratecontar—sussurrouAllie.JocontouparaIsabelleoquetinhacontadoaAllie.Enquantoelafalava,Isabelle

afundoulentamentesobreosjoelhosaoladodacama,semtirarosolhosdorostodeJo.

—Masporque,Jo?—perguntoufinalmente.—Eletecontouporquê?—Ele disse que a Ruth falou. E que ela sabia demais sobre o que realmente

estavaacontecendo.Elaqueriacontarpraspessoas.Achoqueelaqueriatecontar—disse Jo. — Mas aí ele não quis me contar o que isso signi cava, tipo o querealmenteestavaacontecendo.

Allie pôde ver o choque no rosto de Isabelle, mas a diretora manteve a vozsobrenaturalmentecalma.

—Rachel—disseela—,podebuscaroMattheweoAugust,porfavor?—Elaalcançou a mão de Jo, molhada de lágrimas, e agarrada a um lenço úmido eamassado.—Eletecontoucomofoi?

—Umpouco.O su ciente prame assustar— revelou Jo.—Foi durante obaile.Todomundoestavafelizedançando.Elesómedeixousozinhadurantealgunsminutos, mas quando voltou, vi sangue na mão dele. Achei que ele tivesse semachucado.Eledissequetinhatidoumacidente,umcorte,nadasério.Masnãomecontou...sobreaRuth.Elemefalouháalgumassemanas.NãoqueriamaisqueeuandassecomaAllie.FalouqueoquetinhaacontecidocomaRuthpoderiaacontecercomelatambém.Oucomqualquerumadasamigasdela.

Lembrando-se do corpo de Ruth — o rosto tão pálido que estava quaseirreconhecível; o vestido rosa ebonito escurode sangue—Allie engoliu em seco.

Gabetinhafeitoameaças.—Aquelepoderiatersidoorostodela.Ovestidobonitodela.

Contouasbatidasdocoração...doze,treze,catorze...—Oquemaiseletedisse?—perguntouIsabelle.—ElenãoqueriaqueeufalassenadapraAlliesobreaEscolaNoturna,nemnada

sobreoqueeleestavafazendo.—AvozdeJosoavacansada.—EledissequeaAllieeraculpadadetodasascoisasruinsqueandavamacontecendo,equevocêeoZelaznyeram fracos. Ele disse que o Nathaniel tinha razão e que vocês deveriamsimplesmenteentregaragarotapraele...

IsabelleeAllietrocaramumolharespantado.—ComooGabesabiasobreoNathaniel?—perguntouIsabellegentilmente.—Nãosei—disseJo.—Maselessimplesmente...seconhecem.Tipo,oGabe

encontracomeleàsvezes.Praconversar.Alliearfou.ViuacordesaparecerdorostodeIsabelle.—Eles são...amigos?—AvozdeIsabelle tremeu, sóumpouquinho. Jonão

teriapercebido,masAllienotou.— Mais ou menos. — Jo pensou a respeito. — Acho que o Gabe tem

admiraçãoporele.Naquele instante,MattheweZelaznyentraram.Isabelle se levantoue saiupara

conversarcomeles.VoltousozinhaparaoquartoesesentounacamaaoladodeJoeAllie.

—Porquenãonoscontouantes,querida?—perguntoucalmamente.LágrimascorrerampelorostodeJo.— Eu não sabia o que fazer — soluçou. — Eu amo... amava o Gabe. Não

podia...nãosabiaoquefazer.Desculpa.Desculpadeverdade.—Tudobem—sussurrouIsabelle.MasAlliepercebeuqueelaestavamentindo.

***

DepoisqueIsabelle levouJoparaoseupróprioquarto,Rachelvoltoua tempodefazerAllie tomarumpoucode sorvetemeioderretidoe iogurtequente.FicouatéAlliedormir.

Quando ela acordou,Carter estava sentado aopéda camaolhandoparaAllie,seusolhosescurosilegíveis.

—Oi—disseelacomavozrouca.—Comovocêestá?—Avozdeleestavasuave.—Nuncaestivemelhor.—Masacordardesencadeouumacessodetosse,eele

lheentregouumcopod’águacomumcanudo.Depois que tomou um gole, se sentiumelhor e se arrastou na cama até estar

sentada.—SoubedoGabe?—sussurrouela.Elefezquesimcomacabeça,estavacomosmúsculostensos.—Eudeviaterpercebido,Allie.Comoéquenãopercebiqueeraele?—Ninguémpodiaperceber—disseela.—Nãoseculpa,outodosnósteremos

quenosculpar.Jáacharamele?— Não.Tá todo mundo procurando. Ninguém sabe onde ele tá. Deve ter

escapado.Eladigeriuainformaçãoporuminstante.Emseguidafalou:—ARachelme contouque você salvouummonte de gente ontem. Isso foi

incrível.—Evocêtambémsalvou.—Masnãofalouquefoiincrível,eelaviuatensão

norostodele.—Oquefoi?—perguntouela.Elebalançouacabeçaenãofalounadaporuminstante,equandoofez,suavoz

tremeu.—Porquevocênão counoesconderijo,Allie?Teria cadobemsetivesseme

ouvido.—Desculpa,Carter,mastivemedopelasmeninas—respondeu.—Tinhaque

ajudar.Nãopodiasimplesmentedeixarqueelasmorressem.—Agenteteriaevacuadoelas—rebateu.—Agentenãosabiadisso—falou.—Ofogoseespalhourapidamente.—Dequemfoiaideiadeentrar?SuaoudaJules?Alliepensouemmentir.—Minha—respondeu.—AJulesqueriaesperarmais.—Evocêsduasquasemorreram—eledisseirritado.—Masagentesalvouaspessoas,Carter.—Suavozroucaestavaindignada.—

Agenteajudou.—Eusacrificariatodaselasporvocê.Allieoencarou,horrorizada.—Nãofalaisso—sussurrouemresposta.—Quecoisahorrível.— Eu sei que é horrível. — Os dedos de Carter limparam uma lágrima da

bochechadela.Eeleevitouosolhosdela.—Eéverdade.Elanãofaziaideiadoquedizer,eoestudoupreocupada.—Euestoubem,vocêsabe.

—Eusei.—Entãonãovamospirar,tábom?Vamosnossentirgratosporestarmosbem.

—Elaalcançouamãodeleeaseguroucontrasuabochecha.—Estoumuitofelizquevocêtambémestejabem.

Semdizernada,eleaabraçou.—CartereAlliesalvamomundo—sussurrouela.

Naquelatarde,RacheltrouxeparaAllieumasaiaquecheiravacomoumafogueira.—Medeixaramentrarnodormitóriodurantetrêssegundosinteiros,saqueeiseu

armáriopracatarisso—disseela.—Desculpapelofedor.—Nãosepreocupa—tranquilizouAllie.—Estoufelizpor nalmentepoder

tiraressepijamatorrado.—Disseramque a gente pode subir pra buscar nossas coisas amanhã—disse

Rachel.—Comsupervisão,éclaro.—Claro.—Alliedeuumsorrisotorto.—Saúdeesegurança.—Todomundo vai pra casa entre hoje e amanhã,meu pai vem amanhã de

manhã—disseRachel.—Aofertaaindaestádepé,sequiserficarcomagente.—Obrigada,Rachel—disseAllie.—Podeserqueeuaceite.Depois de um banho no banheiro dos professores para esfregar a fuligem do

cabelo,Alliecomeçouasesentirhumanaoutravez.MasRacheltinhaseesquecidodetrazersapatos,entãomaistarde,quandodesceupelasescadas,aindaestavadescalça.MasfoidecididaatéoescritóriodeIsabelleebateuàporta.

Aporta se abriu antes que as juntasdesgrudassemdamadeira. Semdizerumapalavra, Isabelle a abraçou forte. Em seguida segurou-a à distância do braço eexaminouseurosto.

—Vocêestábem?—Achoquesim—sussurrouAllie.Adiretorasegurouaportaabertaparaela.—Entra,senta.—ComoestáaJo?—perguntouAllie.—Nãoestábem—respondeu Isabelle, sentandoao ladodeAllie enquantoa

chaleira chiava ao fundo. — Ela está muito chateada, o que é perfeitamentecompreensível.

Alliehesitou—incertaquantoaconseguirfazerapróximapergunta.—EoGabe?—sussurrouafinal.Isabellebalançouacabeça.— Sumiu. Quando o Zelazny e o Matthew foram procurar, já tinha

desaparecido.Achamosqueelepodeterfugidoontem,duranteoincêndio.DealgumjeitoAllienãosesurpreendeu.Respiroufundoparaseestabilizar.—Então...oqueaconteceagora?—Vamosprocurá-lo.—Isabelleseocupoupreparandoochá.—Vamosavisar

ospaisdele.Vamostentarnoscerti cardequeeleestejaseguro.CuidaremosdaJo.EdepoisencontraremosumaformadelidarcomoNathaniel.

—Euqueroajudar—disseAllie.—Vocêvaiajudar—respondeuIsabelle.—Euteprometo.— Não, Isabelle. — A voz de Allie estava rme. — Quero dizer que quero

ajudar.Queroestarenvolvidaemtudoapartirdeagora.Adiretora a olhou semexpressão eAllie tentounãodeixar a voz se encherde

frustração e tensão. Se havia ummomento em que precisava agir como adulta, omomentoeraesse.

—Eutônomeiodissotudo.DecertaformaGabetinharazãoeoproblemasoueu.ONathanielpegouoChristophereagoramequertambém.Éverdade,nãoé?Passeitodoesseperíodosendoresgatada,salvaeajudada,todomundosópensaemmeproteger,oqueéótimo,esoumuitograta.Masqueromeproteger.Agora,nãotenhoamenorcondiçãodemesalvar.Nãoseicomo.—Acalmouosnervos.—Masexisteumlugarondepossoadquirirashabilidadespraisso.

Isabellefaloulentamente.—VocêquerentrarparaaEscolaNoturna.—Nãofazsentido?—Allieabraçouoprópriocorpo.—Precisosermaisfortee

ágil.Precisoaprenderalutar.Eprecisosaberoqueestáacontecendoprapoderfazeras coisas certas.Nunca vou só fazer o que vocêmanda se disser “Allie, não vai láfora”.Massemeincluir...Aíédiferente.

Um silêncio pesado se abateu sobre elas. Dava para ver que Isabelle estavapensando.Apósumsegundoadiretoralheentregouumaxícaradeumchádeervascomumaromaestranhocomlimão.

—Prasuagarganta.Bebe.—Sentou-seaoladodela.—Tudobem,então.Euconcordo.Voufalarcomosoutros.

UmaondadeemoçãopassouporAllie.Comose tivesseenxergado, Isabelle seapressouemsuprimi-la.

— Não é uma decisão exclusivamente minha, Allie. Outros vão ter queconcordar.Masvouteapoiar.

ApesardeterouvidoacauteladeIsabelle,Allienãoacreditou.SabiaqueIsabellepodiafazertudoquequisesse.

Estavadentro.

Mudandodeassunto,Isabellefalou:—Vocêestácomavozpéssima,aliás.Omédicoolhousuagarganta?UmmédicohaviavisitadoAllieháumahoraparaexaminá-la.Declarouquesua

garganta“nãoestavatãoruimquantopoderiaestar”,elhedeuumfrascoderemédiosealgoparagargarejar.

Isabelleacenoucomacabeça,concordando.—Dissequevousobreviver.Masnuncavoucantarcomaópera.—AchoqueoPuccinicontinuasemvocê—disseIsabelle.—Poderiatersido

muitopior.—Foioquepensei.ComoestáaJules?Isabellebalançouacabeçapositivamente.— Está muito bem. Sofreu uma concussão, ela tropeçou e bateu a cabeça.

Perdeuaconsciência.Masfoipoupadadafumaçaedocalor,quesãoaspiorescoisas,entãoospulmõesnãosofreramdanospermanentes.Vaivoltarhojeànoite.

Culpada,AllieselembroudecomotinhaduvidadodeJulesatéoúltimominutonabiblioteca.

—Quebomqueelaestábem—disse.—Foimuitocorajosa.—Eladisseomesmosobrevocê.Alliefezaperguntaseguintecomumpoucodereceio.—VocêviuoSylvain?—Suagargantaapertou.—Eu...queriaagradecer.—Eleestáteevitando—disseIsabelledemaneiradescuidada.AcabeçadeAllielevantou.—Porquê?Osolhosdadiretoraeramgentis.—Vocêsabe,nãosabe?Ocalordo chá estava irradiando atravésdaporcelanada xícara, queimandoos

dedosdeAllie.—Seioquê?—Queelegostadevocê.NaqueleinstanteAlliepercebeuquesabia.Lembrava-sedaslágrimascaindoem

seurosto.Emoçõesquenãoreconheciacircularamporela.—MaseuestoucomoCarter—dissefracamente.—Eusei.—Isabellelevantouasmãos.—Entãoéisso.Allieolhouparaafatiadelimãoflutuandosemrumonaxícara.—Éisso.Adiretoraseencolheunacadeira,suasolheirasdenunciavamaexaustão.—NãoachoquevocêvaiveroSylvainoutraveznesteperíodo.Eleprecisade

tempoprapensar.Esecurar.—Vocêpodedizerpraele...—Alliepensounoquefalar.—Só...agradecerpor

mim?—Agradeço.Allierepousouaxícara.—Eeudecidiquevoupracasa,enãopracasadaRachel.Precisoconversarcom

osmeuspais.Isabellepareceupreocupada.— Acho que é a coisa certa a se fazer, e co feliz que vá fazê-la — disse

cautelosamente.—MasagoraquesabemosqueoChristopherestácomoNathaniel,equeoNathanielestáinteressadoemvocê...Bem,ascoisasmudaram.Asituaçãoémaisperigosa.Vouexplicarissoparaasuamãe.Mas,Allie,emcasavocêtácorrendomaisperigo.Fareioquepuderprateproteger,masnãocorrariscos.

AlliepensouemRuth.—Voutercuidado—prometeu.—Vouficarquieta.—Operíododeoutonocomeçadaquiatrêssemanas—disseIsabelle.—Mas

nãopossotedeixar cartantotempoemcasa.Tedoualgunsdias,masdepoisachoquevocêdeveirpracasadaRachel.Opaidelaésupercapazdeteproteger,evaiestarteesperando.Mandoumcarrotebuscar.

Haviaalgomuitoruimemouvirquesuacasa—umdiaolugarmaisseguroquejá conhecera—não eramais segura.MasAllie não discutiu. Já tinha visto o queNathanielestavadispostoafazer.

—Tudobem—disseoutravez.Isabellepegouumpedaçodepapeldamesaeescreveualgumacoisa.— Se car preocupada ou assustada, se alguma coisa parecer ameaçadora ou

simplesmenteerrada...—dobrouopedaçodepapeleemseguidaoentregouaAllie—,meliga,eeumandotebuscarem.Nãocorrariscos.Fazissopormim?

Opapel tinha onomede Isabelle em alto relevono topo, eAllie viu que elatinhaanotadoumnúmerodetelefone.

Allieassentiu.—Prometo.Asduasse levantarameIsabelleaabraçounovamente.Allie foiatéaporta.Ao

giraramaçaneta,Isabelleaconteve.—Maisumacoisa—disseela.—PedeprasuamãetecontarsobreaLucinda.

—OsolhosdeAlliesearregalaram,maselanãodissenada.Isabelleconcluiu:—Dizpraelaqueeudissequeestánahora.

–V

TRINTAEUM

amoslá,mala.Fecha!Allie tinhaen adoasúltimascoisasnamala,queagoraestavaprotuberante

nas laterais e se recusava a fechar. Mesmo quando utilizou toda a sua força nãoconseguiufecharozíper.

Todas as meninas tinham sido autorizadas a passar quinze minutos nosrespectivosquartospara fazerasmalas.No mdascontas,quase todososquartosestavam inteiros. Mas os professores temiam que o fogo e a água tivessemenfraquecidoostetoseospisos.

—Ah,droga.Arfando por conta do esforço, ela abriu amala e procurou alguma coisa para

deixarparatrás.SuasbotasDocMartenvermelho-escurasarranhadasealtasestavamlogoemcima.Elaasretirouetentounovamente.

Fechoucomfacilidade.Pegouasbotascomafeição.Dejeitonenhumvoulargarminhasbotasaqui.Segurando-asnasuafrente,examinouosarranhõesnosdedos,aformacomoo

courohaviasemoldadoparaencaixarnosseuscalcanhares.Eraapaixonadaporelasdesdeodiaemqueasviu,navitrinedalojadecaridadenaruadocolégio.Quandodescobriuqueeramdoseutamanho,soubequeeramdestinadasasersuas.Durantedoismeses, foi todososdiasna lojaparasecerti cardequeaindaestavamlá.Porm, convenceu os vendedores a deixarem separadas até o seu aniversário. As solas

grossas, o couro robusto, o puro poder agressivo das botas zeram com que sesentisseforteoutravez.Eramcomosuaarmadura.

Seiquemudeienquantoestiveaqui,pensou.Masnãomudeitantoapontodenãoprecisardessasbotasmaravilhosas.

Tirandoossapatossensatosdocolégio,calçouasDocs,amarrando-ascomumafamiliaridadefeliz.Combinadascomouniforme,ficaram...perfeitas.

Entãoolhouaoredorumaúltimavez,passandoamãonamesadaescrivaninha.Tinha detestado tanto este lugar quando chegou. Agora mal podia esperar paravoltar.

Elalevantouabolsaparaoombroecorreupelaporta,dandoumencontrãocomtodaaforçaemCarter,queestavadooutrolado.

—Oi,Speed—eleriu,ajeitando-acomumamãoemcadaombro.—Cadêoincêndio?

—Haha,vocêéhilário—disseela,revirandoosolhos.Orapazalisouocabelodela.—Seuspaisjáchegaram?—Vãochegaraqualquerhora.—Fezumacareta.—Sóestoumeapressando

porqueomeupaiodeiaesperar.OsolhosdeCarter se anuviarambrevemente, e ela se lembroudequeospais

delejamaisviriambuscá-looutravez.—Onde você vaimorar durante as férias?— perguntou com uma expressão

preocupada.—Nãovãotedeixarficarnodormitóriomasculino.—Voumemudarparaaaladosprofessoresenquantoestãoreparandooestrago

provocadopelafumaça—disseCarter.—Vaificartudobem.—Esperoquevocênãofiquemuitosozinho.—Vou carbem—assegurou.—Aquiéaminhacasa,lembra?Enãovou car

sozinho.A Jo e o Sylvain vão car, e a Jules só vai passar algunsdias em casa.AmaioriadaspessoasdaEscolaNoturnavoltadepoisdeumasemana,maisoumenos.

AoouvironomedeSylvain,Allie sentiuumapontada indesejadano coração.Nãooviadesdeoincêndio.

—Quebom—concordou.—Masvoumepreocupar comvocêdomesmojeito.

—Eeucomvocê.Meescreve—pediu.—EvoutentarconseguirotelefonedaIsabelleprateligar.

—Aindatemmeunúmero?Elelevantouamão—elatinhaanotadologoabaixodasjuntasháumahora.—Voutatuarenquantovocêestiverfora—brincou.Um silêncio sombrio se abateu. Allie repousou a mala no pé, balançou-a

suavementecomosdedos.— Você vai tomar cuidado, não vai? — disse ele, mexendo singelamente a

bainhadacamisadela,puxando-aparapertodesi.—Vaificarsegura?Apesardeeleterdeixadoavozleve,elaouviuapreocupaçãoportrásdaspalavras.—Nãosepreocupa.Vou carótima.Só coumasemanaemcasa,depoisvou

pramansãodecampodaRachel,queaparentementeétãoseguraquantooPaláciodeBuckingham.

—Ótimo—disseele,abraçando-acomforça.—Contantoquetenhacuidado.

Agenteprecisadevocêporaqui,vocêsabe.—Precisammesmo.Esselugarestariaruindosemmim—dissecomumsorriso

irônico.Enterrandoorostonocabelodela,Carterrespiroufundo.—Estánahora!Todomundoprafora!AvozdeZelaznyveiodaportadeforadocorredor.Allielevantouorostopara

umbeijo rápido, recuando quase imediatamente. Eramuito tarde para despedidaslongas.

Pegouabolsaealevantouporcimadoombro.—Voudescersozinha,tudobem?—OsolhosdeAllieinvestigaramorostode

Carter, mas ela sabia que ele iria entender. Se ele realmente a beijasse direito, oupedisseque casse,seelacontinuasseolhandonaquelesolhos,jamaisconseguiriasairpelaporta.

Movendo-serapidamente,elafoiatéaportaeaabriu.Elegritouportrásdela:—Belasbotas,Sheridan.Elanãoolhouparatrás.—Ficafrio,CarterWest.Elajáestavanametadedocorredorquandoouviuarespostadele.—Sempre.

FIM