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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE LETRAS

    RAFAEL EDSON CARDOSO

    A RECENTE LITERATURA INDGENA: A HISTRIA QUE NO NOS

    CONTARAM.

    PORTO ALEGRE

    2011

  • 2

    RAFAEL EDSON CARDOSO

    A RECENTE LITERATURA INDGENA: A HISTRIA QUE NO NOS

    CONTARAM

    Trabalho de Concluso de Curso

    apresentado como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Licenciado

    em Letras, pelo Curso de Letras da

    Universidade Federal do Rio Grande

    do Sul.

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    No Brasil, todo mundo ndio, exceto quem no .

    Eduardo Viveiros de Castro

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus, que sempre esteve ao meu lado nos momentos bons e ruins desta caminhada. Aos meus pais, Pedro e Clotilde, pelos quais tenho amor incondicional, por terem me ajudado em todos os momentos e pelos exemplos de carter que fizeram eu me tornar o homem que sou hoje. Aos meus irmos Andr e Fernando Cardoso, simplesmente por estarem presentes em todos os momentos da minha vida. Ao meu irmo Fbio Cardoso, por ser um exemplo de determinao e humildade e por ter me apoiado nos momentos bons e ruins durante a concretizao deste sonho.

    Ao Marcos Collet (in memorian), por ter sido o primeiro incentivador deste projeto e por ter me feito entender que a amizade, o amor, e o carinho transcendem a barreira do fsico e do inteligvel. minha amiga Carina Taborda, que me ensinou o verdadeiro sentido da palavra amizade e pelo apoio e ombro amigo que sempre esteve presente em todos os momentos que precisei. Ao meu amigo Andr Schneider, pelas horas de incentivo e por ter me ensinado que desistir no opo. Aos colegas do IGEO-UFRGS: Elton Campanaro, Edison Saturnino, Daniel Moraes e Carolina Torcato, pela compreenso daqueles dias de atraso ou ausncia que tiveram que ocorrer para que eu pudesse concretizar este sonho, e por me mostrarem que um colega de trabalho pode ser, tambm, um bom amigo. minha orientadora, professora Ana Tettamanzy, incentivadora deste projeto e por ter me ensinado que um educador, antes de qualquer coisa, precisa ser humano.

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    RESUMO

    Este trabalho apresenta a recente Literatura indgena que vem tomando forma no

    Brasil. Essa Literatura no possui escola ou modelo, pois vem sendo criada pelos ndios

    e proporcionando uma nova maneira de pensar Literatura. Kak Wer traz todo o relato

    da histria de seus antepassados e uma crtica aos valores da sociedade acerca dos

    indgenas no Brasil em sua narrativa Todas as vezes que dissemos adeus (2002).

    Alberto Mussa, em Meu destino ser ona (2009), faz um resgate dos mitos indgenas

    por meio dos relatos dos viajantes que por aqui estiveram na poca do descobrimento. O

    currculo escolar brasileiro tradicional e no abre espao para a diversidade. A

    Literatura indgena importante nesse aspecto, pois abre espao para um ensino

    Intercultural e para o resgate da verdadeira histria da colonizao brasileira.

    Palavras-chave: Indgenas; Literatura Indgena; Educao; Interculturalismo.

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    ABSTRACT

    This paper presents the recent indigenous literature that has been taking shape in

    Brazil. This literature is not based on education at a school and does not have a model;

    it has been created by the Indians and means a new way of thinking about literature.

    Kaka Wer (2002) writes a report of the whole history of his ancestors and criticizes

    society's values about the Indians of Brazil in his narrative Todas as vezes que dissemos

    adeus. Alberto Mussa, em Meu destino ser ona (1999) brings back the indigenous

    myths through the report of travelers who came to Brazil at the time it was discovered.

    The disciplines currently taught in Brazilian schools follow a traditional fashion that

    leaves no room for diversity. The indigenous literature is important in this sense, since it

    opens space for Intercultural education and the rescue of the true story of the

    colonization of Brazil.

    Keywords: Indigenous peoples; Indigenous Literature; Education; Interculturalism.

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    SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................... 8

    1. VISES SOBRE O INDGENA .................................................................................. 12

    1.1 O olhar do outro no incio da colonizao ............................................................ 12

    1.2 O indgena, esse nosso contemporneo ........................................................ 13

    1.3. O surgimento da Literatura Indgena ................................................................... 15

    2. Meu destino ser ona: pesquisa e inveno de um autor no indgena .................. 20

    3. Kak Wer Todas as vezes que dissemos adeus: a diferena da literatura

    indgena .............................................................................................................................. 24

    4. Por uma educao intercultural ................................................................................... 29

    CONCLUSO .................................................................................................................... 33

    REFERNCIAS ................................................................................................................ 35

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    INTRODUO

    Quem descobre tambm descoberto. Assim, Boaventura de Souza Santos

    define o processo de colonizao, em A gramtica do tempo (2006). Desde o meu

    tempo de aluno curioso e ingnuo do ensino fundamental, ficava intrigado com aquela

    figura que, de vez em quando, era lembrada em sala de aula, mais precisamente no dia

    19 de abril, dia do ndio. Aquele desenho que era entregue pela professora para colorir,

    trazia uma figura estranha, com seu cocar, seu arco e flecha. Onde habitava aquela

    criatura estranha aos meus olhos? Eu no me lembro de algum dia ter visto algum

    vestindo cocar e portando arco e flecha nas mos, tampouco ter ouvido resposta a esse

    questionamento, pois tambm no me lembro de alguma vez ter feito essa pergunta ou

    ouvido alguma coisa sobre cultura indgena em sala de aula. Essa imagem de selvagem

    que eu tinha do ndio me acompanhou at a Universidade.

    No Ensino Superior tive contato com outras leituras, obviamente no presentes

    nos livros didticos. Pedro lvares Cabral descobriu o Brasil? E os ndios que aqui

    habitavam as terras, o que fizeram quando chegaram aqui, seno descobrir as terras

    tambm? Como serei educador, pretendo mudar essa realidade, quero que meus alunos

    tenham outra viso do ndio e que no o vejam como um selvagem, mas sim como um

    ser humano, que, apesar de ser diferente, merece ter sua cultura e identidade respeitadas.

    Conforme aponta Alberto Mussa, em Meu destino ser ona, os ndios j habitavam

    essas terras h pelo menos 11 mil anos. Por que os livros didticos ainda ensinam a

    histria do Brasil a partir de 1500? Apesar de terem se passado quase cinco sculos, o

    ndio ainda visto com um ser selvagem e inferior no Brasil.

    As fronteiras do mundo capitalista e globalizado do sculo XXI criaram um

    paradoxo. Ao mesmo tempo em que as fronteiras diminuem, aumenta mais a distncia

    entre os povos, pois os choques culturais provocam sempre a opresso daquele que

    considerado inferior. No caso dos ndios, temos toda uma realidade caracterizada por

    sculos de dominao do branco, ocorrendo assim o extermnio, bem como a usurpao

    de sua cultura e identidade. Vivemos uma poca caracterizada pelo interculturalismo,

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    mas isso no significa que estejamos abertos a aceitar o que diferente. Ao mesmo

    tempo em que os povos procuram externar suas identidades, cresce o preconceito

    daqueles que no aceitam a mudana do status quo de dominao.

    O outro parece no ter o direito escolha, liberdade. Esses direitos, apesar de

    estarem consolidados em leis e defendidos pela Organizao das Naes Unidas, so

    negados pelos prprios rgos que teriam o dever de resguard-los. A Organizao das

    Naes Unidas, apesar de ser um rgo Governamental de busca da paz e bem-estar

    social e mundial, parece favorecer aes que buscam o contrrio, pois vem patrocinando

    guerras e no parece estar preocupada com a questo da frica. Crianas somalis so

    devoradas por hienas e lees enquanto caminham semanas sob sol a pino buscando

    ajuda humanitria no Qunia. Onde est a Organizao das Naes Unidas que deixa

    isso acontecer? Sabe-se que no momento est apoiando a guerra na Lbia, assim como

    vem apoiando outras guerras nos ltimos anos.

    A questo importante levar para o ensino essas questes sobre a globalizao e

    a preservao das identidades indgenas para criarmos uma sociedade mais fraterna.

    Uma sociedade plural precisar ter um currculo plural, para que no se perpetue o ensino

    da cultura hegemonicamente masculina, branca, heterossexual e crist (LOURO, p.

    85) defendida e trabalhada pelas escolas. As crianas e jovens precisam estudar, ouvir

    os relatos desses povos e entender toda a questo de dominao, injustia e

    desigualdade que se perpetua na sociedade. O extermnio dos ndios pode no acontecer

    mais de forma atroz como houve na poca do descobrimento, mas eles continuam

    morrendo porque no tm espao na sociedade.

    O processo de colonizao iniciou no sc. XIV, mas essas terras j eram

    habitadas h milhares de anos. Como no h registros escritos da presena desses

    habitantes, talvez por isso a histria prefira ignorar. Os parcos textos que falam dos

    ndios do sc. XVI so os escritos pelos viajantes. Os relatos de viagem de Hans Staden

    e Jean de Lry so muito relevantes e importantes como registro histrico, mas a viso

    do outro sobre os ndios e no se sabe at que ponto o que eles falam nas cartas

    verdade, exagero ou pura inveno. A literatura indianista de Jos de Alencar, ao tentar

    civilizar o ndio, retratando-o como o heri, caracterizando-o com virtudes como

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    fora, coragem e nobreza, no ajudou a melhorar a imagem do ndio no Brasil, como

    bem demonstra o trecho de O Guarani, ao retratar o jovem Peri, como heri:

    Era Peri. Altivo, nobre, radiante de coragem invencvel e do sublime herosmo de que j dera tantos exemplos, o ndio se apresentava s em face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de vingana (...) Ento encostou-se a uma lasca de pedra que descansava sobre uma ondulao do terreno e preparou-se para o combate monstruoso de um s homem contra duzentos. (ALENCAR, 2000, p. 390)

    Neste trabalho pretendo mostrar a importncia do ensino da literatura indgena

    na escola para preservar sua identidade e cultura e tambm para a formao de todos os

    alunos, pois acredito que s o contato com a cultura e a identidade indgena pode

    transformar os educandos em cidados conscientes da importncia de valorizar o nosso

    patrimnio cultural indgena. H uma literatura indgena incipiente e que de grande

    valia no trabalho sobre os indgenas.

    Pretendo analisar o texto de Kak Wer em Todas as vezes que dissemos adeus

    (2004),1 bem como os mitos indgenas relatados por Alberto Mussa em Meu destino

    ser ona2 . O objetivo principal abordar a importncia do ensino da cultura indgena

    nas escolas para a preservao identitria. Para dar conta desse objetivo, organizei o

    trabalho da seguinte forma. No captulo 1 vises sobre o indgena, fao uma sntese

    sobre a viso do indgena nos relatos de literatura de viagem da poca do

    descobrimento, bem como da poca do romantismo e encerro fazendo um pequeno

    parmetro sobre a viso do outro sobre os indgenas nos dias atuais. No Captulo 2

    Meu destino ser ona, pesquisa e inveno de um autor no-indgena, apresento o livro

    de Alberto Mussa, em que ele faz um resgate dos mitos indgenas por meio dos relatos

    dos viajantes. Alberto Mussa juntou um quebra-cabeas e conseguiu montar um

    narrativa que conta os mitos indgenas tupinamb desde muito antes da colonizao. No

    captulo 3, intitulado Kak Wer, Todas as vezes que dissemos adeus a diferena da

    Literatura indgena, apresento o livro do indgena Kak Wer, que conta a sua histria e

    1 Kak nasceu na cidade de So Paulo. Seus pais pertenciam aos povos Kaitit (pai) e Kaxix (me). Eram trabalhadores rurais de Minas Gerais e foram para So Paulo, nos anos sessenta, em uma aldeia guarani. Devido a uma luta por demarcao de terras, Kak engajou-se na luta pela busca dos direitos indgenas. Seu livro todas as vezes que dissemos adeus uma narrativa em que conta boa parte de sua histria e de sua famlia. 2 Alberto Mussa um escritor carioca que vem escrevendo desde 1997. No possui ascendncia indgena (pelo que se sabe) e escreveu cinco livros. Todos eles com algo em comum: so livros que falam de culturas antigas. O livro Meu destino ser ona fruto de um trabalho minucioso de pesquisa sobre os relatos dos viajantes que estiveram aqui durante o descobrimento.

  • 11

    de seus antepassados por meio de uma narrativa. Seus relatos, por vezes, mostram uma

    denncia irnica dos valores nefastos de nossa sociedade. No captulo 4 Por uma

    educao Intercultural fao uma reflexo sobre o currculo educacional brasileiro e a

    importncia de levarmos para as salas de aula os debates sobre nossa cultura indgena.

    Por fim, fao uma concluso do trabalho em consideraes finais.

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    1. VISES SOBRE O INDGENA

    1.1 O olhar do outro no incio da colonizao

    Nas Literaturas de viagens dos sc. XVI e XVII so vrios os relatos dos

    viajantes sobre a terra descoberta. Pero Vaz de Caminha, na carta enviada ao rei Don

    Manuel quando do descobrimento, j mostrava sua viso do ndio:

    Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. (In:http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/perovazcaminha/carta.htm, 2011)

    Pero Vaz ainda no faria uma descrio to selvagem quanto feita pelo viajante

    Hans Staden. Esse descreveu os rituais antropofgicos dos ndios, o que causou espanto

    na sociedade europia do sculo XVI e a meu ver fez com que a viso do ndio nos

    relatos fosse as piores possveis. Embora haja algo de selvagem e mesmo grotesco

    na questo do canibalismo, outras leituras foram feitas sobre esses relatos

    antropofgicos. Cristian Verardi, em sua monografia intitulada Intervenes

    antropofgicas em trs contos de Humberto Campos mostra que o canibalismo estava

    presente na histria muito antes dos relatos dos viajantes:

    O deus Cronos, um dos gigantes conhecidos como Tits, ao ser prevenido de que um dos seus filhos usurparia seu poder, devorou cinco deles. Sua esposa e tambm irm, Ra, escondeu da fria paranica do pai o sexto filho, chamado Zeus. Crescido forte e determinado sob a proteo da me, Zeus enfrentou o progenitor, fazendo com que bebesse uma substncia emtica e vomitasse os cinco filhos devorados, que magicamente foram restitudos vida sem apresentar qualquer dano do perodo que passaram no estmago do prprio pai. (VERARDI, 2009, p. 12)

    At nos mitos gregos temos a histria da antropofagia. Embora seja realmente

    algo grotesco a devorao da carne humana, o ritual tem um sentido simblico, pois os

    ndios devoravam aqueles que eram corajosos, e acreditavam que comendo-os estariam

  • 13

    adquirindo sua coragem. O olhar do branco sobre outros povos sempre teve como

    modelo a viso eurocentrista, ou seja, tudo era comparado com os costumes e hbitos

    dos europeus. No caso do descobrimento do Brasil, temos toda uma populao de ndios

    que viviam nus e tinham seus prprios hbitos e culturas. Conforme defende Maria

    Leonor Buescu:

    Existem, portanto, pressupostos irrecusveis, o extico o diferente e tambm diferente do fabuloso, do mtico e do fantstico, porque, infixado no real. Pressupe uma certa atitude mental, uma sensibilidade particular no contexto de uma viagem ou de uma permanncia num algures alheio, ao recolher vivncias e imagens recorrentes; ao modelar o colectivo (sic) atravs de um registro diferencial, sujeito, em maior ou menor grau, a uma manipulao artstica dos dados da realidade; ao permitir, at, uma deriva escatolgica aparentada com a utopia. Exotismo ser tambm a contrapartida do etnocentrismo, na medida em que faz funcionar, como categoria tutelar, o distanciamento espacial, social, cultural, antropolgico, esttico, fazendo, todavia tambm funcionar mecanismos de apropriao. Ser, ento, uma esttica do diverso. (BUESCU, p.565-578)

    O exotismo, para Buescu, o diferente. A viso etnocntrica confrontava-se com

    o extico, no Ocidente e no Oriente. Enquanto os indgenas eram os seres inferiores,

    porque andavam nus e no mantinham certos hbitos ditos civilizados, a China j era

    um pas com contraste diferente. Os viajantes ficavam perplexos com a educao, com

    os costumes do povo chins, que, por ser uma civilizao mais antiga que a europia,

    era considerada superior. Essa a esttica do diverso, perceber-se no espelho em

    comparao com o outro.

    A viso do ndio nos relatos feitos no Brasil ser, via de regra, confrontada com

    a do branco colonizador. Duas culturas, dois mundos separados por lnguas e hbitos

    diferentes.

    1.2 O indgena, esse nosso contemporneo

    O ndio no Brasil ainda objeto de estudo de alguns historiadores e lingistas.

    Material sobre cultura e identidade indgenas so parcos e, muitas vezes, feitos sem

    conhecimento emprico, pois os historiadores buscam informaes de rgos

    governamentais e escritos de outros historiadores. A imprensa brasileira no parece

    preocupada em estudar com profundidade as diversas tribos indgenas existentes no

    Brasil. Conforme relata Marco Uchoa, em A temtica indgena na escola:

  • 14

    Apesar do interesse da mdia pelos ndios nos ltimos 25 anos, o que se informa, e, portanto, o que se consome sobre o assunto, so fatos fragmentados, histrias superficiais e imagens genricas, enormemente empobrecedoras da realidade. A coisa mais comum de se ler ou ouvir na imprensa so notcias com o nome das tribos trocado, grafado ou pronunciado de maneira aleatria. No raro um determinado povo indgena associado a locais que nunca viveu, ou ainda, a imagens que, na verdade, so de outro povo indgena. (UCHOA, 2004, p.536)

    O noticirio tambm se presta a promover a desigualdade e a promoo daquele

    que detm o poder. Novelas, minissries e seriados sempre mostram histrias de gente

    vivendo uma realidade de uma minoria da populao brasileira. Quando pobres ou

    negros aparecem nas novelas, geralmente esto em papeis de domsticos, a servio dos

    brancos. Quando um negro ocupa um papel que deveria ser ocupado por um branco,

    normal a imprensa relatar o fato histrico, como aconteceu com Tas Araujo, ao

    interpretar uma protagonista em novela da Rede Globo de televiso. O ndio, coitado,

    sequer tem apario na mdia, seja em novelas, ou seriados.

    Apesar de vivermos em um pas miscigenado, com uma populao majoritria

    de negros e ndios, o preconceito perdura, Ana Tettamanzy, no artigo intitulado De

    Hans Staden a Machado de Assis, o outro sob o signo da devorao caracteriza esse

    preconceito como doena social, ao analisar o conto pai contra me:

    O igual devora seu semelhante pai contra me para que seu rebento sobreviva, sem perceber que a herana escravocrata estava calcada no mais fundo de si. Num futuro breve, poderia ser o filho do caador a vtima do relativismo moral que permite que o pior seja tolervel e, na luta animalesca, o mais forte vena. Evolucionismo renitente, atraso atvico que inocula o germe da indiferena no tecido social brasileiro, conforme a leitura sugerida a partir do relato machadiano. (TETTAMANZY, 2005, p. 277).

    Ou seja, somos o outro para os ndios, pois, apesar de vivermos no mesmo pas,

    ainda vemos os habitantes mais antigos dessas terras com indiferena.

    A viso do selvagem, do ser inferior, pode no ser exteriorizada pelos rgos

    governamentais, mas essa viso que persiste nos dias atuais. Seno, por que ainda

    teramos, em pleno sculo XXI, projetos de desenvolvimento em que no se

    preservam os interesses indgenas? Durante 200 anos, os jesutas estiveram presentes no

    Brasil, tentando cristianizar os ndios de todas as formas, para que pudessem livrar-se

    dos pecados.. Engana-se quem pensa que isso no perdura nos dias atuais. Marco

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    Uchoa afirma que missionrios de 53 organizaes religiosas atuam na Amaznia sem

    autorizao para tal, e relata que vrios missionrios probem rituais e fazem presso

    para que os ndios se convertam ao Deus branco. (2004) Tentar impor uma verdade

    que no a deles, a meu ver, tentar apagar sua cultura e sua identidade.

    O ndio tem espao na escola apenas no dia 21 de abril, em comemorao ao seu

    dia. Mas a tarefa de vestir as crianas com cocares e fazer brincadeiras imitando rituais

    hipotticos e envolvendo danas em volta da fogueira no contribui para se trabalhar a

    questo indgena, muito antes pelo contrrio, prejudica. Como a escola se omite, os

    cidados brasileiros saem da escola sem perceber a enorme injustia que se comete nos

    dias atuais com os povos indgenas.

    A FUNAI (Fundao Nacional do ndio) deveria ser a instituio responsvel

    pelo resguardo dos interesses indgenas, mas, o que mais vemos so projetos de

    desenvolvimento que prejudicam os ndios e contribuem para o extermnio implcito

    das aldeias. No momento, h um grande projeto de construo da Usina de Belo Monte,

    que obrigar a retirada de centenas de famlias indgenas das terras que sero alagadas

    para a sua construo. A obra custar mais de 30 bilhes.

    A FUNAI, que deveria ser contrria ao projeto, j afirmou publicamente que

    favorvel construo da usina. Os ndios do Par alegaram que no foram consultados

    nenhuma vez pela FUNAI, ou seja, o que se v uma instituio mais preocupada em

    proteger os interesses governistas do que dos ndios.

    Acredito que a educao a nica maneira de formar, no mnimo, cidados

    conscientes dessa realidade e, assim, tentar ajudar a nfima populao indgena (que

    vivem em tribos) que ainda resta no Brasil. Estima-se que seja menos de 500.000.

    1.3. O surgimento da Literatura Indgena

    Este trabalho tem por objetivo trabalhar a questo da viso do ndio por meio da

    educao. O objetivo primrio desse trabalho era pensar propostas de ensino de

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    Literatura na escola, como meio de formar cidados conscientes da realidade do ndio

    no Brasil. Conforme fui escrevendo, me deparei com uma questo: eu no posso pensar

    a escola para os brancos somente, porque assim, eu j estaria discriminando e

    deixando de lado toda uma preocupao educacional que j existe entre os ndios para

    preservar a sua identidade.

    Maria Ins Almeida, em Desocidentada, e Os livros da floresta mostra o

    trabalho que vem sendo feito nas tribos indgenas do Brasil para tentar resgatar suas

    memrias e pensar a educao do ndio na cultura branca, sem que os mesmos percam

    suas identidades. O relato da ndia Antyo Patax, abaixo, demonstra o esforo para

    pensar a Literatura como forma de preservar a identidade:

    A nossa escola diferenciada, a gente tendo em mente qual cidado queremos formar, a partir da temos a deciso de qual pesquisa deve ser feita. Durante os trabalhos na escola, eu achei importante escrever a histria do meu povo que nunca havia sido escrita eu nunca tinha visto um livro que falasse do meu povo. A nossa escola est ligada ao cosmos, ao mundo animal, ao mundo vegetal. Isto que faz meu povo Patax buscar esta sabedoria atravs dos antepassados pessoas que tm a alma do que ser ndio. Para se pensar uma escola, tem que ter aquele caminho de estudar, desenvolver uma pesquisa. Os mais velhos so os nossos livros, os livros de fora ajudam, mas, os importantes so os velhos. Temos a os heris que morreram pela ptria, tornaram-se heris, mas , aqui, tambm tem. S que ningum nunca viu um heri indgena, no est no livro dos brancos. (ALMEIDA, 2009, p. 72)

    Muito interessante o relato da ndia Kantyo, claro deve haver heris

    indgenas, ndios, caciques que so lembrados por sua bravura, coragem, defesa de seu

    povo. Acho de extrema importncia buscar esses relatos e comear a imprimir a histria

    indgena na cultura brasileira. Esse trabalho de buscar a voz indgena para a grande

    tribo do mundo moderno (JECUP, 2002) ser de grande valia para as prximas

    geraes. A escrita, para os ndios, nunca foi instrumento de transmisso de sua histria,

    pois sempre utilizaram da oralidade para cont-las. Pensar nisso de extrema relevncia

    para que seja possvel uma educao voltada para o conhecimento dessa Literatura

    incipiente, conforme afirma Almeida: Est acontecendo, neste momento, desde a reforma constitucional de 1988, a revelao, com direito a ampliao colorida, de algumas camadas da sociedade brasileira (negros e ndios), das quais o pblico leitor s pressentia a existncia dos ndios a partir dos negativos de cientistas sociais, antroplogos e lingistas especialistas que escreviam para especialistas. Os ndios, objeto dessa escrita acadmica, tornam-se sujeitos, graas

  • 17

    sobretudo reintroduo da escola em suas vidas, agora num contexto mais democrtico. (ALMEIDA,2004, p. 197)

    Maria Ins de Almeida faz o seguinte questionamento: A floresta toda. Ser que agora a ouviremos? Num tempo de globalizao, preocupao em demasia com dinheiro, sucesso, a literatura indgena pode ajudar a resgatar o ser da floresta que existe em casa um de ns. Estamos aptos a enxergar e escutar as vozes dos passarinhos, as cores do verde, as muitas qualidades das onas, tantos tamanhos macacos? para isso que os ndios esto escrevendo, desenhando e aprendendo a fazer lindos livros. (ALMEIDA, 2009, p. 93).

    Acredito que esse trabalho que vem sendo feito com os ndios de extrema valia

    para a nossa histria, para que eles mesmos possam contar, com suas experincias, seus

    relatos a histria vivida por eles e seus antepassados. Eles enfrentam muitas

    dificuldades para conseguir imprimir essa histria, conforme aponta Almeida:

    Por que alguns rapazes e algumas moas que vivem nas aldeias enfrentam estradas ruins, cidades grandes, distncia dos parentes, saudades da aldeia, olhares curiosos de brancos, caras fechadas de autoridades, tudo para se formarem e criarem escola indgena. Depois de alguns anos lecionando literatura para esses jovens indgenas, arriscaria uma resposta: teimosia. Teimar: manter a fora de uma deriva e de uma espera. por teimosia que os povos indgenas sobrevivem e fazem escola. Ento, a escola indgena vai sutilmente dando ao sistema escolar brasileiro uma orientao nova, no sentido de sua pr-histria, do retorno ao antes da colonizao. (ALMEIDA,2009.p.77)

    Os textos criados pelos ndios no so de difcil entendimento, ou seja, podem

    ser trabalhados em sries inicias do ensino fundamental. Alguns textos, alm de contar

    histrias dos antepassados, das florestas e alguns mitos, tambm fazem, assim como a

    literatura africana, denncia das injustias que sofrem e sofreram por sculos, conforme

    demonstra o texto escrito por Amilson de Souza, da aldeia indgena de Ponta Alegre:

    Que saudade da vida/ uma pena para quem/Separa seus dias/Para isso tudo/O que refletir ser deste mundo/Se apenas seres racionais e irracionais/Pairassem nesse mundo/Seria um paraso!/Infelizmente,/pairam tambm/nesse mundo/seres destruidores/que no querem ver/na sua frente/uma vida feliz e tranqila/e quando veem/do pontaps/Manchas de lgrimas/E de sangue espirradas/no cho aparecem/cedros desesperados/gritam por socorro/So resultados da ao/dos seres destruidores. (ALMEIDA, 2004, p.94)

    Almeida ainda afirma que essa literatura incipiente pode ser bom para ambos:

    ndios e brancos para estes, porque retornam a esse momento inaugural pela fora do

    estranhamento para aqueles, porque esto em geral iniciando o contato com a escrita

    e com os livros. (ALMEIDA, 2004,p.85 ).

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    E esse contato com a escrita e com os livros, que vai permitir aos ndios (re)

    escrever sua histria e dominar a lgica dos brancos, segundo os prprios ndios

    afirmam. Est mais do que provado que a literatura capaz de abrir horizontes. Ou seja,

    levando esses textos para a escola, estaremos ajudando a no somente preservar a

    identidade e cultura indgenas, mas, tambm, formar cidados mais humanos.

    Muitas coisas chamam a ateno na literatura indgena e podem provocar um

    debate muito interessante em aula. A relao intrnseca dos ndios com a natureza algo

    que chama a ateno nas poesias. Estamos vivendo um perodo de enorme descaso do

    homem com a natureza: a explorao dos recursos naturais, bem como a falta de

    cuidado com o lixo depositado nos mares, a poluio criada pelos carros, indstrias e o

    desmatamento das florestas.

    E essa denncia est muito presente nos textos indgenas:

    Suas observaes revelam, em geral, a degradao do meio ambiente em razes de mtodos de cultura imprprios e da superexplorao dos recursos naturais, como, por exemplo, o impacto das madeireiras e mineradoras; os conflitos internos gerados pelo proselitismo religioso das diferentes seitas e ordens religiosas [...], a precariedade maior, aps o contato com o branco, das condies de sade e a quase impossibilidade do acesso medicina moderna, as condies desfavorveis de participao no mercado; a emigrao para as cidades de parte da juventude, geralmente a mais dotada e melhor formada para exercer profisses. Em face desse panorama negativo do progresso e da modernidade, os escritores indgenas apontam uma alternativa poltica, atravs de um modelo de comunidade contrrio ao mundo metropolitano. (ALMEIDA,2004,p.228)

    Outro fato que chama a ateno ao se estudar um pouco mais sobre os ndios o

    de acharmos que ndio tudo igual, o que no poderia estar mais longe da verdade.

    Assim como existem pases com pessoas, culturas, lnguas diferentes, o mesmo ocorre

    com os ndios. Existem vrias aldeias, vrias culturas e identidades separadas inclusive

    pela lngua, e, no Brasil, elas passam de 170. Muita gente desconsidera esse fato

    importante.

    Ser que estamos abertos a conhecer a histria dos ndios e ensin-la em nossas

    escolas? Escolas indgenas existem pelo Brasil afora, isso importante para que os

    ndios possam aprender a escrever e transformar em letras seus pensamentos, mas o

  • 19

    importante as escolas tradicionais implantarem em seus currculos contedos que

    visem estudar mais sobre essa incipiente literatura indgena. Nos prximos captulos,

    como exemplificao dessa recente produo literria indgena, abordarei nos prximos

    captulos, as obras Meu destino ser ona, de Alberto Mussa e Todas as vezes que

    dissemos adeus, de Kak Wer Jecup.

  • 20

    2. Meu destino ser ona: pesquisa e inveno de um autor no indgena

    Alberto Mussa um escritor carioca que fez um trabalho minucioso de

    restaurao dos mitos indgenas por meio dos relatos dos viajantes que por aqui

    estiveram na poca do descobrimento. Sua proposta fundir a tradio ocidental aos

    relatos mitolgicos de outras culturas, como a afro-brasileira, a da cultura rabe e a do

    Brasil indgena. Embora saibamos que nos relatos dos viajantes predomina o olhar do

    outro, sempre com a viso etnocntrica, a recuperao dos mitos se torna mais prxima

    da experincia concreta da vida indgena pelo fato de o autor restaurar os mitos

    cotejando os vrios relatos de viajantes que por aqui estiveram em pocas e tribos

    diferentes. O livro, a meu ver, dividido em quatro partes.

    Na primeira parte, o autor faz um breve relato sobre os tupinambs, e as

    diferenas entre as diversas tribos que habitaram a costa brasileira durante o perodo

    colonial e ps-colonial. Na segunda parte, o autor relata os mitos indgenas restaurados

    aps a sua pesquisa dos relatos de viajantes. Ele ainda informa que algumas partes dos

    textos foram includas por ele para no ficarem sem sentido, mas que tentou deixar o

    texto o mais fidedigno possvel aos relatados pelos viajantes. Sua importncia como

    registro histrico no tem precedentes: 1. Porque nos mostra quo rica e potica pode

    ser a literatura indgena. 2. Porque no h precedentes. Os romnticos e modernistas

    criaram uma imagem deturpada dos indgenas estes, por tentarem retratar o ndio

    como anti-heri, e aqueles, por tratarem-no como o heri.

    No incio do livro, Alberto Mussa faz um pequeno parmetro sobre a presena

    indgena no Brasil. O que chama a ateno o fato de ele mencionar que a maior parte

    dos ndios no Brasil foi exterminada devido s doenas, como gripe e varola. Fica o

    questionamento que no encontrei resposta: Por que os surtos de varola iniciaram na

    colonizao? Acredito que foi o contato com os brancos que criaram essas epidemias,

    seno no seria lgico os surtos surgirem na poca do descobrimento e exterminar boa

    parte dos ndios, sendo que eles j habitavam as terras h milhares de anos. Ou seja, os

    brancos, a meu ver, continuam com a culpa do extermnio, apesar de sabermos que os

    ndios tambm lutavam entre si e as mortes eram considerveis.

  • 21

    Outro fato merecedor de comentrio com relao porcentagem de

    descendentes de ndios no Brasil. Alberto Mussa faz alguns clculos aproximando os

    habitantes de hoje de seus antepassados, que, segundo ele, possuem ascendncia

    indgena em sua maioria, conforme defende:

    Mesmo com todas as aproximaes que os especialistas sabero que fiz, no so necessrias mais contas para que se possa afirmar que, no Brasil, a probabilidade de algum ser descendente de ndios muito alta, talvez muito prxima de 100% j que o processo miscigenatrio que deu origem ao fenmeno comeou no sculo 16, bem antes da gerao dos nossos bisavs. (MUSSA, 2009, p. 22)

    Na segunda parte do livro, o autor mostra o resultado da montagem do quebra-

    cabea dos relatos de viajantes que aqui estiveram na poca do descobrimento. Sua

    investigao meticulosa dos relatos possibilitou a reproduo dos mitos tupinamb, que

    so de grande valia para a compreenso da cultura indgena.

    Conforme defende Almeida (2004), a literatura indgena difere de outras por se

    tratar de uma literatura basicamente coletiva. Os mitos tambm so a representao de

    um imaginrio coletivo, conforme defende Antnio Jos Saraiva (apud Machado,1983):

    os mitos histricos so uma forma de conscincia fantasmagrica com que um povo

    define a sua posio e a sua vontade na histria do mundo.

    Pensando nesse aspecto, pode-se imaginar a quantidade de mitos que devem

    existir na cultura indgena, mas que desconhecemos pelo simples fato de os ndios

    usufrurem ate hoje do texto oral, que se prende no imaginrio coletivo dos ndios, mas

    que no transmitida a outros povos pela barreira da lngua e pelo descaso com a

    cultura deles. O trabalho de Alberto Mussa de extrema relevncia, mas, se formos

    pensar na questo autoral, verifica-se que os mitos evidenciados em Meu destino ser

    ona so relatos feitos pelo outro. Da a importncia de se ter uma educao indgena,

    para que seu povo possa comear a escrever na histria esses mitos.

    No incio do relato mitolgico, temos o captulo denominado um ornamento

    para o cu. Nele, consta o que seria para os tupinambs o princpio de tudo. Para eles,

    o Velho possui o carter divino, pois demonstra ser o Criador. A narrativa explica a

    criao dos seres na terra, bem como a criao do mar, que seria as cinzas de tudo que

  • 22

    foi queimado durante o castigo que o Velho infligiu aos habitantes da terra ao

    negligenciarem sua presena.

    Importante nessa parte o carter punidor que do ao Velho, o mesmo que o

    cristianismo atribui a Deus, quando criou o dilvio para punir os homens e salvou

    apenas algumas espcies animais do castigo na arca de No. Interessante que no relato

    mitolgico tupinamb h meno a uma enchente que exterminou grande parte da

    populao, o que permite uma ligeira associao:

    Desse buraco, que se abriu sobre as guas profundas que ficam embaixo da terra, comeou a jorrar uma imensa quantidade de gua, inundando tudo. O nvel da enchente foi acima das montanhas, e parecia ultrapassar as nuvens. Os gmeos, desesperados, tentaram primeiro se refugiar nas mais altas montanhas, mas logo se deram conta de que seriam arrastados pelas guas turbulentas. (MUSSA, 2009, p. 32)

    Mesma meno ocorre em O Guarani, quando Peri e Ceci sobrevivem a uma

    grande enchente catastrfica, e ambos sobrevivem para dar origem a uma nova

    humanidade:

    A cpula da palmeira, embalanando-se graciosamente, resvalou pela flor da gua como um ninho de garas ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetaes aquticas. Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada e,tomando-a nos braos, disse-lhe com um acento de ventura suprema: Tu vivers!... [...] Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lnguida reclinou aloura fronte. O hlito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lmpidos sorrisos: os lbios abriram como as asas purpreas de um beijo soltando o vo.A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...E sumiu no horizonte. (ALENCAR, 2000, p. 295-296)

    Nos mitos relatados, percebe-se que os seres mitolgicos so possuidores de

    poderes divinos, mas que possuem caractersticas humanas. Mara, que no era pessoa

    comum, porque podia subir ao cu e ser recebido amistosamente pelo Velho, foi quem

    comeou a organizar a vida indgena (MUSSA, 2009). Ele parece ser um dos

    personagens mitolgicos mais importantes para os tupinambs, pois ofereceu vrios

    ensinamentos, criou regras para o bem-viver da populao indgena, proibiu o

    casamento entre pai e filha, entre me e filho, entre tio paterno e sobrinha, entre tia

    materna e sobrinho, entre irmo e irm. (MUSSA, 2009)

  • 23

    Aqui fica o registro de que os ndios possuem divindades, como o Velho e

    Mara, que ajudam no entendimento e organizao da vida indgena. O mesmo ocorre

    na mitologia grega com os diversos deuses. Em ambas as culturas, os deuses se

    revestem de poderes divinos, mas possuem desejos e virtudes como qualquer ser

    humano.

    Parece que toda populao precisa de mitos para sustentar o imaginrio coletivo

    e com os ndios no diferente, o que j deixa claro tratar-se de seres humanos

    complexos, que procuram, por meio do imaginrio, as respostas e ensinamentos que

    procuramos para entender a existncia humana. No prximo captulo, abordarei o livro

    Todas as vezes que dissemos adeus, de Kak Wer.

  • 24

    3. Kak Wer Todas as vezes que dissemos adeus: a diferena da literatura indgena

    Kak Wer Jecup um indgena considerado paj pelos ndios. Na cultura

    indgena o paj um curador que trabalha com espritos da natureza. Kak Wer tem

    participado de vrios estudos e pesquisas espirituais e promove seminrios e encontros

    em vrios pases. Ele tenta, por meio do resgate da memria cultural, fortalecer os laos

    entre as trs Amricas.

    Em Ore Aw Roirua Ma (Todas as vezes que dissemos adeus), ele conta a sua

    histria e de sua famlia em uma narrativa no-linear. No prlogo, ele explica, de uma

    forma potica, que um

    Txukarrame que percorre o caminho do sol, de acordo com a pintura de urucum escrita nesse corpo que guarda a histria milenar do nosso povo, desde os Tubaguaus primeiros, desde os Coroados primeiros, os primeiros tupinambs os adornados da plumagem do arco-ris em cintilantes cocares, os que desde sempre desenham o talham as douradas flechas dos raios de Tup pelos tempos, luas e luas. (JECUP, 2002, p. 15).

    Impactante tambm o relato que faz sobre como sobreviveu ao genocdio de sua

    aldeia, quando

    Homens empunhados de pequenos troves fizeram uma grande tempestade, lanando-se contra ns de todos os lados, fazendo chuva de chamas. Curumim, Cunha, Tijari, Tieti, Mit, Menononure, Aymeri, tuj, tuj-i; corpos destes nomes ao cho, como um estio fnebre. Quando a ltima oca derramou sua ltima lgrima de fogo e se desfez em cinza, restaram pouco mais de oito parentes, entre eles a anci Meir-Mekrangnotire e a filha Yakamara, que viria a ser a me que semearia o mundo. (JECUP, 2002, p. 22)

    Esse o trecho que d incio narrativa do ndio Jecup, ainda que seu perfil

    talvez no correspondesse imagem de ndio que ns, brasileiros no indgenas,

    queremos atribuir aos descendentes dos habitantes originais do pas. (SANCHES,

    2006).

    J no fragmento intitulado A entrada da Aldeia, no tem como ficar

    indiferente descrio que ele faz do local onde fica sua aldeia. Descreve o bairro que

    no existe mais, as trilhas que viraram ruas pavimentadas, a fauna e a flora que

  • 25

    desapareceram com a urbanizao desenfreada na cidade de So Paulo. A sua aldeia

    ainda existe porque as casas e indstrias no podem chegar l devido a uma placa onde

    est escrito: Governo Federal Fundao Nacional do ndio rea Indgena. E

    assim que os mundos se separam (JECUP, 2002), afirma ele.

    A sua ida escola faz pensar sobre a real necessidade de os ndios estudarem.

    Para eles, aprender a escrever significa a perda da alma, e ela fica presa num pedao de

    papel, dividida, preta e branca, sem sol, em um documento chamado caderneta escolar

    (JECUP, 2002,p.32).

    Kak tentou por um tempo ir escola, inclusive usando o uniforme imposto:

    calo azul-marinho, meias brancas, sapatos pretos, camisa branca, uma gravatinha

    com risco branco que indicava ser o primeiro ano. (JECUP, 2002, p.32). Aqui j se

    percebe a diferena cultural existente entre a cultura indgena e a cultura dominante,

    aceita pela sociedade.

    Kak e sua famlia so obrigados a sarem do local onde vivem, sobre o pretexto

    de que aquelas terras onde viviam foram doadas por D. Pedro II. Aqui j fica claro que a

    relao de poder est perpetuada no saber, j citado anteriormente. Quem sabe mais,

    domina. A relao de saber que perpetua a suposta superioridade do homem branco

    perante o ndio. Kak ainda faz uma ironia, lembrando que l no Norte ainda expulsa-

    se a bala. Aqui, com documentos do imperador. (JECUPE, 2002, p.36). Quando Kak

    Wer chega na nova aldeia, tem contato com a civilizao que fica do outro lado da

    barragem.

    A descrio que faz da civilizao no deixa de ser uma meno irnica carta

    de Pero Vaz de Caminha, quando do descobrimento do Brasil: Provei do bom e provei do ruim. Conheci uma qualidade de caciques, que pem gravatas como na minha poca de estudante e que, como dizia um antiqssimo e histrico escrivo, andam deveras desavergonhados. Eles tm requintes na fala, vivem dela. E o jaguar no corao. (sim, o jaguar que devora tudo que seja contrrio ao seu nico olho cego. Que grunhe ganncia. (JECUP, 2002, p. 37)

    Difcil ficar indiferente aos relatos de Kak acerca da poluio ambiental que os

    homens causam natureza, que modifica a geografia da cidade e influi em sua tribo. O

  • 26

    contato com o vilarejo vizinho, fez com que seu pai conhecesse o lcool e passasse a

    beb-lo diariamente, o que acabou matando-o.

    Parece que o primeiro contato maduro que Kak tem realmente com a

    civilizao foi na sua ida a Florianpolis, onde conheceu Gike: embora uns dourados e

    longos cabelos cassem-lhe sobre os ombros e a europia tecesse-lhe a pele, tinha um

    tom da tribo no esprito (JECUP, 2002, p.44). Percebe-se que a viso que ele tem de

    Gike, como tendo um esprito da tribo, pois tinha um estilo de vida hippie, o faz se

    aproximar dela.

    Muito importante salientar a fundao da Unio das Naes Indgenas, que foi a

    reunio das oito aldeias guaranis de So Paulo para preservar a cultura de seu povo e

    levar a mensagem aos povos civilizados, para que dessem ouvidos Cincia da Mata.

    Em uma poca que tanto se fala em desmatamento, em preservao da natureza,

    cabe ressaltar a relao que os ndios tm com a Natureza e que a civilizao dita

    superior est exterminando-a com o progresso desenfreado e a ganncia do homem

    capitalista, conforme relata Kak Wer:

    A tribo mudara muito, sem se mudar. Quando eu nasci, situava-se no meio da Mata Atlntica; um pingo, uma aldeiazinha. Agora, o que restou da Mata Atlntica ficara no meio dela. Beirava-se, ontem prximo a um vilarejo que iria se formar; hoje, na periferia ao lado sul da metrpole. A represa ainda lhe cortava, exalando algo de podre, vindo do reino l, ao longe. (JECUP, 2002, p. 55)

    A viso que a civilizao tem do ndio evidenciada na narrativa por Kak,

    quando, participando de um coquetel na cidade de So Paulo, a anfitri relata que

    imaginava que os ndios existissem apenas na Amaznia. Kak explica que existem

    aldeias em So Paulo e que seus ancestrais, que no esto mais presentes aqui no cho,

    querem perdoar os males causados por certa ignorncia da chamada mentalidade

    civilizada. Pretendo trazer boa parte do meu povo para esta dana. (JECUP,

    2002,p.95)

    Nessa parte da narrativa, Kak fala sobre um dentista que tem um projeto

    chamado Bandeira da Vida e que cedeu espao para que sua tribo fizesse demonstrao

  • 27

    de sua dana. Quando vai Cmara do Comrcio de So Paulo, conhece Eduardo

    Elchemer, que diz ser filho de imigrantes que para sobreviver teve que aprender a lngua

    e a cultura brasileira. A resposta de Kak, no poderia ser mais impactante:

    . Somos estrangeiros; a diferena que sou considerado estrangeiro em meu prprio lugar e, quando me visto das roupas ditas civilizadas, no sou considerado dentro da cultura do meu povo, mas de acordo com a roupa que visto. (JECUP, 2002,p.55)

    Importante a fala de Eduardo Elchemer quando diz que a dana do perdo que

    Kak Wer far com sua tribo deve ser vista como um evento e que muitas empresas

    usariam isso como propaganda para querer associar sua imagem a causas ecolgicas.

    Aqui fica bem evidente a hipocrisia que reina nesse mundo da filantropia. O carter

    filantrpico o pretexto que as empresas, inclusive celebridades, utilizam para se

    promover e obter mais lucros. Kak, mesmo sabendo disso, resolve prosseguir com

    sua idia.

    Impactante tambm a crtica que Kak Wer faz da Rede de televiso Globo

    sobre o massacre ocorrido na tribo yanomami por garimpeiros. A manipulao das

    notcias na mdia fez com que a populao no ficasse sabendo quantos ndios

    morreram nem onde realmente ocorreu o massacre:

    No primeiro dia falavam em mais de duzentos yanomamis mortos no extremo norte do pas, na aldeia Haximu. No segundo dia noticiou-se que no havia tantos mortos assim. No terceiro dia no havia morrido ningum. No quarto dia colocaram um ingls antroplogo para traduzir um yanomami que disse em bom portugus que o yanomami disse que no houve o que houve dias atrs. No quinto dia, o noticirio mudou Haximu de lugar, j no ficava no Brasil, mas na Venezuela. No sexto dia colocaram tropas norte-americanas na Venezuela que por acaso mataram alguns yanomamis. No stimo dia, o deus global descansou. Fantstico, o show da vida. (JECUP,2002,p.94)

    Emblemtico tambm a primeira missa do Brasil, quando, pela primeira vez,

    sem distino de raa, cor, credo, religio, assim como diz a constituio, foi rezada

    a primeira missa brasileira (JECUP, 2002, p.95). Jecup relata que se reuniram na

    Catedral da S mais de trs mil pessoas, de todas as religies, entre franciscanos,

    evanglicos, anglicanos, catlicos e umbandistas. Muito importante esse relato e no

    tem como ficar indiferente a esse acontecimento, pois bem sabe-se que a primeira

    missa rezada no Brasil foi um acontecimento criado como forma de espetculo pelos

    brancos colonizadores para impressionar os ndios. Jecup ainda relata que ao final da

  • 28

    missa deu uma rosa branca a cada um dos representantes religiosos: catlicos,

    anglicanos, evanglicos, etc. A primeira missa relatada por Jecup evidencia o carter

    Intercultural e, porque no dizer, multireligioso existente no Brasil, mas que muita

    gente prefere ignorar por puro preconceito.

    O livro de Kak Wer faz uma reflexo muito real sobre o verdadeiro papel do

    ndio no Brasil. Os relatos que Kak Wer nos traz evidenciam o descaso com os

    indgenas e a usurpao de suas culturas. A ironia apresentada na narrativa demonstra

    a preocupao do autor em criticar a forma como os indgenas foram e ainda so

    tratados no Brasil. A linguagem utilizada tambm potica e metafrica. No prximo

    captulo, irei fazer uma pequena anlise sobre o currculo escolar e a forma como

    pensando no Brasil e porque a escola prefere discriminar a cultura indgena.

  • 29

    4. Por uma educao intercultural

    Em uma disciplina do curso de Letras chamada Teoria do Currculo, tive que

    fazer um trabalho de pesquisa analisando os currculos das escolas. Era necessrio

    escolher uma escola e solicitar o currculo para fazer o trabalho. Resolvi escolher a

    escola onde eu me formei no ensino fundamental. uma escola tradicional, de

    formao religiosa.

    Eu j sabia que a escola no tinha esse trabalho de promover a incluso dessas

    minorias, tanto que sai de l com a imagem do ndio selvagem. Mas o que me deixou

    mais intrigado, foi o fato de a escola defender essa viso no seu prprio currculo, onde

    diz que dever da escola tolerar as diferenas. Ora, o dever da escola no apenas

    tolerar as diferenas. Uma escola que apenas tolera as diferenas est perpetuando a

    intolerncia, a discriminao. E seu dever justamente o oposto.

    No basta tolerar, tem que trabalhar com o aluno o lado humano de todas as

    etnias, culturas, diferenas, para que ele no saia da escola perpetuando esse discurso do

    ndio selvagem, ou do racismo, ou da homofobia. O currculo escolar vem sendo objeto

    de estudos desde os anos 20 nos Estados Unidos:

    Em conexo com o processo de industrializao e os movimentos imigratrios, que intensificavam a massificao da escolarizao, houve um impulso, por parte de pessoas ligadas sobretudo administrao da educao, para racionalizar o processo de construo, desenvolvimento e testagem dos currculos. (SILVA, 1999; p. 12)

    A questo do currculo sempre foi uma incgnita para mim, pois sempre quis

    saber quem escolhia o que deveria ser ensinado: o professor, a escola ou o governo? S

    fui obter a resposta dessa pergunta na referida disciplina. Para minha surpresa, descobri

    que, na maior parte das vezes, o currculo totalmente arbitrrio e perpetua-se o ensino

    da cultura chamada dominante. Durante as aulas, houve muitos debates sobre o que

    era ensinado nas escolas e o que deveria ser ensinado. Portanto, a questo : O que

  • 30

    ensinar quando se tem como objetivo mudar a perspectiva do ensino de uma nica

    cultura, vivida por uma minoria da sociedade?

    Um exemplo do ensino antidemocrtico que ocorre nos currculos de muitas

    escolas o ensino de lngua portuguesa. As escolas preferem estudar a gramtica, com

    suas nomenclaturas e regras que soam como grego para os estudantes das classes

    populares. Essa realidade tende a mudar, acredito eu, tendo em vista o esforo de

    linguistas e educadores, mas a questo polmica.

    Acredito que o ensino de muitas escolas est se voltando para a mercantilizao,

    em virtude da globalizao. O ensino de disciplinas humanistas, como sociologia, tica,

    msica so realidades apenas de escolas de elite, em que os pais precisam desembolsar

    uma quantidade considervel de dinheiro para poder manter os seus filhos estudando

    nessas escolas. Nas escolas pblicas, a realidade vem mudando a passos lentos.

    Durante o meu estgio na escola Anne Frank3, pude perceber o esforo da

    direo da escola em manter um currculo que propicie um ensino mais plural e

    democrtico. A escola tem, no seu currculo, disciplina de tica e cidadania, bem como

    ensino de lnguas, aulas de capoeira, msica, danas. Apesar da imensa dificuldade e

    parcos recursos enviados pelo governo, a escola, em conjunto com a comunidade,

    conseguiu mudar a sua realidade por meio do esforo coletivo e engajado.

    Pensar em currculo significa pensar em ideologia. Conforme defende Tomas

    Tadeu da Silva: A ideologia constituda por aquelas crenas que nos levam a aceitar

    as estruturas sociais (capitalistas) existentes como boas e

    desejveis.(SILVA,1999,p.31) E continua:

    A escola atua ideologicamente atravs de seu currculo, seja de uma forma mais direta, atravs de matrias mais suscetveis ao transporte de crenas explcitas sobre a desejabilidade das estruturas sociais existentes, como Estudos Sociais, Histria, Geografia, por exemplo; seja de uma forma mais indireta, atravs de disciplinas mais tcnicas, como Cincias em Matemtica. Alm disso a ideologia atua de forma discriminatria: ela inclina as pessoas das classes subordinadas submisso e obedincia, enquanto as pessoas das classes dominantes aprendem a comandar e a controlar. (SILVA, 1999.p. 32).

    3 A Escola Anne Frank fica no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, e um bairro de classe mdia. Realizei meu estgio na referida escola nos meses de outubro e novembro de 2011.

  • 31

    O currculo, para deixar de ser discriminatrio, singular, precisa objetivar a

    incluso de estudos multiculturais, incluindo as diversas formas de expresso dos

    sujeitos, sejam eles das classes dominantes ou dominadas. Mas necessrio um cuidado

    para que os prprios professores no caiam na armadilha da ideologia forada. Por

    exemplo: um aluno de escola popular pode no ter acesso a cultura erudita, mas isso no

    significa que ele no poderia aprender ou se interessar por msica erudita na escola.

    Se o educador, ao pensar um currculo Intercultural, escolher o contedo

    pensando no que seria bom ou ruim para o aluno, em virtude de sua classe social,

    etnia, sexo, estaria, automaticamente, discriminando esses alunos e impedindo-os de

    ter acesso a algo que seria de grande valia para o seu aprendizado.

    O mesmo ocorre com os alunos provenientes de classes dominantes. Eles podem

    se interessar por diversas formas de expresso que no fazem parte de seu convvio

    social, como, leitura de textos, poemas africanos e indgenas. O ensino de ritmos

    musicais mais populares, como funk, pagode, culturas populares afro-brasileiras e

    indgenas.

    O currculo precisa ser Intercultural e isso de extrema importncia, conforme

    defende Guacira Lopes Louro:

    O currculo fala de alguns sujeitos e ignora outros; conta histrias e saberes que, embora parciais, se pretendem universais; as cincias, as artes e as teorias trazem a voz daqueles que se auto-atriburam a capacidade de eleger as perguntas e construir as respostas que, supostamente, so de interesse de toda a sociedade. (LOURO. 2005.p. 88).

    O currculo precisa ser pensando levando em considerao as dicotomias

    existentes na sociedade que perpetuam a discriminao, a segregao: branco x negro,

    branco x ndio, rico x pobre, homem x mulher, heterossexual x homossexual. Acredito

    que a questo racial a mais importante, pois, ela quem determina o que deve ser

    ensinado nas escolas, pois, como evidencia-se em Stuart Hall,

    A raa como um conceito cientifico no se sustenta, porque ela um conceito discursivo, e todo o discurso ideolgico. E a ideologia tende, por natureza, a obscurecer a origem do discurso que, na maioria das vezes, nasce

  • 32

    engendrado no seio de uma estrutura opressora e exploratria e, neste caso, produzindo o racismo. (HALL,2003,p.94)

    E conforme defende Tomas Tadeu da Silva: Tratar o racismo como questo institucional e estrutural no significa, entretanto, ignorar sua profunda dinmica psquica. A atitude racista o resultado de uma complexa dinmica da subjetividade que inclui contradies, medos, ansiedades, resistncias, cises. O racismo parte de uma economia do afeto e do desejo feita, em grande parte, de sentimentos considerados irracionais. (SILVA,1999,p.74)

    Toda essa argumentao justifica uma mudana em nossa educao. Se est

    havendo a preocupao dos ndios com a educao, nada mais justo que as escolas

    passem a propiciar esse conhecimento aos alunos, por meio de estudos de cultura

    indgena em sala de aula, por meio de textos de autoria dos prprios indgenas. Material

    para isso no falta, o que falta o interesse dos governantes e educadores.

    O indgena s passar a ser respeitado no Brasil quando passar a ter voz, mas

    essa voz, por mais estranho que parea, s ouvida quando lida. A Literatura tem esse

    poder, de humanizar. Se o intuito humanizar, diminuir as diferenas e os preconceitos,

    ento precisamos apoiar e incentivar o ensino ou qualquer projeto que tenha como

    objetivo dar voz a esse povo que tanto foi injustiado e marginalizado em sua prpria

    terra.

  • 33

    CONCLUSO

    Embora no seja fcil mudar a realidade, podemos comear a fazer a diferena.

    A Educao no Brasil precisa de uma reformulao no seu currculo para que os

    estudantes possam ter contato com a verdadeira histria da colonizao brasileira. O

    ensino de literatura no Brasil privilegia o estudo de autores do cnone e parece no

    haver espao para outras manifestaes. Quem pode mudar essa realidade so os

    educadores. Vivemos uma poca de valorizao da natureza, mas nunca o

    desmatamento da Amaznia esteve to acentuado. Tambm estamos em busca de

    valores espirituais, mas ao mesmo tempo o capitalismo transformou as pessoas em

    consumistas, dando valor ao material. O capitalismo e a globalizao parecem acentuar

    cada vez mais esses paradoxos.

    A literatura indgena resgata esses valores to perdidos pelo homem branco: o

    contato com a natureza, com o espiritual. A grande diferena da vida indgena para a

    vida dos brancos a de que eles no apenas falam sobre a preservao da natureza e o

    cuidado espiritual, eles vivem isso no dia a dia. Os textos abordados neste trabalho

    comprovam que estamos diante de uma literatura que, alm de nos trazer todo o resgate

    de nossa histria, dos nossos antepassados, nos possibilita pensar sobre a possibilidade

    de mudarmos o destino: o nosso4 e dos indgenas. O nosso, porque podemos ir em

    busca de valores h tempo perdidos ou deturpados pelos constantes abusos conosco para

    tentar atender a essa busca desenfreada por status e dinheiro. O deles, porque estaro

    mudando seus prprios destinos ao contar suas prprias histrias.

    4 Escrevo nosso entre parnteses porque diferenciar ns dos ndios j parece, a meu ver, um paradoxo, pois sabemos que somos um mesmo povo, habitamos as mesmas terras. Apenas possumos culturas e identidades diferentes, assim como os gachos so diferenciados dos nordestinos, dos paulistas. assim que deveramos pensar.

  • 34

    Acho importante salientar que no defendo a ideia de que a vida indgena a

    melhor ou a ideal, apenas acredito que os indgenas tm muito a nos ensinar, e ns

    muito a ensinar a eles.

    A literatura indgena o resgate de nossa histria e uma ponte para criarmos

    um verdadeiro vnculo com nossos amigos indgenas e ela s ter sucesso se nossas

    escolas levarem esses textos ao conhecimento dos alunos.

    Os cursos de licenciatura das universidades devem incluir o estudo da literatura

    indgena. Se o movimento no comear na Universidade, que onde se produz o

    conhecimento, ela ser ferramenta de estudo apenas para alguns historiadores, mas uma

    certeza fica, a de que os ndios esto escrevendo, literalmente, suas histrias.

  • 35

    REFERNCIAS

    ALENCAR, Jos de. O Guarani. So Paulo: Ateli. 2000

    ALMEIDA, Maria Ins de & Queiroz, Snia. Na captura da voz: as edies da narrativa oral

    no Brasil. Belo Horizonte. Autntica. FALE/UFMG, 2004.

    ALMEIDA, Maria Ins. Desocidentada. Experincia literria em terra indgena. Belo

    Horizonte. Editora UFMG, 2009.

    BUESCU, Maria Leonor. O exotismo e a esttica do diverso na Literatura Portuguesa in:

    Literatura de viagem: narrativa, histria, mito. Lisboa: Cosmos.

    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

    JECUP, Kak Wer. Ore Aw Roirua Ma. Todas as vezes que dissemos adeus. 2 ed.

    So Paulo: Trion, 2002

    LOURO, Guacira Lopes. O currculo nos limares do contemporneo. Rio de Janeiro, DP &A

    Editora, 2005.

    MUSSA, Alberto. Meu destino ser ona. Rio de Janeiro: Record, 2009

    S, Lcia. Anticolonialismo na ps-colnia: Kak Wer Jecup ou a literatura indgena da

    megalpolis. In: SANCHES, Manuela Ribeiro. Portugal no um pas pequeno: contar o

    imprio na ps-colonialidade. Lisboa: Cotovia, 2006.

    SANCHES, Manuela Ribeiro. Portugal no um pas pequeno. Lisboa, 2006.

    SANTOS, Boaventura de Souza. A gramtica do tempo: para uma nova cultura

    poltica. 2 ed. So Paulo, 2008.

    SILVA, Aracy Lopes & Grupioni, Lus Donizete Benzi. A temtica indgena da escola.

    Global Editora, So Paulo, 1998.

    SILVA, Tomas Tadeu. Documentos de Identidade. Uma introduo s teorias do Currculo.

    2 Ed. Belo Horizonte: Autntica, 1999.

  • 36

    TETTAMANZY, Ana Lcia Liberato. De Hans Staden a Machado de Assis: o outro sob o signo

    da devorao. In: ___ (org.).Tantas Histrias, tantas perguntas nas Literaturas de expresso

    portuguesa. Porto Alegre. Editora Evangraf, 2007.

    VERARDI, Cristian. Intervenes antropofgicas em trs contos de Umberto Campos.

    Trabalho de Concluso em Letras/UFRGS, 2009.

    INTRODUO1. VISES SOBRE O INDGENA1.1 O olhar do outro no incio da colonizao1.2 O indgena, esse nosso contemporneo

    1.3. O surgimento da Literatura Indgena

    2. Meu destino ser ona: pesquisa e inveno de um autor no indgena3. Kak Wer Todas as vezes que dissemos adeus: a diferena da literatura indgena4. Por uma educao interculturalCONCLUSOREFERNCIAS