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Miguel Vale de Almeida
Conflito. Definindo Israel/Palestina como terreno minado pelo excesso
Seminário de Antropologia, ICS-UL
4 janeiro 2013
Estou a iniciar um projeto de pesquisa com o título provisório de “Projetos
pessoais, projetos nacionais. Narrativas e experiências de ‘retorno’ a
Israel/Palestina”. Trata-se de coligir e analisar relatos de judeus que decidiram
fazer aliyah (o exercício do direito de ‘retorno’ ou de obtenção da nacionalidade
israelense) e de palestinianos que decidiram trocar a diáspora ou o refúgio pela
vida nos Territórios Ocupados – impedidos que estão do ‘retorno’ ao território
do Estado de Israel. Procuro perceber como a imaginação do lugar de suposta
pertença entra, e tem efeito, na construção de si, face ao sentimento de pertença
ao país de origem e nacionalidade. No caso recorrerei a pessoas oriundas do
Brasil, pela facilidade linguística, pelo conhecimento que tenho da realidade
brasileira, e por permitir uma perspectiva comparativa entre judeus e
palestinianos brasileiros.
Mas o que quero apresentar aqui é algo de prévio a essa pesquisa. Trata-se de
indagar o próprio terreno. Também no sentido contemporâneo de “terreno” –
que inclui os próprios contornos da pesquisa – mas sobretudo no seu sentido
mais estrito ou clássico, de lugar. Um lugar físico e imaginário, onde o físico é
também imaginado e o imaginário é projetado na sua concretização física. Um
lugar que é narrado tanto à distância como na presença física. Um lugar que é
narrado na História, quanto uma História que é refeita e negociada
constantemente nos acontecimentos.
Vou começar pela questão dos contornos da pesquisa, expondo o que entendo
pelo caráter “minado” do terreno quando, na universidade, na antropologia, ou
em público, digo que trabalho sobre Israel/Palestina. Seguem-se algumas
questões – não desligadas da primeira discussão - que tornam o terreno
Israel/Palestina no que chamaria um lugar do excesso das problematizações
antropológicas. De seguida especificarei alguns topoi fundamentais da realidade
Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
cultural que se reproduz em Israel/Palestina – e, uma vez mais, como fazem
feedback sobre o que tenha dito antes. E finalizarei regressando à ideia de
terreno minado, agora de uma forma produtiva e positiva.
Uma formulação de pesquisa minada
Há dias contava a alguém, fora da antropologia e da universidade, que tinha
lecionado este semestre uma cadeira sobre Israel/Palestina. A pessoa perguntou-
me imediatamente: “E convenceste os alunos a serem a favor de Israel ou da
Palestina?” Esta pergunta diz quase tudo. Tentei explicar que nem uma coisa nem
outra e a pessoa sorriu perante o que julgou ser uma afirmação ingénua sobre
neutralidade e objetividade científicas. Vi-me obrigado a explicar o que entendo
por ambas. Em qualquer terreno trata-se de ouvir as múltiplas vozes que
debatem, negoceiam e conflituam; trata-se de ir a contrapelo do senso comum, o
dos informantes e o nosso, ativando os debates da teoria social face às realidades
do terreno; e trata-se também – pela consciência que temos da reflexividade das
ciências sociais – de assumir, na produção escrita, quais as nossas posições
enquanto cidadãos. Se é certo que em antropologia é fantasioso almejar uma
objetividade e neutralidade científicas como imaginadas para as ciências
naturais (e sublinhe-se “imaginado”), a alternativa não é certamente a
transformação da investigação numa ferramenta do ativismo (sublinhe-se
“ferramenta”) nem o abandono pós-moderno ao primado de uma dúvida não
crítica mas nihilista.
Mas é o facto de a etiqueta “Israel/Palestina” suscitar aquele tipo de pergunta e
obrigar a reflexões sobre a relação entre ciência, identidade, e política, que em
grande medida me fascina naquele terreno. A pergunta sobre “o lado em que se
está” remete obviamente para O Conflito. Talvez a melhor maneira de dizer onde
me situo seja esta: vejo a questão em três níveis de conceptualização e
temporalidade: um, ideal (ou idealista, ainda que não utópico), um
realista/reformista, e outro da urgência. O primeiro resume-se nisto: idealmente
gostaria de ver Israel/Palestina como um só país, laico, sem uma etnicidade
legalmente dominante, democrático, e com uma narrativa nacional que afirmasse
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
o estado como o lugar de pertença do povo judeu e dos árabes palestinianos. É a
conhecida solução do estado binacional (que poderia ir desde a minha
formulação idealista até uma solução à belga), mas defendida por muito poucas
pessoas, por razões que poderemos debater no final1. O segundo resume-se
nisto: conseguir o que consta dos acordos e resoluções internacionais, ou seja,
um estado palestiniano independente e viável lado a lado com o estado de Israel.
(E tanto no 1º como no 2º caso, idealmente uma zona de comércio livre no
Levante e zonas limítrofes – Síria, Líbano, Israel, Palestina, Jordânia, Egito). O
terceiro tem a ver com a necessidade de assegurar as condições que garantam
que o segundo seja possível e com decisões políticas que podem (e devem) ser
tomadas de imediato, como o cessar da expansão de colonatos na Cisjordânia e
entorno de Jerusalém ou o fim do bloqueio a Gaza ou, do outro lado, o
reconhecimento de Israel por parte dos movimentos políticos palestinianos de
cariz islamista. Mas a realidade é bem mais complexa do que o desejo da sua
resolução e muito do que vou demonstrar tem a ver com o realismo etnográfico,
isto é, perceber como a vida acontece - a vida individual, social e política – num
quadro que de certa maneira implica o estado de conflito. Em suma, perceber – e
aí está de novo a necessidade de neutralidade e objetividade como esforço e
processo, que referi acima – a normalidade no aparentemente anormal (um
“anormal” que, como defenderei, é apenas um excesso em Israel/Palestina, mas
que ajuda a perceber, por isso mesmo, como todas as situações sociais são
“anormais”).
A pergunta que me foi feita – sobre a posição na dicotomia do conflito (para mim
já uma coisa estranha, pois não vejo aquele conflito como dicotómico) desdobra-
se em duas outras. Uma política e outra identitária. A política tem a ver com o
facto de uma dicotomia normalmente facilitar o estabelecimento de um sistema
de correspondências: Israel ou Palestina?, direita ou esquerda?, pró-americano e
pró-imperialista ou pró-árabe e pró-autodeterminação? Etc. A identitária
prende-se normalmente com a questão: “Mas és judeu?” A minha posição, tanto
quanto me posso autoavaliar, é a seguinte: tenho muito mais conhecimento –
1 Nomeadamente o receio da prevalência demográfica dos palestinianos, ou a perda do caráter judeu do estado. Daí o apoio a esta solução ser sobretudo palestiniano.
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
pessoal, autobiográfico, linguístico, cultural, religioso – sobre Israel
propriamente dita e o Judaísmo do que tenho sobre a Palestina, o mundo árabe
ou o Islão (o mesmo não diria sobre o Cristianismo, claro, significativo na
Palestina). O conhecimento, que gera familiaridade, gera também um grau de
simpatia e por vezes de empatia que não nego. Mas outros princípios – como
convicções sobre justiça, ou políticas – levam-me a reconhecer que a situação
Palestiniana é a situação mais precária e injusta no sistema do conflito (as coisas
mudam de figura quando entramos na intersubjetividade, pois as histórias de
mortos na família, por exemplo, são iguais dos dois “lados”, são histórias de...
mortos na família). Por outro lado, o que o terreno demonstra, ao contrário das
dicotomizações feitas a partir de fora, a partir do consumo mundial do símbolo
“Conflito Israelo-Palestiniano”, é um grau de diversidade, complexidade,
ambiguidade e contradição nos posicionamentos (disso falarei a seguir) no
próprio terreno e fora (judeus sionistas e anti-sionistas, ou antissemitas de
direita e anti-semitas disfarçados de anti-sionistas de esquerda, etc.), que
desautoriza a possibilidade de escolher cristalinamente “lados” (o que não
impede tomar posições políticas sólidas face a casos e acontecimentos concretos,
com base em critérios éticos transparentes e imediatos).
Por fim, as condições políticas e identitárias da minha relação com o terreno. A
minha entrada em Israel/Palestina tem sido, em rigor, uma entrada no estado de
Israel, como professor convidado que sou da Universidade Hebraica de
Jerusalém. Isto significa que, apesar de ser estrangeiro e teoricamente poder
circular nos Territórios Ocupados – sujeito às restrições jurisdicionais que os
dividem em áreas sob controlo israelense, misto ou palestiniano – não participei,
(conscientemente, aliás) de apelos ao boicote na colaboração com instituições
israelenses. Poderemos discutir isso no fim – nomeadamente a forma crítica
como vejo o uso de analogias com o apartheid sul-africano – mas há que dizer
que a universidade é um “território” diferenciado, onde a discussão sobre o
conflito se faz de forma aberta e sem me ser imposto qualquer tipo de restrição.
Uma observação mais. É normalmente na linguagem que se deteta melhor o
caráter minado de uma questão. Neste caso, e sobretudo quando no local, as
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
denominações utilizadas fazem toda a diferença: dizer West Bank, Cisjordânia,
Territórios Ocupados, ou Judeia e Samaria define posicionamentos, por exemplo.
O mesmo se aplica à toponímia de vilas, aldeias, cidades, bairros.
Concluído esta parte, a própria definição da pesquisa e do seu lugar está minada
pela perceção externa d’ O Conflito e pelo automatismo, ou pela suspeita, na
classificação das posições políticas e identitárias do investigador. Dir-me-ão que
isso se pode aplicar a qualquer contexto ou tema. Claro que sim. Mas
convenhamos que isso é excessivo neste caso. E os casos excessivos, extremos,
provavelmente ajudam a iluminar os outros. O anormal ilumina o normal.
Um lugar de excesso
A primeira questão que me surgiu relativamente a Israel/Palestina foi a seguinte:
em praticamente qualquer lugar do mundo, e desde praticamente o pós-guerra,
qualquer pessoa tem informação e tem uma opinião sobre o contexto. O mesmo
não acontece sobre contextos pouco falados, naturalmente; mas tão-pouco
acontece sobre contextos conflituosos muito falados (alguém se entusiasma, fora
do entorno imediato, ao ponto dos gritos e da zanga, com o País Basco ou a
Irlanda do Norte?). Essa informação vem sobretudo dos mass media. Mas não só
– e isto tem a ver com a formação da opinião: ela vem também de um
caleidoscópio de ideologias e posicionamentos em relação aos quais
Israel/Palestina parece ser um bom lugar para pensar. Tudo isto se relaciona,
obviamente, com O Conflito. A informação veiculada depende do Conflito, a
opinião formulada é sobre o Conflito. Mas tanto a informação como a opinião
sobre o Conflito tendem a ser também informação e opinião sobre outras coisas
que não o conflito: posições ideológicas, posições étnicas, posições religiosas. E,
por outro lado, o centramento no Conflito impede totalmente a curiosidade ou o
conhecimento sobre a vida comum, a vida banal, o quotidiano, em suma, a
humanidade fundamental da vida em Israel/Palestina. Por fim, esta característica
de toda a gente ter algo a dizer sobre I/P torna I/P num tipo muito específico de
não-lugar, por excesso e não por vazio, um (não-)lugar de projeção, uma
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
projeção que ofusca a vida real das pessoas reais lá e, portanto, da cultura que ali
se vai construíndo.
O discurso sobre o Conflito israelo-palestiniano é também um discurso que
oculta outros discursos. Em primeiro lugar o do antissemitismo e o do
filosemitismo. Em segundo lugar o da árabofobia e da islamofobia e os seus
inversos. O antissemitismo é um complexo cultural historicamente profundo no
Ocidente, gerador de uma ansiedade ambígua, sobretudo depois do Holocausto,
em que pulsões antissemitas perduram lado a lado com sentimentos de culpa. A
árabofobia e a islamofobia também são de longa data, mas os mecanismos de
culpa não foram acionados de igual modo, devido ao discurso antiterrorista dos
últimos anos, bem como às reações às migrações árabes e/ou islâmicas para o
Ocidente.
[Há que dizer, aliás, que neste terreno existe uma assimetria simbólica dupla: por
um lado o antissemitismo é historicamente mais profundo e foi levado ao ponto
extremo da eugenia raciológica com limpeza étnica, por comparação com uma
arabofobia e islamofobia com contornos mais semelhantes aos de outros
etnocentrismos e xenofobias; e no plano da situação em I/P, o poder económico e
militar de Israel é assimetricamente superior ao da entidade palestiniana.]
Este complexo de representações é ambíguo em si mesmo. Se historicamente o
Ocidente produziu o antissemitismo, parte dele é feito também de um ‘respeito’
pelos judeus como empreendedores, resistentes, cultos, etc. Se historicamente o
Ocidente orientalizou os árabes e muçulmanos, parte desse orientalismo é feito
de idealizações românticas também. Judeus e árebes/muçulmanos foram
historicamente os “Outros entre Nós” dos Ocidentais. Isto é importante para
compreender o que aconteceu com o estabelecimento do estado de Israel e o
Conflito que se lhe seguiu. Mas, para já, isto: I/P é, para o Ocidente e para o
mundo que vive sobremaneira uma narrativa ocidentalizada, o lugar onde se
juntam os “seus” judeus e os “seus” árabes.
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
Não farei aqui a história dos factos. Mas o estabelecimento do estado de Israel
tem duas origens que nos interessa identificar. A primeira, e a que normalmente
não se presta atenção, tem a ver com um filossemitismo cristão, sobretudo
protestante e evangélico, que vem de muito atrás, e que substituiu o
antissemitismo próprio das cruzadas. Trata-se de uma leitura fundamentalista
da Bíblia que vê os judeus como os verdadeiros donos de Israel e que pretende
repor a ordem natural (bíblica) das coisas. Foi em parte graças à força deste
filossemitismo sionista cristão, sentido por algumas personagens políticas
ocidentais fulcrais no processo, que o sionismo do século XIX foi relativamente
bem acolhido em muitas chancelarias ou por personagens específicos dentro
delas. A segunda, mais conhecida, tem a ver com o facto de que, lado a lado com o
sionismo de Theodor Herzl, vigorava no século 19 e inícios de 20 um sionismo
socialista, sobretudo russo, que viria a resultar no estabelecimento das primeiras
colónias em Israel sob a forma de kibbutzim. Estas duas correntes – uma cristã e
outra marxista – deram a tonalidade utópica e revolucionaria à ideia da
construção do estado de Israel. Já o sionismo mainstream, o de Herzl, devia-se
sobretudo a ideias nacionalistas de cariz liberal, tipicamente oitocentistas e
novecentistas, sentidas pelas classes médias judias de países ocidentais que
haviam verificado, com a continuação de pogroms (a Leste) e discriminações
várias (a Ocidente), que o seu projeto de integração laica e liberal não havia
resultado e que tal conduzia à necessidade de um estado-nação judeu.
O estabelecimento do estado de Israel tem a ver, por outro lado, com as atitudes
perante o mundo árabe e muçulmano na época. O território do atual
Israel/Palestina estava nas mãos do Império otomano por alturas da primeira
grande guerra. Com a vitória das potências ocidentais, Inglaterra e França
começam o processo de divisão dos espólios. Se é relativamente consensual a
ideia de que à época não existia uma identidade ou reivindicação nacional
palestiniana, existia porém uma reivindicação sionista. A chegada de colonos
judeus sionistas ao território (que havia começado nos finais do século 19) foi
gerando de forma crescente reações negativas por parte da população árabe,
sobretudo das elites de Jerusalém que se encontravam entre a antiga ligação
(mais ou menos pacífica, mais ou menos beligerante) com os Otomanos e a
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
possível ligação com os novo poder colonial britânico. É nesta época que surge o
nacionalismo árabe – e ele é árabe, não especificamente palestiniano. Ele cresce à
medida que se dá a penetração judia sionista e desenvolve-se em nacionalismo
palestiniano. Se os conflitos entre judeus e árabes entram em escalada na
viragem do século, eles não deixam de ser também conflitos entre judeus e
árabes versus britânicos. De um ponto de vista de uma leitura colonial não
estamos perante uma situação típica, portanto, mas perante a reivindicação de
uma mesma terra por parte de dois grupos em conflito e face a um colonizador
que, de qualquer modo, não o era estritamente, mas sim um administrador de
transição com um Mandato. Ou seja, do ponto de vista de uma época e geografia
marcada pelo sistema colonial, I/P foi um caso sui generis, em que nem a
analogia com as colonizações “brancas” (Austrália, Canadá, etc) é viável. Para
todos os efeitos, no entanto, há que realçar o seguinte: o sionismo apresentava-se
como não anti-árabe, mas como fazedor de uma realidade de desenvolvimento e
prosperidade em Israel de que os árabes poderiam beneficiar. Ou seja, a mesma
ideia civilizadora e desenvolvimentista do colonialismo moderno, sem dúvida, ou
não fossem os sionistas sobretudo ocidentais – europeus, demo-liberais, com o
frame of mind do evolucionismo - ou socialistas marxistas.
No princípio do conflito temos, portanto, uma realidade cultural complexa. Mas
quando dizemos “no princípio do conflito” estamos de certa maneira a dizer “no
princípio da história de Israel/Palestina”. Isto porque, para efeitos de um certo
realismo antropológico, a coisa-Israel e a coisa-Palestina surgem em virtude dos
seguintes factores: 1) o sionismo como movimento etno-nacional reivindicando
um estado; 2) o nacionalismo palestiniano como resultado da reação ao
encroachment judeu e como ramificação do nacionalismo árabe pós-otomano; 3)
a política internacional do período do pós primeira guerra, de divisão colonial do
mundo extra-ocidental e sobretudo do pós-segunda guerra e Holocausto. É por
isso que falar de Israel/Palestina é falar do Conflito e falar do Conflito é falar dos
cruzamentos vários entre antissemitismo, filossemitismo e sionismo,
orientalismo, árabofobia e nacionalismo árabe, bem como de islamofobia e islão
político, e falar do Conflito é falar da Terra e da disputa por ela.
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
A ideia de estado-nação é baseada na correspondência ideal entre um povo, uma
entidade étnica, com língua e costumes próprios (“cultura”), um território, uma
genealogia que expande para a nação a ideia de parentesco, e uma entidade
política, um estado, que garante a integridade do território, da economia
nacional e estabelece as fronteiras, reais e simbólicas, do dentro e do fora, do nós
e dos outros. O sionismo estabeleceu essa receita para os judeus. Fê-lo fazendo
vingar uma noção étnica, do judaísmo, e não uma noção estritamente
confessional, religiosa. Para tal contribuíram certamente as versões mais
raciológicas e racistas do antissemistismo e do pensamento do século dezanove e
início de vinte. O projeto do estado de Israel era de um estado democrático, de
modelo totalmente ocidental, mas onde a pertença teria de ser definida pelo
caráter judeu das pessoas – algo que em rigor só pode ser definido pelas
autoridades religiosas mas que se define pela filiação, tal como no parentesco.
Foi assim que o estado se estabeleceu na base da remissão para as autoridades
religiosas de uma série de aspetos do que chamaríamos o código civil, acabando
por dar a Israel a característica de um estado baseado um critério de
exclusividade étnica, de direito de sangue em coincidência ou justaposição com o
que chamaríamos normalmente “apenas” pertença confessional, religiosa. Isto é
mais uma especificidade, desta feita no âmbito da construção dos estados-nação.
Mas é também um indicador do “excesso” a que me referi: é que demonstra as
ambiguidade e as contradições inerentes ao projeto demo-liberal, não por se
constituir num caso especial de racismo institucional, ao contrário do que alguns
argumentos ideológicos sustentam mas porque Israel É a democracia liberal e o
estado-nação ocidental a funcionar demasiado em pleno.
Mas o estado de Israel confrontou-se e confronta-se com contradições difíceis de
sanar. A primeira é obviamente o facto de abranger um território que é
reivindicado por outra entidade, os palestinianos. O nacionalismo palestiniano
desenvolveu-se por reação e rapidamente construiu a sua narrativa específica,
também segundo o modelo do estado-nação e também, aliás, segundo um
modelo basicamente demo-liberal. Poderíamos em rigor falar da mútua
constituição entre identidades nacionais israelense e palestiniana em torno do
conflito sobre a mesma terra. Um exemplo é o papel identitário que é cumprido
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
pelo Holocausto para os judeus e pela Naqba para os Palestinianos. Ou, como
veremos na abordagem de alguns topoi, as narrativas sobre catástrofe, exílio,
diáspora, retorno, terra. A segunda ambiguidade ou contradição tem a ver com a
diversidade interna dos israelenses. Desde logo, a genealogia política do
sionismo: por um lado o sionismo de direita e exclusivista (por vezes religioso,
mas nem sempre) da Grande Israel, profundamente anti-árabe, e desenvolvido
já em Israel; depois, o projeto demo-liberal de Herzl; e por fim, uma sua versão, a
construção de Israel por muitos anos como país que praticamente se poderia
denominar como socialista, de que a economia do kibbutz terá sido o paradigma
e epítome. Temos depois a questão da diferenciação sectária e étnica: Israel foi
construído e é dominado pelos judeus ashkenazim, do centro e leste da Europa,
ocidentalizados (tanto pelo capitalismo como pelo marxismo – em suma, pelo
fundo ocidental liberal), mas acolheu naturalmente, em virtude do critério etno-
religioso de pertença, os judeus sefarditas e orientais (mizrahi) que constituem
aliás a maioria da população mas também da classes mais desfavorecidas
económica e politicamente, e alvo de formas de racismo subtil pela sua
associação a quadros culturais de fundo árabe. Por outro lado ainda, as
diferenças de origem linguística e étnica foram alvo da ação do estado no sentido
de ativamente as superar, através da criação de uma língua comum, o hebraico
moderno, e de sistemas de socialização de que o mais relevante é o próprio
exército – resultante não dos projetos sionistas iniciais mas do estado de guerra
que começou no dia seguinte à declaração da independência (ainda que o ethos
denominado sabra –do pioneirismo, da invenção dum judeu novo regenerado
pelo trabalho agrícola e pela atividade física, pelo afastamento dos padrões
burgueses e intectuais – constitua o fundo da invenção de uma cultura israelense
marcadamente diferenciada da da diáspora). Estas diferenças viriam a ser
reforçadas com os fluxos massivos de russos a partir dos anos 80 e com a
chegada dos judeus etíopes, cuja negritude desafiou seriamente a
autoidentificação nacional. Se os primeiros nunca se integraram
verdadeiramente, escapando já ao período histórico da construção da nação e
assumindo-se muitos como migrantes económicos e políticos, os segundos
viriam a ocupar os mais baixos níveis sociais. Por fim, a partir dos anos 80 a
sociedade israelense começou a ser confrontada com as correntes religiosas que
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
mantêm não só o estado refém ao nível do direito civil como agora também ao
nível da constituição de maiorias políticas de governação. A oposição secular-
religioso, que corresponde em muito também a alinhamentos asquenazita-
sefardita/mizrahi, é das principais fontes de tensão na sociedade. É um
fenómeno recente, e tem o seu espelho na sociedade palestiniana.
Do “lado” palestiniano, comecemos desde logo por uma contradição que é
comum com o lado israelense: o facto de 20% da população de Israel ser
palestiniana, os árabes cidadãos de Israel, descendentes de quem não foi expulso
ou não fugiu na guerra subsequente à independência em 48. Estes árabes, tanto
muçulmanos como cristãos e druzos, têm um estatuto claramente secundarizado
na sociedade, e são uma chamada de atenção constante quanto às contradições
entre o estado-nação etno-religioso e o projeto demo-liberal de cidadania. Em
território atualmente considerado palestiniano, a principal clivagem tem sido
política, entre por um lado “os de fora” e, por outro, “os de dentro”, isto é, quem
desenvolveu o seu nacionalismo e luta pela libertação nos campos de refugiados
nos países em redor ou na diáspora e quem permaneceu no que viriam a ser os
territórios ocupados ou em território do estado de Israel. Os primeiros sempre
foram mais maximalistas, os segundos mais constituídos mutuamente com os
israelenses. Isto resultou ao longo do tempo entre o não reconhecimento do
estado de Israel, num extremo, e a aceitação do atual plano de partilha ou mesmo
a ideia do estado binacional. Num outro plano, a sociedade palestiniana é
constituída tanto por muçulmanos como por cristãos. Interessantemente, não foi
esta diferença que constituiu uma clivagem (aliás, o nacionalismo palestiniano
até poderá ter sido reforçado por esta diversidade religiosa), mas sim o recente
surgimento da política religiosa através do Hamas, quer da Jihad Islâmica. O
fundamentalismo islâmico e político está para a Palestina como o campo ultra-
religioso para Israel, alterando completamente o quadro laico e nacionalista em
que o Conflito se articulou durante décadas – e coincidindo com a transformação
do Conflito de conflito israelo-árabe em conflito israelo-palestiniano, “interno”.
No caso dos territórios reconhecidamente palestinianos, este desenvolvimento
resultou mesmo na separação virtual entre Gaza, dominada pelo Hamas, e a
Cisjordânia, dominada pela Autoridade Palestiniana.
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
Topoi
A História.
Não há nacionalismo sem história e disputas sobre a sua narração. Mas no caso
de I/P a História ganha outra dimensão. Ela mistura-se com narrativas religiosas,
sobretudo bíblicas (judias, internamente, e cristãs, externamente) e – menos -
corânicas. A reivindicação judia é sobre a terra de origem de onde se deu a
expulsão definitiva há 2000 anos. A reivindicação palestiniana é sobre a terra
onde se vive há centenas de anos. Para uns ela foi uma dádiva divina, para outros
ela foi o lugar de importantes eventos de caráter sagrado, nomeadamente
associados ao profeta. A construção do estado de Israel tem assentado num
investimento fortíssimo em políticas de historiografia, de arqueologia, de
invenção de tradição, de renomeação de lugares, de turismo cultural e
nacionalista destinado à diáspora e não só, etc. As autoridades palestinianas têm
apostado na disseminação de produções artísticas sobre o espírito do lugar,
sobretudo das terras abandonadas ou ocupadas, das memórias familiares, e
também, naturalmente, na invenção de tradições diferenciadoras do universo
árabe limítrofe.
O Exílio e a catástrofe
A identidade judaica reproduziu-se ao longo de séculos na diáspora enquanto
identidade no exílio. Ao ponto de toda a estrutura do religioso ter sido
transformada desde a destruição do Templo, levando até a que certos grupos
ultra-religiosos sejam marcadamente anti-sionistas2. A identidade palestiniana
construiu-se a partir da narrativa da Naqba, - ou do que tem sido construído nos
últimos anos, e alvo de contestação por alguns sectores israelenses, que
recorrem a muitas das teorias críticas que nós, antropólogos, usamos... - e é toda
ela baseada na ideia de perda e expulsão e do sonho do regresso. O direito ao
retorno é por exemplo um dos principais temas em disputa na resolução do
Conflito. Por outro lado, se os pogroms e perseguições foram sempre um
2 Explicar como o templo não é para se reconstruído, o rabino não é um sacerdote, a sinagoga não é um templo, os sacrifícios estão proibidos, o retorno a Israel depende da chegada do Messias, etc.
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
elemento de construção identitária pela negativa para os judeus, o Holocausto
constituiu-se no excesso inultrapassável. A ideia de catástrofe é a que está
também, aliás literalmente, associada à Naqba, e os massacres, nomeadamente
em Sabra e Chatila assumiram a propoção e tonalidade de pogroms.
A diáspora e o retorno
A palavra diáspora, agora banalizada, durante muito tempo aplicava-se apenas
ao judeus, isto é, a quem mantinha uma identidade coletiva de tipo protonacional
e étnico fora de um território de origem, sem território nacional ou étnico, e
espaltado por todo o mundo. A criação do estado introduziu uma ruptura entre
os sabra e os diaspóricos, embora por outro lado o estado sobreviva em grande
medida graças ao esforço diaspórico, sobretudo de um segmento muito concreto,
o dos EUA. A criação do estado, com a sua territorialização, constituiu um duro
golpe no imaginário diaspórico, que é aliás muito menosprezado em Israel –
tanto que o que sucede mais é sim a “busca das raízes”, à semelhança do que
aconteceu em países neo-europeus, como os EUA, a Austrália, alguns da América
Latina etc – a “diáspora” como imaginação do passado, não como realidade do
presente e forma identitária positiva. Do lado palestiniano, a expulsão
constituiria uma diáspora dúplice, por um lado de quadros, e nisso muito
semelhante à diáspora judia, por outro de refugiados.
A Terra, o Checkpoint, o Muro
A terra, o território e a sua imaginação, são um elemento central do imaginário
judeu pós-estado, e são o elemento fundamental de angústia para ambos os lados
do conflito. As negociações, as reivindicações, os conflitos armados, fazem-se em
torno de metros de terreno, num território de Israel com uma área de 20 mil
km2 (menos de ¼ de Portugal) e num território Palestiniano do tamanho do
Algarve (e há que ver que metade de Israel é o deserto do Negev). A política dos
colonatos é uma política de ocupação político-simbólica da terra, mais do que
expansão territorial. A vida quotidiana nas áreas definidas para a Palestina é
feita de mapas e percuros sinuosos – com checkpoints, apropriações de recursos
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
de água, destruição de culturas, estradas de várias categorias, zonas
administrativas a, b e c, jurisdições várias, tudo num território exíguo. A vida é
feita de linhas, imaginárias e reais, de tratados e datas, prédios que são
destruídos, outros construídos, de modo a mudar a paisagem. Mas a memória
persiste – e é igualmente manipulada, e vice-versa. A Terra é também o território
patrulhado e o território dividido, o acesso permitido e o negado, as
dependências de emprego, de água e luz, de aeroporto, as autorizações e passes.
O Muro, por sua vez, tornou-se em estrutura simbólica e em estrutura real de
separação, um passo mais do que o Checkpoint, lugar da performance do
controlo e da pertença ou não-pertença. O caráter performativo dos colonatos,
dos checkpoints e do muro dominam a cultura comum de israelenses e
palestinianos, feita deste excesso de concretização dos projetos nacionais.
Jerusalém
Jerusalém foi retratada como o centro do mundo, e assim é. É o centro do tal
mundo que é de todos, como disse no início. Terra Santa dos Cristãos, das
cruzadas, dos filossemitismos cristãos; Lugar do Templo e onde se deve ir para
morrer para os judeus: Lugar da ascensão de Maomé aos céus, para os
muçulmanos. É ali que as linhas divisórias, as ocupações e expulsões se tornam
mais evidentes. Na que poderia ser e já foi proposto que fosse a única cidade
internacional. Provavelmente Jerusalém condensa o Conflito, as identidades
nacionais em disputa e, ao mesmo tempo, o imaginário mundial (sobretudo
ocidental e do mundo ocidental, europeu, mediterrânico e árabe-islâmico) sobre
I/P. Ali nada é certo, tudo é apropriação e disputa – uma vez mais, um excesso de
processos semelhantes noutros contextos.
O Médio Oriente
O Conflito tem sido muitas vezes denominado o conflito do Médio Oriente. Pelas
suas implicações reginoais, geoestratégicas e económicas, e pelos atores políticos
envolvidos. Mas há uma outra dimensão ou acepção que podemos dar à
expressão, sobretudo à partícula “médio”. Em Israel/Palestina, a da vida
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
quaotidiana das pessoas, nas disputas em torno de liberdades, estilos de vida,
recursos, para lá da discussão sobre o Conflito, o que surge é sempre a ideia de
ponto de encontro e confronto (e para alguns de superação possível) entre as
categorias “Ocidente” e “Oriente”. Pense-se, por exemplo, na liberdade para LGBT
em Israel e na sua repressão na Palestina. Ou, complexificando, nas acusações de
pinkwashing- a ideia de que o estado de Israel promoveria uma imagem exterior
de democracia liberal para ocultar a natureza religiosa do estado e reforçar a sua
missão civilizadora em terras bárbaras (mas pense-se também quanto as
lideranças palestinianas investiram na projeção de uma agenda laica). Mas
pense-se também em como a dicotomia oriental/ocidental não é claramente
justaponível (embora o seja, ideológica e propagandisticamente para muitos) a
árabes, por um lado, e judeus, por outro, mas pode ser transversal. Veja-se o
exemplo dos fatos de banho para ultra-religiosas na praia segregada por género
em Tel-Aviv e na partilha de modelos com muçulmanas religiosamente estritas,
na Palestina ou, mais ainda, no arquiinimigo Irão. Pense-se também na divisão
J’Lem/Tel Aviv (In Jerusalem you pray, in Tel-Aviv you play) ou na divisão
Gaza/Cisjordânia. Mas pense-se também nas musicalidades e gastronomias
iguais para judeus e palestinianos, nas expressões misturadas como “yalla bye”,
ou, obversamente, nas separações ocidental/oriental entre judeus de origem
europeia e de origem árabe.
Terreno Minado
Pensemos agora em muito do que tem constituído uma parte significativa da
agenda antropológica nas últimas décadas: o grupo étnico, o estado-nação e o
nacionalismo, o conflito identitário, os discursos e narrativas das identidades
coletivas, os diferentes níveis e categorias de diferenciação social, a crítica da
modernidade, o colonialismo e o pós-colonialismo, a política do corpo, do
parentesco, do sangue, enfim. Pensem nisto tudo e vejam como em I/P tudo está
a acontecer e a acontecer há muito pouco tempo e no entanto já tão completo e a
produzir os mais perversos efeitos. Há informantes, vivos, com quem se pode
conversar sobre aprender hebraico como uma língua completamente nova ou
sobre como uma certa interpretação política do Islão surgiu. Embora tudo
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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado
precise de arquivo, e tudo se projete tanto mais longe no tempo quanto mais o
conflito está aguçado no presente, na realidade todos aqueles processos que
estudamos estão a acontecer. Tudo está a acontecer, ou aconteceu “apenas
anteontem”, num lugar que assim que se construiu na base dos grandes projetos,
ideologias e sistemas interpretativos da modernidade ocidental (do iluminismo
ao liberalismo ao socialismo) deles ficou logo órfão. É um lugar minado pelas
narrativas da modernidade e que as vive em excesso – e o modo de vida é, na
acepção estrita e na acepção lata, o conflito.
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