000 a Encontro marcado - ALLAN KARDEC EDITORA · Miúdo, barbas longas, fronte larga, Batuíra já...
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ENCONTROMARCADOSETE DÉCADAS DO
CENTRO ESPÍRITA ALLAN KARDEC
Clayton Levy e Maria Joana Tonon
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SumárioEsta reportagem 11
Da febre amarela ao surto de modernização 13
“Marrone, muito prazer” 22
De portas abertas 26
As irmãs Jürgensen 32
O soldado e o rapazola 36
Um passo à frente 39
Enfim, o novo endereço 41
500 cadeiras 46
A tragédia do Cine Rinque 52
De casa em casa 55
Tudo serve 59
Mocidade 66
O mestre informal 75
“Tem algum doente aí?” 77
O último passe 79
La golondrina 81
Educandário Eurípedes 86
Teo Li 92
Sete metros a menos 95
Marrone manda notícias 98
Kardec para o povo 100
Sonhando com os netos 104
Homem de bem 107
O primeiro recado 110
Limpando feridas 112
Tempos difíceis 114
Pães para alimentar um sonho 118
Visitante ilustre 123
“Não há morte” 127
Entre sapos e maritacas 131
Novas frentes 137
33.868.800 minutos 140
Diretoria do CEAK e seus Departamentos 143
Diretorias e Coordenadorias 156
Atividades doutrinárias 165
Fontes consultadas 169
Índice de Fotos 221
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Esta reportagem
Em 1938 dois homens se encontraram casualmente no banco de uma praça e decidiram fundar uma
instituição espírita. Setenta anos depois, o Centro Espírita Allan Kardec, em Campinas, consolidou-se
como referência nacional no campo da promoção social, respeito à cidadania e divulgação do espiri-
tismo. A presente reportagem busca resgatar os principais episódios e personagens que construíram
essa trajetória.
A narrativa percorre um arco de tempo que começa em 1904, quando surgem os primeiros centros
espíritas da cidade, e vai até 2008, com a comemoração do 70º aniversário da instituição. Não preten-
de ser a história oficial de uma casa espírita, mas o relato de experiências vivenciadas por pessoas que
tiveram a vida profundamente marcada por um ideal que desafiou os padrões de uma época. Mais que
os fatos em si, buscou-se, aqui, captar a sua alma.
Embora tenha entrevistado diversos pioneiros remanescentes e consultado farta documentação, é
preciso registrar que este trabalho não teria sido possível sem o empenho da historiadora Maria Joana
Tonon, a Jô. Como coordenadora do arquivo histórico da Casa, coube a ela uma parcela significativa
do levantamento para reunir documentos, depoimentos e fotografias que deram sustentação ao pro-
jeto. Se há, portanto, algum mérito nesse livro, deve ser em boa parte creditado a essa velha amiga e
profissional das mais competentes.
Nos últimos vinte e cinco anos, trabalhando em vários jornais, cobri episódios de todo tipo. Andei por
presídios e universidades, favelas e mansões, hospitais e palanques políticos. Famosos ou anônimos,
pobres ou ricos, cada personagem valia pela história a ser contada. Não importava muito se era alegre
ou triste. Bastava ser uma novidade. Desta vez, a história é feita por um punhado de cidadãos comuns
que dedicaram a vida ao sonho de uma sociedade mais solidária. Num mundo de tanta indiferença e
desencanto, isso não deixa de ser uma novidade. E por isso também merece ser contada.
Clayton Levy
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Da febre amarela ao surto de modernizaçãoInício do século 20. Campinas ainda se recupera da grande perda populacio-
nal ocasionada entre 1889 e 1897 pelas epidemias de febre amarela. Dos cer-
ca de vinte mil habitantes, apenas cinco mil permaneceram na cidade. Além
de matar quase duas mil pessoas ao ritmo de trinta óbitos por dia, o flagelo
afugentara mais de dois terços dos moradores, que bateram em retirada rumo
à zona rural e cidades vizinhas.
Considerada até então o centro agrícola do estado de São Paulo, a cidade
também teve sua economia bastante abalada. Estabelecimentos comerciais,
escritórios e algumas fábricas transferiram-se para a capital. O impacto na
lavoura cafeeira também foi significativo. No ano da tragédia, foram enca-
minhados para as fazendas de café apenas 295 imigrantes europeus, contra
1.990 registrados na hospedaria local em 1888.
Somente dez anos depois, com a reorganização do saneamento urbano e a
diversificação das atividades comerciais, o município conseguiria readquirir
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a população que possuía antes da catástrofe. Crescendo a taxas de 2,5% ao
ano, a população campineira chegaria ao ano de 1900 com 67 mil habitantes.
Aos poucos, a economia também retomaria o dinamismo de antes. É nesse
contexto que surgem os primeiros grupos espíritas locais.
Não há registros de que tenha havido algum centro espírita na cidade an-
tes de 1904. Entretanto, a partir daquele ano, um grupo passou a se reunir
numa residência da rua Benjamin Constant, entre a Saldanha Marinho e
a Visconde do Rio Branco. Ali, o dono da casa, Manuel Alfaia, organizava
sessões espíritas sob o comando de Antônio Gonçalves da Silva, o Batuíra,
que residia em São Paulo mas viajava semanalmente para Campinas só para
orientar os novos seguidores de Allan Kardec.
Miúdo, barbas longas, fronte larga, Batuíra já era um dos líderes do espiritismo
no Brasil quando passou a atuar em Campinas. Depois de fundar na capital
paulista o Grupo Espírita Verdade e Luz, em 1890, colocaria em circulação
um quinzenário com o mesmo nome, cuja tiragem chegaria a inacreditáveis
15 mil exemplares, pagos do próprio bolso. Com o tempo, sua fama cruzaria
as fronteiras de São Paulo, espalhando-se por Minas Gerais e Rio de Janeiro,
onde fazia palestras e ajudava a criar associações espíritas.
Em Campinas, o trabalho de Batuíra também produziu frutos. A partir das
sessões realizadas na casa de Manuel Alfaia, outros grupos começaram a sur-
gir. O primeiro a ser oficialmente fundado denominou-se Centro Espírita São
Luiz. Seus trabalhos começaram em 1905, na rua Aquidabã, defronte ao Bos-
que dos Jequitibás. Logo depois surgiriam o Centro Espírita Júlio César Leal
(1907); Centro Espírita Mundo Oculto (1908); Centro Espírita Joana D’Arc
(1908); Centro Espírita Luz Astral (1909); e Associação Espírita Caminho da
Verdade (1921). Apesar desse cenário, os documentos oficiais da prefeitura
ignoravam as agremiações espíritas, registrando apenas o surgimento das no-
vas igrejas.
De certo modo, a expansão do espiritismo refletia o próprio crescimento do
município. No início da década de 1930, a população de Campinas já era de
160 mil habitantes, com aproximadamente 68 mil na área urbana. A cidade
era cortada por 133 ruas calçadas com paralelepípedos e dispunha de 16 pra-
ças ajardinadas. O comércio local possuía pouco mais de 600 estabelecimen-
tos e 52 indústrias. Era uma cidade próspera.
Para muita gente, porém, o crescimento desordenado exigia medidas urgen-
tes. Ruas estreitas e prédios antigos já não combinavam com a época. Além
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A chegada da locomotivaEm 1934, enquanto Campinas se adaptava às grandes mudanças urbanas,
desembarcava na estação ferroviária da cidade, pelos trilhos da Companhia
Mogiana, o contador Gustavo Marcondes Zanardini. Recém-promovido nos
quadros do Banco do Brasil, ele havia sido transferido de Ribeirão Preto para
ocupar um cargo de chefia na agência da rua Barão de Jaguara, centro finan-
ceiro do município.
O gerente Carlos Américo de Arruda Botelho foi direto ao assunto. Precisava
de gente competente para enfrentar a demanda. O movimento financeiro
na região havia aumentado em razão das reviravoltas na economia. Após a
crise do café, ocorrida a partir de 1929 na esteira da quebra de Wall Street, os
setores industrial e de serviços começavam a ganhar espaço como forma de
compensar a retração da cultura cafeeira. Ao mesmo tempo, na zona rural,
avançavam as novas lavouras de algodão, abrindo perspectivas para reposi-
cionar a cidade como grande polo agrícola.
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Aos 34 anos, Gustavo Marcondes já estava acostumado a enfrentar desafios.
Paranaense de Palmeiras, onde aprendera o ofício de guarda-livros, ele era
o quarto dos onze filhos do comerciante Juvenal Zanardini com a dona de
casa Maria de Jesus Marcondes. Em 1923, após ingressar no Banco do Brasil
por concurso público, transferiu-se para Franca, ao norte do estado de São
Paulo. A cidade, que na época não passava de um empoeirado lugarejo pró-
ximo à divisa com Minas Gerais, marcaria uma fase importante na vida do
contador.
Ali, ele conheceria José Marques Garcia, pioneiro do espiritismo na região.
Alto, magro, com inconfundíveis óculos redondos, Garcia já havia trabalha-
do como negociante de gado antes de montar seu próprio estabelecimento
comercial no centro de Franca, um empório que vendia de tudo. Foi como
espírita, porém, que sua figura ganharia destaque. Em 1902, inconforma-
do com a situação de penúria dos doentes mentais da cidade, começou a
recolhê-los em sua própria casa. Desse trabalho nasceria, em 1922, o Asilo
Allan Kardec, que posteriormente passaria a chamar-se Hospital Psiquiátri-
co Allan Kardec, consolidando-se mais tarde como uma das mais respeita-
das instituições psiquiátricas do Brasil.
Gustavo Marcondes sentiu-se imediatamente atraído pelo trabalho no asilo.
Nas horas vagas, em vez de matar o tempo na pensão Santo Antônio, onde
alugara um quarto, prestava serviços voluntários na instituição dirigida por
Garcia. Embora de formação católica, o guarda-livros já havia estudado várias
religiões sem jamais conseguir aceitar certos dogmas. Mas ao ouvir Garcia falar
de um jeito novo sobre a continuidade da vida além da morte, sentiu que final-
mente pisava em terreno firme. Das conversas entre os dois surgiria o interesse
pelo espiritismo. À noite, após voltar do trabalho, o contador ajeitava os óculos
na face ovalada e mergulhava nos livros de Allan Kardec.
Entre o trabalho no Banco do Brasil e o serviço voluntário no asilo, Gustavo
Marcondes ainda arrumava tempo para namorar. A eleita era Mercedes
Rufino Selles, uma professorinha recém-formada, que morava num pensio-
nato e trabalhava na escola local. Filha de um sitiante de Capivari, que havia
se transferido para a região de Franca em busca de melhores condições de es-
tudo para os sete filhos, ela também frequentava o Centro Espírita Esperança
e Fé, dirigido por Garcia.
O contador, que àquela altura já havia se casado com a Doutrina Espírita,
também acabaria se casando com Mercedes. Permaneceria fiel às duas pelo
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Campinas. Além disso, o escritor famoso também estava se tornando popular
entre o público espírita, devido às crônicas que assinava pela psicografia do
médium Chico Xavier, reunidas em 1937 no livro Crônicas de Além-Túmulo.
Voltado para crianças e jovens, o Instituto seguia o mesmo modelo concebido
por Gustavo Marcondes em Ribeirão Preto. Havia, porém, uma novidade:
além do jardim de infância para crianças e prático de comércio para jovens e
adultos, a escola agora oferecia curso de datilografia, uma verdadeira sensa-
ção na época. Apesar do apoio de alguns colegas do Banco do Brasil, o con-
tador bancou com dinheiro do próprio bolso a compra das primeiras cadeiras,
mesas e máquinas de escrever.
A escola começou a funcionar nas instalações cedidas por um clube social,
localizado na rua Carlos de Campos, na Vila Industrial, antigo bairro operário
da cidade. O lugar era acanhado, mas Gustavo Marcondes estava decidido.
Tendo como vizinhos alguns curtumes e o matadouro, ele arregaçou as man-
gas e foi em frente. No dia 10 de junho de 1938 a escola foi registrada no
Serviço de Ensino Particular da Secretaria dos Negócios da Educação e Saúde
Pública do Estado de São Paulo, sob o nº 150, e autorizada a funcionar com os
cursos de pré-primário e prático de comércio. Dali, os alunos sairiam diploma-
dos. Muitos achariam o rumo da própria vida.
“Marrone, muito prazer”A Campinas da década de 1930 podia estar em franco desenvolvimento, mas
ainda guardava fortes traços de província. Por isso, aos domingos, um dos
poucos programas de lazer era passear na Praça Carlos Gomes. Contorna-
do por palmeiras imperiais, o lugar dava um ar festivo ao centro da cidade.
Desde a construção do coreto, em 1914, famílias inteiras se dirigiam para lá
a fim de acompanhar os concertos populares de bandas, que faziam enorme
sucesso. Gustavo Marcondes, que morava na rua Irmã Serafina esquina com
Ferreira Penteado, bem próximo ao local, não era exceção.
Num domingo de junho, em 1938, ele vestiu seu costumeiro paletó de linho
branco e foi para a praça. A manhã estava clara e fresca, ideal para a leitura
amena de algum livro espírita. Escolheu um banco ao acaso, de costas para a
rua Irmã Serafina, onde já se encontrava sentado um homem esguio metido
num terno de casimira inglesa. O rosto comprido era adornado por um bi-
godinho discreto. As mãos, grandes e espalmadas, seguravam um livro cujo
título, a princípio, o contador não pôde distinguir. Tinha um ar amigável.
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Após os cumprimentos de praxe, ambos mergulharam na leitura, tentando
abstrair-se da algazarra em derredor.
Escaparam da algazarra, mas não da própria curiosidade. Na cabeça de ambos
agora martelava a mesma pergunta: o que será que o sujeito ao lado está lendo?
Dissimularam o quanto foi possível, até que em dado momento o homem de
bigodinho lançou um olhar fortuito sobre o livro de Gustavo Marcondes. Ao
constatar do que se tratava, teve uma reação inusitada. Primeiro, ergueu as
sobrancelhas numa expressão de surpresa. Depois, abriu um sorriso largo,
como se acabasse de encontrar um conterrâneo misturado à multidão.
Naquela época, o patrulhamento clerical era implacável, sendo poucas as pes-
soas que se atreviam a andar em público com um livro espírita. E quem ousasse
corria o risco de ser hostilizado com um repertório nada cristão. Diante desse
quadro, as chances de dois correligionários de Kardec se encontrarem ao aca-
so, em praça pública, portando obra sobre espiritismo, eram mais que remotas.
Por isso, Gustavo Marcondes também não escondeu a surpresa ao saber que
o homem com quem dividia o banco era um espírita convicto. Tratava-se de
Servílio Marrone, um joalheiro de 26 anos cujos gestos efusivos denunciavam a
ascendência italiana. A empatia foi imediata.
Após comentarem com bom-humor o inusitado da situação, engrenaram uma
conversa aberta e amistosa, como se desfrutassem de um encontro marcado.
Gustavo Marcondes relembrou sua trajetória no Movimento Espírita, falou
das instituições que havia fundado e da intenção de formar um grupo espírita
em Campinas. Marrone, mais expansivo, não ficou atrás. Soltou o vozeirão
contando que se dedicava ao estudo do espiritismo havia muito tempo e que
seu maior sonho era fundar uma instituição para a divulgação da doutrina.
Magro, um metro e noventa e quatro de altura e voz de trovão, Marrone era um
tipo difícil de passar despercebido. Na joalheria, encravada na rua Conceição,
número 16, próximo ao Largo da Catedral, sua figura inconfundível destacava-se
entre carrilhões e despertadores. O sobrinho Aristides cuidava das joias e tam-
bém consertava relógios. Antes de se tornar proprietário dessa joalheria, Mar-
rone também tinha sido relojoeiro. Sua habilidade nesse ramo era tão afamada
que o pequeno estabelecimento acabou se transformando numa referência local.
Como ainda não existiam serviços telefônicos para informar a hora certa, era
para lá que muitos moradores ligavam quando precisavam ajustar os ponteiros.
Marrone passara toda infância e juventude em Campinas, onde nascera em
1913. O pai, Camilo, era barbeiro e emigrara da Calábria no início do século.
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