· Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se...

24

Click here to load reader

Transcript of  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se...

Page 1:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

MÍDIA E IRREVERSIBILIDADE: palavras não voltam para onde saíram

Autor: João Carlos Cattelan

RESUMO: Embora o direito de contradição deva pautar as publicações da mídia e seja um princípio não publicar o que não se tem certeza que se pode provar, “notícias” apressadas e “reportagens” sem polêmica e contradição são levadas ao ar, denegrindo instituições que ficam à mercê dessa atividade irrefletida. Locutores, repórteres e entrevistados acabam produzindo um resultado cujo retorno não é possível e cujos danos são irreparáveis. Neste estudo, para contornar esta hipótese, analiso um caso, envolvendo um canal de televisão escola de Cascavel e a “matéria” produzida sobre o vestibular da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. O corpus são sequências discursivas da “reportagem” que são contrapostas a três editais, todos relativos ao tema. A problemática que pretendo abordar se refere ao fato de que notícias infundadas podem publicadas, aguçar a curiosidade pública e denegrir instituições, sem que, depois, haja meios para desfazer o percurso de momento “impensado”. Para a análise, valho-me do background filosófico da Análise de Discurso de linha francesa, mas também de outras vertentes de análise de discurso que contribuam com essa perspectiva geral.

ABSTRACT: Although the right of contradiction should guide the media publications, and although itis a principle not to publish anything unless there is certitude that it can be proved, hasty “news” and “reports” without controversy and conflict are brought to air, denigrating institutions, which are at the mercy of this ill-considered activity. Announcers, reporters and the interviewed end up producing a result that cannot be undone, causing irreparable damage. In this study, to circumvent this hypothesis, I analyze a case involving a school television channel from Cascavel and the “report” on the entrance exam of the Western Paraná State University. The corpus is constituted by discursive sequences of the “report”, which are contrasted to three announcements concerning the subject. The issue I intend toad dress refers to the fact that baseless news can be published, spark the public curiosity and denigrate institutions, without a further possibility of reversing the course of affairs resulting from a “thoughtless” moment. For the analysis, I resort to the philosophical background of French Discourse Analysis, as well as other discourse analysis approaches that may contribute to this overview.

PALAVRAS-CHAVE: Análise de discurso; mídia; vestibular.

KEY WORDS: Discourse analysis; media; entrance exam.

“Ai, palavras, ai, palavras,que estranha potência a vossa!

Todo o sentido da vidaprincipia à vossa porta;o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota...”Clarice Lispector

INTRODUÇÃO

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 1

Page 2:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

O ato inicial que desencadeou as críticas tecidas pelo canal de televisão CATVE, de Cascavel, Paraná, contra a Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Unioeste, foi o edital relativo ao gabarito provisório do Concurso Vestibular 2012. E a polêmica foi instaurada, especificamente, com relação à matéria de Biologia, cujas questões de prova se referiam ao intervalo que ia de 1 a 7.

Para que o leitor se inteire da organização do caderno de provas do certame, na primeira etapa, ele é composto por 11 matérias ordenadas alfabeticamente, cada uma com 7 questões, exceto Filosofia e Sociologia, que possuem 4. No total, o caderno tem 71 questões. Como Biologia, por ordem, é a primeira matéria, as suas questões correspondem ao intervalo mencionado anteriormente.

A primeira etapa da seleção ocorreu no dia 27 de novembro de 2011 e o gabarito provisório foi publicado às 10 horas da manhã do dia 28 de novembro, abrindo-se espaço para recursos, que podiam ser feitos, on line, até às 12 horas do dia 29.

Para a contraposição posterior entre o gabarito provisório e o gabarito definitivo, que é um elemento crucial para a problemática discutida e para que o leitor acompanhe mais didaticamente a reflexão, apresento a seguir o edital que levou a público o gabarito provisório somente da matéria de Biologia. Apresento o edital apenas naqueles aspectos que interessam para a discussão e não na sua inteireza: ou seja, procedo, no estudo como um todo, por meio de seleção das sequências discursivas pertinentes.

EDITAL 036/2011-COGEPS

EDITAL DE PUBLICAÇÃO DOS GABARITOS PROVISÓRIOS DA PRIMEIRA ETAPA DO CONCURSO VESTIBULAR 2012.

O Coordenador da Coordenadoria Geral de Concursos e Processos Seletivos da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, no uso de suas atribuições estatutárias e regimentais,

TORNA PÚBLICO:

Art. 1º Os Gabaritos Provisórios da primeira etapa do Concurso Vestibular 2012 da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, conforme descrito abaixo.

Anexo único do Edital 036/2011-COGEPS

1. Biologia 01 = A 02 = E 03 = C 04 = E 05 = D 06 = D 07 = E

Efetivamente, espero que se mantenha o foco de atenção sobre as previsões de resposta para cada questão de Biologia, em face de que é na sua manutenção ou alteração posterior que se ancora o percurso analítico e demonstrativo que pretendo percorrer.

1. SOBRE A POLÊMICA

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 2

Page 3:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

Antes ainda da publicação do edital n° 036 e antes mesmo do término do tempo previsto para a interposição de recursos, para as análises e para a resposta a eles, no dia 27 de novembro de 2011, o canal de televisão mencionado produziu uma “reportagem” rápida de, aproximadamente, dois minutos e meio sobre os problemas supostamente existentes nas questões da matéria já mencionada. O fio condutor da crítica contra a universidade se referia, pois, crucialmente, a esta matéria e aos elaboradores das questões relativas à Biologia. A íntegra da matéria televisiva se compõe de 8 (oito) sequências discursivas que transcrevo na íntegra, apesar de, na análise, contemplar apenas aqueles pontos nodais para a compreensão e defesa da hipótese que faço: os meios de comunicação, às vezes, atentam contra pessoas e instituições por se deixarem levar pelo calor da hora e pelas determinações das instituições a que se vinculam, provocando danos irreparáveis.

SD1: (Âncora) No último domingo, cerca de 12.000 candidatos participaram do vestibular da Unioeste. Professores apontam algumas falhas na prova e já entraram com recurso para anular as questões.

SD2: (Repórter – Entrevistador) A dificuldade de compreensão na prova de Biologia da Unioeste poderá prejudicar centenas de candidatos que realizaram o vestibular neste fim de semana; isso porque questões do conteúdo de Biologia apresentaram problemas que foram detectados por professores especialistas no assunto.

SD3: (Darcy Bazzo - Professor) Nessa prova, especificamente, eles acabaram deixando o enunciado um pouco a desejar. Essa questão, ela é mais generalista, então ela poderia ser qualquer resposta de tecido conjuntivo: o frouxo, o denso, o modelado, o não-modelado.

SD4: (Arthur Simões - Professor) Num universo de 7 questões, tu teres 3 questões com problema chega a quase que 50% da prova. É um verdadeiro absurdo, independente do fato de quem tenha montado a prova: seja uma empresa terceirizada (que eu não sei) ou a Unioeste, você ter num universo de 7 questões 3 com problemas crassos.

SD5: (Repórter - Entrevistador) Candidatos de diversos cursos foram submetidos à prova e, de acordo com o professor Arthur, devido às incoerências nas questões, eles foram prejudicados.

SD6: (Arthur Simões - Professor) Se foram anulado 3 questões, favorece o chutador, o que não sabe, o que não estudou, ou seja, o aluno que não merece estar no banco de uma universidade pública bancada pelo nosso imposto, em detrimento daquele aluno que é bom, que ele vai ganhar a questão ou não se o gabarito for mudado. Se mexer numa questão de vestibular, alterando um gabarito só, de uma única questão, não interessa a prova, se é de Biologia ou outra, altera toda a lista de aprovados.

SD7: (Repórter - Entrevistador) Agora, alguns candidatos estão entrando com recurso para reavaliar o processo. Os professores vão acompanhar e pretendem debater o assunto.

SD8: (Arthur Simões - Professor) Debater com a banca, de forma democrática, harmônica, porque temos este direito, como cidadãos, já que ela é um órgão público e tentar ver a possibilidade de não cometer mais esses erros pro próximo vestibular.

Como se pode observar, a “reportagem” é constituída por turnos de fala e tomadas de discurso (consideradas, aqui, como sequências discursivas1 - doravante SD) que dão a

1 Considera-se que “sequências discursivas” (ORLANDI, 2001) sejam distintas de “turnos de fala” ou de “tomadas de discurso”, porque, no primeiro caso, assume-se que a passagem produzida é atravessada por um olhar institucional que, como formação discursiva, determina o que pode e deve ser dito, pensado e

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 3

Page 4:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

ela a característica do gênero entrevista, com distintas pessoas participando do debate, embora um prisma avaliativo percorra a voz de todos: eis uma polifonia subsumida por um olhar hegemônico e centralizador: avaliativo e homofônico. Ao todo, são quatro os participantes do evento: o âncora (apresentador do jornal); o repórter entrevistador, que conduz as trocas de turnos; e os dois professores “especialistas” que, de forma mais ou menos contundente, questionam a prova em pauta.

Começo por arrebanhar as SDs em “sítios de identidades parafrásticas”2, dando por estabelecida a discussão sobre elas com este agrupamento e com a determinação de seu efeito de sentido3 geral, para poder, em seguida, me dedicar de forma um pouco mais exaustiva às SDs de um participante. Com relação à SD1, produzida pelo âncora do telejornal, pode-se perceber que ela se “limita” a constituir um contexto sucinto da ambiência da temática que será tratada (“No último domingo, cerca de 12.000 candidatos participaram do vestibular da Unioeste”) e a adiantar o viés4 que será dado a ela (“Professores apontam algumas falhas na prova e já entraram com recurso para anular as questões”), com isso, preparando o espectador para o direcionamento sobre o tema tratado. Não foi obra do acaso o anúncio do número de candidatos participantes, pois isso indicia o volume de pessoas que sofreriam prejuízo em face das questões “problemáticas”, nem foi mero acaso a restrição da “denúncia” à Unioeste, para evitar confusão com outra instituição, assim como para deixar claro contra quem se dirigia a polêmica. E, muito menos, é gratuito o fato de o enunciado seguinte apontar “algumas falhas” e afirmar no modo indicativo “entraram com recurso”. O terreno está preparado, na forma de síntese, para o dito posterior e para obrigar o espectador a trilhar um percurso de leitura que já está dado e será ratificado em suas supostas minúcias. Apesar, assim, (ou justamente por isso) de o âncora se valer do discurso relatado (“professores apontam”), a acusação está feita e o leitor se acha preso num emaranhado de fios de que não se libertará com facilidade: determinação, fatalidade e garantia de direção.

Sobre as SDs 2, 5 e 7, todas produzidas como comentários introdutórios (“deixas”) para os enunciados que as seguem, pode-se afirmar que o repórter faz coro parafrástico (quase “literal”) à abertura da matéria pelo âncora, meramente parafraseando o já-dito e assumido e atuando mais para a sedimentação e para a memorização de um percurso, do que para avançar novas perspectivas. Para ele, como para o âncora, a prova de Biologia se caracterizou pela “dificuldade de compreensão” o que “poderá prejudicar centenas de candidatos”, porque questões dessa prova “apresentaram problemas que foram detectados por professores especialistas” (grifo meu). De acordo com ele, ainda, nessas questões, haveria “incoerências”, os candidatos “foram prejudicados” e “estão entrando com recurso”. Em termos de produção de efeito de sentido, os dois pontos de vista (que

avaliado, com o posicionamento que é assumido sendo imposto sobre quem fala do lugar de onde fala.2 Compreende-se por “sítios de identidades parafrásticas” (PÊCHEUX, 1993) conjuntos de enunciados que, apesar de aparecerem, no fio intradiscursivo, com ingredientes distintos são, em termos de discurso (e, portanto, da produção de efeitos de sentido), parafrásticos entre si, seja porque dizem a mesma coisa com outras palavras, seja porque emitem um juízo de valor idêntico sobre o referente do discurso.3 Entende-se por “efeito de sentido” (PÊCHEUX, 1995) o fato de que a língua é opaca e que, portanto, não se pode pretender que a cada significante corresponda um significado, ou seja: o sentido é efeito de sentido, porque, mudadas as condições de produção do enunciado, palavras idênticas produzem efeitos distintos, assim como, em condições de produção iguais, palavras distintas produzem os mesmos efeitos (sempre em termos de sentido).4 Entende-se por “viés” (FIORIN, 1999) o fato de que um determinado objeto discursivo pode ser apresentado sob diferentes óticas ou sob diferentes sobreposições de valores e avaliações.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 4

Page 5:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

são um só) se coadunam e se resumem à afirmação básica de que a prova em pauta tinha problemas e que os candidatos poderão ser prejudicados por isso. Este é o fio temático que percorre as linhas e as entrelinhas dos enunciados produzidos e as demais vozes trazidas ao palco não fazem mais do que reiterar este ponto de vista. É claro que nem um nem o outro dos locutores está se responsabilizando pela tese apresentada, pois a atribuem a “professores” e a “especialistas”, vozes de autoridade que parecem, sem que se perceba, ser trabalhadas no sentido de estabelecer uma gradação valorativa que se movimenta em ascendência, pois os últimos têm mais peso que os primeiros: estes são professores, mas aqueles são especialistas. O espectador está autorizado, assim, a inferir que a prova tinha problemas e que, se tinha problemas, o âncora e o repórter têm razão ao afirmar que os candidatos seriam prejudicados por causa das questões, ainda mais porque professores, que gozam de um certo prestígio, e especialistas, que gozam de um prestígio maior, dão a base de sustentação para o pensado e afirmado. Em resumo, âncora e repórter partilham de uma mesma grade valorativa e, ainda que se escondam no discurso relatado, estão comprometidos com um mesmo posicionamento discursivo: sofrem um mesmo conjunto de injunções, como se verá adiante.

A SD3, produzida pelo professor Darcy Bazzo, um dos suportes da polêmica com relação à prova de Biologia, embora mantenha o ponto de vista que conduz o fio avaliativo e a forma de percepção geral, é modalizada por um tom mais moderado e precavido, se bem que, como já disse, não deixe de ser demeritório. A sua apreciação incide sobre uma questão apenas, diferentemente do colega, e é conduzida por termos que a modalizam com uma entonação amenizadora. Embora fale em “Nessa prova”, a sua avaliação incide sobre o enunciado de uma questão e, dele, o locutor afirma que os elaboradores “acabaram deixando um pouco a desejar”. Segundo o professor, a “questão, é mais generalista” e poderia ter “qualquer resposta de tecido conjuntivo: o frouxo, o denso, o modelado, o não-modelado”, o que significa que o candidato poderia ter marcado qualquer alternativa e teria acertado a resposta. Isto não deixa de depor contra a prova e os seus elaboradores. Porém, ao contrário do colega que se vale de uma entonação contundente e maximiza o número suposto de problemas, este professor usa um tom mais ameno e um pouco inseguro do que afirma, já que os elaboradores teriam deixado “um pouco a desejar”. Para um ponto de vista desta natureza, a anulação ou não da questão não significaria um grande problema, já que “um pouco” abre espaço para que a contradição ocorra e ela possa ser aceita sem maiores conflitos. Frente à posição do colega, que analiso a seguir, a sua voz soa mais débil e menos convicta, embora não deixe de apontar um (ao invés de três, o que cria um efeito de contradição interna entre os condutores da polêmica) problema e, por consequência, que os candidatos serão prejudicados: trata-se de uma modulação que assume o mesmo princípio, mas o faz de modo menos dramático: mais sensato ou mais temeroso, talvez.

O leitor deve ter adivinhado, logo no início, que a SDs pertencentes ao docente Arthur Simões ficariam para um momento específico e mais adiantado da análise. Percorrendo a mesma trama discursiva e o mesmo fio avaliativo, este docente, no entanto, acirra a “discussão” e a apresenta de modo mais contundente e retumbante: as suas críticas são atravessadas por uma entonação5 pejorativa e indicativa e o seu foco avaliativo é frontal.

5 Para maiores detalhes sobre a questão da entonação, podem ser consultados textos de Mikhail Bakhtin sobre “apoio coral” (1976), sobre “autor”, “gêneros” e estilo” (1993) e sobre “romance” (1992). De todo modo, a entonação remete ao fato de que o que é dito é dito com um tom (prosódico) que sobredetermina

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 5

Page 6:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

“Chega a quase 50% da prova”, “é um verdadeiro absurdo”, “problemas crassos” e “altera toda a lista de aprovados” são exemplos de expressões usadas que radicalizam a crença afirmativa de que a prova teria problemas, o que, sem dúvida, é agravado por expedientes linguísticos duros e agressivos, como “absurdo” e “crassos”. Não há necessidade de discorrer mais longamente sobre estes recursos lexicais: afirmar que a prova teria problemas que beirariam ao non-sense (absurdo) e erros elementares (crassos) não desmerece só o vestibular ou a universidade que o realizou, mas se contrapõe aos elaboradores: volto a isso mais adiante. Pode-se afirmar que, na voz do professor, o fio discursivo se mantém, desta vez ganhando em dramaticidade.

Com relação ao segundo ponto da pendenga, ou seja, sobre o fato de que candidatos seriam prejudicados porque a prova teria problemas (absurdos e crassos), veja-se a SD6, em que o locutor afirma que “Se foram anulado 3 questões, favorece o chutador, o que não sabe, o que não estudou, ou seja, o aluno que não merece estar no banco de uma universidade pública” e “Se mexer numa questão de vestibular, alterando um gabarito só, de uma única questão, não interessa a prova, se é de Biologia ou outra, altera toda a lista de aprovados”. O movimento parafrástico encetado pelo docente entre “chutador”, “não sabe”, “não estudou” e “não merece estar” parece, pois, não ser feito de modo aleatório, mas ter como meta reiterar e sacramentar a crença de que candidatos serão prejudicados, já que “Se alterar um gabarito só, altera toda a lista de aprovados”.

Percebe-se que, apesar de ser um “especialista” na matéria de Biologia, o docente se traveste de profeta e parece prever que problemas em outras matérias ocorrerão, pois, de acordo com ele, o prejuízo acontecerá “não interessa a prova, se é de Biologia ou outra”. Talvez se possa afirmar que, em face de uma verdade nem tão nua e crua assim, o locutor abra os horizontes para outras matérias, pois, se, na sua, questões não forem anuladas, elas serão em outras e a tese do prejuízo a pessoas continuará válida: antevisão de problemas em outras matérias ou falta de certeza sobre a sua alegação? Fico mais inclinado pela segunda via. Porém, se não tem certeza da sua afirmação, por que usar “absurdo” e “crasso”? Não são todos eles expedientes destinados a convencer mais pela passionalidade da discussão do que pela racionalidade do discurso? Se as questões alegadas como absurdas e portadoras de problemas crassos realmente o fossem, não haveria tanta razão para o locutor “esbravejar” com recursos avaliativos francamente pejorativos, ainda mais que são oriundos de uma área do conhecimento conhecida por se pautar na experiência empírica e na prova positiva das suas afirmações. O locutor, portanto, parece estar enredado numa teia da qual não sabe muito bem como sair e busca se proteger contra críticas futuras. Contra a entonação impassível e declaratória do seu colega, o docente Arthur parece produzir uma resposta e ser movido por alguma desafeição. Frise-se, por ora que, apesar de afirmar não saber se a prova é elaborada por uma “uma empresa terceirizada (que eu não sei) ou a Unioeste”, o professor conhece os elaboradores das questões e tem tido com eles algumas pendengas que se arrastam há algum tempo. O vestibular, geralmente, é o momento em que a revanche parece sorrir de soslaio. A negativa de “eu não sei” é, pois, denegatória.

Considerando, ainda, que Arthur é professor de um cursinho e possui alunos que participam do vestibular da Unioeste, de novo, a sua argumentação procura se antecipar ao insucesso indesejável e arrumar um bode expiatório a quem imputar a culpa, caso

e acompanha o enunciado: a ênfase, a raiva e a calma são alguns exemplos.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 6

Page 7:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

não obtenha o êxito que se espera dele. Os seus alunos, se não forem aprovados, não terão no professor a causa do fracasso, mas a universidade; por causas dos “problemas crassos” e “desses erros” (SD8), ela seria a responsável por “favorecer o chutador”, “em detrimento daquele aluno que é bom”: perguntar se o aluno bom é o que teve Arthur como professor de Biologia e se ele é que seria o principal prejudicado é buscar uma resposta que está anunciada: é óbvio que sim. Discuto melhor estas e outras questões adiante, quando reflito sobre as condições de produção das SDs em pauta.

Entendo que se deva observar, por fim, que, escondido pela roupagem de democrata engajado, por meio de recursos como “debater”, “direito”, “cidadãos” e “órgão público”, o professor se vale da constituição da imagem de quem deseja apenas que ninguém seja prejudicado pelos equívocos dos outros, alçando-se à condição de porta-voz de quem precisa ser defendido. A manobra qualificativa de que o debate seja conduzido de forma “democrática, harmônica”, portanto, é um embuste (na falta de um termo melhor), pois, se fosse realmente o desejo, a universidade teria sido procurada, o setor competente teria sido notificado e o debate teria sido buscado: nada disso ocorreu. O que sobressai, efetivamente, são os expedientes lexicais “absurdo”, “crassos” e “erros”, que põem fim a qualquer possibilidade de levar a sério o desejo de um debate polêmico, mas amigável.

2. SOBRE A RESPOSTA INSTITUCIONAL À POLÊMICA

Cabe frisar dois eventos relativos à “reportagem” transcrita: se ela obteve alguma resposta por parte da universidade, não se sabe, até porque havia, no momento, a defesa do ponto de vista de que, frente a situações como essa, seria melhor não se manifestar, para não dar uma importância maior a que episódios um tanto quanto “inconseqüentes” faziam jus. Se a reportagem está tendo alguma forma de manifestação mais formal sobre ela, talvez, este artigo se reduza ao único caso. O segundo fato importante é que, em teoria, movidos por esta manifestação, candidatos entraram com recurso e as questões, de 1 (um) a 7 (sete), receberam reclamações, que foram acolhidas, analisadas e respondidas pelos docentes elaboradores.

A única resposta institucional (e creio que tenha sido, e seja, a mais recomendável) à acusação foi a divulgação de dois editais que seguem a rotina de qualquer processo seletivo da universidade: o edital de resposta aos recursos e do gabarito definitivo, que são apresentados a seguir, outra vez com os devidos ajustes e com a manutenção daquilo que interessa para o objetivo deste estudo.

EDITAL 039/2011-COGEPS

EDITAL DE RESULTADO DA ANÁLISE DOS RECURSOS CONTRA OS GABARITOS PROVISÓRIOS DA PRIMEIRA ETAPA DO CONCURSO VESTIBULAR 2012.

O Coordenador da Coordenadoria Geral de Concursos e Processos Seletivos da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, no uso de suas atribuições estatutárias e regimentais e considerando os recursos havidos contra os gabaritos provisórios,

TORNA PÚBLICO:

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 7

Page 8:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

Art. 1º O resultado da análise dos recursos contra os Gabaritos Provisórios da primeira etapa do Concurso Vestibular 2012 da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, conforme descrito abaixo.

1) MATÉRIA: BIOLOGIA

QUESTÃO: 1 RESULTADO: Manter a QuestãoRESPOSTA: O recurso NÃO procede. Mutação é um processo reversível, que é denominada de mutação reversa: é “uma segunda mutação no mesmo ponto do gene que a mutação original, restaurando a sequência nucleotídica tipo selvagem”. Portanto somente a alternativa A está incorreta, devendo ser assinalada. Bibliografia de apoio: Snustad, D.P. & Simmons, M.J. (2008). Fundamentos de Genética. Guanabara-Koogan, 4ª edição.

QUESTÃO: 2 RESULTADO: Manter a QuestãoRESPOSTA: O recurso NÃO procede. Só a alternativa E está correta. Vegetais possuem Complexo Golgiense (Bibliografia de apoio: Favaretto, J.A. & Mercadante, C. (2006). Biologia. Editora Moderna, 1ª edição; Raven, P.H.; Evert, R.F. & Eichhorn, S.E. (2007). Biologia Vegetal. Guanabara-Koogan, 7ª edição.) O nucléolo está envolvido na síntese de RNA ribossômico. (Bibliografia de apoio: Favaretto, J.A. & Mercadante, C. (2006). Biologia. Editora Moderna, 1ª edição; Snustad, D.P. & Simmons, M.J. (2008). Fundamentos de Genética. Guanabara-Koogan, 4ª edição).

QUESTÃO: 3 RESULTADO: Manter a QuestãoRESPOSTA: O recurso NÃO procede. “Crossing-over” região 1 - gametas formados: ABC, abc, Abc, aBC; “Crossing-over” região 2 - gametas formados: ABC, abc, ABc, abC; “Crossing-over” região 1 e 2 - gametas formados: ABC, abc, AbC, aBc. Como se vê, só a alternativa C está correta.

QUESTÃO: 4 RESULTADO: Manter a QuestãoRESPOSTA: O recurso NÃO procede. Os tecidos conjuntivos propriamente ditos são divididos em frouxo e denso. O denso, por sua vez, é dividido em denso não-modelado e modelado. O tecido conjuntivo frouxo ou aerolar contém mais células do que fibras colágenas e possui fibras elásticas delicadas, retas e ramificadas embebidas na substância fundamental. Este tecido não apresenta predominância de qualquer elemento estrutural típico dos tecidos conjuntivos propriamente ditos. O tecido conjuntivo elástico é um tecido com predomínio de fibras elásticas e forma lâminas de elastina, presentes de maneira concêntrica, como observado na parede das artérias. O tecido conjuntivo denso não-modelado apresenta um número menor de células entre as fibras e uma predominância clara de colágeno e formam feixes espessos, ondulados e arranjados irregularmente. Portanto, a alternativa correta para questão é a E. (Junqueira e Carneiro, Histologia Básica; Abraham L. Kierszenbaum, Histologia e Biologia Celular; José Mariano Amabis, Fundamentos da Biologia Moderna).

QUESTÃO: 5 RESULTADO: Manter a QuestãoRESPOSTA: O recurso NÃO procede. A pergunta se refere ao ciclo de vida da Taenia Solium e não sobre a doença denominada de cisticercose humana. No ciclo de vida da Taenia Solium, o homem é o hospedeiro definitivo e o porco o hospedeiro intermediário. Neste ciclo, o homem ingere carne malcozida contaminada contendo cisticercos, o que faz com que possa adquirir teníase. O cisticerco no intestino humano everte-se fixa-se à mucosa intestinal e forma uma nova tênia. Nas proglótides sexualmente maduras, ocorre o processo de autofecundação. A proglótide se degenera e torna-se uma bolsa repleta de ovos, a proglótide grávida. Estas se destacam e são eliminadas nas fezes do hospedeiro definitivo. O hospedeiro intermediário ingere os ovos que, ao romperem-se, liberam uma larva. Esta perfura o intestino e se aloja na musculatura ou no cérebro do hospedeiro, onde a larva forma o cisticerco. Se o homem comer carne malcozida, recomeça o ciclo (José Mariano Amabis). Portanto, a alternativa correta para questão é a letra D.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 8

Page 9:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

QUESTÃO: 6 RESULTADO: Manter a QuestãoRESPOSTA: O recurso NÃO procede. A questão trata "grupos vegetais" não conforme a Sistemática Vegetal e sim de forma generalista. A sistemática considera 2 reinos que englobam os chamados vegetais: Reino Proctotista (algas e protozoários) e Reino Plantae (briófitas, pteridófitas, gimnospermas e angiospermas). As algas são tratadas/chamadas como vegetais inferiores ou “lower plants”. Além disso, a questão trata as interações de forma geral e não através de exceções que possam existir. Bibliografia de apoio: Raven, P.H.; Evert, R.F. & Eichhorn, S.E. (2007). Biologia Vegetal. Guanabara-Koogan, 7ª edição; Hoek, C.; Mann,D.G. & Jahns H.M. (1996). Algae. Cambridge University Press.

QUESTÃO: 7 RESULTADO: Manter a QuestãoRESPOSTA: O recurso NÃO procede. A definição “Variação de combinações de todas as variáveis ambientais (bióticas e abióticas) sob as quais UMA ESPÉCIE OU POPULAÇÃO pode persistir” trata de uma ÚNICA ESPÉCIE (singular). Biocenose, ecossistema e biosfera tratam de CONJUNTO DE ESPÉCIES ou COMUNIDADES (plural). Portanto somente a alternativa E está correta. Bibliografia de apoio: Futuyma, D.J. (2009). Biologia Evolutiva. Funpec Editora, 3ª edição.

Sobre este primeiro edital, que dava uma resposta aos recursos havidos, alguns pontos precisam ser destacados, embora o leitor deva ter percebido por si mesmo. O primeiro: nenhum recurso foi acatado, porque, de acordo com as respostas, eles “não procediam”. O segundo: cada recusa a uma interposição de recurso, além de ter a explicação de sua fundamentação, vem ancorada na citação de um discurso de autoridade, com referência a autores e obras bastante atuais, pelo menos, naqueles casos em que há referência à data da publicação. O terceiro: publicada a resposta aos recursos, não se ouviu mais comentário algum que teimasse em afirmar que as questões tinham problemas. O edital foi acatado, não porque não pudesse haver mais questionamentos, mas porque o silêncio se impôs e, neste caso, ele é gritantemente significativo: altamente ruidoso. O quarto: nem os docentes ou o repórter ou o canal de televisão voltaram a tocar no assunto. A conclusão que parece óbvia e ululante é: os absurdos, os problemas crassos e os erros não existiam ou, então, eles deveriam ser procurados noutro lugar. Palavras ao vento, discurso vão? Penso que não e reflito sobre isso à frente: o discurso, uma vez dito, não recua para onde foi emitido.

Como nada mais ocorreu em relação às questões ou aos recursos havidos contra elas, o edital constando dos gabaritos definitivos foi publicado. Ele aparece colocado a seguir, devidamente higienizado, para manter o foco sobre o fio condutor deste trabalho.

EDITAL 040/2011-COGEPS

EDITAL QUE PUBLICA OS GABARITOS DEFINITIVOS DA PRIMEIRA ETAPA DO CONCURSO VESTIBULAR 2012.

O Coordenador da Coordenadoria Geral de Concursos e Processos Seletivos da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, no uso de suas atribuições estatutárias e regimentais,

TORNA PÚBLICO:

Art. 1º Os Gabaritos Definitivos da primeira etapa do Concurso Vestibular 2012 da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, conforme descrito abaixo.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 9

Page 10:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

Anexo único do Edital 040/2011-COGEPS

1. Biologia 01 = A 02 = E 03 = C 04 = E 05 = D 06 = D 07 = E

No caso do edital 040, entendo que apenas um aspecto deve ser mantido presente: o fato de que entre ele e o edital 036 não há diferença alguma de gabarito. As respostas para as questões são rigorosamente as mesmas. Por que isto ocorreria, se não pelo fato de não haver problema algum com as questões de Biologia?

3. O PANO DE FUNDO DA POLÊMICA: notas sobre as condições de produção

Começo, a partir daqui, a trilhar um terreno mais pedregoso. Atentar para as condições de produção de um discurso é sempre ter que voltar os olhos para ingredientes que vão para além do dito e isto, quase sempre, obriga a revolver terrenos conflituosos e problemáticos: talvez, aí esteja a zona maior de desconforto e incômodo com que os analistas de discurso se obrigam a dar de frente. Efetuar uma análise intrinsecamente linguística ou puramente parafrástica como a esboçada acima parece bem mais seguro: afinal, não se pode negar que determinadas palavras foram ditas. Mas atender ao desafio proposto por Foucault (1986) de explicar por que um enunciado apareceu e nenhum outro em seu lugar parece uma atividade desafiadora, se não ameaçadora. Entretanto, já que “escolhi” seguir este rumo e não outro (o que já permitira um exercício de análise), tenho que assumir o risco. Viver é um risco, alguém disse certa vez. Entre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente.

Um primeiro aspecto a ser considerado para a explicação que justifica o aparecimento dos enunciados proferidos pelo docente Arthur diz respeito ao fato de ele manter, há bastante tempo, uma ou outra pendenga com os docentes da Unioeste sobre temas que se referem à matéria de Biologia. Reiteradamente, este docente tece críticas a esta prova e, a cada ano, perde ou ganha alguns palmos de terreno. Desta vez, parece ter perdido. A antipatia parece ser recíproca e, portanto, do lado de cá, sempre impera algum temor sobre a reação que virá, passadas as provas do vestibular. Do lado de lá, parece sempre haver alguém à espreita para captar o lapso, a falha, o equívoco, o absurdo e o erro. No fundo, mais do que uma disputa que se ancora sobre o terreno da Biologia propriamente dito, há uma disputa entre aqueles que sabem mais e aqueles que sabem menos sobre a matéria. Nesta escaramuça, orgulhos e brios saem feridos e algumas penas ficam chamuscadas: ora de um, ora de outro lado. Não estranha, pois, que, também desta vez, o professor tenha feito o alarde e as acusações que fez. Algo de psicológico e individual (psicanalítico também) está em jogo. Eis uma chave explicativa para a entonação enfática usada pelo professor. Ela é indício de uma primeira disputa, travada entre docentes empíricos, com respingos sobre as suas instituições.

Mas, como se sabe, o discurso não se explica somente pelas paixões individuais do sujeito (embora elas também contem para a interpretação – o exposto acima mostra isso), pois ele é muito mais falado pelas instituições do que fala; é mais porta-voz institucional do que enunciador de si mesmo. Com isso, quero significar que há um

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 10

Page 11:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

segundo aspecto a ser considerado, que fornece uma segunda chave para explicar a causa das sequências discursivas em estudo. Ambos os docentes (com maior ou menor empáfia enunciativa) fazem parte do corpo de professores de um dos cursinhos pré-vestibular da cidade de Cascavel. A própria camiseta usada por um deles durante a entrevista denuncia este pertencimento. Os professores estão, portanto, agindo em defesa própria (até porque têm um lugar para preservar e para a manutenção do qual devem comprovar competência profissional, com tudo que isto significa) e em defesa do colégio de que fazem parte. Eis o sintoma de uma segunda disputa: ela se dá, desta vez, entre o cursinho COC e a Unioeste: o que parece, à primeira vista, um embate pessoal entre docentes revela um confronto entre instituições, embora ele seja unilateral.

Com relação, ainda, a este ponto, há um terceiro aspecto a ser destacado. O cursinho COC não é o único da cidade e nem o que goza de maior prestígio. Há, pelo menos, outros dois que gozam de uma representação positiva maior, havendo outros que rivalizam com ele em igualdade de condições. Trata-se, portanto, de marcar uma posição (sair na frente) em relação a um evento que é crucial para a sua existência: afinal de contas, o valor de cursinho pré-vestibular se mede pela quantidade de aprovações em concurso vestibular; melhor ainda, se a aprovação se der em instituição pública e, logo, gratuita. Um paradoxo pode ser detectado nesse caso, embora eu não vá me deter sobre ele: o COC pertence a uma instituição privada da cidade, marcada indelevelmente na camiseta do docente Arthur: FAG. Estaria o cursinho jogando contra si mesmo ou a afirmação da sua qualidade teria como finalidade criar uma imagem positiva de si e da instituição de ensino superior a que pertence? Talvez, ambas as coisas: talvez, uma delas. O que friso é o fato de que, além da disputa com os elaboradores da prova de Biologia e com a Unioeste, portanto, há uma disputa entre cursinhos que rivalizam entre si e buscam manter cativa uma parcela de alunos.

É preciso considerar, ainda, um quarto elemento condicionante para a “reportagem”. O cursinho pré-vestibular em que os docentes atuam pertence ao proprietário do canal de televisão referido. Sem entrar no mérito (por não pode provar isso) sobre se o dono das duas instituições teria algo a ver com a reportagem, é sintomático o fato de que ela foi veiculada por este canal de televisão e não outro. É digno de nota também que a CATVE é tida como uma tevê escola em face de pertencer a uma instituição de ensino superior, que, de novo, coincidentemente, é do dono das outras duas entidades. Talvez, enganosamente, alguém possa defender que a precipitação da reportagem se deve à inexperiência do repórter, porém não se pode obliterar o fato de que o âncora da matéria e os dois professores são pessoas que possuem uma longa caminhada. Há, pois, um conjunto de “coincidências” reveladoras, já que não foi um âncora ou repórter qualquer, de um jornal qualquer, que se valeu de dois docentes quaisquer de um cursinho qualquer, de um canal de televisão qualquer que se dispuseram a levar a reportagem ao ar e a fazê-lo nos termos em que fizeram. Mencionei o fato de o cursinho e o canal de televisão pertencerem ao dono de uma faculdade particular (a maior da cidade), que, de forma deliberada ou não, rivaliza com a Unioeste em termos de quantidade de cursos e de busca de status representativo. Deixo esta questão à margem por não ter meios para demonstrar a participação do dono em termos de determinação de que a matéria fosse produzida. Mas, sobre o alinhamento entre o cursinho pré-vestibular, o jornal do canal de televisão e as pessoas destacadas na matéria nada há que negue sua imbricação e seu comprometimento com um posicionamento discursivo.

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 11

Page 12:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

A reportagem não é, portanto, resultado de um acaso fortuito, aleatório e gratuito: ela é, consciente ou inconscientemente, concebida para a polêmica, para o conflito, para o confronto e para a disputa: seja de pessoas, seja de cursinhos, seja de canal de televisão (se tivesse razão, o canal não deixaria de obter dividendos), seja de instituições de ensino superior (fico reticente com relação a esta última, como já afirmei). Prova disso é que outros docentes, de outros cursinhos e com acesso a canais de televisão não optaram por este meio, valendo-se dos meios institucionais postos à disposição para efetuar suas reclamações e aguardado o resultado sem maior alarde. A Unioeste recebeu, inclusive, para outra matéria, recursos escritos por professores de cursinho, constando de argumentação demonstrativa sobre problema em uma questão, a qual foi anulada, por se concordar com o pleito efetuado. Por que neste caso, em especial, este caminho não foi seguido? O leitor há de convir que está em jogo mais do que uma disputa sobre a cientificidade ou não da elaboração das questões da prova de uma matéria qualquer. O que incomoda é que não é do domínio do espectador os elementos condicionantes que acabam de ser levantados, ficando ele com a impressão de que o que é dito é a verdade mais transparente e evidente, haja vista o poder hipnótico que a televisão ainda tem sobre as pessoas: brilho, cor, contraste e animação ainda seduzem a população, se é que deixarão de ser sedutores, afinal o prazer nos move.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS: apontamentos

Apesar de já dito e repisado infinitas vezes, as pessoas ainda não parecem ter se dado conta de que tudo se inicia à porta das palavras: elas são o fiat lux divino. E Deus disse faça-se a luz e a luz foi feita; e Deus disse faça-se o homem e o homem passou a existir. A compreensão de que é por meio da palavra que se dá origem ao mundo é bíblica: uma constatação tão verdadeira quanto antiga. Com elas, elogia-se ou se critica; constroi-se ou se destroi mundos; fala-se a verdade ou se falseia o mundo; tomam-se atitudes mais ou menos humanas. A leitura completa do poema referido na epígrafe pode ser um exercício bastante salutar. Porém, palavras são lançadas ao vento. Pela espontaneidade e automatismo de que a fala se reveste, dizem-se coisas para as quais não há retorno: o bem ou o mal ocasionado são duradouros e, em geral, não são esquecidos, embora se diga que tenhamos memória curta. Esta é uma lição que ainda não aprendemos da melhor maneira e bem o suficiente. Como afirma a sabedoria popular, se devêssemos falar mais, teríamos duas bocas e não dois ouvidos, dois olhos e duas narinas: e a pele.

Nas faculdades de Jornalismo, aprende-se que toda notícia deve ser verificada e checada antes da sua publicação, para evitar que inverdades sejam postas em circulação e danos possam ser causados a pessoas e instituições. O dogma da verificação do fato e da audição do outro e o direito de contraditório continuam sendo uma lição repetida pelos professores e ouvida pelos alunos: sem muito resultado parece. As palavras são contraditórias: às vezes, quando mais parece ser necessário, paradoxalmente, elas perdem a eficácia. Ou seria a memória humana que é falível? Ou nossa memória é altamente seletiva e só retém aquilo que lhe interessa? Especulações à parte, talvez se deva superar o romantismo que cerca a atividade jornalística e acreditar nas palavras de Darnton (1990, p. 72) que afirma sobre a atividade dos jornalistas: “Nunca escrevemos para as ‘imagens das pessoas’ invocadas pela ciência social. Escrevíamos uns para os

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 12

Page 13:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

outros. Nosso principal ‘grupo de referência’ como se poderia dizer na teoria da comunicação, encontrava-se espalhado em torno de nós na sala de redação, ou ‘buraco da cobra’, como dizíamos”. Enfim: o dogma da verificação do fato, da checagem da notícia e da audição dos pontos de vista contraditórios parece ser outra lição que deve ser aprendida. Por todos, mas pelos meios de comunicação em especial.

Como espero ter revelado e fazendo coro a Darnton, a notícia, pelos menos no caso estudado, peca por falta de isenção e pela presença de passionalidade interesseira. Como se pode ver, o tríplice compromisso do jornalista com a neutralidade, a objetividade e a imparcialidade é realmente um mito. A sua ratificação, quando aparece, não é mais, pois, do que a denegação daquilo que constitui a atitude cotidiana desse profissional: o interesse, a parcialidade e a subjetividade; e pior: pondo-se a serviço de interesses que ultrapassam a sua atividade profissional. Embora eu não seja contrário à liberdade de imprensa, em absoluto, como ser favorável a uma demanda que, às vezes, parece servir apenas para que se aja de forma irresponsável, causando danos a torto e a direito? A tão propalada liberdade de imprensa não seria apenas e tão somente a legitimação da oportunidade de agir ao bel-prazer e ao sabor do interesse de cada meio de comunicação e grupo de capital? Penso que haja, no caso, um longo caminho a ser andado e uma reeducação a ser incrementada, nem que isto se faça sob o peso de demandas judiciais.

Chego, finalmente e para concluir este estudo, ao ponto crucial que me lançou no caminho de escrita deste texto. Como espero ter demonstrado, a polêmica começou com a publicação de um edital, que foi seguido por uma reportagem contundente sobre os acertos das suas escolhas. O edital é questionado duramente antes de as questões serem analisadas, antes de os recursos serem respondidos e antes de o edital definitivo ser publicado. Enquanto os elaboradores analisavam cuidadosamente cada um dos recursos e buscavam ouvi-los nas suas reclamações, a matéria relatada, inclusive, foi publicada no site do canal de televisão em pauta. Não bastasse as sequências discursivas terem sido levadas ao ar no jornal da emissora, em horário “nobre”, elas ainda passaram a fazer parte da página do canal, ficando à disposição para qualquer consulta, de quem quer que fosse, a qualquer momento. Não foram poucos os e-mails recebidos enquanto os recursos eram respondidos, alguns agressivos e frontalmente deselegantes.

O que desejo frisar enfaticamente mais uma vez é o fato de que, publicado o edital de resposta aos recursos e o edital contendo o gabarito definitivo (idêntico ao provisório: sem alteração alguma), nada mais ocorreu: silêncio absoluto sobre a prova de Biologia: nenhum comentário. A que fato se deve imputar esse repentino emudecimento? Por que o silêncio se impôs? Foram as respostas dadas pelos elaboradores? Foi o fato de eles terem citado autores e o argumento de autoridade ter produzido o efeito costumeiro? Foi a tentativa de evitar acirrar os ânimos e ter receio de alguma atitude mais contundente por parte da universidade? Foi a desatualização dos questionadores em relação às novas publicações da matéria de Biologia? Todos estes fatores em conjunto? Na verdade, não importa qual delas seja a resposta: resta o fato de que a celeuma era infundada e as falhas, erros e problemas crassos não existiam: não havia equívocos.

E eis que chego ao fio da navalha: como reparar um dano causado dessa maneira? A matéria já tinha sido publicada, tinha sido levada ao ar e não tinha como voltar no tempo. Ela já tinha circulado na internet e a sua circulação tinha alcançado um número de pessoas difícil de quantificar. Mesmo que o canal de televisão concedesse um espaço

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 13

Page 14:  · Web viewEntre parênteses, pode-se dizer que fazer análise do discurso exige coragem, pois se mexe em coisas que não desejam ser revolvidas. Em frente. Um primeiro aspecto a

de resposta e se retratasse em relação à matéria, o desacerto não teria conserto: o espaço de resposta não seria idêntico; o alcance da correção não chegaria a todos aqueles a que a matéria tinha chegado; e, principalmente, seus efeitos não apagariam da memória do espectador (antes, reforçariam) a impressão causada no calor da hora e no momento em que o vestibular estava efetivamente acontecendo. Dito de outra forma: uma atividade irrefletida como essa causa danos irreparáveis às pessoas e às instituições e não há caminho que conserte o desacerto; o “concerto” não tem conserto. Pior para quem tem que provar que é inocente e não merece as acusações que sofre. O dogma da presunção da inocência até que se prove o contrário fica, assim, cada vez mais distante da sua aplicação e da sua pratica efetiva: durma-se com um barulho (ou silêncio) desses.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Discurso na vida e discurso na arte. (Trad. Cristóvão Tezza). New York: Academic Press, 1976, 23p (inédito).

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. (Trad. Denise Bottmann). São Paulo: Companhia das letras, 1990.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. 2.ed. São Paulo: Ática, 1999.

GADET, Françoise & HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. (Trad. Bethânia S. Mariani et al.). 2.ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.

ORLANDI, Eni Pulcineli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (Trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al.). 2.ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.

O autor é docente da Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná e atua no Curso de Letras (graduação) do câmpus de Marechal Cândido Rondon e no programa de pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Letras do câmpus de Cascavel.

Professor Doutor (Associado)

Interletras, volume 3, Edição número 18,outubro 2013/ março.2014 - p 14