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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL CELSO RIBEIRO BASTOS Advogado. Professor de Pós-GraduaçãO de Direito Constitucional e de Direito das Relações Econômicas InternacionaiS da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretor-Geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC. Ex-Procurador do Estado de São Paulo. EDITORA Saraiva Curso de direito constitucional / Celso Ribeiro Bastos. - 20. ed. atual. - São Paulo Saraiva, 1999. Bibliografia. 1. Brasil - Constituição (1988) 2. Brasil - Direito constitucional 3. Direito constitucional 1. Título. 1. Direito constitucional NOTA À 2.a EDIÇÃO Após a Constituição de 1988, evidentemente, tivemos de atualizar a obra de acordo com a nova Carta. Isto, contudo, foi feito sem que a Constituição tivesse sido comprovada na realidade e, em conseqüência, sofrido as interpreta- ções doutrinárias e jurisprudenciais que vêm merecendo dos tribunais e dos julgadores. Hoje, sentimo-nos em condições de levar a efeito sua reestruturação com dois objetivos. Primeiro, trazer para o Texto Constitucional não apenas a nossa opinião, mas também a da jurisprudência, assim como a de outros juristas que tratam proficientemente do tema. Segundo, dar um tratamento a certos capítulos da Constituição de 1988, que mais têm que ver com a lei ordinária do que propri- amente com a Magna Carta. No entanto, a prática tem demonstrado que essas matérias, só pelo fato de estarem reguladas na Constituição, repercutem intensa- mente na vida do nosso direito. Não há quase demanda judicial que possa ser travada sem que esteja presente alguma faceta da própria Constituição. Conhecê- la, pois, não é exclusivo de alguns especialistas, mas é obra que se impõe a todos que lidam com o direito. Daí a razão de ser do alargamento dispensado a

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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL CELSO RIBEIRO BASTOS Advogado. Professor de Pós-GraduaçãO de Direito Constitucional e de Direito das Relações Econômicas InternacionaiS da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretor-Geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC. Ex-Procurador do Estado de São Paulo. EDITORA Saraiva Curso de direito constitucional / Celso Ribeiro Bastos. - 20. ed. atual. - São Paulo Saraiva, 1999.

Bibliografia.

1. Brasil - Constituição (1988) 2. Brasil - Direito constitucional 3. Direito constitucional 1. Título.

1. Direito constitucional

NOTA À 2.a EDIÇÃO

Após a Constituição de 1988, evidentemente, tivemos de atualizar a obra de acordo com a nova Carta. Isto, contudo, foi feito sem que a Constituição tivesse sido comprovada na realidade e, em conseqüência, sofrido as interpreta- ções doutrinárias e jurisprudenciais que vêm merecendo dos tribunais e dos julgadores.

Hoje, sentimo-nos em condições de levar a efeito sua reestruturação com dois objetivos. Primeiro, trazer para o Texto Constitucional não apenas a nossa opinião, mas também a da jurisprudência, assim como a de outros juristas que tratam proficientemente do tema. Segundo, dar um tratamento a certos capítulos da Constituição de 1988, que mais têm que ver com a lei ordinária do que propri- amente com a Magna Carta. No entanto, a prática tem demonstrado que essas matérias, só pelo fato de estarem reguladas na Constituição, repercutem intensa- mente na vida do nosso direito. Não há quase demanda judicial que possa ser travada sem que esteja presente alguma faceta da própria Constituição. Conhecê- la, pois, não é exclusivo de alguns especialistas, mas é obra que se impõe a todos que lidam com o direito. Daí a razão de ser do alargamento dispensado a diver- sos capítulos, o que acabou por encorpar de forma sensível o texto original.

Esperamos, assim, ter melhorado nosso modesto curso. De qualquer for- ma, quem o dirá é o leitor, com cuja opinião gostaríamos enormemente de contar para continuarmos aperfeiçoando o trabalho no futuro.

Agradecemos a Dra. Patrícia de Castro e Colher Coeli pelas pesquisas que levou a efeito com grande afinco.

ÍNDICE GERAL PARTE I TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO TÍTULO I NOÇÕES DE TEORIA DO ESTADO CAPÍTULO I CONCEITO E NATUREZA DO ESTADO

1. Sociabilidade do homem

1.1. Fatores que levam o homem a socializar-se

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2. O poder e a sociedade

3. Estado-governo e Estado-sociedade

4. Pressupostos ou elementos integradores do Estado CAPÍTULO II O PODER

1. Poder social

2. Poder político

3. Direito e política

4. O Estado se subordina inteiramente ao direito?

5. Estado e soberania CAPÍTULO III O PODER CONSTITUINTE 1. Legitimidade e legalidade 2. O pensamento político-jurídico de Sieyès 3. Natureza e titularidade do poder constituinte 4. Espécies de poder constituinte: originário e derivado 5. Exercício do poder constituinte 6. Limitações ao poder de reforma constitucional 6.1. Cláusulas pétreas 7. Modernas tendências TÍTULO II TEORIA DA CONSTITUIÇÃO CAPÍTULO I CONSTITUIÇÃO 1. Conceito 2. Constituição em sentido muito amplo 3. Constituição em sentido material 4. Constituição em sentido substancial 5. Constituição em sentido formal 5.1. Posição hierárquica superior das normas constitucionais em rela- ção às infraconstitucionais 6. Existência, ou não, de Constituição em todos os Estados, conforme a acepção, substancial ou formal, que se atribua ao vocábulo 7. Critério mais relevante para o direito na conceituação de Constituição: o formal 8. Constituições escritas e costumeiras 9. Constituições rígidas e flexíveis 10. Direito Constitucional CAPÍTULO II CONSTITUIÇÃO COMO UM SISTEMA DE PRINCÍPIOS E NORMAS 1. O papel dos princípios 2. Espécies de princípios 3. Espécies de normas CAPÍTULO III INTERPRETAÇÃO. INTEGRAÇÃO. APLICAÇÃO 1. Interpretação

1.1. Interpretação conforme a Constituição

1.2. Singularidade das normas constitucionais do ângulo da sua interpre-

tação 2. Integração

2.1. Lacunas no direito constitucional 3. Interpretação e integração: realidades lógicas distintas 4. Aplicação

4.1. Aplicação das normas constitucionais no tempo

4.1.1. A nova Constituição e o direito constitucional anterior

4.1.2. Direito constitucional novo e direito ordinário anterior

4.2. Aplicação das normas constitucionais no espaço CAPÍTULO IV CONSTITUIÇÕES ORGANICAS E IDEOLÓGICAS 1. Normas programáticas

1.1. A crise das normas programaticas 2. Graus de determinabilidade das normas constitucionais 3. O cotejo entre as normas-fins e os princípios 4. Relação da norma programática com os seus destinatários 5. Até que ponto é lícito a uma Constituição ser mais diretiva e menos

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organizacional? TÍTULO III HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS CAPÍTULO I CONSTITUIÇÃO DE 1824 1. Antecedentes históricos 2. Ideologia da Constituição Imperial 3. Aspectos principais da Constituição de 1824

3.1. Divisão dos poderes políticos

3.2. Semi-rigidez da Constituição Imperial CAPÍTULO II CONSTITUIÇÃO DE 1891

1. Fatores determinantes

2. O Decreto n. 1 e suas principais mudanças CAPÍTULO III CONSTITUIÇÃO DE 1934

1. Pontos principais

2. Constituição democrática e social CAPÍTULO IV CONSTITUIÇÃO DE 1937

1. O golpe de 37

2. Inaplicabilidade da Constituição de 1937 CAPÍTULO V CONSTITUIÇÃO DE 1946

1. Principais influências

2. Aspectos fundamentais CAPÍTULO VI CONSTITUIÇÃO DE 1967

1. A Revolução de 1964

2. Os governos na vigência da Constituição de 1967

2.1. O governo Médici

2.2. O governo Geisel

2.3. O governo Figueiredo

2.4. O governo Sarney CAPÍTULO VII CONSTITUIÇÃO DE 1988

1. Instalação e funcionamento da Assembléia Nacional Constituinte

2. Histórico da Constituinte PARTE II DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO TÍTULO I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS CAPÍTULO ÚNICO PRINCÍPIOS E OBJETIVOS DO BRASIL, NA ORDEM INTERNA E NA INTERNACIONAL 1. Princípios constitucionais

1.1. República

1.2. Federação

1.2.1. Histórico

1.2.2. Princípio federativo

1.2.3. Características da federação

1.3. Estado Democrático de Direito 2. Fundamentos da República Federativa do Brasil 3. Tripartição dos poderes 4. Objetivos fundamentais 5. O Brasil na ordem internacional

5.1. O Mercosul e a nova ordem mundial TÍTULO II DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS CAPÍTULO I DOS DIREITOS INDIVIDUAIS CLÁSSICOS AOS MODERNOS DIREITOS

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SOCIAIS 1. Liberdades públicas 2. A Declaração Francesa 3. A Declaração Americana 4. Novas perspectivas dos direitos individuais 5. Evolução dos direitos individuais 6. Os direitos individuais sob a égide da Constituição de 1967 7. Situação atual dos direitos individuais 8. A Declaração Universal dos Direitos do Homem

8.1. Conteúdo da Declaração

8.2. Eficácia da Declaração CAPÍTULO II ALGUNS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS E COLETIVOS

1. Destinatário dos direitos individuais

2. Princípio da isonomia

2.1. Igualdade substancial

2.2. Igualdade formal

2.3.Conteúdo jurídico da isonomia

2.4. A nova redação do princípio da isonomia

2.5. O princípio da igualdade entre os particulares

3. Princípio da legalidade

4. Liberdade de pensamento

5. Liberdade religiosa

5.1. Liberdade de consciência e de crença

5.2. Liberdade de culto

5.3. Liberdade de organização religiosa

6. Direito à intimidade, à vida privada e à honra

6.1. Dano moral

7. Inviolabilidade do domicílio

8. Inviolabilidade da correspondencia

9. Liberdade de profissão

10. Direito de locomoção

11. Direito de reunião e associação

11.1. Liberdade de associação

12. Direito à propriedade

12.1. Função social

12.2. Desapropriação

13. Acesso amplo ao Judiciário

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14. Direito adquirido. Ato jurídico perfeito. Coisa julgada

14.1. Limites da retroação da lei na Constituição

14.2. Direito adquirido

14.2.1. Verificação da ocorrência de direito adquirido

14.2.2. Síntese conclusiva

14.3. Ato jurídico perfeito

14.4. Coisa julgada

15. Direito ao júri

16. Direito à não-extradição

16.1. Brasileiro

16.2. Estrangeiro

17. Direito ao devido processo legal

18. Direito ao contraditório e à ampla defesa

18.1. A prova obtida por meio ilícito

19. Prisão em flagrante

20. Garantias constitucionais

20.1. Habeas corpus

20.1.1. Histórico

20.1.2. Habeas corpus no nosso país

20.1.3. Habeas corpus preventivo e suspensivo

20.1.4. Teoria brasileira do habeas corpus

20.1.5. Legitimidade ativa

20.1.6. Sujeição passiva

20.1.7. Objeto

20.2. Mandado de segurança

20.2.1. Introdução

20.2.2. Surgimento da medida

20.2.3. Direito líquido e certo

20.2.4. Medida liminar

20.2.5. Mandado de segurança coletivo

20.3. Mandado de injunção

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20.3.1. Legitimidade ativa

20.3.2. Objeto do mandado de injunção

20.3.3. Competência para julgar o mandado de injunção

20.3.4. Distinção entre mandado de injunção e a inconstituciona-

lidade por omissão

20.4. Ação popular

20.4.1. Conceito

20.4.2. Requisitos

20.4.3. Lesividade, ilegalidade e imoralidade

20.4.4. Isenção de ônus

20.5. Habeas data

20.6. Ação civil pública

20.6.1. Interesses coletivos e difusos

20.6.2. Aspectos fundamentais da ação civil pública

20.6.2.1. Legitimação ministerial CAPITULO III DOS DIREITOS SOCIAIS 1. Noções gerais 2. Trabalhador

2.1. Trabalhador temporário

2.2. Trabalhador rural

2.3. Trabalhador doméstico 3. Direitos dos trabalhadores

3.1. Despedida arbitrária ou sem justa causa

3.2. Salário mínimo

3.3. Participação nos lucros

3.4. Liberdade sindical

3.5. Greve

3.6. Outros direitos CAPÍTULO IV DA NACIONALIDADE

1. Nacionais e estrangeiros

1.1. Exceções

2. Critérios para atribuição da nacionalidade: jus sanguinis e jus soli

2.1. Exceções

3. Perda da nacionalidade

4. Reaquisição da nacionalidade CAPÍTULO V DOS DIREITOS POLÍTICOS

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1. Características gerais

2. Distinção entre nacional e cidadão

3. Democracia semidireta

4. Direitos políticos ativos e passivos

5. Suspensão e perda dos direitos políticos CAPÍTULO VI DOS PARTIDOS POLÍTICOS

1. Conceito

2. Partidos políticos no Brasil

3. Fidelidade partidária TÍTULO III DA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO CAPÍTULO I A FEDERAÇÃO

1. A importância do princípio federativo

2. Funcionamento da federação

3. Autonomia e soberania

4. Federação e democracia

5. Vederação como processo

6. A estrutura do Estado federal

7. Traços comuns a toda federação

8. Federação americana

9. A teoria dos poderes implícitos

10. A federação no direito positivo brasileiro

11. A federação na Constituição de 1988

12. Repartição de competências constitucionais CAPÍTULO II DA UNIÃO

1. Natureza jurídica da União

2. Competências da União

2.1. Uma visão crítica de suas competências

3. Bens da União CAPÍTULO III DOS ESTADOS FEDERADOS

1. Natureza jurídica dos Estados-Membros

2. Competências estaduais

3. Os Estados federados perante a ordem externa

4. Autonomia dos Estados

4.1. Poder constituinte estadual

5. Intervenção do Estado nos Municípios

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6. Os tributos nos Estados

7. Uma visão crítica dos Estados federados CAPÍTULO IV DOS MUNICÍPIOS

1. O Município na estrutura federativa brasileira

2. Conceito

3. Competência municipal: o critério de interesse local

3.1. Outras competências municipais

4. Criação e organização municipal

5. Organização política

6. Fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios CAPÍTULO V DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS FEDERAIS

1. Natureza jurídica do Distrito Federal

2. Governo do Distrito Federal

3. Atribuições legislativas do Distrito Federal

4. Poder Judiciário do Distrito Federal

5. Histórico dos Territórios

6. Situação atual dos Territórios CAPÍTULO VI DA INTERVENÇÃO FEDERAL

1. Noções gerais

2. Efetivação da intervenção

3. Requisitos da intervenção

4. Efeitos da intervenção CAPÍTULO VII DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

1. Administração Pública

1.1. Administração direta e indireta

1.1.1. Autarquias

1.1.2. Sociedades de economia mista e empresas públicas

1.1.3. Fundações

1.2. Princípios constitucionais da administração pública

1.2.1. Princípio da legalidade

1.2.2. Princípio da impessoalidade

1.2.3. Princípio da moralidade

1.2.4. Princípio da publicidade

1.2.5. Princípio da eficiência

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2. Agentes públicos

3. Regiões CAPÍTULO VIII RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO ESTADO

1. Conceito

2. Surgimento da responsabilidade do Estado

3. Teoria do risco

4. Fundamentos da responsabilidade do Estado TÍTULO IV DA ORGANIZAÇÃO DOS PODERES CAPÍTULO I TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES ESTATAIS: LEGISLATIVA, EXECUTIVA E JUDICIÁRIA

1. Tripartição de funções e não-tripartição de poderes

2. Funções e fins do Estado

3. As três funções estatais: legislativa, executiva e judiciária

4. A importância da teoria de Montesquieu

4.1. Aspectos ideológicos da teoria da separação de poderes

4.2. Sua aplicação atual

5. Classificação das atividades do Estado

6. A tripartição das funções estatais na Constituição brasileira CAPÍTULO II DO PODER LEGISLATIVO

1. Estrutura do Poder Legislativo

1.1. Sua estrutura e funcionamento no Brasil

2. Funções legislativas

2.1. Função fiscalizadora

2.1.1. O Tribunal de Contas

3. Atribuições do Congresso Nacional

3.1. Atribuições da Câmara dos Deputados e do Senado Federal

4. Imunidades e vedações parlamentares

5. Reuniões

6. Comissões

6.1. Comissão Parlamentar Permanente

6.2. Comissão Parlamentar Temporária ou Especial

6.3. Comissão Parlamentar de Inquérito

6.4. Comissão Parlamentar Representativa SEÇÃO I ESPÉCIES NORMATIVAS

1. Emendas à Constituição

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2. Leis complementares à Constituição

3. Lei ordinária

4. Medidas provisórias

4.1. Urgência e relevancia

4.2. Abrangência material

4.3. Aprovação e eficácia

4.4. Possibilidade de reedição

4.5. Controle jurisdicional das medidas provisórias

5. Leis delegadas

6. Decretos legislativos

7. Resoluções SEÇÃO II PROCESSO LEGISLATIVO

1. Fases do processo legislativo

2. Discussão e votação

3. Sanção e veto

4. Promulgação

5. Publicação CAPÍTULO III DO PODER EXECUTIVO

1. Função do Executivo

1.1. A faculdade regulamentar

1.1.1. Tipos de regulamentos

2. Estrutura do Poder Executivo

2.1. Chefe de Governo e chefe de Estado

2.1.1. Formas de governo: monarquia e república

3. O presidencialismo brasileiro: os Ministros de Estado

4. O crime de responsabilidade: o impedimento do Presidente da Repú-

blica

5. Eleição do Presidente da República

6. Conselho da República e Conselho de Defesa Nacional CAPÍTULO IV DO PODER JUDICIÁRIO

1. Função jurisdicional

1.1. Funções atípicas

2. Estrutura do Poder Judiciário

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3. Garantias constitucionais da magistratura

4. Vedações aos magistrados

5. Garantias do Poder Judiciário

6. Supremo Tribunal Federal

6.1. Composição

6.2. Competência

7. Superior Tribunal de Justiça

7.1. Composição

7.2. Competência SEÇÃO I DO CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

1. Introdução

1.1. Fundamento e hierarquia das normas jurídicas

1.2. Inexistência da lei inconstitucional

1.3. Competência para aferir a validade constitucional da norma de

direito

1.4. A especial validade assumida pelas leis inconstitucionais e o pro-

cesso especial para a sua revogação

1.5. Conclusões

2. Pressupostos do controle da constitucionalidade das leis

2.1. Adequação das leis à Constituição e distinção entre leis constitucio-

nais e leis ordinárias

2.2. Processo especial de elaboração das leis constitucionais: rigidez cons-

titucional

2.3. Órgão encarregado do controle da constitucionalidade

2.4. Impossibilidade do exercício do controle da constitucionalidade

pelo Poder Legislativo

3. Sistemas de controle da constitucionalidade das leis

3.1. Limites básicos inerentes a qualquer sistema eficaz de controle

da elaboração legislativa

3.2. Sistema de controle político

3.3. Sistema de controle judicial

3.4. Vias de defesa e de ação

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4. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil

4.1. Constituição de 1824: inexistência do controle

4.2. Constituição de 1891: introdução do controle

4.3. Constituição de 1934: aperfeiçoamento do sistema

4.4. Constituição de 1937: retrocesso

4.5. Constituição de 1946

4.6. Emenda Constitucional n. 16, de 1965: plenitude do sistema

4.7. Constituição de 1967 e Emenda Constitucional n. 1, de 1969

5. O controle da constitucionalidade na nova ordem jurídica

6. Diferentes tipos de inconstitucionalidade

7. O controle no direito positivo

7.1. Inconstitucionalidade por ação

7.2. Inconstitucionalidade por omissão

7.3. Legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade

7.4. Papel do Procurador-Geral da República e do Advogado-Geral da

União

7.5. Via de exceção ou defesa

8. Ação declaratória de constitucionalidade

8.1. Efeito vinculante

9. Controle da constitucionalidade em nível estadual

9.1. Legitimação para agir CAPÍTULO V DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA

1. Ministério Público

2. Advocacia Pública

3. Advocacia

3.1. Histórico

3.2. O papel do advogado na atual Constituição

4. Defensoria Pública TÍTULO V DA DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS CAPÍTULO ÚNICO DO ESTADO DE DEFESA E DO ESTADO DE SÍTIO 1. Estado de defesa 2. Estado de sítio 3. Forças Armadas 4. Segurança pública TÍTULO VI DA TRIBUTAÇÃO E DO ORÇAMENTO CAPÍTULO I DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

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1. Noção de tributo

1.1. Definição de tributo no Código Tributário Nacional 2. Modalidades de tributos 2.1. Impostos 2.2. Taxas 2.2.1. Espécies de taxas 2.3. Contribuições de melhoria 2.3.1. Distinção entre contribuição de melhoria e taxa 2.4. Outras contribuições 2.5. Empréstimos compulsórios 3. Princípios Constitucionais Tributários 3.1. Princípio da igualdade 3.2. Princípio da estrita legalidade 3.3. Princípio da anterioridade 3.4. Princípio da irretroatividade 3.5. Princípio da uniformidade geográfica 3.6. Princípio da não-cumulatividade 4. Limitações constitucionais ao poder de tributar 5. Impostos da União 6. Impostos dos Estados e do Distrito Federal 7. Impostos dos Municípios 8. Repartição das receitas tributárias CAPÍTULO II DAS FINANÇAS PÚBLICAS E DOS ORÇAMENTOS 1. Atividade financeira do Estado 2. Orçamento 3. Despesas públicas 4. Receitas públicas 5. Crédito público 6. Dívida pública 6.1. Regime constitucional da dívida pública brasileira 7. Processo legislativo 8. Restrições à Administração TÍTULO VII DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA CAPÍTULO I DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA

1. O Estado enquanto agente normativo

2. O Estado planejador

3. Intervenção do Estado no domínio econômico

3.1. Evolução constitucional

3.2. Limites à atuação do Estado na Magna Carta

4. Livre iniciativa

4.1. Exceções

4.1.1. O monopólio do petróleo

5. Livre concorrência

5.1. O abuso do poder econômico

5.1.1. A legislação antitruste nos EUA

5.1.2. A legislação antitruste no Brasil CAPÍTULO II DA POLÍTICA URBANA

1. Política urbana

1.1. Plano diretor

1.2. Usucapião urbano constitucional CAPÍTULO III DA POLÍTICA AGRÍCOLA E FUNDIÁRIA E DA REFORMA AGRÁRIA

1. Política agrícola e fundiária e reforma agrária

1.1. Desapropriação para fins de reforma agrária

1.1.1. Indenização prévia e justa

1.1.2. Títulos da dívida agrária

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1.2. Usucapião rural constitucional CAPÍTULO IV DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

1. O Sistema Financeiro Nacional TÍTULO VIII DA ORDEM SOCIAL CAPÍTULO I DA SEGURIDADE SOCIAL

1. Noções gerais

2. Saúde

3. Previdência Social

4. Assistência social CAPÍTULO II DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO

1. Educação

2. Cultura

3. Desporto CAPÍTULO III DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA

1. Ciência e tecnologia CAPÍTULO IV DA COMUNICAÇÃO SOCIAL

1. Comunicação social CAPÍTULO V DO MEIO AMBIENTE

1. Noção de meio ambiente

2. Tratamento constitucional dado ao meio ambiente

3. Obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degrada-

ção ambiental CAPÍTULO VI DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE E DO IDOSO

1. Família

2. Criança e adolescente

3. Idoso CAPÍTULO VII DOS INDIOS

1. Índios

2. Terras indígenas

2.1. Aspectos históricos e jurídicos das terras indígenas no Brasil

2.2. As terras indígenas à luz da Constituição Federal de 1988

3. Síntese conclusiva

PARTE I TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO

TÍTULO I

NOÇÕES DE TEORIA

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DO ESTADO

CAPÍTULO I

CONCEITO E NATUREZA DO ESTADO

SUMÁRIO: 1 Sociabilidade do homem. 1.1. Fatores que levam o homem a socia- lizar-se. 2. O poder e a sociedade. 3. Estado-governo e Estado-sociedade. 4. Pres- supostos ou elementos integradores do Estado?

1. SOCIABILIDADE DO HOMEM

É um truísmo afirmar-se que o homem é um animal social. Com efeito, tem sido esta sua situação em todos os tempos, a de viver em sociedade. Nada obstante isto, os autores se esforçam em procurar explicações para a forma- ção desta, para o que teria levado o homem a abandonar uma situação de vida individual a fim de entrar numa forma qualquer de organização social. Quer-nos parecer que nunca será possível identificar uma razão específica para a formação da sociedade. Ela se confunde com o próprio evoluir do homem, perdendo-se, portanto, nas origens da própria espécie humana.

No entanto, há um outro aspecto a salientar: na medida em que foram surgindo essas comunidades, por menores que fossem, elas davam lugar - necessariamente - ao surgimento de desafios consistentes em resolver os problemas da própria comunidade. É possível, reconhecemos, que num pri- meiro momento esses problemas da sobrevivência coletiva tenham primado sobre os da própria individualidade. Mas é inegável que, tornando-se os ho- mens responsáveis não só pela sobrevivência pessoal mas também pela reso- lução dos problemas que permitissem a manutenção e a sobrevivência do gru- po social, deu-se lugar aí a uma função voltada aos interesses da coletividade, à resolução dos problemas que ultrapassam os indivíduos, os problemas transpessoais, os problemas coletivos enfim. Trata-se do aparecimento do político.

Com o surgimento do problema do poder emerge também o daqueles que vão desempenhar a função política. Por mais simples que fossem ainda as comunidades primitivas, e por mais que se conferisse primazia a formas cole- tivas de resolução desses problemas, o certo é que a história e a antropologia não dão conta da existência de sociedade em que não houvesse a diferença entre os homens no que diz respeito ao desempenho dessa função política. O que parece mais certo é que desde cedo se fizeram valer as diferenças pes- soais, de aptidão, de vocação, de disposição para o exercício do mando, de tal sorte que alguns sempre se sobressaíram, ou, optativamente, exerceram algu- ma forma de liderança na condução dos fenômenos sociais. É certo que nessa época se poderia estar muito longe da institucionalização do poder tal como conhecido no mundo moderno; o processo do exercício do poder afigurava-se entremeado com outros aspectos da vida social, por exemplo, o aspecto guer- reiro e o aspecto religioso. Não se havia ainda ganho a autonomia do político. Mas o fato de ele não ter nessa época se destacado plenamente de outras fun- ções não quer dizer que já não existisse uma função política.

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1.1. Fatores que Levam o Homem a Socializar-se

A discussão que ainda tem lugar em boa parte da doutrina, acerca de quais fatores teriam levado o homem a viver em sociedade, tem de ser di- ferençável daquela que se preocupa com os fatores que teriam determinado a aparição do Estado. Em outras palavras, um Estado não é senão uma modali- dade muito recente na forma de a humanidade organizar-se politicamente. Antes do Estado o homem passou por estruturas bastante diferentes de organiza- ção do poder político. Mas, já aqui, não há que se falar em formação da socie- dade, uma vez que esta já estava formada e já trazia dentro de si o próprio fenômeno político. É interessante notar, contudo, que a idéia do político se mantém relativamente imutável através dos tempos. O político como próprio do coletivo, do geral, do comum a todos, presente até os nossos dias.

1. Paolo Biscaretti di Ruffia, Direito constitucional, p. 33 e 34: "Todos nós temos uma noção empírica do ente social Estado, no sentido de que o vocábulo suscita, sem mais, na memória, este ou aquele agregado estatal do passado ou do presente. Por outro lado, é mister aprofundar um pouco tal conceito, tão genericamente possuído, e, antes de tudo, parece ser necessario precisar - ainda que seja necessário precisar - ainda que seja apenas em suas linhas gerais - qual seria a noção satisfatória que dele oferece a ciência juspublicista contemporânea.

Resulta, na prática, como axioma de grande aceitação a constatação de que o Estado: "é um ente social que se forma quando, em um território determinado, um povo se organiza juridicamen- te, submetendo-se à autoridade de um governo".

Disto se deduz que o Estado, ao apresentar-se como "um ente social com uma ordenação estável e permanente , pode, concomitantemente, ser considerado - segundo a teoria institucional do direi- to, mais acima resumida sinteticamente em seus enunciados principais - uma instituição ou uma ordenação jurídica (ainda mais: a mais aperfeiçoada e eficiente dentre todas do mundo contemporâ- neo), que abraça e absorve, em sua organização e estrutura, todos os elementos que o integram, adquirindo, em relação a eles, vida própria e formando um corpo independente, que não perde sua identidade, pelas sucessivas e eventuais variações de seus mesmos elementos".

Desta existência de uma atividade política surge a distinção que se pode fazer entre governantes e governados, também persistente ao longo da vida humana. Na medida em que alguns assumem o controle de um poder suficien- te para resolver as questões que afetam a todos, assumem uma posição diferen- ciada dentro da sociedade, uma posição de mando que implica, por parte de seus destinatários, uma posição de obediência. Mister notar-se, por seu turno, que durante longos períodos históricos o poder não esteve necessariamente concentrado nas mãos de uma única pessoa. Perfeitamente aceitável - para o grau de complexidade daquela sociedade - que determinadas questões fossem resolvidas definitivamente por pessoas diversas das que resolviam problemas de outra natureza. A própria sociedade medieval seria um exemplo avançado desse tipo de pulverização do poder por toda uma sorte de pessoas, institui- ções, ordens, cidades, profissões etc. Fácil notar-se, porém, que essa disper- são do poder é incompatível com um exercício mais amplo do Poder Público.

Na medida em que começam a se alargar as esferas de atuação do poder co- letivo, ou, em outras palavras, na medida em que a própria complexidade da vida social começa a demandar uma maior quantidade de decisões por parte dos poderes existentes, torna-se

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necessária a sua concentração, para que, em determinado ponto, uma única autoridade exerça o poder. De fato, a confor- mação efetiva da sociedade em questões importantes só se pode dar uma vez admitida a origem ou a sede do poder num único órgão; do contrário, haveria inevitavelmente o conflito de comandos, o que tornaria, mais cedo ou mais tarde, impossíveis as medidas de maior profundidade.

O Estado - entendido portanto como uma forma específica da socieda- de política - é o resultado de uma longa evolução na maneira de organização do poder. Ele surge com as transformações por que passa a sociedade política por volta do século XVI. Nessa altura, uma série de fatores, que vinham amadure- cendo ao longo dos últimos séculos do período medieval, torna possível - e mesmo necessária - a concentração do poder numa única pessoa. É esta ca- racterística a principal nota formadora do Estado moderno. O poder torna-se mais abrangente. Atividades que outrora comportavam um exercício difuso pela sociedade são concentradas nas mãos do poder monárquico, que assim passa a ser aquele que resolve em última instância os problemas atinentes aos rumos e aos fins a serem impressos no próprio Estado.

2. Maquiavel e Ernst Cassirer, Teoria geral do Estado, p. 23 e 24: "A despeito de existirem todos os antecedentes arrolados, que se empenham em descrever certas características conducentes a arqui- tetar, para cada época histórica, através dos séculos, uma idéia de Estado, o fato é que, somente no século XVI, especificamente no chamado período do Renascimento, é que surge, em sua verdadeira acepção, o que conhecemos atualmente por Estado. E foi precisamente Maquiavel, consoante paten- teamos na Introdução acima, que, de modo pioneiro, conferiu à palavra Estado seu significado autên- tico, ao cunhá-la e imprimir-lhe essência e conteúdo, embora sem apresentar propriamente uma defi- nição. Diz Maquiavel, nas primeiras linhas de O príncipe: "Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são Repúblicas ou Principados"".

2. O PODER E A SOCIEDADE

O surgimento do poder, não só com a sua característica de unidade mas também de institucionalização, não faz obviamente desaparecer a sociedade.

Esta continua a desempenhar e cumprir uma série de funções que o Esta- do, mesmo o mais autoritário, jamais assumiu. Tem variado, de fato, na histó- ria, a quantidade de poderes que o Estado acha por bem assumir. A sociedade, de outro lado, recobrou a sua importância, sobretudo debaixo do liberalismo, conseguindo reduzir o Estado a suas expressões mínimas, tornando-o competente para o desempenho das atividades absolutamente indispensáveis à manutenção da ordem e para propiciar as condições para que a própria sociedade pudesse então atingir os demais fins. Cuida-se aqui de uma luta que dura até os nossos dias. Existem aqueles que vêem no Estado tão-somente um ente que deve assegurar condições mínimas para que a sociedade possa - por si mesma - atingir os seus fins culturais, econômicos, sociais etc. Há aquelas outras cor- rentes que preferem fazer absorver, pelo próprio Estado, o desempenho des- sas atividades. De qualquer sorte, a diferença perdura entre o que se chama de Estado-sociedade e o Estado-poder.

3. ESTADO-GOVERNO E ESTADO-SOCIEDADE

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Há, portanto, um Estado cuja demarcação coincide com o aparato buro- crático formado pelos políticos e pelos profissionais que compõem o seu qua- dro organizacional. Mas sabemos que o Estado não se pode resumir ao que na verdade seria mais adequado chamar-se governo. Daí porque ser corrente na doutrina a expressão Estado-sociedade, para então abarcar o Estado na sua totalidade, compreendendo, portanto, não apenas a organização governamen- tal, mas também a própria comunidade, que não são entes estanques. É óbvio que há uma constante interação entre o governo, que exerce a sua influência conformadora sobre a sociedade, e, de outra parte, a sociedade que torna pos- sível a existência desse governo, e, em grande medida, determina-lhe o sen- tido, o alcance e as diretrizes.

3. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, t. 3, p. 20, 21 e 24: "Falar em Estado equivale, portanto, a falar em comunidade e em poder organizado ou, doutro prisma, em organiza- ção da comunidade e do poder, equivale a falar em comunidade ao serviço da qual está o poder, em poder conformador da comunidade e em organização que imprime caráter e garantias de perdurabilidade a uma e outro.

As duas perspectivas sobre o Estado que a experiência (ou a intuição) revela - o Estado-sociedade (ou Estado-coletividade) e o Estado-poder (ou Estado-governo ou Estado-aparelho) - não são senão dois aspectos de uma mesma realidade; assim como a institucionalização, sinal mais marcante do Estado no cotejo das sociedades políticas anteriores de poder difuso ou de poder personalizado, corresponde fundamentalmente a organização. O Estado é institucionalização do poder, mas esta não significa apenas existência de órgãos, ou seja, de instituições com faculdades de formação da vontade; significa também organização da comunidade, predisposição para os seus membros serem destinatários dos comandos vindos dos órgãos do poder. (...)

O Estado é comunidade e poder juridicamente organizados, pois só o Direito permite pas- sar, na comunidade, da simples coexistência à coesão convivencional e, no poder, do facto à insti- tuição. E nenhum Estado pode deixar de existir sob o Direito, fonte de segurança e de justiça, e não sob a força ou a violência. Mas o Estado não se esgota no Direito. É, sim, objecto do Direito, e apenas enquanto estruturalmente diverso do Direito pode ser a ele submetido, por ele avaliado e por ele tornado legítimo.

I - Quando se contrapõem Estado-comunidade e Estado-poder (ou Estado-aparelho), está-se a raciocinar no interior do fenômeno estadual, com o seu enlace necessário e dinâmico entre comu- nidade e poder. Quando - contudo - noutra distinção não menos célebre e importante - se contrapõem Estado e sociedade, já o âmbito se exibe diferente e mais largo.

Convém evocar esta problemática quer no plano histórico quer no plano conceitual.

II - Durante a Idade Média e na transição estamental, o político difunde-se e está presente na sociedade e na sua riquíssima teia de instituições - as ordens religiosas, as universidades, as obras assistenciais, as corporações de mesteres, as comunas ou os conselhos etc. Ou antes: é na sociedade como expressão integrante de todas as instituições (incluindo a instituição real) que reside o político.

Pelo contrário, com o absolutismo, o Estado identifica-se com o poder, com a soberania, com o Rei, e a sociedade - seja naquilo que vem de longe, seja naquilo que traz de novo - aparece a margem do político e sem projecção sobre o poder. Vem a ser apenas na

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época liberal que a sociedade volta a afirmar-se, se bem que em termos negativos, abrangendo tudo quanto se preten- de que fique subtraído à ação do poder. Assim como vem a ser com as concepções contratualistas então dominantes, primeiro, e, depois, com a passagem à democracia, que se toma ou se readquire consciência da face comunitária do Estado. E, mais tarde, certos regimes políticos afastam-se tanto da vontade e dos interesses dos cidadãos que o Estado-poder, no limite, se lhes entremostra completamente alheio e exterior.

O Estado liberal tem em vista uma sociedade livre da gestão ou direção do poder. O Estado social intervém nela para a transformar. Num caso ou noutro, a sociedade carrega-se de intenções políticas. Num caso ou noutro, a sociedade corresponde ao Estado-comunidade, mas não tem de se lhe assimilar ou de com ele coincidir completamente.

III - Se a sociedade civil suporta o Estado-comunidade enquanto conjunto humano, não se con- funde com este de um prisma jurídico e institucional, pois guarda sempre um grau maior ou menor de autonomia diante do poder - ela é a comunidade desprendida, para efeito de análise, do poder.

Não significa isto que não haja pontes ou veículos de passagem, que a sociedade seja indife- rente politicamente, sobretudo hoje, ou que ela possa captar-se sem o influxo do poder. Apenas enunciamos a possibilidade de uma consideração da sociedade à margem da redução ao fenômeno estadual (ou político).

Por outro lado, o Estado-comunidade apresenta-se como uma unidade em razão do poder e da organização, como uma só sociedade política. Já a sociedade, a sociedade civil, se apresenta na pluralidade de instituições, estruturas, grupos de natureza vária (cultural, religiosa, socioprofissional, econômica etc.). E esses grupos possuem vocações ou interesses igualmente diversos, sejam com- plementares ou antagônicos, a inserir num contexto geral de interdependência, senão de solidarie- dade - o que, desta ou daquela forma, prevaleçam estes ou aqueles interesses, vem a ser propor- cionado pela existência do Estado".

Paolo Barile preleciona: "O primeiro e fundamental problema que se põe ao lado do nascimento de um Estado Moderno (esse não se põe de fato no Estado absoluto se não em modo aproximativo) é aquele da correspondência mais exata possível entre país e governo, isto é, entre sociedade e organiza- ção, sem a qual a primeira não pode ser uma ordem estável.

Estado democrático contemporâneo tende sempre mais para uma solução de desdobramento entre Estado-aparato e Estado-comunidade: entendendo-se por Estado-aparato o complexo organizado que realiza o poder supremo, e por Estado-comunidade o complexo organizativo de sujeitos de quem o Esta- do reconhece um poder autônomo, enquanto expressão direta do organismo social interno da comunidade. Evita-se de confiar ao primeiro (isto é, apesar de superestrutura que grava o ato) todo o encargo típico do Estado, preferindo distribuir entre órgãos e instituições do Estado-comunidade (entre instituição menos burocrática, mas imediatamente vizinha aos homens que vivem no Estado) um grande número de interesses a tutelar. Tal instituição do Estado-comuni- dade baseia-se num conceito essencial, aquele de autonomia, no âmbito do Estado e com respeito aos princípios fundamentais do mesmo" (Istituzioni di diritto pubblico, 4. ed., Padova, CEDAM, p. 9-10) (trad. do Autor).

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É curioso que, embora o homem viva num Estado a todo momento sofren- do sua influência, no instante de defini-lo encontre grandes dificuldades. Não é de fato fácil encontrar-se uma definição que agrade a todos. No nosso Curso de teoria do Estado e ciência política tivemos o ensejo de definir o Estado como a "organização política sob a qual vive o homem moderno... resultante de um povo vivendo sobre um território delimitado e governado por leis que se fun- dam num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e supremo internamente" (p. 10). Não seria o caso aqui de pretendermos elencar todas as concepções que autores de nomeada avançaram sobre o Estado. Parece interes- sante e oportuna a discussão travada sobre o papel representado pelos chama- dos elementos do Estado, dado que, na verdade e sobretudo depois da obra de Jellinek, boa parte dos teóricos se contentaram em considerá-lo como resultan- te de três elementos fundamentais: poder, população e território.

4. Santi Romano, Princípios de direito constitucional geral, p. 59, 60 e 61: "O conceito de Estado é um dos mais controvertidos da hodierna ciência publicística, não porque se compreende entre outros não menos incertos, mas também, e principalmente, pela sua complexidade, o que dificulta o conhecimento de todas as suas notas essenciais. Esta dificuldade resulta claramente do desenvolvimento da doutrina que a ele se refere, pois esta teve necessidade de uma lenta e árdua integração para conseguir construí-lo; deriva ainda da própria terminologia com que aquele con- ceito às vezes vem expresso, traduzindo-lhe incompleta ou aproximadamente os vários aspectos.

É evidente que os gregos referiam-se ao Estado com a palavra (Pólis), que, embora utilizada para indicar regiões e países (vide Leopardi, Zibaldone, 4158), comumente significa cidade e, portanto, como o correspondente nome civitas, empregado pelos latinos para designar o Estado, pode-se referir propriamente a um só tipo de Estado, ou seja, àquele do Estado-cidade, que era então o mais comum; entretanto, não lhe colocou em relevo, senão o territorial. Os termos latinos respublica, imperi um, populus, indicavam-lhe o governo e particularmente o elemento da popula- ção. O próprio vocábulo "Estado", antes de assumir o sentido pleno que tem atualmente, teve por muito tempo significado restrito. Em latim, status é sinônimo de "condição", "posição", "ordem" e é, portanto, nome genérico que se fazia acompanhar de qualquer outro termo que lhe especificasse a referência: status reipublicae, status rei romanae e, mais tarde, status romanus. Em italiano, a palavra "Estado" provavelmente foi empregada outrora no sentido de "terra" ou "território", sendo acompanhada apenas de algum complemento de especificação (Estado de Florença, de Gênova etc.); somente aos poucos foi sendo utilizada sem este acréscimo.

Tal uso se afirmou inicialmente na Itália, no século XVI, pelo menos na linguagem comum, e

logo em seguida na França, Inglaterra e Alemanha. Na literatura científica, a palavra Estado foi

pela primeira vez empregada no sentido coincidente ao do moderno por Maquiavel, embora alguns tenham julgado que ela indicasse o domínio, o governo, o poder do Estado, o que não é exato, como se pode inferir daquelas passagens em que se evidencia o elemento território de acordo com o costume que Maquiavel não fez mais que seguir, estendendo-o e integrando-o aos demais elemen- tos ou aspectos que tomou em consideração.

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Também presentemente, no lugar da palavra "Estado" têm sido utilizados os seus sinônimos tanto na linguagem comum como na legislativa. Por exemplo, na terminologia francesa recorre-se, freqüentemente, ao termo "nação"; nas relações internacionais fala-se mesmo em "potência"; muitas vezes retorna-se à antiga tendência de indicar o Estado com a qualidade de seu soberano ou de seu governo "império", "reino", "monarquia", "principado", "ducado", "república" etc., e é sintomático que algumas destas palavras continuem a ser empregadas mesmo quando, substituída a forma de governo, aquela seja mais oportuna: assim, a Alemanha continua a ser qualificada como "Império".

De qualquer modo a evocação à variedade de terminologia e às obscuras variações desta, que são também alternações do conceito, serve para alertar contra o perigo de formular um mesmo con- ceito, referindo-se às significações parciais que às vezes são atribuídas ao vocábulo correspondente.

O problema da definição do Estado não é apenas um problema de definição verbal, mas sobre- tudo jurídico. Isto significa que ele, primeiramente, deve ser colocado e examinado em relação às várias ordenações positivas, cada uma das quais, em abstrato, poderia assumir um conceito diverso de Estado. Deve-se considerar, porém, que atualmente estas várias ordenações estatais ou não, por exemplo, o direito internacional e o direito canônico, acolheram a noção de Estado comum ou geral, ao menos sob um ponto de vista prático e concreto: as divergências são, sobretudo, de ordem doutrinária ou teórica e, por sorte, raramente repercutem na linguagem legislativa ou oficial, dando lugar a incertezas de interpretação. Elas, mais que ao conceito, se referem ao desenvolvimento de tal conceito ou aos atributos e qualidades do Estado que são necessários para individualizá-lo, embora sirvam para esclarecer-lhe a natureza".

Gonzalez Casanova fornece excelente explicação sobre o papel repre- sentado por esses elementos: "É corrente comprovar que, para muitos teóri- cos do Estado e, em especial, para muitos estudiosos do mesmo, Estado e comunidade política organizada seriam idéias sinônimas. Certas formas pri- mitivas de organização social, dotadas de um rudimental sistema de governo (as polis gregas, o Império Romano, a pluralidade de centros de poder da Idade Média européia), seriam tipos ou formas históricas de Estado, tal qual o Estado Moderno. Tem-se falado, portanto, do Estado despótico do antigo Egito, do Estado grego ou romano, do Estado feudal etc.

Já sabemos, depois de tudo o que vem sido dito em parágrafos anteriores que, em todo caso, a significação da palavra "Estado" tem variado substancial- mente, em que pese a sua antigüidade semântica. Mas, sobretudo, sabemos que as formas de organização política das sociedades históricas - como exemplo as européias ocidentais - se distinguem, relativamente diferentes - dentro de um processo que as vincula historicamente umas com as outras -, constituin- do-se "modelos" de organização política com traços próprios e diferençados.

É verdade que em todas elas encontramos alguns elementos comuns: uma população, um território, uma organização social, um sistema de poderes no que sobressai o de uns indivíduos ou grupos dominantes que se apresentam supremos e um sistema de normas deduzido daqueles com capacidade de obrigar mediante a correspondente sanção. Mas estes elementos comuns formam em cada caso uma estrutura peculiar. Poderíamos dizer que a diferença funda- mental entre as diversas formas de organização política não reside nos seus elementos, mas sim na forma de estes acharem-se estruturados.

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Ainda que sempre encontremos população social, sistema de poderes, ideologias, normas jurídicas etc., nem sempre a combinação de todos eles dá como resultado a mesma estrutura política. A população pode crer em coisas muito distintas com respeito à relação que deve existir entre os poderes so- ciais: o território e a população podem achar-se unidos por laços muito dife- rentes; as normas jurídicas podem obrigar com maior ou menor eficacia a mais ou a menos a população e por distintas razões justificadoras.

O Estado, portanto, é uma formação social histórica, organizada como unidade política, que tem uns traços estruturais característicos e que vai cons- tituindo a partir da sociedade européia ocidental dos séculos XIII e XIV. Fa- lar, pois, de Estado moderno é uma redundância, já que, por definição, o Es- tado é a forma de organização política da modernidade, se por ela entender- mos a época histórica que se inicia no pré-Renascimento" (Teoria dei Estado e derecho constitucional, p. 74) (trad. do Autor).

4. PRESSUPOSTOS OU ELEMENTOS INTEGRADORES DO ESTADO?

Embora o Estado moderno continúe a manter essas características - de fato se desconhece qualquer Estado que não tenha esses três elementos - é preciso reconhecer que uma dilucidação maior cabe, no que tange ao saber se estamos diante de pressupostos ou requisitos para existência do Estado ou de elementos integradores da sua existência, e aqui a polêmica medra. A diferen- ça fundamental reside no seguinte: há aqueles que no fundo consideram que toda vez que se unir um território a um governo e a um povo resulta neces- sariamente num Estado. Para eles esses seriam não só elementos indispensá- veis como bastantes à existência do Estado. Há no entanto outra corrente, que, sem negar serem esses elementos necessários, procura enfatizar que de um lado o Estado suplanta esses três - ao necessitar, por exemplo, de outros não aí incluídos, podendo ser citados, a título exemplificativo, os fins do pró- prio Estado - e, de outra parte, não ser também absolutamente inconcebível a existência de Estado com a ausência de um ou alguns desses elementos.

5. Jorge Miranda, Manual, cit., t. 3, p. 8: "Por outro lado, é questão extremamente complexa e controversa saber qual a natureza ou essência do Estado, saber qual a realidade a que correspondem todos os aspectos mencionados (e, aí, evidentemente, Estado e político não se distinguem). Cabe também referi-la; e - porque se afigura ser questão prévia, pelo menos do modo como levar a cabo aquele exame descritivo - justifica-se, mesmo, começar por ela.

Mais para efeitos didáticos do que científicos, grande número de autores reconduz o trata- mento do Estado ao dos seus três "elementos": povo, território e poder político. É tese a que não aderimos; quando muito, aceitamos falar em "condições de existência". Sem embargo e sem seguir- mos esse caminho, iremos pelo peso da tradição e por maior facilidade de exposição - dedicar os próximos capítulos ao Estado como comunidade política (ou povo), à cidadania como qualidade de membro de Estado, ao Estado como poder e ao território do Estado.

Tanto quanto releva das ciências juspublicísticas releva da filosofia o problema da natureza, da essência, do ser do Estado; e o debate sobre este ponto anda, desde há muito, bem próximo do debate acerca da formação ou da justificação do poder (ou acerca da legitimidade do poder e dos governantes)".

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Sobre a questão relativa a pressupostos e requisitos para a existência do Estado, conferir Paolo Barile, Istituzioni, cit., p. 10: "All'interno, la sovranità si rende effettiva attraverso tre elementi che, secondo una dottrina tradizionale, compongono lo Stato. Alludiamo al popolo, al territorio e al governo (in senso lato). Si tratta, in realtà, di elementi assai eterogenei, per cui giustamente si è osservato (Gueli) che essi sono del tutto inadatti a comporre, insieme, il concetto di Stato e che, in fondo, popolo e territorio sono anzitutto presupposti essenziali dello Stato (R. Quadri)".

Vejamos melhor: o elemento que tem mais caracterizada sua condição de integrante da essência do Estado é o território. Por outra face, não é fácil con- ceber-se como um ingrediente de natureza tão diferente dos demais possa inte- grar o mesmo composto que seria o Estado. O território fica muito mais facil- mente compreensível quando admitido como uma mera condição de existência do Estado. É dizer, na situação atual das coisas, o homem é um ser preso a Terra, e, para que uma determinada ordem jurídica possa ser exclusiva num determinado espaço, ela tem necessariamente de dispor de uma parcela do glo- bo terrestre. Nessas condições, portanto, o território é importantíssimo para que o Estado assuma sua condição atual, a de ser um ordenamento exclusivo numa determinada área do globo. Mas basta que suponhamos mudanças radicais na realidade tecnológica - imaginando no futuro ser possível a manutenção de populações no espaço que circunda a Terra por tempo indefinido - para inda- garmos se algo nos impediria de admitir que uma dada população se erigisse, como uma unidade política autônoma, com sede no Espaço. Seria perfeitamen- te possível, portanto, imaginar-se comunidades soberanas desprendidas do ele- mento território. E a só possibilidade de pensar-se isso, de ser tal hipótese Logicamente admissível, demonstra que o território não é um elemento compo- nente, integrante do próprio Estado, no sentido de exprimir-lhe a essência.

Com relação ao povo, já talvez não seja tão fácil essa elimináção. De fato, todo Estado é a organização juridicamente soberana de um povo. Contudo, ain- da assim ficam problemas delicados a serem resolvidos. Supondo-se que num determinado Estado haja uma mudança substancial de uma parcela quase que integral do seu povo, perguntar-se-ia se houve a manutenção da identidade do Estado ou se seria um outro Estado que estaria aí surgindo. De qualquer sorte, fica claro que o elemento povo parece mais consubstancial ao Estado do que o território, na medida em que o Estado é uma expressão desse próprio povo.

Ainda assim, quer-nos parecer que a polêmica suscitada é extremamen- te útil, na medida em que ela serve para demonstrar que o Estado - embora muito impregnado desses três aspectos que mais nitidamente saltam à nossa vista e que sem os quais até os presentes dias não poderíamos mesmo admitir a sua existência - é algo que os transcende, não se confunde, não se resume a eles. Há sempre algo no Estado - por vezes de difícil apreensão - que permite se aceitem de melhor grado essas teorias que buscam relativizar, ain- da que em pequena medida, essa identificação muitas vezes mecânica que se faz entre Estado e esses três elementos componentes. Nítida a possibilidade de ser essa idéia de componentes excessivamente forte, por reduzir o Estado a esses três ingredientes, quando é muito mais compreensível que na realida- de estatal entrem elementos de outra ordem, no mais das vezes - como dis- semos - de trabalhosa apreensão, razão pela qual os autores valem-se da simplificação, evitando incluí-los na definição do Estado.

O próprio direito tem a sua importância decisiva na constituição do Estado. Mais do que o próprio direito, o apelo para uma das suas técnicas, a da perso- nificação, hoje adotada talvez pela unanimidade dos Estados modernos. Com exceção da Inglaterra, todos os

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Estados subjetivam, personalizam a sua figu- ra, visando com isto objetivos de ordem racional, facilitando destarte o fun- cionamento do mecanismo jurídico, como também submetendo o Estado mais rigidamente às regras do próprio direito.

CAPÍTULO II O PODER

SUMÁRIO: 1. Poder social. 2. Poder político. 3. Direito e política. 4. O Estado se subordina inteiramente ao direito? 5. Estado e soberania.

1. PODER SOCIAL

Se perguntarmo-nos qual o objeto fundamental com que se defronta uma Constituição vamos encontrar uma só resposta: a regulação jurídica do poder. Na verdade, é a configuração que vier a ser imprimida a ele, a sua afetação a estes ou àqueles detentores, sua maior ou menor concentração, os controles de que é passível, assim como as garantias dos destinatários do poder que acabam por conformar o Estado e a sociedade.

O poder é tido como um dos três incentivos fundamentais que dominam a vida do homem em sociedade e rege a totalidade das relações humanas, ao lado da fé e do amor, unidos e entrelaçados, segundo Lowenstein.

O poder social é, pois, um fenômeno presente nas mais diversas modali- dades do relacionamento humano. Ele consiste na faculdade de alguém impor a sua vontade a outrem. O poder não se confunde com a mera força física porque esta suprime no seu destinatário a própria vontade, o que não significa dizer que no exercício do poder não exista coercitividade. Pelo contrário, ela está sempre presente, embora possam ser muito diferentes as sanções em que pode incidir aquele que enfrenta o poder. Se não houver, contudo, ao menos a virtualidade do exercício da coerção, o que se tem é, na verdade, a mera persuasão, na qual predomina a técnica argumentativa. De outra parte, aquele que se persuade se convence das razões do persuasor, enquanto no poder o que há é uma sujeição da vontade do dominado por temor das conseqüências da não-sujeição. Amplamente considerado, tanto é poder o exercido pelo pai ao dar ordens aos seus filhos, quanto o do governo ao ordenar aos cidadãos.

2. PODER POLÍTICO

Assim, com esta extensão, o poder extravasa o campo de interesse de uma Constituição. Para esta, interessa mais diretamente o poder político. Para a inteligência deste, urge lembrar que em toda organização ou sociedade há de comparecer uma certa dose de autoridade para impor aqueles comportamentos que os fins sociais estejam a exigir. Neste sentido o poder político não é outro senão aquele exercido no Estado e pelo Estado. Há inegavelmente algumas notas individualizadoras do poder estatal. A que chama mais atenção é a su- premacia do poder do Estado sobre todos os demais que se encontram no seu âmbito de jurisdição. A criação do Estado não implica a eliminação desses outros poderes sociais: o poder econômico, o poder religioso, o poder sindical etc. Todos eles continuam vivos na

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organização política. Acontece, entretan- to, que esses poderes não podem exercer a coerção máxima, vale dizer, a invocação da força física por autoridade própria. Eles terão, sempre, de cha- mar em seu socorro o Estado. Nessa medida são poderes subordinados.

1. Mário Stoppino, O poder, Jornal da Tarde, 14 jan. 1975: "Em seu significado mais geral, a palavra poder designa a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos e a fenômenos naturais (exemplo: poder do calor, poder de absorção). Se a entendermos em sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a vida do homem em sociedade, o poder torna-se mais preciso, e seu espaço conceitual pode ir desde a capacidade geral de agir até a capacidade do homem em determinar o comporta- mento do homem: poder do homem sobre o homem. O homem é não só o sujeito mas também o objeto do poder social. É poder social a capacidade que um pai tem para dar ordens aos seus filhos ou a capacidade de um governo de dar ordens aos cidadãos".

2. Miguel Reale, Teoria do direito e do Estado, p. 320: "Dentro dos limites de seu território, ou seja, nos limites reconhecidos pelo Direito Internacional, o Direito do Estado estende-se a todos os setores da vida social e, prima facie, cabe-lhe sempre razão nos entrechoques das competências. O Estado não precisa legitimar as suas decisões, a não ser em um segundo momento, conforme a maior ou menor soma de garantias reconhecidas aos indivíduos e aos grupos: "Prima facie em princípio, elas (as regras de direito emanadas do Estado) são direito porque editadas pelo Estado segundo a sua autoridade legislativa. A autoridade do Estado, em virtude de sua essência mesma, faz presumir a for- mulação da verdadeira norma jurídica, presunção esta que nenhuma outra autoridade pode invocar".

Assim sendo, a soberania é o direito do Estado Moderno porquanto só no Estado Moderno se verifica o pleno primado do ordenamento jurídico estatal sobre as regras dos demais círculos so- ciais que nele se integram e representa a condição essencial da validade prima facie incondicionada das regras de direito estatal".

Roque Carrazza, Princípio federativo e tributação, RDP, 71:174: "Atualmente, o Estado é a única instituição soberana, porquanto "superiorem non recognoces". De fato, dentre as várias pes- soas que convivem no território estatal, apenas ele detém a faculdade de reconhecer Outros ordenamentos e de disciplinar as relações com eles, seja em posição de igualdade (na comunidade internacional), seja em posição de ascendência (por exemplo em relação às entidades financeiras), seja até em posição de franco antagonismo (v.g. com as associações subversivas).

A soberania como qualidade jurídica do "imperium" é apanágio exclusivo do Estado. Se ele não tivesse um efetivo predomínio sobre as pessoas que o compõem, deixaria de ser Estado. Daí concluirmos que a soberania é inerente à própria natureza do Estado (Giorgio Del Vecchio). Ou, como queira Bluntschili "o Estado é a encarnação e personificação do poder nacional. Esse poder, considerando a sua força e majestade supremas, se chama soberania". E continua este incompará- vel mestre: "... a soberania supõe o Estado, não podendo estar nem fora, nem acima dele". (...)".

Isto fica bem claro quando se estuda o surgimento desta supremacia do poder estatal. Vai-se ver, de resto, que o advento do próprio Estado Moderno coincide, precisamente, com o momento em que foi possível, num mesmo território, haver um único poder com autoridade originária, vale dizer: sem ser necessário chamar o poder de outrem em seu socorro.

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Na Idade Média não existia esta supremacia inconteste de uma pessoa, de uma classe ou de uma organização. Adversamente, eram múltiplos os entes que reclamavam poderes originários: o Papa, o Sacro Império Romano-Ger- mânico, os reis, a nobreza feudal, as cidades e as corporações de artes e ofí- cios, todos pretendiam exercer competências não derivadas de outrem, o que era o mesmo que dizer que não se reconhecia reciprocamente nenhuma soberania.

A partir do século XVI um fenômeno muito curioso deu-se na Europa. Os reis, através de diversas batalhas e tramas políticas, ganharam uma ascendên- cia inconteste dentro do território de cada reino, excluindo, inclusive, no campo externo, as pretensões temporais do papado e do Sacro Império Ro- mano-Germânico. Destarte, formou-se uma sorte de poder que alguns que- riam até mesmo diferente daquele vigorante na Grécia e em Roma. De qual- quer forma era, sem dúvida, completamente diverso do que existiu no milê- nio compreendido pela Idade Média.

3. Reinhold Zippelius, Teoria geral do Estado, p. 55: "A afirmação considerada hoje em dia, as mais das vezes, evidente, segundo a qual todas as autoridades num Estado derivam de um poder estadual unitário, não foi tida por verdadeira desde sempre. Aquela afirmação é o ponto de chegada de uma evolução histórica acidentada. Houve longas épocas da história alemã durante as quais a nobreza, a igreja e as cidades exerciam autoridades originárias. Havia uma justiça autônoma que não derivava do poder real e era mais antiga, historicamente, que a jurisdição real. Aquela era defendida e activada mediante privilégios de imunidade. Também escapavam distribuídas novas hierarquias nobiliárquicas que, como plantas silvestres, não acatavam, pura e simplesmente, a suserania suprema do rei.

Nos diversos territórios as competências estavam divididas já na baixa Idade Média, entre, por um lado, os príncipes e por outro a igreja, cavaleiros e cidades. Deparavam-se freqüentemente em cada Estado dois verdadeiros Estados: o príncipe e os grupos sociais tinham organização de grupos sociais. O príncipe e os grupos sociais tinham, tanto um como os outros, tropas, funcionários, finanças e representações diplomáticas próprias. Governar era então negociar continuamente de compromisso em compromisso (Mitteis-Lieberich, Cap. 35 III 5; Jellinek, 696 e segs.).

O pensamento da concentração do poder público pelos príncipes já progrediu, certamente, na Idade Média, como mostra a máxima: "Les rois sont souverains par dessus tous" proclamada ini- cialmente em França por Beaumanoir. O poder principal ou dos príncipes deveria ser independen- te; o poder papal e o imperial não deveriam ter precedência. No entanto o poder principal, por sua vez, deveria ter precedência em relação às competências próprias dos diversos corpos sociais (Gierke, 381 e segs., 633 e segs., 192 e segs.; Jacoby, 26 e segs.)".

3. DIREITO E POLÍTICA

De outra parte há que se constatar a pretensão do direito em traçar as regras sobre as quais se deve dar o jogo político. Isto não significa, entretanto, que o direito acabe com a política. Esta, é óbvio, continua a existir mesmo debaixo do Estado constitucional. O direito é, na verdade, uma moldura den- tro da qual se considera aceitável o jogo político. Entre ambos, na verdade, surge uma tensão dinâmica. Freqüentemente a política tenta abandonar os parâmetros jurídicos. Por outro lado, é a Constituição que, desgarrada da

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razoabili- dade, procura ir longe demais querendo enjeitar em si toda a vida política futura do Estado.

4. Miguel Reale, Teoria do direito, cit., p. 115: "O poder, por conseguinte, nunca deixa de ser substancialmente político, para ser pura e simplesmente jurídico.

Quando dizemos que o poder é jurídico, fazemo-lo relativamente a uma graduação de juridicidade, que vai de um mínimo, que é representado pela força ordenadamente exercida como meio de certos fins, até a um máximo, que é a força empregada exclusivamente como meio de realização do Direito e segundo normas de Direito.

Isto quer dizer que o poder não existe sem o Direito, mas pode existir com maior ou menor grau de juridicidade.

Por outro lado, assim como o poder não existe sem o Direito, o Direito não se positiva sem o poder, um implicando o outro, segundo o princípio da complementariedade, de tanto alcance nas ciências naturais e humanas.

De maneira geral não há poder que se exerça sem a presença do Direito, mas daí não se deve concluir que o poder deva ser puramente jurídico, tal como é entendido no "Estado de Direito".

A expressão poder de direito é o resultado de uma comparação entre os diversos graus de juridicidade do exercício do poder. Não significa - como pensam alguns - que o poder se torna todo substancialmente jurídico (o que equivaleria a identificar Estado e Direito), mas que o poder, em regra, se subordina às normas jurídicas cuja positividade foi por ele mesmo declarada".

O Poder Político exerce uma função transcendente desde logo na pró- pria Constituição do Estado. Este nada mais é que uma comunidade transfor- mada pelo exercício sobre ela do Poder Político.

O poder constitui o Estado. Não pode haver Estado sem Constituição. Esse próprio ato constitutivo, por seu lado, não se desprende nem se desgarra por completo do direito. Embora seja um ato emanado sobretudo da força, esta não pode, todavia, vir desacompanhada de uma idéia de direito, nem deixar de se traduzir logo em seguida em atos de natureza jurídica. O poder não consegue exercer-se dentro do Estado enquanto pura e exclusiva força bruta; ele há de sempre dizer por que veio e para que veio, tornando-se nesse discur- so, necessariamente, jurídico.

A vinculação do poder ao direito - frise-se - não ocorre exclusiva- mente no momento da Constituição do Estado, mas também, e com muito maiores razões, por ocasião do seu funcionamento. Implantados os órgãos constituídos - assim entendidos todos os que encontram o seu fundamento na Constituição - esses nada mais são que um feixe, um conjunto de compe- tências; são, destarte, simples definições legais de faculdades que incumbem aos seus agentes. A atuação do Estado no seu processo de promoção do bem-estar coletivo, da segurança, do progresso, se cumpre através de atos jurídicos ou de atos materiais que necessariamente aos primeiros se remontam.

A complexidade das funções estatais, por sua vez, dá lugar a uma comple- xidade crescente da organização do próprio Estado. Essa complexidade se traduz na existência de múltiplos órgãos, cada um dotado das suas competên- cias próprias. A multiplicação de

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agentes e de órgãos é também criadora de uma limitação do poder pelo direito. O poder dividido e disseminado é sem- pre um poder mais controlado.

4. O ESTADO SE SUBORDINA INTEIRAMENTE AO DIREITO?

Fica sempre no ar, entretanto, uma questão: o Estado se subordina intei- ramente ao direito? Podemos falar com procedência num Estado de Direito? De início pode parecer muito difícil a aceitação dessa tese, uma vez que, se é o próprio Estado que cria o direito, através da sua atividade Legislativa; se são, em última análise, órgãos dos próprios Estados os incumbidos de aplicar o di- reito, de sancionar aquele que o descumpre, poder-se-ia de fato sempre acredi- tar que a submissão do Estado ao direito é impossível. O direito se prestaria à dominação dos súditos, mas não se prestaria à submissão do próprio Estado.

Contudo, não é isto que tem prevalecido. Na verdade o Estado moderno, democrático, tem guardado uma obediência sensível ao ordenamento jurídico. A despeito das dificuldades reconhecidamente procedentes de se sancionar o Estado quando ele é o descumpridor das suas próprias leis, nem assim tem dei- xado o Estado de pautar-se pelas regras jurídicas que cria. Tem sido como que uma necessidade lógica de coerência; ao Estado Moderno não se conferiria legitimidade enquanto estivesse ele voltado exclusivamente a impor normas. O estágio já atingido no processo do avanço democrático presta-se a impedir que, nada obstante, seja o povo o titular da soberania, possa ele sofrer o exercício de um podêr feito de maneira arbitrária ou desgarrada da legalidade.

Portanto, o próprio fundamento que em última análise confere ao Esta- do a prerrogativa de exercer o poder - que é a sua capacidade de impor a ordem - impede que ele deixe de sujeitar-se às leis destinadas a ordenar a própria sociedade. É como se essa sua sujeição à lei fosse condição para que pudesse ser chamado a legislar, na idéia muito precisa e feliz de Radbruch. Há algo que parece transcender o próprio Estado, tratando-se, para alguns, de um direito suprapositivo e natural, que obriga o Estado a manter-se sujeito às suas próprias leis, ainda seguindo a lição do mesmo mestre.

Além disso é imprescindível a percepção de dar-se a contenção do poder não só por limitações de ordem formal - como até agora vínhamos expondo - mas também pela existência de limitações de ordem material, vale dizer, por regras que impedem o Estado de invadir as esferas próprias dos indivíduos e dos grupos sociais menores. São, portanto, os instrumentos jurídicos de garantia.

É certo que o Estado apresenta-se cada vez mais ameaçador na medida em que assume um número crescente de atividades. É curial também que essa proliferação de fins do Estado põe em risco a liberdade do indivíduo. Daí por que se faz hoje importante não só a limitação das atividades do Estado pelo direito, mas também a contenção das próprias atividades do Estado. As diversas experiências históricas têm demonstrado a impossibilidade de um Estado ser totalitário quanto aos seus fins e libertário quanto aos seus meios. Para que se possa maximizar os seus fins, ou, em outras palavras, levar a cabo um excessivo número de atividades com fins sociais, ele tem necessidade de dotar-se de uma força coercitiva maior, na medida em que muitas vezes o exercício desses fins não é natural ao próprio Estado e ele só pode absorvê-los através de um proces- so traumático e violento sobre a sociedade. De qualquer forma, não se pode conferir um caráter absoluto a essa correlação entre poucos fins

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e liberdade e muitos fins e ausência de liberdade. É inconteste a existência de Estados que, embora perseguindo poucos fins, não souberam preservar a liberdade.

5. ESTADO E SOBERANIA

Na mesma medida em que se consolidou o poder dentro do Estado, surgiu também a idéia de que se tratava de um poder soberano. De fato, pode-se dizer que são duas construções simultâneas. Uma, a do Estado, tal como saído dos séculos XV a XVIII, e outra, a da comunidade internacional, composta de Es- tados tidos por iguais. Esta regra da igualdade foi o princípio sobre o qual se erigiu o direito internacional. Encontrava-se, assim, inteiramente preservada a noção de soberania. Esta se constituiria na supremacia de poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder.

Essa situação nada mais era, portanto, que a consagração, na ordem in- terna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Este princípio da coorde- nação mantém-se válido, em termos, até hoje, não tendo sido a igualdade dos Estados infirmada do ponto de vista jurídico. Contudo, esta postulação jurídi- ca encontra absoluta ausência de correspondência nos campos político, econô- mico, militar, cultural etc. É que os Estados tornaram-se de dimensões e de proporções muito diferençadas, fenômeno que se tornou ainda mais acentua- do com o advento à cena jurídica de um grande número de Estados tornados independentes pelo fenômeno da descolonização ocorrido após a Segunda Guerra Mundial. Perde-se, destarte, a noção do que sejam os requisitos de um Estado. Confere-se essa qualidade a pequenos territórios - às vezes pequenas ilhas; outras vezes nesgas de terras espremidas entre um Estado e o mar; ou mesmo porções pequenas de territórios sem qualquer meio de acesso ao mar, tudo isso dando lugar a um intenso fenômeno de desigualdade entre os Estados, que tem sido objeto já de não poucas preocupações na Organização das Nações Unidas (ONU). Encontramos lá o surgimento dos fundamentos de um direito internaci- onal compensador dessas fraquezas - da mesma maneira que, no direito inter- no, houve um direito social voltado aos mais carentes e necessitados.

De qualquer sorte, a convivência na mesma cena internacional de Esta- dos com tão grandes diferenças de potencial gera muitas vezes dificuldades na organização dessa própria comunidade, sobretudo na medida em que se tem ainda que aceitar a postulação da igualdade formal de todos os Estados.

Há, portanto, uma forte falta de correspondência entre os postulados de um direito constitucional clássico e as realidades do mundo moderno. E de outra parte é sabido que os Estados, ainda que de fraca expressão, lutam pela sua autonomia e pela sua soberania, porque esta é a forma de assegurarem a sua liberdade no contexto internacional. O desafio consiste precisamente em saber como, sem se deixar de respeitar os interesses desses pequenos Estados, poderiam eles continuar a gozar dos benefícios que a soberania lhes confere sem deixar de outra parte de atentar às necessidades de uma atuação mais intensa das organizações internacionais, do que muito depende a sobrevivên- cia da própria humanidade.

CAPÍTULO III O PODER CONSTITUINTE

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SUMÁRIO: 1. Legitimidade e legalidade. 2. O pensamento político-jurídico de Sieyès. 3. Natureza e titularidade do poder constituinte. 4. Espécies de poder cons- tituinte: originário e derivado. 5. Exercício do poder constituinte. 6. Limitações ao poder de reforma constitucional. 6.1. Cláusulas pétreas. 7. Modernas tendências.

O Poder Constituinte é aquele que põe em vigor, cria, ou mesmo cons- titui normas jurídicas de valor constitucional. Com efeito, por ocuparem estas o topo da ordenação jurídica, a sua criação suscita caminhos próprios, uma vez que os normais da formação do direito, quais sejam, aqueles ditados pela própria ordem jurídica, não são utilizáveis quando se trata de elaborar a pró- pria Constituição.

É certo que, na maior parte do tempo, as regras constitucionais mantêm- se em vigor e, nessas condições, esse poder não é exercitado, remanescendo, em conseqüência, no seu assento normal, que é o povo.

O Poder Constituinte só é exercitado em ocasiões excepcionais. Muta- ções constitucionais muito profundas marcadas por convulsões sociais, crises econômicas ou políticas muito graves, ou mesmo por ocasião da formação originária de um Estado, não são absorvíveis pela ordem jurídica vigente. Nesses momentos, a inexistência de uma Constituição (no caso de um Estado novo) ou a imprestabilidade das normas constitucionais vigentes para manter a situação sob a sua regulação fazem eclodir ou emergir este Poder Consti- tuinte, que, do estado de virtualidade ou latência, passa a um momento de operacionalização do qual surgirão as novas normas constitucionais.

1. LEGITIMIDADE E LEGALIDADE

Dos atos jurídicos infraconstitucionais cobra-se a legalidade. Devem eles estar de acordo com o preceituado formalmente e, se for o caso, materialmen- te em nível hierárquico superior.

Das Constituições, por seu turno, é cobrada legitimidade, que vem a ser a maior ou menor correspondência entre os valores e as aspirações de um povo e o constante da existente Constituição.

Constata-se assim que a Constituição não se contenta com a legalidade formal, requerendo uma dimensão mais profunda, a única que a torna intrin- secamente válida!. Assim sendo, uma Constituição não representa uma sim- ples positivação do poder. É também uma positivação de valores jurídicos.

1. Hermann Heller, Teoria do Estado, p. 327: "A questão da legitimidade de uma Constituição não pode, naturalmente, ser contestada, referindo-se ao seu nascimento segundo quaisquer precei- tos jurídicos positivos, válidos com anterioridade. Em compensação, porém, uma Constituição precisa, para ser Constituição, isto é, algo mais que uma relação factícia e instável de dominação, para valer como ordenação conforme o direito, uma justificação segundo princípios éticos de direi- to. Contradizendo os seus próprios pressupostos, disse Carl Schmitt que a toda Constituição exis- tente deve atribuir-se legitimidade, mas que uma Constituição, entretanto, só é legítima, "isto é, reconhecida não só

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como situação de fato mas também como ordenação jurídica, quando se reco- nhece o poder e (!) a autoridade do poder constituinte em cuja decisão ela se apóia". A existencialidade e a normatividade do poder constituinte não se acham, certamente, em oposição, mas condicionam-se reciprocamente. Um poder constituinte que não esteja vinculado aos setores de decisiva influência para a estrutura de poder, por meio de princípios jurídicos comuns, não tem poder nem autoridade e, por conseguinte, também não tem existência".

2. O PENSAMENTO POLÍTICO-JURÍDICO DE SIEYÈS

Poucos meses antes do deflagar da Revolução Francesa, o abade Emmanuel Sieyès publicou um pequeno panfleto intitulado Que é o Terceiro Estado?, que foi um dos mais famosos estopins revolucionários, representando um ver- dadeiro manifesto de reivindicações da burguesia na sua luta contra o privilé- gio e o absolutismo. Para ele, a nação (ou o povo) se identificava com o Ter- ceiro Estado (ou burguesia). Demonstrava isto, afirmando que o Terceiro Estado suportava todos os trabalhos particulares (a atividade econômica, desde a exercida na indústria, no comércio, na agricultura, e nas profissões científicas e libe- rais, até os serviços domésticos) e ainda exercia a quase-totalidade das fun- ções públicas, excluídos apenas os lugares lucrativos e honoríficos, corres- pondentes a cerca de um vigésimo do total, os quais eram ocupados pelos outros dois Estados, o clero e a nobreza, privilegiados sem mérito. A classe privilegiada constituía um corpo estranho à nação, que nada fazia e poderia ser suprimida sem afetar a subsistência da nação; ao contrário, as coisas só poderiam andar melhor sem o estorvo desse corpo indolente. Embora o Ter- ceiro Estado possuísse todo o necessário para constituir uma nação, ele nada era na França daquela época, pois a nobreza havia usurpado os direitos do povo, oprimindo-O, instituindo privilégios e exercendo as funções essenciais da coisa pública. Contra essa situação, o Terceiro Estado reivindicava apenas uma parte do que por justiça lhe caberia; não queria ser tudo, mas algo, o mínimo possível, a saber: os seus representantes deveriam ser escolhidos so- mente entre os cidadãos pertencentes verdadeiramente ao Terceiro Estado; seus deputados seriam em número igual ao das ditas ordens privilegiadas; e os Estados gerais deveriam votar por cabeça, não por ordem.

2. Sieyès, Que es ei Tercer Estado?, 1. ed., Madrid, Aguilar, 1973. Todo o Capítulo I, p. 5-15.

3. Sieyès, Que es el Tercer Estado?, cit. No Capítulo II, demonstra que o Terceiro Estado nada tinha sido até aquele momento. No Capítulo III, p. 25-46, descreve as reivindicações do Terceiro Estado, mediante os três pedidos mencionados.

Procurando fundamentar essas reivindicações no direito, Sieyès desenvolveu o seu pensamento jurídico nos dois capítulos finais do famoso panfleto, partin- do da forma representativa de governo para chegar, pela primeira vez, a uma distinção entre o poder constituinte e os poderes constituídos. Distinguiu três épocas na formação das sociedades políticas. Na primeira, há uma quantidade de indivíduos isolados que, pelo só fato de quererem reunir-se, têm todos os direitos de uma nação; trata-se apenas de exercê-los. Na segunda época, reunem-se para deliberar sobre as necessidades públicas e os meios de provê-las. A socie- dade política atua, então, por meio de uma vontade real comum. Todavia, por causa do grande número de associados e da sua dispersão por uma superfície demasiadamente extensa, ficam eles impossibilitados de exercer por si mesmos a vontade comum. Assim, numa terceira época, surge o governo exercido por procuração: os associados "separam tudo o que é necessário para velar e prover as atenções públicas, e confiam o

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exercício desta porção de vontade nacional, e por conseguinte de poder, a alguns dentre eles". Aqui já não atua uma vontade comum real, mas sim uma vontade comum representativa. Os representantes não a exercem por direito próprio nem sequer têm a plenitude do seu exercício.

4. Sieyès, Que es ei Tercer Estado?, cit., Capítulo V, p. 71-3.

A criação de um corpo de representantes necessita de uma Constituição, na qual sejam definidos os seus órgãos, as suas formas, as funções que lhe são destinadas e os meios para exercê-las. As leis constitucionais regulam a organi- zação e as funções dos poderes constituídos (corpos), entre os quais se encon- tra o Legislativo. Elas são leis fundamentais porque não podem ser tocadas pelos poderes constituídos: somente a nação tem o direito de fazer a Constituição. O poder constituinte é, assim, um poder de direito, que não encontra limites em direito positivo anterior, mas apenas e tão-somente no direito natural, existente antes da nação e acima dela. Além disso, o poder constituinte é inalienável, permanente e incondicionado. A nação não pode perder o direito de querer e de mudar à sua vontade; não está submetida à Constituição por ela criada nem a formas constitucionais; seu poder constituinte permanece depois de realiza- da a sua obra, podendo modificá-la, querer de maneira diferente, criar outra obra, independentemente de quaisquer formalidades. Os poderes constituí- dos, ao contrário, são limitados e condicionados; recebem a sua existência e a sua competência do poder constituinte; são organizados na forma estabelecida na Constituição e atuam segundo esta.

5. Sieyès, Que es ei Tercer Estado?, cit., p. 73-80: "A nação existe antes de tudo, é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a lei mesma. Antes dela e por cima dela só existe o direito natural". "Estas leis são chamadas fundamentais não no sentido de que possam ser feitas independen- tes da vontade nacional, mas sim porque os corpos que existem e atuam por elas não podem tocá-las. Em cada parte a constituição não é obra do poder constituído, mas sim do poder constituinte." "De qualquer maneira que uma nação queira, basta que queira; todas as formas são boas, e sua vontade é sempre a lei suprema." P. 87: "A nação é sempre senhora de reformar a sua constituição". "Um corpo submetido a formas constitutivas não pode decidir nada se não é segundo a constituição."

Em última análise, ao procurar fundamentar juridicamente as reivindicações da classe burguesa, Sieyès foi buscar fora do ordenamento jurídico positivo (que era injusto) um direito superior, o direito natural do povo de autoconstituir- se, a fim de justificar a renovação da mesma ordem jurídica. O seu pensamento desenvolveu-se aprioristicamente nos moldes do racionalismo iluminista, do contratualismo e da ideologia liberal da época. Construiu um conceito racio- nal de poder constituinte, levantando o problema da sua natureza e da sua titularidade, bem como apresentando a sua solução. Durante muito tempo a doutrina tradicional desenvolveu os ensinamentos de Sieyès. Com o surgimento do positivismo jurídico, nos meados do século passado, começou a ser ques- tionada a natureza jurídica do poder constituinte, uma vez que, admitindo-se a positividade como o único modo de ser do direito e sendo certo que o poder constituinte é anterior ao direito posto, não poderia ele ser um poder jurídico. De qualquer maneira, o problema penetra os estudos jusfilosóficos.

Assim, vemos que não é outro o entendimento do mestre argentino Vanossi: "na noção do Poder Constituinte há elementos perduráveis que mantêm a sua total vigência e outros que requerem um enfoque mais atualizado. Por exem- plo, na noção que a partir do Abade Sieyès tem-se difundido, é evidente que o mais importante é o descobrimento da

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função do Poder Constituinte. Este conceito aparece nos momentos em que o Racionalismo e os começos do Constitucionalismo impõem a idéia da Separação dos Poderes. Era óbvio que não podia haver uma distribuição do Poder sem a pressuposição da existência de um poder superior, que praticasse essa distribuição, isto é: para poder falar de diversos poderes, das diversas funções do poder que estavam repartidas e distribuídas, havia-se que supor a existência prévia, lógica e cronologicamen- te falando, de um poder supremo que realizasse essa repartição, que levasse a cabo essa distribuição; portanto, a noção de Poder Constituinte aparece como algo absolutamente necessário para poder compreender-se o tema da distribuição do Poder. E se considerarmos que no Estado Constitucional, democrático, so- cial, contemporâneo, é necessário manter a distribuição do Poder, embora com outros alcances, com outras características, mas mantê-la, é evidente que também temos que conservar o conceito de Poder Constituinte, de tal forma que, a partir do funcionamento deste, poder-se-á entender a divisão do Poder.

Outro ponto importante que se mantém vigente é a distinção entre o Poder Constituinte - como função do ato constituinte, como uma manifestação con- creta desse Poder - e a Constituição como produto ou resultado daquele Poder, daquele ato. O Poder Constituinte é fundamentalmente uma função, o que dá razão aos que afirmam que, também na etapa da reforma da Constituição, existe uma manifestação do Poder Constituinte. Sabemos que há certo setor doutriná- rio que reclama a exclusividade da presença do Poder Constituinte que atua em outras oportunidades como instância de reforma ou emenda.

Se ubicarmos o tema no nível da função, dizemos que Poder Constituinte é aquele que participa da criação e distribuição das competências supremas do Estado e veremos que cada vez que existe uma redistribuição ou uma reformulação dessas competências é evidentemente mais uma manifestação do Poder Constituinte".

6. Jorge Reinaldo Vanossi, Revista de Direito Constitucional, 1:12-3: "A doutrina tradicional, Prof. Bastos, distinguia unicamente entre o Poder Constituinte Originário e o Poder Constituinte Derivado. Poder Constituinte Originário era aquele que atuava, segundo os autores, originariamente, é dizer, atuava ante o ato fundacional e perante a inexistência de qualquer ordenamento constitucio- nal preexistente. Era o que ditava a primeira Constituição, com a qual juridicamente se organizava o Estado. O Poder Constituinte Derivado era o Poder Constituinte de continuidade, aquele que reforma- ra a Constituição, mas respeitando as previsões existentes na própria normatividade dessa Constitui- ção que até o momento de ser reformada estava vigente. Entretanto, a experiência indica que existe um Poder Constituinte Revolucionário, que, prescindindo do tema da sua legitimidade, que mais adiante analisaremos, possui obviamente caráter de Poder Constituinte, porque altera profundamente a estrutura dos órgãos do Poder ou as relações entre o Poder e a Sociedade. Esse Poder Constituinte revolucionário tem em comum com o originário, o fato de não se ajustar com a legalidade preexistente, com a única diferença de que, enquanto o Poder Constituinte Originário não reconhece uma legalida- de preexistente, porque esta não existiu, porque surge ali, o Poder Constituinte Revolucionário não reconhece a legalidade constitucional preexistente, porque a derrubou e a destruiu e, portanto, lhe desconhece qualquer virtualidade jurídica. De modo que este Poder Constituinte Revolucionário é o que geralmente é assumido e exercido nas instâncias denominadas de fato ou revolucionaria ou golpssta ou que com qualquer outra denominação se utilizam em nossos países da América Latina. Em alguns casos, esse Poder Constituinte Revolucionário é exercido com um caráter provisório e nada mais que para a emergência, enquanto permanece o Governo de Fato. Seria algo assim

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como a auto-regulação do Governo de Fato para disciplinar a sua conduta e as competências de seus órgãos, proclamando antecipadamente que essas disposições cessarão no dia em que se produza o trânsito a uma normali- dade constitucional baseada numa legitimidade de origem democrática".

3. NATUREZA E TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE

Poder constituinte significa poder de elaborar uma Constituição. Sendo esta o primeiro documento jurídico do Estado e fundamento de validade de todos os demais, negamos normatiVistas a natureza jurídica desse poder, reco- nhecendo-lhe a sua faticidade histórica, suscetível de ser estudada por outros ramos do saber, como força ou energia social. Autores há, entretanto, que sustentam ajuridicidade do poder constituinte, com base na tese jusnaturalista de que, além do direito positivo, há um direito superior decorrente da própria natureza humana, ou, de um modo geral, de que o direito precede ao Estado. O pensamento de Sieyès é jusnaturalista. Outras posições serão apenas ligeira- mente resumidas, tendo em vista que o problema ultrapassa as fronteiras do direito constitucional para constituir objeto da filosofia.

7. Celso Antônio Bandeira de Melo, Revista de Direito Constitucional, 4:69: "A primeira inda- gação que ocorreria é se o Poder Constituinte é um Poder Jurídico ou não. Se se trata de um dado interno ao mundo do direito ou se, pelo contrário, é algo que ocorre no plano das relações político- sociais, muito mais do que no plano da realidade do direito. E a minha resposta é que o chamado Poder Constituinte originário não se constitui num fato jurídico. Em rigor as características, as notas que se apontam para O Poder Constituinte, o ser incondicionado, o ser ilimitado, de conseguinte, o não conhecer nenhuma espécie de restrição, já estão a indicar que ele não tem por referencial nenhuma espécie de norma jurídica, pelo contrário, é a partir dele que vai ser produzida a lei suprema, a norma jurídica suprema, o texto constitucional; tem-se concluir que o Poder Constituin- te é algo pré-jurídico, precede, na verdade, a formação do direito".

8. Luis Recaséns Siches, Tratado general del filosofia del derecho, 1. ed., México, Porrua, 1959. Para este autor devem ser colocadas duas questões: 1. Em que consiste o Poder Constituinte. 2.a) A quem deve corresponder o poder constituinte. O primeiro dos temas consiste em perguntar-nos pelo conceito essencial ou puro do poder constituinte. O segundo é propriamente um problema de estimativa jurídica ou de filosofia política" (p. 305). Referindo-se à origem revolucionária de um novo sistema jurídico, comenta: "Isto não pode ser explicado pelo puro jurista, pelo jurista, sensu stricto, porque ele se move dentro do campo imanente de um sistema jurídico positivo vigente; e quando se produz o fato violento que arruína dito sistema, o jurista sente como que fosse destruída a esfera em que morava. Poderá transportar-se para a nova esfera, para o novo sistema criado pelo movimento triunfante; mas não poderá aduzir para isso razões jurídico-positivas, mas sim outro tipo de razões (históricas, políticas, sempre em conexão com pontos de vista estimativos). Quais sejam estas razões constitui um grave problema para a filosofia do direito" (p. 297-8).

Casanova, Teoria del Estado y derecho constitucional, p. 211: "El poder constituyente de la Nación es teóricamente originario. Quiere esto decir que no existe una norma o fuente de derecho anterior que legitime ese poder. En sentido estricto el poder constituyente no es jurídico (mientras no se constituya como poder constituido para la

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reforma de una Constitución preexistente), sino politico. Es previo a toda norma jurídica objetiva".

Três são os caracteres essenciais do poder constituinte, segundo Georges Burdeau: é inicial, porque nenhum outro poder existe acima dele, nem de fato nem de direito, exprimindo a idéia de direito predominante na coletividade; é autônomo, porque somente ao soberano (titular) cabe decidir qual a idéia de direito prevalente no momento histórico e que moldará a estrutura jurídica do Estado; é incondicionado, porque não se subordina a qualquer regra de forma ou de fundo. Não está regido pelo direito positivo do Estado (estatuto jurídico anterior), mas é o mais brilhante testemunho de um direito anterior ao Estado. Para Burdeau seria paradoxal recusar a qualidade jurídica a um poder mediante o qual a idéia de direito se faz reconhecer e, por conseqüência, se impõe no ordenamento jurídico inteiramente.

9. Georges Burdeau, Traité de science politique, 2. ed., Paris, LGDJ, 1969, t. 4, p. 184-5.

Paulo Barile, Istituzioni di diritto pubblico, p. 239: "La funzione costituente e la sola fra le funzioni dello Stato che sia totalmente libera nel fine, perchè non e vincolata da nessun'altra funzione. Qui l'esplicazione della sovranità e piena, totale, mentre l'esplicazione della stessa sovranità in constanza di regime e dall' art. 1 C. predeterminata nelle forme e nei modi, come già si disse. La funzione costituente quindi ha questa caratteristica, unica fra tutte le funzioni, di essere, più che discrezionale, del tutto libera nella causa, perchè nessuna regula preesistente la vincola. Prima di essa c'e il caos, cioè o non vi e una comunità, oppure ve n'e una indistinta nell'ambito di una piO grande, dalla quale non si e ancora distaccata, oppure ancora ve n'e una in dissoluzione. Abbiamo già visto in sede storica come questo procedimento sia confermato, anche qualora l'espressione del potere costituente sia previsto dal precedente diritto e si sia in qualche modo cercato di avviarlo su certi binari; questi binari, che possono essere seguiti e possono non esserlo, anche se sono seguiti lo sono spontaneamente, per cui il comportamento che il potere costituente sceglie fra i vari possibili, viene scelto liberamente, non perchè ad esso impostogli da un precedente diritto".

O problema da titularidade se resolve logicamente a partir da tese de que o poder constituinte é legitimado pela própria idéia de direito que ele exprime. Ele perde a sua eficácia no momento mesmo em que essa idéia de direito deixa de ser dominante no grupo. Como não existe um poder constituinte abstrato, determinável a priori, para qualquer sociedade, segue-se que, em cada coletivi- dade, o titular desse poder é o indivíduo ou grupo no qual se encarna a idéia de direito, em um dado momento. Pode ser também o povo, como portador direto da idéia de direito, na falta de qualquer chefe reconhecido e consentido.

10. Georges Burdeau, Droit constitutionnel et institutions politiques, 16. ed., Paris, LGDJ, 1974, p. 80. Faz referência ao poder constituinte originário. O titular do poder constituinte institu- ído é um órgão do Estado: cf. Traité, cit, t. 4, p. 234.

Casanova, Teoría del Estado, cit., p. 210: "Por el contrario, hay que preguntarse a quien de los miembros de dicha comunidad se le concede el derecho a dictar la norma suprema de organización y convivencia; sobre quien hay consentimiento comun o mayoritario; o, simplesmente, quien tiene suficiente poder (material e ideológico) sobre los demás para reclamar para si el poder constituyente. El poder constituyente y la soberanía coinciden, por tanto. Quien es considerado como soberano es quien tiene derecho a crear la Constitución como ley fundamental. Con todo, la creencia contemporánea es unánime: la soberania recae

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en la Nación, es decir en el conjunto de los miembros de la sociedad política, através de unos representantes electos".

O poder constituinte é vontade política na doutrina de Carl Schmitt. Por isso, a validade de uma Constituição não se apóia na justiça de suas normas (como pretende o jusnaturalismo), mas na decisão política que lhe dá existên- cia. A Constituição não abrange todas as normas constantes do documento for- mal que leva este nome. Em sentido positivo, a Constituição contém somente a determinação consciente da concreta forma de conjunto pela qual se pronuncia ou decide a unidade política. Ela contém as decisões políticas fundamentais, que, no caso da Constituição de Weimar, são: a decisão a favor da democracia; a decisão a favor da república e contra a monarquia; a decisão a favor da manu- tenção de uma estrutura de forma federal do Reich; a decisão a favor de uma forma fundamentalmente parlamentar-representativa da legislação e do gover- no; e a decisão a favor do Estado burguês de direito, com seus princípios consagradores dos direitos fundamentais e da divisão de poderes. Tais decisões são qualitativas, distintas das normas legais constitucionais. Estas últimas pres- supõem uma Constituição e valem em virtude da Constituição. Entre as leis constitucionais podem-se dar reformas ou alterações de acordo com o processo estabelecido no próprio texto constitucional; a Constituição mesma (isto é, as decisões políticas fundamentais) não pode ser reformada. Ela pode ser suprimi- da, conservando-se o poder constituinte (p. ex., golpe de Estado); ou destruída, no caso em que seja também eliminado o poder constituinte em que se baseava.

Poder constituinte, na definição de Cal Schmitt, "é a vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando assim a exis- tência da unidade política como um todo"". O poder constituinte é um poder jurídico, uma vez que não há separação entre o jurídico e o político; mas não depende de ninguém e de nenhuma regulamentação prévia. É unitário e indivisível: não se acha coordenado com outros poderes divididos (Legislativo, Executivo e Judiciário), mas serve de fundamento a todos os poderes consti- tuídos. O poder constituinte é permanente: não se esgota por um ato de seu exercício. Também não pode ser alienado, absorvido ou consumido.

11. Cal Schmitt, Teoría de la Constitución, México, Ed. Nacional, 1966, p. 23-30 e 115. A definição está na p. 86.

A Constituição, assim, surge mediante um ato constituinte, fruto de uma vontade de produzir uma decisão eficaz sobre modo e forma de existência política de um Estado. Esta vontade é a do titular ou sujeito do poder constituinte. Na concepção medieval, o titular era Deus, uma vez que "todo poder (ou autoridade) vem de Deus". A secularização do conceito de poder constituinte só apareceu depois, com a Declaração americâna de Independência e, mais claramente, com a Revolução Francesa. No século XVIII, o príncipe absoluto não tinha sido desig- nado como sujeito do poder constituinte, porque eram ainda demasiadamente fortes e vivas as idéias cristãs da titularidade divina desse poder. Quando, em 17 de junho de 1789, os Estados gerais convocados pelo rei se constituíram em Assem- bléia Nacional Constituinte, "um povo tomava em suas mãos, com plena consci- ência, seu próprio destino, e adotava uma livre decisão sobre o modo e forma de sua existência política". Significou o começo de uma nova doutrina: a nação (conceito mais expressivo do que o de "povo" e que conduz menos a erros) era o sujeito do poder constituinte. Durante a restauração monárquica (1815-1830), foi teorica- mente necessário contrapor um poder constituinte do rei ao poder constituinte, como visto quando de seu exercício pela nação.

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Titular também do poder constituinte pode ser uma minoria, quando o Estado terá então a forma de aristocracia ou oligarquia. A expressão "mino- ria", no contexto, deve ser desprendida da concepção numérica própria dos atuais métodos democráticos, para significar uma organização que, como tal, adote as decisões políticas fundamentais sobre modo e forma da existência política. Assim, o decisionismo de Cal Schmitt, sempre exaltando o poder de decisão da vontade política, serviu para justificar mais tarde o totalitarismo nazista, atribuindo ao Führer a titularidade do poder constituinte.

12. Cal Schmitt, Teoría, cit., p. 89-93.

A Teoria Pura do Direito formulada por Hans Kelsen difere frontalmen- te do decisionismo schmitiano, porquanto identifica norma e direito e vê um abismo intransponível entre o direito e a realidade, o "dever-ser" e o ser Para Kelsen, é impossível derivar a norma jurídica da realidade; logo, não se pode justificar a validade da Constituição por meio de um ser político, qual seja o poder constituinte de decisão sobre a unidade política do Estado. Na ciência jurídica, a questão se apresenta sob o aspecto da hierarquia das nor- mas. As leis ordinárias têm fundamento na Constituição e esta, por sua vez, se apóia na norma básica ou fundamental, que não é uma norma legal positiva (posta), mas uma norma pressuposta. A indagação poderá prosseguir com a pergunta sobre o porquê se deve obedecer à primeira Constituição como nor- ma coativa. Mas aí, então, se penetra em terreno metajurídico. A ciência posi- tiva do direito tem a tarefa de interpretar o material empírico que se apresenta como direito. Para isto necessita pressupor uma norma básica, porque sem ela nenhum ato humano poderá ser interpretado como um ato legal, especialmen- te como um ato criador de norma. Trata-se de uma necessidade lógica.

13. Hans Kelsen, General theory of law and State, trad. Anders Wedberg, New York, Russel and Russel, p. 116.

Descabe qualquer indagação a respeito de um poder constituinte, nos lindes da ciência positiva do direito, pois se trata, como vimos, de um concei- to metajurídico. Fazendo referência ao poder constituinte derivado, ou poder de revisão, Kelsen afirma que ele não é um "poder" qualitativamente especi- fico; não pode ser derivado da essência do direito ou da Constituição; e nem tampouco é uma verdade teórica. O único sentido atribuível ao poder de revi- são consiste em opor dificuldades à modificação de normas constitucionais. A reforma é, muitas vezes, realizada por uma Assembléia Constituinte especial- mente eleita, ou diretamente pelo povo (por meio de um plebiscito). A justi- ficativa de que só ao povo compete a reforma da Constituição, porque ele constitui a fonte última de todo direito, é puro direito natural, segundo Kelsen.

14. Hans Kelsen, Teoría general dei Estado, trad. Luis Lega y Lacambra, Labor, 1934, p. 331.

Em vista do que ficou acima exposto, parece certo concluir que o poder constituinte não é um poder jurídico e, em conseqüência, não existe um pro- blema de sua titularidade dentro da ciência do direito. "A interrogação sobre a titularidade, o sujeito do Poder Constituinte, aponta sobretudo o plano das crenças. É uma questão cuja resposta é dada pela filosofia política. Quem detém o Poder Constituinte? A quem pertence? A quem corresponde? Quem é o titular? Isto só pode ser respondido nos termos de crença, que são os ter- mos da legitimidade. A legitimidade, como bem dizia Weber, é a crença numa certa legalidade. Portanto, ao problema da titularidade do Poder Constituinte correspondem tantas respostas quantas posturas filosófico-políticas possam ser imaginadas. Antigamente, na época

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do apogeu das crenças teocráticas, em que se afirmava que todo o poder provinha de Deus, obviamente que também o Poder Constituinte provinha de Deus. Nas épocas monárquico-aristocráticas, o Poder Constituinte provinha do rei, da nobreza; ou seja, dos estamentos privilegiados; ao passo que, nas concepções democráticas, o Poder Consti- tuinte pertence ao povo, entendendo por povo a cidadania que se expressa de forma direta ou representativa através do sufrágio universal.

No século atual, com a aparição dos fenômenos totalitários, o tema da titularidade do Poder Constituinte cobra nova atualidade, devendo ser encara- do atendendo às novas posturas que têm aparecido; por isso, hoje, pode-se dizer que há duas respostas ao tema da titularidade do Poder Constituinte: a resposta autocrática e a resposta democrática. A resposta autocrática fará fundar a titularidade do Poder Constituinte no princípio minoritário. Ao passo que a resposta democrática ubicará a titularidade do Poder Constituinte no princí- pio majoritário. O que significa isto? É que para as novas tendências autocrá- ticas o Poder Constituinte sempre vai estar protagonizado como sujeito por uma minoria, bem seja, por uma minoria de raças, de religião, de classe so- cial, de grupo militar que detenha o poder ou uma minoria oligárquica econô- mica. Já, para a concepção democrática, o Poder Constituinte residirá sempre na soberania do povo, que se expressa através de um princípio precisamente majoritário, que é o da metade mais um e que requer uma verificação do pro- cesso através do único mecanismo possível, que é o das eleições. Enquanto as tendências autocráticas falam do assentimento popular, as tendências democráti- cas só podem falar do consentimento popular. Assentimento é assentir, tole- rar, aceitar resignadamente. Com isto, os autocratas invocam a presença do povo, mas não indicam o seu consenso. Ao passo que na democracia, requer-se uma verificação concreta, objetiva, matemática, do consenso que só se pode realizar através de eleições livres, como meio de absoluta liberdade de expres- são". Contudo, é preciso tornar mais clara essa conclusão mediante algumas considerações sobre as espécies de poder constituinte, ou, ainda, se no seu conceito está incluído o Poder de Reforma Constitucional.

15. Jorge Reinaldo Vanossi, Revista de Direito Constitucional, cit., p. 16-7.

4. ESPÉCIES DE PODER CONSTITUINTE: ORIGINÁRIO E DERIVADO

A doutrina costuma distinguir duas espécies de poder constituinte: o originário (ou genuíno) e o derivado (ou instituído, ou constituído). O primei- ro tem caráter inicial, porque produz originariamente o ordenamento jurídico, ao passo que o segundo é instituído na Constituição para o fim de proceder à sua reforma. A produção originária da ordem jurídica se dá na hipótese de formação de um novo Estado (primeira Constituição), ou no caso de modifi- cação revolucionária da ordem jurídica, em que há solução de continuidade em relação ao ordenamento anterior. A reforma normal, ao invés, se dá na conformidade do processo previsto na Constituição e, por isso, apresenta uma continuidade ou desdobramento natural da vida jurídica do Estado. É perti- nente lembrar aqui a distinção entre Constituição rígida e Constituição flexí- vel, uma vez que só se pode falar em poder reformador nos ordenamentos jurídicos encabeçados por uma Constituição rígida, ou seja, uma Constituição escrita, cuja reforma apenas se possa efetuar respeitado o regime jurídico nela previsto. A Constituição flexível pode ser alterada pelo mesmo processo usa- do para as leis ordinárias, não havendo distinção formal entre estas e as leis constitucionais. As Constituições rígidas são sempre

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escritas; as flexíveis podem ser escritas, mas, de regra, são costumeiras. A Constituição da Itália de 1848 (Estatuto Albertino) é um exemplo clássico de Constituição escrita flexível.

16. Jorge Reinaldo Vanossi, Revista de Direito Constitucional, cit. 1:12-3.

Alguns autores, como Carl Schmitt e Luis Recaséns Siches, sustentam ponto de vista de que somente o originário é poder constituinte, pois somen- te ele tem caráter inicial e ilimitado, ao passo que o poder reformador retira sua força própria da Constituição, estando limitado pelo direito; no mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello. O pensamento de Carl Schmitt, como já foi explicado, contém a peculiar distinção entre Constituição e leis constitucionais, com a conseqüência de que somente estas últimas podem ser reformadas. A primeira, obra do poder constituinte (único e genuíno), é intangível. Outros autores, seguindo a doutrina clássica de Sieyès, afirmam que o poder constituinte tanto cria quanto modifica, no todo ou em parte, a Constituição. Em ambos os casos, trata-se de um poder essencialmente di- verso dos poderes constituídos. Essa doutrina, contudo, encontra insuperá- veis dificuldades de ordem lógica, diante dos caracteres antitéticos atribuí- dos a cada uma das espécies de poder constituinte: limitado, ilimitado; de- rivado, inicial; condicionado, incondicionado. Na impossibilidade de conci- liar estes extremos, Georges Burdeau conferiu uma natureza híbrida ao poder constituinte e usou de linguagem metafórica para conceituar o poder reformador, chamando-o de paródia, sucedâneo ou forma moderada do po- der constituinte. Desta maneira, asseverou a coexistência de dois aspectos do poder constituinte, considerando ambos da alçada da ciência jurídica.

17. Poder constituinte, Revista de Direito Constitucional, cit.,, 4:70-1: "O chamado Poder Constituinte Derivado não haure a sua força num fato. Ele não se pretende exercitado pela só circunstância de que alguém se propôs a exercitá-lo e teve condições de efetivamente exercitá-lo. Ele se propôs a ser um poder calcado em uma regra de Direito, uma regra constitucional que admite a Emenda Constitucional. De sorte que esse segundo poder, chamado Poder Constituinte Derivado, em oposição ao chamado Poder Constituinte Originário, tem uma fisionomia, juridicamente, ao meu ver, radicalmente distinta do chamado Poder Constituinte Originário. Digo radicalmente dis- tinta porque um pertence ao mundo do Direito e outro exterior ao mundo do Direito. Um se propõe a ser incondicionado e ilimitado e haure sua força em si mesmo. É uma expressão fática que se vai traduzir numa regra de direito anterior ao texto constitucional que venha a ser produzido. Já o chamado Poder Constituinte Derivado é qualitativamente de diversa natureza e, por assim ser, ele já não é incondicionado, não é ilimitado, não haure sua força no mero fato, mas deriva da regra de Direito, da regra constitucional que o admite".

Paolo Barile, Istituzioni, cit., p. 240: "Della stessa natura della funzione costituente ma, a diferenza di essa, predeterminata chiaramente dal diritto positivo ed in parte limitata, cioê non del tutto libera nel fine, e la funzione di revisione costituzionale, che e il potere di emendare la costituzione, o mutando qualche particolare di essa, o aggiungendo (cioê "costituzionalizzando", come si suol dire) delle regole che fino ad allora non erano costituzionali, oppure infine cancellandone alcune, cioê abrogandole.

La funzione di revisione, a seconda delle diverse costituzioni, o viene affidata ad un organo diverso dal parlamento (che e normalmente l'organo che fa le leggi ordinarie), oppure viene affidata alo stesso parlamento, il quale pero no puô esplicare questo potere se non attraverso procedimenti speciali, procedimenti cosiddetti aggravati.

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Di funzioni di revisione in senso formale si puô parlare solo in riferimento a costituzioni scritte e rigide, mai rispetto a costituzioni flessibilli o addrittura non scritte, com' è ovvio: in senso sostanziale, peraltro, sembra opportuno distinguere la funzione di revisione da quella legislativa ordinaria anche là dove si e in presenza di costituzioni non regide: i cui emendamenti non si distinguono formalmente dalle leggi ordinarie, ma se ne distingueranno per il fatto che essi modificano non una regola ordinaria, ma una regola costituzionale (Esposito)".

18. Georges Burdeau, Traité, cit., t. 4, p. 181, 182, 184 e 189.

O poder constituinte originário sempre cria uma ordem jurídica, ou a partir do nada, no caso do surgimento da primeira Constituição, ou mediante a ruptura da ordem anterior e a implantação revolucionária de uma nova or- dem. O poder reformador apenas modifica a Constituição. A diferença entre essas duas situações não é posta em dúvida ainda mesmo por Georges Burdeau e por aqueles que, com ele, comungam a idéia da coexistência de dois aspec- tos do mesmo poder constituinte. Não obstante, insiste essa corrente doutriná- ria na procura de uma natureza ou essência única do poder constituinte, tendo sido infrutífero o trabalho realizado. Na perspectiva do direito constitucional, como ciência positiva do direito, o que existe é uma Constituição e órgãos e competências nela instituídos. O jurista tem elementos para examinar um or- denamento jurídico, opinar sobre se uma reforma determinada é juridicamen- te possível, quem é competente para realizá-la e, até mesmo, pleitear perante os tribunais a declaração de inconstitucionalidade de emenda realizada em desobediência aos preceitos constitucionais. Isto porque o chamado poder refor- mador é uma competência regulada pelo direito positivo do Estado e o seu titular é um órgão estatal. O jurista não pode trabalhar com a noção de poder constituinte porque ela é metajurídica. Identificá-la como a competência das competências não resolve o problema, uma vez que o jurista não reconhece competência exterior à ordem jurídica. O poder constituinte é uma força so- cial e política, passível de estudo nas ciências sociais e na filosofia do direito. Assim, também a sua titularidade exorbita o campo dos estudos jurídicos.

5. EXERCÍCIO DO PODER CONSTITUINTE

Trata Vanossi de duas questões distintas, a da titularidade e a do exercí- cio do poder constituinte. Uma pode ter uma resposta que se supõe válida a priori, e a outra só pode ser respondida com base no exame posterior dos fatos. Na atualidade, há um certo consenso em afirmar ser o povo o titular do poder constituinte. É que a ideologia democrática tornou-se teoricamente aceita no mundo inteiro, de modo que até os governos autocráticos invocam a titularidade popular do poder, a fim de conquistar respeito perante os outros povos. Mas, na vida política da maioria dos países, o poder constituinte tem sido exercido por indivíduos ou grupos autocráticos. A teoria tem servido, portanto, para encobrir os fatos. Não falta, por isso, quem unifique as duas questões, identi- ficando a titularidade e a faticidade do poder constituinte. Quanto ao exer- cício do poder constituinte, este já não é um problema de filosofia política e sim de técnica constitucional. As distintas respostas ao exercício desse poder estão dadas pelos diversos mecanismos que as Constituições contemplam para efeitos de funcionamento dos procedimentos de revisão ou de emenda consti- tucional, e aqui, sim, cabem formas de exercício muito variadas: os regimes autocráticos praticam formas de exercício autocrático. Estes são os casos tí- picos dos atos institucionais ou estatutos do processo, como se denominam na Argentina. São formas que sobrevivem no nosso século, às

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velhas Cartas que na Idade Média eram emitidas pelos reis titulares do poder absoluto e que, com a graça de Deus, as outorgavam graciosamente, mas também arbitrariamente.

19. Luis Sanchez Agesta, Princípios de teoria política, 4. ed., Madrid, Ed. Nacional, 1972: "Titular do Poder Constituinte, dada sua específica natureza histórica, não é quem quer ou quem se crê legitimado para sê-lo, mas sim, simplesmente, quem pode, isto é, quem está em condições de produzir uma decisão eficaz sobre a natureza da ordem" (p. 352).

Os novos autocratas que surgem atualmente em diversos países, e espe- cialmente na América Latina, revestem suas formulações constitucionais com nomes como os que anteriormente enumeramos: atos institucionais, estatutos etc.; a terminologia não importa, e sim a substância, e esta é sempre a mesma, isto é, uma criação autocrática da Constituição, um exercício do poder consti- tuinte pela única vontade do detentor do poder, sem a representação nem par- ticipação dos governados, do povo, dos destinatários do poder.

Nas concepções democráticas, o exercício do poder constituinte pode-se realizar através da democracia direta ou da democracia representativa, ou de fórmulas mistas que combinem ambas as formas.

Democracia direta, em matéria de poder constituinte, são os referendos de aprovação da Constituição.

Democracia representativa são os sistemas de convenções constituintes, em que o povo é convocado para eleger uma assembléia que especificamente e unicamente vai exercer o poder constituinte.

Já os sistemas mistos são aqueles que combinam a nota representativa com a participação direta do povo.

Na minha opinião, e aqui intervém a nota ideológica, o que mais se conforma com a doutrina democrática contemporânea é um procedimento de exercício

do poder constituinte que permita o funcionamento de uma assembléia re- presentativa, convocada para esse efeito e que logo submeta a aprovação des- sas normas a um referendum popular.

20. Jorge Reinaldo Vanossi, Revista de Direito Constitucional, cit., 1:17-8.

A forma típica de exercício do poder constituinte, surgida com o constitu- cionalismo americano e europeu, é a Convenção ou Assembléia Constituinte. Tem fundamento na ideologia democrática, em que o povo é titular do poder constituinte e o delega a representantes especialmente eleitos. Os primeiros exemplos históricos são a Convenção de Filadélfia de 1787 e a Assembléia Nacional Francesa de 1789. No Brasil, a primeira Assembléia reunida foi a Constituinte de 1823, dissolvida pelo Imperador D. Pedro I. Durante a Repú- blica, tivemos três Constituições votadas por Assembléias Constituintes: a Constituição de 1891, a Constituição de 1934 e a Constituição de 1946.

O referendum constitucional é a forma direta de intervenção popular no processo constituinte. O povo é chamado para sancionar ou rejeitar um texto aprovado pelo corpo representativo, ou outorgado por um agente constituinte; outras vezes é consultado preventivamente sobre a forma de governo ou al- gum programa constitucional. O mais antigo documento constitucional sub- metido à aprovação do povo foi a Constituição Francesa de 1793. São céle- bres os plebiscitos napoleônicos, em que o eleitorado francês aprovou as

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Constituições de 1799, 1802 e 1804, bem como o plebiscito que, durante os Cem Dias, em 1815, aprovou o Ato Adicional. Neste século, o eleitorado fran- cês rejeitou o primeiro Projeto Constitucional, em 5 de maio de 1946, e confir- mou o segundo, em outubro do mesmo ano, como também a Constituição de De Gaulle, de 1958. Na Itália, ao mesmo tempo em que se elegeu a Assembléia Constituinte que elaborou a Constituição promulgada em 27 de dezembro de 1947, teve lugar um referendum a respeito do caráter republicano ou monárquico que se daria à nova Constituição. No Brasil, a Constituição de 1937 previa um plebiscito que nunca chegou a ser realizado; na vigência da Constituição de 1946, houve um plebiscito para decidir sobre o regime político, de que resultou a Emenda n. 6, de 23 de janeiro de 1963, restabelecendo o presidencialismo.

21. Paolo Biscaretti di Ruffia, Derecho constitucional, Madrid, Ed. Technos, 1973, p. 264. O autor observa que a doutrina e a legislação costumam usar indistintamente os termos referendum e plebiscito. Mas este ultimo "deveria mais precisamente referir-se a uma manifestação do corpo elei- toral não atuada em relação a um ato normativo (como o referendum), mas sim, antes, com referência a um simples fato ou sucesso (P. ex., Romano, Mortati), concernente à estrutura essencial do Estado ou de seu Governo (P. ex., uma adjudicação de território, a manutenção, ou a mutação, de uma forma de governo, a designação de uma determinada pessoa para um ofício particular etc.)" (p. 425).

A outorga é o modo de estabelecimento da Constituição pelo próprio de- tentor do poder. Nas monarquias absolutas, a outorga consistiu na concessão unilateral do soberano renunciando a sua própria autoridade exclusiva. Observa Biscaretti que o soberano era constrangido a tal comportamento pela incoercível pressão popular, mas que a renúncia, sob o ponto de vista jurídico, era espon- tânea. As Constituições outorgadas são também chamadas "Cartas". São exem- plos conhecidos: a Constituição francesa de 1814 e o Estatuto de Carlos Alberto de 1848. A outorga pode ser feita também por um grupo detentor do poder. No Brasil, tivemos a Constituição do Império, de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro I. Na República foi outorgada, pelo Presidente Getúlio Vargas, a Cons- tituição de 1937. Com a Revolução vitoriosa de 1964, uma Junta Militar assu- miu o poder constituinte e, através do Ato Institucional de 9 de abril, outorgou nova Constituição ao povo brasileiro, embora o texto continuasse a ser o da Cons- tituição de 1946 com as emendas constantes do mencionado Ato Institucional (que, mais tarde, passou a ter o n. 1). O poder constituinte se manifestou poste- riormente inúmeras vezes, através da Junta Militar e do Presidente da Repúbli- ca, com edição de outros Atos Institucionais. No Ato Institucional n. 6 está declarado: "... a Revolução brasileira reafirmou não se haver exaurido o seu poder constituinte, cuja ação continua e continuará, em toda a sua plenitude ...".

Existem formas mistas de exercício do poder constituinte, dentre as quais podem ser citados os pactos ou acordos entre o detentor do poder e a assem- bléia representativa do povo. Exemplo mais citado é o da Constituição france- sa de 1830. No Brasil, encontra-se uma forma mista na Constituição de 1967, surgida da manifestação do Poder Constituinte do Presidente da República, através do Ato Institucional n. 4, de 7 de dezembro de 1966, que dependeu da aprovação do Congresso, o qual, não obstante o procedimento rígido a ser seguido, inclusive com a observância de prazos fatais (sem mencionar aqui as condições políticas), ratificou o projeto e introduziu várias emendas.

6. LIMITAÇÕES AO PODER DE REFORMA CONSTITUCIONAL

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Nas considerações sobre a natureza do poder constituinte originário, já foi devidamente esclarecido que se trata de uma energia ou força social, sus- cetível de análise pelas ciências sociais e políticas. Conseqüentemente, inexistem limitações jurídicas ao seu exercício.

O poder de reforma constitucional, ao invés, é um poder instituído na Constituição. Portanto, há uma competência jurídica e, como tal, logicamente sujeita a limitações. Mas isso não se deu ao acaso.

Num primeiro momento, as Constituições, assim que editadas, preten- deram-se eternas. Mas logo se constatou que esta imutabilidade era impossí- vel de ser sustentada diante da evolução social.

É certo que não é só pela aprovação de emendas que uma Constituição pode ser alterada. Ela modifica-se também pelo desenvolvimento progressivo da jurisprudência e pelo surgimento de novos usos e costumes. Há momentos em que a modificação por alguns desses caminhos não é possível de ser con- cluída, tornando-se necessário trilhar por outro, qual seja, o da revisão constitucional. Daí a existência do poder incumbido de levar a cabo esta ta- refa: o poder reformador, previsto pela própria Constituição.

Todas as Constituições delimitam o poder reformador, ainda mesmo a Constituição suíça, cujo art. 118 parece contradizer a tese ao declarar que "a Constituição Federal pode ser revista a todo o tempo, total ou parcialmente". Contudo, existem limites formais, inclusive com o recurso ao referendum (ou plebiscito), no caso em que uma seção da Assembléia Federal decretar a revi- são total e a outra seção se opuser, ou se 50.000 cidadãos suíços com direito de voto pedirem a revisão total. Em qualquer dos casos, se a maioria dos vo- tantes optarem pela revisão, esta será procedida pelos dois Conselhos renova- dos por eleição (art. 120).

As Constituições rígidas estabelecem o órgão competente para modifi- car as suas normas, bem como o procedimento a ser observado. São os cha- mados limites processuais. Dizem respeito à competência, iniciativa, quorum para aprovação e outros, tendentes a tornar a alteração constitucional mais difícil do que a da lei ordinária. No Brasil, de 1977 a 1982, foi bastante fácil a aprovação de emendas constitucionais, conforme já foi visto no item ante- rior. Convém acrescentar, aqui, que as emendas não são sancionadas pelo Presidente da República. Este só pode desencadear o processo, por meio de proposta de emenda, sendo-lhe vedada qualquer outra intervenção.

Algumas Constituições contêm limitações circunstanciais, as quais consistem em normas permanentes, aplicáveis a conjunturas anormais ou especiais, em que possa estar ameaçada a livre manifestação do órgão reformador. É conhecido o exemplo do art. 94 da Constituição francesa de 1946, e o do art. 89 da Cons- tituição francesa de 1958, que proibe o início de reforma, ou o seu prosseguimento, no caso de ocupação total ou parcial do território metropolitano da França por tropas estrangeiras. Georges Burdeau justifica a validade da proibição pelo fato de a invasão paralisar o exercício da soberania nacional. A anterior Constitui- ção brasileira, na esteira deixada pelas Constituições de 1934 e 1946, proibe a reforma durante o estado de sítio e o estado de emergência.

22. Georges Burdeau, Droit constitutionnel, cit., p. 87.

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Finalmente, outro grupo de limitações formais é constituído pelas proibições de caráter temporal. Algumas vezes, com o objetivo de consolidar a nova or- dem estatal, o Texto Constitucional contém norma proibitiva de reforma de alguns ou de todos os seus dispositivos por um prazo determinado. Assim, o art. V, parágrafo final, da Constituição americana proibia a propositura de emenda das matérias de interesse dos Estados escravagistas, constantes das cláusulas 1.a e 4.a da Seção IX, art. 1, até o ano de 1808. Já a Constituição imperial do Brasil proibiu qualquer reforma durante o prazo de quatro anos (art. 174).

Estas são proibições fixas e transitórias; transcorrido o prazo fixado, o dispo- sitivo impeditivo perde eficácia. Mas existem outras limitações temporais periódicas, cujas normas proibitivas permanecem sempre em vigor. Durante os períodos estabelecidos, não se pode reformar a Constituição. Entre os raros exemplos encontrados no direito estrangeiro, é possível mencionar os arts. 137 (texto de 1971) e 176 (texto anterior) da Constituição portuguesa salazarista.

6.1. Cláusulas Pétreas

A polêmica entre os autores surge com relação a essas limitações de fundo ou materiais, fenômeno que dá lugar às chamadas "cláusulas pétreas", "intocáveis", "irreformáveis" ou "eternas".

As limitações materiais são as proibições de emendas referentes a deter- minados objetos ou conteúdos. São questões de fundo e não formais. Podem ser explícitas e implícitas.

No primeiro caso, elas se exteriorizam nas chamadas "cláusulas pétreas" expressas, as quais retiram da área reformável as matérias nelas designadas, tais como a forma de governo, a organização federativa, os direitos humanos e a igualdade de representação dos Estados no Senado. Esta última hipótese é ilustrada pelo art. V da Constituição dos Estados Unidos e pelo art. 90, § 4.o, da Constituição brasileira de 1891. A proibição de mudança da forma republi- cana de governo foi estabelecida na Lei Constitucional francesa de 14 de agosto de 1884, art. 2.o, e reproduzida na Constituição de 1946, art. 95, e Constitui- ção de 1958, art. 89. A mesma proibição consta de todas as Constituições brasileiras republicanas, sem falar da de 1937, que não chegou a ser praticada na sua quase-totalidade. Todas elas também proibem emendas tendentes a abolir a Federação. A Lei Fundamental de Bonn proibe emenda aos artigos que estabelecem a Federação, os direitos fundamentais do homem e a forma de governo democrático (art. 79, al. 3).

Atualmente, temos o art. 60 do Texto Constitucional, que dispõe:

Art. 60

§ 4.o Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.

Vê-se, diante dos inúmeros exemplos dados, que é freqüente o constituin- te originário, por razões políticas, querer isolar de qualquer possibilidade de alteração ulterior determinados assuntos estruturais ao Estado.

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Essas limitações expressas encontram muitos defensores, talvez a maio- ria dos doutrinadores esteja a favor de sua validade.

Sem embargo de serem as cláusulas pétreas freqüentemente inseridas no Texto Constitucional, muitos publicistas as combatem, tachando-as de inúteis e até contraproducentes. Entre estes, o jurista argentino Jorge Reinaldo Vanossi alinha uma série de argumentos contra elas, declarando serem os princi- pais: a) a função essencial do poder reformador é a de evitar o surgimento de um poder constituinte revolucionário e, paradoxalmente, as cláusulas pétreas fazem desaparecer essa função; b) elas não conseguem se manter além dos tempos normais e fracassam nos tempos de crise, sendo incapazes de superar as eventualidades críticas; c) trata-se de um "renascimento" do direito natural perante o positivismo jurídico; d) antes de ser um problema jurídico, é uma questão de crença, a qual não deve servir de fundamento para obstaculizar os reformadores constituintes futuros. Cada geração deve ser artífice de seu próprio destino; e) argumento de Biscaretti: admite-se que um Estado pode decidir sua própria extinção; "não se compreende porque o Estado não poderia, en- tão, modificar igualmente em forma substancial seu próprio ordenamento supremo, ou seja, sua própria Constituição, ainda atuando sempre no âmbito do direito vigente". Por esses motivos Vanossi conclui pela inutilidade e relati- vidade jurídica das cláusulas pétreas expressas. Sua virtualidade jurídica se reduz a zero nas seguintes hipóteses: a) a cláusula proibitiva é desrespeitada, e a reforma do conteúdo proibido torna-se eficaz, com vigência perante os órgãos do Estado e acatamento comunitário; b) superação revolucionária de toda a Constituição, em que desaparece a própria norma proibitiva; c) derrogação da norma constitucional que estabelece a proibição, mediante procedimento regular, e ulterior modificação do conteúdo proibido.

23. Jorge Reinaldo Vanossi, Teoria constitucional, Buenos Aires, Depalma, 1975, t. 1, p. 188-92.

Todos os argumentos, com exceção do de Biscaretti, apóiam-se em razões metajurídicas, ainda mesmo aquele que procura retirar o problema do âmbito jurídico para caracterizá-lo como questão de crenças. A crença pode servir de fundamento ao político ou ao legislador para proibir a modificação de deter- minada norma constitucional, do mesmo modo que podem ser invocados prin- cípios jusnaturalísticos. Os argumentos são ponderáveis, portanto, sob o ponto de vista do direito a ser posto, a ser criado pelo legislador. Para Vanossi, o caminho técnico aconselhável é não estabelecer expressamente cláusulas ou conteúdos pétreos, tampouco defender a existência implícita dos mesmos. O que o constituinte deve fazer, sim, é criar na Constituição escrita diversas cate- gorias de normas levando em consideração as suas possibilidades de revisão ou reforma, de tal forma que alguns conteúdos resultem mais fáceis de serem mo- dificados do que outros, ficando estes mais protegidos de posteriores reformas.

O caráter semi-rígido da Constituição de 1824 serve perfeitamente de exemplo para ilustrarmos as idéias defendidas por Vanossi. Nesta Constitui- ção vislumbram-se dois tipos de normas: as formalmente constitucionais e as materialmente constitucionais. Há um misto de normas flexíveis e rígidas. Como é sabido, elas discorrem sobre a própria substância do Estado, sobre os limites e atribuições do poder político. Por tratarem de assuntos de tamanha magnitude, seriam modificáveis por um processo bastante dificultoso e sole- ne (arts. 174 a 177). Já para aquelas normas formalmente constitucionais, que cuidam de assuntos outros que não os relacionados com a estrutura do Estado, a sua modificação se dava da mesma forma para a elaboração da lei infraconstitucional ou ordinária (art. 178).

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Muitas vezes acontece o fato de serem desrespeitados os preceitos constitucio- nais referentes à reforma da Constituição. Mas, segundo o ensinamento de Kelsen, "é juridicamente impossível a reforma de uma Constituição ou preceito constitucio- nal declarado irreformável". A mesma objeção pode ser oposta ao argumento de Biscaretti (quem pode o mais pode o menos): é juridicamente impossível que um Estado decida sua própria extinção, a não ser, talvez, na hipótese (não co- nhecida) de expressa previsão constitucional. E, neste caso, o argumento não valeria para combater a cláusula pétrea expressa. Finalmente, com referência à conclusão de Vanossi, sobre a inutilidade e relatividade jurídica da limitação da reforma, cabe observar que todas as hipóteses por ele relacionadas, para de- monstrar a sua tese, são casos de modificação revolucionária da ordem jurídica, isto é, casos em que a criação normativa desrespeita o direito positivo.

24. Hans Kelsen, Teoría general dei Estado, cit., p. 332. Na General theory of law and State, p. 259: "Se a norma da Constituição que toma uma emenda mais difícil é considerada obrigatória para o órgão legislativo, a norma excluindo qualquer emenda tem de ser considerada válida também". Não há razão jurídica para interpretar as duas normas de modos diferentes, e declarar-se - como alguns escritores fazem - inválido por sua própria natureza um dispositivo proibindo alguma emenda.

Maior polêmica existe em torno dos limites implícitos ao poder reforma- dor. Estes decorrem do espírito da Constituição e de uma lógica que deve pre- sidir as suas reformas. Todos os argumentos já arrolados contra a cláusula pétrea expressa podem ser também invocados contra a cláusula implícita. Existem outros, mas o principal é o que aponta para a incerteza ou desacordo, por parte dos seus defensores, na indicação de quais sejam as cláusulas proibitivas implícitas. Nel- son de Sousa Sampaio, tratando longamente do assunto, indica quatro catego- rias de normas intangíveis: 1.a) as relativas aos direitos fundamentais; 2.a) as concernentes ao titular do poder constituinte; 3.a) as referentes ao titular do poder reformador; 4.a) as relativas ao processo da própria emenda ou revisão constitucional. Já o constitucionalista francês Maurice Hauriou fala de uma "superlegalidade constitucional", que compreende, também, os princípios su- periores à Constituição escrita, sendo característico dos princípios existir e va- ler sem texto escrito. Além de outros, são os princípios da ordem individualista contidos nas Declarações de Direitos da época revolucionária, o princípio da igualdade, o da publicidade do imposto, o da separação de poderes entre a au- toridade administrativa e a judicial e o da hierarquia administrativa. Afirma ele ainda que se trata de um novo caminho a ser explorado.

25. Nelson de Sousa Sampaio, O poder de reforma constitucional, 2. ed., Bahia, 1961, p. 94.

26. Maurice Hauriou, Princípios de derecho público y constitucional, 2. ed., Madrid, Ed. Reus, p. 325-8.

Parece ser viável a construção de uma teoria das cláusulas pétreas im- plícitas, desde que os estudiosos tentassem formulá-la a partir do direito po- sitivo de determinado Estado, e que tivesse em vista a extração do sistema dos princípios que, desrespeitados, implicariam a ruptura da ordem constitucio- nal. Assim, seriam afastadas, de início, as considerações jusnaturalistas, que encontram oposição da maioria dos juristas. Por outro lado, algumas das divergên- cias hoje existentes no elenco das cláusulas implícitas apontadas pelos auto- res seriam explicadas em razão das peculiaridades de cada direito positivo considerado. Nos sistemas positivos que estabelecem proibições expressas de emendas sobre determinada

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matéria, seria possível concluir pela irrevogabilidade dos dispositivos que contêm tais proibições, como mostra o sucinto ensina- mento de Pontes de Miranda: "alterar preceito que postula a inalterabilidade de outro é alterar essoutro; porque torna possível alteração que era impossível orça por alterar".

27. Apud Nelson de Sousa Sampaio, O poder de reforma, cit., p. 88. Este autor afirma ser redundante o art. 150 da Carta de Hessen, na parte final, que declara "também este próprio artigo não pode ser objeto de uma reforma constitucional". O artigo menciona princípios constitucionais irreformáveis.

CarL Schmitt, Teoria de la Constitución, cit., p. 108.

Uma cláusula proibitiva implícita, comum a todos os ordenamentos de Constituição rígida, é a que estabelece o órgão competente para a modifica- ção constitucional, ou seja, o titular do poder reformador. Na vida política dos Estados, esta norma tem sido desrespeitada, como aconteceu na Alemanha nazista, ao serem concedidos plenos poderes a Hitler por meio da Lei de 24 de março de 1933. Mais recente foi a Lei Constitucional francesa de 3 de junho de 1958, que alterou as regras da Constituição de 1946 sobre a reforma constitu- cional e transferiu o poder reformador para o governo, então presidido por De Gaulle, e de que resultou a Constituição de 1958, ora vigente. Em ambos os casos, porém, houve criação de novas Constituições, de novos ordenamentos jurídicos, o nazismo alemão e a V República da França, respectivamente. A aparência de continuidade legal foi a forma usada para mascarar a manifesta- ção de um poder constituinte revolucionário. O titular do poder reformador não pode delegar as suas atribuições nem renunciá-las a favor de qualquer outro órgão, salvo expressa autorização constitucional. Uma verdade jurídico-formal não pode ser invalidada por fatos da realidade social.

28. Cf. Nelson de Sousa Sampaio, O poder de reforma, cit., p. 102.

Hans Kelsen, General theory of law and State, cit., p. 117-8.

7. MODERNAS TENDÊNCIAS

Ao lado dos conceitos de Constituição material e formal mais antigos, tem vindo à tona mais modernamente uma distinção entre o poder constituinte material e o formal.

A idéia central que parece presidir a esta distinção é a de que quem deter- mina o conteúdo fundamental da Constituição é a força política ou social, seja de que matiz for, englobados aí os movimentos militares ou populares ou ain- da qualquer órgão ou grupo que toma a grave decisão de romper com a ordem anterior.

Em um segundo instante o de que se cuida é de formalizar, de consagrar em normas jurídicas as únicas capazes de garantir estabilidade e permanência à nova situação.

Vê-se assim que o órgão incumbido de fazer a Constituição não goza de uma liberdade plena. Jorge Miranda exemplifica com a hipótese de ser demo- crática a idéia de direito prevalente. Diz ele que mesmo nessa hipótese, sem embargo de haver plúrimas modalidades de erigir o sistema de direitos funda- mentais, de organização econômica, política ou de garantia da constitucionali- dade, ainda assim o poder constituinte formal estará adstrito a uma coerência com o princípio democrático.

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Isto significa dizer que não poderia ela no ápice de um movimento de cunho democrático, responsável pela sua convocação, decidir-se por uma Cons- tituição não-democrática.

Nada obstante isto não se vá apressadamente inferir a imutabilidade do poder constituinte formal, ou mesmo pela falta de sua soberania., É que não basta apenas um conjunto de princípios para erigir uma Constituição. É necessário desdobrá-los, para o que várias opções jurídico-políticas se mostram viáveis. Só a Constituição formal é que vai conferir definitividade aos órgãos que aparecem até então como provisórios, o mesmo se dando com os atos de decisão política por eles baixados. Todos eles estão condicionados a uma futura convalidação pela nova Lei Maior.

Com muito rigor técnico, e inegável talento de síntese, Jorge Miranda averba:

"Distinguimos entre um poder de autoconformação do Estado segundo certa idéia de direito e um poder de decretação de normas com a forma e força jurídicas próprias das normas constitucionais. São duas faces da mesma reali- dade ou dois momentos que se sucedem e completam. Um primeiro em que o poder constituinte é só material e um segundo em que é simultaneamente material e formal.

O poder constituinte material precede o poder constituinte formal. Precede-o logicamente porque a idéia de direito precede a regra de direito. O valor co- manda a norma, a opção política fundamental, a forma que elege para agir sobre os fatos. Precede-o também historicamente porque há sempre dois tem- pos no processo constituinte: o do triunfo de certa idéia de direito ou do nasci- mento de certo regime e o da formalização destas idéias ou regime".

29. Jorge Miranda, O poder constituinte, RDP 80:16.

Cremos que o desdobramento entre esses dois momentos constituintes está fadado a desempenhar uma influência muito grande no processo de legitimi- dade constitucional. Não é toda obra, ainda que promanada de um poder cons- tituinte democrático, que se legitima por si mesma.

Em última análise a sua maior ou menor legitimidade deflui da maior ou menor correspondência com os princípios que ditaram a sua convocação.

TÍTULO II TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO I CONSTITUIÇÃO

SUMÁRIO: 1. Conceito. 2. Constituição em sentido muito amplo. 3. Constituição em sentido material. 4. Constituição em sentido substancial. 5. Constituição em sentido formal. 5.1. Posição hierárquica superior das normas constitucionais em relação às infraconstitucionais. 6. Existência, ou não, de Constituição em todos os Estados, conforme a acepção, substancial ou formal, que se atribua ao vocá- bulo. 7. Critério mais relevante para o direito na conceituação de Constituição: o formal. 8. Constituições escritas e costumeiras. 9. Constituições rígidas e flexí- veis. 10. Direito constitucional.

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1. CONCEITO

Tentar oferecer um conceito de Constituição não é das tarefas mais fá- ceis de serem cumpridas, em razão de este termo ser equívoco, é dizer, pres- tar-se a mais de um sentido. Isto significa dizer que há diversos ângulos pelos quais a Constituição pode ser encarada, conforme seja a postura em que se coloque o sujeito, o objeto ganha outra dimensão. Seria como um poliedro que fosse examinado a partir de ângulos diferentes. Para cada posição na qual o observador se deslocasse, facetas diferentes dessa figura geométrica seriam vistas, não lhe sendo possível examiná-la toda de uma só vez.

Exatamente assim ocorre com a Constituição. Não se pode dar um concei- to único, pois ela varia conforme a ótica a partir da qual se vai visualizá-la.

Konrad Hesse afirma que "esta questão não pode ser resolvida recorren- do-se a um conceito de Constituição de aceitação geral ou, pelo menos, ma- joritariamente admitido. A teoria atual do Direito Constitucional, por mais que nela se encontrem amplas coincidências, não chegou a aclarar o conceito e a qualidade da Constituição até o ponto de alcançar um consenso suficien- temente amplo para poder ser tido por uma "opinião dominante". A compre- ensão em cada caso subjacente do que é o Estado e as Constituições atuais é com freqüência algo dado de antemão ou pressuposto e não algo explicita- mente fundamentado" (Escritos de Derecho Constitucional, Centro de Estudios ConstitucionaleS, 2. ed., Madrid, 1992, p. 4) (trad. do Autor).

Portanto, não é de se estranhar que o vocábulo "constituição" venha acompanhado dos mais diferentes qualificativos: formal, material, substancial, instrumental, ideal etc.

Não iremos examinar aqui todos os conceitos de Constituição, eis que al- guns deles não têm muita importância no estudo do direito constitucional. Para este importa a Constituição formal, à qual se opõem a material e a substancial.

1. Hector Fix Zamudio, La interpretación constitucional, p. 15: "o problema é sumamente difí- cil devido as muitas diversas acepções que tem sido outorgadas à mesma Constituição, e que tampouco examinaremos aqui, mas devemos deixar assentado que somente nos referiremos, para evitar compli- cações desnecessárias, ao chamado conceito formal da própria Constituição, é dizer, ao documento ou aos documentos solenes expedidos pelo chamado Poder Constituinte e que contém os princípios que o próprio Constituinte estimou necessário consignar nos mesmos documentos, no que diz res- peito à organização do Estado e os direitos fundamentais dos governados, incluídas aquelas outras normas as quais se pretendeu outorgar essa mesma categoria fundamental" (trad. do Autor).

2. CONSTITUIÇÃO EM SENTIDO MUITO AMPLO

De qualquer maneira, mesmo tendo em conta a sua acepção ambígua, a Constituição parece ter um núcleo ou um centro que é comum a todos os conceitos, quer a tomemos pelo sentido formal, quer pelo substancial, ou até mesmo pelo material. Apesar das diferenças existentes entre eles, que ainda nesse capítulo teremos a oportunidade de

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comentar, cada um guarda para si a mesma idéia de que a Constituição é a estrutura íntima de um ser.

Portanto, num sentido muito amplo, constituição significa a maneira de ser de qualquer coisa, sua particular estrutura. Nessa acepção, todo e qualquer ente tem a sua própria constituição. Fala-se, assim, da constituição de uma ca- deira, de um planeta, do homem. Esta utilização, feita pela linguagem comum, nada apresenta de próprio a qualquer ramo científico. Seu uso, pois, nesses casos, é atécnico ou acientífico, pelo que, da mesma forma que se fala da cons- tituição de um organismo vivo, se pode referir a uma determinada constituição de um ordenamento jurídico, reportando-se ao seu esquema fundamental, à sua ossatura mínima, determinados pelo conjunto de suas principais instituições.

3. CONSTITUIÇÃO EM SENTIDO MATERIAL

Num segundo significado, fala-se de Constituição em sentido material ou Constituição material de um Estado. Para compreendermos qual o alcance que ganha o termo "Constituição" nessa acepção, tomemos as palavras de Ferdinand Lassale, na sua obra clássica O que é uma Constituição?:

"Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: "Esta árvore é uma figueira". Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse fruto, estes destruiriam a fábula, produzindo maçãs e não figos.

O mesmo acontece com as Constituições.

De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder" (O que é uma Constituição?, cit., p. 110).

2. Ferdinand Lassale, O que é uma Constituição?, p. 117, in verbis: "Os problemas constitucio- nais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país reagem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar".

Vê-se que a Constituição é tomada na sua acepção material. Para Lassale, a essência da Constituição está no que denomina "fatores reais de poder" que regem a sociedade, é dizer, as forças reais que mandam no país. São forças de cunho político, econômico, religioso, ativas e eficazes o bastante para infor- mar todas as leis e instituições jurídicas de uma dada sociedade. A sua essên- cia não repousa na "folha de papel", que representa a Constituição escrita", que é mera descritora da realidade subjacente, mas sim nas relações fáticas reinantes de poder num Estado.

Podemos dizer que Constituição material é o conjunto de forças políti- cas, econômicas, ideológicas etc., que conforma a realidade social de um determi- nado Estado, configurando a sua particular maneira de ser. Embora mantenha relações com o ordenamento

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jurídico a ela aplicável, esta realidade com ele não se confunde. Ela é do universo do ser, e não do dever ser do qual o direito faz parte. Ela se desvenda através de ciências próprias, tais como a sociolo- gia, a economia, a política, que formulam regras ou princípios acerca do que existe, e não acerca do que deve existir como se dá com o direito.

3. Augustin Perez Carrillo, La interpretación constitucional, p. 82: "As idéias de constituição como fatores reais de poder, como conjunto de decisões políticas fundamentais e outras semelhan- tes não são aptas para os propósitos científicos, porque se fundam em elementos não normativos ou apresentam erros lógicos" (trad. do Autor).

4. CONSTITUIÇÃO EM SENTIDO SUBSTANCIAL

Define-se a Constituição em sentido substancial pelo conteúdo de suas normas. A Constituição nesta acepção procura reunir as normas que dão es- sência ou substância ao Estado. E dizer, aquelas que lhe conferem a estrutura, definem as competências dos seus órgãos superiores, traçam limites da ação do Estado, fazendo-o respeitar o mínimo de garantias individuais. Em suma, ela é definida a partir do objeto de suas normas, vale dizer, o assunto tratado por suas disposições normativas.

Pode-se, segundo esta acepção, saber se uma dada norma jurídica é cons- titucional ou não, examinando-se tão-somente o seu objeto. Se regular um aspecto fundamental da comunidade política, indispensável à sua concepção ou à sua permanência, se tratar da distribuição do poder dentro da sociedade, se versar, enfim, sobre algo que, alterado, abalaria as próprias vigas mestras do ente político, será constitucional, fará parte da Constituição. Se não satis- fizer a este requisito de ser norma relativa às relações basilares, fundamen- tais, entre os órgãos do Estado ou entre estes e os indivíduos, ela não fará parte da Constituição.

4. "Fala-se em Constituição em sentido material por causa do objecto, da matéria, do conteú- do que se realçam com a intensidade e a extensão da regulamentação. Se ela abrange aquilo que sempre tinha cabido na Constituição em sentido institucional, vai muito para além disso: é o con- junto de regras que encerram o estatuto do Estado e o da sociedade perante o Estado, cingindo o poder político a normas tão precisas e tão minuciosas como aquelas que versam sobre quaisquer outras instituições ou entidades; e o que avulta agora é adequação de meios com vista a um fim - a disciplina jurídica do poder - meios esses que, por seu turno, vêm a ser eles próprios fins em relação a outros meios que a ordem jurídica tem de prever" (Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 2. ed., Coimbra Ed., t. 2, p. 16 e 17).

Wilhelm von Humboldt, citado por Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, p. 68: "o'Ninguna constitución política - afirma Humboldt en una de sus primeras obras - puede pros- perar a la que la razón fundamente ya desde el principio según un plan trazado; sólo puede prospe- rar aquella que surja dll enfrentaniiento entre el azar y la razón', la que, con otras palabras, conecte con las circunstancias de la concreta situación histórica, relacionando sus condicionaniieutos con la regulación jurídica inspirada por los criterios de la razón. "...A partir del conjunto de la disposición individual del presente - se dice más adelante - surge la consecuencia. Los provectos que la razón se esfuerza entonces por imponer, reciben ... del objeto mismo al que se dirigen forma y modificación. Así pueden alcanzar duración y resultar útiles. De aquella manera, aunque sean realizados, permanecem estériles para siempre ... La razón tiene desde luego capacidad para con- formar la materia

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existente, pero carece de fuerza para producirla nueva. Esta fuerza se basa exclu- sivamente en la naturaleza de las cosas, la razón verdaderamente sabia las mueve a actuar tratando de orientarlas. Así logra mantenerse modestamente. Las constituciones políticas no pueden injertarse en los hombres como se injertan los árboles. Donde la naturaleza y el tiempo no han trabajado previamente es como si se atasen flores con hilo. El primer sol de mediodia las agosta"".

Konrad Hesse (Escritos. cit., p. 69), adotando a mesma postura de Humboldt, leciona: "A traves de estas frases Humboldt deja claros desde un primer momento los limites de la fuerza normativa de la Constitución. La Constitución - aqui en el sentido de "constitución jurídica" - no puede tratar de construir el Estado de modo por asi decir teórico-abstracto, sin consideración a las circunstancias y fuerzas históricas, si no quiere permanecer "eternamente estéril". La Constitución no es capaz de engedrar nada que no se halle ya en la disposición individual del presente. Donde estos presupuestos faltan, la Constitución no puede dar "forma y modificación"; donde no es posible despertar ninguna fuerza asentada en la naturaleza de las cosas, no es posible tampoco orientar dicha fuerza; donde la Constitución ignora las leyes espirituales, sociales, políticas o económicas de su época, carecerá del germen imprescindible de fuerza vital, siendo incapaz de hacer que llegue a producirse el estado que norma en contradicción con dichas leyes.

Pero con ello queda tambien precisado el carácter y la posible medida de la fuerza vital y de actuación de la Constitución. La norma constitucional puede ser operante cuando trata de construir de cara al futuro las circunstancias radicadas en la estructura individual del presente; como dijo Humboldt en otra ocasión, consigue fuerza y prestigio cuando aparece determinada por el princi- pio de necesidad. Con otras palabras, la fuerza y la eficacia de la Constitución descansan en su vinculación a las fuerzas espontáneas y a las tendencias vitales de la época, en su capacidad para desarrollar y coordinar objetivamente estas fuerzas, para ser por su mismo objeto, el orden global determinado, es decir, material de las relaciones sociales concretas".

Otto Bachof, Normas constitucionais inconstitucionais?, Atlântida Ed., p. 39: "Por Constitui- ção em sentido material entende-se em geral o conjunto das normas jurídicas sobre a estrutura, atribuições e competências dos órgãos supremos do Estado, sobre as instituições fundamentais do Estado e sobre a posição do cidadão no Estado. Se se quiser delimitar o conceito não objetiva mas funcionalmente, então a Constituição em sentido material será "o sistema daquelas normas que representam componentes essenciais da tentativa jurídico-positiva de realização da tarefa posta ao povo de um Estado de edificar o seu ordenamento integrador". A questão da relação do conceito material de Constituição com o direito supralegal deve por agora deixar-se aqui em suspenso.

Também pode haver direito constitucional material fora do documento constitucional".

Rudolf Smend, Constitución y derecho constitucional, p. 129: "A esta concepción, caracterís- tica del positivismo y del formalismo jurídico, se opone otra concepción que considera a la Constitución como la "ley" (no necesariamente jurídica) que regula y ordena la vida política de un Estado. La definición más radical en este sentido es la de Lassale, para quien la verdadera Constitución de un país no son más que las relaciones fácticas de poder reinante en él y no el "pedazo de papel que representa la Constitución escrita"".

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Anote-se que a norma jurídica leva em conta a matéria que trata, inde- pendentemente do lugar em que esteja. Pode-se encontrar normas substan- cialmente constitucionais tanto fora da Constituição, como também dentro da própria Constituição formal. Passa-se, então, a identificar aquelas normas que ostentam essa qualidade tão-somente por estarem na Constituição e aquelas outras que também formalmente constitucionais acrescem a isso o fato de serem substancialmente constitucionais.

Esta separação é muito relativa porque a própria tarefa de encontrar o que seria substancialmente constitucional é muito ingrata, eis que as divergências sempre aparecem por interferências subjetivas de quem se lança a isso, assim também como pelo caráter ideológico que essa empreitada pode assumir. Por exemplo, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão ao dizer que não possui Constituição aquele Estado que não consagre a separação dos poderes e os direitos individuais.

Vê-se que, para o momento, as preocupações sobre a contenção do Po- der Estatal se afiguraram essenciais. Nestas condições, não é estranho que as normas relativas aos temas acima referidos tenham sido consideradas a essên- cia da Constituição.

Este conceito é importante em países, como a Inglaterra, que não tem uma constituição formal. É necessário escolher dentre os seus usos e costu- mes quais aqueles que compõem o ordenamento jurídico fundamental do país. Este conceito implica na existência de uma essência constitucional, isto é, algo que permita identificar com clareza quais as normas que pela sua própria natureza ou matéria dizem respeito à Constituição do país.

Todavia, em países como o Brasil, cuja tradição jurídica romana é marcante, o mais importante é o conceito formal de Constituição, eis que tudo que consta da constituição formal recebe o mesmo tratamento jurídico, consistente na sua supremacia sobre toda a ordem jurídica. É dizer, são as leis hierarquicamente superiores e que dão validade e fundamento para todo o restante do ordenamento jurídico. Nestas Constituições torna-se ocioso demandar se todas as normas que lá se encontram fazem parte também da Constituição substancial.

5. CONSTITUIÇÃO EM SENTIDO FORMAL

Em sentido diametralmente oposto ao substancial, surge o conceito for- mal de Constituição.

5. "Da Constituição em sentido material deve distinguir-se a Constituição em sentido formal, isto é, a legislação, e também normas que se referem a outros assuntos politicamente importantes e, além disso, a preceitos por força dos quais normas contidas neste documento, a lei constitucional, não podem ser revogadas ou alteradas pela mesma forma que as leis simples, mas somente através de processo especial submetido a requisitos mais severos. Estas determinações representam a for- ma da Constituição, que, como forma, pode assumir qualquer conteúdo e que, em primeira linha, serve para a estabilização das normas que aqui são designadas como Constituição material e que são o fundamento de direito positivo de qualquer ordem jurídica estadual" (Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 3. ed., Coimbra, Arménio Amado Ed., p. 310 e 311).

Constituição, neste sentido, seria um conjunto de normas legislativas que se distinguem das não-constitucionais em razão de serem produzidas por um processo legislativo

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mais dificultoso, vale dizer, um processo formativo mais árduo e mais solene. Esta dificuldade acrescida pode consistir em múltiplos fatores: a criação de um órgão legislativo com a função especial de elaborar a Constituição, chamado Assembléia Constituinte; a exigência de um quorum especial, mais expressivo que o requerido pelas leis ordinárias, e de votações repetidas e distanciadas temporalmente; ou, ainda, a sujeição do projeto de lei constitucional à aprovação popular (referendum). Biscaretti ensina com acerto que as normas constitucionais não são emanadas dos órgãos legislativos nor- mais, com seu ordinário método de trabalho, porém são formuladas por órgãos legislativos especiais, estabelecidos para essa missão, ou por órgãos legislativos normais, todavia, segundo procedimento distinto dos costumeiros, dando lugar, dessa forma, a uma contraposição entre Poder Legislativo ordinário e poder constituinte ou de revisão constitucional. Assim, convém observar que poderão verificar-se normas constitucionais apenas sob o aspecto formal. Isto ocorre em todos aqueles casos em que determinadas regras jurídicas, de natureza não substancialmente constitucional, tenham sido inseridas na Constituição em sentido formal, para obter aquela tutela especial e típica da Constituição.

Portanto, a Constituição formal não procura apanhar a realidade do com- portamento da sociedade, como vimos anteriormente com a material, mas leva em conta tão-somente a existência de um texto aprovado pela força soberana do Estado e que lhe confere a estrutura e define os direitos fundamentais dos cidadãos. Esta é uma realidade eminentemente normativa, é um conjunto de normas jurídicas. Por serem normas, não descrevem a real maneira de ser das coisas, mas sim instituem a maneira pela qual as coisas devem ser.

5.1. Posição Hierárquica Superior das Normas Constitucionais em Relação às Infraconstitucionais

Dizer que existe tutela específica da Constituição significa afirmar que a Lei Fundamental se beneficia de um regime jurídico diferente. Com efeito, as normas componentes de um ordenamento jurídico encontram-se dispostas segundo uma hierarquia e formando uma espécie de pirâmide, sendo que a Constituição ocupa o ponto mais alto, o ápice da pirâmide legal, fazendo com que todas as demais normas que lhe vêm abaixo a ela se encontrem subordinadas. Estar juridicamente subordinada implica que uma determinada norma preva- lece sobre a inferior em qualquer caso em que com ela conflite. A norma superior demanda obediência da subordinada, de tal sorte que esta lhe deverá dar sempre inteiro cumprimento sob pena de vir a ser viciada. Vê-se, assim, pois, que a um regime especial para a sua produção corresponde, de outro lado, uma posição hierárquica superior das normas constitucionais sobre as infraconstitucionais. Portanto, é na Constituição formal que pode ficar evi- denciada a superioridade das normas constitucionais sobre as ordinárias. Nos países que adotam Constituições formais, caracterizadas, como visto, por um processo de elaboração mais dificultoso que o previsto para as leis ordinárias, assim como por um regime jurídico constitucional, dá-se em razão deste pró- prio regime jurídico uma ascendência, uma superioridade, uma maior impor- tância em favor das regras por ele beneficiadas, de tal maneira que elas passam a conformar, a moldar, a jungir a seus férreos princípios toda a atividade jurídi- ca submetida ao seu sistema. Qualquer ato jurídico de natureza infraconstitucional padecerá do supremo vício de ilegalidade, o qual, no caso, em razão de ser praticado contra a Lei Maior, denomina-se inconstitucionalidade. A suprema- cia das normas constitucionais é assegurada através de processos próprios, que vêm negar aplicação, negar

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executoriedade aos atos praticados contra seus comandos e até mesmo suprimir em definitivo uma lei inconstitucional.

6. O direito possui a particularidade de regular a sua própria criação. Isso pode operar-se por forma a que uma norma apenas determine o processo pelo qual outra norma é produzida. Mas também é possível que seja determinado, ainda, em certa medida, o conteúdo da norma a produzir. Como, dado o caráter dinâmico do direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra nor- ma, esta norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma supe- rior; a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior.

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até buscar final- mente na norma fundamental - pressuposta. A norma fundamental - hipotética nestes termos - é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora (Hans Kelsen, Teoria, cit., p. 309 e 310).

6. EXISTÊNCIA, OU NÃO, DE CONSTITUIÇÃO EM TODOS OS ESTADOS, CONFORME A ACEPÇÃO, SUBSTANCIAL OU FORMAL, QUE SE ATRIBUA AO VOCÁBULO

Se se toma o vocábulo Constituição no sentido substancial, todo e qual- quer Estado possui uma. Na verdade, não procede o entendimento daqueles que se recusam a ver uma Constituição jurídica naqueles Estados que não consagram qualquer limitação ao Poder Público. O que se pode afirmar é que, se há Estado, há um ordenamento jurídico que o embasa. O Estado há de se entender como estando sempre permeado pelo direito. Mesmo nas sociedades primitivas, é forçoso ver a existência de normas jurídicas. Por mais rudimen- tar que seja o desenvolvimento institucional do ente político, sempre será possível identificar uma norma, ainda que puramente consuetudinária, que qualifique determinado indivíduo como chefe, e uma outra que ordene serem sempre as ordens dele emanadas tidas por obrigatórias, devendo ser cumpridas, sob pena de sanções.

Nem sempre, contudo, haverá uma Constituição em sentido formal. Isto porque nem todos os Estados consagram a existência de um conjunto normativo diferenciado do ordenamento restante, por envolver um processo legislativo mais dificultoso para a elaboração de suas normas. Portanto, à pergunta que indaga se todo Estado possui Constituição, cabe responder que sim, desde que se tome a expressão no seu sentido substancial. Se, contrariamente, quisermo-nos referir a uma Constituição formal, a resposta deverá ser negativa, porque al- guns ordenamentos jurídicos não diferenciam normas constitucionais de ordi- nárias, ambas possuindo um mesmo regime jurídico, tanto no que se refere ao processo para sua produção, quanto à força jurídica ou à hierarquia das mes- mas dentro do sistema.

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7. CRITÉRIO MAIS RELEVANTE PARA O DIREITO NA CONCEITUAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO: O FORMAL

Dentre todas as conceituações de Constituição, a mais relevante para o direito é aquela calcada no critério formal. Isto porque as classificações, as categorizações ou as conceituações apenas apresentam relevância diante do direito, na medida em que a elas se faça corresponder um regime jurídico próprio, vale dizer, um feixe de normas pertinentes. Abandonado este princí- pio metodológico, nada nos impedirá de classificar os Textos Constitucionais em função dos mais abstrusos critérios (tamanho, cor etc.). Tal atividade, entretanto, se por um lado pode apresentar-se como em si mesma espiritual- mente gratificante, do ponto de vista prático nenhuma valia ofereceria, posto que em nada facilitaria o aclaramento da funcionalidade do sistema.

Ademais, cumpre salientar que a exata delimitação do que seja substan- cialmente constitucional não nos pode ser fornecida, na sua totalidade, a prio- ri, isto é, de forma desvinculada de uma determinada sociedade política. Mui- tas vezes, o que é por esta entendida como matéria de extrema relevância, devendo, em conseqüência, figurar no Texto Maior em uma dada época, deixa de o ser em outro momento histórico. Da mesma forma, sociedades contem- porâneas, em razão da adoção de princípios ideológicos diferentes, chegam a conclusões manifestamente diversas no que concerne à classificação de uma matéria como substancialmente constitucional. Isto porque, em determinado Estado, um princípio qualquer pode representar um papel bem diverso do cumprido em outro, relativamente à sua estrutura. Lavagna observa muito bem que o conteúdo de uma Constituição é elástico e, em última análise, político: "Não existe um critério absoluto para estabelecer aquilo que é constitucional e aquilo que não o é. Em um certo sentido, tudo pode ser ou tornar-se cons- titucional, se no âmbito de uma dada organização política se considere que certas normas são particularmente importantes, vitais, condicionadoras, de alguma maneira, do sistema. Sob tal perspectiva, podemos dizer que cada ordenamento, ainda que flexível, contém e revela, de alguma forma, os crité- rios de identificação das matérias constitucionais".

7. Cano Lavagna. Istituzioni di diritto pubblico, v. 1, p. 205.

É certo, não obstante, que há um mínimo com que todos estão de acordo em reconhecer como substancialmente constitucional. Ele se refere aos aspectos reguladores do exercício da autoridade dentro de um Estado qualquer. Com efeito, sendo o direito constitucional aquele em que se alicerça o Estado e, por outro lado, aparecendo sempre como indispensável ao seu surgimento, a exis- tência de um poder institucionalizado, a designação dos pressupostos segundo os quais alguém poderá vir a exercer a autoridade, e em que condições, nunca poderão ser ignoradas pelo direito constitucional. No mais, tudo variará se- gundo o local e a época.

O que se constata é que há duas tendências que sempre exercem pressão sobre o Texto Constitucional, obrigando-o a ter um sentido ou outro.

A primeira é a de levar para o texto da Constituição aquilo que for essencial para a estruturação e funcionamento do Estado.

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A outra é a de consagrar no Texto princípios respeitantes a quase todas as áreas do direito: civil, comercial, penal etc.

Embora esta ascendência seja hoje quase insopitável, uma vez que as correntes políticas e ideológicas não querem perder a oportunidade de inserir na Lei Maior todos aqueles valores que se lhe afiguram caros, a verdade é que este inchamento do Texto Constitucional é extremamente nocivo. Não se pode comparar a Constituição a um Código Civil ou Penal.

Não é só o fato de ser um tema importante que pode justificar sua inclu- são no Texto Constitucional. Este alargamento tem outro inconveniente sério, que é o de impedir que as Constituições ganhem uma imutabilidade, ainda que relativa.

Na medida em que elas enfeixam regras que melhor ficariam em um programa de partido político e que poderiam em conseqüência ser perfeita- mente promulgadas por via de legislação ordinária, tornam-se também expos- tas e vulneráveis às arremetidas que contra elas são feitas, por força das osci- lações freqüentes com que as diversas questões econômicas, sociais, cultu- rais, tecnológicas etc, evoluem nos tempos modernos.

Um outro ponto a salientar, também, é a relevância emprestada pelos estudos modernos aos fenômenos que se cumprem ao nível da Constituição material. E dizer, embora sem se admitir que haja um determinismo unilate- ral, isto é: sem se ir ao ponto de querer fazer da Constituição formal uma mera resultante das forças políticas, econômicas, religiosas, culturais que vigoram em determinado momento, aceita-se a idéia de que os constituintes não atuam em um vácuo político, sociológico, econômico etc.

Há, portanto, fenômenos de determinação recíproca. As realidades socio- lógicas penetram na Constituição formal da mesma forma que esta, pela força própria do normativo, acaba por exercer uma influência sobre o real, influên- cia esta que pode ser no sentido de precipitar tendências que já se faziam presentes no meio social, como também de retardá-las.

A Constituição não é portanto um instrumento em si mesmo conserva- dor ou revolucionário. Isto vai depender do conteúdo que ela vier a assumir e sobretudo da forma por que for vivenciada.

8. CONSTITUIÇÕES ESCRITAS E COSTUMEIRAS

Ademais, cumpre ainda notar que o surgimento de uma Constituição em sentido formal somente se viabiliza se consagrada num texto escrito. Não se compreende a existência de normas formalmente constitucionais se não estiverem corporificadas em um texto escrito. As Constituições costumeiras, que vêm a ser aquelas que resultam da prática reiterada pelo povo de um costume cons- titucional, com a consciência de ser juridicamente obrigatório, não se com- patibilizam com a rigidez constitucional. As normas costumeiras têm nascimento informal, produzidas que são por toda a coletividade e não por um órgão es- pecialmente designado para tal. Essa origem do direito é que na verdade con- ta para classificá-lo como escrito ou costumeiro. Tanto assim que, se alguém (que não seja o próprio órgão encarregado da produção legislativa) resolver reduzir a escrito as normas originariamente costumeiras de um certo povo, elas não se transformam, por isso, em normas escritas. Ora, se todas as nor- mas costumeiras brotam da mesma fonte, a mentalidade

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coletiva, não se pode estabelecer entre elas a já mencionada necessidade de discriminá-las formal- mente. Não se podendo qualificá-las como juridicamente diferenciadas, não se pode em conseqüência outorgar-lhes o tratamento, que lhes é inerente, de normas superiormente hierarquizadas.

8. Karl Loewenstein, Teoría dela Constitución, p. 152: "La exigencia de un documento escrito y unificado para las normas fundamentales surgió, en primer lugar, con la Revolución puritana como protesta frente a la pretensión del Parlamento Largo de ejercer una autonidad absoluta e ilimitada. El origen espiritual de esta petición era religioso "la representación bíblica del "pacto adquirió su significación actual bajo el poderoso estimulante de la idea del contrato social; vino a significar el documento específico en el cual estaban contenidas en un sistema cerrado todas las leyes fundamentales de la sociedad estatal, que imbuidas de un telos ideológico específico estaban destinadas a doblegar la arbitrariedad de un detentador del poder único - por aquel tiempo repre- sentado usualmente, aunque no siempre, por una persona individual, el monarca absoluto - sometiéndolo a restricciones y controles. Con esta finalidad, el Leviatán, para usar una figura de la época, tuvo que ser domado; su soberanía, hasta entonces monolítica, fue dividida en diversas secciones o departamentos, asignando a cada una de estas partes una actividad estatal especial. Esto constituyó el principio de la independencia funcional, que supuso elevar a la categoria de órgano estatal independiente o detentador del poder lo que en sí no era sino un segmento del orden total. La unidad orgánica del Estado fue entonces restablecida al combinar conjuntamente a estos detentadores del poder autónomos e independientes en la formación de la voluntad estatal. Todos estos dispositivos, cuidadosamente planeados de antemano, fueron entonces incorporados en un documento específico que fue elevado con especial solemnidad al rango de ley, siendo llamado Ley fundamental", "Instrumento de Gobierno" o "Constitución".

9. Explica-nos Kelsen que "una Constitución en sentido formal, especialmente los preceptos por los cuales la modificación de la Constitución se hace más dificil que las leyes ordinarias, solo es posible si hay una Constitución escrita, es decir, si ésta tiene el carácter de un estatuto" (Teoría general del derecho y del Estado, México, 1969, p. 147).

Certo que as Constituições podem ser escritas sem portanto serem rígi- das. O Estatuto Albertino é o exemplo mais famoso. Aquele corpo de normas se atribuía a si próprio a qualidade de constitucional. Entretanto, é perfeitamente admissível questionar se possuía a significação objetiva de constitucional. Onde está a diferença entre esse estatuto e as normas produzidas pelo Poder Legislativo constituído? Qualquer norma por este elaborada ganhava imediatamente a con- dição de constitucional, ainda que contrária ao Texto Maior. O Legislativo comum tinha na verdade a condição permanente de Poder Constituinte. Se a história registra o exemplo de Constituições escritas e flexíveis, isso resulta do fato da qualificação que elas subjetivamente se conferiram, e não de uma qualificação jurídica real. Como já visto, as categorias apenas apresentam significado no campo do direito se a elas corresponder um regime próprio, especial. Chamar um texto de constitucional, para em seguida tratá-lo segun- do os princípios reservados às leis comuns, equivale a desfazer a diferença que a princípio se estabeleceu.

A distinção entre Constituições rígidas e flexíveis não significa que existam, de um lado, Constituições imutáveis (hoje em dia já se toma por absurdo que um Texto Constitucional se pretenda perpétuo, quando se sabe que é desti- nado a regular a vida de

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uma sociedade em contínua mutação) e, de outro, Constituições mutáveis. O que tal distinção se propõe a registrar é a circuns- tância de certas Constituições escritas só poderem ser modificadas por um procedimento mais complexo e solene que aquele previsto para a elaboração de leis ordinárias (ou seja, mediante leis constitucionais formais), enquanto outras admitem a sua modificação por um processo idêntico ao adotado para a produção legislativa (isto é, por leis ordinárias).

As primeiras são as rígidas e as segundas, as flexíveis.

O critério utilizado para a diferenciação entre ambas diz respeito aos re- quisitos necessários para a reforma constitucional, os quais vêm a ser aqueles referentes ao procedimento especial, previsto por uma Constituição rígida, para que ela seja modificada, total ou parcialmente. Apenas as Constituições rígidas são modificáveis por um procedimento especial, posto que as flexíveis não pre- vêem duplicidade de processos legislativos, nenhuma diferença formal apre- sentando tanto a atividade legislativa ordinária quanto a constitucional.

9. CONSTITUIÇÕES RÍGIDAS E FLEXÍVEIS

A reforma constitucional (ou seja, de uma Constituição rígida) pode implementar-se segundo dois sistemas diversos: ou ela é feita por órgãos especiais, diferentes dos legislativos ordinários, ou é produto da atividade de órgãos legislativos ordinários, mas agravada com procedimentos mais dificultosos.

Biscaretti di Ruffia, com maestria, enfoca o tema, salientando que a distinção entre Constituições rígidas e flexíveis não pretende uma contraposição entre Constituições de natureza imodificável e Constituições modificáveis.

10. DIREITO CONSTITUCIONAL

O direito constitucional tem por objeto o estudo da Constituição. É um ramo do direito público, compreendendo este, dentre outras disciplinas, o di- reito administrativo, o tributário, o financeiro, o processual etc. A dificuldade existente na exata delimitação do campo do direito constitucional surge da circunstância de ser o vocábulo "constituição" de difícil conceituação. É um termo equívoco que se presta a diversos significados. Conforme se faça variar a sua abrangência, para abarcar este ou aquele campo da realidade, assim também variará a área de estudo do direito constitucional.

O direito constitucional vem a ser um estudo fundamentalmente voltado para a compreensão do texto jurídico singularíssimo denominado Constituição.

10. Com a diferenciação entre Constituições rígidas e flexíveis "não se pretende contrapor às Constituições de natureza imodificável (o que seria absurdo em um texto fundamental destinado a regular a vida de uma sociedade humana em contínuo progresso) outras eminentemente mutáveis; o que se faz é distinguir aquelas Constituições escritas, cujo conteúdo pode modificar-se só com normas emanadas mediante procedimentos mais complexos e solenes do que aqueles previstos para as leis ordinárias (ou seja, com leis formais constitucionais), de outras, nas quais o mesmo resultado se pode conseguir com os procedimentos legislativos normais, isto é, com leis formais ordinárias" (Biscaretti di Ruffia, Derecho constitucional, cit., p. 272).

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11. Paolo Biscaretti di Ruffia, Derecho constitucional, Ed. Technos, p. 148: "Para compreen- der com exatidão o que é Direito Constitucional, convém, antes de tudo, precisar os diversos signi- ficados da expressão constituição, já que, se variam estes últimos, mudará também o conteúdo daquele" (trad. do Autor).

Manuel Garcia Pelayo, Derecho constitucional comparado, 6. ed., p. 116: "Por eso, si bien el Derecho constitucional es inconcebible sin el poder, asi también el mismo poder sólo adquiere sentido estatal por su vinculación al Derecho. De este modo, el Derecho constitucional es el poder del Estado configurado jurídicamente, de manera que no es solamente producto, sino también supuesto de la existencia política".

CAPÍTULO II CONSTITUIÇÃO COMO UM SISTEMA DE PRINCIPIOS E NORMAS

SUMÁRIO: 1. O papel dos princípios. 2. Espécies de princípios 3 Espécies de normas

Embora muito aceita a distinção entre normas e princípios, ela nem sempre é fácil de ser firmada.

Os autores prendem-se a mais de um critério. O mais habitual é o grau de abstração, pelo qual não se acentua a diferença qualitativa entre princípios e normas, mas tão-somente se insiste no grau tendencialmente mais abstrato dos princípios em relação às normas.

Outras vezes, o que se evidencia é a aplicabilidade, o que vale dizer que os princípios demandariam medidas de concentração em comparação com a possibilidade de aplicação direta das normas.

Finalmente, há o critério da separação radical, que vislumbra na relação entre normas e princípios uma rigorosa distinção qualitativa, quer quanto à estrutura lógica, quer quanto à intencionalidade normativa.

1. Enrique Alonso Garcia, La interpretación de la Constitución, Centro de Estudios Constitucionales, 1984, p. 16: "Los intentos de clasificación de los preceptos constitucionales según su pretensión de validez han sido multiples y probablemente seguirán siéndolo. Bastaría con recor- dar las clasificaciones de los derechos fundamentales desde la célebre tripartición de Jellinek para caer en la cuenta de que la regla general es la multiplicidad de tipos e normas constitucionales".

Fica claro, pois, que, nada obstante as singularidades que cercam os princípios, estes não se colocam, na verdade, além ou acima do direito.

Juntamente com as normas, fazem parte do ordenamento jurídico. Não se contrapõem às normas, mas tão-somente aos preceitos. As normas jurídi- cas é que se dividem em normas-princípios e normas-disposições.

Em outras palavras, as Constituições não são conglomerados caóticos e desestruturados de normas que guardam entre si o mesmo grau de importân- cia. Pelo contrário, elas se afiguram estruturadas num todo, sem embargo de manter a sua unidade

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hierárquico-normativa; é dizer: todas as normas apre- sentam o mesmo nível hierárquico. Ainda assim, contudo, é possível identifi- car o fato de que certas normas, na medida em que perdem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, perdem densidade semântica, elas ascendem para uma posição que lhes permite sobrepairar uma área muito mais ampla. O que elas perdem, pois, em carga normativa, ganham como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas. No fundo, são normas tanto as que encerram princípios quanto as que encerram preceitos.

2. Eduardo Garcia de Enterria, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, Civitas, p. 98: "La Constitución asegura una unidad del ordenamiento esencialmente sobre la base un "orden de valores" materiales expreso en ella y no sobre las simples reglas formales de producción de normas. La unidad del ordenamiento es, sobre todo, una unidad material de sentido, expresada en unos principios generales de Derecho, que o al intérprete toca investigar y descubrir (sobre todo, naturalmente, al intérprete judicial, a la jurisprudencia), o la Constitución los há declarado de manera formal, destacando entre todos, por la decisión suprema de la comunidad que la ha hecho, unos valores sociales determinados que se proclaman en el solemne momento constituyente como primordiales y básicos de toda la vida colectiva. Ninguna norma subordinada - y todas lo son para la Constitución - podrá desconocer ese cuadro de valores básicos y todas deberán interpretarse en el sentido de hacer posible con su aplicación el servicio, precisamente, a dichos valores".

Otto Bachof, Normas constitucionais inconstitucionais?, p. 55: "Esta questão pode parecer, à primeira vista, paradoxal, pois, na verdade, uma lei constitucional não pode, manifestante, violar-se a si mesma. Contudo, poderia suceder que uma norma constitucional de significado secundário, nomea- damente uma norma só formalmente constitucional, fosse de encontro a um preceito material funda- mental da Constituição: ora, o fato é que por constitucionalistas tão ilustres como Krüger e Giese foi defendida a opinião de que, no caso de semelhante contradição, a norma constitucional de grau inferior seria inconstitucional e inválida. Abstraindo por agora da hipótese, debatida por Krüger, da "mudança de natureza" de uma norma constitucional, e pondo também de parte a questão da compe- tência judicial de controle, caberá examinar primeiro a tese segundo a qual um preceito do documen- to constitucional pode ser inconstitucional e carecer, por isso, de obrigatoriedade jurídica em virtu- de de uma contradição com um preceito de grau superior do mesmo documento constitucional".

Reinhold Zippelius, Teoria geral do Estado, p. 36: "Por outro lado, os documentos constituci- onais escritos podem conter preceitos secundários ao lado das normas fundamentais do Estado e que, portanto, não pertençam á Constituição num sentido material ou histórico; mereceria reflexão, por exemplo, o preceito constitucional que permite aos deputados utilizar os meios de comunica- ção públicos sem ter de pagar bilhete (Art. 18, Parte 3, Período 2, Constituição da República Fede- ral da Alemanha)".

É deste entrelaçamento que o todo constitucional sai fortalecido.

3. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 4. ed., Coimbra, Almedina, p. 118: "Já houve oportunidade de se afirmar (cfr. supra, p. 69) que o sentido útil assinalado ao princípio da unidade da constituição é o de unidade hierárquico-normativa. Afasta-se qualquer idéia de plenitude lógica do ordenamento constitucional e qualquer idéia valorativo-integracionista, conducente à idéia de constituição como ordem de valores.

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O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais nem hierarquia de supra-infraordenação dentro da lei constitucional). De acordo com esta premissa, só o legislador constituinte tem competência para estabelecer exceções à unidade hierárquico-normativa dos pre- ceitos constitucionais (ex.: normas de revisão concebidas como normas superconstitucionais)".

Eduardo Garcia de Enterria, La Constitución, cit., p. 98-9: "Se proclaman así estos preceptos "decisiones políticas fundamentales", en la terminología de Schmitt, decisiones que fundamentan todo el sistema constitucional en su conjunto: la decisión por la democracia, la decisión por el Estado de Derecho y por el Estado social de Derecho, la decisión por la libertad y por la igualdad, la decisión por las autonomías territoriales de las nacionalidades y regiones, dentro de la indisoluble unidad de la Nación espanhola, la decisión por un sistema formal de libertades, la decisión por la Monarquía parlamentaria, la decisión por el principio de legalidad etc.

El carácter básico y fundamentante de estas decisiones permite incluso hablar (como ha hecho Bachof y ha recogido ya la jurisprudencia del Tribunal Federal Constitucional alemán, como antes ya, aunque con menos énfasis dogmático, el Tribunal Supremo americano) de posibles "normas constitucionales" (verfassungwidrige Verfassungsnormen), concepto con el que se intenta subrayar, sobre todo, la primacía interpretativa absoluta de esos principios sobre los demás de la Constitución y el limite (constitucional, como hemos visto: art. 168) que suponen a la reforma constitucional.

Esos principios, cuyo alcance no es posible, naturalmente, intentar determinar aquí, si se destacan como primarmos en todo el sistema y protegidos en la hipótesis de reforma constitucional, presentan, por fuerza, una "enérgica pretensión de validez", en frase de Bachof que más atrás hemos citado, y constituyen, por ello, los principios jerárquicamente superiores para presidir la interpretación de todo el ordenamiento, comenzando por la de la Constitución misma".

Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, p. 18: "La Constitución, pues, no es ordenación de la totalidad de la cooperación social-territorial (bebietsgesellschaftliches Zusammenwirken), la cual no es, en absoluto, simple "ejecución constitucional". Como tampoco es una unidad sistemática y ya cerrada, bien sea ésta de tipo lógico-axiomático o bien basada en una jerarquia de valores. Sin embargo, sus elementos se hallan en una situación de mutua interacción y dependencia, y sólo el juego global de todos produce el conjunto de la conformación concreta de la Comunidad por parte de la Constitución. Ello no significa que este juego global se halle libre de tensiones y contradicciones, pero sí que la Constitución sólo puede ser comprendida e interpretada correctamente cuando se la entiende, en este sentido, como unidad, y que el Derecho constitucional se halla orientado en mucha mayor medida hacia la coordinación que no hacia el deslinde y el acotamiento".

1. O PAPEL DOS PRINCÍPIOS

Aos princípios costuma-se emprestar as seguintes funções.

Em primeiro lugar, sobretudo nos momentos revolucionários, resulta sa- liente a função ordenadora dos princípios. As revoluções, no mais das vezes, são feitas em nome de

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poucos princípios, a partir dos quais extrair-se-ão os preceitos que, ao depois, mais direta e concretamente regerão a sociedade e o Estado.

Outras vezes, os princípios desempenham uma ação imediata, na medi- da em que tenham condições para serem auto-executáveis.

Exercem, ainda, uma ação tanto no plano integrativo e construtivo como no essencialmente prospectivo (conferir, mais adiante, normas programáticas).

No primeiro caso, os princípios ficam à mercê de uma legislação integradora que lhes dê eficácia.

No segundo caso, na sua função prospectiva, os princípios procuram ganhar uma aplicabilidade cada vez maior, destilando o seu conteúdo por diversos setores da vida social. Exemplo destes últimos seria o princípio democrático, cuja maior conformação da vida social pode ir sendo adquirida na proporção em que se for fazendo uso dele.

2. ESPÉCIES DE PRINCÍPIOS

Canotilho desdobra em quatro modalidades principais os diversos tipos de princípios. Primeiramente, surgem os princípios jurídicos fundamentais que, na sua definição, são princípios historicamente objetivados e progressiva- mente introduzidos na consciência, encontrando uma recepção expressa ou implícita no Texto Constitucional.

São princípios que exercem uma função tanto no seu aspecto positivo quanto no negativo, o que os torna particularmente relevantes nos "casos li- mites" (Estado de Direito e de não-direito). Mas inequivocamente apresentam uma vertente importante na sua função positiva. Cite-se o princípio da publicidade dos atos jurídicos, o princípio do livre acesso aos direitos e aos Tribunais, também o princípio da imparcialidade da Administração. Mesmo quando não seja apto a fundamentar neles recursos de direito público, têm sempre uma força vinculante, de modo tal, a poder dizer-se ser a liberdade de conforma- ção legislativa vinculada pelos princípios jurídicos gerais.

Em seguida, examinemos os princípios politicamente conformadores, que são aqueles que explicitam as valorações políticas fundamentais do legis- lador constituinte.

Por eles é que a Constituição fundamentalmente assume as suas opções políticas mais importantes. É natural, em conseqüência, que também sejam eles que sofram maiores alterações por ocasião das revoluções.

São princípios que se referem à forma de Estado, à estruturação da sua ordem econômico-social, à estruturação do regime político.

À moda dos princípios jurídicos gerais, os princípios políticos constitucio- nalmente conformadores são normativos, o que significa dizer, operam, são rectrizes e operantes, na precisa linguagem de Canotilho. Os órgãos encarregados da aplicação do direito devem tê-los em conta, seja em atividades interpre- tativas, seja em atos inequivocamente conformadores.

A seguir, surgem os princípios constitucionais impositivos, caracteriza- dos por impor aos órgãos do Estado, sobretudo ao Legislador, a realização de fins e a execução de tarefas. São conhecidos também por normas programáticas.

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Uma quarta categoria de princípio vem a ser a dos princípios-garantia.

São princípios mais voltados à estatuição de garantias para os cidadãos.

Em função disto, o legislador se encontra estreitamente vinculado à sua aplicação. Exemplos: nullum crimen sine lege, in dubio pro reo, non bis in idem.

3. ESPÉCIES DE NORMAS

São diversas as classificações propostas pelos autores, mesmo porque são múltiplos os critérios pelos quais as normas constitucionais podem ser classificadas.

Vamos passar em revista algumas destas classificações:

a) Normas constitucionais materiais e normas constitucionais de garantia.

Esta distinção equivale aproximadamente à que é feita entre normas pri- márias e normas secundárias. As primeiras são instituidoras do dever e as segundas, asseguradoras de uma pena na hipótese de não-cumprimento.

As normas constitucionais materiais revelam a idéia de direito modeladora do regime ou a decisão constituinte.

Já as normas de garantia visam a conferir cumprimento às primeiras, mesmo frente ao próprio Estado.

b) Normas constitucionais preceptivas e normas constitucionais progra- máticas.

As primeiras são as que podem produzir seus efeitos de imediato, ou, pelo menos, não ficam na dependência de condições institucionais ou de fato.

Reversamente, normas programáticas são as que não reúnem condições de uma integral aplicação de imediato.

Voltam-se a transformações não só da ordem jurídica mas também das estruturas sociais e da própria realidade constitucional. Costuma ficar ao alcance do legislador o exercício de um verdadeiro poder discricionário quanto à pos- sibilidade de as concretizar.

É bom notar que tanto as programáticas quanto as preceptivas fazem parte da mesma categoria, a norma jurídica.

Outrossim, exerce uma influência recíproca, por exemplo, na medida em que, mesmo sem condições de ser imediatamente aplicada, a norma programá- tica já reúne requisitos, para por si só, funcionar como critério de interpreta- ção de outras normas preceptivas.

Saliente-se, ainda, o fato de as normas preceptivas atuarem como verda- deiros comandos-regras em oposição aos comandos-valores, próprios das normas programáticas.

Quanto a estas últimas, há a frisar-se que conferem elasticidade ao ordenamento constitucional e têm como destinatário o Legislador.

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São suas notas o não consentirem que os interessados as invoquem, as- sim que entrada em vigor a Constituição, e aparecem muitas vezes acompa- nhadas de conceitos indeterminados parcial ou totalmente.

Convém aqui reproduzir a súmula feita por Jorge Miranda sobre a força jurídica das normas programáticas:

"I) Determinam a cessação da vigência por inconstitucionalidade super- veniente das normas legais anteriores que despontam em sentido contrário.

II) Conquanto o seu sentido essencial seja sempre prescritivo, e não proi- bitivo, elas possuem, complementarmente, um duplo sentido proibitivo ou ne- gativo - proibem a emissão de normas legais contrárias e proibem a prática de comportamentos que tendam a impedir a produção de actos por elas im- postos - donde inconstitucionalidade material em caso de violação.

III) Elas fixam directivas ou critérios para o legislador ordinário nos domínios sobre que versam - donde, inconstitucionalidade por omissão em caso de inércia legislativa e ainda inconstitucionalidade material (que é inconstitu- cionalidade por ação) por desvio de poder, em caso de afastamento desses critérios.

IV) Elas adquirem eficácia sistemática como elemento de integração dos restantes preceitos constitucionais e, assim, através da analogia que sobre elas se construa, adquirem uma eficácia criadora de novas normas".

Embora não concordemos com a expressão "inconstitucionalidade super- veniente", deixaremos para tratar do assunto mais adiante, no tema referente à inconstitucionalidade.

CAPÍTULO III INTERPRETAÇÃO. INTEGRAÇÃO. APLICAÇÃO

SUMÁRIO: 1. Interpretação. 1.1. Interpretação conforme a Constituição. 1.2. Sin- gularidade das normas constitucionais do ângulo da sua interpretação. 2. Integração. 2.1. Lacunas no direito constitucional. 3. Interpretação e integração: realidades lógicas distintas. 4. Aplicação. 4.1. Aplicação das normas constitucio- nais no tempo. 4.1.1. A nova Constituição e o direito constitucional anterior. 4.1.2. Direito constitucional novo e direito ordinário anterior. 4.2. Aplicação das nor- mas constitucionais no espaço.

1. INTERPRETAÇÃO

A interpretação, a integração e a aplicação constitucionais não se confun- dem. Nada obstante isto, elas apresentam suficientes afinidades e conexões entre si, a ponto de justificarem o seu tratamento em uma mesma unidade. Assim fazendo, estaremos seguindo as preciosas lições de doutos mestres, dentre eles Jorge Miranda.

De outra parte, o estudo que levamos a efeito no capítulo anterior não estaria completo sem as considerações que ora teceremos, todas elas indispensá- veis para determinar o real alcance dos preceitos constitucionais. Comecemos pela interpretação.

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Interpretar é extrair o significado de um texto. Embora possa afigurar-se como uma insuficiência da linguagem, visto que a primeira idéia que nos acode ao espírito é a da lástima de o significado de textos tão importantes não ser de uma evidência inquestionável, o fato é que a interpretação é sempre indispen- sável, quer no Texto Constitucional, quer nas leis em geral.

1. Anna Cândida da Cunha Ferraz, Processos informais de mudança da Constituição, p. 22: "Uma Constituição se presume obra comum de todos os órgãos e forças vivas da nação, que nela encerram princípios dominantes, disposições fundamentais, desprovidas ou quase desprovidas de con- teúdo preciso, deliberadamente vagas, que deixam larga margem de interferência e complementação, na organização fundamental do Estado, aos órgãos que devem observá-la, respeitá-la, cumpri-la e aplicá-la.

Daí afirmar Lowenstein que "toda Constituição é, em si, uma obra humana incompleta, além de ser obra de compromisso entre as forças sociais e grupos pluralistas que participam de sua formação".

Como todas as normas jurídicas, a Constituição normada deve ser compreendida e, para ser compreendida, deve ser interpretada.

Caminho inevitável para a compreensão da norma jurídica é a interpretação, vale dizer, a compreensão no seu sentido.

A Constituição, pois, como Lei das Leis, não pode prescindir de interpretação".

Carlos Maximiliano, apud José Baracho, Teoria da Constituição, p. 49: "Com as luzes da hermenêutica, o jurista explica a matéria, afasta as contradições aparentes, dissipa as obscuridades e faltas de precisão, põe em relevo todo o conteúdo do preceito legal, deduz das disposições isoladas o princípio que lhes forma a base, e desse princípio as conseqüências que do mesmo decorrem".

Alberto L. Warat e Eduardo A. Russo, Interpretación de la ley, Abeledo-Perrot, v. 1, p. 41: "Los métodos interpretativos aparecen definidos por el saber acumulado (el sentido comun teórico de los juristas) como técnicas rigurosas, que permiten alcanzar el conocimiento científico del derecho posi- tivo. En realidad, es notoria su conexión con la ideologia de las distintas escuelas que conforman el pensamiento jurídico. Así, el método exegético, el método de escuela histórica, el método dogmático, el método comparativo de lhering de la segunda fase, el método de la escuela científica francesa, el método del positivismo sociológico y de la escuela del derecho libre, el teleologico vinculado a la jurisprudencia de intereses, el método egológico y el tópico-retórico, todos ellos se relacionan con las escuelas correspondientes, de las cuales, en algunos casos, importaron el propio título".

Emilio Betti,Interpretación dela ley de los actos jurídicos, Madrid, 1971, p. 95: "La interpretación que interesa al Derecho es una actividad dirigida a reconocer y a reconstruir el significado que ha de atribuirse a formas representativas, en la órbita del orden jurídico (Categ., 3 y ss.) (1), que son fuente de valoraciones jurídicas, o que constituyen el objeto de semejantes valoraciones. Fuentes de valoración jurídica san normas jurídicas o preceptos a aquéllas subordinados, puestos en vigor en virtud de una determinada competencia normativa. Objeto de valoraciones jurídicas pueden ser declaraciones o comportamientos que se desarrollan en el circulo social disciplinado por el Derecho, en cuanto tengan relevancia

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jurídica según las normas y los preceptos en aquél contenidos y que tengan a su vez contenido y carácter preceptivo, como destinados a determinar una ulterior linea de conducta.

La interpretación jurídica así entendida no es más que una especie, bien que la más importan- te, del género denominado "interpretación en función normativa"".

Jerzy Wróblewski ensina: "Há várias concepções da intepretação legal, mais ou menos influenciadas pelo uso do termo "interpretação" e por idéias semióticas gerais.

Para o nosso propósito é suficiente ressaltar três concepções sobre a interpretação legal e eleger uma delas, a utilizada na teoria geral que aqui apresentamos.

A interpretação em sentido amplíssimo se define com a compreensão de um objeto como fenômeno cultural. Se nos encontramos, por exemplo, com uma pedra, de uma forma particular, poderíamos nos perguntar se é o resulta- do de forças naturais como o vento ou a água, ou produto do trabalho humano como instrumento ou obra de arte. No primeiro caso somente nos interessa- mos pelo processo natural relacionado com a geologia, mas no segundo caso atribuímos à pedra algum valor (sentido, significado), tratando-a como resul- tado de uma atividade humana. Em outras palavras, atribuímos algum valor (sentido, significado) ao substrato material, interpretando-o como resultado da atividade do homem. E esta é uma "interpretação cultural" utilizada nas ciências humanas e que requer uma base filosófica apropriada.

Interpretação em sentido amplo significa compreensão de qualquer si- nal linguístico. Em outras palavras, para entender um sinal de uma linguagem dada há que interpretá-lo atribuindo-lhe um significado de acordo com as regras de sentido dessa linguagem. É evidente que, primeiramente, há de tratá-la como sinal de uma linguagem (interpretação num sentido mais amplo) e, depois, atri- buir-lhe um significado ao compreendê-lo (interpretação em sentido amplo).

Esta sinonímia entre "interPretação" e "compreensão" é utilizada no campo da semiótica contemporânea. Há, assim, uma analogia entre o interpretar um cálculo formal através de certos modelos e o interpretar uma linguagem natu- ral. Se nos interessarmos pela linguagem legal no que os textos legais estão formulados, em tal caso, para entendê-los, devemos usar interpretação em sentido amplo. Este mesmo pode sustentar-se para qualquer uso da linguagem natural nos atos de comunicação de todos os dias.

Interpretação em sentido estrito quer dizer determinação de um signifi- cado de uma expressão lingüística quando existem duas referências a este signi- ficado em um caso concreto de comunicação. Há, portanto, dois tipos de situ- ações de comunicação concreta, ou a compreensão direta de uma linguagem é suficiente para fins de comunicação concreta, ou existe dúvidas que se eli- minam mediante a interpretação" (Constitución y teoría general de la interpretación jurídica, in Cuadernos Civitas, 1. ed., 1985, p. 21) (trad. do Autor).

Transbordaria os limites do presente capítulo o aprofundar as razões desta imprescindibilidade. Há duas, entretanto, a que não nos furtamos a mencio- nar. Uma é a de que os preceitos normativos são sempre abstrações da realida- de. Para que possam cumprir o seu propósito de disciplinar um número infin- dável de situações necessitam de apelar para um alto nível de generalidade e abstração. Isto acarreta a conseqüência de que diante de uma dada situação concreta será sempre possível a pergunta: estará ela abarcada pelo preceito normativo? Só pela interpretação chegaremos a uma resposta.

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A interpretação faz o caminho inverso daquele feito pelo legislador. Do abstrato procura chegar a preceituações mais concretas, o que só é factível procurando extrair o exato significado da norma.

2. Anna Cândida da Cunha Ferrar, Processos informais, cit., p. 25: "Não obstante a variedade dos métodos apontados pela doutrina, prevalece o entendimento de que a interpretação constituci- onal é espécie do gênero interpretação jurídica, porém revestida de características e critérios pecu- liares, derivados, especialmente, da natureza e das notas distintivas das disposições constitucio- nais: supremacia e rigidez constitucional, diferentes conteúdos das normas constitucionais, caráter sintético, esquemática e genérico da Constituição etc.

Desse modo, embora não se possa falar em uma teoria da interpretação constitucional, não há

como desconhecer atributos próprios aos métodos interpretativos quanto à Constituição.

A necessária especificidade de que se reveste a interpretação constitucional é admitida e reco- nhecida pelos maiores mestres da Teoria do Estado, afirma Miguel Reale.

Assim, os métodos de interpretação constitucional, descritas pela doutrina, são, em regra, os métodos aplicados às normas jurídicas em geral, revestidos, porém, das peculiaridades que deri- vam dos atributos específicos da matéria constitucional, consubstanciada e concretizada na norma constitucional, que se distingue das demais normas jurídicas pela forma, conteúdo e estrutura lógica.

Tal especificidade é particularmente perceptível nos chamados métodos modernos da inter- pretação constitucional, que apresentam sensíveis inovações.

Não se pode, por outro lado, deixar de ressaltar que reina, nesse campo, grande confusão terminológica; as classificações variam, quer se tomem como critérios os meios, os elementos, os

instrumentos ou os fins da interpretação.

Dentre os aspectos peculiares à interpretação constitucional e que a distinguem da interpreta- ção jurídica em geral, dois merecem ser ressaltados: de um lado, o denominado elemento político, que impregna as normas constitucionais; de outro, as categorias das normas constitucionais ou, como ensina a doutrina, a tipologia das normas constitucionais".

A outra razão consiste no fato de as Constituições serem autênticos códigos encerrando muitos preceitos. A significação destes não é obtenível pela com- preensão isolada de cada um. É necessário também levar-se em conta em que medida eles se interpenetram. É dizer, até que ponto um preceito extravasa o seu campo próprio para imiscuir-se com o preceituado em outra norma.

Disto resulta uma interferência recíproca entre normas e princípios, que faz com que a vontade constitucional só seja extraível a partir de uma interpretação sistemática, o que por si só já exclui qualquer possibilidade de que a mera leitura de um artigo isolado esteja em condições de propiciar o desejado des- vendar daquela vontade.

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Há alguns princípios de obediência obrigatória na interpretação constitucional.

O primeiro deles é o da unidade da Constituição. De certa forma este princípio traduz o que acima estávamos a expor. É necessário que o intérprete procure as recíprocas implicações de preceitos e princípios, até chegar a uma vontade unitária na Constituição. Ele terá de evitar as contradições, antago- nismos e antinomias. As Constituições, compromissórias sobretudo, apresen- tam princípios que expressam ideologias diferentes. Se, portanto, do ponto de vista estritamente lógico, elas podem encerrar verdadeiras contradições, do ponto de vista jurídico são sem dúvida passíveis de harmonização desde que se utilizem as técnicas próprias de direito.

A simples letra da lei é superada mediante um processo de cedência recí- proca. Dois princípios aparentemente contraditórios podem harmonizar-se des- de que abdiquem da pretensão de serem interpretados de forma absoluta. Pre- valecerão, afinal, apenas até o ponto em que deverão renunciar à sua pretensão normativa em favor de um princípio que lhe é antagônico ou divergente.

3. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional, 4. ed., Coimbra, Almedina, p. 118: "Já houve oportunidade de se afirmar que o sentido útil assinalado ao princípio da unidade da Constituição é o de unidade hierárquico-normativa. Afasta-se qualquer idéia de plenitude lógica do ordenamento constitucional e qualquer idéia valorativo-integracionista, conducente à idéia de cons- tituição como ordem de valores.

O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal tem igual dignidade (não há normas só formais nem hierarquia de supra- infraordenação dentro da lei constitucional). De acordo com esta premissa, só o legislador consti- tuinte tem competência para estabelecer exceções à unidade hierárquico-normativa dos preceitos constitucionais (ex.: normas de revisão concebidas como normas superconstitucionais).

Como se irá ver em sede de interpretação, o princípio da unidade normativa conduz à rejeição de duas teses, ainda hoje muito correntes na doutrina do direito constitucional: a tese das antinomias alternativas; a tese das normas constitucionais inconstitucionais.

Argumentar-se-á que, reduzido o princípio da unidade da constituição a uma simples exigên- cia de unidade normativa, todos os problemas pretendidamente solucionados com o recurso a tal princípio podem ser resolvidos a partir da própria especificidade da positividade norma- tivo-constitucional.

Mas não é assim. Sendo a constituição uma estrutura de tensão e não se podendo transformar uma lei constitucional em "código" exaustivo da vida política, o princípio da unidade da constituição é igual- mente um princípio de interpretação: exige tarefa de concordância prática entre normas aparentemente em conflito ou em tensão (ex.: entre princípio democrático e princípio do Estado de Direito); exige tarefa de interpretação conforme a constituição das leis que aplicam ou concretizam as normas constitu- cionais (cfr., no plano jurisprudencial a invocação deste princípio noAc. TC n. 3 1/84, DR, I,17-4-84)".

Um segundo princípio básico de interpretação é o de que na Constitui- ção não devem existir normas tidas por não jurídicas. Todas têm de produzir algum efeito. Com mais

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rigor ainda afirma Jorge Miranda, citando lição de Thoma: "A uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê" (Manual de direito constitucional, t. 2, p. 224).

De outra parte figura o princípio segundo o qual os preceitos constitucionais hão de ser interpretados segundo não só o que explicitamente postulam, mas também de acordo com o que implicitamente encerram. Embora pareça ób- vio, convém também consignar que as normas constitucionais têm de ser to- madas como normas da Constituição atual e não como preceitos de uma Cons- tituição futura, destituída de eficácia imediata. No entanto, como pondera Jorge Miranda, tampouco podem reconduzir-se ao absurdo de impor aos seus des- tinatários o impossível.

Finalmente cumpre observar que, nada obstante o fato de as Constitui- ções conterem conceitos exógenos, isto é, provenientes de outras searas do direito ou mesmo do campo extrajurídico, desde que apreendidos em disposi- ções constitucionais, devem ser interpretados no sentido que adquirem por força desta nova inserção sistemática.

Problema interessante consiste em saber da real significação quanto ao Texto Constitucional, de dispositivos que a nível de legislação subconstitucio- nal estabelecem regras de interpretação. Nossa atual Lei de Introdução ao Código Civil dispõe de norma neste sentido:

"Art. 4.o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito".

É lógico que a regra é que a Constituição não pode ser interpretada a partir da legislação infraconstitucional. Trata-se de particularidade própria da Lei Maior o não poder ela tomar por referencial interpretativo outras normas do sistema. Tal fenômeno deflui do seu caráter inicial e inovador.

A Constituição é o marco a partir do qual se erige a ordem jurídica. Seria um contra-senso admitir-se que o que lhe vem abaixo - devendo por- tanto sofrer o seu influxo - viesse de repente a insurgir-se contra esta ordem lógica, fornecendo critérios para a inteligência do próprio preceito que lhe serve de fundamento de validade.

4. Luiz Sanchez Agesta quando diz: "A interpretação constitucional está ligada ao sistema de proteção da Constituição" (Curso de derecho constitucional comparado, Madrid, 1974, p. 41).

Carlos Maximiliano, apud José Baracho, Teoria da Constituição, cit.: "A técnica de interpre- tação muda, desde que se passa das disposições ordinárias para as constitucionais, de alcance mais amplo, por sua própria natureza e em virtude do objetivo colimado, redigidas de modo sintético, em termos gerais".

Cremos que, mantida esta postulação fundamental, as ponderações de Jorge Miranda sobre o tema podem ser aceitas em primeiro lugar, a de que normas como estas são válidas e eficazes não por constarem do Código Civil - pois este não ocupa nenhum lugar proeminente no sistema jurídico - mas, diretamente, enquanto tais, por traduzirem uma vontade legislativa não con- trariada por nenhuma outra disposição a respeito dos problemas de interpreta- ção (que não são apenas técnico-jurídicos) de que cuidam.

Em segundo lugar, a idéia bastante sugestiva de que matérias como as tratadas por normas deste tipo podem considerar-se substancialmente constitu- cionais e que, em assim sendo, não repugnaria mesmo vê-las alçadas à Consti- tuição em sentido formal.

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Em consonância com o exposto parece também ficar claro que interpretação autêntica da norma constitucional só pode ser editada por uma Emenda à pró- pria Constituição. O que é lícito sem dúvida à Lei Ordinária é o concretizar e desenvolver certos comandos constitucionais, sobretudo aqueles não dotados de aplicabilidade imediata.

5. Giorgio Laserra, L'interpretazione della legge, Jovene, 1955, p. 119: "La storiografia e l' interpretazione come distinte considerazioni deli' interpretazione autentica. Il contributo originale che la presente monografia osa proporre in materia di monografia, anche la legge contenente una interpretazione autentica si presenta assolutamente diversa a seconda che la si consideri in sede e sotto il profilo della libera critica oppure in sede e sotto il profilo della interpretazione legale e, - in particolare, della interpretazione giurisprudenziale.

Sotto il profilo della libera critica, la quale e filosofia, e storiografia, e pensiero pieno, la legge contenente una interpretazione autentica viene, appunto, esaminata liberamente, ed il rapporto corrente tra lo studioso ed essa legge e, in questo primo caso, identico a quello corrente, in generale, tra lo studioso e un qualsiasi altro atto giuridico, legislativo o interpretativo, e, in particolare e per esempio, tra la presente monografia e l'interpretazione legale della legge".

Giovanni Galloni, La interpretazione della legge, Giuffrè, 1955, p. 201: "Da quanto esposto sinora, non si puó non desumere un concetto unitario della interpretazione, intesa non come una semplice operazione intelletiva o conoscitiva del senso astratto della dichiarazione legislativa, ma come attività essenzialmente pratica, volta a realizzare, nella condotta concreta dei consociati, la conformità al tipo astratto contenuto nello schema legislativo.

Esulano da un tale concetto di interpretazione, le altre specie di interpretazione (denominate tali in senso improprio) quali la interpretazione dottrinale e l'interpretazione autentica o legale.

Della interpretazione dottrinale già si e visto sopra come, constituendo essa una attività mera- mente ricognitiva della ratio legis in astratto, rappresenti in verità solo un presupposto dell'attività interpretativa in senso proprio.

Ugualmente l'interpretazione autentica, in quanto dichiarazione dello stesso organo dei potere normativo, che ha emesso la primitiva dichiarazione, non costituisce una attività interpretativa vera e propria, ma una integrazione normativa. Manca, infatti, alla dichiarazione della norma interpretativa Il carattere di una concreta scelta od applicazione di uno schema astratto di comportamento".

Ao assim proceder, no entanto, deverá ater-se ao sentido da norma cons- titucional. E a questão última de se saber se se manteve ou não dentro deste balizamento é um problema afeto ao Judiciario.

1.1. Interpretação Conforme a Constituição

Se por via de interpretação pode chegar-se a vários sentidos para a mesma norma, é muito compreensível - uma vez que colabora de forma decisiva para a economia legislativa - que se venha a adotar como válida a interpre- tação que compatibilize a norma com a Constituição.

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Temos, pois, por força deste princípio de interpretação conforme a Cons- tituição, que se deve, dentro do possível, elastecer ou restringir a norma de modo a torná-la harmônica com a Lei Maior. Na verdade, esta interpretação conforme à Constituição vai além da escolha entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, para distender-se até o limite da inconstitucio- nalidade. Aqui tenta-se encontrar, neste espaço, um sentido que, embora não o mais evidente, seja aquele sem o qual não há como ter-se a lei compatibilizada com a Constituição. É um problema delicado, este, porque, se levado além de um nível de razoabilidade, desemboca em uma função criadora por parte dos órgãos aplicadores, muito além daquela tida por aceitável e até mesmo desejável.

6. Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, 3. ed., Fundação Caiouste Gulbenkian, p. 120: "Após a vitoriosa investida da Jurisprudência dos fins e dos interesses, o método teleológico tem-se vindo a deslocar cada vez mais para um primeiro plano em relação à "interpretação literal". Segundo o princípio de há longa data conhecido: "cessante ratione legis, cessat lex ipsa", deve importar mais o fim e a razão de ser que o respectivo sentido literal. A "ratio" deve impor-se não apenas dentro dos limites de um teor literal muitas vezes equívoco, mas ainda rompendo as amarras desse teor literal ou restringindo uma fórmula legal com alcance demasiado amplo. Nestes últimos casos fala-se de interpretação extensiva ou restritiva. Com mais reservas se procede, ao contrário, nos quadros da "interpretação conforme à Constituição". a que nos últimos tempos se faz apelo com freqüência. Esta, nos casos, mas só nos casos em que o teor verbal não é unívoco, e, portanto, especialmente naqueles em que de antemão se consente uma interpretação mais restritiva e uma interpretação mais extensiva, procura decidir-se a favor daquele sentido da letra que conduza à compatibilidade da disposição legal interpretada com a Constituição e os seus princípios. Aqui pressupõe-se, portanto, um sentido literal não unívoco, e não se opera contra o sentido literal que directamente se obtém através da interpretação "gramatical" da lei. Todavia, na medida em que por esta forma se realiza uma "interpretação conforme à Constituição", esta traduz-se afinal em que a "referência do sentido de cada norma ao ordenamento jurídico global", a que acima aludimos, chama a campo uma "interpretação sistemática", fá-la correr em auxilio da pura "interpretação gramatical", e é ainda ela quem decide em último termo - pelo que o que aí há de particular é o facto de aquela referência ou conexidade de sentido render tributo simultaneamente à elevada hierarquia e à grande capacidade irradiante da Constituição".

Para que se eliminem distorções e inseguranças é necessário deixar cer- to que, toda vez que a lei encampe critérios e soluções manifestamente em contrariedade com os adotados pelo constituinte, sem dúvida deverá ser de- clarada inconstitucional e não transmudada de forma radical para, só então, beneficiar-se da ausência do vício máximo; no entanto parece que, sem incidir-se neste extremo, é lícito aceitar-se que dentro ainda de uma atividade meramente interpretativa seja possível ajustar uma significação à norma, ainda que não a mais intuitiva, mas que lhe confira a possibilidade de ser tida por constitucional.

Assim se deverá proceder toda vez que os perigos da insegurança jurí- dica não sejam mais temíveis que os objetivos a que se almeja alcançar em nome da economia legislativa. A declaração de inconstitucionalidade deve, sem dúvida, ser deixada como medida extrema, dadas as profundas repercus- sões que um ato desta natureza sempre acarreta.

1.2. Singularidade das Normas Constitucionais do Ângulo da sua Interpretação

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O que interessa aqui compreender é a razão pela qual, sendo o direito cons- titucional uma das províncias do direito, está ele a merecer técnica especial de manejo nos já conhecidos métodos de interpretação jurídica. Este assunto o tratamos em Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, elaborada em colaboração com Carlos Ayres Britto. Naquela ocasião, fixamo-nos em quatro pontos principais, que seriam aqueles de fato responsáveis pela adoção de regras hermenêuticas específicas. Consistiam eles no seguinte:

a) Inicialidade pertinentemente à formação originária do ordenamento jurídico em grau de superioridade hierárquica.

É da essência da Constituição o promanar de um poder constituinte. As- sim sendo, o seu Texto é dotado de inicialidade em face de toda ordem jurídi- ca que se lhe segue. A Constituição fundamenta os demais níveis hierárquicos que compõem o ordenamento jurídico. Assim fazendo, ela muito naturalmen- te subordina estes níveis inferiores a uma interpretação que dê a justificada primazia à Lei Maior. Mas o inverso não pode ocorrer. A interpretação da Constituição, segundo as leis ordinárias, significa a perda completa da consis- tência constitucional. Ela estaria exposta à inteligência que legisladores subconstitucionais viessem a emprestar a seus conceitos.

De outra parte, sendo a Lei Suprema, a Constituição não encontra acima dela outros textos normativos que a vinculem. Daí esse caráter de inicialida- de, que do ângulo estritamente interpretativo impõe que seus termos e vocábulos sejam interpretados a partir dela mesma. Se se tratar de palavras de uso co- mum é este que deverá prevalecer. Se se tratar, contudo, de um termo técnico, o que se deve tomar em conta é toda a tradição existente em torno dele. O que não se pode é erigir uma fonte normativa qualquer como especialmente credenciada a fornecer-lhe o verdadeiro sentido.

Em síntese, pois, o que cumpre notar é a noção de auto-referência consti- tucional, pelo que se entende significar não poder a Constituição valer-se de parâmetros, critérios e princípios que não os nela mesmo substanciados.

b) Conteúdo marcantemente político, visto ser a Constituição o "estatu- to jurídico do fenômeno político" na feliz síntese conceitual de Canotilho.

Como vimos, a Constituição pode ser tida como "o estatuto jurídico do fenômeno político". Na regulação do poder reside, sem dúvida, o seu objeto principal. No entanto, não é fácil o disciplinar juridicamente a atividade políti- ca. Faz-se necessário incorporar ao Texto uma série de princípios que têm mais um caráter ideológico do que uma exata precisão jurídica. Assim acontece com a Federação, a República, a separação dos poderes, a democracia, a liberdade etc.

Portanto, embora estes termos encontrem-se jurisdicizados por força de fazerem parte do Texto Constitucional, ainda o intérprete há de lançar mão de elementos extra-sistemáticos hospedados muito mais na dinâmica dos fatos do que na estática da positivação formal.

Fala-se mesmo em uma sensibilidade metajurídica do intérprete voltada para o trabalho de permanente conciliação entre a ideologia vigente - subs- tante na alma coletiva - e aquela que transparece na expressão lingüística da norma produzida.

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Para esta tarefa mostra-se especialmente adequado o método histórico evolutivo, que é aquele que melhor favorece a captação do sentido do concei- to no momento da sua jurisdicização, assim como num de seus posteriores desdobramentos.

c) Estrutura de linguagem caracterizada pela síntese e coloquialidade. A Constituição se traduz em "Sumas de Princípios Gerais" (Ruy Barbo- sa). Ela é vazada em linguagem marcadamente lacônica. Este seu laconismo faz com que as regras constitucionais suscitem problemas hermenêuticos não encontráveis nos demais ramos jurídicos, ao menos com igual nível de dificuldade. Veja-se o que se dá com os diferentes graus de incidência factual conforme se esteja diante de uma norma com normatividade suficiente para incidir sobre os fatos ou se esteja diante de norma carecedora de uma legislação de in- tegração.

Outrossim, o caráter sintético das Constituições eleva o nível de abstra- ção de suas proposições, expressando as idéias matrizes da consciência jurí- dica nacional.

O efeito imediato desse fenômeno é o sentido de maior unidade de que se reveste a Constituição. Este fator, por sua vez, contra-indica uma interpretação isolada dos institutos, figuras e mandamentos dos seus diversos tipos de capí- tulos. Willoughby já aprendera esta realidade. Dizia ele:

"A Constituição corresponde a um todo lógico, onde cada provisão é parte integrante do conjunto, sendo assim logicamente adequado, senão imperati- vo, interpretar uma parte à luz das previsões de todas as demais partes" (in Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, Saraiva, p. 22).

O supramencionado laconismo rende ensejo a uma diferença que coube ser feita entre poderes explícitos e implícitos. A Lei Suprema volta-se precipua- mente para a indicação de fins e propósitos. Todavia, é dada a omitir-se quan- to à explicitação dos co-respectivos meios. Daí desde cedo ter-se feito certo que onde a Constituição menciona fins ela também defere os meios. Story foi um dos que por primeiro fez emergir esta doutrina. Este procedimento de extrair meios a partir de fins faz da hermenêutica constitucional um mecanis- mo permanente de uso da chamada interpretação extensiva. O apelo a esta técnica se faz tão mais necessário quanto se sabe que as Constituições nor- malmente são rígidas do ponto de vista da sua alterabilidade.

As normas constitucionais são como que envolvidas por uma camisa de força. Destarte, o intérprete se vê na contingência de descobrir para além da simples literalidade dos Textos o "para que e o para quem das suas pres- crições, de sorte a distender o fio da interpretação até os limites daqueles parâmetros sistemáticos.

O discurso coloquial da Constituição é voltado para todos os membros da sociedade política. Dissemos com Carlos Ayres Britto que:

"Instrumento inaugural de regulação das vivências coletivas, a Lei Supre- ma é redigida, em certa medida, à feição de cartilha de primeiras letras jurídi- cas, incorporando ao seu vocabulário aquelas palavras e expressões de uso e domínio comum. E a primeira voz do direito aos ouvidos do povo, seu principal endereçado normativo, compondo um discurso que será tanto mais recepcionado quanto se utilize de instrumental terminológico já conhecido. São palavras como "povo", "símbolos", 2capital", "silvícolas", "nação", "território", "guerra", "paz", "democracia", "liberdade", "desenvolvimento", "educação", "saúde", ou locuções do tipo "interesse público", "reputação ilibada", "bem comum", "justiça social", "mar territorial",

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"emissão de moeda", "função social", e tantas outras, a solicitar do intérprete, seguidas vezes, o emprego do senso comum" (Celso Bastos e Carlos Ayres Britto, Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, cit.).

Ainda mais, tratando-se de preceitos endereçados a toda comunidade e tendo por conteúdo empírico a mais dilargada atividade humana - diferente- mente, pois, das demais disciplinas jurídicas, que têm campos ou áreas parti- culares de incidência normativa - o intérprete há de mergulhar nas águas profundas e revoltas da história, da política, da economia, da geografia física e humana, da sociologia e da psicologia, além de outros ramos afins do conheci- mento científico, porque aí se alojam os mananciais em que se embebe a alma coletiva e se plasma o caráter do povo. Isto, resulta claro, sem perder de vista o referencial do direito posto, para que o intérprete não venha a substituir a vontade objetiva da norma pela sua vontade psicológica.

É neste sentido que Luis Carlos Sáchica doutrina que a interpretação da normatividade constitucional "impone, a más de la técnica jurídica, amplios conocimientos del derecho, una sensibilidad política, un hondo sentido histórico, una visión de futuro, un severo realismo, una postura humanista, una capacidad creadora y una vigorosa orientación ética no comunes" (El control de constitucionalidad, Bogotá, Ed. Temis, 1980, p. 5).

d) Predominância das chamadas "normas de estrutura", tendo por desti- natário habitual o próprio legislador ordinário.

Ainda que nos defrontemos com uma Constituição de condutas, não há dúvida que o núcleo das Constituições é formado por um conjunto de normas com caráter eminentemente organizatório, isto é: normas que conferem ou outorgam competências. Não fora assim, a Constituição não cumpriria o seu papel fundamental de estruturar o Estado.

Nada obstante isto, é bom notar que esta afetação ou alocação de compe- tências não vai somente no sentido de aquinhoar o Estado. Mas também apon- ta na direção de munir o indivíduo de prerrogativas oponíveis ao próprio Esta- do. Assim, quando falamos em predomínio de normas de estrutura ou organi- zatórias, não queremos nos referir apenas àquelas que constituem os órgãos que compõem o Estado, mas queremos nos reportar também às normas que investem competência aos indivíduos.

Estas normas estruturais se opõem àquelas que possuem a feição de impor comportamentos propriamente ditos.

Embora encontráveis também na Constituição, o são em muito menor número. Daí porque encontrarmos uma nítida diferença na leitura que se faça

da Constituição em cotejo como Código Civil, por exemplo. Neste vamos encontrar o predomínio de normas impondo comportamentos.

2. INTEGRAÇÃO

Quando por via de interpretação já não se consegue encontrar uma solu- ção normativa para uma dada hipótese concreta, surge a possibilidade da inte-

gração.

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Aliás, esta afirmação que fazemos não decorre do estrito direito positi- vo, mas sim de uma posição filosófica que assumimos perante ele. Em outras palavras: saber se existem ou não lacunas no direito é um problema não resol- vido. Os jusfilósofos, que partem da existência de uma norma implícita em todo o sistema, diriam o seguinte: tudo que não está proibido está permitido.

Ora, é fácil perceber-se que diante de uma regra desta natureza o ordena- mento jurídico tornar-se-ia onipresente, isto é: uma solução à qual não impor- ta o comportamento ou situação fenomênica: tudo que existisse ou aconteces- se cairia em uma das duas categorias jurídicas: uma, a composta das normas que formam o direito positivado, e outra resultante da existência de um prin- cípio independente de positivação jurídica, mas presente em todo ordenamento jurídico, que tornaria os comportamentos e as situações não contempladas permitidos juridicamente.

É lógico que não se ignora que na verdade existem preceitos normativos com caráter permissivo. O que se não nos afigura correto admitir é a existên- cia de uma permissão decorrente da mera postulação filosófica. Os autores que perfilham esta tese acabam sem dúvida por sonegar ao direito aquela plastici- dade, aquela mobilidade, aquela evolutividade de que ele necessita para amoldar os valores que encerra às novas situações surgidas das mutações do mundo real. Além do mais, o legislador, embora operando com a ferramenta da abs- tração, que lhe permite englobar em uma mesma norma uma multitude de situações concretas, o certo é que ele não consegue prever todas as situações reais que estariam a merecer uma solução jurídica. Poder-se-ia perguntar: mas quais seriam estas situações? A resposta é simples: são aquelas que, por força de uma proximidade com situações já contempladas pelo direito, assim como da ocorrência delas, de valores já encampados pela ordem jurídica, não po- dem ficar relegadas ao plano da irrelevância jurídica. O intérprete, o aplica- dor do direito, se dá conta de que para atender a um princípio de justiça é necessário estender até ela o campo do normado pelo direito positivo, embora se compenetre da inexistência de uma norma que se amolde perfeitamente à espécie. É por esta razão que consideramos o sistema jurídico como aberto.

Não é obviamente qualquer não-tratamento de um determinado assunto constitucional que faz surgir a lacuna a ser colmatada por via de integração. Esta só pode surgir naquelas hipóteses em que o próprio Texto Maior dá lugar a um vazio normativo, isto é: quando do contexto da lei fundamental se extrai que certas hipóteses deveriam ter sido reguladas, mas não foram. Não há pos- sibilidade de preenchê-las por via de interpretação, ainda que extensiva, dos preceitos existentes.

Outrossim é forçoso reconhecer que a Teoria Geral das Lacunas no direito sofre alguma refração quando se trata do direito constitucional. O que enseja a abertura de um item próprio.

2.1. Lacunas no Direito Constitucional

O que a doutrina por vezes se põe como indagação é se a Constituição em sentido formal comporta efetivamente lacunas. Em outras palavras: não haveria apenas nas Constituições situações juridicamente reguladas de forma expressa ou tácita e situações extraconstitucionais. Não seria, pela sua pró- pria natureza, a Constituição imune à analogia?

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Qualquer aparente incompleição sua não equivaleria a uma reserva de praxis política ou de revisão constitucional?

Loewenstein faz alusão a duas sortes de lacunas constitucionais: as desco- bertas e as ocultas. A descoberta se verifica quando o poder constituinte este- ve consciente da necessidade de uma regulação jurídico-constitucional, mas, por determinadas razões, preferiu não fazê-la.

A oculta se produz quando ao criar-se a Constituição não existia ou não se podia prever a necessidade de regular normativamente uma situação deter- minada. Cita como exemplo desta última a Emenda n. 22 da Constituição Fe- deral americana, que estabeleceu que ninguém poderá ser eleito presidente por mais de dois períodos.

Dá também como exemplo o funcionamento dos governos parlamentaristas, nos quais as Constituições captam tão-somente uma pequena parte das regras que efetivamente compõem a trama político-institucional nestes sistemas.

Na verdade, a Constituição não regula tudo aquilo que, em tese, dela poderia ser objeto. Pelo contrário, limita-se a rápidas pinceladas que afloram determinados assuntos, sem, no mais das vezes, exauri-los. A própria Constituição Federal pode fazer apelo a formas de integração, tais como: o costume cons- titucional, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, e prever a remissão do tema à lei ordinária.

Mesmo assim, esta trama normativa não constitui um sistema fechado. Jorge Miranda, de forma muito incisiva, averba: "Não há uma plenitude da ordem constitucional como não há uma plenitude da ordem jurídica em geral" (Manual de direito constitucional, t. 2, p. 234). Mas ele mesmo levanta dúvi- das quanto à possibilidade da existência de lacunas, não mais perante a ordem constitucional na sua mais lata extensão, mas sim perante a Constituição em sentido formal.

Em primeiro lugar, é preciso que se deixe bem claro o que se entende por lacuna constitucional. Para que esta exista, alguns pressupostos são necessários:

Primeiro que a situação obviamente não esteja prevista na Constituição.

Segundo, que exista uma outra situação análoga à anterior que torne a omissão relativamente à primeira insatisfatória. Isto é: nos cause uma sensa- ção de falta de razoabilidade.

E, finalmente, que este vazio não possa ser coberto pela via de interpretação, ainda que extensiva.

Canotilho fala que lacuna normativo-constitucional só existe quando se verifica uma incompletude, contrária ao "plano" de ordenação constitucional.

A nós se nos afigura que não existe razão para deixar-se de utilizar a integração analógica para a colmatação das lacunas constitucionais. No en- tanto, é preciso sempre ficar claro que se trata de uma efetiva lacuna e não de uma mera omissão constitucional, por vezes até desejada pelo constituinte. A analogia também só poderá servir em beneficio do indivíduo e não para favo- recer o Estado contra este. Um exemplo que pode ser dado é o da proteção constitucional à casa em que vivem as pessoas, que, por via de uma constru- ção integrativa, conduziu à proteção do próprio escritório do particular.

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3. INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO: REALIDADES LÓGICAS DISTINTAS

Interpretação e integração mantêm certos elementos de conexão, como o diz Canotilho: "Ambas são voltadas à obtenção do direito constitucional" (J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, p. 171).

Contudo, não se deve, como faz aquele mestre, caminhar muito no senti- do da relativização destas categorias. Se é certo, como ele o faz, afirmar as dificuldades existentes em distinguir uma interpretação extensiva de uma inte- gração analógica, ainda assim é forçoso reconhecer-se que estamos diante de realidades lógicas profundamente diferentes.

A interpretação transcorre dentro do âmbito normativo, vale dizer: tra- ta-se de extrair a significação do preceito normativo diante de uma hipótese por ele regulada.

Já com relação à integração o de que se cuida é de encontrar uma solu- ção normativa para uma hipótese que não se encontra regulada pela Lei Funda- mental.

Há uma nítida co-relação entre a idéia de lacuna normativo-constitucio- nal e a de incompletude, entendendo-se esta como aquele vazio que nos causa uma insatisfação.

Sentimos necessidade de que ele seja preenchido. Obviamente que esta regulação há de ser obtida a partir do próprio contexto normativo. É bem de ver que as lacunas de que ora está-se a tratar não se confundem com as omis- sões legislativas por nós já analisadas. Vale só notar que as omissões legislativas decorrem de situações previstas na Constituição, faltando-lhes uma imediata exeqUibilidade.

As omissões, outrossim, só podem ser declaradas naqueles países que as prevêem pelos órgãos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão.

As lacunas, por sua vez, são verificadas pelo intérprete e pelos órgãos de aplicação do direito.

O método mais utilizado para a colmatação das lacunas é a analogia. Esta consiste na aplicação de uma dada solução normativa para uma hipótese não regulamentada pela Constituição, mas que, em razão das suas finali- dades axiológico-significativas, devem merecer igual tratamento.

4. APLICAÇÃO

O direito constitucional, a exemplo do restante, é produzido com vistas à sua aplicação, é dizer: voltado à produção de efeitos práticos.

Ele é, pois, preordenado a enquadrar as hipóteses que disciplina sob o manto da sua eficácia. Em outras palavras, impõe aos fatos e comportamentos empíricos o mandamento previsto na norma. Todavia, esta capacidade de incidir imediatamente sobre os fatos regulados não é uma característica de todas as normas constitucionais. Muitas delas não ostentam tal virtude, o que significa dizer que não têm condições de incidir imediatamente sobre o real. Para que elas preencham suas finalidades demandam uma legislação intercalar, isto é: uma lei que se interpõe entre a norma constitucional e o fato empírico. Vê-se, pois, que a distinção é bem nítida. Algumas normas funcionam nos mesmos moldes do direito

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subconstitucional, colhendo diretamente os fatos que regu- lam, sendo passíveis de aplicação independentemente de lei intercalar. Tal tipo de regra batizamos na obra conjunta com Carlos Ayres Britto com o nome de "normas de aplicação". Nosso propósito foi o de evidenciar que se trata de normas com virtualidade de aplicação imediata e sem legislação intermediá- ria. Com isto pretendíamos também pôr em destaque a diferença que separa estas normas daquelas outras tidas por nós como de integração.

Embora este termo seja usado na doutrina para designar o processo de colmatação de lacunas, ainda assim afigurou-se-nos útil também para desig- nar este fenômeno de complementação vertical. Fica certo, pois, que a integração de que ora se cogita é aquela que se dá toda vez que uma lei integra o coman- do de uma norma constitucional para efeito de conferir-lhe plena aplicação.

Na ocasião fazíamos notar que a diferença entre umas e outras depende da forma pela qual vêm plasmadas no Texto Constitucional.

Como pessoalmente em nada alteramos nosso ponto de vista de então e, de outra parte, por respeito ao co-autor, preferimos transcrever o trecho onde versamos o assunto, cuidando apenas de atualizar as referências aos dispositi- vos constitucionais:

"Em verdade, a maior ou menor aptidão para atuar, para incidir sobre os fatos abstratamente descritos na hipótese da norma, de pende do modo como a própria norma regula a matéria de que se nutre. E falar, a possibilidade de plena incidência da norma está sempre condicionada à forma de regulação da respectiva matéria. Se esta é descrita em todos os seus elementos, é plasmada por inteiro quanto aos mandamentos e às conseqüências que lhe correspondem, no interior da norma formalmente posta, não há necessidade de intermédia le- gislação, porque o comando constitucional é bastante em si. Tem autonomia operativa e idoneidade suficiente para deflagrar todos os efeitos a que se preordena.

De revés, se a matéria que se põe como conteúdo da norma é deficiente- mente plasmada, de modo a que tal defeito de conformação intercorra por qualquer um dos seus elementos lógico-estruturais - que são a hipótese, o mandamento e a conseqüência - aí se torna necessária a expedição de um comando complementar da vontade constitucional. Dá-se, então, o reclamo de interposta lei, para suprir as insuficiências da norma, completar as suas prescrições e tornar sua incidência possível, em termos de plenitude eficacial".

Tomemos como exemplo o art. 4.o VII, da vigente Constituição Federal brasileira: "Art. 4.o A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: ... VII - solução pacífica dos confli- tos". Ver, ainda, o art. 100: "A exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apre- sentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim", e, por último, o art. 40, II: "O servidor será aposentado:

II - compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos propor- cionais ao tempo de serviço". "Tais normas, já se vê, conformam de modo sufi- ciente a matéria de que tratam. Contêm ou emitem um comando, quanto àquela matéria, bastante em si mesmo. O seu enunciado prescritivo é completo e não necessita, para atuar concretamente, da interposição de comandos complemen- tares. Dotam-se de aptidão suficiente para que se opere o fenômeno da subsunção dos fatos ocorrentes às respectivas hipóteses de incidência e,

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por isto, sua von- tade não carece de integração, a nível subconstitucional. De mera aplicação, pois, é a categoria jurídica de que se cogita, sob o prisma da incidência normativa."

Fixemo-nos, então, naquelas regras constitucionais, como a do art. 190: "A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional". Agora cuidamos de norma cuja matéria começa na Constituição, mas não termina nela. A matéria regulada não tem seus contor- nos definitivamente traçados, mas apenas esboçados. Há um comando nitida- mente parcial, demandando acabamento. Logo, é norma predisposta a uma integração intercalar. Integração que se veicula por lei subconstitucional, sem cujo comando complementar a vontade da Lei Maior não se cumpre cabalmente.

"Fica assentado, portanto, que as regras constitucionais não têm a mes- ma chance de produção de efeitos, porque nem todas ostentam os elementos para tanto exigíveis.

Esta, no entanto, é uma primeira aproximação conceitual do problema. Para que dele se tenha uma visão mais penetrante, clarificadora das suas amplas e múltiplas anfractuosidades, necessário se torna desdobrá-lo em novos e es- pecíficos enfoques. É o que faremos nos sucessivos parágrafos deste capítulo, até o retoque final do perfil de cada qual das duas categorias normativas" (Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 37).

Com relação às normas de integração, na aludida obra levamos a efeito uma distinção que se impunha entre elas.

Com efeito, era muito facilmente perceptível que a doutrina já se havia dado conta disto: de que o sentido da norma integradora poderia ser muito diferente. Em alguns casos, ela integra ou completa a norma constitucional para o efeito de ampliar-lhe a eficácia. Em outras hipóteses, à norma integradora cumpre o papel inverso, consistente em restringir a dimensão do direito asse- gurado pela Constituição. Pelas razões acima admitidas, pedimos venha para reproduzir o Texto original, onde se discriminavam as normas completáveis das normas restringíveis.

As normas que rotulamos como de integração têm por traço distintivo a abertura de espaço entre o seu desiderato e o efetivo desencadear dos seus efeitos. No seu interior, existe uma permanente tensão entre a predisposição para incidir e a efetiva concreção. Padecem de visceral imprecisão, ou defi- ciência instrumental, e se tornam, por si mesmas, inexeqUíveis em toda a sua potencialidade. Daí porque se coloca, entre elas e a sua real aplicação, outra norma integradora de sentido, de modo a surgir uma unidade de conteúdo entre as duas espécies normativas.

Esta visceral imprecisão, ou deficiência normativa, portanto, indica a existência de um vazio regratório que cumpre ser preenchido. Preenchimento que pode ser respeitante, quer aos fins, quer aos meios, ou, ainda, quanto à própria estrutura de linguagem da norma a integrar. De toda sorte, preenchimento que afeta o núcleo mandamental originário e que funde a vontade constitu- cional com a vontade ordinária, necessariamente.

A utilização de certas expressões lingUísticas, como "a lei regulará" ou "a lei disporá", ou, ainda, "na forma da lei", deixa de logo claro que a vontade constitucional não está integralmente composta. A matéria normada não ga- nhou definitividade em seu perfil. Ela reclama a superveniência de uma norma- ção posterior que venha a delimitá-la na sua

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exata extensão, quer para alarga- la, quer para restringi-la. O que apresentam em comum, tais espécies normati- vas, é o fato de necessitarem ou, no mínimo, tolerarem uma legislação subal- terna que lhes componha o significado, sem que isto se traduza em inconstitu- cionalidade. E que a expressa menção à lei inferior integradora retira desta última a pecha do vício supremo em que ocorreria, não fora a referência constitucional.

Nesta categoria de normas que demandam integração, podemos divisar duas subclasses. Uma primeira, que rotularemos de normas completaveis, que se caracterizam pela circunstância de demandar um aditamento ao seu campo de regulação, ou ao modo como plasmam a matéria sobre que incidem. Sua natureza esquálida ostenta sempre uma lacuna quanto a um ou alguns dos elementos formadores de uma norma jurídica completa. Donde chamarmos de completáveis a esses preceptivos constitucionais, cuja vontade é passível de acréscimo ou complementação por conduto de regra ordinária.

É ocaso típico do art. 93 da Constituição brasileira de 1988, sob a seguinte roupagem vocabular: "Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: ...".

Já a segunda subclasse compõe-se de normas que, ao reverso das anteriores, são passíveis de restrição ou redução de seu campo de incidência. Noutro falar, normas que admitem a constrição dos seus efeitos originários, por via de legislação inferior. Por tal razão, chamaremos de restringíveis as normas dessa última categoria, individuadas dentro do gênero em que se ubiquam (gênero das normas expressamente demandantes de integração ulterior).

Se, na categoria das normas completáveis, estávamos em face de um fenômeno de deficiência regratória, isto é, a formulação jurídica ficou aquém do propósito por ela mesma lançado, deixando em branco um espaço a ser ocupado pelas leis de integração, agora, no âmbito das normas restringíveis, defrontamo-nos com um fenômeno de exuberância, ou, se quisermos, supera- bundância normativa, matizado pela circunstância de a regra constitucional assegurar um direito de maior extensão do que aquele efetivamente colimado. Tudo se passa como se o constituinte não houvesse querido internar-se pelas diversas exceções a serem aportadas ao bem jurídico ou ao princípio com cujo asseguramento se preocupou, transferindo tal mister para o legislador comum. O exemplo do art. 5.o, XIII, da Constituição Federal de 1988 é bastante elucidativo: "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". O fim da norma é claro; cuida de garantir o livre exercício de qualquer trabalho ou profissão. Ressente-se, contudo, da necessidade de delimitar a sua amplitude. Eis porque preferiu o constituinte relegar a matéria ao trato infraconstitucional, acrescentando a cláusula "atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". En- tão, a garantia constitucional, que no momento da edição da Lei Maior é qua- se absoluta, num segundo instante, quando da aparição da lei menor, passa a admitir contenção no seu raio de alcance. E, à medida que as leis forem crian- do hipóteses de restrição ao livre exercício de qualquer trabalho ou ofício, menor vai ficando a extensão da liberdade afirmada pelo princípio constitucional.

Até aqui temos estudado a aplicação das normas constitucionais toman- do como base um estudo da sua eficácia. Mas cumpre notar, outrossim, que os autores estudam também, debaixo da rubrica ora em exame, a entrada em vigor da Constituição, os problemas daí resultantes, sobretudo ante a Consti- tuição anterior e a própria aplicação da lei constitucional no espaço.

É o que também faremos abrindo tópicos específicos.

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4.1. Aplicação das Normas Constitucionais no Tempo

4.1.1. A Nova Constituição e o Direito Constitucional Anterior

A superveniência de uma nova Constituição desaloja por completo a anterior. Isto se dá em virtude do seu próprio caráter inicial e originário. É dizer: a Constituição é a fonte geradora de toda a ordem jurídica, que dela extrai seu fundamento de validade.

Em assim sendo é inconcebível que ela possa conviver com normas da Constituição anterior que continuassem a valer por sua força própria.

Em termos práticos a nova Constituição revoga a anterior. Dizemos em termos práticos porque do ponto de vista estritamente teórico é bem de ver que não existe uma estrita revogação, porque este é um instituto preordenado a funcionar dentro de uma ordem jurídica vigente. A revogação sempre en- contra respaldo em outra norma jurídica. A substituição de uma Constituição por outra se dá independentemente de norma jurídica.

Decorre, como vimos, da própria essência e da própria natureza da nova Constituição. E bem de ver ainda que esta perda de eficácia da Constituição anterior é total, o que significa dizer que ela se dá em bloco. Não são apenas prescrições isoladas ou avulsas da Constituição anterior que perdem vigência, mas sim o seu conjunto, independentemente de estarem ou não conformes com a nova Lei Maior.

Cumpre excepcionar aqui a situação criada pela introdução de reformas ou Emendas à Constituição atual. Estas, nada obstante a sua força própria de direito constitucional, não aniquilam ou colocam em derrocada todo o Texto, mas tão-somente aqueles preceitos que recebem o influxo da nova norma. Trata-se, portanto, de uma revisão que se dá sempre com caráter específico, sem embargo, é óbvio, de poder, por via indireta, interferir na interpretação sistemática de outros preceitos.

Há alguns autores que admitem uma sobrevida de algumas normas da Cons- tituição anterior que não estejam em contrariedade com a nova. Esta sobrevivência se daria não na qualidade de normas constitucionais, mas sim de normas ordi- nárias. Haveria, pois, uma autêntica transmudação da regra que, de constitucio- nal no ordenamento jurídico caduco, passaria a subconstitucional no atual.

É fácil notar que, mesmo aqueles que admitem a existência deste instituto, o fazem com uma série de ressalvas, uma vez que está muito mais de acordo com a maneira natural de atuar o direito o soterrar de forma absoluta e defini- tiva as normas da Constituição anterior. Jorge Miranda, por exemplo, exige que haja norma constitucional que a preveja. Diz ele que a desconstitucionalização não pode estribar-se em mera concepção teórica ou doutrinária.

Sem dúvida que, ao admitir-se esta previsão constitucional, a desconstitu- cionalização se torna possível em razão quase que, diríamos, da própria alteração de natureza que o instituto sofre. É lógico que, com fundamento na nova or- dem jurídica, todo e qualquer preceito pode vigorar, inclusive aqueles que constassem da Constituição anterior.

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Certamente é por reconhecer esta razão que o próprio Jorge Miranda ameniza tal exigência para admitir que a norma contempladora da desconstitucio- nalização não necessitará ser norma expressa ou norma constitucional for- mal, bastando tratar-se de norma de origem consuetudinária. Cita como exemplo que foi através do costume que se tornou possível explicarem-se os vários casos havidos na França no século XIX, atenuando a instabilidade jurídico-política produzida por sucessivas Constituições e revoluções.

Como já observado, a nova Constituição revoga a anterior. É da própria índole das Constituições o não admitirem senão uma como válida, em cada momento.

Se o poder constituinte teve êxito em substituir a ordem constitucional anterior é porque colocou em seu lugar uma nova ordem constitucional. Nada da Constituição anterior sobrevive. Há uma autêntica revogação total, daí por- que tornar-se completamente descabido o indagar-se de forma isolada acerca da compatibilidade ou não de qualquer norma constitucional anterior, quer com a correspondente norma constitucional nova, quer com a nova Constituição no seu conjunto. Basta a sua inserção na Constituição revogada, para que ela co-partilhe necessariamente do seu destino, qual seja: a perda irremediável da eficácia.

O mesmo não se dá quando o direito constitucional anterior é substituí- do por uma emenda à Constituição editada com fundamento no poder reformador.

Nestes casos, a emenda constitucional vai modificar especificamente aquela ou aquelas normas que se contraponham a ela sem se deixar de ter em conta também a sua repercussão sistemática, no todo constitucional.

A rigor a Constituição nova não recepciona normas da Constituição anterior. Há, como se viu mais acima, uma substituição integral de um Texto por outro, e ainda que uma ou outra norma do novo Texto reproduza norma do Texto anterior, trata-se de mera coincidência sem nenhum alcance jurídico, visto que o fundamento de validade de uma e o de outra são diferentes. Há que se consignar contudo o caso da recepção expressa em que a nova Constituição faz referência a esta ou àquela norma da Constituição anterior para efeito de manter-lhe a eficácia.

Estas normas assim recepcionadas passam a gozar o destino daquelas que as recepcionaram e, se revogadas estas, também cessam de vigorar as primeiras.

4.1.2. Direito Constitucional Novo e Direito Ordinário Anterior

Uma Constituição nova instaura um novo ordenamento jurídico. Obser- va-se, porém, que a legislação ordinária comum continua a ser aplicada, como se nenhuma transformação houvesse, com exceção das leis contrárias à nova Constituição. Costuma-se dizer que as leis anteriores continuam válidas ou em vigor. Muitas vezes isto é previsto na Constituição nova, mas, ainda que o texto seja omisso, ninguém contesta o princípio. Como explicar a concordân- cia se, afinal de contas, o princípio parece contradizer a verdade jurídica se- gundo a qual todas as leis ordinárias derivam a sua validade da própria Cons- tituição? Kelsen observa que há imprecisão da linguagem comum, quando diz que as leis ordinárias continuam válidas. De fato, elas perdem o suporte de validade que lhes dava a Constituição anterior. Entretanto, ao mesmo tempo, elas recebem novo suporte, novo apoio, expresso ou tácito, da Constituição nova. Este é o fenômeno da recepção, similar à recepção do direito romano na Europa. Trata-se de um processo abreviado de criação de normas jurídicas, pelo

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qual a nova Constituição adota as leis já existentes, com ela compatíveis, dando-lhes validade, e assim evita o trabalho quase impossível de elaborar uma nova legislação de um dia para o outro. Portanto, a nova lei não é idêntica à lei anterior; ambas têm o mesmo conteúdo, mas a nova lei tem seu funda- mento na nova Constituição; a razão de sua validade é, então, diferente.

Do exposto se constata que há uma grande diferença entre a lei constitu- cional anterior e a lei ordinária também anterior. Com a entrada em vigor da Constituição, cessa a eficácia da norma constitucional, o mesmo não se dando com a legislação ordinária anterior, a qual não cessa de viger, embora o novo fundamento de validade venha informado pelos princípios materiais da nova Constituição. O único obstáculo a transpor é não ser contrária à nova Consti- tuição. Dá-se portanto uma novação, o que significa que as normas ordinárias são recepcionadas pela nova ordem constitucional e submetidas a um novo fundamento de validade.

Na mesma linha de Jorge Miranda entendemos que esta idéia de novação apresenta três corolários principais:

Em primeiro lugar todos os princípios gerais de quaisquer ramos do direito passam a ser aqueles constantes da nova Constituição.

Em segundo lugar todos os demais dados legais e regulamentares tem de ser reinterpretados à luz da nova Constituição, a fim de se porem conformes com as suas normas e princípios.

Em terceiro lugar, as normas contrárias à Constituição não são recepcio- nadas, mesmo que sejam contrárias apenas a normas programáticas e não ofendam a nenhuma preceptiva.

Com relação à revisão constitucional há de observar-se o seguinte: a introdução de uma emenda à Constituição não gera novação com relação as normas que extraiam sua validade do Texto anterior e agora passam a fazê-lo do Texto emendado.

Mais delicado problema se coloca quando a norma subconstitucional apresenta algum vício diante da norma constitucional então em vigor.

Com a substituição desta, desaparece a relação de antinomia. Alguns autores preferem achar que continua a haver o vício de inconstitucionalidade, mesmo debaixo da situação gerada pela emenda. Pensamos contrariamente. A inconstitucionalidade há de ser aferida a partir de uma relação atual de incom- patibilidade entre a lei e a Constituição.

A única exigência para que o direito ordinário anterior sobreviva debai- xo da nova Constituição é que não mantenha com ela nenhuma contrariedade, não importando que a mantivesse com a anterior, quer do ponto de vista mate- rial, quer formal. Não que a nova Constituição esteja a convalidar vicios ante- riores. Ela simplesmente dispõe ex novo, O que se quer dizer é que o fato de uma norma ter sido aprovada por um ato inferior à lei, mas que sob o regime antigo tinha força de lei, não é óbice para que continue em vigor debaixo da Constituição nova que exija lei formal para tanto.

No nosso direito até hoje temos em vigor atos normativos com força de lei, embora tivessem sido aprovados à época (período imediatamente anterior à constitucionalização de 1934) por meros decretos.

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De outra parte cabe aqui uma breve referência à chamada inconstitucio- nalidade superveniente. Esta se dará toda vez que uma lei constitucional, quando de sua aprovação, tornar-se, em virtude de emenda à Constituição, in- constitucional.

Nada obstante esta tese da inconstitucionalidade superveniente ter um bom agasalho na doutrina, ainda assim continuamos a perfilhar o entendimento daqueles que vêem sempre na inconstitucionalidade um vício contemporâneo ao nascimento da lei. Quando a relação de incompatibilidade decorre de fato- res outros, posteriores ao momento da elaboração legislativa, afigura-se-nos mais adequado falar em perda da eficácia ou em caducidade da norma. É bem de ver que o interesse prático nesta discussão só existe naqueles países que têm regimes próprios para estas diversas figuras. Nos casos em que o mesmo juiz ou o mesmo Tribunal pode, segundo o mesmo procedimento, declarar caduca, extinta, revogada ou inconstitucional a lei, a discussão perde por cer- to qualquer significação prática.

4.2. Aplicação das Normas Constitucionais no Espaço

As normas do ordenamento jurídico tendem a ter o seu âmbito espacial de aplicação coincidente com os limites do território do Estado. Dissemos tendem porque esta correlação não é absoluta. Não poucas vezes os Estados legislam para fatos e pessoas no estrangeiro, assim como, de outra parte, não recusam a aplicação do direito estrangeiro no seu próprio território. A chama- da territorialidade da ordem jurídica de cada Estado tem plena significação no que diz respeito à execução de medidas coercitivas. Com efeito, nenhum Es- tado tolera que outro devasse-lhe as fronteiras a fim de, por força própria, praticar atos de coerção em seu território. São múltiplas as situações hoje passíveis de serem conhecidas pela jurisdição de um país apenas, assim como terem diversas leis passíveis de serem aplicáveis. Isto dá lugar a um conflito de leis que é dirimido pelo direito internacional privado.

É o direito interno de cada país que dispõe sobre quais as hipóteses em que o direito estrangeiro pode ser aplicado e quais aquelas outras em que inevitavelmente tem o Estado de dar primazia à sua própria legislação.

O problema que se põe aqui, do ângulo estritamente constitucional, é o de saber se um juiz ou Tribunal pode aplicar direito estrangeiro que não esteja em compatibilidade com a Constituição.

A resposta correta quer-nos parecer que seja a negativa. Os Estados, ao abrirem-se para o direito estrangeiro, permitindo em conseqüência que crité- rios e conveniências próprios de países alienígenas penetrem no seu próprio terreno jurídico, certamente não terão querido que por esta via se torne possí- vel a aplicação de um conteúdo normativo que, se inserido em uma lei nacio- nal, haveria de torná-la inconstitucional.

CAPÍTULO IV CONSTITUIÇÕES ORGÂNICAS E IDEOLÓGICAS

SUMÁRIO: 1. Normas programáticas. 1.1. A crise das normas programáticas. 2. Graus de determinabilidade das normas constitucionais. 3. O cotejo entre as normas-fins e os princípios. 4. Relação da norma programática com os seus destinatários. 5. Até que ponto é lícito a uma Constituição ser mais diretiva e menos organizacional?

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A Constituição é um conjunto de normas fundamentais dotado de supre- macia na ordem jurídica. Encarecem-se aí os seus dois elementos principais. De um lado, o caráter estrutural das normas constitucionais, o que vale dizer que nelas deverão estar vertidas todas as vigas mestras da organização do Estado e da sociedade. A Constituição não é o lugar do miúdo, do conjuntural, do efêmero, do acessório e do irrelevante. Adversamente, é a sede natural do permanente, do importante, do principal e do respeitante à estrutura. De outro lado, está também presente o ingrediente formal, é dizer, a posição privile- giada e suprema de que gozam as normas constitucionais: encabeçam a ordem jurídica, subordinando a si todas as demais leis e atos jurídicos, que hão de estar conformes à Constituição, ou, ao menos, não contraditá-la.

1. Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, p. 72: "Pero casi tan esencial es que la Constitución pueda adaptarse a un cambio de estas circunstancias. Si prescindimos de las disposiciones puramente técnico-organizativas, la Constitución debe limitarse, en la medida de lo posible, a unos pocos principios elementales cuya caracterización detallada, teniendo en cuenta una realidad social y política que precisamente hoy dia se modifica cada vez con mayor celeridad, pueda tener lugar conti- nuamente, si bien teniendo en consideración dichos principios esenciales; - el "amarre a la Constitución" (verfassungskraftige Verankerung), como gusta decir, de cualesquiera intereses par- ticulares o coyunturales hace, por el contrario, inevitables las modificaciones frecuentes de la Constitución, con la consiguiente depreciación de su fuerza normativa".

Nada obstante estas características comuns, uma análise mais percuciente do Texto Constitucional revela-nos que os preceitos dele constantes voltam-se para duas finalidades ou propósitos bem distintos. Identificam-se aquelas nor- mas cuja razão de ser exaure-se em atribuir competências, ou, se se preferir, a alocar direitos, repartindo-os basicamente entre o Estado e o indivíduo, isolado ou grupalmente considerado. Nessa categoria alojam-se todas as normas definidoras de poderes ou deveres. Têm, sem dúvida, um cunho organizacio- nal, porque no mais das vezes faz-se necessário criar o órgão a que se comete a faculdade ou competência. Inicialmente, as Constituições compunham-se exclusivamente de normas dessa espécie. Com o andar dos tempos, sobretudo em pleno século XX, é que, aqueles documentos deixam de ser meros "instrumen- tos de governo" para adquirirem uma nova dimensão.

Esta lhes é conferida tanto por preceitos que encarnam autênticos princípios ou diretrizes, assim como pelas normas-fins, ou normas-tarefas, que enclausuram dentro de si programas a serem cumpridos. Daí serem também conhecidas como normas programáticas. E que as Constituições já não se contentam em espelhar as realidades atuais. Não são um mero retrato das relações existentes atualmente na sociedade. Não se satisfazem em ditar ao legislador o âmbito de sua competência. Não se resignam à sua dimensão estática.

Querem ser - e efetivamente o são - objetos úteis na antecipação do futuro. Almejam um papel conformador do porvir. Procuram fornecer parâmetros para a atuação do Estado, de molde a que os fins fundamentais da organização política já estejam definidos na Lei Maior. É, sem dúvida, uma tentativa de subjugar a política numa intensidade que não ousaram as primeiras Consti- tuições. Surge para o legislador o dever de legiferar, e não apenas a competência para tanto. De tudo emerge uma Constituição denominada diretiva ou

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diri- gente, com o que se pretende significar este seu caráter de elemento consubs- tanciador de diretrizes, rumos e vetores a serem impressos na ação estatal.

Esta maior ambição das normas principiológicas e das programáticas, caracterizada pela sua dimensão prospectiva, não é atingida sem o pagamento de um pesado preço, consistente na perda de densidade semântica. Para pode- rem projetar-se sobre o futuro elas vêem-se obrigadas à adoção de uma fraseolo- gia, de uma compostura terminológica, que as tornam inaptas a gerar os efei- tos normalmente extraíveis de qualquer regra jurídica.

As considerações até aqui expostas deixam no ar importantes proble- mas, tais como:

a) Como o direito constitucional visualiza essa distinção de eficácia entre as suas normas?

b) Até que ponto é lícito a uma Constituição fazer-se mais diretiva e menos organizacional?

c) Admitindo-se a inevitabilidade da Constituição dirigente, como evitar-se o risco da perda de credibilidade do Texto Constitucional?

d) No caso do Brasil, que solução melhor caberia ao problema das nor- mas programáticas?

Tentaremos, nas páginas subseqüentes, orientar este trabalho no sentido de que possa oferecer o nosso ponto de vista acerca desses temas, enfatizar a sua extrema importância entre nós.

A feitura de uma nova Constituição não pode, por si só, significar mo- tivo para grande júbilo, num país marcado pelo que poderíamos chamar de falta de "vontade constitucional", como tivemos oportunidade de ver. Com isso queremos significar que as crises jurídico-constitucionais não resultam, entre nós, a rigor, de imperfeições técnicas da Lei Maior, que poderiam ser supridas por uma Constituinte, digamos, mais competente. Elas surgem, na verdade, de uma falta de correspondência entre o descrito e prescrito pela Lei Maior e o concretizado ou materializado no mundo empírico. Diríamos que a Constituição não tem presa sobre o real.

São mundos que caminham divorciados, sem se permearem, sem se vivifi- carem reciprocamente. De um lado, o universo normativo constitucional, pre- nhe de direitos fundamentais, de princípios generosos e grandiosos, de programas igualmente magnânimos, humanitários e plenos de benesses sociais. De ou- tro, o mundo das concretitudes, eivado de atentados de toda a sorte a Lei das Leis, quer por meio de golpes desencapuchados que cinicamente a deitam por terra, quer por meio de inconstitucionalidades praticadas a varejo e à sorrelfa, autênticos pecadilhos que minam e corroem o edifício constitucional.

2. Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, cit., p. 72: "Cuanto mejor consigue una Constitución, en base a su contenido, corresponder al que manifiesta la disposición individual del presente, con mayor seguridad podrá desarrollar ella su fuerza normativa.

Como debe resultar evidente tras todo lo hasta ahora dicho, la más esencial de las condiciones de la fuerza normativa de la Constitución es que incorpore no solamente las

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circunstancias sociales, políticas o económicas sino, sobre todo, también la situación espiritual de su epoca, que venga aprobada y apoyada por la conciencia general en tanto que orden adecuado y justo".

Karl Lowenstein, Teoría de la Constitución, p. 218: "El carácter normativo de una Constitución no debe ser tomado como un hecho dado y sobreentendido, sino que cada caso deberá ser confirmado por la práctica. Una Constitución podrá ser juridicamente válida pero si la dinámica del proceso político no se adapta a sus normas, la Constitución carece de realidad existencial. En este caso, cabe calificar la dicha Constitución de nominal. Esta situación no deberá, sin embargo, ser confundida con la conocida manifestación de una práctica constitucional diferente del texto constitucional. Al princi- pio era la palabra, pero ésta cambia su significación en cuanto toma contacto con la realidad. Las Constituciones no cambian tan sólo a travês de enmiendas constitucionales formales, sino que están sometidas, quizás en mayor grado, a la metamorfosis imperceptible que sufre toda norma establecida por efecto del ambiente político y de las costumbres. Lo que la Constitución nominal implica es que los presupuestos sociales y económicos existentes - por ejemplo, la ausencia de educación en gene- ral y, en particular, de educación política, la inexistencia de una clase media independiente y otros factores - en el momento actual operan contra una concordancia absoluta entre las normas constitucionales y las exigencias del proceso del poder. La situación de hecho impide, o no permite por ahora, la completa integración de las normas constitucionales en la dinámica de la vida política.

Probablemente, la decisión política que condujo a promulgar la Constitución, o este tipo de Constitución, fue prematura. La esperanza, sin embargo persiste, dada la buena voluntad de los detentadores y los destinatarios del poder, de que tarde o temprano la realidad del proceso del poder corresponderá al modelo establecido en la Constitución. La función primaria de la Constitución nominal es educativa; su objetivo es, en un futuro más o menos lejano, convertirse en una Constitución normativa y determinar realmente la dinámica del proceso del poder en lugar de estar sometida ela. Y para continuar con nuestro símil: el traje cuelga durante cierto tiempo en el armario y será puesto cuando el cuerpo nacional haya crecido".

Somos uma nação carente de vivências constitucionais. Aos interesses agasalhados e protegidos pela Lei Fundamental não correspondem iguais or- ganizações e mobilizações dos beneficiados que pudessem pressionar o cum- primento da Constituição. Pode parecer estranho que haja necessidade de exercer pressão nesse sentido. Todavia, é assim que se passam as coisas. A Magna Carta não se cumpre espontaneamente. Sua interpretação, entregue em última instância ao Poder Judiciário, não pode permanecer como questão reclusa, a ser resolvida, esforçada e dignamente embora, dentro dos gabinetes e das salas de juízes e Tribunais. É necessário tanto que o povo acompanhe tal atividade, expondo o seu sentir profundo, como também que o Judiciário se abra a esse fremir nacional, fazendo de si o seu grande intérprete.

Nisto reside o segredo das Constituições duradouras: na possibilidade de acomodarem-se aos anseios populares pela via da interpretação, que finda por dispensar as alterações freqüentes através de emenda, que em nada engrande- cem a socialidade da Lei Maior. Em síntese, há necessidade de comprometer-se o povo com a realidade constitucional, invocando-se a presença conivente do Judiciário como aquele apto a vocalizar a vontade da Lei Maior, influída pelo clamor popular.

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1. NORMAS PROGRAMÁTICAS

Nenhuma norma jurídica coloca tantos problemas relativos à sua vigên- cia e eficácia quanto as constitucionais. É que há um fosso mais profundo entre as disposições inseridas na Constituição e as realidades concretas, que no comum do direito.

A primeira razão disso é que há uma - como que - resistência à obe- diência da Constituição, por disciplinar ela principalmente o fenômeno políti- co, difícil de ser enquadrado dentro de parâmetros jurídicos. Suas sanções nem sempre são passíveis de serem aplicadas por envolverem, muitas vezes, os próprios poderes do Estado.

Há quem já identificasse a Constituição como norma desprovida de san- ção. Embora isso não seja verdadeiro, é forçoso reconhecer-se a dificuldade muitas vezes encontrada de concretizar a sanção contemplada na Lei Maior.

Este é um fenômeno próprio a todos os países. Não se encontra nenhum em que haja uma coincidência perfeita entre o que está previsto na Constitui- ção formal e aquilo que é efetivamente vivenciado pelo seu Governo, pela sociedade e suas instituições. Daí, inclusive, o designar-se esta segunda rea- lidade pelo nome de Constituição material, que seria, assim, o conjunto de formas concretas de vivência constitucional.

Estas considerações dão lugar a um estudo específico no campo da socio- logia, uma vez que sua compreensão não se cifra a realidades do mundo jurídico-normativo, mas toma em linha de conta os efetivos comportamentos sociais. A sociologia jurídica cabe, pois, esta área das ciências sociais, delimitada pelo campo de confrontação entre o fenômeno jurídico e o sociológico.

A partir do ângulo do direito, o que mais interessa é a chamada ineficá- cia jurídica que, diversamente da anterior, tem o seu campo de incidência adstrito à própria área do fenômeno normativo.

A ineficácia normativa resulta da inaplicação das normas jurídicas em razão, exclusivamente, da sua estrutura lógica, da carência de elementos pró- prios às regras jurídicas em geral e, inclusive, do próprio assunto tratado. É curioso notar que este fenômeno foi tão reconhecido pelos primeiros estudio- sos do direito constitucional que a ineficácia foi transformada em regra. É dizer, viu-se na Constituição um conjunto de preceitos, regras, proclamações e diretrizes que não seriam imediatamente aplicáveis. Ficariam na dependên- cia de uma legislação ordinária posterior que lhes fosse conferindo, gradativa- mente, maior aplicabilidade.

É por isso que foi necessário elencar quais os dispositivos constitucio- nais que seriam imediatamente aplicáveis. E, logo, duas sortes deles merece- ram menção dos autores; aqueles que contivessem vedações ou proibições e os direitos individuais que não fizessem expressa menção à legislação ordiná- ria. No primeiro caso, o que impressionou foi o fato de as proibições não deman- darem qualquer legislação posterior, reunindo condições, pois, para sua auto- executoriedade. No que diz respeito aos direitos individuais, o que se notou foi que, se relegada a sua eficácia para um momento posterior à edição da lei ordi- nária, todo o arcabouço das garantias constitucionais estaria em derrocada.

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Já se vai longe, contudo, esse tempo. Hoje não se admite que a ineficá- cia seja o timbre da Constituição. Pelo contrário, o que se reconhece é que todas as normas constitucionais têm um mínimo de eficácia. O que se conti- nua a admitir, todavia, são graus diferentes de aplicabilidade.

3. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional, p. 132: "Marcando uma decidida ruptura em relação à doutrina clássica, pode e deve dizer-se que hoje não há normas Constitucio- nais programáticas. É claro que continuam a existir normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que "impõem uma actividade" e "dirigem" materialmente a concretização constitucional. Mas o sentido destas normas não é o que lhes assinalava tradicionalmente a doutrina: "simples progra- mas", "exortações morais", "declarações", "sentenças políticas", "aforismos políticos", "promessas", "apelos ao legislador", "programas futuros", juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às "normas programáticas" é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição. Mais do que isso: a eventual mediação da instância legiferante na concretização das normas programáticas não significa a dependência deste tipo de normas da interpositio do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade da intervenção dos órgãos legiferantes. Concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente:

(1) Vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional).

(2) Como directivas materiais permanentes, elas vinculam positivamente todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição).

(3) Como limites negativos, justificam a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam.

Em virtude da eficácia vinculativa reconhecida às "normas programáticas", deve concluir-se que não tem qualquer sentido a oposição estabelecida pela doutrina alemã de Weimar entre "norma jurídica actual" e "norma programática" (aktuelle Rechtsnorm-Programmsatz): todas as normas são actuais, isto é, têm uma força normativa independente do acto de transformação legislativa. Não há, pois, na Constituição, "simples declarações (sejam oportunas ou inoportunas, felizes ou desafortu- nadas, precisas ou indeterminadas) a que não deva dar valor normativo, e só o seu conteúdo concre- to poderá determinar em cada caso o alcance específico do dito valor" (Garcia de Enterría)".

Rolando Pina, Cláusulas constitucionales operativas y programáticas, Astrea, p. 109: "Cuando la teoría sobre cláusulas constitucionales programáticas pretende que faltando ley expresamente reglamentaria de la cláusula ésta no tiene vigencia, desarrolla una estrategia mal expresada de no vigencia ya que, para justificar una orientación de política legislativa, se pretende vulnerar la má- xima jerarquía normativa de la Constitución.

El concepto de cláusula programática vulnera principios jurídicos constitucionales elabora- dos por la Corte Suprema de Justicia de la Nación, y al pretender sustraer del control de constitucionalidad a la cláusula programática, anula una función especifica de la normatividad concediéndola al Poder Legislativo; lo que atenta contra la independencia del Poder Judicial.

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Al convertirse en un argumento dogmático de no vigencia y - por tanto - de no interpretación judicial, impide que los jueces y las partes deban ponderar los intereses contradictorios del caso por las variaciones que explicitan los principios constitucionales; lo que atenta contra un perma- nente repensar valorativo de la realidad social, que es la única actitud mental que conduce a la consolidación de una racional regulación de la conducta social.

Al no depender la vigencia de la cláusula constitucional de ley dictada al efecto, cuando la Constitución encarga al Poder Legislativo la sanción de determinadas leyes, si dentro de un plazo razonable o del estipulado por la Constitución el legislador no aplicó la Constitución, su mora implica violación al mandato constitucional. Dentro de las circunstancias del caso esa mora puede ser declarada inconstitucional y la Corte Suprema puede ajustar la soiución del caso al precepto jurídico constitucional no aplicado por el legislador, sin perjuicio de que éste ejerza sus atribuciones constitucionales en el futuro".

Rolando Pina, Cláusulas constitucionales operativas y programáticas, cit., p. 24: "La teoría sobre cláusulas constitucionales programáticas pretende que faltando ley especialmente reglamentaria de la cláusula, ésta no tiene vigencia.

Si tomáramos como modelo de opinión en este sentido lo dicho en el prefacio del Tratado de derecho del trabajo, tendríamos que la doctrina de algunos autores - con especial referencia al derecho del trabajo - considera que "la Constituyente del ano 1957 ha introducido en la Carta Constitucional algunas reformas básicas que conciernen a las relaciones laborales y a la actividad sindical; reformas que no se han traducido aún en leyes, ni se puede prever si eso ocurrirá, nicuando y con cuáles alcances... Cabe, pues, preguntarse hasta que punto sus cláusulas pueden ser tenidas en cuenta en una construcción de alcance general.

Esta opinión es compartida por prestigiosos autores de la especialidad, tal como se verá más adelante al resenar ponencias del Cuarto Congreso Nacional de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social, y al citar posiciones personales.

Estamos en contra de esta calificación de ciertas cláusulas constitucionales porque entendemos que es una estrategia de no vigencia de cláusulas constitucionales mas expresada, ya que para justifi- car una orientación de política legislativa se pretende vulnerar la máxima jerarquía normativa de la cláusula por medio de un argumento - la cláusula sólo tiene vigencia cuando se dicte ley al efecto que es violatorio de principios jurídicos básicos y, en última instancia, que implica conceder cierto grado de poder constituyente al Poder Legislativo.

Estamos en contra del medio elegido en la estrategia de política legislativa. No pretendemos oponermos a la existencia de opiniones que tengan esa dirección.

Por el análisis de los principios jurídicos constitucionales intentamos demonstrar, tal como se hizo al analizar el caso Ratto, que la Corte no necesita del argumento dogmático de "cláusula programática" para definir el grado de vigencia de la cláusula constitucional".

Eros Grau, A Constituição brasileira e as normas programáticas, Revista de Direito Constitucional e Ciência Política, Forense, 4:45: "As contestações habitualmente apostas, entre nós, à construção desenvolvida pelo Tribunal Constitucional da República

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Federal da Alemanha são fundamentalmente duas: seria tal construção incompatível com o princípio da separação dos poderes (a); não seria possível a sua transposição para o âmbito do direito positivo brasileiro (b).

A primeira dessas contestações é de toda insubsistente, visto que conduz necessariamente à inadmissibilidade do exercício, pelo Poder Judiciário, do controle da constitucionalidade das leis ordinárias. Aqui se trata, única e exclusivamente, de uma questão de coerência lógica.

Se ao Poder Judiciário é atribuído o poder de declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público (art. 116 da Emenda Constitucional n. 1/69) - inconstitucionalidade por ação - sem que tal seja inquinado de atentatório ao princípio da separação dos poderes, é logicamente insustentável a afirmação de que a declaração da inconstitucionalidade de conduta amissiva do Poder Legislativo (e o conseqüente suprimento dessa omissão) atentaria contra o mesmo princípio.

A evidência disso é de tal ordem que entendo despiciendo, nesta oportunidade, o desenvolvi- mento de qualquer outra consideração a seu propósito.

Quanto à segunda contestação, enunciada desde a afirmação de que não seria possível a trans- posição da construção do tribunal alemão para o direito positivo brasileiro, é também inconsisten- te. Com efeito, o preceito contido no art. 48 da Lei de Introdução ao Código Civil não apenas a admite mas impõe mesmo que o sentido e conteúdo daquela construção sejam contemplados entre nós. Dispõe o aludido preceito:

"Quando a Lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito".

Ora, se o texto constitucional atribui direito à sociedade civil e a cada um dos seus integrantes e, como vimos, nos é vedado pelo Texto Maior o compelirmos o Poder Legislativo para que opere a revogação, de fato, por omissão sua, do preceito constitucional, cumprirá ao Poder Judiciário, com fundamento no citado art. 48, da Lei de Introdução ao Código Civil, suprir tal omissão, de modo a preservar a aplicabilidade direta do preceito.

Caberia apenas, neste passo, questionar a aplicação ou não aplicação à hipótese da inconstitucionalidade por omissão da norma do art. 116 do vigente texto constitucional, cuidando-se então de que, também nesta hipótese, seja ela declarada pelo voto da maioria absoluta dos mem- bros do tribunal com competência para decidir sobre ela".

Celso Antônio Bandeira de Mello, Eficácia das normas constitucionais, RDP, 57/58:236: "Uma Constituição, desde logo, define-se como um corpo de normas jurídicas. De fora parte quaisquer outras qualificações, o certo é que consiste, antes de mais, em um plexo de regras de Direito.

A Constituição não é um simples ideário. Não é apenas uma expressão de anseios, de aspirações, de propósitos. É a transformação de um ideário, é a conversão de anseios e aspirações em regras impositivas. Em comandos. Em preceitos obrigatórios para todos: órgãos do Poder e cidadãos.

Como se sabe as normas jurídicas não são conselhos, opinamentos, sugestões. São determina- ções. O traço característico do Direito é precisamente o de ser disciplina obrigatória de condutas. Daí que, por meio das regras jurídicas, não se pede, não se exorta,

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não se alvitra. A feição específica da prescrição jurídica é a imposição, a exigência. Mesmo quando a norma faculta uma conduta, isto é, permite - ao invés de exigi-la - há, subjacente a esta permissão, um comando obrigatório e coerciti- vamente assegurável: o obrigatório impedimento a terceiras de obstarem o comportamento facultado a outrem e a sujeição ao poder que lhes haja sido deferido, na medida e condições do deferimento feito.

Uma vez que a nota típica do Direito é a imposição de condutas, compreende-se que o regramento constitucional é, acima de tudo, um conjunto de dispositivos que estabelecem compor- tamentos obrigatórios para o Estado e para os indivíduos. Assim, quando dispõe sobre a realização da Justiça Social - mesmo nas regras chamadas programáticas - está, na verdade, imperativa- mente, constituindo o Estado brasileiro no indeclinável dever jurídico de realizá-la.

Além disto a Constituição não é um mero feixe de leis, igual a qualquer outro corpo de nor- mas. A Constituição, sabidamente, é um corpo de normas qualificado pela posição altaneira, supre- ma, que ocupa no conjunto normativo. É a Lei das Leis. É a Lei Máxima, à qual todas as demais se subordinam e na qual todas se fundam. É a lei de mais alta hierarquia. É a lei fundante. É a fonte de todo o Direito. É a matriz última da validade de qualquer ato jurídico".

Nota-se nas Constituições que algumas normas distribuem competênci- as, quer a favor do Estado, quer a favor do indivíduo. Estas comportam-se da mesma forma que as leis comuns, constituindo direitos subjetivos em benefí- cio de seus destinatários. Ao criar, por exemplo, um órgão e atribuir-lhe compe- tências, a Constituição está a investir nestes a capacidade plena para fazer valer suas competências. Estas, por sua vez, produzem seus efeitos imediatamente e são estáticas, no sentido de que sua aplicação no tempo remanesce a mesma. Qualquer alteração que se quiser produzir na quantidade de poderes outorgados há de ser feita por via de uma emenda à Constituição, mas, a norma constituci- onal, ela mesma, não tem nenhuma virtualidade expansiva. Acontece, entretan- to, que as Constituições não se contentam com essa tarefa de retratar o estado atual das coisas, mas pretendem também ter uma força diretiva do futuro.

Aqui entra o aspecto prospectivo das Constituições que procuram impri- mir um rumo ou direção à evolução do Estado e da sociedade.

Que fim deve perseguir o Estado? Em que direção deve ele concentrar os seus esforços? Quais os valores fundamentais que devem ser perseguidos? Quais as transformações fundamentais a serem impressas à realidade social?

A estas perguntas as Constituições não podem responder simplesmente pelo recurso à definição de competências. Em outras palavras, é necessário, sim, que se defina algum órgão como competente para implementar estes fins. Ocorre, entretanto, que elas fazem surgir um mero dever do órgão em atuar, se é que assim se possa dizer, sem que correspondam a este dever correlatos direitos de outrem. Vê-se, destarte, que elas deixam de gerar direitos subjeti- vos, mas fazem pesar normalmente sobre o Legislativo, que é o órgão mais freqüentemente encarregado de cumprir tal dever, o pesado ônus de implementar essa normatividade diretiva ou dirigente.

Surge aqui uma vinculação diferente entre a Constituição e o legislador. Nas normas outorgadoras de competência há o que se poderia chamar uma mera execução da Constituição toda vez que o órgão legiferante faz uso de suas finalidades. Nas normas

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diretivas, há mais que uma mera execução. O que há é uma atividade simultaneamente jurídica e política que confere maior aplicabilidade ao Texto Constitucional, que o implementa, pois, no sentido de que vem preencher uma vontade deixada em aberto pelo Constituinte. Em síntese, a norma diretiva vincula o legislador.

1.1. A Crise das Normas ProgramáticaS

Mesmo o avanço havido na doutrina consistente em afirmar a juridicida- de das normas programáticas não foi de molde a subtraí-las da crise em que se encontravam. É que muitas vezes elas restam ainda inaplicadas e não há como superar o confronto que surge entre o disposto na Constituição e a re- lutância do Legislativo em cumprir o preceituado.

O órgão das Leis continua, ainda, no Estado Moderno a gozar da condição de representativo por excelência. É sobre ele que recaem as decisões políticas mais importantes. Desta sorte, se afigura, sempre, como uma heresia jurídica o aceitar-se que exista um outro órgão em condições de ordenar ao Legislativo que exerça a sua atividade de legiferação. Na medida em que tal órgão existisse poderia ocorrer a própria deslocação do centro gravitacional da decisão políti- ca, que passaria do órgão Legislativo para aquele que tivesse tal mister. Parece, assim, que o dilema é inescapável: ou a norma é programática e, em assim sendo, ela comporta uma grande dose de discrição do Legislativo quanto à opor- tunidade de integrá-la, ou ela já oferece os pressupostos para sua aplicação, o que a privaria da condição de programática. A esta deficiência técnica cumpre agregar o uso político de que delas é feito. Constata-se que muitas vezes as normas programáticas surgem na Constituição como uma solução de compro- misso. De um lado há aqueles que propugnam pela concessão integral e plena de um dado direito. De outro, há os que terminantemente o repelem. Em ter- ceiro lugar, surge a solução compromissória: confere-se o direito com caráter programático e ambos os lados se sentem parcialmente vitoriosos.

Não há dúvida que vista por este ângulo a norma programática torna-se um engodo. Iludem-se reciprocamente os que a aprovarem, assim como, em conjunto, iludem a nação. É óbvio que a fixação de um direito, cuja imple- mentação fica inteiramente ao sabor das condições políticas prevalecentes no órgão Legislativo, não é em nada diferente de um direito pura e simplesmente não contemplado pela Constituição. É curial, também, que se as condições políticas forem favoráveis na Casa das Leis, o direito pode ser instituído indepen- dentemente da sua previsão constitucional, o que significa dizer que ela não serviu para nada. Ou, na melhor das hipóteses, foi útil tão-somente para dei- xar certo que a Constituição não proíbe tal sorte de medida.

Parece aceitável, também, que a fixação desses objetivos na Constitui- ção não facilita a sua concretização. Tudo se passa como que se se verificasse exatamente o contrário: por já estarem normativizados, dispensariam qual- quer mobilização ou esforço prático para sua realização. Daí procederem as judiciosas observações de Eros Grau ao falar no caráter reacionário dessa normatividade programática.

4. Eras Grau, A Constituição brasileira e as normas programáticas, Revista de Direito Consti- tucional e Ciência Política, cit., 4:42: "Assim, penso possamos afirmar que a construção que nos conduz à visualização das normas como tais - programáticas - no texto constitucional tem cará- ter reacionário. Nelas se erige não apenas um obstáculo à funcionalidade do Direito, mas, sobretu- do, ao poder de reivindicação das forças sociais. O

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que teria a sociedade civil a reivindicar já está contemplado na Constituição. Não se dando conta, no entanto, da inocuidade da contemplação desses "direitos sem garantias", a sociedade civil acomoda-se, alentada e entorpecida pela perspec- tiva de que esses mesmos direitos "um dia venham a ser realizados"".

Dentro desta ótica a única forma de se conferir alguma valia às "nor- mas-fins" seria prever um quorum especial, mais reduzido do que o previsto para a aprovação das leis comuns, destinado à votação da legislação integradora. Tal sorte de proceder encontra plena justificativa lógico-jurídica. Se se trata da implementação de fins já queridos e desejados pelo próprio constituinte, a mera decisão quanto aos meios a serem utilizados pode perfeitamente ser tomada por uma maioria menos expressiva do que a necessária para uma lei ordinária, o que implicaria aceitar, inclusive, que ela fosse colocada em pauta por 40 ou 30% dos membros da Casa. É, sem dúvida, um tema importante este, que não tem merecido o acolhimento, ao que saibamos, de nenhum país, mas seria, inequivocamente, uma forma de romper com o aludido impasse e de em- prestar significação às "normas-tarefas". A idéia, por hora, é levantada tão-somente como sugestão a ser maturada e devidamente meditada por todos os interessados.

2. GRAUS DE DETERMINABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

Uma visão mais clara do papel das normas programáticas só pode ser atingida após uma incursão por um terreno mais amplo. Cumpre examinar como se comporta a Constituição no que diz respeito à força com que vincula a si os seus destinatários, principalmente o Legislativo.

As Constituições podem ser mais ou menos abertas, o que significa di- zer que contêm maior ou menor teor de indeterminabilidade. Esta falta de determinação pode dar-se em dois níveis diferentes: em um, que poderíamos chamar horizontal, como o faz Canotilho, há a criação de uma ordem geral constitucional conscientemente incompleta; no outro há sim uma regulação da matéria constitucional, mas de forma incompleta, o que faz com que ela se exponha à atividade concretizadora infraconstitucional, é o que Canotilho chama "abertura vertical".

5. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 136: "A abertura das normas constitu- cionais confunde-se, por vezes, com a abertura da Constituição. São, porém, conceitos diferentes. Se se preferir, são dois diferentes níveis: (1) abertura horizontal, para significar a incompletude e o carácter "fragmentário" e "não codificador" de um texto constitucional; (2) abertura vertical, para significar o carácter geral e indeterminado de muitas normas constitucionais que, por isso mesmo, se "abrem" à mediação legislativa concretizadora.

Aqui interessa apenas o segundo nível. Dizer quais as "normas constitucionais abertas" e quais as "normas constitucionais densas" não é uma tarefa susceptível de ser reconduzida a esquemas fixos e totalizantes. Como tendência, assinala-se a abertura das normas constitucionais em assun- tos: (1) sobre os quais há um consenso geral; (2) em relação aos quais é necessário criar um espaço de conformação política; (3) em relação aos quais podem ser justificadas medidas correctivas ou adaptadoras.

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A densidade da norma constitucional impõe-se: (1) quando há necessidade de tomar decisões inequívocas em relação a certas controvérsias; (2) quando se trata de definir e identificar os princí- pios identificadores da ordem social; (3) quando a concretização constitucional imponha, desde logo, a conveniência de normas constitucionais densas".

O que se nota é que em um caso a Constituição deixa, pura e simplesmente, de regular certo tópico. Todas as Constituições são obrigadas a valer-se desse recurso porque elas não podem ter a pretensão de regular as instituições do Estado da mesma forma que um Código Civil disciplina as civis. No outro, há um indício de regulação por parte do constituinte, o qual, contudo, por valer-se de uma terminologia vaga e imprecisa, acaba, implicitamente, por delegar ao legislador o papel de complementá-la, ou, se se preferir, de conferir-lhe maior precisão e maior concretização. Não há uma receita teó- rica universalmente aceita para saber-se quando o constituinte deve valer-se de uma maior ou menor determinabilidade dá Lei Fundamental. No que parece haver consenso é em exigir-se, na redação dos artigos referentes aos direi- tos e garantias reais, a adoção de termos precisos, pois do contrário restari- am letra morta os direitos fundamentais. Se fosse dado ao legislador ordiná- rio definir os termos utilizados no texto dos artigos referentes a essa delica- da matéria, nenhuma segurança possuiria o indivíduo contra o Estado, frustran- do no seu cerne o objetivo dessas normas.

Há nas normas densas, que seriam aquelas que se opõem às abertas, uma definição clara dos pressupostos sob os quais se dá a sua aplicação, en- quanto nas normas abertas a ênfase é posta nos fins a serem atingidos, o que redunda, na prática, na outorga, ao legislador, de poderes muito grandes na determinação dos meios.

Voltando às normas programáticas, já agora fica mais fácil verificar-se que elas fazem parte da categoria de normas abertas, com a sua indetermina- ção basicamente resultante do fato de que a definição constitucional dos fins e das tarefas do Estado não é de molde a evitar que o legislador disponha de uma grande latitude de atuação na adequação exata do comportamento do Estado com vistas ao atingimento da meta constitucional.

Mas o que é importante notar é que nem todas as normas abertas são programáticas. Muitas vezes a Constituição adota termos pejados de indetermina- ção, quando, por exemplo, fala de democracia, função social, Federação, re- pública, soberania popular, e nem por isso estamos diante de tarefas ou fins a serem atingidos. A essas normas prefere-se dar o nome de principiológicas para significar que encerram em si um princípio. Esse vocábulo enfeixa muita polêmica em torno de si.

Embora todos concordem que haja uma diferença entre norma e princi- pio, nem sempre, contudo, põem-se eles de acordo para esclarecer em que a norma se difere do princípio. Vamos, então, tomar a nossa posição.

Em primeiro lugar, o princípio se caracteriza por um alto nível de abstração. As normas geralmente revelam o seu pressuposto de fato ou hipótese de inci- dência e têm a sua aplicação restrita a essa situação fática. O princípio, pelo contrário, não se limita a aplicar-se a uma determinada e precisa circunstân- cia. Adversamente, ele preordena-se a concretizar-se num sem-número de hi- póteses. Veja-se o princípio democrático. Pode alguém ser democrático no seu comportamento familiar, estudantil, social, assim como o próprio Estado pode ter o caráter democrático.

Além disso, o princípio é indeterminado, também, na sua significação, em outras palavras, ele necessita ser mediatizado por outras normas.

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A conjugação dessas duas características faz com que os princípios encar- nem em si os valores fundamentais que estão concretizados em diversas normas da Constituição ou cuja concretização a Constituição impõe. Deste último caso é exemplo o princípio da igualdade que seria, talvez, o mais genérico e abrangente de todos por voltar-se à concretização e aplicação de qualquer norma. Não há uma só da qual não se possa dizer que, em tese, no momento da sua elaboração não corra o risco de trazer consigo uma discriminação vedada pela Constituição.

6. Augustin Gordillo, Introducción al derecho administrativo, 2. ed., 1966, p. 176: "Diremos entonces que los principios de derecho público contenidos en la Constitución son normas jurídicas, pero no sólo eso: mientras que la norma es un marco dentro del cual existe una cierta libertad el principio tiene sustancia integral. La simple norma constitucional regula el procedimiento por el que son producidas las demás normas inferiores (ley, reglamento, sentencia) y eventualmente su contenido: pero esa determinación nunca es completa, ya que la norma superior no puede ligar en todo sentido y en toda dirección el acto por el cual es ejecutada; el principio, en cambio, determina en forma integral cual ha de ser la sustancia del acto por el cual se lo ejecuta.

La norma es limite, ci principio es limite y contenido. La norma da a la ley facultad de interpretarla o aplicarla en más de un sentido, y el acto administrativo la facultad de interpretar la ley en más de un sentido; pero el principio establece una dirección estimativa, un sentido axiológico, de valoración, de espíritu. El principio exige que tanto la ley como el acto administrativo respecten sus limites y además tengan su mismo contenido, sigan su misma dirección, realicen su mismo espíritu.

Pero, aún más, esos contenidos básicos de la Constitución rigen toda la vida comunitaria y no sólo los actos a que más directamente se refieren o a las situaciones que más expressamente contemplan".

O que se vê do exposto é que embora as Constituições sejam feitas de normas da mesma hierarquia, do ponto de vista da sua estruturação tudo se passa como se ela não fosse mais do que a materialização de alguns núcleos valorativos fundamentais. Isto não quer dizer que esses núcleos estejam, necessariamente, conscientes na mente do constituinte, nem mesmo que ele tenha tido o propósito deliberado de efetivá-los. O que é certo é que diante de uma Constituição, por mais que aparentemente ela se configure desconchavada, é possível, sempre, extrair dela os seus critérios fundamentais, quando não seja o caso de ela explicitamente os declarar. Daí concordarmos, também, com a força irradiante do princípio. Naturalmente ele tende a expandir-se sobre as demais normas procurando, na medida do possível, conformá-las. Daí a importância do princípio como critério de interpretação. (Remetemos o leitor para o Capítulo Constituição como Sistema de Princípios e Normas.)

3. O COTEJO ENTRE AS NORMAS-FINS E OS PRINCÍPIOS

Tanto as normas-tarefas quanto as normas-princípios procuram confor- mar a ação futura do Estado. Fazem parte, pois, da chamada Constituição diretiva. Nada obstante as suas manifestas afinidades, estas suscitam proble- mas muito diferentes no que atina à sua aplicabilidade.

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As normas-princípios são desde logo plenamente aplicáveis e delas não se pode dizer que se espera um desenvolvimento por via de legislação concretiza- dora. As normas futuras não se voltarão a conferir um maior elastério ou apli- cabilidade à norma principiológica. Elas terão por escopo outros fins ou obje- tivos. Ao desenvolvê-los, contudo, deverão submeter-se ao princípio. Estar a ele sujeito é muito diferente de conferir-lhe maior concretização. Tomemos por exemplo o princípio federativo. Ele já se apresenta plenamente configura- do e conformado na própria Constituição. Não depende, pois, da legislação subconstitucional para ganhar maior amplitude. Os limites da Federação já estão postos pelo próprio Texto Constitucional. O que se aguarda é o acatamento, nas diversas situações concretas, aos ditames do modelo federal. Em assim sendo, fica também claro que as normas-princípios põem poucos problemas no que diz respeito a possíveis inconstitucionalidades, que só se darão na medida em que se editarem atos em dissonância com o princípio. Sempre se tratará, pois, de uma inconstitucionalidade por comissão. Não há que se falar da possi- bilidade desse vício em virtude de mera omissão dos governantes.

No que diz respeito à fruição de direitos subjetivos pelos particulares, também aqui não se suscitam maiores questões.

Os princípios não visam, nem atual nem potencialmente, conferir ou exigir direitos subjetivos.

Já no que diz respeito às normas programáticas, as características são exatamente opostas. Elas almejam, fundamentalmente, a outorga aos cida- dãos de direitos contra o Estado, daí a sua inserção natural nos capítulos re- ferentes aos direitos fundamentais, tanto os de ordem individual quanto os de ordem política e social.

Desse fato decorre a sua contradição interna. De um lado, são extrema- mente generosas quanto às dimensões do direito que disciplinam, e, por outro lado, são muito avaras nos efeitos que imediatamente produzem. A sua gradativa implementação, que é o que no fundo se almeja, fica sempre na dependência de resolver-se um problema prévio, fundamental: quem é que vai decidir sobre a velocidade dessa implementação? Pela vagueza do Texto Constitucional, essa questão fica subordinada a uma decisão política. Trata-se, portanto, de matéria insuficien- temente juridicizada. O direito dela cuidou, sim, mas sem evitar que ficasse aber- ta uma porta para o critério político. Aliás, é bom que se diga que nem poderia ser de outra maneira, visto que somente decisões de ordem política estarão em con- dições de identificar revoluções na ordem socioeconômica do Estado que sejam de monta a já ensejar um alargamento dos direitos de cunho social. Outros- sim, a própria hipótese sobre a qual se constrói a norma programática não é passível de uma comprovação fácil, sobretudo quanto ao porvir. Em outras palavras, a idéia de que os direitos contra o Estado são sempre passíveis de aumento implica uma outra, qual seja a do desenvolvimento crescente da eco- nomia. Isto tem sido uma realidade até hoje, mas ninguém pode assegurar a sua manutenção no futuro. A exaustão de certas matérias-primas e de fontes energéticas tradicionais tira o caráter de absurdo à hipótese de que o mundo, ou boa parte dos países que o compõem, venha a estacionar, ou mesmo regredir.

4. RELAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA COM OS SEUS DESTINATÁRIOS

Tem sido muito freqüente estudar-se a relação entre as normas programá- ticas ou principiológicas e o legislador ordinário, esquecendo-se, destarte, que os preceitos

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constitucionais voltam-se aos três Poderes e não ao Legislativo, apenas. Por ser assim, será forçoso voltarmos a nossa atenção, também, para os dois Poderes mais poupados no que se refere à incriminação mais freqüen- temente feita à Casa das Leis. Entretanto, convém, sem dúvida, começarmos por esta do Legislativo.

7. Eduardo Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, p.63: "Lo primero que hay que establecer con absoluta explicitud es que toda la Constitución tiene valor normativo inmediato y directo, como impone deducir el artículo 9, 1: "Los ciudadanos y los poderes públicos están sujetos a la Constitución y al resto del ordenamiento jurídico". Esta sujeción o vinculación es una consecuencia de su carácter normativo, por una parte; por otra, la Constitución, precisa este texto, es parte del ordenamiento jurídico, y justamente - hemos de anadir nosotros - su parte primordial y fundamentante, la que expresa los "valores superiores del ordenamiento jurídico" enun- ciados en el artículo 1 de la propia Constitución y desarrollados en su articulado. Finalmente, la vinculación normativa de la Constitución afecta a todos los ciudadanos y a todos los poderes públi- cos, sin excepción, y no sólo al Poder legislativo como mandatos o instrucciones que a éste sólo cumpliese desarrollar - tesis tradicional del carácter "programático" de la Constitución -; y entre los poderes públicos, a todos los Jueces y Tribunales - y no sólo al Tribunal Constitucional".

São três as posições que procuram equacionar a atuação do legislador ante a Constituição: uma que o considera um mero executor da Constituição. Outra que o toma por um aplicador e uma terceira que o eleva a conformador da Lei Maior. Não há dúvida que nessa trilogia é possível identificar uma escala ascendente de autonomia e independência do legislador ante a Lei das Leis. É curial que como executor só lhe caberia dar cumprimento a tudo que se en- contra na Constituição, não tendo necessidade de apresentar solução para todos os problemas. De resto, para muitos deles, a Constituição não manifesta o mí- nimo interesse, deixando a sua resolução às decisões políticas do autor das leis. A palavra execução é, pois, inapropriada para referir a capacidade do Legislativo.

A última das posições, invertendo a sua seqüência natural, é também muito extremada, porque significa dizer que quem confere forma à Lei Maior é o legislador ordinário. Isto tem o manifesto perigo de poder redundar numa subversão constitucional, embora não se possa ignorar que a Lei Magna, muitas vezes, ofereça meros parâmetros, dentro dos quais a atividade legislativa poderá assumir diversas posições possíveis sem se tomar inconstitucional. Da pró- pria fixação de um princípio não se pode extrair a feição concreta que ele vai assumir na prática. A sua concreção vai depender de uma série de atitudes intermediárias ou interpostas, que serão aquelas que, ao cabo, findarão por dar forma concreta aos parâmetros da Constituição. Assim sendo, a solução intermediária, a de ver na Casa das Leis uma aplicadora da Constituição, parece ser a que melhor reflete a realidade.

Ela retrata não só a vinculação do legislador à Lei Fundamental como também a ampla discricionariedade - e o termo aqui não está utilizado no sentido técnico do direito administrativo, mas sim tão-somente para designar a ampla margem de julgamento subjetivo de que desfruta o parlamentar - dos Parlamentos. Não há dúvida que estes estão sempre limitados por parâmetros negativos que são dados pelas suas competências, das quais não podem extra- vasar, assim como pelo respeito aos direitos individuais. No que se refere a limitações positivas, elas existem e traduzem-se, precisamente, nas imposi- ções constitucionais, mas essas não são tão minuciosas e detalhistas a ponto de só se tornar possível uma única lei em dada situação. Se assim fora, essa seria desnecessária, porque a sua exteriorização se resumiria num problema lógico e não político, como efetivamente É.

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Neste ponto parece residir toda a dificuldade da Constituição dirigente, que não se limita a repartir competências dentro do Estado, mas procura pau- tar o comportamento do legislador futuro sem ignorar que este é um órgão essencialmente político.

O que as normas programáticas não podem aceitar é que elas percam a sua eficácia. É dizer que o legislador, por um comportamento omissivo, deixe de lhes ir conferindo a necessária atualização. Mas dizer que elas têm eficácia equivale a dizer que existem meios para sancionar o comportamento desviante, isto é, a inércia legislativa.

Esses meios são limitados e giram em torno de experiências históricas recentes de alguns países. Há uma possibilidade que consiste em a própria Constituição dizer que os dispositivos nela existentes, sobretudo os consagradores de direitos e garantias individuais, são imediatamente aplicáveis, como ocor- re agora.

5. ATÉ QUE PONTO É LÍCITO A UMA CONSTITUIÇÃO SER MAIS DIRETIVA E MENOS ORGANIZACIONAL?

As Constituições podem, em tese pelo menos, variar de um caráter extre- mamente instrumental, quase que exclusivamente dotadas de normas organi- zacionais, e num outro extremo serem de tal modo programáticas que viessem pretender oferecer soluções políticas para todos os problemas suscitáveis pela vida do Estado. Ambas as posições extremas são de se evitar. Em primeiro lugar, não é aceitável em nossos dias que uma Constituição seja exclusiva- mente orgânica. É preciso que ela tenha uma dimensão prospectiva. Não po- demos repartir os direitos e deveres na sociedade de maneira estática, faz mister, também, ir moldando o próprio processo de transformação. É preciso canalizar o processo de transformação. É necessário que o direito tente direcionar esse processo de desenvolvimento para que ele não ocorra a esmo, sem dire- ção, jogado ao livre jogo das forças econômicas, sociais, espirituais etc. É perfeitamente legítimo que o direito constitucional tente chamar para si um papel importante na disciplina do próprio processo evolutivo.

De outra parte, a posição contrária, marcada por uma exuberância excessiva de normas programáticas, acaba por trazer conseqüênciaS indesejáveis, a ponto de torná-la inadmissível. Senão vejamos, a Constituição não pode tudo pre- ver, ela não pode substituir-se ao livre jogo da política. A Constituição não pode ser um saque contra o futuro, não se admite que as gerações atuais te- nham o direito de asfixiar o processo decisório das gerações futuras. É indis- pensável, portanto, que se reserve espaço para que permanentemente a socie- dade esteja a refazer-se nas suas aspirações, nos seus desejos e nas suas realiza- ções mais profundas.

Em síntese, é o próprio processo diuturno da política que não pode dei- xar de subsistir, e é evidente que este processo político só ocorrerá na medida em que haja espaço para que ele possa atuar e o excesso de normas programáticas de maneira a antecipadamente prever todas as áreas possíveis de atuação do Estado acabe por exaurir por completo a necessidade de novas decisões. As- sim, tudo estaria antecipadamente decidido, não teríamos mais decisões a to- mar, mas simplesmente medidas a executar, isto é, uma forma insuportável de autoritarismo jurídico-político.

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A própria liberdade pressupõe um processo de autonomia da vontade, não só no âmbito da existência individual, mas no âmbito da existência das próprias coletividades. É preciso que elas tenham a sensação, que é um refle- xo da realidade de que permanentemente estão a refazer-se nas suas estrutu- ras e nos seus projetos de vida. A solução ideal se situa a meio caminho: a Constituição não há de ser exclusivamente organizacional, como não pode prodigalizar preceitos programáticos em excesso. É preciso que ela se conte- nha, se limite dentro de âmbitos razoáveis. Temos que assim ela estará cum- prindo com o seu dever sem se tornar um estorvo ao desenvolvimento da so- ciedade.

A moderação é uma regra de ouro, também, no ponto em que estamos focalizando. Os valores fundamentais da coletividade hão de estar transfundidos no próprio Sistema Constitucional, exatamente para evitar que a política sofra a ingerência de valores éticos transfundidos no ordenamento jurídico.

É importante, pois, que as Constituições consagrem valores, metas, fins, propósitos, mas é necessário que esses mesmos rumos, esses mesmos pontos a serem atingidos não esgotem a possibilidade de opções do Estado e nem sejam descritos de maneira casuística e minudente, a ponto de excluírem a própria possibilidade da escolha, da oportunidade, dos meios a serem adotados. É, portanto, um problema delicado este, e que só poderá encontrar uma so- lução razoável na medida em que o constituinte utilizar de moderação e de sabedoria.

TÍTULO III HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

CAPÍTULO 1 CONSTITUIÇÃO DE 1824

SUMÁRIO: 1. Antecedentes históricos. 2. Ideologia da Constituição Imperial. 3. Aspectos principais da Constituição de 1824. 3.1. Divisão dos poderes políticos. 3.2. Semi-rigidez da Constituição Imperial.

1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS

As idéias liberais que dominaram no fim do século XVIII e início do sécu- lo XIX produziram efeitos no nosso país ainda ao tempo da regência de D. João.

Inicialmente há que se fazer referência aos movimentos de sublevação armada que, embora não tivessem prosperado, traziam consigo nítidas idéias liberais.

Com a volta da família real e a regência de D. Pedro I, precipita-se movi- mento no sentido de dotar o Brasil de uma Constituição. A convocação da Assembléia para tanto dá-se mesmo antes da Proclamação da Independência. O fato é que em maio de 1823 ela já está funcionando. Não consegue, contu- do, levar a bom termo seus trabalhos em função de desavenças com o Impe- rador, que acabou por dissolvê-la.

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Criou-se então um Conselho de Estado, a quem se conferiu a incumbên- cia de elaborar um novo projeto que seria submetido à opinião das Câmaras, na época o órgão mais representativo da vontade popular.

Por solicitação destas, D. Pedro I veio a outorgar o Texto antes mesmo que ele estivesse referendado por aqueles órgãos.

2. IDEOLOGIA DA CONSTITUIÇÃO IMPERIAL

Não se pode compreender a Constituição Imperial de 1824 senão à luz das idéias liberais tão em voga à época.

O liberalismo é uma corrente de pensamento que marcou profundamen- te alguns momentos da história, permanecendo até hoje, ainda que adaptado a uma nova problemática que não existia no momento em que seus grandes mentores o formularam.

O liberalismo tem por ponto central colocar o homem, individualmente considerado, como alicerce de todo o sistema social.

Os homens inicialmente vivem em estado de natureza no qual são livres (Rousseau). Para maior conveniência sua, pactuam um contrato social que traslada algumas das suas faculdades para tornar possível a formação do po- der. Daí dois corolários fundamentais: em primeiro lugar, todo o poder emana do povo. E, em segundo lugar, o Estado só deve exercer aquelas funções que os órgãos, individual ou coletivamente, não conseguem desenvolver.

A ação do Estado é, portanto, excepcional e restrita, enquanto a da sociedade é ampla e ilimitada.

O liberalismo, com tais premissas, não podia deixar de significar uma revolução em face da ordem social político-jurídica preexistente. Nele se inspira- ram as duas grandes Revoluções do século XVIII: a francesa e a americana.

Suas idéias se opunham frontalmente à monarquia absoluta, que ex- traía a sua fonte de legitimidade do poder divino dos reis. A trasladação do poder pelo povo significava pôr em xeque, de maneira frontal, as monarqui- as existentes.

Umas foram derrubadas por não terem tido condições para se adaptarem à nova ordem ideológica. Outras, contudo, continuaram de pé mediante con- cessões ao princípio da soberania popular.

O Brasil se insere neste último caso. A Constituição outorgada de 1824, embora sem deixar de trazer consigo características que hoje não seriam acei- táveis como democráticas, era marcada, sem dúvida, por um grande liberalis- mo que se retratava, sobretudo, no rol dos direitos individuais que era pratica- mente o que havia de mais moderno na época, como também na adoção da separação de poderes que, além dos três clássicos, acrescentava um quarto: o Poder Moderador.

É preciso, contudo, reconhecer que, se este constitucionalismo liberal encontrava plena consonância com as idéias dominantes à época e mesmo com as de uma elite do País, não deixava, contudo, de encontrar toda a sorte de dificuldades para se tornar

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eficaz: o pequeno desenvolvimento econômico do País; a falta de participação política; as grandes distâncias e a precariedade dos transportes e das comunicações.

3. ASPECTOS PRINCIPAIS DA CONSTITUIÇÃO DE 1824

3.1. Divisão dos Poderes Políticos

A Carta de 1824, além dos três Poderes enunciados na teoria e na prá- tica dos Estados constitucionais de então, acresce um quarto denominado Moderador.

Era criação jurídica de Benjamim Constant, cuja influência sobre as eli- tes jurídico-políticas do Continente não podia ser subestimada.

Afonso Arinos revela que nenhum assunto foi mais bem estudado no Império do que o Poder Moderador. Diz ele:

"Em torno da interpretação a ser dada aos artigos que o estabeleceram dividiam-se os melhores juristas imperiais, representantes das tendências liberal e conservadora. Visconde do Uruguai e o Marquês de S. Vicente, conserva- dores, sustentaram naturalmente a tese da concentração dos poderes arbitrais nas mãos do Imperador, negando a responsabilidade dos Ministros (portanto negando controle político do legislativo) sobre tais atos. Contrariamente, os escritores liberais, como Zacarias de Gois, defendiam a co-responsabilidade dos Ministros nos atos do poder moderador, como única forma de se evitar o poder pessoal do Imperador. Pedro II, pessoalmente, era de opinião que os Ministros não eram co-responsáveis, e que a ele cabia, na totalidade, a arbitragem entre os poderes" (Direito constitucional, 2. ed., Forense, p. 120).

Ao que parece, ao tentarmos extrair uma conclusão das longas discus- sões havidas em torno do Poder Moderador e da responsabilidade ou não dos atos praticados pelos ministros perante o Legislativo, a conclusão a que se chega é que, se utilizado por um monarca com inclinações autoritárias, leva- ria a um poder quase absoluto.

1. Benjamin Constant, apud Marcelo Caetano, Direito constitucional, v. 1, p. 503: "Para Benja- mim Constant, a "monarquia constitucional tem a vantagem de criar esse poder neutro na pessoa de um Rei já cercado de tradições e de recordações e revestido pela opinião de uma autoridade que serve de base à sua autoridade política. O interesse verdadeiro dos Reis não é de modo nenhum que um dos poderes domine o outro, mas que todos se apóiem, se entendam e atuem de acordo". Por isso, se a "ação do poder executivo, isto é, dos Ministros, é irregular, o Rei destitui o poder executivo. Se a ação do poder representativo se torna funesta, o Rei dissolve o corpo representativo. Enfim, se a própria ação do poder judiciário é prejudicial ao aplicar penas demasiado severas às ações individuais, o Rei tempera essa ação com o seu direito de comutação e de indulto". Acima dos poderes ativos colocava-se, pois, um poder independente e neutro, que era o fiel do equilíbrio dos restantes".

Marcelo Caetano, Direito constitucional. cit., v. 1, p. 504: "Assim o Imperador, que não estava sujeito a responsabilidade alguma (art. 99), intervinha nos outros Poderes para assegurar o seu regular funcionamento:

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- relativamente ao Poder Legislativo, competia-lhe nomear os Senadores, convocar extraor- dinariamente, prorrogar ou adiar a sessão da Assembléia Geral, sancionar as leis, dissolver a Câma- ra dos Deputados (art. 101, 1 a 5);

- quanto ao Poder Executivo, nomeava e demitia livremente os Ministros de Estado (art. 101, n. 6);

- quanto ao Poder Judicial, podia suspender os magistrados precedendo processo e audiên- cia do Conselho de Estado, perdoar ou moderar as penas e conceder anistias em caso de urgência (art. 101, 7, 8 e 9).

O Poder Executivo era chefiado pelo Imperador que o exercitava pelos seus Ministros de Estado (art. 102), os quais tinham de referendar ou assinar todos os atos dele para que pudessem ter execução (art. 132).

Previa-se a existência de um Conselho de Estado, composto de até 10 membros vitalícios nomeados pelo Imperador (arts. 137 e 138), para ser ouvido "em todos os negócios graves e medi- das gerais de pública Administração ... assim como em todas as ocasiões em que o Imperador se proponha exercer qualquer das atribuições próprias do Poder Moderador", salvo para a nomeação e demissão de Ministros (art. 142)".

Pimenta Bueno, Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império, 2. ed., Brasília, Senado Federal, p. 203: "O Poder Moderador (...) é a suprema inspeção da Nação, e o alto direito que ela tem, e que não pode exercer por si mesma, de examinar como os diversos poderes políticos, que ela criou e confiou a seus mandatários, são exercidos. É a faculdade que ela possui de fazer com que cada um deles se conserve em sua órbita, e concorra harmoniosamente como outros, para o fim social, o bem-estar nacional; é quem mantém seu equilíbrio, impede seus abusos, conserva-os na direção de sua alta missão; é enfim, a mais elevada força social, o órgão político mais ativo, o mais influente, de todas as instituições fundamentais da Nação".

Octaciano Nogueira, A Constituição de 1824, p. 24: "Efetivamente está aí, claramente descri- to, o seu papel dominante. Pode-se mesmo dizer que o poder moderador moldou o regime político que tivemos nos 65 anos de duração da Carta de 24. É a sua concepção, em última análise, que impulsiona a monarquia constitucional no caminho de seu papel ativo, em contraste com o papel passivo das monarquias parlamentares. Chamado com muita propriedade de poder real, poder im- perial, poder neutro ou poder conservador, a sua concepção é atribuída, por Jellinek (L'Etat moderne et son droit), a Clermont-Tonnerre e a Benjamin Constant. Na prática, porém, foi aplicado apenas no Brasil e esta é uma das singularidades da Constituição Política do Império. É, com tal amplitude, que se exercia quer em relação ao Legislativo (nomeando os senadores, convocando, prorrogando e adiando a Assembléia Geral; dissolvendo a Câmara, sancionando as proposições do Legislativo e aprovando e suspendendo interinamente as resoluções das Assembléias provinciais); quer em relação ao Executivo (nomeando e demitindo livremente os ministros de Estado); quer, finalmente, em relação ao Judiciário (suspendendo os Magistrados, perdoando e moderando as penas impostas aos réus por sentença, e concedendo anistia).

O que devemos ter em conta em relação à prática constitucional, no entanto, não é propriamente nem a amplitude de tais poderes, nem a circunstância de residirem numa só autoridade, proeminente por sua própria posição política, os dois poderes: o moderador e o executivo. Ao contrário, o que marcou a ação desse poder foi, exatamente, a sua faculdade de

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descaracterizar o sistema parlamentar que poderia ter sido implantado desde o início da monarquia constitucional, mas que efetivamente, em 1868, como vimos no episódio do Gabinete Zacarias, ainda se revelava impraticável no país.

Esse poder, exercido autoritariamente por D. Pedro I, e que terminou levando-o à renúncia em 1831, e zelosamente por seu filho, a quem se atribuía a aplicação implacável do "lápis fatídico", se exorbitou os poderes do Monarca, de um lado, não impediu, por outro, que a praxe do sistema parlamentar viesse, ainda que tardiamente, a ser a rotina do fim do Império. Foi graças a essa onipotência quase divina do Monarca, que a própria Constituição declarava inviolável e sagrada, que D. Pedro II exerceu o seu magistério sobre o sistema político, fazendo-o pendular entre os conservadores e liberais que, entre 1837 e 1868, dominaram o bipartidarismo brasileiro da época".

Wilson Accioli, Instituições de direito constitucional, Forense, p. 76: "Por influência de Clermont-Tonnerre - deputado aos Estados Gerais da França - Benjamin Constant desenvolveu, em seus famosos Principes de Politique Constitutionnelle, publicados em 1815, a teoria do Poder Moderador, que ele designava neutro ou real.

Duas correntes, desde logo, se formaram em torno dessa novidade: a corrente conservadora e a corrente liberal.

Os juristas conservadores, e, entre eles, assinalamos Pimenta Bueno, autor, como vimos, de obra clássica sobre a Constituição, e Paulino de Sousa apoiavam a criação do Poder Moderador.

Enquanto isso, os liberais se cindiam em dois grupos, no tocante à compreensão da matéria: um deles defendia a criação do Poder Moderador, julgando, apenas, que o mesmo não devia ser pessoal, mas operar de acordo com o Conselho de Ministros; em contraposição, o outro grupo - que se erigia na facção radical do liberalismo - pugnava pela erradicação do Poder Moderador, por considerarem-no prejudicial à democracia".

No entanto, o seu exercício por longo tempo por um monarca culto, mo- derado, cônscio do seu poder e também das suas responsabilidades fez com que nosso sistema político ascendesse a um alto nível de organização constitucional.

Contudo, não se deve esquecer que, dadas as imperfeições do regime representativo então vigente, não se pode falar que tenha ele retratado fiel- mente a vontade popular. Seria mais certo afirmar que o regime imperial as- sistiu a uma permanente falsificação da vontade do eleitorado através de uma maciça e constante intervenção do Poder Executivo.

3.2. Semi-rigidez da Constituição Imperial

É regra praticamente geral das Constituições o querer serem duradouras. Assim, embora não excluam a possibilidade de alteração Constitucional, fazem com que esta dependa de um processo de alteração muito mais dificultoso, muito mais cheio de obstáculos, que o previsto para a elaboração de uma lei comum. Segundo a sua rigidez, as Constituições são, pois, rígidas ou flexíveis.

A Constituição Imperial de 1824 é bastante original na matéria, criando uma terceira categoria de Constituições, aquela marcada pela existência de dispositivos rígidos e

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dispositivos flexíveis. Em outras palavras, a Constitui- ção encampa a distinção entre Constituição material e Constituição formal. Todos os dispositivos que integrassem a primeira, isto é, que entendessem com a própria substância ou o cerne do Estado, seriam apenas modificáveis por maioria, extremamente exigente em três legislaturas consecutivas.

Para as que fossem apenas formalmente constitucionais, isto é: detinham tal qualificação não em razão do assunto que tratavam, mas do mero fato de estarem presentes na Constituição, para elas, dispensava-se qualquer exigên- cia específica, contentando-se com os requisitos necessários à elaboração da lei comum.

Há que se ressaltar, portanto, a grande plasticidade e adaptabilidade do Texto Constitucional de 1824.

Afonso Celso, em seu livro Oito anos de Parlamento, chamou a atenção para o fato de que até mesmo a República poderia ter sido implantada no País sem que houvesse necessidade de derrubar a Constituição, bastando para tan- to uma Emenda.

2. Francisco de Assis Alves, "As Constituições do Brasil", obra integrante do número especial da Revista de Direito Constitucional e Ciência Política, p. 14: "Estavam no Título oitavo da Cons- tituição de 1824 junto com os enunciados dos direitos individuais, as disposições sobre o processo de emenda à constituição.

Essas regras hauridas do Direito Constitucional francês eram, contudo, bem mais abrandecidas que as adotadas pela Constituição Francesa de 1791.

No entanto, tratava-se de processo bastante dificultoso e solene, o previsto pela Carta Brasi- leira de 1824, para as alterações de seu texto.

Ela própria, pela verba de seu artigo 178, estabelecia critérios diferentes de emendas. Para as matérias constitucionais, aquelas afetas aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos, havia um processo de reforma, que deveria assujeitar-se aos requisitos dos artigos 174 a 177.

Por isso, a proposta de reforma constitucional, objetivando atingir matéria dessa índole, só se tomou possível depois de passados quatro anos do juramento da Constituição Brasileira. A partir daí, se reconhecido que algum de seus artigos merecesse reforma, o respectivo processo seria deflagrado mediante proposição escrita, originária da Câmara dos Deputados, com apoio da terça parte de seus membros.

Vencida essa etapa, a seguinte seria a leitura da proposta, por três vezes, com intervalos de seis dias de uma para outra. Se admitida a discussão, pela Câmara dos Deputados, depois da terceira leitura, seguia-se na tramitação prevista para a elaboração de uma lei. Expedida a lei, que era promulgada e sancionada pelo Imperador, em forma ordinária, nela já estaria contida a ordem dirigida aos eleitores dos deputados para a legislatura seguinte, no sentido de que, nas procurações, lhes fosse conferida especial faculdade para a reforma visada.

Depois de instalada a próxima legislatura, na sua primeira sessão, seria discutida a matéria sobre a reforma postulada. Se aprovada, seria introduzida na Lei Fundamental que, por sua vez, juntava-se à Constituição, para ser solenemente promulgada.

Quanto às matérias de essência não constitucional que, segundo visto, para a Constituição do Império eram aquelas sem referência aos limites e atribuições dos poderes

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políticos, e aos direitos políticos, e individuais dos cidadãos, o seu processo de emenda era bem mais simples.

Tudo o que não fosse constitucional, disse o artigo 178, infine, da Carta de 1824, poderia ser alterado sem as formalidades referidas pelas legislaturas ordinárias".

De outra parte é sabido que em determinado momento da monarquia floresceu uma prática parlamentarista que acabou por implantar no País um regime que o texto frio da Constituição não autorizava, mas ao contrário vedava.

A monarquia esteve, portanto, muito ligada ao sistema parlamentar. Inspirou-se muito no regime inglês e no século XIX, sem falar na própria Inglaterra, que foi alma mater do regime representativo, na precisa observa- ção de Oliveira Lima, em seu livro O Império brasileiro.

Nessa obra ainda observa ele que: "O nosso parlamentarismo foi entre- tanto mais uma lenta conquista do espírito público do que um resultado do direito escrito".

3. Marcelo Caetano, Direito constitucional, cit., v. 1, p. 519: "A Constituição de 1824 organi- zara um sistema de governo representativo pessoal: o Imperador, representante da Nação, exercia os Poderes Moderador e Executivo, este através de Ministros da sua escolha, sob a fiscalização mas não na dependência da Assembléia Geral (Senado e Câmara dos Deputados).

Mas as circunstâncias vão conduzindo a prática constitucional no sentido de um sistema em que o governo representativo, sem deixar de ser pessoal do Chefe de Estado, adota certos ritos do governo parlamentar.

Resulta daí uma fórmula mista, que só pode considerar-se parlamentarista quando se ressalve a sua não correspondência exata como tipo britânico, do qual aceitou algumas aparências, mas não o espírito.

Os caracteres do parlamentarismo do segundo reinado, caso curioso, coincide quase ponto por ponto com o que foi praticado em Portugal, na mesma época, para executar à luz das idéias do tempo uma Constituição praticamente igual à Brasileira".

Octaciano Nogueira, A Constituição de 1824, cit., p. 23: "Foi exatamente na existência desse poder que se fundaram, de um lado, tanto o voluntarismo exclusivista de Pedro I, na escolha dos ministérios de sua livre conveniência, em aberta dissenção com a maioria parlamentar, quanto os ultraconservadores que sempre invocaram sua existência para mostrar que a Constituição não quis, não previu e, portanto, não concebeu a prática do sistema parlamentar entre nós.

Se este se estabeleceu, paulatina e progressivamente, pela prática, independentemente das leis, isto se deveu, como vimos, única e exclusivamente ao arbítrio de D. Pedro II que, voluntaria- mente, por deliberados atos de tolerância para com o sistema político, delegou os poderes que tinha aos sucessivos Ministérios com os quais governou e que nem sempre escolheu".

Octaciano Nogueira considera uma das maiores virtudes do Texto de 1824 a de permitir que um sistema político nele não previsto, o parlamentaris- ta, fosse sendo paulatina e progressivamente adotado, à medida que se crista- lizavam os costumes parlamentares e na proporção em que os costumes polí- ticos se aprimoravam enquanto o País se civilizava.

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Do ponto de vista da distribuição geográfica do poder, a Carta de 1824 estabeleceu uma vigorosa centralização político-administrativa, pela qual se acabou por evitar o que ocorreu na América espanhola, fracionada em razão dos particularismos locais criados a partir da administração colonial.

Paulo Bonavides chama a atenção para um aspecto pouco estudado na Carta de 1824, qual seja: a sua sensibilidade precursora para o social.

Depois de justificar a sua posição, termina por uma feliz síntese da signifi- cação profunda da Constituição de 1824. Diz ele, em sua obra A Constituição de 1824:

"A Constituição do Império foi, em suma, uma Constituição de três di- mensões: a primeira, voltada para o passado, trazendo as graves seqüelas do absolutismo. A segunda, dirigida para o presente, efetivando em parte, e com bom êxito no decurso de sua aplicação, o programa do Estado liberal, e uma terceira, à primeira vista desconhecida e encoberta, pressentindo já o futuro".

Se cotejarmos o Texto de 1824 com as efetivas práticas constitucionais, vamos notar um acentuado divórcio. Com efeito, não era possível ao Brasil da época praticar na sua pureza todos os institutos previstos na Lei Maior.

Nada obstante isto, é preciso reconhecerem-se-lhe inegáveis méritos:

Foi sob ela que o País manteve a integridade nacional. Dela, ainda, decor- reram os primeiros passos, no sentido da democracia. E, finalmente, talvez o que seja o seu maior mérito, foi o Texto de maior longevidade em todo o nosso direito constitucional, sob o qual vigorou um regime que praticamente gover- nou o País durante o século XIX.

No mesmo sentido encontramos as palavras de Octaciano Nogueira (A Constituição de 1824, p. 2):

"É a partir deste dado que se deve examinar a importância de nossa primeira Carta na história constitucional do país. Afinal, a Constituição de 24 não serviu apenas para os momentos de estabilidade política, conseguida, no Império, a partir da Praieira (1848-1849), que foi a última rebelião de caráter político no período monárquico. Serviu, também, com a mesma eficiência, para as fases de crise que se multiplicaram numa sucessão interminável de revoltas, rebeliões e insurreições, entre 1824 e 1848. Mais do que isso: foi sob esse mesmo texto, emendado apenas uma vez, que se processou, sem riscos de graves ruturas, a evolução histórica de toda a Monarquia. Essa evolução inclui fatos de enorme relevância e significação tanto política como econômi- ca e social. As intervenções no Prata e a Guerra do Paraguai; o fim da tarifa Alves Branco, de 1844; a supressão do tráfico de escravos; o início da indus- trialização e a própria abolição, em 1888, são alguns desses exemplos".

CAPÍTULO II CONSTITUIÇÃO DE 1891

SUMÁRIO: 1. Fatores determinantes. 2. O Decreto n. 1 e suas principais mudanças.

1. FATORES DETERMINANTES

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A 15 de novembro de 1889, dá-se no Brasil um golpe de Estado, pelo qual se põe fim à monarquia, destituindo-se por conseguinte o Imperador, proclamando-se uma República Federativa.

É de notar-se que este movimento não veio calcado em grandes movi- mentações populares ou em uma parte da opinião pública.

Na verdade tudo se cifrou a um movimento de tropas situadas no Rio de Janeiro, a que a nação limitou-se a assistir. Isto não quer dizer, contudo, que os ideais da República e da Federação, mais este último até do que o primeiro, não tivessem encontrado eco no País.

1. Cláudio Pacheco, As Constituições do Brasil, Instituto Tancredo Neves, 1987, p. 27: "O tema que me foi prescrito para explanar neste momento, o da Constituição de 1891, em verdade não é de maior relevância, porque esta Constituição carece de um fundamento de legitimidade popular e, além disso, não alcançou uma satisfatória realização na sua rota de vivências políticas.

Faltou-lhe essa legitimidade porque o seu fato gerador - a proclamação da república, resul- tou de um seco golpe militar, que não veio pela onda de um movimento coletivo. O povo foi literalmente surpreendido por um ataque de comando e tropa do Exército isolado do Rio de Janeiro.

Não se objetará que naquele tempo o nosso povo ainda não estava dotado de sensibilidade e agilidade políticas. Ora não estaria assim incapacitado um povo mas saído da empolgação nacional e torrencialidade do movimento abolicionista.

E faltou-lhe realização política porque o aparato democrático da Constituição de 1891 ficou inerte, em sua maior parte, durante o longo período da sua vigência, em que somente vigorou e predominou o poder presidencial do regime executivo que ela introduziu por sua preceituação constitucional".

Foram diversos os movimentos que proclamaram a sua inspiração em uma dessas idéias, embora seja forçoso reconhecer que o ideário republicano federalista estivesse muito incipiente, sem contornos claramente definidos, pois o ideal predominante era o de emancipação política.

Francisco de Assis Alves, muito categoricamente, afirma que o primeiro evento realmente informado pelo ideal republicano federativo foi a Revolu- ção Pernambucana de 1824.

De outra parte, nota-se que a dissolução, por D. Pedro I, da Assembléia Constituinte, provoca um grande desalento em Pernambuco. O repúdio pelo gesto foi tão grave que deu lugar ao movimento revolucionário, com a colabo- ração de várias Províncias do Norte do País, culminando com a Proclamação de uma Confederação do Equador levada a efeito a 2 de julho de 1824.

No Rio Grande do Sul, proclamou-se em 1835 a República de Piratinim, logo sufocada.

A partir daí, os ideais republicano e federativo como que hibernam em longo sono do qual só acordarão em 1870, com a fundação no Rio de Janeiro do clube republicano patrocinado pelo jornal A República.

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Logo em seguida, em abril de 1873, ocorre a Convenção de Itu em São Paulo, da qual surge o Congresso Republicano Provincial, integrado, confor- me Afonso Arinos, pelos representantes individuais de vinte e nove municí- pios. Destes, catorze eram advogados e nove fazendeiros. Eleita a primeira comissão executiva, verificou-se que ela era composta de três advogados: Américo Brasiliense, Américo de Campos e Campos Sales. E, por quatro fazendeiros: João Tibiriçá, Tobias de Aguiar, Martinho Prado e Augusto da Fonseca.

Podemos ainda passar em revista os demais fatores que determinaram a queda do império, aproveitando a precisa e lúcida colocação do mestre Afon- so Arinos:

1.o A transformação da economia agrária determinando ou concorren- do para acontecimentos importantes; 2.o O aparecimento do exército com for- ça política influente, em substituição aos partidos em declínio, passando, aos poucos, a ser força decisiva e quase dominadora; 3.o A aspiração federalista, que, perceptível desde a constituinte de 1823, foi se desenvolvendo gradativa- mente durante o Império; 4.o Certas influências culturais, principalmente o positivismo; 5.o O isolamento em que se achava o Brasil como única Monar- quia continental e, graças ao mais estreito intercâmbio internacional, uma natural tendência ao enquadramento no sistema americano predominante, que era o da República presidencialista; 6.o O envelhecimento do imperador e seu relativo afastamento de um cenário político novo, cujos líderes ele não conhecia bem; a ausência de herdeiro masculino da Coroa e a falta de popularidade do príncipe-consorte estrangeiro" (Direito constitucional, cit., p. 115-7).

2. O DECRETO N. 1 E SUAS PRINCIPAIS MUDANÇAS

O primeiro ato jurídico do movimento armado de 15 de novembro de 1889 consistiu na edição do Decreto n. 1, redigido por Rui Barbosa. Por este diploma ficava provisoriamente decretada a forma de governo da nação brasi- leira: a República Federativa.

As províncias eram alçadas a Estados para poderem fluir daquela autonomia própria dos Estados-Membros de uma Federação.

Ficavam também autorizadas a editarem oportunamente suas Constituições.

De outra parte houve a criação, pelo governo provisório, de uma comis- são especial para elaborar o Anteprojeto de Constituição, composto de cinco membros, passando a ser conhecida como "Comissão dos Cinco".

2. Octaciano Nogueira, A Constituição de 1891, Fundação Projeto Rondon, p. 2: "Ponderados e discutidos todos esses alvitres, a "comissão dos cinco", como ficou designada em nossa história constitucional, elaborou o projeto definitivo e entregou-o ao Governo Provisório, em 30 de maio de 1890. Nesse trabalho coletivo as antigas províncias passaram a ser consideradas estados; não se falava em territórios, porque o Dr. Magalhães Castro cedeu a empenhos do Governo Provisório e abandonou sua primitiva opinião. Na distribuição das rendas prevaleceu o projeto Werneck-Pestana; mas entendeu-se dever suprimir os impostos de exportação, a datar de 1897. A Câmara dos Depu- tados teve a legislatura fixada em três anos; o Senado, eleito pelo sufrágio direto dos eleitores, prolongando-se o período por nove anos, como sugeriram Werneck e Pestana. O mandato do Presi- dente da República reduziu-se

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a cinco anos, de conformidade com a lembrança de Magalhães Castro; mas preferiu-se a eleição por eleitorado especial, a exemplo dos Estados Unidos e da Ar- gentina. Os secretários de Estado não podiam comparecer às sessões do Congresso; só iriam às comissões prestar esclarecimentos. Enfim, no Judiciário, determinava-se que o Supremo Tribunal de Justiça se compusesse de quinze juízes, nomeados pelo Senado, sem interferência do Poder Executivo: é o judicioso processo da Constituição suíça".

Nesta ocasião, inclusive quando do debate do Projeto na Assembléia Constituinte, exerceu grande influência a personalidade marcante de Rui Bar- bosa. Não é de se estranhar, pois, que a Constituição tenha encampado muitas de suas idéias, sobretudo a do Federalismo Americano, do qual era grande conhecedor.

3. Rui Barbosa, apud Aníbal Freire da Fonseca, A Constituição de 1891, Fundação Projeto Rondon, p. 7: "Foi, como se sabe, enorme a influência dos Estados Unidos na elaboração do nosso estatuto fundamental. Ela vinha endossada pelo governo provisório, no decreto de organização da justiça federal. Discutindo uma questão constitucional, Rui Barbosa ratificou essa consagração: nossa lâmpada de segurança será o direito americano, suas antecedências, suas decisões, seus mestres. A Constituição Brasileira é filha dele e a própria lei nos pôs nas mãos esse foco luminoso".

Do papel do grande Rui, nos dá conta, com muita felicidade, Wilson Accioli, em sua obra Instituições, cit., p. 78:

"A despeito de alguns publicistas discordarem, o fato é que há fundamento justificado na assertiva de que teria Rui Barbosa redigido, quase por inteiro, a Constituição de 1891. Em verdade, ingente foi o esforço do grande brasilei- ro, não só na elaboração do Estatuto Básico como também na defesa e inter- pretação do seu texto. Procurou ele, por todos os modos - conforme paten- teamos - preservar o espírito republicano de que era reflexo a nova Constituição, explicando ao povo, através da tribuna e dos jornais, sua essência e escopo

Com a Constituição Federal de 1891, o Brasil implanta, de forma definitiva, tanto a Federação quanto a República. Por esta última, obviam-se as desi- gualdades oriundas da hereditariedade, as distinções jurídicas quanto ao status das pessoas, as autoridades tornam-se representativas do povo e investidas de mandato por prazo certo.

A Federação implicou a outorga de Poderes Políticos às antigas Provín- cias, que assim passaram a governar os seus assuntos com autonomia e finan- ças próprias.

4. Cláudio Pacheco, As Constituições do Brasil, cit., p. 32: "Confirmando o que já decretara o Governo Provisório, a Constituição de 1891 implantou na estrutura constitucional brasileira aquilo que nela própria se denominava de "República federativa", constituída pela união perpétua e indissolúvel das antigas Províncias, pomposamente erigidas em Estados autônomos. A Federação vinha assim tomar o lugar da desmoronada envergadura da centralização monárquica. A estes Es- tados, assim erigidos por via de legislação, por meio de outorgas dadivosas de autonomia, foi deixada uma larga margem de competência que se expandia não só pela cláusula que facultava aos Estados regerem-se pela Constituição e pelas leis que adotassem, como pela outra que lhes faculta- va "em geral todo e qualquer poder, ou direito que lhes não for negado por cláusula expressa ou implícita contida nas cláusulas expressas da Constituição". Assim, toda a massa invisível e enorme de poderes que escapasse

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da enumeração, sempre lacunosa, de atribuições conferidas ao poder federal pela Constituição, explicitamente, refluía para a competência dos novos Estados.

Mas, emitindo em sentido oposto, a Constituição conferia ao Governo Federal, por uma cláu- sula que a prática constitucional revelou incompleta e elástica, o poder de intervir em negócios particulares dos Estados, cindindo e suplantando então toda a sua autonomia, sempre que se tor- nasse necessário repelir invasão estrangeira, ou de um Estado em outro, manter a forma republica- na federativa, restabelecer a ordem e a tranqüilidade nos Estados à requisição dos respectivos governos e assegurar a execução das leis e sentenças federais".

Para excluir o perigo de qualquer movimento de secessão ficou claro que a União era perpétua e indissolúvel.

De outra parte, procurou-se conferir a estes dois princípios uma estabilidade mais acentuada que às demais regras da Constituição, uma vez que eram insuscetíveis de modificação, ainda que por Emenda Constitucional.

Quanto aos poderes, volta-se à teoria clássica de Montesquieu, com um Executivo presidencialista, um Legislativo dividido em duas casas: o Senado e a Câmara dos Deputados, sendo o primeiro composto por representantes dos Estados, em número de três, com mandato de nove anos, e a segunda, recruta- dos em cada uma das unidades da Federação, procurando manter uma propor- cionalidade, ainda que não absoluta com a população desta.

O Judiciário sai fortalecido, não só com funções que antes não exercia como as do controle dos atos legislativos e administrativos, mas também com as seguintes prerrogativas: vitaliciedade (art. 57) e irredutibilidade de vencimentos (art. 57, § 1.o).

Fica assim claro que na nova estrutura não havia guarida para o Poder Moderador.

Quando da primeira eleição, o Presidente da República e o Vice eram eleitos por sufrágio direto da Nação e maioria absoluta de votos. A apuração ocorria na Capital Federal e nas Capitais dos Estados, para onde eram envia- dos os votos das respectivas circunscrições. Nota-se, pois, o nítido avanço democrático, abandonando-se o voto censitário.

No entanto, pelo crime de responsabilidade, o Presidente passa a ser submetido a processo de julgamento junto à Câmara, que preliminarmente tinha de manifestar-se por dois terços dos seus votos. Se a favor da denúncia, procedia-se à segunda fase consistente no julgamento propriamente dito, que era feito pelo Senado, nos crimes de responsabilidade, e pelo Supremo Tribu- nal Federal, nos crimes comuns.

5. Rui Barbosa, A imprensa. Ministério da Educação e Saúde, 1947: "Na forma política onde se moldou a Constituição brasileira, todos os grandes pensadores, todos os observadores de valor são unânimes em reconhecer e temer o poderio dos Presidentes. Dos freios e contrapesos, a que o regímen parlamentar submete a coroa dos monarcas, a república presidencial exonerou a autoridade do Chefe do Poder Executivo. Todo este ramo da energia constitucional absorve-se numa só individualidade, sobre a qual nenhuma ação têm os Ministros e o Congresso. Em vez de ser governado por uma comissão do parlamento, o país é regido pela discrição de um homem, cuja força igualaria à do Tzar, ou à do Sultão, se o curto período do seu ascendente o não desarmasse, a descentralização federativa o não

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circunscrevesse, e o papel extraordinário da Justiça Federal lhe não criasse obstáculos à ditadura".

A Declaração de Direitos mereceu grande destaque na Lei Maior de 1891.

Abrandam-se as penas criminais, suprimindo-se as penas de galés, de banimento judicial e de morte.

Conquista importante foi feita no terreno das garantias constitucionais que não constavam do Texto anterior. A Constituição Federal de 1891 se vê aclamada pelo utilíssimo Habeas Corpus, instrumento jurídico de grande valia na repressão às prisões indevidas e aos atentados ao direito de locomoção em geral. Ele não era desconhecido em nosso direito. Na verdade fora introduzi- do pelo Código Criminal de 1830, traduzindo-se em ato de grande importân- cia, sendo agora guindado ao Texto Maior.

A propósito, o Habeas Corpus vai representar um papel em nosso direi- to, de certa forma mais importante do que o cumprido em muitos países. E que no início do século XX ele vai sofrer uma interpretação muito extensiva, a ponto de se tornar um instrumento utilizável até mesmo em hipóteses que não seriam propriamente de preservação da liberdade física.

6. Marcelo Caetano, Direito constitucional, cit., v. 1, p. 542: "A Constituição, no § 22 do art. 72 e no seguimento da tradição vinda desde o primeiro Código do Processo Criminal do Império, permitia o habeas corpus sempre que o indivíduo sofresse ou se achasse em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso do poder.

Na concepção britânica o habeas corpus era o writ que mandava soltar o indivíduo ilegalmen- te detido ou preso, assegurando a sua liberdade de locomoção ou deslocação.

No Brasil, ele foi largamente usado nessa função. Mas Rui Barbosa lançou mão desse remédio, à falta de outro, para fazer face a outras ofensas ou ameaças a direitos individuais resultantes de ilegalidade ou abuso de poder, visto a Constituição não restringir o âmbito dele. Assim nasceu, com a consagração pelo Supremo Tribunal Federal, a doutrina brasileira do habeas corpus graças à qual foram defendidas a inviolabilidade do domicilio, a situação e direitos dos funcionários, a liberdade do exercício da profissão etc.

Mas por outro lado, essa extensão do instituto também veio a servir de instrumento das lutas entre facções políticas: quando, como freqüentemente sucedeu, as eleições eram contestadas e dois governadores, duas assembléias estaduais ou dois conselhos municipais pretendiam estar regular- mente eleitos a exercer as funções, os preteridos recorriam muitas vezes aos juízes a impetrar habeas corpus, levando os tribunais, por esse meio, a decidir quem legitimamente deveria ser investido".

Quanto à reforma da Constituição, todas as normas que a compunham passaram a ser consideradas constitucionais. Destarte, qualquer de seus preceitos só poderia ser alterado mediante um processo árduo, descrito no seu art. 90 e §§ 1.o a 4.o Descaracteriza-se assim a antiga distinção que se fazia entre nor- ma material e formalmente constitucional, que prevaleceu na Constituição Federal do Império.

7. Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição brasileira, 4. ed., 1948, v. 1, p. 67: "Pre- tendiam alguns apenas retocá-la; almejavam outros reforma radical, restringindo a

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autonomia dos Estados e restaurando o regime parlamentar. Alistou-se entre os primeiros o próprio Rui Barbosa, um dos autores do projeto de que resultou a Constituição; avantajara-se entre os últimos um dos maiores oradores parlamentares que brilharam sob o Império, Silveira Martins".

Finalmente é preciso que se diga o seguinte: a Constituição de 1891 recebeu um duro golpe provindo da própria realidade que ela pretendia regula- mentar. Com efeito, desde a sua entrada em vigor, foram freqüentes as crises, tornando-se necessária a decretação do estado de sítio.

De outra parte, os próprios teóricos não acreditavam nas suas virtudes, pretendendo, alguns, suprimi-la pura e simplesmente, e outros, modificá-la.

Foram estes últimos que prevaleceram, levando a cabo uma reforma do Texto Constitucional em 1926, marcada por uma conotação nitidamente racionalista, autoritária, introduzindo alterações no instituto da intervenção da União nos Estados, no Poder Legislativo, no processo legislativo, no fortaleci- mento do Executivo, nos direitos e garantias individuais e na Justiça Federal.

Em conclusão, qualquer que seja o juízo que se faça sobre as virtudes desta Emenda, o certo é que ela não teve o condão de garantir longevidade ao Texto Constitucional. Ele estava fadado a ser varrido das nossas instituições também por um movimento armado em 1930, quando então se fecha o perío- do hoje denominado Primeira República.

CAPÍTULO III CONSTITUIÇÃO DE 1934

SUMÁRIO: 1. Pontos principais. 2. Constituição democrática e social.

1. PONTOS PRINCIPAIS

Ao debruçarmo-nos sobre a Constituição de 1934, dois pontos princi- pais chamam a nossa atenção:

a) o extremo caráter compromissório assumido pelo Texto ante as múlti- plas divergências que dividiam o conjunto das nossas forças político-ideológicas da época;

b) a curtíssima duração de sua vigência, visto que, promulgada em 1934, estava condenada a ser abolida já em 1937 pela implantação do Estado Novo.

Quer um, quer outro desses aspectos merecem um estudo mais aprofun- dado e é o que, doravante, passaremos a fazer.

Não foi a Constituição de 1934 que pôs em derrocada a de 1891, uma vez que esta já se encontrava substituída pelo Decreto n. 19.398, de 11 de novembro de 1930, que instituiu juridicamente o Governo Provisório oriundo da Revolução vitoriosa.

Esta, como bem salienta Marcelo Caetano, se afigurava como um mero conflito de grupos no seio do regime:

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"Os governantes de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e da Paraíba discordaram do Presidente Washington Luiz quando este designou o seu su- cessor na presidência sem prévia consulta aos Estados acerca de outros pos- síveis candidatos, e formaram a Aliança Liberal, que apresentou candidatos próprios - Getúlio Vargas e João Pessoa - à eleição para Presidente e Vice-Presidente da República que se realizou em 1.o de março de 1932" (Di- reito constitucional, Forense, v. 1).

Os desdobramentos desses fatos também são de sobejo conhecidos. O partido derrotado, cônscio de ter ao seu lado parcela importante da popula- ção, irresignou-se com o resultado, partindo para a disputa pelas armas que, afinal, lhe deram razão.

Na verdade, contudo, a interpretação do fenômeno de 1930 como uma mera quizília entre governantes caprichosos é por demais simplista e não faz jus às profundas causas que vinham minando a Constituição de 1891. Fatores outros, de soberba importância, colaboraram para a sua consecução.

Com efeito, o sistema eleitoral existente à época, controlado pelas oligar- quias locais, não contava com a confiança dos cidadãos.

Conforme bem salienta Araújo Castro em A nova Constituição brasilei- ra, ao tratar do tema "Justiça Eleitoral", urgia que se fizesse desaparecer o falseamento da democracia. Tornara-se inadmissível que o reconhecimento dos eleitos fosse efetuado pelo próprio poder político, representado pelo Legislati- vo. Era imperativo que o conceito de conveniência do partido político fosse substituído pelo de justiça, conforme de direito.

O voto descoberto, a desorganização e a indisciplina reinantes nos parti- dos locais, todos à mercê dos "coroneis", industriais e banqueiros, haviam acabado por desnaturar o mandato político.

O direito à participação política das mulheres, de há muito reivindicado, não encontrava eco entre os detentores do poder, incompatibilizando-os com parcela significativa da sociedade.

Em que pese a importância do Judiciário, capaz, segundo Lopes Gonçalves, de por si só "conduzir o país à culminância da grandeza e da mais ampla prosperidade, desde que tenha a sua organização traçada com alta elevação, o melhor método possível e as mais sólidas garantias", notória era a falta de autonomia de que padecia à época.

O princípio da vitaliciedade era relativo e o da inamovibilidade quase que insubsistente, pondo em risco a independência de decisão de seus membros.

Por outro lado, a crise econômica de 1929, bem como o surgimento de movimentos sociais pleiteando melhores condições de vida, trabalho e distri- buição de renda, geraram controvérsias quanto à validade da democracia libe- ral e do liberalismo econômico.

Conseqüências diretas deste quadro foram o surgimento de correntes extremas, tanto de direita quanto de esquerda, e a eclosão de regimes fortes em diversas partes do globo.

O movimento irrompido em São Paulo, em 9 de julho de 1932, chamado "Constitucionalista", embora não tenha alterado a data fixada para a convo- cação da Assembléia, traduziu-se, sem dúvida, num elemento de pressão para que ela se cumprisse.

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O trabalho desenvolvido pelos Constituintes, em função do alto nível de seus membros, dos acirrados debates travados e perpetuados nos Anais da Constituição de 1934, acabou por traduzir-se em fonte de grande significação jurídica, de alto valor científico. A Constituição foi promulgada após a apro- vação final da redação, em 16 de julho de 1934.

1. Miguel Reale, Momentos decisivos do constitucionalismo brasileiro, Revista de Informa- ção Legislativa, 77:63: "Em tal contexto, com suas estruturas ainda indefinidas, quando as antigas oligarquias a Custo se acomodavam aos novos papéis que a República Nova lhes conferia, sendo raros os líderes capazes de atuar de maneira decisiva no flanco das idéias, uma Assembléia Cons- tituinte foi convocada para elaborar um diploma capaz de atender à Nova Nação que emergira do primeiro pós-guerra. E surgiu, assim, a Constituição de 1934".

Esse Estatuto Político, a par de assumir teses e soluções da Constituição de 1891, rompeu com a tradição até então existente, porque, sepultando a velha democracia liberal, instituiu a democracia social, cujo paradigma era a Constituição de Weimar.

Define Paulino Jacques as principais alterações ocorridas como sendo: a) quanto à forma: 1) introdução do nome de Deus no preâmbulo; 2) incorporação ao texto de preceitos de direito civil, de direito social e de direito adminis- trativo; 3) multiplicação dos títulos e capítulos, ficando a Constituição com mais do dobro de artigos que tinha a de 1891; b) quanto à substância: 1) refor- ço dos vínculos federais; 2) poderes independentes e coordenados entre si; 3) sufrágio feminino e voto secreto; 4) o Senado com funções de prover a coorde- nação dos poderes, manter a continuidade administrativa e velar pela Consti- tuição; 5) os Ministros de Estado, com responsabilidade pessoal e solidária com o Presidente da República e obrigados a comparecer ao Congresso para prestarem esclarecimentos ou pleitearem medidas legislativas; 6) a Justiça Militar e Eleitoral, como órgãos do Poder Judiciário; 7) o Ministério Público, o Tribunal de Contas e os Conselhos Técnicos, coordenados em Conselhos Ge- rais, assistindo aos Ministros de Estado, como órgãos de cooperação nas ativi- dades governamentais; 8) normas reguladoras da ordem econômica e social, da família, educação e cultura, dos funcionários públicos, da segurança nacional.

Algumas dessas medidas revestem-se hoje de um caráter até certo ponto esdrúxulo, eis que não continuaram a ser prestigiadas nas Constituições poste- riores, mantendo-se em remansoso oblívio.

2. Josaphat Marinho, A Constituição de 1934, in As Constituições do Brasil, Instituto Tancredo Neves, p. 48: ""Dir-se-á que a Constituição de 1934, além daquelas omissões já apontadas, encerrou outras falhas, que lhe reduziram o horizonte e a influência histórica. É exato. A representação profissional ou de classe (art. 23) e a transformação do Senado em órgão de coordenação de pode- res (art. 88) não se revelaram inovações que pudessem robustecer a democracia e a federação, ou o funcionamento do Legislativo. Uma se vinculava ao regime corporativo, que entrou em decadên- cia. A outra indicava combate ao bicameralismo, mas consistiu numa solução contraditória, que resultou em atribuir competência legislativa a órgão que não integrava o Poder Legislativo, e dele era apenas colaborador (arts. 22, 90, c, 91, 44 e outros).

É de admitir-se, também, que o Anteprojeto de Constituição, elaborado pela Comissão do Itamarati, foi mais renovador, e no concernente ao Poder Legislativo de maior coerência, porque, preferindo o regime unicameral, suprimia o Senado, ao invés de desfigurá-lo e mantê-lo".

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Assim ocorreu, por exemplo, com o papel outorgado ao Senado, como órgão de coordenação dos demais poderes. Dispunha o art. 88:

"Ao Senado Federal, nos termos dos artigos 90, 91 e 92, incumbe promover a coordenação dos poderes federais entre si, manter a continuidade admi- nistrativa, velar pela Constituição, colaborar na feitura das leis e praticar os demais atos da sua competência".

Era como que a reconstituição do Poder Moderador do Império, transfor- mado no órgão supremo do Estado. Marcelo Caetano vê nele semelhanças como o Senado Conservador das Constituições francesas do ano VIII e do ano X.

3. Marcelo Caetano, Direito constitucional, cit., v. 1, p. 553: "Na verdade, depois de regular os três poderes clássicos, dedica um capítulo à coordenação dos poderes e outro aos órgãos de coope- ração nas atividades governamentais.

A coordenação dos poderes seria feita pelo Senado Federal, a quem se daria uma espécie de Poder Moderador, transformando-o no órgão supremo do Estado, à semelhança do Senado Conser- vador das Constituições francesas do ano VIII e do ano X. No intervalo das sessões legislativas, o Senado continuaria em exercício através da sua Secção Permanente".

Araújo Castro, A nova Constituição brasileira, Freitas Bastos, 1935, p. 5 e 6: "Não nos parece que haja sido feliz o legislador constituinte na organização dada ao Senado Federal, porque, no nosso regime, não se concebe que a um órgão se confira a faculdade de coordenar os poderes políticos, mormente declarando-se, como se declara expressamente, que esses poderes são inde- pendentes e coordenados entre si. Além disso, entre as atribuições que lhe foram outorgadas, algu- mas há que poderão dar lugar a freqüentes conflitos com o Poder Executivo, em detrimento da ordem pública e dos altos interesses do pais".

Também os Conselhos Técnicos, de existência prevista em todos os Minis- térios, os quais tinham poder de veto das decisões ministeriais, por parecer unânime, foram relegados ao esquecimento, destino reservado também ao Unicameralismo do Legislativo, e à representação classista na Câmara dos Deputados.

Outras inovações, contudo, incorporaram-se ao nosso direito constitucional, traduzindo-se em autênticos avanços que marcaram como que baluartes avan- çados, sobretudo no campo das nacionalizações e dos direitos sociais, os quais seria mesmo impensável recusar em nossos dias. Citem-se, a título de ilustra- ção, entre as anteriormente arroladas, as alterações na legislação eleitoral, a sindicalização, as normas de Previdência Social, o mandado de segurança e a ação popular.

4. Francisco de Assis Alves, As Constituições do Brasil, Revista, cit., p. 34: "Um dos melhores momentos de inspiração dos constituintes de 34 foi o da criação da Justiça Eleitoral. Este o grande destaque do Poder judiciário, na Carta Política da Segunda República.

O sistema representativo ganhou em muito com a Justiça Eleitoral, preparada dentro dos prin- cípios da independência e imparcialidade, para tratar de toda matéria que lhe é afeta.

Posto acima dos interesses partidários, esse órgão teve por escopo aperfeiçoar e moralizar o sistema eleitoral.

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A Justiça Eleitoral, consignou Wenceslau Escobar, "teve o objetivo de pôr termo aos escanda- losos reconhecimentos pela Câmara dos Deputados de cidadãos que, sem terem sido eleitos, a Câmara os diplomava como representantes da Nação" (Correio do Povo - Porto Alegre -2-12-36)".

Ronaldo Poletti, A Constituição de 1934, Centro de Ensino à Distância, p. 34: "Aliás, a Cons- tituição de 34, nas pegadas do anteprojeto, trouxe muitas contribuições a esse tema do controle da constitucionalidade.

De fato, estabeleceu o recurso extraordinário das decisões das causas decididas pelas justiças locais em única ou última instância, quando se questionasse sobre a vigência ou validade de lei federal em face da Constituição (art. 76, III).

Determinava, ainda, que só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus juizes pode- rão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do poder público (art. 17o).

Mas, a mais importante inovação estava na citada competência do Senado. Era a maneira de solucionar um dos mais graves problemas do controle da constitucionalidade. A ausência da regra do stare decisis implica que os juizes não estão obrigados a deixar de aplicar a lei, declarada inconstitucional pelo Supremo. A solução da Constituição permitia dar efeitos erga omnes a uma decisão num caso concreto. Além disso, atenuava-se o problema da quebra de harmonia e equilí- brio entre os poderes, pois remetia a um órgão do Poder Legislativo a atribuição de suspender a execução da lei declarada inconstitucional.

Outra importante inovação foi a obrigatoriedade de os estados-membros se constitucionalizarem com a observância de determinados princípios, sob pena de intervenção federal. Esta dependeria de o Procurador-Geral da República provocar o exame do Supremo sobre a constitucionalidade da lei violadora do pressuposto. Criava-se, assim, a ação direta de inconstitucionalidade.

A Constituição de 34 contribuiu, ainda, para o controle da constitucionalidade, ao arrolar, dentre os direitos individuais, o mandado de segurança, possibilitando que os atos das autoridades fossem impugnados, desde que fundados em lei inconstitucional".

Do ponto de vista histórico, a Constituição de 1934 não apresenta rele- vância. É, no fundo, um instrumento circunstancial que reflete os antagonis- mos, as aspirações e os conflitos da sociedade daquele momento, mas que estava fadada a ter uma curta duração, abolida que foi pelo golpe de 1937.

2. CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA E SOCIAL

O matiz dominante dessa Constituição foi o caráter democrático com um certo colorido social. Procurou-se conciliar a democracia liberal com o socialismo, no domínio econômico-social; o federalismo com o unitarismo; o presidencialismo com o parlamentarismo, na esfera governamental.

Ela representa, na verdade, um compromisso diante das diversas forças que protagonizavam os diversos movimentos e eventos políticos que a antece- deram.

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No Brasil, observa-se um certo cansaço pela política chamada de "café- com-leite", que traduzia a supremacia de São Paulo e Minas Gerais, bem co- mo o aumento da pregação tenentista com seus apelos de moralização e de unidade nacional.

No período compreendido entre o movimento armado de 1930 e a pro- mulgação da Constituição de 1934, vários acontecimentos tiveram relevo.

Uma das primeiras providências tomadas pelo Governo Provisório foi a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública e do Ministério do Traba- lho e Indústria e Comércio, que atuariam como órgãos de realização da políti- ca econômica e social do movimento renovador.

Estas duas pastas atiraram-se à tarefa de reorganização e ampliação dos serviços de instrução e saúde pública, expedindo farta legislação sobre direi- tos e benefícios dos trabalhadores.

Segundo Paulino Jacques em seu Curso de direito constitucional, o movi- mento cumpriu nessas áreas as promessas feitas, bastando para tanto lembrar a regulamentação da duração da jornada de trabalho, sindicalização, unifor- mização das leis de aposentadoria e pensão, estabilidade de emprego, que "mais tarde tomariam grande impulso, para recomendar o movimento à admi- ração da posteridade".

No mesmo ano, 1930, criou-se uma grande comissão de juristas, a qual tinha por fim rever a legislação em vigor e apresentar novas modificações e projetos de lei. Fruto direto do trabalho por ela realizado foi a implantação de reforma eleitoral, que se traduziu não só na adoção do sufrágio secreto uni- versal e direto, incluindo o voto das mulheres, o voto obrigatório e a votação proporcional, mas também a adoção de um estatuto dos partidos políticos e, principalmente, a obra majestosa da instituição de uma Justiça Eleitoral para organizar e disciplinar as eleições, delegando-se aos seus membros as garan- tias da magistratura federal.

O Governo Provisório elegeu uma Comissão incumbida de elaborar um anteprojeto de Constituição Federal, a qual deveria completar seus trabalhos até 3 de maio de 1933, data fixada para a realização das eleições à Assembléia Constituinte.

É importante lembrar, aqui, que as forças que fizeram a Revolução de 1930, em 1933 já estavam divididas; de um lado havia um grupo inteiramente fiel a Getúlio, representado pela cúpula do Exército, bem encarnada na figura de Góes Monteiro; de outro, havia o grupo dos tenentistas, que tinham pro- postas de modificações muito mais radicais. Além disso, há que registrar-se o movimento daqueles que estavam fora do governo, como a velha oligarquia estadual remanescente do Partido Republicano Paulista - "os carcomidos".

Havia, ainda, a compor o tabuleiro político, as forças que estiveram ao lado de Getúlio, mas que bandearam. Era o caso do Partido Democrático, cujo programa principal consistia em pretender implantar a verdade da Constituição de 1891.

Dentro deste quadro, explicáveis são as diversas concessões feitas pelo Texto Constitucional, à época, tentando conciliar correntes tão diversas.

Assim é que encontramos na Constituição uma feição liberal, em res- posta às forças não comprometidas com 1930, ao lado de uma marcante ten- dência centralizadora, tecnocrática, tão bem expressa nos Conselhos Técni- cos, criados em atenção às forças

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getulistas. Getúlio havia intuído que a for- ma de vergar as oligarquias locais era, precisamente, a criação de um apare- lho amplo formado por autênticos tecnocratas.

Havia também o lado nacionalista, que era uma resposta a certos setores do Exército, os quais propugnavam pela apropriação, pelo Estado, de certas riquezas e atividades.

Embora democrático e social, apresentava o Texto um lado corporativista na medida em que previa, na Câmara dos Deputados, os chamados represen- tantes classistas. Mais uma manobra de Getúlio para subjugar o caciquismo das oligarquias locais.

Finalmente, há o lado social da Constituição, que resultou da necessida- de de atender à massa urbana proletária existente, sobretudo nas ferrovias e nos portos. Estas atividades eram nevrálgicas para a economia de exportação do País, o que levou Getúlio a enquadrá-las, inclusive pela via de sindicalização oficial. É dizer, de um lado o Governo reconhecia um sindicato como repre- sentante da categoria, mas, de outro, passava a exercer um controle sobre ele.

Em conclusão, o que se vê é que a Constituição de 1934 espelhava, de forma praticamente fidedigna, as forças expressivas do contexto político-social de então. O que não deixa de revelar, inclusive, um mérito da recente legisla- ção eleitoral que havia sido posta em vigor, a qual levou à formação de uma Constituinte composta por líderes extremamente talentosos e expressivos das mais diversas correntes do pensamento político.

5. Josaphat Marinho, A Constituição de 1934, in As Constituições do Brasil, cit., p. 47: "Se a Constituição de 1934 não foi revolucionária, no sentido de corporificar transformações radicais, enriqueceu-se de conteúdo progressista. Para certeza desse juízo, basta que sejam realçadas, no conjunto das provisões já referidas, as pertinentes aos direitos sociais. Eram estes, então, "o divisor de águas entre a democracia individualista e a democracia social", como bem frisou, examinan- do as inovações da Constituição, o jovem professor Orlando Gomes, portador, na época, de pensa- mento avançado".

A curta duração que teve não deve ser explicada pelos defeitos que tra- zia em si, mas, em verdade, pela radicalização do clima social de então.

Tanto a extrema esquerda quanto a extrema direita tornaram inviável a sua plena aplicação, gerando condições para que fosse possível o Golpe de 1937.

CAPÍTULO IV CONSTITUIÇÃO DE 1937

SUMARIO 1 O golpe de 37 2 Inaplicabilidade da Constituição de 1937

1. O GOLPE DE 37

Em 10 de novembro de 1937, o Brasil se vê colocado debaixo de uma nova Carta outorgada. Os antecedentes que propiciaram o desencadeamento do golpe, cuja institucionalização jurídica se deu nesta lei fundamental, foram prin- cipalmente os seguintes: a Constituição de 1934, de cunho bastante liberal pelo menos se confrontarmos as suas disposições com as dificuldades existentes, e as crises de toda ordem que o Brasil ia enfrentar

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nos anos imediatamente sub- seqüentes. Parece, pois, ter sido este descompasso entre o previsto na Consti- tuição e a realidade por que passava o País que o levou a uma vulnerabilidade muito grande, tornando possível a deflagração vitoriosa do golpe como conse- qüência da perda de credibilidade nesses anos imediatamente antecedentes à Carta de 1937 em que proliferavam no País movimentos de cunho extremista: pela direita a ação integralista e pela esquerda o Partido Comunista, tendo este inclusive praticado um atentado contra um estabelecimento militar.

Portanto, a crise espontânea, ou de certa forma insuflada pelo próprio Presidente, serviu de justificativa para que fosse dado o golpe e em seguida adotada a Carta que consagrava o seu ideário, que passaremos a ver em seguida.

À Constituição democrática e social de 1934 sucede esta de 1937, inspirada no modelo fascista e, em conseqüência, de cunho eminentemente autoritário, o que fica visível dentre muitos outros dispositivos no art. 73, que arrola as competências do chefe máximo da nação. Diz este preceptivo:

"O Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política inter- na e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do país".

Vê-se assim que são postas em derrocada as vigas mínimas que poderi- am sustentar um Estado democrático e um Estado de Direito.

1. Francisco Campos, em entrevista concedida ao Correio da Manhã do Rio de Janeiro, 3 mar. 1945: "A Constituição de 1937 não é uma Constituição fascista. Aliás está muito em moda acoimar-se de fascista a todo indivíduo ou toda instituição que não coincide com as nossas opiniões políticas. No tempo em que o comunismo representava la béte noire, a moda era inversa. Comunista era todo indivíduo ou a instituição que julgávamos em desacordo com as nossas convicções políticas. A ascen- são do comunismo e o declínio do fascismo no horizonte político mundial determinaram essa inver- são. Basta o exame mais superficial das linhas gerais da Constituição, para que qualquer indivíduo da mais elementar cultura política verifique que o sistema da Constituição de 1937 nada tem de fascista. Não se conceberia, com efeito, pudesse ser acoimada de fascista uma Constituição que assegura ao Poder Judiciário as prerrogativas constantes da Constituição de 1937, que abre no próprio texto constitucional todo um capítulo destinado a garantir a estabilidade dos funcionários públicos.

O art. 177 autorizava a aposentadoria dentro do prazo de 60 dias, a contar da data da Consti- tuição, isto é, até 10 de janeiro de 1938. Ora, como vê, a faculdade era estritamente limitada no tempo e, se continuou a ser aplicada depois, foi por exclusivo arbítrio do Governo.

A Carta de novembro estabelece, ainda, a responsabilidade do chefe do Governo, atribuindo ao Parlamento a faculdade de processá-lo e de destituí-lo do mandato; também assegura aos Esta- dos federados a mais completa autonomia.

Os males que, porventura, tenham resultado para o país do regime inaugurado pelo golpe de Estado de 1937 não podem ser atribuídos à Constituição. Esta não chegou sequer a vigorar. E, se tivesse vigorado, teria, certamente, constituído importante limitação ao exercício do poder.

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Poderia haver ao lado ou à sombra da Constituição de 1937 ideologias ou individualidades fascistas. Eram, porém, fascistas frustes, larvados (no bom sentido latino), sem o fundo das grandes culturas históricas, cujo espírito os autênticos fascistas europeus haviam traído, assimilando o seu aspecto técnico e dinâmico e esquecendo os seus valores de sentido e direção.

Mas a Constituição de 1937 não é fascista, nem é fascista a ditadura cujos fundamentos são falsamente imputados à Constituição. O nosso regime, de 1937 até hoje, tem sido uma ditadura puramente pessoal, sem o dinamismo característico das ditaduras fascistas, ou uma ditadura nos moldes clássicos das ditaduras sul-americanas.

Se a Constituição tivesse sido aplicada, não nos encontraríamos, hoje, no impasse em que nos encontramos. Ela poderia ter sido oportuna e pacificamente atualizada, sem que se precisasse de recorrer aos expedientes, aos malabarismos e aos sofismas que tanto enfraqueceram o Governo perante a Nação".

Trata-se, portanto, de documento destinado exclusivamente a institucio- nalizar um regime autoritário. Não havia a divisão de poderes, embora existissem o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, visto que estes últimos sofriam ní- tidos amesquinhamentos.

2. Francisco de Assis Alves, As Constituições do Brasil, Revista, cit., p. 38: "Era natural que, pela sua índole ditatorial, a Constituição de 1937 conferisse ao Presidente da República poderes em exuberância.

Por isso, em seu artigo 73, declarou, sem receio de exagero, que o Presidente da República era a autoridade suprema do Estado, coordenador da atividade dos órgãos representativos de grau superior, dirigente da política interna e externa, promotor e orientador da política legislativa de interesse nacional, superintendente e administrador do país.

Nessa coerência, não havia dispositivo na Carta Forte que dispusesse sobre a divisão de poderes. Decerto, descabível tal declaração. Já que quase todos os poderes tinham sido atribuidos ao Presiden- te da República, não se conciliaria uma norma desse teor com o poder que o Chefe Supremo do Estado enfeixava em sua mão. Além da larga competência privativa que o artigo 74 da Carta de 1937 lhe outorgava, o Presidente da República detinha prerrogativas, como as de indiciar um dos candida- tos à Presidência da República, dissolver a Câmara dos Deputados (quando esta não aprovasse as medidas tomadas na vigência do estado de emergência ou do estado de guerra, por ele decretados. O Presidente poderia apelar da deliberação da Câmara para o pronunciamento do país, mediante a dissolução da mesma e a realização de novas eleições) (arts. 75, b, c/c 167, parágrafo único).

Afora isso, constituía privilégio do Presidente nomear os ministros de Estado; designar os membros do Conselho Federal reservados a sua escolha; adiar, prorrogar e convocar o Parlamento, e exercer o direito de graça (art. 75,f)".

Pontes de Miranda, "Visão sociológica da Constituição de 1937", artigo publicado na Folha de Minas, 5 dez. 1937: "Por mais arraigada que estivesse, entre nós, a convicção de ser o princípio da separação dos poderes essencial às Constituições modernas, convicção que, em 1932, denunci- áramos como superstição, vemos que o legislador Constituinte de 1937 não só riscou o princípio, que nas Constituições anteriores se achava, como também adotou a feitura das leis, em parte, pelo Poder Executivo, com nome de

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"decretos-leis", e permitiu ao Parlamento, por iniciativa do Presi- dente da República, o exame da decisão judicial que declarou inconstitucional essa lei, golpe pro- fundo na separação dos poderes, pois que, confirmada a lei por dois terços de votos em cada uma das Câmaras fica sem efeito a decisão do Tribunal. Tecnicamente, para quem se acostumou a obser- var e classificar os fatos relativos à estrutura constitucional dos Estados, temos aí a guarda da Constituição entregue aos tais Poderes: ao Poder Judiciário, na apreciação do caso concreto; ao Presidente da República, a cujo juízo se deixa submeter ou não o julgamento da lei ao reexame parlamentar; finalmente, ao Poder Legislativo, que, por dois terços de votos, se pode manifestar contra a declaração de inconstitucionalidade".

No Legislativo desaparece o Senado e em seu lugar é colocado um Conselho Federal, não sendo este, no entanto, o acontecimento marcante. O mais grave, o fato que conta, é que o Presidente da República poderia a qualquer momen- to pôr em recesso o Legislativo, ocasião em que todas as faculdades deste poder passavam-lhe às mãos.

Quanto ao Judiciário, também sofreu este uma perda substancial no que tange ao controle da constitucionalidade das leis já introduzido em nosso direito, mas que neste Texto Constitucional se vê reduzido a quase nada. Declarada a inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, esta lei é submetida de novo ao legislativo, que poderia por maioria de dois terços rejeitar esta deci- são, caso em que a própria Constituição resultava alterada.

Nada obstante isto, durante o estado de emergência o Judiciário era posto fora de atuação na medida em que não podia conhecer dos atos governamen- tais nos termos do art. 170, que dizia:

"Durante o estado de emergência ou o estado de guerra, dos atos praticados em virtude deles não poderão conhecer os juízes e tribunais".

A Constituição, portanto, era na verdade uma tomada de posição do Brasil no conflito ideológico da época pela qual ficava nítido que o País se inseria na luta contra os comunistas e contra a democracia liberal.

2. INAPLICABILIDADE DA CONSTITUIÇÃO DE 1937

É bem de ver, contudo, que a importância de ser do Texto acabou por não ser grande, visto que não houve necessidade de pó-lo realmente em vigor. Esta vigência só decorria dos termos do art. 187 que rezava:

"Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao ple- biscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República".

Sem embargo, este plebiscito nunca se realizou. Segue-se que, em ter- mos jurídicos, a Constituição jamais ganhou vigência, pois na verdade o que prevaleceu nesta época foi o chamado Estado Novo, estado arbitrário despo- jado de quaisquer controles jurídicos, onde primava a vontade inconteste do ditador Getúlio Vargas.

3. Francisco de Assis Alves, As Constituições do Brasil, Revista, cit., p. 44: "A Carta Funda- mental de 1937 prescreveu em seu artigo 187 que sua vigência iniciava-se em 10 de novembro de 1937, data em que fora decretada. Dizia mais, que seria submetida a plebiscito nacional regulável por decreto do Presidente da República.

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Acontece, porém, que esse plebiscito jamais se realizou. E uma das razões desse esquecimen- to proposital estava em que, após sua realização, haveriam de ser marcadas as eleições ao Parla- mento Nacional e o mandato do Presidente da República chegaria ao fim, como previa o artigo 175 da Constituição.

Esses dois acontecimentos, em previsão, por certo, estavam bem distantes das conveniências presidenciais. O primeiro porque, enquanto não se reunissem a Câmara dos Deputados e o Senado Federal que, juntamente com as Assembléias Legislativas dos Estados e as Câmaras Municipais, haviam sido dissolvidos por força do artigo 178, o Presidente da República teria o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União, privilégio bem a gosto dos Chefes de Governos despóticos.

Quanto ao término do período presidencial, as razões para seu protraimento são óbvias num regime desta índole.

A par disso, a não-realização do plebiscito fez exsurgir uma trágica conclusão sobre a Carta de 1937; ela nunca existiu e o Presidente da República, por isso, exerceu, ao seu tempo, um gover- no de fato.

Toda obra legislativa desse período coube ao Presidente da República, que a empreendeu tanto a nível infraconstitucional como constitucional. As limitações impostas pela Lei Maior foram superadas ao sabor do exercício totalitário do poder, que o Presidente Vargas o cultuou à revelia do próprio Texto Constitucional".

Isto não quer dizer contudo que não houvesse num ou noutro passo do Texto concessões ao que seria um Estado de Direito. Tal conclusão se materializa pela existência de plebiscito e pelo extenso rol de direitos individuais. A res- peito muito bem observou o saudoso Wilson Accioli (Instituições, cit., p. 82), quando demonstrou que mesmo esses dispositivos nada mais eram do que também disposições isentas de qualquer repercussão na realidade que conti- nuava, de resto, sempre submetida ao jugo de um regime autoritário. Vejamos o seu texto:

"Interessante observar que a Carta de 1937 aparentava conservar os fun- damentos basilares da democracia, mantendo inclusive as garantias dos cida- dãos no elenco da Declaração dos Direitos dos Indivíduos e afirmando no seu artigo 1.o a origem popular do poder, mas havia na realidade um patente hiato entre o que preconizava a Lei Maior e a sua concreta aplicabilidade, tanto assim é que nem se realizou o plebiscito preceituado no artigo 187 nem se convocaram eleições imprescindíveis para a composição e funcionamento efetivo do Congresso Nacional".

4. Francisco Campos, em entrevista dada ao jornal Correio da Manhã, 3 mar. 1945: "O Ato Adicional não corresponde às transformações que se impunham à Constituição. A única modificação introduzida de caráter democrático é a eleição direta. Essa modificação, entretanto, não é suficiente para integrar o Brasil num regime constitucional de caráter democrático. A ela não se faz uma refe- rência nesse documento. Ora, a Constituição é radicalmente contrária à liberdade de opinião. Ela postula, em princípio, essa liberdade, mas, logo em seguida, a condiciona e limita em tais termos que acaba por negar o que havia postulado. Ela estabelece, com efeito, a censura prévia da imprensa. Ora, o regime da censura prévia é, precisamente, o regime da suspensão da liberdade. Não se concebe regime democrático ou representativo em que não haja liberdade de opinião. A liberdade de opinião é da substância do regime democrático. De nada vale prescrever na Constituição que os órgãos

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supre- mos do Estado serão eleitos por sufrágio direto se ao mesmo tempo e no mesmo documento se proscreve a liberdade de opinião, sujeitando a expressão do pensamento à censura prévia do Governo.

Reconhecemos que a questão da imprensa é uma das mais graves e das mais delicadas que as condições do mundo moderno criaram no domínio político e social. A imprensa de grande tiragem, a imensa difusão do papel impresso, dentre massas cada vez mais densas e excitáveis, constitui um dos problemas que desafiam a inteligência e a competência dos governos. Será, porém, que a supressão da liberdade de opinião constitui a solução adequada do problema?

Se constitui, então, não se poderá conciliar a solução com os postulados do regime democrá- tico e representativo. Neste caso, o único regime possível será o das ditaduras. Não acreditamos, porém, que assim seja. É possível regular a imprensa mediante uma lei adequada que lhe deixe a liberdade e torne efetiva a sua responsabilidade. Não pode haver em regime democrático poder irresponsável. Quanto maior o poder, tanto maior deve ser a responsabilidade. Que os homens do Governo tenham a coragem necessária para fazer uma lei de imprensa que, sem lhe diminuir a liberdade, faça com que, ao invés de nociva, ela se torne útil ao bem comum.

As restrições à liberdade de imprensa vigentes entre nós nos últimos anos contribuíram para a degradação cívica, intelectual e moral a que se chegou no Brasil. A liberdade de opinião não é apenas um conceito político. É um conceito de civilização e de cultura. Todo o edifício do mundo moderno repousa sobre este fundamento. A educação, a investigação, as invenções e os progressos técnicos e científicos em todos os domínios somente são possíveis graças a esse postulado sem o qual os povos da terra se veriam reduzidos à condição das tribos africanas. Não se concede que um país como o Brasil haja vivido tantos anos de privação da liberdade de opinião sem graves danos a sua civilização e à sua cultura. É certo que existem evidentes indícios desse dano ao patrimônio histórico da nossa cultura".

Esta situação só viria a encontrar paradeiro com o desfecho havido na Europa encerrando-se a 2.a Guerra Mundial com vitória das potências ociden- tais. Tornava-se assim no Brasil o fascismo uma excrecência que cumpria ser logo varrida. Deste papel se incumbiram as Forças Armadas no final de 1945, ensejando destarte o estudo e a convocação de nova Constituinte que desem- bocaria na Constituição de 1946. Como nota deste capítulo convém trazer à colação o seguinte texto retirado da obra de Francisco de Assis Alves, As Constituições do Brasil, Revista, cit., p. 44, ao falar da Supressão de diversas garantias individuais durante a Carta de 1937:

"Era de se esperar que a Constituição de 1937 criasse restrições aos direitos individuais e às suas garantias. Sua origem depunha contra vários princípios de obrigatória inclusão nos Textos constitucionais regradores do Regime Democrático, por isso nela não foram albergados os princípios da legalidade, da irretroatividade da lei nem tampouco o Mandado de Segurança orgulhosamente inaugurado pela Carta Política de 1934. Em lugar deles rea- pareceu a pena de morte para os crimes políticos e para os homicídios come- tidos por motivo fútil e com extremos de perversidade, O direito de manifes- tação de pensamento foi limitado através da censura prévia da imprensa, te- atro, cinema e radiodifusão, sendo facultado à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação. Nenhum jornal podia, ainda, recu- sar a inserção de comunicados do governo, nas dimensões taxadas

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em lei; ao diretor responsável seria imposta a pena de prisão, e à empresa, aplicada a pena pecuniária; as máquinas e utensílios tipográficos utilizados na impres- são do jornal constituíam garantia do pagamento da multa, reparação ou inde- nização, e das despesas com o processo nas condenações pronunciadas por delito de imprensa. Tudo isso, como prescrito no artigo 15 da Constituição Polaca, em garantia da paz, da ordem e da Segurança Pública.

5. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1937, p. 13-4.

Essa Constituição, dirá Pontes de Miranda, não saiu só do Brasil, veio de outros sistemas, velhos e novos, e seria falsear-se-lhe os ditames querê-la separar do mundo e dos seus modelos que - ao contrário do que sucedera à de 1891, mais americana - é algo de intermediário entre o norte-americano do século XVIII e o europeu de após guerra. Mas já é menos norte-americana que a de 1934 e menos liberal que a Carta, a linhas retas, de 1891.

Walter Costa Porto, A Constituição de 1937, Centro de Ensino à Distância, p. 9: "Tantas vezes se disse que a Constituição brasileira de 10 de novembro de 1937 teve como parâmetro a Constitui- ção polonesa, promulgada em 23 de abril de 1935, que, à nossa Carta, se juntou sempre o apodo de "Polaca".

Defensores da Constituição polonesa afirmam que ela teve por tendência consolidar, antes de tudo, o Estado social, não havendo investido o Presidente da República na tarefa de fazer uma política pessoal, mas dado a ele a função de regular as atividades autônomas, visto que "o sistema de autonomia era geral e de autonomia econômica em particular foi considerado como uma das principais instituições do Estado".

O ponto mais delicado da reforma seria o fortalecimento do Governo pelo reforçamento do Executivo, sem estabelecer o poder pessoal e absoluto.

E o mesmo se poderia dizer de nossa Carta de 1937 - é a conclusão dos que elogiam seu texto, como Estellita Lins.

Mas muito se cuidou, em defesa da Constituição de 1937, em dar ênfase aos pontos que a distanciaram da Carta polonesa de 1935. Esta prescrevia, por exemplo, que o Presidente não seria responsável "pelos seus atos oficiais".

A nossa indicava, em seu artigo 85, que seriam crimes de responsabilidade os atos do Presi- dente, definidos em lei, que atentassem contra a existência da União, a Constituição, o livre exercí- cio dos poderes políticos, a probidade administrativa, a guarda e emprego dos dinheiros públicos e a execução das decisões judiciárias.

Divergências foram, também, apontadas no capítulo de organização do governo, na demissibilidade dos ministros, nos direitos de elegibilidade, nas imunidades parlamentares, na elaboração legislativa, no controle da constitucionalidade das leis.

Mas as proximidades são evidentes. A começar pelo modo por que, sem dissimulação, é res- saltada a proeminência do Poder Executivo.

"A autoridade única e individual do Estado é concentrada na pessoa do Presidente da Repúbli- ca", reza o artigo 2.o da Constituição polonesa.

"O Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa,

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promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional e superintende a administração do país", diz o artigo 73 da nossa Constituição.

E as convergências prosseguem - no poder do Presidente de adiar as sessões do Parlamento; de dissolver o Legislativo, limitado, no caso brasileiro, a única hipótese; da iniciativa em matéria de leis; nos prazos para exame do orçamento, pelo Congresso; nas disposições sobre o estado de sítio ou de emergência".

Isso, sem dúvida, era a loucura de poder do Presidente da República que, a despeito de se declarar guardião da paz, da ordem e da segurança pú- blica, confinava a liberdade do povo brasileiro entre os muros da opressão.

CAPÍTULO V CONSTITUIÇÃO DE 1946

SUMÁRIO 1 Principais influências 2 Aspectos fundamentais

A Carta de 1937 nunca chegou a viger. Ela dependia de um plebiscito que nunca se realizou. Destarte, quando a Segunda Guerra já dava mostras de estar se aproximando do seu fim, com a vitória dos países democráticos, Getúlio Vargas, aqui no Brasil, procurou atualizar e compaginar o nosso direito constitucional às novas realidades políticas que o término da Guerra já deixava entrever.

Foi assim que logo no início de 1945, através da Lei Complementar, Lei Constitucional n. 9, introduziram-se Emendas na Carta de 1937, sendo a prin- cipal delas a fixação da data das eleições para 2 de dezembro do mesmo ano.

Observe-se que essa legislação não tinha em mira a elaboração de uma nova Constituição, mas tão-somente introduzir modificações na sua existência de modo a perpetuar o Texto vigente com o mínimo de modificações possíveis.

Ocorre, entretanto, que os passos vão precipitar-se, demonstrando que essa saída era por demais tímida e já não correspondia à celeridade com que se vinham dando os desdobramentos no cenário internacional.

Dá-se um acirramento na campanha eleitoral, e diversos fatos, tais como a previsão de eleições para governos estaduais e para as assembléias legislativas estaduais, fizeram com que, a 29 de outubro de 1945, ocorresse a queda de Getúlio Vargas e a sua substituição pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares. Só depois da ascensão de tal poder é que ocorreu efetivamente a transformação do Projeto inicial de reforma da Carta de 1937 em um Projeto mais grandioso de elaboração de uma nova Constituição.

Isto se formaliza por meio da Lei Constitucional n. 13, de 12 de novem- bro de 1945, que conferia poderes de natureza constituinte ao Parlamento.

A 2 de fevereiro de 1946 dá-se a convocação da Constituinte, que iria terminar os seus trabalhos em setembro do mesmo ano, promulgando a Consti- tuição de 1946, que passaremos agora a examinar no seu conteúdo e nas suas inspirações ideológicas e políticas.

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1. PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS

Pela própria circunstância em que se dá a aprovação da Constituição de 1946, não poderiam restar dúvidas de que ela tinha um endereço muito certo: tratava-se de pôr fim ao Estado autoritário que vigia no País sob diversas modalidades desde 1930. Era, pois, a procura de um Estado democrático que se tentava fazer pelo incremento de medidas que melhor assegurassem os direitos individuais.

A Constituição de 1946 se insere entre as melhores, senão a melhor, de todas que tivemos. Tecnicamente é muito correta e do ponto de vista ideo- lógico traçava nitidamente uma linha de pensamento libertária no campo político sem descurar da abertura para o campo social que foi recuperada da Constituição de 1934.

Com isto o Brasil procurava definir o seu futuro em termos condizentes com os regimes democráticos vigentes no Ocidente, da mesma forma que dava continuidade à linha de evolução democrática iniciada durante a Primeira Re- pública. Era, portanto, um reencontro do País com suas origens pretéritas, saltando-se o obscuro período do Estado Novo.

Alguns autores criticam a Constituição de 1946 basicamente com funda- mento em que ela não teria feito tudo o que seria possível à luz dos conhecimen- tos técnico-constitucionais da época. Não cremos que procedam tais alegações. Ainda era muito cedo para que se pudessem antever os problemas que o segun- do após guerra iria colocar. Era curial que a Constituição de 1946 não manti- vesse ainda medidas adaptadas ao futuro com que o Mundo iria se defrontar.

De qualquer sorte ela, no seu conjunto, configura um Texto equilibrado e harmônico. É um Texto que procura dar aos três Poderes o seu devido papel na atuação do Estado.

1. Francisco de Assis Alves, As Constituições do Brasil, Revista, cit., p. 51: "A Constituição de 1946 tinha razões de sobra para inserir em seu bojo o princípio da separação de poderes. A sua forma escrupulosa de reimplantar o regime democrático exigia essa providência, porquanto, para a garantia da liberdade individual, que é corolário da democracia, a separação de poderes é essencial.

Por isso, seu artigo 36 garbosamente enuncia que são poderes da União o Legislativo, o Exe- cutivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si. E que o cidadão, investido na função de um deles, não poderá exercer a de outro, a não ser excepcionalmente, de acordo com o previsto na própria Constituição. Ademais, vedou expressamente a delegação de poderes.

Para os fiéis seguidores de Montesquieu, cada Poder deveria exercer as funções que lhe eram inerentes, pois que a delegação dessas funções a outro poder implicaria a renúncia parcial de suas funções a favor do Poder delegado.

Contudo, não tardou Rui Barbosa em admitir que, "contra todos os esforços da teoria jurídica, o princípio das delegações reemerge sempre como regra consuetudinária, que surge naturalmente, quando as circunstâncias a impõem" (Revista Forense, vol. VII, pág. 37). Também concordam Carlos Maximiliano e Eduardo Espínola. Esse entendimento foi sendo abarcado por Pontes de Miranda, Castro Nunes, Themistocles Brandão Cavalcanti, Agamennon

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Magalhães, Seabra Fagundes, culmi- nando com o desabafo de Hermes Lima no plenário da Câmara dos Deputados: "não é possível governo sem delegações de atribuições" (Diário da Assembléia Constituinte, 17-8-1946).

Com essa postura, a Constituição procurou manter-se fiel à teoria de Montesquieu, sobre a separação dos poderes, assim concebida: "Existem em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependam do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependam do direito civil"".

2. ASPECTOS FUNDAMENTAIS

A Constituição de 1946 é uma Constituição Republicana, Federativa e Democrática. Por força do princípio republicano tem-se a origem popular de todo poder que é exercido por mandatários do povo em seu nome e por pe- ríodo certo.

Por seu turno a Federação, depois do período negro do Estado Novo, que praticamente a ignorou, recupera suas forças. Implanta-se um regime federati- vo com garantias às autonomias dos Estados da mesma forma que se as temperam com a possibilidade de intervenção da União nestes para coibir abusos.

No campo local propriamente dito, prestigia-se o municipalismo como nenhuma outra Constituição até hoje o fez. Foi sem dúvida nenhuma a Consti- tuição mais municipalista que tivemos. Foram muitos os constituintes que se bateram pela causa. Lembremos aqui, exemplificativamente, Ataliba Noguei- ra, grande combatedor do ideal municipalista.

2. Aliomar Baleeiro, A Constituição de 1946, Fundação Projeto Rondon, p. 4: "No correr do tempo, a República sacrificou muito os municípios, não só lhes restringindo a autonomia, cada vez mais ameaçada pelos estados, senão também desfavorecendo-os na discriminação das rendas públicas.

Pouco a pouco, a fatia do leão coube ao Tesouro Federal, que arrecadava mais de 63% dos tributos pagos por todos os brasileiros, ao passo que os municípios, em 1945, não chegavam a receber 7%, cabendo a diferença aos estados (mais ou menos 30%).

Esse fenômeno impressionou vivamente os constituintes. Para melhorar as finanças dos muni- cípios, deram-lhes todo o Imposto de Indústrias e Profissões (antes tinham só 50% dele), uma quota em partes iguais, no rateio de 10% do Imposto de Renda, excluídas as capitais, e quando a arrecadação estadual de impostos, salvo o de exportação, excedesse, em município que não fosse o da capital, o total das rendas locais, de qualquer natureza, o Estado dar-lhe-ia anualmente 30% do excesso arrecadado".

Procurou-se enfim dar uma competência certa e irrestringível ao município centrada na idéia da autonomia em torno do seu peculiar interesse.

No que diz respeito aos três poderes, todos eles de certa forma resultam engrandecidos, a não ser o próprio Poder Executivo, que, não podendo mais ser exercido ditatorialmente, evidentemente teve que abdicar de parcela dos seus poderes.

Dentro deste contexto o Poder Executivo passou a ser exercido por um Presidente eleito de forma direta, com maioria relativa, por período certo de cinco anos,

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acompanhado da eleição do Vice-Presidente, que acumulava as funções também da Presidência do Senado.

Com relação ao Legislativo, restauraram-se-lhe as prerrogativas perdi- das. Dá-se-lhe novamente a forma bicameral, que havia perdido em 1934, pelo advento ou pela criação de um Conselho Federal que eliminara o Senado em 1937, trocando-o por uma Comissão. Implanta-se portanto um bicameralismo igual, onde tanto a Câmara quanto o Senado tinham iguais poderes.

3. Aliomar Baleeiro, A Constituição de 1946, cit., p. 6: "Em contraste com outras constitui- ções estrangeiras, as do Brasil, até então, não previam a punição dos parlamentares indisciplinados ou de procedimento incompatível com as suas funções. A de 1946, no art. 48, § 2.o, estatuiu que perderia o mandato, por 2/3 dos votos de seus pares, o deputado ou senador cujo procedimento fosse reputado incompatível com o decoro parlamentar. Essa pena extrema foi aplicada, logo na primeira legislatura, ao deputado E. Barreto Pinto, que permitia a jornais e revistas fotografá-lo de casaca e cuecas com uma garrafa de champanhe, ou nu sob o chuveiro, além de criar repetidos incidentes no curso dos debates".

De outra parte o Legislativo só podia legislar admitidas tão-somente as leis delegadas. O Judiciário assume funções importantes, assim como vê as suas competências alargadas. Assume ainda papel de destaque, sendo algumas de suas prerrogativas ampliadas, passando seus membros a gozarem da vitaliciedade, da irredutibilidade de vencimentos e da inamovibilidade. Sua competência se vê engrandecida pela utilização de dois instrumentos importantes: o mandado de segurança, já agora como garantia constitucional, assim como o papel de julgador da constitucionalidade das leis, alargando-se, destarte, a sistemática de molde a tomar mais amplo e mais fácil o conhecimento das lesões de direito.

4. Alcides de Mendonça Lima, O Poder Judiciário na Constituição Federal de 1946, RF 1947, p. 515: "Entre os fins moralizadores da nova Constituição, um avulta pelos seus méritos: o de devolver ao Poder Judiciário a sua verdadeira posição jurídica, não se permitindo a intromissão indevida dos demais poderes no funcionamento, salvo colaborando, quanto à sua organização, dentro dos estreitos e expressos limites da competência constitucional".

Função importante não deixa de ser aquela de julgar em certas hipóteses o Presidente da República e outras altas autoridades do País. Isso no caso dos julgamentos de crimes comuns, visto que na hipótese de crime de responsabilidade o julgamento dá-se pelo Senado, sendo chamado para presidi-lo o Presidente do Supremo Tribunal Federal.

Em matéria de direitos individuais retoma-se o rol já constante da Consti- tuição de 1934, mas agregam-se-lhe alguns dispositivos de muita importân- cia: é o caso do § 4.o do art. 141, que assegura o acesso incondicionado ao Poder Judiciário ao afirmar que nenhuma lesão de direito individual poderá ser subtraída à sua apreciação. Trata-se, sem dúvida, de garantia de grande alcance que compõe um dos pilares sobre os quais se erige o estado de direito.

De outra parte, merece especial atenção o § 13 do mesmo art. 141, que toca pela primeira vez nos partidos políticos que até então vinham enfrentan- do muita resistência para serem recebidos e acolhidos no direito. Eles nasce- ram primeiro como fatos e isso gradativamente até serem considerados obje- tos do direito.

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Nesta Constituição de 1946 vamos encontrar o princípio da liberdade de criação de organizações partidárias, liberdade esta restrita àquelas hipóteses em que a organização adote programa ou ação não-contrários ao regime de- mocrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia de direitos fun- damentais do homem. Eram as únicas ressalvas que se faziam à liberdade de criar partido político. Estas proibições incidiram concretamente somente so- bre um partido, o comunista, que teve o seu registro cassado pelo Superior Tribunal Eleitoral.

5. Aliomar Baleeiro, A Constituição de 1946, cit., p. 6: "o sistema de representação proporci- onal dá mais sensibilidade à representação popular, permitindo ter uma voz, pelo menos, qualquer grupo consistente da opinião pública. Mas favorece a multiplicação dos Partidos, o que enfraquece tanto o Governo quanto as oposições.

Esse fato foi observado na França e na Itália, suscitando em ambos a instabilidade dos Gabi- netes. Ocorreu, igualmente, no Brasil, onde pululavam 14 Partidos Políticos em 1964. Nenhum Presidente, à exceção de Dutra, foi eleito por maioria absoluta. Os pequenos Partidos, salvo exce- ções honrosas como a do intransigente Partido Libertador (parlamentarista), tendiam à barganha com o Partido mais numeroso, do Governo.

Outro defeito dos Partidos nacionais criados a partir de 1945 era a tirania das cúpulas sobre todas as seções regionais. Uma oligarquia (quando não um chefe único) de cada Estado decidia ilimitadamente das Seções Municipais e, por esse meio, das representações no Diretório Nacional e nas Convenções. Nunca se achou uma fórmula ou método para que as direções estaduais e a nacional refletissem a vontade das centenas de Seções Municipais de cada Estado. Alguns Partidos pequenos tinham donos e vendiam até inscrições para candidaturas ao Congresso".

Barbosa Lima Sobrinho, Direito eleitoral e a Constituição de 1946, in A Constituição de 1946, Centro de Ensino à Distância, p. 28: "Voto secreto, regime de partidos, representação proporcional, instituição da suplência, validade dos diplomas, justiça eleitoral para o julgamento de todas as fases do pleito, inclusive a verificação de poderes, são conquistas incorporadas à Carta de 1946. Em relação à Constituição de 1934, não são muitas, nem importantes, as divergências. Na compo- sição dos tribunais eleitorais, por exemplo, substituía-se o sistema de sorteio pela eleição dos re- presentantes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais de Apelação dos Estados; um dos dois lugares destinados, no Tribunal Superior, aos desembargadores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, teve que ser confiado ao Tribunal Federal de Recursos, criado pela Constituição de 1946. Desapareceram os juízes federais, na composição dos Tribunais Regionais, por força da unidade da justiça, realizada na Constituição de 1937. Definiu-se com mais exatidão, e com um pouco mais de amplitude, no texto mais recente, a competência da justiça eleitoral.

O preceito mais importante é o do art. 134 da Constituição de 18 de setembro:

"O sufrágio é universal e direto; o voto é secreto; e fica assegurada a representação proporci- onal dos partidos políticos nacionais, na forma que a lei estabelecer".

Não existe, apenas, um regime de partidos, mas um regime de partidos nacionais, como esta- belecera o Decreto-lei de 1945, embora até hoje não esteja fora de dúvidas a índole regional das forças agrupadas nos partidos existentes. Não se esclareceu, na

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Constituição, qual o sistema de representação proporcional adotado, para que a lei o fizesse e pudesse alterar como entendesse, sem as formalidades das reformas constitucionais.

Deixou-se aberto o caminho para o arrependimento e para as experiências. A tendência vito- riosa é para tornar mais rigorosa a regra da proporcionalidade, evitando-se a acumulação das so- bras em benefício de um partido, ainda quando majoritário".

Adotam-se algumas medidas de cunho humanitário, o que revela uma recusa com certos tipos de penas. Fica excluída a pena de morte assim como o banimento e o confisco, como observa Basileu Garcia:

"A atual Constituição veda terminantemente a adoção da pena de morte e pode-se dizer que ao fazê-lo delineia os alicerces do sistema penalógico, ao excluir também as penas de caráter perpétuo, a de banimento e do confisco. Não se considerou mais necessário reproduzir, mesmo resumidamente, as palavras com que a primeira das nossas Constituições de 1830 afastava em frase casuística as penas cruéis que não encontrariam o clima propício nesse país" (Cons- tituição do Brasil e o direito penal, RT 258:3).

Do ângulo da ordem econômica a Constituição de 1946 pode ser vista como uma tentativa de conciliar o princípio, da liberdade de iniciativa com o princípio da justiça social.

6. Eduardo Espínola, A Constituição de 1946 - orientação e princípios fundamentais, RF 110:5: ""Grande importância assumiram nas mais recentes Constituições os denominados direitos sociais do homem, o que a Constituição considera sob o título ~Da ordem econômica e social"". Ainda dele: "Escreve Mirkine-Guetzévitch: "As tendências sociais das novas Declarações se revelam pelo fato de se alargar e enriquecer de novos conceitos o catálogo habitual dos direitos, que inteira- mente desconhecidos das Declarações de 1789 e 1793, que apenas indicados nessas declarações.

Todos os problemas da vida social que, no século XIX, eram parcialmente regulados pela legislação ordinária, tornam-se agora direitos do homem e do cidadão. As Constituições mais re- centes vão ainda mais longe nesse sentido e procuram introduzir, nas Declarações, as relações familiares, as relações dos pais e dos filhos, os princípios da família e do casamento etc"".

Francisco de Assis Alves, As Constituições do Brasil, Revista, cit., p. 58: "Ao lado desse escru- puloso respeito pelos direitos individuais, a Constituição Federal de 1946 soube prestigiar também os valores coletivos que, gradualmente, marcavam presença nos textos básicos da época de seu surgimento.

Nesse passo, proclamou que a ordem econômica haveria de ser organizada conforme os prin- cípios da justiça social e a liberdade de iniciativa conciliada com a valorização do trabalho huma- no. Conclamou que a todos seria assegurado trabalho que possibilitasse existência digna. Alçou o trabalho à obrigação social (art. 145).

Nem é só isso. Consagrou o princípio da intervenção do Estado no domínio econômico, fixando-lhe por base o interesse público e, por limite, os direitos fundamentais, por ela mesma assegurados (art. 146). Crivou o uso da propriedade ao bem-estar social. Preceituou que a lei reprimiria toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais de qualquer natureza, que viessem a dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrên- cia e aumentar

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arbitrariamente os lucros (arts. 147 e 148). Apontou os preceitos a que deveria obedecer a legislação do trabalho e a da previdência social, visando à melhoria da condição dos trabalhadores. Pelos dezessete itens enunciados no artigo 157, cuidou desde o salário mínimo, da participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, repouso semanal remunera- do, direito da gestante a descanso antes e depois do parto, estabilidade do empregado na empresa, assistência aos desempregados, até a previdência em favor da maternidade, e contra as conseqüên- cias da doença, da velhice, da invalidez e da morte. Além de tudo, reconheceu o direito de greve".

De um lado, assegura-se a liberdade de iniciativa apenas restrita aos casos em que possa haver intervenção por parte da União, mediante lei espe- cial, sendo que mesmo assim tal medida terá de ter por base o interesse públi- co e por limite os direitos fundamentais assegurados no Texto.

Teve-se a cautela de reprimir os aspectos abusivos que, por sua vez, uma liberdade de iniciativa desregulada poderia ensejar. Assim é que o art. 148 tomou posição desenganada no sentido de coibir toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim do- minar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrari- amente os lucros.

Aos trabalhadores conferiram-se garantias compatíveis já com o estágio da evolução social do País introduzidas debaixo do Estado Novo.

O Texto neste sentido chancela e consagra diversas dessas aquisições anteriormente feitas assim como agrega algumas, como o direito de greve, antes inexistente.

CAPÍTULO VI CONSTITUIÇÃO DE 1967

SUMÁRIO 1 A revolução de 1964 2 Os governos na vigência da Constituição de 1967. 2.1. O governo Médici. 2.2. O governo Geisel. 2.3. O governo Figueiredo. 2.4. O governo Sarney.

1. A REVOLUÇÃO DE 1964

De 1946 a 1961 a nossa primeira Constituição do segundo após guerra teve uma vida relativamente calma, sofrendo apenas três Emendas, nada obstante a vida política nesse período ter sido marcada por diversos sobressaltos. É a partir dessa data, 1961, que se vai precipitar uma série de crises na vida insti- tucional do País, que se refletiram no campo normativo por meio de diversas Emendas à Constituição.

Assim é que, logo em 1961, a Emenda n. 4, de 2 de setembro, instituiu o sistema parlamentar de governo, acabando com a nossa tradição presidencia- lista, que vinha sendo prestigiada por todos os brasileiros desde o advento da República.

As novas instituições parlamentaristas não tiveram bom desempenho, por razões que não seria o caso agora aqui de aprofundar. O fato é que o seu insucesso foi confirmado pelo desagrado popular, que por meio de plebiscito vota contra tal regime; surge então a Emenda Constitucional n. 6, de 23 de janeiro de 1963, que revoga a Emenda anterior,

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restaurando o Presidente da República na plenitude de seus poderes. Ainda assim a crise não cessa, a po- lítica do Presidente encaminha-se cada vez mais para a esquerda, do que re- sultam resistências não só a nível do Congresso Nacional, como também a nível da população, desembocando na famosa marcha da Cidade de São Pau- lo, onde calcula-se que quinhentas mil pessoas teriam vindo manifestar-se contra a ordem de coisas reinante no País. Dentro desse quadro político institucional extremamente deteriorado por divisões profundas e radicais, as Forças Armadas intervêm, tomando o poder para si, em 31 de março de 1964.

Instaura-se uma ordem revolucionária no País que de certa forma já signi- ficava a derrocada da Constituição de 1946. Esta só restou em vigor na medi- da em que o próprio Ato Institucional n. 1 a manteve, o que justifica dizer que na verdade já não era mais a Constituição de 1946 que vigia, mas sim o ato de força. Nos anos seguintes aprovaram-se diversas emendas, sendo para tanto convocado o Congresso Nacional.

1. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "A Constituição de 1946", publicado na monografia As Constituições do Brasil, Instituto Tancredo Neves, p. 85: "Note-se que se poderia, a 9 de abril de 1964, colocar o termo final da Constituição de 1946. Não por qualquer observação de ordem polí- tica, mas do ângulo estritamente jurídico. Com efeito, o art. 1.o do Ato Institucional de 9 de abril de 1964 diz que "mantém em vigor a Constituição de 1946", com as modificações que introduz. A partir dessa data não é propriamente a Constituição de 1964, estabelecida pela Constituinte de 46, que está em vigor. Está em vigor uma Constituição outorgada pelo movimento revolucionário cujo conteúdo corresponde ao da Constituição de 1946, com as alterações que ele próprio introduz.

Pondo de lado esse aspecto técnico, a Constituição de 1946 ainda perdurou por algum tempo.

Sofreu, porém, o impacto de mais dois atos institucionais, especialmente o embate do Ato Institucional n. 2 que extinguiu os partidos políticos e permitiu a criação de novos de acordo com o estatuto. E foi objeto de várias reformas, por intermédio de emendas constitucionais, das quais muitas idéias básicas ainda perduram no texto de Carta vigente. Cito três reformas: a contida na Emenda Constitucional n. 10, de 1964, sobre reforma agrária, que na verdade alterou todo o siste- ma de indenização das desapropriações para tal fim; a Emenda Constitucional n. 16, de 1965, que é a chamada "Reforma do Judiciário" e institucionaliza a Justiça Federal, aliás já prevista no Ato Institucional n. 2; a Emenda Constitucional n. 18, de 1965, que consagra a Reforma Tributária. E o sistema tributário estabelecido por esta Emenda Constitucional é basicamente o sistema tributário que está presente na Constituição em vigor.

O Ato Institucional n. 4 desencadeou o processo de substituição da Constituição de 1946 para a Constituição que está em vigor".

Era, portanto, uma última tentativa de encerrar o ciclo revolucionário, liberalizando-se o País através da aprovação de uma nova Constituição. Para tanto, como visto acima, convoca-se o Congresso Nacional por ato institucio- nal para a discussão e a aprovação de um novo texto enviado pelo governo.

Assim, era natural que o poder revolucionário desejasse à época um Texto Constitucional renovado, isto porque já houvera sido tão grande o número das Emendas sofridas pela Constituição de 1946, assim como os Atos Institucio- nais que a mutilaram em diversas partes, que o Texto Constitucional tomava- se caótico e desestruturado. O seu labor

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constituinte como o notado antes foi rápido, dando-se em poucos meses. As principais notas do Texto de 1967 eram as seguintes: em primeiro lugar uma enorme preocupação com a segurança nacional, conceito que se tomou abrangente de diversas situações, dotado de um grande vazio semântico que acabava por permitir a manipulação da Constitui- ção em diversos de seus pontos.

2. Francisco de Assis Alves, As Constituições do Brasil, Revista, cit., p. 60: "Com o Comando Revolucionário no poder, inaugurava-se o regime dos Atos Institucionais, dos Atos Complementa- res e dos Decretos-Leis.

As emendas à Carta Política de 1946 chegaram a vinte e uma, até novembro de 1966.

Em meio a tantas alterações processadas, o Governo Revolucionário acabou por perceber que a Constituição de 1946 já não mais podia atender às exigências nacionais e tornava imperioso dar ao país uma Constituição uniforme e harmônica. Uma Constituição nova que pudesse assegurar a continuidade da obra revolucionária. Por isso, através do Ato Institucional n. 4, de 7 de dezembro de 1966, convocou o Congresso Nacional para se reunir extraordinariamente de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, a fim de discutir, votar e promulgar o projeto de Constituição apre- sentado pelo Presidente da República, Humberto de Alencar Castello Branco.

A Carta Política de 1946, esfacelada pelas Emendas, pelos Atos Institucionais e Atos Comple- mentares, recebera o golpe de misericórdia do Comando Militar Revolucionário.

Surpresa ante os fatos tão contrastantes com seus propósitos democráticos, findou-se".

Foi uma Constituição centralizadora. Trouxe para o âmbito federal uma série de competências que antes pertenciam a Estados e Municípios. Refor- çou os poderes do Presidente da República. Na verdade poderíamos dizer que a despeito do Texto Constitucional afirmar a existência de três Poderes, no fundo existia um só, que era o Executivo, visto que a situação reinante tomava por demais mesquinhas as competências tanto do Legislativo quanto do Judi- ciário. Paulo Bonavides com muita precisão, averba:

"Nenhuma Constituição em toda a nossa história republicana deu tantos poderes ao Presidente da República quanto a de 1967, seguida da Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que lhe trouxe um reforço caudaloso" (Paulo Bonavides, A Constituição de 1824).

De outra parte o Sistema Tributário Nacional, que há pouco sofrera uma modificação, através da Emenda Constitucional n. 18 à Constituição de 1946, foi em princípio mantido. Contudo a discriminação de rendas, ampliando a téc- nica do federalismo cooperativo, acabou por permitir uma série de participações de uma entidade na receita da outra, com acentuada centralização. Quanto à matéria orçamentária aparecem o orçamento-programa, os programas plurianuais de investimento, além da própria atualização do sistema orçamentário.

Ponto muito importante foi a redução da autonomia individual, permitindo suspensão de direitos e garantias constitucionais, no que se revela mais au- toritária do que as anteriores. Salvo a de 1937, na feliz observação de Francis- co de Assis Alves (As Constituições do Brasil, Revista, cit., p. 65):

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"Na ordem econômica a Constituição de 1967 se afigura menos interven- cionista porque ela estreita as hipóteses de cabimento de intervenção no domínio econômico, enquanto que no que atina ao direito de propriedade dá-lhe um tratamento mais limitativo, na medida em que autoriza desapropriação medi- ante pagamento da indenização por títulos da dívida pública, para fins de re- forma agrária".

No que diz respeito ao Poder Legislativo, a Constituição de 1967 confir- ma uma tendência, que já se notara, de dar mais força a Estados com menos população. Esse processo, no caso da Constituição de 1967, dá-se valendo-se do seguinte recurso: os deputados seriam eleitos em proporção que não exce- desse de um para cada trezentos mil habitantes até vinte e cinco deputados, e além desse limite um para cada mil.

Em matéria legislativa, o Executivo tomou-se praticamente todo-poderoso, facultando-se-lhe uma iniciativa de lei em campo reservado, é dizer: no qual só ele poderia dar início sem que, por isso, estivesse proibido de deflagrar o processo legislativo de iniciativa de quaisquer dos outros órgãos.

As leis delegadas que recebeu, praticamente delas não necessitou, tais eram os poderes de que estava investido.

Os decretos-leis se tomaram uma arma poderosíssima diante de expressões vagas tais como: urgência e interesse público relevante, assim como em matéria de segurança nacional. A conjugação desses conceitos permitia que se levasse a extremos insuspeitáveis a competência do Executivo para editar normas.

Sem embargo a Constituição de 1967 foi uma tentativa de agasalhar prin- cípios de uma Constituição democrática, conferindo um rol de direitos indivi- duais, liberdade de iniciativa, mas onde a todo instante se sente a mão do Estado autoritário que a editou.

A Constituição de 1967 entrou em vigor a 15 de março desse ano, nada obstante o fato de já ter sido promulgada em 24 de janeiro. Coincidiu sua entrada em vigor com a assunção da Presidência pelo Marechal Artur da Costa e Silva. Tudo levava a crer, portanto, que as coisas entravam no seu eixo. Novo Presidente, um Texto Constitucional revisado pareciam fornecer os ele- mentos básicos para assegurar o desenvolvimento e a segurança do País.

Sobre essas características ainda vale a pena ressaltar que a situação econômica era também extremamente favorável, visto que afluíam para o País muitos recursos estrangeiros, ocasionando o desenvolvimento de todo o siste- ma financeiro extremamente sofisticado e bastante abastecido por uma pou- pança que era estimulada a toda força.

Ocorre, entretanto, que os fatos vieram a desmentir as previsões, e os anos de 1967, 1968 e 1969 tornaram-se extremamente turbulentos.

De um lado, o aspecto propriamente político. Há que se notar a intensifi- cação pela oposição da sua campanha contra o governo, batendo-se pela con- vocação de uma Assembléia Constituinte, para dotar o País de uma nova Lei Fundamental.

Há que se notar ainda a turbulência causada por um movimento extrapar- lamentar levado a cabo unindo os estudantes, dado o relativo silêncio das classes

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trabalhadoras, para denunciar o que consideravam as mazelas do regime, pro- movendo passeatas de rua, e toda sorte de mobilização ao seu alcance.

Em 1968, a situação ainda se agravava, pois às passeatas estudantis vie- ram aliar-se tanto o clero "progressista" quanto os trabalhadores, sobretudo do setor mais desenvolvido do País, passando a desafiar as autoridades.

Esses eventos se refletem a nível institucional na edição de um novo ato institucional de força, o de n. 5, a 13 de dezembro de 1968. Esse Ato marca-se por um autoritarismo ímpar do ponto de vista jurídico, conferindo ao Presi- dente da República uma quantidade de poderes de que muito provavelmente poucos déspotas na história desfrutaram, tornando-se marco de um novo surto revolucionário, dando a tônica do período vivido na decada subsequente. Criava-se uma situação confusa, porque era preciso compatibilizar o Ato n. 5 com a própria Constituição de 1967 por ele mantida, o que não era fácil, dado que muitas vezes suas disposições eram profundamente contraditórias.

3. Horst Bahro e Jürgen Zepp, "Mudança politica e desenvolvimento regional no Brasil desde o ano de 1964", artigo publicado na Revista de Direito Constitucional e Ciência Política, Forense, 5:1: "Em dezembro de 1968, o Congresso Nacional, cuja maioria era composta pelo partido do governo, a Arena, negou ao Presidente da República a aprovação da suspensão da imunidade de um deputado do MDB, embora essa medida tivesse sido declarada como do interesse da segurança nacional. Em vista disso, o Presidente decretou o recesso do Congresso por tempo indeterminado e baixou o Ato Institucional n. 5 (AI-5), pelo qual o Presidente adquiria poderes ilimitados para intervenção de todo e qualquer tipo e em todas as esferas do direito. Com base no AI-5, foram cassados centenas de mandatos políticos e o Supremo Tribunal foi "saneado". Com uma emenda constitucional, o regime militar erigiu para si mesmo um novo embasamento, que lhe outorgou poderes ilimitados".

José Afonso da Silva, Direito constitucional positivo, p. 45: "As crises não cessaram. E veio o Ato Institucional n. 5, de 13-12-1968, que rompeu com a ordem constitucional, ao qual se seguiu mais uma dezena e muitos Atos Complementares e decretos-leis, até que insidiosa moléstia impos- sibilitara o Presidente Costa e Silva de continuar governando. E declarado temporariamente impe- dido do exercício da Presidência pelo Ato Institucional n. 12, de 31-8-1969, que atribuiu o exercí- cio do Poder Executivo aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, que completaram o preparo de novo texto constitucional, afinal promulgado em 17-10-1969, como Emenda Constitucional n. 1 à Constituição do Brasil, para entrar em vigor em 30-10-1969".

O Ato Institucional n. 5, como visto, fundava uma nova ordem jurídica, igualando-se à própria Constituição de 1967. É assim que vamos encontrar poderes nas mãos do Presidente, tais como o de decretar o fechamento do Congresso e as Assembléias Estaduais, bem como das Câmaras de Vereadores.

Nestes casos, o Executivo ficava investido de todos os poderes que ante- riormente eram exercidos pelo Legislativo. O Ato também permitia medidas extre- mamente drásticas, consistentes na cassação de mandatos de parlamentares, as- sim como na possibilidade de suspender os direitos políticos por dez anos de qualquer pessoa. Garantias próprias da magistratura como vitaliciedade e inamovibilidade estavam suspensas, assim como as garantias do funcionalismo em geral, tal como a estabilidade. Tudo isto ficava suspenso pelo Ato Institucional n. 5, visto que com fundamento nele todos esses direitos poderiam ser afastados.

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O seu autoritarismo era tão grande que chegava ao ponto de suspender o Habeas Corpus, nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

4. Horst Bahro e Jurgen Zepp, Mudança política e desenvolvimento regional no Brasil desde o ano de 1964, Revista, cit., 5:3: "A base da legitimação do regime militar foi - como em toda a América do Sul - a ideologia da "segurança nacional". No Brasil, foi ela desenvolvida pela Escola Superior de Guerra (ESG), tendo como "pai espiritual" a "eminência cinzenta" dos presidentes milita- res, o General Golbery do Couto e Silva. "Segurança nacional" abrange tudo o que se refere à vida nacional, tanto na política interna como externa. Ela traduz "o relativo grau de garantia que o Estado, através de medidas de ordem política, econômica, militar e psicossocial, dentro da esfera de suas competências, proporciona à Nação em uma determinada época, a fim de conseguir assegu- rar a realização das metas de interesse nacional, apesar dos antagonismos existentes". Atrás dessa ideologia, esconde-se um anticomunismo indiscriminado, que declara como agente de Moscou qualquer pessoa inimiga; nela baseados, foram definidos em 1969 inúmeros crimes contra a segu- rança nacional. Pela Constituição de 1969, foi atribuída a todo cidadão brasileiro a responsabilida- de pela segurança e foi instituído o "Conselho de Segurança Nacional", com amplos poderes. Com os serviços secretos, foi montado um extenso sistema de denúncias, com representações em todos os ministérios e empresas estatais, através das suas "Divisões de Segurança e Informação" (DSI). Os delitos enquadrados nas leis de segurança nacional caracterizavam-se por estarem definidos, de uma forma vaga e genérica, oferecendo ampla margem à arbitrariedade. Com isso, sob o manto do direito, foram levantadas as bases do estado policial arbitrário.

Violações dos direitos humanos, cassações de mandatos e demissões de postos, bem como banimentos de políticos mal vistos pelo sistema, começaram com o advento da ditadura militar, com base no primeiro Ato Institucional. A partir de 1968, os militares passaram, sem nenhum respaldo jurídico, a deter, torturar, mutilar e assassinar os inimigos declarados do regime ou os que eram como tal considerados. O Departamento do Serviço de Informações do Exército, encarregado dessas atividades especiais, era o DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações - Cen- tro de Operações de Defesa Interna). Mas também membros da policia participaram de torturas e assassinatos, como o famigerado Delegado Sergio Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (o DOPS) de São Paulo. Foram adotados os métodos que os esquadrões da morte emprega- vam no combate à criminalidade comum e à marginalidade, fazendo justiça com as próprias mãos".

De outra parte, o art. 11 do Ato Institucional n. 5 subtraía da apreciação do Judiciário qualquer ato praticado com fundamento nele. Em função do teor deste dispositivo, muitas demasias foram praticadas neste período, sem que chegassem ao conhecimento daquele Poder.

As ebulições no nosso campo institucional não cessaram aí. O Presiden- te Costa e Silva fica impossibilitado de governar por problemas de saúde.

Nesta altura acontece um episódio especialmente anômalo dentro de um quadro que em si mesmo já era de extrema anormalidade.

Estando o Presidente Costa e Silva impedido de governar, deveria substi- tuí-lo o Vice-Presidente Pedro Aleixo. Mas os militares não aceitam a volta ao poder de um civil.

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Resolvem truncar mais uma vez a ordem jurídica, já toda ela pontilhada de atos institucionais baixados sob os mais diferentes pretextos e visando objetivos de toda ordem.

Para resolver o problema específico da sucessão de Costa e Silva, baixa-se o Ato Institucional a. 12, de 31 de agosto de 1969, que por mais de um título, além da gravidade da resolução que encerrava, merece um destaque especial. É que não foi ele subscrito como o foram os anteriores pelo Presidente da República, mas pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica.

Este ato deixava certo que, estando o Marechal Artur da Costa e Silva impedido temporariamente de exercer suas funções, por motivos de saúde, elas seriam desempenhadas por ditos militares enquanto durasse tal impedimento.

Era sem dúvida o ponto mais baixo a que descera o quadro político insti- tucional. O Brasil passava a reproduzir a solução muito encontradiça em pe- quenas republiquetas, consistente no governo de "juntas militares".

Era facilmente perceptível que o recurso a tal expediente não poderia - em um país com as dimensões e as complexidades do Brasil - dar resultado.

O poder se deteriora. O terrorismo recrudesce. O embaixador dos EUA é seqüestrado.

Tudo isto levou a junta à edição de novos atos institucionais.

O processo de desagregação do poder vinha em um crescendo, agravado ainda pela morte de Costa e Silva em dezembro daquele ano.

Como este desfecho a partir de um certo ponto tomou-se previsível, a junta já se precavera editando o Ato Institucional n. 16, em 14 de outubro de 1969, no qual declaravam-se vagos os cargos de Presidente e de Vice-Presidente da República. Para provê-los, convoca-se uma eleição a ser realizada pelo Con- gresso Nacional no dia 25 de outubro, com posse quase que imediatamente após.

Um pouco antes de terminar o seu período de governo, a junta militar promulga uma emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967, munida que estaria de poderes para tanto, ante o recesso do Congresso que teria produzi- do o traslado de suas competências para o Executivo.

O raciocínio levado a efeito era o seguinte:

O Congresso Nacional pode emendar a Constituição.

5. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição de 1967, Saraiva, p. 32: "Verificada a irreversibilidade do estado de saúde do Pres. Costa e Silva, que, em dezembro, iria falecer sem haver recobrado condições mínimas para uma vida ativa, a crise política chegou ao auge. As dissidências começavam a se tornar ostensivas, ameaçando o naufrágio de toda a obra política administrativa e, até, financeira da Revolução.

Para impedir o pior, a Junta promulgou o Ato Institucional n. 16, a 14 de outubro de 1969. Neste era declarada a vacância da Presidência e da Vice-Presidência da República, marcando-se eleição, pelo Congresso Nacional, de novo Presidente e do novo Vice-

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Presidente para o dia 25 de outubro e sua posse para 30 de outubro. Igualmente fixava o término do mandato dos futuros eleitos para 15 de março de 1974.

Esse, porém, não foi o último Ato Institucional promulgado. Nessa mesma data, a Junta editou o de n. 17 que autorizava o Presidente da República a transferir para a reserva, por período limita- do, os "militares que hajam atentado, ou venham a atentar, comprovadamente, contra a coesão das Forças Armadas, divorciando-se, por motivos de caráter conjuntural ou objetivos políticos de or- dem pessoal ou de grupo, dos princípios basilares e das finalidades precípuas de sua destinação constitucional". Com isso se criava o instrumento para afastar dos quartéis, ao menos temporaria- mente, os descontentes com a solução encontrada para a crise política, particularmente os descon- tentes com o método escolhido para a seleção do candidato à Presidência.

A 17 de outubro, a Junta militar promulgou a Emenda Constitucional n. 1 à Constituição de 24 de janeiro de 1967.

Conforme esclarece o preâmbulo, esse ato se fundou na transferência das competências do Con- gresso ao Executivo, quando decretado, nos termos do Ato Institucional n. 5, o recesso daquele. Sendo competência do Congresso Nacional, em decorrência do art. 49, I, a elaboração de emendas constitucionais, estando ele em recesso por força do Ato Complementar n. 38, de 13 de dezembro de 1968, competia ao Executivo exercer todas as atribuições deferidas pela Constituição ao Parlamento, segundo preceitua o art. 2.o, § 1.o, do Ato Institucional n. 5. Tal raciocínio é que justificou a promulgação da Emenda.

Politicamente, a promulgação da Emenda, e não a outorga de Ato Institucional que editasse nova Constituição, apresentava inegáveis vantagens. Uma estava em distinguir entre o que se des- tinava a durar indefinidamente - a Constituição emendada - e as medidas, logicamente transitó- rias, contidas nos Atos Institucionais, permitindo que a revogação destes, aliás prevista no próprio corpo da Emenda (art. 182, parágrafo único), não atingisse as modificações feitas para perdurar.

Por outro lado, dava ensejo a que alguma coisa da aura de legitimidade associada à Constitui- ção sobrevivesse no novo texto".

De outra parte, competia ao Executivo desempenhar todas as funções do Legislativo, quando este se encontrasse em recesso, nos termos do Ato Institu- cional n. 5.

Finalmente, estando o Congresso em recesso, por força do Ato Comple- mentar a. 38, era, segundo a junta militar, inquestionável que cabia a ela a edição de emendas à Constituição.

Vê-se que se tratava de um período muito curioso da história do Brasil.

Ao mesmo tempo que se desprezava o direito constitucional - porque tudo no fundo brotava de atos cujo fundamento último era o exercício sem limites do poder pelos militares - não se descurava, contudo, de procurar uma aparência de legitimidade pela invocação de dispositivos legais que es- tariam a embasar estas emanações de força.

Para uns, como visto, esta emenda é uma nova Constituição, para outros não passa de mera emenda.

Preferimos ficar com estes últimos, embora não se desconheça que a relevância da questão é muito pequena.

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De qualquer sorte, como foi um período onde prevaleceram os rótulos e as formas, com total descaso pela substância, é preferível mesmo manter o ato com a natureza com que ele veio a lume.

No seu bojo, foram sem dúvida introduzidas modificações até certo ponto de envergadura. Dizemos até certo ponto porque inequivocamente o Texto guarda a feição de um acendrado autoritarismo, nada obstante os esforços para disfarçá-lo.

Antes de oferecermos uma síntese das suas principais medidas, convém lembrar que este Texto Constitucional continuava a conviver com os atos insti- tucionais, o que enfraquecia brutalmente a parte aproveitável do seu conteúdo.

Estávamos longe, pois, de uma normalidade jurídico-constitucional.

De um lado vigoravam atos institucionais - emanação direta do Poder Revolucionário - destinadas a viger precariamente, e de outro, disputavam seu espaço a própria Constituição de 1967, agora com a nova redação, fruto da Emenda n. 1, que encarnaria a pretensão da institucionalização democráti- ca do poder que pretendia vigorar por longo tempo.

6. Miguel Reale, Momentos decisivos do constitucionalismo brasileiro, Revista, cit., 77:67: "Muito embora não considere a Carta de 1967, tal como foi sucessivamente refundida, uma obra isenta de defeitos, e, como tal, insuscetível de reforma, apesar, ao contrário, de dissentir abertamente de várias de suas disposições, e pleitear-lhe a revisão, não creio se lhe possa recusar legitimidade, a não ser que se repila, como indigno de nossa vida política, todo o processo legislativo que lhe deu origem. Sob aparência de julgamento formal de um texto político, o que se pronuncia é um juízo condenatório de toda uma época, sobre a qual se pretende arrogantemente passar uma esponja, repetindo-se o mesmo erro de 1946".

Isto deflui do art. 182, parágrafo único, do Texto Constitucional que conferia poderes ao Presidente da República para revogar os atos institucionais.

Como sumário do ideário principal da Emenda a. 1, aproveitamos o cui- dadoso trabalho de Francisco de Assis Alves, As Constituições do Brasil, Re- vista, cit., p. 69-70:

"Das inovações sobrevindas com a Lei Fundamental de 1969, destacam- se: a denominação Constituição da República Federativa do Brasil, em lugar de Constituição do Brasil, como se chamava em 1967 (art. 1 .o); acresceu ao item IV do art. 8.o isto: "planejar e garantir a segurança nacional"; alterou a redação do art. 9.o, I; introduziu o art. 16 que trata da fiscalização financeira e orçamen- tária dos municípios; adotou a regra do § 3.o do art. 16, permitindo a instituição de Tribunais de Contas nos Municípios com população superior a dois milhões de habitantes e renda tributária acima de quinhentos mil cruzeiros; procedeu alterações de peso no sistema tributário (art. 18); eliminou a ressalva da parte final do art. 20,II; criou nova causa de perda de mandato: procedimento atentatório das instituições vigentes (art. 35, II); inovou sobre as condições de elegibilidade do candidato a senador (art. 41); criou exigência de se ouvir o poder executivo sobre pedido de autorização para empréstimo, operações ou acordos externos (art. 42, IV); acrescentou ao art. 55, o § 2.o: "a rejeição do decreto-lei não im- plicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência"; substituiu a reda- ção do § 2.o do artigo 65, que trata da lei orçamentária, e trouxe profundas modificações no processo de elaboração desta espécie normativa; fixou em cin- co anos a duração do mandato presidencial (art. 75, § 3.o); alargou a possibili- dade de delegação das

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atribuições do Presidente da República previstas no pa- rágrafo único do art. 81; deu ao Conselho de Segurança Nacional competência para estabelecer os objetivos nacionais permanentes e as bases para a política nacional (art. 89, I); e mais a competência contida no item VI do mesmo artigo, sobre concessão de licença para o funcionamento de entidades sindicais estran- geiras; acresceu ao art. 91 a expressão: "execução de política de segurança na- cional" e mais a "direção de guerra", referida no parágrafo único deste artigo; aditou ao § 3.o do art. 102: "na forma da lei"; alterou o art. 106, § 2.o, que versa sobre tribunais federais e estaduais; prescreveu a criação do contencioso admi- nistrativo (art. 111); criou a figura da lei complementar que dispõe sobre a especificação dos direitos políticos, o gozo, o exercício, a perda ou suspensão de todos ou de qualquer deles e os casos e as condições de sua reaquisição (art. 149, § 3.o); implantou a regra da irreelegibilidade para o Executivo (art. 151, § 1.o, a); acresceu no elenco do § 8.o do artigo 153 a referência: "as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes"; alterou o § 11 do art. 153, que trata da pena de morte, banimento e confisco; introduziu o § 34 no art. 153, que versa a aquisição da propriedade rural por brasileiro e estrangeiro residente no país e por pessoa natural ou jurídica".

2. OS GOVERNOS NA VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1967

2.1. O Governo Médici

Este período apresentou as seguintes notas características:

Em primeiro lugar, anunciou-se a disposição de restaurar a democracia no País.

Essa intenção, contudo, não foi correspondida por atos efetivos. É certo que houve a reabertura das Assembléias Legislativas postas que estavam em recesso. Duas emendas constitucionais foram promulgadas: a primeira dispôs quanto à eleição de governadores e vice-governadores de Estado, no sentido de deixar certo que a escolha rara o período de 15 de março de 1974 iria dar-se excepcionalmente de forma indireta.

Vê-se, pois, que do ângulo institucional a disposição de abertura do regime não passou de retórica.

Dois fatos, contudo, cumpre ainda serem mencionados: o primeiro é o do chamado "milagre econômico brasileiro", que atinge seu apogeu nesse período. O processo de endividamento externo com a entrada, portanto, de muitos recur- sos financeiros no País, acoplada a uma drástica contenção salarial, iria permitir uma grande folga em certas camadas do povo, beneficiadas pelo processo do desenvolvimento rápido e da acumulação crescente de capitais.

7. Horst Bahro e Jürgen Zepp, Mudança política e desenvolvimento regional no Brasil desde o ano de 1964, Revista, cit., 5:6: "O desenvolvimento alcançado pela economia brasileira superou de fato, consideravelmente, os planos dos anos 1968-1973, atingindo um crescimento econômico médio de 11,5% ao ano. Ao mesmo tempo, conseguiu-se baixar a taxa de inflação de 47,4% em 1964 para 19,5%. É do consenso geral que esse desenvolvimento foi o resultado da intervenção maciça do Estado na política econômica e da nítida preferência pela indústria de bens de consumo duráveis, e que já no período anterior tinha alcançado

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progressos significativos. Esse desenvolvimento, limita- do a um estreito setor da indústria de transformação, levou a um espantoso crescimento econômi- co, sem conseguir entretanto superar as defasagens básicas da economia brasileira. Isso correspondia aos planos do regime militar, mas agravava ao mesmo tempo as tensões sociais no seio da socieda- de brasileira, pois só estava visando ao bem-estar das classes privilegiadas. O custo da mão-de-obra continuou baixo, o operário e principalmente as populações marginalizadas não tiraram proveito do desenvolvimento ocorrido. Os mercados para os bens produzidos não foram atingidos por esse processo, típico para um país capitalista subdesenvolvido.

O resultado dessa política foi que:

* o setor das grandes empresas foi plenamente integrado no mercado mundial (o que também é válido para a dinâmica agricultura industrializada, em grande parte dominada pelas multinacionais);

* a modernização, a prioridade dada ao desenvolvimento da tecnologia avançada e a preferên- cia pelas empresas multinacionais causaram um aumento da dívida externa brasileira;

* a desintegração interna agravou-se.

Na concepção dos militares, a unidade social do país podia ser assegurada suficientemente por meio de repressão. Essa estratégia foi bem sucedida até 1973-74 quando, em conseqüência da crise dos preços do petróleo, começou a vacilar a lealdade das camadas urbanas média e alta, que viam seu nível de vida ameaçado. Nesse ínterim, os militares tinham tomado para si, amplamente, as funções dirigentes do Estado e da economia do país. Não conseguiram, porém, alcançar uma mu- dança conjuntural, apesar do apoio integral prestado às multinacionais, de modo que assim, mesmo com a repressão exercida, fortaleceu-se uma nova oposição, não institucionalizada".

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição de 1967, cit., p. 34: "A entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 1 coincidiu com a posse do Pres. Médici. Este, desde logo, anunciou sua disposição de restabelecer a normalidade democrática no país. Assim, levou a cabo a reabertura de Assembléias Legislativas que haviam sido postas em recesso com base no Ato Institucional n. 5, depois de expurgá-las de alguns de seus membros, que tiveram seus mandatos cassados.

Por outro lado, a economia, na mesma época, via acelerado o ritmo de seu crescimento, a ponto de se falar em "milagre brasileiro". Isto causou um clima de otimismo entre o povo e mesmo um novo ufanismo. Nesse quadro, o Governo ganhou apoio e pôde, por meios drasticos, embora, reprimir e sufocar o terrorismo urbano. E também experiências de guerrilha rural, como a implan- tada na região do Araguaia, em terras do Pará.

A persistência, porém, por bastante tempo ainda, da atividade subversiva adiou a efetivação da promessa inicial.

Duas Emendas Constitucionais foram adotadas durante esse Governo. Foram a de n. 2, em 9 de maio de 1972, e a de n. 3, de 15 de junho de 1972.

A primeira previu a eleição pelas Assembléias Legislativas dos Governadores e Vice-Governadores de Estado. para o quadriênio a iniciar-se em 15 de março de 1974. Manteve-se no corpo da Constituição a eleição direta, mas transitoriamente foi afastada, para

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ensejar a escolha indireta dos Chefes de Governo estadual e seus substitutos. A segunda modificou os arts. 29, caput, e 36 e seu § 1 .o, alterando o período de recesso parlamentar e ampliando os casos em que é lícito ao deputado ou senador afastar-se do exercício do mandato".

Surge, portanto, o ufanismo expresso em frases do tipo: "Brasil, ame-o ou deixe-o".

Em segundo lugar, é este apoio advindo das parcelas satisfeitas da popu- lação que vai permitir o êxito, por meios drásticos sem dúvida, da política de combate à guerrilha, que tinha dois focos principais: o urbano e o rural, este último cantonado na região do Araguaia no Estado do Pará.

2.2. O Governo Geisel

É por ocasião do início do governo Geisel que se assiste à formulação de uma chamada abertura política com algum cunho de efetividade, com o que se pretendia significar o abrandamento ou mesmo a repressão de certos insti- tutos diretamente vinculados ao autoritarismo por um regime que, sob a fa- chada de democrático, continuasse a institucionalizar o domínio da mesma classe político-militar.

Ocorre, entretanto, que neste período estava havendo o primeiro choque do petróleo que teve profundas repercussões no País, dada a grande dependência deste com relação a este combustível, assim como a existência de uma dívida externa que à época já não era desprezível, mas que o passar dos anos se incumbiria de elevar a níveis inéditos. Era claro, pois, que o modelo fundamen- talmente calcado no endividamento externo entrava em crise. Diante de tal situação, deixa-se de lado a abertura econômica inicialmente apregoada, para voltar-se aos métodos tradicionais.

A derrota do partido do governo nas eleições de 1974 repercutiu profun- damente. Tudo fazia crer que, a perdurarem as coisas naquele ritmo, o gover- no perderia o poder em benefício da oposição.

Para fraudar este intento foi editada em junho de 1976 a Lei Falcão, apelando-se também para a cassação de mandatos parlamentares. A Lei Falcão trazia consigo toda uma série de medidas tendentes a manipular o resultado do próximo pleito eleitoral, chegando a ponto de limitar o uso da televisão pelos candidatos à emissão de sua fotografia, acompanhada de um breve curriculum.

Em 15 de novembro de 1976, ocorrem eleições municipais que, nada obstante todas as medidas favorecedoras do governo, surpreendentemente de- ram ao MDB maioria expressiva, colocando aquele em situação delicada.

Em abril de 1977, ocorre a dissolução do Congresso, editando-se cator- ze emendas e seis decretos, todos evidentemente pelo Presidente da Repúbli- ca. Foi o chamado Pacote de Abril, que trazia dentre outras medidas de muito alcance as seguintes: redução do quorum para emenda à Constituição, que de dois terços ficava diminuído para maioria absoluta de cada uma das duas ca- sas; criação de senadores que eram nomeados pelas Assembléias Legislativas, nas quais a Arena detinha ainda maioria (eram portanto senadores pratica- mente nomeados); prorrogação do mandato presidencial para seis anos e alte- ração

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da proporcionalidade de deputados no Congresso. Esta mudança era feita no sentido de conferir um maior número de votos aos Estados menores proporcionalmente aos maiores, nos quais ao que parece residiam as camadas eleitorais mais hostis ao governo.

Em junho de 1978, baixam-se mais algumas medidas que ganham o nome de Pacote de Junho. Compreendiam a revogação do Ato Institucional n. 5, bem como as suspensões de direitos políticos baseados neste. E a eliminação de alguns poderes presidenciais, como o de decretar o recesso do Legislativo.

Mantêm-se, todavia, a lei de segurança nacional, os "biônicos" e a Lei Falcão. Sem embargo, não se concede a reclamada anistia geral. De outra parte, fica autorizada a decretação do estado de emergência e das medidas de emergência.

8. Horst Bahro e Jtirgen Zepp: Mudança política e desenvolvimento regional no Brasil desde o ano de 1964, Revista, cit., 5:2: "O mandato de Geisel foi, desde o início, dificultado pelo choque causado pela elevação do preço do petróleo, ocorrido em 1973, o que significou, para o país que dependia quase por completo das importações desse produto e seus derivados, o fim do milagre econômico. Com isso, o regime militar perdeu a confiança das classes alta e média, que o sustenta- vam até então. Isso tornou-se evidente e com as eleições de 15 de março de 1974, para o Congresso Nacional e para as Assembléias Legislativas Estaduais, quando a Arena sofreu pesadas derrotas. O governo Geisel, ante a ameaça de perda de legitimação, que teria podido fazer ruir completamente o poder militar, tentou sair do impasse através da manipulação do direito eleitoral: em junho de 1976, através da Lei Falcão, a propaganda dos partidos pela televisão foi drasticamente restringida, o que prejudicou sobretudo a oposição; além disso, vários deputados, que denunciaram a violação no país dos direitos humanos por parte do exército, tiveram seus mandatos cassados. Ao lado de tentativas de uma mudança do sistema de governo, a polícia e os militares sobretudo os da "linha dura" em São Paulo e no Rio de Janeiro, recorreram de novo e maciçamente à tortura e ao assassi- nato de comunistas e críticos liberais do sistema".

Com essas medidas o governo Geisel deu, sem dúvida, passos no senti- do de imprimir uma maior democracia no País. Mas não podemos nos enganar sobre o seu alcance. Eram muito poucas diante do que restava ainda a ser eliminado. Passos maiores vão ser dados durante o mandato do seu sucessor, por ele escolhido: o General João Baptista Figueiredo.

2.3. O Governo Figueiredo

Em março de 1979, Figueiredo toma posse, antecedido de perto por eleições de âmbito nacional ocorridas em novembro de 1978. Este pleito, nada obstante tenha assegurado ao governo uma ampla vitória do ponto de vista do número de votos depositados, mostrou o crescimento eleitoral da oposição.

Uma das primeiras medidas do governo Figueiredo foi conferir uma anistia aos condenados por crimes políticos. Essa anistia não foi ampla e irrestrita como se reclamava na época. Ela excluía os crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e assassinato, mas incluía os crimes no exercício de funções das forças armadas e polícia.

Por outro lado, a maré da opinião pública a favor da oposição obriga o governo a novas medidas no terreno eleitoral. Em outubro de 1979 dissolvem- se os dois partidos existentes, tendo em vista a criação de novos partidos. As regras que passam a viger

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impunham aos partidos a apresentação de candida- tos a todos os cargos postos em disputa; proibiam as coligações e estabeleci- am o voto vinculado. Ademais, continuava em vigor a Lei Falcão.

Eram todas medidas que, dada a conjuntura política da época, conferi- am privilégios ao governo, por exemplo: a apresentação de candidatos a todos os postos era coisa muito fácil de ser obtida pelo partido governamental, mas quase impossível para os partidos nascentes.

A proibição de coligações impedia que os partidos pequenos pudessem unir-se para efeito de atingir-se o exigido pela Legislação. Mesmo assim, diante desse quadro adverso, surgem cinco partidos: PDS, PMDB, PTB, PDT e PT.

Em 1982, tendo havido uma modificação eleitoral que dentre outras me- didas eliminava a Lei Falcão, o PMDB, ainda o principal partido de oposição, ganha de maneira expressiva, fazendo os governadores sobretudo dos Estados mais desenvolvidos, e de maior contingente eleitoral.

Sem embargo da subsistência de uma ou outra medida que poderia ser tida como não-democrática, o fato é que foi este pleito de 1982 que reuniu condições de razoável igualdade, entre os diversos partidos políticos. O tem- po aberto na televisão foi propício a que todos externassem a sua mensagem. Foram, portanto, as primeiras eleições diretas para Governador havidas nos últimos anos. Um pleito com tais características não poderia deixar de produ- zir desdobramentos na vida política do País. Os de maior repercussão foram: o desencadeamento de uma campanha a favor de eleições diretas para a Presi- dência da República. O segundo, o fortalecimento da corrente dos que defen- diam a convocação de uma Constituinte para o País. Ela deixa, pois, de ser uma tese de uma pequena elite para propagar-se popularmente. Torna-se pon- to de aglutinação para grandes comícios e só cede por razões de ordem tática que mostravam ser mais conveniente à época insistir-se na eleição direta para Presidente. O Congresso vota - submetendo-se Brasília e os Municípios cir- cunvizinhos às medidas de emergência - contrariamente à emenda de auto- ria do deputado do Mato Grosso, Dante de Oliveira.

Superada a tentativa de adoção do voto direto, partiu-se para a campa- nha visando a eleição do Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985.

Durante essa campanha, fatos políticos de grande importância findaram por levar à vitória um civil.

O PMDB apresenta como candidato o então Governador de Minas Ge- rais, Tancredo Neves. A indicação do candidato do PDS não foi tranqüila. Houve acirrada disputa entre Mário Andreazza e Paulo Maluf, com a vitória deste último.

Os partidários do candidato derrotado não aderiram ao vitorioso, prefe- rindo, sob a liderança de Sarney, formar uma dissidência e ao depois um novo partido, o PFL, que, aliando-se ao PMDB, acabou levando este à vitória. Foi sem dúvida uma grande conquista do processo político brasileiro, que soube, pela via eleitoral, pôr fim a uma ditadura militar, o que não é muito freqüente na América Latina.

Sem dúvida, isso só se tornou possível pelo papel representado por Tan- credo Neves, e pela sua invulgar habilidade para obter a unidade de facções em princípio desentendidas.

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Eleito, passou a formar o seu governo com muita meticulosidade, desig- nando as pessoas que considerava certas para um plano que ele parecia ter em mente, embora nunca tivesse explicitado em detalhes o conteúdo dessa políti- ca. Mas um golpe trágico está para ser desferido. Na véspera da sua posse, ele teve de ser internado para uma operação à qual seguiram-se diversas outras, chegando-lhe a morte no dia 21 de abril de 1985.

2.4. O Governo Sarney

Sarney é empossado como sucessor do Presidente com relativa facilida- de. A dificuldade surgida era de índole eminentemente jurídico-constitucional. Poderia o Vice-Presidente ser sucessor de um Presidente eleito mas não empos- sado?

Felizmente, contudo, a tese mais correta dominou plenamente, permitindo que ele assumisse normalmente o seu cargo.

No exercício do poder, Sarney sofreu a cobrança das promessas levanta- das pelo partido durante a campanha. Dentre estas avultava a da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. O tema continuava a mobilizar camadas organizadas do povo, que se dividiam, contudo, quanto ao caráter desta Cons- tituinte. Havia os que a queriam autônoma e independente, dentre eles o próprio relator da comissão incumbida de analisar o projeto, Deputado Flávio Bierrembach. Mas havia também os que desejavam a conversão do Congresso Nacional a ser eleito em novembro de 1986, em Assembléia Constituinte, isto é: os constituin- tes seriam os próprios congressistas, a reunirem-se em 15 de março. Prevaleceu esta última tese, o que frustrou a expectativa da maioria do povo, que desejava um órgão exclusivo com esta função.

De outra parte deu margem a boa dose de discussão o compatibilizar-se o exercício das funções da Constituinte com as do Congresso Nacional, que continuava a existir. Estes problemas findaram por ser superados e a Consti- tuinte entrou, depois de um mês que gastou para redigir o seu regimento, em funcionamento a fim de cumprir os prazos previstos no documento regulador dos seus trabalhos, o que acabou por não ocorrer como adiante se verá.

CAPÍTULO VII CONSTITUIÇÃO DE 1988

SUMÁRIO: 1. Instalação e funcionamento da Assembléia Nacional Constituinte. 2. Histórico da Constituinte

1. INSTALAÇÃO E FUNCIONAMENTO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE

A instalação da Assembléia Nacional Constituinte ocorreu em 1.o de fevereiro de 1987 sob a presidência do Ministro José Carlos Moreira Alves, então Presidente do Supremo Tribunal Federal.

No dia seguinte, é eleito Presidente da Constituinte o Deputado Ulisses Guimarães.

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O regimento interno, por sua vez, só será aprovado no dia 24 de março, tendo até então a Assembléia trabalhado sob a égide de normas provisórias editadas no dia 6 de fevereiro.

Esta demora havida foi como que uma antecipação das dificuldades com que o seu funcionamento iria se deparar no futuro.

A exemplo da Constituição de 1946, que iniciou seus trabalhos sem um projeto anterior, a Assembléia convocada em 1987 também preferiu não partir de um projeto já elaborado.

Os trabalhos de uma comissão convocada pelo governo que ganhou o nome do seu Presidente "Afonso Arinos" não transcenderam as dependências do Executivo, que preferiu não remetê-los à Constituinte.

A verdade, contudo, é que a Assembléia não soube enfrentar com eficiên- cia esta ausência de projeto que em si mesma não é um mal, visto que a Assembléia Constituinte Portuguesa de 1976 também reuniu-se sem um projeto prévio.

A opção do constituinte brasileiro foi pela formação de vinte e quatro subcomissões incumbidas de dar início à elaboração da futura Constituição.

O término do seu trabalho se deu a 25 de maio, passando-se para a fase subseqüente levada a efeito no bojo de oito comissões temáticas, que por sua vez elaboram anteprojetos à Comissão de Sistematização.

Em 25 de junho, o seu relator, Bernardo Cabral, apresenta um trabalho em que reúne como pode estes anteprojetos em uma só peça de 551 artigos, que acabou por ganhar o nome de "Frankenstein".

Pelo relatório até agora feito, já dá para se perceber o erro fundamental da Constituinte: a pulverização dos seus trabalhos em múltiplas subcomissões que eram obrigadas a trabalhar sem que tivesse havido qualquer aprovação prévia de diretrizes fundamentais. Isto conduzia necessariamente as subcomissões a enveredarem por um trabalho detalhista, minucioso e, o que é mais grave, receptivo a reclamos e pleitos vindos de todos os rincões da sociedade.

A este fenômeno não foi estranho o próprio fato de a maioria dos parla- mentares ser absolutamente inexperiente e despreparada para a tarefa consti- tucional.

Não resistiram a assumir um papel de meros despachantes, diante de interesses de toda sorte. Tornaram-se advogados destes pequenos interesses e nisto pretendiam ver legitimada a sua condição de constituinte.

Ressente-se, portanto, o trabalho produzido desta falta de contato com o que poderíamos chamar: a grandeza constitucional.

Não há lugar para os grandes temas e os pequenos são resolvidos tam- bém em pequenas comissões. O divórcio entre o que se ia produzindo e o que a nação esperava já a esta altura era muito profundo.

É bom que se diga, também, que as próprias expectativas populares estavam deformadas pela campanha levada a efeito em prol da Constituinte, na qual esta aparecia sempre como a panacéia para todos os males.

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Para se ter uma idéia da fragmentação e da pulverização dos trabalhos constituintes, basta levar em conta que o Projeto "Cabral" recebeu 5.615 emendas, ante o que o relator apresenta um substitutivo aprovado pela comissão que ganhou o nome de "Cabral zero".

No dia 15 de julho, inicia-se a discussão por quarenta dias, passando-se posteriormente à fase de apresentação de emendas, inclusive emendas "populares".

No dia 26 de agosto, com base nas 20.790 emendas de plenário e nas 122 "populares", o relator apresenta na Comissão outro substitutivo, agora com 374 artigos, o "Cabral 1".

No dia 15 de setembro, depois de examinar as 14.320 emendas apresentadas a este substitutivo, o relator elabora outro com 336 artigos. É o "Cabral 2".

No dia 24 de setembro, a Comissão de Sistematização começa a votar o "Cabral 2", como os outros substitutivos e todas as milhares de emendas ofe- recidas nas fases anteriores.

Nesta altura dos trabalhos, ocorre uma conscientização por parte da maioria do plenário, muito séria.

É que só então este se apercebe de que o grosso dos parlamentares (to- dos aqueles que não tinham lugar na Comissão de Sistematização) estavam praticamente excluídos do efetivo processo decisório. É que, não se sabe bem por que, pairava no ar da Assembléia a idéia de que o Projeto de Constituição, encaminhado pela Comissão de Sistematização ao plenário, contaria com o que poderíamos chamar de uma presunção de aprovação. Isto implicava que, para que fosse rejeitado qualquer dispositivo seu, far-se-ia necessária a apro- vação de uma emenda neste sentido por maioria absoluta do Congresso, é dizer: duzentos e oitenta parlamentares.

Sem dúvida que tal sistemática distorcia o disposto na Emenda Convocatória da Assembléia Nacional.

Esta dispunha que nada seria decidido em matéria constitucional sem a aprovação da maioria absoluta da Casa.

Destarte, nenhum projeto poderia contar com o benefício de ver-se aprovado pelo mero fato de não se ter conseguido derrubá-lo.

Era impositivo constitucional que qualquer decisão demandaria a maio- ria absoluta, mesmo que já contasse com a aprovação de alguma comissão.

Percebido o que se estava passando, a reação da maioria foi rápida.

No dia 10 de novembro, o "Centrão" (nome por que veio a ser conheci- do um grupo de parlamentares interpartidário contrário aos critérios regimen- tais) apresenta em plenário projeto de alteração do regimento, com 319 assi- naturas, permitindo a apresentação de novas emendas ao projeto da Comissão de Sistematização.

Não há dúvida que foi este um dos pontos de ruptura dentro da orienta- ção que vinha prevalecendo no seio da Constituinte. Equivaleu a uma revolu- ção democratizante, uma vez que, independentemente do juízo que se possa ter sobre o mérito das soluções encampadas pelo projeto da Comissão de Siste- matização, o certo é que esta não poderia, em

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hipótese alguma, fazer as vezes do plenário. Só mesmo a crise da qual o País não se livrou de maneira definiti- va poderia explicar que um grupo minoritário, dentro do Congresso, tentasse fazer prevalecer a sua vontade contra a da maioria.

A vitória do "Centrão" do ponto de vista regimental foi, sem dúvida, uma vitória da democracia. Aliás, os próprios fatos posteriores demonstraram que o agrupamento parlamentar assim denominado não tinha, no fundo, outro liame unificador que não fosse precisamente a idéia matriz de fazer-se ouvir enquanto maioria.

Finalmente, no dia 27 de janeiro de 1988, o plenário reúne-se para dar início às votações, sendo que, no entanto, a primeira matéria não alcança quo- rum (duzentos e oitenta votos favoráveis), adiando-se a votação por vinte e quatro horas.

No dia 28 de janeiro, são aprovadas as primeiras matérias: o preâmbulo e o Título I.

2. HISTÓRICO DA CONSTITUINTE

Segue-se um longo período de deliberações onde são tomadas decisões de grande impacto nacional, muitas vezes antecedidas por difíceis negocia- ções, citando-se à guisa de exemplo a tomada de posição quanto à Reforma Agrária, definição de empresa nacional, nacionalização da atividade mineral, anistia aos devedores da época do Plano Cruzado.

No final de julho de 1988 inicia-se o 2.o turno de votação. As características aqui já foram muito diversas. A votação teve no fundo um caráter meramente chancelador ou homologatório do que houvera sido aprovado antes.

Regimentalmente, eram admitidas apenas emendas supressivas. Outras só eram aceitáveis se contassem com a unanimidade das lideranças.

Tudo isto, somado ao persistente absenteísmo de uma parcela dos consti- tuintes, tornava quase impossível uma mudança em pontos essenciais do Texto.

O clima de cansaço que a partir de um certo ponto se abateu sobre os constituintes e sobre a Nação, aliado à aproximação dos pleitos municipais, fez com que a Constituinte se voltasse para um trabalho denominado "concen- trado", que não deixou de trazer consigo uma grande dose de precipitação e inconsciência, surgindo ao final um clima festivo.

Fica contudo por se saber se a alegria era devida à sensação do bom trabalho realizado ou se ao alívio de ver terminado o que já vinha tomando-se um verdadeiro tormento.

PARTE II DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO

TÍTULO I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

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CAPÍTULO ÚNICO PRINCÍPIOS E OBJETIVOS DO BRASIL, NA ORDEM INTERNA E NA INTERNACIONAL

SUMÁRIO: 1. Princípios constitucionais. 1.1. República. 1.2. Federação. 1.2.1. Histórico. 1.2.2. Princípio federativo. 1.2.3. Características da federação. 1.3. Estado Democrático de Direito. 2. Fundamentos da República Federativa do Brasil. 3. Tripartição dos poderes. 4. Objetivos fundamentais. 5. O Brasil na ordem internacional. 5.1. O Mercosul e a nova ordem mundial.

A nova Constituição traz, em seu primeiro Título, os Princípios Funda- mentais da República Federativa do Brasil. Antes, no entanto, de estudarmos cada um destes princípios, convém sintetizarmos o que foi visto no capítulo anterior quanto ao seu conteúdo, alcance e força.

1. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores funda- mentais da ordem jurídica. Isto só é possível na medida em que estes não obje- tivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo jurídico. Alcançam os princípios esta meta à proporção que per- dem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo densidade semântica, eles ascendem a uma posição que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que uma norma estabelecedora de precei- tos. Portanto, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas.

O reflexo mais imediato disto é o caráter de sistema que os princípios impõem à Constituição. Sem eles a Constituição se pareceria mais com um aglomerado de normas que só teriam em comum o fato de estarem juntas no mesmo diploma jurídico, do que com um todo sistemático e congruente. Des- ta forma, por mais que certas normas constitucionais demonstrem estar em contradição, esta aparente contradição deve ser nunimizada pela força catalisado- ra dos princípios.

Outra função muito importante dos princípios é servir como critério de interpretação das normas constitucionais, seja ao legislador ordinário, no mo- mento de criação das normas infraconstitucionais, seja aos juízes, no momen- to de aplicação do direito, seja aos próprios cidadãos, no momento da realiza- ção de seus direitos.

Em resumo, são os princípios constitucionais aqueles valores alberga- dos pelo Texto Maior a fim de dar sistematização ao documento constitucio- nal, de servir como critério de interpretação e finalmente, o que é mais impor- tante, espraiar os seus valores, pulverizá-los sobre todo o mundo jurídico.

1.1. República

A república no início teve um sentido bastante preciso; tratava-se de um regime que se opunha à monarquia. Nesta, tudo pertencia ao rei, que governa- va de maneira

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absoluta e irresponsável. Além disto, é característica das monar- quias a vitaliciedade do governante e, via de regra, a transferência do poder por força de laços hereditários. A república surgiu, portanto, em oposição ao regime monárquico, uma vez que retirava o poder das mãos do rei passando-o à nação. Não há que se pensar, no entanto, que o povo passou, efetiva e dire- tamente, a governar, muito embora esta seja a primeira idéia de república, ou seja, a "coisa do povo".

Hoje, no entanto, o conceito de república perdeu muito de seu conteúdo. Isto se deu na medida em que as monarquias foram cedendo parcelas de seus poderes até - contemporaneamente - encontrarem-se quase que totalmente destituídas de qualquer prerrogativa de mando efetivo. As monarquias da Eu- ropa ocidental em nada diferenciam-se de suas vizinhas Repúblicas, à exce- ção da figura decorativa do monarca que nominalmente exerce as funções de chefe de Estado. Assim, em termos de regimes políticos, os conceitos de monarquia e república estão bastante esvaziados. Talvez por esta razão a nova Constituição reforce o seu significado falando de Estado Democrático de Direito e ainda enumerando alguns fundamentos de nossa República. Resumindo, ao termos que interpretar o princípio republicano, devemos ter em mente, funda- mentalmente, a necessidade da alternância no poder, por certo sua caracte- rística mais acentuada.

1.2. Federação

Ao lado do termo "República", inserto no art. 1.o da Constituição de 1988, encontra-se a palavra "Federativa", ou seja, o Brasil adere à forma Fe- derativa de Estado.

1.2.1. Histórico

A idéia moderna de Federação surge em 1787, na Convenção de Philadel- phia, onde as treze ex-colônias inglesas resolveram dispor de parcela de suas soberanias, tornando-se autônomas, e constituir um novo Estado, este sim so- berano. Assim, a Constituição de 1787, que deu surgimento aos Estados Uni- dos da América, criou também uma nova forma de Estado, o federativo.

No Brasil, embora as coisas tenham ocorrido um pouco às avessas, a forma federativa surgiu em 15 de novembro de 1889, junto com a República, por força do Decreto n. 1. Dizemos por que às avessas: na experiência norte-ameri- cana, tínhamos treze países independentes, que, através de um acordo, cede- ram parcela de seu poder ao novo ente que surgiu, resguardando assim muito do que antes era seu. No caso brasileiro, ao invés de diversos Estados, tínha- mos um só; o Brasil todo respondia ao domínio do imperador. Depois de pro- clamada a República e a Federação é que se viu a necessidade de criarem-se os Estados-Membros, aos quais delegaram-se algumas competências. Esta talvez seja uma das razões pelas quais o Brasil nunca chegou a ter uma verdadeira Federação, onde os Estados alcançam autonomia real.

Outro dado para o qual se deve alertar no novo Texto é o fato de ele ter incluído o município como componente da Federação. Como sabemos o município é uma realidade em nossa história. Mesmo antes de existir o país Brasil já tínha- mos municípios, os quais eram importantes locus de poder. Inclusive tendo a Constituição do Império que passar pelo crivo das Câmaras municipais para que chegasse a ser aprovada. Portanto, corrige o

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constituinte, ao incluir o mu- nicípio como componente da Federação brasileira, o erro das Constituições anteriores.

1.2.2. Princípio Federativo

A federação é a forma de Estado pela qual se objetiva distribuir o poder, preservando a autonomia dos entes políticos que a compõem. No entanto, nem sempre alcança-se uma racional distribuição do poder; nestes casos dá-se ou um engrandecimento da União ou um excesso de poder regionalmente con- centrado, o que pode ser prejudicial se este poder estiver nas mãos das oligar- quias locais. O acerto da Constituição, quando dispõe sobre a Federação, estará diretamente vinculado a uma racional divisão de competência entre, no caso brasileiro, União, Estados e Municípios; tal divisão para alcançar logro pode- ria ter como regra principal a seguinte: nada será exercido por um poder mais amplo quando puder ser exercido pelo poder local, afinal os cidadãos moram nos Municípios e não na União.

Portanto deve o princípio federativo informar o legislador infraconstitu- cional que está obrigado a acatar tal princípio na elaboração das leis ordiná- rias, bem como os intérpretes da Constituição, a começar pelos membros do Poder Judiciário.

1.2.3. Características da Federação

Poderíamos, aqui, elencar inúmeras características da Federação; aborda- remos, entretanto, apenas aquelas que se nos demonstram mais importantes:

1 .a)) uma descentralização político-administrativa constitucionalmente pre- vista;

2.a) uma Constituição rígida que não permita a alteração da repartição de competências por intermédio de legislação ordinária. Se assim fosse pos- sível, estaríamos num Estado unitário, politicamente descentralizado;

3 .a) existência de um órgão que dite a vontade dos membros da Federa- ção; no caso brasileiro temos o Senado, no qual reúnem-se os representantes dos Estados-Membros;

4.a) autonomia financeira, constitucionalmente prevista, para que os entes federados não fiquem na dependência do Poder Central;

5.a) a existência de um órgão constitucional encarregado do controle da constitucionalidade das leis, para que não haja invasão de competências.

Quanto à divisão de competências, que talvez seja o tema mais relevante no tratamento da Federação, será abordada oportunamente quando tratarmos da Federação brasileira.

1.3. Estado Democrático de Direito

É em boa hora que a Constituição acolhe estes dois princípios: o Demo- crático e o do Estado de Direito. Pois, como visto, o princípio republicano, por si só, não se tem

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demonstrado capaz de resguardar a soberania popular, a submissão do administrador à vontade da lei, em resumo, não tem conseguido preservar o princípio democrático nem o do Estado de Direito.

Antes, porém, de analisarmos estes preceitos, uma questão nos salta aos olhos: estabeleceu a Constituição dois princípios ou na realidade o Estado De- mocrático e o Estado de Direito significam a mesma coisa? Daremos esta res- posta através das seguintes palavras de Canotilho e Vital Moreira: "Este con- ceito é bastante complexo, e as suas duas componentes - ou seja, a compo- nente do Estado de direito e do Estado democrático - não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é de direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é Estado de direito" (Constituição da República Portuguesa anotada, 2. ed., Coimbra Ed., 1984, v. 1, p. 73). Esta íntima ligação poderia fazer-nos crer que se trata da mesma coi- sa, no entanto, os autores complementam o pensamento da seguinte maneira: "Esta ligação material das duas componentes não impede a consideração espe- cífica de cada uma delas, mas o sentido de uma não pode ficar condicionado e ser qualificado em função do sentido da outra" (Constituição, cit., p. 73). Concluí- mos, então, tratar-se de um conceito híbrido, e para que possamos melhor compreendê-lo, necessitamos percorrer, preliminarmente, cada um deles.

O Estado de Direito, mais do que um conceito jurídico, é um conceito político que vem à tona no final do século XVIII, início do século XIX. Ele é fruto dos movimentos burgueses revolucionários, que àquele momento se opu- nham ao absolutismo, ao Estado de Polícia. Surge como idéia força de um movimento que tinha por objetivo subjugar os governantes à vontade legal, porém, não de qualquer lei. Como sabemos, os movimentos burgueses rompe- ram com a estrutura feudal que dominava o continente europeu; assim os novos governos deveriam submeter-se também a novas leis, originadas de um processo novo onde a vontade da classe emergente estivesse consignada. Mas o fato de o Estado passar a se submeter à lei não era suficiente. Era necessário dar-lhe outra dimensão, outro aspecto. Assim, passa o Estado a ter suas tarefas limita- das basicamente à manutenção da ordem, à proteção da liberdade e da pro- priedade individual. É a idéia de um Estado mínimo que de forma alguma interviesse na vida dos indivíduos, a não ser para o cumprimento de suas fun- ções básicas; fora isso deveriam viger as regras do mercado, assim como a livre contratação.

Como não poderia deixar de ser, este Estado formalista recebeu inúme- ras críticas na medida em que permitiu quase que um absolutismo do contra- to, da propriedade privada, da livre empresa. Era necessário redinamizar este Estado, lançar-lhe outros fins; não que se desconsiderassem aqueles alcança- dos, afinal eles significaram o fim do arbítrio, mas cumprir outras tarefas, principalmente sociais, era imprescindível.

Desencadeia-se, então, um processo de democratização do Estado; os movimentos políticos do final do século XIX, início do XX, transformam o velho e formal Estado de Direito num Estado Democrático, onde além da mera submissão à lei deveria haver a submissão à vontade popular e aos fins propostos pelos cidadãos. Assim, o conceito de Estado Democrático não é um conceito formal, técnico, onde se dispõe um conjunto de regras relativas à escolha dos dirigentes políticos. A democracia, pelo contrário, é algo dinâmi- co, em constante aperfeiçoamento, sendo válido dizer que nunca foi plena- mente alcançada. Diferentemente do Estado de Direito - que, no dizer de Otto Mayer, é o direito administrativo bem ordenado - no Estado Democrá- tico importa saber a que normas o Estado e o próprio cidadão estão submeti- dos. Portanto, no entendimento de Estado Democrático devem ser levados em conta o perseguir certos fins, guiando-se por certos valores, o que não ocorre de

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forma tão explícita no Estado de Direito, que se resume em submeter-se às leis, sejam elas quais forem.

2. FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

A Constituição traz como fundamentos do Estado brasileiro a sobera- nia, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a crença nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Esses fundamentos devem ser entendidos como o embasamento do Estado; seus valores primor- diais, imediatos, que em momento algum podem ser colocados de lado.

Soberania é a qualidade que cerca o poder do Estado. Entre os romanos era denominada suprema potestas, imperium. Indica o poder de mando em última instância, numa sociedade política. O advento do Estado moderno co- incide, precisamente, com o momento em que foi possível, num mesmo terri- tório, haver um único poder com autoridade originária. A soberania se cons- titui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consa- gração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação.

Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos po- deres juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho a Nação intervir nos seus negócios. No entanto, o princípio da soberania é fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante repro- duzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretri- zes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno, alimentação, ener- gia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhe, desde logo, uma interdependência de fato.

À pergunta de que se o termo "soberania" ainda é útil para qualificar o poder ilimitado do Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Estará caduco o conceito se por ele entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição. Será termo atual se com ele estiver- mos significando uma qualidade ou atributo da ordem jurídica estatal. Neste sentido, ela - a ordem interna - ainda é soberana, porque, embora exercida com limitações, não foi igualada por nenhuma ordem de direito interna, nem superada por nenhuma outra externa.

Portanto, se insistiu o constituinte no uso do termo "soberania", deve- mos ter em mente o seu conteúdo bastante diverso daquele empregado nos séculos XVIII e XIX.

A cidadania, também fundamento de nosso Estado, é um conceito que deflui do próprio princípio do Estado Democrático de Direito, podendo-se, desta forma, dizer que o legislador constituinte foi pleonástico ao instituí-lo. No entanto, ressaltar a importância da cidadania nunca é demais, pois o exer- cício desta prerrogativa é fundamental. Sem ela, sem a participação política do indivíduo nos negócios do Estado e mesmo em outras áreas do interesse público, não há que se falar em democracia.

Embora dignidade tenha um conteúdo moral, parece que a preocupação do legislador constituinte foi mais de ordem material, ou seja, a de proporcio- nar às pessoas

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condições para uma vida digna, principalmente no que tange ao fator econômico. Por outro lado, o termo "dignidade da pessoa" visa a condenar práticas como a tortura, sob todas as suas modalidades, o racismo e outras humilhações tão comuns no dia-a-dia de nosso país. Este foi, sem dú- vida, um aceno do constituinte, pois coloca a pessoa humana como fim último de nossa sociedade e não como simples meio para alcançar certos objetivos, como, por exemplo, o econômico.

Quanto aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, destaca-se, em primeiro lugar, que o trabalho deve obrigatoriamente ter seu valor reconhecido; e de que forma? Através da justa remuneração e de condições razoáveis para seu desenvolvimento. Por outro lado, o livre empreendedor, aquele que se arriscou lançando-se no duro jogo do mercado, também tem que ter seu valor reconheci- do, não podendo ser massacrado pelas mãos quase sempre pesadas do Estado.

Por fim, é fundamento de nosso Estado o pluralismo político. A demo- cracia impõe formas plurais de organização da sociedade, desde a multiplici- dade de partidos até a variedade de igrejas, escolas, empresas, sindicatos, or- ganizações culturais, enfim, de organizações e idéias que têm visão e interes- ses distintos daqueles adotados pelo Estado. Desta forma, o pluralismo é a possibilidade de oposição e controle do Estado.

3. TRIPARTIÇÃO DOS PODERES

Também arrola-se entre os princípios fundamentais a chamada triparti- ção dos poderes, que poderia ter sido melhor chamada de tripartição de fun- ções, uma vez que o poder ao povo pertence. O Legislativo, o Executivo e o Judiciário são meras funções desempenhadas pelo Estado, que exerce o poder em nome do povo.

O traço importante da teoria elaborada por Montesquieu não foi o de identificar estas três funções, pois elas já haviam sido abordadas por Aristóte- les, mas o de demonstrar que tal divisão possibilitaria um maior controle do poder que se encontra nas mãos do Estado. A idéia de um sistema de "freios e contrapesos", onde cada órgão exerça as suas competências e também controle o outro, é que garantiu o sucesso da teoria de Montesquieu.

Hoje, no entanto, a divisão rígida destas funções já está superada, pois, no Estado contemporâneo, cada um destes órgãos é obrigado a realizar ativi- dades que tipicamente não seriam suas.

Ao contemplar tal princípio o constituinte teve por objetivo - tirante as funções atípicas previstas pela própria Constituição - não permitir que um dos "poderes" se arrogue o direito de interferir nas competências alheias, por- tanto não permitindo, por exemplo, que o executivo passe a legislar e também a julgar ou que o legislativo que tem por competência a produção normativa aplique a lei ao caso concreto.

Além destes conceitos básicos, outros serão trazidos quando entrarmos no estudo da organização dos poderes propriamente ditos.

4. OBJETIVOS FUNDAMENTAIS

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A idéia de objetivos não pode ser confundida com a de fundamentos, muito embora, algumas vezes, isto possa ocorrer. Os fundamentos são ineren- tes ao Estado, fazem parte de sua estrutura. Quanto aos objetivos, estes con- sistem em algo exterior que deve ser perseguido. Portanto, a República Fede- rativa do Brasil tem por meta irrecusável construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a margi- nalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

5. O BRASIL NA ORDEM INTERNACIONAL

Apesar da importância que têm alcançado as relações internacionais pri- vadas, os Estados ainda são seus agentes mais importantes. O incremento da comunidade internacional e a cada vez maior interdependência entre os Esta- dos têm gerado, também, um incremento do sistema normativo internacional. Talvez seja esta a razão pela qual o constituinte preocupou-se em trazer os princípios fundamentais que regerão nossas relações internacionais, à Cons- tituição.

O primeiro destes princípios é o da independência nacional, que poderia resumir-se no poder de autodeterminação do Estado brasileiro. É interessante notar que ao prever tal dispositivo o Brasil não o fez olhando apenas para si mesmo, uma vez que previu o princípio da não-intervenção, o que significa admitir a independência das outras nações. No que tange à autodeterminação dos povos, algumas vezes se faz confusão. Embora a ordem internacional rei- nante repouse sobre a noção de soberania do Estado, o constituinte pretendeu indicar que nossa política internacional respeita também, ao lado da indepen- dência estatal, a autodeterminação dos povos específicos. Isto se dá pelo fato de que muitas vezes um povo não é independente, mas se submete a imposi- ções de outros povos. Era o caso das colônias. Porém, após a Segunda Guerra Mundial, o conceito perdeu bastante valor, uma vez que aquelas colônias tor- naram-se independentes. No entanto, é importante notar que ainda hoje, na própria Europa, povos há que não conseguiram sua independência, caso do Povo Basco, que vive em constante conflito com o Estado espanhol.

Além destes princípios que têm por objetivo o respeito à independência nacional e das outras nações e povos, o Brasil adere à luta pelos direitos humanos, luta esta multissecular. Assim fica obrigado a dar guarida, por exemplo, à Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Ge- ral da ONU, em 10 de dezembro de 1948; e por conseqüência fica também obrigado a repudiar toda violação a estes direitos. No mesmo passo impõe-se o repúdio ao terrorismo e ao racismo. A concessão de asilo político também encontra-se arrolada no art. 4.o.

Numa terceira ordem de princípios temos a solução pacífica dos confli- tos e a defesa da paz, do que resulta a exclusão da guerra, como medida razo- ável para a decisão de conflitos; porém, não faz o Texto qualquer menção a uma hierarquia na procura dos meios pacíficos que deverão ser trilhados na busca da paz. E é sabido que há uma variedade destes, a começar dos jurisdicionais, que compreendem o recurso à Corte Internacional de Justiça e à arbitragem, até os não-jurisdicionais, que implicam os bons ofícios, na con- ciliação e na mediação.

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Outro princípio proclamado pelo Texto diz respeito à cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Este dispositivo parece-nos estar predominantemente voltado ao intercâmbio de conhecimento científico.

5.1. O Mercosul e a Nova Ordem Mundial

Todos nós que vivemos neste final de século temos assistido, sobretudo nestes últimos anos, a alterações extremamente profundas na ordem política e econômica internacional, sem símiles desde o advento da última Grande Guerra Mundial.

Nas décadas que se seguiram à 2.a Guerra Mundial (1950-1990), sobre- veio o desmoronamento do império soviético, a queda do muro de Berlim, a emergência do Japão como potência econômica máxima, a construção da uni- dade econômica européia ao lado do gigantismo da própria nação americana. Todas estas transformações fizeram com que o problema do desenvolvimento econômico ganhasse papel relevante e importância jamais vista. Mas não fo- ram mera obra do acaso.

As linhas mestras da organização, de caráter tanto econômico como po- lítico, do segundo pós-guerra foram lançadas na famosa reunião Bretton Woods, na qual materializou-se o perfil do novo mundo a ser estruturado.

Três organismos fundamentais teriam funções nucleares: o Fundo Mo- netário Internacional (FMI), em relação à organização financeira; o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), no tocante à liberalização do comércio; e a Organização Internacional do Comércio (OIC), que, por falta de apoio de alguns países, acabou não vingando, daí porque o GATT ocupou o seu lugar. E, para o campo da reconstrução econômica, o Banco Internacional de Re- construção e Desenvolvimento (BIRD). Encimando toda esta organização, como instrumento de manutenção da ordem, da segurança e da paz internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU).

O certo é que naquela altura não se vislumbrou a possibilidade da cria- ção de megablocos geo-econômicos de alcance mundial, quer dizer, de gigan- tes econômicos que incentivassem o fluxo de mercadorias e de investimentos, transpassando as fronteiras nacionais. Num primeiro momento isso até levan- tou a polêmica da sua compatibilização com o GATT, porém, gradativamente, consolidou-se a idéia de que estas organizações regionais, no fundo, possuí- am objetivos idênticos aos do próprio GATT, embora limitados a uma deter- minada zona do mundo. O GATT foi substituído recentemente pela Organiza- ção Mundial do Comércio (OMC).

Além disso, essas realidades econômicas tinham de disputar espaço também com a própria divisão do mundo em blocos eminentemente políticos e ideo- lógicos e que, de certa forma, camuflavam a agudeza dessa disputa.

Desaparecidas hoje as razões ideológicas, uma vez que o mundo inteiro, atualmente, obedece a regras de economia mais ou menos parecidas, com a predominância de economias liberais ou economias de estrutura ainda centra- lizada e burocratizadas, como o Brasil, mas que procuram atingir um desen- volvimento capitalista.

Com o decorrer do tempo, o que se viu foi um crescimento sensível destas organizações econômicas e a importância relativa assumida por cada uma. A competição

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econômica tornou-se mais acentuada do que a existente à época das tensões políticas. Haja vista a forte concorrência entre as comuni- dades européias e os Estados Unidos da América, em diversos pontos separa- dos por divergências profundas. O cenário internacional evidencia, sem dúvi- da, uma forte disputa por mercados, na qual os atores principais são os gran- des blocos econômicos, constituídos por potências em si mesmas expressivas, em razão de seu enorme poderio econômico ou por países que tenham obtido êxito no processo de unificação, como é o caso das Comunidades Econômicas Européias, ou, além destes, por um misto desses dois, que é o caso específico do Japão, que já possui ao seu redor um processo de unificação, decorrente da influência que exerce em algumas economias periféricas.

Só para se ter uma idéia do poderio econômico destes megablocos, o primeiro deles, o Mercado Comum Europeu, conta com um contingente populacional da ordem de 350 milhões de pessoas de alto poder aquisitivo e um PIB (Produto Interno Bruto) correspondente a 6 trilhões de dólares. Há outro megabloco à altura do europeu, como o NAFTA (Acordo de Livre-Co- mércio da América do Norte), contando com 360 milhões de pessoas de um elevado poder aquisitivo e um PIB girando em torno de 6,5 trilhões de dóla- res. Sem falar num outro concorrente de peso, os países que integram a Bacia do Pacífico, que, só por contar com a participação do Japão (o país mais rico do mundo) e dos Tigres asiáticos (famosos pelo seu montante populacional), dispensa-se qualquer referência a dados numéricos.

Qual é a resposta que o Brasil dá a essa realidade? O Brasil tem partici- pado tenuemente desses movimentos uma vez que as tradicionais ligações com os países latino-americanos da Associação Latino-Americana de Livre Comércio - ALALC não prosperaram.

Recentemente, o Brasil, assim como a maior parte dos países da Améri- ca Latina, em razão do cenário mundial de acirramento da concorrência glo- bal, procurou instituir uma política de privatização, um programa de desregulamentação da economia como passo certo à sua inserção no mercado mundial. Na prática, a realidade é outra. O processo de privatização é tímido, tendo em vista que os grandes monopólios ainda perduram. Procura implementar um processo de regionalização, visando a constituição de um mercado com os seus parceiros Argentina, Uruguai e Paraguai, o chamado Mercosul (Mercado do Cone Sul), oficializado com a assinatura do Tratado de Assunção, em 1991. Sem dúvida, é algo que em si não pode ser criticado, na medida em que sig- nifica, de alguma maneira, a integração do Brasil num mercado mais amplo.

O Mercosul pretende criar um mercado comum, mas vale salientar que ainda não o fez. O Mercado Comum assemelha-se a uma federação, mas não se confunde com tal, porque não há a criação de um novo Estado. Este tem características próprias que o distinguem de outras formas de organização do comércio internacional, como as zonas de livre comércio e as uniões aduanei- ras. É interessante tecermos breves comentários a respeito do Mercosul para termos uma idéia do seu atual grau de desenvolvimento.

A primeira etapa de qualquer processo integracionista é a zona de livre comércio, que no caso do Mercosul já foi concluída. Funcionando o livre co- mércio, passa-se para a união aduaneira que é a adoção de uma Tarifa Externa Comum (TEC); o Mercosul já adotou a TEC. Consolidada a união aduaneira e eliminando-se qualquer restrição relativa a bens e serviços, estar-se-á no mercado comum. O Mercosul pretende chegar até aqui. Mas o processo vai mais longe, incluindo a união econômica e a união monetária, que já estão sendo alcançadas pela união européia.

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O Mercosul encontra-se na segunda etapa, na união aduaneira, com a adoção da TEC, pela qual se acordam níveis tarifários limites para os seus países- membros. É um elemento essencial, representando uma garantia de condições iguais de concorrência. Contudo, ainda não há propriamente um mercado comum para que possa fazer jus ao seu nome: Mercado Comum do Sul.

Note-se que na formação de um mercado comum torna-se indispensável proceder as reformas legislativas, quer infraconstitucionais, quer constitucio- nais. Como ainda não foram feitos tais ajustes nos países pertencentes ao Mercosul, não podemos falar das suas implicações no Texto Constitucional.

Ocorre, no entanto, que o Mercosul não tem condições de rivalizar com os grandes mercados, cuja implantação está se dando no mundo: os Estados Unidos integrando-se com o Canadá e o México, a referida Europa, os própri- os países resultantes do Império soviético, o Japão e sua área de influência no leste asiático. Há que se falar ainda na Area de Livre Comércio das Américas - ALCA a ser estabelecida até 2005, representando uma vasta zona de livre comércio desde o Alaska até a Terra do Fogo. Tudo isto transforma o Mercosul numa realidade inexpressiva. Daí surge uma questão fundamental. Possui o Brasil condições para integrar esses agregados maiores? A questão tem que ser concebida do ponto de vista jurídico e político.

Juridicamente a Constituição apresenta certa dificuldade, na medida em que timbra por afirmar o princípio da soberania e abre, de cena forma, uma exceção ao referir de maneira programática o endereçamento da integração brasileira com os países latino-americanos, deixando em aberto o entendi- mento de que a Constituição não abriga igual possibilidade para a integração com os países anglo-saxões, europeus ou asiáticos. Assim interpretada a Cons- tituição seria uma feita simplesmente desastrosa, pois estaria evidentemente ao arrepio de tudo o que está se fazendo no mundo.

Do ponto de vista político, é necessário que o Brasil suplante, de manei- ra urgente, os ressaibos xenófobos que vêm bloqueando a nossa história des- de os anos 20 e que até hoje se encontram na mente de pessoas de boa supo- sição, mas que são opostas ao que o mundo pensa e realiza.

Quando se imagina que países como França e Alemanha, tradicionais rivais em termos de guerras extremamente mortíferas, suplantaram esses sen- timentos de ódio, para chegarem ao ponto de suprimir as suas barreiras alfan- degárias, lamenta-se que, todavia, o Brasil esteja numa mesquinha visão de defesa de políticas de campanários visando proteger setores específicos da economia contra uma competição internacional legítima.

Isso torna o Brasil uma espécie sui generis no mundo, o que lhe acarre- tará, sem dúvida nenhuma, prejuízos enormes. Não interessa ao Brasil per- manecer fora desses movimentos de integração econômica, conseqüentemen- te, não podendo se beneficiar das economias de escala e das economias resul- tantes de uma maior produtividade que esses aglomerados proporcionam.

TÍTULO II DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

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CAPÍTULO I DOS DIREITOS INDIVIDUAIS CLÁSSICOS AOS MODERNOS DIREITOS SOCIAIS

SUMÁRIO: 1. Liberdades públicas. 2. A Declaração Francesa. 3. A Declaração Americana. 4. Novas perspectivas dos direitos individuais. 5. Evolução dos direi- tos individuais. 6. Os direitos individuais sob a égide da Constituição de 1967. 7. Situação atual dos direitos individuais. 8. A Declaração Universal dos Direitos do Homem. 8.1. Conteúdo da Declaração. 8.2. Eficácia da Declaração.

1. LIBERDADES PÚBLICAS

Dá-se o nome de liberdades públicas, de direitos humanos ou individu- ais àquelas prerrogativas que tem o indivíduo em face do Estado. É um dos componentes mínimos do Estado constitucional ou do Estado de Direito. Neste, o exercício dos seus poderes soberanos não vai ao ponto de ignorar que há limites para a sua atividade além dos quais se invade a esfera jurídica do ci- dadão. Há como que uma repartição da tutela que a ordem jurídica oferece: de um lado ela guarnece o Estado com instrumentos necessários à sua ação, e de outro protege uma área de interesses do indivíduo contra qualquer intromis- são do aparato oficial.

Estas liberdades públicas dizem respeito, ao menos num primeiro momento, a uma inibição do poder estatal ou, se preferirmos, a uma prestação mera- mente negativa. É dizer, o Estado se exonera dos seus deveres nesses campos, abstendo-se da prática de certos atos. Dissemos num primeiro momento por- que hoje as coisas já não se passam exatamente assim. Ao Estado não compe- te tão-somente deveres de abstenção, mas também deveres de prestação, mas isto será examinado mais adiante. Por ora cremos ser válida a idéia de que os direitos individuais clássicos, ao menos, são satisfeitos por meio de uma mera omissão do Estado.

Omissão de quê? Pergunta-se. Basicamente de agredirem-se ou ofende- rem-se certos interesses como o interesse à vida, à liberdade e à propriedade. O seu rol, hoje, é mais amplo, mas com um pouco de esforço sempre se pode reduzir qualquer dos direitos individuais à proteção da incolumidade física, à liberdade nas suas múltiplas expressões (locomoção, expressão do pensamen- to, adoção de religião ou organização de grupos) e, finalmente, à própria proteção dos interesses materiais.

O que é importante analisar é a formação histórica dessas liberdades. A sua significação exata não pode ser apreendida senão avaliando-se o lento processo pelo qual se deu a sua aquisição. É que no início dominava a ilimitação do poder estatal. Mesmo nas sociedades que se governaram por um princípio democrático, as liberdades públicas, tal como as entendemos hoje, não exis- tiam, mesmo porque a idéia de indivíduo, enquanto algo diferente da socieda- de que o envolve, foi uma lenta aquisição da humanidade.

O Cristianismo, com a idéia de que cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus, teve uma contribuição grande. Do ponto de vista práti- co, contudo, ainda demorou para que se efetuassem conquistas contra a cida- dela do poder monárquico. Esta começa a receber as primeiras fissuras quan- do os reis da Idade Média pactuavam com seus súditos acordos, mediante os quais estes últimos confirmavam a supremacia monárquica, enquanto o rei, por sua vez, fazia algumas concessões a certos estamentos sociais. A mais

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célebre destas Cartas, denominada em latim Magna Carta Libertatum, foi extraída pela nobreza inglesa do Rei João Sem Terra em 1215, quando este se apresen- tava enfraquecido pelas derrotas militares que sofrera. Não seria o caso, aqui, de historiar todos os avanços e recuos desse processo. Importa, no entanto, consignar que no século XVII foram feitas conquistas substanciais e definitivas. Depois da guerra entre o rei e o Parlamento confirmaram-se os privilégios deste último e, em conseqüência, enfraqueceu-se o poder régio. Reafirmou-se o direito ao Habeas Corpus, que já fora criado em 1215 e que até hoje é a expressão funda- mental do direito à liberdade física. Em 1688 entrou em vigor a Petição de Direitos. Mas, para a compreensão do surgimento das liberdades públicas, é necessário fazer especial referência a duas outras fontes primordiais: o Pensa- mento Iluminista da França do século XVIII e a Independência Americana.

1. J. A. Gonzales Casanova, Teoría del Estado y derecho constitucional. p. 244: "Las constituciones vigentes suelen incluir en su parte dogmática inicial una tabla de derechos fundamentales, junto a los cuales figuran diversas libertades públicas, otros derechos de naturaleza "no fundamental" (convencionales e históricos) y ciertos deberes sociales. Tales derechos fundamentales - reconocidos, proclamados y garantizados por la Constitución - son berencia directa de las primeras Declaraciones de Derechos de finales del siglo XVIII, es decir, las americanas de 12 de junho de 1776 (Declaración de Derechos del Buen Pueblo de Virginia) y de 4 de julho del mismo ano (Declaración de Independencia de los Estados Unidos) y las francesas (Declaraciones de Derechos del Hombre y del Ciudadano de 26 de agosto de 1789 y de 24 de junio de 1793).

Estas Declaraciones tenían en común su carácter declarativo o de proclamación previa a toda regulación legal. En puridad, lo que se declaraba o proclamaba era el carácter natural o fundamen- talmente humano de ciertos derechos. Estos derechos naturaies serían una creencia religiosa o filosófica que vendria a otorgar autoridad y a justificar un conocido y secular derecho a la resistencia contra la tiranía o a la denuncia del pacto Rey-Reino cuando el primero la violara al no respetar los derechos fundamentales de los súbditos. Pese a ser expresión de derechos muy concretos y de reivindicaciones política específicas, las Declaraciones citadas adoptaron una formulación abstracta, general y universalista, propia de la filosofia racionalista de la Ilustración.

Las Declaraciones americanas incluyen, junto a consideraciones políticas relacionadas con su guerra de independencia frente a Inglaterra, afirmaciones como estas: "todos los hombres son por naturaleza igualmente libres e independientes y thenen ciertos derechos innatos"; todos los hombres son creados iguales, son dotados por su Creador de ciertos derechos inalienables, entre los cuales está la vida, la libertad y la búsqueda de la felicidad"; "para garantizar estos derechos se instituyen entre los hombres los gobiernos, cuyos poderes legítimos se derivan del consentimiento de los gobernados". Las Declaraciones francesas hablan de "los derechos naturales, inalienables y sagra- dos del hombre"; "toda persona será considerada inocente hasta que sea declarada culpable"; "el derecho de propiedad es el que pertenece a todo ciudadano de gozar, de disponer, de acuerdo con su criterio, de sus bienes, de sus ganancias, del fruto de su trabajo y de su industria.

La filosofia individualista de las primeras declaraciones no tiene en cuenta la existencia de derechos colectivos, como, por ejempio, el de asociación, eje de la futura lucha democractizadora, tanto en el campo estrictamente político como en el sindical. Sin embargo, se perfila nítidamente un derecho invocado con profusión en las futuras luchas de las

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nacionalidades oprimidas contra los Imperios centralistas o por las colonias frente al imperialismo metropolitano: el derecho a la autodeterminación de los pueblos.

Así la Declaración de Independencia americana se inicia con estas palabras: "Cuando, en el curso de los acontecimientos humanos, se hace necesario para un pueblo disolver los vínculos políticos que lo han ligado a otro y tomar entre las naciones de la tierra el puesto, separado e igual, a que las leyes de la naturaleza y del Dios de esa naturaleza, le dan derecho, un justo respeto al juicio de la Humanidad le obliga a declarar las causas que lo impulsan a la separación.

Las Declaraciones de Derechos, pese a que su pretensión inmediata es impedir la tiranía den- tro de cada Nación (la que, según la francesa de 1789, "la ignorancia, el olvido o el desprecio de los derechos del hombre son las únicas causas de los males públicos y de la corrupción de los Gobiernos") en realidad rompieron las fronteras de las posibles garantias constitucionales de cada Estado para convertir al ciudadano en sujeto de protección internacional y supra estatal, debido justamente a su condición, radical y previa, de Hombre".

2. A DECLARAÇÃO FRANCESA

Quanto à França, é sabido que ela também colaborou com a fixação dos direitos individuais por meio de uma declaração que até hoje, possivelmente, seja a mais célebre: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O que ela tem de particular é a sua universalidade e o seu cunho teórico ou racional. Enquanto as Declarações anglo-saxônicas apresentavam-se eminen- temente vinculadas às circunstâncias históricas que as precederam e, por essa razão, se afiguravam como limitadas ao próprio âmbito sobre o qual vigiam, a Declaração Francesa se considera válida para toda a humanidade. O raciona- lismo próprio do pensamento francês iria emprestar uma base teórica de que as proclamações de direitos inglesas careceriam. Foram muitos os autores que elaboraram a idéia, mas foi certamente Rousseau, na sua obra Contrato so- cial, que lhe deu a formulação definitiva. É muito freqüente fazer-se uma analogia do art. 1.o da Declaração com a frase que abre o Contrato social. Ambas afirmam: "os homens nascem livres". É óbvio que a Declaração não é mera reprodução do Contrato social, que é uma obra de grande complexida- de. De resto, outras influências também se fazem sentir, como, principalmen- te, aquela de Montesquieu. Rousseau parte do postulado fundamental da Es- cola de Direito Natural: a existência de um Estado de natureza no qual o ho- mem é livre e a conclusão de um contrato social pelo qual o homem funda a sociedade.

No primeiro, vigoraria a liberdade plena. No segundo surgiria o poder que limita as liberdades individuais. De qualquer sorte este poder só tem o conteúdo resultante das delegações que cada homem em particular faz. A fonte última do poder é, pois, o próprio indivíduo que continuará no gozo de todas as prerrogativas das quais não abriu mão por ocasião do contrato social.

Rousseau procurou superar o antagonismo entre poder e liberdade. De que maneira? Afirmando que cada homem se entrega inteiramente à socieda- de sem reter nada para si.

Nessa sociedade de iguais o poder vai residir na vontade geral. No contrato social o homem decidiu submeter-se a ela. Ao obedecê-la, pois, não faz outra coisa senão

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obedecer a si mesmo. E o que é a vontade geral? Ela não pode ser a só vontade unânime de todos porque Rousseau sabe que em todo grupo a unanimidade só ocorre em situações excepcionais. E como fica a minoria vencida? Ainda se pode falar em liberdade para ela? Para Rousseau, sim. Fundamenta sua posição lembrando que os homens, ao celebrarem o contrato social, se comprometeram a obedecer à vontade geral. Esta, por sua vez, se expressa pela maioria. Os que dela discordam o fazem por mero engano e devem, pron- tamente, reconduzir a sua vontade à vontade da maioria.

Foram profundas as repercussões desse pensamento na teoria da represen- tação. A vontade geral só se capta por meio da participação de todos. Partici- pação direta que não comporta delegação.

O cerne do pensamento rousseauniano parece repousar na afirmação de que o homem, ao submeter-se integralmente à vontade geral, escapa a toda sujeição a uma vontade particular. Obedecendo à lei para cuja elaboração ele diretamente contribuiu, o homem não obedece senão a si mesmo.

A Declaração tomou alguns pontos fundamentais desse pensamento mas repeliu outros. O que foi retido, principalmente, foi a necessidade de estipular como fim da sociedade o asseguramento da liberdade natural do homem, assim como a idéia de que a lei, expressão da vontade geral, não pode, por natureza, ser um instrumento de opressão. Este culto à lei domi- nou todo o pensamento liberal. Ele inspirou o direito positivo que reserva ao legislador, com a exclusão do Executivo, a elaboração do estatuto das liber- dades públicas. O que foi abandonado foi o ponto de vista segundo o qual o homem, no contrato social, se entrega, inteiramente, à sociedade sem reter nada para si. Esta idéia repele o próprio princípio de uma declaração de

direitos individuais, pois esta nada mais é do que um rol de direitos que o

homem pode opor ao poder.

Os constituintes franceses preferiram inspirar-se em Locke, tal como absorvido pelas Declarações Americanas. Os constituintes se distanciaram de Rousseau na matéria atinente à representação. Seria mesmo difícil para pes- soas eleitas seguirem no mesmo terreno, o que implicaria, para elas, uma re- nuncia a sua própria missão.

A Declaração Francesa inspirou-se em todo o clima intelectual do sécu- lo XVII, encampando pontos, contudo, extraídos de autores os mais diversos. De Montesquieu foi tomada de empréstimo a sua desconfiança fundamental em face do poder e o princípio daí decorrente da separação de funções. Ao lado de Montesquieu influenciaram muito a Declaração os economistas fisiocra- tas, que eram ardorosos admiradores da livre iniciativa em matéria econômi- ca. Está também presente Voltaire, não só na invocação liminar ao Ser Supre- mo, como principalmente no espírito de tolerância religiosa que impregna toda a Declaração.

3. A DECLARAÇÃO AMERICANA

Ainda antes da Declaração Francesa houve as Americanas. Estas ocorreram

logo a partir da Independência das Colônias em 1776. A mais importante delas

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é a do Estado de Virgínia, que proclama em seu art. 1.o:

"Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e tem certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de socie- dade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança".

As influências dessas Declarações são, em parte, as mesmas da própria Declaração Francesa. Autores como Locke, Montesquieu e Rousseau também as influenciaram acentuadamente, assim como o liberalismo inglês, que sem- pre repercutiu profundamente na sua Colônia. Mas houve, também, causas específicas às Colônias Americanas.

Desde o início da colonização, levada a efeito sobretudo por puritanos que fugiam da Inglaterra por razões religiosas, esteve sempre presente uma liberdade de culto na qual muitos autores pretendiam ver a inspiração mais forte de todos os direitos do homem.

Para os colonizadores, também, a idéia de um contrato social não era exclusivamente teórica porque encontravam bases empíricas na sua própria história: alguns pactos foram firmados dentro dos navios que conduziam os primeiros imigrantes, estatuindo as regras que iriam nortear a vida das futuras Colônias.

É curioso que a Constituição Federal de 1787 não incluía, inicialmente, nenhuma Declaração de Direitos; no entanto, dois anos depois, foram votados dez artigos adicionais, por meio de emendas, que continham a consagração dos direitos fundamentais. Outras emendas, mais tarde, vieram a alargar esse rol.

4. NOVAS PERSPECTIVAS DOS DIREITOS INDIVIDUAIS

A forma sob a qual melhor veio a ser conhecida a teoria dos direitos individuais é a proposta pelo liberalismo que prega o caráter negativo destes direitos, é dizer: O Estado os satisfaz por um abster-se, por um não atuar. Por exemplo, o direito à liberdade, à propriedade. Considera-os, também, como asseguradores de uma área de inibição da atuação estatal, o que vale dizer: uma forma de repartição de competências entre o Estado e o indivíduo. O primeiro é competente para tudo, salvo para imiscuir-se naquelas questões cuja decisão cabe soberanamente ao indivíduo. Finalmente, esta área de liber- dade não é senão a reprodução, no campo das leis, de uma série de direitos que preexistiam à própria formação do Estado (jusnaturalismo).

É sabido que um rol de direitos individuais, com caráter meramente nega- tivo, não foi suficiente para garantir a plena liberdade individual.

Em primeiro lugar, logo se constatou que há alguns direitos cuja satisfa- ção integral pode-se dar desde que o Estado não a turbe. Por exemplo, a liber- dade física. Todavia, outros direitos, como o da igualdade, não se satisfazem com a sua mera proclamação a título formal, que se dá quando as Constitui- ções, bombasticamente, alardeiam "todos são iguais perante a lei", o que leva a críticas irônicas: "Tanto o pobre como o rico são iguais para dormirem de- baixo da ponte". É compreensível, pois, que se tenha procurado, já em uma época mais moderna, conferir um caráter substancial a certas liberdades, pro- porcionando-lhes não somente a garantia da Constituição mas também os meios para exercê-las.

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Quem contudo desfechou um golpe fatal à concepção liberal dos direi- tos individuais clássicos, tão profundo que acabou por desfigurá-la por com- pleto, foi o marxismo. Para este, é a própria idéia da essência do que seja o indivíduo que é alterada. Para ele a essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na verdade, é um conjunto de relações sociais. Para ele ainda, o homem não tem senão uma essência social do que resulta que não pode bastar-se a si próprio e só consiga transformar-se em homem total através de uma nova sociedade. É fácil entender-se que a partir daí o que resulta protegido é a sociedade e não o homem. Torna-se inteligível também que a criação das condições materiais, possibilitadoras do livre "desabrochar" dos direitos individuais, venha a justificar a apropriação coletiva dos meios de produção e a gestão coletiva da economia.

Nada obstante partir de uma ideologia totalmente diversa, a crítica mar- xista teve, sem dúvida, o condão de repercutir nas formulações clássicas, so- bretudo em dois pontos: na insuficiência do igualitarismo meramente formal e no caráter muitas vezes platônico de certos direitos, quando não acompanhados de condições materiais necessárias à sua plena efetivação.

O mérito, contudo, do liberalismo clássico foi ter tido a suficiente flexibi- lidade para absorver estas críticas, criando uma forma de trazer reparo às insu- ficiências sociais de maneira tal a repelir as postulações extremadas do marxis- mo. E este caminho consistiu, sobretudo, na formulação de direitos econômi- cos, sociais, políticos e culturais, que vieram enriquecer a enunciação clássica.

Assim, não há hoje Constituição que não dispense enorme importância aos de- veres de prestação por parte do Estado, que nada mais são do que a contrapar- tida de direitos do indivíduo que não podem ser satisfeitos senão mediante uma prestação ou, se se preferir, o fornecimento de um bem por parte do Estado.

A História acabou por dar razão aos países que se filiavam ao modelo econômico-social marcado pela condução da economia segundo leis de merca- do e pelo respeito pela propriedade privada e pela iniciativa empresarial. O soçobrar do império soviético botou fim à experiência dos países que mais ra- dicalmente se aprofundaram no caminho das economias socializadas. Hoje, só remanescem casos diminutos, isolados, e, mesmo assim, com fortes concessões ao sistema capitalista de produção. Isso não significa que os países de índole liberal tenham descurado os aspectos sociais que continuam vivos e presentes. O atendimento àqueles que, por qualquer forma, não são capazes de acompa- nhar o processo individual da conquista dos recursos necessários para a sua subsistência é feito por mecanismos sociais mais ou menos desenvolvidos, so- bretudo em função até dos próprios recursos materiais de que o País dispõe. O que é certo é que a resolução primeira dos problemas materiais é depositada nas mãos do indivíduo de cuja iniciativa e criatividade não se pode prescindir. Aqui reside uma das chaves do sistema individualista, que é dar oportunidade ao esforço e à iniciativa do indivíduo, que nunca são substituíveis por pesadas máquinas burocráticas guiadas pelo espírito de conservação, repetição e até mesmo de ineficiência. Ao Estado e aos direitos sociais reserva-se o papel de atender aqueles que não são capazes de acompanhar essa marcha no rumo da auto-suficiência e por razões diversas, como a idade, a doença, e muitos outros infortúnios, se vêem na necessidade de valer-se do socorro da sociedade. Portanto, o papel dos direitos sociais não é substitutivo da iniciativa do próprio indivíduo no desenvolvimento do seu ser, mas é complementar e voltado ao atendimento daquelas situações de desvalia ou de carência em que ele se encontra, e não pode prescindir do atendimento pelo Estado. Mas são sistemas que não sacri- ficam os direitos individuais

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clássicos. Pelo contrário, erigem-se sobre eles e fazem desses direitos um instrumento da maior eficiência da sociedade. A humanidade parece estar mais próxima de resolver os problemas da pobreza pelo caminho do respeito à liberdade do que com o sacrifício desta, levada a efeito pelos países marxistas cuja experiência, como vimos, malogrou.

5. EVOLUÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS

As liberdades públicas têm hoje uma configuração muito mais comple- xa do que nos fins do século XVIII. Já se viu como o liberalismo procurou assegurar uma liberdade contra o Estado, garantindo a vida e o direito de locomoção, de expressão do pensamento e de propriedade. Ao lado desses direitos procurou tornar efetiva a participação do indivíduo na formação da vontade do Estado.

Era a consagração do governo democrático. Esse quadro inicial, contu- do, sofreu forte evolução cujas causas dizem respeito à necessidade de en- frentar novas ameaças e novos desafios postos pelos séculos XIX e XX.

Os direitos clássicos não desapareceram. Perderam, tão-somente, o seu caráter absoluto para ganhar uma dimensão mais relativa surgida da imperio- sidade de compatibilizar o direito com outros princípios constitucionais. Um exemplo tornará claro o exposto. No século XVIII e início do XIX a proprie- dade era assegurada de forma absoluta. Ao proprietário era deferida a possibi- lidade de escolher a destinação que quisesse dar ao bem. Esse direito, portan- to, não encontrava limites a não ser quando se defrontasse com outro de igual natureza.

Desde aquele tempo até esta parte, todavia, desenvolveu-se a consciên- cia da sociedade de que o uso dado ao bem não afeta, tão-somente, o proprietário, mas também a sociedade. Esta tem interesse em que ela seja utilizada de ma- neira condizente com os fins sociais: se rural a propriedade, normalmente, se exige que ela seja plenamente utilizada, aumentando, destarte, a produção agrícola e pastoril, assim como as oportunidades de emprego.

As Constituições modernas falam em função social da propriedade com isso querendo significar que o direito só existe na medida em que esteja a desempenhar uma função. Houve, portanto, o que se pode chamar uma relativi- zação de direitos que os condiciona a um uso normal e não abusivo. Mas maiores alterações ocorreram.

No início, já vimos, os direitos individuais existiam para proteger o indivíduo contra o Estado. Hoje, já se aceita a proteção do indivíduo contra outros indi- víduos ou grupos de indivíduos.

Não se tem por lícito, por exemplo, que o empregador, valendo-se dos poderes que tal situação lhe confere, exija do empregado a adoção desta ou daquela religião. Há, pois, um sem-número de situações em que as ameaças às liberdades públicas vêm de outros particulares. O Estado não pode perma- necer indiferente a essas opressões e age em função reprimindo-as. Essa pró- pria regra, todavia, tem de ser entendida com certos abrandamentos. Um proprietá- rio de jornal, por exemplo, tem direito de exigir do jornalista que se comporte de forma leal para com a ideologia da empresa, sem que se possa ver aí uma violação do direito de livre expressão do pensamento.

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Além disso, a própria natureza dos direitos protegidos modificou-se. De um lado porque se passou a reconhecer que muitas vezes é necessário prote- ger o grupo e não o indivíduo isoladamente. As Constituições hoje conferem proteção éxpressa à família. Muitos outros grupos pululam na sociedade moderna: sindicatos, igrejas, associações profissionais, culturais e recreativas etc.

De outro lado, e essa talvez seja a alteração mais profunda, surgiram os direitos cujo conteúdo consiste na possibilidade de o indivíduo receber algu- ma prestação do Estado. Este não permanece neutro diante das disparidades sociais. O princípio da igualdade, muito provavelmente o mais importante dos direitos clássicos, tornou-se uma irrisão. Como alguém observou, consistia em dizer que a lei assegurava igual direito de pobres e ricos dormirem debai- xo da ponte. Esta igualdade perante a lei passou a chamar-se formal para opor-se a uma outra que se denominou material. Na elaboração desta última teve importância decisiva o pensamento marxista ao demonstrar que o exercí- cio dos direitos depende de meios. Por exemplo, a liberdade de escolher o domicílio está na dependência de ter-se o dinheiro para pagar o aluguel.

O Estado passou, graças a uma intervenção crescente na ordem econômica e social, a perseguir uma mais justa distribuição dos bens de tal sorte que a todos fossem facilitados recursos mínimos para a fruição dos direitos funda- mentais clássicos. Isto, contudo, não foi possível senão por meio da imposi- ção de regulamentações e de novas obrigações ao cidadão, o que, de certa forma, repudia a liberdade que no início se quis assegurar. Infelizmente, numa certa medida, esses direitos de liberdade e igualdade são antagônicos. A liber- dade implica a existência do risco. Quando alguém se lança a um empreendi- mento ousado sabe que o malogro é uma das suas possibilidades. A segurança que o Estado Moderno procura propiciar repudia o espírito de aventura, daí criando um novo risco que é o de transformar todo cidadão num pacato buro- crata tutelado pelas garantias oficiais. Ocorre que a inventiva e a criatividade individual são indispensáveis para o desenvolvimento e o progresso, daí a necessidade hoje de não se exagerar no elenco de medidas previdenciárias ou incorrer na demasia de benefícios sociais.

Não se deve concluir, todavia, que haja sempre um irremediável e incon- tornável conflito entre as liberdades clássicas e os direitos sociais modernos. Há muitas liberdades que nenhum prejuízo sofrem com o surgimento das no- vas modalidades protetoras do homem, demonstrando que numa grande área há plena complementaridade entre as duas sortes de garantia. Essa a razão pela qual direitos, como à vida, à locomoção, à expressão do pensamento, de reunião, de associação, de inviolabilidade do domicílio, são plenamente atu- ais e constituem um mínimo hábil a assegurar uma esfera de livre escolha dos particulares.

6.OS DIREITOS INDIVIDUAIS SOB A ÉGIDE DA CONSTITUIÇÃO DE 1967

A anterior Constituição comportava, certamente, acréscimos no que diz respeito aos direitos fundamentais nas suas diversas vertentes. Na individual propriamente dita, na política e na social. No que diz respeito à primeira, é bom lembrar que o então consagrado datava do Texto de 1946 e desde então até aquela parte foram diversas as conquistas feitas em outros Estados, sobretudo para enfrentar formas de ilegalidade, assumidas pelo Estado nos últimos tem- pos por força inclusive do próprio avanço tecnológico. Neste particular, contu- do, é bom notar que quando menos se espera, nada obstante mesmo o ânimo generoso de quem redige estes direitos, a verdade é que quando menos se pensa

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está-se a resvalar para o lado contrário, é dizer: aquele em que o Estado fica desguarnecido de apetrechos mínimos para a sua atuação. Portanto, é preciso muita cautela, muita atenção para encontrar-se aquele justo equilíbrio entre os interesses do indivíduo e os não menos legítimos interesses do Estado.

No que diz respeito aos direitos políticos é forçoso reconhecer-se que as formas modernas de participação política estão a propiciar modalidades de direitos ainda não plenamente consagrados no nosso Texto.

Já no tocante às aquisições sociais, também aqui o tema é extremamente melindroso. Não há dúvida que ninguém possa ser, em tese, contra a que se confira a todos direito à habitação, à alimentação, à educação, à saúde. Mas é necessário compaginar estes direitos com as reais possibilidades do Estado.

Sobretudo com a manutenção do indivíduo, dos móveis psicológicos e materiais que o levam a pugnar pela sua existência e ao assim fazer propiciar à coletividade o fruto do seu trabalho e da sua criatividade. O de que todos parecem hoje se dar conta é que o excesso de prestações sociais, verificado em alguns Estados, cria um profundo desestímulo ao trabalho e ao progresso individual, além de uma profunda dependência para com o Estado.

7. SITUAÇÃO ATUAL DOS DIREITOS INDIVIDUAIS

Até o momento analisamos a problemática dos direitos individuais ou das liberdades públicas a partir dos diversos tratamentos jurídicos dados ao tema pelo direito constitucional de cada país. Convém notar, no entanto, que o assunto pela sua transcendência já extrapolou os limites de cada Estado para se tornar uma questão de interesse internacional.

A via escolhida tem sido a da proclamação de direitos de âmbito transna- cional. Essas Declarações respondem a uma tríplice preocupação. Em primei- ro lugar, à necessidade de conferir uma proteção ao estrangeiro em face das autoridades do Estado sob cujo território ele se encontre. Em segundo lugar, à preocupação de assegurar uma defesa de cada nacional contra eventual opressão de seu próprio Estado. Em terceiro lugar, ao desejo de se levar a efeito uma consagração internacional de uma concepção universalista dos direitos do homem. Algumas dificuldades existem nessas tentativas. Inicialmente não é fácil pôr-se de acordo sobre quais os direitos que devem ser protegidos. Máxime quando se sabe que o mundo está dividido em países com realidades socioeconômicas e ideológicas muito diferentes. Ao depois, e este provavelmente é o empeço maior, não é fácil pôr-se em funcionamento um sistema internacional de ga- rantias, dado que o indivíduo, que normalmente é a vítima da lesão do direito por parte do Estado, não é reconhecido como pessoa juridicamente relevante perante a ordem internacional. O mais importante dos documentos dessa na- tureza é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que foi votado pela Assembléia Geral da ONU, em dezembro de 1948. O texto foi aprovado por quarenta votos e oito abstenções.

8. A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM

8.1. Conteúdo da Declaração

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A Declaração Universal preocupa-se, fundamentalmente, com quatro ordens de direitos individuais. Logo de início, são proclamados os direitos pessoais do indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Num segundo grupo encontram-se expostos os direitos do indivíduo em face das coletivida- des: direito à nacionalidade, direito de asilo para todo aquele perseguido (sal- vo os casos de crime de direito comum), direito de livre circulação e de residência, tanto no interior como no exterior e, finalmente, direito de propriedade. Num outro grupo são tratadas as liberdades públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de consciência e religião, de opinião e de expressão, de reu- nião e de associação, princípio na direção dos negócios públicos. Num quarto grupo figuram os direitos econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à educação.

É interessante observar que a Declaração, por ter de agradar tanto às concepções ideológicas dos países do Leste como do Oeste, finda por incorrer numa certa falta de rigor na demarcação dos direitos. É o que acontece com a propriedade que é assegurada a toda pessoa, tanto só quanto em coletivida- de. Quanto à liberdade de ensino a Declaração estipula que os pais têm, priorita- riamente, o direito de escolher o gênero de educação a ser dado a seus filhos.

8.2. Eficácia da Declaração

Do ponto de vista estritamente jurídico, a Declaração não é senão uma Resolução, cujo conteúdo não pode tornar-se obrigatório para os Estados, a não ser quando ele é retomado sob a forma de uma Convenção ou pacto entre eles firmado. É que a Assembléia Geral da ONU não tem competência para editar normas cogentes aos seus membros. É bom que se diga, de resto, que a Assembléia nunca pretendeu ir além de uma solene declaração de princípios. Sua significação é, pois, eminentemente moral. A sua jurisdicionalização fica na dependência de pactos que venham a lhe conferir eficácia. Ocorre, entre- tanto, que mesmo os dois pactos já firmados, um sobre os direitos econômicos e sociais e outro sobre os direitos individuais tradicionais clássicos, não desem- bocaram em um sistema eficaz de proteção da vítima. Ficou, é certo, criada uma Comissão de Proteção aos Direitos do Homem, cujos membros são elei- tos pelos Estados signatários do pacto, comissão essa, no entanto, de poderes muito reduzidos. O máximo a que ela pode chegar é à constatação da ocorrên- cia de lesão de direitos individuais.

2. Hans Kelsen, Teoría general del Estado, 15. ed., México, Ed. Nacional, p. 204: "La regulación de los derechos de libertad no tiene relevancia jurídica más que en el caso de que tenga el carácter de ley constitucional formal, es decir, cuando la modificación de las normas reguladoras de dichos derechos no es posible más que bajo ciertas condiciones gravosas (por ejemplo, mediante una resolución parlamentaria adoptada por un quorun especial). Entonces, la facultad legal de invadir la esfera pro- tegida de libertad no puede realizarse sino como revisión constitucional, por tanto, con mayores dificultades que una ley ordinaria; y así, la esfera de libertad goza, de hecho, de una cierta protección jurídica preferente, sin llegar por esos a convertirse en Derecho. Pero la garantía constitucional de los derechos de libertad no puede realizarse según la forma usual, declarando que la propiedad es inviolable y que la expropiación sólo será posible en virtud de una ley, o que la libre emisión del pensamiento sólo puede ser limitada por ley; pues en ese caso la garantía constitucional desaparece desde el momento que la constitución delega en la legislación ordinaria las invasiones en la esfera de la libertad".

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A forma que confere eficácia aos direitos individuais está ainda na depen- dência da sua definição ao nível da legislação de cada país. É destes, no fun- do, que dependem tanto a extensão dos direitos quanto a definição das garan- tias que os instrumentam, estas de ordem eminentemente jurisdicional, sem prejuízo de outras formas de muito menos importância que possam existir.

As primeiras consistem em vias de acesso diferenciado e privilegiado ao Poder Judiciário. No comum as ações tramitam sob o regime de um procedi- mento ordinário cuja solução fica relegada para a fase final. Dado o caráter da ação do Estado que é, ainda, sem dúvida o maior infrator dos direitos individuais, cumpria que se desenvolvessem meios rápidos e célebres de prestação jurisdicional, com a força suficiente para fazer abortar a violação iminente antes, contudo, que ela se tenha consumado num dano irreparável. É tão importante a existência dessas garantias que, em alguns casos, a pro- pria extensão do direito protegido é dada pela maior ou menor força do ins- trumento que o tutela. É o que acontece, sobretudo, com o Habeas Corpus, que protege a liberdade física de locomoção do indivíduo. Foi a implanta- ção e a consolidação desse instituto, de ordem eminentemente processual, que permitiu ao juiz expedir decisão liminar de soltura do preso, que veio a tornar certo o direito de ir e vir de cada um.

De grande utilização, também, é o Mandado de Segurança. Este nome advém do nosso sistema jurídico, mas outros ordenamentos, com denomina- ção diversa, agasalham medidas análogas. Trata-se de proteger o indivíduo contra os atos ilegais dos poderes públicos, praticados com violência a outros direitos que não o de liberdade de locomoção.

CAPÍTULO ii ALGUNS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS E COLETIVOS

SUMÁRIO: 1. Destinatário dos direitos individuais. 2. Princípio da isonomia. 2.1. Igualdade substancial. 2.2. Igualdade formal. 2.3. Conteúdo jurídico da isonomia. 2.4. A nova redação do princípio da isonomia. 2.5. O princípio da igual- dade entre os particulares. 3. Princípio da legalidade. 4. Liberdade de pensamen- to. 5. Liberdade religiosa. 5.1. Liberdade de consciência e de crença. 5.2. Liber- dade de culto. 5.3. Liberdade de organização religiosa. 6. Direito à intimidade, à vida privada e à honra. 6.1. Dano moral. 7. Inviolabilidade do domicilio. 8. Inviolabilidade da correspondência. 9. Liberdade de profissão. 10. Direito de lo- comoção. 11. Direito de reunião e associação. 11.1. Liberdade de associação. 12. Direito à propriedade. 12.1. Função social. 12.2. Desapropriação. 13. Acesso amplo ao Judiciário. 14. Direito adquirido. Ato jurídico perfeito. Coisa julgada. 14.1. Limites da retroação da lei na Constituição. 14.2. Direito adquirido. 14.2.1. Veri- ficação da ocorrência de direito adquirido. 14.2.2. Síntese conclusiva. 14.3. Ato jurídico perfeito. 14.4. Coisa julgada. 15. Direito ao júri. 16. Direito à não-extradi- ção. 16.1. Brasileiro. 16.2. Estrangeiro. 17. Direito ao devido processo legal. 18. Direito ao contraditório e à ampla defesa. 18.1. A prova obtida por meio ilícito. 19. Prisão em flagrante. 20. Garantias constitucionais. 20.1. Habeas corpus. 20.1.1. Histórico. 20.1.2. Habeas corpus no nosso país. 20.1.3. Habeas corpus preventi- vo e suspensivo. 20.1.4. Teoria brasileira do habeas corpus. 20.1.5. Legitimidade ativa. 20.1.6. Sujeição passiva. 20.1.7. Objeto. 20.2. Mandado de segurança. 20.2.1. Introdução. 20.2.2. Surgimento da medida. 20.2.3. Direito líquido e certo. 20.2.4. Medida liminar. 20.2.5. Mandado de segurança coletivo. 20.3. Mandado de injunção. 20.3.1. Legitimidade ativa. 20.3.2. Objeto do mandado de injunção. 20.3.3. Competência para julgar o mandado de injunção. 20.3.4. Distinção entre mandado de injunção e a

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inconstitucionalidade por omissão. 20.4. Ação popular. 20.4.1. Conceito. 20.4.2. Requisitos. 20.4.3. Lesividade, ilegalidade e imorali- dade. 20.4.4. Isenção de ônus. 20.5. Habeas data. 20.6. Ação civil pública. 20.6.1. Interesses coletivos e difusos. 20.6.2. Aspectos fundamentais da ação civil públi- ca. 20.6.2.1. Legitimação ministerial.

1. DESTINATÁRIO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS

A Constituição procura determinar os destinatários dos direitos indivi- duais esclarecendo que a sua proteção se estende aos brasileiros e aos estran- geiros residentes no País.

A atual redação é fruto de uma evolução histórica que no seu início era mais restritiva com relação à proteção conferida aos estrangeiros.

A despeito da fórmula ampla que adotou, ainda assim cremos que ela não pode ser entendida na sua literalidade, sob pena de ficarmos em muitas hipóteses aquém do que pretendeu o constituinte. Senão vejamos: se por aca- so um estrangeiro em trânsito pelo País, portanto não-residente, fosse tolhido em sua liberdade de locomoção, chegar-se-ia ao ponto de denegar-se-lhe o habeas corpus, sob o fundamento de que carece da residência no Brasil para dele se beneficiar? Por acaso ainda, recusar-se-ia a devida proteção à propri- edade a um estrangeiro que porventura nem residisse no País? Seria esta uma razão para poder confiscar-lhe a propriedade sem indenização? A nós sempre nos pareceu que o verdadeiro sentido da expressão "brasileiros e estrangeiros residentes no País" é deixar certo que esta proteção dada aos direitos indivi- duais é inerente à ordem jurídica brasileira.

Em outras palavras, é um rol de direitos que consagra a limitação da atuação estatal em face de todos aqueles que entrem em contato com esta mesma ordem jurídica. Já se foi o tempo em que o direito para os nacionais era um e para os estrangeiros outro, mesmo em matéria civil.

Portanto, a proteção que é dada à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade é extensiva a todos aqueles que estejam sujeitos à ordem jurídica brasileira. É impensável que uma pessoa qualquer possa ser ferida em um destes bens jurídicos tutelados sem que as leis brasileiras lhe dêem a devida proteção. Aliás, curiosamente, a cláusula sob comento vem embutida no pró- prio artigo que assegura a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

É de pequeno alcance, a nosso ver, a discussão em torno do ponto de saber se estes direitos são deferidos às pessoas físicas, ou, também, às jurídi- cas. Mais uma vez, aqui, quer-nos parecer que o Texto disse menos do que pretendia. A tomá-lo na sua literalidade seria forçoso convir que ele só bene- ficiaria as pessoas físicas. Mas, novamente, estaríamos diante de uma inter- pretação absurda. Em muitas hipóteses a proteção última ao indivíduo só se dá por meio da proteção que se confere às próprias pessoas jurídicas. O direi- to de propriedade é um exemplo disto. Se expropriável uma pessoa jurídica, ela há de o ser mediante as mesmas garantias por que o são as pessoas físicas.

2. PRINCÍPIO DA ISONOMIA

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Desde priscas eras tem o homem se atormentado com o problema das desigualdades inerentes ao seu ser e à estrutura social em que se insere. Daí ter surgido a noção de igualdade que os doutrinadores comumente denomi- nam igualdade substancial. Entende-se por esta a equiparação de todos os homens no que diz respeito ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição a deveres.

2.1. Igualdade Substancial

É o princípio da igualdade um dos de mais difícil tratamento jurídico. Isto em razão do entrelaçamento existente no seu bojo de ingredientes de di- reito e elementos metajurídicos.

A igualdade substancial postula o tratamento uniforme de todos os ho- mens. Não se trata, como se vê, de um tratamento igual perante o direito, mas de uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida.

Essa igualdade, contudo, a despeito da carga humanitária e idealista que traz consigo, até hoje nunca se realizou em qualquer sociedade humana. São muitos os fatores que obstaculizam a sua implementação: a natureza física do homem, ora débil, ora forte; a diversidade da estrutura psicológica humana, ora voltada para a dominação, ora para a submissão, sem falar nas próprias estruturas políticas e sociais, que na maior parte das vezes tendem a consoli- dar e até mesmo a exacerbar essas distinções, em vez de atenuá-las.

No campo político-ideológico, a manifestação mais acendrada deste tipo de igualdade foi traduzida no ideário comunista, que procura ainda tradução na realidade empírica, na vida das chamadas democracias populares. Ainda aqui, entretanto, a procura da igualdade material não foi de molde a eliminar as efe- tivas desigualdades existentes na vida das sociedades sujeitas a tal regime.

2.2. Igualdade Formal

Na área das democracias ocidentais, o princípio da igualdade material não é de todo desconhecido. Ele entra nas Constituições sob a forma de nor- mas programáticas, tendentes a planificar desequiparações muito acentuadas na fruição dos bens, quer materiais, quer imateriais. Assim é que, com fre- qüência, encontramos hoje regras jurídicas voltadas a desfazer o desnivelamento radical ocorrido em alguns momentos históricos entre o capital e o trabalho. E muitos outros exemplos poderiam ser citados, como o igual direito ao aces- so à instrução, à saúde, à alimentação etc.

Entretanto, o princípio da igualdade, hoje encontrável em praticamente todas as Constituições e que atormenta a mente dos juristas, é o da igualdade chamada formal.

No Texto Constitucional anterior esse princípio ganhava a seguinte ex- pressão: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça" (art. 153, § 1.o).

A despeito da clareza do texto citado, a exata inteligência da sua significação remanesce difícil.

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Historicamente, sabemos que a proclamação fática deste princípio da igualdade de todos perante a lei data da época da Revolução Francesa.

Mas naquela ocasião conhecia-se à perfeição o endereço do preceito. Tratava-se de abolir a sociedade estamental então vigorante. O que se preten- dia era fazer ruir um castelo de privilégios erigido a partir da inserção do indivíduo numa dada classe social. Era todo um sistema de valores sendo contestado quer quanto à sua legitimidade, quer quanto à sua legalidade.

Assim, quando se dizia que todos são iguais perante a lei, não havia dúvi- das de que a intenção era impedir que alguém se beneficiasse, por exemplo, de um tratamento mais benévolo, sob o fundamento de ser ele um nobre, como seria o caso de um integrante desta casta social que, tendo matado alguém, pretendesse subtrair-se à prisão, invocando para tanto sua posição nobiliárquica.

Ora, a derrubada da sociedade estamental foi, de certa forma, absoluta, a tal ponto que seria hoje inconcebível, diante dos princípios democráticos vigentes, que alguém pretendesse, com seriedade, ser discriminado em fun- ção da sua ascendência. Contudo, a necessidade da reafirmação constante do princípio da igualdade manteve-se intacta e, quiçá, mais aguda ainda. E que ante os princípios democráticos atualmente acolhidos muitos outros critérios deixaram de ser viáveis como elementos discriminadores entre os homens.

De qualquer maneira, sem que se pretenda neste tópico elucidar quais são as discriminações vedadas pelo atual Sistema Constitucional, faz-se ne- cessário esclarecer o que se entende por igualdade formal. Esta consiste no direito de todo cidadão não ser desigualado pela lei senão em consonância com os critérios albergados ou ao menos não vedados pelo ordenamento constitucional.

2.3. Conteúdo Jurídico da Isonomia

A nossa atual Constituição no art. 5.o, caput, dentre outros, assegura o direito à igualdade. O que vem a ser a igualdade?

Ela traduz uma relação entre dois entes quando estes apresentam as mesmas características, a mesma estrutura, a mesma forma, quando, enfim, não apre- sentem desigualdades que se nos afigurem relevantes.

Em Direito, o princípio da igualdade torna-se de mais difícil conceituação porque o que ele assegura não é a mesma quantidade de direito para todos os cidadãos. A igualdade nesse sentido é uma utopia. Nela todos disporiam de igual quantidade de bens, seriam remunerados igualmente e todas as profis- sões teriam a mesma dignidade. Nesse mundo, todos seriam efetivamente iguais.

Esta idéia, de uma igualdade absoluta, nunca pode traduzir-se numa ma- neira real de alguma sociedade se organizar. Há sempre distinções pessoais.

Alguns são mais talentosos; outros mais esforçados; outros, ainda, possuido- res de um dom especial. A própria habilidade das pessoas não é igual, o que faz com que algumas se insinuem mais e ascendam à posição de mando. En- fim, o quadro natural predispõe o homem para ser desigual.

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Isto, entretanto, não impede que o Direito à igualdade constitua uma das idéias principais do constitucionalismo moderno. Com a Revolução Francesa, foram derrubadas as barreiras que separavam os homens nitidamente em clas- ses sociais diferentes, algumas detentoras de muitos privilégios. Nesse momen- to a igualdade tinha um endereço certo: voltava-se à extinção das discrimina- ções de nascimento, isto é, alguém era nobre porque nasceu de pais nobres, sem que ele necessariamente tivesse algum mérito para conquistar esse título.

A igualdade então proclamada era uma situação de identidade de todos perante as possibilidades e os benefícios que a vida oferece. Era uma igualdade, digamos assim, de ponto de partida, segundo a qual todos teriam, pelo menos em teoria, iguais condições de se diferenciarem, sempre, é óbvio, respeitadas as leis. Mas a fortuna, a educação, a cultura ficavam a mercê de quem tivesse talento suficiente para adquiri-los. Não se via aí qualquer lesão à igualdade.

Com o tempo, o princípio da igualdade, sem perder essa concepção pri- mitiva, foi ampliando-se para impedir que os homens fossem diferenciados pelas leis, isto é, que estas viessem a estabelecer distinções entre as pessoas independentemente do mérito.

Constatou-se que a lei sempre discrimina. Por exemplo, o portador de um título acadêmico profissionalizante tem direito a desfrutar do privilégio (uma vez que os não portadores desse título não o podem fazer) de exercer uma determinada profissão, como a advocacia, medicina e outras.

O problema, então, passou em constituir os limites da diferenciação possível de ser feita.

Algumas discriminações, como aquela agora referida, sempre se legiti- maram muito facilmente perante a sociedade. Parecia razoável que se reser- vasse essa profissão somente àqueles que tivessem seguido um aprendizado considerado suficiente para ministrá-la, com conhecimento e segurança para os seus clientes. Outras, todavia, tentam se insinuar na ordem jurídica através de leis que não vêm acompanhadas desta razoabilidade. Imaginemos que uma lei tentasse cobrar tributos de uma pessoa só por ela ser magra ou alta ou gorda. Uma lei com essas características seria repudiada pelo meio social que veria nela uma injustiça notória porque diferenciou em função de caracteres que nada têm a ver com as razões que podem racionalmente tornar compreen- sível a cobrança de um tributo.

É este o sentido que tem a isonomia no mundo moderno. É vedar que a lei enlace uma conseqüência a um fato que não justifica tal ligação. É o caso do racismo em que a ordem jurídica passa a perseguir determinada raça minoritária, unicamente por preconceito das classes majoritárias. Na mesma linha das raças, encontram-se o sexo, as crenças religiosas, ideológicas ou políticas, enfim, uma série de fatores que os próprios textos constitucionais se incumbem de tornar proibidos de diferenciação. É dizer, não pode haver uma lei que discrimine em função desses critérios.

A nossa Constituição diz no inciso I do art. 5.o que "homem e mulher são iguais em direitos e obrigações nos termos dessa Constituição". Só esta, portanto, pode estabelecer desequiparações entre homem e mulher. As de- mais normas não o podem fazer sob pena de inconstitucionalidade por lesão ao princípio da isonomia. Portanto, o destinatário desse comando constitu- cional é o próprio legislador que deverá abster-se de editar leis com desequiparações fundadas nesses critérios.

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Mas o princípio da igualdade vai mais longe. Ele não se limita a proibir desequiparações em função de uns poucos critérios. O vício da inconstitucionalidade pode incidir em qualquer norma desde que não dê um tratamento razoável, eqüi- tativo, aos sujeitos envolvidos. Não se pode, por exemplo, querer dar preferên- cia a um cidadão em detrimento de outro para preenchimento de um cargo pú- blico. É necessário fazer um concurso aberto a todos os interessados e escolher aqueles que tiverem melhor colocação. E assim poderíamos levar os exemplos ao infinito. Toda vez que uma lei perde o critério da proporcionalidade ela en- vereda pela falta de isonomia. Por exemplo, não se pode criar uma multa equi- valente a uma pequena fortuna só por causa de uma infração de trânsito.

É por isso que o princípio dá isonomia é dos mais importantes da Cons- tituição: ele incide no exercício de todos os demais direitos. É como se dissés- semos: é garantido o direito de propriedade, de liberdade, de comunicação, respeitado o princípio da igualdade. Toda vez que o critério adotado perde legitimação, isto é, não se afigura mais aos olhos da sociedade com razão para diferenciar as pessoas, esse elemento tem de ser expurgado do sistema.

2.4. A Nova Redação do Princípio da Isonomia

Desde logo, a leitura da atual redação do artigo sob comentário, em con- fronto com a redação do direito imediatamente anterior, aponta para o sintetismo da sua redação.

O artigo ganhou em brevidade. E com isto ganhou também em qualida- de técnica.

De fato, a referência que se fazia no direito anterior aos critérios expressa- mente vedados tinha uma função praticamente nula. Visto que nem a doutrina nem a jurisprudência jamais consideraram aqueles discrimens como taxativos. Era evidente que discriminações com outros fundamentos também poderiam ser inconstitucionais.

De outra parte, mesmo aqueles elementos diferenciadores, em determinadas circunstâncias, eram acertados e tolerados.

Dessa forma, a atual redação, ao não especificar quais os critérios veda- dos, deixa certo que o caráter inconstitucional da discriminação não repousa tão-somente no critério escolhido, mas na falta de correlação lógica entre aquele critério e uma finalidade ou valor encampado quer expressa ou implicitamente no ordenamento jurídico, quer ainda na consciência coletiva.

A expressão atual "sem distinção de qualquer natureza" é meramente re- forçativa da parte inicial do artigo. Não é que a lei não possa comportar distin- ções. O papel da lei na verdade não é outro senão o de implantar diferenciações. O que não se quer é que, uma vez fixado o critério de discriminação (p. ex.: ser portador de título universitário para exercer determinada profissão), um outro elemento venha interferir na abrangência desta mesma discriminação. Aí por exemplo se diria: as pessoas com mais de quarenta anos de idade ficam dispen- sadas do referido título. Nisto, portanto, reside a essência do princípio igualizador. E o impedir que critérios o mais das vezes subalternos, portadores de precon- ceitos ou mesmo voltados à estatuição de benefícios e privilégios, possam vir a interferir em uma discriminação justa e razoável feita pela lei.

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Neste particular, o princípio da igualdade mantém conexão com a genera- lidade que outrora, com mais rigor do que hoje, se exigia da lei.

Esta haveria de ser igual para todos. E em função desta igualdade é que resultava a garantia fornecida pela lei. Tratando de igual forma todos que estivessem em idêntica situação, a lei prevenia o cidadão contra o arbítrio e a discriminação infundada.

O atual artigo isonômico teve trasladada a sua topografia. Deixou de ser um direito individual tratado tecnicamente como os demais. Passou a encabeçar a lista destes direitos, que foram transformados em parágrafos do artigo igualizador.

Esta transformação é prenhe de significação. Com efeito, reconheceu-se à igualdade o papel que ela cumpre na ordem jurídica.

Na verdade, a sua função é de um verdadeiro princípio a informar e a condicionar todo o restante do direito. E como se tivesse dito: assegura-se o direito de liberdade de expressão do pensamento, respeitada a igualdade de todos perante este direito.

Portanto, a igualdade não assegura nenhuma situação jurídica específi- ca, mas na verdade garante o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feita da ordem jurídica.

A igualdade é, portanto, o mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ela não seja impositiva.

2.5. O Princípio da Igualdade entre os Particulares

A dúvida que se põe é a de saber se o princípio da igualdade se dirige tão- somente ao legislador (impedindo que este faça leis arbitrárias), ou se dito prin- cípio transcende o legislador para atingir diretamente também aos particulares.

A resposta quer-nos parecer positiva. A igualdade no direito moderno, além de ser um princípio informador de todo o sistema jurídico, reveste-se também da condição de um autêntico direito subjetivo.

Possui, portanto, o cidadão o direito de não ser diferençado por outros particulares nas mesmas situações em que a lei também não poderia diferençar. É certo que no direito civil reina um princípio amplo de autonomia da vontade. As partes podem-se determinar por critérios os mais diversos possíveis, sem necessidade inclusive de explicitá-los. Mas se contudo for possível flagrar um particular na prática de um ato, com caráter nitidamente discriminatório, cre- mos que à parte prejudicada estaria aberto o acesso aos Tribunais para a devida reparação. Seria o caso, por exemplo, de alguém que anunciasse a venda de uma casa, excluindo, contudo, as pessoas negras da condição de eventuais com- pradores.

Não se nega que nas relações civilistas a detecção de situações de desequi- paração inconstitucional é muito difícil. É óbvio, contudo, que as próprias leis civis estão sujeitas integralmente ao princípio da igualdade.

No entanto, há situações em que o ato, embora de natureza civil, ga- nha uma ressonância social. É o caso, por exemplo, da formação de clubes esportivoS.

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Pergunta-se: pode aqui haver o alijamento de categorias humanas segundo critérios odiosos que ofendam a dignidade humana?

É certo que as pessoas queiram reunir-se em função de certo traço que as unifique. Exemplo: jogadores de xadrez queiram se constituir em clube para cultivar este esporte. Não é inconstitucional a exclusão dos não-enxadristas.

Mas e em um clube de natureza puramente social?

É curial que nenhuma lesão existe ao princípio se os critérios discrimina- tórios forem aqueles que encerram valores prezados pela sociedade. Então seria lícito vedar o acesso às pessoas desonestas, desonradas, grosseiras, de má reputação.

No entanto, seria perfeitamente inconstitucional excluir pessoas por per- tencerem a certa religião ou por serem de determinada raça ou nacionalidade.

Embora de difícil comprovação, temos para nós que é lícito aos pleiteantes ao ingresso em clubes e associações o serem cientificados quanto aos crité- rios que levaram ao indeferimento da sua filiação.

E finalmente, aqui então com maior razão ainda, se submetem ao princí- pio isonômico aqueles que, embora na condição de particulares, prestam uma atividade voltada ao público em geral. Por exemplo: donos de lojas, supermer- cados, restaurantes, teatros. Resultaria plenamente lesado o princípio isonô- mico se o proprietário negasse o serviço do seu estabelecimento a determina- das pessoas por critérios totalmente subjetivos e desarrazoados.

A problemática da igualdade entre os sexos insere-se dentro de uma preocupação maior, qual seja: a da igualdade entre os seres humanos. Assim sendo, as Constituições modernas não poderiam esquivar-se ao problema.

A sua quase-totalidade o enfrenta. Ora, contudo, limitando-se a uma proclamação da igualdade do homem e da mulher perante a lei, o que no fundo equivale a uma proibição de discriminações legislativas, ora na estatuição de uma igualdade absoluta de direitos entre homens e mulheres.

O nosso direito constitucional vinha seguindo o primeiro destes mode- los. Com a atual Constituição, insere-se no segundo.

É preciso todavia reconhecer que o avanço jurídico conquistado pelas mulheres não corresponde muitas vezes a um real tratamento isonômico no que diz respeito à efetiva fruição de uma igualdade material.

Isto a nosso ver é devido a duas razões fundamentais: as relações entre homens e mulheres obviamente se dão em todos os campos da atividade soci- al, indo desde as relações no trabalho, na política, nas religiões e organiza- ções em geral, até chegar ao recanto do próprio lar, onde homem e mulher se relacionam fundamentalmente sob a instituição do casamento.

É bem de ver que se é importante a estatuição de iguais direitos entre homem e mulher, é forçoso reconhecer que esta disposição só se aperfeiçoa e se torna eficaz na medida em que a própria cultura se altere. É necessário que as mentalidades se modifiquem

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além do fato de que às mulheres cabe uma luta para a efetiva implementação dos dispositivos constitucionais.

Vivemos sem dúvida uma época de avanços da mulher na sociedade. Esta, contudo, traz marcas arraigadas de posições ultrapassadas em termos históricos, marcadas por uma subjugação injusta da mulher.

A outra razão todavia que torna complexa a questão é que homens e mulheres não são, em diversos sentidos, iguais, sem que com isto se queira afirmar a primazia de um sobre o outro. O que cumpre notar é que, por serem diferentes, em alguns momentos haverão forçosamente de possuir direitos ade- quados a estas desigualdades.

O que não se pode admitir, e este parece ser o sentido fundamental do dispositivo, é que sob o manto de desigualdades biológicas, fisiológicas, psicoló- gicas e outras, possa encobrir-se uma verdadeira diferenciação de dignidade jurídica, moral e social entre ambos os sexos.

A novidade maior, contudo, reside sem dúvida na exceção da cláusula "nos termos desta Constituição".

Criou-se então uma reserva constitucional no assunto, o que vale dizer será a Lei Maior a consagrar desigualações entre homem e mulher. A lei ordinária será absolutamente vedado fazê-lo.

É de observar-se ainda que a Constituição só cria posições de vantagem em favor da mulher: a aposentadoria com menos tempo de serviço, benefícios nas relações do trabalho.

Finalmente, cumpre registrar que mesmo a igualdade assim categorica- mente assegurada há de ceder diante daquelas situações em que a realidade está a impor a exclusividade de um dos sexos.

Assim, não é lícito a um homem o ingresso em um batalhão da polícia feminina nem à mulher é dado insistir em prover um cargo de carcereiro em uma prisão masculina.

Embora seja sabido que depende muito da cultura de cada país o reconhecer o que é próprio a cada um dos sexos, o fato é que o direito há de respeitar estas distinções que, embora de base eminentemente cultural, não deixam de ter como suporte uma diferenciação na própria caracterização de cada um dos sexos.

3. PRINCIPIO DA LEGALIDADE

O princípio de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei surge como uma das vigas mestras do nosso ordenamento jurídico.

A sua significação é dúplice. De um lado representa o marco avançado do Estado de Direito, que procura jugular os comportamentos, quer individuais, quer dos órgãos estatais, às normas jurídicas das quais as leis são a suprema expressão. Nesse sentido, o princípio da legalidade é de transcendental impor- tância para vincar as distinções entre o Estado constitucional e o absolutista, este último de antes da Revolução Francesa. Aqui havia lugar para o arbítrio. Com o primado da lei cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei, que se presume ser a expressão da vontade coletiva.

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De outro lado, o princípio da legalidade garante o particular contra os possíveis desmandos do Executivo e do próprio Judiciário. Instaura-se, em conseqüência, uma mecânica entre os Poderes do Estado, da qual resulta ser lícito apenas a um deles, qual seja o Legislativo, obrigar aos particulares.

Os demais atuam as suas competências dentro dos parâmetros fixados pela lei. A obediência suprema dos particulares, pois, é para com o Legislativo. Os outros, o Executivo e o Judiciário, só compelem na medida em que atuam a vontade da lei. Não podem, contudo, impor ao indivíduo deveres ou obriga- ções ex novo, é dizer, calcados na sua exclusiva autoridade.

No fundo, portanto, o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tute- la, especificamente, um bem da vida, mas assegura, ao particular, a prerro- gativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei.

O que caberia responder, agora, é por que resulta o indivíduo assegura- do pela só razão de obedecer, exclusivamente, à lei.

A resposta há de ser encontrada nos princípios da ideologia democráti- ca. A lei tem uma vinculação necessária com a participação do povo no pro- cesso da sua elaboração, ainda que pela via da representação. Ademais, a lei, como vontade do Órgão Legislativo, é sempre fruto de um colegiado, circuns- tância que exclui a prepotência do chefe isolado.

O princípio da legalidade eleva, portanto, a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado. Nesse sentido, como visto, ela é uma garantia, o que não exclui, contudo, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem do seu norte autêntico. Nessa acepção a própria isonomia de todos perante a lei é uma contenção de possíveis abusos que ela possa encer- rar. A sua submissão à Constituição não deixa, também, de ser uma delimita- ção da sua vontade soberana.

Sem embargo do realce que ainda ostenta, o princípio da legalidade sofre, é forçoso reconhecer, um processo de relativa perda de importância dentro do Estado tecnocrático e intervencionista em que vivemos. E que, neste, certos atos, embora sem contestarem a supremacia formal da lei, roubam-lhe, do ponto de vista prático, a sua importância primitiva.

São inúmeros os exemplos desses tipos de atos: regulamentos, instruções, até mesmo meras portarias acabam por incidir na vida real das pessoas de uma maneira mais aguda e pungente que a própria lei, com a qual passam a rivalizar.

É curial que esses atos por encobrirem, sempre, delegações de competências que, a rigor, seriam do Legislativo, têm recebido a mais viva condenação por parte da doutrina. O primado da lei subsiste, pois, quer em nível teórico, no sentido de que a Constituição o proclama solenemente, quer do ponto de vista de um ideal sempre acalentado, ante o qual as violações sofridas não são se- não uma série de pecadilhos que devem ser extirpados a fim de que se restaure a santidade da supremacia da lei.

4. LIBERDADE DE PENSAMENTO

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A liberdade de expressão de pensamento é tida por uma das mais impor- tantes. Talvez por isto mesmo seja das que maior número de problemas levanta.

Historicamente figura nos primeiros róis de direitos individuais. Assim é que vamos encontrar na Declaração de Direitos do Homem de 1789 os seguintes dispositivos:

"Ninguém pode ser perturbado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que a sua manifestação não inquiete a ordem pública estabelecida pela lei".

O art. 11 deste mesmo documento acaba por reforçar esta idéia ao dispor:

"A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar, escrever, exprimir-se livremente, sujeito a responder pelo abuso desta liberdade nos casos determi- nados pela lei".

A consciência é, pois, o recinto mais recôndito do homem. Conseqüente- mente ela é em princípio indevassável, salvo processos de caráter cirúrgico ou químico, como a lavagem cerebral.

Pode ainda, é certo, ser influenciada pelos meios de comunicação e outros métodos de persuasão. No entanto não há dúvida que o homem é senhor quase absoluto da sua consciência, podendo em conseqüência nutrir e alimentar toda sorte de opiniões.

Sem embargo, isto não lhe é suficiente. O homem não se contenta com o mero fato de poder ter as opiniões que quiser, vale dizer: ele necessita antes de mais nada saber que não será apenado em função de suas crenças e opini- ões. É da sua natureza no entanto o ir mais longe: o procurar convencer os outros; o fazer proselitismo.

Ele é escravo de um certo princípio de coerência. Se crê em certas idéias é levado a desejar o seu implemento, a conformar o mundo segundo sua visão, necessitando destarte de liberdade para exprimir suas crenças e opiniões.

A liberdade de pensamento nesta seara já necessita da proteção jurídica. Não se trata mais de possuir convicções íntimas, o que pode ser atingido inde- pendentemente do direito. Agora não. Para que possa exercitar a liberdade de expressão do seu pensamento, o homem, como visto, depende do direito. É preciso, pois, que a ordem jurídica lhe assegure esta prerrogativa e, mais ain- da, que regule os meios para que se viabilize esta transmissão.

Assim, estão intimamente conectados com o direito ora em estudo o estatuto jurídico dos meios de comunicação, da imprensa, das telecomunica- ções e até da correspondência.

Por outro lado, na medida em que os homens tendem muito naturalmen- te a ter opiniões divergentes, o exercício por parte de cada um destes direitos não pode ser absoluto.

Há razões tanto de ordem pública quanto de ordem puramente individu- al que impedem a expressão do pensamento independentemente de quaisquer circunstâncias. Cite-se como exemplo o servidor público ou mesmo o profis- sional liberal submetido a um sigilo em razão do mister que desempenha. Pense-se também na hipótese em que a opinião de alguém sobre outrem assu- ma uma feição ofensiva.

A liberdade de pensamento, ou de opinião, é qualificada por alguns auto- res como simultaneamente primária e primeira, isto pelo fato de aparecer cro- nologicamente e

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logicamente antes de outras liberdades que não são senão um consectário seu (neste sentido, Claude-Albert Colliard, Liberté publique, p. 336).

Exemplifique-se: a liberdade de opinião permite a alguém ter ou não crenças religiosas. No caso positivo, contudo, estas deverão se externar por meio de outra liberdade, a dos cultos. Destarte, esta última aparece como uma liberdade secundária comandada pela liberdade de pensamento que lhe é anterior.

A própria liberdade de imprensa permite por outro lado a comunicação das opiniões. Aqui, a liberdade secundária amplifica a primeira ao mesmo tempo em que sobre ela se funda.

Colliard sistematiza de maneira extremamente interessante a matéria ati- nente à liberdade de pensamento. Depois de colocar em evidência tratar-se de uma liberdade variável, logo constata que esta variabilidade surge sobre dois planos completamente diferentes. No primeiro, ela diz respeito ao sentido da liberdade. No segundo, concerne à sua própria extensão.

Comecemos por examinar o sentido da liberdade de opinião.

Esta liberdade apresenta dois aspectos quanto ao seu valor: o primeiro é chamado "valor da indiferença". Neste caso, a liberdade em pauta signi- fica que a opinião não deve ser tomada em consideração. Confunde-se, nes- ta hipótese, com a noção de neutralidade, como ocorre do ângulo religioso com o Estado laico.

Contrariamente, a liberdade de opinião pode significar que o fato de ter- se uma opinião implica o seu respeito. A liberdade tem aqui um valor de exi- gência.

A liberdade que Colliard chama de indiferença está sempre presente na neutralidade do serviço público. Este não deve fazer nenhuma diferença entre os seus usuários quaisquer que sejam suas opiniões, que de resto devem ser ignoradas pelo próprio serviço. Cita referido autor que o Conselho de Estado do seu país anulou por ilegalidade um decreto municipal que regulava as fi- chas a serem preenchidas pelos clientes de hotel, pelo só fato de o modelo em questão indagar a que religião pertencia o signatário.

Vê-se portanto que uma das vertentes da liberdade de opinião leva à faculdade de o indivíduo poder alegá-la a qualquer instante sem por isto so- frer pena ou prejuízo. É o que consagra a grande Declaração de Direitos (nin- guém pode ser perturbado por suas opiniões). Mas há uma outra forma de respeitar as opiniões: consiste ela precisamente no tomar em consideração ditas opiniões ou convicções para o efeito de não feri-las.

É a chamada liberdade de opinião sob a modalidade do valor exigência. Isto significa dizer que ao indivíduo é dado, em certas hipóteses, exigir do Estado que leve em consideração a sua consciência ou o seu pensamento, para o efeito de eximi-lo de alguma obrigação. Ele rompe de certa forma com o princípio da igualdade. Não é obviamente inconstitucional porque é a própria Lei Maior que autoriza esta discriminação. A nossa Constituição consagra um exemplo flagrante desta espécie de liberdade de pensamento ao prever a cha- mada escusa de consciência, nos termos seguintes do art. 5.o VIII:

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"ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obriga- ção legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei".

Não é o local aqui de comentar-se dito inciso. Convém notar-se que pela invocação da escusa de consciência, é dizer, pela alegação de que está impedido por razões de consciência de praticar uma obrigação a todos imposta, não fica aquele que exerce este direito sujeito a qualquer sorte de apenamento.

Pelo contrário, a Constituição é clara em lhe oferecer a possibilidade de antes que tal ocorra cumprir tão-somente uma obrigação alternativa pre- vista em lei.

Quanto à extensão do direito de livremente expressar o seu pensamento, ele não é uniforme para todas as pessoas.

Em diversos casos, embora o Estado seja neutro ou indiferente às opi- niões dos seus servidores, ele pode, sem dúvida, impor restrições quanto ao momento de eles as externarem. Assim, pode limitar o direito de expor opini- ões políticas dentro das próprias repartições públicas.

Os magistrados também costumam ser cercados de medidas limitadoras da expressão do seu pensamento e, de uma forma mais acentuada, os milita- res, que sofrem em benefício da disciplina pesadas restrições. É óbvio tam- bém que a livre expressão do pensamento pode sofrer limitações decorrentes de uma questão de oportunidade. Não são todos os lugares nem todos os momentos que se prestam a ela.

Sampaio Dória define a liberdade de pensamento como sendo "o direito de exprimir por qualquer forma o que se pense em ciência, religião, arte ou o que for" (Direito constitucional, p. 232).

Ora, é fácil imaginar que exercido irresponsavelmente, este direito tomar- se-ia uma fonte de tormento aos indivíduos na sociedade. A todo instante po- deriam ser objeto de informações inverídicas, de expressões valorativas de con- teúdo negativo, tudo isto feito sem qualquer benefício social, mas com a inevi- tável conseqüência de causar danos morais e patrimoniais às pessoas referidas. A Constituição cuida neste mesmo parágrafo sob comento de estabelecer um sistema de responsabilidade bastante desenvolvido e eficaz. Senão vejamos:

"Proíbe-se o anonimato". Com efeito esta é a forma mais torpe e vil de

emitir-se o pensamento.

A pessoa que o exprime não o assume. Isto revela terrível vício moral consistente na falta de coragem. Mas este fenômeno é ainda mais grave. Es- timula as opiniões fúteis, as meras sacadilhas, sem que o colhido por estas maldades tenha possibilidade de insurgir-se contra o seu autor, inclusive de- monstrando a baixeza moral e a falta de autoridade de quem emitiu estes atos.

Foi feliz portanto o Texto Constitucional ao coibir a expressão do pensa- mento anônimo.

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Sem dúvida, a identificação do responsável pelos juízos e valores emi- tidos é condição indispensável para que se desenvolvam os atos posteriores tendentes à sua responsabilização.

Embora o Texto Constitucional exija que o pensamento não seja apócri- fo, ele não vai ao ponto todavia de requerer que debaixo de cada texto, por exemplo, figure o nome de seu autor.

Isto acabaria com a prática jornalística da edição de editoriais. É óbvio que o que o Texto Constitucional demanda é a existência de um responsável pela matéria veiculada, não sendo necessária destarte a correspondência des- te nome com o do autor real do comentário.

O direito de resposta, na forma em que a Constituição o assegura, não está vinculado a lesões provenientes apenas de determinados meios de comunica- ção. É inerente ao processo de informação e, portanto, deverá ser assegurado em quaisquer das modalidades sob as quais esta se dá. Com essa amplitude, ele é não apenas exercitável na imprensa falada, escrita ou televisionada, mas inclusive diretamente, se for o caso, como em uma assembléia por exemplo.

Além de não poder recusar a resposta, o órgão responsável pela veicula- ção do agravo deverá conferir-lhe destaque igual ao da notícia que originou o incidente.

Esta inserção deve-se dar de maneira neutra, é dizer: impedindo-se co- mentários que tenham por fim reforçar as posições do órgão de comunicação ou do agravante. Ao assim não proceder ele está como que a renovar o agravo praticado e conseqüentemente a ensejar novo exercício do direito de resposta.

5. LIBERDADE RELIGIOSA

5.1. Liberdade de Consciência e de Crença

Neste particular, o atual Texto leva a cabo um retorno às Constituições de 1946 e 1934, onde se apartavam consciência e crença para proteger-se a ambas. É esta sem dúvida a melhor técnica, pois a liberdade de consciência não se confunde com a de crença. Em primeiro lugar, porque uma consciência livre pode determinar-se no sentido de não ter crença alguma. Deflui, pois, da liberdade de consciência uma proteção jurídica que inclui os próprios ateus e os agnósticos.

De outra parte, a liberdade de consciência pode apontar para uma adesão a certos valores morais e espirituais que não passam por sistema religioso al- gum. Exemplo disto são os movimentos pacifistas que, embora tendo por centro um apego à paz e ao banimento da guerra, não implicam uma fé religiosa.

5.2. Liberdade de Culto

A religião não pode, como de resto acontece com as demais liberdades de pensamento, contentar-se com a sua dimensão espiritual, isto é: enquanto realidade ínsita à

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alma do indivíduo. Ela vai procurar necessariamente uma externação, que, diga-se de passagem, demanda um aparato, um ritual, uma solenidade mesmo, que a manifestação do pensamento não requer necessari- amente. Pode haver liberdade de crença sem liberdade de culto. Era o que se dava no Brasil Império. Na época, só se reconhecia como livre o culto cató- lico. Outras religiões deveriam contentar-se com celebrar um culto domésti- co, vedada qualquer forma exterior de templo.

A liberdade é de culto, o que significa dizer que pode ser exercida em princípio em qualquer lugar e não necessariamente nos templos, embora se- jam estes a gozar de imunidade fiscal, o que será visto a seu tempo.

De qualquer forma, como todas as liberdades, esta também não pode ser absoluta. Embora a atual Constituição não faça referência expressa à observân- cia da ordem pública e dos bons costumes como fazia a anterior, estes são valores estruturantes de toda ordem normativa. Confirma-se assim a respeito o que já observamos com relação à inexistência de censura quanto à expressão do pensa- mento. Viu-se na ocasião que o Estado não pode permitir que, ainda que sob o fundamento da proteção de valores muito encarecidos pela ordem moral, venham a se perpetrar atentados a uma moral dominante ou mesmo à condição humana.

5.3. Liberdade de Organização Religiosa

A liberdade de organização religiosa tem uma dimensão muito impor- tante no seu relacionamento com o Estado. Três modelos são possíveis: fusão, união e separação. O Brasil enquadra-se inequivocamente neste último desde o advento da República, com a edição do Decreto n. 119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado.

O Estado brasileiro tomou-se desde então laico, ou não-confessional. Isto significa que ele se mantém indiferente às diversas igrejas que podem livremente constituir-se, para o que o direito presta a sua ajuda pelo conferimento do recurso à personalidade jurídica.

Portanto, as igrejas funcionam sob o manto da personalidade jurídica que lhes é conferida nos termos da lei civil.

Destarte, o princípio fundamental é o da não-colocação de dificuldades e embaraços à criação de igrejas. Pelo contrário, há até um manifesto intuito constitucional de estimulá-las, o que é evidenciado pela imunidade tributária de que gozam.

Outro princípio fundamental é que o Estado deve manter-se absolutamente neutro, não podendo discriminar entre as diversas igrejas, quer para benefi- ciá-las, quer para prejudicá-las. As pessoas de direito público não é dado criar igrejas ou cultos religiosos, o que significa dizer que também não poderão ter qualquer papel nas suas estruturas administrativas.

Esta separação admite contudo certos abrandamentos, tornados possí- veis pelo próprio artigo que a institui.

O referido preceito impede relações de dependência ou aliança entre o Estado e as igrejas, o que não exclui vínculos diplomáticos com a Santa Sé, que no caso comparece como Estado e não como Igreja.

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Mas uma certa colaboração é possível, como reza o mesmo dispositivo. Remete contudo à lei o definir as modalidades desta cooperação. O próprio Texto Constitucional não faz referência ao conteúdo que ela possa assumir, ao contrário do Texto anterior, em que ela se daria notadamente no setor educa- cional, no assistencial e no hospitalar.

No entanto, esta colaboração será sempre difícil, uma vez que deverá estar adstrita ao princípio de umaabsoluta igualdade entre todas as igrejas.

O caráter laico do Estado brasileiro não compromete a obrigação em que se encontra de propiciar assistência religiosa nos estabelecimentos de internação nos termos do inc. VII do art. 5.o.

Tal assistência contudo há de ser prestada pelas próprias entidades re- ligiosas.

Portanto, ninguém será obrigado a revelar as suas convicções religiosas. Sabemos que é uma das discriminações vedadas pelo princípio da igualdade. Assim sendo, não cabem perguntas sobre a matéria, provenham de autorida- des públicas ou de pessoas privadas. As convicções e a prática religiosa assu- mem destarte um estatuto de foro íntimo das pessoas.

Cuida o inc. VIII da chamada escusa de consciência. É o direito reco- nhecido ao objetor de não prestar o serviço militar nem de engajar-se no caso de convocação para a guerra, sob o fundamento de que a atividade marcial fere as suas convicções religiosas ou filosóficas. É verdade que o Texto fala em "eximir-se de obrigação legal a todos imposta" e não especificamente em "serviço militar". É fácil verificar-se, contudo, que a hipótese ampla e genéri- ca do Texto dificilmente se concretizará em outras situações senão naquelas relacionadas com os deveres marciais do cidadão. A experiência de outros países também confirma esse fato.

Durante muito tempo a obrigação de prestar o serviço militar, na França, era de uma longa duração. Os jovens que se recusavam a cumprir com seu dever para manter coerência com suas crenças eram fortemente punidos pela justiça militar. Depois, no entanto, de uma grande campanha, acompanhada de uma greve de fome de certo objetor de nome Lecoin, em 1963, chegou-se a baixar uma lei disciplinando a matéria. Segundo um de seus artigos, os jovens que se declarem, em razão de suas convicções religiosas ou políticas, contrários em todas as circunstâncias ao uso pessoal de armas, podem cumprir as obrigações impostas pela lei de recrutamento, quer em uma formação militar não-armada, quer em uma formação civil que preste um trabalho de interesse geral.

Em tempo de guerra, os interessados são encarregados de serviços ou socorros de interesse nacional de uma natureza tal que seja respeitado o prin- cípio da igualdade de todos diante do perigo comum. Esta igualdade no entan- to é desprezada no que diz respeito à duração do serviço, pois que os jovens, engajados em uma formação civil ou militar não-armada, são obrigados a uma duração do serviço igual a duas vezes aquela realizada pela classe a que eles pertencem.

De qualquer sorte, a lei proíbe toda propaganda tendente a concitar outros a se beneficiarem do mesmo instituto. E o mesmo Colliard que observa que na verdade a objeção de consciência é muito mal considerada na França. Ademais é preciso observar que a objeção não pode ser apenas alegada, ela tem que ser comprovada, o que significa dizer que o

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interessado deve demonstrar por atitu- des anteriores que já era comprometido com este ideal de não-beligerância.

No Brasil não se encontra um desenvolvimento legislativo, doutrinário, nem mesmo jurisprudencial tão acentuado. A razão talvez seja fácil de ser encontrada. Tendo o País participado nas últimas décadas de poucas ocasiões de guerra e contando com contingentes humanos que excedem a própria possibili- dade de absorção do recrutamento, não é difícil para quem queira evadir-se à prestação do serviço militar, sobretudo por razões de consciência, vir a conse- gui-lo sem maiores obstáculos. A situação se tornaria bem diferente caso o Brasil entrasse em um conflito armado prolongado e com muitas baixas.

Outrossim, a objeção de consciência poderá no futuro vir a contar com mais dificuldades, isto por força do crescente movimento pacifista de âmbito internacional. Os países terão muita dificuldade em manter os seus exércitos se parcelas respeitáveis da população se derem ao culto da não-beligerância.

Não se pode deixar de observar algumas mudanças relativas ao Texto anterior. Lembre-se de passagem que a escusa de consciência no Brasil data da Constituição de 1946. Até a vigência do presente Texto, a sanção imposta pela sua invocação para evadir-se a obrigações a todos impostas consistia na perda dos direitos incompatíveis com ela, o que por força de outro disposi- tivo da Constituição de então acabava por concretizar-se na perda dos direi- tos políticos.

Na redação atual, fica certo que em primeiro lugar há uma possibilidade de invocação ampla da escusa de consciência, mas desde que feita valer para evadir-se o interessado de uma obrigação imposta a alguns ou a muitos, mas não a todos. É o que deflui da primeira parte do dispositivo: "ninguém será privado de qualquer dos seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política".

A regra não prevalece se a invocação se der diante de obrigação legal a todos imposta. Aqui o Texto oferece a possibilidade do cumprimento de uma prestação alternativa fixada em lei. Esta não apresenta ainda um cunho sancionatório. Limita-se a constituir uma forma alternativa de cum- primento da obrigação. Caso, contudo, haja recusa ainda do cumprimento, aí sim é que se abre a oportunidade para aplicação da pena de privação de direitos. De quais? O Texto aponta a resposta no art. 15, IV: perda ou sus- pensão dos direitos políticos.

6. DIREITO À INTIMIDADE, ÁVIDA PRIVADA E À HONRA

A evolução tecnológica torna possível uma devassa da vida íntima das pessoas, insuspeitada por ocasião das primeiras declarações de direitos.

É por isto que o seu aparecimento será um pouco mais tardio.

Contudo é bom notar que também não é uma preocupação dos nossos dias. O problema já no século passado se fez eclodir, sobretudo na França, com a publicação indiscreta de fotos de artistas célebres.

Nada obstante, na época atual, as teleobjetivas, assim como os apare- lhos eletrônicos de ausculta, tornam muito facilmente devassável a vida, ínti- ma das pessoas. É

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certo que esta intimidade já encontra proteção em uma série de direitos individuais do tipo inviolabilidade de domicílio, sigilo da correspondência etc.

Sem embargo disso, sentiu-se a necessidade de proteger especificamen- te a imagem das pessoas, a sua vida privada, a sua intimidade.

Podemos dizer que o direito à imagem consiste no direito de ninguém ver o seu retrato exposto em público sem o seu consentimento.

Pode-se ainda acrescentar uma outra modalidade deste direito, consisten- te em não ser a sua imagem distorcida por um processo malévolo de montagem.

O problema delicado que este direito suscita é que muitas pessoas vivem da sua imagem e conseqüentemente estão por decorrência da sua própria pro- fissão colocadas em um nível de exposição pública que não é próprio das pessoas comuns.

É curial portanto que estas pessoas que profissionalmente estão ligadas ao público, a exemplo dos políticos, não possam reclamar um direito de ima- gem com a mesma extensão daquele conferido aos particulares não compro- metidos com a publicidade. Isto não quer dizer que estas pessoas estejam sujeitas a ser filmadas ou fotografadas sem o seu consentimento em lugares não-públicos, portanto privados, e flagradas em situações não das mais adequadas para o seu aparecimento.

O Código Civil português nos oferece uma conceituação do que seja o direito à imagem:

"Art. 79: 1 - O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzi- do ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n. 2 do art. 71 segundo a ordem nele indicada.

2 - Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando as- sim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça ou culturais ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos ou na de fatos de interesse público ou que hajam ocorrido publicamente.

3 - O retrato não pode porém ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio se do fato resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada".

No direito brasileiro não havia uma proteção expressa da imagem antes deste Texto Constitucional, o que não impedia entretanto que este direito já forcejasse por ser reconhecido.

O inc. X oferece guarida ao direito à reserva da intimidade assim como ao da vida privada. Consiste ainda na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da mani- festação existencial do ser humano.

Esta proteção encontra desdobramentos em outros direitos constitucio- nais que também se preocupam com a preservação das coisas íntimas e privadas, como, por exemplo, direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, o sigilo profissional e o das cartas confidenciais e de- mais papéis pessoais.

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Não é fácil demarcar com precisão o campo protegido pela Constitui- ção. É preciso notar que cada época dá lugar a um tipo específico de privaci- dade. Nos tempos atuais, seria tornar o dispositivo constitucional muito fraco o considerar que ele abrangesse o só ocorrido nas casas dos particulares. Isto porque cada vez mais se impõem as modalidades semicoletivas de habitação, como se dá nos condomínios de apartamentos e nos de casas formados por conjuntos de habitações fechadas ao acesso público. Cremos ser também um prolongamento da vida particular a atividade levada a efeito em clubes recre- ativos e de lazer. São verdadeiros prolongamentos da casa tradicional, que, por já não poder contar, como outrora, com áreas próprias à recreação e ao esporte, conduz necessariamente o indivíduo para formas associativas cujo fim entretanto remanesce o mesmo: o de reforçar as comodidades ao seu al- cance nos momentos de ócio e de lazer.

A proteção à honra consiste no direito de não ser ofendido ou lesado na sua dignidade ou consideração social. Caso ocorra tal lesão, surge o direito de defesa.

A segunda parte do dispositivo cuida de assegurar um direito à indeniza- ção pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

É óbvio que a Constituição não quis excluir outras formas de punição também compatíveis com a lesão a estes direitos, haja vista a existência dos crimes contra a honra. O que ela quis deixar certo é que além da responsabilização administrativa, quando for o caso, cabe também uma responsabilização de natureza civil.

A novidade que há aqui é a introdução do dano moral como fator desen- cadeante da reparação. De fato não faz parte da tradição do nosso direito o indenizar materialmente o dano moral.

No entanto esta tradição no caso há de ceder diante da expressa previsão constitucional.

6.1. Dano Moral

Antes da Constituição de 1988, a opinião da doutrina e da própria juris- prudência era oscilante, ora invocando-se um "prejuízo moral", ora dano "não- patrimonial" ou ainda dano "extrapatrimonial", sem deixar-se de aí incluir a própria expressão dano moral.

A Carta de 1988 pôs um paradeiro a essas evasivas, no seu art. 5.o, X, que reza:

"São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral de- corrente de sua violação".

Isso não quer dizer que já não houvesse uma longa teorização, antes de 1988, em torno da figura do dano moral. Já estava nas mentes dos autores que o dano não é apenas aquela agressão física, responsável por prejuízos mate- riais que deveriam ser indenizados. Havia um outro tipo de dano mais sutil, mas nem por isso menos agressivo e maligno, que é aquele fruto de ataques à honra, à dignidade, à reputação e mesmo aos sentimentos humanos.

É certo que se reconhecia que este tipo de malefício nem sempre era visualizado e percebido da forma que o é o dano patrimonial. Na feliz expres- são de João Casillo, fica claro o ponto versado:

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"Talvez esta objeção é que tenha feito com que alguns autores não o admitissem, e mais difícil ainda é a mensuração de sua extensão para se arbi- trar o valor da indenização, sendo este um dos mais fortes argumentos daque- les que não o acatam" (Dano à pessoa e sua indenização, Revista dos Tribu- nais, 1987, p. 40).

Com efeito, mesmo antes da Constituição de 1988, já começava a consoli- dar-se o entendimento majoritário, tanto sobre a noção do dano extrapatrimonial, quanto ao dever de ser indenizado. O entendimento que se fazia desse dano era que esse correspondia a uma ofensa a um direito, a uma lesão que não traz uma repercussão no patrimônio da vítima, no sentido clássico ou material, podendo ou não repercutir no do ofensor. O mesmo preclaro Casillo nos fornece um exemplo:

"Há um direito da vítima protegido pelo ordenamento jurídico, um bem que não pode ser lesionado, e, no entanto o é, sem que a vítima sofra um desfalque, mas sendo abalada, muitas vezes, de maneira mais grave e violenta do que se tivesse perdido todo o seu acervo material.

O dano extrapatrimonial pode revelar-se sob diversas formas, como, por exemplo, o dano moral, através da ofensa à honra da vítima; o dano físico, que pode exteriorizar-se ou por uma ofensa ao corpo, atingindo membros, órgãos, função, sentido etc., ou simplesmente pela dor; dano psíqüico que pode reve- lar-se através de uma depressão, de um constrangimento, de um abalo nas atividades mentais etc." (Dano à pessoa e sua indenização, cit., p. 41).

E aquela mesma maioria, a que já nos referimos, também acordava a ofensa a esses interesses extrapatrimoniais, mesmo quando já tipificam de per si um delito com repercussões penais, não estavam isentos de merecerem também uma proteção civil, que poderia se dar pela via direta, ou seja, reposição do statu quo ante, como por intermédio de uma indenização.

Também àquela altura já ficava certo que, mesmo quando a ofensa ini- cial consistia numa ofensa moral, essa podia repercutir patrimonialmente. É o que se dá com a difamação de alguém que em função disso perde clientes, com conseqüente diminuição de ganho.

Aliás, um bom número de autores, à época, só considerava indenizável este dano extrapatrimonial, qual seja, o que acarretava também um prejuízo patrimonial. Essa posição enfraquecia sobremaneira a figura do dano moral, eis que, na verdade, tudo ficava na dependência de haver um dano patrimonial que acabava por confundir uma coisa com a outra.

A Constituição de 1988 cria a figura autônoma do dano moral. É o que já observamos em obra conjunta com o Prof. Ives Gandra da Silva Martins, quando escrevemos:

"A segunda parte do dispositivo (referindo-se ao inc. X do art. 5.o) cuida de assegurar um direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

É óbvio que a Constituição não quis excluir outras formas de punição também incompatíveis com a lesão a estes direitos, haja vista a existência dos crimes contra a honra. O que ela quis deixar certo é que além da responsabilização administrativa, quando for o caso, cabe também uma responsabilização de natureza civil.

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A novidade que há aqui é a introdução do dano moral como fator desencadeante da reparação. De fato não faz parte da tradição do nosso direi- to o indenizar materialmente o dano moral.

No entanto esta tradição no caso há de ceder diante da expressa previsão constitucional.

E é bom que tenha agido assim o constituinte. A inclusão da responsa- bilidade civil reveste-se em muitas hipóteses de uma força intimidatória que as outras formas de responsabilização podem não possuir, sobretudo em de- corrência de uma desaplicação quase sistemática das normas penais sobre os segmentos mais endinheirados da população.

Temos para nós que é sem dúvida um reforço substancial que se presta ao cumprimento destes direitos" (Comentários à Constituição do Brasil, Sa- raiva, 1989, v. 2, p. 65).

O fato de a Constituição de 1988 ter isolado o dano moral para torná-lo, em si mesmo, indenizável, independente das repercussões patrimoniais que possam ter surgido, a verdade é que muitas vezes há uma sucessão de danos, isto é, à prática de um dano moral sucede tanto o agravo e o mal-estar na pessoa atingida, quanto as perdas no seu patrimônio.

Este tipo de reparação civil por dano moral encontra hoje pleno funda- mento na doutrina, que procurou acompanhar a inovação trazida pela Consti- tuição de 1988. Justificando-a, assim se pronuncia Carlos Alberto Bittar:

"Trata-se, consoante Minozzi, de reação natural à ofensa, idéia que des- de tempos imemoriais, sempre caracterizou a atuação humana em sociedade, inicialmente, sob a forma de manifestação grupal e, depois, sob iniciativa in- dividual e formalizada pelos esquemas jurídicos consagrados no Direito Ci- vil" (Danos Morais, Revista dos Tribunais, 1994, p. 54-55).

É necessário não só recompor a ordem jurídica ofendida, mas também para o efeito preventivo e profilático que se almeja. O Direito Civil cumpre o seu papel tanto reparando, como prevenindo. Pode-se dizer que a sanção civil torna concreto o seu papel de meio indireto de devolução do equilíbrio às relações privadas.

O direito à reparação do dano compreende tanto a modalidade em que o lesado busca a recomposição, como aquela em que vai em busca de uma compen- sação exigindo pelos caminhos regulares a satisfação pelos danos suportados.

A reparação propriamente dita realiza-se de diversas formas: a devolu- ção das coisas ao statu quo ante (restitutio in integro), recomposição patrimonial ou reconstituição da esfera lesada, ressarcimento de danos morais ou a com- binação de efeitos, diante dos da espécie fática contemplada.

O que se procura sempre é chamar o lesante à responsabilidade, impon- do-lhe as sanções cabíveis, todas as vezes que ele não se disponha a reparar os danos causados de forma espontânea.

Na atual teoria da responsabilidade por dano moral, são identificáveis algumas diretrizes que permitem a sua aplicação aos casos concretos. Assim é que se encontra consolidada a responsabilização do lesante pelo simples fato da violação. Também certa é a desnecessidade de prova de prejuízo, pela fixação do juiz do dimensionamento da reparação

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devida. Também é acolhida a existência de certos parâmetros para a reparação. Igualmente verifica-se a atribuição à indenização de fator de desestímulo a novas práticas lesivas.

É, ainda, uma diretriz marcante a adoção de sancionamentos não- pecuniários. E, finalmente, citemos ainda a submissão da pessoa do lesante à satisfação do dano produzido e a cumulatividade das indenizações por danos morais e patrimoniaiS.

7. INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO

Durante muito tempo a humanidade sofreu as conseqüências danosas para sua segurança de mandados de busca e apreensão expedidos pelo poder monárquico absoluto. As vezes disfarçado em uma medida de mera polícia, outras vezes mesmo sem qualquer pretexto de procurar um criminoso; o certo é que se invadia com freqüência o lar das pessoas com o propósito de efetuar prisões. Era fácil imaginar a insegurança com que vivia o cidadão, sabedor que a qualquer hora, inclusive da noite, sua casa poderia ser inva- dida pelas autoridades. Sua pessoa e a de sua família não desfrutavam por- tanto de qualquer segurança.

Assim é que logo com o advento das primeiras Constituições procurou-se assegurar a indevassabilidade do lar.

Nestes últimos dois séculos esta garantia vem porfiando por se tornar cada vez mais efetiva.

É sem dúvida nenhuma um daqueles direitos individuais de grande difi- culdade de asseguramento.

Há que se notar outrossim que mais recentemente a inviolabilidade do lar ganhou mais um fundamento, qual seja: o da proteção da esfera íntima da vida individual e familiar.

Tem-se mesmo como um desdobramento da própria personalidade a ati- vidade de conformar a casa segundo os valores, os gostos e a psicologia de cada um. É um dos poucos recintos em que ainda é possível assegurar a intimida- de. É por isto que a inviolabilidade do domicílio mantém íntimas conexões com outros direitos que protegem a individualidade. Cite-se por exemplo o segredo de correspondência com o qual mantém traços de afinidade.

Durante o dia, além destas hipóteses, o lar pode ser invadido por determi- nação judicial.

O dispositivo consagra portanto dois níveis de garantia: um configurado pela enunciação explícita das hipóteses que ensejam o ingresso na casa sem o consentimento do morador: delito, desastre ou prestação de socorro.

Com efeito, surgem aqui razões que sobrelevam a própria inviolabilidade que se quis assegurar. Se a polícia se encontra na perseguição direta de um criminoso sem com ele perder contato, não pode ver-se impedida de prendê-lo simplesmente porque se homiziou em sua casa.

É óbvio também que a hipótese de um incêndio ou desabamento há de autorizar a invasão que de resto se dá primordialmente em benefício dos pró- prios moradores.

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Por flagrante delito deve-se entender a prática atual de um crime ou con- travenção. Se dentro da casa portanto estiver havendo a prática de um delito, a invasão se toma lícita. Ela será ainda constitucional no caso de o autor do crime ou contravenção ter delinqüido fora da casa mas ter ido nela se refugiar.

Contudo há que se respeitar a ocorrência do flagrante, o que significa dizer que as autoridades policiais não podem ter perdido a perseguição do criminoso. Se houver quebra de flagrante, desaparece em conseqüência a permissão constitucional de invasão.

Por desastre deve-se entender qualquer evento de caráter catastrófico, o que significa dizer: um acidente de grandes proporções. Assim, um incêndio é um acidente, como também o é uma inundação de grandes proporções que ponha em perigo a vida dos moradores.

O atual Texto acrescentou uma terceira hipótese, que consiste na presta- ção de socorro. Na verdade, é lícito reconhecer-se e podem-se configurar casos de alguém necessitar de socorro, sem que tenha configurado o motivo ante- rior, qual seja: o desastre. Mas este permissivo constitucional deve ser inter- pretado com muito rigor. Do contrário teremos casos de intromissões domici- liares sob uma alegação infundada de prestação de socorro.

É necessário que, primeiro, haja uma efetiva necessidade de socorro, é dizer: alguém correndo sério risco. Em segundo lugar, que a pessoa carente de ajuda esteja impossibilitada de, por seus próprios meios, fazer um apelo.

Durante o dia, o lar pode ser invadido mediante autorização judicial. Esta é uma alteração sensível em face do direito anterior, que reservava à lei o definir as hipóteses de intrusão domiciliar diurna.

Vigia o que se chamava uma reserva da lei. Vige atualmente o que pode ser tido por uma reserva jurisdicional. É portanto o magistrado que analisará se se está diante ou não de caso que comporte invasão. Ele o fará dentro de uma ampla discricionariedade que a Constituição lhe confere.

De outra parte, é forçoso reconhecer que deixou de existir a possibilidade de invasão por decisão de autoridade administrativa, de natureza policial ou não.

Perdeu portanto a Administração a possibilidade da auto-executoriedade administrativa mesmo em casos de medidas de ordem higiênica ou de profila- xia e combate às doenças infecto-contagiosas, ainda assim é necessário uma ordem judicial para invasão. É óbvio contudo que estas decisões haverão de ser proferidas dentro do maior informalismo processual concebível.

8. INVIOLABILIDADE DA CORRESPONDÊNCIA

Dizer que a correspondência assim como as comunicações telegráficas, de dados e telefônicas são invioláveis significa que a ninguém é lícito romper o seu sigilo, isto é: penetrar-lhe o conteúdo. Significa ainda mais: implica, por parte daqueles que em função do seu trabalho tenham de travar contato com o conteúdo da mensagem, um dever de sigilo profissional. Tudo se passa portanto como se a matéria transmitida devesse ficar absolutamente reservada àquele que a emite ou àquele que a recebe.

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Atenta pois contra o sigilo da correspondência todo aquele que a viola, quer rompendo o seu invólucro, quer se valendo de processo de interceptação ou quer, ainda, revelando aquilo de que teve conhecimento em função de ofí- cio relacionado com as comunicações.

O reclamo por um segredo de correspondência é muito antigo e pode-se dizer que surgiu ao mesmo passo em que se deu a criação de um serviço pos- tal. Este novo meio de comunicação, embora propiciando grandes facilidades para os particulares, trouxe consigo, sem dúvida, a possibilidade de os reis assenhorearem-se do conteúdo das cartas. Nos reinados de Luís XIV e Luís XV tornou-se prática corrente a passagem da correspondência por um chama- do cabbine noar (Rivero, Les libertés publiques, PUF, p. 77).

O fato de a Assembléia Constituinte de 1791 ter afirmado a regra do sigilo não impediu que no período do Terror e do Diretório as práticas do antigo regime se restaurassem ainda com mais vigor.

Elas nunca cessaram completamente. Mesmo na época moderna, são muito freqüentes as interceptações de comunicações telefônicas, que ganham de resto uma importância cada vez maior, relativamente às epistolares.

Isto não reitera a estas práticas a reprovação moral e jurídica que as atinge em quase todo o mundo.

O próprio direito brasileiro vem consagrando esta condenação desde a sua primeira Constituição. É sem dúvida um dos alicerces sobre os quais a liberdade humana se materializa.

Adversamente, os Estados autoritários têm forte atração por desrespei- tar este direito, na procura constante de possíveis opositores ao regime, ou mesmo na desarticulação de movimentos contra ele.

O Texto Constitucional imediatamente anterior tinha uma redação mais sintética, limitando-se a dizer que: "é inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas".

O caráter absoluto e peremptório de que se revestia o artigo não impediu que surgisse uma série de exceções, sempre a confirmar aquele ponto de vista já expedido em comentários anteriores de que não pode haver o exercício absoluto de um direito.

As tentações contudo de fazer proliferar os casos excepcionais são muito grandes, sobretudo sob o fundamento da desvendação de crimes em cuja apu- ração não só as autoridades policiais como também os próprios particulares, à míngua de outros elementos probatórios, tentam fazer valer provas obtidas por meio da violação da correspondência, sobretudo através de gravações de conversas telefônicas.

O atual Texto procurou encontrar uma forma de não tolher de maneira absoluta a utilização de meios que importem na violação da correspondência. Parece haver mesmo muitas hipóteses em que o interesse social sobreleva ao particular. É assim que o Texto acaba por permitir a violação da correspon- dência em sentido amplo, mas exige a satisfação prévia de quatro requisitos:

Em primeiro lugar, é necessário estar-se diante de uma comunicação telefônica. Para as demais formas comunicativas, a Constituição não abre qualquer ressalva.

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A seguir faz-se mister a existência de ordem judicial. Há uma reserva portanto jurisdicional quanto à expedição da ordem autorizadora da violação.

Em terceiro lugar, cumpre que ocorram algumas das hipóteses e se obedeça à forma descrita em lei. Há pois uma reserva legislativa quanto à definição dos casos e das situações que ensejarão a quebra do sigilo, além de também à lei estar deferida a competência para ditar o modus operandi.

E em quarto e último lugar, a Constituição traça os fins em vista dos quais a ruptura do segredo é consentida: investigação criminal e instrução processual. É preciso pois que haja necessidade ao menos de uma medida policial de cunho investigatório.

Pode também ensejar a quebra do sigilo a necessidade de instruir um processo.

A Constituição não distingue entre a instrução processual penal e a ci- vil; o que tranqüilamente indica a possibilidade de a lei integradora vir a tra- çar hipóteses permissivas em um e outro campo.

Ficam destarte excluídas quaisquer ressalvas à inviolabilidade da corres- pondência nos presídios e mesmo nos hospícios.

9. LIBERDADE DE PROFISSÃO

A possibilidade de escolha livre pelo homem do trabalho que vai executar ou da profissão que deseja exercer situa-se na encruzilhada de duas vertentes fundamentais da Constituição: de um lado, o princípio da livre iniciativa, que conduz necessariamente à livre escolha do trabalho. Com efeito, é um ingre- diente fundamental na formação do mercado a existência de uma mão-de-obra disponível que se movimente livremente à cata das melhores oportunidades.

Nas economias submetidas a planejamento autoritário esta liberdade não encontra muito espaço para atuação, posto que se fosse outra a solução, as próprias diretrizes e metas do planejamento poderiam ser postas a perder.

Mas a liberdade de trabalho encontra outra fundamentação na própria condição humana, cumprindo ao homem dar um sentido à sua existência. É na escolha do trabalho que ele vai impregnar mais fundamentalmente a sua personalidade com os ingredientes de uma escolha livremente levada a cabo. A escolha do trabalho é, pois, uma das expressões fundamentais da liberda- de humana.

10. DIREITO DE LOCOMOÇÃO

É pela locomoção que o homem externa um dos aspectos fundamentais da sua liberdade física. Circular consiste em deslocar-se de um ponto para outro. Em um sentido amplo, contudo, deve incluir o próprio direito de permanecer. Esta circulação há de se dar, é óbvio, segundo os meios tecnológicos existentes e as obras viárias realizadas. O direito de circular, pois, encontra duas sortes de limitações: uma, concernente à própria manifestação deste direito, e a outra que pode defluir das regulamentações impostas pelos poderes públicos aos meios de locomoção e à utilização das vias e logradouros públicos.

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No primeiro caso, as restrições hão de ser muito raras, é óbvio. Em pri- meiro lugar surgem todas aquelas hipóteses de restrição física da liberdade pela imposição de pena privativa desta. Trata-se da prisão nas suas diversas modalidades, incluindo também aqueles confinados em decorrência de medi- das de defesa da saúde pública, no combate às doenças infecto-contagiosas, podendo a lei determinar o confinamento dos atingidos, assim como dos suspeitos, estes durante um certo período (quarentena).

A restrição pode advir também por força da implantação do estado de defesa. Isto significa que, como a Constituição prevê esta modalidade de restrição das liberdades como própria deste referido estado, não pode a lei estatuir li- mitações ao direito de livremente circular, sem a ocorrência do aludido pres- suposto constitucional.

São quantitativamente grandes os problemas surgidos por ocasião do efetivo exercício do direito de locomoção em confronto com as normas disciplina- doras da utilização das vias públicas. É certo que o direito constitucional de livremente circular não impede que os poderes públicos disciplinem a forma pela qual há de se dar esta circulação.

O que é importante notar é que esta normativização, fundada em um poder de polícia que não se recusa à lei e à administração, não pode, contudo, ir ao ponto de cercear o próprio direito de locomoção.

Embutido neste está ainda o próprio direito de Lixar residência sem pedido de autorização. É uma manifestação importante da liberdade vigente em um Estado de Direito. Os regimes autoritários procuram inibir esta circulação exigindo passaporte, inclusive para movimentação interna do cidadão.

É bem de ver-se, ainda, que o direito de circulação é assegurado implicita- mente em mais de um dispositivo constitucional. Leia-se o inc. LXVIII do art. 5.o que dita:

"Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder".

11. DIREITO DE REUNIÃO E ASSOCIAÇÃO

Jean Rivero é certamente um dos autores mais precisos ao identificar os elementos da reunião. Em primeiro lugar, há de existir uma pluralidade de participantes. É por isto que ela é considerada uma forma de ação coletiva. O direito de manifestação já se divorcia um pouco do de reunião, por força deste traço: a manifestação pode ser individual.

Em segundo lugar, surge o elemento tempo. A reunião há de ter uma du- ração limitada e ter um caráter episódico. O liame que se estabelece entre os seus integrantes não sobrevive à própria reunião. Por aqui, certamente, é que a reunião mais se distingue da associação que tem um caráter permanente.

Em terceiro lugar, aparece o elemento finalidade. A reunião é um encontro combinado com um propósito determinado, fixado previamente. A reunião é, portanto, organizada, o que a distingue dos agrupamentos ocasionais de pes- soas na rua, atraídas por qualquer fato inusitado, ou mesmo da simples justa- posição de indivíduos no mesmo lugar, como se dá, por exemplo, com os freqüentadores de um bar ou restaurante.

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11.1. Liberdade de Associação

Uma visão retrospectiva do surgimento dos direitos individuais e dos coletivos evidencia, claramente, que os primeiros surgiram muito anterior- mente aos segundos.

Em contrapartida, estes últimos tornam, na sociedade contemporânea, uma importância capital que, de resto, não pára de crescer.

Os autores apontam com bastante uniformidade quais as razões do desen- volvimento tardio das liberdades coletivas.

Jean Rivero aponta fundamentalmente duas: os governos temem as facili- dades que elas oferecem à contestação e, de outra parte, o fato de que elas não estão incluídas na herança ideológica de 1789.

A Declaração desse ano é fundamentalmente individualista. De um lado, o liberalismo político temia as organizações particulares que pudessem se in- terpor entre o indivíduo e a coletividade total, deturpando, destarte, a expres- são "vontade geral".

De outro lado, o liberalismo econômico, por sua vez, era muito suspeitoso destas organizações pelos prejuízos que poderiam trazer a uma economia de mercado, fundada sobre os contratos individuais e a livre concorrência. Preocupavam-no, sobretudo, as coalizões de base profissional. Isto explica o fato da Declaração de 1789 não consagrar nem a liberdade de reunião, nem a de associação.

Esta última, de resto, foi expressamente proibida no domínio profissio- nal pela Lei "Le Chapelier" de 1791.

As associações políticas que assumiram grande poder com o "Clube dos Jacobinos", durante o "terror", se desenvolvem à margem da legalidade. Vê- se assim que o século XIX apresenta uma coloração nitidamente contrária a estas liberdades coletivas que assumem fundamentalmente a forma de direito de associação.

Por sua vez, o Código de Processo Penal francês, de então, proibia as associações de mais de vinte pessoas, salvo autorização prévia e discricio- nária, sendo que esta desconfiança sofreu um breve eclipse logo após a re- volução de 1848.

De outra parte, as proibições do Código Penal foram abrandadas na prá- tica por um espírito de tolerância de fato. Contudo, o princípio mesmo das proibições não foi posto em causa.

Com o Segundo Império, desponta uma ligeira evolução, precisamente quanto a uma das liberdades até então mais reprimidas: o direito de greve. Na- poleão III, interessado no apoio da classe operária, obtém a votação de uma lei que elimina o delito de coalizão. Mas a primeira reforma liberal de maior transcendência vai se dar na década de 80. Primeiro instaura-se a liberdade de reunião, em seguida, a sindical, esperando-se, no entanto, até o advento de uma lei de 1901 para que pudesse ser consagrada de maneira generalizada.

Em síntese, é só no começo do século XX que as liberdades coletivas, de reunião e de associação, acabam por encontrar seu lugar no direito positivo francês, sendo desnecessário salientar a influência que este direito exerceu no mundo, sobretudo em matéria de liberdades públicas.

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O direito brasileiro sofre a influência do europeu, cuja aversão ao direi- to de associação - descrita especificamente no que concerne à França, como visto no tópico anterior - era agasalhada igualmente por outros países.

Na Inglaterra, contudo, deu-se um fenômeno importante. Stuart Mill pu- blica em 1859 on liberty, responsável pela alteração do modo de ver o proble- ma pelo liberalismo.

O insigne autor observa que o homem isoladamente é muito frágil, para fazer-se respeitar pelo Estado. Daí a conveniência da sua associação com ou- tros homens, do que resultaria necessariamente um acréscimo de sua força. O pensamento liberal abandona, destarte, sua ojeriza pelas diversas formas de associação e absorve este direito como um dos pontos fundamentais da sua mensagem ideológica.

A Constituição brasileira de 1824 não contemplava explicitamente o direito de associação. Era, portanto, omissa a respeito, o que levou, do ponto de vista prá- tico, a que funcionassem diversas organizações, uma vez que não estavam proibi- das. Pelo seu papel histórico, as mais importantes foram as de cunho político.

A introdução deste direito fundamental deu-se com a Constituição de 1891. A partir de então, todas as demais o repetem.

O direito de associação é apenas um dos tipos que a organização cole- tiva dos cidadãos pode assumir. Outras muito importantes são: os sindicatos e os partidos políticos.

O direito de associação é daqueles que podem ser tidos nitidamente como de natureza negativa, é dizer: o Estado o satisfaz, não interferindo na forma- ção das organizações, quer para proibi-las, quer para dificultar o seu funcio- namento, quer ainda para determinar a sua dissolução.

A associação viria, pois, a ser a reunião estável e permanente de pesso- as, objetivando a defesa de interesses comuns, desde que não proibidos pela Constituição ou afrontosos da ordem e dos bons costumes.

A liberdade de associação tem uma de suas expressões fundamentais no direito de auto-organização.

A questão que se coloca é a de desvendar a amplitude deste direito. Em outras palavras, cumpre examinar em que consiste a auto-organização.

Em primeiro lugar há que se destacar a autonomia na elaboração dos seus atos constitutivos. A liberdade de associação ficaria seriamente abalada se os estatutos destas entidades ficassem na dependência de uma apreciação administrativa para efeito de aprovação ou rejeição ou mesmo para fins de inclusão compulsória de determinadas cláusulas.

Outra dimensão importante da autonomia organizativa consiste na faculdade que têm as associações de escolherem livremente as pessoas incumbidas da sua gestão sem qualquer interferência estatal, portanto.

E finalmente há que se referir à própria liberdade de gestão, isto é: não podem os seus atos ficar na dependência de aprovação ou homologação admi- nistrativas.

De nada adiantaria as associações poderem constituir-se livremente se a elas não fosse também assegurado o direito de perdurarem ou de continuarem a existir.

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A Constituição não faz referência a quais seriam as razões que poderi- am ditar uma medida desta ordem: a suspensão ou a extinção da entidade.

Diante da omissão constitucional o que há de concluir-se é que só se poderá chegar a tanto se desaparecidos um ou alguns dos requisitos para sua constituição.

Assim, se uma associação foi criada com fins lícitos, mas na prática se consagra à realização de atos ilícitos, surge daí a causa que vai determinar a sua suspensão ou extinção.

Obviamente há que se fazer referência à extinção da entidade quando tenha ocorrido falsidade nos próprios atos constitutivos.

Também se alinha entre os componentes da liberdade de associação o de que ninguém pode ser membro desta sem a correspondente vontade de asso- ciar-se. É o que se chama de liberdade negativa de associação.

Ela se traduz na impossibilidade de as autoridades públicas imporem um ato de adesão ou de permanência em uma associação. Esta imposição pode assumir uma forma dissimulada, mas nem por isto menos inconstitucional, quando o Poder Público faz depender o exercício de certo direito da filiação a uma entidade associativa.

O século XIX assistiu à vigência do princípio segundo o qual o legitima- do a atuar em juízo era aquele que fosse portador de um direito individual. Ao aspecto material do direito correspondia no plano processual o de ingressar em juízo fazendo uso do direito público subjetivo de ação.

O século XX rompe com esta estreita correlação sob duas modalidades: em primeiro lugar, surgem, ao lado das noções de interesse ou direito privado e público, as de interesse ou direito coletivo e difuso.

Em segundo lugar, aparecem legitimações extraordinárias ou heterodo- xas, em que uma pessoa age por outra como seu substituto processual.

O inciso sob comento XXI, de certa forma, insere-se nesta tendência na medida em que permite às entidades associativas, quando expressamente auto- rizadas, o representarem seus filiados em juízo ou fora dele.

Esta posição na verdade retrata a generalização de um rumo encontrável setorialmente em campos, portanto, isolados do nosso direito. Onde esta subs- tituição se fez mais presente foi sem dúvida no campo trabalhista.

O requisito que o Texto Constitucional estabelece é o de que as entida- des associativas estejam expressamente autorizadas, o que significa dizer que ela deverá comportar, dentro do rol dos seus fins sociais, o da defesa de direi- tos dos seus membros.

Esta autorização pode advir tanto da lei, nos casos excepcionais em que se admite a associação por via de lei (conferir a respeito nossos co- mentários sobre a liberdade de criação associativa), quanto dos próprios estatutos sociais.

Mas é bem de ver que a dita autorização só pode versar sobre matéria pertinente aos fins sociais da própria entidade. Seria uma interpretação inade- quada do Texto imaginar-se que estaria ele a conferir a possibilidade de constitui- rem-se procuradores universais.

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Portanto, resulta claro que uma entidade de defesa de interesses profissionais não pode mover uma ação de despejo em nome de um filiado seu.

12. DIREITO À PROPRIEDADE

A propriedade, se vista do ângulo do direito civil, não é senão um direito subjetivo, consistente em assegurar a uma pessoa o monopólio da exploração de um bem e de fazer valer esta faculdade contra todos que eventualmente queiram a ela se opor. Se, contudo, mudarmos o enfoque da questão e passar- mos a considerar a propriedade nas suas relações com o Poder Público, a sua natureza ganha uma coloração bastante diversa. É que aqui a propriedade in- terfere na própria estrutura do Estado, sendo perfeitamente discerníveis atual- mente no mundo os países que a asseguram de maneira ampla (Estados predo- minantemente liberais) e aqueles outros que a negam pelo menos quando têm por objeto os bens geradores de riqueza (Estados de ideologia marxista-leninista).

Nos Estados de doutrinas individualistas o direito de propriedade erige-se num dos direitos fundamentais do homem, ao lado da liberdade e da seguran- ça. Ele vai buscar sua fundamentação no direito natural. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 assim encara a propriedade, é di- zer: entre os direitos naturais imediatamente após a liberdade, antes da segu- rança e da resistência à opressão. No seu art. 12 ela dispõe que a propriedade é um "direito inviolável e sagrado". As diversas Constituições revolucionárias da história francesa mantiveram coerência com este ponto de vista, situando a propriedade entre os direitos naturais.

Claude Albert Colliard observa que, entre a noção de propriedade e a de pessoa, estabeleceu-se, na doutrina liberal, um vínculo muito estreito. Cita ademais a opinião de Ahrens que, no seu Curso de direito natural, vê, na propriedade, a projeção da personalidade humana no domínio das coisas. Assim torna-se fácil entender por que o Código Civil francês, de 1804, conferiu à propriedade uma concepção particularmente individualista e absoluta. Mes- mo para os autores favoráveis à propriedade privada é preciso notar que nem todos chegam a esta posição pela mesma fundamentação. Há os que, como Grócio, a fundam na ocupação de bens ainda não apropriados por ninguém. Esse fenômeno alargaria o domínio do homem sobre a natureza na medida em que a converteria em valores econômicos ou culturais. Outros autores, tais como Montesquieu, Hobbes, Benjamin Constant, Mirabeau, Bentham, fun- dam o direito de propriedade pura e simplesmente na lei. Outros prefeririam ver no trabalho o único criador de bens; a mera apropriação de bens nunca geraria a propriedade, que demandaria sempre um trabalho de transformação deste objeto em função da forma que o homem lhe confere.

Do ponto de vista da sua conceituação, o que se vê é que a propriedade, no direito civil, consiste na fruição plena e exclusiva, por uma pessoa, de um determinado bem corpóreo. A sua definição seria, portanto, extraível das prer- rogativas que o domínio oferece: usar, gozar, dispor e o de reivindicar a coisa de quem quer que indevidamente a detenha.

12.1. Função Social

O conceito constitucional de propriedade é mais lato do que aquele de que se serve o direito privado. É que do ponto de vista da Lei Maior tornou-se necessário estender a

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mesma proteção, que, no início, só se conferia à relação do homem com as coisas, à titularidade da exploração de inventos e criações artísticas de obras literárias e até mesmo a direitos em geral que hoje não o são a medida que haja uma devida indenização da sua expressão econômica. Tal fato se deu porque com o desenvolvimento da civilização os bens de in- teresse para o homem não se limitam aos corpóreos. O processo cultural deu lugar ao surgimento de uma série de criações humanas cuja expressão econô- mica muitas vezes excede ao valor do bem corpóreo. A exploração de uma patente industrial pode significar fortunas raramente encontráveis pela mera acumulação de bens exclusivamente materiais.

A propriedade tornou-se, portanto, o anteparo constitucional entre o do- mínio privado e o público. Neste ponto reside a essência da proteção constitu- cional: é impedir que o Estado, por medida genérica ou abstrata, evite a apro- priação particular dos bens econômicos ou, já tendo esta ocorrido, venha a sacrificá-la mediante um processo de confisco.

É certo existirem bens inapropriáveis pelos indivíduos, mas estes constituem o domínio público constitucionalmente definido.

É certo de outra parte que os proprietários podem ter os seus bens lesa- dos por outros particulares, mas para coibir estes abusos, basta a legislação ordinária. É por isto que vemos na proteção constitucional da propriedade uma limitação da esfera do Estado no campo econômico. Não há que negar-se que esta proteção não é absoluta. A própria tributação é uma forma de apropriação estatal de bens privados. A desapropriação também. Mas ambos os institutos têm de ser utilizados na forma constitucional.

A referida multiplicidade de propriedades leva a uma correspectiva diver- sificação dos regimes jurídicos de cada uma. Canotilho observa que a amplia- ção e diversificação do espaço do direito de propriedade conduziu a uma espécie de "fraccionamento" do seu conceito unitário-primitivo, responsável por uma diversidade de regimes.

Quer-nos parecer contudo que, embora transplantável aquela afirmação para o direito brasileiro, ela aqui deva sofrer uma drástica contenção. É que a nossa Carta, malgrado algumas incursões estatizantes ou nacionalistas, ainda assim é um documento eminentemente consagrador do liberal capitalismo. No nosso sistema, a propriedade privada tanto colabora para a expressão da individualidade, quando incidente sobre meios de produção, quanto sobre bens de consumo. Daí porque no nosso sistema constitucional a propriedade estar simultaneamente vinculada ao regime das liberdades pessoais que estatui como também à própria ordem econômica.

As restrições ao direito de propriedade que a lei poderá trazer só serão aquelas fundadas na própria Constituição, ou então nas concepções aceitas sobre o poder de polícia. Não pode a lei colocar fora do domínio apropriável pelos particulares certos tipos ou classes de bens, o que só é dado à Constituição fazer.

A liberdade de uso e fruição hoje vê-se, em muitos casos, transformada em dever de uso. É um desdobramento sem dúvida importante do moderno direito de propriedade. A luz das concepções atuais não há por que fazer prevale- cer o capricho e o egoísmo quando é perfeitamente possível compatibilizar a fruição individual da propriedade com o atingimento de fins sociais. Esta ma- téria será melhor analisada no parágrafo seguinte.

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A concepção clássica de propriedade não se afastou da idéia de um direito abstrato de caráter perpétuo que era usufruído independentemente do exercício deste direito, o que significa dizer que ele não era perdido pelo seu não-uso.

Parece ser uma característica do direito de propriedade moderno o estar determinado pelo uso econômico da coisa.

Se, por um lado, é certo que a propriedade pode ser definida como mono- pólio de utilização econômica, não é menos certo ainda que esta determina e legitima a propriedade. É como se a propriedade se apagasse quando a utiliza- ção econômica desaparece.

Como não poderia deixar de ser, o novo Texto reflete preocupações pró- prias da época em que foi redigido. Com isto queremos dizer que houve, inega- velmente, uma tendência para precisá-lo melhor, dando-lhe contornos mais firmes e seguros, contribuindo assim para um delineamento mais preciso do próprio direito de propriedade.

O primeiro ponto a notar é que o Texto acaba por repelir de vez alguns autores afoitos que quiseram ver no nosso direito constitucional a proprieda- de transformada em mera função. Em vez de um direito do particular, ela seria um ônus, impondo-lhe quase o que seria um autêntico dever. De qual- quer sorte o que estava presente nesta corrente era o desconsiderar a propri- edade como bastante por si mesma, tornando-a uma mera decorrência de uma função cumprida pelo proprietário.

O Texto Constitucional, ao dar independência à proteção da proprieda- de, tornando-a objeto de um inciso próprio e exclusivo, deixa claro que a propriedade é assegurada por si mesma, erigindo-se em uma das opções fun- damentais do Texto Constitucional, que assim repele modalidades outras de resolução da questão dominial como, por exemplo, a coletivização estatal.

Como direito fundamental ela não poderia deixar de compatibilizar-se com a sua destinação social. Aliás, tem sido uma constante nestes nossos co- mentários a evidenciação de como mesmo os mais absolutos direitos, tais co- mo formulados no Texto, acabam por submeter-se à necessidade de harmoni- zar-se com os fins legítimos da sociedade.

Mesmo naqueles que nada prescrevem sobre a sua destinação social, fica implícito que hão de encontrar limites no exercício dos outros direitos individuais.

O cerne do nosso sistema jurídico-político repousa no fato de que não há uma oposição irrefragável entre o social e o individual ou mesmo de que o social avança na medida em que se sufocam os direitos individuais. A feição ainda predominantemente liberal da nossa Constituição acredita que há uma maximização do atingimento dos interesses sociais pelo exercício normal dos direitos individuais.

O liberalismo não consagra a propriedade como privilégio de alguns, mas, sim, acredita ser a gestão individual do objeto do domínio a melhor forma de explorá-lo, gerando destarte o bem social. Este não é senão um subproduto na- tural e espontâneo da livre atuação humana que, motivada pela recompensa que pode advir da exploração do bem, sobre ele exerce uma criatividade e um tra- balho sem equivalente nos países que a renegam.

Portanto, há uma perfeita sintonia entre a fruição individual do bem e o atingimento da sua função social. Só esta harmonia e compatibilização po- dem explicar por

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que os países que mais se desenvolvem economicamente são os que o fazem sob a modalidade do capital privado.

Isto, contudo, não significa dizer que, o titular da propriedade não possa vir a abusar do seu direito como, de resto, qualquer outro titular de uma rela- ção jurídica. Na medida em que haja o uso degenerado, exclusivamente perso- nalista e egoísta, até mesmo deturpado à luz dos interesses pessoais do pró- prio possuidor, o direito de propriedade vai expor-se a sanções fundamental- mente de duas ordens: as decorrentes da infringência às normas do poder de polícia, ou então à perda da propriedade na forma da Constituição.

A função social visa a coibir as deformidades, o teratológico, os aleijões, digamos assim, da ordem jurídica. É o que cumpre examinar agora. Vale di- zer, em que consistem aquelas destinações que poderão levar ao uso degenerado da propriedade a ponto de colocar o seu titular em conflito com as normas jurídicas que a protegem.

A chamada função social da propriedade nada mais é do que o conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, a recolocar a propriedade na sua trilha normal.

Não há um regime único da função social porque também são diversos os domínios sob os quais se exerce a propriedade. O que se pode dizer é que a Constituição se interessou sobretudo pelos bens materiais, mais especificamente o domínio da terra, quer rural, quer urbana.

Não que se desconheça aqui a possibilidade de desapropriação de bens imateriais como os direitos do autor, por exemplo; o que cumpre notar é que, nestes casos, a mera predominância do interesse público sobre o privado já autoriza a aplicação de medidas que resolvam o momentâneo conflito entre o individual e o social, sem que se faça necessário fundar-se na invocação da função social da propriedade.

A razão de ser desta vem, no nosso direito, estreitamente ligada à necessi- dade de imporem-se medidas mais graves para o particular do que aquelas autorizadas pela supremacia do interesse amplo da coletividade sobre o dos seus membros.

Assim é que, para que se desaproprie um direito de construirjá consagrado em alvará ou um direito autoral, não é cabível a invocação da função social da propriedade porque esta atrela-se atualmente ao propósito do Estado de im- por, como se viu, medidas mais onerosas para o cidadão do que as derivadas da desapropriação por necessidade ou utilidade pública.

Destarte é forçoso concluir-se que o acervo de medidas ao alcance do Estado, voltadas ao descumprimento da função social da propriedade, só po- dem ter por objeto terras particulares, sejam urbanas ou rurais.

O conteúdo da função social das terras urbanas será aquele que derivar do plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal e obrigatório para cidades acima de 20.000 habitantes (art. 182, § 1.o).

Este plano, contudo, há de estar conforme à política de desenvolvimento urbano executada pelo Poder Público Municipal segundo as diretrizes gerais fixadas em lei federal, isto nos termos do caput do mesmo artigo.

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O § 4.o, ainda sempre do mesmo dispositivo, vai fornecer o elenco de medidas sancionatórias que poderão colher o solo urbano não edificado, subutili- zado ou não utilizado. A primeira medida é a exigência de adequado aprovei- tamento, antecedida de lei específica para área incluída no plano diretor e obedecidos os termos da lei federal.

Não cumprida esta exigência pelo proprietário, abre-se, pela ordem, a possibilidade de o Poder Público Municipal impor:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.

Vê-se assim que a função social do solo urbano é cumprida pela sua utili- zação econômica plena, o que pode ocorrer com edificação ou mesmo sem.

Em outras palavras, é o critério econômico o que predomina. Se o bem se estiver prestando a uma utilização econômica plena, evidentemente levando-se em conta a sua adequação topográfica, localização etc., não será passível das medidas sancionatórias.

Com relação à propriedade rural, vamos encontrar algumas particularidades não só relativamente ao solo urbano, como também ao antigo regime da fun- ção social.

As premissas básicas contudo são as mesmas. O art. 184 permite à União a desapropriação de imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.

O art. 186 fornece o conteúdo desta função social e muito obviamente no inc. I impõe o aproveitamento racional e adequado do imóvel.

Antes de entrarmos nos demais incisos, convém aprofundarmo-nos um tanto neste primeiro.

É que a nosso ver continua ele a ser o fornecedor fundamental do teor semântico da expressão função social.

Queiramo-lo ou não, seja ou não do nosso gosto pessoal, o fato é que os objetivos fundamentais dos Estados modernos continuam a ser aqueles voltados ao desenvolvimento do seu potencial econômico. Embora quando se fale em desenvolvimento social queira-se mais referir a uma partilha eqüitativa dos bens produzidos, o fato é que nenhum Estado se contenta com o mero distributivismo. Uma política social eficaz só acaba afinal por ter êxito se lastreada em uma abundante produção de bens. Ninguém em são juízo pode acreditar que um produto nacional insuficiente possa gerar o bem-estar coletivo pelo mero fato de ter criado pessoas mais ou menos do mesmo nível de miséria.

As palavras antigas de Jeferson parecem confirmadas pela história: "Não criarás a riqueza dos pobres, eliminando a riqueza dos ricos".

Sem produção abundante não há bem-estar social, mesmo porque todos os planos que interessam mais diretamente à qualidade de vida do cidadão dependem de grandes somas de dinheiro para implementação: desenvolvi- mento da educação, da saúde, da habitação, da ecologia...

Daí porque o fundamental é que as terras agrícolas produzam aquilo que o estado atual da tecnologia e as condições de investimento do país estão a permitir.

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Parcelar a propriedade produtiva é prenúncio quase certo de diminuição da produção com conseqüente degradação dos níveis sociais já atingidos. For- necer um pedacinho de terra a cada brasileiro e pensar que por aí estará resol- vido o problema da pobreza é uma doce quimera.

Do exposto resulta claro que o núcleo fundamental do conceito de preen- chimento da função social é dado pela sua eficácia atual quanto à geração de riqueza. Daí o porquê da propriedade produtiva vir excluída daquelas suscetí- veis de expropriação para fins de Reforma Agrária nos termos do art. 185, II.

Não há negar-se que mesmo uma produção superabundante não pode servir de pretexto para que se descumpram disposições relativas à preserva- ção do meio ambiente ou mesmo soneguem-se aos trabalhadores os direitos a que fazem jus.

12.2. Desapropriação

No início o monarca, detentor do poder soberano, apropriava-se das ter- ras que desejasse sem qualquer espécie de indenização. Não vigorava, pois, qualquer forma de legislação protetora do direito de propriedade contra a ação confiscatória do Estado.

Na verdade ele não se submetia às leis, transformando em direito os seus caprichos e as suas vontades.

Com a implantação do Estado de Direito, cessa esta ordem autoritária, despótica e consagradora de uma posição do indivíduo, coincidente com a de mero sujeito passivo das medidas régias, contra as quais não podia insurgir-se nem impor direitos próprios que pudessem coibir os abusos e limitar o âmbito da atuação monárquica.

Isto só se vai tornar possível com as profundas transformações advindas do Estado de Direito que, sem negar ao Poder Público a utilização de certa supremacia indispensável ao atingimento do bem público, vai contudo adstringi- la rigorosamente à ordem legal.

A supremacia deixa de ser assim uma manifestação do arbítrio para se tornar uma legítima manifestação do interesse público estritamente regulado pela lei.

No campo específico da propriedade surge a desapropriação. Esta, ao invés do que pode parecer à primeira vista, é um instrumento que historica- mente consolidou o direito de propriedade, pelo menos contra os atentados que sofria por parte do Estado.

Ao confisco sucede a desapropriação, aquele, não indenizável, imotiva- do, fruto do capricho e da voluntariedade, e esta, plenamente indenizável, só cabível nos casos legais, mediante prévia e justa indenização.

13. ACESSO AMPLO AO JUDICIÁRIO

O princípio da acessibilidade ampla ao Poder Judiciário nasceu com a Constituição de 1946, que tinha uma redação quase idêntica à atual:

"A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual".

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Pontes de Miranda, contudo, observa com muito acerto que este princí- pio já poderia ser tido como presente na Constituição de 1891, porque na verdade estava implícito na sistemática constitucional então adotada.

Com efeito, foi em 1891 que o Brasil se filiou à tripartição de Poderes, de maneira desenganada. E, como se sabe, o Sistema Constitucional então implantado inspirou-se em suas grandes linhas na Constituição americana. Esta filiação é muito importante para explicar o papel do Poder Judiciário na nossa história, ao qual sempre coube ser o recurso último para todas as lesões de direito, provenham elas de onde provierem.

É, portanto, um dos sustentáculos do Estado de Direito. Mas mais do que isto: alguns países preferem seguir o modelo francês que, nada obstante dar lugar também a um Estado de Direito, implanta uma repartição da função jurisdicional. Parte das questões são ajuizadas perante o Poder Judiciário, enquan- to outras têm de ser levadas a um contencioso administrativo, organismo que desempenha funções jurisdicionais sem contudo fazer parte das estruturas do Poder Judiciário. Nada disto ocorre no sistema constitucional brasileiro tal como consolidado a partir de 1891.

Desde então, firmaram-se duas idéias que, embora de conteúdos aparen- temente diversos, no fundo significavam a mesma coisa.

Uma é a de que toda lesão de direito, toda controvérsia, portanto, pode- ria ser levada ao Poder Judiciário e este teria de conhecê-la, respeitada a for- ma adequada de acesso a ele disposta pelas leis processuais civis.

A outra é a de que toda jurisdição, o que significa dizer, toda decisão definitiva sobre uma controvérsia jurídica, só poderia ser exercida pelo Poder Judiciário. Não haveria jurisdição fora deste, nem no Poder Executivo, nem no Poder Legislativo.

Este, portanto, é um traço que dificilmente pode ser enfatizado de maneira excessiva e que, de resto, a letra do atual dispositivo constitucional não deixa nenhuma dúvida a respeito:

"A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Isto significa que lei alguma poderá auto-excluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem poderá dizer que ela seja ininvocável pelos interessados perante o Poder Judiciário para resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação.

Algumas exceções históricas que este princípio sofreu se deram em períodos de não vigência do Estado de Direito. Nestas ocasiões, eram freqüentes de- terminados atos de força legislativa auto-excluírem-se da apreciação do Judi- ciário. Estas exceções, contudo, tinham sempre a sua vigência condicionada à manutenção do Estado autoritário. Desaparecido este, restaura-se, em sua plenitude, a acessibilidade ampla ao Poder Judiciário. Mesmo o contencioso administrativo a que se referia a Constituição de 1967 nunca chegou a ser regulamentado, nem mesmo teve o rompante de afirmar que suas decisões teriam força jurisdicional.

Portanto, o permissivo constitucional, criado pela Emenda n. 7/77 à Constituição de 1967, nunca teve o condão de implantar no Brasil um conten- cioso

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administrativo nos moldes do sistema europeu. O que se criou foi o que poderíamos chamar uma instância administrativa de curso forçado pela qual, satisfeitos certos requisitos constitucionais, exigia-se do interessado que primeiro percorresse a instância administrativa: mas nem mesmo este contencioso completamente desfigurado chegou a ser posto em prática por falta de regulamentação.

O que se poderia perguntar é se há respaldo no momento atual para cria- ção de instâncias administrativas de curso forçado. A resposta é sem dúvida negativa. Qualquer que seja a lesão ou mesmo a sua ameaça, surge imediata- mente o direito subjetivo público de ter, o prejudicado, a sua questão exami- nada por um dos órgãos do Poder Judiciário.

É certo que a lei poderá criar órgãos administrativos diante dos quais seja possível apresentarem-se reclamações contra decisões administrativas. A lei poderá igualmente prever recursos administrativos para órgãos monocráticos ou colegiados. Mas estes remédios administrativos não passarão nunca de uma mera via opcional. Ninguém pode negar que em muitas hipóteses possam ser até mesmo úteis, por ensejarem a oportunidade de uma autocorreção pela ad- ministração dos seus próprios atos, sem impor ao particular os ônus de uma ação judicial; mas o que é fundamental é que a entrada pela via administrativa há de ser uma opção livre do administrado e não uma imposição da lei ou de qualquer ato administrativo.

14. DIREITO ADQUIRIDO. ATO JURÍDICO PERFEITO. COISA JULGADA

14.1. Limites da Retroação da Lei na Constituição

Tem sido uma constante no nosso direito constitucional a preocupação com a tutela das situações já consolidadas pelo tempo.

Estas situações jurídicas nascidas no passado coincidiram com as pri- meiras declarações de direitos do homem e, mais especificamente no Brasil, com a primeira das constituições.

Raul Machado Horta trata do tema:

"A elaboração da idéia de direito adquirido vincula-se a permanência de facta praeterita, que a regra do Imperador Teodósio formulou no ano 440, em fa- moso enunciado romanístico, vedatório da revogação defacta praeterita pela lei:

"Leges et constitutiones futuris certum est dare formam negotiis, non ad facta praeterita revocari, nisi nominatim et de praeterito tempore et adhuc pendentibus negotiis cautum sit".

A situação preexistente e a lei posterior configuram ou não a existência do direito adquirido. A construção conceitual de direito adquirido impôs a fixação do princípio da imutabilidade e da irrevogabilidade da situação ante- rior por ato contrário e sucessivo, capaz de desfazê-la com dano ou prejuízo ao seu titular.

Como vantagem incorporada ao titular, a patrimonialização tornou-se inerente ao direito adquirido, criando situação individual e concreta. A segu- rança jurídica do direito adquirido contra sua mudança e desfazimento criou a regra técnica de defesa da posição

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vantajosa. Criação do direito anterior, que o consolidou, o direito adquirido se antepunha ao direito novo e às mu- danças decorrentes do novo direito. Expressão do direito novo, a lei como norma abstrata dispunha da virtualidade de criar o direito adquirido e, ao mesmo tempo, através da sucessão legislativa no tempo, anular esse direito pela revo- gação do princípio que o constituíra no direito antigo. A irretroatividade das leis tornou-se barreira protetora do direito adquirido, assegurando a perma- nência e a incompatibilidade entre o direito antigo e o novo direito legislativo. O direito adquirido representa a intangibilidade da lei no tempo. A irrevogabilidade da lei é técnica de proteção desse direito, assegurando a indevassabilidade da matéria regulada na lei antiga.

Colocado na confluência entre a lei antiga e a lei nova, compreende-se a precedência que o tempo mereceu no domínio do Direito Privado, atraindo a atenção dos civilistas. O desconhecimento, durante largo período histórico, da idéia material e documental da Constituição explica a elaboração do direi- to adquirido no domínio do Direito Civil, com o auxílio das categorias do Direito Privado, para proteção de interesses privados. Por outro lado, a con- centração da matéria constitucional, especialmente na fase de seu esplendor clássico, na organização dos Poderes do Estado, na composição e competên- cia de seus órgãos e na declaração genérica de direitos e garantias individu- ais, apartava o Direito Público do Direito Privado, com a decorrente impenetrabilidade das categorias privatísticas pelas nascentes normas publicísticas (...)" (Estudos de direito constitucional, p. 266-7).

Com efeito, como se sabe ser característica das leis a virtualidade de serem alteradas a qualquer tempo, nada do que se adquiriu no passado pode- ria nos proporcionar a certeza de que manteríamos no futuro. Até mesmo fa- tosjá inteiramente consumados no passado poderiam vir a adquirir uma carga de efeitos muito diferentes do que aqueles previstos pelas leis em vigor no tempo em que surgiram inicialmente. A condição humana, por falta de segu- rança jurídica, ficaria insuportável.

Sobre a necessidade dessa proteção, nada mais precisas do que as pala- vras de Vicente Ráo:

"A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis, o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso do seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, atra- vés do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas espe- ranças" (O direito e a vida dos direitos, v. 1, p. 428).

As nossas Constituições de 1824 e de 1891, nos seus arts. 179,111, e 11, § 3.o, respectivamente, tiveram a sua preocupação voltada para fulminar a utilização retroativa da lei. A partir de 1934, a matéria sofreu uma alteração. De certa forma reconheceu-se que há uma retroatividade neutra, ou até mes- mo benigna, isto é, ou não produz efeitos relativamente aos particulares, ou, se produz, o faz para melhorar a sua situação jurídica. É a chamada retroação benigna. Destarte, a Constituição dessa data passou a especificar quais as situações jurídicas insuscetíveis de sofrerem a retroatividade das leis, nomeadamente, a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido.

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Salvo a Constituição de 1937, todas as demais Constituições mantiveram- se fiéis à sacrossanta irretroatividade, respeitada, sempre, a formulação técnica consistente no resguardo da já clássica trilogia (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada).

14.2. Direito Adquirido

O que nos interessa, no momento, é consignar que a atual Lei de Introdução ao Código Civil, no art. 6.o, ao considerar como direitos adquiridos aqueles que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, assim como aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalte- rável, a arbítrio de outrem, é de muito pouca valia para o efeito da determina- ção dos exatos lindes do conceito de direito adquirido.

Toda conceituação é perigosa. A de direito adquirido é, contudo, um permanente desafio. Ouça-se, ainda uma vez, o insigne Vicente Ráo: "Seja qual for a doutrina que se aceite, o que não sofre dúvida é não haverem os juristas, até hoje, encontrado uma fórmula única e geral, aplicável a todos os aspectos do conflito das leis no tempo. E por haver-se, afinal, verificado a impossibilidade da compreensão de toda a disciplina em uma só fórmula, em um só princípio, Roubier, em sua citada exposição de motivos do ante- projeto de reforma do Código Civil francês, procura apresentar tantos prin- cípios, ou, quando menos, tantas regras gerais, quantas se revelarem neces- sárias" (O direito, cit., p. 441).

Nada obstante a precisão dessa advertência, cumpre extrair uma noção de direito adquirido que, embora não se alce às alturas de uma conceituação válida para qualquer sistema constitucional, ao menos serve ao nosso, posto que não é hermeneuticamente aceitável abster-se de aplicar a Constituição pela dificuldade que qualquer de seus termos possa encerrar.

14.2.1. Verificação da Ocorrência de Direito Adquirido

A idéia consubstanciada no art. 6.o da Lei de Introdução ao Código Civil pode ser de utilidade no campo do direito privado. Com efeito, neste, toda vez que algum particular possa exercer um direito contra outro particular, ele está investido de uma prerrogativa ante a qual o poder legiferante do Estado é impotente. Com isto quer-se significar que se o Estado prejudicasse o exercí- cio de um direito de um particular contra outro ele estaria sacrificando esse direito, o que, na melhor das hipóteses, não poderia ser feito no nosso direito sem uma integral indenização.

Essas considerações são, contudo, absolutamente insuficientes quando nos defrontamos com o problema do direito adquirido no campo publicístico. É que neste, muitas vezes, o indivíduo está no gozo de um direito e, portanto, com o seu exercício já iniciado e, inobstante isso, de direito adquirido não se trata.

Veja-se o permissionário de serviço público. O início da fruição das prer- rogativas que lhe confere a permissão não significa que ele não esteja submetido à força dispositiva atual do Poder Legislativo. E dizer, a causa do seu direito é, tão-somente, o fato de remanescer colhido pela eficácia de uma norma em vigor, mas, pela sua própria natureza, revogável a qualquer tempo. A mutação desta não implica, pois, sacrifício de direito, porque era da sua essência a sua alterabilidade.

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Em conclusão, portanto, deste tópico: toda vez que o indivíduo se situar, perante o ente estatal, colhido, tão-somente, por uma norma que não tem ou- tra finalidade senão definir a relação indivíduo/Estado, num dado momento, não há que se falar em direito adquirido vez que este repele a própria idéia de mutabilidade, a qual, por sua vez, é indispensável quando se trata de o Poder Público redefinir os termos debaixo dos quais ele vai atingir os seus sempre renovados cometimentos.

O que se conclui é que, nestas hipóteses, a Potestade Pública cassa direi- tos sem indenizar porque ela está no exercício da sua prerrogativa de redimen- sionar os parâmetros dentro dos quais ela procura se ater. Exemplificando: o Estado pode suprimir uma vantagem pecuniária, ainda não incorporada, por- que tal proceder é uma manifestação da prerrogativa ampla de dar nova subs- tancia aos direitos e deveres que ele concede ou impõe aos seus servidores, em razão das mutações das próprias conveniências e necessidades públicas.

Acontece, entretanto, que em outras hipóteses o Estado concede certos direitos que já não nutrem qualquer relação com um fato atual. Por exemplo: uma vantagem pecuniária para quem tenha praticado ato de bravura em guer- ra, ou mesmo uma vantagem pecuniária em decorrência de alguém ter cumprido algo no passado, mas a que se não mais encontra sujeito no presente.

Fica patente que nesses casos já não comparecem aquelas razões de conve- niência e oportunidade - de molde a justificar a permanente mutabilidade das situações normativas. Adversamente, o que existe é o implícito propósito da lei em ser permanente no tempo, ao menos para aqueles por ela já colhidos.

Em outras palavras, não se nega o direito de o Estado revogar dita lei. O que se veda é a possibilidade de ver-se o indivíduo desprotegido da lei que o beneficiou. Noutro falar, nesses casos a lei vigente se protrai no tempo para continuar disciplinando certas situações jurídicas mesmo após a sua revogação.

Dos exemplos dados se extrai que as vantagens criadas não têm sentido lógico senão a admitir-se que o seu beneficiário a elas tenha direito adquirido. O que adiantaria o Estado dar uma pensão ou gratificação por ato de bravura se a ele lhe fosse dado revogar tal. ato no mês seguinte? É óbvio que isto seria uma farsa. O Estado estaria gratuita e injustificadamente retirando o que ha- via definitivamente concedido, visto que tal concessão independia de qual- quer redefinição dos termos do relacionamento indivíduo/Estado. E dizer, o gesto de bravura tornou-se apto a ser a causa determinante de uma vantagem que não pode ser suprimida, pois que o próprio fato que a gerou também é insuscetível de ser eliminado.

Em síntese, o direito adquirido no campo publicístico surge toda vez que o legislador isola um tal fato (gesto de bravura, tempo de serviço etc.) e o considera, de per si, apto para ser a fonte geradora de um direito. Nestas hipóteses, o direito não pode ser senão da natureza dos adquiridos. Seria um contra-senso lógico inadmitir-se tal postulação.

14.2.2. Síntese Conclusiva

Não há dúvida que o problema do direito adquirido continua a ser um dos mais desafiantes da nossa época. Isto porque conflitam dois princípios de grande amplitude e que talvez sejam as vigas mestras do sistema jurídico. De um lado, o propósito de proporcionar

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segurança ao cidadão, respeitando tudo aquilo que adquiriu e patrimonializou em um tempo em que a própria lei vi- gente lhe facultava tal benefício.

De outra parte, não se pode ignorar a força própria da lei para regular todas as situações que constituem o seu objeto. A evolução social está a impor a constante mutação das leis.

Contudo, é preciso observar que a celeuma travada pelos tratadistas nem sempre se ateve aos pontos nodais da questão, muitas vezes transbordando para pontos com muito tênue conexão com o dos direitos adquiridos propria- mente ditos. Por exemplo: discutir se o ato há de ser válido ou não, ou melhor, se um ato nulo pode produzir direito adquirido, não é um tema próprio da teoria do direito adquirido, mas dos atos jurídicos em geral. Um ato nulo não é apto a produzir direito adquirido nem não adquirido.

Muito tem complicado também o exato deslinde do tema a constante referência ao caráter retroativo ou não da lei. É evidente que o princípio da não-retroatividade, embora não esculpido no nosso direito, é um princípio geral que compõe quase o que poderíamos chamar um mínimo civilizatório do mundo contemporâneo.

Daí porque praticamente problema nenhum colocam aqueles atos que foram

produzidos e geraram todos os seus efeitos debaixo da lei velha. Com relação a estes, seria um verdadeiro fenômeno de truculência jurídica a lei nova querer com eles imiscuir-se. O problema central se coloca no seguinte ponto: quando é que atos praticados no passado podem continuar a produzir efeitos que a lei nova já não autoriza? Aqui sim é que se faz necessária a proteção do direito adquirido.

No direito privado, enquanto as partes estão dispondo sobre tudo aquilo que lhes toca exçlusivamente, não há dificuldade em se continuar a respeitar, debaixo da lei nova, o que foi acertado pelos contratantes, a se tomar o exem- plo do contrato.

Mas mesmo aqui há que se notar que a ingerência do Estado em campos que na verdade não lhe dizem respeito vem transformando em disposições de ordem pública muito daquilo que no passado pertinia exclusivamente à vonta- de das partes. Esta publicização excessiva do direito diminui sem dúvida o campo de atuação do direito adquirido.

No campo do direito público, há que se banir qualquer preconceito no sentido de neste não ocorrerem os direitos adquiridos. Não é verdade. O Esta- do não teria condições de, com justiça, relacionar-se com os particulares se não respeitasse aqueles direitos que a eles deferiu de forma permanente. A problemática aqui é mais sutil, pois torna-se mais difícil o determinar-se quando se pode dar por satisfeito o requisito da Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 6.o, consistente na incorporação do direito no patrimônio do beneficiário.

Em direito público, o mais das vezes esta incorporação é impossível, porque está-se a tratar de bens indisponíveis pela Administração.

Mas são múltiplas as situações em que o Poder Público se engaja em compromissos com os particulares, dos quais não pode se esquivar, sob o funda- mento da mutabilidade permanente da lei.

A nosso ver são dois os critérios que podem fornecer resposta quanto à configuração ou não do direito adquirido nas relações de direito público: em primeiro lugar, a referência expressa que a lei possa fazer a esta circunstân- cia. Isto se dá toda vez que a

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própria lei instituidora da vantagem deixa claro o caráter perpétuo ou vitalício da mesma ou se utiliza da expressão incorpo- ração para tornar certo que se trata de vantagem ou benefício não mais sub- metido à força cambiante da lei.

O segundo critério é o que poderíamos chamar de teleológico. Aqui trata- se de examinar não a literalidade da norma, mas a sua racionalidade ou sua finalidade.

A pergunta a fazer-se é a seguinte: teria sentido esta norma sem admitir- mos o caráter de perdurabilidade do benefício por ela criado? Se a resposta for negativa, estaremos diante de um direito adquirido. Figuremos como exemplo uma lei em que o Estado outorgasse uma pensão mensal para praticantes de ato de bravura em guerra. Seria uma profunda deslealdade, incongruente com o sentido de justiça próprio do direito, admitirmos que, três meses após sua instituição, esta vantagem viesse a ser cassada em virtude de uma suposta revogação da lei que a criou.

14.3. Ato Jurídico Perfeito

A Constituição arrola como outra das garantias do cidadão em matéria de direito intertemporal o ato jurídico perfeito.

A rigor, o ato jurídico perfeito está compreendido no direito adquirido. Em outras palavras, não se pode conceber um direito adquirido que não adve- nha de um ato jurídico perfeito.

Parece que o constituinte teve mais em mira, ao cogitar desta matéria, de seus aspectos formais, vale dizer, é ato jurídico perfeito aquele que se aperfei- çoou, que reuniu todos os elementos necessários à sua formação, debaixo da lei velha.

Isto não quer dizer que ele encerre no seu bojo um direito adquirido, O que o constituinte quis foi imunizar o portador do ato jurídico perfeito contra as oscilações de forma aportadas pela lei.

Assim, se alguém desfruta de um direito por força de um ato que cum- priu integralmente as etapas da sua formação debaixo da lei velha, não pode ter este direito negado só porque a lei nova exige outra exteriorização do ato.

Não há que se confundir o ato jurídico perfeito com o ato consumado.

Este significa que o direito já foi gerado e exercido. Não há mais direito a ser feito valer no futuro. Já do ato se extraiu tudo o que podia dar em termos jurídicos.

O ato jurídico perfeito é aquele que, se bem que acabado quanto aos ele- mentos de sua formação, aguarda um instante ainda, ao menos virtual ou po- tencial, de vir a produzir efeitos no futuro. Pontes de Miranda aponta para outra distinção entre direito adquirido e ato jurídico perfeito. Para ele "o ato jurídico perfeito (...) é o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu; portanto, assim as declarações unilaterais de vontade como os negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos, como as reclamações, interpelações, a fixação de prazo para a aceitação de doação, as cominações, a constituição de domicilio, as notifi- cações, o reconhecimento para interromper a prescrição ou com sua eficácia (atos jurídicos stricto sensu)" (Comentários à Constituição de 1967, t. 5, p. 102).

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Ato jurídico perfeito, pois, é aquele que se encontra apto a produzir os seus efeitos. O mesmo Pontes de Miranda salienta que o direito adquirido decorreria diretamente da lei, enquanto o ato jurídico perfeito é negócio fun- dado em lei.

É forçoso reconhecer que esta distinção é bastante sibilina. Preferimos ficar com a nossa posição acima esboçada.

O ato jurídico perfeito é imunizado contra as exigências que a lei nova possa fazer quanto à forma. Assim, se alguém praticou um ato de doação, respeitando as previsões legais vigentes à época, este ato ganha condições de perdurabilidade no tempo, ainda que as condições para a sua prática já sejam outras à época em que ele for feito valer.

Portanto, é algo que diz muito mais respeito à forma do que à substância ou conteúdo.

O direito adquirido, pelo contrário, implica fazer valer um direito, cujo conteúdo já se encontra revogado pela lei nova.

Inegavelmente é um reforço da nossa proteção constitucional a situa- ções pretéritas, o ato jurídico perfeito.

14.4. Coisa Julgada

Coisa julgada é a decisão do juiz de recebimento ou de rejeição da demanda da qual não caiba mais recurso.

É a decisão judicial transitada em julgado.

Com efeito, o Poder Judiciário não poderia preencher o seu papel de asse- gurador da certeza e da segurança jurídica se fosse possível indefinidamente renovarem-se os recursos. É preciso que haja um ponto final, um término da de- manda. É a este tipo de decisão que a Constituição assegura a proteção contra a lei. O que isto significa? Significa que não se podem reabrir processos cujas de- cisões finais já estão revestidas da força de coisa julgada, para efeito de rejulgá-las à luz de um novo direito. A proteção que se dá à coisa julgada é, portanto, um caso particular da proteção mais ampla dispensada ao direito adquirido. Este incorporou-se ao patrimônio de seu titular independentemente do trânsito judicial.

Na coisa julgada, o direito incorpora-se por força da proteção que rece- be da imutabilidade da decisão judicial. Daí falar-se em coisa julgada formal e material.

Coisa julgada formal é aquela que se dá no âmbito do próprio processo. Seus efeitos restringem-se, pois, a este, não extrapolando-o.

A coisa julgada material, ou substancial, existe, nas palavras de Couture, quando "à condição de inimpugnável no mesmo processo, a sentença reúne a imutabilidade até mesmo em processo posterior" (Fundamentos do direito processual civil, p. 346).

Com as palavras de Wilson de Souza Campos Batalha, coisa julgada formal significa sentença transitada em julgado, isto é, preclusão de todas as impugnações; coisa julgada material significa o bem da vida, reconhecido ou denegado pela sentença irrecorrível.

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O problema que se põe, do ângulo constitucional, é o de saber se a proteção assegurada pela Lei Maior é atribuída tão-somente à coisa julgada material ou também à formal.

A resposta mais consentânea com a índole do dispositivo sob comento é a de assegurar uma proteção integral das situações de coisa julgada, quais- quer que sejam as discriminações que os processualistas venham a fazer, mesmo porque a Constituição não faz qualquer discriminação.

Dois são os traços fundamentais da coisa julgada. Um, a irrecorribilidade a que alude a Lei de Introdução ao Código Civil, ao definir a coisa julgada como a decisão judicial de que já não caiba recurso. Outro, a imutabilidade, traço importante que distingue a parte da decisão que se reveste desta preclusão máxima de outras questões do processo que só ficaram preclusas dentro dele.

É muito precisa a definição de Themístocles Brandão Cavalcanti ao dis- correr sobre o verbete "Coisa julgada", no Repertório Enciclopédico do Di- reito Brasileiro, coordenado por Carvalho Santos.

Para ele, coisa julgada "é a sentença irrecorrível que decide total ou par- cialmente a lide e tem força de lei dentro dos limites das questões decididas".

15. DIREITO AO JURI

O júri é um órgão que exerce função jurisdicional sem ser composto por juízes de carreira ou mesmo por especialistas em direito.

Seu nascimento deu-se na Inglaterra, onde foi visto como um importante direito fundamental do cidadão, consistente em ver-se julgado pelos seus pares.

Diversos autores apontam o caráter místico e religioso de que era imbu- ído este Tribunal, também constituído de doze membros em lembrança dos doze apóstolos que haviam recebido a visita do Espírito Santo.

Embora obviamente este seu caráter inicial hoje não esteja mais presente, o fato é que nele continua a ver-se uma prerrogativa democrática do cidadão, uma fórmula de distribuição da justiça feita pelos próprios integrantes do povo, voltada, portanto, muito mais à justiça do caso concreto do que à aplicação da mesma justiça a partir de normas jurídicas de grande abstração e generalidade.

É fácil compreender que um órgão com esta natureza deveria suscitar grandes controvérsias em países outros que não aqueles em que o instituto se desenvolveu dentro do contexto cultural próprio.

Em países como o Brasil, em que embora adotado desde a primeira das nossas Constituições não foi cercado daqueles mesmos antecedentes histó- ricos dos países de influência anglo-saxônica, o júri não apresenta a mesma unanimidade em torno da sua defesa nem uma coesão popular voltada à sua manutenção.

Talvez por estas razões e outras ainda, que não nos cabe aqui considerar, o desempenho do júri no Brasil tem sido apenas sofrível. Não é nada infreqüente o predomínio da emotividade sobre a racionalidade. Entretanto, quer-nos pa- recer que a

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inspiração do instituto, a idéia de que ao lado de uma justiça mais técnica e profissional possa existir uma outra que reflita a visão da própria sociedade, continuará a ter muita influência e a assegurar a sua legitimidade e durabilidade.

A Constituição que lhe deu tratamento mais extenso foi a de 1946, que no seu art. 141, § 28, estipulava:

"É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar".

A Constituição de 1967 preferiu um tratamento lacônico, a revelar pou- ca estima pelo instituto:

"É mantida a instituição do júri que terá competência nos crimes dolosos contra a vida".

O atual Texto retoma de certa forma as tradições do de 1946. Na verda- de só desprezou a exigência do número ímpar de seus membros, o que contu- do pode continuar assegurado pela legislação ordinária.

16. DIREITO À NÃO-EXTRADIÇÃO

16.1. Brasileiro

A extradição consiste na transferência compulsória de um indivíduo de um Estado para outro, requerida por este último para que aí responda a pro- cesso ou cumpra pena. A extradição pois funda-se no poder soberano do Esta- do e decorre da preexistência de tratados ou compromissos de reciprocidade que vinculam estes mesmos Estados. É dizer, desde logo se percebeu que seria fonte de grande impunibilidade se o delinquente, pelo simples fato de ter-se evadido do país do crime, pudesse também escapar às punições da lei.

Daí ter-se iniciado uma malha formada por tratados internacionais que estabelecem o dever de extraditar.

A extradição é radicalmente diversa da expulsão. Esta é uma medida que um Estado toma e que consiste em expelir do seu território um estrangeiro por nele ter entrado irregularmente, ou por ter praticado atentados à ordem jurídica do país em que se encontra. Os fatores de discriminação são basicamente dois: em primeiro lugar, o requerimento do Estado que solicita a extradição. Em se- gundo lugar, o fato de o crime não ter sido praticado no Estado que extradita.

A regra mais encontrável é a do Estado não extraditar os seus nacionais, regra que vinha perfeitamente configurada no direito anterior, que dispunha:

"Não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião, nem, em caso algum, a de brasileiro" (EC n. 1/69, art. 153, § 19).

O atual Texto traz duas inovações: uma, para tornar certo um entendi- mento que já era esposado por alguns, com base na Lei n. 6.815, sob a égide do Texto anterior, qual seja: o de que o naturalizado pode ser extraditado em caso de crime comum praticado antes

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da naturalização. O que se dizia é que bastaria um cancelamento da naturalização por fraude à lei, ao que se seguiria o ato de extradição.

Não há dúvida contudo que a consagração desta medida no próprio Tex- to Constitucional veio eximi-la de qualquer controvérsia.

A outra exceção atine também ao naturalizado. Agora ele se toma extra- ditável se envolvido em tráfico internacional ilícito de drogas e entorpecentes.

Não discrimina a Constituição se o envolvimento é anterior ou posterior à naturalização, o que evidentemente o torna passível da medida em ambas as hipóteses.

O Texto Constitucional faz remissão à lei que deverá regulamentá-lo.

Atualmente estão em vigor o Estatuto dos Estrangeiros (Lei federal n. 6.815/80, arts. 76 a 94) e o RISTF, que disciplina a extradição nos seus arts. 207 a 214.

De qualquer forma, não se encontra ainda regulamentada a última hipó- tese de extradição por envolvimento com tóxicos.

Há dois requisitos básicos em geral a serem satisfeitos para que haja extradição. Um é o prévio pronunciamento do STF sobre a legalidade e a procedência do pedido (RISTF, art. 207); outro é que o extraditando tenha sido preso e colocado à disposição do tribunal, sem o que não terá andamento o pedido (art. 208).

A título de esclarecimento registre-se que o Estado requerente da extradição poderá ser representado por advogado para acompanhar o processo perante o tribunal.

Além disso, o extraditando permanecerá na prisão até o julgamento fi- nal (art. 213).

É bom notar ainda que ao Presidente da República compete a faculdade de consumar a extradição, isto é, mesmo que já aprovada pelo STF, a medida pode deixar de ter seguimento, se assim o entender a mais alta autoridade do País.

Os portugueses que estejam em gozo do instituto da equiparação não estão sujeitos, nas infrações penais comuns, à extradição, salvo se requerida pelo próprio governo português (Decreto n. 70.391/72, que promulgou a conven- ção firmada entre Brasil e Portugal, instituindo a dupla cidadania).

16.2. Estrangeiro

Há uma tendência do direito em tratar mais benevolamente os crimes de natureza política. Reconhece-se que aí o infrator é movido por ideais nobres, quais sejam: os de influir nos destinos da coisa pública. É em nome desta maior benevolência que o nosso direito constitucional consagra a não-extradição de estrangeiros pela prática de crime político ou de opinião.

Com muito melhor razão ainda, não serão extraditáveis os próprios brasi- leiros cujas duas únicas exceções foram estudadas no parágrafo anterior.

Embora portanto extraditável o estrangeiro, ele há de o ser pela prática de crime comum e não por aquele de natureza política ou de opinião.

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A delimitação exata do que seja crime político não é fácil. Em algumas hipóteses, a presença do elemento político é exclusiva e nestes casos, aí sim, a determinação da sua natureza é muito simples.

Trata-se daquelas hipóteses em que o indivíduo agride as leis de prote- ção do Estado, contrariando suas determinações no que diz respeito ao acatamento de certa ideologia, a não-controvérsia sobre certos dogmas, a intocabilidade crítica das autoridades ou do próprio regime político e social. Em todos esses casos a lesão se perpetua contra normas que no fundo têm por proteção o regime e os governantes. É o crime político por excelência. Na quase-totalidade das vezes, de resto, o próprio comportamento tido por criminoso só o é em face das leis autoritárias do Estado.

Por óbvio em um regime democrático, na vigência das liberdades públi- cas, certamente tais atos nem delituosos seriam.

A seguir, há aqueles crimes que já têm uma consistência no próprio do- mínio do direito penal comum, mas que são praticados por móveis políticos. Um exemplo seria o homicídio praticado contra uma autoridade por se considerá-la traidora da pátria.

Ainda estes casos têm sido albergados como crimes políticos. Mais recen- temente, contudo, dado o vulto assumido pelo terrorismo internacional, já as- soma uma certa resistência a considerar-se como político todo crime pratica- do com este fundamento. É que no mais das vezes as práticas delituosas assu- mem aspectos revoltantes e acabam por atingir pessoas inocentes, o que já faz brotar um verdadeiro repúdio internacional ao terrorismo e ao seqüestro.

17. DIREITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL

O processo, no mundo moderno, é manifestação de um direito da pessoa humana. Por esta razão, as Constituições se interessam por discipliná-lo, a fim de impedir que leis mal elaboradas possam levar à sua desnaturação, com o conseqüente prejuízo dos direitos subjetivos que deve amparar.

O grande processualista Couture fala mesmo em uma tutela constitucio- nal do processo e que tem o seguinte conteúdo: a existência de um processo contemplado na própria Constituição. Em seguida, a lei deve instituir este processo, ficando-lhe vedada qualquer forma que torne ilusória a garantia materializada na Constituição.

Qualquer lei que burle este propósito é inconstitucional.

Finalmente, devem existir meios efetivos de controle da constitucionalidade das leis a fim de anular estas tentativas de desnaturação (Fundamentos del derecho procesal civil, p. 148).

Frederico Marques observa que "essas garantias encontram sua síntese na exigência constitucional do devido processo legal, ou processo justo, que as leis de processo estão obrigadas a adotar" (Tratado de direito processual penal, v. 1, p. 151-2).

Observa ele ainda que, de há muito, "preceitos destinados a assegurar os direitos do acusado se encontravam aceitos como parte integrante das Cons- tituições ou das

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proclamações dos direitos do homem, antecipando-se, neste passo, às garantias hodiernas sobre o processo civil" (p. 152).

Assim é que na Itália a Corte Constitucional vem exercendo sério con- trole sobre o Código de Processo Penal de 1930, expungindo-o de tudo o que possa estar em contradição com a Constituição de 1948.

O direito ao devido processo legal é mais uma garantia do que propria- mente um direito.

Por ele visa-se a proteger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado. Colima-se, portanto, a aplicação da lei.

O princípio se caracteriza pela sua excessiva abrangência e quase que se confunde com o Estado de Direito. A partir da instauração deste, todos passa- ram a se beneficiar da proteção da lei contra o arbítrio do Estado.

É por isto que hoje o princípio se desdobra em uma série de outros direi- tos, protegidos de maneira específica pela Constituição.

A doutrina diz, por exemplo, serem manifestações do "devido processo legal": a) o princípio da publicidade dos atos processuais; b) a impossibilida- de de utilizar-se em juízo prova obtida por meio ilícito; c) o postulado do juiz natural; d) contraditório; e) procedimento regular.

O due process of law se concretiza para a parte a partir do momento em que ela tenha acesso ao Judiciário e possa se defender amplamente.

Contudo, a sua enunciação no Texto Constitucional não é inútil, pelo con- trário, ela tem permitido o florescer de toda uma construção doutrinária e jurisprudencial que tem procurado agasalhar o réu contra toda e qualquer sorte de medida que o inferiorize ou impeça de fazer valer as suas autênticas razões.

A sua origem histórica data da Carta Magna que tornava certo que nin- guém seria despojado de sua vida, de sua liberdade ou propriedade senão em virtude do devido processo legal (art. 39).

18. DIREITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA

O art. 5.o, LV, da Constituição, estabelece que aos litigantes, seja em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Por ampla defesa deve-se entender o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. É por isso que ela assume múltiplas dire- ções, ora se traduzindo na inquirição de testemunhas, ora na designação de um defensor dativo, não importando, assim, as diversas modalidades, em um primeiro momento.

Não é só em juízo que se impõe a observância de procedimento que possibilite a defesa. Também em processo administrativo deve ficar assegura- da essa condição.

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Por ora basta salientar o direito em pauta como um instrumento assegurador de que o processo não se converterá em uma luta desigual, em que ao autor cabe a escolha do momento e das armas para travá-la e ao réu só cabe timidamente esboçar negativas. Não, forçoso se faz que ao acusado se possibilite a colocação da questão posta em debate sob um prisma conveniente à evidenciação da sua versão.

É por isto que a defesa ganha um caráter necessariamente contraditório. É pela afirmação e negação sucessivas que a verdade irá exsurgindo nos autos. Nada poderá ter valor inquestionável ou irrebatível. A tudo terá de ser assegu- rado o direito do réu de contraditar, contradizer, contraproduzir e até mesmo de contra-agir processualmente. Ligado historicamente ao direito penal, o direito à ampla defesa e ao contraditório, hoje, por força do novo Texto, trata-se de uma garantia aos acusados em geral.

Temos que para a sistematização do tema cumpre desdobrá-lo em dois pontos, que trataremos sucessivamente. Em primeiro lugar, o conteúdo dessas garantias; em segundo, os seus destinatários.

O conteúdo da defesa consiste em o réu ter iguais possibilidades às conferidas ao autor para repelir o que é contra ele associado. Essa igualização não pode ser absoluta porque autor e réu são coisas diferentes. Uma mesma faculdade conferida a um e a outro poderia redundar em extrema injustiça. A própria posição espe- cífica de cada um já lhes confere vantagens e ônus processuais. O autor pode escolher o momento da propositura da ação. Cabe-lhe, pois, o privilégio da iniciativa, e é óbvio que esse privilégio não pode ser estendido ao réu, que há de acatá-lo e a ele submeter-se. Daí a necessidade de a defesa poder propiciar meios compensatórios da perda da iniciativa. A ampla defesa visa pois a restau- rar um princípio da igualdade entre as partes que são essencialmente diferentes.

A ampla defesa só estará plenamente assegurada quando uma verdade tiver iguais possibilidades de convencimento do magistrado, quer seja ela alegada pelo autor, quer pelo réu. As alegações, argumentos e provas trazidos pelo autor é necessário que corresponda uma igual possibilidade de geração de tais elementos por parte do réu.

O contraditório, por sua vez, se insere dentro da ampla defesa. Quase que com ela se confunde integralmente na medida em que uma defesa hoje em dia não pode ser senão contraditória. O contraditório é pois a exteriorização da própria defesa. A todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou ainda de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.

Daí o caráter dialético do processo que caminha através de contradições a serem finalmente superadas pela atividade sintetizadora do juiz.

É por isto que o contraditório não se pode limitar ao oferecimento de oportunidade para produção de provas.

É preciso que o próprio juiz avalie se a quantidade de defesa produzida foi satisfatória para a formação do seu convencimento.

Portanto, a ampla defesa não é aquela que é satisfatória segundo os cri- térios do réu, mas sim aquela que satisfaz a exigência do juízo.

No que diz respeito aos destinatários, impõe-se reconhecer que o dispo- sitivo procurou ser de extrema abrangência. Com efeito, além de tornar certo que o preceptivo se

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volta aos litigantes em processo judicial, conferiu igual destinação aos envolvidos em processos administrativos. Esta inclusão foi ex- tremamente oportuna porque veio a consagrar uma tendência que já se mate- rializava no nosso direito, qual seja: a de não dispensar estas garantias aos indiciados em processos administrativos. Embora saibamos que as decisões proferidas no âmbito administrativo não se revestem do caráter de coisa julgada, sendo passíveis portanto de uma revisão pelo Poder Judiciário, não é menos certo, por outro lado, que já dentro da instância administrativa podem perpe- trar-se graves lesões a direitos individuais cuja reparação é muitas vezes de difícil operacionalização perante o Judiciário.

Daí porque esta preocupação em proteger o acusado no curso do próprio processo administrativo pode ser muito vantajosa, mesmo porque quanto me- lhor for a decisão nele alcançada, menores são as chances de uma renovação da questão diante do Judiciário.

18.1. A Prova Obtida por Meio Ilícito

Sabe-se que nenhum direito reconhecido na Constituição pode revestir- se de um caráter absoluto. Veja-se, por exemplo, o direito à propriedade: a concepção individualista deste direito foi abandonada em razão da função social que devem cumprir os bens para a realização do bem comum. O direito à propriedade permanece, mas as restrições se estabelecem para um melhor condicionamento do exercício dêste direito dentro da convivência social.

Da mesma forma, o direito à prova, derivado da ampla defesa, não sig- nifica que o interessado possa valer-se a qualquer momento de qualquer pro- va, mas, apenas, que pode utilizar-se daquelas provas aptas a evidenciar os fatos cruciais a serem apreciados, ou seja, daquelas que podem influenciar no julgamento; o que contribui também para a celeridade da prestação jurisdicional, elemento essencial para a efetivação da Justiça.

Tal concepção limitada do direito à prova reforça-se quando lembramos que a garantia da ampla defesa não pode se desvincular do princípio do con- traditório. Ou seja, cabe ao Estado zelar pela "paridade de armas" entre os sujeitos do processo, dando-lhes as mesmas possibilidades de pleitear a pro- dução de provas. Atitude esta que só pode se efetivar pela delimitação da possibilidade da produção de provas ao campo do lícito e do legítimo.

Antes da Constituição de 1988, a legislação processual já previa diversas hipóteses de inadmissibilidade de provas, não apenas restringindo-se ao campo do lícito e do legítimo, mas também ao da praticidade, como ocorria com a proibição da prova exclusivamente testemunhal para comprovar a existência de contrato com valor superior a dez salários mínimos (art. 401 do CPC).

Ademais, o Código de Processo Civil no art. 332 admitia apenas as pro- vas obtidas por meios legais e legítimos. Disposição que sempre se aplicou ao processo penal pelo que dispõe o art. 3.o do Código Processual Penal.

Por sua vez, o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei n. 1.002, de 21-10-1969) também permitia a produção de qualquer espécie de prova, desde que esta não atentasse contra a moral, a saúde ou a segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia ou a disciplina militares (art. 285).

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Esclareça-se que existem duas modalidades pelas quais uma prova pode ser ilícita. A primeira refere-se à forma de geração de prova, isto é, a ilicitude resultaria do não-cumprimento dos dispositivos processuais previstos para a produção de determinada prova, ou então da adoção de meios não autorizados pela lei processual, o que de certa forma é a mesma coisa.

Todavia, há outra modalidade pela qual a prova pode ser ilícita: quando, nada obstante adotarem-se procedimentos aceitos pelo direito, do ponto de vista adjetivo ou processual, atenta-se contra um direito individual. Como exemplo podemos citar a gravação de conversas telefônicas. Embora o procedimento con- sistente na utilização de um gravador possa ser aceitável, há uma interceptação telefônica, o que lesa o sigilo das comunicações telefônicas, assegurado pelo inc. XII do art. 5.o da Constituição Federal. A distinção ora feita é aceita pela doutrina, embora os autores se percam na tentativa de uniformizar uma terminologia.

Segundo alguns doutrinadores, quando a proibição é colocada por uma lei processual, a prova seria ilegitimamente produzida e quando a proibição é de natureza material, a prova seria ilicitamente obtida.

Feita esta distinção, a pergunta que se coloca é a de se saber a qual destas ilicitudes (material ou processual) se refere o Texto Constitucional. Levando em conta a regra de hermenêutica, segundo a qual a Constituição deve ser interpretada de acordo com o sentido mais comum das palavras, e uma outra, comum a todo o direito, que diz que onde a norma não discrimina não cabe ao intérprete fazê-lo, é de rigor concluir-se que os meios ilícitos a que alude a Constituição abarcam tanto os que ofendem a lei processual como a material. Na verdade, vê-se que a expressão escolhida pelo constituinte é suficientemente ampla para colher quaisquer formas de ilegalidade.

Apesar de já ser do conhecimento de todos estas limitações ao direito de prova, sempre houve certa imprecisão na discussão doutrinal, pois sempre se admitiu que somente há limitação de um direito fundamental se esta advém de uma previsão geral de índole constitucional.

Desta forma, o inc. LVI do art. 5.o da Constituição não apenas ratifica uma tradição legislativa brasileira - segundo a qual cabe ao direito repugnar a ilicitude dos atos, não importando ao que eles se refiram -, mas soluciona definitivamente o impasse doutrinário apontado, pois a limitação ao direito de prova advém da própria Constituição de 1988.

19. PRISÃO EM FLAGRANTE

Este preceito garante o direito à segurança, que, fundamentalmente, consiste na possibilidade do exercício tranqüilo da liberdade e dos direitos sem sofrer coações ou violências. Mais precisamente, protege-se a liberdade contra a prisão.

A liberdade não é passível de ser assegurada em abstrato. Ela será, sem- pre, a ausência de restrições para o exercício de uma faculdade humana.

Aqui cuida-se, portanto, como se viu, de assegurar a liberdade contra uma das medidas de que nenhum Estado pode abrir mão, qual seja a de excepcionar esse direito para os fins de aplicar sobre o indivíduo penas pri- vativas de liberdade.

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O inciso procura, portanto, compatibilizar esses dois aspectos da questão. Existe a prisão legítima, sem dúvida. Fundamenta-a muito bem Manoel Gonçalves Ferreira Filho: "A Sociedade, todavia, para se defender precisa cercar a liberdade física dos que atentam contra as normas essenciais de convivên- cia, prendendo-os. Para atender a essa necessidade cumpre não desvestir o indivíduo de sua segurança. Por isso a prisão somente há de caber em duas hipóteses: a do flagrante delito e a da ordem de autoridade" (cf. Comentários à Constituição brasileira, 3. ed., São Paulo, Saraiva, p. 603).

Quanto à prisão em flagrante, dispõe o art. 301 do Código de Processo Penal: "Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito".

Qualquer pessoa é passível de prisão em flagrante, contudo há casos especiais, como se dá com os representantes diplomáticos, que gozam do pri- vilégio de não ser sujeito passivo de prisão em flagrante. Há, também, certas autoridades cuja prisão em flagrante é disciplinada por legislação própria, como se dá com o juiz de direito ou com o promotor de justiça.

O deputado e o senador também têm tratamento especial em matéria de flagrante, disciplinado nessa própria Constituição (cf. art. 53, § 1.o).

O Texto Constitucional anterior falava tão-somente em autoridade para referir-se ao agente capaz de ordenar a prisão. O Texto atual deixa claro que a autoridade há de ser a judiciária. Ficam excluídas, portanto, as prisões para averiguações. É dizer, aquela modalidade de constrição física consistente em ser o mero suspeito levado à delegacia, lá permanecendo preso até que as autoridades policiais levem a cabo a formação da sua convicção. Esta moda- lidade de prisão está excluída do nosso direito.

A contrapartida, no entanto, é que o Poder Judiciário disponha de um plantão permanente para que possam as autoridades policiais, a qualquer mo- mento, obter uma ordem judiciária. Seria o cúmulo que o identificado pela vítima não pudesse imediatamente ser preso e fosse necessário deixá-lo esca- par, sob o fundamento de que não está presente a ordem judiciária.

José Celso de Mello Filho (cf. Constituição Federal anotada, 2. ed., São Paulo, Saraiva, p. 446) nos dá conta da repulsa do nosso Poder Judiciário pelas aludidas prisões para averiguações. A seguir, nos cita hipóteses que, à altura da redação da obra, se lhe afiguravam passíveis de prisão com tal finalidade.

Das três que elenca, remanescem duas: uma até mesmo erigida ao nível da própria Constituição, que é o caso das transgressões militares. A outra, da suspensão momentânea das garantias constitucionais, por força do estado de defesa e do estado de sítio.

Fica excluída a terceira, outrora admissível, mas que deixa de encontrar respaldo na atual Constituição, qual seja a de prisão com fundamento na Lei de Segurança Nacional.

A Constituição, ainda, alude a crime propriamente militar, como enseja- dor da prisão, independente de ordem judicial. É bom notar, todavia, que, tanto no que diz respeito à transgressão militar, como ao crime propriamente militar, exige-se a definição em lei dos casos que comportam a medida restritiva. A transgressão diz com a mera disciplina militar, que enseja, pois, uma pena privativa da liberdade, sem, contudo, caráter penal.

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É um caso de prisão administrativa. Essas hipóteses, ainda que dispensa- doras da ordem judiciária, não excluem a necessidade de ordem de uma autoridade administrativa competente. Qualquer manifestação de incompetência na edi- ção do ato levará ao relaxamento da prisão, até por incidência do próprio art. 5.o, LIII, desta Constituição, que diz: "Ninguém será processado nem senten- ciado senão pela autoridade competente".

20. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

Os direitos individuais tornar-se-iam letra morta se não fossem acompa- nhados de ações judiciais que pudessem conferir-lhes uma eficácia compatí- vel com a própria relevância dos direitos assegurados. Assim é que essas ga- rantias, como se denominam essas ações, têm surgido pari passu com a apa- rição dos próprios direitos fundamentais. Tal se deu com o direito de liberda- de, confundido com o próprio instrumento que o assegura, o habeas corpus, que data da Carta Magna.

Com o correr dos tempos, com a complexidade cada vez maior da ordem jurídica, é necessário agregarem-se novos instrumentos de garantia de direi- tos. Destaca-se nesse contexto o mandado de segurança, instrumento adequa- do para atacar o ato público lesivo de direito líquido e certo. A própria Cons- tituição de 1988 inovou no campo dos instrumentos ou das garantias constitu- cionais introduzindo modelos recém-criados no direito estrangeiro, como o habeas data, ou até mesmo criando um originário do direito brasileiro, que é o mandado de injunção.

O perfil constitucional destas ações, conhecidas por garantias constitu- cionais, nada obstante também se constituírem em direitos, são direitos de ordem processual, são direitos de ingressar em juízo para obter uma medida judicial com uma força específica ou com uma celeridade não encontrável nas ações ordinárias. São, pois, desses direitos que passaremos a examinar o respectivo perfil constitucional.

20.1. Habeas Corpus

20. 1. 1. Histórico

O habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal.

Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os de- mais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de locomover-se em razão de violência ou coação ilegal.

As raízes deste instituto encontram-se na Magna Carta de 1215, documento de transcendental importância no processo de fixação jurídica dos princípios de liberdade pessoal.

Nela encontram-se dois dispositivos com referência ao tema: "Nenhum homem livre será detido ou preso ou esbulhado, ou proscrito, ou exilado, ou de qualquer modo lesado; e não iremos contra ele, nem enviaremos alguém contra ele, sem o julgamento

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legal de seus pares, conforme a lei da terra"; e "A ninguém venderemos, a ninguém negaremos ou retardaremos o direito ou a justiça".

A verdade é que nos séculos subseqüentes, a eficácia do habeas corpus nem sempre foi pacífica. Surgiram procedimentos destinados a frustrá-lo e a fraudá-lo. Daí porque no século XVII reacende-se a chama da luta pela liber- dade pessoal. Manifesta-se já na Petition of Rights e culmina com o Habeas Corpus Act de 1679 no reinado de Carlos II. É como que uma ratificação da Magna Carta extraída do rei João Sem Terra. Para alguns, só nesta época o instituto verdadeiramente toma corpo.

Mas a luta pela configuração plena do habeas corpus não havia termina- do. Até então ele só era utilizado quando se tratasse de pessoa acusada de crime, não sendo utilizável em outras hipóteses. Daí a razão de ser de outro Habeas Corpus Act, este de 1816, que amplia o campo de atuação e incidên- cia do instituto, para colher a defêsa rápida e eficaz da liberdade individual.

O certo é que, nascido no direito inglês, ele de lá se irradia para o mun- do. Inicialmente levado pelos colonizadores da América do Norte e depois pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

20.1.2. Habeas Corpus no Nosso País

No Brasil, a nossa Constituição de 1824 não consagrou o instituto do habeas corpus. Relegou-o à legislação ordinária que o disciplinou no art. 340 do Código de Processo Criminal de 1832, que rezava:

"Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou cons- trangimento ilegal, em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de "Ha- beas Corpus" em seu favor".

Isto não quer dizer que a Constituição de 1824 tenha ignorado o proble- ma da liberdade. Pelo contrário, a proclamava de modo enfático no n. 8 do art. 179, que diz:

"Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declara- dos na lei; e nestes, dentro de 24 horas, contadas da entrada na prisão, sendo em cidades, vilas ou outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz, e nos lugares remotos, dentro de um prazo razoável, que a lei marcará, atenta à extensão do território, o juiz, por uma nota por ele assinada, fará constar ao réu o motivo da prisão, o nome do seu acusador, e os das testemunhas, havendo-as".

Descurou, na verdade, da instituição de um meio assecuratório juridica- mente eficaz como o é o habeas corpus.

Este surge na Constituição de 1891, art. 72, § 22:

"Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder".

20.1.3. Habeas Corpus Preventivo e Suspensivo

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A partir daí, as sucessivas Constituições brasileiras o retomam, enrique- cendo-o. Surgem duas modalidades desta ação: o habeas corpus, denominado preventivo, a ser feito valer antes da perpetração da violência ou da coação, com o objetivo de impedi-las, e o habeas corpus suspensivo, a ser utilizado pelo indivíduo quando já consumadas a violência ou a coação. Nesta hipóte- se, o objetivo da medida é liberar o paciente.

20.1.4. Teoria Brasileira do Habeas Corpus

Embora, como demonstrado no apanhado histórico do instituto, o ha- beas corpus seja voltado à proteção da liberdade física do indivíduo, preser- vando-a contra quaisquer das modalidades que possam ofendê-la ou pô-la em perigo, no Brasil, todavia, no período de 1891 a 1926, assistiu-se a uma am- pliação da incidência desta medida constitucional, de tal sorte que por meio dela tornaram-se defensáveis jurisdicionalmente outros direitos. Bastava para tanto que o exercício destes ficasse na dependência da liberdade de locomo- ção física. Como observa José Celso de Mello Filho, "o habeas corpus pas- sou, então, a tutelar, no plano judicial, o direito de ir, vir e permanecer, ainda quando este pudesse, na simples condição de direito-meio, ser afetado apenas de modo reflexo, indireto ou oblíquo" (Constituição Federal anotada, p. 459).

O mentor intelectual desta doutrina foi Rui Barbosa. Ela deixa de vigo- rar com a grande reforma constitucional de 1926, que dá uma redução tal ao instituto de sorte a restringi-lo ao seu figurino clássico.

A partir de 1934, surge o mandado de segurança, o que elimina as reais causas que estiveram por trás da formulação da teoria brasileira do habeas corpus. É que sempre se ressentiu a ausência de meios adequados para prote- ção de outros direitos que não o da locomoção. Com a garantia instituída na Constituição de 1934, tornam-se protegidos os demais direitos, desde que líquidos e certos, mesmo quando obliquamente venham a afetar a liberdade pessoal.

20.1.5. Legitimidade Ativa

O Texto Constitucional não especifica quem pode requerer o habeas cor- pus. Assim sendo, andou bem a legislação infraconstitucional ao dar uma am- plitude quase absoluta ao tema. Diz o art. 654 do Código de Processo Penal que:

"O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público".

Em conseqüência, pode requerer a medida o próprio paciente ou qual- quer pessoa mesmo destituída de capacidade postulatória. Destarte, não im- porta se nacional ou estrangeira, física ou jurídica, em seu próprio nome ou no de outrem, qualquer um pode impetrar medida de habeas corpus. Registra-se ligeira tergiversação quanto à capacidade do postulante. Alguns autores a exigem, outros a dispensam. Dentre os primeiros cite-se Antonio Macedo de Campos. Dentre os segundos, José Celso de Mello Filho, Pontes de Miranda, Damásio E. de Jesus.

Com relação à pessoa jurídica, obviamente terá de requerer em benefí- cio de pessoa física, porque só esta pode beneficiar-se da ordem. Cumpre observar que, às pessoas

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em cujos nomes forem requeridos habeas corpus independentemente de autorização, bastará a simples petição dirigida ao ór- gão julgador para que considere o pedido prejudicado.

A mulher, por sua vez, mesmo casada, pode requerer habeas corpus para si ou para outrem. A idéia de iguais direitos entre homem e mulher é bastante enfatizada no atual Texto Constitucional.

O representante do Ministério Público também poderá ajuizar a medida sob comento.

Da mesma forma o pode o juiz ou Tribunal quando no curso do processo verificar que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.

20.1.6. Sujeição Passiva

O habeas corpus é voltado contra os atos de autoridade. Quando as pes- soas privadas constrangem outrem ou mesmo detêm em recinto fechado, es- tão incursas em uma modalidade criminosa (cárcere privado).

Daí, embora não exista uma restrição explícita contra a utilização do habeas corpus nestes casos, a verdade é que a mera denúncia do crime junto à delegacia policial mais próxima é a medida indicada.

Todavia, há que se referir aqui casos ocorrentes quando da alta a pacien- tes internados. As vezes, há conflito entre os seus parentes, que querem retirá- los, e os médicos, que não querem assumir esta responsabilidade porque consi- deram a medida contra-indicada. Nestas hipóteses parece que o habeas corpus cumpre um papel insubstituível.

20.1.7. Objeto

Como visto, o habeas corpus protege a liberdade, mas desde que cerce- ada por ato de ilegalidade ou abuso de poder. Portanto, como bem observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a primeira condição do habeas corpus é a existência de ato lesivo ou de sua ameaça à liberdade de locomoção.

Mas esta lesão por sua vez deverá assumir as funções de violência ou coação ilegal.

Há autores que consideram estas expressões como sinônimas. Não é a melhor doutrina, contudo. Esta inteligência feriria regra conhecidíssima de hermenêutica, segundo a qual a lei não tem palavras inúteis. Rui Barbosa nos fornece uma distinção entre os dois conceitos:

"Coação, definirei eu, é a pressão empregada em condições de eficácia contra a liberdade no exercício de um direito, qualquer que este seja. Desde que no exercício de um direito meu, qualquer que ele for, intervém uma coação externa, sob cuja pressão eu me sinto embaraçado ou tolhido para usar desse direito, na liberdade plena de seu exercício, estou debaixo daquilo que, em Direito, se chama coação. E violência é o uso de força material ou oficial, debaixo de qualquer das suas formas, em grau eficiente para evitar, contrariar ou dominar o exercício de um direito. Creio que a definição não é incorreta. Toda vez que a ação

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do que se chama força, ou seja a das armas, ou seja a de violência, ou seja a de um decreto do Poder, ém contrário, me ameaça, ou me domina no exercício de um direito, estou sujeito à força no sentido que em direito pode receber este nome" (o habeas corpus. Sua feição jurídica e sua evolução no direito público brasileiro, in Coletânea Jarídica, Ed. Nacional, 1928, p. 57).

O trecho barbosiano cuida, como se viu, da violência e da coação quan- do voltadas para o exercício de qualquer direito. Suas palavras são, no entan- to, perfeitamente válidas para caracterizar tanto a violência como a coação no exercício do direito de locomoção física. Antonio Macedo de Campos fornece síntese lapidar: "Em última análise, a violência seria a "vis compulsiva" a for- ça física e a coação também a "vis moralis". Para efeito de ordem prática força física seria todo o ato exercido materialmente sobre alguém. E a força física moral, consistiria na supressão do livre-arbítrio" (Habeas corpus; doutrina e legislação, Ed. Jalovi).

Não é toda violência ou coação que faz emergir o direito ao habeas corpus. Mesmo porque, é próprio do Estado utilizar a violência e a coação como meios assecuratórios da ordem jurídica. O que não se admite é a ilega- lidade e abuso de poder na utilização da violência ou coação.

No caso da coação, há um dispositivo específico do Código de Processo Penal que elenca as hipóteses em que ela se torna ilegal. É o art. 648.

A lei processual penal não procede da mesma forma com relação à violên- cia. Não há uma enunciação dos casos em que esta se torna ilegal. A doutrina, em conseqüência, tem grande campo de atuação. Borges da Rosa oferece as seguintes hipóteses de violência ilegal:

"a) quando o caso não a comportar ou permitir; b) quando não houver justa causa; c) quando quem a ordenar ou praticar não tiver competência para fazê-lo; d) quando for praticada sem o cumprimento das exigências legais; e) quando houver cessado o motivo que a autorizou".

A enunciação destes casos representa, por certo, uma colaboração no sentido de melhor evidenciar o que seja a violência ilegal. Tratando-se, con- tudo, de expressão constitucional, ela não fica restrita às exclusivas hipóteses apontadas pela doutrina. A expressão "violência" assim como o conceito de ilegalidade têm carga semântica suficientemente densa para permitirem sua aplicação com respaldo na própria Constituição.

A Constituição fala a seguir em abuso de poder, além de ilegalidade. Há os que confundem ambas as expressões. Não há dúvida de que o abuso de poder é sempre ilegal. O inverso, contudo, não é verdadeiro. O Texto Constitu- cional quis cercar bem a ilegalidade, referindo-se não só à forma em que ela se traduz numa violação de um dispositivo legal como também àquelas hipó- teses mais fluidas e escorregadias em que não há uma agressão frontal à letra da norma legal. A ofensa é perpetrada contra a sua finalidade. É o que tam- bém se denomina desvio de finalidade. O ato é praticado com todas as aparên- cias da legalidade mas, na verdade, esconde um vício recôndito, qual seja o de procurar atingir um fim diverso do previsto na lei.

Na Constituição anterior excluía-se a utilização do habeas corpus nas transgressões disciplinares. A atual Constituição suprimiu esta ressalva. Con- feriu, portanto, uma aplicação irrestrita do instituto incluindo em conseqüên- cia a própria transgressão

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militar. O inc. LXI do artigo em estudo refere-se a transgressão militar e ao crime propriamente militar, tais como definidos em lei, como ensejadores de uma decretação de prisão independentemente de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.

Esta ressalva quanto à decretação da medida privativa da liberdade não tem o condão de alijar a aplicação do habeas corpus se porventura ocorrerem as hipóteses constitucionais de ilegalidade ou abuso de poder.

20.2. Mandado de Segurança

20.2.1. Introdução

O mandado de segurança constitui uma forma judicial de tutela dos direitos subjetivos, ameaçados ou violados, seja qual for a autoridade responsável. É um recurso técnico-jurídico que pressupõe uma determinada evolução no processo de controle do poder estatal e, conseqüentemente, da repercussão deste sobre os indi- víduos, cujos direitos só foram efetivamente protegidos com o advento do liberalis- mo, inspirador de solenes Declarações de Direitos e de Constituições escritas.

Nos fins do século XVIII, o direito constitucional passou a resguardar a liberdade dos particulares contra o arbítrio e a prepotência dos próprios agen- tes do poder do Estado. Esta recorribilidade do indivíduo a um órgão do Esta- do, a fim de coibir o abuso e a ilegalidade de outros representantes do próprio governo, só se tornou possível mediante a adoção da técnica da separação das funções estatais, preconizada preeminentemente por Montesquieu.

Na realidade, é sabido que o poder é um só. Contudo, as suas emanações ou funções podem ser agrupadas em razão de traços comuns que apresentem e a sua titularidade atribuída a órgãos distintos que, no limite da sua própria competência, se tornam, destarte, independentes e autônomos.

A tripartição de poderes foi fórmula encontrada para conter o poder pelo próprio poder. As declarações de direitos, por sua vez, traçaram o ambito de proteção jurídica a ser deferida a todo cidadão, contra as intromissões do Es- tado. Contudo, faltava ainda assegurar a efetiva obediência àqueles direitos solene e formalmente reconhecidos. Nesse plano se situam, principalmente, o habeas corpus e o mandado de segurança.

Foi o habeas corpus, na verdade, a primeira tentativa pela qual se procu- rou limitar os poderes absolutos do soberano, ocorrida em 1215, no reinado de João Sem Terra, sem que, entretanto, na época ostentasse a plenitude que posteriormente viria a adquirir. Ademais, nos séculos subseqüentes não vigo- rou com a força que se poderia esperar, tanto que foi de mister confirmar o instituto na própria Inglaterra, no curso dos séculos XVII e XVIII.

O que é certo é que tanto no direito alienígena quanto no direito nacio- nal o habeas corpus antecedeu ao mandado de segurança, fenômeno, de resto, muito compreensível. É que o habeas corpus está voltado à tutela de um bem que o homem procurou antes de mais nada proteger, qual seja, a sua liberdade física. É certo que a liberdade pode assumir múltiplas formas, cada uma de- las, a seu modo, de grande importância: Mas há uma que é preliminar a qual- quer outra expressão possível dessa liberdade tomada em

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termos amplos. É a ausência de constrangimento físico imposto ao indivíduo. A tutela do direito de locomoção, de deslocação física do ser humano foi e continua sendo o objeto específico do habeas corpus.

No direito brasileiro, como visto, o habeas corpus também antecedeu ao mandado de segurança. Embora não previsto na Constituição de 1824, a legis- lação ordinária implantou o instituto no nosso sistema ainda durante o Império. Em 1891 o habeas corpus foi erigido à condição de garantia constitucional, pela Lei Maior desse ano. Mas os demais direitos permaneciam não tutelados por for- mas especiais de acesso ao Judiciário. Não havia, com efeito, no Texto de 1891, qualquer preocupação com a tutela específica de outros direitos senão do de lo- comoção. Todavia, foi tão agudamente sentida a necessidade de um instrumento específico ao resguardo dos demais direitos próprios do estado de direito, vigo- rante na quase-totalidade das nações ocidentais, que a doutrina e a jurisprudência foram responsáveis por um movimento que, analisado a partir de uma perspectiva histórica, passou a denominar-se doutrina brasileira do habeas corpus.

De 1891 a 1926 vai-se assistir, sob o influxo dessa corrente de pensamento, a um gradativo alargamento da utilização do habeas corpus até o ponto em que ele deixa de proteger diretamente a liberdade física para colher na sua malha tutelar a proteção de qualquer direito para cujo exercício se fizesse imprescindível a liberdade de locomoção. Com esse fundamento concedeu-se habeas corpus, por exemplo, para asseguramento da posse em cargo público de funcionário nomeado.

Esta interpretação generosamente ampla do instituto encontrou oposito- res tanto do lado daqueles que queriam mantê-lo apegado à natureza que his- toricamente houvera ganho de um instrumento voltado à proteção do direito de liberdade corpórea, como também daqueles que, movidos por outras preo- cupações, visaram a restringir a proteção e a tutela das garantias constitucio- nais. O certo é que uma reforma introduzida em 1926 colocou um ponto final nessa interpretação ampliativa, deixando claro que a medida só seria concedi- da para a proteção do direito de locomoção.

20.2.2. Surgimento da Medida

A situação aflitiva daí emergente só veio encontrar reparo eficaz na Cons- tituição de 1934, que entronizou em nosso ordenamento jurídico remédio espe- cífico, nos seguintes termos: "Dar-se-á mandado de segurança para a defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamen- te inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes".

Aproximadamente com esse mesmo perfil o instituto se manteve até nossos dias.

20.2.3. Direito Líquido e Certo

A proteção dada pelo mandado de segurança não é extensível a todo e qualquer direito. Requer-se que ele seja "certo e incontestável", na expressão do Constituinte

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de 1934, modificada pelo de 1946, para "líquido e certo". Qual o sentido dessa locução? Quais os requisitos a serem preenchidos por um direito para que ele se alce a essa categoria?

Embora, sem dúvida, pontilhado o tema de dificuldades, não se nos afigura que estas sejam de monta tamanha a dar acerto à opinião, lembrada por Amoldo Wald, de que o direito líquido e certo não seria um conceito claro, mas sim uma charada que os juízes resolveriam ao sabor de suas próprias convicções, com ampla interpretação pessoal (Mandado de segurança na prática judiciária, p. 116).

A primeira tendência foi a de considerar como líquido e certo todo o direito que fosse evidente, insuscetível de impugnação e cuja procedência não pudesse deixar de ser reconhecida. Exigia-se, pois, que o direito fosse translúcido, não só porque evidentes os suportes fáticos em que repousava, como também porque indiscutível o conteúdo do dispositivo invocado.

1. Alguns trechos de acórdãos que acolhem tal entendimento: "Quer em face da doutrina, quer em face da Constituição que o consagrou, para que o mandado de segurança seja concedido é indispensável que seja certo e incontestável o direito ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal da autoridade" (MS 1 do STF, apud O mandado de segurança e sua jurisprudência, Centro de Pesquisa da Casa de Rui Barbosa).

"Direito certo e incontestável é aquele contra o qual não se podem opor motivos ponderáveis, e sim meras alegações, cuja improcedência se reconhece imediatamente, sem necessidade de deti- do exame" (MS 122 do STF, apud RT, 106:802).

Seria portador de um direito líquido e certo todo aquele que invocasse em seu benefício um comando legal, este mesmo isento de dúvida, como tam- bém a sua efetiva subsunção à norma abstratamente considerada, pela imple- mentação em seu prol dos pressupostos legais.

Não há dúvida que a aquisição dos direitos se dá pela conjugação des- ses dois elementos: uma situação fática qualificada mais a incidência sobre esta de uma vontade normativa que a torna apta a produzir certas conse- qüências jurídicas.

Contudo, a corrente ora exposta foi quase que totalmente superada pela evolução da própria doutrina e sobretudo da jurisprudência, que passaram a distinguir com clareza esses dois pólos de toda a situação jurídica: o fático e o normativo. E, simultaneamente, a fazer residir a certeza e liquidez do direi- to tão-somente no primeiro deles.

É que dúvidas acerca da interpretação do direito, abstratamente considerado, sempre podem existir, o que é demonstrável pelas longas perlengas doutri- nárias assim como pelos grandes dissídios jurisprudenciais.

A solução correta, no entanto, é a que faz residir o caráter de líquido e certo não na vontade normativa, mas nos fatos invocados pelo impetrante como aptos a produzirem os efeitos colimados. Mais precisamente ainda, na própria materialidade ou existência fática da situação jurídica. Para que o juiz possa superar a fase preliminar do cabimento ou não do mandado, ele há de verificar a satisfação prévia desse requisito específico para o acesso ao writ: a compro- vação dos elementos fáticos em que o autor funda a sua pretensão. Bem é de ver que a certeza e liquidez do direito não é condição para o deferimento ou con- cessão da segurança, mas, mais especificamente, para a admissibilidade do seu conhecimento. Pode dar-

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se que o direito seja líquido e certo para o efeito de justificar o adentramento pelo juiz do mérito do feito, uma vez que já se encon- tra convencido do suporte fático em que se anima o autor, sem que, contudo, seja aquele subsumível à norma jurídica invocada, do que deverá resultar, é óbvio, o indeferimento da medida. É que nesta hipótese o magistrado reconhece que o enquadramento legal dos fatos invocados não é aquele pretendido pelo impetrante. Os fatos existem, mas não lhe assiste o direito.

O mandado de segurança não ampara mera expectativa de direito. Segundo o Min. Sálvio de Figueiredo, "direito líquido e certo, para fins de mandado de segu- rança, pressupõe a demonstração de plano do alegado direito e a inexistência de incerteza a respeito dos fatos" (Recurso Especial n.o 10.168-0, publicado no DJU de 20 abr. 92, p. 5256). Deve se constatar o direito como efetivamente existente.

Na ausência de direito líquido e certo, configura-se a hipótese de carência da ação, quer denegando o writ, quer extinguindo o processo sem julgamento de mérito, mas de qualquer forma sem a possibilidade de se conceder a segurança.

O mandado de segurança é remédio constitucional destinado à proteção de direito líquido e certo do impetrante contra ato ilegal ou praticado com abuso de poder pela autoridade apontada como coatora. Não se presta à defe- sa de direitos que demandem produção de prova, vale dizer, que não possam ser demonstrados de imediato. Dispõe a norma constitucional:

"Art. 5.o

LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito lí- quido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuição do Poder Público".

Em síntese, direito líquido e certo é direito comprovado no momento da impetração. O mandado de segurança não comporta instrução probatória, por isso todas as provas tendentes a demonstrar a liquidez e certeza do direito devem acompanhar a inicial. Caso o documento necessário à prova do alega- do se encontre em repartição ou estabelecimento público que recuse fornecê-lo por certidão, o juiz ordenará, preliminarmente, por ofício, a exibição. Em se tratando de recusa da autoridade coatora, a determinação judicial será feita no próprio instrumento de notificação.

20.2.4. Medida Liminar

A medida liminar é uma providência cautelar destinada a preservar a possibilidade de satisfação, pela sentença, do direito do impetrante. Em ou- tras palavras, visa a impedir que o retardamento da decisão final venha a torná-la inócua, em razão da irreparabilidade do dano sofrido. Em decorrência sobretudo da auto-executoriedade do ato administrativo, alterações podem ter lugar no mundo real, fenomênico, de molde a tornar inócua a decisão jurisdicional a final proferida.

Eis porque, embora regulada por lei ordinária, a concessão de liminar encontra de certa forma assento jurídico no próprio Texto Constitucional assegu- rador do mandado de segurança. Se este objetiva a reparação in natura do direito ofendido, a utilização pelo

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Judiciário de medidas acautelatórias dos interesses lesados impõe-se, ainda que não disponha aquele de condições, na ocasião, para proferimento de uma decisão definitiva.

Assim, a liminar não envolve prejulgamento do mérito. É uma decisão autônoma, no sentido de que não vincula o juiz a mantê-la, posto que é precá- ria, nem a permitir que ela influa na formulação do seu juízo por ocasião da sentença, que deverá ser prolatada com a mesma liberdade, tanto no caso de concessão quanto no de denegação da liminar.

Constituem, de outra parte, requisitos para a suspensão in limine do ato atacado: a) ser relevante o fundamento do pedido; b) do ato impugnado poder resultar dano não suscetível de reparação pela decisão final.

20.2.5. Mandado de Segurança Coletivo

Até a Constituição de 1988, havia tão-somente o mandado de segurança individual; hoje contempla-se também o mandado de segurança coletivo, que pode ser utilizado por determinadas entidades para defesa de interesses co- muns de seus associados.

O art. 5.o, LXX, da Constituição Federal prevê quem dele pode lançar mão: partido político com representação no Congresso Nacional, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funciona- mento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados. A todas essas entidades a Lei Maior faculta a impetração dessa medida para a defesa dos direitos coletivos da categoria a que representam. Cumpre ressaltar que nos primeiros anos de vida do instituto considerava-se necessária a autorização prevista no inc. XXI do art. 5.o, que estabelece: "as entidades associativas, quando expressamente autorizadas têm legitimidade para repre- sentar seus filiados judicial ou extrajudicialmente". A falta desse requisito, qual seja, a anuência expressa dos membros representados, acarretaria a ilegitimida- de ad causam ativa, nos termos do art. 267, IV, do Código de Processo Civil. Hoje, segundo as decisões mais recentes do Supremo Tribunal Federal, tal au- torização é desnecessária, sendo certo que a entidade impetrante do mandado de segurança coletivo age como autêntica substituta dos interesses dos seus membros ou filiados. Como exemplo podemos citar o Mandado de Segurança coletivo n. 21.514-DE, no qual o Sr. Ministro Relator, Marco Aurélio, assim se manifestou: ""... Em elogiável avanço, nossos Constituintes de 1988 fizeram inserir no artigo 5.o nova garantia constitucional - a do mandado de segurança cole- tivo - e, então, quanto a este, tiveram presentes as características de certos direitos, no que extravasam o âmbito simplesmente individual para irradiarem- se a ponto de serem encontrados no patrimônio de várias pessoas que, em vir- tude de um fim comum, formam uma certa categoria. Tendo em vista esta pecu- liar situação é que se previu, na alínea b do inciso LXX do artigo 5.o, a prerro- gativa das organizações sindicais, das entidades de classe e das associações legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano, não para representar, mediante autorização expressa, como previsto no inciso XXI, os filiados, mas para impetrar o mandado de segurança coletivo. Não se tratasse de algo diverso da demanda plúrima ajuizada por força de representação, mister seria concluir pela inocuidade do preceito" (RTJ, 150:104, out. 1994).

2. Nesse sentido o julgado proferido no MS 10.503-O, TP,j. 18-4-1990: "Desnecessária, ade- mais, expressa autorização dos associados ou indicação nominal dos beneficiários diretos da impetração. A primeira exigência colocaria essa ação de classe na

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mesma situação das intentadas por associações legitimadas a agir na forma do inc. XXI do art. 5.o da Constituição Federal. E a segunda ignora a dimensão dos interesses coletivos tutelados pela garantia constitucional do man- dado de segurança coletivo" (RT, 657:74).

Mas o elemento nuclear do mandado de segurança coletivo reside no objeto, que há de consistir na defesa de um direito coletivo. Entende-se por direito coletivo aquele que afeta todo um agrupamento de pessoas, unificadas por uma situação fática assemelhada, assim como definidas por um traço ju- rídico, que permite apartá-las - isolá-las enquanto grupo. E, enfim, o interesse global de uma categoria. O que se quis foi facilitar o acesso a juízo, permitin- do que pessoas jurídicas defendam o interesse de seus membros ou associa- dos sem necessidade de mandado especial.

Por último, o mandado de segurança coletivo implica os mesmos pres- supostos do mandado individual, observada, obviamente, a mencionada dife- rença no que concerne à legitimação ativa.

20.3. Mandado de Injunção

Constitui um dos problemas fundamentais do direito constitucional mo- derno o encontrar os meios adequados para tornar efetivos, é dizer, fruíveis pelos seus beneficiários, até mesmo aqueles direitos que, por ausência de uma legislação integradora, permanecem inócuos até o advento desta.

De fato, ninguém pode defender a idéia de que a Constituição seja um repositório de boas intenções, de recomendações e de programas, que possam restar indefinidamente letra morta sem a geração de efeitos jurídicos fundamen- tais, o que é lícito esperar sobretudo de uma disposição constitucional.

Têm sido diversos os instrumentos postos em funcionamento para coibir os excessos de uma inaplicabilidade às vezes duradouramente afrontosa do Texto Constitucional. O nosso direito, por meio da nova Constituição, procurou im- portar o que há de mais moderno no mundo a respeito. A inconstitucionalidade por omissão e a iniciativa popular das leis são, sem dúvida, meios preordenados à obtenção de resultados positivos no sentido de uma maior agilização das me- didas regulamentares demandadas pelo Texto Constitucional.

O mandado de injunção insere-se neste contexto. Medida sem prece- dente, quer no direito nacional, quer no alienígena. A confrontação que se possa fazer com a injunction do direito americano só leva à conclusão da absoluta singularidade do instituto pátrio.

De fato, a garantia sob comento muito claramente evidencia os seus dois pressupostos fundamentais: que haja um direito constitucional de quem o invoca e, em segundo lugar, o impedimento que o impetrante está padecendo de po- der exercê-lo por falta de norma regulamentadora.

Vê-se, portanto, que a diferença com as garantias tradicionais é abissal. Não se trata de repor a legalidade ofendida. Não se cuida de assegurar direitos constitucionais feridos por violências ou coações administrativas. Não se cuida de reparar lesividade causada ao patrimônio público. Não se trata ainda de cor- rigir dados pessoais que órgãos públicos manipulem incorretamente. Não. O de que aqui se cuida é de garantir ao impetrante o

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asseguramento de um direito que, contemplado na Constituição, não lhe é deferido por quem de direito por falta de uma norma regulamentadora que torne viável o exercício do aludido direito.

O mandado de injunção, nas palavras do Mi Celso de Mello, do Supre- mo Tribunal Federal, constitui um dos mais expressivos instrumentos jurídi- cos de proteção jurisdicional aos direitos, liberdades e prerrogativas de índole constitucional. A tutela concretizadora desses direitos fundamentais, median- te a utilização desse singularíssimo meio formal, deriva da necessidade de tornar viável o seu exercício, que é obstado pela inércia do Estado em adimplir o dever de emanar normas, imposto pela Constituição.

3. MI 164.2-SP (DJ, 24 out. 1989, p. 16230-2).

Importante consignar que o propósito da garantia não é colher todo e qualquer direito da Constituição. O mandado de injunção só tem cabimento quando a falta de norma regulamentadora impede o exercício dos "direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, a soberania e à cidadania". A expressão "direitos e liberdades constitucionais" aponta para as clássicas declarações de direitos individuais. No nosso Texto Constitucional, o tratamento desta matéria é feito de forma moderna, a consa- grar não só os direitos e deveres individuais, mas para incluir debaixo do mesmo título "Dos direitos e garantias fundamentais" os coletivos e os sociais. Destarte, é de se entender que a tutela do mandado de injunção alcança os direitos subsumidos debaixo do Título II da Constituição, aí incluídos obviamente os direitos de nacionalidade, os políticos e também os relativos à soberania na- cional, embora com relação a esta última seja um tanto difícil saber em que consiste um direito individual dela extraível.

20.3.1. Legitimidade Ativa

O mandado de injunção pode ser ajuizado por qualquer pessoa que se sinta impedida de exercitar um direito constitucionalmente assegurado pela falta de norma regulamentadora que viabilize o exercício desse seu direito. É necessária, pois, a existência de um direito subjetivo concedido em abstrato pela Constitui- ção, cuja fruição está a depender de norma regulamentadora. Diferente é a situa- ção quando a Constituição apenas outorga expectativa de direito, e, portanto, a norma regulamentadora faltante se presta a transformar essa mera expectativa de direito em direito subjetivo. Nesse caso, não cabe mandado de injunção e sim ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2.o).

20.3.2. Objeto do Mandado de Injunção

Destina-se o mandado de injunção a obter sentença que declare a ocor- rência da omissão legislativa, com a finalidade de que se dê ciência ao órgão omisso dessa declaração para que adote as providências necessárias, à seme- lhança do que ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2.o).

Vê-se, pois, que o alcance do mandado de injunção é análogo ao da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Nesta, uma vez declarada a inconstitucionalidade, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias, e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias (CF, art. 103, § 2.o). Note-se, por

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oportuno, que, em se tratando de omissão legislativa inconstitucional, o Supremo Tribunal Fede- ral limitar-se-á a dar ciência ao Poder Legislativo para que adote as provi- dências necessárias quanto à elaboração da norma integradora. Contudo, ficará a critério desse Poder atender ou não a esta comunicação. O não- atendimento não implicará responsabilidade. O mesmo não ocorre quando a omissão inconstitucional for administrativa. Neste caso, o Supremo Tribu- nal Federal, a par de comunicar a inconstitucionalidade por omissão, impõe ao órgão administrativo competente a edição da norma em questão, no pra- zo de trinta dias, sob pena de responsabilidade.

O Min. Moreira Alves asseverou que "o mandado de injunção é ação mandamental que se propõe contra a autoridade, órgão ou Poder omissos no re- gulamentar a Constituição, nos casos nela previstos como dando margem à utili- zação desse instrumento processual, que - note-se - segue o rito do mandado de segurança, mas que com ele não se identifica, obviamente" (MI n. 284-DE).

Com relação ao mandado de injunção, sendo ele procedente, dar-se-á ciência ao órgão incumbido de elaborar a norma regulamentadora faltante, sob pena de, não a elaborando dentro do prazo estabelecido, sofrer alguma espécie de san- ção, desde que esta seja possível. A propósito, assim decidiu a Suprema Corte o Mandado de Injunção n. 232-RJ, Relator o Ministro Moreira Alves. Tomamos a liberdade de transcrever parte do Relatório e do voto do Sr. Ministro Relator.

"RELATÓRIO

O Centro de Cultura Prof. Luiz Freire, alegando a qualidade de enti- dade civil, de fins filantrópicos, dedicada à prestação de assistência social, impetra mandado de injunção contra o Congresso Nacional, sob o fundamen- to de que o § 7.o do artigo 195 da Constituição Federal concedeu às entidades beneficentes de assistência social isenção de contribuição para a seguridade social, desde que atendam às exigências estabelecidas em lei, razão por que, sem a edição dessa norma regulamentadora - o que ainda não ocorreu - o exercício do direito do impetrante não é exercitável. Acentua, ainda, que, de acordo com o artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, "os projetos de lei relativos à organização da seguridade social e os planos de custeio e de benefícios serão apresentados no prazo máximo de seis meses da promulgação da Constituição ao Congresso Nacional, que terá seis meses para apreciá-los". Esse prazo já decorreu sem que a lei em causa tenha sido edita- da, sendo certo, ainda, que já entrou em vigor a Lei n. 7.787, de 30-6-89, que aumentou a alíquota das contribuições previdenciárias, sem regulamentar a isenção outorgada no § 1.o do artigo 195 da Constituição Federal..."

"VOTO MÉRITO

Não há dúvida de que ainda não foi editada a lei a que alude o § 7.o do artigo 195 da Constituição, consignando as informações apenas a existência de projetos de lei que dizem respeito a essa matéria especificamente, ou que dela cuidam entre outras normas relativas à seguridade social.

Por isso, e tendo em vista o disposto no artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, está caracterizada a mora inconstitucional do Congresso.

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Assim, conheço, em parte, do pedido e, nessa parte, o defiro para decla- rar o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, § 7.o, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida."

Não se pode negar que, em muitas hipóteses, ao magistrado seja dado prover a situação com diretrizes suficientes para conferir operacionalidade ao direito do impetrante. Exemplo disso é o direito assegurado no art. 5.o, L: "Às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação".

É certo que, pela sua própria índole, este direito, com algumas injunções apropriadas do magistrado, tornar-se-ia de aplicabilidade irrecusável pelas autoridades responsáveis pelo presídio. Em casos que tais, o magistrado deve sem dúvida prover à situação, uma vez que tem condições de fazê-lo sem necessidade de alçar-se ao nível do legislador.

20.3.3. Competência para Julgar o Mandado de Injunção

Será competente para julgar o mandado de injunção o Supremo Tribunal Federal quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Fede- ral (art. 102, I, q). Será competente o Superior Tribunal de Justiça quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição de órgão, entidade ou au- toridade federal, da administração, direta ou indireta, excetuados os casos de competência do Supremo Tribunal Federal e dos órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal (art. 105, I, h).

20.3.4. Distinção entre Mandado de Injunção e a Inconstitucionalidade por Omissão

Não se deve confundir o mandado de injunção com a inconstitucionalidade por omissão. A única semelhança entre esses dois institutos reside no fato de que ambos têm cabimento diante da falta de norma regulamentadora que tor- ne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerroga- tivas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. No mais são só diferenças. A primeira distinção diz respeito à legitimidade ativa. A ação de inconstitucionalidade por omissão só pode ser proposta pelas pessoas ou en- tidades arroladas no art. 103, d, da Constituição Federal, enquanto o mandado de injunção pode ser ajuizado por qualquer pessoa que se sinta impedida de exercitar um direito constitucionalmente assegurado pela falta de norma regulamentadora que viabilize o exercício desse seu direito. Outra distinção é quanto aos efeitos da decisão proferida que, na ação de inconstitucionalidade por omissão, são erga omnes e, no mandado de injunção, são inter partes.

20.4. Ação Popular

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20.4.1. Conceito

Dentre as garantias constitucionais figura, ainda, a ação popular, previs- ta neste inc. LXXIII, sob comentário. Constitui ela, à semelhança do habeas corpus e do mandado de segurança, um meio especial de acesso ao Judiciário. Mas enquanto nestes a especialidade do instituto reside na celeridade da medida e no cunho mandamental que marca a decisão judicial, na ação popular o traço distintivo se radica na legitimação para agir.

O referido dispositivo constitucional ao prever que "qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular..." tornou possível a invocação da atividade jurisdicional do Estado, independentemente de o autor ter proveito pessoal na questão. Embora o interesse possa dizer respeito à coletividade como um todo, que é a beneficiária da possível anulação do ato impugnado, o certo é que o autor popular age em nome próprio e no exercício de um direito seu, assegurado constitucionalmente. Daí nos parecerem improceden- tes outras teorias que procuram explicar a posição jurídica do autor popular. Como doutrina mais aceita entre nós figura a que o considera como substituto processual, vale dizer, alguém que agiria em nome próprio, mas no interesse de outrem. Por diversas razões, não nos parece ser esta a melhor doutrina. Basta tão-só registrar que o instituto da substituição processual envolve dois sujeitos de direito: o substituto e o substituído, o que inocorre relativamente ao sujeito da ação popular, que defende, é certo, interesse da comunidade, mas enquanto entidade coletiva destituída de personalidade jurídica.

Dá-se, na verdade, a consagração de um direito político, de matiz niti- damente democrático, à ajuda do qual o cidadão ascende à condição de controla- dor da legalidade administrativa. Com pena de mestre, José Afonso da Silva versa o tema: "Como já vimos, a ação popular constitui um instituto de demo- cracia direta, e o cidadão, que a intenta, fá-lo em nome próprio, por direito próprio, na defesa de direito próprio, que é o de sua participação na vida política do Estado, fiscalizando a gestão do patrimônio público, a fim de que esta se conforme com os princípios da legalidade e da moralidade. Direta- mente, é certo, o interesse defendido não é do cidadão, mas da entidade públi- ca ou particular sindicável e da coletividade, por conseqüência. Mas é seu também, como membro da coletividade" (in Ação popular constitucional - doutrina e processo, Revista dos Tribunais, p. 195).

20.4.2. Requisitos

O emprego do vocábulo "cidadão" pelo Texto Constitucional não é for- tuito, mas muito a propósito. Esta a razão pela qual se exige do autor popular não só a qualidade de nacional, mas também a posse dos direitos políticos. Destarte, não podem ser impetrantes da garantia constitucional em pauta, por não serem detentoras da qualificação jurídica de cidadãs, as pessoas jurídicas nem tampouco as físicas que não se encontrem na fruição das suas prerrogativas cívicas, quer por nunca as terem adquirido, quer por, embora já tendo estado na sua posse, delas terem decaído, em caráter permanente ou transitório.

Esse o requisito quanto ao sujeito da ação. No que concerne ao ato im- pugnado, será todo aquele lesivo ao patrimônio público, entendido este nas suas diversas formas (artístico, cívico, cultural ou histórico da comunidade), independentemente da pessoa sob cuja tutela ele se encontre. Daí porque an- dou muito bem a Lei n. 4.717, que, no seu art. 1.o, estende a sujeição passiva da ação popular, além da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Muni- cípios, das autarquias, das entidades da Administração Descentralizada e

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ou- tras que especifica, até a "quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencio- nadas pelos cofres públicos", solução esta que se mostrou muito feliz, tanto que o atual Texto a encampou ao acrescentar na sujeição passiva da ação popular "as entidades de que o Estado participe".

A destinatária da ação popular não é determinada em função da sua qua- lificação jurídica, mas sobretudo em razão da circunstância de estar ou não na gestão de bens expressivos do patrimônio público, cuja proteção é a sua fi- nalidade própria.

20.4.3. Lesividade, Ilegalidade e Imoralidade

A condição de natureza objetiva para o exercício da ação popular é que o ato a ser invalidado seja lesivo ao patrimônio público, O Texto Constitucional deixa claro que se trata de ação que visa a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades de que o Estado participe. A lesividade, contudo, pressupõe a ilega- lidade. Não conseguimos imaginar qualquer ato que, demonstrado o seu caráter detrimentoso ao Poder Público, além de qualquer margem de dúvida razoável, albergada pela apreciação subjetiva da Administração sobre os interesses públi- cos, não seja automaticamente ilegal. O contrário equivaleria a aceitar que a Administração estivesse legalmente autorizada a desfalcar o patrimônio públi- co, o que é um disparate: o que não é aceitável no nosso sistema jurídico cons- titucional é o controle pelo Judiciário da mera conveniência ou oportunidade do ato administrativo. Nesta questão cremos que o instituto em estudo não consti- tui exceção aos limites do controle jurisdicional dos atos administrativos.

Eis porque é de mister a demonstração do caráter viciado do ato. O Judi- ciário haverá de examinar a sua legalidade porque só sob este ângulo pode ele rever os atos jurídicos. Contudo, a ilegalidade pode residir em aspectos intrín- secos ao próprio ato, como a sua forma, por exemplo, assim como em aspec- tos exteriores a ele mesmo (ausência de causa ou motivo). Destarte, uma ven- da de bem público por preço vil é anulável por ação popular, ainda que efetua- da em obediência aos trâmites procedimentais previstos para tanto. É que a ausência de uma contraprestação razoavelmente justa priva o ato de causa, viciando-o, em conseqüência.

Nota-se na atual redação do inciso sob comento a preocupação em tra- zer para o nível constitucional um campo de abrangência da ação popular que já era delineado pela legislação ordinária mas que, a rigor, não encontrava respaldo no Texto Constitucional anterior.

De fato, a lei ordinária deu uma tal amplitude ao instituto que se podia falar na existência de duas ações populares: uma com fundamento na Consti- tuição, e outra nas leis.

Em dois pontos ficava muito claro o caráter ampliativo da legislação regulamentadora. Na legitimação passiva e no objeto.

A atual Constituição procurou fechar este fosso trazendo para a sede constitucional o avanço levado a efeito na legislação comum. Assim é que a própria Constituição deixa claro que são sujeitos passivos da medida quais- quer entidades que lidem com o patrimônio público, seja a que título for. A expressão "entidade de que o Estado participe" vem incluir no raio da ação popular não só os entes criados pelo próprio Estado e componentes da chama- da Administração Descentralizada, como também aquelas pessoas de direito privado não criadas pelo Estado, mas das quais este participe quer pela forma da

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composição do seu patrimônio inicial, quer por via de dotações destinadas ao seu custeio ou mesmo ao reforço do seu capital.

A expressão "patrimônio público" já encontrava definição ampla para abarcar as diversas modalidades sobre as quais ele se encontrava materializado.

Assim, as lesividades ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural já encontravam proteção pela definição normativa do que vinha a ser patri- mônio público.

Note-se apenas uma ligeira mudança de técnica legislativa. Anteriormente o bem ecológico, o de valor histórico-cultural eram tidos como integrantes do patrimônio público. O atual Texto prefere conferir-lhes uma autonomia na medida em que os menciona sucessivamente.

A novidade consiste na referência à moralidade administrativa como um dos valores a serem protegidos pela ação popular. É a defesa do comportamento eticamente desejável dentro de uma Administração submetida ao direito e dirigida ao bem comum.

Significa um avanço na marcha no sentido de uma maior proteção da legalidade administrativa. As hipóteses anteriores sempre implicavam uma lesividade a algum valor não necessariamente de caráter pecuniário, mas que não se confundia com a pura e simples defesa dos valores da ordem jurídica.

Sob o manto da moralidade administrativa, tornam-se agora impugnáveis aqueles atos que não consubstanciam necessariamente um esvaziamento patri- monial mas que equivalem a uma utilização da ordem jurídica e dos instrumentos postos ao alcance do administrador para o atingimento de fins não albergáveis pelas normas que lhe conferiram competência.

É imoral, administrativamente, aquele ato que, sem encerrar uma viola- ção frontal a um preceito, termina, no entanto, por constituir uma violência aos fins com que deve ser levada a efeito a atividade administrativa. Não basta, entretanto, para que um ato possa ser considerado administrativamente imoral, que ele não corresponda às priorizações políticas daquele que emite o juízo.

Ao Poder Executivo é conferida uma margem de decisão autônoma den- tro da qual ele atua livremente. O construir ou deixar de fazer uma obra públi- ca, existindo as devidas previsões orçamentárias, é uma questão da exclusiva alçada do Poder Executivo. Por mais que a escolha possa desagradar a uns e outros, esta insurgência não pode consubstanciar uma imoralidade. Trata-se de um ato político que terá de ser politicamente apreciado, através das formas aceitas pela Constituição de exercício da soberania pelo povo. Não é matéria passível de jurisdicionalização.

Outro ponto que a Constituição resolveu decidir, e neste caso com a inegável vantagem de ter feito cessar uma certa hesitação jurisprudencial, é o de tomar o processo isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. Sobre a questão das custas tomamos a liberdade de remeter o leitor para os comentários do inc. LXXVII.

20.4.4. Isenção de Ônus

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Por hora, observe-se que a expressão aqui utilizada é mais ampla do que a contemplada no aludido inciso. Está o autor popular isento do ônus da su- cumbência com a ressalva de que não se tenha utilizado da ação popular para fins outros que não sejam os da efetiva defesa do patrimônio público. Isto não significa que não possam existir rivalidades políticas a separar autor e réu, ou mesmo que o primeiro não tenha móveis subjetivos de através da vitória na ação obter alguma sorte de proveito pessoal em termos políticos ou de renome pessoal. O que efetivamente caracteriza a má-fé é o fato de a ação não conter objetivamente nada que pudesse, independente de razoável dúvida, conter os pressupostos da ação.

Os efeitos da ação popular se traduzem tanto na anulação do ato pratica- do, na sua sustação, caso iminente a sua consumação, como também na orde- nação da sua prática, na hipótese de omissivo. Ademais, comporta condena- ção dos beneficiários da lesividade, daí porque ser de mister o chamamento a juízo, como co-réus, tanto da pessoa que praticou o ato questionado quanto da que dele extraiu proveito.

20.5. Habeas Data

É novidade da atual Constituição a concessão de habeas data, prevista no inc. LXXII do art. 5.o para:

a) assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governa- mentais ou de caráter público;

b) a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.

O objeto do habeas data é o asseguramento do acesso às informações pessoais do impetrante constantes de registros ou bancos de dados de entida- des governamentais e de entidades de caráter público, bem como o direito à retificação de tais dados quando inexatos.

A expressão "retificação de dados" deve ser entendida amplamente para incluir a própria supressão quando se tratar de informações pertinentes à vida íntima da pessoa. Trata-se daquelas hipóteses em que os dados pessoais não mantêm qualquer relação com as finalidades legalmente definidas do órgão coletor. É preciso reconhecer-se que o possuir dados pessoais, embora úteis em determinados campos da atuação administrativa, como é o caso da ativida- de policial, ainda assim esta posse há de ser vista sempre como algo excepci- onal, e é por isso que o controle nunca se poderá limitar apenas a levar a efeito uma correção de dados errôneos. Terá de entrar no mérito da posse daquela qualidade de dados. Não custa nada lembrar que o Estado de Direito marca sua atuação pelo cunho da impessoalidade e da igualdade.

As entidades governamentais compreendem a administração direta e a indi- reta (autarquias, fundações instituídas pelo Poder Público, sociedade de econo- mia mista e empresas públicas). As entidades de caráter público são as institui- ções e pessoas físicas ou jurídicas de direito privado prestadoras de serviço públi- co ou de interesse público, na qualidade de concessionárias ou permissionárias.

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Não há que se confundir o habeas data com o direito previsto no inc. XXXIII do art. 5.o, em que a Constituição assegura a todos o direito de rece- ber informações dos órgãos públicos. Neste, é concedido ao indivíduo acesso àquelas informações que dizem respeito à atuação administrativa. São múlti- plas as situações em que o cidadão tem interesse em saber das intenções, dos propósitos, dos planos, das metas de um administrador. São estes assuntos os contemplados pelo inc. XXXIII. Embora o dispositivo fale em informações de seu interesse particular, isto obviamente não significa informações sobre si mesmo. Nada tem que ver, pois, com a obtenção de informações pessoais, que são próprias do habeas data e dizem respeito àquelas informações armazena- das, fichadas, catalogadas, constantes de registros ou bancos de dados, que não se confundem com aqueles conhecimentos que a Administração pode possuir sobre alguém como meio legítimo de levar adiante a atuação administrativa, de que trata o inc. XXXIII acima referido.

Além disso, é necessário que os dados sejam pessoais, é dizer, definidores da situação da pessoa nas diversas searas da sua existência: religião, ideolo- gia, situação econômica, profissional. Contudo, é de se ressaltar que, se não houver uma séria justificativa a legitimar a posse pela Administração destes dados, eles serão lesivos ao direito à intimidade assegurado no inc. X do art. 5.o da Constituição Federal. Em princípio, portanto, não há possibilidade de registro público de dados relativos à intimidade da pessoa. Seria um manifes- to contra-senso que houvesse o asseguramento constitucional do direito à in- timidade, mas que concomitantemente o próprio Texto Constitucional esti- vesse a permitir o arquivamento de dados relativos à vida íntima da pessoa, salvo nos casos em que isso se faça necessário.

Por força do inc. LXXVII desse mesmo art. 5.o, o habeas data é uma medi- da judicial submetida ao benefício da gratuidade. Esta isenção de custas deve ser entendida amplamente, favorecendo o impetrante não só no que diz respeito à dispensa do pagamento de custas processuais e do preparo, como também das despesas com as publicações indispensáveis nos órgãos oficiais de divulgação.

20.6. Ação Civil Pública

20.6.1. Interesses Coletivos e Difusos

Superada, de certa forma, a clássica dicotomia entre interesse público e interesse privado, assistimos ao surgimento da noção de interesse coletivo e, mais do que isso, do chamado interesse difuso.

Às dificuldades naturais que poderiam surgir na compreensão dessas novas formas de interesses soma-se a de precisar o próprio conceito de "interesse".

Na linguagem comum, a palavra interesse designa, ordinariamente, a pretensão do indivíduo a determinado bem da vida. Juridicamente, a noção de interesse ganha diversas acepções, conforme o campo ao qual esteja o termo associado.

No processual, que nos interessa em particular, cumpre lembrar, inicial- mente, que o direito de ação era considerado mero reflexo do direito subjeti- vo. A esse respeito, Celso Agrícola Barbi afirma:

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"Nessa fase não se considerava que a ação fosse um direito distinto da- quele direito subjetivo que ela visava a proteger. Direito subjetivo material e ação eram um único direito: seriam o verso e o reverso de uma medalha. Em linguagem poética, sustentou-se que a ação é o mesmo direito subjetivo que, violado, se arma para a guerra".

4. Comentários ao Código de Processo Civil, 1. ed., Forense, 1977, v. 1. t. 1, p. 38.

O Prof. Arruda Alvim especifica os interesses jurídicos em primários e secundários, nos seguintes termos:

"O interesse primário é aquele diretamente incidente sobre a pretensão do direito material, ou seja, o que liga o indivíduo a determinado bem da vida. Já o secundário decorre da impossibilidade de utilização normal pelo indiví- duo daquele determinado bem da vida".

5. Código de Processo Civil comentado, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 1, p. 222.

O interesse secundário nada mais seria do que a utilidade propiciada pela via jurisdicional como meio assecuratório do direito primário, ou seja, da própria pretensão de direito material.

Em sua maioria, os autores que procuram destacar o direito coletivo não rompem declaradamente com a dicotomia direito público/direito privado. Ar- gumentam que o direito coletivo ou social não chegaria a assumir feições de categoria autônoma, de tertium genus, mas apresentaria tão-só aspectos mis- tos, distribuídos entre o direito privado e o direito público.

Aliás, entendem esses autores que, tratando-se de interesses coletivos, pouco importa que as respectivas relações sejam reguladas segundo as formas do direito privado.

Não obstante o uso dessas formas, as relações se configurarão como co- letivas, isto é, como fontes de direitos e deveres diferentes dos direitos privatísticos e naturalmente diversos também dos direitos e deveres de direito público.

6. Cesarini Sforza, Preliminari sul diritto collettivo, p. 114.

Para poder cunhar uma noção autônoma de interesses coletivos e difusos, entretanto, a conexão entre interesse de agir e direito subjetivo deve ser trans- posta.

Isso deve ser assim porque a característica tanto do interesse difuso quanto do coletivo é a de não coincidir com o interesse de uma determinada pessoa. Abrange-se, em verdade, toda uma categoria de pessoas.

Assim, a tutela destes interesses está na dependência da dissociação que se estabeleça entre o interesse de agir e o direito subjetivo. Em outras pala- vras, cumpre reconhecer o interesse de agir mesmo em situações nos quais não esteja presente o clássico direito subjetivo lesado.

Já nos manifestamos, estabelecendo que:

"Os interesses coletivos dizem respeito ao homem socialmente vinculado e não ao homem isoladamente considerado. Colhem, pois, o homem não como simples pessoa

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física tomada à parte, mais sim como membro de grupos autô- nomos ejuridicamente definidos, tais como o associado de um sindicato, o membro de uma família, o profissional vinculado a uma corporação, o acionista de uma grande sociedade anônima, o condômino de um edifício de apartamentos.

Interesses coletivos seriam, pois, os interesses afectos a vários sujeitos não considerados individualmente, mas sim por sua qualidade de membro de comunidades menores ou grupos intercalares, situados entre o indivíduo e o Estado".

7. Revista da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, n. 41, junho de 1994, Centro de Estudos,p. 113.

Entendemos que cumpre distinguir interesses coletivos de interesses difusos. Naquele há um vínculo jurídico básico. Uma geral affectio societatis, que une todos os indivíduos. É o que ocorre nas relações de parentesco, no grupo fa- miliar, no título de acionista na sociedade anônima, na qualidade de integran- te de determinada categoria profissional, com o título de bacharel em direito, com a qualidade de membro da corporação funcional profissional etc.

No caso dos denominados interesses difusos, não se nota qualquer víncu- lo jurídico congregador dos titulares de tais interesses, que praticamente se ba- seiam numa identidade de situações de fato. Quando nos referimos aos interes- ses difusos dos usuários de automóveis, por exemplo, abarcamos uma indefini- da massa de indivíduos esparsos por todo o país, sem qualquer característica homogênea, mas que praticaram, em comum, a compra e venda de um veículo. Assim, caracterizam-se pela natureza extensiva, disseminada ou difusa.

A Constituição Federal menciona os interesses coletivos e difusos. Por força do art. 129, III, o Ministério Público pode promover a ação civil públi- ca, e mesmo o inquérito civil, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Por outro lado, o Texto Constitucional também procurou promover a defesa dos interesses do consumidor em especial (art. 5.o, XXXII).

Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor é claro, definindo o que se deva entender por interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 81, I, II e III).

Estabelecida esta conceituação inicial, cumpre agora passarmos à aná- lise da ação civil pública, que tem por objeto os interesses coletivos e difusos, para o que a exata compreensão destes se mostrava necessária.

20.6.2. Aspectos Fundamentais da Ação Civil Pública

Apesar de a ação civil pública não estar prevista no capítulo dedicado aos direitos e garantias fundamentais, não deixa de constituir-se em uma das garantias instrumentais dos direitos constitucionalmente assegurados.

Esta modalidade de ação, além de proteger os valores elencados na Lei n. 7.347/85, teve o seu objeto amplamente alargado ao estabelecer o art. 129, III, da Constituição Federal, que corresponde ao Ministério Público promover a ação civil pública,

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para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de "outros interesses difusos e coletivos". O art. 127, caput, da Constituição estabelece que "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indispo- níveis". Assim sendo, a ação civil pública, que antes se situava na legislação ordinária (Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985), como instrumento de tutela dos interesses difusos ou direitos coletivos, é alçada a status constitucional, a partir da vigência da Constituição de 1988. Fica, então, elevada esta ação a nível constitucional com a legitimação do Ministério Público para promovê-la.

Contudo, esta legitimação ativa do Ministério Público não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto na Constituição e na lei, conforme o § 1.o do mencionado art. 129 da Constituição Federal. Por outro lado, a Lei n. 7.347/85, em seu art. 6.o, estabelece que: "Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Públi- co, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção".

O Ministério Público é o único incondicionalmente legitimado para propô- la, uma vez que as demais pessoas devem demonstrar legítimo interesse para poder agir, não podendo ir além daqueles interesses descritos na lei. E, em se tratando de associações comunitárias, o direito de ação fica condicionado, ainda, a mais dois requisitos: a) que a associação esteja devidamente constituída e personifica- da há pelo menos um ano, nos termos da lei civil; b) que inclua a proteção e a preservação dos interesses difusos no campo de seus objetivos institucionais.

Para Álvaro Luiz Valery Mirra, a ação civil pública tem natureza espe- cífica, ela não é direito subjetivo, mas direito atribuído a órgãos públicos e privados constitucionalmente autorizados para o exercício da tutela do inte- resse público (A ação civil pública e a Constituição, in Revista de Informação Legislativa, 94:172 e 174, 1987).

O inquérito civil e a ação civil pública, afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho, foram criados pela Lei n. 7.347/85, que os instituiu a fim de efetivar a responsabilidade por danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direi- tos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

O texto constitucional, ainda segundo o mesmo autor, "alargou o alcan- ce desses instrumentos. Por um lado, estendeu-os à proteção do patrimônio público em geral, dando, pois, à ação civil pública âmbito análogo ao da ação popular (v. art. 5.o, LXXIII). Por outro, tornou meramente exemplificativa uma enumeração que era taxativa. Note-se que a regra constitucional se refere a outros interesses difusos ou coletivos" (Comentários à Constituição brasilei- ra de 1988, v. 3, p. 48).

Fica claro ser a ação civil pública meio de proteção de alguns interesses transindividuais, como do meio ambiente, do consumidor etc. Essa tendência de fortalecer instrumentos de defesas metaindividuais ganhou corpo na Cons- tituição. A ação civil pública consagrou-se aí como meio de defesa de interes- ses indisponíveis do indivíduo e da sociedade.

Quanto à legitimação do Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogêneos, deverá sempre ser analisada dentro da destinação institucional do Ministério Público, que sempre deve agir em defesa de inte- resses indisponíveis ou de

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interesses que, pela sua natureza ou abrangência, atinjam a sociedade como um todo (interesses sociais). Em razão de sua especificidade, abordaremos o tema em tópico próprio, quando trataremos amplamente da defesa dos interesses e direitos do consumidor.

8. Pt. N. 15.939/91, apud Hugo Nigro Mazzilli, A defesa dos interesses difusos em juízo - Meio ambiente, consumidor e Outros interesses difusos e coletivos, São Paulo, Saraiva, p. 96.

A referida Lei n. 7.437/85 ao disciplinar "a ação civil pública de respon- sabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico" objetiva a indenização pelo dano causado, indenização esta que se destina à reconstituição dos bens lesados. Mas esta ação pode ter também por objeto o cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer. Neste caso, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor.

É bom notar que, com referência ao meio ambiente, por força do art. 14, § 1.o, da Lei n. 6.938/81 - que cuida da Política Nacional do meio ambiente - "é adotado o princípio da responsabilidade objetiva, isto é, independente da culpa. Nos termos do referido preceito: "É o poluidor obrigado, independen- temente de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade".

O juiz poderá conceder mandado liminar com ou sem justificativa prévia em decisão sujeita a agravo. Nada obstante isso, a requerimento de pessoa ju- rídica de direito público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o conhe- cimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras no prazo de cinco dias a partir da publicação do ato. A multa cominada liminarmente só será exigível do réu após o trânsito em julgado da decisão favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais, de que participarão o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo estes recursos destinados à reconstrução dos bens lesados.

20.6.2.1. Legitimação Ministerial

Na lição do Prof. Barbosa Moreira, os interesses difusos "não perten- cem a uma pessoa isolada, nem a um grupo nitidamente delimitado de pessoas (ao contrário do que se dá em situações clássicas como a do condomínio ou da pluralidade de credores numa única obrigação), mas a uma série indeterminada - e, ao menos para efeitos práticos, de difícil ou impossível determinação -, cujos membros não se ligam necessariamente por vínculo jurídico definido. Pode tratar-se, por exemplo, dos habitantes de determinada região, dos consu- midores de certo produto, das pessoas que vivem sob tais ou quais condições sócio-econômicas, ou que se sujeitem às conseqüências deste ou daquele em- preendimento público ou privado e assim por diante".

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Os interesses difusos, diz mais o citado autor, referem-se a um bem (latíssimo sensu) indivisível, no sentido de insuscetível de divisão (mesmo ideal) em "quotas" atribuíveis individualmente a cada qual dos interessados. Estes se põem numa espécie de comunhão tipificada pelo fato de que a satis- fação de um só implica, por força, a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui, ipso facto, lesão da inteira coletividade.

Assim é que citamos, como exemplo, interesses orientados para a prote- ção do consumidor, como a honestidade da propaganda comercial, a proscri- ção de alimentos e medicamentos nocivos à saúde, a adoção de medidas de segurança para os produtos perigosos, na regularidade e eficiência da presta- ção de serviços ao público.

9. RF, ano 77, 276:1-2, out./dez. 1981.

A partir da nova Constituição, as entidades associativas terão legitimi- dade para representar seus filiados em juízo ou fora dele. É curial que da mera existência da associação não possa surgir um direito de representar os seus filiados em todas as situações. O que o Texto Constitucional fez foi a abertura de um princípio, de uma possibilidade, cujas restrições e abrandamentos ele próprio inicia por fazer, deixando, contudo, à lei regulamentadora a definição de uma série de pontos sem os quais o instituto se toma impraticável.

O próprio exemplo do direito comparado demonstra que, mesmo nos países em que mais avançado se encontra esse instituto, ainda assim o seu cabimento é excepcional e se preenche de requisitos a serem cumpridos.

No direito inglês, por exemplo, encontramos a relactor action, por cujo intermédio se permite sejam legitimados para agir em nome próprio, ou da coletividade, tanto um indivíduo como uma associação privada. Dois ingredientes básicos, contudo, se fazem necessários: a) o General Attorney (equivalente ao nosso Ministério Público) ter-se mantido inerte; b) uma autorização dada ao indivíduo ou à associação pelo próprio General Attorney, a fim de que possam agir em nome da coletividade.

No direito americano, encontramos as class actions. Também por esta via, chega-se a permitir a legitimação de um indivíduo ou de uma associação, desde que, contudo, demonstrem ser adequados representantes da categoria ofendida. De outra parte, o responsável pelo controle da legitimidade ativa, ou seja, do adequado representante, não é mais como na relactor action o General Attorney, porém o próprio juiz.

Em princípio, nosso Texto Constitucional não restringe a legitimação a quaisquer destes direitos, o que também não deve significar que esteja ele a nivelar as associações a todos os demais sujeitos de direitos.

Não se trata de dar uma interpretação mais restritiva do Texto Constitucio- nal em matéria de direito individual. Pelo contrário, o que se cuida é de en- contrar o caminho para que ocorra a máxima defesa possível, diante do Texto vigente, das diversas situações subjetivadas. O que se tem de impedir é que o expediente do recurso às associações, como meio de reforço das referidas situações subjetivadas, possa traduzir-se em prejuízo destas.

O requisito que o Texto Constitucional estabelece é o de que as entida- des associativas estejam expressamente autorizadas, o que significa dizer que elas deverão comportar, dentro do rol dos seus fins sociais, o da defesa de direitos dos seus membros. Esta

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autorização pode advir tanto da lei, nos casos excepcionais em que se admite a associação por via de lei, quanto dos pró- prios estatutos sociais.

Mas é bem de ver que a dita autorização só pode versar sobre matéria pertinente aos fins sociais da própria entidade. Seria uma interpretação inade- quada do Texto imaginar-se que estaria ele a conferir a possibilidade de cons- tituírem-se procuradores universais.

É também assunto de legitimação para a defesa dos interesses difusos a análise do art. 129, III e § 1.o, da Constituição Federal, que, dentre as funções institucionais do Ministério Público, inclui a de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Essa legitimação outorga- da ao Ministério Público, para as ações civis a que se refere o art. 129, não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, conforme dispõe o seu § 1.o.

O Prof. José Cretella Júnior cuidou de observar o seguinte:

"Há interesses, individuais e sociais, de que as pessoas e as coletivida- des podem livremente dispor, sem ofensa a outras pessoas ou a grupos de pessoas. São os interesses disponíveis. "Interesse" não é "direito". É "preten- são" não respaldada em norma jurídica. "Interesse indisponível" é a pretensão que o interessado não pode transformar em vantagem ou benefício. Diante do interesse indisponível, individual ou social, a ação do indivíduo ou do grupo cessa, já que existe pretensão, mas não a respectiva ação assecuratória. Por isso, a regra jurídica constitucional transfere a defesa dos interesses indivi- duais e sociais indisponíveis para a área de competência do Ministério Público, a quem cabe defendê-los, o que, de modo indireto, favorece pessoas físicas e grupos de pessoas, cujas pretensões não se encontram fundamentadas em normas jurídicas. Celso Bastos (cf. Curso de Direito Constitucional, 11. ed., São Pau- lo, Saraiva, 1989, p. 339) elucida que "o Ministério Público tem a sua razão de ser na necessidade de ativar o Poder Judiciário, em pontos em que este remanesceria inerte, porque o interesse agredido não diz respeito a pessoas determinadas, mas a toda a coletividade. Mesmo com relação aos indivíduos, é notório o fato de que a ordem jurídica por vezes lhes confere direitos sobre os quais não podem dispor. Surge daí a clara necessidade de um órgão que vele tanto pelos interesses da coletividade quanto pelos dos indivíduos, estes apenas quando indisponíveis. Trata-se, portanto, de instituição voltada ao patrocínio desinteressado de interesses públicos, assim como de privados, quando merecerem um especial tratamento do ordenamento jurídico"".

10. Comentários à Constituição de 1988, Forense Universitária, 1993, v. 6, p. 3297 (o grifo é nosso).

O inesquecível Hely Lopes Meirelles, com muita clareza, ressaltou que a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, ao desenvolver o disposto no inc. III do art. 3.o da Lei Complementar n. 40, de 14 de dezembro de 1981, "discipli- nou a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, legitimando precipuamente o Ministério Público para propô-las, como também as entidades estatais, autárquicas, paraestatais e as associações que especifica (art. 5.o) sem prejuízo da ação popular (art. 1.o). Estas duas ações têm objetivos assemelhados, mas legitimação de autores diferentes, pois a civil pública pode ser ajuizada pelo Ministério Público e pelas pessoas ju- rídicas acima, e a popular só pode ser proposta por cidadão eleitor (Lei n. 4.717/65, art. 1.o). Ambas têm de comum a defesa dos interesses difusos da coletividade, e não o amparo do direito individual de seus autores.

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11. Proteção Ambiental e Ação Civil Pública, RT, 611:7-9.

A Constituição Federal ao incluir a legitimação para promover a ação civil pública, dentre as funções institucionais do Ministério Público, impôs simultaneamente a esse deferimento a condição de só poder fazê-lo aquele órgão como objetivo de proteger o patrimônio público e social, o meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos.

Esse pressuposto de validade para a promoção da ação civil pública pelo Ministério Público está fincado no art. 129, III, combinado com o art. 127, caput, da Carta Magna, o que significa que as leis infraconstitucionais que vierem a disciplinar o exercício dessa competência só poderão fazê-lo em harmonia com esse princípio constitucional.

A Lei a. 7.347/85, que antecedeu a Constituição de 1988, deve ser con- siderada recepcionada pela Constituição, porque suas normas são perfeita- mente compatíveis com a mencionada regra constitucional.

Esse diploma legal, como lembra René Anel Dotti, alargou para o Minis- tério Público o espaço político e social no quadro da prevenção, da repressão e da reparação dos danos causados ao meio ambiente, possibilitando-se também e através da ação civil pública a proteção de outros interesses difusos, como a tutela do consumidor e de bens e direitos de valor artístico, histórico e paisagístico.

12. Conforme René Anel Dotti, A Atuação do Ministério Público na Proteção dos Interesses Difusos, in Justitia, 132:26, 1985.

Está presente, portanto, na unanimidade da doutrina, na lei e na Consti- tuição, que o Ministério Público, para promover a ação civil pública, só estará habilitado a tanto nas hipóteses especificamente fixadas em lei. E mais. A legitimidade do Ministério Público para promover referida ação está também atrelada à proteção de interesses difusos ou coletivos, cujas características foram anteriormente apontadas.

Fora das hipóteses que lhe são traçadas pela Constituição e pela lei, o Ministério Público não poderá usufruir da competência postulatória para in- gressar em juízo como autor de ação civil pública. Faltar-lhe-á, nesse caso, a satisfação do pressuposto que garante a sua legitimação. Em ações assim, poderá eventualmente comparecer nas vestes de custos legis.

Uma vez faltando-lhe a legitimidade para ir a juízo como autor de ação civil pública, ao Ministério Público estará vedado propô-la, pois ninguém pode pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado em lei (art. 6.o do CPC).

CAPÍTULO III DOS DIREITOS SOCIAIS

SUMÁRIO: 1. Noções gerais. 2. Trabalhador. 2.1. Trabalhador temporário. 2.2. Trabalhador rural. 2.3. Trabalhador doméstico. 3. Direitos dos trabalhadores. 3.1. Despedida arbitrária ou sem justa causa. 3.2. Salário mínimo. 3.3. Participação nos lucros. 3.4. Liberdade sindical. 3.5. Greve. 3.6. Outros direitos.

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1. NOÇÕES GERAIS

O Capítulo II, embora seja encabeçado pela rubrica Dos direitos soci- ais, limita-se a arrolá-los no art. 6.o, ocupando-se deles, detalhadamente, em outros artigos (cf. educação - art. 205; saúde - art. 196; trabalho - art. 7.o e incisos; segurança - arts. 21, XIV, 22, XXVIII, e 144; previdência social - art. 201 e parágrafos; infância - art. 24, XV; assistência aos desampara- dos - arts. 5.o, LXXIV, 7.o, II, e 24, XIV) e cuidando, na verdade, das rela- ções de trabalho, motivo pelo qual não alongaremos, aqui, nossos comentári- os sobre esses direitos, para fazê-lo no local oportuno.

Ao lado dos direitos individuais, que têm por característica fundamental a imposição de um não fazer ou abster-se do Estado, as modernas Constitui- ções impõem aos Poderes Públicos a prestação de diversas atividades, visan- do o bem-estar e o pleno desenvolvimento da personalidade humana, sobretu- do em momentos em que ela se mostra mais carente de recursos e tem menos possibilidade de conquistá-los pelo seu trabalho.

Pelos direitos sociais tornam-se deveres do Estado o assistir à velhice, aos desempregados, à infância, aos doentes, aos deficientes de toda sorte etc.

Não se devem confundir tais direitos com os dos trabalhadores, porque esses dizem respeito tão-somente àqueles que mantêm um vínculo de emprego.

2. TRABALHADOR

O vocábulo "trabalhador" é bastante amplo e, por conseguinte, impreciso.

Num sentido lato, são trabalhadores todos aqueles que se dedicam a uma atividade voltada a suprir uma carência humana. De fato, é pelo trabalho que o homem vence a falta de auto-suficiência, que é marca fundamental da sua condição terrena.

Quer executando tarefas manuais, quer empreendendo misteres intelec- tuais ou, ainda, levando a efeito a coordenação das atividades de outras pes- soas, em todos esses casos o ser humano está trabalhando.

É óbvio, todavia, que não é nesse sentido que o vocábulo aparece na

Constituição. Na verdade, ela mesma não define o que seja o trabalhador. É

necessário, pois, valer-se da construção legislativa e doutrinária que cerca o vocábulo.

Saliente-se, outrossim, que o trabalho assume diversas modalidades, às quais o direito vem procurando responder através de uma sofisticação

terminológica que procura qualificar a condição fundamental do trabalhador.

Antes, pois, de entrarmos nessas diversas variações em torno do concei- to fundamental, convém responder à questão: Quem é trabalhador para efei- tos constitucionais?

A resposta é, num primeiro momento, simples. Trabalhador é o empre- gado. É dizer, aquele que vende o seu trabalho a outrem, sob uma condição de

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subordinação.

A Consolidação das Leis do Trabalho nos oferece uma definição legal

de empregado:

"Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de na- tureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salá- rio" (art. 3.o).

O traço mais característico do empregado é o caráter de subordinação que está presente no vínculo laboral com o empregador. Mas é possível haver trabalho subordinado sem que estejam satisfeitas essas exigências da defini- ção legal. Cite-se o caso do eventual. Não falta o caráter de permanência, de durabilidade da relação laboral. Seu traço característico é a descontinuidade. Acaba, em consequência disso, por não gozar dos mesmos direitos do empre- gado, embora seja preciso salientar que a própria conceituação de eventuali- dade ou de ineventualidade não é pacífica. Há aqueles que vêem o não-even- tual como o trabalhador que exerce um tipo de trabalho que não coincide exatamente com o objeto da atividade da empresa.

É certo que toda entidade tem necessidade, com maior ou menor perio- dicidade, de alguma sorte de serviço que não é relacionado ao produto final da empresa. Pode precisar, por exemplo, de uma pintura nas suas instalações. Em função disso, contrata os serviços de um pintor que, tecnicamente falan- do, não é empregado. Carece do elemento não-eventual. É, isto sim, um tra- balhador eventual.

2.1. Trabalhador Temporário

Dentro do trabalho subordinado encontramos, ainda, o trabalhador tem- porário, que tem suas características próprias, sem, contudo, poder ser equi- parado a um empregado, nem mesmo ao admitido temporariamente.

A bem da verdade, o trabalhador subordinado típico é o empregado, aquele que se beneficia integralmente do regime do art. 7.o da atual Constitui- ção. Como atípicos surgem o eventual e o temporário, que não gozam, neces- sariamente, dos direitos definidos neste artigo, mas ficam sujeitos à legislação específica.

O temporário é aquele que presta serviços para as empresas de locação de trabalho temporário. Estas, por sua vez, cedem os serviços para outras.

A subordinação do trabalhador temporário se dá perante a empresa de trabalho temporário. É desta que percebe a remuneração, nada obstante o fato de o seu trabalho dar-se em favor do cliente da empresa do trabalho temporário.

Quanto ao trabalhador sem vínculo de subordinação, uma düplice clas- sificação há de ser feita. De um lado, o trabalhador autônomo propriamente dito e, de outro, a empreitada (contrato em que uma das partes se propõe a fazer ou a mandar fazer certa obra, mediante a remuneração determinada ou proporcional ao serviço executado).

Autônomo é aquele trabalhador que preserva o poder de organizar a sua atividade. Não abre mão da prerrogativa de não sofrer ingerência heterônoma na determinação da sua prestação laboral. Portanto, não se subordina. Não só escolhe os seus serviços, como não fica sujeito a controle e poder disciplinar alheios. Trabalha, outrossim, sob

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sua responsabilidade, o que acarreta, sem dúvida, riscos econômicos e financeiros a que não se sujeita o empregado. Nessa categoria, estão incluídos os profissionais liberais, que prestam sua ati- vidade em seus consultórios ou escritórios, os profissionais sem vínculo empregatício e os vendedores por conta própria.

2.2. Trabalhador rural

A Lei Complementar n. 11/71 define empregador rural como sendo "... a pessoa física que presta serviços de natureza rural a empregador, mediante remuneração de qualquer espécie" (art. 3.o, § 1.o, a).

O trabalhador rural não vinha enunciado na Constituição de 1967 como beneficiário necessário das garantias constitucionais na matéria. É uma novi- dade, pois, do atual Texto Constitucional, no seu artigo 7.o, ter equiparado o trabalhador urbano ao rural.

Nota-se, contudo, uma pequena diferença constante deste próprio artigo, no seu inc. XXIX, que confere prazos prescricionais diferentes para propositura de ações trabalhistas, conforme o prestador do serviço seja urbano ou rural.

A própria discriminação entre o que seja um trabalhador rural e outro urbano perde, portanto, muito da sua razão de ser.

2.3. Trabalhador Doméstico

Os trabalhadores domésticos também não gozavam de uma proteção cons- titucional, ficando ao critério da lei atribuir-lhes o regime competente.

Entretanto, os domésticos fruem agora daqueles direitos especificados no parágrafo único do inc. XXXIV do art. 7.o Têm direitos, portanto, por força da Constituição, ao salário mínimo, irredutibilidade do salário, décimo terceiro, gozo de férias anuais com um terço a mais do que o salário normal, licença à gestante, licença-paternidade, aviso prévio e aposentadoria.

A legislação específica sobre empregado doméstico está na Lei n. 5.859, de 11 de dezembro de 1972, que fornece a definição dessa categoria de traba- lhador: "... aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou a família, no âmbito residencial destas..." (art. 1.o).

3. DIREITOS DOS TRABALHADORES

Esses direitos dizem respeito tão-somente àqueles que mantêm um vín- culo de emprego.

São os destinados a proteger a relação de trabalho contra uma profunda desigualdade, que resultaria da não-observância de preceitos mínimos destinados a compatibilizar a função laboral com a dignidade e o bem-estar do indivíduo.

A Constituição cuida desses direitos mínimos no art. 7.o, deixando claro que protegem tanto os empregados urbanos quanto os rurais.

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Os direitos dos trabalhadores que sofreram mais profunda alteração com a Constituição de 1988 foram os que seguem.

3.1. Despedida Arbitrária ou Sem Justa Causa

O inc. I do art. 7.o introduz uma nova conquista laboral, que prevê uma proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa. O direito anterior limitava-se a conferir ao empregado o levantamento do FGTS acrescido de importância igual a 10% sobre os depósitos. No caso de culpa recíproca ou força maior, o percentual equivalia a 5%.

A atual Carta prevê uma indenização compensatória que será regulada em lei complementar. Enquanto esta não advier, vigora o art. 10 das Disposi- ções Transitórias, que prevê um aumento de quatro vezes dos 10% indenizatórios em vigor (cf. Lei n. 5.107/66).

3.2. Salário Mínimo

Determina o art. 7.o, IV, a unificação do salário mínimo em todo o territó- rio nacional, o que é feito para evitar abusos, ou seja, para impedir que certos empregadores tirem proveito da situação de desespero de alguns para impor-lhes um salário não condizente com a realidade econômica do momento.

Trata-se da contraprestação mínima, que deve ser efetuada pelo empre- gador ao trabalhador por determinado período de serviço e que seja capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família.

Inovação importante deu-se no âmbito do salário mínimo. Este passou a ter o seu quantum determinado por um número muito maior de itens. Cite-se, como exemplo, o lazer. Acontece que esse salário mínimo, para ser aplicado, demanda uma nova legislação, que regulamente o dispositivo sob comento. Enquanto esta não vier, o salário mínimo há de continuar a ser pago na forma da atual legislação.

3.3. Participação nos Lucros

A atual Constituição estabelece no inc. XI do já referido art. 7.o, de ma- neira clara e taxativa, que os empregados têm direito a participar nos lucros, ou resultados da empresa, de forma desvinculada da remuneração, conforme vier a ser definido em lei. Assim sendo, a matéria está na dependência de lei regulamentadora.

3.4. Liberdade Sindical

O art. 8.o estabelece ser livre a associação profissional ou sindical.

É este um caso particular do direito mais amplo de associação, já assegurado de maneira ampla no rol dos direitos individuais.

O sindicato possui, no entanto, características que o individualizam dentre as associações. Ele só pode ser formado por trabalhadores da mesma catego- ria profissional e

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tem por objeto a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da aludida categoria. Ele tem uma presença obrigatória nas negocia- ções coletivas, e o nelas decidido obriga mesmo o empregado não filiado ao sindicato, sem embargo de ficar certo que ninguém pode ser compelido a filiar- se ou a manter-se filiado a entidades sindicais.

Em alguns pontos avançou-se no sentido de uma maior liberdade sindi- cal; por exemplo, o art. 8.o, I, veda ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical.

Entretanto, já o inc. II do mesmo artigo veda a criação de mais de uma organização sindical em qualquer grau, representativa de categoria profissio- nal ou econômica, na mesma base territorial. Em outras palavras, num mesmo território só pode haver um sindicato da mesma categoria.

O poder sindical foi muito reforçado. O inc. IV do mesmo art. 8.o chega a conferir à assembléia geral o direito de instituir contribuição para custeio do sistema confederativo, independentemente da contribuição prevista em lei.

3.5. Greve

As condições impostas pelo liberalismo econômico originado pela Revolu- ção Industrial levaram o operariado à greve, "o grande instrumento de afirma- ção do trabalhador", nas palavras de Antonio Candido.

Trata-se de um conflito coletivo de trabalho, consistente na paralisação dos serviços necessários à empresa, seja estatal, seja privada: "derivada da própria natureza das relações de trabalho, manifesta-se onde quer que os desajus- tamentos das partes contratantes envolvam uma pluralidade de trabalhadores" (cf. Azis Simão, Sindicato e Estado, São Paulo, Atica, 1981, p. 51).

Conforme Héléne Sinay e Jean Claude Javillier, a greve é um ato de

força e, por isso, à primeira vista, o direito não deveria dela se ocupar (cf. Droit du travail - la grève, 2. ed., Paris, Dalloz, 1984).

A força da greve é inegável. No Brasil, em menos de cem anos, a greve, que era considerada crime, converteu-se em direito esculpido na Lei Fundamental. É assegurada de forma ampla no caput do art. 9.o da Constituição.

O Estado acabou por admitir a greve como forma de impor a vontade da massa trabalhadora, mas limitou o seu exercício através da sindicalização. Ainda, o § 1.o do referido art. 9.o incumbe-se de cerceá-lo, ao menos no que diz respeito aos serviços e atividades essenciais, tais como definidos em lei.

3.6. Outros Direitos

Quanto às horas semanais de trabalho, elas sofreram uma redução de quarenta e oito para quarenta e quatro e o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento teve a sua jornada reduzida para seis horas, salvo negociação coletiva.

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A hora extra teve a sua remuneração mínima acrescida de 50% sobre a do horário normal.

A gestante passa, doravante, a gozar de licença de cento e vinte dias, embora deva-se notar que ela já goza, também, por força do art. 10, II, b, das Disposições Transitórias, de proteção consistente na proibição de sua despedida arbitrária ou sem justa causa, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.

A licença-paternidade é outra inovação. Consiste no direito de opai ausen- tar-se do trabalho por cinco dias por ocasião do nascimento do filho (cf. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 10, § 1.o).

O inc. XX do art. 7.o determina a implantação de uma política de prote- ção do mercado de trabalho da mulher, o que deverá ser feito por lei.

Com efeito, são tão diversas as discriminações feitas a favor da mulher que se afigurou de bom alvitre ao constituinte reequilibrar o mercado de trabalho, tornado desfavorável para a mulher. A lei deverá, portanto, me- diante incentivos específicos, tornar atraente a contratação de mulheres pelo empregador, nada obstante o fato de saber-se terem elas um custo social bem mais elevado.

Quanto ao seguro contra acidentes de trabalho a cargo do empregador é bom notar que a Constituição não exclui o dever, por parte deste, de indenizar, desde que tenha havido dolo ou culpa.

A partir do inc. XXX o Constituinte faz praça de uma séria preocupa- ção: coibir as discriminações. Assim é que fica logo proibida a diferença de salários por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; proíbe-se a discrimina- ção contra o deficiente; veda-se a distinção entre o trabalho manual, técnico e intelectual e, finalmente, estabelece-se a igualdade de direitos entre o traba- lhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso.

Pelo inciso XII do art. 7.o fica garantido o salário-família para os depen- dentes dos trabalhadores. A Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, modificou a redação desse dispositivo, deixando certo que esse be- nefício deve ser concedido aos dependentes de trabalhadores de baixa renda a serem definidos por lei. Por esta emenda, que altera a redação do inciso XXXIII do art. 7.o, fica proibido o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

Também as domésticas resultam quase que equiparadas aos demais trabalha- dores, uma vez que o parágrafo único do inc. XXXIV a elas confere os direi- tos previstos nos incisos nele especificados.

CAPÍTULO IV DA NACIONALIDADE

SUMÁRIO: 1. Nacionais e estrangeiros. 1.1. Exceções. 2. Critérios para atribui- ção da nacionalidade: jus sanguinis ejus soli. 2.1. Exceções. 3. Perda da naciona- lidade. 4. Reaquisição da nacionalidade.

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1. NACIONAIS E ESTRANGEIROS

Em face do Estado, todo indivíduo ou é nacional ou é estrangeiro. É que a nacionalidade representa um vínculo jurídico que designa quais são as pes- soas que fazem parte da sociedade política estatal. Ao conjunto dessas pessoas chama-se "povo", o que não deve ser confundido com "população", que é um conceito meramente demográfico, designativo do número de habitantes de um dado território num determinado momento.

População, saliente-se, não é um conceito de natureza jurídica porque en- globa categorias de indivíduos que nutrem com o Estado as mais diversas rela- ções jurídicas: estrangeiros residentes no país, apátridas etc. Por outro lado, o conceito de "população" não interessa ao direito porque não compreende aque- les que, muito embora residindo fora do território do Estado, são seus nacionais.

Cumpre deixar clara a nítida distinção que separa o estrangeiro do nacional.

Este mantém com o Estado um vínculo jurídico, esteja ele sediado ou não no

seu território.

São, portanto, "nacionais" de um Estado aqueles que o seu direito defi- ne como tais. É uma situação jurídica e não uma mera situação de fato.

O conceito de "estrangeiro" só pode ser entendido a partir de uma exclusão: estrangeiro é todo aquele que não é tido por nacional, em face de um de- terminado Estado. Isso não significa que os estrangeiros não estejam sujeitos à regulamentação do direito do Estado em que se encontrem. Pelo contrário: sujeitam-se às imposições deste e gozam dos benefícios conferidos aos na- cionais, em matéria de proteção dos direitos individuais. Sofrem, contudo, restrições no tocante à fruição de direitos políticos ou ao exercício de atividades que possam interferir na segurança nacional.

O que é certo, entretanto, é que o gozo desses benefícios e a sujeição a esses ônus perduram enquanto o indivíduo se encontrar no âmbito espacial da jurisdição do Estado. Em dele saindo, cessa toda a referida sujeição jurídica.

Um nacional, ainda que residente no estrangeiro, pode vir a sofrer san- ções do Estado a que pertence (p. ex.: a perda da própria nacionalidade). Pode também gozar de certos direitos (p. ex.: a repatriação para o Brasil, no caso de encontrar-se impossibilitado de retornar por seus próprios meios).

A mesma situação não ocorre, entretanto, com o estrangeiro egresso do território nacional. A razão disso é que, sendo o Estado uma sociedade, in- cumbe-lhe zelar pelo bem comum dos seus membros (no caso, os seus nacio- nais) e tão-somente disciplinar a atividade dos estrangeiros residentes no seu território na medida em que isso for considerado indispensável para assegurar o bem comum.

Em síntese, pois, nacional é a pessoa natural do Estado. É todo aquele que se encontra preso ao Estado por um vínculo jurídico que o qualifica como seu integrante (vínculo que o acompanha, inclusive em seus deslocamentos no es- paço, quando se encontrar no âmbito territorial de outros Estados). Pessoa es- trangeira é aquela a que o direito do Estado não atribui a qualidade de nacional.

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1.1. Exceções

A Constituição Federal estabelece no art. 5.o a garantia aos brasileiros e estrangeiros residentes no País à inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Todavia, esse direito, à primeira vista igualitário, sofre restrições acentuadas, pelo próprio Texto Maior. Por exemplo:

O art. 5.o LI, determina: "Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins...".

2. CRITÉRIOS PARA ATRIBUIÇÃO DA NACIONALIDADE: JUS SANGUINIS E JUS SOLI

Como se viu, o direito positivo de cada Estado é o competente para conferir a nacionalidade, o que é feito em função da adoção de diferentes critérios. Basicamente, podem ser resumidos a dois. O primeiro se funda no princípio de que será nacional todo aquele que for filho de nacionais (jus sanguinis). O segundo determina serem nacionais todos aqueles nascidos em seu território (jus soli). Constata-se, pois, que são regimes de inspiração muito diversa, uma vez que um leva em conta a paternidade, ou seja, a nacionalidade dos pais, enquanto o outro parte do critério da territorialidade, vale dizer, do lugar do nascimento.

É de se notar que a conveniência para os Estados em adotar um ou outro critério também é variável segundo se trate de um país de emigração ou imigração. Os que exportam os seus nacionais inclinar-se-ão por adotar a teoria do jus sanguinis, visto que ela lhes permite manter uma ascendência jurídica mesmo sobre os filhos de seus emigrados. Ao reverso, os Estados de imigração tende- rão ao jus soli procurando integrar o mais rapidamente possível aqueles con- tingentes migratórios, através da nacionalização dos seus descendentes.

É importante salientar que essas considerações só têm valia no nível pré-jurídico porque perante o direito positivo serão nacionais, como já foi dito, aqueles assim considerados pelo constituinte, que em regra nunca se filia de modo absoluto a quaisquer dessas teorias. Pelo contrário: constrói um re- gime adequado à sua realidade, como é o caso do Brasil, que, embora filiado à teoria do jus soli, aceita-a com abrandamentos, como a seguir se verá.

2.1. Exceções

Tanto o jus sanguinis quanto o jus soli sofrem exceções, isto é, não são

aplicados de modo absoluto, e sim de acordo com o interesse de cada país.

O Brasil adota o critério do jus soli, com algumas exceções:

O art. 12 dispõe sobre a nacionalidade.

I - São brasileiros natos:

a) Os nascidos em território brasileiro, embora de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país.

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Nascer em território brasileiro significa nascer em qualquer parte do

nosso domínio. Por exemplo: são brasileiros os nascidos em navio de guerra brasileiro, onde quer que se encontre.

Há exceção ao princípio do jus soli quanto aos filhos de estrangeiro ou

estrangeira que esteja a serviço do seu país (aqui aplica-se o jus sanguinis).

b) Os nascidos fora do território nacional, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço do Brasil.

Outra exceção ao jus soli (aqui também aplica-se o jus sanguinis).

c) Os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, embora não estejam a serviço do Brasil, desde que venham a residir na República Fe- derativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira; isto conforme a nova redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão n. 3, de 1994.

1. A letra c do inciso I do art. 12 da Constituição Federal teve a sua redação alterada pela Emenda Constitucional de Revisão n. 3, de 1994. A anterior apresentava sensível diferença; veja- mos: "c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente, ou venham a residir na República Federativa do Brasil antes da maioridade e, alcançada esta, optem em qualquer tempo pela nacionalidade brasileira".

São duas hipóteses:

1.a) Registrado em repartição competente brasileira - é considerado nato, independentemente de manifestação de vontade.

2.a) Não registrado - a aquisição da nacionalidade brasileira dependerá de manifestação expressa do interessado em adquirir a nacionalidade brasileira, a qualquer tempo.

II - São brasileiros naturalizados:

a) Os que adquiram, na forma da lei, a nacionalidade brasileira; aos de países de língua portuguesa exige-se apenas a residência por um ano ininterrupto, em nosso país, e idoneidade moral.

b) Os estrangeiros de qualquer nacionalidade residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.

Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciproci- dade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasilei- ro, salvo os casos previstos na Constituição.

São privativos de brasileiros natos os seguintes cargos:

I - Presidente e Vice-Presidente da República;

II - Presidente da Câmara dos Deputados;

III - Presidente do Senado Federal;

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IV - Ministro do Supremo Tribunal Federal;

V - da carreira diplomática;

VI - de oficial das Forças Armadas.

3. PERDA DA NACIONALIDADE

O § 4.o do art. 12 diz que perderá a nacionalidade brasileira aquele que:

I - tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional;

II - adquirir outra nacionalidade por naturalização voluntária.

Ação voluntária não significa, necessariamente, pedido expresso de aquisi- ção de nacionalidade. A naturalização pode ocorrer implicitamente, dependendo da legislação do país em que o brasileiro se encontra.

A questão de se saber se houve ou não naturalização voluntária em caso de contestação será apreciada pelos Tribunais.

III - adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos:

a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira;

b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em Estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis.

A Constituição, a partir da Emenda Constitucional de Revisão n. 3, de 1994, passou a reconhecer expressamente o direito de brasileiro não perder a sua nacionalidade por força de possuir uma estrangeira, desde que decorrente de um ato não voluntário, o que significa dizer, desde que se trate de uma nacionalidade originária. Alguém que nasça no Brasil mas seja descendente de estrangeiro cujo país confira a qualidade de nacionais aos filhos dos seus nacionais nascidos no estrangeiro.

Num outro ponto a Constituição foi inovada de maneira mais acentuada. Foi ao tratar dos efeitos da aquisição, por brasileiro, de nova nacionalidade por ação voluntária. No direito anterior toda naturalização de brasileiro leva- va à perda da nacionalidade. No atual reconhece-se que o mesmo brasileiro possa ter sido forçado a adquirir esta nova nacionalidade. Considera-se que houve coerção ou imposição toda vez que o Estado estrangeiro exija como condição para permanência em seu território, ou para o exercício dos direitos civis, a naturalização. Nestas hipóteses, pois, ainda que o brasileiro leve a efeito a sua naturalização, esta não tem o condão de privar-lhe a nacionalida- de brasileira.

4. REAQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE

A perda da nacionalidade brasileira nos casos do art. 12, § 4.o I e II, não é impeditiva de reaquisição.

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Assim, o que perdeu a nacionalidade pelos motivos elencados nestes incisos poderá readquiri-la por decreto do Presidente da República, se estiver domiciliado no Brasil (Lei n. 818/49, art. 36).

A reaquisição não será concedida se ficar apurado que o brasileiro op- tou por outra nacionalidade (art. 12, § 4.o, II) para se eximir de obrigações cívicas.

A reaquisição se opera a partir do decreto que a concedeu, não tendo efeito retroativo.

Mas o readquirente se beneficiará da concessão anteriormente perdida, inclusive das vantagens de brasileiro nato, se for o caso.

Não cabe reaquisição no caso de naturalizado que teve sua naturaliza- ção cancelada por sentença judicial, a menos que o cancelamento tenha sido desfeito por ação rescisória.

CAPÍTULO V DOS DIREITOS POLÍTICOS

SUMÁRIO: 1. Características gerais. 2. Distinção entre nacional e cidadão. 3. Democracia semidireta. 4. Direitos políticos ativos e passivos. 5. Suspensão e perda dos direitos políticos.

1. CARACTERÍSTICAS GERAIS

No Estado de Direito o indivíduo tem assegurada pela ordem jurídica uma certa gama de interesses relativos à propriedade, à liberdade, à igualdade etc. São direitos oponíveis ao Estado e que visam a inibir sua atuação: têm, pois, um conteúdo negativo. Entretanto, ao lado destes, coexistem no Estado democrático direitos assecuratórios da participação do indivíduo na vida polí- tica e na estrutura do próprio Estado. Enquanto os primeiros visam a proteger o indivíduo enquanto mero súdito do Estado, os segundos almejam assegurar ao cidadão acesso à condução da coisa pública ou, se se preferir, à participa- ção na vida política. Daí serem chamados "direitos políticos", por abrange- rem o poder que qualquer cidadão tem na condução dos destinos de sua coleti- vidade, de uma forma direta ou indireta, vale dizer, sendo eleito ou elegendo representantes próprios junto aos poderes públicos.

Pimenta Bueno os define como sendo "... prerrogativas, atributos, facul- dades, ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no governo de seu país, intervenção direta ou indireta, mais ou menos ampla, segundo a intensidade do gozo desses direitos. São o Jus Civitatis, os direitos cívicos, que se referem ao Poder Público, que autorizam o cidadão ativo a participar na formação ou exercício da autoridade nacional, a exercer o direito de vontade ou eleitor, os direitos de deputado ou senador, a ocupar cargos políticos e a manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado" (Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império, nova ed., Rio de Janeiro, 1958, p. 458).

Constituem espécies de direitos políticos, por exemplo: o direito de vo- tar, o de ser votado, o de prover cargo público etc...

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2. DISTINÇÃO ENTRE NACIONAL E CIDADÃO

O nacional não deve ser confundido com o cidadão. A condição de nacional é um pressuposto para a de cidadão. Em outras palavras, todo cidadão é um nacional, mas o inverso não é verdadeiro: nem todo nacional é cidadão. O que confere esta última qualificação é o gozo dos direitos políticos. Cidadão, pois, é todo o nacional na fruição dos seus direitos cívicos. Se por qualquer motivo não os tenha ainda adquirido (p. ex., em razão da idade) ou já os tendo um dia possuído veio a perdê-los, o nacional não é cidadão, na acepção técnico-jurí- dica do termo.

A doutrina distingue entre direitos políticos ativos e direitos políticos passivos.

Direitos políticos ativos referem-se à capacidade para ser eleitor, e repre- sentam um pré-requisito para o exercício dos direitos políticos passivos, que constituem a possibilidade de ser eleito.

A aquisição dos direitos políticos, em face do atual Sistema Constitucio- nal Brasileiro, se dá, gradativamente, através de um processo que se inicia aos dezesseis anos e termina aos trinta e cinco.

3. DEMOCRACIA SEMIDIRETA

Logo no início do capítulo dos direitos políticos o constituinte consa- grou mecanismos de democracia semidireta. O que significa isto exatamente?

A democracia grega, que se realizava através da participação dos cida- dãos diretamente nos negócios do Estado, hoje, é praticamente impossível em virtude do número enorme de pessoas, bem como pelo próprio tamanho do Estado Moderno (a exceção são alguns cantões suíços). Realizar reuniões onde todos pudessem participar seria o caos. Por estas e outras razões, o sistema adotado a partir do século XVIII foi o representativo, onde os cidadãos se fazem presentes indiretamente na elaboração das normas e na administração da coisa pública através de delegados eleitos para esta função.

Os instrumentos de democracia semidireta, portanto, são a tentativa de dar mais materialidade ao sistema indireto. É tentar reaproximar o cidadão da decisão política, sem intermediário. Para isto o constituinte escolheu os se- guintes instrumentos:

I - Plebiscito - no plebiscito há a manifestação popular, onde o eleitorado decide, ou toma posição, diante de uma determinada questão. Assim, em ter- mos práticos, é feita uma pergunta à qual responde o eleitor. Em 1993 houve um plebiscito para decidir sobre a forma e o sistema de governo.

II - Referendo - é uma forma de manifestação popular, em que o elei- tor aprova ou rejeita uma atitude governamental.

III - Iniciativa popular - é o direito de uma parcela da população (um por cento do eleitorado) apresentar ao Poder Legislativo um projeto de lei que deverá ser examinado e votado. Os eleitores também podem usar deste instru- mento em nível estadual e municipal.

4. DIREITOS POLÍTICOS ATIVOS E PASSIVOS

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I - Ativos - os direitos políticos ativos iniciam-se aos dezesseis anos de forma facultativa e aos dezoito de forma obrigatória (daí falar-se que o voto é, além de um direito, uma função). Esta manifestação dos direitos políticos ativos se dá através da capacidade de votar, participar de plebiscito e referendo, subs- crever projeto de lei de iniciativa popular e de propor ação popular.

No entanto, estes direitos não são automáticos. Necessário se faz o alista- mento eleitoral. Este, como já foi dito, é obrigatório para os maiores de dezoi- to anos e facultativo para os maiores de dezesseis e menores de dezoito, para os analfabetos e para os maiores de setenta anos.

O alistamento eleitoral é vedado aos menores de dezesseis anos, aos estrangeiros e àqueles que estiverem cumprindo serviço militar obrigatório.

II - Passivos - os direitos políticos passivos consistem na possibilida- de de ser votado, à qual se dá o nome de elegibilidade. Esta vem a ser, pois, a faculdade que os brasileiros possuem de candidatar-se ao provimento de cargos públicos. Em regra, todo aquele que se encontra na posse dos seus direitos políticos é elegível, desde que se aliste e não seja analfabeto.

Algumas pessoas tornam-se inelegíveis para o pleito subseqüente em ra- zão de terem ocupado certos cargos, o que se dá com o Presidente da República, os Governadores de Estado, do Distrito Federal e os Prefeitos, assim como quem os houver sucedido ou substituído nos seis meses anteriores ao pleito torna-se inelegível para os mesmos cargos no período imediatamente subseqüente.

Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito. É o que se denomina desincompatibilização.

A desincompatibilização consiste no abandono de uma situação de provi- mento de cargo público que, se perpetuada além do prazo fixado em lei, gera- ria a inelegibilidade para aquele pleito específico.

A Constituição fixa, ainda, outros casos de inelegibilidade, por exem- plo, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüí- neos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eleito e candidato à reeleição.

À lei complementar é que caberá estabelecer outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, tal como dispõe o § 9.o do art. 14 da Constituição de 1988, com a nova redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional de Revisão n. 4, de 1994: "Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta".

Em síntese, atingida a idade para o alistamento eleitoral, levando este a cabo, e não sendo a pessoa analfabeta, torna-se elegível, condição que é nor- mal, excetuada,

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contudo, em razão do provimento de alguns cargos públicos, nas formas descritas em lei complementar, se não contempladas pela própria Constituição.

O militar é elegível atendidas algumas condições que a Constituição estipula (§ 8.o do mesmo art. 14 da CF).

As inelegibilidades são, na maior parte das vezes, afastáveis mediante o instituto da desincompatibilização, que vem a ser, como vimos, o afastamento daquela situação que estava gerando o impedimento para a candidatura.

São condições de elegibilidade: a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circuns- crição, a filiação partidária e a idade mínima de:

a) dezoito anos para Vereador;

b) vinte e um anos para Deputado Federal, Estadual ou Distrital, Prefei- to e Vice-Prefeito e Juiz de Paz;

c) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado ou Distrito Federal;

d) trinta e cinco anos para Senador, Presidente e Vice-Presidente.

Os analfabetos que alcançaram o status de eleitores (facultativo) não alcançaram a possibilidade de serem eleitos, portanto, não têm direitos polí- ticos passivos (art. 14, § 4.o).

5. SUSPENSÃO E PERDA DOS DIREITOS POLÍTICOS

A perda e a suspensão dos direitos políticos podem-se dar, respectivamente, de forma definitiva ou temporária.

Ocorrerá a perda quando: houver cancelamento da naturalização por sen- tença transitada em julgado e no caso de recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa (é o caso do serviço militar obrigatório).

A suspensão dos direitos políticos se dá enquanto persistirem os moti- vos desta, ou seja, enquanto não retoma a capacidade civil, o indivíduo terá seus direitos políticos suspensos; readquirindo-a, alcançará, novamente, o status de cidadão. Também são passíveis de suspensão os condenados criminalmen- te (com sentença transitada em julgado). Cumprida a pena, readquirem os direitos políticos; no caso de improbidade administrativa, a suspensão será, da mesma forma, temporária.

CAPÍTULO VI DOS PARTIDOS POLÍTICOS

SUMÁRIO: 1. Conceito. 2. Partidos políticos no Brasil. 3. Fidelidade partidária.

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1. CONCEITO

Definir partido político não é tarefa fácil, dadas as múltiplas formas e mesmo finalidades diversas que pode ele assumir.

Muito genericamente pode-se afirmar sobre ele o seguinte: trata-se de uma organização de pessoas reunidas em torno de um mesmo programa político com a finalidade de assumir o poder e de mantê-lo ou, ao menos, de influen- ciar na gestão da coisa pública através de críticas e oposição.

1. Essa definição é basicamente coincidente com a de Georges Burdeau: "Qualquer agrupa- mento de indivíduos que, professando as mesmas idéias políticas, esforçam-se para fazê-las preva- lecer, a um tempo a ele reunindo o maior número possível de cidadãos e buscando conquistar o poder, ou, pelo menos, influenciar suas decisões" (Tratado de ciência política, 2. ed., t. 3, p. 268).

Nota-se que o partido político é um organismo situado entre o indivíduo e o Estado. Sua existência tem sido devida às imposições decorrentes do siste- ma representativo. Desde cedo, quando os Parlamentos começaram a represen- tar um papel político importante, neles também apareceram os grupos ou fac- ções precursores dos atuais partidos políticos. Este caráter parcial e circunscri- to à defesa de alguns interesses em detrimento de outros deu lugar na Doutrina a uma séria resistência à adoção dos partidos políticos, que na acepção atual, na verdade, só surgiram por volta de 1850. Foram muito acerbas as críticas a eles dirigidas sobretudo no século passado. No atual, a sua disseminação por todos os países democráticos tem tornado desprezível a discussão sobre a sua conve- niência: antes de mais nada o partido político é uma necessidade. Sem ele a opinião pública não poderia ser organizada em torno de propostas políticas alternativas, mas dotadas cada uma de uma mesma visão inspiradora. De ou- tra parte o governo também tem necessidade do partido político, porque é através dele que é obtido o indispensável apoio da sociedade para a consecu- ção dos objetivos governamentais.

Em síntese, portanto, a democracia moderna depende visceralmente do partido político e há uma correlação muito nítida entre a aparição do autorita- rismo e o esboroamento do sistema partidário.

Nunca é demais enfatizar a idéia de que os partidos variam muito de país para país e a razão principal é que são também diversos os sistemas par- tidários dentro dos quais eles se podem inserir. Ao menos três se destacam nitidamente: o monopartidarismo, o bipartidarismo e o pluripartidarismo.

O monopartidarismo é uma constante nos países marxistas e encontrável, também, em algumas ditaduras de direita, sobretudo quando inspiradas no fascismo.

2. Embora marxismo e fascismo apresentem esse ponto em comum: o monopartidarismo, é preciso reconhecer que chegam a ele a partir de uma visão de mundo radicalmente oposta. Veja-se o que diz a respeito Maurice Duverger: "A filosofia comunista é a herdeira direta da filosofia das luzes e da crença no progresso. O marxismo tende a demonstrar que a idade de ouro está ante nós, a era da sociedade sem classe, a era do fim da exploração do homem pelo homem, e a era da prosperidade e da felicidade. "Os amanhãs que cantam": esta frase de Gabriel Péri é, tipicamente, comunista. Para um fascista era ontem que cantava, nos bons tempos passados; trata-se de reencontrar uma tradição per- dida, de volta a

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fontes que secaram; a idade de ouro que ficou para trás de nós", seguindo, "os fascistas pensam que o homem é por natureza corrupto, é só a sociedade que o civiliza. Postos de lado os gênios, os heróis, os santos, as elites, os "que receberam o misterioso poder de dar mais aos seus contemporâneos". O fascismo é, ao mesmo tempo, desprezo do indivíduo e exaltação do indivíduo; desprezo do indivíduo comum, exaltação do super-homem. O comunismo acredita nos homens co- muns. Na sua pureza original, não acredita nos super-homens: o marxismo tende a minimizar a ação dos indivíduos - sobre o desenrolar da história" (Partidos políticos, p. 290 e s.).

Tal sistema, obviamente, acaba por privar o partido político único de funções em princípio inerentes às organizações partidárias em geral. Por exemplo, a disputa pelo poder deixa de existir e os conflitos são resolvidos dentro do próprio partido. Às vezes até pela exclusão das correntes minoritárias a que se dá o nome de expurgo, ou então mediante uma oposição contra o próprio regime, o que gera uma forma conspirativa de tomada do poder.

O bipartidarismo tende a fazer aparecer organizações com pouca diferen- ciação ideológica. Isso significa o seguinte: cada um dos partidos só pode ascender ao poder se for majoritário. Isto leva a que eles se voltem para o ponto médio ou denominador comum da opinião nacional.

Em outras palavras, de nada lhes adianta manterem-se fiéis a princípios ideológicos mas que só lhes assegure vinte ou trinta por cento do eleitorado.

No bipartidarismo há uma alternância no poder diante da qual o único fator que conta é a vitória.

De passagem vale salientar-se que muitas vezes um bipartidarismo for- mal recobre, no fundo, um monopartidarismo de fato. É o que se deu em boa parte da vida política brasileira pós-revolução de 1964. O bipartidarismo é entre os sistemas partidários o mais conhecido, o que se deve muito provavel- mente ao fato de ser ele praticado pelos Estados Unidos, a maior potência da Terra, e pela Inglaterra, o berço dos partidos políticos.

3. Convém salientar, entretanto, que mesmo nesses dois países há outros partidos políticos, mas a desproporção entre eles e os grandes partidos é tão significativa a ponto de se poder considerar como bipartidarismo puro o regime que vige nesses países. Neles sempre um partido é governo e o outro oposição; sempre um partido é conservador e o outro liberal; entre esses partidos nunca há coalizões.

Nos sistemas multipartidários, não necessariamente, mas quase sempre, o partido vitorioso nas eleições não detém a maioria do Parlamento. Abre-se, então, um complexo jogo de negociações tendentes a aglutinar dois ou mais partidos que venham a possibilitar o exercício do governo. Não há dúvida de que o pluripartidarismo reflete com mais matizes as diversas correntes de opi- nião pública. Daí porque ser esse sistema muitas vezes considerado o mais democrático. Acontece, entretanto, que essas vantagens têm o seu custo. Em primeiro lugar, aumentam os poderes dos representantes do povo, na medida em que é o livre jogo das coligações por eles levadas a efeito que vai determi- nar a formação da maioria parlamentar, ao contrário do bipartidarismo, no qual esta maioria já resulta da vontade expressa pelo corpo eleitoral.

De outra parte, estas coligações vêm muitas vezes acompanhadas de uma indesejável instabilidade, já que, formadas que foram pela vontade dos próprios partidos,

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podem também por eles ser desfeitas a qualquer momento. Esta circunstância é grave tanto no presidencialismo quanto no parlamenta- rismo. Nesse último, rompidas as coligações, caem os governos. No presi- dencialismo, o esfacelamento partidário leva à inevitável fraqueza do órgão legislativo, que pode mais facilmente se ver atingido nas suas imunidades, privilégios e competências. Isto quando não se dá o inverso, igualmente a ser evitado, pelo desequilíbrio que traz no bom relacionamento entre os Poderes do Estado. Está-se a referir à hipótese em que, por falta de maioria no Legislativo, o Executivo se vê a braços com a impossibilidade de exercer plenamente a função governativa em razão da obstrução aos seus projetos de lei.

2. PARTIDOS POLÍTICOS NO BRASIL

Desconhecidos pela Constituição e Legislação Imperial, atuavam como associações inorgânicas formadas com base nos interesses de grupos. Havia dois partidos: o Liberal e o Conservador, que apresentavam poucas diferenças.

A Constituição Republicana de 1891 também os ignorou, não passando de instrumentos de expressão e de dominação das oligarquias estaduais. A partir de 1930, começam as transformações em matéria partidária. A primeira manifestação nesse sentido surgiu com o Código Eleitoral expedido pelo Governo Provisório em 1932, que instituiu a representação proporcional, o voto secreto e a Justiça Eleitoral.

Mas é na Constituição de 1946 que eles começam a firmar sua institucionalização jurídica, pois nela é feita explícita consignação dos Parti- dos Nacionais aos quais seria assegurada a representação proporcional nas Comissões Parlamentares.

Até 1965, houve um processo constante de fortalecimento dos partidos resultando em uma maior identificação entre as cúpulas e as bases partidárias. Houve, entretanto, uma quebra brusca nesta ascensão, com a edição do Ato Institucional n. 2, que extinguiu os partidos políticos existentes, exigindo con- dições que viabilizaram a existência de apenas dois partidos: Arena e MDB.

Na Constituição atual a matéria vem disciplinada no art. 17, que estabelece a livre criação, fusão, incorporação e extinção de partidos desde que resguar- dados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana.

Além destes princípios, que devem ser respeitados, os partidos devem cumprir certos requisitos: ter caráter nacional, não receber recursos financei- ros internacionais, prestar contas à Justiça Eleitoral e agir no parlamento de acordo com a lei. Fundamental, no entanto, é que o partido, após adquirir personalidade jurídica, registre seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral.

O § 1.o do art. 17 estabelece a autonomia partidária. Assim, terão os parti- dos liberdade para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento,

devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias.

Por fim vetou o constituinte, expressamente, a utilização pelos partidos de organização paramilitar (art. 17, § 4.o).

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3. FIDELIDADE PARTIDÁRIA

A fidelidade partidária foi introduzida pela Emenda Constitucional n. 1/69 e regulamentada pela Lei n. 5.682/71. A Emenda Constitucional n. 25/85 suprimiu esse instituto e com isso a legislação subconstitucional perdeu a eficácia. Mas a Constituição de 1988 revigorou a fidelidade partidária, determinando no § 1.o do seu art. 17 que os estatutos dos partidos estabeleçam normas de fidelidade e disciplina partidárias.

Chama-se de fidelidade ao dever dos parlamentares federais, estaduais e municipais de não deixarem o partido pelo qual foram eleitos, ou de não se opo- rem às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos da direção partidária, sob pena de perda do mandato por decisão proferida pela Justiça Eleitoral.

A disciplina partidária é um caso particular da disciplina que deve prevalecer em toda e qualquer associação. Isto quer dizer que os filiados devem fidelidade ao programa e objetivos do partido, respeito às regras do seu estatuto, cumpri- mento de seus deveres e probidade no exercício de mandatos ou funções parti- dárias, conforme estatui a Lei Orgânica, cujo art. 7.o prevê sanções disciplinares de advertência, suspensão até doze meses, destituição de função em órgãos partidários ou expulsão do filiado que faltar com as regras de disciplina parti- dária.

O § 1.o do art. 17 não constitui, na verdade, um retorno integral à antiga fidelidade e disciplina partidárias. Isto porque eram elas impostas pela Consti- tuição e regulamentadas na legislação subconstitucional. No momento, a Lei Maior exige simplesmente que os estatutos incorporem normas de fidelidade e disciplina partidárias, o que, necessariamente, envolve outorga de certa margem discricionária para que os artigos regulem esses institutos com maior ou me- nor rigor. Essa possibilidade inexistia no regime anterior, quando as regras eram todas heterônomas. O retorno à fidelidade partidária significa um reen- contro com um mandato imperativo, é dizer, aquele em que o representante fica jungido às diretrizes recebidas de seus eleitores.

A profunda indisciplina partidária reinante no Brasil pode suscitar al- guns institutos destinados a mante; a coesão partidária é fazer com que a agremia- ção atue afinada com os seus ideais programáticos. No entanto, o fechamento da questão em torno de determinados pontos, pela fixação de diretrizes a se- rem compulsoriamente cumpridas, deve ser utilizado com muita moderação, é dizer, somente naqueles casos em que estejam em discussão idéias programá- ticas constantes, obviamente, dos instrumentos de fundação do partido, mas também como de pleno conhecimento público. Os programas partidários são praticamente desconhecidos e o mais das vezes redigidos de forma muito abs- trata e não comprometedora. A utilização, portanto, freqüente desse instituto traz consigo a séria ameaça de uma ditadura interna no partido.

É normal a existência, dentro deste, de pressões de grupos, que preten- dem conduzi-lo mais num sentido do que noutro. O apelo para um recurso estritamente jurídico da fidelidade partidária poderá, inclusive, significar um desrespeito para com a própria vontade popular, cuja captação espera-se seja feita pelo parlamentar. Mas é necessário que este procure afinar-se com a vontade do momento, que pode já não coincidir com a vontade das eleições, e muito menos com as idéias programáticas do partido.

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Andou bem a Constituição ao prever o instituto, atribuindo, contudo, aos próprios partidos discipliná-lo. Certamente saberão estes mostrar uma forma que permita reprimir aqueles abusos, que se traduzem em verdadeira agressão ao partido por parte daqueles outros em que, embora minoritários, certos inte- grantes estejam a fazer um uso legítimo de sua prerrogativa de representante do povo.

As sanções definitivas devem ser de ordem política. Aqueles que se afastam dos programas partidários, traindo a vontade dos que os elegeram, numa de- mocracia operativa e eficaz, deverão merecer o mais completo repúdio nas eleições seguintes.

Jamais institutos técnico-jurídicos poderão substituir-se plenamente à força sancionadora do eleitorado, que é, ainda, o mais legítimo.

TÍTULO III DA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO

CAPÍTULO I A FEDERAÇÃO

SUMÁRIO: 1. A importância do princípio federativo. 2. Funcionamento da fede- ração. 3. Autonomia e soberania. 4. Federação e democracia. 5. Federação como processo. 6. A estrutura do Estado federal. 7. Traços comuns a toda federação. 8. Federação americana. 9. A teoria dos poderes implícitos. 10. A federação no di- reito positivo brasileiro. 11. A federação na Constituição de 1988. 12. Repartição de competências constitucionais.

1. A IMPORTÂNCIA DO PRINCÍPIO FEDERATIVO

O princípio federativo é uma das vigas mestras sobre as quais se eleva o travejamento constitucional. E mesmo tão encarecido e enfatizado pela lei mai- or, a ponto de ser subtraído da possibilidade de ser alterado até mesmo por via de emenda constitucional. No entanto, a realidade não confirma a significação dada à federação. É muito provável que nenhum princípio tenha sido tão for- temente degradado quanto o federativo.

A autonomia estadual é, sob muitos aspectos, uma irrisão. Fatores diver- sos têm demonstrado que muitos Estados-Membros não têm condições de so- breviver financeiramente se lhes faltar o apoio do governo federal. Por outro lado, a partilha constitucional de competências não aquinhoa, devidamente, Estados e Municípios, centralizando, ainda, na mão da União a determinação, ao menos nos seus princípios gerais, das diretrizes a prevalecerem em todos os campos legislativos.

Uma questão fundamental se coloca preliminarmente, qual seja saber por que a federação ainda é importante. Se ela é algo que nasceu nos EUA, tendo em vista as peculiaridades do processo de unificação daquele país, será que não estaria também restrita à realidade das instituições americanas? Será ainda que outros países não teriam importado o federalismo por mero mimetismo? Será que não seria mais fácil nos deixarmos levar pela corrente avassaladora que ruma no sentido da centralização do poder do que lutar por um federalismo mais retórico do que prático?

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A resposta é muito simples. O federalismo é, ainda em nossos dias, um princípio rector que encontra grande receptividade e ressonância na vida de muitos países. Ele não se desatualizou porque soube encontrar novos funda- mentos em substituição àqueles que lhe deram origem. Com efeito, quando se criou a primeira Federação conhecida, a americana, o que se tratou de resolver na época era o problema resultante da convivência entre si das treze colônias inglesas tomadas Estados independentes e desejosas de adotarem uma forma de poder político unificado. De outra parte, não queriam perder a independência, a individualidade, a liberdade e a soberania que tinham acabado de conquistar.

Com tais pressupostos surgiu, assim, a federação como uma associação de Estados pactuada por meio da Constituição.

Em síntese, foi a forma mais imaginosa já inventada pelo homem para per- mitir a conjugação das vantagens da autonomia política com aquelas outras defluentes da existência de um poder central. O problema fundamental a ser resolvido então era o da unificação política de comunidades que não se haviam integrado num todo nacional. Ora, entendida a partir desse fundamento, a federação perdeu a razão de ser. No Brasil, poder-se-ia mesmo dizer, nunca teria tido razão de existir, porque a nossa unidade nacional precedeu à própria implantação do federalismo. Faz-se, então, necessário que busquemos os princípios da federação noutros pro- pósitos, metas, ideais e valores. Dentre esses há um que sobreleva a todos os demais e serve, inclusive, para explicar a Federação americana moderna.

A federação é, igualmente, a forma mais sofisticada de se organizar o poder dentro do Estado. Ela implica uma repartição delicada de competências entre o órgão do poder central, denominado "União", e as expressões das organizações regionais, mais freqüentemente conhecidas por "Estados-Mem- bros", embora, por vezes, seja usado, por igual forma, o nome província e, até mesmo, cantão. Essa partilha de competências entre a União e os Estados é bastante rígida, visto que se apresenta esculpida na própria Constituição Federal, razão pela qual só por intermédio de emenda à Constituição pode ser alterada. Outrossim, os Estados-Membros participam na formação da União através dos senadores que compõem uma Casa do Congresso Nacional.

Constata-se, portanto, que na federação - e aqui estamos a falar da federação de outros países, com exceção do Brasil, visto que este previu um terceiro nível, qual seja, o municipal -, os cidadãos se apresentam submetidos a dois poderes políticos diferentes: o regional e o central. Em outras palavras, sobre o mesmo território há a incidência de duas ordens jurídicas diferentes, cada uma atuando no âmbito específico de suas competências. É importante notar que o Estado federal legisla diretamente para os Estados-Membros, sem necessidade da intervenção desses para que suas normas se tornem eficazes. De outra parte, os Estados-Membros não podem retirar-se da federação. O vínculo associativo é indissolúvel. Note-se, ainda, que a significação do fenô- meno federativo se exaure dentro do mesmo Estado, ou seja, o direito in- ternacional não faz diferença entre o Estado unitário e o federal. Este só tem realidade do ponto de vista do direito constitucional. Isso porque a federação, embora levando ao extremo a possibilidade da descentralização do poder, toda ela transcorre dentro dos limites de um único Estado. Eis aqui o seu traço distintivo específico: ser, por um lado, uma reunião ou uma associação de Estados, mas, de outra parte, dar também lugar a um novo Estado que é o único, de fato, reconhecido pela Ordem Jurídica Internacional.

2. FUNCIONAMENTO DA FEDERAÇÃO

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Vemos, pelo exposto, que é melindroso e delicado o funcionamento de um Estado federal, porque a todo momento podem surgir conflitos nesse sutil me- canismo que o seu funcionamento implica: duas ordens jurídicas convivendo lado a lado, mas sendo aplicadas sobre o mesmo território e sobre os mesmos indivíduos. As possíveis divergências, os possíveis conflitos são sempre dirimidos por um Poder Judiciário. Essa a razão pela qual, dentro do Estado federal, ocu- pa um papel de destaque a Suprema Corte do país. A ela, normalmente, cabe esse papel de guardiã da federação, como órgão que assegura a manutenção e a preservação da Constituição e, em conseqüência, da própria federação.

Vê-se, ainda, que, ao lado da descentralização do poder, a federação apresenta outra faceta muito importante: regra geral, ela implica na existência de um fenômeno associativo ou de agrupamento de Estados preexistentes. Na verdade, é isso que tem acontecido em muitas federações e é isso que, inclusi- ve, ocorreu na primeira delas.

Em 1787, nos Estados Unidos, ficou claro que a confederação inicialmen- ) te estabelecida após a independência da Inglaterra não bastava para resolver o conjunto dos problemas com que se defrontavam os treze Estados americanos. Era necessária uma unidade maior a fim de que pudessem enfrentar os sérios desafios postos pela soberania recém-adquirida. A necessidade de adotar uma moeda única em todo o território ou a conveniência de se enfrentarem de ma- neira unida os desafios militares levantados pela antiga metrópole eram os fa- tores que tomavam impositiva a adoção de uma ordem jurídica capaz de coor- denar de maneira eficiente os esforços de todos os povos integrantes da Fede- ração. No entanto, é preciso reconhecer que nem todos os Estados que se pro- clamam federativos tiveram, no passado, vida independente, atribuída aos di- versos Estados que hoje os compõem. Noutro dizer, também é possível atingir a federação a partir da desagregação de um Estado unitário. É o que ocorre quando do Estado unitário inicial se separam as diversas unidades autônomas que passarão a constituir seus Estados-Membros. Não obstante a profunda di- ferença histórica que as duas experiências encerram, do ponto de vista jurídico, o modelo remanesce o mesmo. Quer se trate de federações surgidas pela agre- gação de Estados preexistentes, quer se trate de federações nascidas da desagregação de um Estado unitário, o importante é que o grau de autonomia dos Estados-Membros seja grande e que essa autonomia esteja assegurada por uma Constituição que, por sua vez, não possa ser alterada senão com a colaboração dos próprios Estados, quando mais não seja, pelo menos a partir da representação que possuem no próprio Senado federal.

Salta à vista, no entando, que, apesar de apresentarem essas característi- cas comuns que as tornam iguais do ponto de vista formal, e não obstante se inspirarem todas no mesmo modelo - o americano -, as federações atual- mente existentes têm, todas elas, sua personalidade própria.

São múltiplos os países do mundo que adotam a forma federativa. O Bra- sil é um deles, mas é preciso também aí elencar a Argentina, o México, os Estados Unidos, a Austrália, o Canadá, a ex-União Soviética e diversos outros. Cada um desses países tem a sua história que influenciou poderosamente na realidade da federação adotada. É o que hoje se percebe de maneira flagrante no caso brasileiro, em que a um modelo teórico de federação não corresponde uma autêntica autonomia das unidades federativas. Certamente isso está ligado com o fato de, no Brasil, essas mesmas unidades nunca terem sido guindadas à posi- ção de Estados soberanos e independentes, pois eram províncias do Império brasileiro e, conseqüentemente, dotadas de nenhuma, ou pouquíssima, autonomia.

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3. AUTONOMIA E SOBERANIA

Temos utilizado aqui as palavras autonomia e soberania. Conviria dei- xar claro em que elas se distinguem do ponto de vista jurídico.

Soberania é o atributo que se confere ao poder do Estado em virtude de ser ele juridicamente ilimitado. Um Estado não deve obediência jurídica a nenhum outro Estado. Isso o coloca, pois, numa posição de coordenação com os demais integrantes da cena internacional e de superioridade dentro do seu próprio território, daí ser possível dizer da soberania que é um poder que não encontra nenhum outro acima dela na arena internacional e nenhum outro que lhe esteja nem mesmo em igual nível na ordem interna.

A autonomia, por outro lado, é a margem de discrição de que uma pes- soa goza para decidir sobre os seus negócios, mas sempre delimitada essa margem pelo próprio direito. Daí porque se falar que os Estados-Membros são autônomos, ou que os municípios são autônomos: ambos atuam dentro de um quadro ou de uma moldura jurídica definida pela Constituição Federal. Autonomia, pois, não é uma amplitude incondicionada ou ilimitada de atua- ção na ordem jurídica, mas, tão-somente, a disponibilidade sobre certas maté- rias, respeitados, sempre, princípios fixados na Constituição.

Autonomia, destarte, é uma área de competência circunscrita pelo direi- to, enquanto a soberania não encontra qualquer espécie de limitação jurídica. O Estado federal é soberano do ponto de vista do direito internacional ao passo que os diversos Estados-Membros são autônomos do ponto de vista do direito interno. Eles gozam, como visto, de uma ampla margem de autonomia dentro das competências que lhes são fixadas pela Constituição Federal.

Na linguagem comum, usam-se indiferentemente República Federativa do Brasil e União como se fossem a mesma coisa. Mas já agora de posse dessas noções introdutórias sobre a federação podemos fazer a distinção que a técnica constitucional impõe.

4. FEDERAÇÃO E DEMOCRACIA

É que a federação se tornou, por excelência, a forma de organização do Estado democrático. Hoje, nos Estados Unidos, há uma firme convicção de que a descentralização do poder é um instrumento fundamental para o exercí- cio da democracia. Quer dizer, quanto mais perto estiver a sede do poder deci- sório daqueles que a ele estão sujeitos, mais probabilidade existe de o poder ser democrático. Esse é um ponto fundamental: não teremos uma autêntica democracia no Brasil se não houver uma forte tendência descentralizadora. Urge, pois, abrir mão de certas velharias inseridas na Constituição, que confundem a federação com um mecanismo de convivência de Estados carentes de unida- de nacional para abraçar a federação como instrumento da democracia.

A regra de ouro poderia ser a seguinte: nada será exercido por um poder de nível superior desde que possa ser cumprido pelo inferior. Isso significa dizer que só serão atribuídas ao governo federal e ao estadual aquelas tarefas que não possam ser cumpridas senão a partir de um governo com esse nível de amplitude e generalização. Em outras palavras, o município prefere ao Estado e à União. O Estado, por sua vez, prefere à União.

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Não podemos esquecer-nos, contudo, de que os poderes agigantados de que desfruta hoje a União não foram necessariamente absorvidos dos Estados e municípios. O que houve foi uma intromissão incomensurada levada a cabo pelo poder central na esfera normalmente reservada aos particulares sobretu- do em matéria econômica. De nada adiantará atribuírem-se tarefas específi- cas a Estados e municípios se se continuar a permitir que a União, de forma descontrolada, incursione pelo domínio econômico.

Foi a assunção de um papel avassalador e asfixiante na gestão da atividade industrial e financeira que permitiu à União exercer uma dominação não- contrabalançada por poderes de igual monta nas demais esferas de governo.

Um poder central estatizante é inconvivente com uma autêntica federa- ção, que pressupõe um equilíbrio entre as diversas esferas governamentais.

5. FEDERAÇÃO COMO PROCESSO

Outro importante ponto a frisar é que a federação não é um esquema jurídico que possa ser transformado em realidade tão-só pela sua enunciação no Texto Constitucional. A federação, como a democracia, é um processo que necessita constante aperfeiçoamento e adaptação a novas realidades.

Ela não se cumpre de um jato só, mas pressupõe um trabalho denodado e pertinaz voltado a exaurir ao máximo as potencialidades de transferência de atividades do centro para a periferia.

Como estamos encarando, a federação nada mais é do que a transplanta- ção para o plano geográfico da tripartição de poderes do plano horizontal, de Montesquieu. Portanto, ela serve ao mesmo princípio de que o poder repartido é mais difícil de ser arbitrário. Se para se dar um golpe necessita-se da aquies- cência de vinte e sete Estados e de mais de cinco mil municípios, ele nunca ocorrerá. Nós só temos tido golpes políticos na nossa história porque o poder está concentrado numa cúpula muito pequena. O fato de a ditadura ter sido centralizadora é perfeitamente explicável. O veículo por excelência do go- verno autoritário é a centralização do poder.

Em síntese, desde que encarada como forma de descentralização do po- der, a federação é não só algo atual, mas uma das idéias magnas que devem informar o futuro do País.

6. A ESTRUTURA DO ESTADO FEDERAL

A forma pela qual o poder é exercido tem sido sempre um problema de vulto na organização das comunidades políticas. É que seria impossível a um governo querer estender sua eficácia até os limites do seu território sem, ao mesmo tempo, adotar alguma forma de descentralização.

Mesmo as Cidades-Estados na Grécia antiga se valeram, ainda que em escala reduzida, desse recurso. Não houve necessidade de exercitá-lo com mais intensidade em razão das exíguas dimensões territoriais dessas organizações políticas.

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O problema toma-se mais agudo quando surgem na Europa os Estados modernos, resultado da concentração de todo o poder nas mãos do monarca. Essas comunidades abrangiam grandes territórios; daí a necessidade de o poder régio fazer-se representar junto às comunidades locais e regionais através de prepostos. Mas o próprio caráter absoluto do regime impunha limites severos à descentralização.

Só em 1787, quando os treze Estados confederados americanos se fundi- ram - se assim podemos dizer - no primeiro Estado federal, é que a descen- tralização do poder irá verdadeiramente florescer. Isso porque na federação as autonomias regionais são elevadas ao mais alto grau de importância, conferin- do-se-lhes amplos poderes. Elas passam a denominar-se Estados, à semelhança do que acontece com a própria organização central da qual fazem parte inte- grante.

Além disso, têm constituições próprias, assim como um Legislativo, um Executivo e um Judiciário seus. Disso resulta ser a federação uma forma de Estado caracterizada sobretudo por ser a resultante de uma reunião ou asso- ciação de outros Estados. Cabe notar, inclusive, que a palavra federação vem do latim foedus, foederis, que significa exatamente união, associação.

República Federativa do Brasil é o nome que se dá ao todo, quer dizer, à resultante do poder central mais os poderes locais ou regionais. O Texto Cons- titucional chama-se Constituição da República Federativa do Brasil, exatamente porque se preocupa em organizar e dar as linhas mestras do Estado brasileiro.

Do ponto de vista interno, esse Estado se expressa basicamente através de duas ordens jurídicas (há uma terceira, a dos municípios, da qual falaremos mais adiante) que são, de um lado, a União e, de outro, os Estados-Membros ou os Estados federados, ou simplesmente Estados.

A União é, portanto, uma pessoa jurídica de direito público dotada de autonomia, vale dizer, ela pode atuar dentro dos limites que a Constituição lhe outorga, da mesma maneira que os Estados-Membros também são autôno- mos. A autonomia recíproca entre os Estados-Membros e a União é a essência do princípio federativo. Com relação a quem seria soberano dentro do Estado federal já muito se discutiu. Houve época em que se entendeu fossem os Esta- dos-Membros os soberanos. Em outras ocasiões preferiu-se dizer que a soberania caberia simultaneamente aos Estados-Membros e à União. Hoje prevalece a doutrina segundo a qual soberano é o Estado total, é a República Federativa do Brasil, que expressa sua soberania na ordem internacional através dos ór- gãos da União.

Falamos há pouco dos municípios. É este um ponto importante na com- preensão do federalismo brasileiro, porque se contemplarmos a doutrina so- bre federação nunca vamos encontrar referência aos municípios, considera- dos um problema dos Estados-Membros que a eles outorgam, ou não, autono- mia segundo o seu talante, ou segundo a sua vontade.

Mas no constitucionalismo brasileiro tal não ocorre. Os municípios tam- bém desfrutam de uma autonomia similar à dos Estados-Membros, visto que não lhes falta um campo de atuação delimitado, leis próprias e autoridades suas. Isso dá ao nosso município a qualidade de autônomo e, mais do que isso, autônomo por força da própria Constituição.

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7. TRAÇOS COMUNS A TODA FEDERAÇÃO

É certo que existem uniões de Estados relevantes do ângulo do direito internacional, mas essas se chamam confederações. O documento jurídico que as forma é o tratado. Dois ou mais Estados podem vincular-se do ponto de vista do direito internacional, celebrando obrigações recíprocas e chegando mesmo a criar um órgão central encarregado de levar a efeito as decisões tomadas.

Mas há diferenças fundamentais entre a confederação e a federação.

Na primeira, já vimos, os Estados que a compõem não perdem sua indivi- dualidade do ponto de vista do direito internacional. Todos eles continuam plenamente detentores da soberania, podendo, livremente, desligar-se a qual- quer momento da confederação. Além do mais, esta não tem poderes de imis- cuir-se nos assuntos internos de cada um dos Estados que a formam. Quer dizer, as decisões tomadas no nível da confederação dependerão sempre de leis internas a cada um dos Estados, para que se tomem efetivas.

Em termos históricos, a confederação é bem mais antiga que a federação. A própria antiguidade clássica a conheceu. Na Grécia, sobretudo, foram fre- qüentes as ligas formadas debaixo da supremacia de uma dada cidade em torno da qual se agrupavam diversas outras, unidas por vínculos de colaboração recí- proca.

Em diversas outras ocasiões históricas, os Estados houveram por bem celebrar, entre si, laços confederativos.

Às vezes, a confederação deu lugar a uma federação: caso dos Estados Unidos e da Suíça, onde, precedentemente às atuais federações, existiram con- federações. Nos Estados Unidos durou de 1781 a 1787, data esta em que en- trou em vigor a primeira Constituição autenticamente federativa na história da humanidade. As razões que presidem a essa passagem normalmente dizem respeito a um caráter muito frouxo das associações confederativas.

Como são poucas as obrigações impostas aos Estados integrantes e como de outra parte remanescem estes na plena responsabilidade de sua soberania, torna-se difícil atingir o alto grau de coesão e de unidade exigidos em dadas circunstâncias históricas.

No caso americano, foi o conjunto de problemas enfrentados pelos Estados confederados que deu lugar à federação, essa forma extremamente engenhosa de organização do poder. De um lado, havia a necessidade de organizar-se um poder central forte e, de outro, havia a entranhada convicção de que os Esta- dos não deviam abrir mão de sua soberania. A solução encontrada pelos cons- tituintes de Filadélfia foi a de atribuir ao Estado federal tão-somente os pode- res que fossem expressamente enunciados na Constituição.

Destarte, apenas aquelas competências que passaram a ser definidas no Texto Constitucional como da alçada da União é que podiam ser desempenha- das pelo órgão central do poder. É preciso reconhecer o caráter extremamente pragmático do comportamento dos constituintes da Filadélfia. Cumpria, antes de mais nada, resolver o problema do conflito aparente de objetivos entre um governo central forte e autonomias locais, também robustas.

Esse caráter pragmático, sem apego a princípios teórico-filosóficos, explica uma ausência curiosa: não há qualquer referência à palavra federação na Cons- tituição americana, muito embora seja ela o modelo das constituições federativas.

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Quanto aos Estados-Membros, passaram eles a contar com todos os po- deres que não fossem delegados à União ou que não estivessem expressamen- te proibidos de exercitar, pela Constituição Federal. Essa técnica de reparti- ção das competências é ainda hoje a predominante na maioria das federações: consiste em atribuir poderes enunciados à União e os poderes remanescentes aos Estados-Membros. Sua grande virtude desde o início foi atender perfeita- mente a exigências aparentemente contraditórias.

A União, pela enunciação das competências que recebia, surgia suficien- temente forte para impor-se em matérias específicas aos Estados-Membros.

Estes, por sua vez, tinham também a certeza de continuar inteiramente soberanos, em tudo aquilo que não dissesse respeito às delegações expressa- mente feitas. Esse federalismo de cisão profunda entre as competências da União e dos Estados é, ainda hoje, considerado o federalismo clássico ou o federalis- mo dualista. Com a evolução dos tempos, não foi mais possível respeitar a sua pureza inicial, pela razão óbvia de que se tornou necessária uma certa interpene- tração entre as atividades da União e a dos Estados. Isso hoje é feito mediante o recurso a uma série de técnicas que viabilizam a participação da União em atividades conjuntas com os Estados, da mesma forma que fazem dos Estados entes de colaboração na atividade federal. Daí se falar em um autêntico federa- lismo de colaboração.

É curioso notar como certas características fundamentais da federação não se alteram com o tempo e continuam até hoje a refletir fielmente as preo- cupações com que se houveram os constituintes da Filadélfia. Assim, a repartição de competências, estabelecida em 1787 pelo recurso à técnica de competên- cias enunciadas e competências remanescentes, permanece até hoje um elemento indispensável à federação, embora nem todas as federações adotem as mes- mas técnicas de partilha das competências, nem o façam segundo as mesmas dosagens.

Como decorrência natural dessa primeira característica, tivemos desde o início, e ainda temos, a necessidade de assegurar que essa partilha de competência não seja subvertida no funcionamento normal das coisas. Em outras palavras, é preciso que o disposto na Constituição não se revele, na prática, letra morta. E para isso recorreu-se ao fortalecimento do Poder Judiciário, elemento também indispensável em toda federação. De nada adiantaria preocupar-se em repartir as competências entre União e Estados, se não houvesse um órgão em condi- ções de superiormente dirimir os conflitos entre ambos. Daí porque, desde o início, ter o Poder Judiciário americano desfrutado de um grande prestígio na vida nacional. Prestígio este que mantém, de resto, até hoje. Como em muitos outros aspectos, a Federação americana acaba por ser uma criação da Suprema Corte daquele país, pela interpretação que faz do Texto Constitucional.

É ainda inerente a toda federação um Texto Constitucional no qual se façam essas instituições presentes. Texto esse que não fique ao sabor de altera- ção por via de leis ordinárias, mas que só possa ser modificado por uma emenda à Constituição, produzida mediante a satisfação de requisitos bastante exigen- tes, envolvendo, inclusive, a participação dos próprios Estados. É esse elemento de estabilidade que acaba por assegurar a manutenção da partilha inicial de competências. Uma constituição escrita e uma constituição tecnicamente rí- gida, quer dizer, aquela que só por via de uma emenda constitucional pode ser alterada, constituem ainda hoje traços essenciais do federalismo.

São as seguintes as características principais de uma federação:

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- a união de certas entidades políticas autônomas (os Estados) para finalidades comuns;

- a divisão dos poderes legislativos entre o governo federal e os Es- tados componentes, divisão regida pelo princípio de que o primeiro é um "Governo de poderes enumerados", enquanto os últimos são governos de ""poderes residuais"";

- a operação direta, na maior parte, de cada um desses centros de governo, dentro de sua esfera específica, sobre todas as pessoas e propriedades com- preendidas nos seus limites territoriais;

- a provisão de cada centro com o completo aparelhamento de execu- ção da lei, quer por parte do Executivo, quer do Judiciário.

8. FEDERAÇÃO AMERICANA

O item referente à união de Estados autônomos responde perfeitamente ao ocorrido na Federação americana em que houve de fato a associação de treze Estados independentes, mediante um verdadeiro pacto federal. Embora a Constituição americana comece pela frase "Nós, o povo dos EUA", esculpi- da no seu preâmbulo, a união foi, de fato, celebrada pelos Estados. Foram seus representantes que elaboraram a Constituição de 1787, da mesma manei- ra que foi esta submetida a ratificações obtidas mediante o voto de conven- ções eleitas em cada um dos Estados.

Portanto, no exemplo americano, fica patente o fato de a nação americana ter surgido da união voluntária de treze soberanias autônomas, o que levou um juiz americano a afirmar que a Constituição é um pacto entre as entidades so- beranas.

É certo que essa soberania, inicialmente admitida, dos Estados-Membros, foi na prática desmentida, sobretudo por ocasião da Guerra da Secessão, em que os Estados sulistas pretenderam sem êxito fazer valer o seu direito de separação, de saída, da Federação.

Fica claro, no episódio, que a União, na verdade, era perpétua e indissolúvel. A Suprema Corte dos EUA observou a esse respeito: "A perpetuidade e a indissolubilidade da União de forma alguma implica a perda de existência distinta e individual ou do direito de autonomia dos estados... Segundo a Cons- tituição, embora os poderes dos estados fossem bastante limitados, todos os poderes não delegados aos Estados Unidos, nem proibidos aos estados, são reservados aos estados, respectivamente, ou ao povo".

Essa união de Estados não fica tão patente, pelo menos em termos históricos, em países como o Brasil, em que a Nação antecedeu à Federação. Mas a idéia de que o governo federal resulta da associação pactuada de Estados, essa idéia, em si mesma, continua a ter ainda uma força teórica na explicação do modelo federativo, mesmo naqueles Estados em que, do ponto de vista histórico, tal união jamais tenha existido.

9. A TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS

O cerne da federação, no entanto, é a divisão de poderes entre o Estado central e os Estados-Membros. Em 1787, embora um dos convencionais tenha chegado a propor a abolição das autonomias estaduais, o certo é que essa intervenção de nenhuma

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forma interpretava o sentimento geral dos convencionais, inclusive por serem, estes, representantes dos Estados-Membros. A preocupação predominante era evitar qualquer possibilidade de asfixia dos Estados. Estes haveriam de remanescer como Estados dotados de todos os elementos neces- sários à sua integração. Daí ter-se limitado a União tão-somente aos poderes enunciados, garantia de que não haveria um engrandecimento exagerado do Estado central.

A teoria dos poderes enunciados, contudo, não nos deve deixar esquecer que a interpretação posterior da Suprema Corte americana, acolhida, de resto, pela maioria dos estudiosos do modelo federativo, veio a determinar que, além dos poderes expressamente enunciados, seriam também indispensáveis à União os poderes implícitos, ou seja, aqueles que fossem instrumentais ao atingimento das finalidades expressamente enunciadas.

Com o passar dos tempos, foi essa teoria dos poderes implícitos que acabou por permitir o desenvolvimento e o desabrochar completo do gover- no central.

Hoje nós não encontraríamos na Constituição americana previsão expressa de muitas das atividades que são cumpridas pelo governo central daquele país. É que elas repousam na interpretação jurisprudencial da Suprema Corte, que nelas viu meio indispensável ao atingimento das finalidades contempladas nos dispositivos expressos da Constituição Federal.

Um traço muito típico do federalismo é o fato de o poder central ter imediata atuação sobre as pessoas e sobre o território dos Estados-Membros. Nas formas confederativas anteriores tal não ocorria, pois o órgão central ti- nha, apenas, a possibilidade de ditar ordens. Ficava a cargo dos próprios Es- tados confederados cumpri-las ou não. Nessas condições, era obviamente muito difícil tornar o poder central efetivo sobre as pessoas e o território de todos os Estados componentes. Essa talvez tenha sido a principal razão da fraqueza do modelo confederativo. Com o surgimento da federação, tornou-se o poder central habilitado a, sem a intermediação dos Estados-Membros, intervir dire- tamente sobre as pessoas e sobre as coisas dos territórios sob sua jurisdição, dando lugar, portanto, a um modelo novo na história da organização política da humanidade. Essa sobreposição de duas ordens jurídicas, dando lugar a dois governos diferentes, tornou-se não só um traço marcante do federalismo, mas também um fator de enriquecimento das modalidades até então conheci- das de organização do poder dentro do Estado.

Até hoje, o fato de o cidadão estar a todo momento submetido a dois governos diferentes com os quais ele se relaciona de maneira autônoma é uma coisa bastante curiosa para as pessoas acostumadas a lidar com o viver dentro de um Estado unitário.

Mas na prática não é difícil obedecer simultaneamente às ordens vindas do governo central e às ordens vindas do governo estadual, porque obviamen- te elas não são contraditórias, já que cada governo atua dentro da sua área específica de competência. O certo é que o indivíduo deverá estar atento ao cumprimento de seus deveres.

10. A FEDERAÇÃO NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

A exemplo do Estado central, os Estados-Membros dispõem, cada um deles, do seu aparato organizacional próprio. Trata-se, portanto, de governos plenos, com todos os órgãos que entidades desse tipo comportam. Daí porque existir um Executivo, um Legislativo e

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um Judiciário dos Estados-Membros, assim como há um Executivo, um Legislativo e um Judiciário da União.

Hoje, embora as decisões mais importantes sejam emanadas do poder central, o certo é que os Estados-Membros, quer em uma Federação como o Brasil, quer em uma Federação como a americana, continuam a deter uma presença bastante grande junto à vida dos cidadãos. Normalmente, as funções de polícia, de prestação de ensino, de prestação de serviços de saúde, e um sem-número de outras atividades, estão entregues aos Estados-Membros, e é com essas máquinas administrativas que o cidadão deve lidar. Os próprios tributos, de resto, são separados entre aqueles que são da União e os que per- tencem aos Estados-Membros, e o cidadão deverá honrá-los igualmente.

Em princípio, não há mesmo que se falar em supremacia da União sobre os Estados, nem destes sobre aquela, se bem que o federalismo americano tenha enfatizado um denominado princípio de supremacia nacional sobre os Estados.

O que vem a ser isso? É evidente que não significa de maneira alguma que a União possa, a seu talante, invadir as esferas de competência dos Estados. O respeito recíproco às esferas de cada uma das suas competências existe, e é, como vimos, reiteradamente, a essência do federalismo. A essa regra não há exceções.

Ocorre, todavia, que a jurisprudência americana consagra a hipótese de uma lei estadual conflitar com uma lei federal, ambas calcadas em razoáveis indícios de constitucionalidade. Um caso concreto foi o do Estado de Nova Iorque, que proibiu a navegação em trechos de rios de seu território depois que o gover- no central dos EUA já havia tolerado a navegação internacional. Esse caso, como ficaria? Para resolvê-lo aplicou-se a cláusula da Constituição americana, que diz: "a lei federal, a Constituição e os Tratados são a lei suprema do país". Jurisprudencialmente tem-se estabelecido que essas normas federais não podem sofrer nenhuma forma de contraste, nenhuma forma de oposição emanada dos Estados, ainda que calcada em uma competência constitucionalmente sua. Ressalte-se, porem, que, apesar de podermos falar nesse princípio da suprema- cia da União sobre os Estados, ele deve ser entendido na realidade não como "princípio", mas como exceção. Válida em casos muito restritos, apenas naque- les em que é possível conceber-se um conflito constitucional de competência.

No direito brasileiro, mais adiante se verá, não tem tanto sentido a neces- sidade desse tipo de princípio, porque é hábito nosso resolver as questões de conflito através da dirimência do problema preliminar de saber qual a lei cons- titucional.

De qualquer sorte, esse princípio americano tem tido efeitos nefastos sobre a nossa doutrina, onde muitas vezes encontramos a afirmação de um alegado ou suposto princípio de hierarquia das leis, que colocaria a lei federal acima da lei estadual.

Quer-nos parecer que essa é uma extrapolação acrítica e simplificadora do princípio americano, só aplicável, reiteramos, nos casos bem restritos em que há uma lei federal constitucional que está sofrendo contrariedade de uma lei estadual. Mas todos os casos onde houver um transborde, uma extrapolação da competência federal, se resolvem normalmente em inconstitucionalidade e não levam à invocação do princípio de superioridade da lei nacional sobre a dos Estados.

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O Brasil adotou o federalismo em 15 de novembro de 1889 por força da implantação da República e pela opção que nesse momento se fez pela forma federativa de Estado. Tal decisão só foi implementada com a superveniência da Constituição de 1891.

Inicia-se, então, um período em que os Estados recém-criados gozaram de grande autonomia e nem sempre dela fizeram bom uso. Na maior parte dos casos, caíram sob o governo das oligarquias locais, que se valeram principalmente da margem de poder conquistado para o exercício de uma maior dominação dos seus interesses grupais e de classe.

Em 1930, em conseqüência do movimento revolucionário, nomeiam-se interventores para os Estados, o que, evidentemente, os priva de uma efetiva autonomia.

A Constituição de 1934 confirma o caráter federativo do Estado brasileiro. Mas é logo revogada por nova Constituição, que vem no bojo do golpe de Estado de 1937, e volta o Brasil à forma unitária de Estado.

A Federação só ressurge com a Constituição de 1946. A partir de 1964, o movimento armado, que então se deflagrou, dando lugar a um regime despótico e autoritário, trouxe a todo instante violentos abalos e produziu um enorme enfraquecimento do princípio federativo. De resto, o próprio avanço do Esta- do técnico-burocrático, assumindo funções cada vez mais amplas no campo econômico, tem feito com que muitos autores duvidem do caráter federativo do Estado brasileiro.

O primeiro ponto que se pode ter por certo é que o Brasil não tem acen- tuadas tradições federativas, como seria o caso, por exemplo, dos EUA. Tive- mos um período monárquico em que vigorava o Estado unitário, e após a independência o grau de autonomia dos Estados-Membros nunca assumiu pro- porções equiparáveis às existentes nos Estados de federalismo mais desenvolvido. Contudo, é forçoso reconhecer que nada obstante o inegável fortalecimento do poder central em detrimento das autonomias locais, o modelo jurídico vi- gente no Brasil ainda é o de um Estado federal. Tudo se passa, aqui, como num modelo federativo autêntico, uma vez que há mecanismos de repartição de competências, e respeito às autonomias locais, ainda que muitas vezes esva- ziadas, mas, de qualquer forma, existentes nos campos restritos da sua atua- ção. Enseja declaração de nulidade a lei que não respeitar essas autonomias locais. Tudo isso faz com que, ainda hoje, para que se entenda o funcionamento do Estado brasileiro, haja necessidade de compreender os mecanismos de funcionamento de uma federação.

11. A FEDERAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O traço principal que marca profundamente a nossa já capenga estrutura federativa é o fortalecimento da União relativamente às demais pessoas integrantes do sistema. É lamentável que o constituinte não tenha aproveitado a oportunidade para atender ao que era o grande clamor nacional no sentido de uma revitalização do nosso princípio federativo. O Estado brasileiro na nova Constituição ganha níveis de centralização superiores à maioria dos Estados que se consideram unitários e que, pela via de uma descentralização por regiões ou por províncias, consegue um nível de transferência das competências tanto legislativas quanto de execução muito superior àquele alcançado pelo Estado brasileiro. Continua- mos, pois, sob uma Constituição eminentemente centralizadora, e se alguma

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diferença existe relativamente à anterior é no sentido de que esse mal (para aqueles que entendem ser um mal) se agravou sensivelmente.

Antes, contudo, de justificarmos essas assertivas através dos dispositi- vos constitucionais correspondentes, cumpre fazer algumas observações ain- da de cunho genérico. A primeira delas é que o art. 18, ao dar a estrutura da Federação brasileira, nela incluiu os municípios.

Embora isso desatenda àqueles estudiosos que preferiam a adoção de um modelo mais clássico de federação, onde se desconhece a ordem munici- pal no próprio nível da Constituição, não se pode negar que nesse particular andou bem o constituinte ao incluir o município como parte integrante da Federação. O argumento principal é que, sendo a autonomia municipal um dos centros de polarização de competência constitucional a ser exercida de forma autônoma, não se vê por que não hão de, os municípios, figurar naquele próprio artigo que fornece o perfil jurídico-político da República Federativa do Brasil. O fato de os municípios não se fazerem representar na União e, portanto, não comporem de certa forma o suposto pacto federativo, nos pare- ce ser um argumento de ordem excessivamente formal, que deve ceder diante da realidade mais substancial como aquelas que acima apontamos.

O Distrito Federal, por sua vez, continua, como de resto na Constituição anterior, a figurar como parte integrante da Federação brasileira. Hoje com mais razão que outrora, visto também gozar de faculdades autônomas, isto é, o Distrito Federal tornou-se mais uma das autonomias existentes no Estado brasileiro, autonomia esta exercida sobre as matérias que lhe são próprias, por intermédio de um Legislativo próprio. Dessa forma, o Distrito Federal, num movimento pendular que tem cumprido através da nossa história, volta a ocu- par uma das pontas desse movimento, assemelhando-se em quase tudo a um Estado-Membro da Federação.

12. REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS

O sistema de partilha das competências constitucionais foi razoavelmente alterado ante o Texto anterior. Este mantinha maiores escrúpulos com relação ao modelo clássico de federação, ao permitir que ainda guardasse alguma significação o princípio de que os poderes não ressalvados expressamente na Constituição como da União pertencem aos Estados. Tratava-se do § 1.o do art. 13 da Constituição:

"Aos Estados são conferidos todos os poderes que, explícita ou implicita- mente, não lhes sejam vedados por esta Constituição".

Não obstante artigo de igual índole manter-se na atual Constituição, é forçoso reconhecer que já agora ele ganha ares de verdadeira irrisão, provocan- do mesmo a mofa e a galhofa. Isso porque são tão amplas as competências atribuídas a títulos diversos à União, que a participação do Estado se torna evanescente.

Há, portanto, uma verdade inquestionável: a regra de ouro da nossa Fede- ração tornou-se a de que a União cumpre um papel hegemônico na atividade legislativa em todos os níveis. Destarte, trata-se de mudança substancial de critério em face da lei maior precedente. Nesta ainda havia a preocupação de se apartarem competências de maneira mais ou menos nítida, permitindo que os Estados e Municípios desfrutassem de uma competência

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privativa, exclu- siva, apesar de sabermos que a técnica da competência supletiva já era conhe- cida na Constituição anterior.

Mas, dizíamos, nada obstante esse fato que até assumia um ar de algo excepcional em face da lei maior que ainda parecia ser o desfrute por parte do Estado de competências para legislar originariamente, o certo é que essa com- petência praticamente desaparece, ficando reduzida na verdade a itens pouco numerosos, quase inexistentes.

A área em que essa situação pode ainda se fazer sentir é a do servidor público, que é do direito administrativo. Mesmo assim, resulta muito desfalcada por toda a sorte de matérias que hoje são, na verdade, de competência da União. Vejamos como isso se dá, examinando em capítulos apartados as diversas entidades que compõem a nossa Federação. Comecemos pela União.

CAPÍTULO II DA UNIÃO

SUMÁRIO: 1. Natureza jurídica da União. 2. Competências da União. 2. 1. Uma visão crítica de suas competências. 3. Bens da União.

1. NATUREZA JURÍDICA DA UNIÃO

A União é pessoa jurídica de direito público com capacidade política, que ora se manifesta em nome próprio, ora se manifesta em nome da Federação.

Uma das características do Estado federal é ele possuir uma dupla face: certos aspectos ele se apresenta como um Estado unitário e, em outros, aparece como um agrupamento de coletividades descentralizadas.

De fato, quando a União mantém relações com Estados estrangeiros, participa de organizações internacionais, declara guerra e faz a paz, está represen- tando a totalidade do Estado brasileiro. Está agindo como se o Brasil fosse um Estado unitário.

Diante do Estado estrangeiro, a União exerce a soberania do Estado brasi- leiro, fazendo valer os seus direitos e assumindo todas as suas obrigações.

Em conseqüência, os países estrangeiros não reconhecem nos Estados-Membros e Municípios personalidades de direito internacional. São, tão-somente, pessoas jurídicas de direito público do Brasil.

Internamente, a União atua como uma das pessoas jurídicas de direito público que compõem a Federação. Vale dizer: exerce em nome próprio a parcela de competência que lhe é atribuída pela Constituição. Por isso mesmo, no am- bito interno, a União é apenas autônoma, como são autônomos os Estados-Membros e os Municípios, cada qual, dentro de sua área de competência. (Matéria tratada no capítulo referente à Federação.)

Em síntese: a União pode ser definida como pessoa jurídica de direito público com capacidade política que exerce autonomamente em função das competências que lhe são deferidas pelos arts. 21, I a XXV, e 22 da Constituição Federal.

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2. COMPETÊNCIAS DA UNIÃO

As competências da União são divididas em legislativas e não-legislativas. Estas últimas vêm arroladas no art. 21. São atos da alçada tanto do Executivo quanto do Legislativo, conforme a hipótese. O que é certo é que são compe- tências que a União deverá exercer diretamente, como declarar a guerra, ce- lebrar a paz. Em alguns casos a Constituição permite a descentralização, ao dispor no art. 21 que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, "os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais" (inc. XI) e "os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens" (inc. XII, a), ambos com redação dada pela Emenda Constitucional n. 8 de 15 de agosto de 1995.

O art. 22 arrola as competências legislativas da alçada da União. Cuida- se, portanto, de assuntos sobre os quais compete à União privativamente legislar. Esta é a regra. Contudo, o parágrafo único deste mesmo artigo diz que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislarem sobre questões específicas das matérias relacionadas no artigo supracitado.

Cuida-se, sem dúvida, de autorização constitucional que prevê uma delega- ção possível de competências a favor dos Estados-Membros. No entanto, esta aparente abertura a favor destes últimos fica muito enfraquecida diante de dois fatos. Em primeiro lugar, a necessidade de uma lei complementar; em segundo lugar, o fato de que esta lei complementar não poderá delegar todo um inciso, ou se preferirmos, a regulação integral de determinada matéria. Deverá, na verdade, dita delegação limitar-se a questões específicas constan- tes das aludidas matérias.

A Constituição cuida ainda de mais duas hipóteses de competências da União; são as chamadas competências concorrentes, porque podem ser cumpri- das tanto pela própria União como pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos próprios Municípios. O art. 23 cuida das tarefas não legislativas. Além do mais, ponto de destaque neste artigo é a previsão, no seu parágrafo úni- co, de uma lei complementar que fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. É sem dúvida dispo- sitivo que quebra a rigidez das competências constitucionais. Por via desta lei complementar a União pode inequivocamente imiscuir-se em questões da alçada dos outros entes políticos.

No art. 24 encontramos as matérias que a União pode legislar de forma concorrente com os Estados e o Distrito Federal. Observe-se a exclusão dos Municípios.

Os diversos parágrafos deste artigo estabelecem os contornos do que seja a competência concorrente. A União fica adstrita à edição de normas gerais, embora nem sempre seja claro em que se distinguem as normas gerais das não gerais. Essa legislação da União não exclui o poder dos Estados e do Distrito Federal, suplementarmente, de disporem sobre a mesma matéria. Deve-se entender por suplementarmente o seguinte: na inexistência de lei federal os Estados e o Distrito Federal legislarão livremente, sem restrições. A sobrevinda, contudo, ou a preexistência de uma lei federal sobre a matéria só tornam vá- lidas as disposições que não contrariem as normas gerais da União.

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2.1. Uma Visão Crítica de suas Competências

A primeira delas é a da chamada competência privativa. Fornece-no-la o art. 22 que elenca um rol de matérias da privativa alçada da União, como diz o caput deste dispositivo. E não há dúvida que aí estão arroladas as competên- cias legislativas mais transcendentais para o Estado brasileiro. Aí se encontra todo o direito substantivo: direito civil, comercial, penal, processual, e ramos mais modernos da ciência jurídica como: o direito agrário, o direito eleitoral, o direito marítimo, o aeronáutico e até mesmo o espacial.

Não seria o caso aqui de reproduzir, por ser extremamente cansativo, o rol constante do art. 22. O que é importante notar, todavia, é que, não obstante a utilização do termo privativo, o que poderia denotar uma utilização exclusiva por parte da União a repelir a intromissão de qualquer outra pessoa, o parágrafo único desse artigo vai autorizar à lei complementar conferir a Estados o poder de legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo.

Não nos devemos iludir e achar que caiba ao Estado-Membro uma verda- deira competência supletiva sobre esses assuntos. Em primeiro lugar, porque a lei complementar demandante de uma maioria absoluta dos membros de cada uma das Casas do Congresso Nacional não é lei fácil de ser aprovada.

De outra parte, essa lei não poderá transferir uma competência da mes- ma natureza daquela auferida pela União. Isso porque a própria lei comple- mentar está limitada ao seu alcance, só podendo autorizar legislação sobre questões especificas das matérias relacionadas no aludido artigo. Destarte é quase uma delegação legislativa, onde a lei complementar seria uma autêntica lei delegante a indicar os pontos sobre os quais pode versar a legislação esta- dual. É facilmente perceptível e antecipável que essa legislação complemen- tar não ocorrerá. A União será sempre mais tentada a de uma vez legislar sobre esses pontos do que a cuidar de uma difícil lei complementar que espe- cificará os pontos que depois serão versados pelos Estados.

É, portanto, uma concessão hipócrita, falsa, tentar manter a aparência de uma competência estadual que não mais existe.

Por seu turno, o art. 23 faz referência a uma competência comum. Esta- dos, União, Distrito Federal e Municípios poderão tratar do ali disposto. Mas observe-se: não se trata de competência legislativa, mas na verdade de imposição de ônus consistente na prestação de serviços e atividades. Ficamos sabendo que ao Estado cabe cuidar da saúde e da assistência pública, proteger os docu- mentos, obras e outros bens de valor histórico e cultural, impedir o compro- metimento de obras de arte, promover a cultura, o meio ambiente, preservar as florestas, fomentar a produção agropecuária, cuidar de programas de cons- trução de moradias, combater as causas da pobreza e exercer um autêntico poder de polícia em matéria de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios. Mais, portanto, do que um poder político a ser extravasado numa legislação própria, a dar conformação à atividade estadual, cuida-se aí de atribuir tarefas específicas ao Estado nos diversos campos da economia, do social e do administrativo.

Mas, ainda assim, não vá o constituinte estadual se entusiasmar pensan- do que sobre todas essas tarefas poderá o Estado impor o cunho próprio da sua autonomia. Não! Isso porque, nos termos do parágrafo único, a lei comple- mentar fixará normas para a cooperação, tendo em vista o equilíbrio do desen- volvimento e do bem-estar em âmbito

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nacional. Vale dizer, mais uma vez se assiste ao predomínio da deslealdade. Dá-se com uma mão, retira-se com a outra. Mesmo no cumprimento dessas tarefas, os Estados não estarão imunes à obediência a uma legislação federal que, sob a generosa perspectiva de estabe- lecer uma cooperação, na verdade fixará normas de maneira impositiva para todas as unidades da Federação.

O art. 24 nos fornece o rol das competências concorrentes. O próprio nome está a indicar. Trata-se de temas sobre os quais todos poderão versar normativamente, tanto a União, quanto os Estados, quanto o Distrito Federal. Vamos aí entre outros encontrar exemplificativamente o direito tributário, o financeiro, o penitenciário, o econômico, o orçamentário, as juntas comer- ciais, as custas de serviços forenses etc. Mas ainda aqui não se abre ao Estado a possibilidade de legislar originariamente sobre o assunto. Não se trata de uma competência concorrente para a qual todos concorram em iguais condi- ções. Isso porque o § 1.o diz que cabe à União estabelecer as normas gerais sobre tais assuntos e isso ainda feito com o ar de alguém que está sendo co- medido para consigo mesmo, porque diz o aludido parágrafo que, "no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais". Perguntar-se-á: depois de estabelecidas essas normas gerais, que limites ainda existem? O que sobra para os Estados? A resposta nos é dada pelo § 3.o, que diz: "Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Es- tados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculia- ridades". É necessário aqui dar um desconto ao péssimo vernáculo - certa- mente não foi intenção do legislador dizer o que está ali escrito - pois de outro modo seríamos levados a crer que bastaria uma lei federal com dois ou três artigos para inibir a competência estadual correspondente àquele pará- grafo. Não! Certamente não foi isso que quis o constituinte. A interpretação sistemática há de prevalecer e desta deflui que cabe aos Estados exercerem uma competência legislativa suplementar nos vazios e nos claros deixados pela legislação federal ou inexistindo lei federal. Não deve, pois, significar a não-existência de uma lei sobre o assunto a ser tratado, mas a não-existência de um preceito, de um artigo, de uma norma.

Mesmo assim, feito portanto esse desconto e interpretado o Texto de for- ma mais benigna aos Estados, ainda assim fica claro que por mais esse ângulo das competências concorrentes não se chega a vislumbrar qualquer competên- cia estadual para legislar originariamente sobre o que quer que seja isso, porque fica certo que as possibilidades de atuação do Estado nessa área são eminentemente secundárias. A experiência já havida sobre uma legislação de normas gerais tem demonstrado que a concepção que faz a União do que sejam normas gerais é bastante lata. Então, hoje, temos normas gerais de direito tributário, normas gerais sobre educação, e todas essas leis são bastante amplas, a ponto de tolhe- rem quase que por completo a atuação livre dos Estados.

De outra parte, o § 1.o do art. 25 continua a grande farsa já bosquejada nos artigos anteriores. Diz-nos que "são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição". Ora, já vimos que a outorga de competências expressas à União, relativamente às quais cabe ao Estado um caráter eminentemente secundário, ancilar, subordinado, fica excluída de qual- quer possibilidade de atuação útil do legislador estadual. Mas para que o desa- lento não fosse total, o § 2.o desse mesmo artigo nos acena com uma competên- cia expressa dos Estados: "Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edi- ção de medida provisória para a sua regulamentação" (redação dada pela EC n. 5, de 15-8-1995). É óbvio que nos pouparemos a qualquer comentário sobre o alcance dessa competência, mas,

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desde logo, caberia o brocardo: "uma andori- nha não faz verão". E no pouco que lhe cabe legislar, os Estados deverão obe- diência a princípios constitucionais de vinculação obrigatória. Eles vêm previs- tos em diversos passos da Constituição. Citem-se, exemplificativamente, os arts. 1.o e 6.o, § 4.o Este último fala em forma federativa de Estado, voto direto, secreto, universal e periódico; separação de poderes e direitos e garantias indi- viduais. O art. 1.o alude à soberania, à cidadania, à dignidade da pessoa huma- na, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e ao pluralismo político.

A uma enunciação clara e precisa, feita em artigo específico, preferiu-se uma referência difusa, feita em pontos diferentes do Texto Constitucional, o que certamente deixará sempre em aberto a questão: a quais princípios estão os Estados efetivamente submetidos?

3. BENS DA UNIÃO

O art. 66 do Código Civil distingue três categorias de bens públicos:

"I - os de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças;

II - os de uso especial, tais como os edifícios ou terrenos aplicados a serviços ou estabelecimentos federal, estadual ou municipal;

III - os dominicais, isto é, os que constituem o patrimônio da União, dos Estados, ou dos Municípios, como objeto de direito pessoal, ou real de cada uma dessas entidades".

É bom que se diga que a enumeração desse art. 66 não é exaustiva, O próprio Código Civil prevê a possibilidade de outros bens serem incorporados ao patrimônio público. São exemplos: a incorporação do álveo de rio público mudado de curso (CC, art. 544); a incorporação da propriedade privada ao patrimônio público no caso de perigo iminente (CC, art. 591).

Os bens da União estão elencados no art. 20 da Constituição Federal:

"São bens da União:

I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atri- buídos".

Este preceito, aparentemente supérfluo, tem sua utilidade jurídica, pois demonstra que a enumeração do art. 20 é exemplificativa. Além dos bens elen- cados neste dispositivo, pertencem à União todos os bens de uso comum do povo, de uso especial ou dominiais que, no momento da promulgação da Cons- tituição, a ela pertenciam, bem como aqueles que futuramente lhe sejam atribuí- dos.

"II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das forti- ficações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, assim definidas em lei."

Terras devolutas - são todas aquelas que pertencem ao domínio públi- co e que não se encontram afetas a uma utilização pública. São terras que nunca deixaram de

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pertencer ao domínio público, ou que, tendo sido transpassadas a particulares, retornaram ao Poder Público por não terem os seus donatários cumprido com suas obrigações.

Essas terras, até a Proclamação da República, pertenciam à Nação; pela Constituição de 1891 foram transferidas aos Estados-Membros (art. 64) e al- guns destes a transpassaram, em parte, aos Municípios.

"III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais."

O domínio da União compreende os lagos e quaisquer correntes de água que:

- estejam em terrenos da União;

- banhem mais de um Estado;

- sirvam de limites com outros países;

- estendam-se a território estrangeiro ou dele provenham.

"IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as áreas referidas no art. 26, II."

O art. 26, II, diz pertencerem aos Estados as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem sob seu domínio, excluídas as pertencentes à União, Municípios ou terceiros.

V - os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva."

Integra o domínio da União a plataforma continental, que compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do seu mar territorial até uma distância de 200 (duzentas) milhas marítimas. O Brasil exerce di- reitos de soberania sobre a plataforma continental para efeitos de exploração e aproveitamento dos seus recursos naturais.

A zona econômica exclusiva compreende uma faixa que se estende das 12 (doze) às 200 (duzentas) milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial.

Na zona econômica exclusiva, o Brasil tem direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos natu- rais e outras atividades com vistas à exploração e ao aproveitamento da zona para fins econômicos.

Tanto na zona econômica exclusiva quanto na plataforma continental, o Brasil, no exercício de sua jurisdição, tem o direito exclusivo de regulamentar a investigação científica marinha, a proteção e preservação do meio marinho, bem como a construção, operação e uso de todos os tipos de ilhas artificiais, instalações e estruturas. A investigação científica marinha só poderá ser conduzida por outros Estados com o consentimento prévio do Governo brasileiro, nos termos da legislação em vigor que regula a matéria.

"VI - o mar territorial."

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Mar territorial é aquela porção dos oceanos sobre a qual os Estados ribei- rinhos exercem soberania. Pela Lei n. 8.617, de 4 de janeiro de 1993, o Brasil fixou em 12 (doze) milhas de extensão o seu mar territorial, bem como o subso- lo desse mar e o espaço aéreo correspondente. Todavia, a soberania exercida no mar territorial encontra limites na ordem jurídica internacional. Assim é que o Brasil reconhece a navios de todas as nacionalidades o direito de passagem inocente pelas águas territoriais, o que não acontece relativamente às águas

internas. Segundo a Lei n. 8.617, a passagem será considerada inocente desde

que não seja prejudicial à paz, à boa ordem ou à segurança do Brasil, devendo

ser contínua e rápida. Compreende a passagem inocente o parar e o fundear,

mas apenas na medida em que tais procedimentos constituam incidentes comuns

de navegação ou sejam impostos por motivos de força maior ou por dificuldade

grave, ou tenham por fim prestar auxilio a pessoas, a navios ou aeronaves em

perigo ou em dificuldade grave. Os navios estrangeiros no mar territorial brasi-

leiro estarão sujeitos aos regulamentos estabelecidos pelo Governo brasileiro.

No § 1.o do art. 20, o constituinte confere aos Estados, Distrito Fede- ral, Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participa- ção do resultado ou compensação financeira na exploração de recursos minerais e energéticos, quando isto se der em seus respectivos territórios. Assim, havendo a exploração de petróleo, gás natural, recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, deverá haver, por parte dos então supracitados. a participação no resultado ou uma compen- sação financeira.

"VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos."

Não se pode confundir terrenos da marinha com terrenos de marinha, estes são bens da União e não do Ministério da Marinha. Consistem naqueles terrenos debruçados à faixa litorânea. Um exemplo típico são lotes que se situam de fronte ao mar, os quais não são objeto de propriedade do particular, mas sim regem-se pelo instituto da enfiteuse.

"VIII - os potenciais de energia hidráulica."

"IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo."

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O subsolo é uma fonte inestimável de riquezas naturais, como petróleo, gás, metais etc. Sendo assim, decidiu o constituinte reservar o seu domínio à União, que poderá, a seu critério, conceder a exploração.

"X - as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré- históricos."

"XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios."

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente e imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários a sua preservação física e cultural. Tendo estes a sua posse perma- nente, bem como usufruto exclusivo de suas riquezas naturais.

Qualquer exploração das terras indígenas dependerá de autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados.

Tais terras são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.

São nulos e extintos quaisquer direitos relativos a estas terras, com exceção daqueles relativos às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé, conforme definição legal.

CAPÍTULO III DOS ESTADOS FEDERADOS

SUMÁRIO: 1. Natureza jurídica dos Estados-Membros. 2. Competências esta- duais. 3. Os Estados federados perante a ordem externa. 4. Autonomia dos Estados. 4.1. Poder constituinte estadual. 5. Intervenção do Estado nos Municípios. 6. Os tributos nos Estados. 7. Uma visão crítica dos Estados federados.

1. NATUREZA JURÍDICA DOS ESTADOS-MEMBROS

Os Estados-Membros são as organizações jurídicas das coletividades re- gionais para o exercício, em caráter autônomo, da parcela de soberania que lhes é deferida pela Constituição Federal. Fica claro, pois, que os Estados-Membros não são soberanos, como, de resto, não o é a própria União. É traço caracterís- tico do Estado federal a convivência, em igual nível jurídico, entre o órgão central, encarregado da defesa dos interesses gerais e com jurisdição em todo o território nacional, e os órgãos regionais, que perseguem objetivos próprios, dentro de uma porção do território nacional. Tanto o primeiro quanto os segun- dos haurem sua esfera de competências do próprio Texto Constitucional, fruto da vontade soberana da Nação. Só esta desfruta da ilimitação jurídica do poder, que define a soberania. Já a União e os Estados-Membros gozam tão-somente de autonomia, que vem a ser o governo mediante autoridades próprias de maté- rias específicas, irrestringíveis a não ser por ato de força constitucional.

O vínculo de subordinação a um poder supremo, a uma vontade suprema, é o vínculo característico da formação do Estado, isto é, da organização política estatal. Entretanto, esta vontade suprema do Estado é um elemento particular ou exclusivo seu,

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apenas na medida em que por ele a organização da sociedade, para o atingimento de seus fins gerais, não pode admitir nenhuma outra de igual força dentro do seu território. Mas uma vontade diretiva deve existir em qual- quer comunidade, se se quer atingir o fim para o qual é constituída. Na verdade, impossível seria que pessoas se unissem para alcançar um objetivo comum, sem que sobre elas existisse uma vontade suprema, que guiasse e coordenasse as suas atividades individuais. Por isso, a soberania é a característica fundamen- tal do Estado. Por dela dispor, o Estado pode-se auto-organizar; estabelecer tanto a organização e a função legislativa quanto a administrativa e a judiciária; regular as relações sociais e as relações entre particulares, entre estes e o Estado nas suas múltiplas atividades: penal, política, econômica e financeira; enfim, atuar em todos os objetivos que o Estado se propõe para a conservação e o progresso da própria sociedade.

Se a soberania consiste na autodeterminação plena, nunca dirigida por determinantes jurídicos extrínsecos à vontade soberana do povo nacional, a autonomia, por sua vez, pressupõe ao mesmo tempo uma zona de autodetermi- nação, que é o propriamente autônomo, e um conjunto de limitações e deter- minantes jurídicos extrínsecos, que é o heterônomo.

2. COMPETÊNCIAS ESTADUAIS

A regra de ouro das competências estaduais é o § 1.o do art. 25. No entanto, esta regra que já nas Constituições anteriores era muito vazia de sen- tido, ainda torna-se mais oca na atual, diante dos róis extensos de competên- cias outorgadas à União e Municípios. Não é exagero afirmar-se que será quase impossível os Estados legislarem originariamente sobre qualquer as- sunto. Talvez a só exceção seja mesmo as matérias administrativas relativas à estruturação de seus órgãos e à própria carreira do funcionalismo. No mais, terão que contentar-se com as sobras deixadas pela União, que são as compe- tências concorrentes e suplementares.

3.OS ESTADOS FEDERADOS PERANTE A ORDEM EXTERNA

Por não serem soberanos, os Estados-Membros não são reconhecidos pela ordem jurídica internacional. Daí a impossibilidade em que, de regra, se encontram de celebrar tratados ou convênios com Estados estrangeiros. No nosso sistema constitucional, essa possibilidade lhes é inteiramente negada, ao determinar a Constituição no seu art. 21, I, ser da competência da União: manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais". Dada essa expressa outorga à União da faculdade de relacionar-se com outros Estados, automaticamente fica vedada aos Estados federados essa mesma possibilidade. É certo que a estes fica aberta a viabilidade jurídica de celebrarem vínculos de direito com pessoas estrangeiras, tanto particulares quanto governamentais. Não estarão, contudo, comprometendo a vontade e a responsabilidade do Estado brasileiro. Para que isto se dê, há que figurar a intervenção da União, como se dá, por exemplo, no caso de os Estados preten- derem contratar empréstimos no exterior, o que, de resto, só pode ser feito se dentro dos limites de endividamento fixados pelo Senado.

4. AUTONOMIA DOS ESTADOS

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Na Constituição vigente a autonomia dos Estados está assegurada, espe- cialmente, no art. 25.

A capacidade de auto-organização está expressa no caput do artigo ao dispor que:

"Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adota- rem, observados os princípios desta Constituição".

A capacidade de autogoverno está inserida nos arts. 27, §§ 1.o a 4.o e 28. Versam estes dispositivos sobre a eleição do governador e vice-governador de Estado e número de deputados à Assembléia Legislativa. E, ainda, aos Estados compete organizar a sua Justiça, conforme dispõe o art. 125 da Constituição.

A capacidade de auto-administração deflui da capacidade de auto-organi- zação e de autogoverno, bem como da competência residual (art. 25, § 1.o) das competências constitucionalmente previstas.

Outra demonstração da autonomia dos Estados decorre do art. 34 que impede a União de intervir nos Estados, salvo os casos em que há autorização constitucional.

De outra forma, nota-se, e com pesar, que não existe mais a possibilidade de a União, Estados e Municípios celebrarem convênios para execução de leis e servi- ços. Hoje fica a critério da União regular como se dará a atuação conjunta destes entes políticos. Assim o que antes era decorrente de um contrato entre pessoas de mesma estatura, hoje é uma imposição da União (art. 23, parágrafo único).

4.1. Poder Constituinte Estadual

A auto-organização dos Estados se efetiva pela adoção de Constituição e legislação próprias. O que pressupõe a necessidade de um órgão com o poder de elaborar a Constituição do Estado. A manifestação desse poder é tida, nor- malmente, por constituinte. Contudo, as diferenças que apresenta com o po- der constituinte nacional é de tal monta que parece impróprio conservar-se o mesmo nome para realidades tão díspares. O único ponto comum entre o po- der constituinte nacional e o chamado poder constituinte estadual é que am- bos se reúnem para elaborar uma Constituição. Tudo o mais são diferenças.

A natureza jurídica do poder constituinte estadual tem provocado gran- des controvérsias. Sendo considerado por alguns como poder constituinte de- corrente, por outros, como poder constituinte de segundo grau, subordi secundário e condicionado.

O poder constituinte originário, o que elabora a Constituição Federal, é soberano, enquanto o poder constituinte estadual é autônomo. O primeiro não está subordinado a nenhuma limitação jurídica. O segundo atua dentro de uma área de competência, delimitada pela Constituição Federal.

Assim é que a Constituição Federal assegura aos Estados a capacidade para auto-organizarem-se, desde que sejam respeitados os princípios que ela estabelece.

Neste sentido é o art. 11 das Disposições Transitórias que diz o seguinte: "Cada Assembléia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Consti- tuição do Estado, no

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prazo de um ano, contado da promulgação da Constitui- ção Federal, obedecidos os princípios desta".

5. INTERVENÇÃO DO ESTADO NOS MUNICÍPIOS

O art. 35 traz a mesma regra mestra esculpida no artigo anterior que trata da intervenção federal, qual seja a não-intervenção, exceto nas hipóteses constitucionalmente previstas, que são as seguintes:

I- deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos conse- cutivos, a dívida fundada;

II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;

III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino;

IV - o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegu- rar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou prover a execução de lei, de ordem ou decisão judicial.

O decreto do governador deverá especificar o prazo e as condições de aplicação e se couber deverá nomear o interventor a ser submetido à Assem- bléia Legislativa que o apreciará em 24 horas; se esta não estiver em funcio- namento, será reunida extraordinariamente.

No caso do decreto limitar-se a suspender a execução do ato impugna- do, não há necessidade de apreciação por parte da Assembléia Legislativa.

Finda a intervenção, não havendo impedimento legal, as autoridades de- verão retornar a seus antigos cargos.

6. OS TRIBUTOS NOS ESTADOS

Em matéria tributária, o novo Texto Constitucional não foi centraliza- dor, como em geral o foi. Na verdade, no campo específico tributário, o cons- tituinte parece ter-se movido por uma luta que já se vinha travando há tempos no sentido de se aquinhoarem mais robustamente tanto os Estados quanto os Municípios. Especificamente quanto aos primeiros, convém notar que os seus ganhos não se deram sem perdas, como fica confirmado pela transferência que se deu do imposto de transmissão de bens imóveis e inter vivos.

Na Constituição de 1967, esse imposto cabia aos Estados. Por força da de 1988, ele se transfere para os Municípios. Em matéria de transmissões, os Estados ficam reduzidos à causa mortis e à doação; é verdade que com a grande compensação de não haver restrição quanto aos bens.

O referido imposto pode recair sobre qualquer sorte de bens ou direitos.

De outra parte, as finanças estaduais receberam um grande reforço advindo da supressão dos impostos únicos da União, que incidiam sobre as matérias elencadas no art. 21 do Texto anterior.

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Atualmente, o Texto faz expressa referência à competência dos Estados para tributarem a prestação de serviços de transporte interestadual e intermu- nicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.

Não há dúvida que a fonte primordial de receitas estaduais continuará sendo a proveniente do imposto sobre operações relativas à circulação de mer- cadorias e prestação de serviços. Mas é bom notar que agora este imposto terá um campo de abrangência maior, porque incidirá também sobre os produtos que antes estavam fora da sua força tributária por já colhidos por imposto único.

Mas há dois pontos ainda a serem observados com relação às finanças estaduais. Em primeiro lugar, há que se mencionar o não-desprezível reforço consistente no adicional ao imposto incidente sobre lucros, ganhos e rendi- mentos de capital até o limite de cinco por cento do imposto pago à União por pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas nos respectivos territórios. É desne- cessário salientar a potencialidade desse imposto adicional.

Em segundo lugar, há que se referir ao substancioso aumento das transfe- rências federais em benefício dos Estados.

7. UMA VISÃO CRÍTICA DOS ESTADOS FEDERADOS

Diante de todo o exposto, é-nos lícito atingir algumas conclusões no que diz respeito à tarefa constituinte estadual.

A primeira delas é a de que não se pode pensar que reste uma margem de atuação muito "lata" para o legislador constituinte estadual. O modelo fede- rativo adotado é de cunho eminentemente centralizador, impondo aos Estados um modelo bastante rígido no que diz respeito à estrutura e funcionamento dos seus três Poderes.

É bem de ver que aqui se trata da consolidação de uma tendência já firmada no nosso federalismo.

Em segundo lugar, é preciso, contudo, não subestimar a necessidade de uma tarefa que se avulta como bastante profunda. Ante as alterações produzi- das no texto federal, as adaptações da lei maior do Estado deverão ser inúme- ras. Sobretudo o fortalecimento do Poder Legislativo federal não poderá dei- xar de acarretar igual solução no campo estadual.

O trabalho, portanto, há de ser árduo e, se exercido com bastante criativi- dade e inspiração, poderá descobrir brechas para a elaboração de um texto que consagre medidas de relevância para a organização e o funcionamento do Estado.

E, finalmente, deve-se considerar que a recusa do constituinte federal em conferir poderes para os Estados editarem uma legislação autônoma e ori- ginária foi de certa forma compensada pela possibilidade de eles poderem editar uma legislação supletiva em campos que antes lhes eram vedados de forma absoluta. Cremos que aqui reside uma das áreas que podem ser grandemente exploradas pelo constituinte estadual.

É mesmo muito importante que a lei maior do Estado procure direcionar a atividade ordinária do legislador, formulando os critérios e os valores funda- mentais sob os quais o Estado deverá atuar. O fato de se tratar de uma legisla- ção supletiva não implica a absoluta cassação da competência estadual sobre a matéria. Mesmo porque, em muitas

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hipóteses, a legislação federal haverá de cingir-se à edição de normas gerais. O desenvolvimento destas se traduzirá em uma atividade jurídico-política de expressão não-desprezível, à qual o Texto Constitucional deverá dar a devida dimensão e importância, fixando critérios, estatuindo parâmetros e definindo metas. Não se pode esquecer ainda que o acréscimo das receitas tributárias do Estado oferecerá a estes uma possibilidade de dinamização e mesmo de alargamento dos serviços e obras postos à dis- posição da coletividade.

São imensas, portanto, as possibilidades de atuação dos Estados nos campos da segurança, da saúde e da educação.

A estes recursos acrescidos, quer-nos parecer que correspondem novas responsabilidades. E quer-nos parecer que Cartas estaduais bem elaboradas poderão trazer reforços no sentido de submeter a máquina estadual a uma maior eficiência, sobretudo pela eliminação daquela parcela da burocracia que sabidamente é desnecessária, assim como pela implantação de mecanis- mos mais rigorosos de combate à imoralidade pública.

CAPÍTULO IV DOS MUNICÍPIOS

SUMÁRIO: 1. O Município na estrutura federativa brasileira. 2. Conceito. 3. Com- petência municipal: o critério de interesse local. 3.1. Outras competências muni- cipais. 4. Criação e organização municipal. 5. Organização política. 6. Fiscaliza- ção financeira e orçamentária dos Municípios.

1. O MUNICÍPIO NA ESTRUTURA FEDERATIVA BRASILEIRA

O Município é contemplado como peça estrutural do regime federativo brasileiro pelo Texto Constitucional vigente, ao efetuar a repartição de compe- tências entre três ordens governamentais diferentes: a federal, a estadual e a municipal. A semelhança dos Estados-Membros, o Município brasileiro é do- tado de autonomia, a qual, para que seja efetiva, pressupõe ao menos um go- verno próprio e a titularidade de competências privativas. Nos arts. 29 e 30 a Constituição Federal assegura os elementos indispensáveis à configuração da autonomia municipal.

O conceito de autonomia, muito embora tenha provocado, ao longo dos tempos, no dizer do Prof. J. H. Meirelles Teixeira, "infindáveis discussões, sus- citadas principalmente pela ausência de método científico e pela diversidade de pontos de vista sociológicos, políticos ou propriamente jurídicos, sob os quais se procura determinar o seu conteúdo, certo é que os dispositivos, a respeito das Constituições brasileiras, não somente consagram a autonomia municipal, como princípio de organização política e administrativa, mas também lhe assi- nalam desde logo, conteúdo inderrogável por lei ordinária, constituindo tal con- teúdo direito público subjetivo, oponível à União e aos Estados".

Se a autonomia significa capacidade ou poder de gerir os próprios negó- cios dentro de um círculo prefixado pelo ordenamento jurídico que a embasa, é de se perguntar: qual o critério adotado pela Constituição para fixar o con- junto de matérias afetadas à competência municipal?

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2. CONCEITO

O princípio federativo brasileiro se traduz pela autonomia recíproca cons- titucionalmente assegurada da União, dos Estados Federados e dos Municí- pios. O Município é peça estrutural do regime federativo brasileiro, à seme- lhança da União e dos próprios Estados.

A Constituição Federal estabelece uma verdadeira paridade de tratamento entre o Município e as demais pessoas jurídicas, assegurando-lhe autonomia de autogoverno, de administração própria e de legislação própria no âmbito de sua competência (arts. 29, I, e 30 e incisos).

Autonomia que se confirma pelo disposto no art. 35, que proíbe a inter- venção do Estado nos Municípios, salvo ocorrendo uma das hipóteses autori- zadoras.

O Município pode ser definido como pessoa jurídica de direito público interno, dotado de autonomia assegurada na capacidade de autogoverno e da administração própria.

3. COMPETÊNCIA MUNICIPAL: O CRITÉRIO DE INTERESSE LOCAL

No que toca à repartição de competências entre os três níveis de governo existentes no Brasil, a Constituição adotou o seguinte critério: competem aos Municípios todos os poderes inerentes a sua faculdade para dispor sobre tudo aquilo que diga respeito ao seu interesse local; competem aos Estados-Mem- bros todos os poderes residuais, isto é, tudo aquilo que não lhes foi vedado pela Magna Carta, nem estiver contido entre os poderes da União ou dos Municípios.

O conceito-chave utilizado pela Constituição para definir a área de atua- ção do Município é o de interesse local. Cairá, pois, na competência munici- pal tudo aquilo que for de seu interesse local. É evidente que não se trata de um interesse exclusivo, visto que qualquer matéria que afete uma dada comuna findará de qualquer maneira, mais ou menos direta, por repercutir nos interes- ses da comunidade nacional. Interesse exclusivamente municipal é inconce- bível, inclusive por razões de ordem lógica: sendo o Município parte de uma coletividade maior, o benefício trazido a uma parte do todo acresce a este próprio todo. Os interesses locais dos Municípios são os que entendem ime- diatamente com as suas necessidades imediatas, e, indiretamente, em maior ou menor repercussão, com as necessidades gerais.

A imprecisão do conceito de interesse local, se por um lado pode gerar a perplexidade diante de situações inequivocamente ambíguas, onde se entrela- çam em partes iguais os interesses locais e os regionais, por outro, oferece uma elasticidade que permite uma evolução da compreensão do Texto Constitucio- nal, diante da mutação por que passam certas atividades e serviços. A variação de predominância do interesse municipal, no tempo e no espaço, é um fato, particularmente no que diz respeito à educação primária, trânsito urbano, tele- comunicações etc.

Estudado o conceito de interesse local, fulcro do critério determinador da competência constitucional dos Municípios, cumpre examinar os outros elementos sobre os quais se erige a autonomia municipal.

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3.1. Outras Competências Municipais

O inc. i do art. 30 diz que cabe ao Município legislar sobre assuntos de interesse local. É uma lástima que se tenha abandonado a noção clássica do peculiar interesse municipal, sobre a qual há uma substanciosa doutrina e uma não menos rica jurisprudência, e se tenha preferido uma expressão que reto- ma um nível de vaguidade que já no passado teve e que foi motivo de não pouco detrimento dos interesses do Município, isso porque mais uma vez a competência municipal ficará sob o foco de uma disputa com as demais pes- soas de direito público, pois o mero interesse local não exclui o interesse es- tadual e mesmo o nacional.

Para que ele prevaleça, faz-se necessário demonstrar que o interesse local é mais expressivo do que o estadual e federal. Assim, por exemplo, a abertura de uma avenida no Município pode beneficiar também os habitantes de fora, pois quando estes cruzarem o Município terão uma via pública de melhor qualidade. Mas é evidente que aqueles que moram no próprio Município são os mais interessados na artéria viária, uma vez que ela passa a compor o ce- nário normal do Município em que habita.

O inc. ii do mesmo art. 30 diz competir ao Município suplementar a legislação federal e a estadual no que couber. Aqui, a bem da verdade, reconheça- se que ao Município acresceu-se alguma coisa, visto que não possuía nada do gênero na Constituição anterior. Mesmo em assuntos sobre os quais nenhuma competência possuía o Município, pode ele agora suprir omissões da legisla- ção federal e estadual, obviamente sem violentá-la. Ainda assim, na verdade, parece possível dar expressão legislativa aos interesses locais, suplementando uma normatividade heterônoma, que por essa via torna-se possível de receber dispositivos que a modelem mais adequadamente ao atingimento de seus desíg- nios, tomando em linha de conta as particularidades dos diversos entes locais.

O mesmo art. 30 enuncia diversas competências expressas dos Municípios, é dizer, aquelas que lhes pertencem independentemente do exame quanto ao enquadrar-se no seu interesse local. Esses dispositivos não devem estimular uma visão exageradamente grandiosa da autonomia municipal. Diversas matérias aí explicitadas sofrem a restrição de uma normatividade superior, que lhes diminui o âmbito de atuação. Exemplifiquemos. O inc. V do supracitado artigo dispõe que aos Municípios compete organizar os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo. Mas já o art. 21, XX, estipula que cabe à União editar diretrizes para os transportes urbanos. Citem-se, ainda, a título exemplificativo, o inc. VIII, que sofre a constrição do 21, IX, e o próprio art. 30, IX, segundo o qual é da alçada municipal a proteção do patrimônio histórico-cultural, observada, no entanto, a legislação fiscalizadora da União e dos Estados.

4. CRIAÇÃO E ORGANIZAÇÃO MUNICIPAL

A criação de Município se efetiva mediante lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em lei complementar federal, e desde que seja realizada consulta prévia, por meio de plebiscito, às populações interessadas (Emenda Constitucional n. 15 de 1996 que alterou o art. 18, § 4.o).

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A criação do Município pode-se dar pelo desmembramento de área de outro Município ou pela fusão de dois ou mais já existentes.

Pelo desmembramento - mediante a representação à Assembléia Legisla- tiva do Estado com a assinatura de pelo menos cem eleitores residentes no local. Compete à Assembléia Legislativa verificar se na área interessada ocor- rem os requisitos exigidos na lei complementar quanto ao número de habitan- tes, de casas, ao valor das rendas, ao número de eleitores, bem como se o desmembramento não vai resultar na perda dos requisitos mínimos para o Município de origem.

Por fusão de dois ou mais Municípios - o processo se realiza mediante plebiscito das populações interessadas. Esta consulta visa a apurar não só a concordância com a fusão, mas também com a sede do novo Município. Neste caso fica dispensada a verificação dos requisitos de número de habitantes, de casas, rendas, e cômputo do eleitorado.

Em ambos os casos só será possível a elaboração da lei estadual que crie o Município, se o plebiscito apresentar votação favorável de maioria absoluta.

5. ORGANIZAÇÃO POLÍTICA

Por organização política deve-se entender a criação de órgãos indispensáveis e as regras básicas a serem adotadas pelo Município. Diz respeito à consti- tuição dos poderes municipais (executivo e legislativo), bem como à organização da Câmara dos Vereadores, e às funções de prefeito, vice-prefeito e verea- dores.

A atual Constituição concedeu aos Municípios a capacidade de auto-orga- nizarem-se através de lei orgânica aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal (art. 29).

O prazo para elaboração destas leis é de seis meses depois de promulga- das as Constituições dos respectivos Estados (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 11, parágrafo único).

6. FISCALIZAÇÃO FINANCEIRA E ORÇAMENTÁRIA DOS MUNICÍPIOS

A fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios se dá sob duas modalidades: controle interno e controle externo.

Controle externo - é exercido pela Câmara Municipal, que somente por decisão de dois terços dos seus membros poderá deixar de acatar o parecer prévio emitido pelo órgão competente. Este é, em regra, o Tribunal de Contas do Estado. A Constituição Federal também alude a um órgão estadual ao qual, eventualmente, poderá ser atribuída a incumbência de emitir parecer sobre as Contas Municipais (art. 31, §§ 1.o e 2.o). Além disto, as contas dos Municípios ficarão à disposição dos contribuintes, anualmente, por um prazo de sessenta dias (art. 31, § 3.o).

Controle interno - é exercido na forma do disposto na Lei federal n. 4.320/64. Embora federal, ela é cogente para os Municípios, uma vez que se trata de normas gerais de direito financeiro (CF, art. 24, I).

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A Lei n. 4.320 disciplina a fiscalização financeira e orçamentária e com- preende os controles da legalidade, da fidelidade e da execução (arts. 75 a 81). O controle interno da legalidade é exercido sobre os atos pertinentes à arreca- dação da receita e à realização das despesas, bem como sobre os que acarretem ou possam acarretar nascimento ou extinção de direitos e obrigações; o controle interno da fidelidade visa à conduta funcional dos agentes responsáveis por bens e valores públicos; o controle interno da execução tem por objetivo o cum- primento do programa de trabalho do Governo, considerado em seus aspectos financeiros, de realização de obras e prestação de serviços.

CAPÍTULO V DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS FEDERAIS

SUMÁRIO: 1. Natureza jurídica do Distrito Federal. 2. Governo do Distrito Fe- deral. 3. Atribuições legislativas do Distrito Federal. 4. Poder Judiciário do Dis- trito Federal. 5. Histórico dos Territórios. 6. Situação atual dos Territórios.

O Distrito Federal sucedeu ao Município neutro que era a sede do Governo e Capital do Império.

1. NATUREZA JURÍDICA DO DISTRITO FEDERAL

Com a atual Constituição o Distrito Federal alcança o status de pessoa política, uma vez que ganhou competências legislativas, a serem desempenhadas pela Câmara Legislativa, que deverá criar, inclusive, a própria Lei Orgânica do Distrito.

2. GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL

O Governador e seu Vice, bem como os Deputados Distritais, deverão ser eleitos de acordo com as regras do art. 77 e seus parágrafos. Ou seja, haverá eleição direta para Governador e em dois turnos se necessário. Quanto aos Deputados, estes deverão ser eleitos através do sistema proporcional.

3. ATRIBUIÇÕES LEGISLATIVAS DO DISTRITO FEDERAL

Alçado à categoria de pessoa política, sob a atual Constituição, o Distri- to Federal poderá legislar. O seu âmbito de competência é bastante largo na medida em que incorpora tanto as competências atribuídas aos Estados como aquelas próprias dos Municípios.

4. PODER JUDICIÁRIO DO DISTRITO FEDERAL

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O Poder Judiciário do Distrito Federal, bem como os órgãos essenciais à administração da Justiça, deverão ser organizados através de lei de competência do Congresso Nacional (art. 48, IX).

5. HISTÓRICO DOS TERRITÓRIOS

O Território não figurou na Constituição de 1891. Nossa primeira Consti- tuição Republicana dispunha que os Estados Unidos do Brasil ficariam consti- tuídos pelas antigas províncias, que foram transformadas em Estados Federa- dos, e pelo antigo Município neutro, transformado em Distrito Federal. Não previu a possibilidade de serem incorporadas novas áreas ao território nacional.

O primeiro Território Federal foi criado por uma lei ordinária - a Lei n. 1.181, de 24 de fevereiro de 1904. Foi o Território do Acre, que o Brasil ad- quiriu da Bolívia mediante tratado internacional, o Tratado de Petrópolis, assinado em 17 de novembro de 1903.

A falta de previsão constitucional levou aos Tribunais o Estado do Amazo- nas, que reclamava para si a incorporação das terras bolivianas, que a União, pela Lei n. 1.181, de 1904, subordinara ao seu domínio.

O Estado do Amazonas teve como patrono o brilhante Rui Barbosa. Todavia, esse volumoso processo (dois volumes de mil e uma páginas) não chegou a ser decidido judicialmente. O Supremo Tribunal Federal jamais fez qualquer pronunciamento a respeito desses autos, embora estivessem em condições de ser julgados já em 1910 (Rubem Nogueira, O Advogado Rui Barbosa, Brasília, Livraria Editora Cátedra, 1979, p. 308). A Constituição de 1934 pôs fim à questão determinando no seu art. 5.o que: "A União indenizará os Estados do Amazonas e Mato Grosso dos prejuízos que lhes tenham advindo da incorporação do Acre ao Território Nacional. O valor fixado por árbitros, que terão em conta os benefícios oriundos do convênio e as indenizações pagas à Bolívia, será aplicado, sob a orientação do Governo Federal, em proveito daqueles Estados". A partir daí o Território passou a figurar em todas as Constituições brasileiras.

Na Constituição anterior, o art. 1.o dizia que "o Brasil é uma República Federativa, constituída sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios". Como se nota a Constitui- ção passada adotava o critério físico para determinar o que é o Brasil.

A atual Constituição mudou tal critério. Hoje compõem a Federação brasileira apenas as pessoas políticas, sendo o Território, parte da União, despro- vido de autonomia política. Ficou fora do art. 1.o que não concebe o Território enquanto componente de nossa Federação.

6. SITUAÇÃO ATUAL DOS TERRITÓRIOS

O constituinte, muito embora tenha tratado da matéria referente aos Terri- tórios, transformou os que existem em Estados, à exceção de Fernando de Noronha, que foi reincorporado ao Estado de Pernambuco.

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Todo o processo de criação, transformação em Estado ou reintegração a este dependerá de lei complementar, conforme determina o § 2.o do art. 18.

É bom lembrar que os Territórios possuíam apenas capacidade administra- tiva; não eram dotados de capacidade política, ou seja, não elaboravam suas próprias leis.

CAPÍTULO VI DA INTERVENÇÃO FEDERAL

SUMÁRIO. 1. Noções gerais. 2. Efetivação da intervenção. 3. Requisitos da in- tervenção. 4. Efeitos da intervenção.

1. NOÇÕES GERAIS

A intervenção federal consiste no afastamento temporário, pela União, das prerrogativas totais ou parciais próprias da autonomia dos Estados, preva- lecendo a vontade do ente interventor.

Diz o art. 34 que a União não intervirá nos Estados e no Distrito Federal exceto nas hipóteses previstas na Constituição; tais hipóteses configuram si- tuações que presumivelmente colocam em risco, potencial ou atual, a própria unidade nacional e a integridade da Federação.

Como se vê, a regra é a não-intervenção. A intervenção é medida excep- cional de defesa do Estado federal e de proteção às unidades federadas que o integram. É instituto essencial do sistema federativo e é exercido em função da integridade nacional e da tranqüilidade pública. A intervenção é autoriza- da para repelir invasão estrangeira e para impedir que o mau uso da autono- mia pelos Estados-Membros resulte na invasão de um Estado em outro, na perturbação da ordem, na corrupção do Poder Público estadual, no desrespei- to da autonomia municipal.

Além dos pressupostos materiais, que são as hipóteses elencadas no art. 34, o ato de intervenção está sujeito a certos pressupostos formais: quanto à sua efetivação, limitação e requisitos. Tais pressupostos encontram-se no art. 36 da Constituição Federal.

2. EFETIVAÇÃO DA INTERVENÇÃO

A efetivação da intervenção federal ocorre sempre por decreto do Presi- dente da República, ouvido o Conselho da República (art. 90, I), que especifi- ca a sua amplitude, prazo e condições de execução, e, se necessário, nomeia o interventor. Porém, deverá o decreto ser apreciado pelo Congresso Nacio- nal, que, se não estiver em funcionamento, será convocado extraordinaria- mente. A apreciação deverá ser feita em vinte e quatro horas, conforme dis- posto no art. 36, §§ 2.o e 3.o.

Nota-se, portanto, que nem sempre é necessário a nomeação de um inter- ventor. É que a intervenção pode atingir qualquer órgão do Estado. Em regra, atinge o Executivo. Neste caso, é necessário a nomeação de um interventor para exercer as funções do Governador. Já se a intervenção ocorre apenas em nível do Legislativo, a presença do

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interventor torna-se desnecessária, desde que o ato interventivo atribua ao Governador as funções legislativas. Abrangendo a intervenção os órgãos do Executivo e do Legislativo, mister se faz a no- meação de um interventor para que execute as duas funções.

3. REQUISITOS DA INTERVENÇÃO

A decretação de intervenção dependerá:

a) nos casos dos incs. I, II, III e V do art. 34 de decreto do Presidente da República - ouvido o Conselho da República. Tal decreto será apreciado pelo Congresso Nacional em vinte e quatro horas;

b) no caso do inc. IV do art. 34 - "garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação" - de solicitação do Poder Legislati- vo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário;

c) no caso de desobediência a ordem ou decisão judicial, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral;

d) nos casos de assegurar os princípios constitucionais arrolados no inc. VII, a, b, c e d, do art. 34 (forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direito da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública direta ou indireta), ou de provimento pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República;

e) no caso de recusa à execução de Lei Federal, de um provimento do Superior Tribunal de Justiça ou representação do Procurador-Geral da Re- pública.

Tanto nos casos do inc. VI, como nos do inc. VII do art. 34, o decreto do Presidente da República não necessita ser submetido à apreciação do Con- gresso Nacional, uma vez que o decreto limitar-se-á à suspensão do ato impug- nado, sem necessidade da nomeação de um interventor.

A intervenção é medida de interesse nacional e de garantia mútua. Quando a União intervém em determinado Estado, todos os Estados estão intervindo conjuntamente, pois o decreto de intervenção depende do Congresso Nacional, que expressa a vontade dos Estados-Membros representados pelos Senadores, e a vontade do povo, representada pelos Deputados.

O Congresso Nacional examina os aspectos formal e material do decre- to interventivo. Compete ao Congresso Nacional deliberar sobre a amplitude, prazo e condições de execução e circunstâncias que deverão constar necessaria- mente do decreto de intervenção, sob pena de imediata rejeição por não preencher os requisitos constitucionais do § 1.o do art. 36 da Constituição Federal.

A intervenção passará a ser ato inconstitucional se o decreto for rejeita- do pelo Congresso Nacional. E, se mesmo assim for mantida, constituirá atentado contra os Poderes constitucionais do Estado, caracterizando o crime de res- ponsabilidade do Presidente da República (art. 85, II).

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4. EFEITOS DA INTERVENÇÃO

Um dos efeitos da intervenção é o afastamento das autoridades esta- duais dos seus cargos. Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afas- tadas voltarão aos seus respectivos cargos, salvo impedimento legal (art. 36, § 4.o). O impedimento legal pode ocorrer por várias razões: pelo término do mandato; por ter sido cassado ou declarado extinto o mandato; por terem sido suspensos os direitos políticos.

CAPÍTULO VII DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

SUMÁRIO: 1. Administração Pública. 1.1. Administração direta e indireta. 1.1.1. Autarquias. 1.1.2. Sociedades de economia mista e empresas públicas. 1.1.3. Fundações. 1.2. Princípios constitucionais da Administração Pública. 1.2.1. Princípio da legalidade. 1.2.2. Princípio da impessoalidade. 1.2.3. Prin- cípio da moralidade. 1.2.4. Princípio da publicidade. 1.2.5. Princípio da efi- ciência. 2. Agentes públicos. 3. Regiões.

O Capítulo VII do Título III da Constituição Federal é dedicado à Admi- nistração Pública, aos servidores públicos e às regiões.

1. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O capítulo se inicia com o art. 37 - alterado pela Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, que trata da reforma administrativa -, dizen- do que a Administração Pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos prin- cípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Na redação original desse dispositivo, a Administração Pública era dividida em dire- ta, indireta e fundacional. Pretendeu o legislador reformador corrigir essa classi- ficação, excluindo a "fundacional", já que esta se encontra inserida na Administra- ção indireta. Sem embargo da qualidade dessa Emenda - que modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agen- tes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal -, ela não está sendo aplicada em toda a sua potencialidade por falta de uma legislação ordinária que a integre. Se posta efetivamente em prática, proporcionará à Administração Pública meios para adequar seu pessoal e a sua organização às efetivas necessidades do Brasil de hoje.

Como se vê, o preceito, além de cuidar da Administração como um con- junto de órgãos, fixa, também, os princípios a que ela está sujeita na sua atua- ção. Dada a estrutura federativa do Estado brasileiro, a Administração, ne- cessariamente, guarda uma conformação compatível, é dizer, existe adminis- tração ao nível federal, estadual e municipal.

Não podemos confundir a Administração de que ora se cuida com ne- nhum dos Poderes, uma vez que nos três existem órgãos administrativos. O Legislativo, o Executivo e o Judiciário, todos eles dispõem de organização administrativa, e o capítulo a todos abrange. Contudo, é no Poder Executivo que se vão alojar por excelência os órgãos administrativos. E a razão é muito simples. É ao Poder Executivo que compete a execução das leis enquanto o seu

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cumprimento não esteja a gerar controvérsia. Com o volume crescente das atividades assumidas pelo Estado, cresceu, necessariamente, o número de órgãos indispensáveis à prestação de toda essa atividade que hoje lhe incumbe.

É bom dizer que, embora predominantemente sediada no Poder Exe- cutivo, a Administração com este não se confunde. Os seus órgãos de cúpula são de natureza política; conseqüentemente, não integram a Administração Pública. Tanto os órgãos quanto a própria atividade administrativa existem em função da lei cuja atuação objetivam. Administrar é, pois, tornar concre- ta, é transformar em realidade a vontade abstrata da lei.

De fato, de nada adiantaria o Estado editar comandos normativos se não tivesse também a seus serviços órgãos incumbidos de fiscalizar o seu cumpri- mento, de punir os faltosos, assim como de fornecer aquelas prestações de ser- viços desejados pela lei. São esses os dois campos fundamentais da atuação administrativa: a polícia administrativa e a prestação de serviços públicos. A polícia administrativa é a atividade pela qual a Administração visa a condicionar o exercício dos direitos de todos os cidadãos a formas que não agridam o pró- prio interesse coletivo ou não ofendam outros direitos individuais. Pelos servi- ços públicos a Administração executa atividades cujas características, variá- veis, no tempo e no espaço, têm levado a considerá-la como pública.

A regra de ouro que preside a atividade administrativa é o ser ela cum- prida sempre debaixo de lei. A implantação do Estado de Direito sediou no Legislativo todas as disposições que afetam inauguralmente a ordem jurídica das pessoas, quer quando se trate de impor obrigações de prestar algo ou de abster-se, quer se trate de impor penas graves levando inclusive ao cerceio da liberdade; enfim, toda a repartição de direitos e deveres, não feita diretamente pela Constituição, é atuada por atos legislativos ou ao menos por atos que nos termos da Constituição desfrutem de igual eficácia. A Administração cabe, portanto, cumprir os fins queridos e expressos pela ordem jurídica.

1.1. Administração Direta e Indireta

Tanto a Constituição quanto o Decreto-Lei n. 200, alterado pelo Decre- to-Lei n. 900, utilizam a terminologia direta e indireta para distinguir a Admi- nistração centralizada da descentralizada. Quando as atividades administrati- vas são realizadas pela própria Administração Pública (na esfera federal, es- tadual ou municipal), através de seus órgãos internos, temos a Administração direta ou centralizada. Por outro lado, quando a Administração confia a outra pessoa jurídica - autarquia, sociedade de economia mista, empresa pública, fundação - a realização de tais misteres, temos a Administração indireta ou descentralizada. Assim, a Administração direta é aquela que integra os pró- prios Poderes que compõem as pessoas jurídicas de direito público com capa- cidade política. Ter capacidade política significa ter capacidade legislativa, ou seja, ter a possibilidade de editar suas próprias leis.

1. Não se deve confundir descentralização com desconcentração. Ocorre que, na administra- ção centralizada, as atividades e competências decisórias também são distribuídas entre diversos órgãos. Todavia, não se confunde com a descentralização, porque não existe transferência de ativi- dade para outra pessoa. A distribuição se opera no interior de uma mesma pessoa jurídica. É fácil entender a necessidade dessa distribuição, pois seria inviável para o Chefe do Executivo concentrar em suas mãos todas as atividades afetas ao

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Poder Executivo. Esta distribuição interna denomina-se desconcentração e pode existir tanto na Administração Central (União, Estados, Municípios) como nas entidades descentralizadas (autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas).

Em termos cronológicos, a Administração direta foi a primeira a surgir, e durante muito tempo não se conheceu outra forma de prestação da atividade administrativa. Em dada altura, entretanto, sentiu-se que o crescimento cons- tante do Executivo com o alargamento das suas funções, que se tornavam abrangentes de áreas cada vez maiores do comportamento humano, estava a demandar um descongestionamento do próprio Poder Executivo. Em outras palavras, cumpria instituírem-se formas descentralizadas, que retirassem do seio da própria Administração parte do seu atuar. Nesse processo de descentralização acabou-se por adotar uma variada gama de entidades jurídi- cas com natureza diversa (autarquias, sociedades de economia mista, empre- sas públicas, fundações), ora regidas pelo direito público, ora pelo direito privado.

1.1.1. Autarquias

As autarquias são pessoas jurídicas de direito público de capacidade meramente administrativa, portanto, sem poder de legislar. São criadas e ex- tintas por lei específica (art. 37, XIX, com redação dada pela EC n. 19/98). Submetem-se ao controle da Administração Central exercido nos limites da lei. Respondem as autarquias pelos seus atos, mas, uma vez exauridos os seus recursos e desde que haja danos a terceiros, o Estado é chamado a responder subsidiariamente.

1.1.2. Sociedades de Economia Mista e Empresas Públicas

São essas entidades pessoas jurídicas de direito privado criadas ou as- sumidas pelo Estado para a prestação de serviço público ou para a exploração de atividades econômicas. Só podem ser autorizadas por lei específica (art. 37 XIX, com redação dada pela EC n. 19/98) e estão sujeitas ao controle adminis- trativo (Dec.-Lei n. 200/67, arts. 19 a 26) e ao controle do Legislativo (CF, arts. 49, X, 70 e 173 e parágrafos). Pela Emenda n. 19/98, que alterou a redação do § 1.o do art. 173, fica certo que a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: a) sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; b) a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas; c) licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; d) a constituição e o funcio- namento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acio- nistas minoritários; e e) os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsa- bilidade dos administradores. São regidas pelo direito privado, sobretudo no que tange aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, não podendo gozar de privilégios não extensíveis às empresas do setor privado (CF, art. 173, §§ 1.o e 2.o). As sociedades de economia mista são compostas por capi- tais públicos e privados e só podem assumir a forma de sociedades anônimas. Não estão sujeitas à falência, mas seus bens são penhoráveis e a entidade que as ins- titui responde subsidiariamente pelas suas obrigações (Lei n. 6.404/76, art. 242). As empresas públicas são constituídas de capital exclusivamente

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público. Podem assumir qualquer forma de sociedade. Respondem pelos seus atos, comparecen- do o Estado, subsidiariamente, se faltar recursos para saldar seus débitos.

1.1.3. Fundações

As fundações são autorizadas por lei específica (art. 37, XIX, com reda- ção dada pela EC n. 19/98) e são voltadas principalmente para a realização de atividades não lucrativas, mas de interesse coletivo: ensino, cultura, pesquisa científica. Cabe à lei complementar definir as áreas de sua atuação.

Uma leitura afoita do caput do art. 37 nos levaria a concluir pela exclu- são da fundação dentre os entes que compõem a Administração indireta, visto que na redação original do dispositivo a Administração Pública estava classi- ficada em direta, indireta e fundacional. Contudo, isto não ocorre porque a própria emenda faz menção às fundações pelo menos em dois dispositivos: os incisos XVII e XIX do mesmo art. 37.

Há que se mencionar ainda como alteração significativa do caput do art. 37 a supressão da palavra "públicas", relativo às fundações que a redação an- tiga tanto fez questão de ressaltar. Pela nova redação fica certo que a funda- ção pode atuar tanto no direito privado quanto no público. Interpretando-se sistematicamente a questão, conclui-se que o legislador tem em mente a cria- ção de novas fundações pelo direito privado, uma vez que "somente por lei específica pode ser autorizada a instituição de fundação (art. 37, XIX).

O controle dessas entidades, conforme dispõe o Código Civil, no seu art. 26, fica a cargo do Ministério Público, mas são também fiscalizadas pelo Tribunal de Contas, nos termos do art. 8.o da Lei n. 6.223/75.

A atual Constituição submete também as fundações às vedações de acumu- lação de cargos públicos (art. 37, XVII, com redação dada pela EC n. 19/98). Portanto, também os servidores das fundações não podem acumular cargo, emprego ou função, a não ser nos casos expressamente autorizados pela Cons- tituição. Da mesma forma, a exigência de aprovação prévia em concurso atin- ge também o preenchimento de cargos e empregos nas fundações.

1.2. Princípios Constitucionais da Administração Pública

1.2.1. Princípio da Legalidade

O princípio da legalidade é um dos sustentáculos fundamentais do Esta- do de Direito. Embora este não se confunda com a lei, não há negar-se, toda- via, ser esta uma das suas expressões basilares. É nela que os indivíduos en- contram 9 fundamento das suas prerrogativas, assim como a fonte de seus deveres. É princípio, pois, genérico do nosso direito, esculpido como direito fundamental (CF, art. 5.o, II).

Este princípio ganha no direito público uma significação especial. Em- bora o primado da lei (e nessa obviamente há de se compreender a própria Constituição) vigore tanto no que diz respeito aos comportamentos privados quanto aos das autoridades administrativas, o grau de adscrição desse atuar ao referencial da lei é muito diverso. No que

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diz respeito às pessoas privadas, o objetivo da lei é o de prestigiar tanto quanto possível a vontade dos diversos atores da cena privatística, envolvendo diretamente os interesses da pessoa humana. Admitindo-se ser a liberdade um dos valores fundamentais do Esta- do de Direito, segue-se, inexoravelmente, que o papel da lei há de cifrar-se à contenção dessa vontade, tão-somente nos casos em que ela possa ganhar uma feição incompatível com o interesse coletivo ou então a de limitar-se a impor aquelas obrigações positivas que se tornem também indispensáveis para o al- cance dos mesmos objetivos. Mas remanesce, sem dúvida, um campo em que a atuação individual é juridicamente irrelevante, no sentido de que é deferida ao indivíduo uma permissão ampla para comportar-se segundo os seus critéri- os. Esta liberdade, aliás, é procurada como fonte de criatividade, de iniciativa e de impulso em todas as modalidades da vida social.

Já quando se trata de analisar o modo de atuar das autoridades administra- tivas, não se pode fazer aplicação do mesmo princípio segundo o qual tudo o que

for proibido lhe é permitido. É que, com relação à Administração, não há princípio de liberdade nenhum a ser obedecido. É ela criada pela Constituição e pelas leis como mero instrumento de atuação e aplicação do ordenamento jurídico. Assim sendo, cumprirá melhor o seu papel quanto mais atrelada esti- ver à própria lei cuja vontade deve sempre prevalecer. Embora a Administração se muna de agentes humanos de cujo processo intelectual e volitivo vai valer-se para poder manifestar um querer seu, a verdade é que nesse campo os processos psíquicos humanos não são prestigiados enquanto titulares de uma liberdade que se quer ver respeitada, mas tão-somente enquanto instrumentos da realiza- ção dos comandos legais que não poderiam evidentemente passar do seu nível abstrato normativo para o concreto senão por intermédio de decisões humanas.

De tudo ressalta que a Administração não tem fins próprios, mas há de buscá-los na lei, assim como, em regra, não desfruta de liberdade, escrava que é da ordem jurídica. Há de se observar, entretanto, que em determinadas hipó- teses é reconhecida à Administração a possibilidade de exercer uma aprecia- ção subjetiva sobre certos aspectos do seu comportamento. Isto porque a lei nesses casos está a lhe deferir uma margem de atuação discricionária que exerce na determinação parcial de alguns de seus atos. Diz-se parcial porque o ato administrativo nunca pode ser integralmente discricionário, pois envol- veria uma margem tão ampla de atuação subjetiva que certamente faria pôr em debandada o próprio princípio da legalidade.

2. A Administração Pública goza em certas hipóteses de uma margem de discricionariedade, o que pode conduzir à idéia precipitada de que se estaria diante de uma brecha no Estado de Direito. Porém, a boa doutrina tem sempre asseverado a compatibilidade de um certo poder discricionário com o principio da legalidade. Parece que não é sustentável a configuração de um Poder Executivo que só atuasse mediante comandos legais que não reservassem qualquer margem de escolha para a Administração. A tendência parece ser a de permitir que a lei confira ao administrador um espaço para a tomada de decisões e feitura de escolha responsáveis. Mas, de outro lado, subordina-se esta discricionariedade à obediência a certos princípios, o que a torna mais controlável pelo Judiciário, que terá campo aberto para sua atuação, fundada precisamente na ofensa destes princípios. Vamos encontrar tolerância da discricionariedade no que diz respeito à escolha e à decisão, mas não no que respeita aos pressupostos de fato. Assim, a Administração terá livre-arbítrio para decidir se uma manifestação pública é ou não perturbadora da ordem, bem como poderá decidir-se por uma das possíveis alternativas que a lei lhe faculta. No entanto, ao administrador não é dado

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exercer o seu poder discricionário quanto à fixação dos pressupostos de fato. Ainda assim, esta discrição pode incorrer em vícios, por exemplo: o de excesso ou abuso de poder discricionário. Fica claro que as autoridades administrativas tanto podem ir além do que a lei lhes permite - excesso de poder - quanto atuarem em dissonância com os fins almejados pela lei - abuso de poder. Ambas as hipóteses ensejadoras de controle judiciário.

1.2.2. Princípio da impessoalidade

A impessoalidade está intimamente ligada a outros princípios, tais como o da finalidade, o da isonomia e mesmo o da legalidade. De fato, a lei tem de ser aplicada de molde a não levar em conta critérios nela não inseridos. Toda vez que o administrador pratica algum entorce na legislação para abranger uma situação por ela não colhida ou para deixar de abarcar uma outra natural- mente inclusa no modelo legal, a Administração está-se desviando da trilha da legalidade. Essa derrapagem nem sempre é ostensiva. Nessas hipóteses a cautela do administrador recomenda-lhe abster-se da prática que ofenda ex- plicitamente a norma legal.

O campo por excelência em que medra o atentado à impessoalidade é o da discricionariedade. Aqui, ao moldar o seu comportamento, cabe a prática da escolha de um ato que melhor atenda a finalidade legal. Nesta ocasião é que o administrador pode ser tentado a substituir o interesse coletivo por con- siderações de ordem pessoal, favorecendo ou discriminando sem justificação legal. A introdução destes elementos estranhos à preocupação legal macula, sem dúvida, o ato do vício tecnicamente chamado de desvio de finalidade ou abuso de poder. O ato torna-se arbitrário. O primado da lei cede diante da conveniência do administrador.

1.2.3. Princípio da Moralidade

Inovação muito importante é a introdução que se faz do princípio da moralidade como reitor da atuação da Administração Pública. Não que esse princípio fosse absolutamente desconhecido do nosso direito administrativo. A nossa própria jurisprudência era muito tímida à recepção do princípio, le- vada a efeito, ao que nos parece, em pouquÍssimos casos, como, por exemplo, no acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, da lavra do Des. Cardoso Rolim, onde se assentou que: "O controle jurisdicional se restringe ao exame da legalidade do ato administrativo; mas, por legalidade ou legitimi- dade se entende não só a conformação do ato com a lei, como também com a moral administrativa e com o interesse coletivo".

3. Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, em obra intitulada O controle da moralidade adminis- trativa, faz percuciente e meticulosa análise desse princípio, e Hely Lopes Meirelles incluía este princípio dentre os conformadores da atividade administrativa.

Não é fácil dizer-se em que consiste este princípio da moralidade. Os que escreveram a respeito põem-se de acordo em admitir que não se trata da moral comum ou geral, mas, sim, daquela que se extrai da própria disciplina interna da Administração Pública. Para atinar-se com o sentido da moralidade administrativa hão que se levar em conta alguns fatos, de certa forma muito antigos, mas que até hoje dificultam a aproximação entre moral e direito. Não se há de esquecer que houve um momento, nos séculos XVII e XVIII e mes- mo no

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início do XIX, em que as correntes filosóficas dominantes tornavam inconvenientes as noções de moral e direito. Alguns autores tiveram papel de destaque nessa empreitada. Citemos apenas dois: Kant e Kelsen. Fincaram algumas distinções que marcaram fundo na evolução dessa temática.

Em primeiro lugar, a idéia de que a moralidade é gratuita, isto é, o compor- tamento moral é cumprido por simples reverência à moralidade e não por interes- se. Já o direito contenta-se com a mera conformidade da ação à lei, sem qualquer perquirição sobre os motivos ou interesses que levaram o agente a atuar.

Outro ponto tido por diferençal é o que diz que a moral tem o seu foro de atuação na intimidade da pessoa, enquanto a exterioridade é a marca da legislação jurídica, que só vai interessar-se pela adesão exterior às leis vigen- tes, não levando em conta qual tenha sido a intenção do agente.

Por último, há o caráter unilateral e bilateral. Quer dizer, embora nos com- portamentos morais também possam estar duas ou mais pessoas envolvidas, o fato é que cada uma é responsável somente perante si mesma. No caso das normas jurídicas, a bilateralidade existente faz surgir, como dizem os autores, uma relação intersubjetiva; a cada dever faz corresponder um direito por parte do beneficiário, que, se não cumprido, colocará ao seu alcance meios de coerção.

Nesse nosso século XX fez-se desde logo sentir uma tendência oposta às idéias kantianas e kelsenianas. Surgem na França autores como Gaston Morim e Georges Ripert, que vão dedicar-se a demonstrar que o direito não tem signi- ficados apenas jurídicos, mas também políticos e ideológicos. É dizer, reconhe- ce-se a insuficiência da mera norma jurídica para disciplinar toda a vida social sem simultaneamente se agregar a elas um critério político-ideológico. O autor argentino Roberto Vernengo chega a afirmar: "O Direito produzido pelos ór- gãos estatais, ainda que se trate de representante do povo ... carece de validade por si. Toda norma de direito positivo, para pretender validade e legitimidade suficientes, tem que poder justificar-se na consciência moral dos indivíduos".

Para Hauriou a moralidade administrativa seria "o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração; implica saber distinguir não só o bem e o mal, o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, mas também entre o honesto e o desonesto; há uma moral institucional, contida na lei, imposta pelo Poder Legislativo, e há a moral admi- nistrativa, que é imposta de dentro e que vigora no próprio ambiente institucional e condiciona a utilização de qualquer poder jurídico, mesmo o discricionário".

A encampação do princípio da moralidade trouxe como conseqüência o aumento do controle jurisdicional sobre a atividade administrativa. Aliás, a concretização desse princípio dá-se em diversos pontos da Constituição. O § 4.o do art. 37 postula que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. Figura como crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atente contra a probidade na administra- ção, consoante o art. 85, V. E, ainda, nos termos do art. 5.o LXXIII, consigna a Constituição que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popu- lar que vise a anular ato lesivo à moralidade administrativa.

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4. Sobre o tema, ver nosso Curso de direito administrativo, Saraiva, 1994.

1.2.4. Princípio da Publicidade

A publicidade dos atos estatais, e mais restritamente no caso dos atos da Administração, tem sido uma preocupação constante no Estado de Direito. Só a publicidade permite evitar os inconvenientes necessariamente presentes nos processos sigilosos. O conhecimento, portanto, da atuação administrativa é indispensável tanto no que diz respeito à proteção dos interesses individuais como também aos interesses da coletividade em exercer o controle sobre os atos administrativos.

A publicidade vem a ser a divulgação que é feita das decisões adminis- trativas, excetuadas aquelas de interesse exclusivamente interno. Da publici- dade defluem conseqüências importantes. A eficácia do próprio ato é normal- mente condicionada ao requisito da publicação. Os mecanismos destinados a possíveis recursos, quer administrativos, quer jurisdicionais, quer se trate de insurgência do interesse individual, quer do coletivo, também apenas são ativáveis se se tratar de decisão devidamente publicada na forma da lei.

O veículo por excelência de divulgação é o órgão oficial que vem a ser aquele que tem por destinação normal a publicação dos atos estatais. É certo que hão de se ter em mente também aquelas hipóteses em que as pessoas administrativas não tenham condições de custear um órgão de imprensa. Nes- ses casos, deve ser tida como satisfatória a fixação dos atos na sede do órgão que os expede. Contudo, a publicidade em órgão oficial deve ser de rigor exigida, salvo as hipóteses em que, como dissemos, seja comprovada a in- capacidade econômica e financeira.

5. O princípio da publicidade comporta exceções, não sendo aplicado aos atos relacionados com a segurança nacional, aos atos de investigação, referentes, por exemplo, aos processos administrati- vos disciplinares, aos pedidos de retificação de dados (art. 5.o LXXII, b), bem como aos atos cujos processos deverão ser previamente declarados sigilosos (Constituição de São Paulo, art. 59). No tocante ao Judiciário, não se aplica aos atos que devem correr em segredo de justiça, "quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem" (CF, art. 5.o LX), e no âmbito do Legislativo no que diz respeito às sessões secretas (cf. Diogenes Gasparini, Direito administrativo, Saraiva, 1989, p. 8).

Além desses princípios consagrados no caput do art. 37, outros são con- templados em diversos dos seus incisos, a saber:

a) o da exigência de licitação para as contratações de obras, serviços e alienações (art. 37, XXI);

b) o da publicidade dos atos, programas, obras e serviços, dela não po- dendo constar nomes, símbolos e imagens que caracterizem promoção pesso- al de autoridades ou servidores públicos (art. 37, § 1.o);

c) o da destituição da função pública, da indisponibilidade dos bens, da perda de direitos políticos e do ressarcimento do erário como sanções pela prática de improbidade administrativa (art. 37 § 4.o);

d) o da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público, assim como das pessoas privadas prestadoras de serviços públicos, que serão condenadas a

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indenizar os danos que seus agentes causarem, nesta qualidade, a terceiros, independentemente de ter havido dolo ou culpa. Resta, contudo, à Administração a possibilidade de mover ação regressiva contra o servidor cau- sador do dano, a fim de reaver a quantia desembolsada, desde que este tenha agido com dolo ou culpa (art. 37, § 6.o). Vê-se que o dispositivo constitucional consagra em relação ao Estado a teoria da responsabilidade objetiva, que não pressupõe como requisito a existência do dolo ou da culpa. Basta a ocorrência de dano a terceiros, provocado por ato praticado por servidor público, no exercício de sua função, para que surja a obrigação de ressarcimento por parte do Es- tado. Já em relação ao servidor, o dispositivo adota a teoria da responsabilida- de subjetiva, exigindo para o direito de regresso a existência de dolo ou de culpa do servidor. Pela importância do tema, houvemos por bem abrir, a se- guir, capítulo próprio para a responsabilidade civil.

1.2.5. Princípio da Eficiência

A Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, deu nova redação ao caput do art. 37 da Constituição Federal, acrescentando mais um princípio, o da eficiência, aos quais a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios deve obediência.

Nada obstante o fato de a Emenda n. 19/98 ter consagrado o princípio da eficiência, este, certamente, já poderia ter sido extraído do nosso sistema, pois não seria razoável pensar em atividade da Administração Pública desem- penhadas com ineficiência e sem o atingimento do seu objetivo maior que é o da realização do bem comum. Ademais, o próprio Texto Constitucional já fazia alusão ao princípio, especialmente no art. 74, II, da Constituição Fede- ral, que versa sobre o sistema de controle interno dos três Poderes. Senão vejamos:

"Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:

.......................................................................

II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e en- tidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públi- cos por entidades de direito privado".

Pode-se dizer, contudo, que, considerando o conjunto de modificações e o modelo de Administração Pública trazidos pela Emenda n. 19/98, na verda- de, o princípio da eficiência ganha um novo perfil. Analisando, por exemplo, o § 8.o do art. 37 e o inciso III do art. 41, pode-se concluir que a grande preocupação dos nossos legisladores reformadores concentra-se no desempe- nho da Administração Pública, é dizer, na busca de melhores resultados em suas atividades, procurando substituir os obsoletos mecanismos de fiscaliza- ção dos processos pelo controle dos resultados, sem desatender ao interesse público.

2. AGENTES PÚBLICOS

Agentes públicos são todos aqueles que, em caráter definitivo ou tempo- rário, desempenham alguma atividade estatal. A doutrina aponta três catego- rias de agentes

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públicos: a) agentes políticos; b) os servidores públicos; e c) particulares em colaboração com o Poder Público. Os agentes políticos são todos os que compõem a organização política do Estado: Presidente da Repú- blica, Governadores, Prefeitos e seus respectivos auxiliares, Senadores, De- putados e Vereadores. Seu vínculo com o órgão político correspondente é de natureza política e não profissional. Já os servidores públicos são todos aque- les que mantêm com o Poder Público um vínculo de natureza profissional, sob uma relação de dependência. Compreende-se aqui os servidores investidos em cargo efetivo e os servidores investidos em cargos em comissão. E, final- mente, os particulares em colaboração com o Poder Público são os que de- sempenham uma função pública por requisição do Estado: os jurados; os membros de uma mesa apuradora em época de eleição; os que assumem por conta pró- pria a gestão da coisa pública em momento de emergência ou calamidade; e os que desempenham por conta própria, embora com a anuência do Estado, uma função pública, sem relação de dependência, por exemplo, os concessio- nários e permissionários de serviço público.

A expressão "servidor público", portanto, é utilizada pela Constituição para denotar a categoria formada por todos aqueles que trabalham para o Poder Público profissionalmente, é dizer, mediante remuneração.

São servidores públicos os que trabalham na Administração centraliza- da e descentralizada, na União, nos Estàdos-Membros e nos Municípios. Em suma, os que trabalham na organização burocrática do Estado.

O art. 37 faz um grande enunciado de regras a serem obedecidas pela Administração, a começar por matéria relativa a cargos, empregos e funções. Estes são acessíveis aos brasileiros e aos estrangeiros que satisfaçam às exi- gências legais, não podendo haver, portanto, tratamento discriminatório, lesi- vo ao princípio da isonomia (inciso I do art. 37, com redação dada pela Emen- da Constitucional n. 19/98). Os requisitos admissíveis são somente os con- templados na própria lei, sendo inaceitáveis quaisquer novas exigências acrescidas por via de decreto ou edital. A investidura em cargo ou emprego público só se pode dar se antecedida de concurso público. A única exceção consiste nas nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; para estes dispensa-se o concurso; em compensação o servidor jamais, neles, se torna estável. Observe-se que a exigência de concurso não é prevista tão-somente para o provimento de cargo, mas inclui também o preen- chimento dos empregos públicos, portanto, incluindo toda a Administração descentralizada (empresas públicas, entidades de economia mista e funda- ções). O prazo de validade do concurso poderá ir até dois anos, prorrogável uma vez por outro tanto (art. 37, III).

Os servidores públicos passam, mercê da nova Constituição, a desfrutar do direito de associação sindical art. 37, VI. É também assegurado o direito de greve, que, contudo, deverá ser exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica (art. 37, VII, com redação dada pela EC n. 19/98).

O princípio da igualdade de todos perante a Administração é excepcionado a fim de que alguns cargos ou empregos públicos, na forma da lei e dos crité- rios que ela definir, venham a ser reservados a pessoas portadoras de deficiên- cia (art. 37, VIII).

O inc. IX trata da contratação de pessoal para atender a necessidade temporária de interesse público; frise-se que o tratamento atual da questão é bem mais restritivo que o dispensado pela anterior. Embora reporte-se à lei, o fato é que a própria Constituição já deixa certo que a contratação só pode dar-se para atender a necessidade temporária e a excepcional interesse públi- co, simultaneamente.

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Sobre a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos fica certo o seguinte:

a) Haverá um limite máximo para os servidores, ocupantes de cargos e empregos públicos, tomando-se como teto o dos cargos dos membros do Con- gresso Nacional para o Poder Legislativo, o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 37, XI, com redação dada pela EC n. 19/98).

b) A remuneração dos servidores públicos organizados em carreira po- derá ser fixada nos termos do § 4.o, Reza o § 4.o do art. 39: "O Membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixa- do em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obe- decido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI".

c) Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios po- derá estabelecer a relação entre, a maior e a menor remuneração dos servido- res públicos, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, XI (art. 39, § 5.o acrescentado pela EC n. 19/98).

d) Os vencimentos dos cargos do Executivo constituem um teto para os Poderes Legislativo e Judiciário (art. 37, XII, da CF/88).

e) A fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará, além do exposto acima: a) a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira; b) os requisitos para a investidura; e c) as peculiaridades dos cargos (art. 39, § 1.o, com redação dada pela EC n. 19/98).

A Constituição torna o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de car- gos e empregos públicos irredutíveis, o que antes era uma garantia apenas dos magistrados (art. 37, XV, com redação dada pela EC n. 19/98).

Mantém-se a proibição de acumulação de cargos públicos, compreen- dendo aí os empregos e funções, tanto na Administração direta como na indi- reta inclusive fundações mantidas pelo Poder Público.

Reduziram-se as hipóteses de exceção ao princípio da inacumulabilidade a três letras do art. 37, XVI, sem que do ponto de vista prático esta alteração tenha maior significação. Parece que houve maior novidade na dispensa de correlação de matérias, o que antes era exigido. Agora exige-se apenas a compati- bilidade de horários, nessas três hipóteses: a) a de dois cargos de professor; b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; e c) a de dois cargos privativos de médico.

A Emenda n. 19/98 deu nova redação ao art. 39, deixando certo que caberá à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. Hoje, não existe mais referência ao regime jurídico único e à isonomia de vencimentos, antes ex- pressamente contemplados neste dispositivo.

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Quanto à aposentadoria, continuam a existir as aposentadorias com- pulsórias e voluntárias, nos termos dispostos pela Emenda n. 20, de 15 de dezembro de 1998, que modificou o sistema de previdência social.

Quanto aos proventos, serão integrais quando a invalidez decorrer das causas especificadas na Constituição, quais sejam, acidentes em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei (art. 40, § 1.o, I da CF/88, alterada pela EC n. 19/98). Nos demais casos, os proventos serão apenas proporcionais ao tempo de contribuição já prestados. A aposentadoria compulsória decorre aos setenta anos de idade, sendo que o servidor receberá com proventos proporcionais ao tempo de contribuição. Já o servidor será aposentado voluntariamente, desde que cumpri- do tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contri- buição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta anos de con- tribuição, se mulher; b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e ses- senta anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.

Os benefícios dos professores continuam. Podem estes aposentar-se com trinta anos ou vinte e cinco, conforme sejam homens ou mulheres; desde que este tempo seja de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio (§ 5.o do art. 40 com redação dada pela EC n. 20/98). O § 3.o do art. 40 determina que os proventos de aposenta- doria, por ocasião da sua concessão, serão calculados com base na remunera- ção do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria e, na forma da lei, corresponderão à totalidade da remuneração. O tempo de contribuição, nos três níveis (federal, estadual ou municipal), será contado para efeito de aposentadoria, e o tempo de serviço correspondente será contado para efeito de disponibilidade.

A Emenda Constitucional n. 20/98 alterou a redação do § 10 do art. 37 da Constituição, ficando vedada a percepção simultânea de proventos de apo- sentadoria decorrentes do art. 40 ou dos arts. 42 e 142 com a remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os cargos acumuláveis na for- ma desta Constituição, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.

Continua a ser assegurado o direito de estabilidade para o servidor com mais de três anos de exercício, desde que nomeado através de concurso públi- co (art. 41, com redação dada pela EC n. 19/98). A estabilidade consiste em não poder ser demitido senão em virtude de sentença judicial transitada em julgado; mediante processo administrativo em que seja assegurada ampla defesa ao servidor e mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma da lei complementar, assegurada ampla defesa. Pela Emenda n. 19/98, que acrescentou o § 4.o ao art. 41, deixa certo como condição para a aquisição da estabilidade a obrigatoriedade de avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.

O servidor público da administração direta, autárquica e fundacional tem direito de exercer o mandato eletivo, ora acumulando com o cargo execu- tivo, ora afastando-se deste, no tempo da duração do mandato. Tudo na forma do art. 38.

3. REGIÕES

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A União, visando a articular sua ação administrativa num mesmo complexo geoeconômico e social, poderá implantar uma região. Estas regiões deverão obedecer à lei complementar a que se refere o § 1.o do art. 43 e, de outra parte, os incentivos regionais passíveis de concessão, além de outros, que são aqueles constantes do § 2.o do mesmo art. 43.

A primeira observação a ser feita é quanto à novidade do tema em nível constitucional. De fato, as regiões têm uma tradição até certo ponto longa no direito brasileiro, sem que, contudo, as nossas Constituições pregressas tives- sem aberto espaço para o seu tratamento.

As regiões têm também grande trânsito na literatura juspublicista interna- cional, chegando mesmo, para autores como Giannini, Posada, Toyo Villano- va, Biscaretti di Ruffia, Rannelletti, Miele, Burdeau, a constituir uma modali- dade nova de Estado unitário. Há, de outra parte, os que identificam o Estado regional como um tipo intermediário entre o Estado unitário e o federal. Nes- sa linha de raciocínio encontram-se Repaci, Prélot e Lucatello.

O tema, como se vê, é bastante polêmico. Juan Ferrando Badía identifi- ca quatro tendências fundamentais a definirem o que seja Estado regional: I - teoria que considera o Estado federal e o regional como formas mais ou menos avançadas de descentralização; II - teoria que considera o Estado regional como Estado unitário; III - teoria que considera o Estado regional como Estado federal; IV - teoria que considera o Estado regional como realidade jurídica independente.

O que todos reconhecem é que a região é uma modalidade de descentrali- zação na maior parte das vezes também política, visto que é muito freqüente essas entidades disporem de poder para legislar. Confiram-se os casos de Portugal, Espanha e Itália, entre outros.

Trata-se, portanto, de uma figura própria de Estados inicialmente unitá- rios e que, tangidos pela necessidade de descentralizarem poderes e competências, buscaram na regionalização uma forma de atingir esse objetivo sem terem de comprometer-se com a realidade do Estado federal, implicadora de uma mai- or sofisticação burocrática, complexidade estrutural e até mesmo de um mai- or grau de descentralização.

O Estado regional parece, pois, atender, por inteiro, às aspirações de Estados com tradição de unitariedade, que não podem, todavia, prescindir de uma descentralização do poder por diversas razões, às vezes até mesmo por questões de ordem étnica e cultural. A existência de minorias neste campo impõe a outorga de uma sorte de autonomia para que elas regulem os seus próprios assuntos.

O Estado regional parece, pois, consistir numa modalidade autônoma, diferente da Federação e do Estado unitário. Da primeira, porque os entes federados consideram-se formadores e integrantes do ente federal, com o decorrente direito de participarem da sua composição. Do Estado unitário, porque suas regiões são mais do que descentralizações meramente adminis- trativas; têm um conteúdo político legislativo. Ante essas considerações, pa- rece claro que um Estado não pode ser simultaneamente federal e regional.

O constituinte ao introduzir as regiões não se influenciou pela realidade alienígena. Procurou trazer para a Lei Maior a realidade preexistente resultante de uma

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política do governo central no sentido de uma atuação mais intensa nos pontos de fraco desenvolvimento econômico-social. No Brasil, portanto, as regiões são unidades geográficas desvinculadas dos Estados, formadas a partir de certa homogeneidade, tanto da natureza quanto da sua composição populacional, assim como do estágio de desenvolvimento sócio-econômico.

A Constituição de 1988, embora tenha conferido maior dignidade às regiões, elevando-as ao nível constitucional, consagrou-as, contudo, com a mesma realidade que tinham na situação anterior à sua vigência. São meros instrumentos de articulação da União, nas suas respectivas áreas, e legitimadoras da outorga de tratamento desigual às regiões sem ofensa ao princípio do trata- mento igualitário dos Estados-Membros. Não desfrutam de nenhuma capacidade política no sentido jurídico formal, visto que privadas são de poder legislati- vo. Contudo, não se deve ignorar o seu peso político específico ao atuar como instrumento de pressão ao pé dos órgãos do poder.

Cabe, aqui, uma rápida palavra acerca das regiões metropolitanas, que, ao contrário das meras regiões, deixaram de ser matéria pertinente à União para exaurirem-se inteiramente no campo estadual e municipal. São, também, entidades destinadas à articulação da ação pública do Poder estadual e que têm por base municípios limítrofes cujo tratamento unitário por parte do Es- tado pode facilitar a prestação de serviços públicos de interesse comum.

Encontramos referência ao tema no art. 25, § 3.o, onde fica dito que os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes para integrar a organi- zação, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

As regiões, tais como esculpidas no Texto Constitucional, constituem um instrumento destinado a levar a cabo uma política de favorecimento às áreas menos desenvolvidas do País. De fato, o princípio federativo, inicial- mente, repeliria esse tratamento desuniforme do qual certos Estados acabarão por se beneficiar. O princípio do tratamento isonômico aos Estados-Membros é basilar na estrutura do Estado federal. O certo é que desde longa data as diferenças regionais têm servido de base legitimadora para a outorga de um tratamento mais benéfico às áreas de menor desenvolvimento sócio-econômico. É uma medida que mais se coaduna com o Estado unitário. Sabemos das de- ficiências do nosso princípio federativo, a unir entidades de território, popula- ção e desenvolvimento muito diferençados, fenômeno ao qual a União não pode permanecer indiferente.

CAPÍTULO VIII RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO ESTADO

SUMÁRIO: 1. Conceito. 2. Surgimento da responsabilidade do Estado. 3. Teoria do risco. 4. Fundamentos da responsabilidade do Estado.

1. CONCEITO

Responsabilidade é a sanção imposta pelo direito ao autor de um ato lesivo à ordem jurídica.

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Neste sentido lato a responsabilidade existe nas diversas áreas do direito civil, penal, administrativo e político. O comportamento afrontoso a uma norma penal leva, obviamente, a uma responsabilização do agente na forma própria desse direito. O que é importante notar é que em todos os casos está presente um denominador comum, qual seja, um ato gravoso do ordenamento jurídico e uma conseqüência desfavorável que é irrogada àquele que por ela responde. Mas cessam aí as similitudes. No mais, cada responsabilidade se rege por prin- cípios próprios e é desencadeada segundo pressupostos também próprios, e mais, acarreta sanções de natureza específica. Assim é que o chamado crime político ou impeachment tem a particularidade de acarretar como sanção a perda do cargo público. Ademais, são elas autônomas. E dizer, o mesmo ato pode deflagrar sanções nas diversas áreas de responsabilização, sem que o agente possa a elas se esquivar sob o fundamento de que já respondeu a outro título. Exemplificando: o cumprimento de pena pela prática de um crime não exclui o réu de poder ser chamado a responder pelos danos civis relativos ao delito.

A responsabilidade civil é aquela que se preocupa com a reparação dos danos patrimoniais. O seu objetivo é recompor a situação econômica da víti- ma de um ato danoso.

Originariamente as pessoas físicas eram aquelas chamadas a recompor os prejuízos. Daí por que falar-se em responsabilidade civil.

Quando o Estado passou a responder pelos prejuízos causados pelos seus agentes, operou-se uma tendência no sentido de chamar-se, também a este dever de indenizar, de responsabilidade civil do Estado se por ela quisermos entender uma transplantação pura e simples do direito civil para o Estado. Na verdade, este sempre respondeu patrimonialmente por seus atos, segundo pres- supostos e princípios coadunados com a natureza própria do Poder Público. Daí por que se nos afigurar mais apropriado falar-se em responsabilidade pa- trimonial do Estado. Por ela deve-se entender o dever dos Poderes Públicos de indenizar os danos que seus agentes causem a terceiros. O seu fundamento jurídico positivo é o art. 107 da Constituição de 1967, que dizia: "As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros".

Toda a ação estatal está hoje adstrita a esse dever de não ser produtora de danos aos particulares. Toda vez que isso se der ocorre um encargo do Estado consistente em recompor o prejuízo causado. São pois pressupostos fundamentais para a deflagração da responsabilidade do Estado: a causação de um dano e a imputação deste a um comportamento omissivo ou comissivo seu. É o chamado nexo de causalidade.

Exclui-se do objeto deste comentário o exame da chamada responsabili- dade contratual, que é aquela que surge no curso de um vínculo obrigacional recíproco entre o particular e o Poder Público. Cuida-se aqui, tão-somente, dos atos unilaterais do Estado, sejam eles meros comportamentos fáticos ou atos jurídicos propriamente ditos.

2. SURGIMENTO DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO

O princípio da responsabilidade do Estado é uma aquisição relativamen- te recente na história da humanidade. É mesmo posterior ao advento do Esta- do de Direito que, sem embargo de ter a sua atuação submetida ao princípio da legalidade, continuava a reter certos resquícios do absolutismo monárquico, período em que o soberano era absolutamente

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irresponsável. São conhecidas as expressões "The King can do no wrong", "le roi ne peut mal faire", que só vieram a ser por inteiro superadas na Inglaterra e nos Estados Unidos, logo após a Segunda Guerra Mundial.

O aparecimento da responsabilidade estatal deu-se na França por obra, sobretudo, do Conselho de Estado. Desempenhou papel decisivo o Aresto Blanco de 1873, que pela primeira vez afirmou a responsabilidade do Estado por seus atos, independentemente de lei expressa. Nada obstante isso, afirmou que essa responsabilidade se regia por princípios próprios não plenamente coincidentes com os de direito comum. De qualquer maneira superou-se, assim, a etapa anterior, na qual só se podia responsabilizar o agente público. E isto depois de tal medida ser autorizada pelo próprio Conselho de Estado (chamava-se garantia adminis- trativa dos funcionários). Havia, também, nesta época a responsabilidade do Estado, defluente de leis específicas a esta ou aquela atividade. Nesta ocasião ocorria também a possibilidade de pleitear-se indenização do Estado por danos causados na gestão do seu domínio privado.

Desde então, a responsabilidade do Estado não tem feito senão espraiar-se, tanto no sentido de abranger áreas cada vez maiores da sua atuação quanto no de permitir que se a deflagre com cada vez menos pressupostos. É dizer, abandona-se a idéia civilística de culpa, que envolve sempre negligência, imperícia, imprudên- cia, para condicioná-la à mera atuação objetiva do Estado, independentemente dos ingredientes subjetivos com que tenha atuado. Nesta passagem foi muito impor- tante a noção francesa "de faute du service", que se opunha a uma "faute personnelle". Abandona-se a figura isolada do agente para fazer repousar a responsabilidade numa abstração, é dizer, no serviço. Bastava, pois, que este tivesse sido mal pres- tado, ou prestado tardiamente, ou não executado quando o devesse ter sido.

A culpa passa a ser do serviço, expressão esta que é utilizada metaforica- mente porque, a rigor, o serviço não é passível de culpa. O que releva notar aí é que por esta via se caminhava no sentido da responsabilidade objetiva do Estado e passava a coexistir uma culpa individual ao lado de uma culpa administra- tiva. Fenômeno bem captado por André de Laubadère:

"A culpa (faute) administrativa pode revestir um ou outro dos seguintes aspectos:

Pode, de um lado, consistir em uma culpa (faute) individual, cometida por um agente que é possível identificar;

Mas a culpa (faute) administrativa pode igualmente consistir em uma culpa anônima (faute anonyme) cujo autor não aparece de uma maneira clara sob a forma de um funcionário identificável: é o serviço em seu conjunto que funcionou mal.

De resto, a jurisprudência deu a este tipo de culpa (faute) administrativa o nome, sem dúvida puramente metafórico mas altamente expressivo, de culpa (faute) do serviço" (Le droit administratffrançais, Dalloz, 1968, p. 614, apud Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrativo, p. 258),

É bom que se frise que a culpa administrativa, oriunda da falta de serviço, ainda não configurava a moderna teoria do risco administrativo. Este, diz Hely Lopes Meirelles, faz surgir a obrigação de indenizar o dano do ato lesivo e injusto causado à vítima pela

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Administração. "Aqui não se cogita da culpa da Administração ou de seus agentes, bastando que a vítima demonstre o fato da- noso e injusto ocasionado por ação ou omissão do Poder Público. Tal teoria, como o nome está a indicar, baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar dano a certos membros da comunidade, impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Para compen- sar essa desigualdade individual criada pela própria Administração, todos os outros componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano, através do erário, representado pela Fazenda Pública. O risco e a solidariedade social são, pois, suportes desta doutrina que, por sua objetividade e partilha dos encargos, conduz à mais perfeita justiça distributiva, razão pela qual tem mere- cido o acolhimento dos Estados modernos, inclusive o Brasil, que a consagrou pela primeira vez no art. 194 da Constituição Federal de 1946" (Direito admi- nistrativo brasileiro, p. 602).

3. TEORIA DO RISCO

Hoje a teoria dominante é a da responsabilidade objetiva por risco. Em outras palavras, como o Estado mobiliza instrumentos de grande potencial lesivo, ao assim fazer, está ele de antemão assumindo o risco pelos danos que daí advenham. Cumpre notar que modernamente se vai, ainda, além da responsa- bilidade objetiva por risco, para aceitá-la em casos em que não comparece qualquer culpa por deficiência do serviço nem procedem do risco. É a chama- da responsabilidade por atividade lícita. Este tema é muito bem tratado em obra monográfica pelo português José J. Gomes Canotilho, do qual nos per- mitimos reproduzir dois excertos:

"Funcionalmente considerados, o instituto em análise não se limita, no âmbito do direito público, a satisfazer as necessidades de reparação e preven- ção à semelhança do que acontece no direito civil. Como conquista lenta mas decisiva do Estado de direito, a responsabilidade estadual é, ela mesma, instru- mento de legalidade. É instrumento de legalidade, não apenas no sentido de assegurar a conformidade aos direitos dos actos estaduais: a indenização por sacrifícios, autoritariamente impostos, cumpre uma ou outra função inelimi- nável no Estado de direito material - a realização da justiça material" (cf. O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Coimbra, Livr. Al- medina, p. 13).

"Todo o dano - afirma Canotilho, citando Cunha Gonçalves - deve ser reparado por quem se arriscar, com ou sem intenção de tirar proveito, a exercer - por si, ou por via de outrem, uma actividade qualquer, positiva ou negativa, da qual podia resultar este dano" (cf. Cunha Gonçalves, Responsabilidade da administração, apud Canotilho, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, cit., p. 59). A derradeira, cumpre assinalar o seguinte: não se che- gou, ainda, à teoria do risco integral, pela qual, ao particular, seria facultado pleitear indenização ainda que tivesse agido com dolo ou culpa.

4. FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO

Estudar os fundamentos da responsabilidade do Estado significa procu- rar determinar as razões remotas que subjazem aos diversos casos específicos de responsabilidade estadual.

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A primeira justificativa, e a mais óbvia, é a de que o Estado indeniza porque praticou um ato ilícito. Com efeito, sob o Estado de Direito, não é lícito a ninguém infringir a norma legal sem incorrer na conseqüente sanção. Do pon- to de vista patrimonial essa sanção consiste na indenização do dano. A ilegali- dade do ato é elemento imprescindível para fundamentar os casos de responsa- bilidade do Estado por ato omissivo.

A segunda razão de ser da responsabilização do Poder Público é a prá- tica de um ato injusto, é dizer, embora fruto de um comportamento legal, atuação estatal acaba por fazer incidir sobre uma ou algumas pessoas, bem individualizadas, os ônus cuja contrapartida é um benefício que aproveita a toda a sociedade. Não é porque o ato é lícito que ele deixa de ser passível de indenização. Esta será devida toda vez que ocorrer um dano patrimonial su- portado por alguns em proveito do bem comum. Esta justificativa do ato injus- to é importante para explicar os casos de responsabilidade objetiva do Estado, na qual este responde mesmo tendo agido com a cautela, prudência e a perícia requeridas pela lei. O abalroamento de carro particular com um do Poder Público se subsume a esta espécie.

A teoria do ato injusto serve também para explicar porque o Estado res- ponde por danos causados por um comportamento integralmente lícito. Quan- do constrói um viaduto, ou um elevado, por exemplo, mesmo que se tenha pautado pela mais estrita legalidade, se causou danos extraordinários, é dizer, que vão além do risco normal a que todos estão sujeitos por viverem em socie- dade, o Estado tem de indenizar.

Este princípio é decorrência de outro que lhe é afim, qual seja o da igualdade de todos perante as vantagens e ônus da Administração. O que se vê, na verdade, é que o ato da causação, pelo Estado, de um dano anormal e sempre ilícito na medida em que ele gera o dever de indenizar.

Quando se faz a distinção entre atos lícitos e ilícitos é para o efeito de determinar a natureza do comportamento que causou o dano. Estes, sim, po- dem ser tidos por conformes ou desconformes com o direito, mas a causação em si mesma do dano é sempre ilícita. Vê-se, pois, que o Estado está adstrito a uma teoria extremamente rígida no que diz respeito ao dever indenizatório.

TÍTULO IV DA ORGANIZAÇÃO DOS PODERES

CAPÍTULO I TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES ESTATAIS LEGISLATIVA, EXECUTIVA E JUDICIÁRIA

SUMÁRIO: 1. Tripartição de funções e não-tripartição de poderes. 2. Funções e fins do Estado. 3. As três funções estatais: legislativa, executiva e judiciária. 4. A Importância da teoria de Montesquieu. 4. 1. Aspectos ideológicos da teoria da separação de poderes. 4.2. Sua aplicação atual. 5. Classificação das atividades do Estado. 6. A tripartição das funções estatais na Constituição brasileira.

1.TRIPARTIÇÃO DE FUNÇÕES E NÃO-TRIPARTIÇÃO DE PODERES

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Desde há muito, mais precisamente desde Aristóteles, reconhece-se que a atividade estatal é suscetível, em razão das diferenças que apresenta, de ser dividida num certo número de categorias, agrupando, cada qual, aqueles atos do Estado que apresentam, entre si, traços de uniformidade. Aristóteles já fixava em três essas categorias.

Vale, entretanto, notar que, qualquer que seja a forma ou o conteúdo dos atos do Estado, eles são sempre fruto de um mesmo poder. Daí ser incorreto afirmar-se a tripartição de poderes estatais, a tomar essa expressão ao pé da letra. É que o poder é sempre um só, qualquer que seja a forma por ele assumida. Todas as manifestações de vontade emanadas em nome do Estado reportam-se sempre a um querer único que é próprio das organizações políticas estatais.

Firmada a idéia da unidade do poder, voltamos ao estudo das diversas formas jurídicas assumidas pela atuação estatal em nome da coletividade que representa. Assim é que, por vezes, o Poder Público edita regras gerais e im- pessoais destinadas a regular todos os casos que venham a ocorrer e que coincidam com a hipótese legal. Por exemplo, ao dispor que ao fato de matar alguém corresponde uma determinada sanção, o Estado está prevendo sua atividade futura e vinculando-se a ela. Entretanto, é importante que se note, não está regulando o seu comportamento diante de um determinado homicídio, mas sim em face de todos os atos dessa natureza que venham a ocorrer. Temos aí uma função, a legislativa. A função constitui, pois, um modo particular e ca- racterizado de o Estado manifestar a sua vontade.

Tanto a função como o poder não podem confundir-se com os órgãos que atuam as competências públicas. Estes referem-se a pessoas isoladas, ou a um conjunto de indivíduos que, por estarem integrados no Estado, gozam da faculdade de agir em seu nome. Os órgãos são, em conseqüência, os instrumentos de que se vale o Estado para exercitar suas funções, descritas na Constituição, cuja eficácia é assegurada pelo Poder que a embasa.

2. FUNÇÕES E FINS DO ESTADO

Não devem ser, ademais, as funções confundidas com as finalidades do Estado, variáveis no tempo e no espaço. Estas últimas definem os objetivos encampados pelo Poder Público e em cuja implementação ele vai se empe- nhar. A todo instante o Estado pode redefinir seus fins em vista do atingimento de outros objetivos tidos por prioritários, segundo um critério eminentement político. Já as funções são como que moldes jurídicos dentro dos quais deve- rão ser cumpridas as finalidades estatais. Elas são relativamente fixas e des- tinadas a vigorar em todo e qualquer Estado, independentemente dos objeti- vos que persigam.

3. AS TRÊS FUNÇÕES ESTATAIS: LEGISLATIVA, EXECUTIVA E JUDICIÁRIA

Segundo uma tradição muito antiga, são três as funções estatais: legislativa, executiva e judiciária. Para muitos autores, Aristóteles teria sido o primeiro a isolar, no funcionamento do complexo estatal, três tipos de atos: deliberações sobre os assuntos de interesse comum, organização de cargos e magistraturas e atos judiciais. O valor da descoberta aristotélica é muito relativo. Em nada influenciou a vida política durante, no mínimo, o milênio que se seguiu à sua vida. Durante esse imenso lapso histórico, dominou sem contestação a

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vonta- de do monarca, que reunia em si mesmo as três funções estatais, embora, por razões de ordem prática, estas pudessem vir a ser delegadas a prepostos, se- gundo o seu arbítrio.

A teoria apenas voltou a aflorar nos séculos XVII e XVIII, cabendo a Montesquieu a sua formulação mais acabada e perfeita juridicamente. Nota o grande pensador francês que em todo Estado há atos cujo conteúdo se limita a atingir certos indivíduos ou certas situações, determinados ou determináveis no momento de sua expedição. São os atos de efeitos concretos: a nomeação de um funcionário, uma ordem de prisão ou ainda a convocação para o serviço militar de toda uma classe de cidadãos. Contrariamente aos atos desta categoria, exis- tem outros cuja característica essencial é exatamente a de se reportarem a um conjunto de pessoas ou situações, insuscetível de ser determinado ou quantificado na ocasião em que é emanado. Estes, na verdade, referem-se a todas as situa- ções concretas que venham a se subsumir à hipótese criada, descrita antecipada e abstratamente e destinada a ser aplicada, em princípio, indefinidamente. As- sim se passa com relação às normas que imputam sanções penais aos atos delituosos, à lei civil que torna obrigatórios os contratos ou, ainda, à própria lei que institui a obrigação do serviço militar.

A teoria da separação dos poderes diz que, qualquer que seja a atividade estatal, esta deverá ser sempre precedida por normas do último tipo citado, isto é, normas abstratas e gerais, denominadas leis. Os atos concretos, ainda segundo a teoria ora exposta, só serão legítimos na medida em que forem praticados com fundamento nas normas gerais. Assim, exemplificando, a co- brança de um tributo de determinado contribuinte é legal, desde que, entretan- to, calcada em norma genérica e abstrata que diga que alguém que, porventura, venha a encontrar-se na situação X, deverá pagar Y a título de imposto. Eis aí a função legislativa e a executiva.

Além dessas, é prevista uma terceira função: a judiciária. Esta consiste em dirimir, em cada caso concreto, as divergências surgidas por ocasião da aplicação das leis. Estas dão lugar a múltiplas relações (entre o Poder Público e os particulares, ou entre um particular e outro particular), que são suscetí- veis de gerar divergências entre as partes quanto à interpretação correta a ser dada à lei, ou quanto à ocorrência ou inocorrência de certo fato. Estas contro- vérsias não podem deixar o Estado inerte, sob pena de colocar em risco a eficácia de todo o ordenamento jurídico. Impõe-se que ele saia em defesa da execução e do cumprimento das leis toda vez que estas despertem dúvidas. É a atividade jurisdicional. Tanto esta quanto a executiva são atividades de apli- cação da lei a casos concretos. O que diferencia a primeira da segunda é que aquela aplica a norma aos casos em que exista litigiosidade ou contenciosidade, enquanto a segunda dá cumprimento às leis, independentemente da ocorrên- cia de oposição ou controvérsia.

4. A IMPORTÂNCIA DA TEORIA DE MONTESQUIEU

Estas são, em apertada síntese, as características fundamentais das funções legislativa, executiva e judiciária. O mérito essencial da teoria de Montesquieu não reside contudo na identificação abstrata dessas formas de atuar do Estado. Isto, como já vimos, já fora feito, se bem que mais toscamente, na Antigüidade, por Aristóteles. Montesquieu, entretanto, foi aquele que, por primeiro, de forma translúcida, afirmou que a tais funções devem corresponder órgãos distintos e autônomos. Em outras palavras, para Montesquieu à divisão funcional deve corresponder uma divisão orgânica. Os órgãos que dispõem de forma genérica e abstrata, que legislam, enfim, não podem, segundo ele, ser os mesmos que exe-

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cutam, assim como nenhum destes pode ser encarregado de decidir as controvér- sias. Há de existir um órgão (usualmente denominado poder) incumbido do de- sempenho de cada uma dessas funções, da mesma forma que entre eles não po- derá ocorrer qualquer vínculo de subordinação. Um não deve receber ordens do outro, mas cingir-se ao exercício da função que lhe empresta o nome.

4.1. Aspectos Ideológicos da Teoria da Separação de Poderes

O que acontece é que para Montesquieu a separação de poderes não era uma teoria abstrata que se satisfizesse com a mera descrição das formas de atuar do Estado. Pelo contrário, ao determinar que à separação funcional esti- vesse subjacente uma separação orgânica, Montesquieu concebia sua teoria da separação dos poderes como técnica posta a serviço da contenção do poder pelo próprio poder. Nenhum dos órgãos poderia desmandar-se a ponto de ins- taurar a perseguição e o arbítrio, porque nenhum desfrutaria de poderes para tanto. O poder estatal, assim dividido, seria o oposto daquele outro fruído pelo monarca de então, desvinculado de qualquer ordem jurídica preestabelecida.

Como um racionalizador do poder, Montesquieu colocou-se em frontal antagonismo com a ordem existente e tornou-se um dos autores que mais con- tribuíram para o advento do Estado Constitucional ou de Direito. Sua inspira- ção filosófica era sem dúvida o racionalismo, iniciado com Descartes, que se opôs energicamente ao irracionalismo dominante na Idade Média e influente ainda, na sua época, sobretudo no que dizia respeito à legitimação do poder, que era procurada na tradição e na sua origem divina.

Montesquieu é, pois, um precursor do Estado liberal burguês. A Revolução Francesa iria elevar ao apogeu a afirmação de sua doutrina, ao estipular, na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que um Estado cuja Constituição não con- sagrasse a teoria da separação de poderes era um Estado sem Constituição.

Embora esse exagero viesse a ser retificado pela história, o fato é que a doutrina de Montesquieu mostrou-se certamente como a mais persistente doutrina do poder. Ainda hoje, embora rejeitada por diversos autores, que a substituem por outras formas de divisão das funções estatais, que entendem mais afina- das com a realidade política dos nossos dias, ela é, na prática, adotada pela quase-unanimidade dos Estados ocidentais, figurando ao lado da afirmação da soberania popular, como os dois pilares sobre os quais se assenta a or- ganização jurídico-política do Estado Moderno. É certo que, por vezes, a sua aplicação na vida constitucional não guarda proporções com a sua enfatização jurídica no corpo dos textos constitucionais. Mas a só necessidade destes conti- nuarem a encampá-los, ainda que para serem descumpridos na prática, de- monstra a extrema força de que ainda goza a teoria da separação.

4.2. Sua Aplicação Atual

Depois de introduzida com grande rigor pelas Revoluções americana e francesa, a separação rígida de poderes afigurou-se inviável na prática. Isto basicamente devido à necessidade de impedir que os poderes criados se tomassem tão independentes a ponto de se desgarrarem de uma vontade política central que deve informar toda a organização estatal. Daí a introdução de uma certa coordenação entre eles, visando a

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harmonizá-los e contê-los dentro de uma cadeia de fins aos quais devem servir, por serem fins do próprio Estado de quem são simples instrumentos. Além desta coordenação, evidenciou-se igual- mente a conveniência de permitir a um determinado poder o exercício de fun- ções que em princípio deveriam caber a outro. Isto explica a realidade de nossos dias, que retrata uma divisão flexível das funções entre os seus correspon- dentes órgãos. Tanto o Judiciário quanto o Legislativo exercem funções admi- nistrativas, quando, por exemplo, provêem os cargos de suas secretarias, con- cedem férias a seus funcionários etc. O esquema inicial rígido, pelo qual uma dada função corresponderia a um único respectivo órgão, foi substituído por outro onde cada poder, de certa forma, exercita as três funções jurídicas do Estado: uma em caráter prevalente e as outras duas a título excepcional ou em caráter meramente subsidiário daquela. Assim, constata-se que os órgãos estatais não exercem simplesmente as funções próprias, mas desempenham também funções denominadas atípicas, quer dizer, próprias de outros órgãos. É que todo poder (entendido como órgão) tende a uma relativa independência no âmbito estatal e é compreensível que pretenda exercer na própria esfera as três mencionadas funções em sentido material.

5. CLASSIFICAÇÃO DAS ATIVIDADES DO ESTADO

Em razão do exposto, concluímos que atualmente os poderes (sempre en- tendidos como órgãos) cumprem funções que materialmente seriam de nature- za diversa. O critério material refere-se ao conteúdo da atividade realizada no desempenho das distintas funções estatais. A classificação das funções, levando em conta um critério orgânico ou subjetivo, consiste em considerar, por exemplo, como sendo função legislativa todo ato proveniente do Poder Legislativo. Mas, já vimos, a divisão orgânica não prevalece, hoje em dia, em sua pureza inicial. Daí a dúvida e a perplexidade de que podemos ser tomados ao tentar classificar este ou aquele ato estatal. Para implantar uma maior precisão na matéria, lança-se mão atualmente de um critério formal. Este não mais se preocupa com o órgão, nem com a atividade propriamente dita, mas com o tipo de efeito jurídico pró- prio de determinados atos. Assim, classificar-se-iam as funções estatais a partir do tipo de ato jurídico expedido quando do seu exercício, ou, melhor ainda, a partir dos efeitos assumidos no ordenamento jurídico por esses mesmos atos.

É lei, portanto, qualquer decisão tomada pelo Poder Legislativo, segun- do um processo previsto para sua emanação. Mesmo que ela trate de um caso concreto (p. ex., lei orçamentária). Em razão de sua qualidade de lei formal, ela produzirá os efeitos próprios de toda e qualquer lei. Constituir-se-á em norma subordinada tão-somente à Constituição e estando acima de todos os atos administrativos. Uma análise mais detida do critério formal será feita nos capítulos seguintes, ao estudarmos, de forma individuada, a função legislativa, a executiva e a judiciária.

6. A TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES ESTATAIS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

O princípio da separação de poderes está consagrado em nosso Código Político desde 1824.

Na Constituição vigente, está no art. 2.o, que diz: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".

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Note-se que a Lei Maior refere-se a ele ainda uma vez no seu art. 60, § 4.o, III. Cuida-se aí de enunciar quais as matérias insuscetíveis de serem objeto de uma emenda constitucional; dentre elas figura "a separação dos Poderes".

É, portanto, um princípio insuprimível da nossa Constituição. Isto pres- ta-se, sem dúvida, a revelar a importância que o constituinte lhe dispensou.

CAPÍTULO II DO PODER LEGISLATIVO

SUMÁRIO: 1. Estrutura do Poder Legislativo. 1.1. Sua estrutura e funcionamento no Brasil. 2. Funções legislativas. 2.1. Função fiscalizadora. 2.1.1. O Tribunal de Contas. 3. Atribuições do Congresso Nacional. 3.1. Atribuições da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. 4. Imunidades e vedações parlamentares. 5. Reu- niões. 6. Comissões. 6.1. Comissão Parlamentar Permanente. 6.2. Comissão Par- lamentar Temporária ou Especial. 6.3. Comissão Parlamentar de Inquérito. 6.4. Comissão Parlamentar Representativa.

O Poder Legislativo, inicialmente denominado Parlamento, teve origem na Inglaterra. Formou-se durante a Idade Média, quando representantes da nobreza e do povo procuravam limitar a autoridade absoluta dos reis. Gradati- vamente, o poder do rei foi esvaziando-se, enquanto um novo poder ia fortalecendo-se. Era o Parlamento. Muito contribuiu para isso a teoria de Rousseau sobre a soberania, segundo a qual esta reside no povo, que a exprime através da lei. Não podendo votá-la diretamente, a comunidade elege representantes, os parlamentares, que atuam em seu nome.

1. ESTRUTURA DO PODER LEGISLATIVO

A estrutura do Poder Legislativo pode ser: unicameral ou bicameral.

Unicameral - o Parlamento se compõe de um único órgão. Sistema adotado, principalmente~ por pequenos países (Luxemburgo, Liechtenstein).

Bicameral - o Parlamento ou Congresso é composto por dois órgãos di- ferentes: Câmara Baixa e Câmara Alta. O Poder Legislativo se manifesta pela conjunção das vontades das duas Casas do Congresso ou Parlamento, que de- liberam, em regra, isoladamente.

Um dos argumentos favoráveis ao bicameralismo é que em virtude da duplicidade de órgãos há também uma duplicidade de discussão e votação dos projetos de lei, fazendo com que a lei produzida seja tecnicamente mais correta e aperfeiçoada.

Bicameralismo do tipo aristocrático - teve origem na Inglaterra, onde o Parlamento foi dividido em duas Casas Legislativas: Câmara dos Lordes (Câmara Alta) e Câmara dos Comuns (Câmara Baixa). A primeira representa a aristocracia, e começou com a Câmara dos 25 Barões, formada em 1215; a segunda representa o povo, e é resultado das revoluções populares.

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Bicameralismo do tipo federativo - surgiu em 1787, nos Estados Uni- dos da América do Norte. Ao organizarem a sua República Federativa, ajus- taram o sistema bicameral às necessidades daquela forma de Estado. Con- gresso integrado por uma Câmara dos Representantes da Nação (Câmara Baixa), composta de deputados eleitos em número proporcional à população, e de um Senado (Câmara Alta) com representação igualitária de cada um dos Estados- Membros.

1.1. Sua Estrutura e Funcionamento no Brasil

O Brasil adota o sistema bicameral do tipo federativo. Conforme dispõe o art. 44 da Constituição Federal, o Congresso Nacional se compõe da Câma- ra dos Deputados e do Senado Federal.

Os Deputados são representantes do povo, eleitos dentre cidadãos mai- ores de vinte e um anos e no gozo de seus direitos políticos (art. 14, § 3.o, VI, c). A eleição é por voto direto e secreto, segundo o sistema de representação proporcional, realizada nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal. A composição da Câmara dos Deputados será estabelecida por lei complemen- tar (art. 45, § 1.o), proporcionalmente à população; estabelecendo-se que ne- nhuma unidade da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta repre- sentantes e para cada Território fixou-se o número de quatro Deputados.

No Senado estão os representantes dos Estados e do Distrito Federal, também eleitos pelo voto direto e secreto, mas segundo o princípio majoritá- rio (art. 46), sendo condição de elegibilidade a idade mínima de trinta e cinco anos (art. 14, § 3.o, VI, a). O mandato do Senador é de oito anos, havendo renovação de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e dois terços (art. 46, § 2.o). Cada Estado e o Distrito Federal elegerão três Senadores, cada um deles com dois suplentes (art. 46, § 1.o).

2. FUNÇÕES LEGISLATIVAS

Ao Poder Legislativo é atribuída como função primordial, típica, a de legislar. É o Poder encarregado da elaboração de normas genéricas e abstratas dotadas de força proeminente dentro do ordenamento jurídico, que se deno- minam leis.

Lei é todo ato que, oriundo do Legislativo e produzido segundo procedi- mento descrito na Constituição, inova originariamente a ordem jurídica.

Contudo, é bom lembrar que nem todos os atos produzidos pelo Legislativo são leis. Secundariamente, o Legislativo administra e julga. São as chamadas funções atípicas.

Administra quando concede férias ou licença aos seus funcionários (arts. 51, IV, e 52, XIII); fiscaliza os atos do Poder Executivo (art. 49, X); fiscaliza as finanças e orçamentos (art. 70).

Julga, quando decide sobre os crimes de responsabilidade (art. 52, I e II) e quando processa e julga os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o Procu- rador-Geral da República e o Advogado-Geral da União (art. 52, II).

Por outro lado, o Legislativo não tem o monopólio para editar normas gerais e abstratas. O Executivo tem competência para baixar medidas provisórias (art. 62) e

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regulamentos (art. 84, IV), que são também atos de caráter ge- nérico e abstrato. Mas, por não serem provenientes do Legislativo, não levam a denominação de lei.

2.1. Função Fiscalizadora

O papel do Legislativo não se resume à função de elaborar leis. Por tradição, compete a ele exercer a fiscalização contábil, financeira, orçamen- tária, operacional e patrimonial do Poder Executivo, consoante o disposto no art. 70 da Constituição Federal. Nesta tarefa o Congresso Nacional é auxilia- do pelo Tribunal de Contas da União. Nos Estados e nos Municípios essa fiscalização é exercida pelos Tribunais de Contas Estaduais, que auxiliam as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais.

2.1.1. O Tribunal de Contas

A História mostra que já na Antigüidade foi sentida a necessidade de serem criados órgãos fiscalizadores do tesouro - dinheiros públicos - bem como de sua adequada aplicação. Em Atenas, a Corte de Contas não só fisca- lizava as contas públicas como também julgava o peculato.

No Brasil-Império, embora não existisse uma corte especializada, as contas públicas já eram fiscalizadas pelo Poder Legislativo. A Constituição exigia a apresentação dos orçamentos à Câmara dos Deputados, nos termos do art. 172, assim redigido: "O Ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros Ministros os orçamentos relativos às despesas das suas repartições, fará na Câmara dos Deputados, anualmente, logo que esta estiver reunida, um balanço geral de todas as despesas públicas do ano futuro e da importância de todas as contribuições e rendas públicas".

Em 7 de novembro de 1890, o Decreto n. 966-A criou, no Brasil, o Tribu- nal de Contas. E a Constituição Republicana de 1891, no seu art. 89, o instituiu, com a seguinte dição: "É instituído um tribunal de contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso".

Estava assim implantado em nosso direito o Tribunal de Contas como órgão auxiliar do Poder Legislativo no controle externo da atividade financei- ra e orçamentária da União.

Como órgão auxiliar do Congresso Nacional, incumbe ao Tribunal de Contas da União, entre outras tarefas: apreciar as contas prestadas anualmen- te pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá elaborar no prazo de sessenta dias; realizar inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira e orçamentária; julgar as contas dos administradores e responsá- veis por bens e valores públicos (art. 71).

O Tribunal de Contas da União é composto por nove ministros e tem sede no Distrito Federal. Tem quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo território nacional. Exerce, no que couber, as atividades próprias dos tribu- nais, previstas no art. 96.

Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão nomeados dentre brasileiros que satisfaçam os seguintes requisitos: I - mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade; II - idoneidade moral e reputação ilibada; III - notórios

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conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e fi- nanceiros ou de administração pública; IV - mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados no inciso anterior. Serão escolhidos: I - um terço pelo Presi- dente da República, com aprovação do Senado Federal, sendo dois alternadamente dentre auditores e membros do Ministério Público, junto ao tribunal, indica- dos em lista tríplice pelo tribunal, segundo os critérios de antiguidade e me- recimento; II - dois terços pelo Congresso Nacional.

Cumpre lembrar que, embora os membros do Tribunal de Contas da União sejam designados por Ministros, não são eles magistrados. Todavia, por força do art. 73, § 3.o, da Lei Magna, gozam das mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça. Somente poderão aposentar-se com as vantagens do cargo quando o tiverem exercido efetivamente por mais de cinco anos.

3. ATRIBUIÇÕES DO CONGRESSO NACIONAL

É atribuído ao Congresso Nacional deliberar, com sanção do Presidente da República, sobre todas as matérias de competência da União, especialmente aquelas previstas no art. 48 e seus incisos. São veiculadas através de lei.

Além destas, tem o Congresso Nacional competências exclusivas, ou seja, que não necessitam de sanção do Presidente da República, previstas no art. 49 e seus incisos, veiculadas através de decretos legislativos ou resoluções.

Atribui-se ainda à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, bem como a qualquer de suas Comissões, o poder de convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada.

1. Estes últimos "quaisquer titulares de Órgãos diretamente subordinados à Presidência da República" por força da nova redação dada pelo art. 1.o da Emenda de Revisão n. 2 ao art. 50 da Constituição Federal.

De outra parte, as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal poderão encaminhar pedidos escritos de informação aos Ministros de Estado, ou a quaisquer das pessoas referidas no item anterior, importando em crime de responsabilidade a recusa, ou o não-atendimento, no prazo de trinta dias, bem como a prestação de informações falsas. Tudo conforme o § 2.o do art. 50.

3.1. Atribuições da Câmara dos Deputados e do Senado Federal

À Câmara dos Deputados compete privativamente, isto é, somente a este órgão do Legislativo, deliberar entre outras coisas sobre a instauração de pro- cesso contra o Presidente, seu Vice e os Ministros de Estado; sobre sua organi- zação e eleição do Conselho da República (art. 51 e incisos).

Ao Senado Federal, por sua decisão única, sem a interferência de outros órgãos, compete, privativamente, processar e julgar as altas autoridades fede- rais; aprovar

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previamente, após argüição pública, por voto secreto, a escolha, dentre outros, de Magistrados, de Ministros do Tribunal de Contas, Governa- dores de Territórios, Diplomatas etc. (art. 52, incisos, alíneas e parágrafo).

A título de esclarecimento. O Congresso Nacional pode atuar de duas formas: a primeira com a sanção do Presidente da República, por exemplo, elabora o Congresso uma lei que só entrará em vigor com a sanção do Presiden- te. Também tem o Congresso Nacional uma área de competência exclusiva, ou seja, onde ele atua sem necessidade de participação de nenhum outro órgão.

Têm também a Câmara dos Deputados e o Senado Federal uma série de competências, sobre as quais não há interferência de nenhum outro órgão. São estas as chamadas competências privativas.

4. IMUNIDADES E VEDAÇÕES PARLAMENTARES

As imunidades parlamentares representam elemento preponderante para a independência do Poder Legislativo. São privilégios, em face do direito co- mum, outorgados pela Constituição aos membros do Congresso para que es- tes possam ter um bom desempenho das suas funções. Para um bom desempe- nho é preciso que os parlamentares tenham ampla liberdade de expressão (pensa- mento, palavras, discussão e voto) e estejam resguardados de certos procedi- mentos legais. São as imunidades material e processual, respectivamente.

A matéria está disciplinada no art. 53 da Constituição Federal e visa assegurar a irresponsabilidade pessoal do Deputado ou Senador quanto aos atos praticados no exercício das funções de parlamentar.

Da imunidade material trata o caput do artigo em exame que diz o se- guinte: "Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, pala- vras e votos".

Esta espécie de imunidade exime o parlamentar do enquadramento no tipo penal. Portanto, o que seria crime se fosse cometido por um cidadão, não o é sendo cometido por um parlamentar.

A imunidade formal consiste em não permitir a prisão do Deputado ou Senador, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem o processo criminal, sem prévia licença da respectiva Casa (art. 53, § 1.o) No caso do indeferimento do pedido de licença ou ausência de deliberação sobre o processo, a prescri- ção é suspensa até o fim do mandato (art. 53, § 2.o).

Tendo ocorrido o flagrante de crime inafiançável, os autos deverão ser remetidos, dentro de vinte e quatro horas, à respectiva Casa para que se resol- va sobre a prisão e a formação de culpa.

Outra prerrogativa trazida pelo Texto é a não obrigação de testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato (art. 53, § 5.o).

Diversamente da Constituição anterior, a atual não permite a suspensão das imunidades parlamentares, a não ser por deliberação de dois terços dos membros da Casa

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respectiva, por atos praticados fora do recinto do Congres- so que sejam incompatíveis com a execução do estado de sítio (art. 53, § 7.o).

Em contrapartida os congressistas, desde que diplomados e empossados, não poderão praticar uma série de atos que influiriam em suas atividades pró- prias, as quais exigem total independência (art. 54). Perderá o parlamentar o seu mandato caso infrinja as vedações previstas no art. 54, como também, por exemplo, se tomar atitudes incompatíveis com o decoro parlamentar e as de- mais proibições constantes do art. 55.

Os Deputados e Senadores não podem, em função do mandato, cumprir certos atos, exercer certas funções e empregos, relativamente aos quais a condição de parlamentar poderia proporcionar-lhes uma situação injustamente vanta- josa; da mesma maneira que não podem ocupar cargos ou funções que lhes tornariam vulneráveis no exercício do mandato popular.

5. REUNIÕES

Para desempenhar sua função, as Casas Legislativas reúnem-se separa- da ou conjuntamente, conforme previsto na Constituição. Assim, há reuniões da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Congresso Nacional. O Congresso Nacional reúne-se em sessões conjuntas para praticar, entre ou- tros, os seguintes atos previstos no art. 57 da Constituição Federal: 1) inaugu- rar a sessão legislativa; 2) elaborar o regimento comum e regular a criação de serviços comuns às duas Casas; 3) receber o compromisso do Presidente e do Vice-Presidente da República; 4) conhecer do veto e sobre ele deliberar.

Há que se distinguir a legislatura da sessão legislativa. A primeira equivale ao período de mandato do parlamentar, que é - toma-se por base a Câmara dos Deputados - de quatro anos (art. 44, parágrafo único). Já a sessão legislativa corresponde às reuniões semestrais do Congresso Nacional. Estas dividem-se em ordinárias e extraordinárias.

Ordinárias são as realizadas no período de 15 de fevereiro a 30 de junho e 1.o de agosto a 15 de dezembro (art. 57, caput). Nessas reuniões são debati- dos todos os assuntos concernentes à competência do Poder Legislativo.

Extraordinárias são as realizadas durante o período de recesso, ou seja, de 1.o a 31 de julho e 16 de dezembro a 14 de fevereiro. A convocação pode ser feita: pelo Presidente da República, em caso de decretação de estado de defesa ou de intervenção federal, de pedido de autorização para decretação de estado de sítio e por último para o compromisso e a posse do Presidente e do Vice-Presidente da República. Também em caso de urgência e interesse público relevante poderá haver sessão extraordinária do Congresso Nacional se assim quiserem o Presidente da República, os Presidentes da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ou a requerimento da maioria dos membros de ambas as Casas. Nestas ocasiões os parlamentares só poderão deliberar sobre a matéria da convocação.

6. COMISSÕES

É normal os legislativos, além dos plenários, atuarem através de Comis- sões, isto é, de grupos menores de parlamentares. As comissões são, na verda- de, uma exigência para o bom desempenho dos parlamentares. De fato, a grande variedade de matérias

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(econômica, financeira, agrícola, comercial...) a serem apreciadas determinou a criação desses organismos com competências es- pecíficas para estudar antecipadamente os projetos de lei que lhes sejam apre- sentados. É por assim dizer uma divisão de trabalho para facilitar a tarefa da assembléia. O art. 58 da Constituição prevê a instituição de comissões perma- nentes e temporárias da Câmara, do Senado e do Congresso Nacional. As comissões do Congresso são denominadas mistas por serem formadas por membros de ambas as Casas Legislativas.

Tanto as comissões permanentes quanto as comissões temporárias devem observar na sua composição a proporcionalidade da representação partidária.

6.1. Comissão Parlamentar Permanente

As comissões parlamentares permanentes são formadas, em regra, de acordo com suas especializações, no início da legislatura ordinária. As comissões per- manentes instituídas pela Câmara e pelo Senado, em número fixado pelo res- pectivo Regimento Interno, compete o exame dos projetos de lei concernentes à matéria de sua competência. As comissões mistas permanentes, instituídas na forma do regimento comum, compete examinar e emitir parecer sobre os pro- jetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orça- mento anual, aos créditos adicionais, às contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República, aos planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição Federal e exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária (art. 166).

O Regimento da Câmara dos Deputados, no seu art. 22, I, define as comis- sões permanentes como "as de caráter técnico legislativo ou especializado, in- tegrantes da estrutura institucional da Casa, co-partícipes e agentes do processo legiferante, que têm por finalidade apreciar os assuntos ou proposições, subme- tidos ao seu exame, e sobre eles deliberar, assim como exercer o acompanha- mento dos planos e programas governamentais e a fiscalização orçamentária da União, no âmbito dos respectivos campos temáticos e áreas de atuação".

O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, no seu art. 58, trata da apreciação conclusiva de matéria legislativa "pela última Comissão de Mérito a que tenha sido distribuída. Uma vez ali aprovada, a matéria e respectivos pare- ceres serão mandados à publicação e remetidos à Mesa até a sessão subseqüen- te, para serem anunciados na Ordem do dia". Como se vê, o projeto poderá ser discutido e votado nas próprias comissões, dispensando a competência do ple- nário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa (CF, art. 58, § 2.o, I). É a chamada delegação interna corporis. O recurso, assinado por um décimo pelo menos dos membros da Casa, pode ser apresentado ao Presidente, dentro de cinco dias da publicação acima referida, indicando expressamente, dentre a matéria apreciada pela comissão, o que será objeto de deliberação do Plenário. Não havendo o referido recurso, o projeto de lei recebe a redação final pela comissão competente e é encaminhado, pela Mesa da Câmara, ao Senado Federal (Reg. Interno da Câmara, art. 58, §§ 1.o a 3.o). O mesmo procedimento se dá no Senado Federal em suas comissões com poder terminativo, segundo dispõe o respectivo Regimento, no seu art. 91.

6.2. Comissão Parlamentar Temporária ou Especial

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Pode ser criada por qualquer uma das Casas do Congresso Nacional, ou por ambas, para deliberar sobre fato determinado. Uma vez atingido seu ob- jetivo, dissolve-se automaticamente. A competência ou atribuições dessas co- missões, criadas pelo Congresso ou por uma de suas Casas, serão aquelas previstas, quer no respectivo regimento interno, quer no ato de que resultar sua criação. Em geral essas comissões têm o seu prazo circunscrito a cada legislatura. É de notar que essas comissões, embora previstas nos Regimen- tos, só serão instituídas quando ocorrerem as hipóteses neles previstas. Se- gundo estabelece o art. 22, II, do Regimento Interno da Câmara dos Deputa- dos, as comissões temporárias são aquelas criadas "para apreciar determina- do assunto, que se extingue ao término da legislatura, ou antes dele, quando alcançado o fim a que se destinam ou expirado o seu prazo de duração".

Assim, na Câmara dos Deputados (e também do Senado), as comissões permanentes são fixadas pela Resolução que aprova o respectivo Regimento Interno, sendo as temporárias dependentes de deliberação específica, exceto as previstas no art. 34 do Regimento da Câmara, que dispõe sobre a obrigatoriedade da constituição de comissões temporárias especiais, para que dêem parecer sobre:

a) "Proposta de emenda à Constituição e projeto de código";

b) "Proposições que versarem matéria de competência de mais de três Comissões que devam pronunciar-se, quanto ao mérito, por iniciativa do Pre- sidente da Câmara ou a requerimento de Líder ou de Presidente de Comissão Interessada".

Além dessas, há as comissões temporárias de inquérito, comissões ex- ternas, e as comissões mistas (Câmara e Senado), como, por exemplo, a Co- missão Mista que deve ser instituída para apreciar as Medidas Provisórias enviadas pelo Poder Executivo, composta de sete Senadores, sete Deputados e igual número de suplentes (Resolução n. 1/89).

6.3. Comissão Parlamentar de Inquérito

O instituto constitucional das Comissões Parlamentares de Inquérito surgiu na Inglaterra, no século XVI. É típico do sistema parlamentarista. Tem sido adotado ao longo da História em todas as monarquias e repúblicas parlamen- taristas da Europa, passando também a vigorar nas Constituições americanas, inclusive na dos Estados Unidos.

No Brasil a investigação parlamentar surgiu com a Constituição de 1934 (art. 36), foi omitida na Constituição de 1937 e reapareceu na Constituição de 1946, sendo mantida até a Constituição vigente.

A Comissão Parlamentar de Inquérito é órgão colegiado constituído por um grupo de parlamentares, que pode ser instituído pela Câmara dos Deputa- dos, pelo Senado Federal ou por ambas as Casas, a requerimento de um terço de seus membros, com funções especiais ou incumbido de tratar sobre determina- do assunto situado na área de sua competência específica, em prazo certo, e com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (CF, art. 58, § 3.o).

Trata-se de comissões especiais e temporárias que constituem um recur- so para tornar mais efetivo e rigoroso o controle que é conferido aos parla- mentares sobre toda a máquina estatal.

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A norma constitucional estabelece que os trabalhos das CPIs devem obe- decer a um prazo certo. Isso para evitar que se prolonguem indevidamente, prejudicando a apuração dos fatos e, conseqüentemente, dificultando o exer- cício do Poder Legislativo. A investigação minuciosa, embasada em provas, sobre determinado fato dará origem a um relatório que informará devidamen- te para a tomada de decisões futuras, sobretudo pelo próprio órgão legislativo, ou então fazer recomendações a outros órgãos louvadas nesse parecer.

A atual Constituição de 1988, ao cuidar das comissões parlamentares de inquérito, no § 3.o do art. 58, consigna que serão elas criadas para apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, en- caminhadas ao Ministério Público, para que se promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

6.4. Comissão Parlamentar Representativa

É novidade da atual Constituição esta modalidade de Comissão Represen- tativa do Congresso Nacional - que atenderá nos períodos de recesso parla- mentar, sendo esta uma maneira de não deixar parada a atividade do Congresso -, com atribuições definidas no Regimento comum, possuindo atribuições para receber queixas e apurar omissões no âmbito do Poder Legislativo (CF, art. 58, § 4.o). É eleita pelas duas Casas do Congresso na última sessão ordinária do período legislativo e deverá reproduzir na sua composição, o quanto possível, a proporcionalidade da representação partidária.

Cumpre consignar que estas comissões são permanentes no sentido da obrigatoriedade de sua instituição anual, mas temporárias quanto a sua dura- ção, preestabelecida no Regimento comum, Segundo dispõe o art. 2.o da Re- solução a. 3, de 1990, "a Comissão Representativa do Congresso Nacional será integrada por sete senadores e dezesseis deputados, e igual número de suplentes, eleitos pelas respectivas Casas na última sessão ordinária de cada período legislativo, e cujo mandato coincidirá com o período de recesso do Congresso Nacional, que se seguir à sua constituição, excluindo-se os dias destinados às sessões preparatórias para a posse dos parlamentares eleitos e à eleição das Mesas".

Por sua vez, prescreve o art. 4.o dessa Resolução que o mandato da Co- missão não se suspende quando o Congresso Nacional for convocado extraor- dinariamente, considerando-se período legislativo "as divisões da sessão legislativa anual compreendidas entre 15 de fevereiro a 30 de junho e 1.o de agosto a 15 de dezembro, incluídas as prorrogações decorrentes das hipóteses previstas nos §§ 1.o e 2.o do art. 57 da Constituição Federal".

À Comissão Representativa compete, em linhas gerais, "zelar pelas prer- rogativas do Congresso Nacional, de suas Casas e de seus membros (art. 7.0 I)", bem como pela "preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes (art. 7.o, II)", além de "autorizar o Presidente e o Vice-Presidente da República a se ausentarem do país", sem prejuízo de outros encargos que lhe são conferidos pela citada Resolução.

SEÇÃO I ESPÉCIES NORMATIVAS

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SUMÁRIO: 1. Emendas à Constituição. 2. Leis complementares à Constituição. 3. Lei ordinária. 4. Medidas provisórias. 4.1. Urgência e relevância. 4.2. Abrangência mate- rial. 4.3. Aprovação e eficácia. 4.4. Possibilidade de reedição. 4.5. Controle jurisdicional das medidas provisórias. 5. Leis delegadas. 6. Decretos legislativos. 7. Resoluções.

Não existe hierarquia entre as espécies normativas elencadas no art. 59 da Constituição Federal. Com exceção das Emendas, todas as demais espéci- es se situam no mesmo plano.

A lei complementar não é superior à lei ordinária, nem esta é superior à lei delegada, e assim por diante.

O que distingue uma espécie normativa da outra são certos aspectos na elaboração e o campo de atuação de cada uma delas.

Lei complementar não pode cuidar de matéria de lei ordinária, da mes- ma forma que lei ordinária não pode tratar de matéria de lei complementar ou de matéria reservada a qualquer outra espécie normativa, sob pena de in- constitucionalidade.

De forma que, se cada uma das espécies tem o seu campo próprio de atuação, não há falar em hierarquia. Qualquer contradição entre essas espéci- es normativas será sempre por invasão de competência de uma pela outra. Se uma espécie invadir o campo de atuação de outra, estará ofendendo direta- mente a Constituição. Será inconstitucional.

1. EMENDAS À CONSTITUIÇÃO

As Emendas têm a mesma natureza e a mesma força hierárquica das normas constitucionais.

Mas, por serem produto do Congresso Nacional e não do Poder Consti- tuinte, sofrem limitações de natureza substancial, formal e temporal, previs- tas na Constituição.

Limite substancial - as Emendas não podem versar sobre pontos tendentes a abolir a Federação, o voto direto secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4.o I a IV).

Limite formal - quanto à iniciativa: se a proposta for apresentada por parlamentar, deverá ter a assinatura de um terço dos membros da Câmara ou um terço dos membros do Senado (art. 60, I). Se por Assembléias Legislativas, deverá ter apoio de mais da metade das unidades da Federação, expressa por maioria relativa de seus membros; quanto à deliberação: a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, e será aprova- da se obtiver, em ambas as votações, três quintos dos votos dos membros da Câmara e três quintos dos votos dos membros do Senado (art. 60, § 2.o).

Limite temporal - a Constituição não poderá ser emendada na vigência de estado de sítio ou estado de defesa e intervenção federal (art. 60, § 1.o). Se houver alguma proposta de emenda já em tramitação, o seu andamento ficará suspenso, em qualquer fase em que se encontre, até que o País volte à nor- malidade.

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As Emendas não estão sujeitas à sanção presidencial.

2. LEIS COMPLEMENTARES À CONSTITUIÇÃO

Lei complementar, como o próprio nome diz, é aquela que completa a Constituição. O que significa completar a Constituição? Significa que, levan- do-se em conta o fato de nem todas as normas constitucionais terem o mesmo grau de aplicabilidade e a possibilidade de se tornarem imediatamente efica- zes, demandam a superveniência de uma lei que lhes confira esses elementos faltantes. Dá-se o nome de lei complementar a essa norma que vem, na verda- de, integrar a Constituição.

Esta, contudo, é a noção clássica de lei complementar. Dizemos clássica porque, a partir da Emenda Constitucional a. 4, que implantou o parlamenta- rismo, criou-se uma nova modalidade de lei complementar definida não a partir do papel por ela desempenhado, qual seja o de completar a Constituição, mas, pelas suas características formais, é dizer, pelo fato de ser aprovada por um quorum próprio, e por versar sobre matéria a ela afeta pela Constituição.

Temos, assim, duas realidades compreendidas pelo termo "lei complementar":

a) a tradicional - encontrada em outros sistemas jurídicos e mesmo no Brasil, antes da emenda parlamentarista, que consistia em entender como com- plementar toda lei que na sua função desempenhasse o papel de completar a Constituição;

b) a formal - atualmente, não se pode aceitar outra definição senão essa, que é encampada pela Constituição. Quando esta fala em lei comple- mentar está-se referindo a uma modalidade com características formais, é dizer, independentes do papel por ela cumprido.

Em termos práticos, isso significa que hoje podemos encontrar leis com- plementares que também completam a Constituição. Mas isso é irrelevante do ponto de vista da sua conceituação.

Entendemos, pois, por lei complementar a espécie normativa autônoma, expressamente prevista no inc. II do art. 59 da Constituição Federal, que versa sobre matéria subtraída ao campo de atuação das demais espécies normativas do nosso direito positivo, demandando, para a sua aprovação, um quorum es- pecial de maioria absoluta dos votos dos membros das duas Casas de que se compõe o Congresso Nacional.

A lei complementar tem, por conseguinte, matéria própria - o que sig- nifica que recebe para tratamento normativo um campo determinado de atu- ação da ordem jurídica e só dentro deste ela é validamente exercitável -, matéria essa perfeitamente cindível ou separável da versada pelas demais formações, principalmente pela legislação ordinária. Em vários dispositivos o constituinte prescreve: "Lei complementar disporá sobre..."; "A criação de Estados depende de lei complementar"; "A União, mediante lei complemen- tar, poderá instituir empréstimos compulsórios...".

Entretanto, a só consideração da matéria própria a ser contemplada pela lei complementar não nos leva ao conceito formal de lei complementar (con- ceito jurídico-positivo), e, portanto, não nos fornece os elementos necessários para diferenciá-la, por exemplo, do decreto legislativo, da resolução, da lei delegada e mesmo da legislação ordinária

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ao nível do Estado-Membro e Município, haja vista que todas essas figuras legislativas têm, também, maté- rias próprias, campos distintos de atuação. Faz-se necessário, para caracteri- zarmos o regime peculiar a que está subordinada essa expressão normativa, que lancemos mão do art. 69 da Lei Maior e dele extraiamos a exigência do quorum especial de votação, em função do qual terá o projeto de lei comple- mentar de obter para aprovação, no mínimo, a maioria absoluta dos votos dos membros das duas Casas Legislativas que formam o Congresso Nacional.

Em síntese, a lei complementar caracteriza-se por dois pontos: pelo âmbi- to material predeterminado pelo constituinte e pelo quorum especial para sua aprovação, que é diferente do quorum exigido para aprovação da lei ordinária.

No mais, segue o mesmo caminho da lei ordinária, e, portanto, está su- jeita à sanção presidencial.

3. LEI ORDINÁRIA

A lei ordinária, ou simplesmente lei, é o ato normativo que edita normas gerais e abstratas, ou seja, é o ato legislativo típico. É toda aquela que não traz o adjetivo "complementar" ou "delegada" e da qual não se exige a maioria absoluta para a sua aprovação. As leis são indispensáveis à convivência huma- na, como modelo racional de conduta". Contudo, é no Estado de Direito que a importância da lei se revela em toda sua exuberância, visto que este se ca- racteriza pelo princípio da legalidade, segundo o qual "ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", princípio que prevalece sobre subordinantes e subordinados. Maria Garcia, em sua preciosa obra Desobediência civil, salienta: "A lei, expressando o Direito, determina paritariamente a contenção do poder do Estado, dentro da experiência social vivenciada, em cada momento histórico, e, concomitantemente, a limitação dos direitos humanos, melhor dito, a sua enquadratura jurídica - o das liber- dades, na medida em que tais direitos são assegurados a todos os homens, tendência do Estado de Direito".

1. François Terré, apud Maria Garcia, Desobediência civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994, p. 64.

2. Desobediência civil, cit., p. 64.

O âmbito material da lei ordinária é bastante abrangente. Em regra, ela pode tratar de qualquer matéria, salvo algumas exceções. Não são suscetíveis de tratamento por essa espécie normativa as matérias constitucionalmente re- servadas à lei complementar, bem como aquelas de competência exclusiva do Congresso Nacional (CF, art. 49), as privativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (CF, arts. 51 e 52), pertencentes ao âmbito dos decretos legislativos e das resoluções.

Por outro lado, existem matérias constitucionalmente reservadas à lei, excluindo, por conseguinte, todas as demais espécies normativas. São as ma- térias elencadas nos incisos do § 1.o do art. 68 da Constituição Federal: "I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garan- tia de seus membros; II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos".

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A iniciativa da lei, em geral, cabe a qualquer deputado ou senador, a qualquer comissão da Câmara ou do Senado, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores, ao procurador-geral da República e aos cidadãos (CF, art. 61).

Todavia, com relação às matérias especificadas no § 1.o do art. 61 (criação de cargos, empregos ou funções públicas etc.), só o Presidente da República pode dar início ao processo legislativo. Trata-se de competência privativa, o que significa dizer, sobre essas matérias a Constituição confere com exclusividade ao Chefe da Nação a prerrogativa para propor direito novo. A não-observância desse comando constitucional, ou seja, projeto de lei que verse sobre as maté- rias constantes no referido dispositivo que não seja do Presidente da República, padecerá de vício insanável de competência. Nem mesmo a sanção presidencial terá o condão de convalidar o defeito de iniciativa.

3. Nesse sentido, decisão da Repr. 1.015/1-GO, tendo por Relator o Min. Moreira Alves.

O projeto de lei deve ser apresentado à Mesa da Casa a que pertence o parlamentar, quando se tratar de iniciativa de deputado ou senador. Quando a iniciativa for do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal ou dos Tribunais superiores, o projeto de lei deverá ser apresentado à Câmara dos Deputados.

Será também apresentado à Câmara dos Deputados o projeto de lei de iniciativa popular. Este deverá ser subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, e ter a mani- festação de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (art. 61, § 2.o). Isso, no âmbito federal. Na esfera estadual, caberá à lei disciplinar a matéria (art. 27, § 4.o). Nos Municípios, caberá à Lei Orgânica respectiva, desde que observada a exigência da subscrição de, no mínimo, cinco por cen- to do eleitorado municipal (art. 29, XIII).

A aprovação da lei ordinária se dá por maioria simples (metade mais um), desde que o número de parlamentares presentes à sessão corresponda à maioria (metade mais um) dos integrantes da Casa. Exemplificando: se há noventa in- tegrantes numa Casa Legislativa e quarenta e seis estão presentes, há o que se denomina quorum, que é a maioria exigida para a instalação dos trabalhos. Uma lei ordinária será aprovada se, estando presentes esses quarenta e seis parlamentares, forem obtidos vinte e quatro votos (metade mais um).

A lei ordinária está sujeita à sanção.

4. MEDIDAS PROVISÓRIAS

O constituinte houve por bem retirar das mãos do Presidente da Repú- blica um instrumento de poder extremamente forte como era o decreto-lei. Este era editado e enquanto não fosse rejeitado pelo Congresso Nacional exercia a sua eficácia, mas com algumas agravantes: primeiro, havia o decurso de prazo, ou seja, se não fosse o decreto-lei apreciado no prazo previsto pela Constituição (sessenta dias), ocorria a chamada aprovação tácita. Por outro lado, rejeitado pelo Congresso Nacional, tal circunstância não implicava a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência.

O novo Texto, porém, não deixou o Presidente de mãos atadas, pois, em caso de relevância e urgência, poderá editar medidas provisórias, submetidas de imediato ao

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Congresso Nacional, que, estando em recesso, deverá reunir- se, extraordinariamente, no prazo de cinco dias. Uma vez baixada pelo Presi- dente da República, a medida provisória entra em vigor, isto é, passa a produ- zir seus efeitos jurídicos e só então é submetida à apreciação do Congresso Nacional, ou seja, a discussão é a posteriori. Esta espécie normativa está pre- vista no inc. V do art. 59 e disciplinada no art. 62, ambos da Carta Magna.

As medidas provisórias podem versar sobre todas as matérias que pos- sam ser objeto de lei, salvo as seguintes exceções: a) matérias reservadas à lei complementar; b) matérias que não podem ser objeto de delegação legislativa; c) matéria penal; d) matéria tributária.

E, por força do art. 246 das Disposições Constitucionais Gerais, "é ve- dada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Consti- tuição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995" (EC n. 6, de 15-8-1995).

Só podem ser aprovadas expressamente pelo Congresso Nacional. Se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, perderão sua eficácia. A não-aprovação importa rejeição, incumbindo ao Con- gresso Nacional regulamentar as relações jurídicas que dela decorram.

Como se vê, no caso das medidas provisórias, além de não haver o de- curso de prazo, vale dizer, estas só poderem ser aprovadas expressamente pelo Congresso Nacional, há outra grande vantagem em relação ao decreto- lei: é que, se não aprovadas, as medidas provisórias perderão sua eficácia desde o momento de sua edição, não deixando marcas da sua passagem pelo universo jurídico.

4.1. Urgência e Relevância

Os pressupostos autorizadores para a edição de medida provisória são os de urgência e relevância. A inobservância de qualquer um deles pode acar- retar a invalidação da norma.

É pacífico o entendimento doutrinário de que a urgência para a edição de medida provisória fica caracterizada quando a adoção de espécie normativa pelo procedimento legislativo ordinário não permitiria o êxito tempestivo da finalidade objetivada pelo Governo.

4. Marco Aurélio Greco sustenta: "Não existe urgência se a eficácia da disposição só puder se materializar após um lapso temporal suficientemente amplo que permitiria a tramitação normal do processo legislativo, em algumas formas disciplinadas pela Constituição" (Medidas provisórias, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991, p. 24).

Com relação à relevância, deve ser ela bem mais expressiva do que a rele- vância comum que toda matéria merecedora de disciplinação legislativa possui.

5. Clêmerson Merlin Cléve observa: "... toda matéria suscetível de disciplina legislativa é em princípio relevante. Ora, a relevância autorizadora da edição de medida provisória não se confunde com a relevância ordinária desafiadora do processo legislativo comum. Trata-se antes de relevância extraordinária, ou seja, relevância especialmente qualificada" (As medidas provisórias e a Consti- tuição Federal de 1988, Curitiba, Ed. Juruá, 1991, p. 54-5).

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4.2. Abrangência Material

A medida provisória, embora seja ato normativo com força de lei, não pode ser considerada lei em sentido formal, já que não é ato nascido no Poder Legislativo. Não pode, por isso, versar sobre matérias que, por determinação constitucional, estejam reservadas à lei, como as do § 1.o do art. 68. Não pode, também, o Chefe do Executivo editar medidas provisórias em matérias reser- vadas à lei complementar. O mesmo se diz com relação às matérias que não possam ser objeto de delegação legislativa, bem como matéria penal e matéria tributária, respeitante à criação ou majoração de tributos, salvo para instituir empréstimos compulsórios emergenciais (CF, art. 148, I e II) quando benefi- ciar o réu e para instituir impostos extraordinários de guerra (art. 154, II).

6. Nesse sentido: Sacha Calmon Navarro Coelho, Comentários à Constituição de 1988, Rio de Janeiro, Forense, 1990, p. 289; Hugo de Brito Machado, Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1989, p. 31.

4.3. Aprovação e Eficácia

A medida provisória, desde que baixada pelo Presidente da Repú- blica, ou seja, desde que publicada, será imediatamente submetida ao Congresso Nacional, que, se em recesso, deverá reunir-se extraordinari- amente em cinco dias para apreciá-la. A contar da publicação, o Congresso terá trinta dias para se manifestar, aprovando ou rejeitando a medida. O seu silêncio importará rejeição. Como se vê, para a aprovação da medida provi- sória é exigida manifestação expressa do Congresso. O decurso de prazo sem manifestação importa rejeição e não aprovação. Uma vez aprovada, será convertida em lei.

Desde a publicação, a medida provisória ganha eficácia, ou seja, passa a produzir seus efeitos jurídicos. Mas essa eficácia, por ora, é temporária, pois perdura apenas até a manifestação do Congresso. Se a medida provisória for aprovada, passa a integrar o ordenamento jurídico, e os efeitos produzidos desde a sua publicação ganham juridicidade. Se, por outro lado, for rejeitada, perderá sua eficácia desde a sua edição, competindo ao Congresso disciplinar as relações jurídicas daí decorrentes.

Cumpre ainda dizer que a publicação da medida provisória, e, conse- qüentemente, sua vigência temporária, tem como efeito a suspensão da eficá- cia dos atos legislativos que com ela não se conformem. Se a medida provisó- ria for aprovada, esses atos serão revogados. Se for rejeitada, terão sua eficá- cia restabelecida.

4.4. Possibilidade de Reedição

Nem sempre o Congresso Nacional aprecia a medida provisória no pra- zo. Por isso, a seu pedido, ou por deliberação de ofício do Presidente da Re- pública, por vezes, ela sofre reedição. Parte da doutrina tem condenado esta prática, argumentando que a não-manifestação no prazo constitucionalmente definido consiste em tácita rejeição. Outra corrente opina que, se o Congresso Nacional não se manifesta a tempo, e os pressupostos

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habilitadores da edição da medida provisória continuam presentes, nada impede a sua reedição até a decisão final do parlamento.

A Constituição não veda expressamente a reedição de medida provisó- ria. Entretanto, têm-se orientado os nossos tribunais no sentido de que a me- dida provisória rejeitada expressamente pelo Congresso Nacional não deve ser reeditada, só sendo possível a sua reedição no caso de decurso de prazo de trinta dias sem manifestação daquele órgão.

7. Nesse sentido, julgado do STF em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Pro- curador-Geral da República contra a reedição da Medida Provisória n. 185, rejeitada pelo Congres- so e reapresentada sob o n. 190, tendo por relator o Min. Mello Filho. Por unanimidade foi conce- dida liminar sustando seus efeitos.

4.5. Controle Jurisdicional das Medidas Provisórias

O controle jurisdicional das medidas provisórias no Brasil pode ocorrer em três níveis: a) primeiro um controle dos pressupostos de habilitação (se afinal estão ou não presentes); b) depois, um controle da matéria tratada pela medida provisória (se suporta regramento legislativo provisório ou não); c) finalmente, um controle da constitucionalidade da matéria propriamente dita (se atende, não sob a ótica formal, mas sim substancial, as normas e princípi- os adotados pelo constituinte).

5. LEIS DELEGADAS

A lei delegada é uma norma com idêntica força hierárquica das leis co- muns. A diferença que as separa reside, tão-somente, na autoridade que a elabora e promulga. É editada pelo Presidente da República, por força de uma delegação que recebe do Congresso Nacional, que o habilita a fazer a lei, seguindo as diretrizes básicas constantes do ato de delegação. Cumpre salien- tar que a delegação deve ser solicitada pelo Presidente da República, é dizer, não pode o Legislativo obrigar o Presidente a legislar.

O Congresso Nacional aprova a transferência de poderes ao Presidente da República por intermédio de resolução, que especificará o conteúdo e os

termos do seu exercício (art. 68, § 2.o).

O projeto de lei delegada poderá ser ou não apreciado pelo Congresso Nacional. Haverá apreciação se assim determinar a resolução, caso em que o projeto retornará àquele órgão para, em votação única, deliberar sobre o mes- mo, vedada qualquer emenda (art. 68, § 3.o). Se a resolução não determinar essa apreciação, dispensa-se a sanção passando-se à promulgação. Não há que se falar em veto de projeto de lei delegada, já que não teria cabimento o Presidente da República vetar aquilo que ele próprio elaborou.

Em princípio todas as matérias são passíveis de delegação, salvo as enu- meradas na Constituição, art. 68, § 1.o, I, II e III, que são as seguintes: as de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49); as de competência exclusiva da Câmara dos Deputados (art. 51); as de competência exclusiva do Senado (art. 52); as reservadas à lei complementar e as leis sobre organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a

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legislação sobre nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos, eleitoral e sobre planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamento.

6. DECRETOS LEGISLATIVOS

O decreto legislativo é da competência exclusiva do Congresso Nacio- nal, por isso não está sujeito à sanção presidencial. Basicamente, tem como conteúdo as matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional elencadas no art. 49.

A promulgação é feita pelo Presidente do Senado Federal.

7. RESOLUÇÕES

As resoluções são atos de competência privativa tanto do Congresso Na- cional como do Senado Federal e da Câmara.

Têm como conteúdo matérias tais como a delegação (art. 68), a suspen- são de lei declarada inconstitucional (art. 52, X), a fixação de alíquota (art. 155, § 2.o, IV), onde se nota a predominância das medidas de caráter concre- to, em contraposição ao decreto legislativo, que veicula preferencialmente assuntos de caráter genérico.

Não estão sujeitas à sanção presidencial.

A promulgação é feita pela Mesa da Casa Legislativa que as expedir. Quando se tratar de resolução do Congresso Nacional a promulgação é feita pela Mesa do Senado Federal.

SEÇÃO II PROCESSO LEGISLATIVO

SUMÁRIO: 1. Fases do processo legislativo. 2. Discussão e votação. 3. Sanção e veto. 4. Promulgação. 5. Publicação.

Entende-se por processo legislativo o conjunto de disposições constitu- cionais que regula o procedimento a ser obedecido pelos órgãos competentes, na produção dos atos normativos que derivam diretamente da própria Consti- tuição. É dizer, resulta do conjunto de normas que regula a produção, criação ou revogação de normas gerais. O processo legislativo estabelece quem par- ticipa, e como deve participar, na formação dos atos legislativos.

Encontramos dentro do direito outras modalidades de processos em campos totalmente diversos, haja vista o processo judiciário e o administrativo.

Cabe ao Legislador Constituinte fixar os cânones do processo legislativo, ao contrário do que se dá com o processo jurisdicional e o administrativo, normalmente estabelecidos em preceitos da legislação ordinária.

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O processo legislativo, na verdade, abrange as normas de atuação legiferante dos órgãos constituídos. Nelson de Souza Sampaio afirma com muita precisão: "O Poder Constituinte Originário, como suprema competência auto-organizadora do Estado - ilimitado pelo Direito Positivo interno -, auto-regula a sua atividade, situando-se fora do alcance do Processo Legislativo" (O processo legislativo, p. 4).

Por estarem submetidos apenas à Constituição e subordinarem a produ- ção dos demais atos do ordenamento jurídico, são denominados atos primários.

Todos estes atos estão elencados no art. 59 da Constituição Federal. Deste elenco há que se destacar duas categorias: a primeira diz respeito aos atos jurí- dicos de força constitucional: Emendas à Constituição; a segunda, aos atos in- fraconstitucionais: leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, decre- tos legislativos e resoluções. Excepcionalmente a atual Constituição prevê, em seu art. 62, que o Presidente da República pode adotar medidas provisórias com força de lei, isto em caso de relevância e urgência, devendo sempre submetê-las, de imediato, ao Congresso Nacional, que, se as aprovar no prazo de trinta dias, as estará convertendo em lei.

1. FASES DO PROCESSO LEGISLATIVO

O ato que inaugura o processo legislativo denomina-se iniciativa, que é a competência que a Constituição atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projeto de lei ao Legislativo.

Dispõe o art. 61 que: "A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da Repúbli- ca e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição".

2. DISCUSSÃO E VOTAÇÃO

Se o projeto decorre de iniciativa do Presidente da República, dos Tribu- nais, ou de Deputados, ou da iniciativa popular, a discussão se inicia na Câmara dos Deputados. Sendo de iniciativa do Senado, a discussão tem início na Câ- mara Alta. A primeira Câmara que examina o projeto é chamada de Casa Ini- ciadora. A segunda, de Casa Revisora (arts. 61, § 2.o, e 64).

Casa Iniciadora - na Casa Iniciadora, o projeto passa primeiro pelo crivo das comissões permanentes e, posteriormente, é levado à discussão e votação em plenário. Poderá ser discutido e votado, nas próprias comissões, dispensando, destarte, a competência do plenário, respeitado, no entanto, o regimento, e salvo a hipótese de haver recurso de um décimo dos membros da Casa (art. 58, § 2.o, I).

As comissões permanentes examinam o projeto no seu aspecto material e formal.

Aspecto material - conteúdo, interesse público.

Aspecto formal - observância da forma prevista na Constituição.

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Passado pelas comissões, o projeto de lei é discutido e votado em plená- rio, sendo aprovado se obtiver maioria de votos, estando presente a maioria dos membros da Casa.

Casa Revisora - enviado à Casa Revisora, esta, de acordo com o disposto no art. 65, poderá:

a) Aprovar o projeto. Neste caso será enviado para sanção e promulga- ção do Presidente da República.

b) Emendar o projeto. Neste caso deverá devolvê-lo à Câmara Iniciado- ra para que aprecie a emenda.

c) Rejeitar o projeto. Será arquivado.

Como se vê, a aprovação de um projeto de lei se dá pela conjugação da vontade das duas Casas Legislativas.

3. SANÇÃO E VETO

Sanção é o ato pelo qual o Presidente da República anui, expressa ou tacitamente (art. 66, §§ 1.o a 7.o) ao projeto de lei que lhe é submetido.

Veto é o ato pelo qual o Presidente da República nega aquiescência à formação da lei, por entendê-la inconstitucional ou contrária ao interesse público. O Presidente da República deve-se manifestar no prazo de quinze dias a partir do recebimento do projeto. Seu silêncio importará sanção. O veto pode ser total ou parcial e deve sempre ser motivado (art. 66, § 1.o).

O veto pode ser suprido pelo Legislativo, por maioria absoluta de cada uma das Casas reunidas em sessão conjunta, no prazo de trinta dias, contados de seu recebimento pelo Presidente do Senado (art. 66, § 4.o). Como se nota, temos no Brasil o veto relativo e não o absoluto.

Se dentro desse prazo não houver deliberação, o veto será colocado na ordem do dia, da sessão imediata, com votação preferencial às demais maté- rias, exceção feita às medidas provisórias (art. 66, § 6.o).

4. PROMULGAÇÃO

Via de regra, com a sanção há a conjugação das vontades do Congresso Nacional e do Presidente da República, para a formação da lei ordinária. Do ponto de vista substancial a lei já se encontra perfeita.

Isto leva alguns autores ao entendimento de que este momento marca o nascimento da lei. A partir da sanção o projeto de lei se transforma em lei. Entendimento que encontra respaldo no art. 66, § 7.o que já menciona como lei o ato a ser promulgado.

Para outros autores, a lei só passa a existir com a promulgação.

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Todos, porém, concordam num ponto: é através da promulgação que a lei passa a existir no mundo jurídico e está apta a produzir seus efeitos. A promulgação importa na presunção de que o mundo jurídico foi inovado por uma lei válida executória e obrigatória.

Não se pode extrair nenhum efeito jurídico de uma lei sancionada antes da promulgação: não pode ser revogada, não pode ser declarada inconstitucional, enfim, a lei não existe no mundo jurídico.

Em regra, a promulgação é ato do Presidente da República, quarenta e oito horas após a sanção. Nos casos de sanção tácita ou de rejeição de veto, se o Presidente da República não promulgar a lei no prazo de quarenta e oito horas, o Presidente do Senado a promulgará. Se este não o fizer, deverá fazê- lo o Vice-Presidente do Senado (art. 66, § 7.o).

5. PUBLICAÇÃO

É o ato pelo qual leva-se ao conhecimento público a existência da lei. A par- tir da publicação a lei se toma exigível, obrigatória. Ninguém pode alegar o seu desconhecimento. A publicação deve ser feita em jornal oficial, quando houver.

CAPÍTULO III DO PODER EXECUTIVO

SUMÁRIO: 1. Função do Executivo. 1.1. A faculdade regulamentar. 1.1.1. Tipos de regulamentos. 2. Estrutura do Poder Executivo. 2.1. Chefe de Governo e chefe de Estado. 2.1.1. Formas de governo: monarquia e república. 3. O presidencialis- mo brasileiro: os Ministros de Estado. 4. O crime de responsabilidade: o impedi- mento do Presidente da República. 5. Eleição do Presidente da República. 6. Con- selho da República e Conselho de Defesa Nacional.

1. FUNÇÃO DO EXECUTIVO

Na "separação de poderes" distinguiu Montesquieu como funções corres- pondentes ao Poder Executivo, fazer a paz ou a guerra, enviar e receber em- baixadores, estabelecer a segurança e prevenir as invasões.

Enquanto ao Legislativo competia fazer as leis, ao Executivo era atribuí- da a função de executar as leis.

Não é, evidentemente, a visão que hoje temos do Executivo.

Atualmente, o Executivo não só acompanha a execução da lei, como também exerce a função legislativa através das medidas provisórias e das leis delegadas. Participa ainda do processo legislativo pela iniciativa, sanção, veto e promulgação das leis.

É a própria evolução, com a acentuada intervenção do Estado no domí- nio econômico, com a socialização dos serviços públicos, com a necessidade da planificação da ação governamental, que acarreta ao Executivo um grande número de atribuições.

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É que essa atuação do Estado requer tomada de decisões com certa celeri- dade, e só o Executivo tem condições para atender tal exigência. Cabe ao Exe- cutivo governar; e governar, atualmente, não é só administrar. É enfrentar pro- blemas políticos e sociais. Isto leva o Executivo a ocupar uma posição ímpar diante dos demais Poderes do Estado.

1.1. A Faculdade Regulamentar

Dentre as funções do Presidente da República, assume especial relevo a sua faculdade regulamentar, prevista no art. 84, IV. Segundo ela, cabe à Pre- sidência (e aos cargos simétricos no âmbito estadual e municipal), "sancio- nar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regula- mentos para a sua fiel execução".

O regulamento é um ato de caráter normativo e, nesse particular, seme- lhante à lei material. Ele se preordena à regulação de um número imprevisível de situações, não sendo bastante para configurar a sua normatividade a cir- cunstância de dirigir-se a um grande número de situações. O ato administrati- vo de convocação de uma determinada categoria de cidadãos para prestação do serviço militar é um ato de efeitos concretos, a despeito do imenso número daqueles atingidos pelos seus efeitos: Falta-lhe a impessoalidade, própria dos atos genéricos e abstratos. Entretanto, a lei que criou a obrigação de prestar tal serviço à Nação, ela sim é normativa, pois insuscetível de precisão o rol daqueles que, durante a vigência da norma legal, ver-se-ão compelidos ao cumprimento de seu mandamento.

1.1.1. Tipos de Regulamentos

Os regulamentos, nos diversos sistemas jurídicos, podem ser de três ti- pos: os autônomos ou independentes, os delegados e os de execução. Os au- tônomos, encontráveis em certos países europeus, apresentam a característica de independerem de lei que os fundamente. Extraem sua validade diretamente da Constituição e são realizados pelo Executivo para a expressão de sua compe- tência sobre matérias não reservadas à lei. Inovam a ordem jurídica, pelo que equivalem, de certa forma, a uma lei baixada pela Administração. A propósi- to, vale lembrar aqui a exata lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: "os regulamentos independentes ou autônomos, na verdade, são verdadeiras leis, e assim chamados tão-somente porque emanados pelo Poder Executivo, pois não constituem desenvolvimento de qualquer lei ordinária, mas correspondem ao exercício da prerrogativa de legislar a ele reconhecida com base no Direito Constitucional. São, realmente, sancionados e promulgados em virtude de competência constitucional expressa, ou de costume constitucional, ou, ain- da, de construção do texto constitucional, que confere ao Poder Executivo a faculdade de legislar, isoladamente, sem a participação do Poder Legislativo, e competência alheia a qualquer lei ordinária da qual seja complemento" (Prin- cípios gerais de direito administrativo, Forense, p. 303).

Os regulamentos delegados ou autorizados são aqueles que desenvolvem a lei, agregando-lhe algum elemento que inova na ordem jurídica, baixados, contudo, em decorrência de habilitação legislativa. Nutrem estes regulamentos pontos de contato com a lei delegada. O traço diacrítico de ambos radica-se na amplitude da competência delegada. Se esta for ao ponto de incluir a habilita- ção para baixar a própria lei, só será possível, no nosso sistema, por meio de resolução do Congresso Nacional, satisfeitos, é óbvio, os princípios

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atinentes à delegação legislativa. Os regulamentos delegados, diversamente, pressupõem lei anterior, com fundamento na qual dão continuidade à elaboração normativa. Se forem por demais amplos os poderes deferidos pela lei, estar-se-á, na verda- de, diante de delegação legislativa implícita, vedada em nosso sistema por força da prevalência da separação de funções.

No nosso sistema jurídico-constitucional inexistem os regulamentos autô- nomos, a despeito de parte da doutrina, sem dúvida minoritária, insistir na possibilidade, entre nós, da edição de regulamentos independentes. A razão é a seguinte. O art. 84, IV, diz caber ao Presidente da República o editar decre- tos e regulamentos para fiel execução das leis. O art. 5.o II, por sua vez, reza que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Diante de tão inequívocos parâmetros, é perfeitamente lícito afirmar-se o caráter de execução dos nossos regulamentos, emanados em desenvolvi- mento da lei. Podem, entretanto, agregar elementos à norma legal, para tornar suas obrigações de mais fácil aplicação. São insuscetíveis, entretanto, de criar obrigações novas, sendo apenas aptos a desenvolver as existentes na lei. Eis porque serão sempre secundum legem sob pena de extravasamento ilegal de sua esfera de competência.

A atividade administrativa exerce-se, em conseqüência, por meio de atos de efeitos concretos e atos de efeitos genéricos. Estes integram a função nor- mativa do Estado, ao lado dos demais atos equiparáveis por seus efeitos às próprias leis. No seu aspecto material, pois, na particularidade do caráter ge- nérico e abstrato de suas disposições, a lei e o regulamento se assemelham. Cessam, contudo, aí suas afinidades. No mais, diferem profundamente ambas as espécies normativas, malgrado as dificuldades da doutrina em explicar, com rigor, as discrepâncias que as separam.

Do ponto de vista subjetivo, isto é, encarado do ângulo da autoridade com- petente para sua expedição, o regulamento é próprio do Chefe do Poder Execu- tivo, que o expede por via de decreto. Este é o ato típico daquela autoridade se bem que de caráter meramente formal. O seu conteúdo é que vai emprestar-lhe a sua verdadeira natureza. Se suas disposições forem de efeitos concretos, es- taremos diante de uma determinada categoria de decretos, correlacionada com a natureza de seus efeitos. Se, contudo, no seu bojo vier inserido um conjunto de disposições normativas, de decreto regulamentar se tratará.

2. ESTRUTURA DO PODER EXECUTIVO

2.1. Chefe de Governo e Chefe de Estado

Dentro do Poder Executivo é possível identificar a existência de dois papéis diferentes: o de chefe de Governo e o de chefe de Estado. Nos regimes presidencialistas como o nosso, essas duas funções aparecem reunidas no Presi- dente da República, que é, a um só tempo, chefe de Governo e de Estado. No parlamentarismo é mais sensível a diferença existente entre as duas figuras. Nesse sistema de governo, hoje mais ligado aos regimes monárquicos, o rei exerce a chefia (geralmente nominal e honorífica) do Estado, enquanto a che- fia do governo é exercida por um corpo de Ministros (o Gabinete), sob a che- fia de um deles (o Primeiro-Ministro). Na República parlamentarista, a figura do rei é substituída por um

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chefe de Estado eleito, geralmente, por um período relativamente longo, guardando suas funções bastante semelhança com as do monarca. A chefia do Estado consiste em representar a unidade estatal, colo- cando-se acima das funções e lutas políticas que aflijam a vida da nação em dado momento histórico. Espera-se, pois, do chefe de Estado uma atitude so- branceira em face dos conflitos, zelando tão-somente pela continuidade do Estado e a harmonia entre os seus Poderes. Daí ser o chefe de Estado irresponsá- vel, politicamente. Vale dizer, não presta contas de seus atos ao Legislativo, mas sim ao eleitorado, quando a eleição for a forma de sua designação.

Como bem observa Balladore Pallieri, sendo o chefe de Estado, nas mo- narquias, isento de responsabilidade.pelos seus atos, o Estado Moderno defe- riu as funções efetivas de chefia do Executivo a alguém responsável. O Pri- meiro-Ministro e seu Gabinete tornam-se, assim, responsáveis perante o Legislativo, pela conduta dos negócios do Estado. São eles que exercem as funções próprias de chefe de Governo, imprimindo as diretrizes políticas que deverão ser obedecidas pela burocracia que integra os quadros do Executivo. Vê-se, pois, existirem nestes dois tipos de cargos: aqueles colocados no ápice da pirâmide administrativa, criados pela própria Constituição e cujas funções são basicamente políticas, e aqueles outros situados abaixo dos cargos políti- cos, cuja criação é prevista pela legislação ordinária, e cujas funções são ad- ministrativas. O direito constitucional cuida tão-somente dos primeiros, fi- cando a cargo do direito administrativo os segundos.

2.1.1. Formas de Governo: Monarquia e República

A feição assumida pela figura do chefe de Estado leva-nos à identificação de duas formas, a muitos títulos diversas, de governo: a monarquia e a repú- blica. A primeira foi, até certo ponto, uma característica dos Estados europeus. A Revolução Francesa, que, sem dúvida, foi decisiva no que diz respeito à ori- gem do Estado de Direito, não exerceu, todavia, a mesma influência relativa- mente à forma republicana de Governo. Mesmo na França as idéias republicanas tiveram dificuldade em medrar. Basta ter-se em mente que os próprios quadros revolucionários deram origem ao Primeiro Império. O desenvolvimento de idéi- as democráticas, a ascensão econômica, cultural e política das massas proletá- rias levaram contudo à deposição das monarquias tradicionais, ou à sua evolu- ção para a monarquia parlamentarista, onde o rei reina, mas não governa. As principais características da monarquia, relativas ao chefe de Estado, são: a ascensão automática ao trono, sem que se verifiquem períodos de vacância ("The King never dies"); irresponsabilidade ("The King can do no wrong"), que se encontra, evidentemente, atenuada nas monarquias contemporâneas, sub- sistindo tão-somente na esfera penal, e não na civil, onde o Estado responde pelos danos; vitaliciedade, por força da qual, assumindo o trono, o monarca nele permanece sem limitação de tempo; e função honorifica, que leva o monar- ca a ser o chefe de Estado apenas com atribuições de representação, enquanto o governo é exercido por um organismo político, geralmente sob o sistema par- lamentar, deixando o rei completamente desvinculado e independente da luta política e das várias tendências que podem ser verificadas em seu país (cf. Balladore Pallieri, Diritto Costituzionalle, 8. ed., p. 105).

Nos regimes republicanos a chefia do Governo é exercida por um Presidente, normalmente eleito para um mandato com tempo estabelecido no ordenamento constitucional, mediante eleições diretas ou indiretas. No primeiro caso (elei- ções diretas) é indicado o chefe de Estado pelo sufrágio direto daqueles que a Constituição reconhece como

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eleitores. O sistema de eleição indireta pode obedecer a vários critérios. Nos Estados Unidos, o povo vota em eleitores presidenciais e não no candidato à Presidência; na Itália, o Presidente é esco- lhido pelo Congresso; no Brasil, eleito popularmente.

3. O PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO: OS MINISTROS DE ESTADO

Segundo o art. 76 da Constituição, o Poder Executivo, no Brasil, é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado. Bem ca- racterizado fica aí o sistema presidencialista. O Presidente da República é conjuntamente Chefe de Estado e de Governo. O art. 84 deixa claro o exercí- cio, por aquela autoridade, de atividades de uma e de outra categoria. o inc. II desse dispositivo evidencia a incontestável liderança política do Presidente quando diz competir-lhe, com o auxilio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal. Não há, pois, uma separação entre as fun- ções de representar e de governar, ambas cabendo ao supremo dignitário da Nação. É certo que está dito que o Presidente governa com o auxilio dos Ministros de Estado. Mas estes não são responsáveis perante o Legislativo, que não os pode destituir, como ocorre no parlamentarismo. Os Ministros, no nosso sistema presidencialista, são meros auxiliares do Presidente, por ele nomeados e demissíveis ad nutum, responsáveis pela direção da parcela da Administração Federal colocada sob sua competência. Cabe-lhes também referendar os atos do Presidente, quando, então, com cuja responsabilidade se solidarizam (art. 87, parágrafo único, I). Pontes de Miranda, a propósito desta incumbência que toca aos Ministros, assim se expressa: "A subscrição ou referendação dos atos do Presidente da República por todos, alguns ou, pelo menos, um de seus Ministros, é exigência constitucional. O ato não subscrito é ato incompleto: não entra no mundo jurídico. Não se trata de prática costumeira, nem de recomen- dação: mas de ius cogens. Há exceções oriundas da natureza das coisas: a renúncia e o pedido de licença, que são personalíssimos. Convém que frise- mos: o ato não subscrito não é nulo por infringente da Constituição: é ato do Presidente da República que se não juridiciza, isto é, não entra no mundo jurídico" (Comentários à Constituição de 1967, p. 366).

4. O CRIME DE RESPONSABILIDADE: O IMPEDIMENTO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Os ocupantes de altos cargos públicos do Estado estão sujeitos não só às sanções previstas para a prática de atos infringentes das leis penais do País, mas também a uma especial apenação que consiste na desinvestidura dos car- gos que ocupam, acompanhada ou não da proibição de vir a assumir novas funções públicas no futuro. Estas conseqüências são tidas por políticas e, em razão disso, os atos que as ensejam, designados crimes políticos. O processa- mento pela prática destes atos visa ao impedimento (impeachment do direito anglo-saxão) ou destituição do cargo da autoridade julgada. Daí não ser possí- vel processo dessa natureza contra agente público que, a qualquer título, tenha deixado de prover cargo público, ainda que tenha incidido na prática de crimes de responsabilidade durante o período em que desempenhou a função estatal.

O instituto do impeachment surgiu na Inglaterra, no fim da Idade Média. Originou-se da prática de a Câmara dos Comuns promover a acusação dos ministros do rei e a dos lordes julgá-los. Por razões compreensíveis, o impedi- mento foi perdendo sua razão de ser à medida que o sistema de governo foi evoluindo para o parlamentarismo. Neste, a noção de censura, que conduz à queda do Gabinete, veio a fazer-lhe as vezes (século XVII). A

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Constituição americana adotou o impeachment, com a particularidade, entretanto, de reser- vá-lo para os crimes políticos praticados tão-só por algumas autoridades, basi- camente os funcionários nomeados pelo Presidente, ficando fora de sua abrangência os deputados e senadores. O processo mais famoso registrado na história americana foi o de Andrew Johnson, em 1860, que conseguiu evitar o seu afastamento da Presidência pela restrita diferença de apenas um voto.

O art. 86 da Constituição divide o processo de impedimento em duas fa- ses. Na primeira, a Câmara dos Deputados limita-se, pela maioria de dois terços de seus membros, a declarar procedente a acusação. Esta pronúncia implica tão-só na processabilidade do Presidente (ou de Ministro de Estado, em crime conexo com o daquele). Não equivale a um prejulgamento do acusado, não significa que ele seja culpado. Indica, entretanto, que a Câmara considerou haver indícios e razoáveis provas dos atos imputados aos inculpados. Deliberou tam- bém que, levando em conta as conseqüências políticas do processamento do Presidente naquele momento, não encontrou razões de monta que tomassem preferível o arquivamento do processo, em atenção aos males maiores advindos de um julgamento, na ocasião, do Chefe Supremo da Nação. Sampaio Dória esclarece com maestria esta dualidade de apreciação pela Câmara Baixa: "Nes- ta fase, avultam dois atos da Câmara: 1.o) ser, ou não, a denúncia objeto de deliberação; e 2.o) proceder, ou não, a acusação da denúncia. O primeiro ato não é arbitrário. A Câmara dos Deputados, para haver, ou não, a denúncia como objeto de deliberação, tem de apreciar a gravidade dos fatos alegados e o valor das provas oferecidas. Se os fatos imputados e as razões que os ditaram são aqueles notórios, e estas sem defesa, seria injustificável não haver a denúncia por objeto de deliberação. O que "não se pode evitar é o exame do assunto". O segundo ato, porém, a declaração da procedência ou improcedência da acusa- ção, é discricionário. Não é o imperativo da lei o que decide. Mas a conveniên- cia aos interesses da nação, a oportunidade da deposição, ainda que merecida. Entre o mal da permanência no cargo de quem tanto mal causou e poderá repeti-lo, além do exemplo de impunidade, e o mal da deposição numa atmosfera social e política carregada de ódios, ainda que culpado o Presidente, poderá a Câmara dos Deputados isentá-lo do julgamento, dando por improcedente a acusação" (Comentários à Constituição de 1946, v. 3, p. 388 e 389).

O § 1.o do art. 86 afirma que, o Presidente ficará suspenso de suas fun- ções com a instauração do processo pelo Senado. Inicia-se aí a fase de sub- missão do Presidente ao veredicto daquela casa, desde que se trate de crime de responsabilidade. Se comum for o delito, o julgamento será efetuado pelo Supremo Tribunal Federal. Em qualquer caso, contudo, a decisão deverá advir dentro do prazo de cento e oitenta dias. Caso contrário, cessa o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.

O papel do Senado, ao apreciar a imputação ao acusado de atos atentatórios à Constituição e à lei, previstos de forma genérica no art. 85 e especificados em lei ordinária especial, deverá limitar-se à verificação da subsunção deles às hipóteses legais. É uma atividade, nesse sentido, eminentemente jurisdi- cional. Comprovados os fatos e estando estes em conformidade com os descritos na Constituição e nas leis, a condenação deverá ocorrer inexoravelmente. Não é mais a ocasião de fazer prevalecer critérios outros senão os exclusivamente jurídicos.

A doutrina controverte acerca da exata natureza do julgamento em decor- rência da prática de atos descritos como crimes de responsabilidade. Com efeito, não se identificam estes por inteiro com o julgamento devido ao cometimento de ilícitos penais.

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Assim é que, mesmo tendo sido sancionado com a destituição do cargo, pode, ainda, o incurso em crime de responsabilidade vir a ser objeto de condenação no juízo criminal, bastando para isso que o ato ensejador do impeachment seja também descrito pelas leis penais como antecedente de uma sanção. Em outras palavras, a condenação ao impedimento não elide os castigos próprios da lei criminal. Ademais, como já visto, a deposição do cargo por qualquer razão antes do julgamento torna este impossível por perda de seu objeto.

Pode-se dizer que os objetivos do impeachment são diversos dos da lei penal. Esta visa sobretudo à aplicação de uma medida punitiva, como instrumento a serviço de repressão ao crime. O processo de impedimento almeja antes de tudo a cessação de uma situação afrontosa à Constituição e às leis. A perma- nência de altos funcionários em cargos cujas competências, se mal exercidas, podem colocar em risco os princípios constitucionais e a própria estabilidade das instituições e a segurança da nação, dá nascimento à necessidade de uma medida também destinada a apeá-los do poder.

O crime de responsabilidade guarda de característica própria da jurisdi- ção a circunstância de ser apenas cabível dentro das hipóteses legais, se bem que os fatos delituosos, no impedimento, não estejam sujeitos a uma tipicidade tão rigorosa como aquela existente no direito penal. No mais, quanto aos seus objetivos, os do impedimento transcendem aos da repressão ao crime. Eles en- contram assento no próprio sistema de freios e contrapesos, segundo o qual nenhum dos poderes é por si só soberano. A medida grave e extremada do im- pedimento, dentro do sistema de separação de poderes do presidencialismo, radica-se na necessidade de dispor-se de medida eficaz voltada a pôr cobro a uma eventual situação de afronta e violência à Constituição.

5. ELEIÇÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

A Constituição, em seu art. 77, § 2.o, dispõe que para que um candidato alcance o cargo de Presidente da República terá de obter maioria absoluta dos votos. Isto não ocorrendo, far-se-á nova eleição, onde os dois candidatos mais votados no primeiro escrutínio concorrerão, num segundo turno, consideran- do-se eleito aquele que obtiver a maioria dos votos válidos.

São condições de elegibilidade para o cargo de Presidente da República: ter mais de trinta e cinco anos, ser brasileiro nato, estar registrado por partido e no gozo de seus direitos políticos (arts. 12, § 3.o, I, e 14, § 3.o, VI, a).

Substituirá o Presidente no caso de impedimento ou vacância, pela or- dem, o Vice-Presidente, o Presidente, da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado e o Presidente do Supremo Tribunal Federal.

O mandato dos Chefes do Executivo tem variado de duração, ora com quatro, ora com cinco anos de permanência no cargo pelos seus titulares. Antes do advento da Emenda Constitucional de revisão n. 5, de 7 de junho de 1994, o mandato era de cinco anos. O mandato do Presidente será de quatro anos, tendo início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao de sua eleição; toman- do posse em sessão conjunta do Congresso Nacional.

Recentemente uma nova Emenda foi incorporada ao Texto Constitucio- nal: a de n. 16, de 4 de junho de 1997. A referida emenda trata da reeleição do Presidente da

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República, dos Governadores e dos Prefeitos, que só poderão ser reeleitos para um único período subseqüente.

Em virtude da promulgação dessa emenda, instaurou-se no País uma discussão ferrenha acerca do instituto da reeleição. Ao nosso ver, a não-ree- leição pode eventualmente ter alguma sustentação, no caso de mandato de cinco anos, mas para a outra hipótese, a de quatro anos, de fato, impõe-se a possibilidade do eleito concorrer a um novo mandato para ter condições mí- nimas de impor uma política que atinja os objetivos definidos em campanha.

No entretanto, parece-nos que a reeleição é também impositiva por ou- tras razões. Nada mais democrático do que dar-se ao povo a possibilidade de julgar o seu governante pelo mandato que exerceu. Além dos mais, com rela- ção a este, o povo tem condições concretas de avaliação, uma vez que sofrera as conseqüências da sua aplicação. A opção torna-se, portanto, menos abstra- ta do que aquela composta por candidatos que muitas vezes não exerceram um cargo dessa monta.

O fato de estar no exercício de funções executivas não desequilibra a igualdade que deve reinar entre os candidatos, porque esta não é exclusiva- mente fonte de vantagens, mas, sem dúvida alguma, é raiz de não poucos desgastes perante a opinião pública.

Os candidatos que não exerceram cargo de Chefia do Executivo terão tal- vez mais dificuldade de despertar credibilidade na opinião pública, uma vez que não têm elementos para exibir como comprovação das suas qualidades. No entretanto, eles têm também pouco por que responder. Dessa situação ressai um equilíbrio indispensável para manter um caráter democrático do pleito.

Portanto, em boa hora chegou esta possibilidade de recandidatar-se ofe- recida ao Presidente e ao Vice-Presidente, com mais um e apenas um mandato consecutivo. O § 5.o deixa claro quem pode se beneficiar da recandidatura. Fica certo que tanto poderão fazê-los os Chefes dos Executivos nos três níveis - União, Estado (Distrito Federal) e Municípios - e seus vices que, embora não estejam contemplados neste parágrafo, surgirão no correr da mesma emenda sob comento. Mas estende-se também a pessoas que, pelo direito anterior, estariam impedidas de candidatarem-se no pleito subseqüente, ou seja, aque- las que tenham sucedido ou substituído o titular do cargo.

Cuida o art. 26 de fixarem-se as datas para a eleição dos governadores e de seus vices. No entanto, o artigo é importante porque mantém o disposto no art. 77 da atual Constituição, que dispõe sobre a fixação dos prazos para a eleição do Presidente e do seu Vice.

É importante consignar que a eleição do Presidente importará a do Vice- Presidente respectivo, nos termos do § 1.o do art. 77, impedindo assim o que já ocorreu no passado quando vices de partidos totalmente antagônicos im- portunavam o exercício da Presidência e tornavam difícil para o seu titular dele afastar-se.

De outra parte, mantém-se a exigência de maioria absoluta, regra de grande alcance, pois evita aquelas vitórias que são fruto, nem tanto do pres- tígio do candidato, mas sim da dispersão das forças contrárias. Os votos hão de ser válidos, o que exclui os em branco e os propriamente nulos. É neces- sário, pois, a maioria mais um dos votos que exprimam validamente a vontade do eleitor; não sendo considerada com vontade válida, a pura omissão ou, se preferir, o não-preenchimento da papeleta ou o acionamento do computador. Ambos

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são igualmente nulos, tanto para contagem do universo de votos como também para o benefício deste ou daquele candidato.

O não-atingimento da maioria absoluta implica a realização de novo pleito, nos termos do § 3.o do art. 77 da Constituição Federal. Se nesse período, é dizer, antes da realização do segundo turno, ocorrer morte, desistência ou impedimento do candidato, convocar-se-á, dentre os remanescentes, o de maior votação.

6. CONSELHO DA REPÚBLICA E CONSELHO DE DEFESA NACIONAL

Constam ainda do Capítulo do Poder Executivo estes dois Conselhos (arts. 89 a 91), ambos presididos pelo Presidente da República (art. 84, XVIII).

O primeiro, é composto pelo Vice-Presidente, o Presidente da Câmara, o Presidente do Senado, os líderes da maioria e da minoria da Câmara e do Se- nado, o Ministro da Justiça, seis cidadãos, brasileiros natos, maiores de trinta e cinco anos, sendo dois eleitos pelo Senado, dois pela Câmara e dois indicados pelo Presidente, todos com mandato de três anos, vedada a recondução. A sua função é de órgão auxiliar ao Presidente da República, cabendo-lhe pronunciar-se sobre: intervenção federal, estado de defesa, estado de sítio e sobre questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas.

O segundo, Conselho de Defesa Nacional, também é órgão consultivo do Presidente da República nos assuntos relativos à soberania nacional e à defesa do Estado democrático. São membros deste Conselho o Vice-Presidente, os Presidentes da Câmara e do Senado, o Ministro da Justiça, os Ministros Militares, o Ministro das Relações Exteriores e o Ministro do Planejamento.

É de competência deste órgão opinar sobre: guerra e paz, decretação de estado de sítio, defesa e intervenção federal; também lhe é atribuído propor a utilização de áreas indispensáveis à Segurança Nacional e de medidas volta- das a garantir a independência nacional e a defesa do Estado democrático.

CAPÍTULO IV DO PODER JUDICIÁRIO

SUMÁRIO: 1. Função jurisdicional. 1.1. Funções atípicas. 2. Estrutura do Poder Judiciário. 3. Garantias constitucionais da magistratura. 4. Vedações aos magis- trados. 5. Garantias do Poder Judiciário. 6. Supremo Tribunal Federal. 6.1. Com- posição. 6.2. Competência. 7. Superior Tribunal de Justiça. 7.1. Composição. 7.2. Competência.

1. FUNÇÃO JURISDICIONAL

Ao lado da função de legislar e administrar, o Estado exerce a função jurisdicional. Coincidindo com o próprio evolver da organização estatal, ela foi absorvendo o papel de dirimir as controvérsias que surgiam quando da aplica- ção das leis. Esta, com efeito, não se dá de forma espontânea e automática. Cumpre que os seus destinatários a elas se submetam, para o que faz-se mister que tenham uma correta inteligência do ordenamento

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jurídico assim como es- tejam dispostos a obedecer à sua vontade. Por ausência de quaisquer destas circunstâncias, vale dizer, da exata compreensão legal ou da disposição de se curvar aos seus ditames, surge uma situação de afronta e desafio ao sistema jurídico que este tem de debelar, para que sua eficácia não resulte comprometi- da. À função jurisdicional cabe este importante papel de fazer valer o ordena- mento jurídico, de forma coativa, toda vez em que seu cumprimento não se dê sem resistência. Ao próprio particular (ou até mesmo a pessoas jurídicas de direito público), o Estado subtraiu a faculdade de exercício de seus direitos pelas próprias mãos. O lesado tem de comparecer diante do Poder Judiciário, o qual, tomando conhecimento da controvérsia, se substitui à própria vontade das partes que foram impotentes para se autocomporem. O Estado, através de um de seus Poderes, dita, assim, de forma substitutiva à vontade das próprias partes, qual o direito que estas têm de cumprir. Vale notar, ademais, que a esta decla- ração do direito aplicável a um caso concreto há que se agregar ainda a definitividade da sua manifestação e a suscetibilidade de esta vir a ser executada coativamente. A lição de Arruda Alvim é lapidar a respeito:

"Podemos, assim, afirmar que função jurisdicional é aquela realizada pelo Poder Judiciário, tendo em vista aplicar a lei a uma hipótese controver- tida mediante processo regular, produzindo, afinal, coisa julgada, com o que substitui, definitivamente, a atividade e vontade das partes.

Evidentemente tem-se que distinguir a atividade jurisdicional da adminis- trativa e da legislativa. As duas últimas, especialmente a administrativa, con- sistem em atuação em conformidade com a lei, mas são nitidamente diversas da atividade jurisdicional, pois esta é atividade secundária ou substitutiva, ao passo que a administrativa é primária" (Curso de direito processual civil, Re- vista dos Tribunais, v. 1, p. 149).

1.1. Funções Atípicas

O Judiciário, além de sua função típica, que é jurisdicional, exerce fun- ções atípicas, quando administra e quando legisla. Administra, quando conce- de licença e férias aos seus membros e aos serventuários (art. 96, I, f); legisla, quando edita normas regimentais (art. 96, I, a).

2. ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO

A estrutura da justiça brasileira deve ser estudada levando-se em conta dois aspectos: de um lado, em decorrência da forma federal de Estado, a jus- tiça se divide em federal e estadual; de outro, em razão da competência outor- gada pela Constituição, temos a justiça comum e a justiça especializada. Tan- to a justiça federal quanto a estadual se bipartem em comum e especializada. A esta incumbe a prestação jurisdicional relativa às matérias: militar, eleitoral e trabalhista. A justiça comum é toda aquela remanescente da justiça especi- alizada. Não sendo especializada, é comum.

O órgão de cúpula da justiça brasileira é o Supremo Tribunal Federal.

Justiça federal comum - é exercida em primeiro grau de jurisdição pe- los juízes federais. Cada Estado, assim como o Distrito Federal, constituirá uma seção judiciária federal que terá por sede a respectiva Capital (CF, art. 110). A competência da justiça federal comum

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vem discriminada no art. 109 da Constituição Federal. Em segundo grau de jurisdição a justiça federal co- mum é exercida pelos Tribunais Regionais Federais, cuja composição e competên- cia estão previstas nos arts. 107 e 108 da Constituição Federal. Justiça federal especializada:

Justiça Militar - é exercida pelo Superior Tribunal Militar e pelos Tri- bunais e Juízes Militares instituídos por lei (CF, art. 122). À justiça militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei (CF, art. 124).

Estrutura do poder judiciário.

Supremo Tribunal Federal a) Superior Tribunal de Justiça (STJ); a1) Tribunal Regional; a1.1) Juízes Federais; a2) Tribunal de Justiça; a2.1) Juízes estaduais; b) Tribunal Superior do Trabalho; b1) Tribunal Regional do Trabalho; b1.1) Juntas de Conciliação e Julgamento; c1) Tribunal de Justiça Militar nos Estados (Corporação Maior que 20000) ou c2) Tribunal de Justiça (corporação menor que 20000); c) Conselhos de Justiça Militar; d) Superior Tribunal Militar; d1) Tribunais e juízes militares; e) Tribunal Superior Eleitoral; e1) Tribunal Regional Eleitoral; e1.1) Juízes Eleitorais.

Justiça Eleitoral - são órgãos da Justiça Eleitoral: o Tribunal Superior Eleitoral, os Tribunais Regionais Eleitorais, os Juízes Eleitorais e as Juntas Eleitorais (CF, art. 118). Na Capital de cada Estado, bem como no Distrito Federal, haverá um Tribunal Regional Eleitoral (CF, art. 120). A organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais ficará a cargo de lei complementar (CF, art. 121).

Justiça do Trabalho - compõe a justiça do trabalho: o Tribunal Superi- or do Trabalho, os Tribunais Regionais do Trabalho e as Juntas de Conciliação e Julgamento (CF, art. 111). Cada Estado e o Distrito Federal terá pelo menos um Tribunal Regional do Trabalho, ficando a cargo da lei instituir as Juntas de Conciliação e Julgamento. Nas comarcas onde estas não forem instituídas, a jurisdição será atribuída aos juízes de direito (CF, art. 112). A competência da Justiça do Trabalho está prevista no art. 114 da Constituição Federal.

Justiça Estadual Comum - é exercida em primeiro grau de jurisdição pelos juízes estaduais, inclusive pelos juizados especiais (CF, art. 98, I) e juízes de paz (CF, art. 98, II) e no segundo grau pelo Tribunal de Justiça ou de Alça- da. A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado. A lei de organização judiciária é de iniciativa do Tribunal de Justiça (art. 125, § 1 .o). Aos juízes e tribunais estaduais, no exercício da justiça comum, compete a aplicação da lei tanto estadual como federal. Cabe também aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual (art. 125, § 2.o).

Justiça Estadual Especializada - com relação à justiça estadual espe- cializada compete aos Estados a Justiça Militar, por força do art. 125, § 3.o, da Constituição Federal, que será exercida em primeiro grau pelo Conselho de Justiça e, em segundo, pelo Tribunal de Justiça ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo da Polícia Militar seja superior a vinte mil integrantes. A Justiça Militar estadual compete processar e julgar os po- liciais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei. Cabe ao Tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças (CF, art. 125, § 4.o).

3. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DA MAGISTRATURA

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Visam assegurar a independência dos magistrados. Estão definidos no art. 95 da Constituição Federal e são três: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos.

I - Vitaliciedade - o juiz adquire na primeira instância a vitaliciedade após dois anos de exercício, não podendo neste período perder o cargo senão por proposta do Tribunal a que estiver vinculado, adotada pelo voto de dois terços de seus membros efetivos e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado (art. 95, I).

II - Inamovibilidade - consiste no direito de permanência do juiz no cargo para o qual foi nomeado.

A regra é que o juiz só poderá ser removido quando aceitar promoção ou requerer sua remoção. A remoção compulsória só poderá ocorrer por motivo de interesse público, e voto de dois terços dos membros efetivos do Tribunal com- petente, assegurado ao juiz o direito de defesa (CF, art. 93, VIII).

III - Irredutibilidade - os vencimentos dos magistrados não podem ser diminuídos nem pelo Executivo, nem pelo Legislativo, nem pelo próprio Judiciário. Ficam sujeitos, todavia, aos impostos gerais, inclusive ao de renda e aos impostos extraordinários previstos no art. 95, III.

A aposentadoria dos magistrados pode ser:

Compulsória - aos setenta anos de idade ou por invalidez comprovada.

Facultativa ou voluntária - aos trinta anos de serviço, após cinco anos de exercício efetivo na Judicatura.

Em ambos os casos com vencimentos integrais (art. 93, VI).

4. VEDAÇÕES AOS MAGISTRADOS

Aos magistrados é vedado, por força do parágrafo único do art. 95:

"I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, sal- vo uma de magistério;

II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;

III - dedicar-se à atividade político-partidária".

Como se percebe, estas vedações têm por objetivo preservar a imparciali- dade dos magistrados.

5. GARANTIAS DO PODER JUDICIÁRIO

Além das garantias referentes aos magistrados, elencou o Texto Maior alguns preceitos que têm por escopo preservar a independência e autonomia do Poder Judiciário:

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1.o) autonomia administrativa, que consiste na possibilidade de auto-orga- nização de seus serviços, como prover suas secretarias, concursos e outros (art. 93, incisos e alíneas);

2.o) autonomia financeira, referente à capacidade de elaboração de orça- mento próprio (art. 99, § 1.o).

6. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal é o órgão máximo do Poder Judiciário. Tem sede na Capital Federal e jurisdição em todo o território nacional. Sua compe- tência precípua é a guarda da Constituição.

6.1. Composição

Compõe-se o Supremo Tribunal Federal de onze Ministros, escolhidos dentre brasileiros natos, no gozo de seus direitos políticos, com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. São nomeados pelo Presidente da República depois de apro- vada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.

Gozam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, como todos os de- mais juízes, das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (art. 95).

Da mesma forma como os demais juízes, estão impedidos de exercer outro cargo ou função, salvo uma de magistério, de receber a qualquer título ou pretexto custas ou participação em processo e de exercer atividade político-partidária.

6.2. Competência

O Supremo Tribunal Federal tem competência originária e recursal. Esta se divide em ordinária e extraordinária.

Competência originária - compete-lhe originariamente processar e julgar as causas arroladas no art. 102, I, a a q. Dentre elas, destacam-se: o controle da constitucionalidade por ação ou omissão (art. 102, I, a); a apreciação do mandado de injunção quando a elaboração da norma regulamentadora for atri- buição do Presidente da República, do Congresso Nacional, de suas Casas e Mesas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores ou do próprio Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, q); julgar as altas autoridades nas infrações penais comuns (art. 102, I, b).

Competência recursal - em grau de recurso compete-lhe julgar: a) or- dinariamente: o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção, decididos em única instância pelos Tribunais Superio- res, se denegatória da decisão (art. 102, II, a); o crime político (art. 102, II, b); b) extraordinariamente: as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida for contrária à Constituição (art. 102, III, a, b e c).

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7. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O Superior Tribunal de Justiça é novidade introduzida pela Constituição de 1988. É órgão de cúpula da Justiça dos Estados e da Justiça Federal não especializada.

7.1. Composição

Compõe-se de, no mínimo, trinta e três ministros nomeados pelo Presi- dente da República, dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal.

A escolha processar-se-á da seguinte forma: um terço dentre juízes dos Tribunais Regionais Federais e um terço dentre desembargadores dos Tribunais de Justiça, indicados em lista tríplice elaborada pelo próprio Tribunal. O terço restante, em partes iguais, dentre advogados e membros do Ministério Público Federal, Estadual e do Distrito Federal, que tenham mais de dez anos de efetiva atividade profissional. A escolha é feita alternadamente.

7.2. Competência

A competência do Superior Tribunal de Justiça está prevista no art. 105, I, II e III, da Constituição Federal. Compete-lhe: a) originariamente, processar e julgar crimes comuns dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nos crimes comuns e de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais; os mandados de segurança e os habeas data contra ato de Ministro de Estado ou do próprio Tribunal; os habeas corpus, nos casos previstos na Constituição (art. 105,I, c); os conflitos de competência entre quaisquer tribunais etc.; b) em recurso ordinário, julgar os habeas corpus e os mandados de segurança decididos em única e última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal, quando a decisão for denegatória; as causas em que forem partes Estado estrangeiro ou organis- mo internacional, de um lado, e, de outro, Município ou pessoa residente ou domiciliada no País; c) em recurso especial, quando a decisão recorrida: con- trariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal; der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja dado outro tribunal.

SEÇÃO i DO CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

SUMÁRIO: 1. Introdução. 1.1. Fundamento e hierarquia das normas jurídicas. 1.2. Inexistência da lei inconstitucional. 1.3. Competência para aferir a valida- de constitucional da norma de direito. 1.4. A especial validade assumida pelas leis inconstitucionais e o processo especial para a sua revogação. 1.5. Conclu- sões. 2. Pressupostos do controle da

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constitucionalidade das leis. 2.1. Adequa- ção das leis à Constituição e distinção entre leis constitucionais e leis ordinári- as. 2.2. Processo especial de elaboração das leis constitucionais: rigidez constitu- cional. 2.3. Órgão encarregado do controle da constitucionalidade. 2.4. Impos- sibilidade do exercício do controle da constitucionalidade pelo Poder Legislativo. 3. Sistemas de controle da constitucionalidade das leis. 3.1. Limites básicos inerentes a qualquer sistema eficaz de controle da elaboração legislativa. 3.2. Sistema de controle político. 3.3. Sistema de controle judicial. 3.4. Vias de de- fesa e de ação. 4. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Bra- sil. 4.1. Constituição de 1824: inexistência do controle. 4.2. Constituição de 1891: introdução do controle. 4.3. Constituição de 1934: aperfeiçoamento do sistema. 4.4. Constituição de 1937: retrocesso. 4.5. Constituição de 1946. 4.6. Emenda Constitucional n. 16, de 1965: plenitude do sistema. 4.7. Constituição de 1967 e Emenda Constitucional n. 1, de 1969. 5. O controle da constitucionalidade na nova ordem jurídica. 6. Diferentes tipos de inconstitucionalidade. 7. O controle no direito positivo. 7.1. Inconstitu- cionalidade por ação. 7.2. Inconstitucionalidade por omissão. 7.3. Legitimida- de para propor ação direta de inconstitucionalidade. 7.4. Papel do Procurador- Geral da República e do Advogado-Geral da União. 7.5. Via de exceção ou defesa. 8. Ação declaratória de constitucionalidade. 8.1. Efeito vinculante. 9. Controle da constitucionalidade em nível estadual. 9.1. Legitimação para agir.

1. INTRODUÇÃO

1.1. Fundamento e Hierarquia das Normas Jurídicas

As normas de direito encontram sempre seu fundamento em outras nor- mas jurídicas. Encadeiam-se de tal sorte a dar origem a um complexo sistema normativo, fora do qual não podemos imaginar nenhuma regra de direito: ou bem ela se coloca dentro do sistema, dele passando a retirar sua força obrigatória, ou permanece fora do referido sistema, caso em que deixa de existir como regra de direito. Diante, pois, de qualquer relação jurídica, um contrato, por exemplo, que não deixa de ser uma norma pelo fato de regular uma situação concreta, podemos indagar: Por que existe em face do direito? O que o torna relevante juridicamente? Qual fato que o subtrai às relações ignoradas pelo direito, para trazê-lo para dentro do universo normativo, ao qual o Poder Pú- blico empresta sua força coercitiva? O contrato constitui norma entre as par- tes que o celebraram em razão da êxistência de uma outra norma que diz que os contratos devem ser cumpridos, sob pena de sanção.

1. Neste sentido é a lição de Hans Kelsen ao afirmar que "o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma" (Teoria pura do direito, trad. João Baptista Machado, Arménio Amado Ed., Sucessor, Coimbra, 1962, v. 2, p. 2). Do mesmo modo, ensina Recaséns Siches que "una norma vale, porque y en tanto que fué establecida de acuerdo con lo dispuesto por otra norma superior" (Estudios de filosofia del derecho, Barcelona, 1936, p. 154).

2. Cf. Juan Manuel Teeran, Filosofia del derecho, 1952, p. 112.

Em razão do exposto, decorre que as normas jurídicas apresentam-se hie- rarquizadas dentro do sistema. O Prof. Goffredo da Silva Telles Júnior, ao tratar da hierarquia das normas jurídicas, conclui: "Desde as simples normas con- tratuais, estabelecidas entre

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particulares, até a Constituição Nacional, forma-se, desta maneira, uma autêntica pirâmide jurídica, na qual a juridicidade de cada norma é haurida da juridicidade da norma que a suspende". Aquelas normas que fundam outras normas ganham uma posição de superioridade, de preemi- nência, resultando no fato de as normas subordinadas, as que delas tiram seu fundamento, não as poderem contrariar: as normas inferiores têm que estar em consonância com as superiores. Se tal não ocorre, elas deixam de possuir va- lidade em face do ordenamento jurídico. Se é este que diz qual a porta que dá ingresso no seu mundo, no universo do direito, algo que pretenda nele ingressar por uma via transversa simplesmente não terá êxito. O direito continuará a ignorá-lo, a tê-lo como estranho ao seu sistema, negando-lhe em conseqüência o regime próprio das normas jurídicas. Uma norma inválida é uma contradição, visto dar a idéia de que ela existe. Mas nem mesmo a existência lhe é conferida, porque desrespeitante dos princípios estabelecidos pelo próprio direito para a sua cria- ção. O direito não se limita a regular os comportamentos humanos. Ele fixa, num momento, ao menos logicamente, anterior, quais são as normas que podem pretender pautar esses comportamentos, que requisitos elas devem preencher, a que processo devem submeter-se para que possam por ele ser reconhecidas.

3. Filosofia do direito, São Paulo, Max Limonad, v. 2, p. 171.

4. Kelsen, sobre a matéria, diz-nos que: "Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de considerar-se como estando de harmonia com a norma do escalão superior" (Teoria, Cit., p. 33-4).

A invalidade de qualquer ato jurídico traduz-se numa inaptidão para pro- duzir efeitos de direito, porque não foi produzido quer no que diga respeito à sua forma, quer no que se refira ao seu conteúdo, segundo os ditames fixados pela norma superior. Ter validade jurídica significa existir perante o direito, ser por ele tido em linha de conta, dispor de uma posição no seu sistema, vincular-se, enfim, às demais normas. A invalidade jurídicà coincide com a inexistência de direito: com o nada jurídico, com a ausência de efeitos, com a nulidade.

5. Miguel Reale, analisando o pensamento de Kelsen, ao explicar a validade da ordem jurídica positiva indaga: "Por que vale, então, a norma jurídica? Pelos seus caracteres formais, porque nascem obedecendo a um método apropriado, a uma técnica especial que está de acordo com a totalidade do sistema, isto é, porque é referida - através de sucessivas "referibilidades" - à norma fundamental hipotética" (Fundamentos do direito, Revista dos Tribunais, 1940, p. 165).

1.2. Inexistência da Lei Inconstitucional

A inconstitucionalidade de uma lei, de um ato executivo ou jurisdicional, é um caso particular de invalidade dos atos jurídicos em geral. Particulariza-se por ocorrer na espécie um conflito com a própria norma constitucional. Ao as- cendermos a escala das normas jurídicas, deparamos num dado momento com um conjunto de normas que, ao contrário das demais, não vão buscar seu fun- damento jurídico em outras regras de direito; fundam-se em si mesmas. São as normas constitucionais. Elas fornecem os pressupostos mínimos para a existên- cia do ordenamento jurídico. Criam os órgãos de cúpula do Estado,

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entre eles aquele encarregado da própria elaboração legislativa. Fixam o processo a que essa elaboração deverá obedecer, e fixam, ainda, por vezes, um conteúdo míni- mo para as leis a serem elaboradas (quando consagram direitos individuais, p. ex., nada mais estão fazendo do que determinar um conteúdo negativo para as futuras leis: não poderão conter matéria que infrinja os ditos direitos). A inconstitucionalidade de uma lei é, pois, a circunstância de uma determinada norma infringir a Constituição, quer quanto ao processo a ser seguido pela ela- boração legislativa, quer pelo fato de, embora tendo a norma respeitado a forma de criação da lei, desrespeitar a Constituição quanto ao conteúdo adotado.

6. A respeito, afirma Teeran que: "En su acepción jurídica, la Constitución es concebida como la disposición o disposiciones jurídicas fundamentales y últimas" (Filosofía, cit., p. 155).

Segundo a técnica jurídica, esta lei inconstitucional é inexistente. Encara- da sob o ângulo dos princípios informativos da criação das normas de direito, só podemos afirmar a existência de leis constitucionais. Isso porque, ou ela foi produzida em conformidade com a Constituição, que é quem diz o que é direito em um determinado sistema, ou foi gerada em dissonância com o prescrito pela norma constitucional, e neste caso não pode pretender ser lei. A afirmação, segundo sempre o ponto de vista da técnica jurídica, da possibilidade de exis- tência de leis inconstitucionais é contraditória. Ao mesmo tempo em que se admite que só adquire a condição de lei o que for elaborado em conformidade com a norma constitucional, por outro lado admite-se que algo, embora pade- cendo do vício gravíssimo de inconstitucionalidade, em razão da infringência do Texto Maior, ainda assim, contudo, esse algo existe. Com vistas unicamente à teoria da criação do direito, ou a lei é constitucional para que possa existir, ou, em caso contrário, não se reveste nem mesmo da condição de lei, sendo despiciendo o afirmar-se se é constitucional ou não. Pelo simples fato de ser lei, infere-se que se trata de lei constitucional, a única existente. Em resumo: em nome do princípio da validade da norma em função da sua adequação à norma hierárqui- ca superior, conclui-se que toda norma infringente da Constituição é nula, írrita, inválida, inexistente.

7. Cf. Hans Kelsen, Teoria, cit., p. 149.

Ocorre, entretanto, que o direito não pode ser considerado unicamente como técnica pura, desvinculado das injunções a que tem de submeter-se no contato da realidade social que pretende regular. Se pudéssemos compreen- der o direito somente como técnica abstrata, não há dúvida de que o problema da constitucionalidade das leis estaria resolvido pela adoção do princípio acima concluído. Pelo único motivo de sua inadequação com a norma fundamental, a norma estaria banida do ordenamento jurídico, deixando de obrigar a quem quer que seja. O seu simples confronto com a Constituição permitiria atestar a sua existência ou não no ordenamento jurídico, visto que os princípios da ciênciajurídica seriam sempre suficientes para atingir uma conclusão afirmativa ou negativa, não se admitindo uma conclusão intermediária, isto é, a exis- tência de dúvida no caso concreto em exame. A interpretação do direito não permite áreas cinzentas. A correta aplicação dos princípios fornecidos pela hermenêutica permitiria chegar-se sempre a uma posição conclusiva sobre o enquadramento ou não da norma dentro do sistema.

1.3. Competência para Aferir a Validade Constitucional da Norma de Direito

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Mas indaga-se: Qual o órgão competente para aferir a validade constitucional da norma? A rigor poder-se-ia admitir Constituições que atribuíssem essa relevantíssima questão a qualquer um sujeito ao seu ordenamento, quer se tra- tasse de particular, quer de pessoa de direito público. Seria essa solução mais consentânea com o direito, ao menos nos países sujeitos ao regime constitucio- nal, porque, como já visto, a lei infratora das normas constitucionais não tem razão para ser aplicada. O espírito do sistema a bane, impede que tenha eficá- cia, justamente em nome do prestígio do Texto Constitucional, que é dotado de primazia e superioridade. Assim, nada mais razoável que todo aquele que se visse colhido por lei dissonante dos ditames da Lei Magna a descumprisse. O Texto Constitucional poderia consagrar expressamente mesmo essa faculdade deferida a todos de examinar a adequação da norma à Constituição e de descumpri-la em caso de concluir pela negativa. Tal sistema é inviável, nunca tendo sido adotado em parte alguma, por equivaler na prática à supressão quase que total da eficácia própria da lei. Diante da opinião de ocorrência de inconstitucionalidade da parte daquele a quem a lei se dirige, o Poder Público se veria na verdade na contingência de demonstrar o contrário. Tal situação não permitiria ao direito cumprir a sua eminente função de garantidor da ordem, da paz, da tranqüilida- de, que se expressa na presunção de legitimidade de todo ato público em geral.

8. Ensina Kelsen que: "Se a Constituição conferisse a toda e qualquer pessoa competência para decidir esta questão, dificilmente poderia surgir uma lei que vinculasse os súditos do direito e os órgãos jurídicos. Devendo evitar-se uma tal situação, a Constituição apenas pode conferir com- petência para tal a um determinado órgão jurídico" (Teoria, cit., p. 150).

Ao conferir-se a qualquer um a competência de declarar uma lei inconsti- tucional, como escusa para o seu descumprimento, chegaríamos ao absurdo de ver o Executivo deixar de cobrar tributos, de efetuar prisões, de interditar estabelecimentos, toda vez que reputasse a lei como contrária à Constituição. Assistiríamos, por outro lado, ao particular resistir a balas à ordem de prisão emanada de autoridade, derrubar obstáculos ao trânsito em certas vias etc., toda vez, também, em que, segundo seu critério subjetivo, as medidas do Poder Público estivessem escoradas em leis inexistentes, por ferirem a Constituição, embora emanadas do Poder criado pela Constituição com o fim de fazer nor- mas de direito. Ao direito, por sua própria definição, incumbe regular eficaz- mente a vida social. Em nome do princípio da efetividade, ele recusa autoridade a qualquer um para descumprir suas disposições, em nome de eventual in- constitucionalidade atingindo a referida norma. O direito empresta sua força coativa a tudo aquilo que provém, como pretensão de lei, do órgão específico criado para sua produção pela própria Constituição. A natureza imperativa do direito, sua vocação à regulação eficaz dos comportamentos humanos, seu fundamento na necessidade de harmonizar os conflitos de interesses, de fazer prevalecer a ordem e a segurança, e evitar o caos, fazem com que ele acolha como regra jurídica válida toda aquela que reúna características mínimas, tais como a pretensão de ser uma lei e ter provindo do órgão competente. Estes atributos da norma são suficientes para que se insira no ordenamento. Ela e por enquanto constitucional. Por força da necessidade de ser efetivo, o direito passa por cima do princípio que a técnica jurídica impõe de somente acolher como norma jurídica aquela adotada segundo o disposto na norma superior, tanto do ponto de vista formal como sob o aspecto material ou substancial.

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1.4. A Especial Validade Assumida pelas Leis Inconstitucionais e o Processo Especial para a sua Revogação

O princípio da formação do direito por graus, a hierarquização das nor- mas jurídicas e o surgimento da chamadapirâmide legal, a busca do fundamento de qualquer norma naquela que lhe é imediatamente superior, cede em con- fronto com a inarredável necessidade de que, sob pretexto de respeitar-se a técnica jurídica, implante-se e instaure-se a anarquia social. Mas teria o direi- to, ao embate dessa necessidade de contemporização de dois princípios antagôni- cos, perdido sua harmonia, sua coerência interna? Estaria ele emprestando às normas produzidas em desconformidade com a Constituição os atributos de serem ao mesmo tempo válidas e inválidas, produtoras de efeitos e carentes de eficácia? De maneira nenhuma. O que ocorre é a especial validade assumi- da pelas leis infringentes do Texto Constitucional. Enquanto as leis constitucionais somente perdem a sua validade pelo surgimento de nova lei, que as revogue, a lei inconstitucional arca com o ônus de um processo específico de invali- dação, qual seja, o de ver a sua invalidade declarada por outro órgão, diferen- te daquele que a produziu. Em outras palavras, perderá a lei viciada a sua eficácia, na conformidade de um processo previsto pela própria Constituição para anular as normas que a desrespeitem. Surge daí o problema de quem exercitará o controle da constitucionalidade das leis e sob que forma. Desde que, como visto, é inviável a solução da delegação dessa competência a todos aqueles atingidos pelas disposições normativas inconstitucionais, urge que as Constituições prevejam qual o órgão competente para tal, adotando um dos já existentes ou mesmo criando um com a finalidade específica de controlar a adequação de cada norma aos mandamentos da Lei Maior.

9. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, com base em Kelsen, explica-nos que: "O ato incons- titucional seria, pois, aquele suscetível de revogação através de um processo especial, previsto explícita ou implicitamente pela Constituição. Até sua revogação seria válida, embora sua anulação tenha efeito retroativo" (Curso de direito constitucional, São Paulo, Saraiva, 1971, p. 31-2).

1.5. Conclusões

Por enquanto, cumpre apenas examinarmos que conclusões podem ser tiradas dos princípios firmados: a) o da validade da norma em função de sua adequação à norma hierárquica superior; b) o da presunção de legitimidade de toda norma, em nome da segurança e estabilidade das relações reguladas pelo direito.

A primeira conclusão é a de que, toda vez em que não houver desrespeito ao segundo princípio, pode-se, em nome do primeiro, desobedecer à lei in- constitucional. Pelo contrário, em nome do segundo princípio, nunca se pode desobedecer à lei inconstitucional, quando sua desobediência implicar sua trans- gressão. A conclusão extraída permite retirar respostas para tormentosas ques- tões colocadas pela incerteza de saber em que circunstâncias é de admitir-se o descumprimento da lei pelo seu destinatário, por julgá-la afrontadora da Magna Carta. Assim explica-se porque, por exemplo, o contribuinte pode, ainda que por sua conta e risco, deixar de pagar um tributo que repute indevido, por inconstitucional. É certo que a eficácia da norma tida subjetivamente pelo con- tribuinte como inconstitucional não fica por isso paralisada. A Administração poderá promover o competente ajuizamento da ação executiva, colimando a satisfação de sua pretensão contrariada. Fica, entretanto, reservada ao particu- lar a sua defesa, consubstanciada justamente na alegação da

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falta de existência constitucional da pretensa norma jurídica autorizadora da arrecadação do tribu- to questionado. O que é importante, todavia, notar é o fato de ter-se possibilita- do ao insurgente o não-cumprimento da obrigação que lhe foi imposta, o desco- nhecimento da pretensão do fisco, até o pronunciamento do órgão encarregado do exame da constitucionalidade das leis, que entre nós, sem nenhuma novida- de, é o Poder Judiciário. Exemplificando agora a segunda parte da conclusão extraída, temos como certo que a ninguém é permitido afrontar, derrubando-a, uma barreira colocada pelo Poder Público na estrada, em cumprimento a uma existente lei proibitiva, não importando em nada a opinião que o autor da deso- bediência faça a respeito da constitucionalidade da dita lei. A Administração será facultado tomar todas as medidas de caráter executório para tornar efetiva a sua pretensão, antes mesmo que o órgão encarregado do controle da cons- titucionalidade tenha se manifestado sobre a questão. O segundo princípio so- breleva-se ao primeiro, a ponto de torná-lo insubsistente em face da impostergável necessidade da manutenção da ordem pública. Os exemplos poderiam ser cita- dos em abundância. Limitar-nos-emos, entretanto, a apenas mais um. Um indi- víduo, submetido a ordem de prisão por autoridade competente, não pode resis- tir, valendo-se da violência, à obrigação que lhe é imposta, ainda que manifes- tamente inconstitucional. Poderá valer-se de remédios jurídicos apropriados pela eventual lesão de seus direitos, em face da inconstitucionalidade da lei em que se fundava a autoridade. Mas isso em nada invalida o fato de ter antes se subme- tido à pretensão, independentemente de pronúncia do Judiciário sobre a matéria.

2. PRESSUPOSTOS DO CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

2.1. Adequação das Leis à Constituição e Distinção entre Leis Constitucionais e Leis Ordínárias

O controle da constitucionalidade das leis consiste no exame da adequação das mesmas à Constituição, tanto de um ponto de vista formal quanto material, para o efeito de recusar-se obediência a seu mandamento, ou mesmo para o efeito de declarar-lhes a nulidade. Há, portanto, a possibilidade do controle exercido por aquele a quem a norma é dirigida, como também por órgãos encarregados de exercer tal função pelo Texto Constitucional, com a finalidade de subtrair à sua força obrigatória todos aqueles que integram o mesmo sistema jurídico.

O que não padece dúvida é a absoluta necessidade de coexistirem como realidades autônomas as normas controladas e o padrão em função do qual elas vão ser aferidas, isto é, as leis ordinárias e as leis constitucionais". Isso porque, se em algum momento elas deixarem de existir com características próprias que as apartem entre si, desaparecida estará a possibilidade de qualquer controle ou exame da constitucionalidade das leis. Niveladas juridicamente, não há mais que falar em verificação da adequação de umas às outras, processo que implica a existência de superioridade de umas em relação às outras, relação essa extinta pela ocorrida nivelação.

10. J. Brandão Cavalcanti entende que "o processo clássico de controle se subordina a dois prin- cípios essenciais: "Primeiro, à necessidade de uma norma constitucional, isto é, à própria existência de uma Constituição. Segundo, à idéia de que existe uma hierarquia

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de atos e normas, a menor na es- cala hierárquica se subordinando à maior"" (Do controle de constitucionalidade, Forense, 1966, p. 10).

Pode-se argumentar, entretanto, que leis constitucionais e leis ordinárias jamais se confundiram. Da sua distinção tiveram conhecimento até mesmo os antigos hebreus, assim como os atenienses. É certo, não há dúvida, que o co- nhecimento de uma certa diferença entre leis ordinárias e constitucionais é muito antigo. Entretanto, a distinção identificada, então, entre leis comuns e leis funda- mentais, era baseada num critério estritamente material: as últimas eram relevantes para a própria estrutura do Estado, para a feição assumida pela sociedade polí- tica; as primeiras não atingiam, ainda que modificadas, o perfil da mesma cole- tividade. O critério elevado a discrime entre as referidas normas era de natureza substancial ou material: tratava-se de saber se a matéria ou objeto da norma era a estruturação do Estado, a estruturação de seus órgãos principais, o regime de governo, caso em que se revestiam da qualidade pouco precisa ainda - de constitucionais. Caso contrário, caíam na vala comum das leis ordinárias.

Durante o período em que inexistiu uma distinção formal entre lei consti- tucional e lei ordinária, não foi possível desenvolver um sistema de controle da constitucionalidade. As categorias jurídicas são fundadas num feixe de regras próprias, num regime normativo próprio, ou então não têm razão de ser. Chamar-se a umas leis de constitucionais e a outras de ordinárias e ao depois submetê-las, ambas, ao mesmo tratamento jurídico equivale a não distinguir coisa alguma". O controle da constitucionalidade somente foi possível quando se fez corresponder à maior importância das leis constitucionais para a estruturação do Estado uma superioridade destas sobre as demais. Somente após a distinção formal entre lei constitucional e lei ordinária foi que elas se tornaram juridicamente diferentes.

11. Sobre as disposiçóes constitucionais, diz-nos Loureiro Júnior, que "se pudessem ser atin- gidas de qualquer maneira, pelo legislador ordinário, através do processo comum de elaboração legislativa, não se diferenciariam das demais nem as sobrepujariam em força" (O controle da constitucionalidade das leis, Max Limonad, 1957, p. 63-4).

2.2. Processo Especial de Elaboração das Leis Constitucionais: Rigidez Constitucional

Consectário essencial da superioridade que se atribuiu às normas constitu- cionais sobre as demais foi a prescrição de um processo especial para sua elabo- ração. Essa circunstância de serem as leis constitucionais elaboradas segundo um processo mais dificultoso que aquele previsto para as leis comuns constitui a denominada rigidez constitucional. Antepõe-se à flexibilidade constitucional, que vem a ser a característica de certas Constituições poderem ser modificadas por leis elaboradas de acordo com um processo idêntico ao das leis ordinárias. Dada a realidade formalística do direito, urge que as duas categorias normativas, constitucional e ordinária, se diferenciem não só pelo regime privilegiado da primeira, que lhe confere o grau máximo, na pirâmide jurídica, mas também por aspectos formais que denunciem quando se está em presença de uma ou de outra. E é evidente que essa diferenciação apenas pode ocorrer no sentido de uma dificultação do processo legislativo, isto é; que ele venha a exigir requisitos não previstos para a produção de uma lei comum, porque só então se pode justificar juridicamente a superioridade que lhe é conferida pelo ordenamento jurídico. Se não ocorresse a necessidade de serem acrescidos novos requisitos às exigências constitucionalmente previstas para o surgimento de uma lei co-

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mum, toda vez que estivéssemos diante de uma lei ordinária, poderíamos pre- tender elevá-la ao nível de constitucional, sem que fosse possível opor-se um motivo em contrário.

12. Recaséns Siches afirma que: "La Constitución puede establecer una diferencia de rango o grado entre sus normas y las leyes ordinarias ulteriores, en cuanto que determine que las modificaciones o enmendas de la misma deban ser elaboradas siguiendo un procedimiento diverso de la legislación ordinaria, esto es, que para la reforma de la constitución serán precisos requisitos especiales, no requeridos para el establecimiento de las demás leyes corrientes" (Estudios, cit., p. 166).

2.3. Órgão Encarregado do Controle da Constitucionalidade

Um conjunto de normas produzidas segundo um processo especial, corpo- rificado em um documento escrito, constitui o requisito mínimo para a forma- lização da diferença entre o direito constitucional e o direito infraconstitucio- nal. Mas, para que se possa falar em controle da constitucionalidade, é necessária, além desse requisito, isto é, a existência de uma Constituição rígida, a exis- tência de um órgão com a função específica de exercer tal controle.

A designação do órgão encarregado da função controladora pode vir feita expressamente no Texto Constitucional. Ocorrendo, entretanto, a omis- são deste, dever-se-á entender que a Constituição está atribuindo o grave en- cargo ao Poder Judiciário. A função de órgão controlador da constitucionalidade resulta então da própria natureza da atividade do Poder judicante do Estado, que traria ínsita em si a aplicação das normas jurídicas segundo a sua hierar- quia. Em conseqüência, a negativa de aplicação de um determinado preceito de lei, por afrontoso à Constituição, estaria fundada na competência genérica do Poder Judiciário, de órgão aplicador do direito.

De qualquer maneira, expressa ou implicitamente, é indispensável a deter- minação constitucional do órgão encarregado do exame da constitucionalida- de das normas. Admitir-se que em dado sistema nenhum órgão goza do direito de fiscalizar o cumprimento da Constituição equivale a pôr em xeque a pro- pria existência da Constituição. A que ficaria esta reduzida sem os meios de fazer valer a sua supremacia, que constitui sua própria razão de ser, em face das demais normas jurídicas?

Vê-se, pelo exposto, a íntima ligação existente entre Constituição formal, rígida, de um lado, e, de outro, o controle da constitucionalidade das leis. Se a ocorrência de uma Constituição com as características já mencionadas é pres- suposto da existência do controle da constitucionalidade, não é menos verdade que este mesmo controle é também pressuposto de uma Constituição rígida.

2.4. Impossibilidade do Exercício do Controle da Constitucionalidade pelo Poder Legislativo

Haveria, entretanto, um órgão dentro do sistema constitucional que, se incumbido de exercer a guarda da Constituição, não satisfaria o requisito para a existência de mecanismo eficazmente protetor da Lei Maior. Esse órgão é o próprio Legislativo. A acumulação em um mesmo organismo das funções de, por um lado, fazer leis em cumprimento ao disposto na Carta Magna e, de outro, dizer em última instância se a lei

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elaborada está, ou não, afinada com o Código Supremo, nulifica, despe de eficácia o mecanismo controlador. É evidente que o Poder Legislativo apenas aprovará as leis que reputa constitucio- nais. Manifesto contra-senso seria a declaração de inconstitucionalidade, fei- ta pelo Legislativo, em seguida à sua aprovação. Toda lei produzida por um Legislativo que acumulasse a função de órgão controlador seria, em última instância, constitucional, mesmd que contrária à Constituição, pois a produ- ção de uma norma nessas condições equivaleria à reforma do Texto Maior.

13. Para Alfredo Buzaid: "O poder de decretar a inconstitucionalidade das leis, no Brasil, com- pete praticamente ao Judiciário. Não o pode exercer o Legislativo, porque lhe é vedado ser juiz em causa própria; aliás a sua função consiste em elaborar ou revogar leis, não em apreciar a sua validade" (Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, Saraiva, 1958, p. 41).

3. SISTEMAS DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

3.1. Limites Básicos Inerentes a Qualquer Sistema Eficaz de Controle da Elaboração Legislativa

Tendo-se como certa a existência indispensável de um órgão encarrega- do do controle da feitura das leis, resulta claro, entretanto, que poderá variar de um regime constitucional para outro a designação desse órgão, dando as- sim lugar a diferentes sistemas de controle da constitucionalidade das leis.

Quaisquer que sejam as variações logicamente concebíveis, não enseja dúvida que deverão ocorrer dentro de certos parâmetros além dos quais o próprio sistema de controle deixa de existir. Essas fronteiras delimitadoras da concepção de qualquer sistema eficaz de fiscalização da elaboração legislativa são basicamente as seguintes: a) a existência de um órgão constitucionalmen- te designado para desempenho dessa função; b) que o órgão referido não seja o próprio Legislativo; c) que faleça aos próprios interessados em se subtraí- rem à incidência da norma inconstitucional a possibilidade de fazê-lo medi- ante a simples argüição do vício máximo.

A outorga de competência constitucional em benefício do órgão controla- dor pode dar-se de maneira expressa ou implícita. Ocorre esta quando, na omis- são do Texto Maior, infere-se, segundo o princípio da separação de Poderes, que está na índole da função jurisdicional a aplicação não só das leis ordinárias, mas também das constitucionais, e segundo a hierarquia por estas ocupada no edifício normativo. Isso é suficiente para instaurar um sistema de exame da constitucionalidade das leis exercido pelo Judiciário, que, entretanto, deixare- mos para tratar mais adiante devido à necessidade de fixarmos ainda alguns pontos.

Outro limite inafastável da viabilidade de um modelo eficiente de contraste constitucional é a não-coincidência entre o órgão controlador e o Poder Le- gislativo ordinário. Essa circunstância já foi examinada no item 9 deste Capí- tulo. Segundo as considerações ali expendidas, ficou claro que o Poder Legislativo que acumule as funções de dizer em última instância da adequação de uma lei ao Texto Constitucional não fica vinculado aos mandamentos da Constitui- ção. Estes representam apenas uma possibilidade para ele. Se, entretanto, escolher via diversa, quer quanto ao conteúdo da norma, quer quanto ao processo

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de sua feitura, nenhuma conseqüência acarretará. Não estando a opção feita, des- respeitante da Magna Carta, sujeita a nenhum processo especial de invalidação ou de nulificação, a nova norma criada, em que pese a sua divergência com as normas tidas por constitucionais, estará entronizada no ordenamento jurídico, equivalendo tal entronização à revogação da lei "constitucional".

Da mesma forma, inconcebíveLmostra-se um sistema que pretenda entregar a qualquer um do povo o controle da constitucionalidade das leis, em qual- quer das formas em que se apresente; isto é, ou para o efeito de simplesmente liberar o interessado do seu descumprimento, tendo a decisão tomada apenas eficácia entre as partes, ou, então, para o efeito de retirar a executoriedade da lei, torná-la nula com efeito contra todos.

No primeiro caso, o indivíduo se furtaria à obediência do mandamento legal a todo instante, sob pretexto de sua inconstitucionalidade, revertendo o ônus da prova ao Poder Público.

No segundo, seria difícil imaginar-se que qualquer lei viesse jamais a lume, visto que bastaria a impugnação de algum indivíduo para que ela fosse desde logo tida e havida por inconstitucional.

3.2. Sistema de Controle Político

Certas Constituições criam um órgão com a função específica de contro- lar os atos legislativos, editados ou a serem editados (daí a distinção entre con- trole a posteriori, no primeiro caso, e prévio, no segundo). É um sistema pre- dominante em países europeus. Nestes, dominados durante muito tempo por um sistema absoluto de governo, reunindo a figura do monarca, em certas épo- cas, a totalidade das funções estatais, uma vez implantada a separação de po- deres, por força inicialmente da Revolução Francesa, e depois da eclosão de movimentos políticos idênticos em outros países, houve sempre uma aguda sus- cetibilidade a tudo que pudesse, segundo eles, de alguma maneira, enfraquecer o rigor da doutrina implantada. Dessa maneira, afigurava-se-lhes incompatível com o sistema instaurado que um outro Poder, o Judiciário, por exemplo, viesse a anular atos ou imiscuir-se nas funções próprias do Legislativo.

14. Diz-nos Celso Agrícola Barbi: "Ao longo da história, diversos meios foram experimen- tados para exercício do controle, ora para evitar a elaboração completa de leis inconstitucionais (controle preventivo), ora para anular ou deixar de aplicar leis com aquele vício (controle poste- rior)" (Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil, RDP 4:35).

Daí o motivo da criação de um órgão não enquadrado em nenhum dos poderes existentes, ao qual se assegurava autonomia necessária para o desempe- nho das altas funções a ele cometidas, de tornar sem efeito qualquer ato repu- tado inconstitucional.

15. Ensina Pinto Ferreira: "O sistema de controle da constitucionalidade das leis por um órgão político prescreve que, lado a lado com os três Poderes clássicos (Executivo, Legislativo e Judiciá- rio), coexista uma entidade com a missão exclusiva ou principal de verificar se os diversos atos das autoridades públicas estão de acordo com a Constituição" (Princípios gerais do direito constitucio- nal moderno, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1962, t. 1, p. 90). Cf. Loureiro Júnior, O controle, cit., p. 89 e 5.; Lúcio Bittencourt, O controle da

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constitucionalidade das leis, 2. ed., 1968, p. 13; e J. Brandão Cavalcanti, Do controle, cit., p. 50 e s.; Pinto Ferreira, Princípios, cit., p. 93-4.

O sistema não produziu os efeitos esperados. Redundou na substituição da opinião política do órgão produtor do ato pela do órgão controlador. Na verdade, nada nessas chamadas Cortes Constitucionais (ou por vezes de Senado, como no caso da França) contribuía para que seu julgamento fosse fundado na legitimidade ou constitucionalidade do ato, tendo-se mostrado invencível a tendência para apreciá-lo segundo um critério de conveniência e oportuni- dade, numa desnecessária duplicação do poder controlador.

3.3. Sistema de Controle Judicial

Surgiu o sistema de controle judicial nos Estados Unidos da América do Norte, como resultante da prática jurisprudencial da Corte Suprema naquele país. Foi o Juiz Marshall quem o elaborou na sua forma definitiva, e cujos fundamentos expôs com grande brilho quando da ocasião do julgamento do famoso caso Marbury contra Madison. Os pontos capitais dessa doutrina são: sendo a lei inconstitucional nula, a ninguém obriga, e muito menos vincula o Poder Judiciário à sua aplicação; por outro lado, diante de um conflito entre a lei ordinária e a Constituição, ao Poder Judiciário incumbe inelutavelmente preferir uma em desfavor da outra. Diante de tal dilema, esposa a teoria que inevitavelmente deve ser dada à Lei Constitucional, que é superior a qualquer outro ato praticado sob sua vigência.

Depois de invulgarmente defendida por Marshall, a doutrina do controle judicial da constitucionalidade das leis praticamente não sofreu sérias contesta- ções, vindo a firmar-se nos Estados Unidos, donde se espraiou para os demais países da América, entre os quais o nosso.

Dentro do controle judicial, em razão das formas diferentes pelas quais se suscita a atividade do Poder Judiciário, em regra inerte, é forçoso distinguir entre a via de defesa e a via de ação.

3.4. Vias de Defesa e de Ação

O que fundamentalmente diferencia a via de defesa da via de ação não é, na verdade, o fato de na primeira manter-se, o interessado na declaração de inconstitucionalidade, na defesa ou numa posição passiva, aguardando que se lhe cobre judicialmente o pretendido, para, só então, defender-se invocando uma questão prejudicial de inconstitucionalidade.

16. Não estamos, portanto, de acordo com a afirmação de Lúcio Bittencourt: "No controle, por via de exceção, o lesado, em vez de atacar o ato diretamente [grifos nossos], limita-se a se defender contra ele, se a autoridade tenta submetê-lo à sua aplicação" (O controle, cit., p. 97).

Com efeito, isso seria esquecer que o interessado pode assumir uma posi- ção ativa, atacando o ato inquinado do vício de suprema ilegalidade por meio dos recursos judiciais colocados à sua disposição, entre os quais o mandado de segurança e o habeas corpus, sem com isso desfigurar a via de defesa ou exceção.

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O traço diferencial apartador de uma ou outra das vias de provocação da atividade jurisdicional reside, na verdade, no fato de pela via de exceção pre- tender apenas o interessado ser subtraído da incidência da norma viciada, ou do ato inconstitucional. É certo que, para desobrigar aquele que invocou o supremo vício jurídico, deverão os juízes e tribunais, a que couber o julga- mento do feito, pronunciar-se sobre a alegada inconstitucionalidade. Entretanto, essa pronúncia não é feita enquanto manifestação sobre o objeto principal da lide, mas sim sobre questão prévia, indispensável ao julgamento do mérito. Na via de exceção ou defesa, o que é outorgado ao interessado é obter a decla- ração de inconstitucionalidade somente para o efeito de eximi-lo do cumpri- mento da lei ou ato, produzidos em desacordo com a Lei Maior. Entretanto, esse ato ou lei permanecem válidos no que se refere à sua força obrigatória com relação a terceiros. Mesmo quando, através de mandado de segurança, pleiteia o seu autor a anulação de um determinado ato administrativo, com fundamento na sua inconstitucionalidade, o que na verdade ele obtém é que referido ato seja considerado nulo na medida em que o atinge. Com relação aos demais atingidos pelo mesmo ato, mas não participantes de dito mandado de segurança, o ato mantém-se válido e produtor de efeitos. É lógico que no caso particular de o ato acoimado de inconstitucionalidade ter como objeto um único indivíduo, e vier este a obter a sua declaração de inconstitucionali- dade, nesse caso, em termos práticos, o ato judicial, ainda que fruto da via de exceção, equivalerá à nulificação completa do ato viciado. Ainda aqui, não ocorre exceção à regra. A declaração judicial continuou a produzir efeitos apenas entre as partes que demandavam, e não com relação a terceiros não partícipes do feito. O que se deu foi a coincidência entre os integrantes da ação de mandado de segurança e os atingidos pelo ato atacado.

17. Sobre o mandado de segurança, diz Othon Sidou: "... na ação só se exercita in casu. A sentença não tem força para revogar a lei inconstitucional. E os seus efeitos, julgados em proveito de alguém que haja provocado o pronunciamento do órgão judicante, não se estendem em favor de outrem, mesmo que subordinado à mesma lei atacada, a não ser que, igualmente, postule a garan- tia" (Do mandado de segurança, 3. ed., revista e ampliada, p. 246-7).

Em síntese, a via de ação tem por condão expelir do sistema a lei ou ato inconstitucionais. A via de defesa ou de exceção limita-se a subtrair alguém aos efeitos de uma lei ou ato com o mesmo vício.

De resto, constata-se que os objetivos perseguidos por uma ou outra via são diferentes. A via de defesa é instrumento da garantia dos direitos subjeti- vos. A preocupação primeira é restabelecer a ordem jurídica ofendida, liberando alguém da sua carga ilegal, consistente na iminência de ver-se obrigado ao cumprimento de lei inconstitucional.

A via de ação já, pelo contrário, encontra-se primordialmente voltada para o bom funcionamento da mecânica constitucional. Para a boa marcha desta não é suficiente o primeiro caminho de controle da constitucionalidade. Faz-se mister expungir de vez a lei ou ato viciados do sistema normativo. E, embora já assegurados, pela primeira via, os direitos subjetivos, não há dúvi- da de que os problemas suscitados pela permanência na ordem jurídica de lei inconstitucional somente encontrarão solução pelo segundo caminho, isto é, pela via de ação, o que nos permite afirmar ser sua preocupação maior o funcionamento em si do sistema.

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Em conclusão, embora tanto a via de ação como a de defesa sejam pro- cessos de controle da constitucionalidade, nesse ponto apresentando um deno- minador comum que os unifica em vista de um mesmo objetivo, não há negar, entretanto, que apresentam particularidades que os distanciam, quer segundo a finalidade de controlar a constitucionalidade apenas pela subtração dos inte- ressados, em cada caso particular, aos mandamentos injurídicos de um ato inconstitucional, quer segundo a preocupação de restabelecer a harmonia do sistema constitucional, ferida pela manutenção de lei produzida em desres- peito à Constituição.

4. EVOLUÇÃO DO CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO BRASIL

4.1. Constituição de 1824: Inexistência do Controle

A Constituição do Império não possibilitou a implantação entre nós do sistema de controle da constitucionalidade das leis, já então existente nos Estados Unidos. Isso porque, na verdade, incumbia ao próprio Legislativo controlar a sua atividade, situação essa que, como já examinado, obsta ao funcionamento de esquema controlador. No seu art. 15, n. 8, atribuía ao Legislativo "fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las" e, no n. 9 do mesmo artigo, "velar na guarda da Constituição".

Por uma outra razão ainda tornava-se impossível o exercício do controle constitucional. A existência do Poder Moderador, que, segundo o disposto no art. 98 daquela Constituição, desfrutava de uma posição, na verdade, de superpoder, de um poder acima dos poderes, fazia com que as decisões do Poder Legislativo pudessem ser alteradas por critérios outros que o da legalidade ou cons- titucionalidade. O Poder Moderador era definido por aquele artigo: "O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador como Chefe Supremo da Nação, e seu primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilí- brio e harmonia dos mais Poderes políticos".

Afirma com grande felicidade Lúcio Bittencourt: "Ora, num sistema em que existia sobre os três poderes normais tal "suprema inspeção" é evidente que não seria possível delegar ao Judiciário o controle dos atos do Congresso. Esse controle só poderia caber - se se pudesse atribuir a outro departamento do governo - ao Poder Moderador".

18. O controle, cit., p. 28.

4.2. Constituição de 1891: Introdução do Controle

A Constituição republicana de 1891 introduz modificações que permiti- rão o funcionamento, embora não ainda perfeito, de um sistema de controle da constitucionalidade. Em primeiro lugar, extingue o Poder Moderador, que, em razão da posição proeminente de que desfrutava, subvertia a rigidez da separação dos Poderes.

Por outro lado, a competência para proteger a Constituição não é conferi- da exclusivamente ao próprio Poder Legislativo. Dispunha o art. 35: "Incumbe, outrossim, ao

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Congresso, mas não privativamente: 1.o) Velar na guarda da Cons- tituição e das leis, e providenciar sobre as necessidades de caráter federal".

Como mais importante novidade, instaurava a competência do Judiciá- rio para examinar da adequação ou não de determinada disposição com o Texto Maior. O art. 59, ao disciplinar a competência do Supremo Tribunal Federal, no seu § 1.o dispunha: "Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade ou aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a valida- de de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas".

A Emenda Constitucional de 1926 foi mais longe ao atribuir função con- troladora da constitucionalidade, dispondo no § 1.o do art. 60: "a) quando se questionar sobre a vigência ou a validade das leis federais em face da Consti- tuição e a decisão do Tribunal do Estado lhes negar aplicação; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado conside- rar válidos esses atos ou essas leis impugnadas".

Comenta Rui Barbosa: "A relação é claríssima. Nela se reconhece, não só a competência das Justiças da União, como a das Justiças dos Estados, para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição. Mas, numa ou nou- tra hipótese, o princípio fundamental é a autoridade, reconhecida expressamente no texto constitucional a todos os Tribunais, federais ou locais, de discutir a constitucionalidade das leis da União, e aplicá-las ou desaplicá-las, segundo esse critério".

19. Comentários à Constituição brasileira, 1933, v. 4, p. 133, apud Lúcio Bittencourt, O controle, cit., p. 29.

4.3. Constituição de 1934: Aperfeiçoamento do Sistema

A Constituição de 1934, além de exigir que as declarações de inconstitucio- nalidade somente fossem feitas pela maioria absoluta de votos da totalidade dos juÍzes componentes dos tribunais, introduziu a possibilidade de suspensão de execução das leis declaradas inconstitucionais. Expediente de grande utilidade, uma vez que alivia os tribunais da carga representada pela necessidade de reno- var, em cada caso, a declaração de inconstitucionalidade, para que esta produza efeitos. Dispunha o art. 91: "Compete ao Senado Federal: (...) IV - suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regula- mento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário".

Grande passo foi assim dado no sentido da implantação do controle da constitucionalidade por via de ação e não apenas de exceção. O sistema defendido pela Constituição de 1934 já permitia o alargamento dos efeitos da decisão judicial, após intervenção do Senado Federal, que passou dessa maneira a suspender para todos os casos os efeitos do ato inconstitucional, e não apenas naquele sub judice.

Avanço significativo, ainda, produzido pela Constituição de 1934, foi a possibilidade por ela criada, no seu art. 12, § 2.o, de o Supremo Tribunal Fede- ral declarar a inconstitucionalidade de lei estadual, uma vez provocado pelo Procurador-Geral da República.

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Fica contudo condicionada essa declaração a que a inconstitucionalidade de lei estadual fosse oriunda da violação de al- gum princípio (forma republicana representativa, independência e coordena- ção dos Poderes, temporariedade das funções eletivas etc.) a cujo respeito estiver o Estado obrigado por força da Constituição Federal.

Não ocorreu, ainda, aqui, introdução da verdadeira, cabal, juridicamen- te perfeita e acabada ação de inconstitucionalidade. Afirma Celso Agrícola Barbi: "Essa hipótese, como se percebe, contém um processo de controle de constitucionalidade que difere alguma coisa do sistema de declaração por via de "exceção", mas sem constituir também tipicamente uma declaração por via de "ação". Não é por via de ação, porque lhe faltam algumas características desta: a declaração da Suprema Corte não anula a lei, a ação não tem como objeto anular a lei. Mas difere da declaração por via de exceção, porque não surge no curso de uma demanda jurídica qualquer, nem é simples fundamento do pedido; o pedido é a própria declaração de inconstitucionalidade, e não a intervenção, pois esta não compete ao Supremo Tribunal, e nenhuma relação jurídica surge como objeto da demanda, como é o normal nas ações comuns".

20. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil, RDP cit., p. 38.

4.4. Constituição de 1937: Retrocesso

A Constituição de 1937 trouxe grande retrocesso na matéria. Possibili- tou ao Presidente da República apresentar novamente ao Parlamento uma lei declarada inconstitucional. Caso este viesse a confirmar a norma, por uma maioria de 2/3 de votos de cada uma das suas Casas, perderia efeito a decisão do tribunal. Não seguimos neste passo a lição do eminente Celso A. Barbi. Diz ele: "Como se vê, o artigo contém, no fundo, a possibilidade de coexis- tência de uma norma constitucional com uma lei com ela conflitante, pois aquela não seria revogada pela manifestação do Congresso: apenas persistiria a existência e validade da lei, apesar de infringente do texto constitucional, o qual prevaleceria em relação a outras leis, como norma limitadora".

21. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil, RDR cit., p. 39.

Não se nos afigura possível a coexistência, num mesmo sistema jurídi- co, de normas conflitantes. Há, subjacente a qualquer ordenamento normativo, o postulado lógico segundo o qual todas as suas normas se compoem num todo harmônico. In casu, houve realmente uma modificação constitucional, na parte em que a lei confirmada conflita com a Constituição. A primeira passa a ter, na verdade, a força de uma emenda à Constituição. Quanto à nor- ma constitucional modificada, se não o foi no seu todo, permanece válida no resto, isto é, na parte em que não foi contrariada pela norma modificadora.

A Constituição de 1946 terminou com a possibilidade de o Presidente apresentar a lei declarada inconstitucional ao Congresso Nacional, abolindo assim o art. 96 da Carta anterior. Para Lúcio Bittencourt, foi o seguinte o significado dessa medida: "... garantindo assim a pureza da doutrina americana, mais uma vez incorporada, em sua plenitude, ao sistema constitucional brasileiro, voltando-se, destarte, àquele panorama jurídico, de que

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falava Rui Barbosa, em que "na or- dem da autoridade o Supremo Tribunal está acima de tudo".

22. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, atual. José Aguiar Dias. Forense. p. 31.

Em nosso entendimento, o sistema de controle jurisdicional na constitucio- nalidade das leis, em consonância com a doutrina americana, continuou exis- tindo. A porta aberta ao Parlamento para que, por uma maioria de 2/3, manti- vesse a norma anteriormente fulminada equivalia a uma emenda à Constitui- ção. E esta alternativa sempre existe nas Constituições que não se pretendam perpétuas. Atualmente, a própria maioria de 2/3 é suficiente para emendar a Constituição. Nada impede, pois, que, diante da declaração de inconstituciona- lidade pelo Supremo, opte-se pela reforma constitucional, o que equivale a uma possibilidade de restabelecimento da norma viciada segundo os termos da Constituição anterior à emenda.

4.5. Constituição de 1946

A Constituição de 1946 manteve o controle por via de exceção, conservando os casos de recurso extraordinário. O exame desses casos leva à conclusão da possibilidade de os juízes e tribunais locais julgarem a constitucionalidade ou não da norma. Manteve, contudo, o texto de 1946 a exigência da maioria ab- soluta dos membros do tribunal para a eficácia da decisão (art. 200).

Apenas com a Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965, ganhou o controle da constitucionalidade, em nosso sistema, uma plenitude total. Com efeito, até então, muito embora tivesse estado a linha orientadora do nosso direito na matéria voltada para uma sempre crescente extensão do controle, o fato é que a indagação jurisdicional de constitucionalidade se res- sentia ainda de certas deficiências.

A ausência de direito subjetivo agredido ou ameaçado vedava o exercí- cio da via de defesa ou exceção. De outra parte, a propositura de representa- ção argüindo diretamente a inconstitucionalidade de texto normativo condiciona- va-se à circunstância de ser a norma violadora capitulável em algumas das hipóteses previstas para intervenção da União nos Estados-Membros, isto é, somente quando o conteúdo da norma a ser fulminada pela declaração de inconstitucionalidade traduzisse a infringência, no âmbito estadual, de prin- cípio a cuja obediência estivesse o Estado-Membro forçado por disposição da Constituição Federal, abrir-se-iam ensanchas ao desencadeamento do proces- so declaratório de inconstitucionalidade.

Percebem-se nitidamente as deficiências apresentadas ainda pela via de ação: sua abrangência ficava restrita aos casos de inconstitucionalidade verificados no campo dos Estados-Membros, permanecendo fora de sua compreensão os casos de inconstitucionalidade perpetrados pela própria União. Ademais, mes- mo na esfera estadual, apenas as normas que configurassem inconstitucionalidade a certos princípios do Texto Maior eram atingidas pelo processo controlador. Consubstanciassem elas, porventura, violência a normas da Carta Magna cujo desrespeito não configurasse hipótese de intervenção, estariam, nesse caso, ao desabrigo do mecanismo saneador da inconstitucionalidade, a não ser, claro, pela via de exceção, uma vez preenchidos seus pressupostos.

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4.6. Emenda Constitucional n. 16, de 1965: Plenitude do Sistema

A introdução pela Emenda n. 16, no seu art. 2.o, dentre as competências do Supremo Tribunal Federal, daquela de processar e julgar originariamente representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, desvinculou o exercício da via de ação de certos pressupostos que o restringiam anteriormente.

Já agora, qualquer ato normativo, federal ou estadual, é suscetível de con- traste constitucional. O julgamento da norma em tese, isto é, desprendida de um caso concreto, e, o que é muito importante, sem outra finalidade senão a de preservar o ordenamento jurídico da intromissão de leis com ele inconviventes, toma-se então possível. A proteção dos direitos individuais já era, e continua sendo, assegurada pela via de defesa. Uma ação cujo único objeto é a perquinção do ajustamento da lei às disposições constitucionais repousa sobre fundamentos outros daqueles justificadores do controle constitucional pela via de exceção. Na verdade, é a preocupação de defesa do sistema jurídico, do direito objetivo, enfim, que se encontra na base de tal instituto.

Com efeito, a partir da referida Emenda, a mecânica de controle constitu- cional enriqueceu-se pelo alargamento da amplitude conferida à via de ação direta, de iniciativa do Procurador-Geral da República, a ponto de podermos afirmar que, atualmente, levando em conta conjuntamente os critérios da ini- ciativa para provocar a manifestação jurisdicional e da finalidade com que é feita, dividem-se em três os caminhos para se atingir o controle constitucio- nal: a) provocação da questão constitucional pelo lesado ou ameaçado de sofrer lesão, que pode fazê-lo na posição de réu, como tomando a iniciativa do processo, através, por exemplo, de mandado de segurança; b) provocação do Judiciário pelo Procurador-Geral da República, em vista de uma intervenção nos Esta- dos-Membros ou de suspensão da eficácia do ato inconstitucional, decretada pelo Presidente da República; c) provocação do Judiciário pelo Procurador- Geral da República, com a finalidade de defesa do ordenamento jurídico, mais especificamente, de fazer cumprir a vontade constitucional de respeito à hie- rarquia normativa (Constituição, lei ordinária e regulamento).

4.7. Constituição de 1967 e Emenda Constitucional n. 1, de 1969

A Constituição de 1967 manteve a inovação da Emenda Constitucional n. 16, no seu art. 114: "Compete ao Supremo Tribunal Federal: 1 - Processar e julgar originariamente: ... 1) a representação do Procurador-Geral da Repú- blica, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual".

No âmbito do objeto do presente estudo, a única modificação introduzi- da pela Constituição de 1967 foi na matéria relativa à intervenção nos Esta- dos, por inobservância de princípios contidos no art. 10, VII: transferiu do Congresso para o Presidente da República o poder de suspender ato ou lei declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quando essa sus- pensão for suficiente para restabelecer a normalidade no Estado.

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A Emenda Constitucional n. 1 à Constituição de 1967 nada alterou na matéria, salvo na numeração dos artigos. No caso do art. 114, I, a, foi ele deslocado para o art. 119, mantidos inciso e letra.

A compreensão dos problemas suscitados pelo exercício do controle cons- titucional, com vistas exclusivamente à anulação de lei inconstitucional, apenas surgirá a partir do entendimento correto a ser dado ao desempenho dos três órgãos que nele tomam parte: o Procurador-Geral da República, o Supremo Tribunal Federal e o Senado Federal. Caracterizada a natureza jurídica da fun- ção de cada um desses órgãos, emergiria fatalmente a solução dos problemas provocados pela ação de representação. Esta, pois, somente poderá ser enten- dida a partir dos grandes princípios que a justificam como elemento de defesa de todo sistema político-constitucional, e não a partir do direito processual, voltado ao estabelecimento de normas de funcionamento do Poder Judiciário, enquanto no exercício da jurisdição, isto é, no mister de dizer o direito aplicável a um determinado conflito de interesses. Ao pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade de lei em tese, o Poder Judiciário se sobreleva ao normal de suas funções, quan- do se coloca na posição de terceiro eqüidistante das partes litigantes, para alçar-se em nível de órgão máximo encarregado da defesa do interesse público traduzido na permanência dos princípios e normas constitucionais. Ele se identifica com esse próprio interesse cuja defesa lhe foi constitucionalmente outorgada.

5. O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE NA NOVA ORDEM JURÍDICA

As constituições rígidas procuram assegurar a sua supremacia através de um sistema destinado a controlar a constitucionalidade das leis, sendo dois os seus momentos principais: em primeiro lugar, a identificação do ato, ou comportamento, inconstitucional. E, em segundo momento, negar-lhe eficá- cia jurídica.

É uma mecânica voltada a policiar a ordem jurídica, que tem necessida- de de expelir do seu seio tudo aquilo que lhe contradite.

Inconstitucionalidade é o que se dá em um determinado tipo de relação entre a Constituição e um ato que lhe venha imediatamente abaixo.

A inconstitucionalidade não reside exclusivamente na Constituição nem no ato ou comportamento com ela confrontados. Na verdade, a inconstitucio- nalidade repousa na relação de contrariedade normativa entre uma e outra. E bom frisar que o que está em pauta não é uma relação de adequação de uma realidade a outra, mas sim o cumprimento ou não de certa norma jurídica.

De outra parte, note-se que não é toda desconformidade com a Constituição que gera a inconstitucionalidade. Um conceito assim amplo que considerasse todo e qualquer ato em afronta à Lei Maior como inconstitucional, findaria por ser inútil em razão da sua extrema abrangência.

Daí a conveniência de excluirmos certas modalidades de contradição que encontrarão as suas formas pertinentes de nulificação, sem contudo ser necessário fazer apelo ao conceito de inconstitucionalidade. Assim, não se costuma ter por inconstitucional o comportamento de particulares no seu atu- ar cotidiano. A inconstitucionalidade é própria dos órgãos do Poder Político. E, ainda assim, só quando estes estejam atuando regulados direta e imediata- mente por normas constitucionais.

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A inconstitucionalidade nutre estreita semelhança com a ilegalidade. Em ambas as hipóteses, está-se a apontar para a existência de um vício formal ou material que vitima o ato subordinado. O que distingue uma da outra é a qua- lidade do ato imediatamente ofendido. Se se tratar da Constituição, temos a inconstitucionalidade. Se se tratar da lei, temos a ilegalidade.

Um outro caso poderá tomar-se duvidoso, em razão de ser ele parcialmente determinado pela Constituição e parcialmente pela lei. Mas ainda assim é sempre possível identificar qual o elemento viciado, se foi a competência ou se foi a forma ou mesmo o conteúdo e vinculá-lo à lei ou à Constituição, conforme for o caso. Mesmo aqueles que não se apegam a uma concepção normativista do direi- to aceitam que a ordem jurídica não é um conglomerado caótico de normas, mas um sistema estruturado fundamentalmente à base de vínculo hierárquico.

Esta hierarquia se mostra por vezes mais complexa quando o mesmo es- calão normativo mantém subordinação não só àquele que lhe vem imediatamente acima, como também a um segundo escalão, que subordina o anterior. Isto se dá quando a própria Constituição determina que certas leis guardem consonância com outras, ou mesmo quando estatui a faculdade regulamentar mas diz que esta há de submeter-se à lei. Ainda aqui, há de se preferir a ilegalidade porque basicamente a contradição está posta entre duas normas de natureza não-constitucional.

6. DIFERENTES TIPOS DE INCONSTITUCIONALIDADE

As diversas modalidades de inconstitucionalidade são assim classificáveis.

Em primeiro lugar, vejamos a inconstitucionalidade por ação e a inconsti- tucionalidade por omissão.

Praticamente tudo que foi escrito sobre a inconstitucionalidade o foi rela- tivamente à por ação. É aquela que se caracteriza pela prática de um ato, pela edição de uma lei ou pela materialização de um comportamento, em antago- nismo ao preceituado na Constituição. É pois uma inconstitucionalidade posi- tiva, cujo remédio é a sua nulificação.

A inconstitucionalidade por omissão é a negativa, isto é, resulta de um comportamento que, nada obstante exigido ou requerido pela Constituição, faz-se ausente.

23. Canotilho, Direito constitucional, p. 711: "O controle dos actos normativos violadores das normas e princípios constitucionais constitui a fiscalização da inconstitucionalidade por acção, que é a fiscalização típica exercida pelos tribunais (cf. arts. 277 e 282). Ao lado desta, existe a inconstitucionalidade por omissão, não muito freqüente no plano positivo-constitucional.

A Constituição portuguesa de 1976 é um dos raros textos constitucionais a consagrar, expres- sis verbis, a possibilidade de uma inconstitucionalidade por omissão (art. 283), chegando ao ponto de considerar a fiscalização da constitucionalidade por omissão de normas jurídicas como um dos limites materiais de revisão (art. 290/m).

O reconhecimento da possibilidade de não cumprimento da Constituição, em virtude de um silêncio inconstitucional dos órgãos legislativos, assenta no pressuposto da superioridade formal e material da Constituição relativamente à lei ordinária. A lei

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constitucional impõe-se como deter- minante heterónoma superior e como parâmetro da constitucionalidade não só quando o legislador actua em desconformidade com as normas e princípios da Constituição, como quando permanece inerte, não cumprindo as normas constitucionalmente impositivas de medidas legislativas necessárias para a concretização da lei fundamental (cf. infra, Parte III, Cap. 6, V)".

A inconstitucionalidade total difere da parcial no sentido de que no pri- meiro caso ela recobre toda a lei, nada lhe sendo aproveitável.

Na parcial, inversamente, o vício afeta apenas uma parte da norma ou mesmo tão-somente uma ou algumas das normas embutidas em um Diploma maior que comporte a eliminação da parte viciada sem desnaturação da restante.

A inconstitucionalidade material é aquela na qual o antagonismo surge entre o seu conteúdo e o da Constituição.

A inconstitucionalidade formal diz respeito tão-somente a um desvio na elaboração do ato. Por sua vez, ela é sempre total.

24. Poletti. Controle da constitucionalidade das leis, p. 82, item 11: "A par dessa distinção entre os modelos adotados pelos diferentes ordenamentos jurídicos nacionais, há também correlata- mente a temática referente ao controle formal e controle material da constitucionalidade, que não deixa de repercutir nas questões da jurisdição concentrada e da jurisdição difusa, do controle polí- tico e do controle jurídico.

O controle formal é estritamente jurídico. Confere ao órgão incumbido a competência para examinar a conformidade das leis com a Constituição, do ponto de vista de observância das formas estatuídas, se a regra não fere uma competência deferida constitucionalmente a um dos poderes. Tal controle é técnico. Não examina o conteúdo ou substância da lei em exame. O controle formal revela um poder de hermenêutica, não de legislação, e parece ser muito pouco, pois a Constituição visa a um regime de liberdade para o homem, fim e fundamento da constitucionalidade.

Tal premissa, a de que o regime constitucional deve servir ao homem, parece exigir um controle mais efetivo, que transcende aos aspectos meramente formais, para ser um controle material. Com substância política (politicidade), esse controle incide sobre o conteúdo da norma, visando a conformá-la com o texto constitucional e também com seu espírito e sua filosofia, com os princípios, enfim, informadores de seu texto. A jurisdição constitucional passa a substituir a vontade do Parlamento e do Governo. O juiz julga de legibus e não, como ojuiz dos moldes da Revolução Francesa, secundum leges.

Há, certamente, uma aproximação entre o controle formal e aquele exercido pelos órgãos ju- risdicionais, assim como entre o controle material e as Cortes Constitucionais. De resto, a doutrina distingue entre a supremacia material e a supremacia formal das Constituições. A primeira existiria inclusive nos países de Constituições costumeiras e flexíveis, por motivos de ordem sociológica".

7. O CONTROLE NO DIREITO POSITIVO

O controle da constitucionalidade pode-se dar de duas maneiras:

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1 .a) via de ação (método concentrado);

2.a) via de exceção ou defesa (método difuso).

O direito brasileiro acolhe as duas formas.

A via de ação tem por objetivo expelir do ordenamento a lei ou ato nor- mativo contrário à Constituição, bem como declarar a omissão inconstitucional.

7.1. Inconstitucionalidade por Ação

A característica primordial é atacar o vício da lei em tese.

Tem competência para conhecer e decidir a questão, na esfera federal, um único órgão: o Supremo Tribunal Federal (esta a razão de se falar em controle concentrado).

O objeto da ação é o próprio vício de inconstitucionalidade da lei.

A decisão judicial faz coisa julgada erga omnes.

Declarada a inconstitucionalidade, a lei toma-se inaplicável.

7.2. Inconstitucionalidade por Omissão

A sua função é reprimir a omissão por parte dos poderes competentes, que atentem contra a Constituição.

A competência, em nível federal, é do Supremo Tribunal Federal, art. 102, I, a, conjugado com o art. 103, § 2.o.

O objeto da ação é o vício omissivo.

Na decisão judicial, no caso da inconstitucionalidade por omissão, o Supremo dará ciência ao Poder competente para que sejam tomadas as medi- das necessárias à cessação da omissão. Decorrendo a omissão da Administra- ção, esta deverá fazê-lo em trinta dias.

7.3. Legitimidade para Propor Ação Direta de Inconstitucionalidade

Tanto na inconstitucionalidade por ação como na por omissão, são compe- tentes para propor a ação: o Presidente da República; a Mesa do Senado Fede- ral; a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa da Assembléia Legislativa; o Governador de Estado; o Procurador-Geral da República; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional; confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

7.4. Papel do Procurador-Geral da República e do Advogado-Geral da União

O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido em todas as ações de inconstitucionalidade, tendo assim um papel muito importante na via concentrada,

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pois, além de poder propor tal ação, deve sua opinião ser ouvida antes da tomada da decisão pelo Supremo (art. 103, § 1.o).

Quanto ao Advogado-Geral da União, o constituinte lhe atribui a função de defesa do ato normativo ou norma legal que está tendo sua constitucionali- dade apreciada, em tese, pelo Supremo Tribunal Federal.

7.5. Via de Exceção ou Defesa

Ataca o vício de validade da lei no caso concreto (diverso da apreciação em tese), ou seja, a argüição deve-se dar no curso do processo comum.

Qualquer órgão judicante tem competência para conhecer e decidir da inconstitucionalidade.

O objeto da ação não é o próprio vício de validade, mas sim a repa- ração de um direito lesado ou prevenir a ocorrência desta lesão. O lesado quer subtrair-se dos efeitos da lei considerada inconstitucional. São meios hábeis: em princípio qualquer ação, mais comumente o mandado de segu- rança, o habeas corpus e as defesas judiciais. No processo a questão de inconstitucionalidade é chamada de "incidental" ou "prejudicial" e pode chegar ao Supremo através do recurso ordinário (art. 102, II, a) ou do extraordinário (art. 102, III, a, b e c).

A decisão judicial faz coisa julgada apenas entre as partes, não vinculando outras decisões, inclusive do próprio Supremo Tribunal Federal, enquanto a lei não tiver suspensa a sua executoriedade, o que compete ao Senado Federal (art. 52, X).

8. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE

A Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, acrescentou o § 4.o ao art. 103, introduzindo no nosso direito o instituto da ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, que devêrá ser apreci- ada pelo Supremo Tribunal Federal. As decisões de mérito proferidas por essa Excelsa Corte produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante relativa- mente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.

As suas semelhanças com a ação direta de inconstitucionalidade são evi- dentes. Os sujeitos legítimos são quase os mesmos, visto que a emenda exclui apenas alguns - resultam legitimados o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República -, assim como o órgão a que se dirige também é o mesmo.

Nada obstante isso, esta ação apresenta certas particularidades que fin- daram, inclusive, por levantar sérias dúvidas sobre a sua compatibilização com o Texto Constitucional. De imediato observa-se que não está presente nesse tipo de ação, como ocorre na ação declaratória de inconstitucionalidade. o sujeito passivo, aquele contra quem se pede algo e que é o incumbido da defesa do ato questionado.

Na ação declaratória de constitucionalidade, o interessado apenas com- parece perante o Supremo Tribunal Federal para pedir que este declare a constitucionalidade da lei. Os seus objetivos são manifestos: cuida de abrevi- ar o tempo, que em muitos casos é

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suficientemente longo, até chegar a uma pronúncia do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade concreta de determinado ato. É um verdadeiro atalho ao alcance dos interessados na constitucionalidade de determinada norma.

A introdução desse instituto trouxe grandes controvérsias. Significativa parcela da doutrina - Associação de Magistrados, Ordem dos Advogados, com a participação de juristas de grande envergadura - vislumbrou na novel ação uma série de vícios, pondo em dúvida sua própria legitimidade.

Sustentou-se que a emenda é inconstitucional, uma vez que compromete o princípio do devido processo legal (art. 5.o, LVI), os princípios da ampla defesa, do contraditório e da dupla instância de julgamento (art. 5.o, LV); afeta o direito de acesso do cidadão ao Judiciário, contrariando o princípio da inafastabilidade do controle judicial (art. 5.o, XXXV); transforma o Judiciário em legislador, afas- tando-o de sua função primordial - aplicação da lei ao caso concreto, ofendendo o princípio da separação de Poderes. Ao abolir o contraditório, a emenda criou um processo sem parte, sem duplo grau de jurisdição e sem recursos. Ademais, ainda segundo as mesmas críticas, implicaria a destruição do controle difuso.

Em suma, a ofensa a essa gama de princípios constitui violação aos di- reitos fundamentais e também às cláusulas pétreas, por conseguinte, a inconstitucionalidade da Emenda n. 3/93, nos termos do art. 60, § 4.o, III e IV, da Constituição Federal.

Cumpre desde logo salientar que a ação declaratória de constitucionalidade, bem como a ação direta de inconstitucionalidade, não se submetem, necessaria- mente, aos princípios que disciplinam a atividade jurisdicional em geral, con- sistente na solução de conflitos de interesses das partes demandantes. Quando os tribunais exercem o controle da constitucionalidade concentrada, quer apre- ciando a ação direta de inconstitucionalidade, quer a ação declaratória de constitucionalidade, estão exercendo jurisdição constitucional objetiva. O que se pretende com a propositura da ação declaratória de constitucionalidade é dar solução ao estado de incerteza que paira sobre a legitimidade de uma lei ou ato normativo federal. No dizer de José Alfredo de Oliveira Baracho, "o Processo Constitucional move-se em abstrato, não para regular um direito, mas sim estabelecer a legitimidade de uma lei, fonte mesma do direito. Não fixa uma situação constitutiva, não realiza uma composição jurídica, comum às sentenças do juízo ordinário, mas limita-se a verificar a conformidade de uma norma vigente com a Constituição.

25. Sobre o objeto da ação declaratória de constitucionalidade, assim se pronunciou o Minis- tro Moreira Alves: "A ação declaratória de constitucionalidade, como a ação direta de inconstitucionalidade, insere-se no sistema de controle concentrado de constitucionalidade das normas, em que o Supremo Tribunal Federal aprecia a controvérsia em tese, declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, com eficácia erga omnes.

Objeto da tutela constitucional é a certeza e a segurança jurídica. Em relação a outros instru- mentos destinados ao mesmo fim, a primeira peculiaridade do novo instituto - como, aliás, ocor- ria com a representação interpretativa prevista na EC n. 7/77 - está em que o estado de incerteza é combatido direta e preventivamente, em processo autônomo, tomando-se a questão constitucio- nal em si mesma, e não para a tutela de direitos subjetivos.

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Na acepção corrente, a certeza consiste na previsibilidade das conseqüências jurídicas das ações humanas. Os homens têm a necessidade de saber como serão qualificadas objetivamente suas ações e a norma jurídica, no dizer de Lopes de Oflate, visa a garantir a ação, de maneira certa e inequívoca; de modo que seus destinatários possam contar com o que haverá de ocorrer" (La certezza del diritto, Milano, Giuffré, 1968, p. 47).

26. Processo constitucional, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p. 347-8. Salienta, ainda, o autor: "A Jurisdição Constitucional é compreendida como a parte da administração da justiça que tem como objeto específico matéria jurídico-constitucional de um determinado Estado. A Justiça Cons- titucional, para F. J. Galvez Montes refere-se a uma típica forma processual, que compreende o processo, que recolhe matéria constitucional ou que tem por objeto este assunto.

A Jurisdição Constitucional é tomada, assim, no sentido de atividade jurisdicional que tem como objetivo verificar a concordância das normas de hierarquia inferior, leis e atos administrati- vos, com a Constituição, desde que violaram as formas impostas pelo texto constitucional ou estão em contradição com o preceito da Constituição, pelo que os órgãos competentes devem declarar sua inconstitucionalidade e conseqüente inaplicabilidade" (p. 97-8).

Na verdade, a reação contrária à ação declaratória de constitucionalidade deveu-se sobretudo ao desconhecimento aprofundado da teoria sobre a juris- dição constitucional. Efetivamente vêm ganhando corpo, em diversos siste- mas jurídicos, competências que são desempenhadas pelas Cortes Constituci- onais no sentido de julgarem feitos que não obedecem aos cânones próprios do processo comum. O processo abstrato de controle não é um processo con- traditório no qual as partes litigam pela defesa de direitos subjetivos. A ação declaratória de constitucionalidade insere-se num processo objetivo, portanto sem contraditores, na acepção que lhe dá o processo comum. A propósito leciona Gilmar Ferreira Mendes:

"A ação declaratória de constitucionalidade configura típico processo obje- tivo, destinado a elidir a insegurança jurídica ou o estado de incerteza sobre a legitimidade de lei ou ato normativo federal. Os eventuais requerentes atuam no interesse de preservação da segurança jurídica e não na defesa de um interesse próprio. Tem-se, aqui, tal como na ação direta de inconstitucionalidade, um pro- cesso sem partes, no qual existe requerente, mas inexiste um requerido. Tal como na ação direta de inconstitucionalidade, os requerentes são titulares da ação de constitucionalidade apenas para o efeito de provocar, ou não, o Supremo Tribunal.

Assim, a não identificação de "réus" ou partes contrárias na ação declaratória de constitucionalidade apenas demonstra que se cuida aqui de típico processo objetivo, tal como a antiga representação de inconstitucionalidade, e, mais, recentemente, a ação direta de inconstitucionalidade".

27. Ação declaratória de constitucionalidade. São Paulo, Saraiva, 1994, p. 53-4.

Tenhamos em conta, entretanto, que o termo "contraditório" não significa necessariamente debate, divergência entre autor e réu colocados frente a frente num processo a litigar interesses próprios. Tanto assim é que a ação declaratória de constitucionalidade pressupõe a existência de controvérsia em torno da legi- timidade da norma objeto da ação. Só assim terá o requerente interesse de agir. Sabe-se que até prova em

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contrário toda lei se presume constitucional. A ação declaratória de constitucionalidade só terá lugar e se justificará diante da ocor- rência de um estado de incerteza de grandes proporções quanto à legitimidade da norma. Sobre o assunto assim se manifestou o douto Ministro Moreira Alves:

"Enquanto na ação direta de inconstitucionalidade a demonstração da incompatibilidade vertical entre lei ou ato normativo e a Constituição Federal já é o bastante para a instauração do processo constitucional, na ação declaratória de constitucionalidade só se pode vislumbrar interesse de agir diante da contro- vérsia grave em torno da legitimidade da norma, capaz de abalar a presunção de sua constitucionalidade. A ação visa à defesa da integridade da ordem jurídica, de modo que a configuração de uma situação contrária ao direito, a justificar a instauração do processo constitucional, depende da verificação objetiva de um estado de dúvida de grandes proporções quanto à legitimidade da norma.

Na inicial da ação, por isso mesmo, o autor deverá demonstrar objetivamen- te a existência de controvérsia em tomo da constitucionalidade da norma e ainda que ela gera um quadro grave de incerteza do direito, que abala a tranqüilidade geral. Deve ainda refutar as razões que servem de fundamento à tese da incons- titucionalidade e pedir a declaração de sua constitucionalidade" (ADC 1-1 -DF).

A nós se nos afigura que a expressão "grave controvérsia" é um termo equívoco, porque pode dar a idéia de que a gravidade resulta da seriedade e da procedência dos argumentos levantados. Nesse sentido, o termo "grave" é im- próprio para o tema, uma vez que redunda em cabal e total subjetivismo. No entanto, a gravidade da controvérsia deve ser entendida no sentido da sua ex- pansão na sociedade, da sua penetração nos meios jurídicos, o que foi muito bem exposto pelo Ministro Francisco Rezek: "O fato de que a questão jurídica já tenha sido suscitada ante foros diversos e já tenha produzido não só um con- fronto contraditório em cada um desses feitos, mas soluções judiciárias elas também desencontradas, esse pano de fundo basta-me para que opere, então, o Supremo Tribunal Federal, ante uma ação direta declaratória de constitucionalidade, como o árbitro, como a casa que dará deslinde a algo que já provocou polêmica entre magistrados" (voto (questão de ordem), ADC 1- l-DF).

Vê-se, aí, que nesse trecho não é feita referência à gravidade da contro- vérsia no primeiro sentido, mas, sim, no segundo, pois o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência da condição da ação declaratória de constitucionalidade no fato de haver soluções judiciárias desencontradas. E, portanto, a existência de dissídio jurisprudencial a nota a evidenciar a gravidade da controvérsia.

De fato. Não há negar-se que causa espécie alguém ir ao Supremo Tribu- nal Federal para que seja declarado o que toda lei presuntivamente já possui, qual seja, a constitucionalidade. Seria tão estranho quanto ir a juízo para decla- rar a validade de um documento que ninguém pôs em dúvida. Para nós, a razão de ser dessa ação é evitar a aplicação de uma lei cujos efeitos mais tarde terão de ser anulados. Por exemplo, constantemente temos notícia de inúmeras ações em andamento em nossos Tribunais em que a constitucionalidade de lei de maté- ria tributária é impugnada. Não é conveniente arrecadarem-se grandes somas com fundamento numa lei sobre a qual começam a pairar dúvidas sobre a sua adequação à Constituição. O maior lesado acabaria sendo o Fisco, porque teria que devolver o que recebeu sem ter a oportunidade de criar uma nova lei para tributar aquele período em que vigorou a lei inconstitucional. Essa é uma con- trovérsia que justifica a propositura da ação declaratória de constitucionalidade.

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28. Muito oportunas são as palavras do Ministro Moreira Alves: "A ação declaratória de constitucionalidade não é o meio adequado para dirimir qualquer dúvida em torno da constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, mas somente para corrigir uma situação parti- cularmente grave de incerteza, suscetível de desencadear conflitos e de afetar, pelas suas propor- ções, a tranqüilidade geral.

Nessas hipóteses restritas, a espera da uniformização da jurisprudência pela reiterada aplicação ou recusa de aplicação da lei ou ato normativo aos casos concretos, prolongaria indefinidamente o estado e incerteza e é precisamente na correção preventiva dessa situação que a inovação apresenta maior transcendência. Considerou o legislador constituinte, segundo critérios de valoração jurídica e política, preponderante o interesse geral na solução imediata da controvérsia em torno da legitimida- de constitucional da lei ou ato normativo e, portanto, na defesa da integridade da ordem jurídica, para impedir a ocorrência de danos irreparáveis, prevenir a ocorrência de lesões a direitos subjetivos, que poderiam resultar irremediáveis pelo decurso do tempo, e, ainda, assegurar o mesmo tratamento jurídico a situações idênticas, devendo lembrar-se que, sem esse instrumento, o próprio pronuncia- mento judicial encontraria não raro, o obstáculo dos interesses criados e dos fatos consumados, à sombra de uma interpretação equivocada da controvérsia constitucional" (ADC l-l-DF).

Da mesma forma, não nos parece consistente a alegação de que a emenda constitucional em estudo atribui ao Judiciário função consultiva, infringindo, assim, o princípio da separação dos Poderes. Como de resto já referido, na ação declaratória, o Supremo Tribunal Federal resolve controvérsia constitucional, pondo fim à incerteza jurídica decorrente de dúvida sobre a legitimidade de uma lei ou ato normativo federal. Nesse mister, o Supremo não exerce, pois, função consultiva, e, sim, jurisdicional. Seu pronunciamento depende de provocação da parte legitimada e da demonstração dos pressupostos (controvérsia) de admissibilidade da ação. Nesse sentido votou o Ministro Moreira Alves: "... é também inteiramente improcedente a alegação de que essa ação converteria o Poder Judiciário em legislador, tomando-o como que órgão consultivo dos Po- deres Executivo e Legislativo. Essa alegação não atenta para a circunstância de que, visando a ação declaratória de constitucionalidade à preservação da pre- sunção de constitucionalidade do ato normativo, é ínsito a essa ação, para ca- racterizar-se o interesse objetivo de agir por parte dos legitimados para propô- la, que preexista controvérsia que ponha em risco essa presunção, e, portanto, controvérsia judicial no exercício; do controle difuso de constitucionalidade, por ser esta que caracteriza inequivocamente esse risco".

29.ADC 1-1-DE.

Por último, como se infere de tudo o que foi dito até aqui, não há por que afirmar-se que o novo instituto praticamente destruiu o sistema difuso de con- trole. Primeiramente, porque a ação declaratória, como vimos, exige, como pressuposto de admissibilidade, uma controvérsia objetivamente caracteriza- da acerca da norma objeto da ação. Ora, essa polêmica em torno da norma em geral ocorre na apreciação do caso concreto pelos magistrados. Portanto, no controle difuso. Em geral, toda a discussão se inicia por aí. A expansão dada ao controle concentrado decorre muito mais da ampliação dos legitimados para propor a ação direta de inconstitucionalidade do que da criação da ação declaratória de constitucionalidade. O controle difuso continua a ser a regra, só não podendo ser utilizado legitimamente com relação aos atos normativos, já declarados constitucionais ou inconstitucionais pelo controle concentrado ou que se encontrem com sua execução suspensa

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pelo Senado, em virtude de a declaração de inconstitucionalidade resultar do controle difuso exercido pelo Supremo Tribunal Federal (cf. voto do Sr. Min. Moreira Alves, ADC 1-l-DF).

Cumpre consignar aqui a advertência de Gilmar Ferreira Mendes: "É preciso ter olhos para ver que, pelo menos, desde o advento da Emenda Cons- titucional n. 16, de 1965, que introduziu o controle abstrato de constitucionalidade, não se pode mais cogitar da existência de um típico modelo difuso de constitucionalidade entre nós. Daí ter Pontes de Miranda asseverado que "a solução só acidental, de origem americana, foi a que quiseram impor ao Bra- sil, mas acabou sendo repelida".

A Constituição de 1988 atenuou, ainda mais, o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (cf. art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais re- levantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas.

A propósito, convém assinalar que, tal como já observado por Anschütz ainda no regime de Weimar, toda vez que se outorga a um Tribunal especial atribuição para decidir questões constitucionais, limita-se, explícita ou implici- tamente, a competência da jurisdição ordinária para apreciar tais controvérsias.

Assim, parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o circulo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restrin- gir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade".

30. Giumar Ferreira Mendes, A ação declaratória de constitucionalidade: a inovação da Emenda Constitucional n. 3, de 1993, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 58.

8.1. Efeito Vinculante

Outra particularidade importante desse tipo de ação é a que decorre do previsto no § 2.o do art. 102, que determina que as decisões definitivas de mérito proferidas nesses feitos produzam eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo.

Muitos viram neste novo instituto, em decorrência de seu efeito vinculante, incompatibilização com o Texto Constitucional por suprimir as garantias de acesso ao Judiciário, do devido processo legal e da ampla defesa. Tal alegação não merece ser acolhida. Não subtraiu o instrumento em pauta a competência dos juízes e tribunais para processarem e julgarem os litígios originados de relações jurídicas concretas constituídas com base na lei ou ato normativo fede- ral objeto de ação declaratória de constitucionalidade. É certo que, dado o efei- to vinculante da decisão proferida na ação declaratória, no julgamento do caso concreto, o magistrado há de observar aquele pronunciamento, sob pena de afronta à autoridade do julgado do Supremo Tribunal Federal. Todavia, não nos parece correto afirmar seja essa eficácia vinculante causadora de lesão aos princípios constitucionais acima enunciados. Lembre-se que também a eficácia erga omnes, atributo tanto da ação declaratória de constitucionalidade como da ação direta de inconstitucionalidade, vincula todos os juízes e tribunais ao pronunciamento do Supremo. Como teve oportunidade de observar o Ministro Moreira Alves,

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"... embora diversos os pressupostos de admissibilidade, a causa de pedir e o pedido na ação declaratória de constitucionalidade e na ação direta de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal, em qualquer dessas ações, tanto poderá pronunciar a constitucionalidade como a inconstitucionalidade, e a sentença, numa hipótese ou noutra, tem sempre eficácia contra todos. A respeito da ação direta de inconstitucionalidade, o art. 173 do Regimento Interno é claro: "Efetuado o julgamento, com o quorum do art. 143, parágrafo único, proclamar- se-á a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade do preceito ou do ato im- pugnado, se num ou noutro sentido se tiverem manifestado seis Ministros".

A eficácia contra todos ou erga omnes já significa que todos os juízes e tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal, estão vinculados ao pronuncia- mento judicial. A diferença residiria apenas em que a EC n. 3, de 1993, ao dar nova redação ao § 2.o do art. 102 da Constituição, além de atribuir "eficácia contra todos", aludiu também a "efeito vinculante", relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.

Essa cláusula final, porém, no tocante à vinculação dos órgãos do Poder Judiciário, redunda em novas conseqüências de ordem processual; a inobservância da sentença na ação declaratória de constitucionalidade afronta a autoridade desse julgado e dá ensejo à reclamação, mas não altera a identidade essencial do alcance das sentenças nas duas ações.

Em resumo, as sentenças numa e noutra ação podem ter a mesma exten- são e produzir eficácia erga omnes, impondo-se à observância de todos, inclu- sive dos juízes e tribunais. A diferença está em que, enquanto a inobservância, por órgão judicial, da decisão na ação direta de inconstitucionalidade deve ser corrigida através dos recursos previstos na legislação processual, o desrespeito ao julgado na ação declaratória de constitucionalidade pode ser reparado não só mediante esses meios processuais, como também por via da reclamação".

O nosso sistema judiciário, em regra, não envolve decisões com efeito vinculante, já que cada juiz ou tribunal é soberano para decidir segundo os seus próprios critérios. Mas, na ação declaratória de constitucionalidade, introdu- ziu-se uma exceção a essa liberdade, criando-se uma vinculação decorrente de um laço obrigacional que passa a existir entre o órgão emitente da decisão, o Supremo Tribunal Federal, e os demais juízes, tribunais e, mesmo, os órgãos do Poder Executivo, que não podem deixar de cumprir o decidido nesse tipo de ação.

9. CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE EM NÍVEL ESTADUAL

O constituinte ao dispor sobre os Tribunais dos Estados foi bastante fe- liz, conferindo a estes órgãos a competência para verificação de inconstitucionali- dade das leis e atos normativos estaduais ou municipais, em face da Constitui- ção Estadual.

No sistema anterior, não havia o controle por via de ação direta das leis e atos de alçada municipal; estes só eram controlados através do método difu- so, ou seja, pela via de exceção ou defesa.

Dessa forma, temos um sistema maior onde o Supremo Tribunal Federal cuida do controle da constitucionalidade das normas e atos federais e estadu- ais em face da Constituição Federal. E, na alçada estadual, um outro sistema concentrado que controla a

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constitucionalidade das normas e atos municipais e estaduais perante a Constituição dos Estados, portanto um microssistema de controle da constitucionalidade.

Cabe lembrar, por prudência, que as leis municipais não são passíveis de controle por via de ação direta em face da Constituição Federal, portanto pelo Supremo Tribunal Federal. A argüição de inconstitucionalidade, em tese, só pode ocorrer por ofensa à Constituição estadual (art. 102, I, a, da CF/88; alí- nea a com redação dada pela EC n. 3/93).

9.1. Legitimação para Agir

A Constituição não expressou quais são os agentes legítimos para pro- por a ação direta de inconstitucionalidade junto aos Tribunais estaduais; no entanto, negou que esta seja entregue a um único órgão. Ficando a questão aos constituintes estaduais, que esperamos sigam a tendência pluralista do constituinte federal.

A Constituição do Estado de São Paulo de 1989, por exemplo, tratou, no art. 90, dos legitimados para representar sobre a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal, ou por omissão, em face da Constituição Estadual. As pessoas elencadas no art. 90 são as seguintes: a) Governador do Estado e a Mesa da Assembléia Legislativa; b) o Prefeito e a Mesa da Câmara Municipal; c) Procurador-Geral de Justiça; d) Conselho da Seção estadual da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB; e) as entidades sindicais ou de classes de atuação estadual ou municipal, demonstrando o seu interesse jurídico no caso; f) os partidos políticos com representação na Assembléia Legislativa ou, em se tratando de lei ou atos normativos municipais, na respectiva Câmara.

O órgão competente para conhecer e decidir essas representações é o Tribunal de Justiça. A declaração de inconstitucionalidade de ato normativo estadual ou municipal só pode se dar com o voto da maioria absoluta dos seus membros (art. 90, § 5.o, CE/89). Declarada a inconstitucionalidade da lei, compete à Assembléia Legislativa suspender a executoriedade desta lei (art. 20, XIII, CE/89). Se declarada a inconstitucionalidade por omissão, a decisão será comunicada ao órgão competente, a Assembléia Legislativa, para a adoção das medidas necessárias (art. 90, § 4.o).

CAPÍTULO V DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA

SUMÁRIO: 1. Ministério Público. 2. Advocacia Pública. 3. Advocacia. 3.1. His- tórico. 3.2. O papel do advogado na atual Constituição. 4. Defensoria Pública.

1. MINISTÉRIO PÚBLICO

Nenhuma das nossas Constituições pretéritas deu ao Ministério Público o tratamento extensivo de que goza na Constituição de 1988. E não é de minú- cias de que se trata. Mas sim de revesti-lo de prerrogativas e competências inéditas no passado.

O Ministério Público tem a sua razão de ser na necessidade de ativar o Poder Judiciário, em pontos em que este remanesceria inerte porque o interesse agredido não diz

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respeito a pessoas determinadas, mas a toda coletividade. Mesmo com relação aos indivíduos, é notório o fato de que a ordem jurídica por vezes lhes confere direitos sobre os quais não podem dispor. Surge daí a clara neces- sidade de um órgão que zele tanto pelos interesses da coletividade quanto pelos dos indivíduos, estes apenas quando indisponíveis. Trata-se, portanto, de insti- tuição voltada ao patrocínio desinteressado de interesses públicos, assim como de privados, quando merecerem um especial tratamento do ordenamento jurídico.

Sua função é de natureza administrativa. No que toca à sua inserção orgânica, a questão não é tão simples. Tem, na verdade, variado nas nossas Constituições, ora aparecendo como integrando o Poder Judiciário, ora o Executivo, não sendo poucos os que nele vêem um quarto Poder, o que é uma demasia, sem dúvida.

O que parece contudo induvidoso é que o grau da sua autonomia e prerrogativas tem características das de um autêntico Poder. O art. 127 o define: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do re- gime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". O seu § 1.o diz serem princípios institucionais a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Hugo Nigro Mazzilli assim define esses princípios: "unidade é o con- ceito de que os promotores de um Estado integram um só órgão sob a direção de um só chefe; indivisibilidade significa que seus membros podem ser substi- tuídos uns pelos outros, "não arbitrariamente, porém, sob pena de grande de- sordem, mas segundo a forma estabelecida em lei" (TJSP, RCrim. 128.587-SP). Hoje, porém, deve ser dito que os poderes do procurador-geral encontram limite na independência funcional dos membros da instituição. Não se pode impor um procedimento funcional a um órgão do Ministério Público, senão fazendo recomendação sem caráter normativo (LC n. 40/8 1, art. 11, II), pois a Constituição e a lei complementar, antes de assegurarem aos seus membros garantias pessoais, deram-lhes garantias funcionais, para que possam servir aos interesses da lei, e não aos dos governantes" (O Ministério Público na Constituição de 1988, Saraiva, p. 53).

Ao Ministério Público, enquanto órgão, também é bastante ampla a auto- nomia funcional e administrativa que lhe é deferida. Pode propor diretamente ao Legislativo a criação e a extinção de seus cargos e serviços auxiliares. Tam- bém compete-lhe elaborar sua proposta orçamentária (art. 127, §§ 2.o e 3.o).

Aos membros do Ministério Público são conferidas prerrogativas ou garan- tias idênticas às da magistratura: a) vitaliciedade, após dois anos de exercício, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julga- do; b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público e diante de decisão de ordem de colegiado competente do Ministério Público, por voto de dois terços de seus membros, assegurada ampla defesa; e c) irredutibilidade de vencimentos, sujeitos, no entanto, aos impostos gerais, inclusive o de renda.

O Ministério Público da União é chefiado pelo Procurador-Geral da Repú- blica. É o Presidente da República quem o nomeia, dentre integrantes da car- reira, para um mandato de dois anos, após a aprovação de seu nome pela maio- ria absoluta dos membros do Senado Federal. No campo dos Estados-Membros e do Distrito Federal, os respectivos Ministérios Públicos têm a sua chefia pro- vida de forma análoga, com a só diferença de o Chefe do Executivo ter a sua escolha circunscrita a uma lista tríplice encaminhada pela própria carreira.

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As funções do Ministério Público vêm especificadas no art. 129 da Consti- tuição, dentre as quais salientamos: a de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; promover o inquérito civil e a ação civil públi- ca, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados.

2. ADVOCACIA PÚBLICA

A representação judicial da União, ou a advocacia do Estado, vinha tradi- cionalmente sendo exercida pelo Ministério Público. Cumpria este um düplice mister. De um lado levava a efeito as clássicas funções de defensor da ordem jurídica, de guardião da lei, promovendo a acusação penal, bem como de fis- cal da aplicação do direito em processos entre terceiros. De outro, desempe- nhava o papel de advogado da União, defendendo-a nos processos contra ela movidos ou mesmo quando autora.

Esta duplicidade foi motivo de não poucas críticas. Como poderia ser lícito ao mesmo órgão acumular as desinteressadas funções de custos legis, e ao mesmo tempo assumir os interesses de uma das partes em juízo?

A Constituição de 1988 pôs cobro a essa situação, institucionalizando a Advocacia-Geral da União, com as funções de representação desta, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe ainda, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento do Poder Executivo (art. 131).

Procede-se assim a uma unificação do contencioso com a atividade de prestação de consultoria aos diversos órgãos que integram o Executivo (Admi- nistração direta e indireta).

O órgão em questão é chefiado pelo Advogado-Geral da União, livremente nomeado pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Sem dúvida foi um grande passo que se deu no sentido de uma melhor caracterização das carrei- ras jurídicas, trabalho esse consolidado por duas outras inovações da atual Carta, de que trataremos a seguir.

A primeira diz respeito à institucionalização de Procuradorias no plano dos próprios Estados-Membros. Na verdade, este era assunto relegado às au- tonomias estaduais, que disciplinavam as suas respectivas carreiras advocatí- cias (quando as havia) como melhor lhes aprouvesse. O Texto Federal nada dispunha a respeito.

Já agora figura na Constituição da República, no seu art. 132, a contem- plação da situação dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal. Fica ali dito que serão eles organizados em carreira na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a incumbência de exercer a represen- tação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.

Aplicam-se às carreiras de que estamos tratando neste capítulo o disposto nos arts. 37, XII, e 39, § 1.o. O primeiro consagra os vencimentos do Poder Executivo como teto ou limite máximo a ser pago aos cargos da mesma nature- za dos Poderes Legislativo e Judiciário.

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A procura, contudo, de uma equiva- lência de vencimentos entre as carreiras jurídicas não fica aí. O art. 39, § 1.o, impõe à lei a missão de nivelar a remuneração de cargos análogos, in verbis:

"A lei assegurará, aos servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Po- der ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressal- vadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou local de trabalho".

Em alguns casos poderá apresentar alguma dificuldade o dizer se determi- nado cargo tem funções senão iguais ao menos assemelhadas, como exige o dispositivo acima transcrito. Todavia, com respeito às carreiras do Ministério Público, da Advocacia-Geral da União, das Procuradorias estaduais e das Defensorias Públicas em geral, não pode haver dúvida quanto à sua inserção debaixo do preceito equiparador, por força do art. 135 da Constituição que manda à lei regulamentar dar implemento a essa medida isonômica.

3. ADVOCACIA

3.1. Histórico

Focalizaremos, inicialmente, a origem da regulamentação da advocacia.

Não encontramos a profissão de advogado organizada como uma insti- tuição autônoma na época da independência do Brasil.

Nas Ordenações Afonsinas, bem como nas Manuelinas, havia normas sobre o exercício da advocacia, estabelecendo que somente poderiam advo- gar aqueles que cursassem Direito Canônico ou Direito Civil, durante oito anos, na Universidade de Coimbra, e após dois anos da conclusão dos estu- dos. Quem exercesse a advocacia sem estar para tanto habilitado, poderia ser preso. Também corria o risco de prisão aquele que abandonasse a causa.

Nas Ordenações Filipinas, que foram as últimas a vigorar no Brasil, já se antecipava a necessidade daquilo que se tornou o exame para ingresso na Ordem: "Na Casa de Suplicação em que as causas se decidem em última instância, não são admitidos os advogados sem prévio exame" (1, 48, § 1.o).

No ano de 1843, foi fundado o Instituto da Ordem dos Advogados Bra- sileiros, cujo principal objetivo foi a criação da Ordem. O Instituto tinha sua sede no Rio de Janeiro, mas não possuía, dentre suas atribuições, a de fisca- lização da vida profissional dos advogados. A fiscalização era exercida pelo Poder Judiciário, e mesmo assim com certas limitações.

Para o bacharel em Direito ingressar no Instituto, e tornar-se advogado, bastava ter concluído o curso e apresentar seu diploma de conclusão para registro nos Tribunais de Justiça. Não se apuravam os conhecimentos do pro- fissional, nem mesmo a procedência ou validade do diploma. Tratava-se as- sim de mera formalidade.

A OAB nos moldes atuais só foi criada a partir do Decreto n. 19.408, de 18 de novembro de 1930. O art. 17 assim dispunha:

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"Fica criada a Ordem dos Advogados Brasileiros, órgão de disciplina e seleção da classe dos advogados, que se regerá pelos estatutos que forem vo- tados pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, com a colaboração dos Institutos dos Estados, aprovados pelo Governo".

De lá para cá, a Ordem foi regida por diversos estatutos. O atualmente em vigor é o da Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, que, de início, dispõe, no seu primeiro artigo sobre as atividades privativas de advocacia:

"Art. 1.o São atividades privativas de advocacia:

I - a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;

II - as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas".

3.2. O Papel do Advogado na Atual Constituição

Algumas das Constituições anteriores fizeram referência ao advogado. Tratava-se sobretudo de assegurar representantes da Ordem dos Advogados do Brasil na realização de concursos para a magistratura. A atual Lei Maior man- tém essa participação, deixando inclusive certo que a Ordem dos Advogados se faz presente a todas as fases do certame, o que era matéria polêmica anteriormente.

O grande avanço, contudo, deu-se com a inclusão no Texto Magno do art. 133, que reza: "O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Embora já dispusesse de garantias desse teor por força do Estatuto que rege a carreira (Lei n. 4.215), a verdade é que a elevação da imunidade ao nível da própria Constituição acaba por lhe conferir uma dig- nidade e um peso que não podem ser desprezados. É certo que a conforma- ção última dessa prerrogativa continua a depender de lei ordinária, por ex- pressa remissão da Lei Maior. De qualquer modo, trata-se doravante de uma sorte de inviolabilidade não suscetível de revogação pela lei comum, embo- ra, como visto, não se negue a ela o papel de determinar os contornos da garantia, o que não significa revogá-la ou mesmo amesquinhá-la de forma incompatível com a sua ascensão constitucional.

Vê-se que a advocacia mereceu especial previsão em nossa Constitui- ção, sendo considerada indispensável à boa administração da justiça.

Embora já dispusesse de garantias desse teor, por força do Estatuto que regia a carreira àquela época (Lei n. 4.215/63), a verdade é que a elevação da imunidade ao nível da própria Constituição acaba por lhe conferir uma digni- dade e um peso que não podem ser desprezados.

O novo Estatuto da Ordem (Lei n. 8.906/94) estabelece os contornos dessa garantia, ao dizer:

"Art. 2.o O advogado é indispensável à administração da justiça.

§ 1.o No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.

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§ 2.o No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de deci- são favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público.

§ 3.o No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites dessa lei".

Vale comentar ainda que a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil é respeitável, ocupando relevante posição na Carta Magna. Nesse sentido é que se lhe confere legitimidade ativa na defesa de interesses de grande amplitude. É o caso da legitimação para a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade, no qual o Conselho Federal da Ordem (art. 103, CF) é a única entidade, dentre os representantes diretos da sociedade, nomeadamente investida dessa função. Também é o caso da elaboração de lista sêxtupla para o preenchimento dos lugares dos Tribunais Regionais Federais e dos Estados (nos termos do art. 94), o que equivale a dizer que detém participação no processo de investidura na carreira judiciária.

Sobre o papel do advogado em face da Constituição, valeria muito a transcrição aqui de breve excerto de elocução proferida pelo eminente Minis- tro e brilhante advogado, Roberto Rosas: "Encerrando o meu tempo, gostaria de fazer uma consideração final e geral, de preocupação não somente para com as benesses que os advogados recebem nesta Constituição com o art. 133, mas também com os dispositivos que tratam do advogado ou dão ao advogado uma certa participação. Como nós estamos aquinhoados com esta posição, também somos aquinhoados com a preocupação decorrente da função do ad- vogado, da importância do advogado, do seu significado dentro desta Consti- tuição. Então, ao mesmo tempo que somos, como profissão e como atividade, exaltados na Constituição, temos também o dever e a preocupação dos cuida- dos necessários na sua interpretação, na sua aplicação, nos seus cuidados, procurar corrigir os desvios da Constituição e criticar aqueles pontos que devem ser criticados até para que haja um aprimoramento da ordem jurídica" (A Constituição brasileira de 1988; interpretações, Forense Universitária, p. 277).

4. DEFENSORIA PÚBLICA

A necessidade de prestar um auxilio aos necessitados, para que esses pos- sam ter uma atuação em juízo assemelhada à da pane contrária, foi já reconhecida pelos povos mais antigos. Percebeu-se que sem se propiciar aos desafortunados condições mínimas, para que pudessem atuar em juízo, a justiça restaria letra morta. Os pobres nunca poderiam fazer valer seus direitos, por falta de meios.

O princípio fundamental da igualdade de todos perante a lei ficaria seria- mente conspurcado. Daí porque ser perfeitamente compreensível a precocida- de da aparição do problema, contemporâneo ao surgimento dos primeiros sis- temas jurídicos, embora não se negue que só os desdobramentos mais recentes do Estado de Direito tenham podido trazer ao direito uma expressão substantiva.

Vejamos o que dizem estes dois autores, tratadistas eméritos do tema, Humberto Pefla de Moraes e José Fontenelle T. da Silva (cf. Assistência judi- ciária: sua gênese, sua história e a função protetiva do Estado, 2. ed., Rio de Janeiro, 1984, p. 201): "Almejada desde as épocas pré-cristãs do Estado, são fartos os vestígios da preocupação pelos carentes,

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já em legislação como o Có- digo de Hamurabi, nas normas vigorantes em Atenas e em Roma. É atribuída a Constantino (288-337) a primeira iniciativa de ordem legal, ao depois incor- porada na legislação de Justiniano (483-565). Consistia em dar advogado a quem não possuísse meios de fortuna para constituir patrono".

Os autores recém-transcritos trazem excelente excerto do Digesto (Li- vro 1, Título XVI, De officio Provensu lis et legati), que registrava:

"§ 5.o Deverá dar advogado aos que o peçam ordinariamente às mulhe- res, ou aos pupilos, ou aos de outra maneira débeis, ou aos que estejam em juízo, se alguém os pedir; e ainda que não haja nenhum que os peça deverá dá-los de ofício. Mas se alguém disser que, pelo grande poder de seu adver- sário, não encontrou advogado, igualmente providenciará para que lhe dê advogado. Demais, não convém que ninguém seja oprimido pelo poder do seu adversário; pois também redunda em desprestígio do que governa uma pro- víncia, que alguém se conduza com tanta insolência que todos temam tomar a seu cargo advogado contra ele".

Não vamos aqui retraçar toda a evolução histórica que o tema vem so- frendo através dos séculos, nem dar um apanhado minucioso de como se en- contra a questão no mundo atual. Esse trabalho é cuidadosamente feito pelos autores citados, a quem tomamos a liberdade de encaminhar o leitor.

No Brasil, a assistência judiciária tem suas raízes nas Ordenações Filipinas. Esse diploma foi muito importante na história do Brasil porque, por força da Lei de 20 de outubro de 1823, vigorou por estas terras até 1916.

No Livro III, Título 84, § 10, registrava:

"Em sendo o aggravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pague o aggravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro no tempo, em que havia de pagar o aggravo".

Com o passar dos anos, a incumbência vai gradativamente recaindo nos ombros da classe dos advogados, coisa que não era estranha às idéias reinan- tes, de há muito, nas corporações de causídicos.

Já Dupin, que figurava na genial galeria dos notáveis advogados e oradores franceses do século XVIII, interrogava:

"E quem, então, defende os acusados? Não é no seio de nossa ordem que se formou esta generosa resolução de nos competir, numa troca de papéis, a defesa de ofício gratuita de todos os acusados? Todos, quaisquer que fossem sua miséria e seu despojamento, encontrando em nós socorro, zelo, proteção. Nós os consolamos, nós sustentamos suas esperanças, nós somos seus confes- sores temporais..." (apud José Alves Palma, Na democracia social, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1979, p. 87).

Mas esse acúmulo de trabalho resultante da prestação da assistência judi- ciária gratuita, por quem já se encontra onerado com os encargos da profissão da qual depende para sobreviver, não deixou de merecer, desde logo, justas críticas, negando-se a ver, mesmo, aí uma locupletação ilícita por parte do Estado. E que a prestação ou patrocínio

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gratuito mantinha uma conotação caritativa e acabava por recair nos advogados, a quem era imposto como um dever.

Era caridade prestada pela Ordem, através de seus associados, que ti- nham seu ministério privado, inexplicavelmente, explorado pelo Estado.

A Constituição de 1934 contempla a assistência judiciária:

"A União e os Estados concederão aos necessitados defesa judiciária, assegurando a isenção de custas, taxas e selos".

O Estado de São Paulo, em 1935, cria o primeiro serviço governamental de assistência judiciária no Brasil, composto de advogados assalariados pelo Estado.

A Constituição de 1946 retoma o tema:

"O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados".

Em função disso, o Estado de São Paulo, através do Decreto-Lei n. 17.330, de 1947, criou um Departamento Jurídico do Estado, a denominada Procura- doria de Assistência Judiciária, hoje erigida em uma das três subprocuradorias que compõem aquela carreira.

Referência cumpre ser feita à Lei n. 1.060 que, nada obstante ter avançado na matéria, acabou por confundir os conceitos técnico-jurídicos de justiça gratuita e assistência judiciária, na feliz observação de Humberto Pefla e José Fontenelle.

Para desfazer o equívoco citam Pontes de Miranda:

"Assistência Judiciária e benefício da justiça gratuita não são a mesma coisa. O benefício da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despe- sas, exercível em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a pres- tação jurisdicional. É instituto de direito pré-processual. A Assistência Judiciária é organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa pro- visória das despesas, a indicação de advogado. É instituto de direito administra- tivo" (cf. Comentários ao Código de Processo Civil, t. 1, p. 460, apud Humberto Pefia e José Fontenelle, Assistência judiciária, cit., p. 93-4).

A referida Lei n. 1.060 esteve longe de resolver o problema; atribuiu aos Estados a tarefa de prestar assistência judiciária, desvencilhando a União de qualquer responsabilidade no assunto. A falta de diretrizes seguras acabou por dar lugar a mais de uma sistemática, pelas quais os diversos Estados procura- ram desincumbir-se de seu mister.

Ao lado do já referido modelo do Estado de São Paulo, que encarta a assistência judiciária, dentro da sua Procuradoria-Geral do Estado, há, aqui, que se fazer referência aos passos dados pelo antigo Estado do Rio de Janeiro, depois fundido com o da Guanabara, de que resultou o atual Estado com aquele mesmo nome.

O antigo Estado do Rio de Janeiro, em 1954, criou seis cargos isolados de provimento efetivo, com seus ocupantes denominados "defensores públicos".

Em 1962, a Lei Orgânica do Ministério Público e da assistência judici- ária, de n. 5.111, atribuiu aos defensores públicos o desempenho cabal da assistência judiciária.

Diversos passos se dão na condição dos defensores públicos, que, de agentes subordinados à Procuradoria-Geral do Estado, passam a sê-lo do Ministé- rio Público.

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O grande avanço, contudo, vai se dar por ocasião da fusão dos dois Estados.

Nos trabalhos realizados na Assembléia Constituinte, da nova unidade, resultou a criação independente de uma novel carreira, a da assistência judiciária, com o ingresso de seus membros mediante concurso público e com prerro- gativas, atribuições e regime disciplinar estatuídos por Lei Orgânica Comple- mentar à Constituição.

Esta solução, de certa forma, é a encampada pela nova Constituição, conforme o dispositivo sob comento.

Com efeito, a atual Lei Maior não se limitou a consignar o dever de prestação da assistência judiciária. Ele deixa claro a quem compete fornecê-la. Isto é feito pelo art. 134 e seu parágrafo único, que deixa certa a existência de uma defensoria pública no nível da União e do Distrito Federal, que será organiza- da pela primeira, assim como patenteia a existência de uma defensoria nos Estados, submetida a normas gerais de nível federal.

O segundo ponto inovador é que a própria lei das leis chamou a si o ditar a modalidade fundamental dessa prestação, que, como vimos, consiste na ins- tituição de carreiras próprias, com prerrogativas e deveres adequados.

Não se sabe, ainda, qual a coloração que assumirá a defensoria pública nos Estados, pois que a matéria depende do que vier a ser estipulado pelas normas gerais a que se refere o parágrafo único do art. 134.

O que é certo é que excluem-se outras modalidades de assistência jurí- dica aos necessitados que não seja a da própria defensoria pública.

Esta detém, com exclusividade, a função de orientar juridicamente e de defender, em todos os graus, os necessitados.

Impõe-se, portanto, a criação da defensoria pública, tanto no âmbito fe- deral, quanto no estadual. Isto não quer dizer, contudo, que não possam vir as normas gerais já referidas a permitirem a compenetração de mais de uma car- reira. E dizer, parece viável que Estados que já possuem uma carreira voltada à prestação da assistência judiciária, ainda que não a título exclusivo, venham a ser obrigados a cindi-las, com o indiscutível aumento dos custos administra- tivos da manutenção de duas infra-estruturas diferentes.

Se não vedados pelas normas gerais, os Estados estão habilitados a, quando estas se lhes afigurarem a melhor forma, instituir ou mantê-las.

TÍTULO V DA DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS

CAPÍTULO ÚNICO DO ESTADO DE DEFESA E DO ESTADO DE SÍTIO

SUMÁRIO: 1. Estado de defesa. 2. Estado de sítio. 3. Forças Armadas. 4. Segu- rança pública.

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Os Estados Democráticos de Direito só podem sobreviver sob um regi- me de normalidade jurídica. Assim, o respeito às regras do jogo lhe é essen- cial. No entanto, em algumas situações esta normalidade é rompida, pondo em risco todos os valores juridicamente consubstanciados.

Para reconduzir a situação aos trilhos constitucionais, o constituinte previu, extraordinariamente, o estado de defesa e o estado de sítio.

1. ESTADO DE DEFESA

Tem este instituto o objetivo de restabelecer, numa área restrita, a ordem pública ou a paz social que estejam sendo ameaçadas por razões político-so- ciais ou por razões da própria natureza, como calamidades de grande proporção.

A sua decretação, pelo Presidente da República, deve ser precedida de reunião deste com os Conselhos da República e de Defesa Nacional. Após decretado, na forma do § 4.o do art. 136, será submetido ao Congresso Nacio- nal, que sobre ele decidirá por maioria absoluta.

Dentre as medidas excepcionais que poderão ser levadas a cabo durante o estado de defesa - que não será superior a trinta dias, prorrogáveis uma vez (art. 136, § 2.o) - estão as seguintes: restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondência, de comunicação e a possibilidade de ocupação e uso, temporário, de bens e serviços públicos (isto na hipótese de calamidade pública). Há de se notar que os eventuais danos ficam a cargo da União.

2. ESTADO DE SÍTIO

As causas deste instituto, ou seja, as razões pelas quais ele pode vir a ser decretado, estão elencadas no art. 137, I e II, que dizem o seguinte: no caso de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que compro- vem a ineficácia de medida tomada no estado de defesa; e, nos casos de decla- ração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, poderá o Presidente, ouvidos os Conselhos da República e de Defesa Nacional e autorizado pelo Congresso Nacional - por maioria absoluta - decretar o estado de sítio.

Com a decretação do estado de sítio - por força de comoção interna - só poderão ser tomadas as medidas dispostas nos sete incisos do art. 139.

O prazo de duração do estado de sítio é o mesmo do estado de defesa, trinta dias, prorrogáveis por uma vez. No entanto, nos casos de guerra, o pra- zo deverá ser aquele da duração do conflito (art. 138, § 1.o).

Trata ainda o Título V das Forças Armadas e da Segurança Pública.

3. FORÇAS ARMADAS

Compostas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, têm como autoridade suprema o Presidente da República e como objetivos a defesa da Pátria, a garantia dos

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poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer um dos poderes, a defesa da lei e da ordem.

Vê-se assim que a missão das Forças Armadas não é apenas a de repelir a ação de potências estrangeiras, mas inclui também a de reprimir movimen- tos que ponham em risco a estabilidade dos poderes constituídos.

Cabe à lei dispor sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas ati- vidades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacio- nais e de guerra, consoante o inciso X do art. 142 da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda n. 18, de 5 de fevereiro de 1998.

4. SEGURANÇA PÚBLICA

Composta pela polícia federal, policia rodoviária e ferroviária federal, polícias civis (estaduais) e polícias militares e corpos de bombeiros militares (também estaduais), que terão por objetivo a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Umas que agem preventivamente, ou seja, tentam inibir a ocorrência do crime, e outras que funcionam depois da ocorrência cri- minal, isto é, exercem a função de polícia judiciária (art. 144 e parágrafos).

TÍTULO VI DA TRIBUTAÇÃO E DO ORÇAMENTO

CAPÍTULO I DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

SUMÁRIO: 1. Noção de tributo. 1.1. Definição de tributo no CTN. 2. Modalidades de tributos. 2.1. Impostos. 2.2. Taxas. 2.2.1. Espécies de taxas. 2.3. Contribuições de melhoria. 2.3.1. Distinção entre contribuição de melhoria e taxa. 2.4. Outras contribuições. 2.5. Empréstimos compulsórios. 3. Princípios constitucionais tribu- tários. 3.1. Princípio da igualdade. 3.2. Princípio da estrita legalidade. 3.3. Princí- pio da anterioridade. 3.4. Princípio da irretroatividade. 3.5. Princípio da uniformi- dade geográfica. 3.6. Princípio da não-cumulatividade. 4. Limitações constitucio- nais ao poder de tributar. 5. Impostos da União. 6. Impostos dos Estados e do Distri- to Federal. 7. Impostos dos Municípios. 8. Repartição das receitas tributárias.

Denomina-se Sistema Tributário Nacional o conjunto de princípios e de normas unificados em torno da idéia de tributo. É dizer, no sistema jurídico global, entendido como o conjunto de todas as normas e princípios, são isoláveis aqueles que tratam do tributo.

Contudo, o que nos interessa é o tributo sob o enfoque constitucional. Dentro da Constituição, procuraremos isolar normas e princípios pertinentes aos tributos.

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1. NOÇÃO DE TRIBUTO

Os sistemas jurídicos de diversos países dispõem de conceitos próprios sobre o que cada um entende por tributo. O Brasil não foge à regra: o Código Tributário Nacional dá a definição de tributo. Todavia, em meio a essa pluralidade de conceitos sobre o que cada país entende por tributo, estudiosos, sobretudo da Itália e Alemanha, julgaram ser possível a construção de um conceito de alcan- ce universal, em face dos elementos comuns encontrados nos diversos textos.

É lógico que para levar a efeito essa empreitada, que, diga-se de passa- gem, não é das mais fáceis de serem cumpridas, torna-se indispensável abrir mão de algumas notas particularizadoras do tributo, procurando isolar-se ex- clusivamente o substrato jurídico comum.

A doutrina, seguindo essa orientação, definiu o tributo como uma pres- tação pecuniária que o Estado, ou um ente público autorizado por ele, exige dos sujeitos econômicos submetidos à soberania territorial.

Neste conceito encontramos alguns elementos. O tributo é uma presta- ção pecuniária, aferida em dinheiro na maioria dos casos. São os tributos aquelas obrigações de pagar em dinheiro. Outro ponto que nos chama atenção é que o tributo só pode ser cobrado dos cidadãos pelo Estado. Mas não é só o Estado que pode exigi-lo; os entes públicos também podem, desde que autorizados pelo Estado.

É uma constante na doutrina universal o reconhecimento de ser a coerção o elemento primordial do tributo. De fato, não há como fugir dessa conclusão. Ora, é fato inconteste que os indivíduos não colaboram voluntariamente para o custeio do Estado, pelo menos é o que a história nos tem demonstrado até os dias de hoje. Embora compreensível que o Estado não pode subsistir sem a contribuição financeira dos seus súditos, a verdade é que cada um procura eva- dir-se a cumprir a sua parte nesta tarefa ou, se isso não for possível, reduzi-la ao mínimo. A única maneira encontrada de vencer essa resistência é lançar mão do poder de tributar. E dizer, o Estado tem um efetivo predomínio sobre as pessoas que o compõem (poder de imperium), para cobrar destes os tributos. Caso não o tivesse, deixaria de ser Estado. Por outro lado, mesmo que houvesse pessoas benevolentes para com o Estado, contribuindo de acordo com a sua vontade, ainda sim estas cotas seriam insignificantes ante a quantidade de recursos de que o Poder Público tem necessidade de lançar mão.

Em remate, a coerção não significa a prepotência ou o arbítrio. Traduz- se, sim, na necessidade de o contribuinte sujeitar-se à pretensão tributária do Estado, expressa através de uma lei democraticamente votada.

Há casos excepcionalíssimos - guerras, revoluções -, em que se pode registrar a ocorrência de campanhas destinadas a canalizar fundos para o fi- nanciamento dos objetivos coletivos. Essas hipóteses são, contudo, tão espe- ciais e, por conseguinte, destituídas de uma relevância mais significativa, que não devem nem mesmo ser tidas como ressalvas.

Os tributos, pois, constituem a fonte principal das receitas do Estado. Essa arrecadação de poder aquisitivo não pode deixar de produzir efeitos eco- nômicos, quer sobre as atividades isoladas e especificamente consideradas, quer sobre a ordem econômica como um todo. Os Estados, portanto, hoje, não podem furtar-se a manipular essa poderosa arma

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como meio de interferir na vida econômica. Um dos exemplos mais notáveis é a elevação dos impostos aduaneiros como forma de desestimular as importações.

1.1. Definição de Tributo no Código Tributário Nacional

O art. 3.o do Código Tributário Nacional define tributo como "toda pres- tação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada". Analisando-se os diversos trechos da definição, temos:

a) "prestação pecuniária compulsória" - só são tributos aquelas obri- gações de pagar, em dinheiro, impostas pela lei, independentemente da von- tade do contribuinte;

b) "em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir" - hoje em dia o tributo assume normalmente a forma de moeda, como já indicado pelo termo "pecuniário" constante do primeiro segmento da definição; esta, contudo, abre brecha para que certos bens, aí incluídos o trabalho humano, possam ser en- tregues como se moeda fossem, desde que passíveis de uma correspondência com esta, em termos de valor;

c) "que não constitua sanção de ato ilícito" - na verdade, o Estado por vezes exige o pagamento de quantias em dinheiro, mas por força de haver alguém praticado um ato ilícito; a título de exemplo, o mais freqüente talvez seja a multa de trânsito. O próprio não-cumprimento de deveres tributários também pode gerar o dever de pagar multa, mas esta não se confunde com o tributo, que pressupõe, sempre, a licitude do ato que o gerou;

d) "instituída em lei" - o fundamento do dever de pagar o tributo há de ser sempre uma lei ou ato que possua mesma força; ficam excluídas, pois, as obrigações que derivam do contrato ou da vontade unilateral das partes; esses atos são também informados pela lei, que, contudo, limita-se a emprestar for- ça ao pactuado pelas partes, e não a instituir o tributo;

e) "e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada" - a atividade tributária não costuma deixar margens ao exercício da apreciação sub- jetiva do agente fiscal; a lei já fornece todos os elementos para que se edite o ato próprio denominado "lançamento", e ficam excluídos, assim, os atos que têm caráter discricionário, de ampla utilização em outros campos do Direito.

2. MODALIDADES DE TRIBUTOS

A própria Constituição enuncia quais as categorias de tributos admissíveis no nosso sistema.

Há, portanto, cinco modalidades tributárias contempladas na nossa Cons- tituição: impostos, taxas, contribuições de melhoria (art. 145), empréstimos compulsórios (art. 148) e contribuições sociais (art. 149).

2.1. Impostos

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Essa modalidade tributária pode ser assim definida: é a prestação pecuniária exigida dos particulares, em caráter definitivo, por autoridade pública com- petente, cuja arrecadação tem por objetivo atender às necessidades públicas. Os impostos são exigidos independentemente de qualquer contraprestação estatal, é dizer, a sua instituição não compele o Estado a realizar qualquer atividade em favor do contribuinte. Por isso são denominados tributos não-vinculados. Ficam aí salientes os seguintes elementos:

a) caráter obrigatório do imposto;

b) ausência de qualquer relação de correspondência entre a exação tri- butária e qualquer sorte de compensação do Estado ao contribuinte;

c) o imposto exigido não é acompanhado de qualquer promessa de re- embolso, o que lhe confere a qualidade de definitivo.

2.2. Taxas

É a modalidade escolhida pelo constituinte para permitir a cobrança, pelo Estado, de valores por ele despendidos em função de uma atividade sua. Inversamente aos impostos, as taxas são tributos vinculados a prestação, por parte do Poder Público, do poder de polícia ou então pela utilização de servi- ços públicos prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.

2.2.1. Espécies de Taxas

a) De serviço - o serviço público prestado deve ser específico e divi- sível. Dizem-se específicos os serviços que podem ser destacados em unida- des autônomas de intervenção, de utilização ou de necessidades públicas, e divisíveis, quando passíveis de utilização separadamente por parte de cada um dos usuários. O serviço de segurança pública é exemplo de serviço indivisível. Já a água levada até a casa do usuário é exemplo de serviço público específico e divisível.

A taxa cobrada há de manter correspondência com o custo do serviço prestado - é o chamado caráter indenizatório, segundo o qual fica proibido o Estado de valer-se das taxas como forma de auferir receitas não ligadas ao serviço prestado.

Cumpre observar que não há necessidade de o usuário ou o destinatário do serviço vir a fazer efetivo uso dele. A pura e simples colocação de um serviço público à disposição do cidadão já proporciona ao Estado o direito de arrecadar as taxas. Isso decorre do caráter tributário das taxas. Elas são im- postas por força de lei. Quando o são por força de contrato, deixam de perten- cer ao gênero taxa para enquadrar-se no dos preços públicos.

1. Diz o art. 77 do Código Tributário Nacional: As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.

b) Pelo poder de polícia - poder de polícia é toda atividade, preventiva ou repressiva, exercida pela Administração com o propósito de disciplinar o exercício dos direitos

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individuais, de molde a compatibilizá-lo com o exercício de outros direitos dessa natureza, ou até mesmo com igual direito de outras pessoas. Embora essa atividade vise ao bem comum, a Administração, toda vez que se vir compelida a atuar através de medidas concretas, como, por exemplo, concedendo alvarás, interditando estabelecimentos, fiscalizando certas ativida- des, poderá impor ao administrado uma taxa pelo exercício do poder de polícia.

2. Diz o art. 78 do Código Tributário Nacional: "Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando- se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder".

2.3. Contribuições de Melhoria

É uma modalidade tributária indiretamente vinculada. Por que indireta- mente? Porque não basta que o Estado pretenda cobrar o tributo, é necessário que ele faça alguma obra e, mais, deve esta obra produzir uma plus valia da propriedade individual. Note-se que o atual Texto, lamentavelmente, não faz estas duas exigências, sobretudo não limita a cobrança do tributo aos gastos efetivamente realizados pelo poder público nem limita, individualmente, para cobrar de cada contribuinte, a quantia em que seu imóvel foi valorizado. Estas eram garantias do contribuinte que constavam das Constituições anteriores e que foram paulatinamente suprimidas. No entanto, a despeito desta omissão do Texto Constitucional, que agora fala em contribuição de melhoria decorrente de obras públicas, é de se concluir que muito certamente não haverá a cobran- ça constitucional sem a satisfação desses princípios, porque eles são como que inerentes à própria natureza do tributo; aliás, pelo seu próprio nome contribui- ção de melhoria, seria um absurdo cobrar tal contribuição quando o poder público realizasse uma obra que não acarretasse melhoria alguma, ou, pior, produzisse um prejuízo para o cidadão.

2.3.1. Distinção entre Contribuição de Melhoria e Taxa

A distinção entre a contribuição especial na sua modalidade de contri- buição de melhoria e a taxa é um tanto sutil, mas rigorosamente precisável. Ouçamos a respeito o eminente Sousa Franco, que inicialmente salienta a se- melhança que há nos fundamentos de ambas as contribuições especiais:

"O fundamento dos dois tipos de prestações é semelhante: ou há um be- nefício especial auferido por uma atuação que não é diretamente orientada para produzi-lo; ou há encargos especiais para o erário público, resultantes de uma actividade normal do contribuinte. É, pois, uma situação geral, individualizável e anormal, que justifica a imposição de uma prestação tributária".

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3. Antonio L. De Sousa Franco, Finanças públicas e direito financeiro, 2. ed., Coimbra, Livr. Almedina, 1988, p. 489-90.

A seguir, passa a ferir o ponto que nos interessa, qual seja a discrimina- ção da contribuição de melhoria:

"A satisfação individual é ocasional e indirecta - não é intencional e diretamente conexa com os fins da actividade estadual que lhe dá origem (di- versamente do que sucede com a taxa). Em relação ao imposto típico, há pois uma situação de satisfação especial; mas ela não resulta de uma contraprestação específica, imposta pela natureza de um serviço que só possa funcionar pres- tando satisfações individuais; daí que se não trate de uma taxa" (Finanças públicas, cit., p. 490).

Na contribuição de melhoria, pela realização de obras públicas fica muito clara a exposição feita pelo mestre português. O objetivo do Poder Público consiste na construção de uma ponte, por exemplo. Entretanto, embora não diretamente visado pelo Estado, há um subproduto da sua atividade que é uma valorização especial dos imóveis mais diretamente servidos pela ponte. Este aumento de valor, com caráter de especialidade, é uma característica essencial da contri- buição de melhoria. Ela visa, pois, a captar, a transferir para a coletividade o rendimento econômico representado pela plus valia do imóvel, mas financiado com o dinheiro público. É, portanto, modalidade tributária com inegáveis fins extrafiscais que, lamentavelmente, no Brasil tem sido pouco utilizada.

2.4. Outras Contribuições

Denominadas habitualmente pela doutrina "outras contribuições" para diferenciar-se da de melhoria, vêm reguladas no art. 149. São três as hipóte- ses que ensejam a cobrança de contribuições. Temos as contribuições sociais, aquelas que são destinadas a custear a previdência social, feitas por emprega- dos e empregadores. As contribuições que o Estado pode criar quando inter- vém no domínio econômico, para fazer face, portanto, aos custos específicos desta intervenção. E aquelas destinadas a satisfazer os interesses das catego- rias profissionais ou econômicas; por exemplo, as contribuições recolhidas à Ordem dos Advogados do Brasil não deixam de ser uma modalidade de co- brança fundada neste dispositivo.

2.5. Empréstimos Compulsórios

Podem ser criados para atender despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência, ou então no caso de investimento público de caráter urgente de relevante interesse nacional.

Sobretudo esta última hipótese é bastante abrangente. Contudo, houve uma garantia ao contribuinte quanto ao empréstimo compulsório na medida em que se exige, hoje, lei complementar para a sua instituição.

No passado se discutiu sobre a natureza tributária das outras contribui- ções e dos próprios empréstimos compulsórios. Hoje, contudo, em face do próprio Texto Constitucional, tudo leva a crer que a discussão está superada. Todas estas modalidades tributárias são portanto submetidas às regras do Sistema Tributário.

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3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS

O Sistema Tributário, como já havíamos visto, é informado por princí- pios, quer dizer, por normas de grande caráter de generalidade que abarcam, portanto, todo o sistema e impõem-se a todas as modalidades tributárias.

3.1. Princípio da Igualdade

O primeiro destes princípios é o da igualdade. Este princípio surge como uma decorrência do princípio genérico da igualdade esculpido no caput do art. 50 da Constituição. De fato, não se pode falar em igualdade de todos perante a lei sem falar em igualdade perante os tributos. Na Constituição anterior não havia referência propriamente dita à capacidade econômica, quer dizer, à pro- cura de que estes tributos se adaptem à capacidade econômica do contribuinte; isto é o que consistiria especificamente no princípio da igualdade. Assim é que hoje, no atual Texto Constitucional, não há necessidade de invocar o princípio genérico do art. 5.o, posto que há um dispositivo expresso que é o § 1.o do art. 145, que diz que sempre que possível os impostos serão de caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte; facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a estes objeti- vos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e a capacidade econômica do contribuinte. Note-se que o prin- cípio refere-se aos impostos. Não há, portanto, uma disposição constitucional obrigando a que as taxas atendam a este princípio da capacidade econômica. E o dispositivo vai além, porque estabelece claramente a necessidade de gradua- ção dos tributos segundo a capacidade econômica dos contribuintes, o que leva, então, à progressividade dos impostos. Esta progressividade, todavia, é restrita porque o próprio Texto diz que ela se aplicará sempre que possível. É o reco- nhecimento do Texto Constitucional de que determinados impostos, sobretudo os indiretos - que não levam em conta as pessoas que pagam -, não têm condições pragmáticas de levar em consideração a capacidade econômica.

Tal princípio vem reforçado pelo art. 150, II, ao dizer que é vedado às pessoas de direito público "instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independente- mente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos". Vê-se, assim, que este dispositivo confere a possibilidade a todos aqueles que este- jam em situações parificadas com outros, mas que no entanto não estejam pagando impostos na mesma quantidade, de alegar a inconstitucionalidade da situação e conseqüentemente desobrigar-se deste pagamento desuniforme.

Portanto, em síntese, o princípio da igualdade é daqueles que saíram muito reforçados no atual Texto, o que pode levá-lo a ter uma repercussão prática muito grande.

3.2. Princípio da Estrita Legalidade

Este vem esculpido no art. 150, I, e veda às pessoas de direito público exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Há de se notar que o pró- prio art. 5.o também faz referência a um princípio genérico de legalidade, no inc. II, ao dizer que ninguém será obrigado

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a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; portanto, exige-se lei para a criação do tributo.

No sistema anterior o decreto-lei vinha criando tributo; na atual Consti- tuição suprimiu-se o decreto-lei, sendo substituído por medidas provisórias. Estas não excluem a possibilidade de serem adotadas para, inclusive, a instituição de tributo. Contudo é preciso notar que as medidas provisórias são um ins- trumento legislativo fraco, pois ficam na dependência de aprovação pelo Con- gresso no prazo de trinta dias.

O princípio da legalidade é uma regra básica do Sistema Tributário, histo- ricamente das primeiras garantias a surgir em favor do contribuinte e hoje ainda figura como instrumento importante. Entretanto é bom notar que o pró- prio Texto Constitucional enfraquece o dispositivo na medida em que, para determinados impostos, permite que ao menos a alteração das alíquotas seja feita por decreto.

3.3. Princípio da Anterioridade

Terceiro princípio de capital importância é o da anterioridade, quer di- zer: não é possível instituir-se, cobrar-se tributo no mesmo exercício financei- ro em que a lei o criou. É o que está disposto no art. 150, III, b. Há também referência à impossibilidade da criação de tributos relativos a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houvera instituído ou au- mentado. Evidente que esta cautela do constituinte seria até dispensável, visto que, aqui, estar-se-ia criando um tributo retroativo, uma vez que incidiria sobre fatos geradores já ocorridos, hipótese absolutamente absurda.

Mas o importante é a primeira dimensão do princípio da anterioridade, ou seja, não poder haver a criação de um tributo no mesmo exercício financeiro.

A observação que cabe fazer é que esse princípio vem-se enfraquecen- do através do tempo. Em Constituições anteriores exigia-se que o tributo já estivesse criado por ocasião da aprovação da lei orçamentária, que é algo que se dá em torno de setembro ou outubro, enquanto hoje não há mais essa necessi- dade. O tributo poderá ser criado mesmo depois de aprovada a lei orçamentá- ria. Portanto, até o último dia do ano.

3.4. Princípio da Irretroatividade

A nossa Lei Maior, ao contrário do que muitas vezes somos levados a crer, não consagra o princípio da irretroatividade, nem de forma implícita, nem explícita.

É que ela simplesmente preferiu outra modalidade de proteção das situa- ções pretéritas. Isto significa dizer que a lei nova, embora produtora de efei- tos imediatos, pode, em determinadas hipóteses, retroagir, sem quebra de se- gurança para o indivíduo, que é a razão principal de ser da irretroatividade. Tal fato ocorrerá todas as vezes que a lei impuser ônus ou cominar penas para comportamentos que antes eram livres, ou, mesmo, aligeirar essas penas no caso de já previstas. Isso faz com que as leis se tomem, ou por disposição constitucional ou por estatuição da lei ordinária, retroativas.

Com relação à retroação benéfica, não há controvérsia; parece respon- der mesmo a um princípio de justiça ou ao menos a uma necessidade de atua- lizar a lei ante as

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novas realidades sociais. Aliás, o próprio Texto Constitucio- nal consagra esse princípio no art. 5.o, XL, ao dizer que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Se alguém praticou no passado um crime que, se cometido hoje, mereceria pena mais branda, é plenamente razoável e justo que seja a lei mais leve aquela a se impor.

Diante da recriminação universal à retroatividade maléfica das leis e da proteção dada pela nossa Constituição a determinadas situações jurídicas con- solidadas no passado, tais como o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5.o, XXXVI), seria dispensável qualquer menção expres- sa ao assunto, com incidência específica no campo da tributação.

Em virtude da característica de certos impostos, como o de renda e proventos de qualquer natureza, consagrava-se no nosso Direito a prática de permitir que a legislação que dispusesse sobre essa modalidade impositiva pudesse incidir sobre o próprio ano em que é editada e durante o qual estavam ocorrendo os diversos fatos que compõem a hipótese de incidência desse imposto. Editada a lei do ano- base, esta já passava a incidir sobre os diversos fatos jurígenos do imposto de renda, embora o seu pagamento só devesse ocorrer no ano subseqüente.

Hoje não mais se admite esse entendimento.

O art. 150, III, a, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. Isto quer dizer que a lei não pode alcançar os fatos geradores ocorridos antecedentes.

3.5. Princípio da Uniformidade Geográfíca

O art. 151, I, da Constituição dispõe:

"Art. 151. É vedado à União:

I - instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento do outro...

Em outras palavras, os tributos têm que ser uniformes quando instituí- dos pela União. Entendemos ser esta uma decorrência do princípio federati- vo, que repele o tratamento desigual das unidades federadas.

3.6. Princípio da Não-Cumulatividade

Chega-se a esse princípio subtraindo-se do imposto devido na operação posterior o que foi exigível na anterior.

As normas constitucionais prescrevem, por exemplo, para o ICM, que nas operações realizadas por produtores, industriais e comerciantes, se abata, nos termos do disposto em lei complementar, o valor cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.

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Os impostos instituídos pela União, no exercício da competência residu- al, devem ser não-cumulativos.

4. LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR

Dá-se o nome de limitações constitucionais ao poder de tributar, ou imu- nidades tributárias, àquelas normas constantes da Constituição que, em vez de conferir competências positivas para tributar, cifram-se a fazer justamente o contrário, isto é, a proibir que determinadas situações por elas descritas sejam colhidas pela força tributária do Estado. Pode-se dizer que as limitações cons- titucionais ao poder de tributar colaboram para a fixação do campo competencial das pessoas de direito público com capacidade política, no que diz respeito à criação de tributos.

Assim, por exemplo, peguemos uma norma outorgadora de competência que diga ser lícito ao Estado cobrar impostos sobre os produtos industrializa- dos. De outra parte, tomemos a limitação constitucional ao poder de tributar - ou imunidade - que diz ser proibido ao Estado instituir imposto sobre o livro. Da confluência dessas duas normas vai resultar o seguinte: à lei ordiná- ria só é facultado criar o imposto sobre todos os produtos industrializados, salvo o livro; se ela fosse além, sobre este também almejando estender o tri- buto, estaria agindo sem competência.

As imunidades tributárias estão previstas nos arts. 150, 151 e 152 da Constituição Federal. Acontece, entretanto, que, dentre esses preceitos, uns são considerados princípios constitucionais tributários, enquanto outros atuam como limitações propriamente ditas.

De um prisma muito amplo, os referidos princípios também constituem limitações ao poder tributante. Entretanto, têm eles algumas marcas que os dis- tinguem das vedações. Os princípios têm um caráter genérico, amplo, que se volta mais a fixar parâmetros para a instituição e cobrança dos demais tributos. Não inviabilizam de maneira absoluta a atividade tributária. Definem, na verda- de, circunstâncias e critérios que a podem tomar inconstitucional. São dessa índole as normas dos arts. 150, I a V, 151, I, e 152. Já as vedações consagram autênticas imunidades, o que significa dizer que subtraem atos, pessoas ou coi- sas à força tributária do Estado. Estão insendas nos arts. 150, VI, e 151, II e III.

O art. 150, VI, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; b) templos de qualquer culto; c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos tra- balhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lu- crativos, atendidos os requisitos da lei; d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão.

A imunidade do mc. VI, a, é extensiva às autarquias e fundações insti- tuídas pelo Poder Público, exclusivamente no que se refere ao patrimônio, renda e serviços vinculados às suas finalidades essenciais ou dela decorrentes (art. 150, § 2.o). Da mesma forma, as vedações do inc. VI, b e c, compreendem apenas o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as atividades essenciais das entidades mencionadas nessas alíneas.

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Pelo art. 151, fica vedado à União tributar a renda das obrigações da dívida pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (inc. II) e instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios (inc. III).

5. IMPOSTOS DA UNIÃO

São fundamentalmente aqueles constantes do art. 153. Houve a supres- são de alguns, mas a inclusão de um novo, que poderá incidir sobre grandes fortunas nos termos de lei complementar.

É de notar-se que, além dos contemplados no art. 153, a União poderá, mediante lei complementar, criar outros impostos, desde que não cumulati- vos, é dizer, desde que não idênticos a outros já previstos na Constituição, nem que tenham fato gerador ou base de cálculo próprios de impostos previs- tos na Lei Maior.

Estas restrições desaparecem diante de sua competência para instituir impostos extraordinários, o que poderá ocorrer na iminência ou no caso de guerra externa. Diante destas últimas hipóteses a União pode criar quaisquer impostos com a só restrição de suprimi-los gradativamente, assim que cessa- das as causas que ditaram a sua criação.

6. IMPOSTOS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL

Cabe-lhes instituir impostos nos termos do art. 155. No inc. I prevêem-se o imposto de transmissão causa nwrtis e de doação de quaisquer bens ou direitos; o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transportes interestadual e intermunicipal e o imposto de comunicação; e, finalmente, o imposto sobre a propriedade de veículos automotores. O inc. II prevê a possibilidade da criação de um adicio- nal de até cinco por cento do imposto pago à União a título de tributação sobre renda, lucros, ganhos e rendimentos de capital.

A respeito do imposto sobre serviços convém notar que ele é de nature- za não cumulativa, é dizer, faz-se necessário compensar o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores. Com relação, ainda, a este imposto, vale notar que o Senado Federal desempenha importante papel: pode estabelecer alíquotas mínimas para as operações internas; pode também estipular alíquotas máximas para solucionar conflitos que envolvam interes- ses específicos dos Estados. É de frisar-se, ainda, que as alíquotas internas do imposto sobre serviços não poderão ser inferiores às previstas para as opera- ções interestaduais.

7. IMPOSTOS DOS MUNICÍPIOS

Compete aos Municípios instituir impostos sobre: propriedade predial e territorial urbana, transmissão inter vivos de imóveis e de direitos a eles relativos, exceto os de garantia; venda a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, exceto óleo diesel; serviços de qualquer natureza, definidos em lei complementar e não incluídos os que já cabem ao Estado (transporte e comunicação).

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8. REPARTIÇÃO DAS RECEITAS TRIBUTÁRIAS

Depois de levar a efeito uma partilha dos impostos entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a Constituição leva a efeito uma repartição das receitas tributárias; é dizer, há uma transferência das receitas tributárias das pessoas de maior abrangência, União e Estados, em favor das de menor abran- gência, Estados e Municípios. Assim o art. 157 garante aos Estados e ao Distrito Federal o produto do imposto de venda incidente na fonte sobre os rendi- mentos pagos por eles, suas autarquias e fundações. Garante também, a estas mesmas pessoas, vinte por cento de impostos criados pela União no exercício de sua competência residual (art. 154, 1).

O art. 158 fornece quatro incisos que contemplam participações dos Mu- nicípios em impostos da União e dos Estados.

O art. 159 manda a União entregar na proporção que ali estabelece uma parte do produto da arrecadação do imposto sobre a renda e do IPI. O § 3.o deste mesmo artigo cria o dever de os Estados entregarem aos respectivos Municípios vinte e cinco por cento dos recursos que venham a auferir com fundamento no inc. ii do mesmo art. 159.

Obviamente a Constituição proíbe que haja qualquer forma de retenção ou restrição à entrega destas garantias, ou ao emprego dos recursos atribuídos. A só ressalva aberta diz respeito à possibilidade de a União condicionar a entre- ga de seus recursos ao pagamento de seus créditos (art. 160, parágrafo único).

CAPÍTULO II DAS FINANÇAS PÚBLICAS E DOS ORÇAMENTOS

SUMÁRIO: 1. Atividade financeira do Estado. 2. Orçamento. 3. Despesas públi- cas. 4. Receitas públicas. 5. Crédito público. 6. Dívida pública. 6.1. Regime cons- titucional da dívida pública brasileira. 7. Processo legislativo. 8. Restrições à Administração

1. ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO

O Capítulo II do Título VI da Constituição cuida da atividade financeira do Estado que se traduz na obtenção de recursos, na sua gestão e, ao final, na sua aplicação. É uma atividade, sem dúvida, importante porque torna possível a existência das demais. Sabe-se que são hoje muitos os fins colimados pelo Estado: manutenção da ordem interna, asseguramento da defesa contra even- tual inimigo externo, aplicação do Direito aos casos controvertidos (distribui- ção da justiça), feitura das leis que regerão a comunidade, prestação de servi- ços públicos, construção de estradas, fiscalização de muitas atividades parti- culares, e até mesmo no campo social e econômico a presença do Estado faz- se sentir de forma acentuada.

É evidente que a implementação destas tarefas envolve, necessariamen- te, custos insuscetíveis de serem cobertos exclusivamente com o patrimônio próprio do Estado. Daí necessitar ele sempre de recursos, a serem obtidos num volume tal que implica a utilização de métodos exclusivos seus, isto é, que envolvem a prática de atos coercitivos, diferençados, pois, da atividade financeira de uma entidade privada. Os fins estatais diferem, também,

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daque- les próprios dos particulares. A passagem dos dinheiros arrecadados pelos diversos órgãos estatais é feita também segundo regras próprias.

Em síntese, a atividade financeira do Estado é toda aquela marcada ou pela realização de uma receita ou pela administração do produto arrecadado ou, ainda, pela realização de um dispêndio ou investimento. É o conjunto das ativi- dades que têm por objeto o dinheiro. Essa atividade abrange, pois, o estudo da receita, da despesa, do orçamento e do crédito público. No Texto Constitucional vigente a matéria tipicamente financeira é tratada nos arts. 163 a 169. Nota-se que a lei complementar tem uma abrangência bastante significativa nesse cam- po. A ela caberá dispor sobre todas as matérias constantes no art. 163.

2. ORÇAMENTO

O orçamento é uma peça contábil que faz, de uma parte, uma previsão das despesas a serem realizadas pelo Estado, e, de outra parte, o autoriza a efetuar a cobrança, sobretudo de impostos e também de outras fontes de recursos. O orçamento tem repercussões econômicas, políticas e jurídicas.

O elemento econômico traduz-se no fato de o orçamento assumir, inequi- vocamente, a forma de uma previsão da gestão orçamentária do Estado, o que seria um autêntico plano financeiro. O elemento político consubstancia-se na autorização política para a efetivação desse plano ou projeto de gestão estatal. E, finalmente, o elemento jurídico é traduzido nos efeitos próprios dos orça- mentos e regulamentos pelos diversos sistemas jurídicos.

A nossa Constituição consagra, além da modalidade de orçamento tradi- cional ou anual, mais duas: o orçamento plurianual e a Lei de Diretrizes Orça- mentárias. Sendo estas modalidades de iniciativa do Poder Executivo.

O plano plurianual tem por objeto as despesas de capital para aqueles programas de duração continuada, é dizer, que extravasem o orçamento anual em que foram iniciadas.

Já a lei de diretrizes orçamentárias também tem uma duração maior do que a do exercício financeiro anual. Nela deverão constar as metas e as priori- dades da Administração, assim como servirá de critério para a elaboração da lei orçamentária anual; da mesma forma, disporá sobre as alterações na legislação tributária (art. 165, § 2.o).

A lei orçamentária anual é aquela que prevê de forma estimativa as receitas da União, assim como autoriza a realização das despesas. A lei orçamentária é anual, isto é, válida para o exercício financeiro que tem a duração de um ano. Conterá um orçamento fiscal, é dizer, uma peça prevendo as receitas fiscais da União, de seus fundos, de órgãos e entidades da Administração direta e indireta. Deverá conter também um orçamento de investimento daquelas empresas em que a União detenha a maioria do capital votante. E finalmente um orçamento da seguridade social, com abrangência de todos os órgãos a ela vinculados.

A lei orçamentária anual não pode conter dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa. Ficam proibidas o que ficou conhecido como caudas orçamentárias, matérias de natureza não financeira, cuja aprovação era forçada por via da aprovação da lei orçamentária. A Constituição permite, no entanto, que na lei orçamentária se

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inclua a autorização para a abertura de cré- ditos orçamentários bem como a contratação de crédito por antecipação.

Crédito suplementar é aquele a ser aberto por ato do chefe do Executivo, no curso do exercício financeiro, para reforçar algum item do orçamento que se encontre na iminência de exaustão.

Operações de crédito por antecipação de receita consistem naqueles emprés- timos que os poderes públicos tomam, para saldá-los no curso do mesmo exercício financeiro. É uma forma de ajustar a saída com o ingresso das receitas.

Maior detalhamento sobre a matéria orçamentária, inclusive sobre as diversas leis orçamentárias, deverá ser promulgado por meio de lei complementar. Deverão também ser objeto da referida lei as próprias normas de gestão finan- ceira e patrimonial da Administração direta e indireta (§ 9.o, art. 165).

Independente disto a própria Constituição impõe algumas normas sobre o processamento dessas leis orçamentárias. Elas serão desde logo examinadas por uma comissão mista permanente de Senadores e Deputados, perante a qual já deverão ser apresentadas as emendas, que serão apreciadas pelo Plenário das duas Casas do Congresso Nacional.

3. DESPESAS PÚBLICAS

A despesa pública tem como característica importante a de ser sempre antecedida de previsão orçamentária. No orçamento é que se faz a fixação da despesa. Aliás, o art. 167, II, da Constituição da República proíbe a realização de despesas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais.

A despesa pública tem de ser feita por um ente público, é dizer, por uma entidade que a qualquer título manipule receitas públicas. O Estado hoje tanto pode efetuar as suas despesas diretamente pela Administração centralizada quanto pela descentralizada. O art. 165, § 5.o, II, da Constituição Federal diz que o orçamento de investimentos das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto constará da lei orçamentária anual. Assim, embora empresas dessa natureza não se rejam pelo direito público, o fato é que as suas despesas com investimentos recebem um tratamento orçamentario, o que, portanto, as alçam à condição de despesas do próprio Poder Público.

Além disso, a despesa há de ser sempre um dispêndio visando a uma fina- lidade de interesse público. É certo que entram muitas variáveis na determina- ção pelo Estado de quais os fins que devem ser perseguidos e, conseqüentemen- te, custeados pelas despesas públicas. De qualquer forma - embora não se negue que haja sempre uma decisão política de gastar, que é expressa, sobretu- do na legislação orçamentária -, uma vez editada esta, o administrador há de ater-se estritamente às autorizações constantes da lei. Os procedimentos que possam implicar desvios dessas finalidades são sempre passíveis de repressão, graduada conforme a gravidade do próprio desvio, que pode ir desde os meros desperdícios até a má gestão dos dinheiros públicos.

4. RECEITAS PÚBLICAS

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Para que se torne possível a realização de despesas o Estado tem que, forçosamente, obter receitas. Com isso já se tem uma idéia introdutória do que seja receita pública: é todo ingresso de dinheiro nos cofres de uma pessoa de direito público.

Há de se observar contudo que as receitas públicas assumem formas muito variadas no Estado moderno. Já se foi o tempo em que o Estado atuava como qualquer pessoa, isto é, valia-se dos recursos que pudesse obter pela exploração de seu patrimônio. Com o passar do tempo as funções estatais foram se agigantando e as receitas patrimoniais não se mostraram suficientes. Tornou-se imperioso o apelo para outras fontes de ingresso. Essas novas fon- tes passaram a lançar mão da força coercitiva, própria do Poder Público, para impor aos particulares o pagamento de quantias em dinheiro, independente- mente de contraprestação pública.

Quando se refere a receitas públicas, o qualificativo públicas, na verda- de, alude à natureza do ente que as recebe e não à qualidade em si da receita. Daí porque ser lícito afirmar que são receitas públicas aquelas recebidas por uma pessoa pública. E, reversamente, são privadas as receitas auferidas por uma pessoa jurídica de direito privado.

Quanto ao objeto das receitas, na sua concepção moderna, há de recair unicamente no dinheiro e expressa-se, pois, em moeda. Não se pode esquecer que as receitas constituem uma das grandes divisões do orçamento, o qual, por sua vez, exprime-se em unidades monetárias. É oportuníssima a advertên- cia acerca do exato papel dos bens in natura e dos serviços pessoais, que, embora integrando o patrimônio do Estado, não constituem receitas.

Sabe-se que o Estado pode adquirir propriedades por meio da desapropria- ção, ou mesmo receber doações inter vivos ou causa mortis. Nesses casos, ainda que se suponha um incremento patrimonial do Estado e aceitando-se que possa daí surgir meios com os quais o Estado supra suas necessidades, não constituem ingressos no sentido técnico; portanto não são receitas. Estas são classificadas em: patrimoniais, tributárias e creditícias.

Receitas patrimoniais são as geradas pela exploração do patrimônio do Estado (ou mesmo pela sua disposição), feitas segundo regras de direito privado, conseqüentemente sem caráter tributário.

Com efeito, os Poderes Públicos desfrutam de um patrimônio formado por terras, casas, empresas, direitos, que são passíveis de ser administrados à moda do que faria um particular, isto é, dando em locação, vendendo a produ- ção de bens ou mesmo cedendo o imóvel ou o direito. O que é importante notar é que, ao assim proceder, os Poderes Públicos estão se valendo de téc- nicas de direito privado, o que implica o respeito integral à livre manifestação dos particulares. Não está presente nunca o caráter impositivo ou coercitivo próprio das receitas tributárias.

Receitas tributárias são aquelas obtidas mediante o recurso ao poder da autoridade, que impõe aos particulares um sacriftcio patrimonial que não tem por finalidade a aplicação de uma punição, nem resulta de um contrato ante- riormente firmado.

São as receitas tributárias as mais importantes no Estado moderno. Nin- guém pode negar a importância do tributo, sobretudo na sua modalidade de imposto. De fato, por sua própria natureza, o Poder Público volta-se para a realização de diversos serviços cujos benefícios não são divisíveis. São utilidades não suscetíveis de exclusiva imputação individual.

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Assim sendo, é de justiça que também a coletividade seja chamada a cobrir essas despesas mediante o pagamento do imposto.

Receitas creditícias são aquelas que resultam de operações feitas pelo Estado no mercado financeiro. Na sua essência o crédito público resulta de uma relação bilateral voluntária em que o particular empresta dinheiro ao próprio Estado. Não se confunde com o empréstimo compulsório, que é modali- dade tributária, por lhe faltar precisamente o caráter de voluntariedade.

5. CRÉDITO PÚBLICO

O crédito público inclui-se entre os meios de que desfruta o Estado para obter fundos. Guarda, contudo, uma nítida diferença com as receitas tributá- rias. Estas não geram o dever de restituir as quantias havidas. No fundo, os empréstimos públicos não acrescem o patrimônio estatal porque a cada entra- da de caixa corresponde o surgimento de um lançamento no passivo, de tal sorte que a operação se torna patrimonialmente neutra.

O crédito público assume na vida moderna dos Estados capitalistas uma importância sem precedentes. Logo após a Segunda Grande Guerra, as opera- ções com títulos da dívida pública tinham mais por finalidade exercer um controle sobre a liquidez da economia. Era, portanto, um instrumento destina- do a repercutir no equilíbrio entre a oferta e a procura. Na medida em que esta era muito alta, prenunciando uma inflação eminente, o Poder Público vendia títulos de sua responsabilidade, com o que recolhia parte da moeda circulante. Quando a conjuntura se mostrasse contrária, é dizer, com tendências para uma fraca demanda, prenunciadora de uma recessão econômica, o Estado resgatava esses títulos. Com isso, injetava recursos monetários na economia, responsáveis por um incremento da procura de bens e serviços, estimulando, destarte, as atividades econômicas.

Modernamente, o crédito público tem-se tornado em muitos países um instrumento ordinário de suprimento dos cofres públicos e passou a ser utili- zado como fonte de financiamento das despesas estatais, sem que com isso se queira dizer que a compra ou a venda de títulos públicos não deixe de produ- zir efeitos no montante de liquidez de economia.

6. DÍVIDA PÚBLICA

Das operações de crédito, em que o Poder Público figura como tomador do dinheiro, acaba por resultar uma dívida pública. Esta é, portanto, uma de- corrência das operações creditícias. Daí que seus problemas, sua natureza, suas classificações apresentem, logicamente, estreita relação com o estudo do próprio empréstimo público.

A dívida pode ser contraída com credores nacionais ou residentes no próprio país, daí falar-se numa dívida pública interna. Normalmente os encar- gos dessa dívida são satisfeitos em moeda nacional.

O Poder Público pode, em função da sua soberania, manipular essas dívidas, mesmo quando se trate de uma dívida pública externa, isto é, contraída com credores fora do país. Neste caso, a dívida é normalmente satisfeita em ouro ou em moeda que goze de confiança internacional.

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No que concerne à dívida pública externa, há uma restrição dos meios de que se pode valer o Estado para resgatá-la. Por exemplo, em caso de dívida pública interna, pode valer-se da desvalorização da moeda, porém, quando se trata de dívida externa, essa possibilidade já não se lhe encontra às mãos.

A dívida externa tem repercussões na balança de pagamentos. Um excessivo comprometimento financeiro perante o exterior pode onerá-la em demasia, tornando difícil para o país solver todos os seus compromissos internacionais.

Vimos que, quando se trata de uma dívida pública interna, o Estado está em débito, na generalidade dos casos, com os seus cidadãos; no entanto, o Estado goza de soberania perante estes, o que lhe permite continuar nessa condição.

Já quando se cuida de dívida externa, não ocorre o mesmo com relação aos cidadãos dos outros Estados credores. Além do mais, os credores estran- geiros muitas vezes associam-se, constituindo grupos, que têm força, e ainda que assim não fosse, os seus interesses são defendidos pelos governantes dos respectivos países.

Outra classificação da dívida pública de aceitação bastante generaliza- da é a seguinte: fundada e flutuante.

A dívida fundada é a resultante dos empréstimos temporários a médio e a longo prazos, compreendidos também os empréstimos perpétuos, isto é, os que só rendem juros mas que não são resgatáveis. O termo "fundada" decorre de uma circunstância histórica, qual seja a de que, na Inglaterra, quando se emitiam empréstimos dessa natureza, simultaneamente era instituído um fundo para fazer face aos ônus advindos dessa operação.

Quando a dívida fundada provém de empréstimos perpétuos, recebe o nome de dívida consolidada.

Dívida flutuante é a decorrente dos empréstimos a curto prazo. De fato, o tesouro pode sentir necessidade, e isso se dá freqüentemente, de fazer corres- ponder os ingressos públicos ao momento em que deverá ocorrer a despesa. Acontece, entretanto, que isso nem sempre é possível, porque o sistema arreca- dador tem a sua cronologia própria, que não corresponde, necessariamente, com aquela do desembolso. A diferença pode ser pequena, dois, três meses, mas, para que não ocorra a insolvência do Poder Público, cumpre antecipar as recei- tas, o que é feito por intermédio de operações creditícias que dão lugar à cha- mada dívida flutuante. Ela flutua no sentido de que oscila muito rapidamente.

As dívidas públicas podem ser extintas por amortização, que significa a diminuição do débito principal mediante um pagamento gradual.

Também podem ser extintas por conversão, ou seja, a substituição do objeto da dívida mediante a mutação do que fora anteriormente antecipado ou prometido.

E, por último, pelo repúdio, que vem a ser a recusa do Poder Público a saldar seus compromissos por razões de conveniência ou de validade jurídica.

6.1. Regime Constitucional da Dívida Pública Brasileira

A Constituição de 1988 confere um tratamento razoavelmente adequado à questão da dívida pública. De fato, não seria o caso aqui de discutir as vanta- gens e as

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desvantagens do endividamento público. Basta tão-somente ter-se em conta que é ele um processo que tem limites, significa dizer que o endividamento não pode seguir uma aspiral crescente com um ponto no infinito. Isto colocaria problemas que afetariam a própria soberania nacional quando de dívida externa se tratasse, assim como poderia impor aos habitantes de um país sérios gravames afetando ônus e prerrogativas para os diversos membros da coletividade, de molde, inclusive, a pôr em risco a própria coesão social. Não se pode ainda esquecer o problema consistente no gasto feito por uma geração cuja conta, no entanto, fica para ser resgatada pelas posteriores. Diante de tudo isso é natural que o Texto Constitucional tenha procurado traçar um balizamento desse pro- cesso, cujas regras principais serão a seguir abordadas.

Dependem de autorização do Senado as operações externas de natureza financeira, sejam de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios. Qualquer uma dessas pessoas de direito público pode cele- brar um contrato de empréstimo junto às praças financeiras internacionais. Ocorre, no entanto, que não basta a iniciativa do Executivo. É necessário que ela seja precedida de uma autorização expedida pelo Senado, que obviamente levará em conta aspectos de toda ordem, desde os econômico-financeiros até os político-administrativos (art. 52, V).

O inc. VII do mesmo artigo reforça as limitações a que estão sujeitas essas pessoas pela previsão que faz da competência do Senado para fixar li- mites globais e condições para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público federal. Note-se, ainda, que o endividamento indireto, que seria aquele resultante não da contração de um débito, mas da outorga de uma garantia, também encontra vedação ex- pressa na Lei Maior. O conferimento pela União de avales sofre as restrições do inc. VIII, que diz caber ao Senado dispor sobre limites e condições para concessão de garantia da União em operações de crédito externo e interno.

Os incs. VI e IX, quase que redundantes, vêm prever a possibilidade de fixação de limites tanto para a dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, como também da própria dívida mobiliária.

Por outro lado, o art. 164, no seu § 1.o, veda ao Banco Central conceder direta ou indiretamente empréstimos ao tesouro nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira. Ademais, permite, no § 2.o do mesmo artigo, o exercício pelo Banco Central da tarefa de aumentar ou dimi- nuir a liquidez do sistema financeiro mediante a compra e venda de títulos de emissão do tesouro nacional.

7. PROCESSO LEGISLATIVO

O cabimento de emendas obedece a critérios bem diversos dos admiti- dos na Constituição anterior, dentre os quais destaca-se o do inc. II do art. 166. Vê-se que cabe aos parlamentares mudar a destinação da despesa, isto é, criar uma despesa não prevista acompanhada da extinção de algumas outras de igual porte. Estas extinções só não se podem dar no tocante a dotações para pessoal e seus encargos, serviço da dívida e transferências tributárias consti- tucionais para Estados, Municípios e Distrito Federal.

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Os projetos de leis orçamentárias são de iniciativa exclusiva do Presidente da República, que deverá exercê-la na forma do disposto na já referida lei complementar (art. 165, § 9.o).

8. RESTRIÇÕES À ADMINISTRAÇÃO

A existência dos diversos orçamentos impõe sérias restrições à atuação administrativa. Elas vêm elencadas no art. 167. Citemos como exemplo a re- gra fundamental de que a realização de despesas só se pode dar dentro do limite dos créditos, suplementares ou adicionais; em outras palavras, à Administra- ção não é lícito gastar dinheiro em despesas não autorizadas pela lei orçamen- tária. Fica também proibida de proceder à vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, salvo, é lógico, a própria repartição do produto da arrecadação dos impostos, a destinação de recursos para manutenção de desen- volvimento do ensino (art. 212) e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8.o.

A despesa com pessoal ativo e inativo das pessoas de direito público com capacidade política não poderá exceder aos limites estabelecidos em lei comple- mentar. As despesas com pessoal só poderão ser feitas se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atendê-las. E se também houver autorização espe- cífica na lei de diretrizes orçamentárias. Desta última exigência ficam excluídas as empresas públicas e as sociedades de economia mista.

TÍTULO VII DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA

CAPÍTULO I DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA

SUMÁRIO: 1. O Estado enquanto agente normativo. 2. O Estado planejador. 3. Inter- venção do Estado no domínio econômico. 3.1. Evolução constitucional. 3.2. Limites à atuação do Estado na Magna Carta. 4. Livre iniciativa. 4.1. Exceções. 4.1.1. O mo- nopólio do petróleo. 5. Livre concorrência. 5.1. O abuso do poder econômico. 5.1.1. A legislação antitruste nos EUA. 5.1.2. A legislação antitruste no Brasil.

Tornou-se freqüente nas Constituições do século XX o conterem disposições sobre a ordem econômica e, por vezes, a social, o que era inconcebível nas Constituições dos séculos XVIII e XIX, porque tais matérias eram tidas como fora do alcance da intervenção estatal; a economia e os problemas sociais eram da alçada dos particulares. Sem embargo, os profundos abalos da ordem econômica, causados sobretudo por guerras e outras crises na economia, leva- ram as Constituições a trazerem dispositivos traçando as linhas mestras da estruturação econômica do Estado.

Nos Estados ocidentais, embora dominasse, na sua quase-unanimidade, o sistema liberal de organização econômica, este foi amenizado ou enfraquecido pela adoção de normas autorizadoras da intervenção do Estado em certos do- mínios, nacionalizando,

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portanto, algumas atividades, sobretudo no campo mineral, e inclusive conferindo poderes ao Estado para regulamentar outras atividades. Até mesmo a técnica do serviço público prestou-se a esse tipo de intervenção, aumentando a lista dos serviços públicos.

No mundo há dois sistemas fundamentais que disputam o privilégio de ser o adotado na organização da vida econômica. O sistema socialista, calca- do na propriedade coletiva dos meios de produção e implantado nos países marxistas, sobretudo do leste europeu; o outro fundado na propriedade priva- da dos meios de produção, na iniciativa privada e na livre concorrência, de um modo geral aceito em todos os países que não optaram por uma economia coletivizada.

A nossa ordem econômica pertence a este último modelo. Dentre os princípios que a informam, arrolados no art. 170 da Constituição, figuram o da propriedade privada (mc. II) e da livre concorrência (mc. IV), reforçado pelo parágrafo único que diz que a todos é livre o exercício de qualquer ati- vidade econômica, independente de autorização de órgãos públicos, salvo os casos excepcionados em lei. É o regime, pois, da livre empresa, pelo qual a cada um é dado lançar-se na atividade empresarial por sua conta e risco. As leis que presidem a esta atividade são as de mercado.

É certo que a livre iniciativa cede o passo à intervenção do Estado em alguns pontos. É o que dispõe o art. 173 que torna possível a exploração direta da atividade econômica pelo Estado, quando presentes motivo de segurança nacional ou relevantes interesses coletivos, tais como forem definidos em lei. É importante notar que a intervenção do Estado levada a efeito por meio de em- presas públicas, sociedades de economia mista e de suas subsidiárias que ex- plorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, submete-se, toda ela, ao regime jurídico próprio das em- presas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias (§ 1.o do art. 173 da CF, com redação dada pela EC n. 19/98), sendo-lhes vedados quaisquer privilégios fiscais não extensivos às empresas privadas (§ 2.o do art. 173 da CF). O princípio que subjaz a estas regras é o de que o Estado não pode ser um concorrente privilegiado, mas ele há de disputar com os particulares o predomínio no mercado, debaixo de regras isonômicas quando, ainda, seja justa a competição. A Constituição anterior excluía deste tratamento paritário as empresas públicas que explorassem atividades monopo- lizadas. A atual Constituição não faz referência a esta ressalva.

1. O ESTADO ENQUANTO AGENTE NORMATIVO

Esta é a atividade do Estado enquanto agente protagonizador da ativida- de econômica. O mesmo Estado também intervém, contudo, na qualidade de agente normativo e regulador da economia. Tal mister vem disciplinado no art. 174, que torna certo que ao Estado é dado fiscalizar, incentivar e planejar a atividade econômica.

De fato, o Estado não pode furtar-se a algumas atividades que, sem impli- carem a prestação da atividade econômica, propriamente dita, venham a cola- borar, através de um processo de conformação da atividade dos particulares, o atingimento mais pleno possível dos objetivos do art. 170. Assim é que cabe ao Estado fiscalizar. É um poder amplo de que desfruta o ente estatal, de- nominado poder de polícia. Por seu intermédio objetiva-se manter a atividade privada dentro do estabelecido pela Constituição e pelas leis. Mas o Estado também pode incentivar a determinados ramos da economia que para um mais rápido

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desenvolvimento estejam a demandar uma política de fomento e estí- mulo. É o que acontece, sobretudo, nas regiões norte e nordeste, onde de há muito aplica-se uma política visando à redução das desigualdades regionais (art. 170, VII). O próprio objetivo da busca do pleno emprego (art. 170, VIII) também serve de respaldo a um sistema de subsídio, isenções e outros meios de incentivo.

2. O ESTADO PLANEJADOR

As economias socialistas são sempre planejadas, ou melhor, os diversos agentes econômicos, as empresas estatais, obedecem a um plano único nacio- nal traçado por um poder central; plano, este, centralizado e obrigatório para as empresas. Desaparece, portanto, a força do mercado, e a direção das empresas segue tão-somente os ditames do planejamento.

Essa idéia de impor metas fixas e meios racionais influenciou também os países do ocidente, que - sem abandonarem a economia de livre iniciati- va, em que os diversos agentes econômicos é que tomam as decisões quanto a investir, quanto ao momento de fazê-lo e sobre a quantidade a ser investida - adotaram, ainda que de forma branda, o princípio do planejamento. Edita- ram-se planos prevendo-se o atingimento de certas metas, com a profunda diferença, no entanto, de que tais planos não são totalmente vinculantes, como acontece no sistema socialista. Apenas são vinculantes com relação ao Esta- do; no que respeita aos particulares contêm estímulos e incentivos para que sejam adotados ou seguidos, mas não são obrigatórios ou cogentes.

Finalmente, o art. 174 contempla o Estado planejador. O planejamento é, em princípio, próprio dos países socialistas, como já vimos. No ocidente ele tem penetrado de forma moderada, não com força obrigatória absoluta, mas como meio de orientação da atividade dos particulares. É esta a razão pela qual o art. 174 diz que o planejamento será determinante para o setor público e indicativo para o privado.

3. INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO

3.1. Evolução Constitucional

Na nossa história constitucional, a primeira Constituição a tratar do cha- mado fato econômico foi a de 1934. Seguia, na verdade, o modelo de Weimar, procurando, como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "fixar, numa "Ordem Econômica e Social" (Tít. IV da Constituição), os princípios básicos a que a economia deveria ajustar-se (...)". A intervenção do Estado no domí- nio econômico estava, contudo, desatravancada, restando fortalecida, de certa forma, pela crise econômica mundial, que parecia reclamar por uma atuação estatal cada vez mais forte e ampla.

1. Direito constitucional econômico, São Paulo, Saraiva, 1990.

Na Carta de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, pretendeu-se substituir o capitalismo por uma economia corporativista, na qual a economia de produ- ção deveria ser organizada em corporações colocadas sob a assistência e a proteção do Estado. Além disso,

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eram entendidas como órgãos do Estado, exercendo funções delegadas do Poder Público (art. 140).

Na Constituição Federal de 1946, restabeleceu-se o sistema de 1934, é dizer, o da economia capitalista, mas, apesar disso, permitiu uma forte inge- rência do Estado no setor econômico. Analogamente posicionou-se a Consti- tuição de 1967, inclusive com a redação que lhe foi dada pela Emenda Cons- titucional n. 1/69. Até aquele tempo, era forte o dirigismo econômico, embora praticado em nome da economia de mercado e da livre concorrência.

A partir da Constituição de 1988, houve uma grande mudança sobre o conceito de intervenção do Estado na economia, restringindo-o. Passaremos a

estudar os atuais limites impostos à sua atuação.

3.2. Limites à Atuação do Estado na Magna Carta

De extrema relevância se mostra, na análise constitucional, o aspecto

organizacional da economia adotado.

Conforme já visto, distinguem-se radicalmente dois tipos de organiza- ção econômica. A primeira é a chamada economia descentralizada, caracteri- zada pelo primado das leis de mercado, na qual o Estado exerce somente uma intervenção indireta e global. A outra é a economia centralizada, cujo centro de todas as decisões é o Estado, efetuando um planejamento dominante e irreversível, no qual as normas jurídicas tentam impor-se sobre as leis econô- micas na suposição de discipliná-las.

Devemos ter em consideração os diversos princípios presentes no texto da Lei Magna, pois, dos valores fundamentais por ela albergados, não pode- rão se afastar jamais nem o legislador infraconstitucional, nem muito menos o administrador na execução da lei e da Constituição.

A doutrina em geral tem reconhecido esse papel saliente e preponderan- te dos princípios na ordem jurídica, vislumbrando neles mais do que meras normas, justamente por se irradiarem sobre o todo normativo, ao contrário do que ocorre com os meros preceitos ou regras, que se exaurem no comando que expedem.

Nesse sentido, a atual Constituição, logo em seu art. 1.o, deixa claro que constituem fundamentos da República Federativa do Brasil os "valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" (inc. IV).

No capítulo que trata da ordem econômica, passa a Constituição a elencar no art. 170 seus princípios fundamentais. Deles, devemos ressaltar, de imedia- to, a menção expressa que novamente é feita à livre iniciativa (caput do art. 170). Essa representa, pois, um dos fundamentos mais importantes da nossa ordem econômica, reforçado de forma mais abrangente ainda pelo inc. IV do referido artigo, que prevê a livre concorrência.

A importância dos princípios referidos acima é maior na atual análise do direito infraconstitucional quando se tem em mira que a anterior Constitui- ção não os prescrevia de maneira tão explícita e abrangente como a atual. Tínhamos, àquela época, uma ordem constitucional muito mais tolerante com o intervencionismo econômico, exigindo apenas que se desse mediante lei.

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Ao contrário da Carta anterior, a atual não contempla a expressão "in- tervenção do Estado no domínio econômico", porque a atuação no domínio econômico é, toda ela, deferida aos particulares, cabendo tão-somente ao Es- tado assumir as excepcionalíssimas hipóteses do art. 173 da Constituição.

O art. 173 estatui que:

"Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei".

Em razão disso, para que possa ocorrer a exploração direta da atividade econômica pelo Estado, exige-se que se esteja diante de imperativos de segu- rança nacional ou de relevante interesse coletivo, ambos assim definidos em lei.

Nessa linha, na atual ordem constitucional, as restrições que possam ser criadas ao princípio da livre iniciativa têm caráter absolutamente excepcional e somente podem emergir das hipóteses expressamente previstas na Consti- tuição, ou implicitamente autorizadas por ela.

Por ser mais analítica que sua antecessora, a atual Carta Magna nos apre- senta a vantagem de haver reduzido o uso de fórmulas excessivamente gené- ricas dos arts. 163 e 167, que regulavam o sistema de intervenção do Estado na atividade econômica, tão freqüentemente abusados que as intervenções se faziam até por atos administrativos, como decretos, resoluções etc.

O art. 163 da antiga Carta facultava à lei federal intervir no domínio econômico e instituir o monopólio, quando indispensável por motivo de segu- rança nacional ou para organizar setor que não pudesse ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa, permitindo, afinal, o emprego de qualquer modalidade interventiva: a regulatória, a concorrencial, a sancionatória e a monopolista, pois não as distinguia.

Também o antigo art. 170 deixava espaço muito amplo à intervenção concorrencial do Estado em qualquer atividade econômica, dando apenas prefe- rencia às empresas privadas, permitindo a exploração estatal direta, mesmo sem caráter suplementar, o que equivaleria a dizer que, declarado o interesse público, estava constitucionalmente justificada a estatização de qualquer setor da economia.

Atualmente, os novos casos de intervenção, seja ela regulatória, sancionatória ou monopolística, embora multiplicados, pelo menos restaram bem definidos, numerus clausus, e apenas um dispositivo trata agora, e com maior restritividade, da intervenção (art. 173).

Assim, conquanto o Estado brasileiro tenha ampliado seus monopólios, tratando-se de modalidades de aplicação imediata, em compensação, com o desaparecimento da regra do art. 163, caput, da Carta anterior, impossibili- tou-se, na nova, a criação de qualquer outra modalidade de monopólio estatal, a não ser por meio de emenda constitucional.

Especial consideração merece o art. 174, que é, de certa maneira, ambí- guo, sujeitando-se a interpretações variadas. Numa primeira leitura, poderia parecer que vem

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contradizer a adoção de uma economia de mercado, mas cujos princípios, acima expostos, impedem conclusões dessa ordem. Sua re- dação é a seguinte:

"Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá..."

Numa economia de mercado pura, é o próprio mercado que regula a ati- vidade econômica, sem que haja qualquer intervenção por parte do Estado. Em termos absolutistas de economia pura, Estado nenhum se submeteria a esse mo- delo. Mas não existe o Estado de mercado puro, porque alguns pontos do siste- ma econômico são sempre retidos na mão do Estado, entre os quais a própria utilização de seu orçamento, a emissão de moeda etc. O que interessa é apartar bem esses mecanismos de grande abrangência, que dizem respeito ao todo eco- nômico, em que o Estado atua legitimamente, das demais incursões que possa pretender, de caráter estritamente particularizado, e que jamais encontrarão respaldo constitucional. Aquela a que nos referimos, em que sua atuação se mostra legí- tima, refere-se a um tipo de atividade da qual o Estado não pode abdicar. Nos momentos de grande demanda, procura ele esfriar o passo da economia, e nos momentos de crise, atua incentivando, instigando o mercado. Por isso que se tem o Estado como agente normativo e regulador da ordem econômica. Não é esse tipo de atividade que se põe em questão. Mas o caráter normativo não pode ser utilizado de molde a excluir a liberdade econômica. É de boa técnica interpretativa a integração dos princípios que aparentemente conflitam.

Se a Constituição coloca o Estado na posição de agente regulador, nem por isso pretendeu implantar uma economia de cunho centralizado. Não per- mite esse entendimento nem a análise dos princípios consagrados expressa- mente, nem a análise sistemática do Texto.

Ademais, exercerá essa sua posição na forma estabelecida em lei. O prin- cípio da legalidade deverá, portanto, pautar a atuação do Estado nessa função.

O mesmo art. 174 ainda dispõe que "... o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado".

Com relação a esse dispositivo, falava-se, na Constituinte, em controle, comando. Esta palavra foi então retirada nos debates, justamente pelo teor de dominação, de comando que reflete. Mas o texto refere-se a um "planejamen- to". Aqui a cautela do intérprete e aplicador da Lei Maior deverá ser grande.

Como depreende-se da leitura do dispositivo, três são as funções atribu- ídas ao Estado: fiscalização, incentivo e planejamento. Passemos, então, à apuração do significado dos termos utilizados.

A fiscalização tem o sentido de acompanhamento, na verificação da ade- quação do comportamento privado com relação aos ditames normativos.

O incentivo já traz em si a idéia de estímulo, de ajuda, enfim, de conces- são de benefícios no implemento da atividade privada.

Já o planejamento, segundo a norma, é determinante para o setor públi- co e apenas indicativo para o setor privado. A própria utilização da palavra "determinante" é indicativa da intenção do legislador, posto que forma uma expressão mais fraca do que a habitualmente utilizada: "planejamento impe- rativo". Se assim é para o próprio setor público,

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o que não se dirá para o privado, no qual o planejamento não poderá ir além da simples indicação.

É a partir dessas considerações que deverão ser compreendidas as possibili- dades de atuação de qualquer organismo administrativo, como o CADE e outros.

4. LIVRE INICIATIVA

A livre iniciativa é uma manifestação, no campo econômico, da doutrina favorável à liberdade: o liberalismo. Este tem por objeto o pleno desfrute da igualdade e das liberdades individuais frente ao Estado. Assim sendo, a livre iniciativa consagra a liberdade de lançar-se à atividade econômica sem se deparar com as restrições impostas pelo Estado.

A livre iniciativa foi se firmando através dos tempos, embora não sem encontrar sérias dificuldades. Durante muito tempo acreditava-se que o lucro de um agente econômico era o prejuízo de outra pessoa. Em outras palavras, o que um tem é porque foi necessariamente subtraído de outro. Os idealizadores dessa teoria encontraram na figura do comerciante a personificação desse lucro perverso, procurando onerar ao máximo o preço de suas mercadorias.

O exemplo clássico é o século IX, o auge do feudalismo. A unidade de produção típica do feudalismo era chamada de domínio. Assim o mundo se viu dividido em diversos deles, de modo que o exíguo comércio circulante, porque a economia era predominantemente agrária e auto-suficiente, tinha de passar obrigatoriamente por estes domínios, sujeitos a inúmeros pedágios impostos pelos senhores feudais. O comércio à longa distância encontrava nos entraves feudais um sério problema para o seu desenvolvimento por dois motivos: a) do reduzido número de seus clientes e b) da restrição a margem de seus lucros. Fica fácil de imaginar o quanto a livre iniciativa foi se intimidan- do no transcorrer desse período.

Com o declínio do feudalismo, ressurgem a organização empresarial, o espírito do lucro e o racionalismo econômico. Com eles, o comércio ganha força total até se deparar com um novo entrave: o mercantilismo. Este tem por fundamento o protecionismo por parte das metrópoles colonizadoras, cujo lema era exportar ao máximo e importar o mínimo possível. Essa política econômica foi construída em cima da figura do monopólio colonial, em que a Golônia procurava tornar a balança de comércio mais favorável à metrópole, no mais das vezes exportando tudo o que tinha para a mesma.

Não demorou muito a surgir críticas, sobretudo de uma classe em ascen- são na Inglaterra - burguesia industrial -, a essa política econômica exces- sivamente protecionista, que praticamente aniquila a expansão mercantil em franca ascensão, intimidando novamente a livre iniciativa. É de se notar que essa nova visão coincidiu com uma época em que justamente os fundamentos da economia também estavam mudando: a agricultura começou a ceder lugar ao comércio e à industrialização.

Foi só uma mera questão de tempo contar com o declínio dessas teorias. A partir do século XVII, preconizada pela Revolução Industrial na Inglaterra, e do século XVIII, no resto da Europa, outras idéias surgiram. Aquela visão do lucro perverso, perverso por não ser distribuído por outros indivíduos, já não mais encontrava fervorosos adeptos, pois, a indústria e o comércio, fun- dados no capital, que é um bem artificial, demonstraram que pode haver o lucro indefinido. É dizer, pode haver criação de lucro, formação de capitais de maneira

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indefinida e, conseqüentemente, a criação de capitais sem ser por meio da subtração do capital de outrem.

Portanto, a livre iniciativa é uma expressão fundamental da concepção liberal do homem, que coloca como centro a individualidade de cada um. Para o liberal, a livre iniciativa é necessária para a sua própria expressão e digni- dade enquanto homem, porque cabe-lhe imprimir um destino a sua vida, uma escolha, a expressão da sua capacidade, e isso tudo só é conseguido através da liberdade que se reserva a cada um para poder exercer a atividade econômica.

O liberalismo leva em conta as limitações e as imperfeições do ser hu- mano, mas considera que advém um bem maior para a sociedade, através dos resultados de uma atividade humana, ainda que procurada por razões egoísticas, na medida em que o homem está buscando o lucro para si; contudo, este lucro para si constitui-se também num lucro para todos. A riqueza, mesmo gerada por um só homem, irradia-se por toda a sociedade, por exemplo, com a cria- ção de empregos e através do pagamento de salários aos empregados.

É uma concepção, portanto, de fins relativos limitados. O liberalismo não procura redimir o homem, mudar a sua natureza e tampouco criar uma sociedade superior à existente. O que procura é tatear através da experiência e do erro, descobrindo por meio dessas sucessivas tentativas em que consiste a verdade. Não há uma definição a priori de quais os fins a serem alcançados ou dos objetivos a serem atingidos. Isto é fruto das vicissitudes históricas, que vão, como se disse, através da tentativa e do erro, demonstrar qual o caminho correto para se atingir alguma coisa.

É por esta razão que a livre iniciativa conduz necessariamente a políti- cas pluralistas. Há uma tolerância no campo político, uma vez que, em prin- cípio, não existem regras ou idéias condenáveis. Existe tão-somente o direito de cada um expor suas idéias e democraticamente procurar transformá-las na manifestação da maioria da população.

Todavia, os entraves à livre iniciativa não ficaram circunscritos aos sécu- los XI e XVI. O século XX também conta com agravos a esse principio na medida em que viu o surgimento de revoluções com ideologias inteiramente opostas, como é o caso da revolução socialista soviética e depois a sua expansão por diversos outros países. Mas, este mesmo século assistiu ao esboroamento desses Impérios. Hoje, a rigor, não se pode admitir a existência de um país que se guie inteiramente por princípios opostos à livre iniciativa, quais sejam os da iniciativa estatal. Em maior ou menor escala, há sempre uma atividade deixada à livre iniciativa. Da mesma forma como também pode-se dizer que mesmo nos Estados predominante liberais, em que os particulares desempenham o grosso da economia, não deixa de haver sempre alguma intervenção do Estado na eco- nomia, mesmo que seja apenas para coibir os seus possíveis abusos.

De qualquer sorte, o final do século XX marca um renascer do liberalis- mo e da livre iniciativa.

O princípio da livre iniciativa junto com o da valorização do trabalho humano fundamentam a ordem econômica e financeira; ambos constituem valores fundamentais da mesma (arts. 170 e s. da CF).

4.1. Exceções

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Um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito é, por- tanto, a livre iniciativa. Essa é a regra que deve prevalecer nos casos duvido- sos. Ela, a rigor, repele os tratamentos diferenciados; contudo, algumas exce- ções às vezes se mostram necessárias. Assim é que a Emenda Constitucional n. 6, de 15 de agosto de 1995, inseriu como um dos princípios gerais da ati- vidade econômica tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (art. 170, IX, com redação dada pela EC n. 6, de 15-8-1995).

Os recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica são bens da União, passíveis todavia de exploração por concessionários, a quem se asse- gura a propriedade do produto da lavra. Esses concessionários haverão de ser brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País. A lei estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas (art. 176, § 1.o, conforme redação dada pela EC n. 6, de 15-8-1995).

2. A Emenda Constitucional n. 6. de 15 de agosto de 1995, revogou o art. 171 da Constituição Federal.

Há casos em que a Constituição avoca para o Estado uma série de ativi- dades em caráter monopolista.

O art. 177 constitui em favor da União o monopólio de diversas atividades pertinentes aos seguintes produtos: petróleo, gás natural, hidrocarbonetos flui- dos, minérios e minerais nucleares. Todavia, a União poderá contratar com em- presas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incs. I a IV deste artigo, na forma da lei, que disporá sobre: I - a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional; II - as condições de contratação; III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União (§ 1.o e 2.o, com redação dada pela EC n. 9, de 9-11-1995).

Caberá à lei dispor sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. No que diz respeito ao transporte aquático, a lei regulará a participação de em- barcações estrangeiras, toda vez que se tratar de transporte de mercadorias por navegação interior ou de cabotagem (art. 178 e parágrafo único, com re- dação dada pela EC n. 7, de 15-8-1995).

A Constituição ainda discrimina mais uma vez as empresas, desta feita para conferir um tratamento diferenciado às microempresas e às empresas de pequeno porte (art. 179).

Em síntese: parece ficar bem claro que se o nosso sistema econômico é dominado pela livre empresa e livre iniciativa, ele não deixa de sofrer uma forte ingerência do Estado, que em muitas hipóteses violenta as leis de mer- cado. É, portanto, uma ordem econômica complexa, porque nela intervêm não só disposições ou preocupações com a geração, circulação e consumo de bens, como também princípios e normas retratadoras de realidades mais atinentes a outros planos. Exemplos: inc. III do art. 170, função social da propriedade; inc. IV, defesa do meio ambiente; inc. VII, redução das desi- gualdades regionais e sociais.

4.1.1. O Monopólio do Petróleo

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A Constituição Federal de 1988 monopolizou em favor da União diver- sas atividades, sobretudo as relacionadas ao petróleo, aos minérios nucleares e seus derivados.

É sabido quanto tem sido motivo de controvérsia a existência de um monopólio na exploração do petróleo. Ele já foi instaurado em nosso país pela Lei n. 2.004/52 e a partir daí vigorou sem interrupção, cabendo à Petrobras a exploração dessa atividade.

Vê-se que o atual Texto Constitucional, num primeiro momento, refor- çou o monopólio na medida em que o trouxe para o bojo da Constituição. Assim sendo, quando se quis quebrá-lo em 1995 foi necessária uma emenda específica, a Emenda n. 9, que, alterando o § 1.o do art. 177, passou a dispor que "A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realiza- ção das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo, observadas as condições estabelecidas em lei". O que se nota da modificação introduzida é que foi muito tímida a dita quebra do monopólio.

Embora os quatro primeiros itens do art. 177 possam ser objetos de contratação, é bom notar que esta não se dá necessariamente em favor de empresas privadas porque o § 1.o desse artigo permite também que seja feita com empresas estatais, o que deixa longe a idéia de privatização.

A despeito de tudo, na verdade, o que se pode dizer é que o monopólio continua em parte, em vigor, uma vez que é apenas da União que poderão partir as contratações que, mesmo no caso de serem feitas com empresas particulares, deverão obedecer às condições para essa exploração fixadas em lei federal.

Com relação ao inc. V do art. 177 que dispõe sobre "a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minerais nucleares e seus derivados" não houve modificação da Constituição originá- ria. Trata-se de monopólio autêntico sem possibilidade de participação de particulares.

5. LIVRE CONCORRÊNCIA

A livre concorrência é um dos alicerces da estrutura liberal de economia e tem muito que ver com a livre iniciativa. É dizer, só pode existir a livre concorrência onde há a livre iniciativa. O inverso, no entanto, não é verdadei- ro - pode existir livre iniciativa sem livre concorrência. Assim, a livre concorrên- cia é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência dos seus rivais.

Em diversos aspectos pode manifestar-se a livre concorrência, como no preço das mercadorias ou serviços, na qualidade dos mesmos etc. De tal sorte que é essa atividade concorrente e competitiva dos diversos agentes, que ex- põem no mercado produtos assemelhados, que leva à otimização dos recursos econômicos e a preços justos, na medida em que, por intermédio da concorrência recíproca evitam-se os lucros arbitrários e os abusos do poder econômico.

É por essas razões que a Constituição cuida de determinar que, por meio de lei competente, o Estado puna as modalidades que distorcem a livre concor- rência, tais como o monopólio e o oligopólio. Todas são modalidades de domi- nação de mercados, pelas quais os

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agentes econômicos procuram escapar das leis da livre concorrência, assegurando para si uma fatia cativa desse mercado ou, até mesmo, o mercado na sua totalidade.

A livre concorrência é um esteio do sistema liberal, porque é pelo seu jogo, pelo seu funcionamento, que os consumidores vêem assegurados os seus direitos a consumir produtos de qualidade e preços justos. E, de outra parte, para quem se lança à atividade econômica, é uma forma de obter a recompen- sa pela sua maior capacidade, pela sua maior dedicação, pelo seu empenho maior, prosperando, conseqüentemente, mais do que seus concorrentes.

5.1. O Abuso do Poder Econômico

Os modelos clássicos de economia de mercado mostram-se ao longo do tempo inaptos para estabelecerem um mercado em perfeito equilíbrio. Na verdade, o perfeito modelo proposto por Adam Smith, revela-se utópico. A competição na prática não é a mesma competição puramente teorizada. Desse relativismo nasce a necessidade imperiosa de o Estado cuidar destas relações econômi- cas. Nesta tarefa, estabelecem-se as medidas, dentro de preceitos máximos de direito, que equilibrem a livre iniciativa e a livre concorrência legítimas, com os abusos por parte de poderosas forças produtivas, que nada mais fazem do que excederem os limites de seus direitos, atentando contra princípios morais informativos da ordem econômica livre.

É fato notório que males que acolhem os países tanto desenvolvidos como em desenvolvimento já remontam antigas eras; que os detentores do poder econômico dele abusam; que monopólios e oligopólios rechaçam qualquer tentativa de concorrência; que trustes e cartéis transformam a livre concor- rência em guerra de extermínio. É certo também que as novas tecnologias clamam mesmo pela capacidade produtiva e criadora dos monopólios e que as novas estruturas econômicas necessitam de forças de trabalho muito mais complexas e sofisticadas que há cem anos.

Dizer de assuntos tais como livre concorrência, concentração econômi- ca e livre iniciativa, requer antes de tudo vivência. Aliás, uma vivência em que as primordiais relações comerciais deram-se por iniciadas e desenvolveram- se num mínimo espaço vital natural. Ora, a breve história brasileira não teve tamanha oportunidade. Pelo contrário, é mais a história de um bocado de governantes e suas estripulias, do que a história de um povo e suas conquistas.

Realmente, as atividades industriais brasileiras vieram-se a desenvolver- se tardiamente, coisa que não confere ao nosso estudo os elementos naturais e evolutivos que tanto gostaríamos para a perfeita compreensão do problema. As primeiras atividades industriais de monta que se desenvolveram no nosso país datam de meados do século passado. A própria abolição da escravatura teve como motivo, dentre outros, o fornecimento de mão-de-obra quase gratuita às primeiras utilidades fabris. Ademais, a vocação de dependência das empresas para com o Estado já em grande parte voltadas aos próprios serviços públicos. A partir daí, tivemos surtos industriais que só puderam despontar em virtude da contratação dos parques industriais estrangeiros durante as guerras mundiais.

5.1.1. A Legislação Antitruste nos EUA

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Desse brevíssimo relato histórico, devemos nos dirigir ao tema procuran- do agora um panorama em razão da leis destinadas à matéria. E isso não pode- mos fazer deixando de lado a grande referência histórica que são os Estados Unidos da América, nação sem dúvida das mais industrializadas, justamente por ter tratado de maneira eficaz o problema do abuso econômico, mesmo por- que, se assim não fizesse, teria o seu desenvolvimento econômico arruinado.

Enquanto no Brasil audaciosos empresários tentavam trazer ao país as benesses inventivas oriundas da Revolução Industrial, nos Estados Unidos, final da segunda metade do século XIX, as estruturas comerciais eram na sua maioria pequenos negócios que, diante do surgimento dos grandes magnatas, cujas fortunas forjaram-se do dia para a noite, passaram a ser devoradas por esses impérios financeiros, verdadeiramente absolutistas, que usavam de des- mesuradas estratégias para dominar os mercados. Tão subvertido estava o va- loroso princípio da livre iniciativa, que clamou o recém-nascido Capitalismo por uma lei que pudesse, ao menos, controlar esses procedimentos e que ao mesmo tempo protegesse as pequenas unidades empresariais. Promulgou-se então o famoso Sherman Act, que tinha como fulcro proteger o comércio con- tra as restrições e os monopólios ilegais. A lei Sherman, seguiram-se outras, como por exemplo: Clayton Act (1914), Cellar-Kefauver Ad (1950).

Em 1965, o congresso norte-americano tratou de compilar toda a legis- lação antitruste. A par deste conhecimento acumulado, cristalizou-se o con- ceito de que o antitruste é um princípio necessário à preservação da concor- rência e ao mercado livre, dentro de um sistema economicamente competitivo para uma crescente desenvoltura produtiva e técnica.

Dessa consideração, podemos extrair o papel de maior vulto, olvidado por alguns e subestimado por outros, que encenam as leis coibitórias das for- mas de abuso econômico, qual seja: são elas um veículo para a preservação de uma forma democrática do Estado de Direito.

5.1.2. A Legislação Antitruste no Brasil

Já ao estudo do caso brasileiro, não há como tecer muitas comparações ao que ocorreu num país de raízes tão distintas das nossas. Diferentemente dos EUA, o Brasil teve como grande e constantemente presente agente eco- nômico o próprio Estado.

Entretanto, os nossos legisladores não atentaram para esta intrínseca dis- crepância. A respeito de todo o aperfeiçoamento pelo qual a legislação norte- americana foi submetida, ela é, na verdade, vaga, ou seja, conceitualmente imprecisa. Imprecisão esta que foi importada pelos nossos legisladores quan- do da elaboração de lei específica reguladora da repressão ao abuso econômi- co, a Lei n. 4.137, em 1962. Anteriormente a questão do abuso do poder eco- nômico já havia sido tratada timidamente na Carta de 1937. A guisa de conhe- cimento, a referência histórica mais antiga que se tem nota sobre a proteção contra o abuso do poder econômico é encontrada no Código de Hamurabi.

É assim fato, todavia, que há capital diferença na própria natureza do Direito em cada país. Como se sabe, nos Estados Unidos, o direito, ao modelo anglo-saxão, é exercido pela prática costumeira, ou direito consuetudinário (Common Law), pelos julgados de seus tribunais que verdadeiramente criam o direito. Muito diferente do nosso país, que tem suas

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origens no Direito Romano. Desse modo, cabe nos EUA aos tribunais evitar e restringir violações à legis- lação, como anteriormente dissemos, vaga e imprecisa, não se detendo em tipificar caso a caso o que pode configurar abuso do poder econômico. Caberá aos seus tribunais aplicar concretamente os princípios em lei estabelecidos.

Infelizmente, como já percebemos, a Lei n. 4.137 foi elaborada sem bali- za do perfil econômico histórico, ou melhor, sem ter uma exata noção da estru- tura da economia brasileira em face aos problemas de abuso do poder econômi- co. A partir daí, tudo que se fez foi de pouca ou nenhuma utilidade. Claro, a nossa pioneira tentativa de tratar do abuso do poder econômico nasceu calcada nas idéias de conhecimentos derivados de experiência alheia. Outras tentativas resultaram em novas leis: as Leis n. 7.347 e 8.158. Em verdade, todos esses esforços absolutamente não conseguiram atingir qualquer dos seus intentos. A utilidade prática não passou de tímida. Evidentemente não podemos deixar de elogiar os esforços das pessoas envolvidas no trabalho do Conselho Adminis- trativo de Defesa Econômica, com suas pesquisas e estudos. O que de fato re- sultou foi a impossibilidade de conciliar-se aquilo que introdutoriamente nos referimos: a teorização do problema com o que de real acontecia nas desventu- ras do nosso desenvolvimento econômico. Agora, nos vemos diante de uma outra lei antitruste. E é sob esta lei que mais detidamente nos debruçaremos, mesmo porque, obviamente, nos interessa a sua atualidade.

A atual lei antitruste vem propor uma nova estrutura administrativa para o dever estatal de reprimir o abuso do poder econômico. Dentro desta estru- tura, destaca-se a Secretaria de Direito Econômico (SDE), com amplos pode- res para definir política de defesa de concorrência, fiscalização de práticas de mercado, fiscalização de setores monopolizados, processando administrati- vamente as infrações porventura apuradas. Ainda, concentra atividades con- sultivas, compulsórias ou não, de estudos e pesquisas. Por fim, pode represen- tar, para fins de atuação judicial do Conselho Administrativo de Defesa Eco- nômica (CADE), através de sua procuradoria.

Num exame mais atento às atribuições do CADE, vemos que este con- selho julgará processos oriundos da SDE, instaurando processos administra- tivos ao detectar abuso de poder econômico, preparando-os para a derradeira decisão daquele Conselho.

Numa análise mais conceituosa, percebemos que o Projeto trata quase que exclusivamente de uma "processualística" visando à constante vigilância, porparte da SDE e do CADE, daquilo que importe em abuso de poder econô- mico, ou seja, qualquer ato, prática, conduta etc., que atente contra a ordem econômica livre a qual a constituição se refere. Assim, não vem a definir qual- quer destes atos ou práticas. A este encargo, remete às Leis n. 4.137, 7.347 e 8.158, inclusive redigindo ou inserindo-lhes incisos e parágrafos.

Fica claro que a nova estrutura dada aos dois órgãos, dinâmica e pode- rosa, dá, primeiramente ao CADE, o aspecto de um verdadeiro tribunal, e à SDE, a aparência de uma polícia, que previne, investiga e apura atitudes que são ou venham a ser configuradoras de abuso do poder econômico. Assim, compete à Secretaria de Direito Econômico, dentre outras atribuições, proce- der às averiguações preliminares para instalar, de ofício ou mediante repre- sentação, o devido processo administrativo; recorrer, de ofício, caso decida o arquivamento, ou simplesmente remeter, caso configurada a infração à ordem econômica, o processo ao CADE.

Já as atribuições do CADE comportam basicamente julgar os processos oriundos da SDE e os recursos contra as decisões desta secretaria.

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CAPÍTULO II DA POLÍTICA URBANA

SUMÁRIO: 1. Política urbana. 1.1. Plano diretor. 1.2. Usucapião urbano Consti- tucional.

1. POLÍTICA URBANA

A Constituição de 1988 institucionalizou o planejamento urbano consagran- do-o em vários dispositivos. O próprio direito urbanístico consta, agora, como matéria específica da competência legislativa concorrente da União, dos Es- tados e do Distrito Federal, conforme dispõe o inciso I do art. 24.

E mais, segundo estabelece o art. 182, cabe ao Poder Público municipal a execução da política de desenvolvimento urbano, conforme diretrizes gerais fixadas em lei. Este preceito abre campo para que o Estado assuma a função de ditar diretrizes para o desenvolvimento urbano. Não se trata de impor um planejamento cogente, vinculante a todos os habitantes de uma cidade, nem de dispor, de forma coercitiva, sobre a destinação dos imóveis. Esta política de desenvolvimento urbano encontra parâmetros que lhe são ditados pelo Texto Constitucional, tais como a propriedade, a livre empresa, o livre exercício de atividades profissionais, assim como o próprio direito de locomoção.

Em substituição às tradicionais leis de zoneamento, voltadas exclusivamente à ordenação do solo urbano, com regras relativas às edificações, à definição da destinação das diversas áreas urbanas (moradias, indústria, comércio), sur- ge o plano diretor que há de manter-se fiel ao princípio da política do desen- volvimento urbano que tem por objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar dos seus habitantes.

Em função disto, há de contemplar o próprio desenvolvimento econômi- co da cidade, com destinações de áreas para a implantação de indústrias e novos estabelecimentos comerciais. A nosso ver não podem os municípios, com fundamento na sua competência urbanística, considerar indesejáveis determinadas atividades. Se isto fosse lícito, município nenhum quereria ter instalações presidiárias, instalações atômicas etc. É inegável que a escolha do local para a implantação de atividades de interesse nacional não possa fixar ao sabor de decisões tomadas em nível municipal. O máximo admissível é que os municípios destinem áreas específicas para sediarem essas construções, normalmente acarretadoras de desvalorização das áreas circunvizinhas.

Este poder de zonear deve, de igual forma, guardar estrita obediência à razoabilidade, é dizer, não podem os municípios aprovar normas que, por exemplo, digam: "os nosocômios só são instaláveis em áreas fora do perímetro urbano". Medida deste jaez transborda do exercício regular do poder de zonear para interferir na própria política de saúde pública, de segurança etc., conforme a instalação de que se cuida.

O plano diretor deverá dar espaço a disposições, tendo por objeto o desen- volvimento social. Preocupações com o lazer, com a cultura, com o esporte são perfeitamente absorvíveis dentro das finalidades do plano. E até mesmo deve o planejamento diretor ter-se

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por concernido com a promoção do melhor atendimento do público pelos serviços prestados pelo município.

A urbanização acelerada tem sido uma tônica no nosso século. Em alguns países é um fenômeno demográfico surgido ao depois da Segunda Grande Guerra. Mas não é tão-somente uma manifestação de índole demográfica. Ela encontra motivações profundas em razões de ordem econômica, abandono das zonas rurais, crescimento econômico e modificação dos hábitos de conforto e até mesmo dos comportamentos sociais. Destarte, impõe-se encontrar terrenos com o dúplice objetivo de tanto neles construírem-se novas residências quanto de implantarem-se equipamentos coletivos, tais como estacionamentos, espaços verdes e lugares destinados à prática de esportes, cultura e ócio. Esta procura encontra dificul- dades que residem na imprevisão dos Poderes Públicos, na própria insuficiência dos meios financeiros disponíveis e, também, na falta de disposição dos propri- etários de alienarem seus imóveis.

De tudo isto resulta tanto a escassez dos terrenos úteis quanto o custo extremamente alto dos terrenos urbanizáveis. Pode-se falar mesmo numa escassez de oferta imobiliária e numa crise da construção.

Os Poderes Públicos devem, antes de tudo, promover a construção. O problema urbanístico assume uma dimensão fundamental da necessidade de incrementar-se a oferta imobiliária, daí a razão de ser do § 4.o do art. 182, voltado à instrumentação dos Poderes Públicos, de meios adequados para compelirem a propriedade urbana, em desconformidade com a sua função social, a amoldar-se a esta.

Em síntese, portanto, o que temos é a outorga de competências ao Esta- do para que este delineie os rumos a serem assumidos pelo desenvolvimento urbano, acompanhado de um municiamento do próprio Estado, com medidas destinadas a compelir o proprietário inerte a mover-se no sentido do estatuído no plano diretor.

1.1. Plano Diretor

O plano diretor vem a ser o instrumento pelo qual os municípios defini- rão os objetivos a serem atingidos, assim como as regras básicas, as diretrizes, as normas do desenvolvimento urbano, estabelecendo, portanto, o zoneamento, as exigências quanto às edificações e um sem-número de outras matérias funda- mentalmente pertinentes ao uso do solo. Não é estranho ao plano diretor o próprio sistema viário, arruamento, estradas, localização de áreas verdes etc.

É uma manifestação no campo específico do urbanismo, cuja idéia de planejamento conquistou as boas graças da política de diversos países. É uma reação contra a espontaneidade do processo desenvolvimentista. Acaba por ser, se levado a exageros, negador de uma parcela importante da própria liberdade individual. Não há dúvida de que as cidades, deixadas a si mesmas, podem criar graves problemas, cuja reparação demandará incalculáveis somas monetá- rias. Um trabalho preventivo de planejamento pode, sem dúvida, evitar a ocor- rência de muitas mazelas urbanas.

No entanto, o plano diretor não deve ser excessivamente minudente, nem estritamente vinculante a ponto de cercear a manifestação livre do ci- dadão no próprio processo de desenvolvimento da sua cidade. O planeja- mento não pode ser tão constritor a

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ponto de não deixar opção ao indivíduo. A nosso ver é indispensável a participação criativa do município, para o que, é óbvio, é necessário haver um campo de atuação, onde a sua vontade possa atuar sobranceiramente.

O plano, portanto, há de fazer mostra de um grande equilíbrio entre a necessidade de impor parâmetros num processo, que, se relegado a si mesmo, pode conduzir ao caos, e a necessidade de preservar a liberdade e a proprieda- de, dado que também são valores constitucionalmente assegurados. Um plane- jamento que transborde desses limites e que negue o direito de exploração normal da propriedade desemboca em inconstitucionalidade rebatível pelo Poder Judiciário, uma vez que cabe a este, em última instância, a guarda da Constituição e a preservação dos direitos individuais.

A propriedade urbana atenderá sua função social, na medida em que atender às exigências previstas no plano diretor. Em caso contrário é faculta- do ao Poder Público municipal, mediante lei específica, impor ao proprietário sucessivamente: parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade territorial e predial urbana progressiva no tempo; desapropriação mediante pagamento com títulos da dívida pública (§ 4.o do art. 182).

O que ora se faculta ao Poder Público é uma seriação de medidas de cunho inequivocamente coercitivo que desembocam na possibilidade de uma desapro- priação com pagamento mediante títulos da dívida pública. Passaremos agora a examinar os diversos requisitos para que se alcance esse ponto extremo. Des- necessário salientar que eles deverão ser fielmente cumpridos, já que se trata de instrumento excepcionador da garantia ampla que é dada ao direito de propriedade. Há de se entendê-lo, pois, restritivamente, e a análise a ser feita do dispositivo não pode deixar de levar em conta esse caráter de disposição especial.

Quanto à legitimação ativa, só o município pode utilizar-se dessa modali- dade expropriatória. Não há falar na possibilidade de expropriação, com fun- damento no § 4.o do art. 182, sem que o poder expropriante seja o municipio. Embora o titular desta prerrogativa expropriatória seja o ente municipal, ele não a exerce autônoma e discricionariamente. Parte da sua atuação fica vincu- lada aos preceitos da lei federal. De fato, é a lei federal que definirá os parâmetros de exigibilidade no tocante à aplicação de quaisquer das medidas constantes desse parágrafo. Assim, se o parcelamento ou a edificação compulsórios po- dem ser coercitivamente impostos, a regulação da intensidade e da latitude da medida terá de constar de lei federal. É uma autêntica norma integradora do preceito Constitucional e, enquanto não se der a sua sobrevida, é inaplicável. A normatividade em causa deverá revestir-se da generalidade que lhe impõe a condição de tratar-se de uma legislação voltada a todos os municípios bra- sileiros ou, se se preferir, para aqueles que disponham de plano diretor.

A segunda exigência é a necessidade de uma lei municipal que defina, dentro do espaço coberto pelo plano diretor, qual a região ou porção do terri- tório urbano que estará sujeita à aplicação das medidas em tela. Como se vê, trata-se de lei específica. Cada município deverá editar uma norma adequada para aquela área que, dentro do plano diretor, considere como sendo a que está a merecer a aplicação dos instrumentos de coerção.

Em terceiro lugar, há necessidade de um decreto do prefeito impondo, em caráter individual, ao proprietário do imóvel a medida prevista. Trata-se de ato administrativo indispensável para que o proprietário possa sentir-se atingido pela sorte de coerção que está a sofrer.

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Finalmente é necessário que ocorra a não-edificação, a subutilização ou não-utilização. Esses termos deverão também merecer maior precisão por parte da legislação federal. Mas é necessário, outrossim, que o imóvel esteja em desacordo com as exigências fundamentais de ordenação das cidades expres- sas no plano diretor. É este que vai oferecer os padrões de utilização impostos nas diversas zonas que compõem o perímetro urbano. O proprietário que es- tiver em conformidade com as referidas exigências não pode sofrer a aplica- ção das medidas coercitivas. Estas visam a remover os óbices à implementação das exigências do plano diretor, que define, pois, a meta, o teto máximo de exigibilidade, sendo descabido impor-se a proprietários isolados o que não é exigido da comunidade como um todo. Essas medidas não podem ser impos- tas senão de forma gradativa, cuja velocidade por igual forma deverá ser de- terminada na lei federal. Assim, decretado o parcelamento ou edificação compul- sórios, há que se respeitar um prazo razoável para que essa exigência possa ser satisfeita. Não é possível já cumulá-la com o imposto progressivo. Essa progressividade só pode ser instituída depois do esgotamento do prazo para que se leve a efeito o parcelamento ou a edificação.

1.2. Usucapião Urbano Constitucional

Nosso direito tem contemplado duas espécies fundamentais de usucapião: o comum e o pro labore. Este caracteriza-se por um abrandamento do tempo necessário para que se produza a aquisição do domínio. Em contrapartida são exigidas algumas condições suplementares que a seguir se enunciarão.

Inicialmente o usucapião pro labore teve assento constitucional. O art. 156, § 3.o, da Constituição de 1946 o contemplava. A Constituição de 1967 deixou contudo de fazê-lo, razão pela qual sob a sua vigência deixou de existir o usucapião pro labore fundado na própria Constituição, o que não impediu, contudo, que ele mantivesse a sua existência em nível de legislação ordinária: no Estatuto da Terra, art. 98, e na Lei federal n. 6.969/81. Incide sobre imóveis rurais tornados produtivos pela ação e pelo trabalho do possuidor usucapiente.

A atual Constituição trouxe para o seu seio o usucapião pro labore. E mais, criou a modalidade urbana absolutamente desconhecida no direito pre- térito. Manteve, é certo, a modalidade rural tratada no art. 191, que será estu- dado no momento oportuno.

Aquele que possuir como sua área urbana até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

O elemento nuclear para que se configure o usucapião é a posse. O que na verdade o prescribente faz é converter a sua mera posse que traduzia uma situação de fato numa outra jurídica, qual seja o domínio. O que o Texto Cons- titucional exige é que o usucapiente possua o imóvel como seu: Daí porque não se prestam para o usucapião as posses exercidas com o reconhecimento do domínio alheio, como se dá nas hipóteses do locatário ou do comodatário. Falta-lhes o animus domini, isto é, o possuir como seu, o que não implica boa- fé. Esta é totalmente desnecessária para esse tipo de usucapião. Da mesma forma que é irrelevante saber se a posse é justa ou injusta.

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Se a boa-fé é absolutamente irrelevante para configurar a posse que le- gitima o usucapião de que ora se cuida, o mesmo não se dá com a necessidade de ser ela mansa e pacífica, ou, se se preferir, sem oposição. É evidente que o conceito de oposição há de ser o jurídico. No sentido técnico só há oposição se houver uma medida adequada e tempestiva com força jurídica para carac- terizar a insurgência do proprietário. Portanto, ela há de ser séria, isto é, motivada pelo justo interesse de defender o imóvel. Hão de ser banidas as meras tenta- tivas emulativas destituídas de base legal que, mais do que caracterizar uma oposição juridicamente irrelevante, acabam por configurar um ato ilícito. Deve ser tempestiva. A oposição há de vir antes da conversão da posse em domínio. A partir daí ela é inútil, uma vez que o direito do usucapiente já se consolidou.

E mais, a posse há de ser pessoal. É o que se infere da expressão cons- titucional, ao dizer: "utilizando-a para sua moradia ou de sua família". Ficam, portanto, excluídas para os efeitos do usucapião desse artigo modalidades de posse através de terceiros de que cuida o Código Civil. É importante dizer que não basta aquela relação de fato entre o possuidor e o bem que caracteriza a posse em geral. Aqui, o prescribente há de estar presente como morador, isto é, tendo no imóvel a sua residência. Se a posse for voltada para o comércio, a indústria ou profissões liberais não será útil para o instituto de que estamos tratando.

Outra exigência constitucional é que a área usucapível não seja superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados. Aqui surge uma indagação: o que deve prevalecer, a área do terreno ou a área construída? A esse respeito não há um entendimento pacífico em nossa doutrina.

1. Para Tupinambá Miguel Castro do Nascimento o legislador constituinte, quando fixou a metragem da área urbana usucapível por esta modalidade de prescrição aquisitiva, o fez tendo em vista a área do terreno e não a área construída. São suas palavras: "... quando a norma constitucional está-se referindo à dimensão máxima de duzentos e cinqüenta metros quadrados diz respeito ao solo ou à superfície da área usucapienda; não à possível área construída. Assim, se a área é inferior ou igual a esta dimensão, admite-se o usucapião urbano especial, mesmo que no início da posse, ou durante seu transcurso, sejam realizadas benfeitorias ou novas construções que, em área construída, ultrapassem a dimensão máxima. Com este entendimento, todo e qualquer apartamento, por maior que seja, pode ser usucapido qüinqüenalmente porque a área do solo que lhe corresponde, em fração ideal, é certamente inferior à dimensão máxima prevista na Constituição" (Usucapião, 6. ed., Rio de Janeiro, Aide, 1992). Nesse mesmo sentido, José Carlos de Moraes Salles, Usucapião de bens imóveis e móveis, 2. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992.

Para nós, a área urbana a que se refere a Constituição deve ser entendida tanto em razão do terreno quanto da construção. Não tendo feito o Texto Cons- titucional discriminação entre uma e outra, é óbvio que quis englobá-las. É de inteira aplicação aqui o brocardo segundo o qual onde o Texto não distingue não é lícito ao intérprete distinguir. Outrossim, é preciso levar em conta a teleologia da cláusula que foi a de proteger aqueles que detenham a posse de porções moderadas de áreas urbanas. É não ser a fonte de criação de novos magnatas citadinos. É fácil entender-se que num terreno de duzentos e cin- qüenta metros quadrados pode alçar-se uma edificação de proporções consi- deráveis. Desatende, por completo, as preocupações sociais do preceito o admitir- se que ele tenha esse alcance. Ademais, agride o instituto da propriedade sem uma justificativa legítima de proteger o pequeno proprietário em formação.

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2. A inteligência correta dos limites usucapíveis com fundamento nesse preceito é a de que o imóvel não poderá ter mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, seja de terreno, seja de área construída. Prevalece o que for maior. Assim, cai dentro do instituto em causa o terreno que tenha duzentos e cinqüenta metros quadrados cuja área construída não exceda esse limite. Frise-se: esta área construída dentro do limite máximo de duzentos e cinqüenta metros quadrados não configura área autônoma a ser somada à do terreno. Isto porque não pode haver o usucapião do simples terreno, uma vez que a Constituição exige moradia do usucapiente ou de sua família. Portanto, desde que não ultrapasse os limites de duzentos e cinqüenta metros quadrados da área do terreno, a construção está abrangida pelo benefício constitucional. Quer se considere o terreno, quer se considere a construção, não se chega a um excesso relativamente ao limite constitucional. No caso, entretanto, de a área construída sobreexceder os duzentos e cinqüenta metros quadrados, não há, em nosso entender, qualquer possibilidade de enquadrá-la no usucapião urbano especial. Estaría- mos, sem dúvida, diante de propriedade urbana cuja área seria superior aos limites constitucionais.

Outra exigência para a fruição do usucapião aqui tratado é a posse ininterrupta por cinco anos. De fato, não pode haver contemperamento com relação a esse requisito. Qualquer fator que rompa a continuidade dessa posse desqualifica-a como apta a gerar o usucapião. A perda da posse antes de com- pletado o prazo de cinco anos inutiliza o período já usucapido. A contagem de tempo será reiniciada a partir da nova relação possessória que se formar.

Diversa será a situação se o usucapiente, embora tendo perdido o contato físico com o imóvel, não perdeu, contudo, a posse. Nesse caso não há interrup- ção na contagem do tempo. É a hipótese prevista no art. 520, IV, do Código Civil. Esse dispositivo regula aquelas situações em que o detentor da posse se vê esbulhado, mas a recupera através da ação interposta no prazo de ano e dia.

O Texto consagra outro fator obstativo, qual seja, o ser o prescribente proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Este é um pressuposto negativo para fruição do benefício constitucional. Tendo ocorrido o descrito na cláusu- la constitucional durante o qüinqüênio, ainda que por curto espaço de tempo, é o suficiente para não poder ser invocado o usucapião urbano especial. De notar-se, entretanto, que o fator obstativo só vige durante o lapso aquisitivo. Antes da contagem do período o prescribente pode ter sido proprietário, as- sim como poderá vir a sê-lo depois de completado o qüinqüênio, mesmo que não tenha ainda obtido o reconhecimento judicial do usucapião.

Há que se consignar, ainda, que o usucapião urbano constitucional "não será reconhecido ao mesmo possuidor por mais de uma vez" (art. 183, § 2.o). Não basta, portanto, que ele já se tenha desfeito do imóvel usucapido com fundamento nesse artigo (183). O intuito do preceito é impedir que a mesma pessoa se beneficie mais de uma vez desse mesmo instituto. Esta limitação não atinge, entretanto, o prescribente no usucapião ordinário ou extraordiná- rio tratado no Código Civil. Desde que ele já não detenha o domínio do bem usucapido, e, portanto, não seja proprietário urbano ou rural, condição ex- pressa no caput do art. 183, poderá beneficiar-se do usucapião urbano espe- cial de que estamos tratando.

Por último, os bens públicos não são usucapíveis.

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CAPÍTULO III DA POLÍTICA AGRÍCOLA E FUNDIÁRIA E DA REFORMA AGRÁRIA

SUMARIO: 1. Política agrícola e fundiária e reforma agrária. 1.1. Desapropria- ção para fins de reforma agrária. 1.1.1. Indenização prévia e justa. 1.1.2. Títulos da dívida agrária. 1.2. Usucapião rural constitucional.

1. POLÍTICA AGRÍCOLA E FUNDIÁRIA E REFORMA AGRÁRIA

A respeito da necessidade de uma reforma agrária em nosso país, parece que nenhuma voz se ouvirá negando-a. Os problemas e intransigências surgem justamente quanto ao modo pelo qual deverá ser promovida tal reforma, ou mes- mo quanto às áreas que devem ser atingidas ou ao momento oportuno para tanto.

O nosso Texto Constitucional, no seu art. 184, consagra a reforma agrária, que consiste no processo de como deve ser feita a distribuição da terra para o total atingimento da função social da propriedade, consagrada no inc. XXIII do art. 5.o. Em outras palavras, além de proteger um direito particular dos indiví- duos sobre a propriedade, também reconhece a necessidade de os imóveis pro- duzirem benefícios em prol da coletividade, constituindo um interesse social.

O que não se pode fazer em termos de reforma agrária é desrespeitar um outro direito sagrado de nossa Constituição Federal, que é o direito de propriedade. Nossa Lei Maior assegura o direito de propriedade como um direito individual, apenas aceitando algumas poucas ressalvas, expressamente consignadas no próprio Texto Constitucional. Dentre essas hipóteses excep- cionais, encontramos a desapropriação por interesse social para fins de re- forma agrária (art. 184).

1.1. Desapropriação para Fins de Reforma Agrária

A desapropriação para fins de reforma agrária sempre esteve presente nas Constituições brasileiras. Na atual Carta Magna está assim colocado o tema:

"Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláu- sula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei".

A competência para desapropriar por interesse social, para fins de refor- ma agrária, é exclusiva da União, nos termos do art. 184 da Lei Maior. Assim, fica certo que o Texto Constitucional associa a existência dos problemas so- ciais agrários a um tipo de reforma adequada, cuja manipulação é privativa da União, ficando, conseqüentemente, os Estados e Municípios destituídos de competência para levarem a efeito reformas agrárias. Estes não podem realizá-las, nem mesmo com fundamento na desapropriação, já tradicional, por interesse social, mediante pagamento de prévia e justa indenização em dinheiro.

Um dos requisitos fundamentais para que incida a desapropriação para fins de reforma agrária é que o imóvel não esteja cumprindo a sua função social, tal como definida no

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art. 186 da Constituição: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preserva- ção do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho, exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores; ademais, que o imóvel seja rural.

A Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que dispõe sobre a regulamen- tação dos dispositivos constitucionais referentes à reforma agrária, em seu art. 4.o conceitua imóvel rural, pequena e média propriedade, da seguinte for- ma: "I - imóvel rural - o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial; II - pequena proprie- dade - o imóvel rural: a) de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais; III - média propriedade - o imóvel rural: a) de área supe- rior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais".

Há que se notar, contudo, que o art. 185 excetua duas sortes de proprieda- des à regra da expropriação para reforma agrária - a pequena e média proprie- dade rural se o proprietário destas não possui outra, e a propriedade produtiva.

No que tange à propriedade produtiva, a Constituição lhe garante trata- mento especial em seu art. 185, parágrafo único.

O dispositivo constitucional que prevê essa espécie de desapropriação tem nítido caráter de sanção. Contudo, esta é amenizada pelo art. 185, que afasta, como se sabe, da desapropriação para fins de reforma agrária tanto a pequena e média propriedade rural, desde que seu proprietário não possua outra, quanto a propriedade produtiva.

Segundo o art. 186, a função social da propriedade é cumprida quando a propriedade rural atender, simultaneamente, aos seguintes requisitos: a) apro- veitamento racional e adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observação das disposições que regulam as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

1.1.1. Indenização Prévia e Justa

Do ponto de vista do expropriado, a conseqüência mais severa resultan- te da desapropriação para fins de reforma agrária é o fato de ela só dar direito a uma indenização que, embora se dê seguindo os ditames de ser prévia e justa, se efetiva mediante títulos da dívida agrária, apesar de as benfeitorias úteis e necessárias serem indenizadas em dinheiro.

A Constituição, ao prever a justa e prévia indenização, subordina o ins- tituto da desapropriação à condição de que o patrimônio do expropriado fique inalterado economicamente falando, sem dano. Uma desapropriação sem in- denização, ou com um injusto ressarcimento, importa em verdadeiro confisco ou despojo, carente de qualquer sustentação jurídica.

A Constituição Federal também estabelece como condição da desapropnação que a indenização seja prévia. Este requisito implica em que o proprietário continuará como tal, enquanto não receber integralmente sua indenização. Quer- se que não haja um momento sequer no qual o patrimônio seja diminuído.

Estabelece o art. 5.o da Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993:

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"A desapropriação por interesse social, aplicável ao imóvel rural que não cumpra sua função social, importa prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária".

Contudo, seu § 1.o logo esclarece que as benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.

A Lei Complementar n. 76, de 6 de julho de 1993, que dispõe sobre o procedimento da desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária, determina que:

"O valor da indenização, estabelecido por sentença, deverá ser deposi- tado pelo expropriante à ordem do juízo, em dinheiro, para as benfeitorias úteis e necessárias, inclusive culturas e pastagens artificiais e, em títulos da dívida agrária, para a terra nua".

Em primeiro lugar, cumpre salientar o caráter atentatório ao proprietá- rio que ostenta a desapropriação para fins de reforma agrária. Mas esse cará- ter resulta precisamente em prestígio da propriedade, uma vez que é para afetá- la a outrem, que vai dela tirar maior proveito social, que se procede à desapropria- ção nos termos do art. 184 da Constituição.

De qualquer maneira, a propriedade continua a figurar como centro de um direito não aniquilável, posto que outrem figurará em seu aproveitamento.

Essa modalidade desapropriatória, como de resto todas as demais, não pode constituir-se num confisco. E é por isso então que o Texto Constitucio- nal assegurou o ressarcimento por meio de títulos da dívida pública.

1.1.2. Tftulos da Dívida Agrária

A única mácula que a Constituição trouxe na plenitude da forma indenizatória tradicional foi a conversão da moeda em títulos. Estes é que figuram, agora, como a forma de pagamento assegurada ao proprietário do imóvel.

E esses são títulos que, embora como tais integrem nosso sistema finan- ceiro, representam na verdade uma apropriação feita pelo Estado, em condi- ções muito restritivas, pelo que deveriam ser mesmo uma modalidade espe cial de títulos, diferenciáveis dos demais exatamente em função de consubstanciarem um princípio (o da indenização) consagrado constitucio- nalmente. Isso quer dizer que não são decorrentes de um sistema financeiro comum, no qual os investidores aceitam o risco próprio desse meio. É por isso que esses títulos devem ser absolutamente honrados pelo Poder Público.

Os títulos da dívida agrária consistem em títulos emitidos pelo Poder Público, e por este resgatáveis em determinado período, em razão de desapro- priação de imóvel efetuada por interesse social para fins de reforma agrária, o que faz com que assumam uma especial importância, tendo em vista seu caráter excepcionalíssimo.

Os referidos títulos da dívida agrária estão sujeitos a uma disciplina jurí- dica não extensível aos títulos em geral. Gozam de uma cláusula que os protege contra a depreciação do valor da moeda, que diz: "Os títulos da dívida agrária, que conterão cláusula assecuratória de preservação de seu valor real, serão res- gatáveis a partir do segundo ano de sua emissão, em percentual proporcional ao prazo, observados os seguintes critérios: ...", e, em continuação, elenca quatro critérios a serem obedecidos (Lei n. 8.629/93, art. 5.o, § 3.o).

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O art. 184 da Constituição, visando salvaguardar o direito de proprieda- de, prescreve que a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária ali prevista, somente se fará mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação de seu valor real, res- gatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

O atual texto da Constituição, diferentemente do anterior, que previa cláusula de exata correção monetária, prevê, hoje, a preservação do valor real dos títulos, pelo que não ficam estes ligados a índice de indexação governa- mental que possa vir a ser manipulado, colocando-os a salvo de eventual pro- cesso inflacionário.

O pagamento mediante títulos da dívida pública, resgatáveis entre dois e vinte anos, devem proporcionar também uma justa indenização. E o art. 184 estará sendo desacatado, sobretudo, se tais títulos não puderem ser negocia- dos e, muito mais, se eles deixarem de ser reconhecidos, pelo próprio Poder Público, ao mesmo nível da moeda corrente que representam.

O art. 5.o, XXIv, prescreve que a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previs- tos pela própria Constituição. O art. 184 é um exemplo típico dessas ressalvas admitidas pelo precitado dispositivo constitucional. Isto porque a prévia e justa indenização a que ele se refere não será em dinheiro, mas em títulos da dívida agrária, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão e cuja utilização será definida em lei.

Essa exceção, entretanto, não poderá afrontar a regra insculpida no inc. XXIV do art. 5.o, a ponto de nulificar o princípio ali consagrado. E dizer, as diferentes formas de pagamento, em dinheiro para um, e em títulos da dívida agrária para outros, devem ser conciliadas para não ocorrer entre- choque de ambos.

Por isso é preciso ficar bem claro que a exceção lançada no art. 184 não alcança a justa e prévia indenização. Esse mesmo princípio continua ínsito nos dois dispositivos constitucionais. Isto significa que, quanto à justa e pré- via indenização, não há exceção. Esta compreende apenas a forma de paga- mento. Melhor dizendo, enquanto o inc. XXIV do art. 5.o exige seja feito o pagamento em dinheiro, o art. 184 permite que tal pagamento seja feito em títulos da dívida agrária. A sanção aqui é a perda da propriedade por não estar ela cumprindo sua função social, e que já é um forte gravame, muito mais oneroso do que aquele imposto a quem recebe a indenização previamente em dinheiro. A única sanção é a protelação do pagamento integral, e não qual- quer forma de diminuição do valor indenizatório.

O direito de propriedade é tão intensamente protegido que, nas raras exceções que comporta, exige-se a justa e prévia indenização. Isso é assim porque não se trata de confisco, como ocorre com as terras em que haja plan- tações destinadas a produção de substâncias entorpecentes. Aqui, sim, além da perda da terra, da propriedade em si, o Direito vai mais longe, não indeni- zando o proprietário.

Assim, para que o princípio maior da justa e prévia indenização não seja violado, os títulos da dívida agrária deverão ser, dentre outros aspectos, pas- síveis de negociação no mercado. A viabilidade da negociação desses títulos, pode-se dizer, é um direito básico consagrado constitucionalmente.

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Para finalizar, observamos que, com a recente política agrária prevista já pelo art. 187 da Constituição Federal, os nossos legisladores visaram tirar a matéria da grande instabilidade com que tem sido tratada pelos sucessivos governos até os nossos dias. De outra parte, torna-se certo que as terras públi- cas e devolutas terão sua destinação compatibilizada com a política agrícola e o plano nacional de reforma agrária. Além de que os beneficiários desta não poderão negociar seus imóveis pelo prazo de dez anos.

1.2. Usucapião Rural Constitucional

O usucapião rural constitucional, também denominado agrário ou pro labore, previsto no art. 191 da Constituição, tem por objetivo a fixação do homem ao campo. Pro labore significa que o bem é adquirido em virtude do trabalho exercido na terra, tornando-a produtiva, e, portanto, economicamen- te util. O art. 191 está assim redigido: "Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tor- nando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade".

Como se vê, as exigências para a fruição do usucapião especial rural são praticamente as mesmas feitas para o usucapião especial urbano, com algu- mas especificações.

No tocante à posse, deverá ela ter-se prolongado por cinco anos contí- nuos, ininterruptos, e ter-se exercido a tftulo de proprietário, isto é, como se dono fosse. A área usucapienda deve ser tipicamente rural, situada fora do pe- rímetro urbano, tendo nela o possuidor nacional ou estrangeiro sua moradia, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família. Note-se que aqui não basta que o possuidor more na area; é necessário que a tenha cultivado, tornan- do-a produtiva. Portanto, não basta a moradia, nem a posse contínua e ininterrupta; exige-se também o trabalho. É de se considerar, também, que a atividade desen- volvida há de ser de natureza agrícola, agroindustrial ou extrativa, o que signi- fica dizer, se o imóvel é empregado no exercício de atividade comercial, indus- trial ou de recreação, o usucapião pro labore especial não é cabível.

Com relação à extensão da área usucapível, os problemas que se podem pôr são os seguintes:

Em primeiro lugar o saber se pode ocorrer o usucapião especial mesmo que a área cultivada seja maior do que os cinqüenta hectares fixados pela Cons- tituição. A resposta parece ser óbvia no sentido positivo. Não há porque apenar aquele que pelo seu denodo conseguiu laborar gleba de terra maior do que a passível de usucapião especial. É lógico, no entanto, que esta modalidade aqui- sitiva fica restrita aos limites constitucionais. Não temos dúvidas também de sufragar a opinião de Oswaldo Opitz e Silvia Opitz, para quem a porção exce- dente de cinqüenta hectares permanece passível de usucapião extraordinário.

1. Tratado de direito agrário brasileiro, Saraiva, v. 1, p. 104.

Outro problema suscitável é o de a área usucapienda ter menos de cinqüen- ta hectares. A conclusão mais correta é de considerar como usucapível mes- mo as áreas inferiores, até porque a Constituição fala em área de terra não superior a cinqüenta hectares. Não é de aplicar-se aqui a legislação referente a módulos. Estes têm em mira o

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desdobramento comum da propriedade, mas no nosso entender não podem funcionar como obstáculo para que um instituto constitucional atinja o seu desiderato. São, portanto, usucapíveis mesmo as áreas de proporções inferiores às do módulo rural da região.

CAPÍTULO IV DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

SUMÁRIO: 1. O Sistema Financeiro Nacional.

1. O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

É uma novidade, aportada pela Constituição de 1988, o tratamento ao nível da Lei Maior do sistema financeiro. Este assunto vinha disciplinado na Lei n. 4.595/64, cujos preceitos, por não serem conflitantes com a atual Constitui- ção em seu art. 192, continuam a viger pelo princípio da recepção.

Outro traço importante é que a Constituição não se deu ao trabalho de descrever exatamente todo o sistema financeiro nacional; limitou-se a traçar as regras fundamentais a serem suplementadas por lei complementar, que até o momento não sobreveio. Contudo, a própria Lei n. 4.595/64, diploma legal que dá estrutura ao sistema financeiro nacional, por força de cuidar de maté- ria hoje prevista, conforme dispõe a Carta Magna, para ser tratada por lei complementar, ganhou a força jurídica dessa espécie normativa. Assim sendo, a Lei n. 4.595 somente pode ser alterada por uma lei complementar.

O seu art. 192 trata do Sistema Financeiro Nacional, dizendo ser este regulado por lei complementar, indicando em diferentes incisos alguns dos temas dessa regulação. A dúvida que se coloca é de se a lei complementar deverá ser única e abrangente, ou cada setor do Sistema, como os dos incisos I e II, pode ser objeto de lei complementar específica.

De acordo com o mandamento constitucional, só mediante edição de lei complementar é que o legislador poderá regulamentar o sistema financeiro.

Pinto Ferreira nos dá notícia de que "A origem de tal dispositivo na Cons- tituição brasileira de 1988 prende-se à Lei Magna de 1949 da República Fe- deral da Alemanha (Tít. X, art. 104, A, a respeito do regime financeiro - Da finanzwezen), bem como principalmente à Constituição da República Portu- guesa, de 2-4-1976 (Tít. V, que trata do "Sistema Financeiro e Fiscal"). Tal orientação atuou no espírito do legislador constituinte brasileiro" (Comentá- rios à Constituição brasileira, Saraiva, 1994, v. 6).

No sistema anterior, a referida matéria possuía caráter exclusivamente infraconstitucional. Essa inclusão no texto constitucional, conseqüentemente, acarreta maior rigidez jurídica ao trato de uma atividade cujas principais ca- racterísticas são o dinamismo e a flexibilidade de adaptação à velocidade das mudanças do mercado.

Como se sabe, enquanto o Congresso Nacional não tiver estruturado o sistema financeiro nacional de maneira diferente, prevalecerão as normas da Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (também conhecida como Lei da Reforma Bancária), que dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, criando ainda o Conselho Monetário Nacional.

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A lei complementar possui seus requisitos específicos, que a diferenciam das demais leis. São exatamente aqueles já abordados, e cuja doutrina é unâ- nime em reconhecê-los. Trata-se do quorum qualificado e das matérias espe- cíficas, porque expressamente referidas na Constituição.

Quando o dispositivo constitucional estabelece "mediante lei complementar", não se pode entender que seja lei complementar única. Não seria de boa técnica legislativa que constasse na norma a expressão "leis complementares". Isto está implícito, pois o dispositivo constitucional apenas pretendeu fixar que, inde- pendentemente de quantas leis sejam necessárias, todas deverão ser comple- mentares, tomada esta expressão em seu sentido técnico-formal.

A se entender de forma contrária, estar-se-ia construindo um obstáculo à atividade do Poder Legislativo, não só nesse caso, mas também em inúme- ros outros em que a Constituição requer sua integração legislativa.

Os principais traços contidos no art. 192, que dita as normas para o sistema financeiro nacional, são os seguintes:

Em primeiro lugar, reserva-se às instituições bancárias o acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, isto é, os bancos podem exercer cumulativamente todas as funções próprias do mercado financeiro bancário, sendo, contudo, proibida a sua participação em atividades não previstas nesta autorização, o que significa dizer que a participação de bancos em empresas privadas fica vedada.

Também deverá a referida lei cuidar da autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador (Emenda Constitucional n. 13, que dá nova redação ao inc. II do art. 192).

Disciplinará, ainda, a organização, atribuições e funcionamento do Banco Central; disporá sobre a criação de um fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a economia popular; ditará as regras concernentes ao funcionamento das cooperativas de crédito. E, por fim, figura entre as determinações do art. 192 - tendo-se acatado só os traços mais abrangentes - a disciplinação da taxa de juros reais, que não devem exceder de 12% (doze por cento) ao ano. Incluídas nesses 12% as comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referentes à concessão de crédito. A cobrança acima desse limite será conceituada como crime de usura, punido em todas as suas modalidades nos termos que a lei determinar.

TÍTULO VIII DA ORDEM SOCIAL

Ao se examinar na Constituição Federal o Título VIII, dedicado à ordem social, impressiona o grande número de matérias disciplinadas que t~m por finalidade atender a vários segmentos da vida social. De fato, este é um dos pontos em que a nossa Constituição mais demonstra o seu caráter analítico e abrangente.

Todos esses preceitos reguladores ou fixadores das bases da nossa sociedade estão fundamentados no primado do trabalho, princípio que unifica toda a ordem social e que tem por objetivo o bem-estar e a justiça social (Cap. 1, art. 193 da CF).

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O Capítulo II cuida da seguridade social, englobando tudo o que pertine à saúde, à previdência e à assistência social.

Esse título, além da seguridade social, trata de outros temas que não dizem respeito tão-somente ao caráter securitário do Estado, ou do Estado prestador de auxilio aos carentes; assegura também direitos mínimos no cam- po da educação, cultura, desporto, ciência e tecnologia, comunicação social, meio ambiente, família, criança, adolescente, idoso e, por último, índios.

Assim, no Capítulo III dispõe a Constituição sobre a educação, cultura e desporto. No campo da educação enuncia os princípios que devem reger o ensino, tomando-o direito de todos, dever do Estado e da família. Garante a autonomia das universidades em seus aspectos didático-científicos, administra- tivos e de gestão financeira e patrimonial. Estabelece que haverá uma indisso- ciabilidade entre ensino, pesquisa e extensão de serviços à comunidade.

O ensino fundamental torna-se obrigatório e gratuito, inclusive para os que não tiveram acesso a ele na idade adequada. Por outro lado, para o ensino médio, é prevista a obrigatoriedade e a sua gratuidade progressiva como pro- grama de desenvolvimento.

Já no Capítulo IV são traçadas as linhas mestras que deverão reger a ciência e a tecnologia.

O Capítulo V trata da comunicação social, abolindo a censura de nature- za política, ideológica e artística.

O Capítulo VI cuida do meio ambiente, direito fundamental consagra- do no art. 5.o LXXIII, e que ainda não havia sido tratado por nenhuma das Constituições anteriores e muito menos em um capítulo específico como se apresenta hoje.

O Capítulo VII estabelece as regras fundamentais referentes à família e à criança, assim como ao adolescente e ao idoso.

O Capítulo VIII dispensa um tratamento de proteção diferenciada aos silvícolas, inexistente nas Constituições anteriores.

Observamos nesse Título que a Constituição define ordem social dando um tratamento autônomo aos direitos sociais. São normas regulamentadoras de segmentos específicos da sociedade como um todo e que não se confun- dem com os direitos sociais, tratados no Capítulo II do Título II (art. 7.o) que diz respeito aos direitos de cada cidadão, especificamente de uma categoria: os trabalhadores.

Nota-se que todos os preceitos reguladores da ordem social asseguram direitos extremamente generosos, porém, como se trata daqueles direitos à prestação e não à atuação específica do Estado, estes ficam na dependência da votação orçamentária de verbas para o atingimento dessas finalidades, e tem-se visto que, por via de regra, os orçamentos aprovados não contemplam as verbas necessárias para a satisfação de todos esses direitos, o que gera, portanto, uma certa contradição entre o que está dito no Texto Constitucional e o que é efetivamente fruível pelos cidadãos.

Como vimos, a matéria é encabeçada por um princípio que unifica toda a ordem social: o primado do trabalho. Sucede, no entanto, que nesse Título são tratadas

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diversas facetas da vida social que transcendem aos aspectos traba- lhistas e, conseqüentemente, ao próprio princípio reitor do primado do trabalho.

CAPÍTULO I DA SEGURIDADE SOCIAL

SUMÁRIO: 1. Noções gerais. 2. Saúde. 3. Previdência Social. 4. Assistência social.

1. NOÇÕES GERAIS

O Estado moderno não se mostra alheio aos problemas sociais. A primeira demonstração disso é a sua preocupação com a criação de empregos para per- mitir, pois, que cada um atenda a suas necessidades materiais. Acontece, entre- tanto, que o emprego, em si mesmo, não garante o trabalhador contra os infor- túnios e outros eventos da vida humana que levam à incapacidade. Então, para atender a essas situações de incapacitação, ou situações momentâneas de espe- cial dificuldade com o sustento próprio e o da família, há um conjunto de bene- fícios que o Estado dispensa, englobados na seguridade social.

Por çeguridade social deve-se entender o conjunto das ações dos Pode- res públicos e da sociedade no sentido de prover a saúde, a previdência e a assistência social. Portanto, temos que essa atuação do Estado dirige-se a três frentes diversas. Uma é a de prover a saúde, isto é, fornecer gratuitamente serviços de assistência médica aos doentes. Outra, a previdência, que vem a ser o atendimento daquele que, nada obstante esteja são, já perfez, digamos, o seu dever para com a comunidade, já atingiu idade imprópria para o exercí- cio do trabalho, fazendo jus, portanto, à recepção de uma remuneração como se trabalhando estivesse, embora, como se sabe, o aposentado fique dispensa- do da prestação antiga do trabalho. E, em terceiro lugar, é preciso atender àqueles que nem possuem a condição de ex-trabalhadores, isto é, pessoas marginalizadas, sem vínculo empregatício, mas que precisam, de alguma for- ma, de amparo por parte do Estado. Daí a existência da assistência social.

Sem dúvida avançou-se bastante. Não se vincula mais o beneficiário destas medidas a uma relação preexistente de contribuinte do sistema. O art. 194, I, deixa claro que todos têm direito ao atendimento nestas três áreas; o inc. II impede a discriminação entre populações urbanas e rurais; o inc. III deixa claro o sentido distributivista da seguridade social, é dizer, não há ne- cessidade de se procurar a equivalência entre as contribuições e benefícios. Estes deverão estar voltados aos mais necessitados; é o que indica a expressão seletividade (inc. III). Os beneficiários haverão de gozar de segurança, daí a irredutibilidade do valor dos benefícios.

Quem financiará o sistema? A resposta é dada pelo art. 195: a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as contribuições sociais dos traba- lhadores, dos empregadores e dos concursos de prognósticos (loterias ofici- ais). Estas fontes poderão ser acrescidas de outras criadas por lei com funda- mento no poder da União de criar impostos não previstos na Constituição (art. 154, I). De qualquer sorte, nenhum benefício poderá ser criado ou aumentado sem a correspondente fonte de custeio.

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2. SAÚDE

A saúde é um direito de todos e um dever do Estado (art. 196). Na sua prestação desempenha papel importantíssimo o sistema único a que se refere o art. 198. Ele consiste numa integração das ações e serviços públicos de saúde, tendo por diretrizes o princípio da descentralização, no nível de cada esfera de governo, o atendimento integral e a participação da comunidade.

Existe também a participação da iniciativa privada. À iniciativa privada é dado complementar a atuação do sistema único; sendo certo, no entanto, que preferência deve ser dada a entidades filantrópicas e às sem fins lucrati- vos. Na mesma linha de idéias proíbe-se a destinação de fundos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos. Da mes- ma sorte que se veda a participação do capital estrangeiro na assistência à saúde no País.

Quanto ao sistema único de saúde, goza ele de inúmeras competências elencadas no art. 200, que vão desde o controle e a fiscalização de procedi- mentos até a colaboração na proteção do meio ambiente.

3. PREVIDENCIA SOCIAL

À Previdência Social cabe atender aos nela inscritos, quando colhidos por eventos tais como: a doença, a invalidez, a morte, a idade avançada, a maternidade, o desemprego involuntário e outros (art. 201, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998). A qualquer um é dado participar, desde que efetue a sua contribuição financeira, na forma dos planos previdenciários.

A Constituição aprovou regras que dão um caráter mais substancioso aos benefícios, assim como procurou assegurá-los contra a deterioração do poder aquisitivo da moeda (§ 3.o e 4.o do art. 201 da CF/88, com redação dada pela EC n. 20, de 15-12-1998). Segundo a Emenda n. 20/98, fica assegu- rado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter perma- nente, o valor real, conforme critérios definidos em lei.

A aposentadoria é atingível mediante o implemento das seguintes condições: decurso de idade (sessenta anos para a mulher e sessenta e cinco anos para o homem) e certo tempo de contribuição (trinta anos para a mulher e trinta e cinco anos para o homem). O professor e a professora têm a redução de cinco anos, desde que comprovem exclusivamente tempo de efetivo exercício de função de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio. Estende-se também essa redução de cinco anos de idade para os trabalhado- res rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pes- cador artesanal.

E importante notar que, para efeito de aposentadoria, conta-se o tempo de contribuição, tanto na administração pública quanto na atividade privada, rural ou urbana.

4. ASSISTÊNCIA SOCIAL

A peculiaridade desta consiste em ser prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social. Ela tem por objetivo a proteção à

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família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice, dentre outros previstos em diversos incisos do art. 203.

A ação governamental na área de assistência social será realizada com os recursos do orçamento da seguridade social, que é um dos componentes do orçamento anual.

CAPÍTULO II DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO

SUMÁRIO: 1. Educação. 2. Cultura. 3. Desporto.

1. EDUCAÇÃO

A educação consiste num processo de desenvolvimento do indivíduo que implica a boa formação moral, física, espiritual e intelectual, visando ao seu crescimento integral para um melhor exercício da cidadania e aptidão para o trabalho.

De acordo com a Lei Maior, a Educação é direito de todos e dever do Estado e da família. Tem por objetivo o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho. Ela será ministra- da com base nos princípios fixados no art. 206, dentre os quais se destaca o inc. IV, que determina a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Daí surgirem os dois sistemas fundamentais de ensino. O público, sustentado pelo Estado, e o privado, aberto à iniciativa particular e sujeito ao cumprimento das normas gerais de educação nacional e à avaliação de quali- dade pelo Poder Público (art. 209).

O Estado se desonera de seu dever de educar, satisfazendo aos incisos do art. 208; salienta-se aí o dever do Estado em matéria de ensino fundamen- tal, que é obrigatório e gratuito, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria (EC n. 14, de 12-9-96, que modificou o inc. Ido art. 208 da Lei Maior). Esta obrigatoriedade e esta gratuidade deverão, gradativamente, ser estendidas visando à universalização do ensino médio (EC n. 14, de 12-9-96, que modificou o inc. II do art. 208 da Lei Maior). Dispositivo muito importante é o § 2.o do mesmo art. 208, que diz que o não-oferecimento do ensino obrigatório importa responsabilidade da autori- dade competente.

As Universidades são entes autônomos, gozando de uma liberdade de atuação, tanto no campo didático-científico como no da administração e ges- tão financeira e patrimonial.

O ensino recebe uma especial proteção da Constituição, por meio da vinculação que esta faz entre a receita proveniente de impostos e transfe- rências. Os índices mínimos são: o da União, nunca inferior a dezoito por cento; o dos Estados, Distrito Federal e Municípios, nunca abaixo de vinte e cinco por cento.

A Emenda Constitucional n. 11, de 30 de abril de 1996, permite a ad- missão de professores técnicos e cientistas estrangeiros pelas universidades brasileiras.

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A Emenda Constitucional n. 14, que alterou o § 5.o do art. 212, prescre- ve que o ensino fundamental público terá como fonte adicional de financia- mento a contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas, na forma da lei. É a lei que disporá.

As escolas privadas poderão receber auxílios públicos, desde que comunitá- rias, confessionais, filantrópicas ou de caráter não lucrativo.

Uma modificação importante introduzida pela Emenda Constitucional n. 14/96 foi a alteração do art. 211, passando a ter a seguinte redação:

"Art. 211

§ 1.o A União organizará o sistema federal de ensino e o dos territórios, financiará as instituições de ensinos públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

§ 2.o Os municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.

§ 3.o Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.

§ 4.o Na organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão normas de colaboração de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório".

A redação antiga somente indicava ao Município a sua área de atuação no ensino, que antes era o pré-escolar, e que, com a nova redação passou a ser o ensino infantil. Com esta Emenda, os Estados e o Distrito Federal já tem a sua área de atuação delimitada, que é o ensino fundamental e médio.

2. CULTURA

Cultura compreende tudo o que o homem tem realizado e transmitido através dos tempos na sua passagem pela terra. Envolve: comportamento, desen- volvimento intelectual, crenças, enfim, aprimoramento tanto dos valores espiri- tuais como materiais do indivíduo.

A proteção fornecida pela Constituição à cultura atinge duas modalida- des fundamentais. A primeira é a liberdade ampla conferida a todos de pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes desta cultura. A segunda vem a ser a proteção que o Poder Público deve exercer sobre o chamado Patrimônio Cultural Brasileiro. Por este deve-se entender o conjunto dos bens de natureza material e imaterial que mantenham alguma referência com a identidade, a ação, ou a memória dos diferentes grupos formadores da socie- dade brasileira.

Os instrumentos de atuação do Poder Público neste campo são: os inven- tários, os registros, a vigilância, o tombamento e a desapropriação. A própria Constituição já procede a aplicação de uma destas medidas ao dispor, no § 5.o do art. 216, que ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas do antigo quilombo.

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3. DESPORTO

O Estado deve incentivar as práticas desportivas, desde que observadas "a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento" (inc. i do art. 217 da Lei Maior).

Trata-se de uma garantia constitucional dada às entidades desportivas. Estas têm capacidade para gerir os seus próprios negócios, dentro dos limites da lei. Essa autonomia das entidades dirigentes se estende também às associa- ções que tenham por fim o desporto.

Ainda no dever de fomento da prática desportiva pelo Estado, este deverá observar a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do des- porto educacional e, em casos específicos, para o desporto de alto rendimento (inc. II do referido artigo). Vê-se que o Texto Constitucional restringe a destinação de recursos públicos ao desporto educacional e ao de alto rendimento.

CAPÍTULO III DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA

SUMÁRIO: 1. Ciência e tecnologia.

1. CIÊNCIA E TECNOLOGIA

A ciência e a tecnologia na atual Constituição possuem um capítulo pró- prio (Cap. IV) no Título "Da Ordem Social". Ambas são produto do saber humano. A ciência volta-se mais para as formulações teóricas e a tecnologia procura extrair rendimento prático desses mesmos princípios. Quase se pode- ria dizer que a tecnologia é a ciência aplicada.

A ninguém ocorrerá divergir da importância que essas atividades assu- mem nos Estados modernos, altamente competitivos, sobretudo na esfera co- mercial, e cujo êxito depende, em grande parte, da oferta de produtos tecnologicamente mais avançados. Daí porque não estranharão as manifesta- ções do Estado em favor do seu desenvolvimento.

Assim sendo, o Estado incentiva, e coloca à disposição daqueles que se proponham a exercer tal atividade condições especiais de trabalho.

O Estado incentivará o desenvolvimento científico e tecnológico. Este último com vistas ao desenvolvimento do próprio sistema produtivo nacional e regional.

A Emenda Constitucional n. 11/96 concede autonomia às instituições de pesquisa científica e tecnológica.

São modalidades desta sua atuação: a formação de recursos humanos, o estímulo das empresas que invistam em pesquisa e a permissão para que os Estados e o Distrito Federal vinculem parcela de sua receita orçamentária a estas atividades.

CAPÍTULO IV DA COMUNICAÇÃO SOCIAL

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SUMÁRIO: 1. Comunicação social.

1. COMUNICAÇÃO SOCIAL

O art. 220 da Constituição Federal estatui que "a manifestação do pen- samento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, pro- cesso ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nes- ta Constituição".

O que a Constituição Federal (art. 220) garante é a livre expressão do pensamento, princípio já assegurado em seu art. 5.o, IX, além de proteger a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo de comunicação, não permitindo que sofram quaisquer restrições, salvo o dis- posto na Constituição. Assim, fica firmado o princípio geral da plena liberda- de; nada obstante, fica vedado o anonimato. É assegurado o direito de respos- ta, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. Ainda, é inviolável a intimidade, a vida privada e a honra das pessoas.

Pode-se argumentar corretamente que todos os direitos individuais são passíveis de limitação. Talvez o único que escape a tal regra é o direito à igualdade perante lei, que, por sua vez, não elide adequação interpretativa.

Ao pinçar os referidos dispositivos constitucionais, temos o propósito de ressaltar o fato de que a Carta de 1988 veio a dar nova ênfase ao primado da liberdade de comunicação e ao direito à informação.

Nem por isso, é claro, deixa de impor suas limitações, cumprindo obser- var que elas não residem no fato de estatuírem-se restrições ao exercício de tais direitos, mas no de cuidar para que sejam efetivados no âmbito de contor- nos principiológicos dirigidos à substância das mensagens quando de sua di- vulgação pública, consoante se depreende do art. 221, que trata dos parâmetros a que as emissoras de rádio e televisão devem ater-se, cominando, ainda, à lei federal, a tarefa de velar pelo interesse geral, no que respeita a esta matéria, ao mandar que regule as programações segundo os ditames § 3.o do art. 220.

Como vimos, é livre a manifestação do pensamento, não podendo esta sofrer qualquer restrição, salvo o disposto na própria Constituição. É proibida toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, cabendo à lei federal tão-somente determinar que o Poder Público informe sobre a natu- reza das diversões e espetáculos públicos, assim como as faixas etárias a que não se recomendam.

Cabe também à lei federal instituir meios que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas que contrariem os princípios firmados no art. 221, a que estão sujeitas as emissoras de rádio e televisão. Os princípios a serem atendidos pelas emissoras de rádio e televi- são no tocante a sua programação são, segundo o art. 221: a) a preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; b) promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua di- vulgação; c) regionalização da produção cultural, artística e jornalística, con- forme percentuais estabelecidos em lei. A referência expressa ao âmbito re- gional está presente tanto na promoção da cultura regional quanto na regionalização da produção cultural. Há ainda outra à produção independen- te, que deve ser entendida como aquela que se destaca dos grandes

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bldcos comerciais e que dá margem à pessoa ela mesma como geradora e produtora da promoção e divulgação da cultura regional.

As empresas jornalísticas de rádio e de televisão devem ser de propriedade privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos.

O art. 223, por sua vez, estabelece:

"Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal".

Ao Poder Executivo compete outorgar ou renovar concessão, permissão ou autorização para estas empresas, sendo certo que ao Congresso Nacional cabe a apreciação deste ato. E dizer, o Poder Público não se pode furtar à outorga de "concessão, permissão e autorização" para o serviço de radiodifu- são sonora de som e imagem, com observância daquilo que o constituinte denominou de "complementaridade de sistemas privado, público e estatal". A não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional.

CAPÍTULO V DO MEIO AMBIENTE

SUMÁRIO: 1. Noção de meio ambiente. 2. Tratamento constitucional dado ao meio ambiente. 3. Obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental.

1. NOÇÃO DE MEIO AMBIENTE

A origem da palavra "ambiente" é latina: ambiens, entis, cujo significa- do é rodear, envolver. É o meio em que vivemos.

Não havia definição legal para este termo até a chegada da Lei n. 6.938, de 31 de outubro de 1981, que definiu meio ambiente como "o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas" (art. 3.o, I). Vê-se que o seu alcance é amplo na medida em que atinge tudo aquilo que permite, abriga e rege a vida.

No art. 2.o, I, da mesma Lei, considera-se meio ambiente o "patrimônio público, a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo".

2. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DADO AO MEIO AMBIENTE

O estrago que os homens deste século têm feito ao meio ambiente é algo considerável. Só para se ter uma idéia das proporções já atingidas, hoje é comum falar-se em efeito estufa, diminuição da camada de ozônio e outros tantos efeitos danosos. Evidentemente que problemas tão complexos como estes não dizem respeito somente a esse ou àquele país agressor, mas sim ao mundo inteiro.

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Em razão desse funesto panorama em que se encontra o mundo atual, há uma maior conscientização por parte dos homens em relação à proteção da natureza, é dizer, à importância que tem para a humanidade a utilização ade- quada de todos os bens que nos oferece a natureza. Esse novo pensamento ecológico acredita que, agindo todos e cada um, assim as populações como os governos, em benefício do Planeta que habitamos, poderemos obter tanto para nós uma melhor qualidade de vida como, com certeza, para as gerações futu- ras. É que resguardando hoje o meio ambiente, desfrutando-o de maneira equi- librada, estaremos garantindo a sua integridade no futuro.

Tudo corre no sentido de, cada vez mais, as populações exigirem de seus governos maior responsabilidade com relação à proteção ambiental.

O Brasil, porém, só passou a dar a atenção devida, do ponto de vista constitucional, que o tema merece em fins da década de 80.

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a abordar expressamente tal problemática, abrindo um Capítulo específico para tratar do tema: do di- reito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Mas, como bem pon- derou José Afonso da Silva, "a questão permeia todo o seu texto, correlacionada com os temas fundamentais da ordem constitucional" (Direito ambiental cons- titucional, 2. ed., São Paulo, Malheiros, 1995, p. 25-6).

Nesse capítulo específico, procurou-se assegurar a efetividade desse di- reito, ou melhor dizendo, o direito que todos temos de viver em um ambiente saudável, cabendo ao Poder Público tomar as medidas básicas de sua atuação. Esse dever é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios (art. 23, VI, da CF/88).

Inovou a atual Carta, no tratamento conferido ao meio ambiente como princípio constitucional. A expressão utilizada foi a de "Meio Ambiente". É a denominação que recebeu o Capítulo VI, do Título VIII. A respeito da nomen- clatura, lembra Paulo Affonso Leme Machado que: "... envolve em si mesma um pleonasmo. O que acontece é que "ambiente" e "meio" são sinônimos por- que "meio" é precisamente aquilo que envolve, ou seja, o "ambiente", (...) uti- liza cumulativamente expressões sinônimas ou ao menos redundantes ..." (Direito ambiental, 6. ed., São Paulo, Malheiros, 1996, p. 69).

De logo cumpre observar que o art. 225 investiu a todos num direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Portanto, não é só ao Poder Públi- co que cabe defender a ecologia. Ao particular também é dado fazê-lo, utilizan- do-se inclusive dos instrumentos jurisdicionais cabíveis como, por exemplo, a ação popular visando a anular ato lesivo ao meio ambiente (art. 5.o, LXXII). Quanto à parte que cabe ao Poder Público, vem ela arrolada no § 1.o do art. 225.

O ponto importante neste capítulo consta do § 3.o que diz que as condu- tas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independen- temente da obrigação de reparar os danos causados. Nota-se aqui um ponto encontrável em outros passos da nova Constituição: a ênfase na reparação civil. De fato a responsabilidade civil é em muitas hipóteses a mais atemorizante porque é altamente operacionalizável e toca fundo num dos bens mais caros do indivíduo, que é o seu patrimônio.

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3. OBRA OU ATIVIDADE POTENCIALMENTE CAUSADORA DE SIGNIFICATIVA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL

Tendo como ponto de partida ainda o próprio Texto Constitucional, cabe ainda falar de uma expressão, utilizada no seu inc. IV do art. 225, que é a "obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental". Segundo este dispositivo, incumbe ao Poder Público "exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade". Não poderemos entender essa a atividade lesiva ao meio ambiente, sem antes discorrermos sobre a degradação ambiental.

Quem nos fornece a exata significação do que se deve entender por de- gradação ambiental é a própria Lei Federal n. 6.938/81, no seu art. 30 dizen- do ser "a degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das carac- terísticas do meio ambiente".

Logo se percebe a extrema vagueza do conceito legal. Mas nem poderia ser de outra forma, pois o Texto Constitucional não admitiria a exclusão de obras que fossem promotoras, ainda que potencialmente, de degradação do ambiente, da elaboração prévia de estudo de impacto ambiental.

Vale a pena notar que a proteção ao meio ambiente se dá sobretudo por medidas preventivas, isto é, antes da realização de obras que potencialmente são passíveis de trazer uma perturbação ao meio ambiente.

Exige-se um prévio estudo do impacto ambiental. Este um dos instru- mentos principais de defesa do meio ambiente. O ponto fulcral desse estudo está na obrigatoriedade de respeitar o meio ambiente.

Ele é levado a cabo pelo Conselho do Meio Ambiente (CONAMA), que deverá emitir relatório de impacto ambiental que vai servir de base para a autoridade competente conceder ou negar a licença de atividades.

Essas atividades, que deverão requerer o referido estudo para que obtenham autorização para o seu funcionamento, estão disciplinadas no art. 2.o da Resolu- ção n. 1, de 23 de janeiro de 1986. São elas, segundo nos dá conta o art. 2.o:

"Art. 2.o Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental - RIMA, o licenciamento de ati- vidades modificadoras do meio ambiente, tais como:

I - estradas de rodagem com 2 (duas) ou mais faixas de rolamento;

II - ferrovias;

III - portos e terminais de minério, petróleo e produtos químicos;

IV - aeroportos, conforme definidos pelo inciso I, art. 48, do Decreto- lei n. 32, de 18 de novembro de 1966;

V - oleodutos, gasodutos, minerodutos, troncos coletores e emissários de esgoto sanitário;

VI - linhas de transmissão de energia elétrica, acima de 230 KV;

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VII - obras hidráulicas para a exploração de recursos hídricos, tais como: barragens para quaisquer fins hidroelétricos, acima de 10 MW, de sa- neamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação, drenagem e irrigação, retificação de cursos d'água, abertura de barras e embocaduras, transposição de bacias, diques;

VIII - extração de combustível fóssil (petróleo, xisto, carvão);

IX - extração de minério, inclusive os de classe III, definidos no Códi- go de Mineração;

X - aterros sanitários, processamento e destino final de resíduos tóxi- cos ou perigosos;

XI - usinas de geração de eletricidade, qualquer que seja a fonte de energia primária, acima de 10 MW;

XII - complexo e unidades industriais e agroindustriais (petroquímicos, siderúrgicos, cloroquímicos, destilarias de álcool, hulha, extração e cultivo de recursos hidróbios);

XIII - distritos industriais e zonas estritamente residenciais;

XIV - exploração econômica de madeira ou lenha, em área acima de 100 ha ou menores, quando atingir áreas significativas em termos percentuais ou de importância do ponto de vista ambiental;

XV - projetos urbanísticos, acima de 100 ha ou em áreas consideradas de relevante interesse ambiental a critério do SEMA e dos órgãos municipais e estaduais competentes;

XVI - qualquer atividade que utilize carvão vegetal, derivados ou pro- dutos similares, em quantidade superior a dez toneladas por dia;

XVII - projetos agropecuários que contemplem áreas acima de 1.000 ha ou menores, neste caso, quando se tratar de áreas significativas em termos percentuais ou de importância do ponto de vista ambiental, inclusive nas áreas de proteção ambiental".

Na verdade, a Carta de 1988 não permite restringir-se o sentido da cláu- sula "obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental". Destarte a enumeração feita pela norma transcrita não é exaustiva, isto é, toda vez que se estiver diante de uma obra que tenha um potencial de lesividade, o relatório deverá ser exigido.

Paulo de Bessa Antunes, a respeito da aplicação desse estudo no Brasil, comenta: "Com efeito, no Brasil, o estudo de impacto ambiental é visto como um empecilho ao desenvolvimento, um instrumento a serviço daqueles que são contra o progresso. Exigido pela Constituição, o estudo é, ainda, uma "avis- rara" entre nós". (Curso de direito ambiental, 2. ed., Ed. Renovar, p. 105).

A conclusão a que se chega em se tratando da questão ambiental é que o problema em si é extremamente delicado porque, de um lado, exige medidas de preservação da natureza no seu estado natural, enquanto, de outro, o de- senvolvimento econômico, aspirado por todos os povos como forma de con- tenção e supressão da miséria, implica, se não devidamente regulamentado, em sacrifícios ao meio ambiente.

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Todo o desafio que se põe, pois, consiste em encontrar meios de desen- volver a economia sem agressão ao meio ambiente, o que nem sempre é fácil.

CAPÍTULO VI DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE E DO IDOSO

SUMÁRIO: 1. Família. 2. Criança e adolescente. 3. Idoso.

1. FAMÍLIA

Família é o conjunto de pessoas unidas por laços de parentesco. É consi- derada a célula fundamental da sociedade. As Constituições modernas concedem um tratamento especial à família, introduzindo em seus preceitos regras de proteção a esse grupo fundamental da sociedade. A nossa Constituição vela pela integridade da família na pessoa de cada um dos seus integrantes, criando mecanismos para coibir a violência no âm- bito de suas relações.

O § 7.o do art. 226 da nossa Lei Maior deixa claro que é um dever de todos, inclusive do Estado, garantir ao casal a liberdade de decidir responsa- velmente, sem nenhum tipo de coação social ou legal, quantos filhos querem ter e como querem espaçar os nascimentos. Não se trata de procriação ilimi- tada ou falta de consciência do que implica educar os filhos, mas a faculdade de os cônjuges terem de usar a sua liberdade inviolável de modo sábio e res- ponsável, tendo em conta tanto as realidades sociais e demográficas, quanto a sua própria situação e desejos legítimos.

Como vimos, a família é reconhecida como base da sociedade e merecedora de especial proteção do Estado. Isso não impede, contudo, que seja deferida proteção às outras formas de união do homem e da mulher, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento. Entendemos, também, por outro lado, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Há uma reiteração de igualdade entre homem e mulher. A mulher não é mais colaboradora, mas também exerce a chefia da sociedade em conjunto com o seu marido.

Quanto ao divórcio, a Constituição trouxe uma ligeira facilitação, na medida em que a anterior só o permitia após prévia separação judicial por mais de três anos. A atual reduz este prazo para um ano. De outra parte, constitucionaliza a separação de fato, estipulando-se que o divórcio pode dar-se com o decurso desta por mais de dois anos.

2. CRIANÇA E ADOLESCENTE

À criança e ao adolescente é garantida pela Constituição uma série de direitos. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar-lhes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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É dever do Estado, da família e da sociedade assegurar, com absoluta prioridade, à criança e ao adolescente uma série bastante grande de direitos, todos elencados no art. 227.

Ainda, uma atenção especial é dada aos portadores de deficiência física, sensorial ou mental, ao lado de objetivar-se a integração social do adolescente portador destas deficiências. A lei deverá instituir normas de construção de lo- gradouros, edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

A idade mínima para o trabalho é de quatorze anos, observado o dispos- to no art. 7.o XXXIII.

Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos ou qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Podemos observar, pois, que à criança e ao adolescente o legislador cons- tituinte concedeu tais prerrogativas visando ao seu pleno desenvolvimento dentro de um contexto apropriado e que, sem dúvida, os orienta a uma vida melhor e para uma perfeita convivência social.

Mas esta prerrogativa não se deu unicamente no nível constitucional. Também podemos encontrá-la em nível infraconstitucional, com o advento da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), dispondo, no seu art. 1.o, sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.

Essa proteção baseia-se no reconhecimento de direitos especiais e específi- cos de todas as crianças e adolescentes referentes à vida, à saúde, à alimen- tação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dig- nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 4.o). Esse art. reitera o art. 227, compreendendo, no seu parágrafo único, a garantia de prioridade: a) a primazia de receber proteção e socorro em quais- quer circunstâncias; b) a precedência no atendimento nos serviços públicos e ou de relevância pública; c) a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; e d) a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

3. IDOSO

Constitui inovação do vigente Texto Constitucional a exigência de ser dada efetiva proteção, por parte do Estado, da sociedade e da família, à pes- soa idosa. Nada mais justo que o amparo àqueles que, em seu momento, contri- buíram plenamente com a sua força física, mental e espiritual para a constru- ção de um mundo melhor e que, hoje, encontram uma série de dificuldades para conviver em sociedade, até mesmo no seio da família. Embora de forma acanhada, o Estado brasileiro, através de seus legisladores, demonstra preocu- pação e interesse com esse setor da população que tanto precisa de apoio.

A velhice tem a sua proteção na forma do estatuído pelo art. 230. Os programas de amparo aos idosos serão executados, preferencialmente, nos seus lares. Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade nos transportes urbanos.

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Infelizmente ainda estamos longe do estágio de bem-estar atingido pe- los idosos que vivem em países denominados do primeiro mundo, onde existe uma efetiva proteção à vida, à dignidade das pessoas idosas.

CAPÍTULO VII DOS ÍNDIOS

SUMÁRIO: 1. Índios. 2. Terras indígenas. 2.1. Aspectos históricos e jurídicos das terras indígenas no Brasil. 2.2. As terras indígenas à luz da Constituição Federal de 1988. 3. Síntese conclusiva.

1. ÍNDIOS

Os índios, também denominados silvícolas, são os habitantes originários do Continente Americano. Encontrados pelos descobridores ao aportarem à América, viviam organizados em tribos, em estágio de civilização primitiva, não obstante alguns povos apresentassem maior desenvolvimento cultural do que outros, como, por exemplo, os maias, os incas e os astecas.

Os índios brasileiros de hoje - calcula-se em torno de duzentos e vinte mil - descendem daqueles que foram os primeiros donos de nossas terras. E até hoje continuam, na sua maioria, em situação primitiva, ou melhor dizen- do, não aculturados.

Vivem espalhados em diferentes regiões do nosso país. A sua relação com as terras que habitam tem sido um problema muito antigo, conforme veremos mais adiante. Por ora, vale notar que os diplomas legais sempre pro- curaram ressalvar o domínio dos índios sobre as suas terras, o que não impe- diu que, na prática, os índios fossem gradativamente perdendo terreno no que diz respeito ao solo brasileiro. No início, eles eram os senhores absolutos da terra. Hoje, estão cantonados em áreas definidas pela Constituição. Há uma explicação histórica para tanto. Os índios detinham a posse de todo o territó- rio. No contato com o colonizador foram tangidos para pontos cada vez mais remotos do território, enquanto outros foram absorvidos por miscigenação pelos próprios colonizadores.

Atualmente, correm o risco de, com a investida implacável da civiliza- ção moderna, perderem ainda mais terras. Nestes termos, é evidente que os índios carecem de organização que transcenda à tribal. Aliás, a própria histó- ria não se furta em dar exemplos da fragilidade imanente dessa primitiva for- ma de organização. É por essa razão que a Lei Magna atribui à União a com- petência para demarcar terras, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Há que se falar ainda no Estatuto do Indio, a Lei n. 6.001/73, anterior à Carta de 88, mas por ela recepcionada, eis que se amolda aos seus princípios, sem trazer-lhe contrariedade ou antagonismo.

Sua situação jurídica, portanto, é especialmente protegida pela Constitui- ção. O nosso legislador constituinte reconhece, no caput do art. 231, aos índios a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Poderia ter seguido orientação diversa da qual perfilhou, prevendo o desenvolvimento de qualquer política sistemática de aculturação indígena. Mas o legislador consti- tuinte não enveredou por esse caminho. Ao contrário, procurou preservar a cul- tura indígena, tida por primitiva, da assimilação pela dita civilizada.

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2. TERRAS INDÍGENAS

2.1. Aspectos Históricos e Jurídicos das Terras Indígenas no Brasil

A primeira manifestação legal de que se tem notícia, no que concerne à posse das terras indígenas, é o Alvará de 1.o de abril de 1680, que foi reiterado ipsis litteris na Lei Pombalina, de 6 de junho de 1755, dispondo o seguinte:

"Nas terras dadas de sesmaria a pessoas particulares se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero que se entenda, ser reservado o prejuízo e o direito dos índios, primários e naturais delas".

Do ponto de vista constitucional, a primeira Constituição que tratou da questão foi a de 1934, no seu art. 129, que dispôs: "Será respeitada a posse das terras dos silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las".

Posteriormente, a Carta Magna de 1937 preceituou:

"Art. 154. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alie- nação das mesmas".

A de 1946 não fugiu à regra, trazendo também disposição parecida com as precedentes:

"Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem".

Já a de 1967 inovou ao fazer referência ao usufruto:

"Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos natu- rais e de todas as utilidades nela existentes".

Com o advento da Emenda n. 1/69, o dispositivo que trata da posse in- dígena, ficou com a seguinte redação:

"Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos ter- mos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nela existentes.

§ 1.o Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.

§ 2.o A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes o direito de qualquer ação ou indenização contra a União e a Fun- dação Nacional do Índio".

2.2. As Terras Indígenas à Luz da Constituição Federal de 1988

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A Constituição de 1988 reconhece aos índios a sua "organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens" (art. 231).

Mesmo tendo em conta que a posse indígena decorre de uma realidade que preexiste a qualquer ato civilizatório, não podemos, contudo, dizer que os índios sejam os detentores dessa posse originária porque a partir do mo- mento que se proclama a Constituição, que se constitui o ordenamento jurídi- co do Estado, o que passa realmente a contar é o poder constituído com auto- ridade originária, é dizer, o poder soberano. Não paira dúvida alguma sobre quem exerce a soberania sobre essas terras: é o povo brasileiro. Do que não se exclui, por certo, o próprio índio. O índio integra o povo brasileiro, só que numa condição especial, ao ponto de merecer um capítulo específico na pró- pria Constituição. Ademais, a Carta atual, no seu art. 20, XI, deixa claro que são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Vale ressaltar que este reconhecimento não é fruto de uma vontade ca- prichosa ou mesmo discricionária. Ele decorre da existência dos pressupostos que a própria Carta Magna aponta, o que é feito no § 1.o do referido artigo, definindo o que sejam terras tradicionalmente ocupadas. São consideradas indígenas as terras que possuam algumas das seguintes características: a) serem ocupadas pelos índios sob a forma de habitação, é dizer, as terras permanen- temente habitadas por índios; b) as utilizadas para as suas atividades produti- vas; c) as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e; d) as necessárias à sua reprodução física e cultural, segun- do seus usos, costumes e tradições.

Não é, portanto, um ato do Poder Público que vai constituir uma terra como indígena. Esta qualidade decorre do preenchimento de alguns dos pres- supostos acima aduzidos. O que se espera dos Poderes Públicos é que as ter- ras com estas características sejam demarcadas. Este ato não pode, sob hipó- tese alguma, violar direito de terceiros. É dizer, daqueles que seriam legíti- mos possuidores de terras não enquadráveis em quaisquer dos pressupostos já enunciados. Este direito à reivindicação foi brilhantemente reconhecido em recente decisão do Tribunal Federal da Primeira Região. Da sua fundamenta- ção extrai-se o seguinte: "Ora, se a Carta Magna reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, obviamente que o ônus de desconstituir a situação jurídica das terras que ocupam como indígenas não cabe às comunidades indígenas, mas aos particulares, que so- bre elas não podem alegar vínculo fático peculiar à posse ou à detenção, mas hão de demonstrar por ação petitória - ação de reivindicação - ou demarcatória, como está no § 2.o, do art. 19, do Estatuto do Índio, a precedente propriedade" (MS 89.01.20477-0-RR, Rel. Leite Soares, Brasília, 27 de junho de 1989).

Note-se que a atual Constituição respeitou a posse das terras indígenas. Como vimos, há uma tradição constitucional no sentido de passar ao índio a posse por ele mantida.

No que diz respeito ao usufruto, aos minerais situados nessas terras, a Constituição, a exemplo das anteriores, foi favorável aos índios, já que reser- vou-lhes o usufruto exclusivo dessas riquezas.

O § 1.o do art. 231 define o que sejam terras tradicionalmente ocupadas. São as habitadas pelos índios em caráter permanente, as por eles utilizadas para suas atividades produtivas e as imprescindíveis à preservação dos recur- sos ambientais necessários ao seu

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bem-estar. As terras referidas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. São nulos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras referidas, assim como a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Esta nulidade e extinção não gera direito a indenização ou ação contra a União.

3. SINTESE CONCLUSIVA

Vê-se que o Brasil, ao contrário de outros países cujos fluxos imigratórios encontram populações também autóctones, optou de longa data por uma po- lítica de preservação das populações indígenas fundada na reserva constitucional, quer da posse quer do usufruto, daquela porção de terras por eles habitada. Entende-se a expressão habitação como sendo não apenas a morada física do índio, mas o contato com a mata, com as águas e com a terra, indispensáveis à extração dos produtos da sua economia interna totalmente dependente do extrativismo.

Há que se notar ser esta diretriz, cujo mérito não vem a pêlo aqui discu- tir-se, em si muito onerosa para a Nação brasileira, vez que importa no sacri- fício de grandes glebas, que são subtraídas de uma exploração tecnologicamente mais avançada para manterem-se submetidas a modos de produção de rendi- mento inexpressivo.

É certo que muitos criticam os critérios adotados pela Constituição de 1988, eis que se feitas as demarcações, o que até o momento não aconteceu integralmente, as terras indígenas representariam em torno de 10% do território nacional. O que se espera é que a demarcação das terras indígenas há de ser feita com objetividade e estritamente obediente aos ditames constitucionais. A sua exorbitância, quer num sentido quer noutro, traduz-se em sérios gravames, numa hipótese para os próprios índios, noutra para a própria Nação brasileira como um todo. Esta depende do seu território para a instalação da sua popula- ção, assim como para a extração de riquezas que o estágio atual de sua econo- mia, ainda pouco desenvolvido, não está em condições de dispensar.

Portanto, não há de se condescender com quaisquer idéias inspiradas em preocupações ideológicas ou ecológicas que tendam a desequilibrar os ter- mos em que a Constituição colocou o problema. Se há um legítimo direito dos índios às terras que lhe são afetas, há também um não menos legítimo direito da coletividade, assim como dos particulares, que porventura sobre elas te- nham titulação de fruírem e gozarem das terras não indígenas.