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A APROPRIAÇÃO DA CIDADE PELA DANÇA: UM ESTUDO SOBRE O QUARTEIRÃO DO SOUL

Bruna Monteiro da Fonseca

IntroduçãoNas tardes dos fins de semana, ao passar por algumas ruas do centro da cidade de

Belo Horizonte é possível ouvir um som de um estilo musical não muito comum no Brasil,

em língua diferente. É o soul, estilo musical que ficou famoso na voz de James Brown,

artista bastante ouvido por esse grupo de pessoas. Quando nos aproximamos, vemos que

esse grupo está dançando animadamente. E se observarmos, eles estão vestidos com

roupas elegantes, parecidas com as que foram moda na década de 1970.

A partir de algumas dessas observações descompromissadas, feitas por uma

habitante da cidade curiosa pela dança e pelo grupo descrito, surgiu a ideia para o trabalho

Posteriormente descobri que ‘aquilo’ era chamado de Quarteirão do Soul, um grupo que se

reunia com frequência para dançar nas ruas do centro da cidade. Mas que era muito mais

do que só ‘aquilo’ e carregava na sua dança de rua vários significados pessoais e coletivos,

criando mais uma maneira de se apropriar do espaço urbano através de um movimento que

dança. Alguns anos após ter conhecido o movimento e tê-lo definido como objeto de estudo,

o nome que antes era Quarteirão do Soul tornou-se mais familiar e passou a ser, para mim,

apenas Quarteirão, maneira pela qual será também tratada no trabalho.

Procura-se analisar como a forma de atuação do grupo – a dança – se insere na

apropriação do espaço urbano. Espaço este entendido como construção social, a partir do

conceito de Henri Lefebvre (2006). Um movimento de tanta riqueza como o Quarteirão do

Soul desperta ainda diversas outras perguntas e formas de análise. Não se pretende realizar

um estudo histórico do estilo musical ou responder como ocorre uma identificação local tão

forte com um ritmo originado de outro ou país. Devido a este fato, percebe-se que muitas

palavras comumente usadas pelos componentes do movimento e pelos estudiosos estão

em inglês, como ‘black’ e ‘soul’. Preferiu-se não traduzi-las ou diferenciá-las ao longo do

texto graças ao seu alto uso na língua portuguesa.

Para buscar os objetivos de pesquisa foram realizadas observações em quatro locais

onde os encontros do Quarteirão do Soul ocorreram desde o fim do ano de 2013 até

novembro de 2014. Além das observações espaciais realizadas nos locais públicos onde os

encontros acontecem, foram realizadas quatro entrevistas com participantes do Movimento

Soul de Belo Horizonte. Estas pessoas foram entrevistadas por serem conhecidas no meio.

O Quarteirão do Soul se mostrou um movimento de grande importância na cidade, já

que não existem outros espaços que proporcionem o mesmo contato com as pessoas, com

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a dança, com o espaço da cidade. Diante de um movimento pouco estudado, o tema

mostra-se relevante e original para as ciências sociais, para a cidade de Belo Horizonte,

berço desta bela forma de apropriação. Que essa pesquisa contribua para aqueles que

disfrutam do movimento.

A dança e a ocupação do espaçoPara o início do estudo do Quarteirão do Soul toma-se como base a pergunta de

pesquisa – compreender as formas de apropriação do centro da cidade de Belo Horizonte

pelo Quarteirão do Soul. Para cumprir o objetivo inicial, analisar o papel da dança na

apropriação do espaço, faz-se necessária uma análise teórica sobre a dança e o papel que

ela assume, de acordo com estudiosos do tema. Nos próximos capítulos serão relatados os

resultados da pesquisa de campo e análises bibliográficas referentes ao local onde o

movimento ocorre, a cidade.

O movimento Quarteirão do Soul tem como sua base a dança e é através dela que

diversos espaços no centro da cidade de Belo Horizonte são ocupados. Assim, uma análise

teórica da dança de rua contribui na compreensão da apropriação que a dança assume no

movimento.

Ainda que produtora de velocidade, a cidade também imobiliza. O corpo se torna

instrumentalizado pelo uso padrão no cotidiano das cidades, se transformando em uma

armadura que não se move e nem se arrisca, oprimido e disciplinado. As ruas da cidade

obrigam a adoção de uma velocidade rápida, que dificulta os encontros. O corpo tem de ser

então, lugar onde se experimenta a cidade, onde as conexões são feitas. São estas as

ideias centrais dos autores Hissa e Nogueira (2003) para quem “viver o corpo pode ser

expandir os limiares interior-exterior, fabricar composições, resistir no sentido de inventar”

(HISSA, NOGUEIRA, 2013, p. 73). Andar, dançar ou se movimentar na cidade com os pés

se torna um ato de transgressão diante dos diversos meios que tiram o contato com o chão.

A partir de uma perspectiva onde o corpo e a cidade representam uma só coisa,

transformando-se um no outro, criando o que é chamado de “cidade-corpo”, os autores

(HISSA, NOGUEIRA, 2013, p. 56) se utilizam de conceitos de Milton Santos (2008), entre

outros geógrafos e urbanistas, para quem a cidade é entendida como o local onde as coisas

acontecem, expressão maior de todos os lugares e da vida (SANTOS, 2008).

A relação da cidade-corpo se dá na medida em que existe o corpo da cidade, feito por

aqueles que se movem e criam a vida através de seus corpos. A diversidade do corpo da

cidade forma um hibridismo, onde as contradições e os conflitos ocorrem. A cidade é o local

onde a vida acontece e onde as redes se formam, gerando o espaço-território. Nesse

território, o corpo é elemento inalienável (SANTOS, 2008).

O corpo é visto como o instrumento de ação, local de onde nos expressamos. Ele

dialoga com a cidade e nela se transforma, pois produz ações que podem se mostrar

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transgressoras de normas através do uso e apropriação do espaço, que também se apropria

de quem o faz. Desta maneira, o corpo se mostra o reflexo da relação entre o indivíduo e o

coletivo, e assim torna-se também o reflexo de uma época, onde “a história da cidade é a

história da cidade-corpo” (HISSA, NOGUEIRA, p. 62, 2013). Os corpos que realmente

praticam a cidade o fazem no que é menos visível, fora do que é disciplinado, de maneira

escondida. Quando existe a tentativa de domesticação da produção do espaço urbano, os

seus praticantes o reescrevem (HISSA, NOGUEIRA, 2013).

Milton Santos (2008) mostra que aqueles que não vivem na cidade da pressa, os que

vivem em lentidão, são os que inventam o espaço urbano, ignorando suas regras e “criando

novos territórios urbanos. Ao se desvencilharem das normas de controle, eles grafam no

terreno caminhos de resistência à reprodução da cidade luminosa, criando usos não

previstos, gerando movimentos e novos sentidos” (HISSA, NOGUEIRA, 2013, p. 59). O

artista das ruas, ainda que não tenha o objetivo de analisar o espaço, consegue capturar

“sentidos urbanos, fazendo-nos atentar para a dimensão afetiva das espacialidades

cotidianas” (HISSA, NOGUEIRA, 2013, p. 74). Por isso, a importância da rua, local onde os

limites internos do corpo se acabam.

A história da cidade só acontece devido à existência dos corpos, portanto quando um

local tenta excluir o corpo de sua lógica na cidade, perde sua própria história. Os autores

mostram que apesar da rua ser pública e coletiva, as políticas não têm sido nesse sentido. A

rua é o território de compartilhamento e coletivo a ser experimentado pelo corpo. A dança,

então, se mostra um convite à experimentação da fronteira do outro (HISSA, NOGUEIRA,

2013).

Como explicar o fato de estilos de dança criados nos Estados Unidos hoje possuírem

grupos de pessoas que os dançam em cidades distantes no Brasil e em outros países?

Henri Lefebvre em “Rhythmanalysis: space, time, andeverydaylife” (2004), dá uma razão:

através do ritmo. Para o autor, a música se torna global, o que nos une a ela é o ritmo. A

partir da percepção de que a raça humana tem o corpo estruturado pelo ritmo – da

respiração, circulação do sangue, etc. – este se torna um recurso para a música, que

retorna para o corpo quando a música o atinge. Esta sensação é o que torna a música

global e une grupos aparentemente diferentes e bem distantes geograficamente. E assim

concorda Merrimann (2010), para quem a dança pode ser ensinada através da experiência

corporal, sem que as pessoas precisem conversar ou tenham tido contato prévio.

As coreografias aprendidas reafirmam tradições e códigos, além de regras e restrições

das identidades de quem a realiza. Criam um sistema regulatório ao mesmo tempo em que

criam possibilidades de subversão. Mais que a dança performática, a coreografia vive em

tensão com o improviso e com a ação estruturada, entre a disciplina e a liberdade. Um corpo

que dança é aquele que age e reage ao formular uma dança. Cria novas concepções,

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reflexões, imagens e relações. Mostra-se um processo de conversação que inventa e

manifesta sua identidade corporal (MERRIMANN, 2010). Tal processo acontece na dança

coreografada ou na dança improvisada e não se encontram em oposição.

Quando existe a tentativa de domesticação da produção do espaço urbano, os seus

praticantes o reescrevem. A resistência ocorre com maior força nos lugares e sob as

condições mais adversas. O uso do corpo é a maneira encontrada para se apropriar de um

território, de criar um novo sentido e oferecer resistência (HISSA, NOGUEIRA, 2008).

Evidencia-se assim, um movimento que ultrapassou as fronteiras da dança e até as

fronteiras do centro geográfico ao ocupar o espaço urbano e tentar passar sua mensagem

de revolta pela exclusão. Ainda que no Brasil as igualdades se mostrem mais perceptíveis, é

possível perceber outros casos de ressignificação dos espaços através da dança em

diversos locais do mundo.

Tendo sido feitas várias considerações teóricas, mostra-se o poder da dança na

reivindicação do espaço urbano. Os movimentos demonstraram formas de ocupação pela

dança, que produz e modifica o espaço e transforma assim, a própria identidade do citadino.

O Quarteirão do Soul representa outra forma de resistência, uma forma de readequação do

centro da cidade de Belo Horizonte para a dança. Como esse grupo se estrutura para

exercer a dança? É o que se coloca no próximo capítulo.

A experiência Quarteirão do SoulO desejo pelo estudo do Quarteirão do Soul surgiu a partir da averiguação deste

enquanto de movimento cultural e espontâneo da cidade. Para compreender o que é o

movimento vamos relatar um breve histórico e demonstrar, através das experiências de

campo, a atuação do Quarteirão do Soul na cidade.

A soul music se iniciou em Belo Horizonte através do rádio, que tocava os sucesso

nacionais e internacionais. Segundo Ribeiro (2010) as músicas que tocavam na Rádio

Cultura AM embalavam os bailes do bairro Renascença, Carlos Prates e na periferia da

cidade. Os bailes ocorriam na mesma hora do programa. Atingindo uma proporção maior, os

bailes foram passados para o Centro, devido à diversidade de locais de origem dos

frequentadores. Outro facilitador era o fato de só haver a necessidade de pegar apenas um

ônibus. O principal baile era o Máscara Negra, na Rua Curitiba, 482 (RIBEIRO, 2010, p.

172). Por serem tão populares na década de 1970, os bailes centrais também eram os que

apresentavam maior repressão.

Os policiais pediam que os frequentadores apresentassem carteira de trabalho

assinada, quando boa parte deles trabalhava informalmente. Assim, várias prisões eram

feitas. Este é um dos fatos que teria acabado com os bailes, o medo da retaliação da polícia,

segundo Ribeiro (2010).

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O soul retorna ao centro da cidade de maneira bastante espontânea. Em abril de

2004, em um quarteirão da Rua Goitacazes, entre a Rua São Paulo e Rua Padre Belchior,

alguns amigos se juntaram em volta de um carro que tocava soul music e começaram a

dançar. A rua é parte da região central da cidade, local onde um deles (conhecido como DJ

Geraldinho) trabalhava lavando carros. A partir de então surgiu a ideia de juntar os amigos

dos antigos bailes de soul, da década de 1970. O nome teria surgido naturalmente, por se

tratar de um quarteirão em que se ouvia música soul, segundo Geraldinho. A sonorização

passou a ser feita por aparelhos mais modernos, melhorando a qualidade. E algumas

semanas depois, a Rádio Favela fez um especial direto do Quarteirão do Soul ao vivo.Os

encontros surgiram na tentativa de reunir os velhos amigos para dançar. Só que desta vez a

dança ocorria na rua, de maneira espontânea, sem que nenhum órgão municipal fosse

consultado. Em pouco tempo a rua foi fechada pela própria prefeitura devido ao alto

movimento dos dançarinos. Os frequentadores, chamados de ‘blacks’, passaram a se

concentrar ali, vindos de diversas partes da região metropolitana de Belo Horizonte

(RIBEIRO, 2008).

Já a partir do ano de 2006 começaram as divergências entre os organizadores, o que

quase fez com que o movimento se separasse e ficasse enfraquecido. O nome Quarteirão

do Soul1, que unificava o grupo em 2004, foi abandonado devido a desentendimentos

internos, reivindicação do nome por um dos grupos.

Apesar das partições internas, o modus operandi dos grupos na ocupação do espaço

é bem parecida – pessoas que gostam de soul se deslocam de suas casas para ouvir

música e dançar ao som do estilo. O DJ é aquele que distingue qual dos quatro grupos está

realizando o evento. O nome Quarteirão do Soul simplifica esta lógica e é o que mais

representa a rua através da palavra ‘quarteirão’. Razões estas pelas quais as observações

foram feitas sem distinção de qual grupo comandava as músicas e são todas unificadas no

trabalho sob o mesmo nome.

A relação da palavra ‘quarteirão’, utilizada no nome do grupo, por si só já expressa

uma relação muito próxima com a rua, o espaço urbano. Tal relação será explorada no

terceiro capítulo. O espaço urbano utilizado nos quais os encontros de dança acontecem

serão descritos a partir do próximo item.

As observações foram realizadas sem embasamento quantitativo, tendo como

referência as percepções de campo, as entrevistas com os membros do movimento e

1 Cabe realizar esclarecimento com relação ao uso do nome Quarteirão do Soul por este trabalho. Foram descobertos quatro grupos de música soul em atuação: Quarteirão do Soul, Movimento Soul BH, Black Soul e Comunidade Soul. No entanto, resolveu-se utilizar somente Quarteirão do Soul devido ao fato de ter sido este o nome originalmente usado. Este será o nome utilizado para abrigar os 4 grupos, como parte de um movimento que abriga todos os grupos de soul music que atuam na cidade.

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estudos anteriores. São feitas observações sobre os locais dos encontros, sobre o perfil dos

frequentadores, além de uma introdução dos locais de encontro.

A escolha dos locais de observação foi feita a partir dos espaços onde o Quarteirão do

Soul se encontra para dançar. As observações têm sido feitas desde outubro de 2013, mas

foram intensificadas nos meses de outubro e novembro de 2014. Alguns encontros e

apresentações são realizados fora da área central ou em áreas fechadas, mas sempre

através de convite e de maneira pontual. Como não se tratava do objetivo do trabalho, não

serão retratadas.

O funcionamento dos encontros tende a ser parecido. O som é quase sempre

comandado por um DJ em todos os locais. Em sua minoria, o som é mecânico. O

responsável pelo som é um dos integrantes que possui grande conhecimento e habilidade

no gênero. Para poder tocar, muitas vezes é pedida uma contribuição aos frequentadores.

Os DJs se revezam, assim como parte do público que também varia de semana pra

semana. Como mostrado anteriormente, o Movimento é formado por diferentes grupos.

A partir do momento em que o DJ coloca a música e os dançarinos black já iniciam

sua dança, qualquer pessoa pode se aproximar e começar a dançar. Alguns grupos são

formados, normalmente guiados por um dançarino que ensina os passos para os que não

sabem. Também existem os dançarinos de grande habilidade que dançam sozinhos.

Normalmente são mais velhos e frequentes no movimento. Eles também são visivelmente

identificáveis pela vestimenta black.

O policiamento nos encontros é constante. Em todas as observações viu-se contato

entre a polícia e alguém do movimento, muitas vezes com o DJ, talvez por procurar uma

liderança local com quem pudesse conversar e fazer algum pedido sobre o volume da

música ou horário de término.As coreografias e a vestimenta são dois elementos de

distinção da música soul. O estilo está intimamente ligado à afirmação da identidade negra e

torna-se uma forma de externalizar o preconceito e discriminação sofridos por esta

condição. São nestes elementos que é possível ver que o grupo se integra, ainda que o

perfil dos frequentadores seja diverso.

Os exemplos da vestimenta são calça boca larga, sapato de dança, camisa social e

cabelo estilo black power. Também pode se caracterizar a dança soul também pela

elegância, pela demonstração de seu próprio talento e individualidade. É identificável pelas

observações a predominância de pessoas afrodescendentes que frequentam o encontro,

que são refletidas pelas roupas caracterizadas pela valorização dos traços da etnia negra.

Este torna-se mais um fator integrador do grupo:

Os principais participantes do grupo, os frequentadores do movimento há mais tempo,

tem em sua maior parte mais de quarenta anos. Dos mais velhos, alguns frequentavam os

bailes black na década de 1970, outros sofreram influência da música soul na década

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seguinte. Ainda assim, a influência musical, continua, uma vez que é possível ver jovens nos

encontros aprendendo a dançar com amigos e familiares:

A diferença entre o número de mulheres e homens não é discrepante, mas os homens

são maioria no movimento, apesar das manifestações que pedem igualdade de gênero no

Soul, como mostra Tania Rodrigues (7 nov. 2014): “o homem black é muito vaidoso. E a

mulher fica muito no breu. Fiz uma música que fala: ‘chama ela pra dançar do seu lado’. Ao

lado de um bom dançarino tem que ter uma mulher dançando. Eu não quero que fica aquela

exclusividade”.

Como mostrado, os frequentadores moram longe da região central e se utilizam de

transporte coletivo para ir ao Soul. Alguns deles moram na região metropolitana de Belo

Horizonte. A característica da variedade também permanece na profissão dos dançarinos.

Foram relatados no movimento artesãos, vigilantes, pintores, policiais, aposentados,

vendedores e algumas profissões autônomas. A presença de moradores de rua é sempre

notada e a integração deste grupo ao Quarteirão do Soul será abordado ao se tratarem as

regras internas.

As pessoas que foram entrevistadas são algumas das que quase sempre estão

presentes nos encontros. Além disso, desempenham papeis específicos dentro do

movimento. São divulgadores e porta-vozes do Quarteirão do Soul:

O perfil dos dançarinos mostra que, na sua diversidade, eles se constituem como um

grupo. A dança mostra que “o domínio do corpo e do espaço individualizam e, ao mesmo

tempo, criam um sentimento de pertencimento coletivo, de inserção social. A partir da dança

estabelecem-se novas relações entre o dançarino e sua visão de mundo e entre este e os

outros membros do grupo” (RIBEIRO, 2008, p. 157).

Através da dança o corpo se torna instrumento de apropriação de lugares e situações,

mostrando uma forma de ressignificação do espaço, do corpo, da identidade. Possui um

caráter de distinção porque é nela que os dançarinos se mostram, se revelam. É o local

onde as pessoas se destacam individualmente. Sua prática leva à manifestação da

personalidade e consciência de si próprio. É aí que se revelam a sensualidade, a elegância,

seu domínio de espaço e pertencimento.

É necessária uma localização geral do movimento no Centro da cidade. É importante

reafirmar a centralidade de todos os locais onde o movimento acontece. Todos os

encontros, os atuais e os antigos, são na região central. A Praça Sete, sobretudo,

representa o centro comercial da cidade, local onde milhares de pessoas passam

diariamente, tornando o Quarteirão do Soul da praça um dos locais de maior visibilidade

para o movimento. Também foi citado que, uma vez que os participantes do movimento não

moram perto da área central, seria mais cômodo pegar apenas um ônibus em direção ao

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Centro, onde uma boa parte das linhas circula. Levando o Soul pros bairros, haveria

necessidade de pegar mais de um:

Se você levar pro bairro, vai ser só aquele pessoal que mora ali, que vai ficar olhando. O Centro é todo mundo, é todos os bairros. É gente fazendo compra, gente puxando cachorro. O público é maior, é gente mais diferenciada que no bairro. Bairro só tem aquele grupinho ali, um pedacinho. O Centro é muita gente (DJ Geraldinho, 7 nov. 2014).

Desde 2011 os encontros têm ocorrido na Praça Sete de Setembro (ou Praça Sete).

Ainda que não ocorresse com periodicidade fixa no começo, nos últimos dois anos o Soul

acontece aos domingos das 15 às 20 horas. Por esse motivo se tornou bastante tradicional

neste local, onde os encontros ficam sempre cheios. Assim pode ser considerado o local

mais estável dos encontros. Outros fatores se devem a periodicidade, já que acontece há

quatro anos no mesmo local. Por estas razões este foi o local onde a maior parte das

observações foi feita.

Uma vez feita uma descrição da estrutura do movimento neste capítulo, além dos

locais em que se estabeleceram, chega-se a pergunta final: como este grupo se apropria do

espaço que utiliza? Compreendido que a dança modifica o espaço e que o centro da cidade

é o local modificado por ela, carece de explicação os mecanismos pelos quais este grupo se

apropria. O próximo capítulo tem o objetivo de analisar como ocorre essa apropriação do

espaço da cidade pelo Quarteirão do Soul.

O Quarteirão do Soul e a apropriação da cidadeA partir da compreensão da estrutura do Quarteirão do Soul e do estudo da

apropriação do espaço pela dança, estaparte tem como objetivo analisar as formas de uso

do espaço urbano pelo grupo, a maneira como ele se apropria do espaço. Tendo sido essas

palavras tão utilizadas, faz-se necessária uma conceituação dos termos.

A apropriação é entendida neste trabalho através do conceito da obra “A produção

do espaço” (2006), de Henri Lefebvre. Para o autor, enquanto uma sociedade tenta

descobrir o seu espaço, ela também o produz, se apropriando dele. Só a prática do espaço

é o que faz entendê-lo. Se apropriar do espaço é então, explorá-lo, e consequentemente,

produzi-lo.

Tanto o espaço quanto o tempo são construções sociais, resultados e produtos da

cultura (LEFEBVRE, 2006). É impossível controlar o espaço, uma vez que este contém

relações sociais, “as relações entre os sexos, as idades, com a organização específica da

família (...), portanto, as funções sociais hierarquizadas” (2006, p. 37). Os espaços são

infinitamente diversos e múltiplos. Por isso, eles produzem, reproduzem e dissimulam as

relações simbólicas de gênero, idade ou classe social.

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Tim Cresswell (2006) mostra também que o espaço é influenciado pela apropriação

particular de cada contexto sócio-espacial dos grupos que nele vivem diariamente, tornando-

o dinâmico. O espaço relaciona práticas diversas e se transforma aos poucos, se mostrando

nunca finalizado (LEFEBVRE, 2006).

A construção do espaço também produz mudança na identidade. Assim a apropriação

se torna importante instrumento identitário, já que o espaço também transforma quem se

apropria dele. O espaço social tende a moldar as disposições do corpo, tal como o jeito de

andar e dançar (BOURDIEU, 1997). A apropriação acontece quando o Quarteirão do Soul

constrói novos espaços, fazendo com que cada um seja modificado e, em consequência, o

grupo também mude.

A criação do espaço pode ser entendida como um processo. Este processo não

acontece linearmente com os fatos históricos e não é possível compreendê-lo apenas a

partir dos acontecimentos cronológicos. Isso se deve ao fato do espaço ser dinâmico e se

transformar aos poucos. Cada espaço possui certa coesão, própria de cada formação social.

Para participar de tal formação os membros apresentam, então, uma performance, uma

relação complexa com o espaço. O modo de usar o corpo torna-se uma das formas de

afirmar o poder (LEFEBVRE, 2006).

A importância do corpo nessa apropriação é então colocada por Certeau (2008), para

quem o corpo é o lugar de onde vemos o mundo. O seu uso torna-se, então, um manifesto.

Usando-o enquanto instrumento, ele transforma o lugar, a cidade. A cidade também o

transforma, fazendo com que um se transforme no outro. A apropriação da cidade pelo

corpo é, portanto, um manifesto.

No momento em que o Quarteirão do Soul ocupa a rua, quem tem o poder sobre o

espaço são os dançarinos. São eles que possuem o poder sobre seu corpo, seus

movimentos na cidade, ainda que no dia seguinte este poder tenha se perdido e os

dançarinos voltem à função tradicional do corpo – de trabalhadores urbanos, aposentados,

etc. A identidade é fluida, assim como a dança. O momento da dança torna-se uma

transgressão, um manifesto pela diversidade dos movimentos do corpo: “Ele pode ser um

assassino, um ladrão, pode ser o que for. Mas naquele momento, ele deixa de ser aquilo.

Ele está ali se divertindo” (DJ Geraldinho, 7 nov. 2014).

O corpo também produz o tempo (BOYD, 2006), onde os movimentos da dança

somados a outros elementos podem levar a um outro local, uma outra década. O Soul leva

os participantes para a atmosfera da década de 1970: “Se você for pegar o Raul hoje e

colocar o Raul em 75 é a mesma coisa, é o mesmo black. É o mesmo passinho que

dançava na época” (DJ Geraldinho, 7 nov. 2014). Ocorre um transporte dos dançarinos para

uma realidade espacial e temporal diferente: “E é lindo você ver isso na rua, parece que tá

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entrando num mundo diferente, é onde tem aquele discotecário tirando aquele vinil antigo e

aí aparecem e todos caracterizados” (Tania Rodrigues, 7 nov. 2014).

Com o Quarteirão do Soul o espaço se torna palco, passarela, vitrine, escola de

dança. A dança soul se apropria, mas não como uma simples ocupação. A apropriação

ocorre quando o espaço é fabricado, testado e adaptado. Quando o espaço é expandido

novas formas e experimentações são feitas. São criadas maneiras de se adaptar ao controle

e às regras, criando novos meios de apropriação. A apropriação faz com que os limites entre

cidade e corpo se misturem.

E que espaço apropriado pelo grupo é este? São as ruas das cidades, que se

transformam em palco, onde o público assiste aos gestos e danças. É onde os moradores

se tornam atores/dançarinos, segundo Wylliam H. Whyte (1988). As pessoas que circulam

são parte deste palco que é a rua. E independentemente do país, pessoas que são

estimuladas a sair às ruas nas cidades do mundo inteiro tendem a agir de maneira

semelhante. Apesar da aglomeração das cidades já ter sido negativizada, as pessoas se

socializam em locais de fluxo de pessoas. Isso se explica porque “o que mais atrai as

pessoas, em suma, são outras pessoas” (WHYTE, 1988, p. 10).

A cidade é definitiva naquilo que nos dá experiência urbana, que provoca o tempo

todo e tira do lugar comum colocando face a face com o diferente. Richard Sennett (1970)

então reafirma a riqueza de se superar tal aspecto do medo da diferença e do

desconhecido, e assim, desfrutar de uma vida que seja de trocas, experiências e não se

limite a ser apenas uma coisa só, mas várias, assim como a cidade. Esta afirmação nos

remete a Briginshaw (2011), para quem os espaços de dança da cidade tiram as pessoas de

sua tradicional ‘lógica de visualização’ (BRIGINSHAW, 2011, p. 240), de sua zona de

conforto na visualização e experimentação de cada espaço.

A dança faz com que as pessoas sejam surpreendidas em seu trajeto cotidiano, e se

indaguem sobre a origem das pessoas que dançam ao som da música soul. O espaço da

dança se torna local de encontros dos integrantes e frequentadores, criando uma rede de

compartilhamento de informações.

A cidade é apontada como o centro, “os berços do pensamento e da invenção”

(LEFEBVRE, 2006, p. 5). O urbano nada mais é do que um produto social nunca finalizado,

sempre em constante mudança, adaptação e reinvenção. Uma obra de arte que tem seus

materiais transformados. A rua, portanto, se torna espaço de relações, feita pelas redes em

torno da família, vizinhança, trabalho, e tem continuidade na rua, no bairro e nos espaços da

cidade. Trata-se, portanto, de uma familiaridade da cidade que ultrapassa as casas e os

mundos domésticos conforme as circulações e mobilidades espaciais dos citadinos (AGIER,

2011).

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Tim Cresswell (2006), apresenta um estudo de mobilidade espacial onde afirma que

ao historicizar o lugar, qualquer que seja, ele sempre será apropriado, mesmo que seja um

aeroporto, metrô, ou uma estação de ônibus. A historicização da implantação social é a

melhor maneira de perceber o processo urbano, ainda que este não ocorra de forma linear.

A observação histórica da ocupação pelos corpos é a melhor maneira de perceber como o

espaço social se constitui (CRESSWELL, 2006). Para isso, as observações se mostram de

extrema importância.

É a partir da apropriação do espaço urbano pela dança que este trabalho pretende

mostrar como espaços da cidade são constantemente reconstruídos. A cada vez que o Soul

acontece em um novo lugar e com um novo grupo, uma dinâmica diferente de apropriação

se forma. Para o melhor resultado das observações, a metodologia adotada será exposta no

próximo subitem.

Estratégias metodológicasA análise da apropriação do Quarteirão do Soul foi baseada nas observações, nas

entrevistas e nos estudos anteriores. Para realizar as observações do Quarteirão, optou-se

por frequentar os encontros de dança. Estes acontecem na cidade pelo menos uma vez por

semana e são organizados por cada grupo. O grupo não possui lideranças, mas as

entrevistas foram realizadas com quatro pessoas de importância, conhecidas por fazerem

parte da organização dos encontros.

Para auxiliar a pesquisa de campo, o processo de observação foi baseado em

autores como Gilberto Velho (1987), que entra na discussão sobre o familiar e o

desconhecido. Mesmo em um contexto de um local aparentemente familiar, é preciso existir

um estranhamento por parte do pesquisador. Para o estudo do que parece ser distante e

exótico, o pesquisador deve reduzir a ação de classificar e julgar de acordo com os seus

conceitos prefixados, tentando transformar o estranho em familiar (VELHO, 1987).

Como já apontado, não se pretendeu estudar a história do Quarteirão do Soul em

profundidade ou realizar uma pesquisa quantitativa sobre o perfil dos frequentadores. O

objetivo é entender as formas pela qual o movimento se apropria do espaço. O método de

observação participante permitiu um aprofundamento da pesquisa, sem a ilusão de

neutralidade ou inexistência de qualquer envolvimento pessoal.

O Quarteirão do Soul e seu espaçoNeste subitem apresenta-se a análise da apropriação espacial do Quarteirão do Soul,

de extrema importância para a compreensão do movimento. O resultado das impressões de

pesquisa será aliado a discussões teóricas de diversos autores. O Quarteirão do Soul

começou na Rua Goitacazes em 2004. Foram feitas tentativas de acabar com o movimento

através de denúncias de tráfico de drogas, além de reclamações pelo volume da música.

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O direito à cidade é mais do que o direito de usufruir dos recursos e espaços

urbanos. David Harvey (2013) aponta que, ainda que as cidades passem por processos

como “destruição criativa” e gentrificação, elas se readaptam, se transformam. A cidade é

então, o local de conflito, de reivindicação. O direito à cidade é o direito de comandar o

espaço urbano.

O Quarteirão do Soul continuou existindo mesmo tendo sua continuidade ameaçada

por regras de redução das atividades noturnas, do controle de barulho e do rezoneamento.

O grupo teve que se adaptar a estas regras para continuar exercendo sua dança. As

subjetividades são demonstradas no deslocamento e assim são negociadas e construídas,

permanecendo como forma de resistência (BRIGINSHAW, 2001): “A prefeitura vira pra você

e fala assim: ‘você não pode tocar aqui mais, arruma outro espaço’. Aí eu saio correndo

atrás de outro e penso onde é que tem outro espaço” (DJ Geraldinho, 7 nov. 2014).”Para se

adaptar a essa dificuldade, os integrantes do movimento usam as redes sociais para

divulgar o local dos encontros.

O processo de apropriação pela dança é facilitado através do aprendizado aplicado

nos encontros, parte essencial do Quarteirão do Soul. As barreiras socioculturais são

rompidas quando se ensina a dança. O que é necessário na aprendizagem é a experiência

do corpo (MERRIMANN, 2010). A partir do momento em que o DJ coloca a música e os

dançarinos black já iniciam sua dança, qualquer pessoa pode se aproximar e começar a

dançar. Alguns grupos são formados, normalmente guiados por um dos dançarinos mais

experientes. Quando uma pessoa não consegue acompanhar os passos, em todas as vezes

observadas, algum dos ensinadores se deslocou para o lado da pessoa e a acompanhou

mais de perto, tentando demostrar efetivamente como acompanhar a música na forma mais

adequada. Desta maneira, a pessoa pode se sentir incluída na dança. O aprendizado dos

passos tem se mostrado fator fundamental para fortalecer o movimento:

Alguns dançarinos, por dançarem bem, não se misturam aos grupos de coreografias

mais básicas. Outros mostram que entendem da dança sem ter que se vestir

caracteristicamente. Outros ainda, não possuem qualquer habilidade na música soul, e por

isso criam suas próprias coreografias desconexas com o ritmo ouvido.

Em algumas tentativas, pequenos grupos se formam sem a ajuda das pessoas que

ensinam os passos normalmente, e se vê a formação de uma dança coordenada

internamente, mas sem um ensinador da coreografia. A dança se mostra bastante aberta

aos participantes com diversos níveis de habilidade.

Ao longo das observações e nas entrevistas foi possível perceber a necessidade de

cumprimento de regras internas e externas na participação do grupo. Certas condutas são

esperadas não só pela preservação do movimento, mas pela harmonia dentro dele. A maior

parte das normas estabelecidas foi criada coletivamente, dentro da comunidade de

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frequentadores, para quem existe um apreço grande pela ordem. Existe uma conduta de

comportamento onde as regras foram interiorizadas como parte do movimento. Essas regras

internas caracterizam uma comunidade com “auto reguladores” (ALEXANDER, 1998) a

serem explorados mais abaixo.

As regras são demonstradas principalmente através de pequenas negociações entre

os frequentadores do grupo e com os atores externos que dividem o espaço com os

dançarinos de Soul. Diante da limitação do espaço físico não é socialmente permitido que se

façam movimentos que atrapalhem ou reduzam o espaço dos outros. Tal fator se mostra

determinante para a sociabilidade no grupo.

O espaço também se torna ordenado pela coreografia, que pode ensinar, mas também

limita os movimentos. Ela demonstra a existência de um ordenamento espacial. Os

passinhos aprendidos podem reafirmar restrições espaciais e identitárias. Cria ordenamento,

uma estrutura do movimento do corpo. A execução de coreografias é realizada por aqueles

que não possuem habilidades no uso do corpo. Enquanto que aqueles que possuem a

experiência corporal, além do domínio do espaço e do corpo, podem exercê-lo sem um

molde tão visível nos movimentos. O ensinamento das coreografias mostra que o Soul vive

uma tensão entre a disciplina e a liberdade, da mesma forma, a coreografia permite o

compartilhamento do espaço e inclui na dança as pessoas com baixo nível de habilidade.

A liberdade está em poder usar a cidade, transformá-la através do uso do corpo. Sair

dos moldes de uso tradicional da cidade-corpo, em poder tocar e ouvir música na rua. A

disciplina se encontra no fato de ter que desenvolver habilidades específicas daquele tipo de

dança. O ordenamento está em dançar nos locais e horários delimitados pela prefeitura. Ou

ainda é determinado pelo espaço físico, onde a arquitetura interfere nos locais de execução

dos passos.As regras externas são fiscalizadas e negociadas com a prefeitura e a polícia.

Mas a própria rua pede regras em suas interações, devido a variedade de pessoas que a

utilizam. O Quarteirão do Soul, tendo a rua como seu espaço, as reflete. Desta maneira, o

ordenamento interno permite que o movimento continue.

Além das negociações relacionadas ao espaço físico, o consumo de drogas ilícitas ou

embriaguez também não são permitidos entre os dançarinos: “No Soul não tem droga. Se

alguém chegar usando droga lá no meio, a gente pede pra sair. A gente dança é com a

alma, não com droga” (DJ Geraldinho, 7 nov. 2014). Apesar de pequenas situações de

conflito, não existiram grandes conflitos e os frequentadores conviveram em harmonia,

vindos de diversos grupos urbanos, entre moradores de rua, policiais, aposentados e

artesãos.

Sobre as relações com moradores de rua, eles se mostram integrados ao grupo e são

presença certa e participante nos encontros, ainda que segundo o DJ Geraldinho, existe

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quem se incomode com a presença deles (7 nov. 2014). O espaço dentro do Quarteirão se

mostrou respeitador.

Uma vez que os eventos acontecem na rua, a vigilância policial é constante, como

relatado. Tal fato também decorre em cumprir regras, não só as internas, mas também as

estabelecidas através desse tipo de controle, que também já demonstrou abuso de poder:

É preciso exercer a liberdade através da aceitação do papel da desordem e da

imperfeição, que existem em qualquer sociedade, e assim também, na cidade(SENNETT,

1970). Dessa maneira, ao se aglomerarem, as pessoas convivem com outras diferentes e

daí tiram a experiência da vida em coletividade e não através da convivência com um ideal

de perfeição. Apesar de Jeffrey Alexander (1998) identificar a idealização da vida em

comunidade, afirma que os membros podem possuir vínculos “auto reguladores, solidários e

emancipadores, independentes do mercado, da fé religiosa, do afeto familiar, da coerção do

Estado e da verdade científica” (1998, p. 21). A adequação às regras mostra que as tensões

se convertem em senso de justiça comum.Ideia semelhante à defendida por Maffesoli

(2006), que apresenta um conceito de sociabilidade em que as tribos urbanas são uma

comunidade com vínculo afetivo, mas que ao mesmo tempo lida com as diferenças. Os

autores mostram que é necessário combater a ideia de construção de uma identidade

comunitária homogênea e sem conflitos. Além do mito compartilhado por boa parte da

sociedade moderna de que comunidades menores e mais coesas demonstram um estilo de

vida superior àquele das grandes cidades.

Os espaços dos encontros possuem a diversidade – das formas de utilização e de

perfil do público – como uma das maiores características. Tal diversidade pode ser razão de

conflitos, inclusive dos conflitos entre os grupos que formam o Quarteirão do Soul. No

entanto, os encontros se realizaram de maneira tranquila, não só entre os dançarinos do

grupo, mas do grupo em relação a atores externos como a polícia e comerciantes. O

convívio tendeu a ocorrer de maneira pacífica, onde foi mostrado que a dança soul mais une

que segrega.

O Quarteirão do Soul foi diversas vezes aqui referido enquanto movimento. A palavra

agrega diversos significados, incluindo o ato de mover-se, sair do lugar. Esta definição

também está bastante relacionada ao grupo, que se apropria do espaço através dos

movimentos da dança. No entanto, o Quarteirão pode ser enquadrado como um movimento

social, de cunho cultural, a partir de sua forma de ação: “Os Movimentos Sociais adotam

uma estratégia infrapolítica, dedicam-se às lutas na sociedade civil, (...). Organizam-se em

redes mais informais e não-hierárquicas. São pequenos em número de participantes e

atuam num campo novo e não institucionalizado” (GAMEIRO, CARVALHO apud SPICER,

BOHM, 2006).

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Jeffrey Alexander (1998), também contribui para tal enquadramento ao apontar uma

mudança na concepção dos movimentos, para quem a sina de revolução que os

acompanhava foi reduzida, assim como a necessidade de violência e coerção para obter

êxito em suas reinvindicações. São nos espaços da “sociedade em miniatura” (1998, p. 8)

que as demandas surgem e um movimento se forma. Com uma comunidade formada, os

movimentos sociais se tornam locais onde há formação de públicos para questões

específicas. A demanda conferida ao Quarteirão do Soul foi a execução da dança nas ruas

de Belo Horizonte, tornando esta a causa pela qual o movimento luta.

Diante de um novo cenário de interações entre sociedade civil e instituições políticas,

Alexander (1998) mostra que a sociologia deve levar em consideração a subjetividade dos

movimentos, mas sem se esquecer do instrumentalismo aliado, que também faz com que o

movimento permaneça existindo. Assim, a ideia de ação coletiva é modificada. A

reivindicação tem como motivos o resgate da identidade pessoal e social, sendo

transformados nos produto da ação social.

O Soul mostra a luta pela identidade black, do resgate de uma época e da realização

da dança de rua, onde é possível encontrar os amigos e reunir as pessoas. Não existe

espaço melhor para reivindicar do que a cidade. Ela cria o espaço de debate, de diversidade

e assume protagonismo como o próprio movimento (CASTELLS, BORJA, 1996). Ela

representa a união entre sociedade civil e instituições políticas através da ação coletiva e

conjunta. Tal articulação pode se dar nas mobilizações sócio-políticas onde se pretende

reafirmar a identidade coletiva. A cidade não é mais vista como simples aglomeração, mas

como um lugar de participação.

Para David Harvey (2013) o direito à cidade é ter o direito de mudar a si próprio. O

espaço urbano é reconstruído a todo o momento pela apropriação do corpo. O movimento

cotidiano dos espaços urbanos é moldado pelos centros comerciais, pelos veículos, por

locais de transição e de trabalho. Quando o movimento do corpo muda, o espaço é então

modificado: “Muitas vezes a pessoa tá com depressão e ela esquece tudo. Através disso aí

a gente vem crescendo, o movimento vem crescendo” (Raul Latrel, 7 nov. 2014).

Os integrantes do movimento se veem enquanto agentes importantes na difusão da

cultura em Belo Horizonte. Entendem que mesmo com as dificuldades pessoais no

envolvimento com o Soul, identificam nele um espaço diverso para si próprio e para os

outros na vida cotidiana:

A nossa diversão é só dançar, não é outras coisas. A gente oferece divertimento gratuitamente, porque você não vê isso em lugar do mundo nenhum. Prazer de viver. A gente mostra pro governo como fazer um trabalho social, porque eles nem sabem fazer isso. Nós levamos mil pessoas pra rua. Quem tiver lá no meio pode ser um beneficiado. Ele pode ser um assassino, um ladrão, pode ser o que for, mas naquele momento, ele deixa de ser aquilo. Ele está ali se divertindo. Então, ele não leva trabalho nenhum pra gente. Quero ver se eles forem fazer uma coisa

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dessas no meio da rua, se eles conseguem fazer isso. Se tirar o Quarteirão do Soul de mim, tira tudo (DJ Geraldinho, 7 nov. 2014).

Com imensa dedicação, os envolvidos seguem o movimento realizando encontros

periódicos. A recompensa, segundo eles, vem do reconhecimento das pessoas que

frequentam o movimento e os parabenizam pela iniciativa. A contribuição do Quarteirão do

Soul não é sempre reconhecida pelas instituições e certas vezes nem pela população. O

que não impede que o grupo de pessoas permaneça se apropriando das ruas pela dança.

Considerações finaisAtravés deste trabalho pretendeu-se verificar quais as formas de apropriação da

cidade de Belo Horizonte pelo Quarteirão do Soul. O processo de pesquisa revelou um

movimento que conhece a cidade. Através da dança eles fizeram descobertas que o

cidadão que percorre a cidade cotidianamente jamais conhecerá. Compreenderam o que a

palavra ‘centralidade’ significa. Descobriram em que local do Centro as pessoas são mais

abertas à música ou onde a circulação de pessoas se mostrou mais alta. Fizeram amizades

e inimizades. Identificaram o piso das ruas. Se a pesquisa de apropriação para este trabalho

é feita há alguns meses, os dançarinos do Soul já pesquisam há dez anos, desde que o

movimento se iniciou.

O Quarteirão do Soul mostrou ser a forma de lazer mais esperada por vários

dançarinos, fossem eles integrantes, frequentadores irregulares ou moradores de rua. As

atividades realizadas pelos principais membros em função do movimento também

impressionam. Não se tratam de sacrifícios, mas de ações feitas pelo amor à dança e às

ruas.É importante ressaltar como o espaço condiciona a sociabilidade do Quarteirão. Os

bons dançarinos formam um grupo e os aprendizes seguem o ensinador, formando outro

grupo. O espaço também mostra sua ordem, as regras das ruas. E ele delimita onde o

dançarino deve dançar. Ainda que seja uma dança de rua, o soul se diferencia desse

segmento, pois não ocorre baseado em disputa, mesmo que possua um caráter individual.

Apesar disso, o movimento modifica a dança e torna o soul coletivo a partir do ensinamento

dos passinhos.Eles enfeitam o espaço com suas roupas e músicas, os vizinhos lhes

proíbem de ouvir. E quando eles acreditam estar num bom local para dançar, têm que se

mudar novamente. Eles não representam apenas a resistência à homogeneização do

espaço urbano, mas ilustram a adaptação à vida em grupo e a readequação da dança aos

espaços.

A mobilidade do grupo pela cidade reflete o caráter fluido da dança e como o

movimento se readapta a cada lugar para que é deslocado. Cria novas formas de

apropriação, reconstrói o espaço físico. Eles transformaram o espaço urbano, e por

consequência, se transformam. O movimento surgiu espontâneo e assim sobrevive. Ora se

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fortaleceu, ora se partiu. Criou regras, novas formas de apropriação e diversificou o espaço

da dança. A identidade do grupo se mostrou tão fluido quanto a dança. E assim, a cidade

também se modificou nesse tempo. Agora ela nos leva para outra década e nos faz dançar

e interagir com ela. Para aqueles que desejam novas formas de explorar a cidade, não

existe melhor maneira.

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