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/0 FOCOI OUVIR E FAlAR

Cartas,uma Escrita para ser Ouvida

Louren90 do Rosario

«Em Mocambique, e ao contrario do quefaziam os ingleses nas suas col6nias, naose ensinavam as lfnguas nativas. Os alunosdas escolas eram introduzidos, desde logo,no aprendizado do portugues, com todosos problemas que isso criava». (1)

que nos levem a melhor compreender 0

articulado de valores diversos. Tais val orescaracterizam-se por uma convivencia COI1-

flituosa e por urn caldeamento irregular edesiquilibrado entre civilizacoes diferentese culturas afastadas num processo de pres-sao desigual.

Utilizando as informacoes fornecidas peloautor da compilacao, constatamos dois fac-tares determinantes para a importancia des-tas cartas: por urn lado, a origem da maiorparte dos seus autores, predominantementecampesina, sob 0 ponto de vista ontolo-gico, social, cultural... evidenciando urnclaro conflito entre os val ores tradicionaisda sociedade de que sao oriundos e avivencia de uma urbanidade periferica malassirnilada, por outro lado, a apropriacaode meios de comunicacao e expressao apartida estranhos e mal dorninados: 0 jor-nal, a escrita e a lfngua portuguesa.

(') Jose Capela, in Mocambique pelo seu Povo. Ed. Apontamento, 1974.

• Faculdade de Ciencias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 31

~a'uando em 1974JoseCapela deci-diu com pilar e publicar algumascartas que os leitores do jornal «AVoz Africana» escreveram, nao

deixou de chamar a atencao para a imensariqueza que essas mesmas cartas encerra-vam. Riqueza que cornecava no plano dalfngua e da linguagem, percorria os mean-dros dos valores etno-culturais e desaguavano conflito socio-politico prevalecente,por forca da sociedade colonial. Destemodo, a sensibilidade de Jose Capela abriupistas para 0 interesse que as varias disci-plinas das ciencias humanas e socia is pode-riam vir a manifestar pelo acervo e 0

universo que as cartas representavam erepresentam.

Passados estes anos todos, 0 interesseainda forte que tais cartas nos podem sus-citar, reside na possibilidade de delasextrairmos ensinamentos de varia ordem

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Se 0 que marca a distancia e, de certomodo, 0 fundamental da diferenca, entrea estetica literaria e 0 universo ternatico doinventario dos recurs os literarios do P.E.(Portugues Europeu) e do P.A. (PortuguesAfricano), reside no facto de 0 P.A. poderlancar mao dos ricos elementos culturaisda sociedade rural africana que nao estaoao alcance da expressividade do P.E., enatural que a apropriacao desta linguapor sujeitos quase analfabetos (sem 0 domi-nio da escrita, portanto) e ainda inseridosnesse mesmo universo cultural produza for-mas expressivas intensificadas. De entreestas formas, a amostra literaria e apenasuma palida irnitacao conscientemente cul-tivada.

Nesta perspectiva, pretende-se, com estepequeno artigo, evidenciar alguns aspectosda linguagem das cartas, bem como do seuuniverso narrativo, de forma a permitir aosinteressados pela literatura africana de lin-gua portuguesa uma melhor compreensaodos fenornenos da formacao socio-culturaldos povos de Mocambique, e ainda daadaptabilidade da lingua portuguesa aexpressao africana.

o mais importante na amostra das cartasque aqui se apresentam, nao deve ser pro-curado apenas no afastamento das regrasde construcao sintactica. E importante veri-ficar que os autores fazem uso cuidado dolexico, embora muitas vezes utilizando-ofora das compatibilidades sernanticas e con-textuais. Contudo, este facto, em vez deresultar em prejufzo da mensagem,enriquece-a com resultantes metaf6ricasverdadeiramente geniais e surpreendentes.

As cartas devem ser lidas em voz altapara melhor captacao dos efeitos foneticose sintaticos. E de supor que os seus auto-res as tenham composto tambern em vozalta, numa producao que recria os ambien-tes narrativos da tradicao oral. Por outrolado, 0 apelo constante ao receptor fazsupor tambern que os seus autores procu-ravam eliminar 0 caracter mediatizado quea escrita representa como forma de expres-sac e de cornunicacao.

Os exemplos que escolhemos contem-plam narrativas que procuram cobrir variasquestoes sociais e culturais que ultrapassam

problemas de caracter individual, funcio-nando como verdadeiros paradigmas antro-pol6gicos da sociedade mocambicana quevive numa situacao convulsiva.

No que diz respeito a utilizacao da lin-gua portuguesa, nao se deve procurarencontrar nas cartas, apressadamente, urnmodelo do que se convenciona chamar «0

portugues falado em Mocarnbique». A com-pilacao das cartas reune amostras do por-tugues que, do ponto de vista geografico,cobre 0 territ6rio mocambicano. De qual-quer forma, 0 caracter cuidado emprestadoa redaccao com a introducao, muitas vezes,de expressoes complexas retiradas de diver-sos contextos (c6digos religiosos, socio--politicos, da cultura urbana, ete.) podelevar a pistas menos correctas se quiser-mos determinar a espinha dorsal do portu-gues mocambicano a partir desse tipo dematerial.

Este artigo visa fundamentalmente guiaro leitor na leitura das cartas que a seguirse anexam. Ha, para isso, que ter em contadois aspectos:

1 - aspectos de natureza linguistica, deforma a apreender toda a problernatica dautilizacao da lingua do outro para expres-sar questoes existenciais e culturais numaperspectiva de conquista. A forma comoos autores aparecem nas cartas e a de umaverdadeira batalha pelo dominio de urn ins-trumento que lhes permitira passar do seumundo para 0 mundo desse outro, atravesda apropriacao do instrumento identifica-tivo por excelencia, a lingua. Mais do queo portugues bem ou mal dominado, paraestes autores s6 conta 0 portugues utilizado.No fundo e urn instrumento de libertacaopara urn destino ainda por definir.

2 - aspectos de natureza etno-culturalque representam 0 pitoresco e 0 confli-tual, numa perspectiva ambivalente, poisao mesmo tempo que tendencialmenteos autores marcam a sua vontade dedistanciamento do mundo de que saooriginarios, 0 tradicional, eles nao deixamde aferir as valencias deste e daqueleoutro mundo a que procuram ascender,conhecendo-lhe tambem os defeitos. No

_ IOFOCOI OUVIR E FALAR ••••••••••••••• ••••fundo, e urn exercicio que recria uma cenade caca nocturna, em que 0 encadeamentodo antipole faz com que este seja atraidopara a morte sem que no entanto deixe deter consciencia do seu destino. E, contra-riamente ao uso da lingua, urn acto anti-

-libertador, pois elogiam-se os valores dasociedade tradicional que se rejeita eatacam-se os valores da sociedade colonialurbana a que se aspira pertencer.

Leia-se com atencao as cartas em anexo.

1. Joaquim Tomaz Gombe Gombe,.solteiro, 25 anos,natural de Marromeue residente na Beira.

Sr. Director, 0 motivo que me levou a escrever esta carta, e 0 seguinte: 0meu pai e urn ser tambem Deus puramente enfinitamente perfeito, 0 criadorda terra. Se porventura e tambem do ceu por a caso. Admiro bastante, comosou desobediente do meio pai desde 1956, vivemos ambos invisivelmente, maisnao consego realizar a vida cheia de prosperidade. Pois que verdade a li<;ao edescobrida na segunda pessoa da Santissima Trindade,os que nao obedecemaos pais nao tern gracas nenhumas, sao pessoas mortas pela vista de Deus. Euse por a caso sou 0 morto na vista de Deus. Ja trabalhei quase todas companhiasda Beira, mais urn vicios de que pratiquei, e de pagar uma pessoa da pandigas20$00, e nao face ideia de comprar urn radio nem motorizada. Nas tres compa-nhias onde-me recebia a mais de 730$00 sao essas: na Sonap como telefonistapor 730.00, nos caminhos de Ferro como contra-maroa de Transmissoes 1 300.00na Farmacia Manuel Frutuoso Agostinho como praticante d",eenfermeiro por800.00. Mais nao sei onde-me guardava esses vencimentos todos. Numa noitecerta fui-me dotados pelo sonho fortissimo, durante toda a noite. Vinha urn homemde que nao conheco trazia com ele vestida branca muito mais brilhava-se e acara parecia trovoada, mas duas asas nos ombros. EIe entao disse-me assim. Amigo!teras a no futuro uma vida cheia de prosperidade se nao te esquece 0 meu con-selho. Avida no futuro e precisa-se estudar ate admissao da 4. a classe, e depoissibliza-se, por enfim vais a autoridade para que mandassem em Militar, Deus quee 0 grande seras 0 homem no futuro. 0 Anjo tern razao! ... no ana seguinte 33experimentarei 0 sonho dorado pelos os anjos da guardas.

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_ OEZEt18RO 1989 N~Z •••••••••••••••••

2. Xavier dos Santos Meneses,Hospital da Missao Santo Condestavel,Alto Molocue.

Senhor Director; hoje faco cumplicidade da linguagem Africanos. Rogo V. Exciade anunciar a minha notlcia acontecido no dia 2/1/1960 que e 0 seguinte: EsteveHospital Jose Martinho Sancho com 0 filho doente, de noite apareceu Leopardofoi no galinheiro, que contava 48 galinhas, 0 animal matou 44 galinhas e ficaram4 0 homem ouviu gritos das galinhas, veio-rne agordar era as 3 horas madrugadaeu fui, abri a capoeira encontrei 4 galinhas fiquei multo admirado por ter encon-trado so 4 galinhas.

Fui avisar irrna enfermeira me disse vai chamar 0 guarda da Missao ver seencontra quem foi que roubou as galinhas. Charnel nao respondeu nada fui apro-cura do caso nunca encontrava toda a parte da missao nada so encontrava tripasespalhada. Ao nascer do sol por ai 6 horas veio Jose M. Sancho e do is rapazesurn tinha uma regua na mao de meio metro comprimento pedi 0 rapaz me deu.Procurei num muro do much em la encontrei Leopardo fugia e eu ia semprearras dele, num momenta escondeu-se eu nao sabia onde tinha escondido, quandoviu me 0 animal levantou morteu-me a mao direita ate por outro lade eu coma mao esquerda deu uma reguada na cabeca e que ria levantar nao conseguia,os amigos tinhao fugidos como eram fracos. Fui a missao avisar os missionariesquando eu falava matei Leopardo ninguern acreditava dissiam mentira so quandomandaram os horn ens a buscar do animal. E eu fui me tratado da rnao furada.Desculpe os senhores e senhoras leito res 0 tempo pertido que vos roubei.

Assim terrnino. isso e uma verdade certinho.

3.

Eu admiro por essas mulheres da Beira que andam fazerem a conta propria,uma vez eu combinei com uma gaja de nome Florinda Primeiro, para que fazer-mos a companhia na vivenca, e neste caso eu e que corria com as despesasda gaja, pagar a renda da casa on de ela morava. E chegou a certa altura que.eu pensei ir a terra visitar a famIlia, e a irma mais velha resolveu dizer a gajapara que me fugisse, e logo que eu vi me mostrar a cara feia eu notei ja; eIevei 0 caso perguntar a irrna mais velha, e at nao me respondeu de born elogo a purrada, e a Irma da gaja e 0 cunhado dela, todos os tres contra mim,

Senhores leitores isto e, acham que e born? 0 que eu pretendia era me deixarir a terra e ela entao ficava tratar da vida dela, por Isso que os nossos antepassa-dos dizia que se criar urn ladrao corta-lhe a orelha para dar sinal.

Senhores leitores, nao podemos entregar toda a nossa vida numa puta, porque .quando logo eta vier que ja estas- cheias de desgracas corneca virar a paginanem se importa mais de ti como genre, quando estamos na cidade nao podemos

IOFocol OUVIR f FAlAR ••••••••••••••• ._mutJ

esquecer das nossas mulheres da terra, porque essas coisas das putas e tal comodum filme do cinema porque quando passou passou mesmo. Visto que eu youa terra com desgracas, e ela cheia de vistamento que eu fazia.para ela: e hojenem bons dias quando encontrar com ela.

Senhores leitores, essas frases que me levou a escrever nao e para infigir aossenhores leitores nao. E para nos termos cuidado com essas luzes da cidade,senao ficaremos sem vista.

4.

o que eu estou a lamentar e 0 seguinte os bebados do Nampula precisam-de ser defendidos, urn dja fuj eu beber no bar do Senhor Pinto Soares e outromeu amigo que estava sentado ao meu lado levou bofetadas ponta pes socose mais rnuitas coisas que sao utilizados para alejar uma pessoa ou para castigaruma pessoa que merece castigo.

Eu como bebado apelo para autoridades competentes para ver este caso den6s os bebados (NAKHA)US)para sermos protegidos, porque 0 Senhor SoaresPrecisa do dinheiro e 0 bebado precisa do vinho, Pinto Soares e uma pessoaeducada e 0 bebado nao e.

Eu sel muito bem que nos alcoolicos quando estamos grosso falamos mal esem respeito, mas mesmo assim podia haver proteccao nos bares de Nampulaporque eu vi muitos brancos nos bares proprios da cidade bebem e ficam gros-sos e ate outros recusam de pagarem, mas nao sao mal tratados.

E porque nos no Bar do senhor Pinto Soares somos mal Tratados, se eu naoyOUbeber no hotel portugal e porque tenho receio la tambem vai 0 meu patraotornar cafe agora eu nao posso sentar junto com meu patrao, porque amanhase eu pedir aumento patrao vai dizer que 0 dinheiro nao te chega mas tenspara gastar no vinho e por essa razao que eu gosto beber no Senhor Pinto Soarese no Senhor Martins, porque la tenho os meus amigos da minha classe eu podiair no hotel Portugal onde podia ser respeitado mas as razoes que me empedemsao esse que eu escrevi em cima desta carta, porque sei que em terras Portugue-sas nao ha distincao s6 0 senhor Pinto Soares e que quer semear odio entreo Portugues e negro agradeco muito e peco as autoridades para defender osbebados negros de Nampula que estao desprotegidos, alem de gastarem 0 seumiseravel salario por cima leva muro de Mucunha 1. Pinto Soares, estarnos noseculo vinte 0 senhor Pinto Soares tenha Paciencia porque diz urna Histo-ria dos nossos ante passados que, quer chuva tern que aguentar lama,senhor Soares quer dinheiro entao que ature os bebados se estou mentirque urn dos leitores de Nampula desminta 0 que eu escrevi.

Sou eu urn dos bebados, I. K., padeiro nesta cidade de Nampula.

1 Mucunha: Branco, europeu, 35