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Miguel Vale de Almeida

Conflito. Definindo Israel/Palestina como terreno minado pelo excesso

Seminário de Antropologia, ICS-UL

4 janeiro 2013

Estou a iniciar um projeto de pesquisa com o título provisório de “Projetos

pessoais, projetos nacionais. Narrativas e experiências de ‘retorno’ a

Israel/Palestina”. Trata-se de coligir e analisar relatos de judeus que decidiram

fazer aliyah (o exercício do direito de ‘retorno’ ou de obtenção da nacionalidade

israelense) e de palestinianos que decidiram trocar a diáspora ou o refúgio pela

vida nos Territórios Ocupados – impedidos que estão do ‘retorno’ ao território

do Estado de Israel. Procuro perceber como a imaginação do lugar de suposta

pertença entra, e tem efeito, na construção de si, face ao sentimento de pertença

ao país de origem e nacionalidade. No caso recorrerei a pessoas oriundas do

Brasil, pela facilidade linguística, pelo conhecimento que tenho da realidade

brasileira, e por permitir uma perspectiva comparativa entre judeus e

palestinianos brasileiros.

Mas o que quero apresentar aqui é algo de prévio a essa pesquisa. Trata-se de

indagar o próprio terreno. Também no sentido contemporâneo de “terreno” –

que inclui os próprios contornos da pesquisa – mas sobretudo no seu sentido

mais estrito ou clássico, de lugar. Um lugar físico e imaginário, onde o físico é

também imaginado e o imaginário é projetado na sua concretização física. Um

lugar que é narrado tanto à distância como na presença física. Um lugar que é

narrado na História, quanto uma História que é refeita e negociada

constantemente nos acontecimentos.

Vou começar pela questão dos contornos da pesquisa, expondo o que entendo

pelo caráter “minado” do terreno quando, na universidade, na antropologia, ou

em público, digo que trabalho sobre Israel/Palestina. Seguem-se algumas

questões – não desligadas da primeira discussão - que tornam o terreno

Israel/Palestina no que chamaria um lugar do excesso das problematizações

antropológicas. De seguida especificarei alguns topoi fundamentais da realidade

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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado

cultural que se reproduz em Israel/Palestina – e, uma vez mais, como fazem

feedback sobre o que tenha dito antes. E finalizarei regressando à ideia de

terreno minado, agora de uma forma produtiva e positiva.

Uma formulação de pesquisa minada

Há dias contava a alguém, fora da antropologia e da universidade, que tinha

lecionado este semestre uma cadeira sobre Israel/Palestina. A pessoa perguntou-

me imediatamente: “E convenceste os alunos a serem a favor de Israel ou da

Palestina?” Esta pergunta diz quase tudo. Tentei explicar que nem uma coisa nem

outra e a pessoa sorriu perante o que julgou ser uma afirmação ingénua sobre

neutralidade e objetividade científicas. Vi-me obrigado a explicar o que entendo

por ambas. Em qualquer terreno trata-se de ouvir as múltiplas vozes que

debatem, negoceiam e conflituam; trata-se de ir a contrapelo do senso comum, o

dos informantes e o nosso, ativando os debates da teoria social face às realidades

do terreno; e trata-se também – pela consciência que temos da reflexividade das

ciências sociais – de assumir, na produção escrita, quais as nossas posições

enquanto cidadãos. Se é certo que em antropologia é fantasioso almejar uma

objetividade e neutralidade científicas como imaginadas para as ciências

naturais (e sublinhe-se “imaginado”), a alternativa não é certamente a

transformação da investigação numa ferramenta do ativismo (sublinhe-se

“ferramenta”) nem o abandono pós-moderno ao primado de uma dúvida não

crítica mas nihilista.

Mas é o facto de a etiqueta “Israel/Palestina” suscitar aquele tipo de pergunta e

obrigar a reflexões sobre a relação entre ciência, identidade, e política, que em

grande medida me fascina naquele terreno. A pergunta sobre “o lado em que se

está” remete obviamente para O Conflito. Talvez a melhor maneira de dizer onde

me situo seja esta: vejo a questão em três níveis de conceptualização e

temporalidade: um, ideal (ou idealista, ainda que não utópico), um

realista/reformista, e outro da urgência. O primeiro resume-se nisto: idealmente

gostaria de ver Israel/Palestina como um só país, laico, sem uma etnicidade

legalmente dominante, democrático, e com uma narrativa nacional que afirmasse

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Miguel Vale de Almeida 2013 Israel/Palestina: definindo um terreno minado

o estado como o lugar de pertença do povo judeu e dos árabes palestinianos. É a

conhecida solução do estado binacional (que poderia ir desde a minha

formulação idealista até uma solução à belga), mas defendida por muito poucas

pessoas, por razões que poderemos debater no final1. O segundo resume-se

nisto: conseguir o que consta dos acordos e resoluções internacionais, ou seja,

um estado palestiniano independente e viável lado a lado com o estado de Israel.

(E tanto no 1º como no 2º caso, idealmente uma zona de comércio livre no

Levante e zonas limítrofes – Síria, Líbano, Israel, Palestina, Jordânia, Egito). O

terceiro tem a ver com a necessidade de assegurar as condições que garantam

que o segundo seja possível e com decisões políticas que podem (e devem) ser

tomadas de imediato, como o cessar da expansão de colonatos na Cisjordânia e

entorno de Jerusalém ou o fim do bloqueio a Gaza ou, do outro lado, o

reconhecimento de Israel por parte dos movimentos políticos palestinianos de

cariz islamista. Mas a realidade é bem mais complexa do que o desejo da sua

resolução e muito do que vou demonstrar tem a ver com o realismo etnográfico,

isto é, perceber como a vida acontece - a vida individual, social e política – num

quadro que de certa maneira implica o estado de conflito. Em suma, perceber – e

aí está de novo a necessidade de neutralidade e objetividade como esforço e

processo, que referi acima – a normalidade no aparentemente anormal (um

“anormal” que, como defenderei, é apenas um excesso em Israel/Palestina, mas

que ajuda a perceber, por isso mesmo, como todas as situações sociais são

“anormais”).

A pergunta que me foi feita – sobre a posição na dicotomia do conflito (para mim

já uma coisa estranha, pois não vejo aquele conflito como dicotómico) desdobra-

se em duas outras. Uma política e outra identitária. A política tem a ver com o

facto de uma dicotomia normalmente facilitar o estabelecimento de um sistema

de correspondências: Israel ou Palestina?, direita ou esquerda?, pró-americano e

pró-imperialista ou pró-árabe e pró-autodeterminação? Etc. A identitária

prende-se normalmente com a questão: “Mas és judeu?” A minha posição, tanto

quanto me posso autoavaliar, é a seguinte: tenho muito mais conhecimento –

1 Nomeadamente o receio da prevalência demográfica dos palestinianos, ou a perda do caráter judeu do estado. Daí o apoio a esta solução ser sobretudo palestiniano.

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pessoal, autobiográfico, linguístico, cultural, religioso – sobre Israel

propriamente dita e o Judaísmo do que tenho sobre a Palestina, o mundo árabe

ou o Islão (o mesmo não diria sobre o Cristianismo, claro, significativo na

Palestina). O conhecimento, que gera familiaridade, gera também um grau de

simpatia e por vezes de empatia que não nego. Mas outros princípios – como

convicções sobre justiça, ou políticas – levam-me a reconhecer que a situação

Palestiniana é a situação mais precária e injusta no sistema do conflito (as coisas

mudam de figura quando entramos na intersubjetividade, pois as histórias de

mortos na família, por exemplo, são iguais dos dois “lados”, são histórias de...

mortos na família). Por outro lado, o que o terreno demonstra, ao contrário das

dicotomizações feitas a partir de fora, a partir do consumo mundial do símbolo

“Conflito Israelo-Palestiniano”, é um grau de diversidade, complexidade,

ambiguidade e contradição nos posicionamentos (disso falarei a seguir) no

próprio terreno e fora (judeus sionistas e anti-sionistas, ou antissemitas de

direita e anti-semitas disfarçados de anti-sionistas de esquerda, etc.), que

desautoriza a possibilidade de escolher cristalinamente “lados” (o que não

impede tomar posições políticas sólidas face a casos e acontecimentos concretos,

com base em critérios éticos transparentes e imediatos).

Por fim, as condições políticas e identitárias da minha relação com o terreno. A

minha entrada em Israel/Palestina tem sido, em rigor, uma entrada no estado de

Israel, como professor convidado que sou da Universidade Hebraica de

Jerusalém. Isto significa que, apesar de ser estrangeiro e teoricamente poder

circular nos Territórios Ocupados – sujeito às restrições jurisdicionais que os

dividem em áreas sob controlo israelense, misto ou palestiniano – não participei,

(conscientemente, aliás) de apelos ao boicote na colaboração com instituições

israelenses. Poderemos discutir isso no fim – nomeadamente a forma crítica

como vejo o uso de analogias com o apartheid sul-africano – mas há que dizer

que a universidade é um “território” diferenciado, onde a discussão sobre o

conflito se faz de forma aberta e sem me ser imposto qualquer tipo de restrição.

Uma observação mais. É normalmente na linguagem que se deteta melhor o

caráter minado de uma questão. Neste caso, e sobretudo quando no local, as

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denominações utilizadas fazem toda a diferença: dizer West Bank, Cisjordânia,

Territórios Ocupados, ou Judeia e Samaria define posicionamentos, por exemplo.

O mesmo se aplica à toponímia de vilas, aldeias, cidades, bairros.

Concluído esta parte, a própria definição da pesquisa e do seu lugar está minada

pela perceção externa d’ O Conflito e pelo automatismo, ou pela suspeita, na

classificação das posições políticas e identitárias do investigador. Dir-me-ão que

isso se pode aplicar a qualquer contexto ou tema. Claro que sim. Mas

convenhamos que isso é excessivo neste caso. E os casos excessivos, extremos,

provavelmente ajudam a iluminar os outros. O anormal ilumina o normal.

Um lugar de excesso

A primeira questão que me surgiu relativamente a Israel/Palestina foi a seguinte:

em praticamente qualquer lugar do mundo, e desde praticamente o pós-guerra,

qualquer pessoa tem informação e tem uma opinião sobre o contexto. O mesmo

não acontece sobre contextos pouco falados, naturalmente; mas tão-pouco

acontece sobre contextos conflituosos muito falados (alguém se entusiasma, fora

do entorno imediato, ao ponto dos gritos e da zanga, com o País Basco ou a

Irlanda do Norte?). Essa informação vem sobretudo dos mass media. Mas não só

– e isto tem a ver com a formação da opinião: ela vem também de um

caleidoscópio de ideologias e posicionamentos em relação aos quais

Israel/Palestina parece ser um bom lugar para pensar. Tudo isto se relaciona,

obviamente, com O Conflito. A informação veiculada depende do Conflito, a

opinião formulada é sobre o Conflito. Mas tanto a informação como a opinião

sobre o Conflito tendem a ser também informação e opinião sobre outras coisas

que não o conflito: posições ideológicas, posições étnicas, posições religiosas. E,

por outro lado, o centramento no Conflito impede totalmente a curiosidade ou o

conhecimento sobre a vida comum, a vida banal, o quotidiano, em suma, a

humanidade fundamental da vida em Israel/Palestina. Por fim, esta característica

de toda a gente ter algo a dizer sobre I/P torna I/P num tipo muito específico de

não-lugar, por excesso e não por vazio, um (não-)lugar de projeção, uma

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projeção que ofusca a vida real das pessoas reais lá e, portanto, da cultura que ali

se vai construíndo.

O discurso sobre o Conflito israelo-palestiniano é também um discurso que

oculta outros discursos. Em primeiro lugar o do antissemitismo e o do

filosemitismo. Em segundo lugar o da árabofobia e da islamofobia e os seus

inversos. O antissemitismo é um complexo cultural historicamente profundo no

Ocidente, gerador de uma ansiedade ambígua, sobretudo depois do Holocausto,

em que pulsões antissemitas perduram lado a lado com sentimentos de culpa. A

árabofobia e a islamofobia também são de longa data, mas os mecanismos de

culpa não foram acionados de igual modo, devido ao discurso antiterrorista dos

últimos anos, bem como às reações às migrações árabes e/ou islâmicas para o

Ocidente.

[Há que dizer, aliás, que neste terreno existe uma assimetria simbólica dupla: por

um lado o antissemitismo é historicamente mais profundo e foi levado ao ponto

extremo da eugenia raciológica com limpeza étnica, por comparação com uma

arabofobia e islamofobia com contornos mais semelhantes aos de outros

etnocentrismos e xenofobias; e no plano da situação em I/P, o poder económico e

militar de Israel é assimetricamente superior ao da entidade palestiniana.]

Este complexo de representações é ambíguo em si mesmo. Se historicamente o

Ocidente produziu o antissemitismo, parte dele é feito também de um ‘respeito’

pelos judeus como empreendedores, resistentes, cultos, etc. Se historicamente o

Ocidente orientalizou os árabes e muçulmanos, parte desse orientalismo é feito

de idealizações românticas também. Judeus e árebes/muçulmanos foram

historicamente os “Outros entre Nós” dos Ocidentais. Isto é importante para

compreender o que aconteceu com o estabelecimento do estado de Israel e o

Conflito que se lhe seguiu. Mas, para já, isto: I/P é, para o Ocidente e para o

mundo que vive sobremaneira uma narrativa ocidentalizada, o lugar onde se

juntam os “seus” judeus e os “seus” árabes.

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Não farei aqui a história dos factos. Mas o estabelecimento do estado de Israel

tem duas origens que nos interessa identificar. A primeira, e a que normalmente

não se presta atenção, tem a ver com um filossemitismo cristão, sobretudo

protestante e evangélico, que vem de muito atrás, e que substituiu o

antissemitismo próprio das cruzadas. Trata-se de uma leitura fundamentalista

da Bíblia que vê os judeus como os verdadeiros donos de Israel e que pretende

repor a ordem natural (bíblica) das coisas. Foi em parte graças à força deste

filossemitismo sionista cristão, sentido por algumas personagens políticas

ocidentais fulcrais no processo, que o sionismo do século XIX foi relativamente

bem acolhido em muitas chancelarias ou por personagens específicos dentro

delas. A segunda, mais conhecida, tem a ver com o facto de que, lado a lado com o

sionismo de Theodor Herzl, vigorava no século 19 e inícios de 20 um sionismo

socialista, sobretudo russo, que viria a resultar no estabelecimento das primeiras

colónias em Israel sob a forma de kibbutzim. Estas duas correntes – uma cristã e

outra marxista – deram a tonalidade utópica e revolucionaria à ideia da

construção do estado de Israel. Já o sionismo mainstream, o de Herzl, devia-se

sobretudo a ideias nacionalistas de cariz liberal, tipicamente oitocentistas e

novecentistas, sentidas pelas classes médias judias de países ocidentais que

haviam verificado, com a continuação de pogroms (a Leste) e discriminações

várias (a Ocidente), que o seu projeto de integração laica e liberal não havia

resultado e que tal conduzia à necessidade de um estado-nação judeu.

O estabelecimento do estado de Israel tem a ver, por outro lado, com as atitudes

perante o mundo árabe e muçulmano na época. O território do atual

Israel/Palestina estava nas mãos do Império otomano por alturas da primeira

grande guerra. Com a vitória das potências ocidentais, Inglaterra e França

começam o processo de divisão dos espólios. Se é relativamente consensual a

ideia de que à época não existia uma identidade ou reivindicação nacional

palestiniana, existia porém uma reivindicação sionista. A chegada de colonos

judeus sionistas ao território (que havia começado nos finais do século 19) foi

gerando de forma crescente reações negativas por parte da população árabe,

sobretudo das elites de Jerusalém que se encontravam entre a antiga ligação

(mais ou menos pacífica, mais ou menos beligerante) com os Otomanos e a

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possível ligação com os novo poder colonial britânico. É nesta época que surge o

nacionalismo árabe – e ele é árabe, não especificamente palestiniano. Ele cresce à

medida que se dá a penetração judia sionista e desenvolve-se em nacionalismo

palestiniano. Se os conflitos entre judeus e árabes entram em escalada na

viragem do século, eles não deixam de ser também conflitos entre judeus e

árabes versus britânicos. De um ponto de vista de uma leitura colonial não

estamos perante uma situação típica, portanto, mas perante a reivindicação de

uma mesma terra por parte de dois grupos em conflito e face a um colonizador

que, de qualquer modo, não o era estritamente, mas sim um administrador de

transição com um Mandato. Ou seja, do ponto de vista de uma época e geografia

marcada pelo sistema colonial, I/P foi um caso sui generis, em que nem a

analogia com as colonizações “brancas” (Austrália, Canadá, etc) é viável. Para

todos os efeitos, no entanto, há que realçar o seguinte: o sionismo apresentava-se

como não anti-árabe, mas como fazedor de uma realidade de desenvolvimento e

prosperidade em Israel de que os árabes poderiam beneficiar. Ou seja, a mesma

ideia civilizadora e desenvolvimentista do colonialismo moderno, sem dúvida, ou

não fossem os sionistas sobretudo ocidentais – europeus, demo-liberais, com o

frame of mind do evolucionismo - ou socialistas marxistas.

No princípio do conflito temos, portanto, uma realidade cultural complexa. Mas

quando dizemos “no princípio do conflito” estamos de certa maneira a dizer “no

princípio da história de Israel/Palestina”. Isto porque, para efeitos de um certo

realismo antropológico, a coisa-Israel e a coisa-Palestina surgem em virtude dos

seguintes factores: 1) o sionismo como movimento etno-nacional reivindicando

um estado; 2) o nacionalismo palestiniano como resultado da reação ao

encroachment judeu e como ramificação do nacionalismo árabe pós-otomano; 3)

a política internacional do período do pós primeira guerra, de divisão colonial do

mundo extra-ocidental e sobretudo do pós-segunda guerra e Holocausto. É por

isso que falar de Israel/Palestina é falar do Conflito e falar do Conflito é falar dos

cruzamentos vários entre antissemitismo, filossemitismo e sionismo,

orientalismo, árabofobia e nacionalismo árabe, bem como de islamofobia e islão

político, e falar do Conflito é falar da Terra e da disputa por ela.

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A ideia de estado-nação é baseada na correspondência ideal entre um povo, uma

entidade étnica, com língua e costumes próprios (“cultura”), um território, uma

genealogia que expande para a nação a ideia de parentesco, e uma entidade

política, um estado, que garante a integridade do território, da economia

nacional e estabelece as fronteiras, reais e simbólicas, do dentro e do fora, do nós

e dos outros. O sionismo estabeleceu essa receita para os judeus. Fê-lo fazendo

vingar uma noção étnica, do judaísmo, e não uma noção estritamente

confessional, religiosa. Para tal contribuíram certamente as versões mais

raciológicas e racistas do antissemistismo e do pensamento do século dezanove e

início de vinte. O projeto do estado de Israel era de um estado democrático, de

modelo totalmente ocidental, mas onde a pertença teria de ser definida pelo

caráter judeu das pessoas – algo que em rigor só pode ser definido pelas

autoridades religiosas mas que se define pela filiação, tal como no parentesco.

Foi assim que o estado se estabeleceu na base da remissão para as autoridades

religiosas de uma série de aspetos do que chamaríamos o código civil, acabando

por dar a Israel a característica de um estado baseado um critério de

exclusividade étnica, de direito de sangue em coincidência ou justaposição com o

que chamaríamos normalmente “apenas” pertença confessional, religiosa. Isto é

mais uma especificidade, desta feita no âmbito da construção dos estados-nação.

Mas é também um indicador do “excesso” a que me referi: é que demonstra as

ambiguidade e as contradições inerentes ao projeto demo-liberal, não por se

constituir num caso especial de racismo institucional, ao contrário do que alguns

argumentos ideológicos sustentam mas porque Israel É a democracia liberal e o

estado-nação ocidental a funcionar demasiado em pleno.

Mas o estado de Israel confrontou-se e confronta-se com contradições difíceis de

sanar. A primeira é obviamente o facto de abranger um território que é

reivindicado por outra entidade, os palestinianos. O nacionalismo palestiniano

desenvolveu-se por reação e rapidamente construiu a sua narrativa específica,

também segundo o modelo do estado-nação e também, aliás, segundo um

modelo basicamente demo-liberal. Poderíamos em rigor falar da mútua

constituição entre identidades nacionais israelense e palestiniana em torno do

conflito sobre a mesma terra. Um exemplo é o papel identitário que é cumprido

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pelo Holocausto para os judeus e pela Naqba para os Palestinianos. Ou, como

veremos na abordagem de alguns topoi, as narrativas sobre catástrofe, exílio,

diáspora, retorno, terra. A segunda ambiguidade ou contradição tem a ver com a

diversidade interna dos israelenses. Desde logo, a genealogia política do

sionismo: por um lado o sionismo de direita e exclusivista (por vezes religioso,

mas nem sempre) da Grande Israel, profundamente anti-árabe, e desenvolvido

já em Israel; depois, o projeto demo-liberal de Herzl; e por fim, uma sua versão, a

construção de Israel por muitos anos como país que praticamente se poderia

denominar como socialista, de que a economia do kibbutz terá sido o paradigma

e epítome. Temos depois a questão da diferenciação sectária e étnica: Israel foi

construído e é dominado pelos judeus ashkenazim, do centro e leste da Europa,

ocidentalizados (tanto pelo capitalismo como pelo marxismo – em suma, pelo

fundo ocidental liberal), mas acolheu naturalmente, em virtude do critério etno-

religioso de pertença, os judeus sefarditas e orientais (mizrahi) que constituem

aliás a maioria da população mas também da classes mais desfavorecidas

económica e politicamente, e alvo de formas de racismo subtil pela sua

associação a quadros culturais de fundo árabe. Por outro lado ainda, as

diferenças de origem linguística e étnica foram alvo da ação do estado no sentido

de ativamente as superar, através da criação de uma língua comum, o hebraico

moderno, e de sistemas de socialização de que o mais relevante é o próprio

exército – resultante não dos projetos sionistas iniciais mas do estado de guerra

que começou no dia seguinte à declaração da independência (ainda que o ethos

denominado sabra –do pioneirismo, da invenção dum judeu novo regenerado

pelo trabalho agrícola e pela atividade física, pelo afastamento dos padrões

burgueses e intectuais – constitua o fundo da invenção de uma cultura israelense

marcadamente diferenciada da da diáspora). Estas diferenças viriam a ser

reforçadas com os fluxos massivos de russos a partir dos anos 80 e com a

chegada dos judeus etíopes, cuja negritude desafiou seriamente a

autoidentificação nacional. Se os primeiros nunca se integraram

verdadeiramente, escapando já ao período histórico da construção da nação e

assumindo-se muitos como migrantes económicos e políticos, os segundos

viriam a ocupar os mais baixos níveis sociais. Por fim, a partir dos anos 80 a

sociedade israelense começou a ser confrontada com as correntes religiosas que

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mantêm não só o estado refém ao nível do direito civil como agora também ao

nível da constituição de maiorias políticas de governação. A oposição secular-

religioso, que corresponde em muito também a alinhamentos asquenazita-

sefardita/mizrahi, é das principais fontes de tensão na sociedade. É um

fenómeno recente, e tem o seu espelho na sociedade palestiniana.

Do “lado” palestiniano, comecemos desde logo por uma contradição que é

comum com o lado israelense: o facto de 20% da população de Israel ser

palestiniana, os árabes cidadãos de Israel, descendentes de quem não foi expulso

ou não fugiu na guerra subsequente à independência em 48. Estes árabes, tanto

muçulmanos como cristãos e druzos, têm um estatuto claramente secundarizado

na sociedade, e são uma chamada de atenção constante quanto às contradições

entre o estado-nação etno-religioso e o projeto demo-liberal de cidadania. Em

território atualmente considerado palestiniano, a principal clivagem tem sido

política, entre por um lado “os de fora” e, por outro, “os de dentro”, isto é, quem

desenvolveu o seu nacionalismo e luta pela libertação nos campos de refugiados

nos países em redor ou na diáspora e quem permaneceu no que viriam a ser os

territórios ocupados ou em território do estado de Israel. Os primeiros sempre

foram mais maximalistas, os segundos mais constituídos mutuamente com os

israelenses. Isto resultou ao longo do tempo entre o não reconhecimento do

estado de Israel, num extremo, e a aceitação do atual plano de partilha ou mesmo

a ideia do estado binacional. Num outro plano, a sociedade palestiniana é

constituída tanto por muçulmanos como por cristãos. Interessantemente, não foi

esta diferença que constituiu uma clivagem (aliás, o nacionalismo palestiniano

até poderá ter sido reforçado por esta diversidade religiosa), mas sim o recente

surgimento da política religiosa através do Hamas, quer da Jihad Islâmica. O

fundamentalismo islâmico e político está para a Palestina como o campo ultra-

religioso para Israel, alterando completamente o quadro laico e nacionalista em

que o Conflito se articulou durante décadas – e coincidindo com a transformação

do Conflito de conflito israelo-árabe em conflito israelo-palestiniano, “interno”.

No caso dos territórios reconhecidamente palestinianos, este desenvolvimento

resultou mesmo na separação virtual entre Gaza, dominada pelo Hamas, e a

Cisjordânia, dominada pela Autoridade Palestiniana.

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Topoi

A História.

Não há nacionalismo sem história e disputas sobre a sua narração. Mas no caso

de I/P a História ganha outra dimensão. Ela mistura-se com narrativas religiosas,

sobretudo bíblicas (judias, internamente, e cristãs, externamente) e – menos -

corânicas. A reivindicação judia é sobre a terra de origem de onde se deu a

expulsão definitiva há 2000 anos. A reivindicação palestiniana é sobre a terra

onde se vive há centenas de anos. Para uns ela foi uma dádiva divina, para outros

ela foi o lugar de importantes eventos de caráter sagrado, nomeadamente

associados ao profeta. A construção do estado de Israel tem assentado num

investimento fortíssimo em políticas de historiografia, de arqueologia, de

invenção de tradição, de renomeação de lugares, de turismo cultural e

nacionalista destinado à diáspora e não só, etc. As autoridades palestinianas têm

apostado na disseminação de produções artísticas sobre o espírito do lugar,

sobretudo das terras abandonadas ou ocupadas, das memórias familiares, e

também, naturalmente, na invenção de tradições diferenciadoras do universo

árabe limítrofe.

O Exílio e a catástrofe

A identidade judaica reproduziu-se ao longo de séculos na diáspora enquanto

identidade no exílio. Ao ponto de toda a estrutura do religioso ter sido

transformada desde a destruição do Templo, levando até a que certos grupos

ultra-religiosos sejam marcadamente anti-sionistas2. A identidade palestiniana

construiu-se a partir da narrativa da Naqba, - ou do que tem sido construído nos

últimos anos, e alvo de contestação por alguns sectores israelenses, que

recorrem a muitas das teorias críticas que nós, antropólogos, usamos... - e é toda

ela baseada na ideia de perda e expulsão e do sonho do regresso. O direito ao

retorno é por exemplo um dos principais temas em disputa na resolução do

Conflito. Por outro lado, se os pogroms e perseguições foram sempre um

2 Explicar como o templo não é para se reconstruído, o rabino não é um sacerdote, a sinagoga não é um templo, os sacrifícios estão proibidos, o retorno a Israel depende da chegada do Messias, etc.

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elemento de construção identitária pela negativa para os judeus, o Holocausto

constituiu-se no excesso inultrapassável. A ideia de catástrofe é a que está

também, aliás literalmente, associada à Naqba, e os massacres, nomeadamente

em Sabra e Chatila assumiram a propoção e tonalidade de pogroms.

A diáspora e o retorno

A palavra diáspora, agora banalizada, durante muito tempo aplicava-se apenas

ao judeus, isto é, a quem mantinha uma identidade coletiva de tipo protonacional

e étnico fora de um território de origem, sem território nacional ou étnico, e

espaltado por todo o mundo. A criação do estado introduziu uma ruptura entre

os sabra e os diaspóricos, embora por outro lado o estado sobreviva em grande

medida graças ao esforço diaspórico, sobretudo de um segmento muito concreto,

o dos EUA. A criação do estado, com a sua territorialização, constituiu um duro

golpe no imaginário diaspórico, que é aliás muito menosprezado em Israel –

tanto que o que sucede mais é sim a “busca das raízes”, à semelhança do que

aconteceu em países neo-europeus, como os EUA, a Austrália, alguns da América

Latina etc – a “diáspora” como imaginação do passado, não como realidade do

presente e forma identitária positiva. Do lado palestiniano, a expulsão

constituiria uma diáspora dúplice, por um lado de quadros, e nisso muito

semelhante à diáspora judia, por outro de refugiados.

A Terra, o Checkpoint, o Muro

A terra, o território e a sua imaginação, são um elemento central do imaginário

judeu pós-estado, e são o elemento fundamental de angústia para ambos os lados

do conflito. As negociações, as reivindicações, os conflitos armados, fazem-se em

torno de metros de terreno, num território de Israel com uma área de 20 mil

km2 (menos de ¼ de Portugal) e num território Palestiniano do tamanho do

Algarve (e há que ver que metade de Israel é o deserto do Negev). A política dos

colonatos é uma política de ocupação político-simbólica da terra, mais do que

expansão territorial. A vida quotidiana nas áreas definidas para a Palestina é

feita de mapas e percuros sinuosos – com checkpoints, apropriações de recursos

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de água, destruição de culturas, estradas de várias categorias, zonas

administrativas a, b e c, jurisdições várias, tudo num território exíguo. A vida é

feita de linhas, imaginárias e reais, de tratados e datas, prédios que são

destruídos, outros construídos, de modo a mudar a paisagem. Mas a memória

persiste – e é igualmente manipulada, e vice-versa. A Terra é também o território

patrulhado e o território dividido, o acesso permitido e o negado, as

dependências de emprego, de água e luz, de aeroporto, as autorizações e passes.

O Muro, por sua vez, tornou-se em estrutura simbólica e em estrutura real de

separação, um passo mais do que o Checkpoint, lugar da performance do

controlo e da pertença ou não-pertença. O caráter performativo dos colonatos,

dos checkpoints e do muro dominam a cultura comum de israelenses e

palestinianos, feita deste excesso de concretização dos projetos nacionais.

Jerusalém

Jerusalém foi retratada como o centro do mundo, e assim é. É o centro do tal

mundo que é de todos, como disse no início. Terra Santa dos Cristãos, das

cruzadas, dos filossemitismos cristãos; Lugar do Templo e onde se deve ir para

morrer para os judeus: Lugar da ascensão de Maomé aos céus, para os

muçulmanos. É ali que as linhas divisórias, as ocupações e expulsões se tornam

mais evidentes. Na que poderia ser e já foi proposto que fosse a única cidade

internacional. Provavelmente Jerusalém condensa o Conflito, as identidades

nacionais em disputa e, ao mesmo tempo, o imaginário mundial (sobretudo

ocidental e do mundo ocidental, europeu, mediterrânico e árabe-islâmico) sobre

I/P. Ali nada é certo, tudo é apropriação e disputa – uma vez mais, um excesso de

processos semelhantes noutros contextos.

O Médio Oriente

O Conflito tem sido muitas vezes denominado o conflito do Médio Oriente. Pelas

suas implicações reginoais, geoestratégicas e económicas, e pelos atores políticos

envolvidos. Mas há uma outra dimensão ou acepção que podemos dar à

expressão, sobretudo à partícula “médio”. Em Israel/Palestina, a da vida

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quaotidiana das pessoas, nas disputas em torno de liberdades, estilos de vida,

recursos, para lá da discussão sobre o Conflito, o que surge é sempre a ideia de

ponto de encontro e confronto (e para alguns de superação possível) entre as

categorias “Ocidente” e “Oriente”. Pense-se, por exemplo, na liberdade para LGBT

em Israel e na sua repressão na Palestina. Ou, complexificando, nas acusações de

pinkwashing- a ideia de que o estado de Israel promoveria uma imagem exterior

de democracia liberal para ocultar a natureza religiosa do estado e reforçar a sua

missão civilizadora em terras bárbaras (mas pense-se também quanto as

lideranças palestinianas investiram na projeção de uma agenda laica). Mas

pense-se também em como a dicotomia oriental/ocidental não é claramente

justaponível (embora o seja, ideológica e propagandisticamente para muitos) a

árabes, por um lado, e judeus, por outro, mas pode ser transversal. Veja-se o

exemplo dos fatos de banho para ultra-religiosas na praia segregada por género

em Tel-Aviv e na partilha de modelos com muçulmanas religiosamente estritas,

na Palestina ou, mais ainda, no arquiinimigo Irão. Pense-se também na divisão

J’Lem/Tel Aviv (In Jerusalem you pray, in Tel-Aviv you play) ou na divisão

Gaza/Cisjordânia. Mas pense-se também nas musicalidades e gastronomias

iguais para judeus e palestinianos, nas expressões misturadas como “yalla bye”,

ou, obversamente, nas separações ocidental/oriental entre judeus de origem

europeia e de origem árabe.

Terreno Minado

Pensemos agora em muito do que tem constituído uma parte significativa da

agenda antropológica nas últimas décadas: o grupo étnico, o estado-nação e o

nacionalismo, o conflito identitário, os discursos e narrativas das identidades

coletivas, os diferentes níveis e categorias de diferenciação social, a crítica da

modernidade, o colonialismo e o pós-colonialismo, a política do corpo, do

parentesco, do sangue, enfim. Pensem nisto tudo e vejam como em I/P tudo está

a acontecer e a acontecer há muito pouco tempo e no entanto já tão completo e a

produzir os mais perversos efeitos. Há informantes, vivos, com quem se pode

conversar sobre aprender hebraico como uma língua completamente nova ou

sobre como uma certa interpretação política do Islão surgiu. Embora tudo

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precise de arquivo, e tudo se projete tanto mais longe no tempo quanto mais o

conflito está aguçado no presente, na realidade todos aqueles processos que

estudamos estão a acontecer. Tudo está a acontecer, ou aconteceu “apenas

anteontem”, num lugar que assim que se construiu na base dos grandes projetos,

ideologias e sistemas interpretativos da modernidade ocidental (do iluminismo

ao liberalismo ao socialismo) deles ficou logo órfão. É um lugar minado pelas

narrativas da modernidade e que as vive em excesso – e o modo de vida é, na

acepção estrita e na acepção lata, o conflito.

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