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POEMAS NEGROSJORGE DE LIMA

Jorge Matheos de Lima nasceu em Alagoas, em 1893. Fez os primeiros estudos em sua cidade, União, e depois em

Maceió, no Colégio dos Irmãos Maristas. Estudou Medicina em Salvador, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde

defendeu tese sobre os serviços de higiene na capital federal. Ainda estudante de Medicina, publicou seu primeiro

livro, XIV Alexandrinos (1914). Após ter se formado, retornou a Maceió. Sem jamais ter abandonado a Medicina,

lecionou na Escola Normal Estadual da cidade, chegando a ser diretor. Ocupou outros cargos públicos estaduais,

como Diretor-Geral da Instrução Pública e Saúde e Deputado, além de manter constante seu interesse pelas artes

plásticas. Em 1930, transfere-se, definitivamente, para o Rio de Janeiro, onde clinica e leciona Literatura Brasileira,

nas Universidades do Brasil e do Distrito Federal. Em 1925 foi eleito vereador, ocupando, três anos mais tarde, a

presidência da Câmara, no Rio de Janeiro. Assinalou a polimórfica trajetória com muitos e sucessivos rótulos

estéticos: parnasiano, modernista, regionalista, “cantor da poesia negra e do folclore, “poeta cristão”, social, surrealista e barroco. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 1953.

PRINCIPAIS OBRAS: XIV Alexandrinos (1914); O Mundo do Menino Impossível (1925); Poemas (1927); Novos

Poemas (1929); Poemas Escolhidos (1932); Tempo e Eternidade (1935) - em colaboração com Murilo Mendes; A

Túnica Inconsútil (1938); Poemas Negros (1947); Livro de Sonetos (1949); Obra Poética (1950) - inclui produção

anterior, juntamente com Anunciação e Encontro de Mira-Celi; Invenção de Orfeu (1952); Castro Alves - Vidinha

(1952). Além de romances, ensaios, traduções, biografias e artes plásticas.

MODERNISMO – 2ª GERAÇÃO: Aproximação com os autores regionalistas do Nordeste: José Américo de

Almeida, José Lins do Rego e sobretudo com Gilberto Freyre, um dos maiores defensores da poesia nordestina e,

principalmente, da poesia “negra” de Jorge de Lima. No prefácio de “Poemas Negros” (1947), Gilberto Freyre

defende os poemas de Jorge de Lima da crítica que acusava os autores nordestinos de aproveitarem o pitoresco,

não sendo representantes legítimos da cultura negra ou ameríndia. Freyre, ao contrário, diz que os autores

nordestinos são os que verdadeiramente se dedicavam ao estudo e a interpretação da cultura negra. Para Gilberto

Freyre, os preconceitos no Brasil estão mais ligados às classes sociais do que exatamente a cor.

Em Poemas, 1927 e Novos Poemas, 1929, inicia-se a tematização da infância e do passado familiar, recorrente

nas demais fases. O memorialismo desse período ajuda a conter o risco do exotismo na apresentação da cultura e

do folclore regionais, já que são representados a partir de uma perspectiva vivencial e afetiva. Os recursos formais

e estilísticos mais marcantes nessa fase são o verso livre, a linguagem prosaica e afro-regional e o processo de composição baseado na enumeração de nomes de seres, lugares, objetos, costumes, comidas etc., de modo a sugerir o ritmo da evocação. O painel da vida nordestina que Jorge de Lima compõe a partir desse processo faz

de sua obra o correspondente, na poesia, da prosa de ficção de José Lins do Rego (1901-1957).

Apesar de enraizado no escravismo, o universo patriarcal dos banguês e engenhos de cana-de-açúcar é ainda

marcado por relações mais humanas, pessoalizadas ou "cordiais", em contraste com a exploração impessoal e

desumana das usinas. Deve-se também a Freyre, o reconhecimento da influência decisiva do negro não só no

plano mais amplo da formação cultural brasileira, mas também na formação mais individual dos meninos brancos do

Nordeste, meninos da casa-grande, como o poeta alagoano. Daí a atitude de simpatia e solidariedade para com a condição do negro e sua história, que são abordadas de forma mais dramática e complexa em Poemas Negros, 1947. Os poemas desse livro traçam uma espécie de história do negro no Brasil (a escravidão, a miscigenação, a religião, a linguagem), articulada às vivências pessoais do autor, celebrando os ritos sincréticos do candomblé e buscando suprimir de vez possíveis traços do pitoresco e do preconceito involuntário.

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POEMAS NEGROS

O livro tem 39 poemas, sendo 15 poemas já publicados em outros livros e 24 poemas inéditos. São eles:

De “Poemas” (1927) O medo; Bahia de todos os santos; Floriano, Padre Cícero e Lampião; Calabar; Pai João

De “Novos Poemas” (1929) Diabo brasileiro; Essa Negra Fulô; Mês de Maio; Comidas; Inverno; Madorna de iaiá;

Santa Rita Durão; Joaquina Maluca

De “Poemas escolhidos” (1932) : Nordeste; De “Tempo e Eternidade” (1935) : A noite desabou sobre o cais

Os poemas inéditos: Bicho encantado; Banguê; História; Democracia; Retreta do Vinte; Quichimbi sereia negra; Zefa

lavadeira( poema em prosa, retirado do livro A mulher obscura.) ; Benedito Calunga; Ladeira da Gamboa; Passarinho

cantando; Exu comeu tarubá; Ancila negra; O banho das negras (poema em prosa, retirado do livro A mulher

obscura) ; Cachimbo do Sertão; Obambá é batizado; Poema de encantação; Rei é Oxalá, Rainha é Iemanjá; Foi

mudando, mudando; Janaína; Quando ele vem; Xangô; Pra donde você me leva; Maria Diamba; Olá Negro.

Vejamos alguns temas do livro enumerados pelo próprio Jorge de Lima em carta a Lasar Segall responsável pelas

ilustrações do livro:

Creio que V. já está ambientado com os poemas. Demais: o assunto deve ser apenas a representação do negro em

todos os ambientes em que demorou desde sua vinda para o Brasil, isto é: o negro (quando digo o negro, digo negra

também, não fazendo distinção de sexo) nos navios negreiros, milhares de cabindas, de guinés, de todas as tribos

africanas apinhados nos porões dos veleiros; o negro nas senzalas; a negrinha bonitinha nas casas-grandes, um

perigo de tentação para o branco português; o velho negro Pai-João; o negro rebelado refugiado nas serras

guerreando o branco; a sereia negra que habita o mar; o negro feiticeiro; cenas de macumba; a negrinha penteando

a sinhá branca nas redes; a negra vendedora de doces; a negra amamentando o menino branco; a negra contando

histórias nos terreiros das casas brancas, etc., etc.

A MULHER EM POEMAS NEGROS, SENSUALIDADE E ESCRAVIDÃO

A mulher representada nessa obra apresenta características de várias etapas da história da escravidão. Elas vão da

representação do corpo escravizado, passam pela valorização do pitoresco da cultura religiosa até chegar à

consciência catastrófica do abandono social do negro. Vale lembrar que tanto a visão exótica, correspondente à

consciência amena, quanto a catastrófica, marcada pelo tom pessimista, fazem parte da literatura regionalista

brasileira. A ambiguidade da representação do corpo da mulher negra nos revela um impasse que a literatura de

Jorge de Lima explora com humor, mas não disfarça a tensão entre negros e brancos como em “Essa Negra Fulô”.

Tais representações relevam que nem sempre a democracia racial foi aceita com submissão. A ambiguidade do

corpo feminino nos dão pistas dessas tensões, entre uma imagem sensual e uma de um castigo, identificamos um

branco perverso que explora a mulher conforme seus interesses pessoais. Tais imagens não escondem os conflitos

raciais brasileiros. Nesse contexto, a mulher negra é descrita como parte da construção pitoresca e como parte dos

conflitos da colonização. Assim, a identidade da mulher está associada à dualidade da modernização, pois ela

registra uma tensão entre a cultura local e a colonizadora sem deixar de lado a barbárie da escravidão e seus

fantasmas. Nesse sentido, a representação da mulher tanto reforça os valores impostos pela brutalidade da

dominação, quanto questiona o exótico como um lugar de otimismo social.

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NORDESTE

Nordeste, terra de São Sol! 

Irmã enchente, vamos dar graças a Nosso Senhor, 

que a minha madrasta Seca torrou seus anjinhos 

para os comer. 

São Tomé passou por aqui? 

Passou, sim senhor! 

Pajeú! Pajeú! 

Vamos lavar Pedra Bonita, meus irmãos, 

com o sangue de mil meninos, amém! 

D. Sebastião ressuscitou! 

S. Tomé passou por aqui? 

Passou, sim senhor. 

Terra de Deus! Terra de minha bisavó 

que dançou uma valsa com D. Pedro II. 

São Tomé passou por aqui? 

Tranca a porta, gente, Cabeleira aí vem! 

Sertão! Pedra Bonita! 

Tragam uma virgem para D. Lampião!

Espécie de apresentação do Nordeste, da paisagem geral do

livro, lembrando e celebrando o clima, lugares, as lendas, a

história, os cangaceiros etc.

Referência a vários elementos do Nordeste:

O sol, as enchentes e as secas; a lenda de São Tomé, a

referência ao massacre de Pedra Bonita em que mais de 90

pessoas morreram para ressuscitar Dom Sebastião, ao

bandido Cabeleira (José Gomes), um dos mais famosos do

Nordeste, ao Sertão, Pajeú, líder revolucionário de Canudos,

e também a Lampião, o mais famoso dos cangaceiros, ou

seja, o Nordeste aparece no poema representado por vários

elementos climáticos, religiosos, míticos e inclusive a

violência e o cangaço.

Há uma discreta alusão à origem aristocrática do poeta

quando diz que sua bisavó dançou com D. Pedro II.

(A Tragédia da Pedra Bonita, ocorreu num lugar denominado

Pedra Bonita, localizado na Serra Formosa, no município de

São José do Belmonte, sertão de Pernambuco. Um grupo de

fanáticos sebastianistas, liderado por João Antônio dos

Santos, fundou uma espécie de reino, com leis e costumes

próprios e diferentes dos do resto do país, um padre

conseguiu convencer João Antônio a parar com a pregação,

mas este deixou em seu lugar o cunhado João Ferreira, que

se tornou o mais fanático e cruel rei da Pedra Bonita. Ele

pregava que Dom Sebastião só voltaria se a Pedra Bonita

fosse banhada com sangue de pessoas e animais,

comandando um grande massacre de pessoas inocentes em

maio de 1838. Entre os dias 14 e 18 morreram 87 pessoas.

No dia 18 de maio o arraial da Pedra Bonita foi destruído

pelas forças comandadas pelo major Manoel Pereira da

Silva.)

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HISTÓRIA

Era princesa.

Um libata a adquiriu por um caco de espelho.

Veio encangada para o litoral,

arrastada pelos comboieiros.

Peça muito boa: não faltava um dente

e era mais bonita que qualquer inglesa.

No tombadilho o capitão deflorou-a.

Em nagô elevou a voz para Oxalá.

Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.

Navio guerreiro? não, navio tumbeiro.

Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,

depois foi possuída pelos marinheiros,

depois passou pela alfândega,

depois saiu do Valongo,

entrou no amor do feitor,

apaixonou o Sinhô,

enciumou a Sinhá,

apanhou, apanhou, apanhou,

Fugiu para o mato.

Capitão do campo a levou.

Pegou-se com os orixás:

fez bobó de inhame

para Sinhô comer,

fez aluá para ele beber,

fez mandinga para o Sinhô a amar.

A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:

Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga.

avança na branca e me vinga.

Exu escangalha ela, amofina ela,

amuxila ela que eu não tenho defesa de homem,

sou só uma mulher perdida neste mundão.

Neste mundão.

Louvado seja Oxalá.

Para sempre seja louvado.

Esse texto traz imagens da mulher silenciada quando registra a voz abafada e agônica da escrava comunicando-se com seus deuses. Esse painel assinala o sofrimento da mulher negra da sua captura na África ao processo de domesticação em terras brasileiras. Em uma narrativa do sofrimento, o poema História registra o início da relação de subordinação imposta à africana indefesa diante da tirania da colonização. Embora a tensão textual não questione as contradições próprias da sociedade escravocrata, seus significantes apresentam espaços para novas interpretações, quando registra a barbárie desnuda e a exploração do corpo da negra como um objeto sexual do homem branco

Nesse poema, o silêncio da negra é rompido pelos gritos de um povo que busca o apoio do sobrenatural para suportar a opressão da modernização. Com o uso de uma abordagem folclórica, o poema ganha um colorido que lhe dá uma visão amena do atraso: ”sou só uma mulher perdida neste mundão/ Neste mundão/ Louvado seja Oxalá/ Para sempre.

Tal desejo de salvação revela-se por meio de superstições, crenças, preconceitos hábitos e costumes, numa atmosfera cheia da fala popular afro-brasileira. Para Gilberto Freyre, a plasticidade local é o ponto máximo da poesia regional de Jorge de Lima: “dentre aqueles valores, nenhum mais cheio de substância particularmente brasileira, ao mesmo tempo em que humana em sua essência que as tradições amadurecidas, nas terras de massapê do Nordeste, à sombra das casas grandes, das igrejas, dos sobrados” (FREYRE, 1997, p. 93). Para hoje, podemos dizer que Jorge de Lima não macaqueiam a história da opressão sofrida pelas mulheres negras como destacado em “História”

Mesmo com uma imagem pitoresca da mulher, o poema “História” revela uma posição ideológica que apresenta um certo desconforto da arte. Assim, os elementos das múltiplas violências corporais e morais impostas à princesa negra funcionam como subtextos políticos que acrescentam, no mínimo, uma desconfiança acerca da tão comemorada democracia racial brasileira. Esse poema não disfarça que a dominação e o convívio entre o colonizador e os colonizados não foram nada pacíficos.

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DEMOCRACIA

Punhos de redes embalaram o meu canto

para adoçar o meu país, ó Whitman.

Jenipapo coloriu o meu corpo contra os maus-olhados,

catecismo me ensinou a abraçar os hóspedes,

carumã me alimentou quando eu era criança,

Mãe-negra me contou histórias de bicho,

moleque me ensinou safadezas,

massoca, tapioca, pipoca, tudo comi,

bebi cachaça com caju para limpar-me,

tive maleita, catapora e ínguas,

bicho-de-pé, saudade, poesia;

fiquei aluado, mal-assombrado, tocando maracá,

dizendo coisas, brincando com as crioulas,

vendo espíritos, abusões, mães-d’água,

conversando com os malucos, conversando sozinho,

emprenhando tudo que encontrava,

abraçando as cobras pelos matos,

me misturando, me sumindo, me acabando,

para salvar a minha alma benzida

e meu corpo pintado de urucu,

tatuado de cruzes, de corações, de mãos-ligadas,

de nomes de amor em todas as línguas de branco,

[ de mouro ou de pagão.

Em “Democracia”, o eu-lírico se põe como aquele que aglutina diferentes culturas, sendo estas representadas pelo vocabulário típico a cada uma. Percebemos, no poema, palavras que nos remetem às culturas indígena (jenipapo, carumã, tapioca...), negra (Mãe-negra, moleque, crioulas...) e branca (catecismo, saudade, cruzes...). Essa posição ocupada pelo eu-lírico pode ser interpretada também como sendo o próprio Brasil, já que com o processo de colonização houve uma miscigenação não só racial, mas também cultural.

O início do poema (“Punhos de rede embalaram meu canto”), pode aludir à imagem do branco, em sua Casa Grande, pois o verso que o procede (“para adoçar o meu país, ó Whitman.”) leva-nos a interpretar esse “adoçar” não só como a ação de tornar algo agradável, mas também a associá-lo à imagem do negro trabalhando nas plantações de cana-de-açúcar.

É importante comentar sobre essa referência ao poeta norte-americano Walt Whitman (1819 – 1892). O eu lírico do poema faz uma referência a Whitman, que é o poeta da “democracia” (fazendo uma intertextualidade com o título da poesia).

O eu desse poema não demonstra uma possível tensão em seu ser pelo fato de abarcar culturas tão diferentes, apesar de reconhecer que nem tudo aquilo que ele absorveu foi positivo, já que esse encontro de culturas trouxe também doenças não só físicas (“tive maleita, catapora e ínguas”), mas também espirituais como a saudade e a poesia.

O eu lírico se mostra múltiplo, que abarca dentro de si várias culturas, mas que faz de tal maneira que não privilegia uma em relação à outra. Em “Democracia”, vemos como o passado ainda se mostra ativo no presente, percebida não só na superfície do poema, mas também em sua estrutura. “Democracia” reflete sobre a formação cultural de seu país, mas que também reflete sobre o fazer poético, isso tudo relacionado à questão da memória. É um poema que nos permite refletir sobre o homem, homem que será, tal qual seu eu lírico, sempre múltiplo, independente do lugar ou do tempo em que se encontre.

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RETRETA DO VINTE

O cabo mulato balança a batuta,

meneia a cabeça, acorda com a vista

os bombos, as caixas, os baixos e as trompas.

(No centro da Praça o busto de D. Pedro escuta.) —

Batuta pra esquerda: relincham clarins,

requintas, tintins e as vozes meninas da banda do 20.

Batuta à direita: de novo os trombones

e as trompas soluçam. E os bombos e as caixas: ban-ban!

Vêm logo operários, meninas, cafuzas,

mulatos, portugas, vem tudo pra ali.

Vem tudo, parecem formigas de asas

rodando, rodando em torno da luz.

Nos bancos da Praça conversas acesas,

apertos, beijocas, talvezes.

D. Pedro II espia do alto.

(As barbas tão alvas

tão alvas nem sei!)

E os pares passeiam,

parece que dançam,

que dançam ciranda,

em torno do Rei.

Poema importantíssimo do ponto de vista do

ritmo e da sonoridade, visto que o poema

tanta imitar o som da banda que toca na

praça, uma vez que retreta significa:1)

Formatura de soldados à hora de recolher

para ver se todos estão presentes; 2) Toque

militar que anuncia tal formatura; 3) Toque de

banda de música em praça pública. No caso

do poema, percebe-se que o terceiro

significado é o mais acertado.

O regente ou maestro da banda é o cabo

mulato, que aos seus comandos da batuta,

fazem com que todos dancem, inclusive a

estátua de Dom Pedro escuta e espia

(prosopopeias).

Mas o ponto alto do poema é a presença de

várias aliterações que vão dar a

musicalidade do poema, criando uma

harmonia imitativa do toque da banda.

Além da onomatopeia ban-ban, entre outras,

imitando o som das caixas. Os vários

instrumentos musicais estão enumerados no

poema (clarins, trombones, trompas, caixas,

bombos), assim como todos que vêm ouvir e

dançar ao som da banda, também de todas

as raças e classes (operários, portugas,

cafuzas, mulatos), enfim, este poema lembra

a democracia, porém, ao som do cabo

mulato, da banda do vinte e da música.

O poema “Retrata do Vinte” lembra o final do poema “Jardim da Praça da Liberdade” de Carlos Drummond de Andrade, onde aparece uma banda “preta” tocando, a sonoridade do poema é composta por aliterações.

“De repente uma banda pretavermelha retinta suandobate um dobrado batutana doçurado jardim.

Repuxos espavoridos fugindo.”

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MARIA DIAMBA

Para não apanhar mais

falou que sabia fazer bolos:

virou cozinha.

Foi outras coisas para que tinha jeito.

Não falou mais.

Viram que sabia fazer tudo,

até molecas para a Casa-Grande.

Depois falou só,

só diante da ventania

que vinha do Sudão;

falou que queria fugir

dos senhores e das judiarias deste mundo

para o sumidouro.

O poema retrata a trajetória de vida de Maria Diamba, uma

mulher negra que para se livrar do jugo da chibata, foi ser

cozinheira na Casa-Grande. E de tanto lidar na cozinha,

transformou-se, num efeito simbiótico, na própria coisa em

que trabalhava: na cozinha. Mas não foi somente isso,

também “Foi outras coisas para que tinha jeito”, pois “Viram

que sabia fazer tudo”. Inclusive, sabia fazer, muito

provavelmente não por vontade própria, “até molecas para

a Casa-Grande”. E tem-se aí, mas não somente aí, um eu-

lírico ciente e consciente do abuso sexual que as mulheres

negras sofriam, por exemplo. Um eu-lírico também

consciente de que essa mulher que, num primeiro momento

até falava, “Depois falou só”. Ou por que ninguém a ouvia,

ou por que, com a idade avançada, pode ter meio que

perdido o juízo e, por isso, divagava sozinha, divagava “só

diante da ventania / que vinha do Sudão”. Contudo, senil,

louca ou não, essa mulher tinha consciência da sua triste

condição e das injustiças sociais, pois “falou que queria

fugir / dos senhores e das judiarias deste mundo”. Crítico,

engajado, lírico, eis o eu-lírico do poema de Maria Diamba.

Eu-lírico que aborda, de fato, uma temática afro. Um eu-lírico que se mantém impessoal para falar de um problema social.

Diamba significa “maconha” em

quimbundo, portanto, para alguns, a

personagem podia se refugiar das

“judiarias” desse mundo fumando

maconha e por isso falava sozinha.

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ESSA NEGRA FULÔ

Ora, se deu que chegou (isso já faz muito tempo) no banguê dum meu avô uma negra bonitinha, chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) — Vai forrar a minha cama pentear os meus cabelos, vem ajudar a tirar a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!ficou logo pra mucama pra vigiar a Sinhá, pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!(Era a fala da Sinhá) vem me ajudar, ó Fulô, vem abanar o meu corpo que eu estou suada, Fulô! vem coçar minha coceira, vem me catar cafuné, vem balançar minha rede, vem me contar uma história, que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa que vivia num castelo que possuía um vestido com os peixinhos do mar. Entrou na perna dum pato saiu na perna dum pinto o Rei-Sinhô me mandou que vos contasse mais cinco".

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Vai botar para dormir esses meninos, Fulô! "minha mãe me penteou minha madrasta me enterrou pelos figos da figueira que o Sabiá beliscou".

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá

No poema Essa negra Fulô, o autor volta sua atenção para a memória dos engenhos, para as práticas escravocratas (violência, opressão, humilhações, castigos etc.). Contudo, ao realizar essa faceta, Jorge de Lima articula a dura vida e as duras condições existenciais a que eram submetidos os escravos aos aspectos sensuais e sedutores das escravas. Com isso, ele toma como foco a beleza física das escravas, valorizando assim os atributos físicos e as belezas da raça afro. Nesta obra, Jorge de Lima se debruça sobre as condições existenciais dos escravos, que eram concebidos como objetos.

Para isso, ele fala do cotidiano da escrava Nega Fulô, retratando seus trabalhos domésticos, que eram solicitados por sua sinhá. São exemplos que podem ilustrar esses trabalhos domésticos: ajudar a tirar a roupa, forrar a cama, pentear cabelos, coçar as coceiras da sinhá, catar cafuné, balançar a rede, contar histórias etc..

Além disso, o autor retrata os castigos, ou melhor, as práticas punitivas a que era submetida a Nega Fulô, pois foi acusada de roubo pela Sinhá.

No entanto, ao ser castigada (açoitada), seu senhor se rende aos encantos da escrava e, por conseguinte, às belezas afro. Irrompe, dessa maneira, a perspectiva sensual e sexual.

Finalmente, ao ver Fulô, outra vez, desvestir-se do cabeção e da saia, encolhendo-se nua como veio ao mundo, o Sinhô sentiu o fogo que lhe esbraseou as entranhas, perdeu o juízo, azuniu a chibata, agarrou a mucama e, quanto ao resto, nem é preciso que agora se diga. Só haveria de dar, como deu, no choroso lamento de uma Sinhá ferida e enciumada:

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê, cadê teu Sinhôque nosso Senhor me mandou?

E logo:

Ah! foi você que roubou,foi você, negra Fulô?

(segundo a apreciação de alguns, Jorge de Lima se valera de um olhar lírico sentado em estereótipos pejorativos enraizados na etnia e na sexualidade, pois que a enxergar a negra como gatuna, lúbrica, maliciosa, matreira e subserviente, isto é, segundo a receita do homem branco, assim como ditada pelos ecos da escravidão.)

É nesse sentido que Jorge de Lima, em sua escrita, articula a difícil vida dos escravos à beleza e à sedução das negras, estas representadas, nesta obra, pela Nega Fulô.  

O poema está composto de versos curtos, com um ritmo que se aproxima de ritmos musicais afro-brasileiros, os versos são escritos, em sua maioria, de sete sílabas poéticas (redondilhos maiores ou heptassílabos).

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Chamando a negra Fulô!)Cadê meu frasco de cheiroQue teu Sinhô me mandou?— Ah! Foi você que roubou!Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra levar couro do feitor. A negra tirou a roupa, O Sinhô disse: Fulô! (A vista se escureceu que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê meu lenço de rendas, Cadê meu cinto, meu broche, Cadê o meu terço de ouro que teu Sinhô me mandou? Ah! foi você que roubou! Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar sozinho a negra Fulô. A negra tirou a saia e tirou o cabeção, de dentro dêle pulou nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê, cadê teu Sinhôque Nosso Senhor me mandou? Ah! Foi você que roubou, foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

O poema a seguir é uma releitura de Esse Negra fulô:

Outra Negra Fulô, de Oliveira Silveira

O sinhô foi açoitara outra nega Fulô- ou será que era a mesma?A nega tirou a saiaa blusa e se pelouO sinhô ficou tarado,largou o relho e se engraçou.A nega em vez de deitarpegou um pau e sampounas guampas do sinhô.- Essa nega Fulô!Esta nossa Fulô!,dizia intimamente satisfeitoo velho pai Joãopra escândalo do bom Jorge de Lima,seminegro e cristão.E a mãe-preta chegou bem cretinafingindo uma dor no coração.- Fulô! Fulô! Ó Fulô!A sinhá burra e besta perguntavaonde é que tava o sinhôque o diabo lhe mandou.- Ah, foi você que matou!- É sim, fui eu que matou –disse bem longe a Fulôpro seu nego, que levouela pro mato, e com eleaí sim ela deitou.Essa nega Fulô!Essa nega Fulô!

Duas importantes figuras na cultura afro-brasileira suspiram esses versos de exaltação à Fulô: “o velho pai João” e “a mãe-preta”. Ambos “intimamente satisfeitos” se orgulham do que vêem e testemunham tudo “pra escândalo do bom Jorge de Lima/ seminegro e cristão”.

O testemunho dos dois é importante para que não falseiem novamente a história de Fulô, que nesta nova versão não demonstra fragilidade ou servilismo.

A sinhá, ao invés de ser retratada como uma vítima da sensualidade de Fulô e do suposto comportamento de mero paciente do sinhô no ato sedutor desta é caracterizada como “burra e besta”. Se na versão de Jorge de Lima, Fulô recebe os atributos de quem não possui cultura ou história, nesta, a sinhá é lesada pela sua falta de discernimento.

Quando ela pergunta sobre seu sinhô acusando-a do crime, esta lhe responde de forma assertiva e sem constrangimentos, ela ganha voz e assume seu ato “- É sim, fui eu que matou”, não se comportando de forma serviçal, demonstrando autonomia com relação ao que fez. E sua autonomia se estende à escolha de seu parceiro sexual. Ao final, ela foge com “seu nego, que levou/ ela pro mato, e com ele/ aí sim ela deitou”.

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BANGUÊ

Cadê você meu país do Nordesteque eu não vi nessa Usina Central Leão de minha terra? Ah! Usina, você engoliu os banguezinhos do país das Alagoas!Você é grande, Usina Leão! Você é forte, Usina Leão! As suas turbinas têm o diabo no corpo! Você uiva! Você geme! Você grita!Você está dizendo que U.S.A é grande! Você está dizendo que U.S.A. é forte! Você está dizendo que U.S.A. é única! Mas eu estou dizendo que V. é triste como uma igreja sem sino, que você é mesmo como um templo evangélico! Onde é que está a alegria das bagaceiras? O cheiro bom do mel borbulhando nas tachas? A tropa dos pães de açúcar atraindo arapuás? Onde é que mugem os meus bois trabalhadores? Onde é que cantam meus caboclos lambanceiros? Onde é que dormem de papos para o ar os bebedores de resto [de alambique?E os senhores de espora? E as sinhás-donas de cocó?E os cambiteiros, purgadores, negros queimados na fornalha? O seu cozinhador, Usina Leão, é esse tal Mister Cox que tira [da cana o que a cana não pode dar e que não deixa nem bagaço com um tiquinho de caldo

O poema trata do desaparecimento dos banguês, tipo de engenho de cana-de-açúcar a vapor que utiliza o bagaço de cana como combustível, que foram substituídos pelas usinas, de capital americano, pela mecanização (a usina Leão dos USA);

O poema faz prosopopeias para dizer que a usina é forte, mas para o eu lírico, a usina é triste, pois acabou com os banguês

Compara a usina com um templo evangélico, as igrejas sem sino, fazendo referência ao protestantismo dos americanos;

Outra referência ao estrangeiro é Mister Cox, que acaba com tudo, pois o que interessa é o dinheiro.

A partir daí o eu lírico desfila lembranças, todas as coisas que acabaram com a chegada da usina: a alegria das bagaceiras, os senhores de engenho, os trabalhadores dos banguês, o açúcar, o mel, a cachaça, os pães, os vendedores, os pregões, as comidas, as sinhás nas fazendas, os tachos, os nomes dos banguês da sua infância, entre tantas outras coisas que deixaram de existir e causam tristeza e saudades do eu lírico.

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para as abelhas chupar!O meu banguezinho era tão diferente,vestidinho de branco, o chapeuzinho do telhado sobre os olhos,fumando o cigarro do boeiro pra namorar a mata virgem. Nos domingos tinha missa na capelae depois da missa uma feira danada:a zabumba tirando esmola para as almas;e os cabras de faca de ponta na cintura,a camisa por fora das calças:“Mão de milho a pataca!”“Carretel marca Alexandre a doistões!”Cadê você meu país de banguêscom as cantigas da boca da moenda:“Tomba-cana João que eu já tombei!”E o eixo de maçaranduba chorandotalvez os estragos que a cachaça ia fazer!E a casa dos cobres com o seu mestre de açúcar potoqueiro,com seu banqueiro avinhadoe as tachas de mel escumando,escumando como cachorro danado. E o banguê que só sabia trabalhar cantando, cantava em cima das tachas:“Tempera o caldo mulher que a escuma assobe...” Cadê a sua casa-grande, banguê, com as suas Dondons, com as suas Tetês,com as suas Benbens,com as suas Donanas alcoviteiras?Com seus Totôs e seus Pipius corredores de cavalhada?E as suas molecas catadoras de piolho,e as suas negras Calus, que sabiam fazer munguzás,

manuês, cuscuz,

e suas sinhás dengosas amantes dos banhos de rioe de redes de franja larga!ZEFA LAVADEIRA(Trecho de A mulher obscura)

Uma trouxa de roupa é um mundo animado de anáguas, de corpinhos, de fronhas, de lençóis e toalhas servis; em

resumo: dos homens e suas preocupações.

E qual é a maior força desse mundo? Onde o segredo das suas atividades?

— Olha o amor, Zefa, — olha os lençóis — torna-nos semelhantes aos deuses, faz vibrar em nós o poema dos

plasmas que neles se geraram. Por eles, retrocedendo pelo caminho de certas memórias obscuras, voltamos às

Formas primeiras, às Energias inteligentes.

E desfazendo aquela trouxa de roupa com o desembaraço de Jeová, compondo e recompondo um caos, mostra-me

peça por peça, todas aquelas forças mencionadas, lodos genésicos, ou salivas do Espírito que adejou sobre as

águas.

Mas Zefa deu um muxoxo, arrepanhando as fraldas, arrastando os pés. Zefa não tinha antenas para a torrente

declamatória interior de minha juventude em dias de convalescença.

Pela vereda que vinha do rio, surgiu cantarolando uma cafuza nova, com o pote à cabeça, o braço direito erguido,

segurando a rodilha.

E senti-a em tudo, — na algazarra dos ramos, na toada das águas despenhadas, nos vegetais variegados como

arraiais, no tumulto dos seres que sofrem, amam e se perpetuam correndo a vida.

Josefa — lavadeira, porque se julga a sós, vai despindo as belezas selvagens de ninfa cafuza.

No remanso em que bate a roupa, há bambus e ingazeiros pelas margens. Josefa entra o caudal até as coxas

morenas, a camisa arregaçada, o cabeção de crochê impelido pelos seios duros, tostados de soalheiras.

Cadê os nomes de você, banguê? Maravalha, Corredor, Cipó branco, Fazendinha, Burrego-dágua, Menino Deus! Ah! Usina Leão, você engoliu os banguezinhos do país das Alagoas! Cadê seus quilombos com seus índios armados de flecha, com seus negros mucufas que sempre acabavam vendidos, tirando esmola para enterrar o rei do Congo?

“Folga negroBranco não vem cá!Si vinhé,Pau há de levá!”

Você vai morrer, banguê! Ainda ontem sêo Major Totonho do Sanharó

esticou a canela. De noite se tomou uma caninha

pra se ter força de chorar.

E se fez sentinela. E você, banguezinho que faz tudo cantando foi cantar nos ouvidos do defunto:

“Totonho! Totonho! Ouve a voz de quem te chama vem buscar aquela alma que há treis dias te reclama!” Banguê! E eu pensei que estavam cantando nos ouvidos de você:

Banguê! Banguê! Ouve a voz de quem te chama!”

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O braço valente arroja o pano contra a pedra de bater, e a axila cobre-se e descobre-se, piscando a tentação de

arrochos e rendições cheias de saciedades. Aqui, toda lavadeira de roupa é boa cantaderia. A cantiga é uma

corruptela de velhas toadas num tom langoroso, alimentado de sofreguidões, de desejos incontidos, e de

lamentações incorrespondidas.

Depois de lavar a roupa dos outros, Zefa lava a roupa que a cobre no momento. Depois, deixa-se corando sobre o

capim. Então Zefa lavadeira ensaboa o seu próprio corpo, vestido do manto de pele negra com que nasceu. Outras

Zefas, outras negras vêm lavar-se no rio. Eu estou ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu estou relembrando a

minha infância. A água, levada nas cuias, começa o ensaboamento; desce em regatos de espuma pelo dorso, e

some-se entre as nádegas rijas. As negras aparam a espuma grossa, com as mãos em concha, esmagam-na contra

os seios pontudos, transportam-na com agilidade de símios, para os sovacos, para os flancos; quando a pasta

branca de sabão se despenha pelas coxas, as mãos côncavas esperam a fugidia espuma nas pernas, para conduzi-

la aos sexos em que a África parece dormir o sono temeroso de Cam.

PASSARINHO CANTANDO

Congos, cabindas, angolas,

também de Cacheo e de Bissao,

Maranhão, Pernambuco, Pará,

Fernando Pó, São Tomé, Ano Bom,

Serra Leoa, Serra Leoa, Serra Leoa!

Cabo Verde, Moçambique,

duas cozinheiras, três belas mucamas, óleo de coco,

(o boto também gosta de teu sangue Sudão).

Senhor Manuel Teixeira dos Santos

vem de redingote, suíças e procuração.

Ana Maria doceira de meu pai

amancebou-se com o alferes;

na segunda geração:

nem culatronas, nem pés apalhetados,

nem panos-da-costa, nem figas, nem aluá.

Na terceira nasceu Maricota, filha-de-santo,

checheré, rainha suicidou-se com fogo.

Deixou uma filha sagrada com água benta,

fechada com mandinga, branca, casada, com chácara.

Cam é um dos filhos de Noé, que, ao ver a nudez do pai embriagado e denunciá-la aos irmãos, foi reduzido à

condição de escravo desses por maldição paterna. À descendência camita, correspondente ao povo africano,

caberia expiar a culpa de seu antepassado, reduzida à condição escrava.

O poema é narração de uma cena típica do Nordeste, as lavadeiras no rio em seu ofício, mas culmina com a

sexualização do corpo feminino, como ocorre em outros poemas: Essa negra fulô”, “O banho das negras”,

“Madorna de Iaiá”, “Ancila Negra”, entre outros. Alguns desses poemas trazem à tona lembranças afetivas da

convivência com amas e criadas negras e não escondem o erotismo que as mulheres negras lhe provocam.

O poema Passarinho cantando parece resumir

de maneira bem modernista a miscigenação

das raças brasileiras.

Homens e mulheres que vieram da África para

o Nordeste vão se misturando, se

amancebando, se casando, gerando mestiços,

em muitas gerações, levando no sangue

marcas dos seus antepassados: cozinheiras,

mucamas, senhores de engenho, até com o

boto há descendentes (de acordo com a lenda,

um boto cor-de-rosa sai dos rios amazônicos

nas noites de festa junina. Com um poder

especial, consegue se transformar num lindo,

alto e forte jovem vestido com roupa social

branca. Ele usa um chapéu branco para

encobrir o rosto e disfarçar o nariz grande. Vai

a festas e bailes noturnos em busca de jovens

mulheres bonitas. Com seu jeito galanteador e

falante, o boto aproxima-se das jovens

desacompanhadas, seduzindo-as. Logo após,

consegue convencer as mulheres para um

passeio no fundo do rio, local onde costuma

engravidá-las. Na manhã seguinte volta a se

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Há na sua pele três estrelas marinhas, duas estrelas-d'alva,

a Lua, a Água-viva, a Fome de abraços.

Há no seu sangue:

trê moças fugidas, dois cangaceiros,

um pai-de-terreiro, dois malandros, um maquinista,

dois estourados.

Nasceu uma índia,

uma brasileira,

uma de olhos azuis,

uma primeira comunhão,

uma que deu seus cachos ao Senhor da Paixão,

uma que tinha ataques,

uma que foi ser freira,

uma que nasceu em Londres e é parenta do Rei.

O passarinho ficou órfão

cantando, catando penas só.

OLÁ NEGRO

Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos e a quarta e a quintagerações de teu sangue sofredor tentarão apagar tua cor!E as gerações dessas gerações quando apagarem não apagarão de suas almas, a tua alma , negro!Pai-João, Mãe-Negra, Fulo, Zumbi,negro-fujão, negro cativo, negro rebeldenegro cabinda, negro congo, negro ioruba,negro que foste para o algodão de U.S.Apara os canaviais do Brasil,para o tronco, para o colar de ferro, para a cangade todos os senhores do mundo;eu melhor compreendo agora os teus bluesnesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá, Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!E és tu que a alegras ainda com os teus jazzes,com os teus sons, com os teus lundus!Os poetas, os libertadores, os que derramarambabosas torrentes de falsa piedadenão compreendiam que tu ias rir!E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a tua bondademudariam a alma branca cansada de todas as ferocidades!

Olá, Negro!

Pai-João, Mãe-Negra, Fulo, Zumbique traíste as Sinhás nas Casas Grandes,

O poema Passarinho cantando parece resumir

de maneira bem modernista a miscigenação

das raças brasileiras.

Homens e mulheres que vieram da África para

o Nordeste vão se misturando, se

amancebando, se casando, gerando mestiços,

em muitas gerações, levando no sangue

marcas dos seus antepassados: cozinheiras,

mucamas, senhores de engenho, até com o

boto há descendentes (de acordo com a lenda,

um boto cor-de-rosa sai dos rios amazônicos

nas noites de festa junina. Com um poder

especial, consegue se transformar num lindo,

alto e forte jovem vestido com roupa social

branca. Ele usa um chapéu branco para

encobrir o rosto e disfarçar o nariz grande. Vai

a festas e bailes noturnos em busca de jovens

mulheres bonitas. Com seu jeito galanteador e

falante, o boto aproxima-se das jovens

desacompanhadas, seduzindo-as. Logo após,

consegue convencer as mulheres para um

passeio no fundo do rio, local onde costuma

engravidá-las. Na manhã seguinte volta a se

Último poema do livro. Trata do dilema entre o

branqueamento da raça e a perpetuação de

uma “alma negra”.

Mesmo após gerações de mestiçagem,

mantem-se uma memória ancestral,

personificada no poema nos negros ancestrais:

Pai-João, Mãe Negra, Fulô, Zumbi, no escravo,

no negro fugitivo, no de Cabinda, do Congo,

ioruba, nos negros que trabalharam no Brasil e

nos Estados Unidos. É nesse sentimento de

memória da raça que a raízes africanas devem

se fortalecer, por exemplo, na sobrevivência das

suas músicas como o jazz, o blues, os lundus,

na sua religião, na sua alegria.

O poema diz que a raça que o enforca (o

branco), enforca-se no seu tédio, ou seja, os

brancos são uma raça triste, mostrando um

conflito de raças, de grupos étnicos, de

gerações, de uma cultura branca que tenta

apagar uma cultura negra, mas que a cultura

negra deve resistir e resistirá, o próprio vocativo

que é o título do poema, saúda o negro para

lembrar as suas origens. O poema se encerra

com uma gargalhada da raça negra, que

metaforicamente seria o dia nascendo,

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que cantaste para o sinhô dormir,que te revoltaste também contra o Sinhô;quantos séculos há passadoe quantos sobre a tua noite,sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre tuas alegrias!

Olá, Negro!

negro que foste para o algodão de U.S.Apara os canaviais do Brasil,quantas vezes as carapinhas hão de embranquecerpara que os canaviais possam dar mais doçura à alma humana?

Olá, Negro!

Negro, ó proletário sem perdão,proletário, bom,proletário bom!BluesJazzes,songs,lundus…Apanhavas com vontade de cantar,choravas com vontade de sorrircom vontade de fazer mandinga para o branco ficar bom,para o chicote doer menos,para o dia acabar e negro dormir!Não basta iluminares hoje as noites dos brancos com teus jazzescom tuas danças, com tuas gargalhadas!Olá, Negro! O dia está nascendo!O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem vindo?

Olá, Negro!Olá, Negro!

MÊS DE MAIO

Mês de maio!

Ai! mês bem feito

que tem o dia primeiro

pra ser Dia do Trabalho.

Comemorando este dia

vamos todos descansar!

Mês de maio, mês de maio,

ai, mesinho brasileiro!

O Brasil quis fazer anos

escolheu seu dia três. —

Comemorando este dia

vamos, meu bem, descansar!

Mês de maio, fora os domingos,

fora os dias emprensados

Último poema do livro. Trata do dilema entre o

branqueamento da raça e a perpetuação de

uma “alma negra”.

Mesmo após gerações de mestiçagem,

mantem-se uma memória ancestral,

personificada no poema nos negros ancestrais:

Pai-João, Mãe Negra, Fulô, Zumbi, no escravo,

no negro fugitivo, no de Cabinda, do Congo,

ioruba, nos negros que trabalharam no Brasil e

nos Estados Unidos. É nesse sentimento de

memória da raça que a raízes africanas devem

se fortalecer, por exemplo, na sobrevivência das

suas músicas como o jazz, o blues, os lundus,

na sua religião, na sua alegria.

O poema diz que a raça que o enforca (o

branco), enforca-se no seu tédio, ou seja, os

brancos são uma raça triste, mostrando um

conflito de raças, de grupos étnicos, de

gerações, de uma cultura branca que tenta

apagar uma cultura negra, mas que a cultura

negra deve resistir e resistirá, o próprio vocativo

que é o título do poema, saúda o negro para

lembrar as suas origens. O poema se encerra

com uma gargalhada da raça negra, que

metaforicamente seria o dia nascendo,

O poema, de tom exclamativo, evidencia as

comemorações e datas do mês de Maio.

O dia do trabalho (o primeiro de maio), o dia

abolição da escravatura (o 13 de maio), o Corpus

Christi, o fato do mês de maio ser o mês de

Nossas Senhora e também da antiga data em

que se comemorava a descoberta do Brasil, dia 3

de maio (hoje se comemora em 21 de abril).

O poema mescla a cultura negra (a abolição, Pai

João) com a cultura branca, principalmente com

a religiosidade (Nossa Senhora, Corpus Christi)

quando algumas datas são comemoradas.

Há referências à escravidão (Quem trabalhou

mais que Pai João /cavando a terra com a

enxada?/ Dia 13 de Pai João!), mas há também

referências à preguiça e a sensualidade brasileira

(o brasileiro só deve /pensar mesmo em

descansar! / Meu bem... vamos nos deitar?),

assim o poema mescla crítica e humor.

A linguagem do poema é predominantemente

afetiva, pelos diminutivos (“mesinho brasileiro”,

“mês santinho”) e também pelo vocativo “meu

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que a gente deve guardar,

tem dia santo de guarda

que é o dia nove de maio,

tem o maior dia santo

dia do Corpo de Deus.

Comemorando esses dias

o brasileiro só deve

pensar mesmo em descansar!

Quem trabalhou mais que Pai João

cavando a terra com a enxada?

Dia 13 de Pai João!

Meu bem... vamos nos deitar?

Mês de maio, mês santinho!

Nossa Senhora escolheu

este mês pra ser mês dela...

Nossa Senhora não deixe

este mesinho acabar.

PAI JOÃO

 

Pai João secou como um pau sem raiz. -

Pai João vai morrer.

Pai João remou nas canoas,

cavou a terra,

fez brotar do chão a esmeralda das folhas:

—café, cana, algodão.

Pai João cavou mais esmeraldas

que Paes Leme.

A filha de Pai João tinha um peito de

Turina para os filhos de ioio mamar.

Quando o peito secou a filha de Pai João

também secou agarrada num

ferro de engomar.

A pele de Pai João ficou na ponta

dos chicotes.

O poema, de tom exclamativo, evidencia as

comemorações e datas do mês de Maio.

O dia do trabalho (o primeiro de maio), o dia

abolição da escravatura (o 13 de maio), o Corpus

Christi, o fato do mês de maio ser o mês de

Nossas Senhora e também da antiga data em

que se comemorava a descoberta do Brasil, dia 3

de maio (hoje se comemora em 21 de abril).

O poema mescla a cultura negra (a abolição, Pai

João) com a cultura branca, principalmente com

a religiosidade (Nossa Senhora, Corpus Christi)

quando algumas datas são comemoradas.

Há referências à escravidão (Quem trabalhou

mais que Pai João /cavando a terra com a

enxada?/ Dia 13 de Pai João!), mas há também

referências à preguiça e a sensualidade brasileira

(o brasileiro só deve /pensar mesmo em

descansar! / Meu bem... vamos nos deitar?),

assim o poema mescla crítica e humor.

A linguagem do poema é predominantemente

afetiva, pelos diminutivos (“mesinho brasileiro”,

“mês santinho”) e também pelo vocativo “meu

Pai João é o personagem folclórico,

símbolo do velho escravo negro, sofredor e

submisso. (corresponde também ao Uncle

Tom, de Cabana de Pai Tomás, de Harriet

Beecher Stowe).

O poema trata dos árduos trabalhos que o

negro sofreu para sustentar os ciclos

econômicos do Brasil (e até dos Estados

Unidos), na cana, no algodão, no café;

além dos seus sofrimentos e da sua

família, mulher e filhas que se tornaram

serviçais nos engenhos e na casa grande

(a filha que era mãe de leite dos brancos,

da sua mulher que foi ser objeto sexual do

senhor de engenho). Finalmente, dos seus

descendentes que ficaram mestiços (seu

sangue bom / torrão de açúcar bruto /

numa panela de leite), ou seja, o poema

trata da dívida que o país tem com o negro,

sempre explorado e maltratado (sua pele

ficou na ponta dos chicotes / a força no

cabo da enxada).

Há uma referência no poema ao

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A força de Pai João ficou no cabo

da enxada e da foice.

  A mulher de Pai João o branco furtou

para fazer mucamas.

O sangue de Paio João se sumiu no sangue bom

como um torrão de açúcar bruto

numa panela de leite. -

Pai João foi cavalo para os filhos de ioio montar.

Pai João sabia histórias tão bonitas

que davam vontade de chorar.

 

Pai João vai morrer.

Há uma noite lá fora como a pele de Pai João.

Nem uma estrela no céu.

Parece até mandinga de Pai João.

ANCILA NEGRA

Há ainda muita coisa a recalcar,

Celidônia, ó linda moleca ioruba

que embalou minha rede,

me acompanhou para a escola,

me contou histórias de bichos

quando eu era pequeno,

muito pequeno mesmo.

Há mais coisa ainda a recalcar:

As tuas mãos negras me alisando,

os teus lábios roxos me bubuiando,

quando eu era pequeno,

muito pequeno mesmo.

Há muita coisa ainda a recalcar

ó linda mucama negra,

Pai João é o personagem folclórico,

símbolo do velho escravo negro, sofredor e

submisso. (corresponde também ao Uncle

Tom, de Cabana de Pai Tomás, de Harriet

Beecher Stowe).

O poema trata dos árduos trabalhos que o

negro sofreu para sustentar os ciclos

econômicos do Brasil (e até dos Estados

Unidos), na cana, no algodão, no café;

além dos seus sofrimentos e da sua

família, mulher e filhas que se tornaram

serviçais nos engenhos e na casa grande

(a filha que era mãe de leite dos brancos,

da sua mulher que foi ser objeto sexual do

senhor de engenho). Finalmente, dos seus

descendentes que ficaram mestiços (seu

sangue bom / torrão de açúcar bruto /

numa panela de leite), ou seja, o poema

trata da dívida que o país tem com o negro,

sempre explorado e maltratado (sua pele

ficou na ponta dos chicotes / a força no

cabo da enxada).

Há uma referência no poema ao

Poema de caráter autobiográfico: o poeta teve

durante a infância uma mucama (a ancila =

serva, escrava), Celidônia, que foi sua babá e

que morreu afogada num rio.

Celidônia era, além de sua mucama (que

embala a rede, acompanha para a escola,

conta histórias), também foi a responsável por

despertar a sexualidade de Jorge de Lima

quando ainda era menino (tuas mãos negras

me alisando / teus lábios roxos me bubuiando);

A experiência sexual do menino com a sua

mucama parece algo de normal ou até típico no

contexto do nordeste da época.

O eu lírico precisa recalcar estes desejos e

lembranças (muita coisa, mais coisa ainda,

muita coisa ainda, muita coisa a recalcar e

esquecer, praticamente uma gradação), mas

parece que a principal delas é a morte do seu

“anjo negro”: o dia em que te afogaste, /sem me

avisar que ias morrer, /negra fugida na morte,/

contadeira de histórias do teu reino,/ anjo negro

degradado para sempre /Celidônia, Celidônia,

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carne perdida,

noite estancada,

rosa trigueira,

maga primeira.

Há muita coisa a recalcar e esquecer:

o dia em que te afogaste,

sem me avisar que ias morrer,

negra fugida na morte,

contadeira de histórias do teu reino,

anjo negro degradado para sempre

Celidônia, Celidônia, Celidônia!

Depois: nunca mais os signos do regresso.

Para sempre: tudo ficou como um sino ressoando.

E eu parado em pequeno,

mandingando e dormindo,

muito dormindo mesmo.

REI É OXALÁ, RAINHA É IEMANJÁ

Rei é Oxalá que nasceu sem se criar.

Rainha é Iemanjá que pariu Oxalá sem se manchar.

Grande santo é Ogum em seu cavalo encantado.

Eu cumba vos dou curau. Dai-me licença angana.

Porque a vós respeito,

e a vós peço vingança

contra os demais aleguás e capiangos brancos.

Agô!

que nos escravizam, que nos exploram,

a nós operários africanos,

servos do mundo,

servos dos outros servos.

Oxalá! Iemanjá! Ogum!

Há mais de dois mil anos o meu grito nasceu!

Poema de caráter autobiográfico: o poeta teve

durante a infância uma mucama (a ancila =

serva, escrava), Celidônia, que foi sua babá e

que morreu afogada num rio.

Celidônia era, além de sua mucama (que

embala a rede, acompanha para a escola,

conta histórias), também foi a responsável por

despertar a sexualidade de Jorge de Lima

quando ainda era menino (tuas mãos negras

me alisando / teus lábios roxos me bubuiando);

A experiência sexual do menino com a sua

mucama parece algo de normal ou até típico no

contexto do nordeste da época.

O eu lírico precisa recalcar estes desejos e

lembranças (muita coisa, mais coisa ainda,

muita coisa ainda, muita coisa a recalcar e

esquecer, praticamente uma gradação), mas

parece que a principal delas é a morte do seu

“anjo negro”: o dia em que te afogaste, /sem me

avisar que ias morrer, /negra fugida na morte,/

contadeira de histórias do teu reino,/ anjo negro

degradado para sempre /Celidônia, Celidônia,

Um dos grandes temas do livro é o sincretismo

religioso e a presença das religiões afro-

brasileiras. Sincretismo pode ser definido como

fusão de diferentes cultos ou doutrinas

religiosas, ou combinação de elementos de

crenças e práticas culturais de diversas fontes.

Oxalá é o criador que moldou os homens a

partir do barro, entidade poderosa relacionada

à criação do homem, no sincretismo é

identificado com a figura de Cristo, por ser o

criador, pela sua posição maior e eternidade.

Iemanjá é a rainha do mar ligada à água como

símbolo de fecundidade, é a mãe de todos os

orixás, no sincretismo, é identificada como

Nossa Senhora, pela virgindade e por ser a

mãe de todos.

Ogum é o orixá da guerra e do fogo, que abre

os caminhos, é associado a Santo Antônio ou

São Jorge, identificado pelo seu cavalo

encantado (na Bahia, São Jorge também é

identificado com Oxóssi);

Ainda no poema, pode ser identificado Exu, por

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FOI MUDANDO, MUDANDO

Tempos e tempos passaram

por sobre teu ser.

Da era cristã de 1500

até estes tempos severos de hoje,

quem foi que formou de novo teu ventre,

teus olhos, tua alma?

Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?

Os modos de rir, o jeito de andar,

pele,

gozo,

coração...

Negro, índio ou cristão?

Quem foi que te deu esta sabedoria,

mais dengo e alvura,

cabelo escorrido, tristeza do mundo,

Um dos grandes temas do livro é o sincretismo

religioso e a presença das religiões afro-

brasileiras. Sincretismo pode ser definido como

fusão de diferentes cultos ou doutrinas

religiosas, ou combinação de elementos de

crenças e práticas culturais de diversas fontes.

Oxalá é o criador que moldou os homens a

partir do barro, entidade poderosa relacionada

à criação do homem, no sincretismo é

identificado com a figura de Cristo, por ser o

criador, pela sua posição maior e eternidade.

Iemanjá é a rainha do mar ligada à água como

símbolo de fecundidade, é a mãe de todos os

orixás, no sincretismo, é identificada como

Nossa Senhora, pela virgindade e por ser a

mãe de todos.

Ogum é o orixá da guerra e do fogo, que abre

os caminhos, é associado a Santo Antônio ou

São Jorge, identificado pelo seu cavalo

encantado (na Bahia, São Jorge também é

identificado com Oxóssi);

Ainda no poema, pode ser identificado Exu, por

Outros poemas do livro que podem ser lidos pelo

tema do sincretismo ou das religiões afro-

brasileiras, que fazem referência aos deuses,

mitos, lendas, e entidades como Oxalá, Iemanjá,

Exu, Oxóssi, Xangô, Ogum, entre outros:

“O Medo”, “Obambá é batizado”; “Quando ele

vem”; “Xangô”; “Janaína”; “Quichimbi sereia

negra”; “Benedito Calunga”, “Exu comeu tarubá”,

“Poema de Encantação”, “Diabo Brasileiro”,

”Bicho Encantado”, “Bahia de Todos os Santos” e

indiretamente em outros poemas.

Note-se que em todos esses poemas a linguagem

utilizada é muito próxima da transcrição da

oralidade e de termos típicos do iorubá e de

outras línguas de origem africana.

O poema indaga a um interlocutor que

(pode ser o próprio país) quem teria

formado a sua alma, o modo de ser,

de rir de andar, a pele, o sangue, os

pés (metonímias do povo brasileiro).

No seu questionamento a esse

interlocutor, o eu lírico faz a seguinte

pergunta: foi negro, foi índio ou foi

cristão?

Na pergunta do eu lírico, a resposta já

está presente: foram exatamente as

três raças que foram “mudando,

mudando” e se transformaram numa

única raça.

Podemos constatar essa resposta

pelos próprios elementos que são

colocados em dúvida: o corpo, a

cultura, a linguagem, a comida, a

história, a religião, enfim, a mescla das

três raças (cabelo escorrido, orgulho

de branco, algemas...).

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desgosto da vida, orgulho de branco, algemas, resgates, alforrias?

Foi negro, foi índio ou foi cristão?

Quem foi que mudou teu leite,

teu sangue, teus pés,

teu modo de amar,

teus santos, teus ódios,

teu fogo,

teu suor,

tua espuma,

tua saliva,

teus abraços, teus suspiros, tuas comidas,

tua língua?

Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?

A NOITE DESABOU SOBRE O CAÍS

A noite desabou sobre o caispesada, cor de carvão.Rangem guindastes na escuridão.Para onde vão essas naus?Talvez para as Índias.Para onde vão?

Capitão-mor, capitão-mor,quereis me dizer onde é que ficaa ilha de São Brandão?

A noite desabou sobre o caispesada, cor de carvão.Rangem guindastes na escuridão.Donde é que vêm essas naus?

Serão caravelas? Serão negreiros ?São caravelas e negreiros.Há sujos marujos na caravelas.Há estrangeiros que ficam negrosde trabalharem no carvão.Homens da estiva trabalham, trabalham,sobem e descem nos porões,Para onde vão essas naus ?

Saltam emigrantes embuçados,mulheres, crianças na escuridão.

O poema indaga a um interlocutor que

(pode ser o próprio país) quem teria

formado a sua alma, o modo de ser,

de rir de andar, a pele, o sangue, os

pés (metonímias do povo brasileiro).

No seu questionamento a esse

interlocutor, o eu lírico faz a seguinte

pergunta: foi negro, foi índio ou foi

cristão?

Na pergunta do eu lírico, a resposta já

está presente: foram exatamente as

três raças que foram “mudando,

mudando” e se transformaram numa

única raça.

Podemos constatar essa resposta

pelos próprios elementos que são

colocados em dúvida: o corpo, a

cultura, a linguagem, a comida, a

história, a religião, enfim, a mescla das

três raças (cabelo escorrido, orgulho

de branco, algemas...).

“A noite desabou sobre o cais”, teríamos a

impossibilidade de achar caminho (“Capitão-mor perdi-

me no mar. / Onde é que fica a minha ilha? ”), o

trabalho e sua angústia (“A noite desabou sobre o cais /

Rangem guindastes na escuridão”), o trabalhador e o

escravo (“Donde é que vêm essas naus? / Serão

caravelas? Serão negreiros? ”)

Há uma forte utilização de ritmo e cadência, nesse

poema. É por meio da reiteração dos versos e estrofes

que sentimos o universo soturno da noite, que cai

pesadamente sobre o cais, mesclando, indistintamente,

caravelas e negreiros, mar tenebroso, perder-se no

mar, e a pergunta por um lugar que não se consegue

achar: “Onde é que fica a minha ilha? ” A dificuldade de

vislumbrar a “ilha”, de localizar um chão próprio num

país, parece ter alguma vinculação também com o

trabalho e sua penúria, com o degredo, com a condição

livre e escrava do trabalho, ambas soturnas. Como se

esses aspectos corroessem a geografia, o

direcionamento, resultando numa imagem escurecida,

angustiosa: Capitão-mor que noite escura desabou

sobre o cais, desabou nesse caos!

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De onde vêm essa gente ?Não há mais terras de Santa Cruz gente valente !

Ó indesejáveis qual país,qual o país que desejais ?Como é o nome dessas nausque não se lê na escuridão ?Vão descobrir o Preste João ?Na minha geografia existe apenas perdido no mar o cabo Não.

A noite desabou sobre o caispesada, cor de carvão.

Essas naus vão para o Congo ?Castelo de Sagres ficou aonde ?Capitão-mor onde é o Congo ?Será no leste, no mar tenebroso ?Capitão-mor perdi-me no mar.Onde é que fica a minha ilha ?

Para onde vão os degredados,os que vão trabalhar dentro da noite,ouvindo ranger esses guindastes ?Capitão-mor que noite escuradesabou sobre o cais,desabou nesse caos!

MADORNA DE IAIÁ

Iaiá está na rede de tucum.A mucama de Iaiá tange os piuns,balança a rede,canta um lundumtão bambo, tão molengo, tão dengoso,que Iaiá tem vontade de dormir.

Com quem?

Ram-rem.

Que preguiça, que calor! Iaiá tira a camisa, toma aluá, prende o cocó, limpa o suor, pula pra rede.

Mas que cheiro gostoso tem Iaiá! Que vontade doida de dormir...

Com quem?

Cheiro de mel da casa das caldeiras!

“A noite desabou sobre o cais”, teríamos a

impossibilidade de achar caminho (“Capitão-mor perdi-

me no mar. / Onde é que fica a minha ilha? ”), o

trabalho e sua angústia (“A noite desabou sobre o cais /

Rangem guindastes na escuridão”), o trabalhador e o

escravo (“Donde é que vêm essas naus? / Serão

caravelas? Serão negreiros? ”)

Há uma forte utilização de ritmo e cadência, nesse

poema. É por meio da reiteração dos versos e estrofes

que sentimos o universo soturno da noite, que cai

pesadamente sobre o cais, mesclando, indistintamente,

caravelas e negreiros, mar tenebroso, perder-se no

mar, e a pergunta por um lugar que não se consegue

achar: “Onde é que fica a minha ilha? ” A dificuldade de

vislumbrar a “ilha”, de localizar um chão próprio num

país, parece ter alguma vinculação também com o

trabalho e sua penúria, com o degredo, com a condição

livre e escrava do trabalho, ambas soturnas. Como se

esses aspectos corroessem a geografia, o

direcionamento, resultando numa imagem escurecida,

angustiosa: Capitão-mor que noite escura desabou

sobre o cais, desabou nesse caos!

Madorna é um termo muito utilizado no Nordeste, é o

mesmo que cochilo, modorra, no caso do poema a

preguiça, a sesta, o sono da tarde.

A moça branca, a sinhazinha ou a Iaiá (tratamento

dado às moças e meninas na época da escravidão),

está na rede, enquanto a sua mucama (escrava

doméstica, criada, e também pode ter o sentido de

escrava amante de seu senhor) está balançando a

sua rede e cantando um lundum (ou lundu, uma

música e a correspondente dança de origem

africana), mas o lundum é tão molengo que a moça

tem vontade de dormir: a pergunta do eu lírico “com

quem” introduz a nota erótica do poema: no sono,

sonho da tarde, passa a dar “calor”, “suor”, a Iaiá tira

a camisa, ou seja, é como se a música da mucama

despertasse os sonhos e desejos eróticos da sinhá.

Outro indício de erotismo está no embalo da rede, no

“Ram-rem” da rede (onomatopeia).

A mucama faz tudo para não acordar a sinhá, para

de cantar, de balançar a rede, mas não há mais jeito,

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O saguim de Iaiá dorme num coco.

Iaiá ferra no sono, pende a cabeça, abre-se a rede, como uma ingá.Pára a mucama de cantar,tange os piuns,cala o ram-rem,abre a janela,olha o curral:— um bruto sossego no curral!

Muito longe uma peitica faz si-dó... si-dó... si-dó... si-dó...

Antes que Iaiá corte a madorna, a moleca de Iaiá balança a rede, tange os piuns, canta um lundum tão bambo, tão molengo, tão dengoso, que Iaiá sem se acordar, se coça, se estirae se abre toda, na rede de tucum. Sonha com quem?

Madorna é um termo muito utilizado no Nordeste, é o

mesmo que cochilo, modorra, no caso do poema a

preguiça, a sesta, o sono da tarde.

A moça branca, a sinhazinha ou a Iaiá (tratamento

dado às moças e meninas na época da escravidão),

está na rede, enquanto a sua mucama (escrava

doméstica, criada, e também pode ter o sentido de

escrava amante de seu senhor) está balançando a

sua rede e cantando um lundum (ou lundu, uma

música e a correspondente dança de origem

africana), mas o lundum é tão molengo que a moça

tem vontade de dormir: a pergunta do eu lírico “com

quem” introduz a nota erótica do poema: no sono,

sonho da tarde, passa a dar “calor”, “suor”, a Iaiá tira

a camisa, ou seja, é como se a música da mucama

despertasse os sonhos e desejos eróticos da sinhá.

Outro indício de erotismo está no embalo da rede, no

“Ram-rem” da rede (onomatopeia).

A mucama faz tudo para não acordar a sinhá, para

de cantar, de balançar a rede, mas não há mais jeito,