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REVISTA DE LETRAS E CULTURAS LUSFONASNOVEMBRO

2004

30[IVA INCLUDO]

n m e r o

1718Relaes luso-marroquinas230 anos

Relaes luso-marroquinas230 anos

Por ocasio da realizao da viii Cimeira Luso--Marroquina de Chefes de Governo em Sintra, sadoa iniciativa do Instituto Cames ao associar-se a esta significativa reunio anual que celebra a relao de partenariado politico, econmico,cultural, social e humano entre dois pases vizinhose amigos, atravs da publicao de uma ediodedicada a Marrocos e s celebraes dos 230 anosde relaes diplomticas entre os dois pases. Com a assinatura do Tratado de Paz, Navegao e Comrcio em 1774, na sequncia da retirada de Mazago, Portugal inaugurou uma nova era do seu relacionamento com aquele pas, saldandodefinitivamente o contencioso histrico existente,facto que permitiu aos dois povos consolidar ao longo dos ltimos sculos uma relao fraternae privilegiada. Graas a essa atitude, podemos hoje viver em conjunto uma memria recheada de factoshistricos e culturais comuns que continuam a aproximar as duas civilizaes e que seinterpenetram numa mesma cultura atlntica e mediterrnica de vocao ocidental.

atravs do reconhecimento deste binmio de tradio e modernidade que pretendemoscontinuar a encarar com dinamismo o desenvolvimento da relao prioritria comMarrocos. Este desgnio molda-se ainda atravs de uma estreita coordenao de interessesestratgicos, de segurana e desenvolvimento queso hoje em dia inevitavelmente transportadospara o contexto mais alargado da Unio Europeiae das relaes transatlnticas, onde Portugal temsido proponente de vrias iniciativas no sentidode uma maior aproximao entre a Europa e o Mundo rabe, em particular no contexto do Mediterrneo.Fao votos para a multiplicao de iniciativasdeste tipo as quais constituem um contributorelevante para uma maior aproximao e conhecimento mtuo dos povos e sociedadescivis dos dois pases.

Antnio MonteiroMINISTRO DOS NEGCIOS ESTRANGEIROS E DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS | PORTUGAL

Les relations entre le Maroc et le Portugal sonttrs anciennes (1774) amicales et empreintes duneparfaite comprhension. Le Maroc a ainsi t, ds1957, lun des premiers pays arabes et africains ouvrir une reprsentation diplomatique au Portugal.Ces excellentes relations ont t scelles par lasignature, en mai 1994, dun Trait dAmiti, deCoopration et de Bon Voisinage entre les deux pays.La visite officielle de feu Sa Majest le Roi Hassan iiau Portugal du 21 au 24 Septembre 1993, puis celledu Prsident de la Rpublique portugaise, s.e.m.Jorge Sampaio, au Maroc, du 13 au 18 mai 1998traduisent lmergence dun nouvel tat desprit et dune prise de conscience de la part desresponsables des deux pays pour mettre en valeurles potentialits quoffrent leurs marchs respectifs.Les excellentes relations politiques, qui unissent le Maroc et le Portugal sont marques par unecoopration exemplaire, imprgnes de lesprit de dialogue de concertation mutuelle et laconvergence de vues sur les questions tantbilatrales que rgionales et internationales.Lesdites relations ont abouti la mise en placedune vritable coopration bilatrale qui sesttraduite par la conclusion de plusieurs accords qui coiffent les domaines politique, conomique,commercial, culturel.Conformment aux vux de Sa Majest le RoiMohamed vi et de Son Excellence le Prsident JorgeSampaio, ces relations sont appeles jouer un rledterminant dans la cration de nouvelles synergiespour 1e dveloppement dun modle russi de partenariat.Conscients du rle de la coopration conomiqueet financire dans le renforcement de leurs relationsbilatrales, les deux pays accordent une attentionparticulire la promotion des investissements, au dveloppement des relations commerciales et lappui des PME/PMI,... Cet intrt a t misen exergue lors de la dernire Runion de HautNiveau tenue, les 21, 22 mai 2003 Rabat.A cet effet, le Maroc et le Portugal ont dcid defavoriser une forte coopration dans les secteurssuivants: le textile, la pche, les infrastructures, la sant, le logement, le tourisme, les industries

agro-alimentaires, mtallurgiques et mcaniques,en vue dune meilleure contribution du Portugal au programme de mise niveau de lconomiemarocaine. De mme que les deux pays ontidentifi comme secteurs de coopration, leprogramme autoroutier marocain, le programmede construction de 100.000 logements par an et lesprojets visant dvelopper les chantiers navals.Par ailleurs, il a t convenu dengager unecoopration tripartite en dveloppant des projetscommuns de partenariat en direction du Continentafricain grce leurs connaissances spcifiques desdiverses rgions de ce Continent.Dans le cadre de la promotion du patrimoineculturel commun, les deux pays ont dciddintensifier leurs efforts pour la restauration et larhabilitation des monuments et sites maroco--portugais, notamment la Cathdrale et le Chteaude mer de Safi, ainsi que les sites dAzemmour et deKsar Sghir. Dans cette perspective, il sera tabli unetude de faisabilit pour la ralisation dun musedu patrimoine luso-marocain.Un autre domaine o la coopration entre les deuxpays est appele se dvelopper est celui dujumelage entre les villes. A ce titre, il y a lieu de signaler les jumelages entre El Jadida et Sintra et entre Sal et Portalegre. Il sagit l dun canal de coopration et de rapprochement trs efficacequi pourrait crer des liens troits entre les socitsciviles des deux pays.Il convient de signaler, enfin, que cette contributionsinscrit dans le cadre de la commmoration, cetteanne, du 230me anniversaire de ltablissementdes relations diplomatique entre le Maroc et lePortugal (1774-2004). Plusieurs activits etmanifestations caractre culturel ont torganises loccasion de cette clbration. Il sagitde prserver notre patrimoine qui est appel constituer simultanment et pour toujours un pointrayonnant pour notre histoire commune et un pontentre notre pass, notre prsent et notre futur.

Mohamed BenassaLE MINISTRE DES AFFAIRES ETRANGRES ET DE LA COOPRATION DU MAROC

Painel de azulejos.Oficina de Fernan MartinezGuijarro,sculo XVI (c. 1503),Museu Nacional do AzulejoN Inv. 69Foto de Jos Pessoa,Diviso DocumentaoFotogrfica do InstitutoPortugus de Museus

Quando o Embaixador Jos Rollen Van-Deckdesembarcou na costa de Marrocos a 3.10.1773,lanavam-se os primeiros pilares da ponte que,no ano seguinte, consubstanciada num Tratadode Paz, iria manter unidos em verdadeiraestabilidade diplomtica dois pases de fronteirasmartimas sobranceiras transio entre o Mediterrneo e o Atlntico. Portugal havia acabado de fechar a sua ltimaporta em Marrocos, com a sada da Fortaleza de Mazago, h muito desejada, mas aguardandoo momento estratgico para se concretizar. O cerco inexorvel imposto pelas tropas xarifinasquele ltimo bastio portugus foi o pretextoque o Marqus de Pombal esperava para sair dahoje bem conhecida cit portugaise,recentemente includa na lista do Patrimnio Mundial da UNESCO, motivo de orgulho para dois povos.Quando os parlamentares se sentaram mesadas negociaes, com o objectivo de atingiremuma plataforma de paz, havia uma vontadefirme de ambas as partes de encontrar essasoluo to rapidamente quanto possvel. E entreo desembarque do embaixador e a assinatura do Tratado mal passou um ano, o que reflectebem a deliberada inteno de bem ajustar os interesses comuns foi verdadeiramente um talant de bien faire para usar a divisahenriquina, no o talento como tantas vezes se diz, mas a vontade de fazer bem feito, sem a qual no h talento que valha.Sempre presente, estava um portugus jadiantado em anos estaria at, segundo a expectativa de vida da poca, para alm do que seria de esperar. Com os seus 73 anos,Jorge Colao, velho comerciante portugus

em Tetuo, dominando o rabe e privandointimamente com a prpria corte, revelou-se umpersonagem fundamental na definio e defesada estratgia. No foi o primeiro diplomata acreditado na cortexarifina esse papel, o de cnsul-geral, estavareservado a um hoje desconhecido BernardoSimes Pessoa, que assentou arraiais emMogador, bem para o sul, e que cedo regressariaa Portugal, quando percebeu que de Lisboa nolhe resolviam os problemas, inclusive da prpriaresidncia consular. Jorge Colao sara nomeadocnsul em Tnger, para onde se mudou da cidade de Tetuo, onde comerciava h anos. E foi preciso que Bernardo Pessoa morresse, parao consulado-geral ser transferido de Mogador, nosul, para Tnger, bem ao norte, sendo nessaaltura Jorge Colao promovido ao lugar decnsul-geral. Na sua famlia se manter estafuno, como detalhadamente contar JorgeForjaz, actual conselheiro cultural portugus em Rabat, na sua histria dos Colaos, sedeadosem Tnger at ao sculo xx e exemplo de comose serve a Ptria sendo expatriado., alis, uma histria fascinante, a desta gentealgarvia que se fixou em Gibraltar e daqui passou a Tetuo. Comerciantes doubls de diplomatas,diplomatas doubls de artistas! Ao longo desucessivas geraes, e sempre tendo Tnger comopano de fundo, nos Colaos encontramosescritores, poetas, pintores, escultores, pianistas,actores de teatro, romancistas, ceramistas... umcatlogo de artistas, sob a mesma firma familiar. , porventura, um retrato da prpria ligao Portugal Marrocos ao longo destes ltimos 230 anos.O Instituto Cames associa-se s Comemoraesdos 230 anos de Relaes Diplomticas entre

e d i t o r i a l

Portugal e Marrocos, reunindo alguns dos maisconhecidos especialistas dos dois pases em tornodeste projecto evocativo.Trata-se dum duplo nmero editorial h muitoprevisto, mas cujo lanamento consideramosoportuno fazer coincidir com a viii Cimeira Luso-Marroquina. Porm se a efemride se transformou numaocasio privilegiada para celebrar a importnciado que une os dois pases, os seus laos, mesmoaqueles j existentes alm da nacionalidadepropriamente dita, nada tm de efmero. A cultura portuguesa possui desde a sua gneseum amplo legado patrimonial, com marcas que persistem desde a arquitectura s artesdecorativas, dos inmeros vocbulos a hbitostradicionais do quotidiano, da cincia a tcnicasagrrias.Tambm Marrocos possui na sua histria, no seuterritrio e no seu patrimnio marcos indelveisda presena portuguesa, desde o incio do sculoXV. Haver, contudo, que ler e interpretar as Crnicas para alm dos feitos de fora e, sobretudo, no esquecer os longos perodos de paz fundada na vontade dos povos em conviverlado a lado, em segurana, apesar das diferenasde opinio, de religio ou de sentido de Estado.Trata-se, na realidade, dum importantssimo

patrimnio histrico-cultural comum que,mediante uma abordagem moderna, merece um contnuo aprofundamento de trocas de conhecimento e de investigao.Actualmente, a existncia dum Centro CulturalPortugus em Rabat, onde ministrado um cursode portugus, tal como na sua extenso emCasablanca, a presena dum leitor naUniversidade de Fez fazem parte da estratgianacional de divulgao e valorizao da lngua e cultura nacionais naquele pas. Num futuroprximo, desejaria o Instituto Cames que o portugus viesse a fazer parte de currcula numamplo espectro universitrio, estando a desenvolver esforos para a criao delicenciaturas em Lngua e Cultura Portuguesas.Finalmente, quero agradecer ao Professor DiasFarinha, Comissrio Cientfico e responsvel pelaescolha de autores e respectivas temticas bemcomo pelo difcil trabalho de coordenao e reviso de textos e imagens, e aos eminentespensadores, cujos testemunhos do seu saberserviro em muito uma longa, frutuosa e crescenterelao entre as duas naes e culturas.

Simonetta Luz AfonsoPRESIDENTE DO INSTITUTO CAMES

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COMISSRIO CIENTFICOProf. Doutor Antnio Dias Farinha

DESIGN GRFICOTVM designers (Lus Moreira)

CAPAPainel de azulejos (pormenor). Sevilha, sculo XVI (1. metade)Museu Nacional de ArqueologiaN Inv. 1342Foto de Pedro Ferreira,Diviso Documentao Fotogrficado Instituto Portugus de Museus.

PR-IMPRESSO E IMPRESSOGrfica Maiadouro

REVISOSoares dos Reis

TRADUESBadr Hassanien (rabe)Magda Bigotte de Figueiredo (francs)Richard Rogers (ingls)Maria VirgniaLechner Revara (espanhol)

REDACO E ADMINISTRAOInstituto CamesRua Rodrigues Sampaio, n. 1131150-279 LisboaTel.: 21 310 91 00Fax: 21 310 91 82Correio electrnico:[email protected]

TIRAGEM8000

DEPSITO LEGAL124 734/99

DISTRIBUIOSodilivros

COPYRIGHT INSTITUTO CAMESISSN: 0874-3029

AGRADECIMENTOSA Presidente do Instituto Camesagradece equipa cessante destaRevista, Prof. Doutora Maria JosStock, sua antecessora e directora da publicao, Dr. Ana Maria de Azevedo (directora-adjunta) e Dr. Piedade Braga Santos (directorade produo), bem como a todos osoutros colaboradores deste Institutoque, de diferentes formas e comdiversas responsabilidades, tornarampossvel a sada deste nmero da Revista Cames por altura da VIII Cimeira Luso-Marroquina de Chefes de Governo.

NOTA EDITORIALMantiveram-se as transcries dosnomes rabes tal como foram escritaspelos respectivos autores. Essa opo justificada pela diversidade das normasde equivalncia propostas para outrosalfabetos, pela falta de correspondnciaque existe entre alguns sons do rabeliteral e dialectal, bem como pela frustevantagem dos sinais diacrticos emtextos de carcter literrio. Assim:Mawlay meu senhor pode ser grafadoMulei ou Moulay; e Muhammad,Maom ou Mohamed, entre outros.

A. DIAS FARINHA

8 As relaes luso-marroquinas: Identidade e HistriaA n t n i o D i a s F a r i n h a

17 A fronteira marroquinaA d r i a n o M o r e i r a

26 O Tratado de Paz entre Portugal e Marrocos de 1774F e r n a n d o d e C a s t r o B r a n d o

42 Portugal e Marrocos: Geografia da fachada atlntica subtropical do Velho Mundo

S u z a n n e D a v e a u

55 Portugal e Marrocos: Inverso das polticas externas, modernidade das relaes (1760-1773)

J o a n a N e t o

70 Marrocos, o novo aliado de Portugal (1769-1822)A h m e d B o u c h a r b

83 O Tratado Luso-Marroquino de 1774 e o Magrebe:Um relacionamento integrado

J o r g e A f o n s o

96 Marrocos e Portugal aps o Tratado de 1774: Triunfo da paz e da cooperaoO t h m a n M a n s o u r i

110 O Magrebe e o Gharb al-Andalus: Testemunhos arqueolgicos e simetrias culturais (sculos VIII-XIII)

R o s a V a r e l a G o m e s

125 As construes portuguesas na cidade magrebina de Azamor P e d r o D i a s

135 A arquitectura abaluartada de origem portuguesaR u i C a r i t a

139146149 JUDEUSENTREPORTUGALEMARROCOSNOSSCULOSXVIEXVIIJudeus entre Portugal e Marrocos nos sculos XVI e XVII:Pginas de controvrsias e entendimentos

J o s A l b e r t o R o d r i g u e s d a S i l v a T a v i m

166 Mazago: Retrato de uma cidade luso-marroquina deportada para o BrasilJ o s M a n u e l A z e v e d o e S i l v a

180 Influncia andaluza na arquitectura portuguesa dos sculos XIX e XXA n t n i o L o s a

200 As relaes entre Portugal e Marrocos: Uma cronologiaM a r i a d o C a r m o J . D . F a r i n h a

206 BibliografiaM a r i a d o C a r m o J . D . F a r i n h a

212 O Tratado de Paz de 1774 entre Portugal e Marrocos original em portugus212 original em rabe

REVISTA DE LETRAS E CULTURAS LUSFONAS

As relaesluso-

-marroquinasIdentidadee Histria

A n t n i o D i a s F a r i n h aUniversidade de Lisboa

Os povos que habitam os extremos ocidentais daEuropa e da frica souberam definir e preservaruma forte identidade cultural e poltica desde hmuitos sculos, que lhes permitiu organizarem--se em estados e manter a independncia aolongo das vicissitudes da Histria. Naturalmente,surgiram dificuldades e confrontos que foramsuperados pela conscincia das diferenas, peloequilbrio das foras e pelas vantagens queadvm da vizinhana e da complementaridadede muitos dos recursos naturais e da similitudedos objectivos nacionais.

Da proximidade geogrfica deriva o primeirofactor de conhecimento. Ambos os territriosesto debruados sobre o Atlntico, separadosapenas pelo estreito de Gibraltar e por uma exten-so diminuta do oceano, e foram povoados porgentes de origem frequentemente igual ou seme-lhante que se confrontaram com a necessidade dese fixar nessa fronteira ltima das terras conheci-das at ao perodo da Expanso portuguesa. A semelhana do clima, do relevo, da rede fluviale dos recursos naturais convidaram esses povos aum estilo de vida comum ao mundo mediterr-neo. Divergiam, no entanto, num aspecto das fron-teiras: enquanto a Pennsula Ibrica se abre emportos generosos que facilitam a navegao, oMagrebe situa-se em regio de difcil abordagemmartima que de certa maneira compensada pelaligao ao rico mundo africano atravs do deserto.Esse problema geogrfico est na origem da dife-rena surgida nos sculos xv e xvi: as caravelasportuguesas singraram pelo oceano, enquanto osmarroquinos viajaram em cfilas at aos lugaresonde se abasteciam do ouro do Sudo ocidental ede outros produtos africanos.

Na Antiguidade, povos navegadores como osfencios, os gregos e os cartagineses visitaram osportos ibricos e magrebinos onde estabelecerampequenas colnias, aproveitaram os recursosnaturais e difundiram tcnicas de melhoramentodas condies de vida. Tero mesmo iniciado algu-

Descrio da Embaixada Portuguesa enviada a Marrocos, em 1773/1774, escrita por Frei Joo de Sousa. Academia das Cincias de Lisboa

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Descrio da Embaixada Portuguesa enviada a Marrocos, em 1773/1774, escrita por Frei Joo de Sousa. Academia das Cincias de Lisboa

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mas viagens de reconhecimento ao longo do lito-ral ocenico, por vezes fabulosas como o priplode Hanon, que, no entanto, favoreciam a explora-o futura. Esses marinheiros e colonizadoresanunciavam, de modo ainda fruste, a comunhodos habitantes dessas paragens e antecipavamdados geogrficos que seriam teis no perodoseguinte.

O marco histrico que se seguiu foi o daromanizao, latinizao e cristianizao dasterras ibricas e magrebinas, estas limitadas suametade setentrional. O limes romano passavaperto do Bu Regregue, o rio que desagua entreRabat e Sal, mas a sua influncia alargou-se asul, sobretudo na zona litoral. Roma marcouprofundamente a vida das regies pela adminis-trao imperial, pelo conjunto da legislao e dajurisprudncia, pela construo de edifcios e deestradas, pelo incremento do comrcio e peladifuso do ensino e do convvio entre os habi-tantes de que o forum constitui o expoente.

O mundo romano foi influenciado pelo latime grande parte da populao aceitou esse padrolingustico, mais tarde diversificado em vriosfalares romnicos. Grande parte da frica doNorte passou, igualmente, a expressar-se nesseidioma, mas persistiram os numerosos dialectosberberes que continuam a ser falados na actua-lidade, mesmo depois da introduo do rabe.

No perodo romano ocorreu a disperso dosJudeus que contribuiu para difundir pelo mundo,pelo exemplo mas no por proselitismo, a Mensa-gem monotesta. A cristianizao foi alargada atodo o mundo romano a partir do sculo iii. Estareligio assumiu desde logo um carcter ecum-nico e um esprito missionrio que levou o novocredo aos mais recnditos territrios do Imprioe penetrou, ainda, em zonas vizinhas, tais comoo Prximo e o Mdio Oriente, a frica Oriental,a pennsula Arbica e o Industo.

A desagregao do imprio romano, duranteo perodo das invases dos Brbaros, originou

profundas alteraes na vida quotidiana. pazanterior sucedeu um perodo de incerteza e deinsegurana. Alguns exemplos permitem rastrearas dificuldades sentidas nesse perodo: foi neces-srio construir muralhas no permetro das urbes,regressar ao comrcio por troca e esquecer partedo saber acumulado. As cidades abertas queeram abastecidas por gua trazida por aquedu-tos foram abandonadas e substitudas por outrassituadas junto dos rios. Foi o que aconteceu aoshabitantes de Conimbriga que tiveram de passarpara Aeminium, junto ao Mondego (hoje Coim-bra). Sorte idntica conheceu Volubilis, a grandemetrpole romana no Magrebe ocidental, queviria a ceder o seu papel a Fez (fundada em 800pelos idrsidas).

Enquanto a Europa procurava organizar-seem reinos, enquadrada por uma frgil adminis-trao eclesial com vrtice no Papa e dividida nastradicionais dioceses, herdadas da malha admi-nistrativa romana e com parquias abrigadas pororagos de particular devoo, era revelada noHedjaz (Meca e Medina), no sculo VII, a Mensa-gem alcornica que se propunha congregar ospovos no Islo. Como o cristianismo, era uma reli-gio ecumnica e missionria e aceitava osjudeus e os cristos como Ahl al-Kitb, povosdo Livro, isto , fiis do Deus nico. Se a novareligio era tolerante e respeitava a fidelidade dejudeus e cristos s suas crenas, o expansio-nismo rabe que veiculava o islamismo revelava--se agressivo e dominador ao pretender ergueruma nova ordem internacional com base noAlcoro e na Sunna do Profeta.

O mundo rabe-muulmano substituiu oantigo imprio romano (e bizantino) em frica, noPrximo e no Mdio Oriente e na maior parte daPennsula Ibrica que, nessa poca, foi designadapor al-ndalus. semelhana do mundo cristo,tambm as regies islamizadas passaram a serassoladas por numerosas dissenses e heresiasque, paradoxalmente, consolidaram o novo credo11

(tal como sucedeu nas zonas crists), mas sepa-raram os vrios povos, cavando entre eles dife-renas que no permitiam a sua unidade polticanem a perfeita consonncia religiosa. No al--ndalus, a dinastia omada pde manter aunidade poltica at ao sculo x e a tolerncia reli-giosa que foi a marca de qualidade dos primeirostempos do Islo. No Magrebe sucederam-se asperturbaes religiosas com os carejitas no sculoviii, os xiitas nos sculos ix e x (a dinastia idrsida)e, a partir do sculo xi, as dinastias sunitas depovos berberes: Almorvidas, Almadas, Merni-das e Watcidas. Esta evoluo pode explicar omotivo pelo qual ao norte do estreito de Gibraltarter havido uma maior arabizao e uma menorconverso ao islamismo, enquanto na margem sulo fenmeno seria inverso.

As cruzadas do Oriente, no sculo xi, assina-lam um novo perodo das relaes entre a domusDei a Cristandade e a dr al-Islm a terramuulmana. Os dois sistemas poltico-religiososassumiram, frequentemente, posies contrriase tal facto repercute-se no Ocidente. As dificulda-des aumentaram com a presso da Reconquistacrist e, depois do incio do sculo xiii, umconjunto de acontecimentos tornou cada vezmaior o conflito. A fundao das Ordens Mendi-cantes e a separao das mourarias nas cidadesmedievais so dois momentos dessa realidade. Os Franciscanos almejaram a converso dosMouros e a sua pertincia culminou com a mortedos Cinco Franciscanos em Marraquexe, episdioque deu origem a inmeros altares nas igrejas daOrdem de S. Francisco de Assis. Na batalha deNavas de Tolosa (1212), pela primeira vez os beli-gerantes separaram-se pela diferena dos credos.

Portugal, reino cristo, destacou-se doconjunto peninsular e conseguiu vitrias sucessi-vas contra os Muulmanos. Um grande nmerodestes permaneceu na Pennsula e os monarcasconcederam-lhes sucessivos forais, a fim de garan-tir as suas liberdades e direitos. A guerra de Recon-

quista no visava a expulso dos mouros, masapenas o efectivo controlo militar e administrativodas regies conquistadas. O convvio ficou garan-tido entre os fiis das duas religies, o afecto entreos membros das duas comunidades era aceite, avida quotidiana era partilhada e, mesmo s festasprofanas e religiosas, acorriam os adeptos dos dife-rentes credos. Pode concluir-se que Portugal deve,em grande parte, a sua identidade ao conflito comos Mouros, mas soube incorporar inmeros dadosda civilizao e da cultura dessa comunidade e,ainda, integrar uma parte significativa da popula-o muulmana. Da o respeito que perdurouacerca do passado e a crena de que tudo o que antigo foi construdo no tempo dos Mouros.

O fim da Reconquista no significou o fim dasdificuldades da Coroa portuguesa, devido cont-nua ameaa de absoro por parte do reino vizi-nho de Castela. Durante o governo de D. Fernando,ltimo monarca da primeira dinastia portuguesa,por trs vezes os dois pases se envolveram emviolento conflito armado. As dificuldades comCastela e a necessidade de legitimao de D. JooI e da nvel dinastia de Avis constituram a moti-vao essencial na conquista de Ceuta em 1415.Pretendia-se conseguir um novo ponto de apoiomilitar, a abertura do Mediterrneo e de frica, oreconhecimento do Papado e dos reinos europeuspara a nova fronteira crist e, por isso, as princi-pais figuras e foras do Portugal coevo no hesi-taram em envolver-se no conflito.

A presena dos portugueses em Marrocoscontinuou depois da tomada de Ceuta devido relativa fraqueza da decadente dinastia Mernidase aos novos recursos conseguidos por Portugalna explorao do ouro e de outros produtos dafrica subsaariana e na colonizao das ilhasatlnticas. Desse modo se estabeleceu o senho-rio sobre a regio norte de Marrocos, nas circuns-cries dependentes de Ceuta, Alccer Ceguer,Tnger e Arzila, por acordo estabelecido comMulei Xeque, primeiro soberano watcida, no 12

ano de 1471. D. Afonso V acrescentava na sua titu-latura: rei do Algarve dalm-mar em frica.Anos depois, os Reis Catlicos reconheciam aPortugal o direito de conquista do reino de Fez,pelo Tratado de Alcovas-Toledo, de 1479-1480,mais tarde reafirmado pelo Tratado de Tordesi-lhas (1494). Essa clusula significava que Castelareconhecia a Portugal o direito exclusivo deintervir em Marrocos. Tambm a Santa S erigiaem dioceses as ss de Ceuta, Tnger e Safim, estaainda in partibus infidelium.

A abertura ao mundo protagonizada pelasviagens de Vasco da Gama e de Pedro lvares

Cabral (1497-1499 e 1500-1501) e a drenagemconsequente de riquezas para o Reino pareciamtornar possvel a renovao da empresa marro-quina. Foi a poca da tomada ou fundao deSanta Cruz do Cabo de Guer (Agadir), Mogador,Safim, Azamor e Mazago, iniciativas que tiveramum desfecho trgico no desastre da Mamora(1515) na foz do rio Cebu. Essa derrota, a maiordo reinado de D. Manuel, marcou o fim do planode expanso no Norte de frica.

O perodo seguinte foi caracterizado por umabandono progressivo das posies portuguesasem Marrocos, onde emergia o poder dos xarifes

Castelo de Silves. Fragmento de placa de marfim,sculo X. Escavaes de Rosa Varela Gomes,Fotografia de M. V. Gomes

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sdidas. Estes obtiveram o poder graas legiti-midade derivada da luta vitoriosa que chefiaramcontra os portugueses e contra a dinastia wat-cida, que tinham estabelecido uma quase alianacontra o novo poder emergente em Marrocos. A vitria dos xarifes representa o triunfo das

foras opostas presena crist e europeia e, porisso, significa a garantia da independncia dopas. Sublinhe-se que a dinastia xarifina sdidafoi substituda pela fillida ou alauta, da mesmafamlia de descendentes do Profeta, pelo que sepode afirmar que se a independncia portuguesa

Morbito junto da muralha de Arzila.Aguarela de Rui Carita

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foi conseguida contra os Mouros, estes, emMarrocos, devem a sua autonomia e a sua perso-nalidade nacional, em boa medida, s suas vit-rias contra os Portugueses.

A interveno de Portugal, na poca do rei D. Sebastio, em favor do xarife Mulei Muham-mad al-Mutuwaqil, sulto deposto de Marrocos,contra seu tio o xarife Mulei Abd al-Malik, saldou-se pela derrota do exrcito portugus na Batalhade Alccer Quibir, em 1578, conhecida tambmpelo nome de Batalha dos Trs Reis, ou do WdMahzan, que designa o rio perto do qual se desen-rolou a batalha. Esta teve um significado profundona histria de Marrocos e do mundo rabe emgeral, porque o novo sulto Mulei Ahmad al-Mansr al-Dahab pde afastar a ameaa turcaque pretendia anexar o pas, tal como havia feitocom os restantes territrios rabes.

A vitria de Alccer Quibir teve uma enormerepercusso e o xarife al-Mansr beneficiou doextraordinrio prestgio de que Marrocos passoua desfrutar. D. Antnio, prior do Crato, enviou paraMarraquexe seu filho D. Cristvo como garantiado emprstimo que solicitou. Filipe II mantinhana corte do sulto embaixadores de renome. A Holanda e a Inglaterra estabeleceram relaescomerciais frequentes, para comprarem algunsprodutos do pas, entre os quais avultava o acar.

Filipe III de Espanha, tal como o seu ante-cessor, tinha grande interesse pelos negcios pol-ticos de Marrocos. Graas a hbeis negociaes,conseguiu obter de Mulei Xeque, filho de al--Mansr, a cedncia do porto de Larache, em 1610.O esturio do Lucos, onde aquele porto ficava situa-do, no dizer de Filipe II, valia por todo el Africa,tal era a importncia que se atribua, depois davitria de Lepanto (1571), aos portos com valorestratgico. Do ponto de vista do Direito interna-cional e da Coroa portuguesa, com a assuno dasoberania da cidade de Larache pela Coroa caste-lhana, cessava para Portugal o direito deconquista do reino de Fez, que Castela lhe reco-

nhecera pelos tratados das Alcovas (1479), deTordesilhas (1494) e de Sintra (1509). Filipe III pros-seguiu na sua opo de dar a Castela o direito deinterveno em Marrocos, ao conceder a D. LusFajardo o comando da expedio que conquistouo lugar de Mamora, na foz do Cebu, em 1614. Foiali construda uma fortaleza a que foi dado o nomede San Miguel de Ultramar.

Azamor. Porta de entrada da cidade.Fotografia de Pedro Dias

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Quando da aclamao de D. Joo IV como reide Portugal, todas as possesses ultramarinasaceitaram o novo monarca. No entanto, emCeuta, a maioria da populao era castelhana,pelo que a praa acabou por ficar a pertencerquele reino. A cidade de Tnger foi cedida Inglaterra, em 1662, como dote da princesa D. Catarina quando do seu casamento com omonarca ingls. Das antigas praas portuguesass restava Mazago que foi cercada por diversasvezes pelo exrcito do sulto Sidi Muhammadben Abdal.

O governo do Marqus de Pombal optou peloabandono da praa em 1769. Desde essa dataficava aberto o caminho da paz e do entendi-mento entre os pases vizinhos. Aps rpidas eamistosas negociaes, foi assinado o tratado depaz em 11 de Janeiro de 1774. Iniciou-se entoum longo perodo de frutuosas relaes diplo-

mticas e comerciais. Tornou-se claro o interessede ambas as Coroas em aprofundar os laos detoda a ordem que existiram durante sculos deconvivncia e que no tinham sido suficiente-mente aproveitados.

A Histria do perodo posterior encontra-selargamente documentada nas pginas destaRevista cuja edio comemora os 230 anos deuma colaborao sempre afirmada por doispovos que se conhecem e se respeitam h muitossculos. Confirma-se, assim, a cooperao nosdomnios cultural, econmico e poltico entre osdois pases. Entre tantos aspectos, temos a consi-derar a geografia, a arqueologia, a arte, a hist-ria, a literatura, as lnguas, a etnologia, cujoestudo se procurou analisar neste nmero daRevista do Instituto Cames.

A incluso da cidade portuguesa de Maza-go na lista do Patrimnio Mundial da UNESCO,no dia 30 de Junho de 2004, foi celebrada emMarrocos no dia 27 de Setembro do mesmo ano.A esse propsito, o Senhor Mohamed Achaar,ministro da Cultura, afirmava: en loccasion decette conscration qui reflte aussi bien la qualituniverselle de cet hritage partag entre nos deuxpays, que nos efforts et notre volont ferme deprserver et de rhabiliter lun des repres histo-riques les plus remarquables qui unissent nosdeux peuples amis, sera galement loccasion dedonner une nouvelle impulsion nos excellen-tes rlations bilatrales.

Ao extraordinrio smbolo de arte e dearquitectura que constitui a cidade portuguesade Mazago, com a sua belssima cisterna eimponentes muralhas, correspondeu Sua Exce-lncia o Ministro Mohamed Achaar com a deci-so de o manter e valorizar, na venervel tradi-o recproca de que os monumentos antigos decada pas foram construdos pelos naturais dooutro Estado. Esta a melhor garantia do porvirnas relaes entre os dois povos vizinhos eamigos.

Retrato de David Lopes. Instituto rabe, Faculdadede Letras da Universidade de Lisboa

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A fronteiramarroquina

A d r i a n o M o r e i r aAcademia das Cincias de Lisboa

Presidente da Comisso Nacional de Avaliao do Ensino Superior

Duas questes, aparentemente sem conexodirecta, enquadram nesta data o debate sobre arelao da Europa com o mundo muulmano,tema em que no pode omitir-se a avaliao darelao portuguesa, na entrada do terceiro mil-nio, com uma cultura que defrontou no territ-rio europeu, no Mediterrneo, na frica do Pres-tes Joo, e na ndia onde por sculos ficariasituada a coroa do Imprio.

Das referidas questes, uma diz respeito mudana interna das sociedades europeias edesenvolve-se tendo por centro o chamadoaffaire du voile que emocionou a Frana; a outratem relao com a redefinio territorial e pol-tica da Unio Europeia, discurso centrado noProjecto de Constituio Europeia apresentadoem 2003, fruto de uma chamada Convenopresidida por Giscard dEstaing, e visando admi-tir a Turquia como Estado da Unio.

A primeira questo ressuscita desconfianashistricas que atingem as comunidades muul-manas que vivem no territrio da Unio, agoraatradas por um mercado de trabalho submetidoa uma espcie de teologia de mercado liberal, queno propicia um estatuto de justia efectiva paraesses imigrantes.

Recorda-se a invaso do exrcito muul-mano que desembarcou na Pennsula Ibrica em710, e a Batalha de Poitiers (732) que, na leituratradicional devida a Chateaubriand, evitou queo mundo fosse maometano. Pode bem ser que setrate de um mito, mas tem peso na definio darelao com as suas reas culturais e polticasagora em crescente agitao.

Na Pennsula Ibrica, a Reconquista iniciadaem 718, movimentando os cristos e multipli-cando as soberanias libertadoras, incluindoPortugal, parte essencial da memria histrica,e das entidades que se formaram.

A literatura, inspirada nas canes de gestamedievais, fixou uma imagem terrvel dapresena das tropas muulmanas, com um ponto

Castelo de Silves. Elemento arquitectnico, emestuque, do palcio islmico dos sculos XII-XIII.Escavaes de Rosa Varela Gomes. Fotografiade M. V. Gomes

alto na Destruio de Roma, apenas escrita nosculo xiii, e lida na verso de Pirenne (1936): Aselvajaria dos sarracenos atinge um grauextremo. Os seus bandos incendeiam os caste-los, as cidades, as fortificaes, queimam e inva-dem as igrejas, incendeiam toda a campagneromana, deixam um monto de runas por ondepassam. Pilham os bens... O emir manda execu-tar todos os prisioneiros, laicos e religiosos,mulheres e jovens. Os sarracenos dedicam-se spiores atrocidades, cortam os narizes e os beios,o punho e a orelha das suas vtimas inocentes,violam as religiosas... Entrados em Roma, deca-pitam todos os que encontram. O prprio Papafoi decapitado na Baslica de So Pedro.

Os factos no foram talvez to graves, masestas verses diabolizantes fazem parte de umaestratgia de guerra, com genealogia milenria.

Foi uma estratgia eficaz que levou osresponsveis cristos a firmarem a convico deque era um mundo no assimilvel, e ao mesmotempo um inimigo mortal, aquele que finalmentefoi contido nas margens do Mediterrneo quetinham pertencido ao Imprio Romano, inimigoque ocupara a Terra Santa, que ameaava Cons-tantinopla, que obrigaria o Imprio de Carlos Va pagar tributo s portas de Viena.

As Cruzadas foram dinamizadas por essapercepo, o comportamento dos cruzados nofoi descrito mais favoravelmente pelos muul-manos aterrados, e homens como Chateau-briand, Delacroix, Victor Hugo, consagraramaquela movimentao como pica.1

Leituras recentes intentam uma interpreta-o mais distante da tradicional verso doconflito mantido vivo na memria dos povos,embora parea difcil conseguir rapidamenteuma leitura amenizada dessa poca ainda longedo imprio euromundista, no qual o cordomuulmano fez parte do resto do mundosubmetido hegemonia ocidental, e recorreu revolta armada para obter a autodeterminao.

A segunda metade do sculo xix certa-mente a referncia mais viva e presente no quetoca a essa dominao, que o clebre ensaio deLenine, L Imperalisme, stade suprme du capita-lisme (1917) atribuiu a uma luta pelas fontes dematrias-primas e de mercados.

A crtica de Henri Brunschivig e de RaymondAron inclina no sentido de atribuir essa expansomais a impulsos polticos do que a motivaeseconmicas, a uma ambio de grandeza e deposse, que devemos reconhecer animadora dadiscriminao baseada na convico da superio-ridade tnica, cientfica e cultural dos coloniza-dores ocidentais.2 Na mstica portuguesa doImprio, o Norte de frica tem uma presenaexcepcional quer pelas primeiras incurses direc-tamente influenciadas pelo Infante D. Henrique(Ceuta), quer pelo desastre que fez do infante D. Fernando um mrtir nacional e cristo (Fez), querpela catstrofe de Alccer Quibir (D. Sebastio).

Todavia, desde que o Marqus de Pombaldecidiu abandonar Mazago, em 1769, as rela-es, o interesse, a intimidade cultural com oNorte de frica declinaram, e Portugal no parti-cipa na memria e no capital de queixas que alinasceram com a moderna tomada colonial dogoverno pelos ocidentais, sob vrias formas jur-dicas, dos territrios e povos da margem sul doMediterrneo.

Esta submisso da rea ao imprio euro-mundista estava a cargo da Frana, da Espanha,da Itlia e do Reino Unido, que foram retirando medida que a poltica descolonizadora da ONUse afirmou e globalizou, com a tragdia da Arg-lia a receber o ponto final do conflito com aFrana, formalizado nos Acordos de Evian de1962, com destaque para figuras como o sultoMohammed V de Marrocos, ben Bella da Arglia,Kadhafi da Lbia, Bourguiba da Tunsia, Nasser doEgipto.

O movimento descolonizador do Mediterr-neo deixou vivo um foco desestabilizador de

Minarete da Mesquita de El-Kutubia. Arquivo Histrico Ultramarino

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todos os projectos, que a questo da Palestina.A importncia das lideranas em todos os aspec-tos da evoluo africana, de norte a sul, aconse-lha a estabelecer como referncias fundamentaisalguns dos condutores responsveis.

Do lado da Palestina tem especial relevoYasser Arafat, sobretudo depois de 1965, data emque fundou o Fatah, para chegar em 1969 presi-dncia da Organizao de Libertao da Pales-tina (OLP). Reconhecido em 1974, na Cimeirade Rabat, como nico representante legtimo dopovo palestiniano, manteve-se at hoje, emboraem perda de autoridade, como sendo o lder maisrepresentativo da luta contra Israel.

Do lado de Israel, a ambio de ocupar todoo territrio, a que chamam Terra Prometida, foiassumida por Menahem Begin (1913-1992), querecusou sempre aceitar a diviso da Palestina, demodelo britnico, em dois Estados. Responsvelpelo massacre que as tropas crists do Lbanoexecutaram contra os palestinianos que setinham refugiado nos campos de Sabra e Chatile,demitiu-se, mas deixou no exerccio do seulegado o que era ento ministro da Defesa deIsrael, Ariel Sharon, actual lder do governo dopas. Assim recusa de facto a herana de benGourion (1886-1973), que em 1947 aceitou oplano de diviso da Palestina, e em 1948 procla-mou o Estado de Israel, e governou at 1963.

Deste modo sobrevive, naquela rea, a per-cepo do fundamentalismo de causas vrias, queteve entre os representantes ben Bella na Arglia,e que Khomeyni (1900-1989) viria a tornar esdr-xulo no Iro quando tomou o poder em 1979,denunciando o que chamou o Grande Satansamericano e o dissoluto Ocidente.

Do lado dos europeus, responsveis peladesmobilizao do imprio euromundista,importa colocar em primeiro lugar a intervenodo general De Gaulle que resolveu a guerrasangrenta da Arglia pelos referidos Acordos deEvian de 1962, com o acidente da demisso e

priso de alguns dos mais condecorados gene-rais do exrcito francs.

Mas a dimenso gaullista no deve fazeresquecer Pierre Mends France (1907-1982) que,assumindo a presidncia do governo francsdepois do brutal desastre militar de Dien BienPhu (1954), levou a cabo o feito de, em trinta dias,colocar um ponto final guerra da Indochina (21de Julho), anunciar a autonomia da Tunsia (1 deAgosto), caindo como vtima do incio da revoltaarmada na Arglia em 1 de Novembro. Foi umapassagem meterica pelas responsabilidades,mas deixou uma marca profunda na memriafrancesa.

Este processo, em cujo decurso a violnciada luta na Arglia foi o mais traumatizante paraas relaes entre europeus e muulmanos, parecelimitado pela perspectiva que o compara com asduas guerras do Iraque, conduzidas ambas pelosEUA, a ltima determinada pelo brutal ataquelevado a cabo por Ossama bin Laden contra oWorld Trade Center em 11 de Setembro de 2001.

A evoluo da conjuntura fixou no MdioOriente o ponto crtico das relaes tumultuosasentre os ocidentais, especialmente representadospelos EUA e os muulmanos, tendo o petrleo nolugar que as especiarias tiveram na expansoportuguesa para a ndia, e o proclamado objec-tivo da democratizao no lugar da evangeliza-o.3

Assumindo que o conflito que tem por refe-rncias mais graves as questes do Iraque, deIsrael, do Afeganisto e da al-Qaeda, tambmdefine os ocidentais como o inimigo assumidopelos fundamentalismos, os interesses portu-gueses esto envolvidos pela ameaa que seagudiza no terrorismo global. Parece apenasum detalhe o facto de o governo portugus terapoiado a poltica do presidente Bush, quanto aoenvolvimento pela ameaa.

Se esta moldura no poder ser ignorada,parece todavia de salientar, dentro dela, que o

patrimnio secular de queixas, que radicam noregime colonial que se foi extinguindo depois dofim da Segunda Guerra Mundial, atinge menosseveramente Portugal porque h sculos que reti-rou a soberania do Norte de frica, porque Alc-cer Quibir e D. Sebastio se inscrevem no imagi-nrio portugus de esperana de redenonacional e no de retaliao, e na memria hist-rica dos muulmanos com uma data de supre-macia vitoriosa e no de humilhao.

Isto diz especialmente respeito a Marrocosque, por outro lado, na histria da ocupaorecente, foi talvez o Estado que fez maior apelo prudncia governativa no processo de libertao.

O presidente Jos Maria Aznar, no obstanteser o representante da Espanha que guarda asoberania das praas do Norte de frica, e que nohesitou em ameaar impor pelas armas a sobe-rania sobre o minsculo rochedo, Leila-Persil,escrevia em 1992 que com possibilidades elei-torais na Arglia, com esperana de alcanar umafora operacional em Tunis, perseguida pela forana Lbia, sem razes na Mauritnia e bem contidopela organizao oficialmente democrtica deMarrocos, o fundamentalismo no Mediterrneoocidental no pode considerar-se como umaameaa presente, mas antes como um fenmenoque reclama atenta observao e deve tocar nasensibilidade dos pases europeus para que asrelaes entre as duas margens do Mediterrneoencontrem, ainda que com atraso, as vias dodilogo e bom entendimento que o senso comume a lei da gravidade da Histria deveriam impor--nos como tarefa da mxima urgncia.4

De todos os pases da rea considerouMarrocos o mais estvel, e existem razes parasupor que o mais inclinado a fortalecer relaesexternas com os ocidentais em geral e com oseuropeus em particular.

Na histria recente, e no obstante as vicis-situdes do relacionamento com a Frana, osulto Mohammed V, sempre oposto ao regime 20

de protectorado, no patrocinou um futuroconflituoso com a Frana ou com a Espanha,lutando para se manter no frgil trono at inde-pendncia.

O seu filho Hassan II, que subiu ao trono em1961, deu os primeiros passos para a democrati-zao pela Constituio de 1962, mas reservou--se o poder executivo e conseguiu uma unidadepoltica interna ao eleger objectivos nacionalis-tas territoriais, ocupando uma parte do antigoSara espanhol com a chamada marcha verde de1975, embora as dificuldades internas posterio-res o obrigassem a transigir com a Frente Polis-rio que reivindica a independncia do antigo terri-trio espanhol, e foi reconhecida pela ONU.

Finalmente, Mohammed VI, que sucedeu a seupai, falecido este em 23 de Julho de 1999, emboramantendo o ttulo de Comendador dos Crentes, reide uma monarquia constitucional de direito divino,e no obstante as dificuldades econmicas, vaisendo visto como decidido a romper com os anosnegros da represso poltica.

Com todas as contradies habituais doreformismo pilotado pelo poder instalado,mantm a tradicional tendncia ocidental eassume atitudes favorveis libertao da socie-dade civil.5

Talvez a sntese que preside s incertezas dotrajecto poltico tenha sido bem formulada porMartinez-Conde, secretrio-geral da Fundao

Cnovas del Castillo, nestes termos: as coisas ouesto de acordo com o Islo ou se opem a ele.As pessoas so crentes (muulmanas) ou no socrentes (kafirs). O territrio terra de islo(Dr-al-Islm) ou terra de pagos (Dr-al-Harb).A guerra justa (Jihad) ou no justa (Fitna). Mas,como admite, a contradio mais permanente,que est na base do fundamentalismo, entreo bem terreno, o progresso material e o bem daumma, a comunidade dos crentes, o bem espiri-tual que antecipa o paraso.6

O recente projecto de Constituio Europeia,elaborado pela chamada Conveno a que presi-diu o antigo presidente francs Giscard dEstaing(mandato entre 1974 e 1981), colocou noprimeiro plano a questo da redefinio doMediterrneo, em vista dos pressentidos alar-gamentos da Unio Europeia ao espao muul-mano.

Para avaliar o projecto talvez possa utilizar--se a tipologia proposta por Pierre George, queidentifica os seguintes grupos: a) Estados nacio-nais muulmanos no rabes, o Iro e a Turquia;b) pases rabes do Oriente Prximo e Mdio; c) o grupo Magreb, ligado ao anterior pela orlacosteira da Lbia; d) um Estado criado pelo movi-mento sionista, que Israel.7

Destacaremos duas questes, no projecto deredefinio das relaes da Europa com essemundo, e so as que dizem respeito Turquia e a Marrocos: ambas interessam especialmentea Portugal, a primeira pela pertena NATO, asegunda pela atitude tradicional em relao aoOcidente.

A questo da Turquia exige considerao devrios factores, designadamente o que respeita mudana do estatuto de Aliada na NATO,para a de membro de pleno direito da UnioEuropeia.

Lembramos em primeiro lugar que o espaoeuropeu recolhe hoje uns quinze milhes demuulmanos atrados pelas necessidades do

Conferncia de Anaf, em Janeiro de 1943. Instituto rabe da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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mercado de trabalho e empurrados pelas defi-cientes condies de vida do seu pas de origem.Em vrios pases europeus povoam colniasinteriores que os Estados tm dificuldade emintegrar ou assimilar, dois mtodos diferen-tes mas que teoricamente se referem, de maneirasucessiva, primeira gerao e geraoseguinte, que pode esta ter adquirido a nacio-nalidade pelo jus soli.8

Nesta entrada do milnio, a Frana agitou aopinio mundial quando aprovou uma lei proi-bindo o uso do vu pelas estudantes muulma-nas nas escolas oficiais, em nome da laicidade daRepblica.9

Alm dos talvez cinco milhes de muulma-nos existentes em Frana serem um desafioconsidervel na transformao da sociedadenacional em sociedade cosmopolita, comevidentes reflexos polticos, no foi tomado emconsiderao o pensamento da DeclaraoUniversal dos Direitos Humanos, da ONU, queconsidera a famlia, pela primeira vez em textosdesta natureza, como a clula base da organiza-o da sociedade civil. Este radicalismo laicofrancs, que servir de caso de estudo para osrestantes pases europeus tambm a evolucio-narem para o cosmopolitismo da populao,pode levar as famlias a retirar as jovens das esco-las oficiais e a multiplicar as escolas islmicas noterritrio europeu.

To importante incidente aconselha a avaliarprudentemente as formas de reestruturaodas relaes entre os vrios pases mediterrni-cos, considerando que a Europa, alm dosimigrantes muulmanos, tambm tem de inte-grar as parcelas em que se desintegrou a antigaJugoslvia, processo em que o factor islmicodefiniu um trajecto de guerra e de crimes contraa Humanidade, embora o Iro no tenha conse-guido exportar a sua revoluo e o islamismoideolgico e supranacional esteja a evolucionarno sentido de dar lugar aos nacionalismos.

A Turquia oficialmente um Estado laico,desde a revoluo de Atatrk depois da PrimeiraGuerra Mundial, mas a ideologia do aparelhopoltico no acompanhada pela populao. Porisso tem resistido s solicitaes da liberalizaoda economia, provenientes do FMI e do BancoMundial, e liberalizao poltica aconselhadapela Unio Europeia. Foi porm um fiel aliadodentro da NATO para enfrentar a ameaa sovi-tica, e a questo a de saber se rene os pressu-postos para transitar para a Unio Europeia comoEstado-membro, diligncia em que se empenhouo chanceler Schroeder neste ano de 2004.

A razoabilidade aponta para o estatuto deassociado na Unio Europeia, e para a alianana NATO reformada, porque difcil que a defi-nio turca se compagine com o conceito decomunidade, qual trar a questo dos Curdose as restantes reivindicaes territoriais quefazem parte do seu contencioso internacional.Uma questo que se torna mais exigente deponderao quando o projecto de Constituioeuropeia organiza um sistema de votao em quea dimenso populacional um vector determi-nante.10

Todas estas questes podem ser levantadasem relao a Marrocos, que no tem sido consi-derado na problemtica da integrao na UnioEuropeia, embora seja tradicional a sua atracopelos ocidentais, para alm das vicissitudes pol-ticas que sofreu.

til meditar as teses de AbdelkhaleqBerramdane, que avaliou a histria poltica ediplomtica do Reino, e as suas relaes com oOcidente em geral e a Europa em particular,desde 1800, em que a ameaa colonialista seperfilou, at 1974, data em que o nacionalismose afirma.

De facto, o livro confirma a concluso deKissinger, segundo o qual h um sculo queMarrocos se encontra na insero das grandesestratgias das potncias estrangeiras, o que 22

obriga os seus dirigentes a manobrar com arte,subtileza e autoridade.11

O referido autor parte desta premissa: Traode unio entre a Europa e a frica, pas abertosobre dois mares e designadamente pelo Atln-tico com a Amrica, Marrocos aparece de algummodo predestinado pela geografia a estabelecerrelaes privilegiadas com o Ocidente.12

O perodo que mais interessa conjunturaactual o da libertao da tutela ocidental,evitando o compromisso na luta dos Blocos mili-tares, apoiando o neutralismo. Mas sem perdera capacidade de construir pontes com a coloni-zadora Europa e os EUA. Uma tarefa a exigirgrande sabedoria e agilidade diplomtica, como objectivo de entrar no crculo ocidental.

A principal tese de Berramdane, que osfactos recentes parecem confirmar, que, desdeo sculo VIII, Marrocos evoluciona destacando-

-se do Oriente e ligando-se Europa: Jihadofensiva na idade do oiro das dinastias marro-quinas sucedeu, efectivamente, a Jihad defen-siva durante o refluxo do islo de Espanha, antesque Marrocos, muito mais tarde, desenvolvessea Jihad nacionalista em vista de recuperar a inde-pendncia confiscada pela Frana e pela Espa-nha.13 Para alm das constantes histricas,muitas razes podem ser evidenciadas para estaligao de Marrocos Europa, superando aatraco com o cordo muulmano que separao Norte do Sul do mundo.

Em primeiro lugar a geografia que colocouo reino na situao de trnsito das pistas das cara-vanas e das rotas martimas, entre a Europa e africa. A competio novecentista entre a Frana,a Espanha e a Inglaterra para controlarem a nave-gao mediterrnica teve em conta essa situaogeogrfica, assim como ela explica o esforoamericano, desde a prpria independncia, paradefinir tratados teis sua expanso e soluescomo o estatuto de Tnger, cidade livre cujogoverno viria a ser exercido pelo almirante Maga-lhes Correia, com o objectivo de impedir que aInglaterra (Gibraltar) ou a Espanha (Ceuta)pudessem perturbar a livre circulao no estreito.

Na Segunda Guerra Mundial foi ponto deapoio para o desembarque aliado na Siclia e naNormandia, e no longo perodo da Guerra Fria,em execuo dos acordos franco-americanos de1950, ali foram instaladas bases estratgicas.

Politicamente, surpreendente que a divi-so colonial do territrio em reas de variadadependncia, designadamente Tnger cidadelivre; Ceuta, Mellilla e Ifni na dependncia sobe-rana espanhola; o protectorado espanhol a norte;o protectorado francs no centro; as regiesdisputveis com a Arglia ou com a Mauritnia,no tenham afectado o sentido da unidade doReino. E tambm notvel a maneira como,usando a afinidade com o chamado TerceiroMundo, e por vezes a atraco do Leste europeu,

Tnger, in Civitates Orbis Terrarum, 1572.Biblioteca Nacional de Lisboa

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de facto manteve a ligao ao Ocidente como oeixo fundamental da sua poltica, no obstanteas tenses que de quando em vez se agravam coma Espanha.14

Admitindo que tem fundamento considerara vocao ocidental com uma das linhas de forado interesse permanente de Marrocos, Portugalno pode ignorar a fronteira sul com que osavanos tecnolgicos, a globalizao e a revolu-o dos teatros estratgicos lhe modificaram oconceito de vizinhana, tradicionalmente limi-tado Espanha.

No plano estratgico, quando a referida evolu-o coloca Portugal na situao de pas situa-do na articulao entre a segurana do Mediter-rneo e do Atlntico, da articulao entre a segu-rana do Atlntico Norte com a segurana doAtlntico Sul e da dialctica entre o europesmoe o americanismo, a frente atlntica ocidental dcontinuidade linha que do Cabo de S. Vicentese prolonga pela costa marroquina, com os doisgovernos obrigados a tentar, no plano dos seusinteresses, preservar o equilbrio entre a Europae os EUA.

Dos pases europeus que tiveram um passadoconflituoso com Marrocos, apenas Portugal temcom esse reino uma memria histrica que elimi-nou o capital de queixas, e assim uma aptidonatural para se articular com a vocao ociden-talista daquele pas. E por isso todo o esforo nacooperao luso-marroquina se inscreve numaperspectiva de interesse portugus de bom rela-cionamento com um pas fronteirio, na pers-pectiva europeia destinada a enfrentar o crescentecosmopolitismo da sociedade civil, e tambm daorganizao poltica cosmopolita anunciada pelochamado Projecto de Constituio Europeia emdiscusso, um tema ao qual no possvel deixarde prestar ateno.15

A Frana deixou ali uma forte presenacultural, mas a chamada excepo francesa, quetem mais de uma vertente, todas relacionadas

com a forte identidade do pas, despertou umaateno mundial por causa da lei destinada aproibir o uso de sinais religiosos ostensivos nasescolas, sendo que o uso do tradicional vumuulmano o facto determinante da agitaocausada pela iniciativa legislativa.

A base da iniciativa a laicidade, que seimplantou como um valor fundamental da Rep-blica francesa, que teve originariamente em vistaa relao histrica do Estado com a Igreja Cat-lica, e que nesta data se reafirma como um pilarda igualdade e defesa contra o alegado perigosocial da confuso entre cultura e religio, ouentre religio e identidade.

Este perigo seria mais agudo nas escolas,ameaando a igualdade perante a lei. Uma igual-dade promotora da eficcia da luta pela emanci-pao das mulheres, no esquecendo recomen-dar uma aco social apropriada para eliminar asinjustias sociais que orientam no sentido de sermantida a submisso representada pelo vu.

Nesta querela, que despertou a ateno daopinio pblica de vrios pases ocidentais, noaflorou, sombra do vu, a questo da progres-siva evoluo das sociedades civis europeias parao cosmopolitismo, que implanta vrias definiesculturais obrigadas coexistncia, nem a paralelaevoluo programada para o cosmopolitismo dadefinio poltica da Unio Europeia, na expecta-tiva da entrada da Turquia e das exigncias deabsoro das fragmentaes da Jugoslvia.

por isso que talvez seja razovel, entre todosos argumentos que foram invocados para contra-riar a oportunidade e legitimidade da sobreposi-o da laicidade ao legtimo uso dos sinais deidentificao religiosa, avaliar os que chamam aateno para a necessidade de relacionar aexigncia republicana, quanto ao comporta-mento na escola, com a estrutura cultural da fam-lia das jovens abrangidas pela proibio.

Uma observao que parece bem apoiadanos factos, a que lembra a submisso familiar 24

das jovens portadoras do vu, e que provavel-mente sero afastadas da escola laica para serementregues orientao de religiosos fundamen-talistas, e tradicional dependncia em relao supremacia masculina.

A escola inclusiva, que o progressivo cosmo-politismo da sociedade civil exige, numa Europaonde a populao muulmana, sobretudochamada pelas leis do mercado, anda pelos 15milhes de pessoas, talvez no seja pela via dolaicismo, tambm fundamentalista, que devacomear. Tambm aqui a doutrina portuguesa de invocar, a favor da integrao e da assimila-o, mtodos articulados e no incompatveis.A integrao certamente o primeiro passo exigidopela manuteno do modelo de sociedade deconfiana de que depende a paz civil, e a expe-rincia histrica francesa recomenda ateno aorespeito pelas diversidades religiosas. Neste caso,a proibio de prever que enfraquea as opor-tunidades de tecer outras malhas do tecidoconjuntivo de uma sociedade integrada, que diferente de uma sociedade assimilada.

Para avaliar prospectivamente esta relao,talvez no deva ser esquecido que a DeclaraoUniversal dos Direitos Humanos considera, pelaprimeira vez na histria destes textos, que a fam-lia a clula base da sociedade e a famlia muul-mana tem uma definio cultural que vai levartempo a ser vencida pelos modelos da laicidadeem exploso de formas.

A interveno de uma historiografia revisio-nista do passado conflituoso entre cristos emuulmanos, que pretende pacificar as mem-rias para facilitar o cosmopolitismo poltico doprogramado projecto constitucional europeu,no pode ignorar a ligao desses poderes pol-ticos com as suas sociedades civis e com as dis-poras que por agora so frequentemente condi-cionadas em colnias interiores. Um pequenovu pode transformar-se numa causa grave.

Fevereiro 2004.

1 Jean-Henri Roy et Jean Deviosse, La Bataille de Poitiers, Galli-mard, Paris, 1966. Henri Pirenne, Mahomet et Charle Magne,Alcan, Bruxelles, 1936.

2 So textos que exprimem os dois pontos de vista contradi-trios: a) o discurso de Lord Asquith Conferncia Imperialde Londres de 1911, onde louva o esprito da Comunidade,dizendo: Hoje, e durante toda a conferncia, no teremos,creio, seno um ardor e um fim: fazer deste Imprio, emtodas as suas actividades e lugares, um instrumento maiscompleto e mais eficaz. In A. B. Keith, Selected Speeches andDocuments on British colonial Policy, 1763-1917, Londres,Oxford University Press, 1953, T. II, p. 240; b) Anatole France,in Sur la Pierre blanche, Paris, Calmann-Levy, 1905, pp. 226--230, clama contra a loucura colonial da Frana que,durante setenta anos despojou, expulsou, perseguiu osrabes para povoar a Arglia de italianos e espanhis.

3 Maria do Cu de Pinho Ferreira Pinto, Infiis na Terra doIslo, os Estados Unidos, o Mdio Oriente e o Islo, FundaoCalouste Gulbenkian, Lisboa, 2003. o mais actual e infor-mado trabalho, em portugus, sobre o estado da questo.

4 Jos Maria Aznar, Principales problemas que afectan al surde Europa, in El fundamentalismo Islmico, Veintiuno,Fundacin Cnovas del Castillo, Madrid, 1992.

5 J. Bessis, Maghreb, la traverse du sicle, LHarmattan, Paris,1997. R. Leveau, Le Sabre et le Turban. LAvenir du Maghreb,Franois Bousin, Paris, 1993. B. Lopez Garcia, Marruecos entrance. Nuevo rey. Nuevo siglo. Nuevo regimen? BibliotecaNueva, Madrid, 2000. M. Tozy, Monarchie et Islam politiqueau Maroc, Presses de Sciences Po, Paris, 1998. P. Vermeren,Le Maroc en transition, La Dcouverte, Paris, 2001.

6 Jesus Trillo-Fguero y Martinez-Conde, Introduccin, in El fundamentalismo islamico, cit., p. 14.

7 Pierre George, Panorama do mundo actual, Difel, Lisboa,1976, p. 137.

8 P. Dewitte, Les nouvelles frontiers de limmigration, inS. Cordellier (Dir.), La Mondialisation au-del des mythes,La Dcouverte, Les Dossiers de Ltat du Monde, Paris, 1997.D. Lochak, tat, nation, frontiers; vrais et fausses evidences,Plein Droit. La revue du Gisti, n. 36-37, Paris, 1997.

9 Charlotte Nordmann (Dir.), Le foulard islamique en question,Edition Amsterdam, Paris, 2004. Vincent Geisser, La NouvelleIslamophotie, La Dcouverte, Paris, 2003.

10 G. Turun, La Turquie aux marches de lUnion Europenne,LHarmattan, Paris, 2001. S. Yerasimos, G. Setifert, K. Vorhoft(Dir.), Civil Society in the Grip of Nationalisme, Orient-Insti-tut, Istambul, 2000.

11 Kissinger, Les anns orageuses, Paris, 1982.12 Abdelkhaleq Berramdane, Le Maroc et lOccident, Karthola,

Paris, 1987.13 P. Valry, Oeuvres, Paris, Gallimard, 1960, II, p. 1556.

A. Berramdane, cit., p. 407.14 Lacouture, Le Maroc lepreuve, Paris, Seuil, 1958. Henry-

-Haye, La grande clipse franco-marocaine, Paris, Plan, 1972.C. et Y. Lacoste (Dir.), Maghreb. Peuples et Civilisations, LeDcouverte, Les dossiers de Ltat du Monde, Paris, 1991. P. Vermeren, Le Maroc en transition, La Dcouverte, Paris, 2001.

15 Cooperao Luso-Marroquina, in http://www.emb-marro-cos.pt/menu2_4.htm25

O Tratado dePaz entre

Portugal eMarrocos

de 1774F e r n a n d o d e C a s t r o B r a n d o

EmbaixadorDirector do Instituto Diplomtico

Na opinio de consagrados estudiosos os tra-tados so instrumentos relevantes, porque repre-sentam uma das mais significativas manifestaesda vida colectiva de determinada sociedade. Pon-tos de referncia no escamoteveis, assumem--se fundamentais para a anlise das relaes entreEstados. A sua importncia afere-se, alis, pelofacto de terem sido frequentemente considerados,no conceito historiogrfico do sculo xix, a ver-dadeira essncia da Histria Diplomtica.1

Qui excessivo, este juzo mereceu umadevida correco actual. De inestimvel valorcomo fonte documental, partilha com diversasoutras o vasto campo da investigao, de que soexemplos os despachos, ofcios, notas, memo-randos, comunicaes telegrficas, etc.

Havendo a inteno, que no o nosso caso,de proceder ao estudo exaustivo de um tratado,importa ter em conta duas ordens de factores: o interno e o externo.

Quanto primeira, h que examin-la luzdo seu significado legal, esclarecendo as suas ori-gens, aplicao prtica, precedentes, efeitos,consistncia e fragilidades.

Com respeito segunda, cumpre investigaras causas e consequncias no contexto de umapoca ou de um pas, para que um tratado setorne compreensvel no seu intrnseco alcance.

O propsito de historiar um tratado deveincidir sobre o quadro factual e ideolgico quelhe est subjacente. E, de particular interesse, sera apreciao do segmento da actividade humana,reguladora de controvrsias surgidas entre pol-ticas soberanas, prescrevendo normas de con-duta recproca. Tal funo responde s necessi-dades implcitas dessas sociedades para umdesenvolvimento coordenado, que expressamvitalidade e poder.

Ainda no plano histrico, os tratados reflec-tem uma relao particular entre as foras daspartes contratantes, no exacto momento em queso assinados.

Mogador (Essaouira). Aguarela de Rui Carita

27

Sob o aspecto estritamente jurdico, corpori-zam a substncia da lei internacional, sendo pontoprivilegiado para o respectivo enquadramento.

No presente trabalho no se optou pela an-lise aturada desta vertente. Moveu-nos antes ointeresse de dar informao sobre um marco,sobretudo histrico, que pontualizou as secula-res relaes entre dois povos. Atravs da sua for-malizao diplomtica, ser tecida toda a convi-vncia posterior at aos nossos dias.

A morte de Moulay Ismael (1727) d lugar aum perodo marcado por sangrentas e constan-tes revolues2. A ruptura do poder, debilmenteconsolidado, fomenta uma anarquia generali-zada em que imperam os desmandos das frac-es militares rivais.

At 1750 Marrocos ser palco de terrveisdesordens internas, a muito custo debeladas pelaincansvel aco de Moulay Abdallah, filho e con-tinuador de Ismael.

Para alcanar a paz, pela submisso dosinsurrectos, Abdallah procura apoiar-se na tribodos Magil3, no seu prestgio de xarife e naordem reinante em todo o sul do pas. Desteltimo factor extrair a melhor vantagem, comorea tampo, leal e disciplinada, para obstar aoexpansionismo rebelde do Norte.

A maior dificuldade a vencer tinha razes pro-fundas. Desde sempre os esforos para uma uni-dade poltica revelaram-se infrutferos. As tribosda regio oriental, que mais se avizinha de Argel,furtavam-se ao domnio dos xarifes de Marrocos.No sul, agora apaziguado, subsistia igualmenteum forte pendor contra qualquer aco centra-lizadora, escudado na defesa natural das suasinspitas serranias. Quanto s populaes lito-rneas, apoiadas pelas armas que o corso forne-cia, resistiam com xito submisso de um even-tual governo regular.4

O cenrio desta luta sem quartel, nas suasvicissitudes, transcende o objectivo da nossa an-lise. Importar, portanto e sobretudo, ter pre-

sente a evoluo dos acontecimentos, que leva-ram almejada unidade poltica, fundamentoestrutural da constituio de um pas.

Detentor de ampla viso, Abdallah logoconstatou ser indispensvel, em prol da hege-monia do poder, a unio entre rabes e berberes.Com tal fito se empenhou para constituir umafrente comum, da qual resultasse a paz e o pro-gresso.

Embora lentamente tais fins foram atingidos.As tenses atenuaram-se e a autoridade pessoalveio sobrepor-se s rivalidades tribais: era oreforo do sultanato.

Graas quietude reinante no sul a seimpe a presena de Mohamed ben Abdallah(Sidi Mohamed), filho do novo senhor de umMarrocos restaurado. Nomeado governador daregio meridional, lana-se com afinco no resta-belecimento do comrcio. Tanto no Atlnticocomo na rea saariana, logra reanimar as antigastradies de um trato produtor de riqueza e deconsolidao de poder.5 Tendo como fulcro acidade de Marraquexe, dali desenvolve uma cui-dada governao, reconhecida pelas populaessubmetidas sua autoridade, a ponto de pre-tenderem proclam-lo sulto em lugar de seu pai,honraria que nobremente recusa.6

Quando, finalmente, Sidi Mohamed assumea linha de sucesso em 1757, no herdar ape-nas um trono, mas um verdadeiro reino. Apstrinta anos de crise, restabelecera-se a tranquili-dade, na ordem conquistada pela comunho doNorte e do Sul. O novo soberano provar, por seuturno, estar altura das responsabilidades quesobre ele recaam, demonstrando-se, desde logo,disposto a retomar os princpios polticos pros-seguidos pelo av, Moulay Ismael.7

O longo perodo da guerra civil havia con-tudo depauperado vidas e fazendas. Mister eraportanto debelar os males antigos atravs de umgoverno apto a encontrar solues. A tal tarefa selanou Mohamed. 28

A pacificao na orla costeira permitiu a cria-o de novos portos, destacando-se Mogador eCasablanca. Beneficiando de medidas adequa-das, despontou um crescente comrcio exte-rior, que reanimou as trocas e trouxe significa-tivos rditos aos fundos exaustos das finanaspblicas.

aposta atlntica ficar o sulto credor deboa parte do xito de uma poltica trilhada compreviso e argcia. Grande admirador de al-Man-sour, nele se inspirar na adopo de uma escla-recida geoestratgia apostada nos contactosexternos.8 Privilegiando o Atlntico sem subesti-

mar os interesses mediterrnicos, eis o quadrosegundo o qual se desenrolar toda a sua aco.9

Nesse sentido, dedica especial prioridade aoporto por si criado: Casablanca. Sobre esterecaem particulares cuidados, criando condiesatractivas a negociantes e armadores. Ali mandaconstruir uma mesquita, escolas, banhos, cujadefesa assegurada pela edificao de poderosamuralha. A sua afeio cidade aumenta com orespectivo crescimento. Aquando do terrvel tre-mor de terra, ocorrido em 1755, de efeitos tam-bm to duramente sentidos em Volubilis, Mek-ns e Lisboa, prontamente concede facilidades eprivilgios a quantos concorrem para a reedifi-cao da cidade porturia.

Dez anos volvidos sobre esta tragdia, funda--se Essaouira (Mogador). Da sua localizao pri-vilegiada resultar um acelerado progresso emconcorrncia aberta com Agadir e Sal. Con-fluncia das rotas caravaneiras provenientes doSudo, em breve se transforma no porto de Tom-buctu, ou seja, no consagrado entreposto do ouroe da prata.

A adopo do sistema europeu de comrcio,salvaguardando o esprito do Islo entre os seuspovos, a antinomia que Sidi Mohamed procuraconciliar. Nos seus trinta e trs anos de reinadodesenvolver um constante esforo para articu-lar duas realidades tendencialmente antagni-cas. Parece inegvel t-lo conseguido, reabrindoo reino ao trfico atlntico e fazendo atenuar umesprito xenfobo ancestral.

Por etapas sucessivas assiste-se recupera-o lenta de uma herana secular: o contactocom o mar, atravs do relanamento das activi-dades comerciais.

A entrega de Mazago pelos portugueses,aps poderoso cerco militar e uma capitulaohonrosa, restitui aquela praa cujas fortificaesso danificadas em 1769.10

O adiamento do contencioso de Melilla coma Coroa espanhola, depois de sitiada sem xito,

Painel de azulejosOficina de Sevilha, sculo XVI (incio),Museu Nacional do AzulejoN Inv. 101Foto de Francisco Matias,Diviso Documentao Fotogrfica do Instituto Portugus de Museus

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leva abertura em 1782 de uma casa comercialde Cdis no porto de Casablanca.11 E, pela mesmapoca, o sultanato procede a substanciais bene-ficiaes em Tnger, transformando a urbe emabrigo seguro e adequado ao comrcio.

Na senda desta orientao marcada pelodesenvolvimento mercantil, levantam-se as seve-ras interdies que de h muito recaam sobre aexportao de cereais e carne. Entre 1771 e 1773regista-se um intenso afluxo de comercianteseuropeus.

Inicialmente limitado a to curto perodo,devido aos sete anos de seca que afligiu a regio,passado o flagelo seria retomada uma florescenteactividade comercial. De futuro, aquelas produ-es passaram a constituir produtos basilares dosseus recursos econmicos.

Este enquadramento, que contemplava novascondies e garantias, mereceu o devido processoinstitucional assente na forma de tratados.

Talvez melhor de que ningum Frei Jos deSanto Antnio Moura sintetiza esta renovaopoltica. Familiarizado com a realidade magre-bina, pela observncia de vrias misses para res-gate de cativos, aquele religioso escrever em1824 sobre Sidi Mohamed: Ensinado este prn-cipe pela experincia, cuidou, logo que subiu aotrono, em fazer respeitar em todas elas a sua auto-ridade, assim como em restabelecer as finanasanimando para esse fim o comrcio; e por issose resolveu a fazer a paz com todas as potnciasda Europa, o que ps em execuo.12 De facto,copiosos foram os instrumentos diplomticosque celebrou. Comeando por ratificar os trata-dos de paz entre seu tio Moulay Ahamed e a Ingla-terra de 1728 e entre seu pai e a Holanda de 1732,assinou vrios outros. Com a Dinamarca e a Su-cia, respectivamente em 1757 e 1763, e, dois anosdepois, com Veneza. Princpio fundamental con-signado em todos eles radica na condio dopagamento anual de uma prestao, seja emnumerrio ou em gneros.

Tal exigncia, sempre vultuosa, fornecia con-sidervel alvio para o errio, que a conjunturafavorvel ao sultanato permitia obter. Emboracompreensvel, introduzia, porm, uma prticapouco usual no relacionamento diplomtico,levando alguns autores a consider-la atentatriaao direito e prova da cupidez dos sultes.

Sob condies anlogas assinaram-se aindatratados com a Frana e Espanha em 1767,seguindo-se Portugal no ano de 1774 e a Toscanaem 1782.

Tido como corolrio da liberdade de comr-cio, mas no s, assiste-se ao declnio do corso.Se bem que em menor escala no respeitante aMarrocos, esta actividade, sobretudo prosse-guida por argelinos e tunisinos, representava umverdadeiro flagelo para a navegao crist.

Com efeito, opera-se ento uma mudana deatitude das potncias europeias, face piratariamagrebina. Graas ao aperfeioamento de umnovo tipo de embarcao concebida no sculoanterior, intensifica-se a represso. De maioresdimenses e melhor artilhada, a fragata noperde todavia as vantagens de velocidade emanobra. Mais rpida do que o navio de linha,volve-se em eficaz meio de fiscalizao e apre-samento.13

Assim, pela segunda metade do sculo xviiiaumenta a vigilncia e o combate prtica cor-sria. Em 1763 uma esquadra francesa bloqueiaa costa marroquina impedindo o desembarquede armas e munies; a partir de 1774 sero osholandeses a infligir pesados prejuzos aos naviosde Tetuo, Larache e Sal, que ainda se aventu-ravam no corso; e o prprio sulto de Istambul,cinco anos depois, ameaa com represlias, casono fosse ressarcido pelo sequestro de um barcoragusano.14 Era o princpio do fim de uma era ede uma instituio que por muitos anos viveraprspera e inclume.15

Embora questionvel, afigura-se que o fimdo corso ter sido mais uma causa do que uma 30

consequncia da abertura de Marrocos aocomrcio exterior. Perante a crescente inviabili-dade de uma prtica ilegal, mandava a lucidez eo pragmatismo de Sidi Mohamed encontrar aalternativa, qui menos rendosa mas por certomais segura.

Do gradual retraimento da pirataria resultaa consequente quebra do nmero de cativosapresados como refns. Esta circunstncia, quetoma a dianteira em Marrocos, ter sobretudo osseus efeitos nas demais regncias do Magrebe. Naverdade, ao longo do primeiro quartel do sculoxix regista-se o lento declnio dos presdios, final-mente extintos em 1830.

Mas no somente a um diferente contextointernacional se ter ficado a dever a mudanaproduzida em Marrocos. Os objectivos governa-mentais de Sidi Mohamed transformam-no emgrande paladino de uma poca nova. Se no foraa amplitude e a temperana do seu impulso ino-vador, o mais certo seria a continuidade do ata-vismo consuetudinrio de uma poltica fechadasobre si mesma.

Consagrados alguns princpios de reciproci-dade, garantindo salvaguardas ao trfico comer-cial, desde logo se alinham pases prontos a pro-moverem vantajosas permutas. Nesta base esegundo os respectivos interesses, dois grupos seconstituem como potenciais parceiros de Mar-rocos. Para um, assumia prioridade absoluta ini-ciar um lucrativo comrcio com aquela rearecentemente franqueada; para o outro, maiscarecido de produtos negociveis, convinhasobremaneira alcanar um compromisso de pazque arredasse o grilho do corso. Entre o primeirocontavam-se a Inglaterra, a Holanda, a Frana ea Espanha. Do segundo faziam parte a Dina-marca, Veneza, os Estados Unidos da Amrica, austria e Portugal.16

Quase na totalidade estes ltimos pagavamanualmente, ou cada dois anos, um tributo aosulto pela garantia de trguas pontuais aco

corsria, que nem mesmo os tratados posterio-res lograram extinguir. No caso portugus, comose ver, o governo foi poupado ao gravoso nus,que alis nem sequer constou das imposiesnegociais. Facto tanto mais significativo, quanto certo que raramente se obteve benesse seme-lhante no relacionamento mais tardio com Argele Tunes.17

No obstante os ajustes celebrados visas-sem, luz de alianas, principalmente a sus-penso das aguerridas incurses navais marro-quinas, nem por isso deixavam de incluir artigosde carcter mercantil. semelhana dos Esta-dos Unidos da Amrica, da ustria e da Sucia,tambm Portugal cuidou de incluir, no primeirotratado com Marrocos, referncias expressas navegao comercial e, nomeadamente, s fun-es dos seus representantes consulares. Medidacautelar, prevenindo para o futuro a importn-cia do possvel intercmbio de alguns produtos.Assim aconteceu na compra de cereais ou decarne marroquina, para colmatar as cclicas cri-ses agrcolas abatidas sobre o reino no decursodo sculo xix.18

O contexto portugus da altura suscita ava-liaes diversas. De uma maneira geral, tende-separa um balano crtico sobre a aco externa doreinado de D. Jos.19 O abandono da poltica deequilbrio e neutralidade do perodo Joaninoquebrar uma linha tradicional. A vocao atln-tica inflectiu para um envolvimento nas questescontinentais. Gravosa para Portugal foram asconsequncias da Guerra dos Sete Anos, quer naEuropa quer no Brasil. Invadidos por espanhise franceses, no se obtiveram quaisquer benef-cios. Pelo Tratado de Fontainebleau (3/11/1762),onde nem sequer fomos admitidos, apenas serecuperaram as reas perdidas no decurso daguerra.

Em relao aos limites do sul do Brasil osproblemas acentuaram-se. Desde 1767 que setinham reiniciado as campanhas militares, ten-31

tando os portugueses, em vo, retomar as reasindevidamente conservadas pelos castelha-nos.20

Ao longo de quinze anos, a poltica externaesteve subordinada ao objectivo da extino dosJesutas. Terminado o conflito europeu, taldesgnio viu-se intensificado at sua resolu-o definitiva.

Dois dos sectores fundamentais desta faseassentariam na aliana inglesa e no estabeleci-mento do interesse dominante do Brasil.21

A duplicidade diplomtica de Madrid osci-lava entre as promessas de paz na Europa e a per-manente hostilidade sobre o territrio meridio-nal brasileiro.

O recurso mediao benvola disponibi-lizada pela Frana no oferecia garantias, conhe-cidas as ligaes estreitas que a ligavam monar-quia espanhola.

Por seu turno, a Inglaterra, assumia um papelcontemporizador, porventura favorvel a cedn-cias portuguesas, em salvaguarda do previsvelapelo para conceder auxlio militar. Tanto maisque as crescentes tenses na sua colnia ameri-cana desenhavam um cenrio preocupante, embreve transformado na irreversvel luta pelaindependncia.

A conjuntura portuguesa desse ano de 1773apresentava-se sombria. Iminente parecia ser aabertura das hostilidades espanholas no RioGrande do Sul, como veio a acontecer emNovembro.22 Pombal decide-se pelos preparati-vos para a guerra, embora ciente da impossibili-dade do apoio britnico. Impunha-se a disponi-bilizao de todos os recursos em efectivosmilitares e transportes martimos. Os esforosdeveriam concentrar-se para esse fim. Tornava-se indispensvel, portanto, mitigar problemasque absorviam meios, agora to necessrios: ocombate ao corso era um deles. Donde, qualquerperspectiva susceptvel de conter ou reduzir essaprtica seria bem recebida.

Vinham de longe os propsitos conciliatriosnesse sentido. J no tempo de D. Joo III se haviaesboado um projecto de aliana, sob a inicia-tiva do agente portugus Bastio de Bargas.23 Masos tempos ento eram outros. A indesejada pre-sena portuguesa em Marrocos e a ausncia deunidade poltica no pas, obstavam qualquerentendimento mais consistente.

Removidos estes factores e na senda da pol-tica de abertura ao exterior de Sidi Mohamed, poreste proposta uma trgua de um ano em 1769,logo aceite.

Prorrogado o acordo sucessivamente, reite-rou o sulto a iniciativa de promover um melhore mais amistoso relacionamento. Vrias missivasse trocaram entre os dois soberanos, a ltima dasquais do marroquino, datada de 15 de Agosto de1772. Nela informava da boa disposio parareceber a embaixada portuguesa que lhe foraanunciada.24

falta de elucidao sobre a preferncia domomento para a enviatura, de admitir que oprojecto paulatinamente se consolidara. A boavontade recproca era manifesta, como prova alibertao das tripulaes de dois corsrios apre-sados junto Barra de Lisboa.25 Com to bonsauspcios e sem entraves impeditivos estavamcriadas as condies para um dilogo profcuo.

Pela Secretaria de Estado dos Negcios daMarinha passado, em 22 de Setembro de 1773,o pleno poder a Jos Roleen Van-Deck, a incumbi--lo da negociao de um tratado com Marrocos.26

Holands de Nao, catlico, recebe as res-pectivas instrues decorrida uma semana.27 Aoservio da Marinha portuguesa e com largaexperincia operacional no Mediterrneo seriaescolha adequada misso de obter a almejadapaz definitiva, indispensvel navegao e aocomrcio.

Das alneas constantes naquelas instru-es, ressalta de imediato o cuidado concedidoaos aspectos protocolares.28 No conjunto de 64 32

Formulrio da Embaixada enviada a Marrocos em 1773-1774. Academia das Cincias de Lisboa

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Formulrio da Embaixada enviada a Marrocos em 1773-1774. Academia das Cincias de Lisboa

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preceitos, 25 respeitam objectivamente s sen-sibilidades do cerimonial. Preocupao nofortuita e menos ainda despicienda, traduziaantes a finalidade de garantir um tratamentonegocial, em p de igualdade com as demaisNaes europeias, cujos tratados haviam sido jcelebrados. A relevncia de tal matria impu-nha-se, em prol de uma poltica de prestgio,pela qual no e regateariam os maiores sacrif-cios pecunirios.

De tanta importncia se revestia este factorque o secretrio e intrprete da Embaixada a Mar-rocos, Frei Joo de Sousa, elaborar alguns anosdepois um Formulrio, definindo as regras deprotocolo exigidas por ambas as cortes.29

Ateno particular mereciam tambm ospontos relativos liberdade de navegao ecomrcio. Em termos genricos, estipulavam-secondies semelhantes quelas j acordadasentre o sulto e alguns reinos europeus. Semembargo, incluam-se dois artigos separados,referentes aos cativos de ambas as partes.30 Pelasua particular sensibilidade, tais clusulas obri-gavam a uma extrema prudncia, por bem sabidaque era a importncia dos resgates regularmentepagos ao sulto.31

O corso norte-africano infligia terrveis pre-juzos navegao crist, quer no Mediterrneoquer no Atlntico. Deste sistemtico ataque, quese estendia s povoaes litorneas do conti-nente e das ilhas, resultava o apresamento demilhares de cativos. Para o seu resgate obtinham--se fundos, provenientes do errio e da caridadepblica, e de cujas transaces se encarregavamcertas ordens religiosas.

Logicamente, este nus vultuoso sobrecar-regava as finanas do reino que a muito custo res-pondia ao dever humanitrio. Mister recordarque, mais danosa ainda se mantinha o corso deargelinos e tunisinos, aos quais se pagavam ele-vadas somas pelo grande nmero de refnsanualmente feito.32

Melhor se compreende, portanto, face ao pre-cedente, o empenho em fazer acrescentar aque-las clusulas, embora prudentemente propostasem separado. Ainda assim destacando-se da con-textualizao do pretendido acordo, no deixa-vam de complementar o respectivo artigo ix.33

Como se verifica, era este de molde a assegurara neutralidade marroquina no combate portu-gus quelas Regncias, nessa altura os princi-pais redutos da pirataria em grande escala.

Com estas orientaes, Van-Deck deveriatentar obter a satisfao de maior nmero derequisitos previamente traados. Para tanto ecomo particular forma de cortesia, seria aindaportador de uma missiva de D. Jos, dirigida aosulto Mohamed em termos amistosos, visandosensibilizar o destinatrio.

Assim munido, aprestou-se o embaixador aembarcar na fragata aprontada para o seu trans-porte e o de toda a comitiva. Pelo expressivonmero dos 117 integrantes se pode aquilatar agrandeza e o luzimento que se pretendiamemprestar misso diplomtica.

Alm do embaixador, seguiam outros ele-mentos de distino: o cnsul-geral BernardoSimes Pessoa, o 2. secretrio Manuel da Silva,o capito Joo Marques de Carvalho, o cirurgioAntnio Jos Coelho e o secretrio-intrprete FreiJoo de Sousa.

Para a guarda pessoal de Van-Deck incorpo-raram-se quarenta soldados de Infantaria,comandados por um capito e um tenente e maisseis msicos trombeteiros das Reais Cavalariasde Sua Majestade Fidelssima.

No porto de Mogador foram ainda agrega-dos mais alguns membros de qualidade, almde Jorge Colao e Pedro Colao, seu filho, queviriam posteriormente a desempenhar funesconsulares em Tnger.34

Ultimados os preparativos, embarcou aEmbaixada na fragata N. S. da Nazar perten-cente Armada Real, no dia 29 de Setembro de35

1773.35 Dos seus sucessos deu-nos abundanterelato o respectivo capelo. semelhana de FreiJoo de Sousa, escreveu tambm um pormeno-rizado dirio, at agora indito.36 Pelo cotejo deambos, quase no se registam diferenas. Ape-nas a assinalar que, embora sem data, tudo levaa crer ter sido redigido logo aps o termo da Mis-so. Bem ao contrrio, a Relao elaboradapelo intrprete s foi composta cinco anosdepois, ou seja, em 1778, conforme o prprioesclarece.37

Por estes dois preciosos testemunhos sabe-mos que, com ventos favorveis, aportavam aMogador cinco dias aps a partida de Lisboa.Contudo, uma mudana repentina das condiesatmosfricas obstou ao desembarque, obrigandoa fragata a fazer-se ao largo, s fundeando no caisuma semana depois.

Desembarcaram ento todos e tudo o quepertencia Embaixada, e s depois o embaixa-dor. Mas logo aqui houve um pequeno contra-tempo, de significado no despiciendo. Van-Deck, informado de que a Fortaleza o deveriasaudar com 50 salvas, de acordo com as instru-es do sulto, recusou-se a pr p em terra atque aquelas fossem cumpridas. Em causa estavao prestgio da imagem do Estado, que o proto-colo se obrigava a respeitar.

Informado o bax local do incidente, orde-nou de imediato a observncia da saudao, nocom 50 salvas, mas com 300. O excesso de zeloda reparao, face aos demorados preparativosque exigia, obrigou o representante do S.M.F. aandar duas horas no mar, aguardando o des-fecho de todo o processo.38

A recepo que se seguiu em terra revestiu--se de um entusiasmo quase apotetico. Nadafaltou para abrilhantar as cerimnias, nas quaiso bax no deixou de tomar parte como supremaautoridade anfitri.39

Alojada a comitiva em local prximo dacosta, no se pouparam cuidados para que nada

lhe faltasse. Com ordens bem definidas, apre-sentou-se um Hebreu Tesoureiro, solicitandouma lista de tudo quanto pudesse haver neces-sidade e cuja satisfao correria a expensas mar-roquinas.

Toque de aprimorada ateno por parte dosoberano, traduziu-se no envio de um dos seuscozinheiros pessoais, encarregado de prodigali-zar iguarias ao embaixador.

A tudo isto se acrescentou grande diversi-dade de presentes e obsquios que, obviamente,desvaneceram todas e quaisquer reservas quanto magnificncia da hospitalidade.

Rodeada de atenes, nomeadamente con-cedidas pessoa do embaixador, a delegao aliestanciou por duas semanas. Entretanto, atacadode um mal no definido, o estado de sade desteagravara-se preocupantemente. Por isso, depoisdas despedidas, singelas e sem festejos, tomou--se o caminho da cidade de Marrocos, fazendo--se Van-Deck transportar por liteira.

O percurso at Marraquexe (Marrocos) ven-ceu-se devagar e sem incidentes. Pela manh de6 de Novembro chegavam junto da cidade. Repe-tir-se-ia aqui o espectculo de Mogador. Moha-med havia ordenado a paralisao do trabalho,para um mais grandioso acolhimento popular.Curiosos e hospitaleiros milhares de habitantesacorreram aos subrbios aclamando festiva-mente a comitiva.

Os portugueses, por seu turno, prepararam--se com desvelo para se mostrarem dignos darecepo. Depois da tropa formada e a banda atocar, fez-se a entrada pelas portas da urbe at auma das quintas do soberano onde havia sidolevantado o arraial.

O dia seguinte passou-se em bem merecidodescanso. Alguns religiosos espanhis, ali radi-cados, vieram visitar o embaixador, oferecendoos seus prstimos.

Por mandato do sulto, apresentou-se tam-bm um seu valido, Manuel de Pontes, antigo 36

refm, que transmitiu o impaciente interesse doamo em receber o embaixador em audincia.40

Lamentavelmente, os problemas de sade deVan-Deck tinham-se acentuado, impedindo-o deaceder com prontido ao convite. Tal contra-tempo no ter agradado ao monarca, que logomandou novo emissrio. Desta feita, era o pr-prio bax Bnmeran, incumbido de propor anomeao de outro interlocutor que substitusseo chefe da Misso. A razo da urgncia devia-se circunstncia de Mohamed no poder protelara sua partida para Fedala, onde questes urgen-tes o reclamavam.

Perante a insistncia, decidiu o embaixadorconfiar ao cnsul-geral Simes Pessoa a delega-o de poderes, esclarecendo-o dos principaisassuntos a tratar. Isto feito, seguiu este e a comi-tiva presena do sulto, pelas 4 horas da tardedesse dia 9 de Novembro. Ao som da fanfarra atropa marchou com garbo at praa onde se deuo encontro.

Pouco depois chegou o sulto acompanhadopor um squito majestoso. Feitas as apresenta-es o rei mostrou-se acolhedor e confiante. Ao receber a carta de D. Jos, entregue junta-mente com o projecto do tratado, logo apontoupara a assinatura, afirmando reconhec-la.Entregues os presentes, que o tero satisfeito,declarou que pelo muito que amava o El-Rei D. Jos, voluntariamente concederia tudo o queeste monarca dele pretendesse.41

Prova de especial considerao radica nofacto de ter nomeado como interlocutor dasnegociaes o prncipe Moulay Abdessalam, seufilho. Sem precedente anlogo, todos os tratadosanteriores haviam sido ajustados por um minis-tro, nomeado para o efeito.42 Com esta atitudepretendeu o sulto sublinhar a sua defernciapara com a Coroa de Portugal, o que seguramentecalou fundo entre os membros da delegao.

Reconduzida a comitiva ao acampamento,ali se aguardou a presena do prncipe. Insoli-

tamente, tardou este dois dias a aparecer, maspara se dedicar ao jogo da plvora com os seussoldados, a pretexto de assim obsequiar el-rei dePortugal. Por isso, s na manh seguinte se enta-bularam as conversaes mantidas entre Abdes-salam e o cnsul-geral Simes Pessoa, que eraacompanhado pelo intrprete Frei Joo deSousa.

Pela narrativa do religioso o prncipe nadadiscutiu e menos ainda alterou a proposta do tra-tado, limitando-se apenas a demonstrar interessepelo seu aspecto formal.43

Finalizado o encontro retirou-se MuleyAbdessalam para se avistar com seu pai. Pre-tendendo-se agora efectuar uma anlise maiscuidada, Sidi Mohamed nomeia o cdi de Safim,que imediatamente quis reunir-se com Frei Joode Sousa para esclarecimento de certos voc-bulos.44 E nova sesso ser marcada para o diaseguinte.

Novamente no se tero suscitado proble-mas de maior. O medianeiro marroquino assen-tiu em tudo, mas no sem deixar de transpare-cer que contaria com uma natural recompensa.45

Neste meio tempo os males do embaixadorno davam mostras de melhoras. Pediu por isso