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REFLEXÃO SOBRE A CULTURA NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Introdução
É perceptível o quanto a questão regional tem marcado presença nas políticas
públicas e nos discursos acadêmicos mais recentes. A região, cada vez mais, não tem sido
vista como autônoma, mas sim como espaço complementar de outro, em interdependência
com outras regiões. Antes de ser utilizada como instrumento de especulação por uma
empresa, ou mesmo para implantação de política pública, a região é um instrumento para a
reafirmação de identidades, para a construção e fortalecimento do sentimento de
pertencimento a uma cultura singular, mas que não deixa de estar interligada com
elementos globais.
A região tem sido alvo do processo de desenvolvimento, tendo em vista a sua
capacidade de apresentar claramente as suas características, peculiaridades e “modos de
ser e fazer” do povo que a habita. Assim, para além dos seus aspectos espaciais,
ambientais, esse aspecto cultural, que parte do povo e reflete no seu escopo social, tem
sido de fundamental importância para a implementação mais consciente e significativa do
processo de desenvolvimento. A cultura, colocada a serviço do desenvolvimento regional,
torna esse processo mais humano e genuíno, pois leva em conta o que o povo desse
espaço pretende preservar e mudar, não aplicando modelos pré-estabelecidos só porque
funcionaram em outros espaços, de realidades diversas.
Região: uma categoria de análise tradicional e atual
Região não é uma categoria de análise de uso exclusivo da Geografia como muitos
pensam, outras ciências utilizam essa categoria, e até mesmo no senso comum a região
possui uma variedade de significados. Além disso, empresas utilizam a categoria região
como instrumento de estratégia para as suas ações. Também muitas instituições nacionais
e internacionais organizam e distribuem suas ações espacialmente a partir das regiões.
A palavra região deriva do latim regere, onde o radical reg significa regente,
regência. Já a palavra regione remete aos tempos do Império Romano, e era utilizada para
referir-se a áreas que mesmo tendo administração local, estavam submetidas às normas
hegemônicas. Com a queda do Império Romano, essas divisões regionais deram origem à
formação do poder autônomo dos feudos, como explica Gomes (1995, p.50-51). Ou seja,
vê-se a região romana passando por duas fases: uma em que está submetida a um poder
centralizador e hegemônico; e outra em que ela mesma adquire seu próprio poder
(autonomia significativa).
Embora atualmente seja mais comum as pessoas afirmarem que o objeto de estudo
da geografia é o espaço geográfico, na Geografia Tradicional (1870-1950), as principais
categorias de análise eram a região e a paisagem. Sendo assim, a região é uma categoria
de análise que coincide com a história epistemológica e institucional da Geografia.
Emmanuel Kant, um dos idealizadores da ciência geográfica, é o principal
responsável por associar a região à idéia de espaço geográfico. Esse filósofo afirma que o
espaço geográfico é diferente do espaço matemático, isso porque aquele se divide em
regiões que se constituem no substrato da história dos homens (SANTOS, 2009, p.185). Ou
seja, Kant havia percebido que o espaço não podia ser analisado, muito menos interferido,
de forma padronizada, porque as diferenças sociais, culturais, ambientais, econômicas e
políticas eram muitas.
Acompanhando a história das correntes do pensamento geográfico, a categoria
região sofreu as conseqüências desse fato. Duas correntes de pensamento dividiam a
geografia: o determinismo e o possibilismo. Assim, a região sofreu duas grandes divisões:
região natural, desenvolvida pelo determinismo, caracterizada pela uniformidade resultante
da integração dos elementos da natureza; e região geográfica, desenvolvida pelo
possibilismo, considera a evolução das relações entre o homem e a natureza, que ao longo
da história passa de uma adaptação humana a uma ação modeladora, em que o homem, a
partir de sua cultura, cria uma paisagem e um gênero de vida, gênero este muito bem
explicado por Vidal de La Blache (CORRÊA, 1987, p.23-28).
Dentro da Nova Geografia (1950-1970), a região está fundamentada no positivismo
lógico, em que as similaridades e diferenças entre lugares são definidas através de técnicas
estatísticas descritivas (idem, 1987, p.32). Já na Geografia Crítica (1970), o conceito de
região será repensado, questionado e passível de novas dimensões analíticas, como a
dimensão política, por exemplo. Para Duarte apud Corrêa (ibden, p.41), região é “uma
dimensão espacial das especificidades sociais em uma totalidade espaço-social, capaz de
opor resistência à homogeneização da sociedade do espaço pelo capital monopolístico e
hegemônico”.
Observamos que em cada fase da ciência geográfica, a região ganha significados e
definições diferentes. Atualmente, uma característica fundamental para se entender a região
corresponde ao fato de que ela não é autônoma, mas sim, interdependente com outras
regiões. E Corrêa (ibden, p.47) ainda propõe uma análise mista, em que as influências dos
diversos conceitos para o termo região estejam presentes.
Não existe um único conceito para o termo região. O importante é a adequação do
conceito ao tipo de análise que se deseja e ao tipo de exigência da pesquisa. Além disso,
também é importante levar em consideração a escala regional, já que região pressupõe um
espaço delimitado. Dessa forma, a categoria região se mostra como ampla e passiva de
análises múltiplas, não apenas dentro da ciência geográfica, mas como em tantas outras.
Pensando a partir da região
Apesar de não se referir exatamente à região, alguns pensamentos de alguns
autores, estudiosos e filósofos contribuem para se pensar elementos considerados
embrionários para o termo, já que a característica do “singular” é perceptível nestes
pensamentos. Assim, fazer alguns levantamentos sobre esses pensamentos embrionários
da categoria região é relevante por mostrar as bases, deixando aí a possibilidade para
compará-las com as noções mais atuais e relacioná-las com as questões de
desenvolvimento.
Pascal (filósofo e matemático) afirmou: “O universo é uma esfera infinita e o centro
está em toda parte...”(PASCAL apud SANTOS, 2006, p.212). Apesar de ser uma
enunciação de cunho matemático, pode ser vista como uma metáfora para a condição de
“ser” da região no mundo atual, onde cada região pode ser vista como um dos centros do
mundo. Ainda que não fosse a intenção de Pascal, ele valorizou e afirmou a diversidade
espacial e sócio-cultural, diversidade esta que pode ser concretizada na região, ou mesmo
no lugar.
Tolstoi, um famoso autor da literatura russa, afirmou: “Se queres ser universal,
começa por pintar a sua aldeia.” (TOLSTOI apud OLIVEIRA, 2010, p.61). Com essa
assertiva, Tolstoi alcança a região através da palavra “aldeia”. Antes, revela o desejo do
indivíduo ou da sociedade de “ser universal”, desejo este nunca antes tão mais sentido do
que nos dias atuais. Mas logo em seguida alerta para essa universalidade ser alcançada a
partir do espaço de identidade, que seja a região ou o lugar que está na região.
Milton Santos, um famoso geógrafo brasileiro, construiu algumas assertivas que,
apesar de não estarem voltadas especificamente para a região, podem causar tal efeito.
Entre elas, algumas principais são: “Cada lugar é, à sua maneira, o mundo” (SANTOS,
2006, p.213); “O conhecimento da totalidade pressupõe, assim, sua divisão” (SANTOS,
1997, p.95). As palavras “lugar” e “divisão” são elementos presentes numa região. Certo que
“lugar” é outra categoria de análise, no entanto, a região contém o lugar, e estando o lugar
em relação íntima com a questão da identidade, da cultura, a região também está.
Essas noções embrionárias sobre o termo região contribuem para pensarmos a
questão do desenvolvimento. Não estaremos aqui fazendo uma longa explanação sobre a
teoria propriamente dita do desenvolvimento regional. Estaremos incitando uma reflexão
mais geral sobre a posição da região dentro do processo de desenvolvimento, viabilizado
pela cultura, que é tão intrínseca da região, bem como o foco desde artigo. Assim, essas
noções remetem muito à literatura que tem sido produzida sobre a relação entre
desenvolvimento e região, em que se deve pensá-lo a partir de suas especificidades locais,
sejam elas sociais, políticas, culturais e ambientais. Também proporcionam uma reflexão
sobre os motivos para se pensar e fazer dessa forma, a partir de uma divisão regional:
Não cabe, certamente, redividir o território para atender mais depressa à vontade de lucro de empresas hegemônicas, ou à fome de votos de um político. Também não há por que mantê-lo indiviso por essas mesmas razões... A descentralização não apenas formal ou funcional, mas estrutural, pode e deve ser um instrumento de democracia política e social. (SANTOS, 2002, p.33).
Perspectivas sobre a relação entre cultura e desenvolvimento
Uma breve análise da literatura mais recente sobre desenvolvimento indica o
crescimento da importância dada à cultura nos estudos e práticas desenvolvimentistas. É
interessante iniciar esse tópico apresentando a perspectiva que o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA, sob a coordenação de Frederico A. Barbosa da Silva, publicou
no ano de 2010. A pesquisa expõe a responsabilidade que o Estado tem em garantir o
direito à cultura através da Constituição Federal de 1988. Quanto à noção de
desenvolvimento, a pesquisa do IPEA, apoiada em estudos do autor Perroux, apresenta a
noção de desenvolvimento integral: um desenvolvimento multidimensional que tem a cultura
como um componente importante, que faz parte da integração entre outros elementos.
A pesquisa do IPEA, ainda defende que o desenvolvimento envolve o contexto
cultural e que este condiciona o primeiro, mas alerta para o fato de que não há relação
causal entre cultura o desenvolvimento: nem a cultura causa o desenvolvimento nem é
consequência dele, como algumas pesquisas econômicas apontam (SILVA, 2010, p.11).
Outro ponto importante da pesquisa do IPEA é a questão de colocar cultura e
desenvolvimento como processos sociais, e não como variáveis, afirmando que essa é
justamente a razão pela qual não há sentido dizer que um gera ou impede o outro (idem,
p.11-12). Sendo processos de um mesmo espaço (a sociedade), estes relacionam-se. Se
considerados como variáveis, corre-se o risco de compreendê-los como elementos
separados, o que na prática isso não procede. Assim, ao longo de toda a perspectiva do
IPEA acerca de desenvolvimento e cultura, os termos estão colocados como passíveis de
diálogos entre si.
A reflexão construída por Lemuel Dourado Guerra e Jairo Bezerra da Silva parte da
discussão sobre as condições em que cultura participa nos processos de produção, indução
ou obstrução do desenvolvimento. Para tanto, os autores trabalham com o elemento das
relações de poder na definição de cultura, dando suporte, assim, para a discussão das
desigualdades globais e das metanarrativas que sustentam o estabelecimento histórico da
hierarquização dos países, culturas e de seus modelos de desenvolvimento (2012, p.202).
Os autores ainda colocam como os discursos (já postos em uma hierarquia) podem
influenciar os rumos do desenvolvimento, estando incluída aí a cultura. Apesar de ser
direcionada mais para o campo científico-acadêmico, tal reflexão é muito importante para se
pensar e planejar as políticas públicas de cultura integradas com o desenvolvimento.
Tolila (2007, p.71-72) apresenta três fatores concretos que contribuíram para a
cultura ter adquirido tamanha importância: a formação de consumos culturais de massa,
estando aí incluídos até mesmo os setores considerados “tradicionais” da economia cultural,
como patrimônios, museus e espetáculos; a evolução do interesse global dos Estados e das
coletividades públicas pelo setor cultural como um fenômeno de massa tanto sociológico
quanto econômico; e a transformação das economias modernas fundadas na inovação,
colocando a cultura um fator básico na formação de forças produtivas adaptadas à
economia atual e promovendo ainda mais seu valor simbólico.
Lustosa (2010) ressalta a importância do reconhecimento identitário que a
preocupação com os aspectos vários da cultura nos planos de desenvolvimento pode
produzir:
Generalizou-se a consciência de que qualquer transformação das condições de vida de uma comunidade depende do reconhecimento, da aceitação e da valorização dos traços que lhe conferem identidade, sentido de pertença e autoestima. Assim, a discussão sobre as relações entre cultura e desenvolvimento voltou à ordem do dia... (LUSTOSA, 2010, p.149)
É exatamente esse o ponto-chave da questão feita por mim anteriormente: o fato é
que só agora está surgindo uma mudança de consciência com uma amplitude nunca antes
alcançada, consciência enquanto percepção de que algo precisa ser mudado, de que novos
caminhos precisam ser trilhados e testados, e a cultura seria e/ou é um desses caminhos; e
amplitude enquanto alcance em massa dessa nova consciência, ou seja, não apenas restrita
aos “intelectuais” e aos atores mais representativos do poder público, mas estendida para a
sociedade em geral. Isto deve ser considerado um grande avanço social porquanto contribui
para a consolidação de uma idéia mais ampla de desenvolvimento, este apoiado numa base
forte: a cultura.
No entanto, é importante fazer uma ressalva: que a cultura sempre foi “utilizada” nas
intenções e ações políticas, mesmo antes do surgimento do termo desenvolvimento, ainda
que de forma implícita. Nesse sentido Guerra e Waldemar afirmam que sempre houve a
preocupação com a importância do papel da cultura, e que a classificação dos países do
Norte e Europeus como modelos penetrou perversamente as culturas de todo o mundo
(2013, p.213). Ou seja, havia aí uma intenção: mudar culturas.
Enfim, que a cultura sempre foi “lembrada” é fato, mas também é certo que
atualmente a mesma encontrou maior espaço, é lembrada de forma mais explícita em todas
as suas dimensões, inclusive a econômica. E mais importante que a perceber esse fato, é
perceber as intenções dos discursos em que o mesmo se encontra. No entanto, essa é uma
discussão longa e que não cabe nessa pesquisa.
O discurso mais geral que justifica a cultura enquanto fator de desenvolvimento é
que, ao intervir no espaço urbano (ou qualquer outro espaço), a cultura proporciona um
diferencial para determinada cidade, já que atua com programas de revitalização, de
investimento social e humano, entre outros, contribuindo para a atração de investimentos
diversos, geração de emprego e receita, maior fluxo de informações, etc. E isso foi, aos
poucos, sendo percebido e fortalecido pelo poder público com maior seriedade e
planejamento.
Sobre a relação entre políticas culturais e desenvolvimento, Reis (2007, p.160) fala
em duas áreas nas quais se efetiva a interface: a regeneração geográfica e a elevação da
qualidade de vida da região. O investimento em cultura tem o poder de recuperar áreas
degradadas estigmatizadas, além de contribuir para soluções de problemas
socioeconômicos e fixar a população local. Além de todos esses benefícios concretos,
existem aqueles mais substanciais: elevação da autoestima, reforço da coesão social,
afirmação da imagem local (idem, 2007, p.161).
É a partir das suas potencialidades concretas e subjetivas que as políticas culturais
se relacionam com o desenvolvimento, aqui pensado não apenas como crescimento
econômico, que implica na acumulação e uso de excedente. Seguimos Furtado (1984), para
quem o desenvolvimento em seu sentido amplo implica no uso dessa acumulação e do
excedente para “a criação de valores que se difundem em importantes segmentos da
coletividade” (1984, p.107). E a cultura tem capacidade para produzir esses valores que
tanto são fundamentais na formação e transformação de qualquer sociedade.
Uma das dimensões que a cultura pode assumir no processo de desenvolvimento é
a dimensão econômica. Essa dimensão é mais explorada, tanto em estudos acadêmicos
quanto nas políticas culturais. É comum que a maioria, ao ouvir os termos cultura e
economia, tenha a primeira ideia de que a cultura é tida como uma simples mercadoria.
Yúdice (apud COIMBRA, 2010, p.34-35) afirma que a cultura tem sido utilizada como
“recurso”, mas que não se deve entender “recurso” como “mercadoria”. Yúdice mostra que a
cultura é um recurso enquanto utilizada para solucionar problemas sociais. Assim, os fins
desejados para alcançar, com a cultura como meio, são questionados, em que a divisão
“desenvolvimento econômico” e “desenvolvimento humano” torna-se um tanto quanto
superficial diante da urgência de reconhecer o valor da cultura enquanto um começo, meio e
fim em si:
A cultura vem sendo, nas duas últimas décadas, sistematicamente pensada como meio para dois fins declarados prioritários, o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento humano. Nenhum dos dois poderá ocorrer se a cultura não for culturalmente sustentável. Em outras palavras, se ela não for vista como um fim em si, não apenas como meio... Se não se pensar a cultura independentemente dos fins a que ela possa servir, se não se servir à cultura por aquilo que ela é, naquilo que ela é, isto é, se não se criarem as condições para que a cultura se sustente e se desenvolva por e para seus próprios princípios, sem nenhuma preocupação com os fins que ela pode alcançar, a cultura não sobreviverá e não servirá ao que se espera que sirva. As iniciativas nesse sentido são hoje praticamente tênues, senão invisíveis. O discurso deve mudar: a cultura precisa ser sustentada porque é cultura. (COELHO apud VASCONSELOS, 2011, p.13).
Há uma vertente de análise em que a cultura é vista tanto como um produto de
mercado quanto algo com um valor em si, algo em que se é considerado o seu caráter
subjetivo, passando isto a funcionar como uma das “fórmulas” para a democracia e para a
economia se visto como aspectos integrantes. Assim, tanto o aspecto social/humano quanto
o econômico da cultura, como elementos complementares, são fundamentais para a criação
de uma política cultural mais abrangente, pois “é impossível deixar de reconhecer a
relevância do mercado no mundo da cultura, assim como a da cultura na economia”
(WEFFORT, 2000, p.65):
Por mais que já se tenha reconhecido e divulgado o valor da cultura na dimensão
econômica do desenvolvimento, ainda há uma certa desconfiança por parte de outros
setores. Mas o fato é que a cultura já ganhou seu espaço na economia, ainda que tímido,
mas também em constante crescimento. E isso deve ser encarado, de modo que não há
como fugir de tal realidade, pois como afirma Durand apud Vasconcelos (2011, p.14), “como
quaisquer outros campos, arte e cultura dependem de sustentação econômica e
institucional”. Daí a importância da parceria entre Estado e mercado como uma solução para
o aprimoramento da democracia brasileira e o crescimento da economia nacional
(BARBALHO, 2007, p.51).
A dimensão cultural no desenvolvimento regional: partindo da PNDR
Um dos exemplos de práticas regionais, pensada a partir da região e voltada para a
região, são as políticas públicas regionais. Em relação ao Brasil, o país percebendo a sua
dimensão territorial e repensando a sua história, logo partiu para as políticas de caráter
regional, no intuito de facilitar o governo do país. As políticas foram surgindo de acordo com
as necessidades de cada época e de cada região.
A dimensão cultural, atrelada às condições espaciais, ambientais, talvez seja o
aspecto mais peculiar, ou o que melhor deveria definir uma política de caráter regional,
tendo em vista que se trata “aquilo que o povo é e tem”. Assim, o que caracteriza uma
política regional é justamente o caráter cultural da região, pois esse caráter norteia e
delineia o que um povo necessita no presente, o que um povo ainda quer no futuro e o que
um povo quer preservar do seu passado.
É interessante observar, ainda que de modo geral, como a categoria região está
sendo colocada ou trabalhada pela atual Política Nacional de Desenvolvimento Regional
(PNDR), pois isso implicará nas implementações da mesma. A Política em questão
expressa duas perspectivas de regiões: a região homogênea e a região funcional. A região
homogênea é aquela onde os intervalos das variáveis selecionadas definem espaços mais
ou menos homogêneos; já a região funcional, sua característica principal está nas múltiplas
relações que ela consegue manter e que a faz diferente das outras (GOMES, 1995, p.63-
64).
Ao falar do contexto atual, a Política de Desenvolvimento Regional deixa claras as
razões pelas quais determinadas regiões conseguem ser dinâmicas e outras não: primeiro
porque “as grandes empresas internacionais e, em especial, o capital financeiro desregulado
ganharam autonomia para se localizar e relocalizar conforme condições mais ou menos
propícias à geração de lucros”; segundo, porque “os governos nacionais e locais perderam
controle sobre o próprio desenvolvimento”.
Muitos afirmam, equivocadamente, que os dados, elementos ou informações
espaciais não interessam tanto às empresas, mas esta é uma visão que vem sendo
descartada cada vez mais. Isso porque é difícil acreditar fielmente que se possa investir
capital em qualquer lugar, reproduzi-lo em qualquer lugar (SÁ, 2007, p.123). O capital pode
até ser deslocado entre os espaços, de forma eletrônica, mas não é qualquer espaço que
tem as condições ideais para a sua reprodução. Portanto, características sociais, culturais,
econômicas, políticas e mesmo geográficas, influenciam muito nas decisões de uma
empresa, ou mesmo de instituições diversas.
Isso parece ser uma contradição, tendo em vista que a autonomia das empresas só
é possível através das normas e leis cedidas pelo poder público. Assim, todos os
questionamentos sobre “regiões dinâmicas” e “regiões não dinâmicas” devem passar pelo
campo da política, porque as regiões, para além das suas dimensões culturais, não passam
de resultados de decisões dessa ordem (da política). Daí a importância da política estar
atenta aos seus planos e projetos de caráter regional, pois devem priorizar as regiões ditas
“incapazes de produtividade significativa”.
Atualmente existe um projeto para uma nova política de desenvolvimento regional
em andamento, e em 2012 houve a I Conferência Nacional de Desenvolvimento Regional,
em que essas questões, anteriormente discutidas, nos levam a pensar sobre a autonomia
da região. Essa autonomia está entendida, no documento da conferência, como o respeito
“pela liberdade relativa de procurar sua própria identidade, cultural e econômica, assim
como formulação de projetos por meio dos seus próprios atores, fixando um quadro de
diversidades” (2012, p.10). O texto ainda coloca que é preciso não perder de vista essa
identidade de cada povo, tendo em vista que faz parte do “quadro referencial nacional”.
Essa discussão da identidade vem desde o nível nacional, como bem aponta Anita
Simis: “Já se incorporou a crítica de que é enganoso buscar uma identidade brasileira ou
uma memória brasileira” (2007, p.138). A autora ainda continua, citando Ortiz (1985), os
questionamentos: “quem é o artífice desta identidade e desta memória que se querem
nacionais? A que grupos sociais elas se vinculam e a que interesses elas servem?”. Tais
questionamentos são essenciais para repensar o papel da cultura enquanto instrumento de
transmissão da identidade para as políticas públicas, principalmente quando seus olhos
estão voltados para o desenvolvimento, processo este que deve não apenas considerar as
múltiplas identidades, os múltiplos modos de viver, mas também viabilizar o diálogo entre
essas diversidades, de modo a esclarecer o que se pretende com isso. Assim, o fator cultural passa a ser fundamental tanto para os discursos políticos
quanto para as práticas das políticas públicas em favor do desenvolvimento regional,
sobretudo porque coloca o povo, que é o detentor dessa cultura, como um importante ator
nessas discussões. O desenvolvimento da região cobra participação da sociedade a partir
da identidade que cada região conseguiu esculpir ao longo do tempo (documento Análise da
Política de Desenvolvimento Regional, 2012, p.219).
Embora isso, na prática, ainda seja um tanto quanto duvidoso, pois em muitos casos
não há uma efetiva participação da população nas principais decisões, ainda que isso esteja
camuflado ou diluído nos diálogos das conferências, dos fóruns e demais reuniões em que
se propõe ouvir o povo. Mas ouvir é diferente de acatar. Pedro Bandeira afirma que essa
participação ainda se restringe a uma minoria e, ao expor alguns argumentos gerais a favor
da participação da população, afirma que a quinta e última vertente de argumento “ressalta
o papel desempenhado pela participação no processo de formação e consolidação das
identidades regionais, que facilitam a construção de consensos básicos entre os atores
sociais que são essenciais para o desenvolvimento” (1999, p.10).
A cultura do povo para com o seu lugar muitas vezes é levada em consideração, mas
não levada a sério em prática. São coisas bem diferentes. Uma coisa é reconhecer a
importância da cultura, outra coisa é tomá-la como instrumento, de fato, para a formulação
de políticas que permitam a sua continuidade, mesmo trazendo inovações, progresso e
modernidade, termos que costumam justificar as ações políticas em determinado espaço,
com o intuito se inseri-lo nas dinâmicas diversas do cenário nacional e mundial.
Assim, chega-se aos objetivos da atual PNDRE: o objetivo geral é reduzir as
desigualdades regionais; e um dos objetivos específicos é estimular a exploração das
potencialidades que advêm da diversidade cultural (além da diversidade socioeconômica e
ambiental). Os objetivos para a nova PNDR são semelhantes: reverter as desigualdades
inter e intra regionais, valorizando as especificidades culturais, sociais, econômicas e
ambientais; criar condições de acesso mais justo e equilibrado aos bens e serviços públicos
no território brasileiro, reduzindo as desigualdades de oportunidades vinculadas ao local de
nascimento e moradia (documento Análise da Política de Desenvolvimento Regional, 2012,
p.29).
Os objetivos de ambas políticas consideram a dimensão cultural para que se alcance
um desenvolvimento com equidade, bem como incita a competitividade para que
determinada região venha a se destacar, através da criatividade e inovação, tendo em vista
que esses elementos estão dentro das especificidades de determinada cultura. Assim, o
desenvolvimento regional se insere num debate em que, por um lado, se busca a igualdade
de acesso e benefícios, por outro, em que se busca diferenciação, destaque, diversidade.
Por vezes, tais diferenças regionais são vistas como barreiras ou atrasos ao
desenvolvimento, tidas como algo muito tradicional. Na verdade, a questão não se trata das
diferenças regionais em si, mas de como elas são tomadas, aproveitadas, potencializadas e
conduzidas. Celso Furtado, ao associar cultura com desenvolvimento, alerta para o fato de
que uma política centrada apenas no consumo (e aí podemos ampliar essa expressão para
a dimensão econômica do desenvolvimento) gera barreiras aos processos criativos e de
inovação:
Daí que uma política cultural que se limita a fomentar o consumo de bens culturais tende a ser inibitória de atividades criativas e a impor barreiras à inovação. Em uma época de intensa comercialização de todas as dimensões da vida social, o objetivo central de uma política cultural deveria ser a liberação das forças criativas da sociedade. Não se trata de monitorar a atividade criativa e sim de abrir espaço para que ela floresça. (...) A política de desenvolvimento deve ser posta a serviço do processo de enriquecimento cultural (1984, p.32).
Portanto, não se trata de apenas inserir uma região no cenário econômico nacional,
por meio de práticas padronizadas, práticas essas que são reflexos de uma comparação
entre “modos de ser e fazer” das diferentes regiões. Levar em conta a liberdade para a
criação, para a criatividade e inovação, com base na cultura regional, sem monitorar ou
delinear esse processo a um modelo pré-estabelecido, é parte fundamental para um
desenvolvimento regional genuíno, autêntico.
Considerações finais
A região passa a ser uma categoria fundamental para explicar o mundo, pois é nela
que se pode ver a materialização da relação entre sociedade e natureza com maiores
detalhes a partir do conhecimento de algumas dinâmicas, estruturas e processos. É
importante considerar essas dinâmicas, estruturas e processos enquanto modificadas no
tempo, originando novos arranjos regionais. Compreendendo as formas regionais do
passado, compreende-se o presente e é possível intervir, de forma consciente, para projetar
o futuro de uma região.
Portanto, os projetos ou programas de regionalização devem estar atentos a estas
questões (formas antigas e atuais, áreas de abrangência, influência da globalização,
relações políticas) desde a sua concepção, passando pela elaboração e implementação.
Mesmo depois de colocados em prática, os projetos regionais devem ser revisados devido
às dinâmicas socioculturais e ambientais das sociedades.
Muito tem se discutido sobre o processo de desenvolvimento, muito tem se criticado
a prática de comparação entre modelos de desenvolvimento, bem como a sua prática que,
por vezes, inicialmente parece dar certo, mas posteriormente começa a apresentar falhas.
De modo geral, sabe-se que tais processos não consideram algo básico: a cultura de
determinado povo, região, espaço de atuação. É comum conhecer a cultura, o povo, o
espaço, mas não dissolver tudo isso nas práticas desenvolvimentistas.
A região não é estática. A região é dinâmica. Mesmo a cultura de determinada
região, comumente entendida como algo que praticamente não muda, termina sendo alvo
de períodos de transições, mudanças. Mas também se sabe que a cultura possui sua
essência, possui a sua peculiaridade constante, e compreender e considerar isso nas
políticas de desenvolvimento regional é fundamental para que tal processo tenha maior
eficiência, tendo em vista que terá uma maior significância para o povo dessa região,
portanto, será um desenvolvimento mais valorizado por parte daqueles o qual esse
fenômeno mais deve se importar, que é o povo.
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