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DEMO, Pedro; INSTITUTO PAULO FREIRE. Saber pensar. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2005. 159 p. (Guia da escola cidadã) ISBN 8524907622. Os livros serão adaptados com a norma ortográfica de acordo com o seu ano de publicação Página 1 SABER PENSÀR GUIA DA ESCOLA CIDADÃ vol. 6 Página 2 Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bibliografia ISBN 85-249-0762-2 Demo, Pedro, 1941- Saber pensar / Pedro Demo. — 4. ed. — São Paulo : Cortez: Instituto Paulo Freire, 2005. — (Guia da escola cidadã; v. 6) 1- Autonomia (Filosofia) 2- Ciência—Filosofia 3- Educação— Finalidades e objetivos 4- Lógica 5- Pensamento. 6- Raciocínio 1- Título. 11- Série.

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DEMO, Pedro; INSTITUTO PAULO FREIRE. Saber pensar. 4. ed. São Paulo:

Cortez, 2005. 159 p. (Guia da escola cidadã) ISBN 8524907622.

Os livros serão adaptados com a norma ortográfica de acordo com o seu ano de

publicação

Página 1

SABER PENSÀR

GUIA DA ESCOLA CIDADÃ vol. 6

Página 2

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bibliografia

ISBN 85-249-0762-2

Demo, Pedro, 1941-

Saber pensar / Pedro Demo. — 4. ed. — São Paulo : Cortez: Instituto Paulo Freire,

2005. — (Guia da escola cidadã; v. 6)

1- Autonomia (Filosofia) 2- Ciência—Filosofia 3- Educação—Finalidades e objetivos

4- Lógica 5- Pensamento. 6- Raciocínio 1- Título. 11- Série.

Índices para catálogo sistemático:

1 - Educação: Filosofia 370.1

Página 3

GUIA DA ESCOLA CIDADÃ

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INSTITUTO PAULO FREIRE

Pedro Demo

SABER PENSAR

4° edição

Página 4

SABER PENSAR

Pedro Demo

Capa: DAC

Revisão: Maria de Lourdes de Almeida

Composição: Dany Editora Ltda.

Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização

expressa do autor e do editor.

© by Autor

Direitos para esta edição

CORTEZ EDITORA

Rua Bartira, 317 — Perdizes

05009-000 — São Paulo — SP

Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290

E-mail: [email protected]

www.cortezeditora.com.br

Instituto Paulo Freire

Rua Cerro Corá, 550 - Cj. 22 — 2° andar

05061-100 — São Paulo — SP — Brasil

Tel.: (5511) 3021-5536 Fax: (5511) 3021-5

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E-mail: [email protected]

Home Page: www.paulofreire.org

Impresso no Brasil — fevereiro de 2005

Página 5

INSTITUTO PAULO FREIRE

Série “Guia da Escola Cidadã”

Coordenação: Ângela Antunes Ciseski (São Paulo), Carlos Alberto Torres (UCLA,

Los Angeles), Francisco Gutiérrez (ILPEC, Costa Rica), José Eustáquio Romão

(UFJF, Juiz de Fora), Moacir Gadotti (USP, São Paulo), Paulo Roberto Padilha (USP

e UNICASTELO, São Paulo) e Walter Esteves Garcia (ABT,Brasília)

Cortez Editora (São Paulo - SP)

Conselho Internacional de Assessores

(Fórum Paulo Freire — São Paulo, abril de 1998)

Presidente: Budd Hall (Canadá), Vice-presidentes: Akira Kusuhara (Ásia), Carlos

Rodrigues Brandão (América Latina), Frank Youngman (Africa) e Jürgen Zimmer

(Europa). Membros: Adriana Puiggrós (Argentina), Adriano Nogueira (Brasil), Alfredo

Ghiso (Colômbia), Antônio Faundez (Suíça), Antônio João Mânfio (Brasil), Antônio

Monclós Estella (Espanha), Afonso Celso Scocuglia (Brasil), Arturo Ornelas

(México), Azril Bacal (Suécia), Barbara Freitag Rouanet (Repóblica Tcheca),

Bartolomeo Bellanova (Itália), Beno Sander (Brasil), Bernardino Mata Garcia

(México), Birgit Wingenroth (Alemanha), Celso de Rui Beisiegel (Brasil), Daniel

Schugurensky (Canadá), Edna Seratìm de Oliveira (Brasil), Elizabeth Protacio-

Marcelino (Filipinas), Fátima Freire (Brasil), Fausto Telleri (Itália), Francisco Vio

Grossi (Chile), Genoino Bordignon (Brasil), Heinz Schulze (Alemanha), Henry Giroux

(Estados Unidos), Hiroyuki Nomoto (Japão), Ilse Schrimpf Herken (Alemanha), Ira

Shor (Estados Unidos), Isabel Hernández (Argentina), Isolina Centeno Ubeda

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(Nicarágua), João Francisco de Souza (Brasil), Jorge Werthein (Brasil), José Rivero

(Chile), Ladislau Dowbor (Brasil), Liam Kane (Escócia), Lilians M. Lopes (Argentina),

Luis Eduardo Wanderley (Brasil), Marcela Gajardo (Chile), Marcos Guerra (Brasil),

Madalena Freire (Brasil), María Teresa Sirvent (Argentina), Martin Carnoy (Estados

Unidos), Miguel Escobar Guerrero (México), Nestor Alfredo Fuentes (Argentina),

Orlando Fals Borda (Colômbia), Osmar Fávero (Brasil), Peter Mayo (Malta), Peter

McLaren (Estados Unidos), Peter Park (Estados Unidos), Pierre Furter (Suíça),

Pierre Marc (Suíça), Pilar O’Cadiz (EUA), Roberto Orozco Canelo (Chile), Roger

DaIe (Nova Zelândia), Sergio Guimarães (Angola), Sergio Martinic (Chile), Sylvia

Schmelkes (México), Teresa Penna Firme (Brasil), Torbjön Stockfelt (Suécia), Zelda

Groener (Africa do Sul).

Equipe Técnico-Pedagógica do IPF

Adriano Nogueira, Alice Akemi Yamasaki, Ana Maria do Vale Gomes, Antônio João

Mânfio, Bianco Zamora Garcia, Claudinéli Moreira Ramos, Cláudio Eduardo de

Souza, Carlos Alberto Daniel dos Santos, Custódio Gouvea da Motta, Débora

Cristina Goulart, Débora Mazza, Eliana de Oliveira, Eliseu Muniz dos Santos, Fábio

Cascino, Genoíno Bordignon, Izabel Cristina Petraglia, João R. Alves dos Santos,

José Rubens Lima Jardilino, Júlio Wainer, Lúcia Helena Couto, Luiz Carlos de

Oliveira, Luiz Marine José do Nascimento, Lutgardes

Página 6

Costa Freire, Marcia Moraes, Maria de Lourdes MeIo Prais, Maria lsabel Orofino

Schaefer, Maria José VaIe, Maria Leila Alves, Maria Lucinete de Carvalho Silva,

Maria Luiza Peíxoto Ferreira, Margarita Victoria Gomez, Maurício Franklin, Misael

Geraldo Souza Camargo, Paulo Silveira, Regina Elena Pinto Ribeiro, Reinaldo

Matias Fleuri, Rudolf Wiedemann, Sônia Couto Souza Feitosa, Sônia Marrach,

Teresa das Dores Femandes de Castro, Valdete A. Melo, Valter José da Silva.

A ausência de uma literatura especifica voltada para os problemas do cotidiano

escolar tem dificultado a ação dos profissionais e demais atores que interagem na

Escola de Ensino Fundamental no Brasil. Por isso, diante do movimento

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descentralizador, que lhes exige um desempenho técnico-político cada vez mais

consistente, as dificuldades por eles sentidas são progressivamente maiores,

levando-os, na maioria das vezes, a um ativismo intuitivo, sem uma clara

consciência dos fins objetivados e sem uma nítida percepção dos resultados

alcançados.

Professores, especialistas e até mesmo diretores de unidades escolares têm

manifestado uma série de dificuldades, tanto pela carência de material que os ajude

na fundamentação teórica, quanto na construção de mecanismos e instrumentos

para uma série de ações que têm sido obrigados a assumir em face do novo perfil

que se desenha para a instituição escolar.

Por outro lado, principalmente para os pais dos alunos das escolas públicas, a

participação na chamada “gestão democrática da escola” oferece maiores

dificuldades, por uma série de fatores, dentre os quais se destaca um auto

sentimento de inferioridade no domínio dos instrumentos — e até mesmo da

linguagem — com que a escola opera. A falta de tempo, tanto dos pais quando dos

profissionais da educação, estes envolvidos com encargos em mais de uma escola,

tem cobrado uma literatura pedagógica ágil, sem ser superficial, didática, sem ser

maçante, técnica, sem ser árida, e que dê conta do salto da teoria para a prática,

num cotidiano que exige respostas rápidas, eficientes e eficazes.

Foi pensando nisso que o Instituto Paulo Freire apresentou à Cortez Editora a Série

“Guia da Escola Cidadã”, publicizando estudos e pesquisas que o IPF vem fazendo,

para responder, de forma concreta, aos desafios do ensino fundamental no Brasil.

GUIA DA ESCOLA CIDADÃ

Volumes já publicados:

1- Autonomia da escola: princípios e propostas:

M. Gadotti e José E. Romão (orgs.)

2- Avaliação dialógica: desafios e perspectivas:

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José E. Romão

3- Ecopedagogia e cidadania planetária

Francisco Gutiérrez e Cruz Prado

4- Organização escolar e democracia radical

Licínio C. Lima

5- Educação de jovens e adultos

M. Gadolti e José E. Romão (orgs.)

Página 7

Para Professor Carlos Alberto Torres, sociólogo, amigo, por ter-me aberto a

oportunidade de fazer sabático na UCLA.

Página 8

Em branco

Página 9

Sumário

Prefácio- 11

Paulo Roberto Padilha

Introdução- A gestão da autonomia- 17

Primeira Parte

COMPONENTES DO SABER PENSAR

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1- Pensar - 23

2- Lógica e jeito - 31

3- Arte de argumentar - 39

4- Saber aprender - 47

5- Saber cuidar - 55

6- Saber inovar - 63

7- Saber acreditar - 73

Segunda Parte

RECONSTRUIR CIENCIA

1- Aprender-85

2- Pesquisar e elaborar - 93

3- Trabalho científico - 99

4- Argumentar e contra-argumentar - 107

5- Questões da base empírica - 113

6- Obter e produzir informação - 123

7- Teorizar e praticar - 131

8- Meios cibernéticos - 137

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Conclusão — A construção social da autonomia - 145

Bibliografia -155

Página 10 - Em branco

Página 11

Prefácio

Prefácio

SABER PENSAR... IMAGINAR... SABER SONHAR A SOCIEDADE CIDADÃ

“Saber pensar”. Desde o primeiro momento em que me deparei com os originais

deste livro do Professor Pedro Demo, senti-me impelido ao exercício do saber

pensar. O livro é um convite sedutor a pensarmos sobre algumas questões caras a

nós, educadores e educadoras: como organizarmos nossos pensamentos, nossos

argumentos enquanto pessoa, cidadãos, professores-cientistas-pesquisadores?

Somos convincentes, lógicos, criativos, ou- sados e ao mesmo tempo coerentes com

a nossa proposta de vida e de educação?

O agradável estilo do autor, pela sua didática, clareza e dialogicidade, incentiva-nos

a uma leitura ativa e ininterrupta. O Ieitor e a leitora terão a oportunidade de refletir

sobre a prática cotidiana que nós, educadores e educadoras, vimos desenvolvendo.

O autor nos fala sobre a nossa formação e sobre a nossa cultura, associadas à

política social que podemos ajudar a construir, seja por meio de nossa ação ou da

nossa omissão.

As ideias apresentadas no livro nos permitem uma associação com os princípios e

fundamentos da Escola Cidadã que estamos vivenciando e construindo. Pedro

Demo considera que saber pensar é o fulcro central da política social (p. 152). Isso

nos remete

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Página 12

ao que temos repetidas vezes discutido no Instituto Paulo Freire: mais do que uma

Escola Cidadã, queremos uma Sociedade Cidadã.

Ao pensarmos e repensarmos sobre o nosso contexto e nossa própria ação,

podemos nos sentir infelizes diante de uma escola com muitos problemas, entre os

quais, docentes mal formados, baixos salários para os educadores e funcionários,

falta de educação continuada, aulas desinteressantes... Os prédios escolares não

apresentam, muitas vezes, a mínima condição de uso: sem Iaboratórios, sem

bibliotecas, sem vidros, sem quadras, sem anfiteatros, sem recursos suficientes para

a conservação e reforma, para a ampliação do número de salas, para experiências

coletivas, sem áreas livres para que os discentes possam explorá-las, sem materiais

de ensino, sem verba para transporte, para merenda, para comprar computadores

para as escolas (muitos, não meia dúzia de computadores em meia dúzia de

escolas, apenas para aparecer na televisão). Podemos nos emocionar com esses

problemas, indignarmo-nos com eles, mas certamente há que se partir para a ação e

buscar respostas para eles. Como dizia Paulo Freire: paralelo à denúncia, o anúncio.

Não podemos nos manter indiferentes ao fato de que muitos dos nossos alunos e

alunas continuam a ser esquecidos, maltratados, reprovados e expulsos das nossas

escolas, instituições que jamais deveriam desistir deles. Eles continuam sendo

vítimas de humilhações, e o sentimento de culpa pelo fracasso na escola permanece

recaindo sobre eles.

Em plena passagem para o século 21, a existência das dificuldades acima citadas

poderia sugerir que não há alternativas. E quase chegamos a acreditar nisso e a

aceitar como normal uma esc1a sem amor, sem calor, sem a paixão pelo

conhecimento, pela descoberta, pela curiosidade, pela ciência, pela arte. Até parece,

às vezes, que a instituição escolar se transformou num depósito de tudo o que há de

mais negativo na sociedade, da falta de responsabilidade à falta de ética e de

esperança... e que, se é assim, não tem mais jeito.

Segundo Pedro Demo, “é mister tratar com jeito a realidade jeitosa” (p. 36). É

preciso analisar o contexto histórico em que tudo acontece, caçar os sentidos, os

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significados, as insinuações, os silêncios (idem) dos discursos, das práticas e da

realidade. Se assim agirmos, vamos perceber que existem alternativas e

Página 13

muito o que fazer e “esperançar”. Há saídas. Dentre elas, o fato de que esses

problemas devem ser pauta dos nossos textos, das nossas reflexões, dos nossos

pensares, das nossas buscas e tentativas de acerto.

Este livro nos apresenta os componentes do saber pensar (Primeira Parte), e nos

oferece instrumentos e ferramentas para que possamos reconstruir ciência

(Segunda Parte). Fala-nos de autonomia, de cidadania, de lógica, de jeito, de

aprender, de saber cuidar, inovar e acreditar, mostrando-nos como temos

descuidado da construção dessa autonomia, dessa cidadania e como não temos

sabido cuidar dos nossos alunos. Sugere alguns caminhos, tais como a

possibilidade de superarmos a nossa arrogância em face do pseudoconhecimento e

o nosso despreparo para lidar tanto com a informação quanto com a formação e

com o próprio conhecimento. Essas são apenas algumas das contribuições que este

novo livro do Professor Pedro Demo nos apresenta, cujo título Saber Pensar nos

remete a essa temática sempre fecunda: o problema do saber, do pensar, do saber

pensar necessário às pessoas, aos professores-pesquisadores-professores e ao

desenvolvimento humano no próximo milênio.

A atualidade do livro revela-se sob muitos aspectos. Destacamos o seu caráter

transdisciplinar. As diferentes áreas do conhecimento se entrecruzam, orientando-

nos a uma visão mais ampla do ato pedagógico. Temas complexos são abordados e

analisados de forma poética, com simplicidade e, ao mesmo tempo, com enorme

profundidade. Em várias partes do livro, leveza e bom humor nos conduzem a

densas reflexões:

“Ideia boa é sempre um pouco torta, mal acabada, um tanto aérea, e aí permite

aprender, mudar, saltar” (p. 29).

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“(...) a razão nos dá a capacidade de análise, enquanto o coração a de participar” (p.

32)

(...) “a mudança provém de dentro, da própria realidade” (p. 35)

“Toda teoria não representa diretamente a realidade, mas a reconstrói de acordo

com certa expectativa de realidade, o que é mais que suficiente para reconhecer seu

teor interpretativo.” (p. 39)

“Argumentamos porque não há coincidência direta entre pensamento e pensado” (p.

39)

Página 14

“No coletivo vemos melhor “(p. 40)

“Aprender é antes de tudo repelir a reprodução” (p. 47)

“(...) mais decisivo que inovar é humanizar a inovação “(p. 53)

“É preciso, pois, aninhar a arte no saber pensar” (p. 62)

“Coisas tão fundamentais como a felicidade não encontram eco maior na ciência,

mas podem ser realçadas realizadas pela sensibilidade à flor da pele, capaz de

emprestar ao ser humano dimensão muito mais ampla e solidária” (p. 62)

O texto é rico em argumentos e exemplos em relação à importância da abertura às

novas ideias, à valorização da ciência ao lado da cultura, da sensibilidade humana, e

da possibilidade da mudança com base na leitura e na interpretação da realidade, de

nós próprios, dos outros, fundamentando nossas ações com ênfase, sobretudo, ao

trabalho coletivo.

Pedro Demo reaviva a denúncia da ciência positivista enquanto sustentáculo da

ideologia neoliberal e a necessidade de criação de uma outra ciência, uma ciência

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complexa que, antes de considerar as necessidades do capital, leve em conta as

dos seres humanos e do planeta. Assim sendo, ele presta uma valiosa contribuição

à compreensão do projeto da Escola Cidadã, que vem se constituindo numa

alternativa ao projeto pedagógico neoliberal.

Paulo Freire também é citado por Demo: “A politicidade de Paulo Freire é hoje

testada também nas ciências naturais, sobretudo na biologia, que reconhece no ser

vivo a capacidade de auto-organização e construção de proposta própria” (p. 47). E

o que é isso senão reconhecermos que a educação é, como sempre defendeu

Freire, um ato político, um ato de amor, de autoconhecimento, de busca da

autonomia e da construção da cidadania ativa, da gestão democrática da escola e

da constituição de uma sociedade mais justa, humana e equânime para todos?

Ao afirmar que aprender é fazer-se sujeito de história própria, individual e coletiva (p.

51), vemos reafirmada a exigência da autonomia, da sua conquista enquanto

“autonomia solidária” (idem), antes referida pelo “Andarilho do Óbvio” e aqui

compreendida como conquista árdua e nunca terminada (p. 19), numa andarilhagem

que pertence a todos nós.

Página 15

Qual o futuro da Educação?

Esta é outra pergunta sobre a qual inúmeras vezes temos nos questionado e que,

neste livro, Pedro Demo dá algumas respostas, conectado à discussão do papel da

tecnologia, da informática, das mais recentes descobertas e inovações científicas

para a construção de uma sociedade mundial da informação e do conhecimento. Ele

nos fornece valiosas pistas que comprovam a importância de estarmos também

discutindo e sabendo pensar, por exemplo, o futuro em relação à utilização do

computador na escola.

O livro trata, ainda, de algumas questões que nos ajudam a entender quais são os

pontos-chave do processo de aprendizagem na educação contemporânea e no

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futuro, por exemplo, como lidar com a “cultura da violência” e como trabalhar a

crença — o acreditar — e ao mesmo tempo a ciência.

Em sua segunda parte, intitulada Reconstruir Ciência, fica evidente uma

preocupação mais prática do autor, sem permitir que as ideias aqui apresentadas se

tornem receituário. Nesse sentido, o livro se aproxima ainda mais dos objetivos da

Série “Guia da Escola Cidadã”. Pedro Demo é contra o fato de estarmos sempre

servindo “café requentado” na educação. Em sua coerência, ele vai, aos poucos,

envolvendo-nos e seduzindo-nos para a arte de argumentar, de como fazer

trabalhos em grupo, de como ler enquanto exercício de contraleitura, de como

exercer a profissão de professores, de como pesquisar em colaboração e,

principalmente, como aprender de forma reconstrutiva.

A experiência do autor como professor e produtor de conhecimento, sobretudo

relacionados à pesquisa científica e ao trabalho acadêmico, mostra-nos como é

importante saber levantar dados, saber interpretá-los, significá-los e contextualizá-

los. Propõe que isso seja feito em favor de um determinado projeto de sociedade,

um projeto que considera científico tudo “o que for discutível” (p. 109). E este é um

desafio permanente da Escola Cidadã, está escola que sonha com uma sociedade

também cidadã, em que o centro da cidadania, como afirma Pedro Demo, é o” saber

pensar” (p. 145).

Sinto-me feliz e honrado, em meu nome e em nome de todos os companheiros e

companheiras do Instituto Paulo Freire, por prefaciar o livro do Professor Pedro

Demo, que, certamente,

Página 16

inaugura brilhantemente as publicações da Série “Guia da Escola Cidadã” no novo

milênio. Mais do que isso. Enfatizo a excelente e relevante contribuição que este

livro trará a todos aqueles e aquelas que, como nós, estão desenvolvendo pesquisas

científicas como forma de ampliar a nossa aprendizagem, a aprendizagem dos

nossos alunos e a construção de uma escola autônoma e verdadeiramente cidadã,

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porque constituída de sujeitos sempre mais aprendentes do pensar e geradores de

soluções para os problemas sobre os quais souberam pensar.

Paulo Roberto Padilha

Instituto Paulo Freire

Página 17

A Introdução

GESTÃO DA AUTONOMIA

Saber pensar não é só pensar. É também, e sobretudo, saber intervir. Teoria e

prática, e vice-versa. Quem sabe pensar, entretanto, não faz por fazer, mas sabe por

que e como faz. Nem sempre é questão de estudo, pois nas instituições

educacionais, por vezes, desaprendemos, mormente quando somos submetidos a

processos instrucionais reprodutivos. Ouvi esta no Movimento de Educação de Base

dos Bispos do Brasil: Dona de casa com curso superior saiu para comprar artefato

da cozinha que implica ter de montar. Comprou, leu as instruções, tentou, mas não

conseguiu montar. Chega, então, sua empregada doméstica, analfabeta. Olha o

artefato atentamente e monta, sem maiores dificuldades. A patroa estranha a perícia

e questiona como poderia fazer aquilo, se ela, tendo estudado, não havia

conseguido. Ela diz singelamente: “Madame, quem não sabe ler, precisa usar a

cabeça!” Esta anedota significa, para mim, a crítica mais dura que já ouvi a nossas

instituições educacionais, que dão diplomas mas não cultivam o saber pensar.

Saber pensar não é algo avesso a títulos acadêmicos, mas não se correlaciona

diretamente com eles. E outra coisa. E saber reconhecer rapidamente as relevâncias

do cenário e tirar conclusões úteis, ver longe para além das aparências, perceber a

greta das coisas, inferir texto inteiro de simples palavra, porque, a bom entendedor,

uma palavra basta. Para a madame, todas as instruções,

Página 18

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lidas e relidas, não bastaram. É aprender a lógica das coisas: enquanto o artefato for

apenas amontoado de peças, nenhuma se liga a nenhuma. Será preciso relacionar

umas às outras, dentro de mapa com sentido, para que se possa começar de algum

lugar e ir chegando a bom termo, peça por peça. Quem sabe pensar não capta só o

que é semelhante, pois sabe sobretudo sacar do que aparentemente nada tem a

ver. Sabe olhar por trás, fazer o caminho inverso, desfazer a trama, ler o problema.

Surpreende a luz escondida na sombra. Deduz da falta a presença de alguém.

Discutir o saber pensar inclui contradição inerente que é bom logo aclarar. Quem

imagina saber pensar não deveria meter-se a ensinar, porque tem como ponto de

partida a autonomia do pensar. Rigorosamente falando, não é praticável ensinar a

pensar, porque isto significaria treinar para reproduzir, não pensar. Quero

exatamente o contrário. Mas a natureza assim se fez, de tal sorte que a autonomia

se forma com a colaboração/intervenção dos outros. Estes podem abafá-Ia, como

podem também motivá-la. E o caso dos pais: normalmente, toda família educa os

filhos para irem embora fundar nova família. Por mais que se amem os filhos,

precisam descobrir seu próprio caminho, por vezes caminho contrário ao nosso.

Espera-se que a nova geração continue, de alguma forma, a anterior, mas queremos

também que tenha suas ideias próprias. A ligação talvez mais forte do saber pensar

é a gestação da autonomia. Esta, todavia, é fenômeno social tipicamente, não só

individual. Precisa de orientação. De um lado, para tornar-se autônoma toda pessoa

precisa de ajuda. De outro, tomando-se autônoma, deve saber dispensar a ajuda.

Rogoff fala de “participação guiada”, “para significar que tanto a condução quanto a

participação nas atividades culturalmente valiosas são essenciais para que a criança

aprenda a pensar. A condução pode ser tácita ou explícita, e a participação pode

variar à medida que as crianças ou curadores são responsáveis pelo seu arranjo.”

(1)

Saber pensar não combina com cidadania tutelada, aquela que nos quer massa de

manobra, submissos e ignorantes. Nem combina bem com cidadania assistida,

porque aceita apenas a assistência necessária e tem como ideal viver sem

assistência. (2)

Início de nota de rodapé

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1- ROGOFF, B. 1990. Apprenticeship in thinking — Cognitive development in social

context. New York, Oxford University Press, p. 8.

2- DEMO, P. 1996. Cidadania tutelada e cidadania assistida. Campinas, Autores

Associados.

Fim de nota de rodapé

Página 19

Combina com cidadania emancipada, aquela que sabe o que quer, por que quer e

como quer. Dito isto, está claro que não posso produzir aqui receituário do saber

pensar. Antes, preciso fazer algo similar ao “mundo de Sofia”. Este mundo é aquele

no qual, de questionamento em questionamento, vamos forjando a capacidade de

história própria, sob orientação de professor orientador, que nem sequer dá aula (3).

A função é a de facilitador, não para “facilitar” as coisas, mas para motivar, apontar,

chamar a atenção, criticar, abrir oportunidades, avaliar. No “mundo de Sofia”, a

menina é desafiada, o tempo todo, a assumir sozinha o confronto com teorias e

ideias, tendo no professor escondido apenas referência motivadora. Autonomia é

conquista árdua e nunca terminada. Dói, sobretudo no começo, pois sua primeira

fase é sentir-se perdido. Tirada a muleta, a pessoa se sente abandonada. Mas só

assim descobre que pode andar sem muleta. O maior erro do professor é tirar a

muleta e depois dar de volta. Não só voltamos à estaca zero, como sobretudo

reinstalamos a tutela. Entretanto, o sentido da autonomia do saber pensar é social,

ou seja, não se trata de autonomia isolacionista, mas aquela convivente. A Iiberdade

humana não pode ser entendida contra os outros, mas com os outros, e por isso

mesmo também nunca é total.

Buscamos neste texto ensaiar tópicos importantes do saber pensar, no sentido da

“propedêutica básica”, compreendida como iniciação. Imaginamos que possa ser

importante para o início dos cursos universitários, bem como para qualquer atividade

que se baseie na construção da autonomia das pessoas, procurando estilo

reconstrutivo de aprendizagem. Longe de ser tratado de lógica, pretende apenas

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abrir caminhos dentro de alguma estruturação lógica, indicando modos de fazer

conhecimento que impliquem o constante refazer. Temos que ressaltar também os

limites do conhecimento, porque saber pensar seria contraditório se produzisse a

quimera de dar conta de tudo. De todos os modos, parece ideia boa que todo

estudante, antes de meter-se a profissional, aprenda a saber pensar.

Início de nota de rodapé

3- GAARDER, J. 1995. O mundo de Sofia — Romance da história da filosofia. São

Paulo, Companhia das Letras.

Fim de nota de rodapé

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Em branco

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PRIMEIRA PARTE

COMPONENTES DO SABER PENSAR

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1

PENSAR

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Por trás do pensar está a ideia da compreensão do que se diz e faz. Por isso,

dizemos “saber pensar”. O povo reconhece isto quando diz que fulano sabe das

coisas. Compreender é questão de lógica, e geralmente entendemos por lógica a

capacidade de deduzir uma coisa da outra, de tal sorte que cada coisa esteja no seu

lugar e se relacione com outra. A lógica, porém, que mais interessa, não é aquela

que logo aparece, mas a que está por trás. Notamos isto quando, conversando com

alguém que não nos entende, lhe dizemos: não está me entendendo, porque, em

vez de perscrutar a amarração mais profunda das ideias, fica na superfície; ou lhe

sugerimos que não permaneça apenas nas palavras que escuta, mas perceba seu

significado para além disso. Por exemplo, a namorada quer desfazer-se do

namorado e começam a conversar. O namorado insiste na relação, enquanto ela

alude que o momento é diferente. O namorado prefere entender “diferente” como

evolução no tempo, talvez até mesmo como se a relação tivesse amadurecido mais.

Ela precisa passar a ideia de que diferente significa que já tem outro namorado. Diz,

então: “Você não está me entendendo”. A lógica humana é assim, cheia de nuances

e curvas. Para compreender é mister também sacar o que não se diz, o silêncio, a

entonação, o meneio. “Sorriso amarelo” indica que não há nada ou pouco do que rir.

Página 24

Indo pelo contrário, não conseguimos compreender o que não tem lógica. Tanto é

assim, que, ao descobrirmos falta de lógica, o fazemos porque encontramos alguma

lógica na falta de lógica. Vale isto precisamente para a ideia corrente de caos:

estritamente falando, se fosse total falta de lógica, não entraria em nossa cabeça.

Dizemos, por isso, “caos estruturado”, para indicar que a desordem descoberta é

outra ordem. E como mesa de professor, cheia de livros, textos, papéis, canetas,

anotações, bagunça perfeita. Para ele, entretanto, se alguém se pusesse a arrumar

sua mesa, colocando tudo em seu lugar, diria: “desarrumaram minha mesa, não

encontro as coisas” Naquela desordem anterior havia ordem, e o professor

encontrava as coisas, mesmo com dificuldade. Agora, tudo arrumado, tem

dificuldade ainda maior. Podemos, então, dizer duas coisas: compreende-se melhor

o que está melhor ordenado, porque as coisas mantêm relação diretamente visível

entre elas e cada qual está em seu lugar; mas a ordem que funciona é aquela que

compreendo melhor, porque está dentro de minha lógica. Esta possui alguma coisa

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de necessário, sobretudo quando aplicada a relações simples, como dois e dois são

quatro, ou se acabar a gasolina, o carro para, ou se não estudo, fica difícil passar.

Em relações mais complexas, entra cada vez mais o fator humano, e a lógìca não

apenas diz o que é necessariamente, mas também e por vezes sobretudo o que

gostaríamos que fosse. Seria lógico pensar que, ao casarmos, queremos ficar juntos

a vida toda. Alguém vai dizer, porém, que não é lógico, porque diante da vida toda é

impraticável pretender tamanha Iinha reta. Será Iógico desejar. Mas, se surgirem

problemas intransponíveis, também será lógico separar-se.

Costumamos ver a lógica pelo seu lado necessário, quase impositivo. Filósofos

clássicos se esmeraram em cultivar esta parte, sobretudo para garantir êxito nas

discussões acadêmicas. Chamavam de “silogismo” aquela forma de argumentação

que, colocando sentença maior de sentido geral — todo ser humano é mortal —

mais outra sentença menor de sentido particular — Maria é ser humano — seguia

conclusão inamovível — Logo, Maria é mortal. Talvez seja a ideia mais comum da

lógica a obrigatoriedade das conclusões, uma vez colocadas as premissas. Damos o

nome de “dedução” à habilidade de sacar afirmações ou negações necessárias de

tais premissas. Dada a lei da gravidade (premissa), segue que, quando as coisas

caem, caem para baixo. Vamos do geral ao particular. Entretanto, se a premissa for

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discutível, as conclusões começam a titubear. Dirá alguém: o avião voa, não cai.

Será possível mostrar que o avião voa, não porque é exceção, mas porque sabe

trabalhar bem a Iei da gravidade, porque um objeto dotado de certa velocidade e de

certa aerodinâmica e formato, consegue ficar no ar. Tanto não é exceção que, se

isto não funcionar, cai.

O problema da dedução são as premissas. Uma vez postas, o resto segue. Mas,

cabe sempre perguntar, como se chegou às premissas? Algumas foram obtidas

através da descoberta científica, como a lei da gravidade, e podemos confiar mais

nelas, porque possuem, por trás, meticuloso caminho de demonstração. Outras têm

proveniência dogmática, como é o caso de aceitar que todo ser humano é mortal por

conta da BíbIia. Mas outras são colhidas da experiência repetida, fazendo o caminho

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inverso da dedução, indo do particular ao geral. Por exemplo, criança mal nutrida

não aprende. Antes de afirmar isso, vamos observar os fatos, procurando constatá-

los. Chamamos de “indução”. Esta, porém, mesmo nos fornecendo por vezes grande

sensação de certeza, é frágil, porque nunca conseguimos acumular todos os fatos.

Rigorosamente falando, para afirmar que todos os cisnes são brancos, teria de

garantir que nunca houve no passado cisne que não fosse branco, não existe hoje

em nenhum lugar do mundo, e jamais haverá. Assim, a indução funda raciocínios

prováveis e são mais ou menos cogentes, conforme conseguimos manejar os fatos.

Dizer que “criança malnutrida não aprende” pode ter base em fatos observados, por

exemplo, comparando com a aprendizagem de gente bem nutrida. Facilmente

descobrimos que estes aprendem melhor. Mas, observando mais profundamente,

como fazem os pesquisadores, descobre-se que criança mal nutrida também

aprende, aprende menos, mas aprende. Será necessário ainda definir o que é má

nutrição, porque sendo leve, seu impacto na aprendizagem talvez seja desprezível,

enquanto sendo grave, pode interferir mais e até impossibilitar. A afirmação ficaria

melhor se a formulássemos assim: criança mal nutrida tende a aprender menos.

O problema da indução são os fatos, mesmo que estejamos habituados a escutar

que contra os fatos não há argumento! Pareceriam óbvios. Pois nem sempre é

assim. Tomando o exemplo do júri em processo criminal, todos aceitam que só

podemos condenar a alguém diante de fatos comprovados. Admite-se que todo

mundo é inocente sem prova contrária. Para condenar,

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precisamos ir aos fatos. A. polícia e outros peritos se põem a levantar os fatos, e

muitas vezes não conseguem estabelecê-los, pela simples razão de que não

estavam presentes. Agora será necessário reconstruir os fatos. Reconstruir fatos

tem como ideal refazê-los assim como sucederam, objetivamente, mas, ao fazermos

isso, entra o fenômeno da interpretação, que sempre é algo diferente em cada um

de nós. O advogado de defesa tenta mostrar a inocência do cliente, enquanto o de

ataque busca o contrário. Quem teria razão? Os fatos! Mas, quais foram os fatos?

Se fossem óbvios, tudo estaria resolvido. Não são. Assim, para estabelecer fato

criminoso é mister:

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a) Existir código penal que defina o que é crime; daí para a frente só é crime o que

entra na definição do código; por exemplo, é imputável o adolescente que completar

18 anos; se tiver 18 anos e um dia cabe-lhe punição penal de adulto; um dia antes,

não;

b) Trabalho de reconstrução dos fatos, sobretudo quando no se trata de flagrante;

para isso, podemos recorrer a métodos científicos sofisticados, que consagram os

detetives, mas representam sempre conclusões que valem, se os fatos forem bem

reconstruídos.

A justiça recorre a testemunhas, mas estas podem testemunhar falso, além de

poderem estar longe ou mortas. O exemplo da morte de Paulo César Farias e sua

namorada ilustra bem esta complicação. A cláusula a) está preenchida: ocorreu

claramente crime. Mas, quem matou, ainda é mistério. Os peritos, por sua vez,

divergem: um diz que foi crime passional e quem matou PC Farias foi a namorada,

que, logo a seguir, teria se suicidado; outro diz que, pela trajetória da bala, é

impossível que a namorada tivesse atirado, donde seguiria que outra pessoa teria

feito o disparo. A justiça inventou saída honrosa para isso: o júri. Convoca-se um

grupo de pessoas, supostamente “isentas”, que, ouvindo e vendo tudo, “decidem” os

fatos! Cabe sempre recorrer ao júri, obviamente, porquanto — acontece

frequentemente — descobre-se, depois, que os fatos não eram aqueles.

Podemos ilustrar esta dificuldade em outro exemplo comum: casamento de vinte

anos se desfaz e os dois põem-se a pensar sobre o que teria levado à separação.

Podemos perguntar: quais foram os fatos decisivos? A própria pergunta indica que

foram tantos, que seria o caso de apenas enumerar os mais importantes.

Página 27

Mas como sei quais seriam mais importantes? Depende do que creio ser importante.

O marido pode dizer que suas infidelidades não foram importantes, porque são coisa

comum e ocasionais. Acha que a separação se deve mais ao fato de gostar de

beber e por vezes bebe demais. Aí, trata mal a esposa. Esta, por sua vez,

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argumenta que o problema maior é a infidelidade. Se muitas mulheres ainda

aceitam, ela já não o faz, porque aprendeu que os direitos são iguais. Quem teria

razão? Provavelmente, nenhum dos dois, porque separação após vinte anos é

resultado mais comum de uma série de problemas, não de problemas isolados. A

ciência poderia destacar alguns, mas insistiria no todo, porque é dele que advém a

probabilidade. Entretanto, podemos ainda olhar mais fundo e duvidar do que dizem

um para o outro: enquanto ele aceita que é um pouco infiel, pode continuar amando;

ela, reclamando da infidelidade do marido, está se separando porque sempre

preferiu outro homem. Fato, assim, não é apenas o que acontece objetivamente,

mas sobretudo o que sucede “para mim”. Por isso, alguém pode achar que não

chove, porque Deus está castigando.

Colocando as coisas assim, posso insinuar o dito: tudo que é sólido se desmancha

no ar (4). Em parte é verdade, mais do que se imagina. Mas lógica tem seu Iugar.

Um dos traços mais fortes do discurso científico é fazê-lo sem contradição. Significa

que o texto progride sistematicamente, passo a passo, um ligado no outro, uma

coisa fluindo da outra, até ao final. Não posso, por isso, começar meu discurso

dizendo que a base do conhecimento é o questionamento, e imaginar que esta

afirmação seja inquestionável. Se aceito questionar, devo aceitar, pela mesma

lógica, ser questionado. Chama-se a isto de “contradição performativa,” querendo

assinalar discurso que se desfaz a si mesmo, negando-se ao afirmar-se. Não se

pode avaliar os alunos e imaginar que o professor, por isso mesmo, esteja acima ou

fora da avaliação. Quem avalia, não pode fugir de ser avaliado, ou perde qualquer

condição de avaliar. O aluno, no fundo, aceita a avaliação do professor, porque sabe

que ele, para chegar a ser professor, passou e ainda passa por interminável

processo de avaliação. Já os deputados inventaram a “imunidade parlamentar,” em

parte por

Início de nota de rodapé

4- BERMAN, M. 1986. Tudo que é sólido desmancha no ar — A aventura da

modernidade. São Paulo, Companhia das Letras.

Fim de nota de rodapé

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boa razão, mas que já virou malandragem. A boa razão está em preservar o direito

de falar. A má razão está em ir além disso, e pedir impunidade. Contradição

performativa é mais comum em nossas vidas do que pensamos. Aparece facilmente

nos privilégios, que queremos como expressão de mérito, quando são sempre

usurpação. Logicamente, é impossível inventar a noção de privilégio sem usurpação,

porque inclui a decorrência de que o outro precisa se submeter e manter o privilégio.

O machismo afirma que o homem tem direitos que a mulher não tem ou não deveria

ter. A “família real” apela para tradição que um dia não foi. Ela chegou ao poder

porque o usurpou, deixando outras para trás. Aparece também facilmente nas

autoridades inconsequentes, quando exigem dos outros o que não fazem. O

professor pode insistir em que o aluno estude todos os dias, e ele mesmo jamais

estudar. O fundamentalista quer liberdade religiosa, para garantir que a sua religião

seja a única verdadeira. O chefe chega sempre tarde, mas exige que todo mundo

esteja cedo no trabalho. O professor questiona tudo, mas irrita-se quando o aluno o

questiona. Na verdade, logicamente falando, deveria esperar exatamente isto, ou

seja, que o aluno aprenda a questionar. Mas isto é bom de dizer, difícil de engolir.

O mal da lógica é que quer ser fatalmente necessária. Torna-se facilmente

impositiva. Desconhece que na realidade e na vida as coisas não são preto/branco,

mas sobretudo cinzentas. A lei precisa ser quadrada, porque, se admitir exceções, já

não vale. Por isso, traça limites fatais: o motorista é considerado alcoolizado quando

ultrapassa certa medida detectada por instrumentos, ou corre demais quando estiver

acima de certo limite de velocidade. Olhando bem, esses parâmetros são em si

fluidos, porque, dependendo da constituição física, uma pessoa pode tomar mais

álcool e aparecer menos no sangue, enquanto outra se entrega com bem menos, ou

correr demais também é função do instrumento de medida. Por isso, costuma-se dar

desconto de 10% para cima. Mas isto não muda o problema: se a velocidade

permitida for de 60 km por hora, mais 10% dariam 66, donde decorre que alguém

correndo a 65 km por hora está bem e outro correndo a 67 km já está fora. Ao

mesmo tempo, a punição vem por atacado, porque é difícil estabelecer

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proporcionalidade, ou, fazendo isso, permitimos manobras em excesso. E muito

diferente andar a 67 km ou a 167 km, mas a punição tende a ser a

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mesma. Legalmente falando, pode ser lógico. Na vida real, algo insensato.

Podemos ver isto claramente na complicada relação entre pais e filhos, quando

aqueles se sentem impelidos a impor limites a estes — por exemplo, hora para voltar

à noite no fim de semana, digamos à meia-noite. Os filhos acham absurdo, porque

lhes tolhe a liberdade. Os pais já pensam que a noção de liberdade implica limites,

para o bem dos filhos. Pais quadrados insistem que meia-noite é exatamente às 24

horas. Outros são mais concessivos, e o conceito de meia-noite pode ir até uma

hora da manhã. Quer dizer, a relação humana também conta, por vezes mais que a

lógica. Melhor que impor limites é negociá-los. Pais inteligentes não se irritam se a

filha chega quinze minutos atrasada. Podem até ver nisso algo positivo: a filha está

tentando conquistar seu espaço. O que seria mais lógico: hora estrita ou flexibilidade

inteligente? Esta também reconhece limites, mas nunca fatais. A lógica tende a ser

binária, ou/ou. Com isto toma as coisas claras, mas também irreais. Por isso, toda

ideia totalmente clara tende a ser vazia, ideia boa sempre é um pouco torta, mal

acabada, um tanto aérea, e aí permite aprender, mudar, saltar. Nem por isso ideia

confusa é preferível à ideia lógica, mas é fácil mostrar que as pessoas mais criativas

são mais confusas, no bom sentido.

Este papo pode cansar, porque vai e volta, sobe e desce, e não parece sair do lugar.

Perfeitamente. Lógica não nos faz sair do lugar, porque é procedimento, método. É

forma, não conteúdo. Ninguém mora na lógica, porque não é Iugar. E modo de fazer,

não é o fazer. Na vida real, geralmente vale mais o consenso que a lógica: se os

pais não reclamam dos primeiros quinze minutos de atraso, estes podem alargar-se

para trinta, e o novo limite já será uma hora da manhã. Não é lógico, mas vai se

tomando consenso. A lógica, por ser tendencialmente quadrada, ignora as

mudanças, as surpresas, o passar do tempo. Na dureza da lógica, se a filha chegou

trinta minutos atrasada, precisa ser punida. Mas pais inteligentes, dependendo das

circunstâncias e do conhecimento que têm da própria filha, podem pensar que é

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melhor recompensá-la porque se atrasou pouco. E a filha pode aprender, para a

vida, mais da segunda posição do que da primeira. Difícil é decidir a partir de que

limite o abuso já seria inaceitável. Para este cálculo tão complicado, os pais acabam

apelando para o “bom senso”, que nenhuma lógica substitui. Expressa o senso

Página 30

pela medida das coisas, nem de mais, nem de menos. Questão de sensibilidade,

fineza de percepção. E muito mais que senso comum, porque este se satisfaz com o

conhecimento acumulado acrítica e tradicionalmente. O bom senso implica

capacidade de avaliar situações complexas e delas obter saída adequada, a melhor

do momento. Usa para isto a lógica, mas vai além, porque é sensível também à falta

de lógica, quando esta é a lógica da situação. Funciona, então, também a

experiência, a vivência, a sensibilidade. (5)

Início de nota de rodapé

5- SANTOS, B. S. 1995. Toward a new common sense — Law, science and politics

in the paradigmatic transition. New York, Routledge.

Fim de nota de rodapé

Página 31

2

LÓGICA E JEITO

Nem sempre a menor distância entre dois pontos é a linha reta, como quer a

matemática binária. Se assim fosse, quando um rapaz quer conquistar uma moça,

sairia em Iinha reta para abordá-la. Usaria franqueza direta. Todavia — todos sabem

— a franqueza é grande virtude, mas, dependendo da circunstância, apenas choca.

Para conquistar a moça é mister fazer algumas curvas, dizer por insinuações, não

por gestos ostensivos, planejar encontro “fortuito”, e outras coisas mais que todo

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amante inteligente sabe fazer. Não desistimos da Iógica. Muito ao contrário, a

usamos com cabeça. Por isso, pensar não é apenas ter ideias, mas tê-las com jeito.

Está em jogo variedade de facetas relevantes no bom jogo de saber pensar, a

começar pelo reconhecimento de que não somos seres propriamente racionais.

Somos sobretudo emotivos. Enquanto a razão nos toma reticentes, desconfiados,

distantes, a emoção nos leva a entregas totais, inventa envolvências profundas,

arrasta paixões. Se, algumas vezes, a emoção atrapalha o raciocínio — quando

precisa ser frio —, outras vezes o torna tanto mais vivo, colorido, vibrante.

Precisamos, na verdade, dos dois. Quando a emoção é demais, é preciso “parar

para pensar”. Dizemos parar para pensar aludindo que é preciso parar de nos deixar

Ievar por condicionamentos pouco lógicos. Mas, vale o reverso: pessoa apenas

lógica é máquina, não ser humano. Isto mostra, outra vez, que a vida não é binária,

mas complexa.

Página 32

Não fosse talvez visão excessivamente estereotipada, diria que a razão nos dá a

capacidade de análise, enquanto o coração a de participar. Porquanto o ser

humano, quando compreende as coisas, não só as decifra, sobretudo delas

participa. E, assim, a vida em comum é mais emoção que lógica. Até porque, se

olharmos bem, as coisas mais lógicas são as que mais se repetem, tomando-se em

conta que da mesma causa sempre segue o mesmo efeito. A ciência aprecia isto,

porque traz resultados palpáveis, demonstrados. Mas se tudo fosse tão amarrado

assim, nada aconteceria, apenas se repetiria. E precisamente o contrário que

sucede na aprendizagem reconstrutiva, que afirma aparecer nela saltos qualitativos,

tipicamente criativos. Eis a diferença para com a instrução, que busca apenas

transmitir, repassar, reproduzir conhecimento. Mas está equivocada, porque farta

pesquisa atual, sobretudo da biologia e da psicologia, mostra que todo ser vivo,

quando capta a realidade, não a reflete mecanicamente ou a representa

diretamente, mas a reconstrói. Não a “constrói”, porque a realidade fora de nós não

depende de nós para existir. Mas a reconstrói, no sentido de que toda captação da

realidade é feita por sujeito particular, de modo interpretativo (6).

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Podemos simular experiência bem ilustrativa. Tomam-se vinte pessoas, que

fazemos sentar em fila. Contamos para a primeira um segredo relativamente

complexo. Esta deve passar o mesmo segredo para a segunda, e assim

sucessivamente até a última. O relato da última dificilmente permite reconhecer o

segredo contado para a primeira, porque cada qual acrescentou algum matiz

interpretativo próprio. Não somos capazes de imitar pura e simplesmente, porque,

quando pensamos, não conseguimos pensar na condição de objeto. Somos sempre

sujeitos, subjetivos. Reconhecendo isto, o povo diz: quem conta um conto,

acrescenta um ponto. Também por isso, todo povo tem cultura própria, no contexto

de história própria. Mesmo assim, podemos encontrar coisas em comum nas

culturas, porque, ao final das contas, são seres humanos. Estes são, ao mesmo

tempo, diferentes e iguais. São iguais nas estruturas, e diferentes na história. Todas

as línguas possuem certas estruturas comuns iguais como verbos, substantivos,

Início de nota de rodapé

6- SEARLE, J. R. 1998. O mistério da consciência. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

MAGRO, C. et alii (orgs.) 1997. Humberto Maturana — A ontologia da realidade.

Belo Horizonte, Ed. UFMG. DEMO, P. 1999e. Educação e desenvolvimento — Mito

e realidade de relação possível e fantasiosa. Campinas, Papirus.

Página 33

vogais, advérbios, preposições, mas não sabemos a Iíngua se soubermos apenas

isso. No fundo, para aprender língua estrangeira é mister, mais que conhecer a

gramática, saber falar, e isto significa imergir na cultura, entrar na história, participar

do contexto. Quem sabe gramática, sabe a lógica da língua, mas ainda não sabe

como se fala.

Hoje já conseguimos falar de “lógica difusa”, mesmo dentro da matemática, porque a

visão linear da realidade é praticamente excepcional. Segundo Kosko, não é só a

realidade viva, sobretudo humana, que é imprecisa. Toda realidade o é (7). Causou

grande espanto a proposta de Prigogine, quando apresentou a dialética como

método mais maleável para captar realidade também maleável (8). No fundo, está

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também o conceito de caos estruturado ou de complexidade, apontando para o

fenômeno geralmente chamado de “emergência”, através do qual componentes

simples produzem sistemas complexos, bastando que se ajuntem em determinada

ordem não linear (9). Especificamente, quer dizer que os componentes não só se

somam, sendo o todo apenas a soma das partes. Produzem entidades

qualitativamente diferentes. Podemos tomar o exemplo comum da formação da

água, a partir de H20. Antes, temos dois gases, e inflamáveis; depois, temos líquido,

e não inflamável. Ajuntando dois gases em determinada ordem não linear saltamos

para outro fenômeno. Neste sentido, como diria Norretranders, as coisas nunca

apenas somam, porque se compõem, concertam, articulam (10). Formam novos

padrões. O caminho pode ser inverso também, quando complexidades redundam

em coisas simples.

A dialética, com efeito, sempre mais pretendeu ficar do lado da realidade mais

complexa, do que a lógica linear. Primeiro, afirma que toda realidade é unidade de

contrários, intrinsecamente dinâmica, polarizada, de tal forma que a mudança é a

situação

Início de nota de rodapé

7- KOSKO, B. 1999. The fuzzy future — From society and science to heaven in a

chip. New York, Harmony Books.

8- PRTGOGINE, I. 1996. O fim das certezas — Tempo, caos e as Ieis da natureza.

São Paulo, Ed. UNESP. PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. 1997. A nova aliança.

Brasília, Ed. UnB.

9- HOLLAND, J. H. 1998. Emergence — From chaos to order. Massachusetts, Helix

Books.

10- NORRETRANDERS, T. 1998. The user illusion — Cutting consciousness down

to size. New York, Penguin Books.

Fim de nota de rodapé

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característica, por vezes mais profunda (quando a antítese for radical e provocar

transformação ou revolução), por vezes menos profunda (quando menos radical,

permanecendo em reformas, ajustes, adaptações) (11). Houve tempo em que se

acreditava ser esta marca própria apenas da realidade histórica, sobretudo humana.

Aparece atualmente a tentativa de ver a realidade como um todo dotada deste tipo

de dinâmica, o que permitiria considerá-la “viva”. Porquanto vivo não é apenas o que

morre, é orgânico, mas o que é marcado pelo vira ser, pela “flecha do tempo”, como

diz Prigogine. A vida não é substância, mas nível da realidade, modo de se

organizar, auto-organização. Nasce, cresce, vive e morre. O universo também está

em expansão, em movimento intrínseco, caminhando em seu ritmo. Tudo isto é por

certo muito polêmico, mas tem contribuído para alargarmos nossa visão de mundo,

para além da ordem linear, binária, quadrada. Segundo, a dialética afirma que a

totalidade é maior que a soma das partes, dando a entender que a dinâmica,

embora em certo grau também se reproduza, no fundo mais que tudo se renova. A

lógica formalista — aquela estrita, binária até o fim — não capta esta característica,

porque aposta apenas na análise. Análise significa o método científico que procede

pela decomposição das partes, como faz a física, a biologia: entendemos o

funcionamento da realidade descobrindo seus átomos, bem como só percebemos a

estrutura da mente dissecando o cérebro. E importante este método, porque

produziu grandes resultados, mas não capta a realidade toda, como um todo.

Restringe-se à parte formal, ou mais formal dela. Já a dialética acrescenta à análise

o compromisso com a síntese, como reconhecia Marx, ao dizer que o concreto é

produto de múltiplas determinações. Tendo à mão os componentes do cérebro —

neurônios, axônios, sinapses —, sabemos de que partes é feito, mas estamos longe

de saber a razão pela qual, estando juntas, produzem pensamento, emoção,

consciência, esperança. Não há emoção sem adrenalina, mas emoção não é

adrenalina. Quer dizer, emoção é fenômeno emergente a partir de seus

componentes físicos.

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Terceiro, a lógica formal prefere as leis da estática. Imagina que a realidade pode

ser decomposta em mínimos componentes e que, lá por baixo, não é complexa, é

simples, e aí estaria sua

Início de nota de rodapé

11- Veja discussão detalhada sobre dialética: DEMO, P. 1995. Metodologia científica

em ciências sociais. São Paulo, Atlas, capítulo sobre dialética.

Fim de nota de rodapé

Página 35

explicação. Toda a aparência externa superficial desordenada se reduz a ordem

interna invariante, a que damos o nome de lei. Observando esta mesa, por exemplo,

não conseguimos ver que é feita de átomos e que estes representam tabela finita

mais ou menos simples, e sempre os mesmos. Disto a ciência retira dupla

conclusão: para entender a realidade há que, antes, ir além da aparência, sendo

esta sempre enganosa, e, depois, levantar modelo simplificado dela, onde estaria

sua explicação. A dialética, por sua vez, prefere as leis da dinâmica, sem negar que

existam estruturas na realidade. Esta, sem dúvida, também se repete. Mas

sobretudo se muda, porque se considera estrutural, não a estática, mas a dinâmica.

Daí segue visão muito típica da dialética, segundo a qual a mudança provém de

dentro, da própria realidade. Pode também ser mudada de fora, por interferência

externa, mas, mesmo se isto não ocorrer, a mudança acontece por razão própria

inerente. Tomando exemplo extremo: podemos morrer de morte matada — acidente,

por exemplo — como morremos também de morte morrida, no curso natural das

coisas. Assim, a dialética não dispensa a noção de estrutura, mas vê como lei da

dinâmica. A noção de lei da dinâmica reconhece que a dinâmica não se faz ao léu,

ao bel-prazer, mas dentro de certa ordem. Nossa mente parece ser assim

construída: entendemos a variação, quando captamos como ela invariavelmente

varia! Ocorre o mesmo com o conceito de caos estruturado: é outra ordem, não

propriamente desordem, porquanto, para termos idéia de caos, mister se faz

reconhecer traços constantes do caos. Mas uma coisa é estrutura como paralisia da

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história — que sempre no fundo apenas se repete —, outra é estrutura como usina

da mudança, o que permite ver a mudança dentro, intestinamente, de toda

realidade.

Caricaturando um pouco as coisas, podemos notar esta diferença no estudo do

discurso, digamos, do presidente da República. Discurso é fenômeno complexo, que

traduz formas e conteúdos muito variados, em momentos também variados. Em

certo sentido, sempre há coisas que se repetem, porque toda pessoa tem jeito

próprio de ser. Não muda toda hora. A lógica formal destaca este lado, e procede

geralmente pela frequência das ideias ou palavras: conta o que aparece mais.

Assim, se a palavra que mais aparece nos discursos do presidente é controle da

inflação ou solidariedade, infere-se que é isto o que sobretudo quer dizer. Esta

arrumação analítica tem seu lugar, é claro, e ajuda pelo menos a ordenar a

frequência dos conteúdos,

Página 36

mas pode estar muito longe de compreender os discursos. Poderia suceder, por

exemplo, que a frequência maior de certas palavras fosse feita para dizer o

contrário: o presidente insiste no controle inflacionário e na solidariedade, não

porque esteja compromissado com isso, mas porque imagina ser sua estratégia de

permanecer mais tempo e melhor no poder. Ao mesmo tempo, pode usar muito a

noção de solidariedade para livrar-se de fazer política social mais profunda, porque

está mesmo preocupado com o andamento da economia e considera política social

subproduto da dinâmica do mercado. A dialética, por conta disso, vai além da

formalização estrutural do discurso, cavando as dinâmicas, sobretudo suas

contradições, e apalpando os sentidos também ocultos, perdidos, informais. Damos

o nome de hermenêutica à visão dialética, segundo a qual em particular as

realidades sociais podem ser o contrário do que aparentam. E preciso, para além de

somar componentes analíticos, caçar os sentidos, os significados, as insinuações,

os silêncios, o que se queria, ao final, dizer. Porquanto se pode falar muito para não

dizer nada, bem como existe silêncio ensurdecedor. Ao falar, tão importante quanto

o dito é o não dito, o reprimido, o evitado. Sobretudo em discursos do presidente,

que precisa calcular tudo que diz, evitar interpretações indesejáveis, não ofender os

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aliados, provocar adesões. Esta dinâmica é, em parte, formalizável, em parte não.

Terá que ser “interpretada” a partir de contextos, também de momentos, do encaixe

histórico. E sabe que, no fundo, nunca se chega ao fundo. A fala humana é tão cheia

de detalhes, sinais e meneios, olhares e rostos, gestos e entonações, que muito

escapa ao olhar mais analítico e, ao final das contas, só quem fala sabe, e, por

vezes, nem sabe. A psicologia mostraria que, ao falar, nunca dominamos tudo o que

dizemos, porque em grande parte agimos de modo inconsciente. Por outra, mesmo

tomando como ponto preferencial tamanha complexidade, não ficamos apenas com

ela, mas a debulhamos em padrões dinâmicos que permitem ver melhor, segundo

as relevâncias que imaginamos preponderar. Não conseguimos compreender a

complexidade complexamente, mas por aproximações redutoras. Nestas

aproximações redutoras, podemos ver melhor o que o método permite, mas

podemos também só ver o que o método permite.

Disto resulta que é mister tratar com jeito a realidade jeitosa. Ela não se dá

ostensiva e quadradamente. E manhosa, se esconde, dá voltas. Mas, mesmo neste

vaivém interminável, podemos

Página 37

descobrir padrões menores que se repetem, a que damos hoje o nome de

algoritmos, para indicar que o complexo possui elementos ordenados definíveis, ou

séries pequenas de passos que sempre reaparecem, refrões que voltam. Através

deles, percebemos traços da dinâmica, que deixa de ser apenas caos, para

comparecer como estruturada. Todavia, não aceitamos mais que possa ser reduzida

a elementos simples finais — átomo quer dizer indivisível, porque imaginávamos que

ele mesmo não poderia mais ser decomposto —, porquanto o que vemos como final

é apenas nova fronteira, ela também complexa. Não vamos do complexo ao simples,

mas do complexo ao menos complexo. Ao mesmo tempo, a tarefa de descobrir

padrões ou algoritmos não é dada, pois supõe atividade interpretativa, guiada por

alguma hipótese sobre a realidade. Conclusão: não se pode estudar qualquer

realidade sem interpretá-Ia. Observar, por mais formal que possa querer ser,

também é interpretar. A razão pode ser simples: somos sujeitos, não objetos;

entidades subjetivas, hermenêuticas.

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Como percebeu Lévi-Strauss, antes de distinguirmos entre lógica formal e dialética,

há que aceitar que ambas são lógicas. Sendo instrumentos de captação da

realidade, não são a realidade como tal. E como o mesmo bisturi que se continua

usando em cada nova cirurgia. E como a mesma rede que se joga para pescar.

Dependendo da rede, apanha-se mais isto ou aquilo mas é impossível apanhar

todos os peixes. Sendo ambas lógicas, possuem de comum a atividade formalizante,

redutora a modelos invariantes. A diferença, porém, está em que a lógica formal

indigita a estática invariante, enquanto a dialética aponta para a mudança

permanente como invariante. Se a realidade fosse estática, a lógica formal seria

mais adequada. Não sendo assim, parece que a dialética poderia servir melhor,

como diria Prigogine. Mesmo assim, é fundamental entender que a mente humana,

ao captar a realidade, procede, no plano científico sobretudo, a descobrir padrões da

dinâmica, dentro da expectativa de que a realidade, por mais dinâmica que seja,

apresenta dinâmica estruturada. O caos puro e simples, não podendo ser

formalizado, não será também captado.

Página 38

Em branco

Página 39

3

ARTE DE ARGUMENTAR

Pode servir como definição sucinta de ciência, desde que se ultrapasse o

reducionismo positivista. Por reducionismo positivista entendemos a tendência da

ciência de reduzir a realidade àquilo que o método consegue captar dela, ou seja, ao

mensurável, quantificável, lógico e formalizável. Não conseguimos estabelecer

coincidência pura e simples entre pensamento e pensado, como se a ideia de algo

fosse exatamente este algo. Dentro da visão reconstrutivista, a ciência tem da

realidade um modelo construído logicamente, reduzido, por questão de método, a

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modelo simplificado. Toda teoria não representa diretamente a realidade, mas a

reconstrói de acordo com certa expectativa de realidade, o que já é mais que

suficiente para reconhecer seu teor interpretativo. Na prática, se houvesse

coincidência direta entre pensamento e pensado, não necessitaríamos argumentar,

pois seria possível a evidência. Bastaria constatar, ver.

Nada sendo evidente — inclusive esta afirmação —, torna-se inevitável o esforço de

fundamentar o que se diz diante de interlocutor que pode sempre pensar de outra

forma, ver de outro jeito, revelar outras faces. Esta circunstância transmite à ciência

o caráter de polêmica, pelo menos até certo ponto, porque tudo que coloca é, por

definição, discutível. Dizer que a ciência é

sempre algo discutível supõe dois horizontes entrelaçados:

Página 40

a) seu discurso precisa de tessitura lógica e sistemática para ser adequadamente

discutível; não se trata de defeito, mas de virtude flagrante, porque só podemos bem

discutir o que se apresentar bem-feito cientificamente falando;

b) seu alcance é sempre limitado, porque, ao buscar revelar a realidade, mostra

melhor o que consegue ver, obnubilando o que não interessa ou não pode ver; não

retrata, mas interpreta a realidade a partir de ponto de vista.

Argumentar torna-se “arte” porque implica a construção jeitosa de discurso que,

consciente de seus limites, busca convencer pela fundamentação aberta,

submetendo a teoria ao questionamento alheio sem artimanhas. A arte não se

esgota em modelagens metodológicas, alcançando sempre igualmente os

horizontes da sensibilidade e da envolvência. Em vez de assertivas certas,

peremptórias, quer fazê-las plausíveis, contando com adesão crítica. Tentamos

cercar realidade que sempre é maior que nossa capa- cidade de argumentar.

Precisamos dos outros pontos de vista para vemos melhor, já que, sozinhos, não

ultrapassamos nossa maneira de ver. Estamos diante de fenômeno epistemológico

que significa, ao mesmo tempo, Iimite e potencialidade. É limite, porque todo

discurso científico, dispensando suporte externo, em particular qualquer autoridade,

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aposta em seus próprios métodos, enredando-se na assim dita circularidade

hermenêutica: quando definimos termos, usamos termos ainda não definidos, assim

como, quando argumentamos, usamos referências ainda não devidamente

argumentadas. Neste sentido, a ciência funda-se a si mesma, apelando para

“metanarrativas circulares”, como diz a crítica pós-moderna (12). Não produz

certezas para todos, mas para seus adeptos. Não haveria como inventar

argumentação unânime, a menos que os interlocutores desistissem de argumentar,

engolindo simplesmente o que se afirma. Dito de outra forma, todo questionamento

provoca contra questionamento pela mesma razão lógica. E típica contradição

performativa pretender questionar sem ser questionado. Toda argumentação é, em

si mesma, convite à contra argumentação.

Início de nota de rodapé

12- LYOTARD, J.-F. 1989. La condición postmoderna. Madrid, Catedra. DEMO, P.

1993d. Conhecimento moderno — Sobre ética e intervenção do conhecimento. 3°

ed. Petrópolis, Vozes.

Fim de nota de rodapé

Página 41

É potencialidade, porque toda argumentação coerente sedimenta processo infindo

de renovação própria. Reconhecendo que nada se pode, a rigor, provar, mas

fundadamente reconstruir, temos de aceitar que, primeiro, diante de realidade

complexa, selecionamos facetas consideradas relevantes, e, segundo, que assim

procedendo também escondemos o que não consideramos relevante. Focar facetas

mais que outras implica esquecer as outras, sem falar que a questão da relevância

é, em grande parte, problema de interpretação. A relevância jamais é óbvia, mas

produto de antecedentes e circunstâncias teóricos e históricos de cada cientista ou

paradigma. E precisamente neste sentido que toda argumentação bem-feita

pretende abrir novas discussões, nunca fechá-las. Toda nova teoria conclama outras

que a possam superar, em nome de realidade que nunca vemos de todo.

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Atualmente, quer-se recuperar o velho sentido da retórica, que tinha como pretensão

não só deduzir ou inferir, mas igualmente convencer, seduzir. Todos sabemos que

lógica, por mais evidente que possa parecer, está longe de necessariamente

convencer. Frequentemente, deixamo-nos levar pela emoção ou pela expectativa,

ou pelo senso comum, ou pela ideologia, mais do que por raciocínios formalmente

bem arquitetados. Galileu, quando defendeu o heliocentrismo, tinha formalmente

razão, mas foi condenado porque, em termos sociais da época, não “convenceu”. A

retórica pode ser abusada, como fazem os políticos quando proferem promessas

falsas e buscam enrolar a população, mas pode ter o sentido pertinente de conduzir

o discurso científico com elegância, sensibilidade, adequada entonação, para que

mereça tanto mais ser ouvido e, sobretudo, ser aceito. Não insiste apenas na lógica.

Quer, além dela, a possibilidade de adesão. Se esta for excessiva, a retórica decai

para adesismo. Mas não deixa de ser propósito importante, por exemplo, produzir

texto em ciência que seja mais facilmente legível, atraente, jeitoso, ainda que se

possa sempre confundir isto com “vulgarização”. Bem olhando, trata-se de arte,

daquela arte de colocar no papel coisas muito complicadas de maneira que todos

possam entender.

Do ponto de vista hermenêutico, toda fundamentação mostra, à revelia, que padece

de falta de fundamento, porque não podemos produzir nenhum argumento final.

Podemos apenas produzir o próximo argumento, em processo interminável de

aproximações sucessivas. A crítica vive precisamente da falta de fundamento,

Página 42

tornando-se contraditória consigo mesma, quando imagina poder dispensar a

argumentação. Por isso, dizemos que a coerência da crítica está na autocrítica. Pois

a lógica implicada no criticar é a mesma implicada no ser criticado. Mostrar os limites

da argumentação do outro é implicar reconhecer limites na própria argumentação,

por pura coerência Iógica. Consciência autocrítica há de significar duas coisas:

a) exercício irrestrito da crítica, colocando a realidade acima de qualquer teoria e,

em nome da realidade, mostrar as incongruências de toda teoria; precisa ser

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sistemática e implacável, perseguindo todos os possíveis percalços, além de não

admitir qualquer tipo de censura;

b) exercício modesto da crítica, porque sabe que apontar erros é também neles

incidir, já que é impraticável produzir discurso científico totalmente isento de erros; a

abertura diante de novas críticas é essencial, não se podendo exigir dos outros o

que nós mesmos somos incapazes de garantir.

Varela, em seu livro sobre a “mente incorporada” (13), procura estabelecer caminho

do meio entre os excessos do representacionismo — a cognição conhece

diretamente a realidade e a pode devassar analiticamente — e o relativismo niilista

— a cognição é sempre apenas algo particular. Este caminho do meio é chamado

por ele de “falta de fundamento último” (groundlessness), no contexto da visão

cognitiva de estilo oriental, mais propensa a certo compromisso entre os extremos.

Não podemos descobrir chão último, porque este próprio chão não poderia ser

estabelecido sem nossa interpretação e história. E sempre historicamente relativo,

porque não há sujeito cognoscente que não esteja plantado em certo tempo, espaço

e cultura, mas a realidade externa não depende de nós para existir. A ciência

ortodoxa, entretanto, mantém a pretensão de devassar as entranhas da realidade,

até seu último chão, mas sua complexidade intrínseca parece estar sempre além

desse intento. Por certo, a ciência é ótima para destruir respostas metafísicas, por

ser naturalmente método de questionamento antes de tudo, mas nada deixa no lugar

que também não mereça ser questionado. Assim, ela mesma nos leva a viver sem

fundamento, se tivermos devida autocrítica.

Início de nota de rodapé

13- VARELA, F. J. et alii. 1 997. The embodied mind — Cognitive science and

human experience. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press.

Fim de nota de rodapé

Página 43

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A persecução de fundamentos inabaláveis mostra apenas ciência que perdeu o

sentido da crítica e, sobretudo, da autocrítica. Nem satisfaz transformar a falta de

fundamento último em fundamento último da argumentação, dando a entender que

isto seria ponto final de referência, porque, de novo, estamos atrás de abertura tão

total que já seria fechada. Pois, o que se pensa como objetivo não passa, no plano

humano, do que é representado pelo sujeito.

Por certo, como diz Varela, afeta a vida e o ser perceber que não há chão sólido e

que as coisas passam, pervadindo a compreensão e a atualização da vida humana,

tornando-a questionável, duvidosa e incerta. Chama a isto de grande dúvida,

visualizada na própria impermanência da existência. O caminho do meio não é

niilista, apenas reconhece a falta de fundamento. Não se pode desistir da

fundamentação, transformando isto em nova fundamentação. Ao contrário, é preciso

transformar essa ânsia por fundamento último em capacidade de convivência aberta,

preferindo à impossibilidade do peremptório e fatal a convivência fecunda da

comunicação relativamente fundada. Assim, a falta de chão último não indica o

desespero de causa, nas a potencialidade de infinita abertura à aprendizagem

sempre renovada. O objetivismo incide nesta contradição ao postular competência

insustentável de tudo poder ver e dissolver, substituindo um deus ex machina por

outro. A lógica, deduzindo uma coisa da outra sem fim, não pode chegar ao fim,

porque, sendo circular, não tem fim. Mal entendida, pode pretender evidências que

são apenas as próprias, circunscritas ao círculo.

Ideias de Habermas, nesta parte, podem ser interessantes, porque, aceitando que

somente pode ser científico o que for discutível, abrem espaço para a referência

política de toda argumentação (14). Tomando verdade como “pretensão de

validade”, não como trama lógica dada e necessária, para que o discurso seja válido

carece de dupla referência:

a) referência lógica, porque todo discurso científico válido pleiteia sistematicidade,

tessitura lógica, penetração analítica; se for contraditório, malfeito, embaralhado, não

pode ser discutido

Início de nota de rodapé

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14- HABERMAS, J. 1989. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro. DEMO, P. 1998b. Pesquisa e construção do conhecimento —

Metodologia cientifica no caminho de Habermas. 2° ed. Rio de Janeiro, Tempo

Brasileiro.

Fim de nota de rodapé

Página 44

adequadamente; sua tessitura Iógica não serve para fugir da discussão, em nome

de alguma pretensa evidência, mas para facilitá-la;

b) referência política, porque a validade sempre implica reconhecimento histórico

relativo, que Habermas vê no consenso aberto da comunicação desimpedida; ser

socialmente aceito significa ser capaz de reconhecimento no contexto da linguagem

intercomunicada, na qual o compromisso comum acaba impondo-se ao que é

apenas lógico; ainda que todo consenso tenda a ser medíocre, porque é aquilo em

que todos poderiam acreditar, é o que pode valer concretamente.

O processo de argumentar implica as duas referências, por mais que a ciência,

muitas vezes, nos queira dar a entender que se basta com a primeira. Podemos

também exagerar na segunda referência, quando já preferimos ideologia a

argumento. Discurso ideológico é aquele no qual predomina o intento de justificação

a serviço do contexto de poder. Pode usar ciência para tornar-se melhor aceito, mas

seu compromisso básico é provocar convencimento, adesão, mais do que postura

crítica. Discurso científico é aquele no qual predomina a argumentação, estando

mais a serviço de desvendar a realidade do que de vendê-la para adeptos. Dizemos

“predomina” porque ideologia é intrínseca à ciência não no objeto, pelo menos no

sujeito. A ciência, por outra, também busca ir além do senso comum, porque pleiteia

postura crítica para além das aparências, mas também incorpora coisas do senso

comum, já que a crítica total não seria manejável por mente limitada e histórica e

evolucionariamente marcada. O que condiciona sobretudo o fazer científico é o

método, comprometido com o teste crítico, enquanto o senso comum é crédulo e a

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ideologia é submissa. Enquanto o senso comum se basta com as aparências, a

ideologia se satisfaz com a adesão.

Neste sentido, podemos dizer que verdade necessita de qualidade formal e política.

Formalmente falando, precisa de sustentação lógica. Politicamente falando, precisa

de consenso. Não segue daí relativismo, porque, primeiro, toda sociedade funciona

por alguns acordos válidos para todos ou pelo menos para a maioria, e, segundo,

porque o relativismo é em si mesmo contraditório: não se pode afirmar que tudo é

relativo. Mas segue a relatividade da verdade, ou seja, que sua validade tem o

tamanho da pretensão historicamente contextuada de validade. De um lado,

Página 45

possui parâmetros que ultrapassam a facticidade, permitindo reconhecer, por

exemplo, na lógica, certos modos estruturais de pensar, próprios da mente em

qualquer tempo e lugar. Chamar a estes modos estruturais de referências

transcendentais pode levar ao que Sfez chama de modo “kantiano”, e hoje rejeitado

pelo pós-modernismo (15), porque desconhece a validade social do discurso. Como

pretende Bourdieu, a validade do discurso se dá na sociedade concreta, não em

parâmetros meramente estruturais ou transcendentais (16). Rejeita, por isso, que o

primeiro impulso da fala seja comunicar. Será mais propriamente influir. Assim, de

outro lado, a facticidade se alimenta da história concreta de cada sociedade,

expressando a relatividade natural das coisas. Os consensos, além de medíocres

geralmente, podem também ser injustos, sem falar de ilógicos. Mas eles é que

acabam valendo. E impraticável definir verdade fora do contexto do poder. São dois

conceitos logicamente diferentes mas socialmente imbricados, pois, ao final das

contas, verdade é menos o que parece inconsútil e transparente do que aquilo que

vale concretamente.

A arte de argumentar leva em conta que o ser humano e a sociedade em que vive

não funcionam apenas pela Iógica. As fundamentações racionais são muito

importantes; contudo, sendo o ser humano vastamente irracional, não por má

vontade e sim por constituição corporal, é mister motivar não só o raciocínio, mas

igualmente a envolvência. Toda comunicação humana pressupõe acordos tácitos,

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que permitem o entendimento não problemático. São propriedades comuns que

ultrapassam a facticidade, revelando possibilidades estruturais do entendimento.

Mas isto indica os pressupostos do entendimento, não seu compromisso

historicamente válido. Maffesoli chama de “razão sensível” aquela que aponta para

além das formalizações exigidas pelo método científico estrito, de, certa maneira

postulando que não basta convencer a mente. (17) E mister também, talvez

sobretudo, convencer o corpo. O fenômeno participativo não poderia desvincular-se

da racionalidade — a fácil adesão a ditadores carismáticos bastaria para valorizar a

racionalidade crítica —, mas funciona pela

Início de nota de rodapé

15- SFEZ, L. 1994. Crítica da comunicação. São Paulo, Loyola.

16- BOURDIEU, P. 1996a. A economia das trocas linguísticas. São Paulo, Edusp.

BOURDIEU, P. 1996b. Razões práticas — Sobre a teoria da ação. Campinas,

Papirus.

17- MAFFESOLI, M. 1998. Elogio da razão sensível. Petrópolis, Vozes.

Fim de nota de rodapé

Página 46

envolvência emotivamente carregada, que, mais que criticar as propostas, nelas

acredita (18)

A argumentação bem conduzida cerca o fenômeno, funda- menta como pode a

hipótese, recolhe razões, mas o faz no sentido da abertura crítica. Ao mesmo tempo

que busca analisar a realidade, não perde de vista que pretende comunicar,

entender-se, convencer. No plano da retórica, persegue também tocar o coração,

motivar a sensibilidade, provocar curiosidade. Não desfaz a necessidade da razão

formal. Pelo contrário, reforçando-a com a percepção da envolvência humana,

atribui-lhe sentido histórico ainda mais integral, lembrando-a que é apenas um olhar.

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Porquanto o rigor da lógica só se completa e vale a pena, se puder obter consenso.

Este, sendo a média de todos, também é a vala comum. O exemplo do Congresso é

típico: só passam as leis que tenham consenso, mesmo as mais ilógicas e injustas.

E muito difícil um partido de esquerda coligar-se a um de direita para poder

implantar reformas de esquerda. O que poderá ser implantado é algo no meio dos

dois, pendendo para o lado mais forte, não mais fundamentado.

Início de nota de rodapé

18- KATZ, J. 1999. Haw emotions work. Chicago, The University of Chicago Press.

Fim de nota de rodapé

Página 47

4

SABER APRENDER

Aprender é a maior prova da maleabilidade do ser humano, porque, mais que

adaptar-se à realidade, passa a nela intervir. Sendo atividade tipicamente

reconstrutiva de tessitura política, é também a maior prova do sujeito capaz de

história própria. Saber aprender é fazer-se oportunidade, não só fazer oportunidade.

Deixa-se de lado a condição de massa de manobra, objeto de manipulação, para

emergir como ator participativo, emancipado. Retomamos aqui o sentido da

autonomia, que precisa ser todo dia conquistada e reconstruída. Enquanto a

hereditariedade aponta para o lado repetitivo da evolução, a aprendizagem qualifica

seus saltos. No fundo está o fenômeno da emergência, segundo a qual não

conseguimos nos repetir pura e simplesmente, nem mesmo quando se trata de

gêmeos idênticos. Seus temperamentos, modos de ser e querer tendem a ser muito

diferentes. A prepotência humana busca seres que apenas replicam as ordens, mas

esta é a lógica binária da ditadura, como diz Kosko. Aprender é antes de tudo repelir

a reprodução. Neste sentido é fenômeno sempre reconstrutivo e político. A

politicidade de Paulo Freire é hoje atestada também nas ciências naturais, sobretudo

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na biologia, que reconhece no ser vivo a capacidade de auto-organização e

construção de proposta própria(19). Prigogine aceita esta marca também

Início de nota de rodapé

19- TORRES, C. A. 1998. Democracy, education, and multiculturalism — Dilemmas

of citizenship in a global world. New York, Rowman & Littlefield

Fim de nota de rodapé

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no universo físico, sob a dinâmica da “flecha do tempo” ou das “estruturas

dissipativas”, como se fosse, metaforicamente falando, a capacidade de aprender da

natureza. Esta também é algo político e faz, de certa maneira, sua política ao

permanentemente vir a ser (20).

A acalorada disputa em torno do que seria, afinal, aprender vai sendo resolvida em

favor da postura reconstrutiva, retomando, pelo menos até certo ponto, o

lançamento de Piaget, pai do “construtivismo”. Este termo é tido, por muitos, como

excessivo, porque pode levar à pretensão de que a realidade externa depende de

nós para subsistir, sem levar em conta suas estruturas dadas (21). Por outro lado,

aproxima-se de posições ditas estruturalistas, realçando por demais leis universais

da aprendizagem humana, algo criticado hoje fortemente pelos pós-modernos (22).

Pela própria tessitura extremista dessas duas posições — subjetivismo exagerado

num canto e objetivismo excessivo no outro — pode-se duvidar que Piaget tenha

buscado abarcar horizontes tão desconexos. Polêmicas à parte, seu mérito foi

divisar que a aprendizagem é, na essência, fenômeno construtivo, reconhecendo

que é constituída por saltos não lineares, incorporando os estágios anteriores. Para

evitar mal-entendidos, uso o conceito de reconstrução, indicando que aprendemos

do que já tínhamos aprendido, conhecemos a partir do que já sabíamos, como todo

processo hermeneuticamente plantado. Mesmo havendo sempre componentes

reprodutivos, obtidos por imitação, prevalece sua reconstrução, no sentido preciso

de que somos seres incapazes de copiar o comportamento. Esta marca também

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garante que se trata sempre de processo permanente, não só porque nunca é viável

atingir ponto final, mas principalmente porque significa movimento de recriação

infinita. A aprendizagem representa, por isso, algo naturalmente criativo e crítico,

porque não repete na situação B o que havia na situação A. Ao contrário, agrega

qualidades que não eram presentes antes, de maneira tipicamente não linear. A

mente humana não armazena propriamente

Continuação de nota de rodapé da página anterior

Publishers, Inc. FREIRE, P. 1997. Pedagogia da autonomia — Saberes necessários

à prática educativa. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Início de nota de rodapé da página atual

20- CAPRA, F. 1997. A teia da vida — Uma nova compreensão científica dos

sistemas vivos. São Paulo, Cultrix.

21- HARDING, S. 1998. ls science multicultural? Postcolonialisms, feminisms, and

epistemologies. Bloomington and Indianapolis, lndiana University Press.

22.- FREITAG, B. (org.). 1997. Piaget — 100 anos. São Paulo, Cortez.

Fim de nota de rodapé

Página 49

mente dados e informações, mas os reprocessa, reconstrói, redimensiona,

revelando sempre a atividade de sujeito capaz de interpretação própria.

Na prática, temos dois movimentos reconstrutivos da informação vinda de fora. No

primeiro, os sentidos percebem a informação externa de modo seletivo, reduzindo o

excesso de dados de acordo com hipóteses de relevância útil para o sujeito. No

segundo, a mente elabora a informação sensitiva já filtrada, passando do estado

físico para o conhecimento, através da atividade neuronal. Alguns autores analisam

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esta atividade de modo mais determinista, como Maturana, que chama o ser vivo de

“máquina”, insinuando que a captação da realidade externa se faria à revelia desta,

a tal ponto de ser impraticável distinguir o que seria alucinação. No fundo, defende

construtivismo extremo e determinista, que lhe permite, entretanto, entre outras

marcas, produzir uma das críticas mais resolutas contra o instrucionismo (23). Este

reduz o aluno a mero receptor, fazendo da educação movimento apenas

reprodutivo. Maturana tenta mostrar que é impossível instruir o aluno, porque este,

mesmo que o quisesse, não consegue manter-se apenas submisso, pois sua

consciência seria resultado mecânico da intervenção externa. Outros autores, como

Varela, buscam um meio-termo, indicando que a mente humana é influenciada pela

realidade externa, embora predomine sua característica reconstrutiva. Parte da

circularidade fundamental: estamos num mundo que parece estar lá antes que a

reflexão começa, mas o mundo não é separado de nós (24). A hipótese cognitivista,

que trata a mente como cálculo lógico de estilo computacional, desconhece que,

embora o nível simbólico seja fisicamente realizado, não pode ser reduzido ao nível

físico. E reducionista a tese de que o processamento da informação simbólica

estaria baseado em regras sequenciais e seria localizado. A proposta chamada

conexionista procura superar esta restrição, reconhecendo que a passagem de

regras locais para coerência global é o cerne do que costumou se chamar auto-

organização, apontando para o fenômeno emergencial de rede que dá origem a

novas propriedades. Entre as vantagens das teorias conexionistas está a de explicar

Início de nota de rodapé

23- MATURANA, H. & VARELA, F. 1994. De máquinas y seres vivos — Autopoiesis:

la organización de lo vivo. Santiago, Editorial Universitaria.

24- VARELA, F. J. et alii. 1997. The embodied mind — Cognitive science and human

experience. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press.

Fim de nota de rodapé

Página 50

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melhor certas capacidades cognitivas, como reconhecimento rápido, memória

associativa e generalização categorial.

O conhecimento passa a ser visto como emergência de estados globais numa rede

de componentes simples, destacando-se o emaranhado conectivo dos elementos. O

símbolo não é mais central, pois os itens significativos não são símbolos, mas os

padrões complexos de atividade entre as numerosas unidades que perfazem a rede.

Os símbolos são, ao mesmo tempo, físicos e significativos, não podendo ser

reduzidos ao físico como faz o computador. O sistema se assemelha a colcha de

retalhos de sub-redes armadas por processo complexo de arranjos, muito diverso de

desenho limpo e unificado. Torna-se fundamental superar a ansiedade cartesiana da

certeza final, provocada pela obsessão por fundamento absoluto. Esta falta de

fundamento é a própria condição para o mundo ricamente tecido e independente da

experiência humana. A aprendizagem, embora dependa de substratos físicos

estruturados, caracteriza-se pelo processo de contínua inovação, maleável por

natureza, flexível e dinâmico. Realiza a qualidade impressionante de saltar de

estruturas físicas para outras de estilo não físico, como é o pensamento, obtendo de

componentes simples resultados complexos através de processos auto

organizativos que não se esgotam na mera circularidade repetitiva. Para evitar esta

circularidade no fundo sistêmica, Varela usa o conceito de enação para indicar o

estilo de intervenção reconstrutiva monitorado também a partir de fora e tipicamente

emergente.

Tais posicionamentos biologicamente fundados asseguram, entre outras coisas,

que:

a) a aprendizagem é fenômeno reconstrutivo; jamais pode ser reduzido a reproduzir

conhecimento, mesmo que compareçam sempre e naturalmente componentes

imitativos. Sua marca central é a dinâmica conexionista que, se, de uma parte, reduz

complexidade para analisar a realidade e lhe reconhecer padrões de estrutura e

funcionamento, de outra, a complexifica tanto mais, não permitindo mais que se

possam reduzir mecanicamente estados mentais a seus substratos físicos. Embora

o pensamento seja produto direto do cérebro — quase que sua secreção —, não é

neurônio ou massa cinzenta;

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b) a aprendizagem é fenômeno político, porque é inseparável da condição de sujeito

interpretativo e interveniente, tornando-se

Página 51

a base mais efetiva da autonomia. Sua politicidade está, assim, biologicamente

fundada, tanto no sentido negativo da tentação sempre presente de reduzir a

aprendizagem a processos de domesticação, como no sentido positivo da

capacidade emancipatória de reagir. Enquanto não ocorrer a presença crítica e

criativa do sujeito, não existe aprendizagem, mas manipulação da consciência

alheia. Esta marca, por outro lado, define a necessidade de submeter toda atividade

de “ensino” à motivação da autonomia de quem aprende, apontando a este como

figura central; não se emancipa sozinho, mas precisa, em certa medida, saber

dispensar apoios externos, em particular aqueles que indicam atrelamento e

submissão.

Já não seria possível resumir a aprendizagem a procedimentos apenas técnicos e

formais, sobretudo a procedimentos instrucionais, porque, enquanto os aprendizes

se restringirem a seguir ordens, não se farão sujeitos capazes de fazer e sobretudo

fazer-se oportunidade. O esforço reconstrutivo torna-se decisivo sob a presença

maiêutica do professor. Este é parte fundamental, mas jamais pode substituir ou

lesar a participação do aluno. Ao mesmo tempo, todos os artifícios didáticos,

principalmente a aula, não podem ser mais que expedientes supletivos, que teriam

como única razão de se reforçar a autonomia do aluno. Neste sentido, pode-se fazer

ligação direta entre saber pensar e saber aprender, porque releva o sentido da

conquista da autonomia, dentro de processo permanente de inovação crítica e

criativa. Ao mesmo tempo, esta compreensão da problemática da aprendizagem

coloca o dedo na ferida mais comprometedora da sociedade, que é a pobreza

política, alimentada pela ignorância historicamente produzida. O inimigo maior da

autonomia é a inconsciência da dependência externa, que permite a condição de

massa de manobra. Esta é a indignidade histórica mais arrasadora, porque elimina o

sujeito, deixando em seu lugar objeto da manipulação alheia. O excluído precisa

saber pensar sua própria história, para refazer-se como sujeito de suas soluções

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possíveis. Aprender é, no seu âmago, saber fazer-se sujeito de história própria,

individual e coletiva.

A gestação da autonomia, por sua vez, representa sempre fenômeno de extrema

complexidade dialética, exigindo capacidade entranhadamente flexível de trabalhar

bem limites e desafios. Será mister trabalhar os limites como desafios, para

buscarmos sempre

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superá-los, bem como trabalhar os desafios como limites, para termos consciência

crítica, sobretudo autocrítica, de que nenhuma autonomia é ilimitada. Se esta assim

fosse, já seria prepotência, como a liberdade que se faz às custas da liberdade

alheia. De uma parte, o ser humano não se torna autônomo sem depender dos

outros. De outra, precisa livrar-se desta dependência. Mais que problema ou

disjuntiva, está dialética aponta para a necessidade de saber negociar no contexto

da unidade de contrários. A tendência de os apoios virarem cobrança de submissão

é flagrante, eclodindo em formas de cidadania tutelada ou assistida. Por outro lado,

a autonomia duramente conquistada pode facilmente virar prepotência, quando se a

quer contra tudo e contra todos. No fundo, vibra a dinâmica contraditória do poder,

que divide facilmente os dois lados complementares e excludentes: o olhar de cima

seleciona na paisagem a necessidade de manutenção da situação, procurando

entender privilégios como mérito historicamente alcançado; já o olhar de baixo se

fixa na necessidade de mudança, interpretando todo privilégio como usurpação. Este

não se basta com autonomia concedida, dentro da tática de ceder para manter as

rédeas. Busca a autonomia radical, porque pretende autodeterminar-se. Entretanto,

se chegar um dia ao poder, facilmente envolve-se na trama do olhar de cima. Por

isto diz-se que o revolucionário de hoje será o reacionário de amanhã, desde que

chegue ao poder.

Esta dialética torna o discurso sobre solidariedade também extremamente complexo

e dúbio, a começar pelo fato de que geralmente é discurso dos dominantes.

Enquanto pregam a solidariedade para os dominados, estes querem distância.

Precisam estritamente da distância, do confronto. Os excluídos precisam ser

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solidários entre si, mas agressivos com os outros. Por isso, a construção da

autonomia solidária pode ser vista como um dos desafios mais ingentes da

aprendizagem reconstrutiva política, pois precisa unir propósitos contrários, para que

a autonomia não degenere em renovada imposição, nem a solidariedade em

enganosa submissão. Trata-se, por isso mesmo, da arte fina de negociar limites e

desafios, ou das histórias possíveis dentro de estruturas dadas. Porquanto fazendo

parte do conceito de autonomia saber impor-se, facilmente se torna agressiva e

prepotente, até mesmo por temor de reincidir na situação de massa de manobra.

Todavia, também fazendo parte do conceito de solidariedade saber ceder, colocar a

harmonia comum acima dos interesses pessoais, preferir

Página 53

as convergências coletivas, pode-se muito facilmente entrar em processo de

concessões que desfiguram já a história própria.

Saber aprender apontaria precisamente para esta engenharia sutil, profunda e

comprometedora, para atinar até onde vão os limites e até onde devem prevalecer

os desafios. Saber ceder pode ser, em muitas circunstâncias, admirável sabedoria,

prova profunda de autonomia, bom senso convincente, como pode ser também

capitulação. Este senso pelo que é de menos ou demais, dentro de limites

essencialmente fluidos e emaranhados, poderia representar a qualidade mais

profunda da aprendizagem, assinalando a capacidade desafiadora de ser sujeito

com outros sujeitos, não contra necessariamente. Entretanto, ser contra também é

essencial, porque sem isto nada aprenderíamos de novo e inovador. Esta mesma

contradição aparece no movimento crítico: é essencialmente negativo,

desconstrutivo e aí está sua importância para processos de inovação e

aprendizagem. Mas facilmente ofende, desagrega, perdendo o sentido social da

crítica. O professor tem esta tarefa fina e sibilina de mostrar que a crítica é

necessária para aprender com autonomia, mas que a aprendizagem deve também

incluir a convivência comum como bem maior. Pois, mais decisivo que inovar é

humanizar a inovação. Assim, autonomia é o que enobrece o ser humano

emancipado, mas também é o início de todas as desavenças. A liberdade não pode

ser imposta, mas negociada em sociedade. Saber aprender indica esta habilidade

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de rara maleabilidade, que ora precisa ser intransigente para marcar presença, ora

transigente para conviver.

Página 54

Em branco

Página 55

5

SABER CUIDAR

Desde que Boff lançou esta ideia (25), tornou-se claro que saber cuidar é parte

intrínseca do saber pensar. A muitos poderá ocorrer que saber cuidar se restrinja a

“cuidar”, sobretudo em sentido assistencial e já assistencialista. A outros, saber

cuidar revela quase que apenas o sentido ecológico do desenvolvimento. Entretanto,

creio que na “arqueologia” do saber cuidar está a visão de que o conhecimento não

implica somente a capacidade de compreender, devassar e interferir na realidade,

mas igualmente a de conviver com ela, tomá-la como parâmetro da sobrevivência,

reconhecê-la como maior que nós. Até hoje, na história do conhecimento

colonizador ocidental e em particular no contexto do capitalismo, conhecer é

sobretudo agredir, impor-se, submeter, inclusive com respeito à natureza, que está

sendo literalmente depredada. Estamos, assim, construindo um tipo de emancipação

que retira o tapete por baixo dos próprios pés, porque implica tamanha destruição —

da sociedade e da natureza — que não sobrará nada para ninguém. Trata-se

daquela vitória em que o vitorioso é o principal derrotado. Fantástica contradição

performativa, porque estamos diante de emancipação que nega aos

Início de nota de rodapé

25- BOFF, L. 1999. Saber cuidar — Ética do humano — compaixão pela terra.

Petrópolis, Vozes.

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Fim de nota de rodapé

Página 56

outros o mesmo direito, ou de emancipado que precisa de subalternos para realizar

seus projetos (26).

Saber cuidar vai além de ser questão de sensibilidade o que sempre é em pleno

sentido — para atingir também o espaço epistemológico do saber pensar. Faz parte

da inteligência humana, tomando-se categoria lógica como é a própria lógica. Não

percebíamos isso porque estávamos habituados a olhar a natureza como reis ou

exploradores incontidos, tendo essa atitude se agravado muito com o progresso da

ciência de estilo ocidental, sem falar, em seguida, no envolvimento capitalista.

Sendo o mercado liberal a categoria fundamental da sociedade e o lucro privado seu

móvel central, não existem peias para tal voracidade: depreda-se tudo, sociedade e

natureza. Tal atitude não implica apenas miopia, descuido, desfaçatez, mas

igualmente falta de lógica, além de falta de ética, como bem aponta Boff Voltamos a

tema pós-modemo de rara profundidade, que assinala não ser possível tratar, em

ciência, qualquer coisa como objeto, nem mesmo a realidade material. Desde que

aceitemos a tese de que somos parte da realidade e que a realidade humana é

apenas relativamente diferente (questão de grau, não de essência), quando

estudamos a realidade, de certa maneira, estudamos a nós mesmos, como somos,

como funcionamos, nossas entranhas e desejos. Esta tese era reconhecida, pelo

menos em parte, nas ciências humanas, em que a coincidência entre sujeito e objeto

parecia mais clara. Weber inventou a “sociologia compreensiva” para sinalizar que

em sociologia seu pano de fundo hermenêutico se sobrepõe à análise fria,

provocando envolvência natural com o objeto. Mesmo assim defendeu a

neutralidade científica, por razões de método e que hoje subsiste apenas como

intento de “objetivação”, ou seja, é importante analisar a realidade de maneira

sistemática, meticulosa, metódica, para que ela possa ser apanhada da maneira

mais “objetiva possível”, embora isto nunca ocorra. Trata-se de ideal ou de utopia

científica. Durkheim, por isso, recomendava tratar os fatos sociais como “coisa”, para

que a imisção ideológica pudesse ser controlada. Permanece nestas concepções

um visível positivismo reducionista, cada vez mais criticado, entre outras

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Início de nota de rodapé

26- ALTVATER, E. 1995. O preço da riqueza. São Paulo, Ed. UNESP. FERREERA,

L. D. & VIOLA, E. (orgs.). 1996. incertezas de Sustentabilidade na Globalização.

Campinas, Ed. Unicamp. VIOLA, E. J. et alii. 1998. Meio ambiente, desenvolvimento

e cidadania: Desafios para as ciências sociais. São Paulo, Cortez.

Fim de nota de rodapé

Página 57

coisas, porque não tem consciência da necessidade de “saber cuidar” do objeto,

que, na verdade, não é mero objeto.

Uma das críticas mais lúcidas é feita por Harding, ao mostrar o fundo cultural do

conhecimento (27) e colocar em xeque a epistemologia internalista que atribui os

êxitos da ciência à ordem da natureza e aos métodos pretensamente objetivos,

agudamente demarcados frente a outros métodos para obter conhecimento. Não se

trata, por outro lado, de incidir no extremo oposto de certo construtivismo que já

imagina “inventar” a realidade. Estudos pós-coloniais e tecnológicos mostram a

integração da ciência europeia nas relações econômicas e políticas globais da

Europa, levando em conta também outras práticas científicas não europeias.

Mostram, ademais, que apreciamos as modernas ciências por razões equivocadas:

“Não é sua habilidade de imunizar seus relatos da ordem da natureza contra todos

os elementos culturais na sua montagem e uso contínuo que foi responsável por

seus grandes êxitos, como se assumiu. Antes, é a habilidade de neutralizar alguns

desses elementos culturais, enquanto explorava outros plenamente, que foi

responsável tanto por seus sucessos, quanto por seus fracassos” (Harding, 1998: 7).

Ao final das contas, os excluídos sempre tiveram poucos benefícios e muitos

malefícios da ciência europeia. O conhecimento científico é in- separável das

tecnologias de sua produção, estas detêm precondições sociais e políticas e

oferecem esquemas para subsequentes inovações tecnológicas, dentro daquilo que

os pós-modernos chamam de “metanarrativas circulares”. Torna-se importante a

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stand- point epistemology, caracterizada pela sensibilidade de colocar-se no lugar do

objeto para ver a realidade de seu ponto de vista. Porquanto olhar os marginalizados

a partir dos marginalizados é postura “mais objetiva” do que o contrário. “Para quem

já se apropriou da natureza e tem acesso a ela, para quem tem capital e

conhecimento para decidir precisamente como podem melhor acessar os recursos

naturais e como tais recursos serão usados — estas são as pessoas a quem serão

garantidos vastamente os benefícios da transformação contemporânea científica e

tecnológica. A maioria dessas pessoas, no Norte e no Sul, e especialmente as

mulheres em cada cultura pelo mundo afora, têm muito pouco

Início de nota de rodapé

27- HARDING, S. 1998. Is science multicultural? Postcolonialisms, feminisms, and

epistemologies. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press.

Fim de nota de rodapé

Página 58

Desses recursos. Não compartem da natureza; não possuem recursos para acessar

suas energias e poderes; e sistematicamente se lhes nega acesso ao conhecimento

de como ganhar acesso a tais partes da natureza ou a recursos técnicos” (Harding,

1998: 21-22). Mais ciência e tecnologia apenas favorece só aos favorecidos.

Transformações científicas e tecnológicas desempenham papel central nos

processos de avanço e bloqueio da democratização global.

A ciência foi a vanguarda do colonialismo, e é hoje a base central, senão a mais

decisiva, da globalização discriminatória que vivemos atualmente. Como sempre

ocorreu, fazemos a destruição de outras culturas científicas concorrentes e

produzimos o “des-desenvolvimento”, podendo-se realçar pelo menos seis modos:

extração de matéria-prima, exploração de mão-de-obra, usurpação de conhecimento

científico e tecnológico local, destruição de indústria e comércio local, dizimação das

populações locais, desvalorização das culturas locais. Em vista disso, o Terceiro

Mundo apenas se moderniza, não se desenvolve. Não houve milagre europeu, mas

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estratégia capitalista e científica de ocupação dos espaços e imposição de modelo

tendencialmente único civilizatório. Ao lado do conhecimento, aparece, na contraluz,

a produção de ignorância sistemática, em particular pela pregação da neutralidade

nunca neutra. Elevando o tom da voz, Harding diz que, por exemplo, a América não

foi conquistada, foi infectada, aludindo ao fato grotesco de que grande parte da

população nativa original morreu de doenças contagiosas trazidas pelos europeus.

Entretanto, a ciência europeia se impôs, a partir do século 17, embora antes, como

mostra bem Collins, tenham existido outras culturas científicas de grande porte na

Ásia, sem falar na antiga tradição grega (28). Hoje vivemos na “sociedade do

conhecimento”, tendo como motor principal um mercado liberal intensivo de

conhecimento, no qual ciência e tecnologia não são apenas importantes: são sua

dinâmica central. Estamos deixando a época da “mais-valia absoluta”, caracterizada

pela exploração extensiva da mão-de-obra, ou seja, pela espoliação sobretudo da

força física do trabalhador, visualizada em dias de trabalho extremamente longos e

cansativos. A era da “mais-valia relativa” está se

Início de nota de rodapé

28- COLLINS, R. 1998. The sociology of philosophies A global theory of intellectual

change. Cambridge, Massachusetts, The Belknap Press of Harvard University Press.

Fim de nota de rodapé

Página 59

sedimentando, marcada pela exploração da inteligência do trabalhador. Pode-se

reduzir o dia ou a semana de trabalho, sem prejuízo da produtividade. Como bem

argumenta Kurz, tais mudanças não redimem o capitalismo, porque continua, no

fundo, a mesma lógica abstrata da mercadoria, através da qual o valor de troca se

sobrepõe ao valor de uso, chegando a ponto de transformar o trabalho em

mercadoria (29). Pleno emprego, que somente existiu ou existe localizadamente,

não pode mais ser esperado, porque a introdução intensiva de conhecimento nos

processos produtivos reduz a necessidade de mão-de-obra. Abandona-se o

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emprego estável e entra em seu lugar o emprego precário, reforçando a marca

perversa de sistema que tem como fulcro o lucro privatizado, não o ser humano e

muito menos a natureza como tal. Temos condições cada vez mais aprimoradas de

produzir mais e melhor, mas isto não se reverte em benefício coletivo. Ao contrário,

a globalização, em vez de acenar para uma época de encontros positivos de

culturas e civilizações, sinaliza clivagens novas e tanto mais duras, porque, no

fundo, o que se globaliza é a presença cada vez mais avassaladora dos Estados

Unidos no mundo. Este país é a imagem mais típica da sociedade do conhecimento

e talvez por isso mesmo tenha se mantido, até o momento, mais imune às crises

atuais da economia (30). Quando o conhecimento dorme na mesma cama do

capitalismo, o adultério é flagrante.

A crise do emprego tem levado a salientar o papel da educação, porque na mais-

valia relativa é fundamental saber pensar. Entretanto, este saber pensar tem uma

perna só, a formal. Espera-se do trabalhador que maneje conhecimento com perícia

para fins de produtividade, porquanto esta assim exige, sobretudo quando plantada

em processos informatizados. A qualidade total foi porta-voz fidedigna desta

unilateralidade. Enquanto falava,

Início de nota de rodapé

29- KURZ, R. 1996. O colapso da modernização — Da derrocada do socialismo de

caserna crise da economia mundial. Rio de Janeiro, Paz e Terra. KURZ, R. 1997. Os

últimos combates. Petrópolis, Vozes. DEMO, P. 1998a. Charme da exclusão social.

Campinas, Autores Associados.

30- CASTELLS, M. 1997a. The power of identity — The information age: economy,

society and culture. VoI. 2. Oxford, Blackwell. CASTELLS, M. 1997b. The Rise of the

Network Society — The information age: Economy, society and culture. VoI. 1.

Oxford, Blackwell. CASTELLS, M. 1998. End of millenium — The inforrmation age:

economy, society and culture. VoI. 3. Malden (MA), Blackwell.

Fim de nota de rodapé

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pelos cotovelos, da valorização dos “recursos humanos”, o que fez foi elevar a

produtividade em benefício dos empresários e do sistema. No neoliberalismo, a

valorização quase uníssona que se faz de educação tem como razão de ser apenas

a competitividade. Temos aqui exemplo crasso do não saber cuidar: o

conhecimento, nascido do ser humano, não se volta para ele, mas submete-se ao

mercado, e depreda, com tranquilidade cínica, o ser humano e a natureza como tal.

A cidadania representa, no fundo, a voz peregrina dos educadores e de outras

pessoas e entidades que se afinam com posturas éticas, conclamando a

necessidade de qualidade política ao lado da formal.

Como afirma Harding, epistemologia e filosofia da ciência deveriam sempre ser

reconhecidas como tendo dimensões políticas. “As velhas teorias insistiram na

possibilidade e desejabilidade de ciência culturalmente neutra, que seria garantida

pelo seu método distintivo, exercida no contexto unicamente da justificação analítica,

produziria reflexão da ordem da natureza universalmente única válida e perfeita,

descoberta por comunidades de especialistas que poderiam ser isolados em seu

trabalho científico do fluxo social corrente em sua vida pública (e ‘privada’ ). Este

sonho de modelo de conhecimento único e perfeito perdeu-se para sempre sob a

mirada rigorosa das várias escolas da ciência pós-Segunda Guerra Mundial...”

(Harding, 1998: 124). Esta observação ganha em força, porque trabalha bem o pano

de fundo epistemológico da ciência. “Como os estudos de ciência e tecnologia das

últimas cinco décadas clarificaram, as observações estão carregadas de teoria;

nossas crenças formam rede de tal sorte que ninguém está em princípio imune de

revisão; e as teorias permanecem subdeterminadas por toda coleta possível de

evidência para elas. Há sempre muitas outras hipóteses adicionais possivelmente

plausíveis sobre qualquer assunto que ainda não foi proposto, ou que foi

considerado mas talvez prematuramente descartado, e por isso fica não testado em

qualquer momento na história da ciência. Alguma parte menor delas poderia

indubitavelmente compatibìlizar-se com os dados existentes tão bem quanto outros

favorecidos no presente. Ao final das contas, as ciências produzem novas teorias

continuamente. (...) Muitas teorias científicas podem ser consistentes com a ordem

da natureza, mas nenhuma delas consegue ser unicamente congruente...” (p. 126).

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Nunca os seres humanos alcançam entender completamente o que estão fazendo,

porque estão enredados de modo circular nesse processo de compreensão.

Página 61

Embora a ciência moderna tenha se constituído como autoridade máxima do

Ocidente, precisa aprender a valorizar a “standpoint epistemology”, reconhecendo

outros recursos epistemológicos culturais e políticos. Parece óbvio que o

capitalismo, por exemplo, visto pelos trabalhadores provoca outro tipo de análise,

possivelmente mais objetivo, porque proveniente de quem é vítima do sistema, mais

do que parceiro ou dono. Vale o mesmo raciocínio para a natureza: do ponto de

vista dela, se assim se pudesse dizer, a expectativa seria de que não apenas se use

e abuse, mas igualmente se cuide. O conhecimento, pela sua verve desconstrutiva e

já obsessiva no mercado liberal competitivo, gasta, consome, depreda tudo, como se

tudo fosse inesgotável e privatizável.

Surgem gritos de alerta por todos os lados, alguns mais orientados pela ética, outros

pela sustentabilidade do desenvolvi- mento. E particularmente interessante a

“ecopedagogia” ou a “pedagogia da Terra”, de sentido planetário e sustentável,

como quer Gadotti, assinalando a importância — já por razões de sobrevivência

comum sobretudo — da solidariedade coletiva, e levando-se em conta a

necessidade de reduzir as desigualdades sociais, bem como de manejar

cuidadosamente os recursos naturais. A ciência precisa compor-se com o bem

comum, tomando a este como fulcro central, não apenas seus métodos

pretensamente neutros e principalmente sua submissão ao mercado neoliberal.

Parece claro que o argumento provém da urgência em termos imediatos, porque as

condições de vida se tornam insuportáveis para as maiorias, mas, no fundo,

aparecem outras características muito importantes da discussão pós-modema, tais

como: mudanças de paradigma pedagógico, incluindo na aprendizagem a formação

ética e humanista; revisão radical da ciência positivista reducionista, em nome da

razão sensível; redimensionamento do desenvolvi- mento como direito de todos;

valorização da cidadania como centro de educação, não o mercado neoliberal;

reconstituição do reencantamento pedagógico (31), e assim por diante. Em certa

medida, busca-se alternativa para a globalização competitiva que toma a relação de

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mercado ainda mais acirrada, tentando pôr em seu lugar outra capaz de ver o todo e

a parte, a cultura planetária e localizada, o direito de todos e de cada um, a

comunicação total e as identidades multiculturais, as virtualidades onipresentes

Início de nota de rodapé

31- ASSMANN, H. 1998. Reencantar a educação — Rumo à sociedade aprendente.

Petrópolis, Vozes.

Fim de nota de rodapé

Página 62

e a presença do toque direto e terno (32). É fundamental redirecionar o sentido das

oportunidades, hoje afuniladas violentamente para o centro capitalista, para que

possam ser patrimônio comum, não só por razão de sobrevivência, mas mormente

por razão humana.

Neste mesmo espaço, cabe ressaltar também a arte como parte do saber pensar e

cuidar, não tanto para equipar as pessoas de habilidades clássicas ou nobres, mas

principalmente para abrir o horizonte da estética da vida. Tendo em vista que a

competividade instrumentaliza tudo a seu serviço e cristaliza pirâmide ainda mais

íngreme dos povos, será fundamental mostrar outras faces da realidade, sobretudo

aquela aparentemente “sem utilidade imediata”, como é o cultivo da arte. Não é tão

importante como diversão, alternativa, lazer, quanto é essencial como parte

integrante da propedêutica básica: como iniciação a forma de vida mais completa e

humana. E preciso, pois, aninhar a arte no saber pensar para lhe fazer parte

definitiva, não eventual, ocasional ou intermitente, como é o caso geralmente dos

currículos atuais. Ao lado de saber trabalhar, competir, produzir, é fundamental para

o ser humano saber expressar-se esteticamente, comunicar-se com elegância e

graça, dar asas à imaginação e às utopias, viver fantasias e desejos, ver o lado belo

das coisas, em nome da alternativa que alimenta nossa vontade imorredoura de

mudar. Em vez de entendermos a arte como vocação particular de teor supletivo e

algumas vezes suspeito, é mister recuperar a ideia de que a vida é, em seu centro,

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arte. Depois, pode também ser ciência. Coisas tão fundamentais como a felicidade

não encontram eco maior na ciência, mas podem ser realçadas e realizadas pela

sensibilidade à flor da pele, capaz de emprestar ao ser humano dimensão muito

mais ampla e solidária. Ao mesmo tempo, a arte liga-se à cultura e, como patrimônio

histórico, guarda sempre o sentido profundo do cuidar em torno das identidades. A

ciência quer futuro sem passado, porque se orienta apenas pela inovação

desconstrutiva analítica, que a tudo decompõe e substitui. Arte e cultura são, em si

mesmas, provas definitivas da mudança, da capacidade de aprender, mas não se

descolam da história, do lugar, do contexto. Mal entendidas, podem puxar para trás,

mas, bem entendidas, iluminam o futuro e o mantêm humano.

Início de nota de rodapé

32- TORRES, C. A. 1 998. Democracy, education, and Multiculturalism —

Dilemmas (f citizenship in a global world. New York, Rowman & Littlefield

Publishers, lnc.

Fim de nota de rodapé

Página 63

6

SABER INOVAR

Saber pensar inclui certamente a capacidade de dar conta de sociedade marcada

por profundas inovações, provocadas sobretudo pela trajetória científica e

tecnológica da humanidade. Apressamos o ritmo do desenvolvimento nos últimos

tempos, chegando a tomar-se a velocidade das mudanças algo já obsessivo, como

diz Gleick (33). Esta marca mostra, de um lado, que podemos, cada vez mais,

monitorar a evolução, mas indica, de outro, que podemos ter tomado o bonde

errado, porque conhecimento sem sabedoria produz facilmente becos sem saída.

Passamos a inovar por inovar, sobretudo a inovar ao sabor do mercado competitivo.

Assim, o que nos trouxe a consciência crítica também nos embota, quando os

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interesses privilegiados determinam o rumo das coisas. Não só somos candidatos

ao estresse, como sobretudo perdemos o ritmo humano de mudar, que, para ser

mais profundo, precisa ir mais devagar. Glaxton, em tom de brincadeira, chama a

atenção para o excesso de pressa na aprendizagem, e compara a lebre com a

tartaruga: esta anda devagar, faz as coisas com calma, vive muito e tem o sentido

da profundidade, enquanto a lebre anda depressa, salta por cima das coisas, em

nada se detém (34).

Início de nota de rodapé

33- GLEICK, J. 1999. Faster — The acceleration of iust about everything. New York,

Pantheon Books.

34- GLAXTON, G. 1999. Hare brain — Tortoise mind — Why intelligence increases

when you think less. N. Jersey, The Ecco Press, Hopewell.

Fim de nota de rodapé

Página 64

No subtítulo de seu livro está a ideia jocosa de que a inteligência aumenta se

pensarmos menos, para indicar que tudo tem seu ritmo próprio, não adiantando

nada imitar, por exemplo, a velocidade do computador. Nossa lentidão é o preço da

profundidade hermenêutica, da capacidade de estabelecer padrões complexos, de

errar e corrigir, de ver mais longe e fundo.

Confunde-nos a constatação constante de que instituições destinadas a promover a

inovação sejam tão reacionárias, como a escola e a universidade. Aplicam a força

desconstrutiva do conhecimento aos outros, mas jamais a si mesmas. Alimentam

contradições performativas homéricas, enquanto se vendem como reis da lógica.

Neste sentido, saber pensar significa manejar coerentemente a inovação,

começando pela capacidade própria de se inovar. Inovar implica inovar-se, por

coerência lógica mínima. Mas isto não basta, porque os meios não são os fins. E

mister sempre conclamar a ética dos fins: inovar para que e para quem? Estamos

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diante de um mundo que vai mudar com velocidade cada vez maior. Basta observar

a perspectiva analisada por Kurzweil, que aponta para a época das “máquinas

espirituais”, prevendo inovações fantásticas até o término do próximo século (35). O

computador tomará conta de nossas vidas, e, tornando-se equipamento

microscópico, poderá ser implantado ou carregado conosco sem dificuldade,

resolvendo todos os problemas de in- formação, até mesmo de memória, uma vez

que consigamos “escanear” o cérebro. Esta avalanche passará sobre a escola e a

universidade e poderá mudar completamente a aprendizagem, ainda que estejamos

longe de resolver a questão da formação. De todos os modos, já estamos

convencidos de que o futuro da educação estará na teleducação, na qual a presença

virtual concorrerá com a presença física, sem que uma substitua a outra. Todos

terão o direito de aprender onde estiverem em qualquer tempo e lugar.

É interessante notar que ainda há vozes, mesmo nos Estados Unidos, contra tais

inovações, como é o caso de Stoll. Fixa-se na ingenuidade das promessas vazias do

culto da computação, também porque até hoje não teria ultrapassado a finalidade

Início de nota de rodapé

35- KURZWEIL, R. 1999. The age of spiritual machines — When computers exceed

human intelligence. New York, Viking.

Fim de nota de rodapé

Página 65

precípua de diversão para a maioria das pessoas (36). Pretende ser cético, não

cínico, pois percebe que esta inovação não tem volta. Há diferença total entre

acesso à informação e capacidade de interpretação, com base em pensamento

crítico. Ademais, computador não pode substituir bom professor, nem mesmo os

maus, porque estes deveriam ser substituídos por bons, não pelo computador. A

alegria da aprendizagem nada tem a ver com aprendizagem engraçada, como se

isto pudesse evitar a necessidade de saber pensar. O mau uso do computador leva

a ver ciência como caixa preta mágica, em vez do horizonte mais próprio do

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pensamento crítico. “A tecnologia promete atalhos para graus mais elevados de

aprendizagem sem dor” (Stoll, 1999: 11). A ordem é fazer da aprendizagem coisa

divertida. Contudo, “a maior parte da aprendizagem não é divertida. Toma trabalho.

Disciplina. Engajamento, tanto do professor quanto do aluno. Responsabilidade —

tem de fazer sua tarefa de casa. Não há atalho para educação de qualidade. E a

recompensa não é surto de adrenalina, mas satisfação profunda, chegando

semanas, meses, anos depois” (p. 12). Computadores levam os jovens a distanciar-

se de ler, escrever e aprender. “Substituem reflexão e pensamento crítico por

respostas rápidas e ação instantânea. Pensar, porém, envolve originalidade,

concentração e intenção” (p. 13).

Stoll busca opor-se à ideia de transformar aprendizagem em divertimento, pois isto

denigre as coisas mais importantes que podemos fazer na vida: aprender e ensinar.

Barateia processo e produto: professores dedicados tentam divertir, estudantes

esperam aprender sem trabalhar, e a escola se torna jogo de computação.

Aprendizagem não gira em tomo de adquirir informação, maximizar eficiência,

divertimento. Gira em torno do desenvolvimento da capacidade humana. Para ele,

livros são sempre mais importantes que Internet. “Graças à eletrônica digital, os

estudantes obtêm respostas sem manipular conceitos: resolver problemas toma-se

apertar botões. Não é necessário compreender como formular quantidades

abstratas. Antes, vai-se diretamente de números para respostas. Calculadoras

oferecem respostas com mínimo de pensamento” (p. 75). Em particular, critica os

abusos da aprendizagem a distância, que tende a reduzir-se a proposta de

comercialização

Início de nota de rodapé

36- STOLL, C. 1999. High-tech heretic — Why computers don’t belong in the

classroon and other reflections by a computer contrarian. New York, Doubleday.

Fim de nota de rodapé

Página 66

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da educação. Argumenta que a aprendizagem a distância é tecnologicamente

baseada, relegando a autêntica, presencial, social- mente baseada. Não é certo que

informação seja poder. Se assim fosse, o bibliotecário seria rei... Confunde-se

informação com conhecimento (que supõe estudo, ideias, experiência, maturidade,

julgamento, perspectiva e reflexão). Poder está mais ligado ao manejo de

habilidades sociais. Políticos têm poder e são conhecidos como mal informados. O

mundo da computação nas escolas nos impõe obsolescência planejada, em

particular contra o professor e em nome de sobrecarga inaudita de informação.

“Enquanto existe um golfo entre dados e informação, há vasto oceano entre

informação e conhecimento. O que abre os desejos em nossos cérebros não é

informação, mas ideias, invenções e inspiração. Conhecimento — não informação —

implica compreensão. E por trás do conhecimento está o que procuramos:

sabedoria. Triste- mente, nossa sociedade da informação valoriza dados mais que

experiência, maturidade, compaixão e esclarecimento” (StolI, 1999: 186).

“Fundamentalmente, máquinas de busca e software de indexação automatizada

procuram por palavras, não por conceitos. Não sabem nada sobre nuances da

linguagem e contexto” (p. 191). Por isso, a Internet representa “oceano de

mediocridade”.

Embora seja surpreendente ouvir crítica tão contundente a estas alturas do começo

de novo milênio, é mister não responder a extremo com extremo oposto. Na

verdade, o problema reside substancialmente no abuso da informática em educação,

donde decorrem inúmeras expectativas banalizadas, todas girando sobre o milagre

da informação multiplicada. Está certo Stoll quando vitupera esta credulidade,

porque informação não implica formação. Sacralizada abusivamente, escamoteia

formação. E o caso comum na inteligência artificial de confusão entre

processamento de dados ou manipulação mecânica de símbolos e aprendizagem. A

educação a distância facilmente confia mais na distância do que na educação,

utilizando abordagens instrucionais típicas. Entretanto, tudo isto não muda a

tendência histórica já avassaladora: o futuro da educação está na teleducação. A

virtualidade dos processos vai se impor definitivamente, também porque a presença

virtual é um tipo de presença, não de ausência. Uma não substitui a outra, nem uma

precisa ser mais ou menos emocional que a outra. Namoros virtuais podem ser tão

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obsessivos como os físicos. A virtualidade facilita um tipo de presença a distância

que antes pareceria impossível. Para aprender bem não é necessário estar

Página 67

na frente do professor, porque o processo reconstrutivo carece de pesquisa e

elaboração própria, sob orientação sempre cuidadosa do professor, e isto pode ser

realizado virtualmente. Disso não resulta que a pedagogia possa prescindir da

presença física ou que esta seja necessariamente superior à virtual, e, sim, que

ambas fazem parte do mundo educativo daqui para a frente. Pensando bem, sempre

foi assim: quando nossos ancestrais deixavam nas cavernas seus desenhos, faziam

comunicação virtual e estão presentes em nós até hoje. Nova é apenas a

concorrência que a presença virtual pode fazer atualmente com a presença física.

Mas há, por outro lado, suas vantagens, a começar pela possibilidade de estudar a

distância. Não será mais o caso de exigir que as pessoas, para poderem avançar

em suas trajetórias educacionais, tenham que abandonar sua cidade, desorganizar

sua família, perder o emprego, mudar de vida. O direito de aprender será

reconhecido como direito humano fundamental, em qualquer tempo e lugar. Outra

vantagem é o acesso à informação, que parece estar já resolvido. Isto, todavia, não

pode impedir a crítica contra o excesso de informação e, sobretudo, contra a

confusão bisonha entre informação e formação. Embora a eletrônica possa esconder

uma tendência homogeneizante, exacerbada pelos monopólios do mercado, permite

também tratamentos mais individualizados, substituindo-se, entre outras coisas, as

aulas tradicionais reprodutivas. Stoll por vezes deixa transparecer atitude

tradicionalista, quando, por exemplo, valoriza mais texto que imagem ou quando

teme a substituição de professores. Esta resistência já faz pouco sentido, primeiro,

porque é possível trabalhar o pensamento crítico através da imagem, como fazem

os grandes filmes, e, segundo, será substituído o mau professor, aquele que apenas

dá aula. Com efeito, professor que apenas reproduz conhecimento disponível é peça

de museu. O outro, todavia, com a função de orientar, avaliar, motivar o aluno,

continua tão essencial quanto sempre foi. Não há computador que o possa

substituir.

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Embora Stoll critique Tapscott, acusando-o de vender clichês vazios, parece que

este aponta para inovações fundamentais no campo da aprendizagem, que vão se

afastar cada vez mais do instrucionismo. A geração digital poderá ser a responsável

por mudanças centrais na escola e na universidade, porque, tendo toda a

informação já nas mãos, exige os passos seguintes mais

Página 68

substanciais da aprendizagem: pesquisa, elaboração própria, trabalho em rede,

flexibilidade de horário e lugar. Por vezes, penso que Tapscott exagera nesta

expectativa, porque não é tão comum assim que esta juventude queira tanto estudar

(37). Todavia, sinaliza tendência fundamental e que vai aparecendo também na

educação a distância em autores que percebem ser urgente ultrapassar propostas

meramente instrucionais, como é o caso de PalIoff e Pratt, com suas ideias em tomo

da construção de comunidades aprendentes (38). “Computer mediated distance

learning” (aprendizagem a distância mediada pelo computador) exige a presença do

professor orientador, supera a sala de aula (mas não para fazer a mesma coisa) e

conta com participação ativa dos alunos. Definem esta teleducação pelos seguintes

tópicos: a) separação do professor e do aluno durante pelo menos a maioria do

processo instrucional; b) uso da mídia educacional para unir professor e aluno e

para trabalhar o conteúdo do curso; c) provisão de comunicação de duplo caminho

entre professor, tutor ou agência educacional e o aluno; d) separação do professor e

do aluno no espaço e no tempo; e) controle deliberado da aprendizagem pelos

estudantes, mais do que pelo orientador a distância. Já não existe perito que

direciona o saber a partir de um lado apenas: “Ponto chave para o processo de

aprendizagem são as interações entre os próprios estudantes, as interações entre

faculdade e estudantes e a colaboração na aprendizagem que resulta de tais

interações. Em outras palavras, a formação da comunidade de aprendizagem

através da qual o conhecimento é partilhado e o significado é cocriado constitui a

base para os resultados exitosos da aprendizagem” (Palloff & Pratt, 1999: 5).

É certamente difícil evitar o fascínio do mundo tecnológico, como bem aponta

Naisbitt39, e isto é patente também em Pallof e Pratt, que, diga-se de passagem,

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ainda usam, por vezes, terminologia obsoleta, ligada, por exemplo, à aquisição do

conhecimento e ao instrutor. Naisbitt reconhece a intoxicação tecnologica

Início de nota de rodapé

37- TAPSCOTT, D. 1998. Growing up digital — The rise of the net generation. New

York, McGraw-Hill.

38- PALLOFF, R. M. & PRATT, K. 1999. Building learning communities in

cyberspace — Effective .strategies for the online classroom. San Francisco, Jossy-

Bass Publishers.

39- NAISBITT, J. 1999. High tech, high touch — Technology an our search for

meaning. New York, Broadway Books.

Fim de nota de rodapé

Página 69

nos Estados Unidos, que leva, entre outras coisas, a deixar de lado as

consequências da tecnologia. A maioria estaria “reconhecendo e publicamente

aceitando que, no melhor dos casos, a tecnologia apoia e melhora a vida humana, e

admoestando que, no pior dos casos, aliena, isola, distorce e destrói”, dando a

entender que já não se tem alternativa. O melhor que se pode fazer é “cuidar do

poder da tecnologia do que rejeitar (como fazem os assim ditos tecnófobos), ou

cegamente abraçar (como fazem os assim ditos tecnófilos”) (Naisbitt, 1999: 4). Os

sintomas da intoxicação seriam: a) favorecemos o que é rápido, desde religião até

nutrição; b) tememos e adoramos a tecnologia; c) embaralhamos a distinção entre o

real e o imaginário; d) aceitamos a violência como normal; e) amamos a tecnologia

como brinquedo; f) vivemos nossas vidas distanciados e distraídos.

Quanto ao primeiro sintoma, nos curvamos ao que é rápido, da religião à nutrição. A

América está ficando mais religiosa e mística. “Ironicamente, a tecnologia promete

nos desintoxicar — desde as cadeiras de massagem até os sons enlatados da

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natureza — enquanto intoxica; as propagandas estão abarrotadas com promessas

da tecnologia para simplificar nossas vidas complexas, aliviar o estresse e acalmar

nossos nervos” (p. 7). Com respeito ao segundo sintoma, tememos e adoramos a

tecnologia, dentro de debate fortemente polarizado e por vezes extremista, tal qual

seria a visão da Internet como salvação de tudo, segundo Negroponte, de um lado,

e, do outro, dos que são contra, aludindo que tecnologia está fazendo lavagem

cerebral nas crianças (brain training). Entre outros, Rijkin chama a atenção para não

deixar o gênio biotecnológico sair da garrafa. O terceiro sintoma indica que

embaralhamos a distinção entre o real e o imaginário: “O número um da diversão na

América é hoje a mídia, e o número um do gênero é a violência”. é certamente muito

preocupante que sobretudo crianças vivam brincando com o fogo literalmente, ao

manejarem jogos que exploram a violência, em si imaginária — como nos faroestes

onde todos atiram, se matam, ninguém morre e o galã acaba sempre vencendo —,

mas que pode facilmente passar para a vida real. Quanto ao quarto sintoma,

aceitamos a violência como normal, destacando a combinação de tecnologia militar

com brinquedos. O quinto sintoma reflete que amamos a tecnologia como brinquedo:

“A afluência financia o jogo; os americanos recentemente listaram divertir-se como

sua mais alta prioridade, seguido de perder peso e organizar-se”

Página 70

(Naisbitt, 1999: 16). Destaca-se a similaridade entre a indústria do brinquedo e a

eletrônica, um pacto que parece definitivo. O sexto sintoma anota que vivemos

nossas vidas distanciados e distraídos, aparecendo como exemplos mais nítidos a

Internet e o telefone celular. “As campainhas e assobios da tecnologia são

sedutores, mas não temos plena consciência de como nos distanciam e nos

distraem de nossas próprias vidas; poucos de nós pararam para perguntar o que os

telefones celulares, jogos eletrônicos, televisão ou câmeras acrescentam para ou

detratam a qualidade de vida de nossa experiência humana” (p. 21). Este

embevecimento tem por conseqüência nos submeter ainda mais a tais

circunstâncias.

A partir dessa análise, Naisbitt busca a alternativa do “high touch” (alto toque). “Por

causa do passo intromissor da mudança tecnológica, alta tecnologia e alto toque são

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mais cruciais hoje do que no início dos 80, quando se introduziu isto nas

“Megatendências” (p. 23). Pretende captar esta evolução na própria variação na

definição de tecnologia: no fim dos 60 — tecnologia era objeto, coisa; no fim dos 80

era também algo relacionado com a vida, a sociedade e o ambiente. De um lado,

temos a “high tech”, sinalizando avanços futuros, inovações, progresso, mas

decaindo em controle. De outro, conclama o “high touch”, para recuperar o humano

da vida humana, abraçando as forças primevas da vida e da morte, reconhecendo

tudo que é maior que nós. High Tech — High Touch são tomados como “lente

humana. Abraçam a tecnologia que preserva nosso jeito de ser humano e rejeitam a

tecnologia que se intromete em nós. Reconhecem que a tecnologia é parte integral

da evolução da cultura, o produto criativo de nossa imaginação, sonhos e aspirações

— e que o desejo de criar novas tecnologias é fundamentalmente instintivo” (p. 26).

O autor atribui importância especial ao complexo militar, primeiro, porque representa

avanços tecnológicos impressionantes, e, segundo, porque normaliza a violência e a

superioridade. “Na América, as crianças estão sendo levadas para a guerra por volta

dos sete anos de idade” (p. 65). E isto permite dizer que a América está

entrincheirada em cultura da violência (p. 66). Cultura da violência significa que

“vivemos em cultura eletrônica que negamos ser real e cremos ser divertimento” (p.

83). “Se a televisão é o terceiro pai, então o computador poderá ser o quarto” (p. 88).

“Perda de senso (desensitization) pela violência e aceitação cultural do imaginário

violento está fazendo difícil para as pessoas reconhecer perigo real” (p. 90). Ocorre,

com

Página 71

isso, fenômeno sociobiológico que chama de “compassion fatigue” (fadiga da

compaixão). A mescla atordoante de guerra e televisão produz a síndrome de querer

se tornar célebre por quinze minutos, aprontando algum tiroteio mortal. A sociedade

se sobressalta perante a selvageria, e aí aparece o jogo de empurra sobre quem é

culpado. Para Clinton são os pais, sem perceber que o problema mais básico é da

própria sociedade e de suas indústrias de diversão, que teriam que ser diretamente

responsabilizadas. A Associação Médica Americana já recomenda: “a) não use TV,

rádio, jogos eletrônicos, jogos de computador e vídeos como baby-sitters; b)

mantenha longe da cama das crianças TV e jogos eletrônicos e os desligue durante

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as refeições; c) ensine as crianças sobre propaganda e influência da mídia; d)

imponha diretrizes sobre o que é apropriado ver ou não; e) dê o bom exemplo

limitando seu próprio uso da mídia e advogando publicamente por programas mais

sadios para crianças” (Naisbitt, 1999: 101). Corresponde às escolas, por sua vez,

trabalhar adequadamente a alfabetização pela mídia, entendendo-se aí não só o uso

da mídia para suporte educativo, mas sobretudo a necessária educação para

manejá-la pedagogicamente.

No vasto campo das tecnologias, o Autor destaca os avanços na esfera da genética,

indicando três saltos imponentes nos últimos tempos: de Galileu para Darwin e deste

para o DNA. “O mapeamento e sequenciamento do DNA e as tecnologias que este

conhecimento propicia alterarão permanentemente nossa compreensão do próprio

homem”. De uma parte, “as tecnologias genéticas estão apresentando talvez o maior

desafio para as fés religiosas tradicionais” (p. 115), enquanto, por outra parte,

“superarão todas as outras tecnologias, incluindo tecnologias da informação, no

próximo século” (p. 1 17). Para não ficarmos apenas na defensiva ou na euforia,

urge fomentar debate público, pois a sabedoria está no diálogo aberto. As

esperanças de terapia genética podem ser suplantadas por desatinos já muito

conhecidos na história. Citam os riscos da euforia, a exemplo de um seminário

recente: “Aparecendo como painel perante auditório repleto no campus da UCLA

(40) na primavera de 1998, oito prestigiosos cientistas e dois especialistas em

bioética anunciaram ao mundo que em duas ou três décadas, a humanidade teria o

poder de dirigir sua própria

Início de nota de rodapé

40- UCLA: Universidade da Califórnia, em Los Angeles.

Fim de nota de rodapé

Página 72

Evolução”. “Estamos falando de intervenção no fluxo da informação genética de uma

geração para a próxima. Estamos falando sobre a relação de seres humanos com

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sua herança genética”, anunciava Gregory Stock, um dos organizadores do fórum

(p. 123). O Autor alerta, porém, que Darwin tomou a evolução das mãos de Deus,

mas não a pôs nas mãos dos humanos. Inovar já não é novidade. Saber inovar,

entretanto, continua desafio mais novo que nunca.

Página 73

7

SABER ACREDITAR

Perante o racionalismo moderno, saber acreditar soa contraditório, porquanto

ciência mostraria a direção contrária da dúvida e do questionamento. Todavia, se

Iembrarmos que conhecimento científico é apenas olhar, por mais importante e

avassalador que seja hoje, há coisas na vida que precisamos cultivar para além

daquelas que caem sob a lupa metodológica da ciência. Não se trata aqui de

sustentar esoterismos ou de buscar originalidades forçadas, mas de abrir espaço

para a autocrítica científica, por pura questão de coerência. Um dos autores que

mais se interessam por este horizonte, mesmo chamando-se abertamente de cético

ou agnóstico, é Shermer, ao buscar entender por que tantas pessoas acreditam em

Deus, dentro do contexto de sociedade marcada pela secularização e pela

intensidade do conhecimento41. Nos Estados Unidos, 40% dos cientistas acreditam

em Deus e vida após a morte, sendo que a maioria das pesquisas mostram que

mais de 90% dos americanos acreditam em Deus.

A razão principal para crer em Deus ainda é o velho argumento cosmológico ou da

engenharia perfeita: Boa engenharia, beleza natural, perfeição e complexidade do

mundo ou universo

Início de nota de rodapé

41- SHERMER, M. 1999. How we believe — The search of God in an age of science.

New York, W. H. Freeman and Company.

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Fim de nota de rodapé

Página 74

nos compelem a pensar que não poderia ter aparecido sem engenheiro inteligente.

Em outras palavras, as pessoas dizem que creem em Deus porque a evidência de

seus sentidos assim mostra. Ao contrário do que a maioria das religiões prega

acerca da necessidade e importância da fé, a maioria acredita com base em razão

(Shermer, 1999: XIV). Esta é tradição tipicamente ocidental: buscar apoios racionais

para a fé, ainda que, no fundo, o crente se apegue mesmo à fé. Frequentemente,

todavia, surge a dificuldade de estudantes aceitarem que o único propósito da

educação seja desenvolver mentes questionadoras, porque esperam também

respostas, por vezes sólidas respostas, ou certo direcionamento (p. 6). Percebem

que o questionamento científico é essencial para a metodologia da ciência, mas que

não dá conta de tudo na vida. Na vida também é mister saber acreditar. Um dos

espaços mais próximos em que esta necessidade aparece é o do engajamento

político e que as pesquisas sobre emoção facilmente apontam42. A pessoa

politicamente engajada deixa-se levar pela ideologia, mais do que por argumentos

racionais, porque o sentido de pertença e envolvimento lhe parece mais essencial.

Surge o fenômeno da entrega, tipicamente emocional, quando experimenta a

intensidade do fenômeno participativo em profundidade como algo que estaria além

do controle43. Tal entrega pode sempre indicar relativa ingenuidade — já que todo

movimento político, partido ou associação possuem inúmeros defeitos —, mas, sem

isto, ficaríamos com o pé atrás e acabaríamos sem participar plenamente. A

envolvência plena tende a ceder no questionamento, compensando-se na

intensidade participativa. Tal- vez ocorra isto na felicidade: não é possível ser felìz

em meìo a tantas atribulações da vida, se não formos algo ingênuos. Quem quer ver

tudo, questionar tudo, nunca chegará a tranquilizar-se. Neste sentido, seria possível

aventar que consciência crítica é essencial para a ciência, mas problemática para a

felicidade. Ciência é arte do solúvel, enquanto religião do insolúvel, e a política do

possível.

Shermer propõe postura agnóstica, distinguindo entre afirmação acerca do universo

e afirmação acerca de crenças pessoais:

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Início de nota de rodapé

42- DAMASIO, A. 1999. The feeling of what happens Body and emotion in the

making of consciousness. New York, Harcourt Brace e Company.

43- KATZ, J. 1999. How emotions work. Chicago, The University of Chicago

Fim de nota de rodapé

Página 75

“Como afirmação acerca do universo, o agnosticismo pareceria ser a posição mais

racional a tomar por conta dos critérios da ciência e da razão, pelas quais Deus é

conceito incognoscível. Não podemos provar ou desaprovar a existência de Deus

através de evidência empírica ou prova dedutiva. Por isso, a partir de posição

científica ou filosófica, teísmo ou ateísmo são, ambos, posições indefensáveis como

afirmações acerca do universo” (Shermer, 1999: 8). Entretanto, agnosticismo é

apenas método, orientado por princípio racionalista: segue a razão e não aceita

nada como finalmente certo. “Não há nenhum experimento concebível que poderia

confirmar ou desconfirmar a existência de Deus”, pois “Deus é insolúvel” (p. 10). A

previsão feita no início do século 20 pelos cientistas sociais de que, com o advento

da educação pública universal e o surgimento da ciência e da tecnologia, a cultura

se tomaria secularizada e a religiosidade decairia dramaticamente, foi refutada

completamente, já que a religiosidade continua a aumentar no fim deste e para

dentro do próximo século. No mercado aberto de religiões, retorna sempre o papel

importante de suporte ou de seu lado compensatório. “A humanidade foi nascida

com duas doenças incuráveis: a vida que inevitavelmente morre, e a esperança que

sugere não poder ser a morte o fim” (p. 23). Por outro lado, a defesa intransigente da

ciência moderna — o cientificismo — não passa de espécie de fé secular ou religião

às avessas. “De fato, ciência é tipo de mito, se virmos mitos como estórias sobre nós

mesmos e nossas origens” (p. 29).

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O Autor tenta buscar resposta biológica e evolucionária para o que chama de

“máquina de crer”. O ser humano é visto como “animal que cata padrões” na

natureza, como estratégia de controle de fenômenos dinâmicos que facilmente nos

escapam ao controle. Vamos atrás de regularidades do acontecer, das recorrências

que sempre voltam, daquilo que pode ser esperado, em nome da segurança que

pretendemos para nossas vidas. E descobrimos padrões que existem e outros que

não existem. Estes passam a fazer parte do pensamento mágico. Segundo o Autor,

metade dos americanos acredita em astrologia. Parece que, geneticamente falando,

“somos montados (hardwired) para pensar magicamente” (p. 35). Aproxima-se dos

psicólogos evolucionários: “A psicologia evolucionária está baseada no

reconhecimento de que o cérebro humano consiste de vasta coleção de

equipamentos computacionais funcionalmente especializados, que evoluiu para

resolver problemas

Página 76

adaptativos regularmente encontrados pelos nossos ancestrais

caçadores/coletadores. Porque os humanos compartilham arquitetura evoluída

universal, todos os indivíduos comuns desenvolvem conjunto distintivamente

humano de preferências, motivos, quadros conceituais referenciais participados,

programas de emoção, procedimentos raciocinantes voltados para conteúdos

específicos, e sistemas de interpretação especializada — programas que operam

por baixo da superfície da variabilidade cultural expressa, e cujos propósitos

constituem definição precisa da natureza humana (Shermer, 1999: 36). Segundo

Mithen, “o passo crítico na evolução da mente moderna foi a passagem de mente

projetada como canivete do exército suíço para outra dotada de fluidez cognitiva, de

tipo de mentalidade especializada para generalizada. Isto possibilitou às pessoas

projetar ferramentas complexas, criar arte e acreditar em ideologias religiosas.

Sobretudo, o potencial para outros tipos de pensamento que são críticos para o

mundo modemo pode ser depositado à porta da fluidez cognitiva”. Todavia, esta

máquina de crer tem dupla face: “sob certas condições leva ao pensamento mágico,

enquanto sob outras circunstâncias leva ao pensamento científico” (p. 37).

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“Os humanos evoluíram para tomar-se criaturas treinadas em catar padrões.

Aqueles que foram os melhores em achar padrões deixaram para trás maior prole.

Somos seus descendentes. O problema de catar e achar padrões é conhecer quais

são significativos e quais não. Infelizmente, nossos cérebros não são sempre bons

para determinar a diferença. A razão é que descobrir padrão não significativo

usualmente não traz nenhum mal e pode até fazer algum bem reduzindo a

ansiedade em certos ambientes. Assim, fomos deixados com o legado de dois tipos

de pensar erros: Erro Tipo 1: acreditar em falsidade, e Erro Tipo 2: rejeitar verdade.

Em alguns casos, nenhum desses erros nos leva automaticamente a sermos mortos,

de modo que podemos viver com eles. E assim o fazemos, na base diária

testemunhada pelas pesquisas sobre estatísticas do pensamento mágico. A

máquina de crer é mecanismo evoluído para ajudar-nos a sobreviver, pois em

adição aos erros de Tipo 1 e 2, cometemos também o que poderíamos chamar

Lance Tipo 1- não acreditar em falsidade, e Lance Tipo 2: acreditar em verdade.

Parece razoável argumentar que o cérebro consiste de módulos, ao mesmo tempo,

específicos e genéricos, e que a máquina de crer é processador de domínio geral.

Com efeito, é dos mais gerais de todos os módulos, já

Página 77

que seu cerne é a base de toda aprendizagem. Afinal das contas, temos de acreditar

em algo sobre nosso ambiente, e tais crenças são aprendidas pela experiência. Mas

o processo de formar crenças é montado genericamente” (Shermer, 1999: 38).

Neste sentido, “se minha hipótese for correta — que os humanos desenvolveram

máquina de crer, cuja função é catar padrões e encontrar relações causais, e no

processo fazem erros no pensamento — então poderíamos encontrar evidência para

tal máquina em nossos antepassados, bem como em nós mesmos” (p. 39). Desde

logo, é importante para reduzir e controlar a ansiedade, bem como para a

necessidade de compreender e monitorar os ambientes físicos e sociais, ainda que

o pensamento use chão mágico e causal. “Catamos e achamos padrões porque

preferimos ver o mundo como ordenado, em vez de caótico, e é ordenado o

suficiente para que tal estratégia funcione. Ironicamente, pareceria que fomos

montados pela natureza para ver na natureza padrões de nossa montagem” (p.62).

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Em pesquisas empíricas recentes sobre crença em Deus nos Estados Unidos,

Shermer visualiza alguns traços característicos, entre eles:

a) educação tem papel crucial na religiosidade (44) comparando duas

pesquisas, uma entre membros de sociedade de céticos, e outra mais geral, aparece

que no primeiro grupo só 18% acre- ditavam em Deus, enquanto no segundo, 64%;

neste a descrença caía de 70% para 25%;

b) a razão mais dada para a crença em Deus é sempre o argumento racional da

boa engenharia do universo; entretanto, quando se pergunta pelo motivo pelo qual

as outras pessoas acreditam em Deus, este argumento vai para último lugar e ocupa

o primeiro a alusão emocional do conforto espiritual;

c) tratando-se de meras tendências, pode-se dizer que os três preditores mais

fortes da religiosidade e crença em Deus seriam: estar sendo criado religiosamente,

gênero (mulher) e religiosidade dos pais; por outro lado, os três mais fortes

preditores de menor religiosidade e descrença em Deus seriam: educação, idade,

conflito com os pais;

d) em termos de personalidade, a crença em Deus se correlaciona mais

facilmente com postura convencional, conservadora,

44- Distingue entre religião — expressão institucional — e religiosidade —

necessidade básica humana.

Página 78

de tal sorte que seria possível notar correlação inversa entre personalidade aberta e

maior religiosidade;

e)analisando os dados, aparecem dois grupos de influência: racionais (engenharia

inteligente do universo, sem Deus não haveria moralidade, existência do mal e do

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sofrimento, e explicações científicas) e emocionais (conforto, fé e busca de

significado para a vida); há forte correlação com gênero: “os homens tenderam a

justificar sua crença com razões racionais; mulheres tenderam a justificar sua crença

com razões emocionais” (Shermer, 1999: 83);

f)para o fato da inversão de atribuições, recorre a explicações psicológicas baseadas

no “viés nas atribuições” (p. 85): tratando com outras pessoas, por exemplo,

poderíamos atribuir nosso bom êxito ao trabalho duro e à inteligência, enquanto que

a fortuna de outra pessoa é atribuída à sorte ou circunstância (p. 85); “como animais

que catam padrões, o assunto da aparente boa engenharia do universo e a

percebida ação de inteligência superior nas contingências do dia-a-dia, é justificação

intelectual poderosa para a crença. Mas atribuímos as crenças religiosas de outras

pessoas a necessidades emocionais” (p. 86);

g) tendemos a procurar bases racionais para a fé: “por sermos seres racionais,

pensantes, a fé nunca parece suficiente para a maioria de nós. Queremos saber que

estamos certos e no mundo ocidental saber que algo é verdadeiro, é prová-lo

através da razão e da ciência, Iógica e empirismo. Assirn, os argumentos em favor

da existência de Deus e da origem e autoridade divina na religião judaico-cristã são

fundados na linguagem da ciência e da razão, e tem havido literalrnente dezenas de

milhares de livros escritos com esta verve” (p. 91).

Shermer rejeita todos os argumentos já anotados em favor da existência de Deus,

com base em sua postura cética: não é possível nem provar, nem desaprovar esta

alegação, porque foge aos instrumentos metodológicos da ciência. Por isso, admite

que “ciência e religião são, até ao presente, esferas vastamente separadas de

conhecimento, divididas por, antes de mais nada, diferença nas metodologias.

Ciência é processo de pesquisa voltado para construir corpo testável de

conhecimento constantemente aberto à rejeição ou confirmação; suas verdades são

provisórias, fluidas e mutantes. Religião é a afirmação de conjunto de crenças

voltado para providenciar moral e significado; suas verdades são finais, confirmadas

pela fé” (p. 123). Isto, entretanto, não pode ocultar a importância da religião na vida

das pessoas, sobretudo como

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Página 79

recurso humanista e ético. Ademais, o ser humano é animal contador de histórias,

como traço genético. Tomamos os fatos da vida cotidiana e os tecemos como

narrativa, sobretudo para fazermos boa figura diante dos outros e interpretarmos a

realidade. A capacidade de interpretar é “provavelmente o mecanismo mais

surpreendente do ser humano” (Shermer, 1999: 143). Com isto buscamos a

“consiliência das induções” ou da “convergência da evidência”, como diria Wilson, ao

apontar as regras epigenéticas, que nada mais são que os algoritmos do

crescimento e diferenciação em termos evolucionários (45). “Religião é instituição

social que evoluiu como mecanismo integral da cultura humana para criar e

promover mitos, encorajar o altruísmo e o altruísmo recíproco, e para revelar o nível

de comprometimento para cooperar e manter relações recíprocas entre os membros

da comunidade” (p. 162). O ser humano tem propensões beligerantes

evolucionariamente claras, codificadas geralmente na ideia do “gene egoísta”, e a

religiosidade traria outras dimensões fundamentais da vida, que incluem também dar

conta de nossa contingência.

A visão da religiosidade por um cético será certamente cética. Mas é interessante o

senso de limite, o que mostra ceticismo equilibrado. Na década de 70, causou

grande impressão no mundo acadêmico a reação de Horkheimer, que, no fim da

vida, voltando ao judaísmo após uma vida toda descrente na Escola de Frankfurt,

proclamava que “política, sem teologia, seria puro negócio”. Seria impossível

discriminar em favor da ética apenas com base científica. Hoje isto parece mais

visível e mesmo cogente, diante dos riscos que a sociedade do conhecimento traz, a

par do progresso (46). Essa mesma ideia está contida na busca de Varela, por

exemplo, de combinar a ciência europeia com fundamentos da filosofia budista, com

o objetivo de alcançarmos visão mais integral da realidade e da vida (47). Ao mesmo

tempo, saber acreditar não precisa implicar

Início de nota de rodapé

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45- WILSON, E. O. 1998. Consilience — The unity of knowledge. New York, Alfred

A. Knopf.

46- HORKHEIMER, M. 1971. Die Sehnsucht nach dem ganz Anderen. (Entrevista

com comentário de H. Gumnior). Stuttgar, Furche Verlag.

47- VARELA, F. J. et alii. 1997. The embodied mind — Cognitive science and human

experience. Massachusetts, The MIT Press, Cambridge. VARELA, F. (ed. e

narrador). 1999. Dormir, soñar, morir — Nuevas conversaciones con el Dalai Lama.

Santiago, Dolmen. VARELA, F. J. & HAYWARD, J. W. (ed.). 1999. Un puente para

dos Miradas — Conversaciones con el Dalai Lama sobre las ciencias de la mente.

Santiago, Dolmen.

Fim de nota de rodapé

Página 80

ignorância científica, porque, sendo o ser humano fenômeno marcado pela unidade

de contrários, não pode produzir visão linearmente lógica das coisas. Alguns

sentem-se mais próximos da religiosidade, como é o caso das mulheres, sempre

mais sensíveis, outros não, mas, no fundo, todos produzem algum “pensamento

mítico” ou coisa que o valha, para dar conta do que não podemos dar conta.

O mínimo que está consideração recomendaria é que saber questionar precisa

implicar o limite do questionamento. Quando se trata de ciência, questionamento

será a regra de ouro. Implacável. Toda crítica é negativa e vale exatamente por isso.

Não deixa pedra sobre pedra. Começa tudo de novo, e para derrubar de novo. Esta

é a sina das teorias e dos paradigmas. Na universidade, vivemos disso. Falando de

saber pensar, vem à mente sobretudo tal habilidade, geralmente muito ausente.

Mas, quando se trata da vida em sociedade, saber acreditar é componente não

menos essencial, porque faz parte do tecido social de confiança e solidariedade,

inclusive da própria linguagem que funciona sem suspeitas. Se fôssemos suspeitar

de tudo e de todos, buscando sempre segundas intenções, jamais teríamos as

primeiras. Viraria fofoca interminável. A contraprova parece clara: em ciência

também existem os paradigmas. Que são eles? Cristalizações sociais de teorias,

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que passam a valer mais pela crença dos adeptos do que pelo questionamento.

Chegamos a novos paradigmas derrubando os velhos. Mas os novos, à medida que

valem certo tempo, pedem fidelidade, por vezes mais que competência. Este

percalço funciona também na religiosidade, quando crentes exigem liberdade

religiosa para defender que sua crença é a única verdadeira!

Nem com ciência resolvemos tudo, nem com religião. Ainda que seja muito difícil

compatibilizá-las, é prudente ficar com ambas. Cum grano salis (48). Como diz

Fernández—Armesto, temos, na era pós-modema, de conviver com incerteza e

pagar o preço por isso (49). A razão pode matar, mas, ocupando lugar intermédio

entre ceticismo e entusiasmo, ela mesma pode refazer os erros

Início de nota de rodapé

48- SHERMER, M. 1997, Why people believe weird things — Pseudoscience,

superstition, and other confusions of our time. New York, W. H. Freeman and

Company.

49- FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. 1999. Truth — A history and a guide for the

perplexed. New York, St. Martins Press.

Fim de nota de rodapé

Página 81

que comete, se souber pensar. A convicção, de certa maneira, desapareceu. “A

retirada da verdade é uma das estórias altamente dramáticas, incontadas da

história” (p. 165). “No século 20 ocidental, a verdade foi exumada naquilo que chamo

de cemitério da certeza — uma civilização de confiança quebradiça, na qual foi difícil

assegurar-se de qualquer coisa. Incerteza foi parte de vasta contra-revolução

científica, que suplantou a imagem ordenada do universo herdada do passado e

substituída pela imagem com que vivemos hoje: caótica, contraditória, cheia de

eventos não observáveis, partículas intratáveis, causas intraçáveis e efeitos

imprevisíveis” (p. 181). Temos de conviver com certo relativismo, sem perder de

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vista o que temos de universalmente comum e o que temos de particular. Aponta

para a grandeza de Habermas: “A busca da verdade é tarefa coletiva, que

aprendemos uns dos outros. Como estratégia para descobrir a verdade, é

questionável por ser vaga e lenta; como prescrição política, pode ser criticada por

endossar comunidades políticas bem intencionadas. Mas tem seus méritos que até

ao momento foram pouco apreciados: é humana, não dogmática, solidamente

enraizada na tradição, otimista e, com efeito, boa para o indivíduo que a pratica e a

sociedade que se beneficia dela” (p. 222). A razão falha, mas a própria razão,

sabendo pensar, pode redimir-se.

Na visão de Lear, a ciência se inclinaria a sobreviver melhor em ambiente de mente

aberta (open-minded), por conta também de sua tendência a dissolver as certezas e

limites (50). Chega a afirmar que o lado profissional das ciências as leva a construir

estrutura defensiva, porque demarca espaços e os protege, enquanto — no caso da

psicanálise e da filosofia — o espírito científico se orientaria pela ideia de desfazer

as defesas (51). A grande dúvida é se a ciência pode compreender seus limites, a

exemplo do próprio projeto emancipatório: “Quanto à autonomia, qualquer

Início de nota de rodapé

50- LEAR, J. 1998. Open minded — Working out the logic of the soul. Cambridge,

Massachusets, Harvard University Press.

51- “A psicanálise, dizia Freud, é profissão impossível. Também filosofia. Não é

metáfora ou tira da frase poeticamente paradoxal. E Literalmente verdadeira. E a

impossibilidade é finalmente questão de lógica. Pois, a própria ideia de profissão é a

de uma estrutura defensiva, e é parte da própria ideia de filosofia ou psicanálise de

serem atividades que desfazem tais defesas. E parte da lógica da psicanálise e da

filosofia que são formas de vida comprometidas em viver livremente — com verdade,

beleza, inveja e ódio, admiração, respeito e temor. A ideia de profissão da

psicanálise ou de profissão da filosofia é, assim, contradição nos termos” (p. 5).

Fim de nota de rodapé

Página 82

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sistema ético que a valoriza colocará restrições em quem é permitido exercê-la.

Haverá sempre a questão se tais restrições seriam legítimas” (p. 189). O

conhecimento não reconhece limites, mas é tipicamente atividade limitada. Esta

própria postura indica que também a ciência “acredita” em si mesma, por vezes

demais (52).

Início de nota de rodapé

52- SHATTUCK, R. 1 996. Forbidden knowledge — From Prometeus to

pornography. New York, St. Martins Press. RESCHER, N. 1984. Die Grenzen der

Wissenschaft. Ditzingen, Reclaim

Fim de nota de rodapé

Página 83

SEGUNDA PARTE

RECONSTRUIR CIÊNCIA

Página 84

Esta segunda parte foi pensada como oferta mais operativa, sem ser receituário.

Imagino que seja útil discutir estratégias mais fundamentais de construir/reconstruir

conhecimento, em nível de iniciação preliminar. Tenho na cabeça que todos os

cursos, antes de pretenderem oferecer especialização profissional, deveriam

trabalhar com o aluno as bases do saber pensar, incluindo fazer ciência. Embora no

nível universitário já se possa ou deva esperar pesquisa como princípio científico,

vou acentuar aqui a ideia da pesquisa como princípio educativo, porquanto não

buscamos gestar pesquisadores profissionais, mas profissionais pesquisadores (53).

E essencial que os profissionais hoje, no mercado e sobretudo para a cidadania,

saibam manejar conhecimento com qualidade formal e política, peIa razão central de

que se trata da vantagem comparativa mais decisiva. É urgente superar nossas

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tradições muito arraigadas da aula meramente expositiva, do estudo como simples

cópia de aulas e fichamento de textos, das provas como reprodução da reprodução.

O aluno precisa plantar sua autonomia ao sair para o mundo, tornando-se capaz de

proposta e história próprias. Em termos de mercado, isto parece urgente mais que

nunca: faltando emprego, é mister saber oferecer trabalho. Esta habilidade depende,

em primeiro Iugar, da propedêutica básica (54), além do domínio profissional. Mas,

enquanto este envelhece rapidamente, aquela se apresenta como procedimento de

renovação permanente. Entretanto, não será este o primeiro argumento, mas o da

cidadania: para dar conta da sociedade que temos, inventamos e por vezes

tememos, será de todo decisivo usar e produzir conhecimento que nos permita

permanecer sujeitos de nossos destinos e nos leve a arranjos mais solidários e

suportáveis, coletivamente falando.

Início de nota de rodapé

53- DEMO, P. 1999. Educar pela pesquisa. 4 ed. Campinas, Autores Associados.

54- DEMO, P. 1999. ABC — Iniciação à competência reconstrutiva do professor

disco. 2° ed. Campinas, Papirus.

Fim de nota de rodapé

Página 85

1

APRENDER

Apesar de todos os avanços teóricos e metodológicos no campo da aprendizagem,

estamos cercados, sobretudo em nossos ambientes latino-americanos, de propostas

tipicamente instrucionistas, nas quais cabe ao professor ensinar, dar aula, e ao

aluno escutar, tomar nota e fazer prova. A primeira grande batalha a ser vencida é

esta dicotomia artificial e no fundo prepotente entre professor e aluno, não porque

não exista diferença social entre eles, mas porque, em termos de aprendizagem,

ambos estão exatamente no mesmo barco. A diferença, neste caso, é que o

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professor já é figura experimentada, muitas vezes avaliada e reconhecida em termos

de credenciamento, enquanto o aluno está começando sua caminhada. Mas,

estritamente falando, fazem a mesma coisa: aprender. O instrucionismo nega este

horizonte, porque, primeiro, inventar hierarquia distorcida num plano em que existem

apenas diferenças de estágio, e, segundo, porque condena o aluno a processo

flagrante de domesticação subaltema.

Torna-se premente assumir, definitivamente, que a melhor maneira de aprender não

é escutar aula, mas pesquisar e elaborar com mão própria, sob orientação do

professor. Não é mister combater a aula, mas esta mantém apenas a função de

promover pesquisa e elaboração própria. Mesmo em se tratando de alunos que

fazem curso à noite e já chegam cansados, aproveitam muito melhor seu tempo se

não permanecerem apenas receptivos tomando

Página 86

nota e fazendo prova. A maior parte de seu tempo teria de ser utilizada para

atividades tipicamente reconstrutivas, nas quais, sob orientação do professor,

constroem sua autonomia, manejam os métodos científicos e passam a lidar com

conteúdos com criatividade. Existe aqui um considerável imbróglio, composto de

muitas contradições e autodefesas, entre elas:

a)para quem não tem tempo para estudar ou não consegue comprar livros, a aula

não é substitutivo, de modo algum; tende a ser capitulação diante de severas

dificuldades, sempre em prejuízo para o aluno;

b)a aula como é usualmente entendida não passa de café requentado, sobretudo em

Iugares onde os “professores”, menos por falta de títulos do que por não saberem

estudar e aprender, repassam conhecimento já ultrapassado; acresce a isto que as

instituições, em particular as privadas, não se interessam em proporcionar condições

mínimas de aprendizagem, usando tais aulas como expediente de barateamento dos

cursos;

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c) o professor aprecia a aula porque, como regra, não sabe fazer outra coisa no

curso; recorre a racionalizações homéricas para as salvar, procurando até mesmo

fundamento bíblico (professor viria de “professar”, como se fosse função profética),

escondendo gesto ordinário de autodefesa; a isto acresce o pacto de mediocridade

com os alunos que, por sua vez, preferem curso em que não tenham que esforçar-

se por aprender;

d)muitas instituições já percebem que são obsoletas em termos de aprendizagem,

até mesmo porque o mercado exige mais que reproduzir conhecimento

ultrapassado; disto, todavia, não retiram a conclusão em favor da inovação mais

profunda, preferindo “enfeitar” a aula;

e) a aula é expediente de informação, não propriamente de formação, sobretudo em

auditórios numerosos; há diferença total entre informar e formar, sem falar que

repassar informação ultrapassada sequer atende ao requisito de informar.

É interessante notar que as tentativas mais comuns de “inovar” a didática em sala de

aula vão até certo ponto, que é ponto certo: não mexer no formato instrucional. Por

exemplo, alguns professores percebem que é mister ler; mandam, então, os alunos

“ficharem” livros, reduzindo-se isto, quase sempre, a reproduzir pedaços

desconexos. Outros imaginam que é mister

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melhorar a aula: apelam para subterfúgios variados, eletrônicos, elétricos, sem

perceber que estão incensando defunto. Há quem também valorize o trabalho de

grupo, porque é importante saber trabalhar em equipe. Por conta disso, já fazem

tudo em grupo, até mesmo avaliação, evitando que os alunos leiam e elaborem

individualmente, como se o “coletivo” detivesse algum poder mágico de

aprendizagem em si.

Na verdade, evita-se “estudar”. Estudar significa dedicar-se a atividade sistemática

de estilo reconstrutivo, com base em constante elaboração própria, lendo autores

para nos tornarmos autores. No é absorver passivamente conhecimento alheio,

muito menos “colar”. Estudar para a prova é o que há de menos importante na sala

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de aula, porque retrata artificialidade total perante as situações concretas da vida.

Nem adianta inventar prova com consulta, porque ainda é prova. Faz-se necessário

afastar a prova e avaliar de outros modos, sobretudo acompanhando a produção

constante de conhecimento, com devida orientação e tendo o aluno sempre o direito

de refazer enquanto houver tempo hábil. Ao mesmo tempo, estudar implica outra

forma de “ler”. Trata-se de “contra ler”, no sentido de saber questionar o autor,

interpretar seus argumentos centrais e refazê-los com mão própria, compreender

seu contexto e suas bases teóricas e metodológicas, passar por dentro do livro e

não pelas orelhas. Não se faz isso com todo livro, mas com aqueles que são

centrais para nossa aprendizagem. Ao ler um Iivro, é fundamental fazer-se sujeito,

porque lemos autores para nos tornarmos autores.

Na leitura detida de um livro é possível observar a teoria da aprendizagem baseada

na busca de padrões e suas conexões:

não guardamos em mente todo o livro, mas aquilo que detectamos ter coerência

recorrente, mantém significado abrangente, indica relevância cada vez mais

consolidada. Podemos fazer a experiência: ao terminar de ler um livro, o fechamos e

tentamos escrever algo sobre o que lemos; muitas vezes, não somos capazes de

dizer nada de pertinente; é que não “lemos” de verdade, passamos pelo livro, por

cima do livro. Será necessário reler com outros olhos: tomando nota, riscando,

reclamando, aplaudindo, reconstruindo. Este fenômeno indica também que é

impossível o professor ler pelo aluno, como se a aula substituísse o estudo do aluno.

Acontece que o professor já reduz, em seu nível, o autor aos algoritmos seletivos

dentro de sua busca de padrões. Se o aluno

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ficar com a redução do professor, terá para si acesso duas vezes reduzido. E

fundamental, pois, habituar o aluno a passar por dentro do autor, desconstruindo sua

argumentação e logo reconstruindo com suas palavras. Quem não sabe estudar,

não sabe ler e não é capaz de aprender. Terá de recorrer à decoreba e à cola.

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Podemos visualizar esta expectativa no trabalho de grupo. Certamente, não fora já

por razões pedagógicas, ele é fundamental. Mas, para ser efetivo, precisa ser

acompanhado dos passos imprescindíveis para a devida aprendizagem, entre eles:

a)cada membro do grupo deve preparar-se devidamente, trazendo colaborações por

escrito, adequadamente elaboradas; conversar juntos não é trabalho de grupo e

pode não ir além da fofoca; não se trata, ademais, de apenas jogar no ar opiniões

soltas, ao bel-prazer, mas de aportar argumentações da melhor qualidade;

b)o trabalho precisa ser disciplinado, de tal sorte que exista coordenador e escriba,

tendo em vista permitir fluxo produtivo comprovado; todos precisam poder falar, ou

seja, apresentar suas argumentações, e, ao mesmo tempo, escutar os colegas

atentamente; trata-se de tecer texto ou produto final conjunto que represente a

contribuição de todos;

c)sendo o consenso de grupo tendencialmente medíocre, porque reflete a média das

argumentações, é sempre o caso sopesar o que se ganha e perde com tal

empreitada; o brilho individual ofusca-se diante do grupo, bem como todo carisma

tem que adaptar-se ao coletivo; como é difícil elaborar a muitas mãos, alguém

escreve por todos, desde que o escrito represente todos;

d)pode-se aprimorar a capacidade de contra-argumentar, desde que se trate de

“argumento”, não de “sacações” diletantes e dispersas; a arte do consenso pode

representar caminho árduo de reconstrução, tendo sempre em mente o que se

perde e ganha no percurso;

e)podem-se valorizar as diferenças de argumentação, tentando fazer delas a riqueza

do grupo, como é o caso da democracia; com isto, podemos ressaltar valores

pedagógicos da solidariedade e generosidade, necessários para a vida em comum.

Em nossa legislação, está consagrado o instrucionismo, sobretudo pela ideia caduca

de aumento de dias de aula durante o

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ano Ietivo (55). Ainda mantemos a expectativa totalmente obsoleta de que

aprendemos melhor se temos mais aulas. Esta mesma ideia aparece na gratificação

concedida aos docentes universitários públicos: depende, em primeiro lugar, de dar

mais aulas. Pode-se apreciar a preocupação de motivar os professores mais

titulados a darem aula, porque, no fundo, somente estes poderiam dar aula e a isto

por vezes se negam, por má interpretação da atividade de pesquisa. Entende-se

pesquisa como tarefa elitista, reservada a peritos mais avançados e que tendem a

dedicar-se ela com exclusividade. No entanto, quando se alimenta programa de

bolsas para estudantes que pesquisam, comparece contradição notável: de um lado,

o Ministério da Educação propende para instrucionismo, de outro, o da Ciência e

Tecnologia já reconhece que, para aprender bem, é mister começar a pesquisar na

graduação. Na prática, sabemos já: o aluno que aprende a pesquisar, aprende a

aprender, e pode ter peso na sociedade futuramente; os outros ficarão à deriva,

esperando oportunidade que eles mesmos não saberiam criar. Ainda hoje é comum

em certas universidades considerar pesquisa como atividade especial de gente

especial, enquanto deveria ser a atividade mais comum de todos, professores e

alunos, ora mais sofisticada no professor, ora mais pedagógica no aluno. O

programa de bolsas para alunos pesquisarem, se bem observado, escancara esta

contradição: é preciso pagar para aluno pesquisar, porque o normal é apenas

assistir a aulas, assim como professor que pesquisa normalmente é bolsista do

CNPq. A mediocridade de nossas instituições de “ensino” jaz sobretudo nisto.

Não percebemos ainda que, na sociedade do conhecimento, aprender vai se

tornando direito humano fundamental, quase no mesmo nível que o direito à vida.

Como diz Tapscott growing up is about learning (crescer é aprender) (56). Trata-se

do melhor que temos em resposta à hereditariedade, sendo a história do

conhecimento, em particular a ocidental, saga impressionante de conquista de

história própria. Esta história está marcada pela prepotência ostensiva, mas não

deixa de mostrar que, mesmo sendo seres condicionados, sabemos buscar nosso

espaço. Como

Início de nota de rodapé

55- DEMO, P. 1999a. A nova LLB — Raços e avanços. 8° ed. Campinas, Papirus.

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56- TAPSCOTT, D. 1998. Growing up digital — The rise of the net generation. New

York, McGraw-HiII, p. 127.

Fim de nota de rodapé

Página 90

reconhecem Böhme & Stehr, o que “distingue a sociedade do conhecimento acima

de tudo do ponto de vista de suas precursoras históricas é que se trata de sociedade

que é, a um nível sem precedentes, o produto de sua própria ação. A balança entre

natureza e sociedade, ou entre fatos além do controle dos humanos e aqueles

submetidos a seu controle, elevou-se de modo impressionante. Elevou-se mais e

mais para as capacidades que são construídas socialmente e permitem que a

sociedade opere por si mesma” (57). Neste sentido, aprender deixará de ser atributo

escolar, em determinada idade, para erigir-se em direito permanente, tanto para

inserção mais favorável no mercado, quanto sobretudo para o exercício mais pleno

da cidadania.

No mercado — assim se espera — será reconhecida a necessidade de todo

trabalhador continuar estudando, certamente não com base na cidadania, mas na

competitividade. Esta é fundada, na prática, no manejo do conhecimento, puxado

severamente pelo mercado. A qualidade total já prenunciou esta marca: enquanto

falava de valorização dos recursos humanos, abria caminho para a competitividade

(58). Mesmo assim, pode significar o reconhecimento do direito de todos de

desvendar horizontes para além da educação formal. Para tanto, a teleducação

comparece como via principal de acesso, desde que não se reduza a simples

instrução. Para professores, este mandato se tornará fatal, porque no fundo exercem

a profissão de aprender. A equação parece cogente: o aluno só aprende bem, se

tiver professor que também aprende bem. Esta é a condição mais decisiva, entre

outras tantas que também participam do processo. Donde decorre que a formação

dos professores precisa ser radicalmente revista e que esta pedagogia que aí está

não serve para nada. Pois é todo o contrário da aprendizagem reconstrutiva. Não se

trata, porém, de combater a pedagogia, mas de inventar outra, na convicção de que

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é o estudo mais estratégico da universidade. Seu “negócio”, todavia, não é dar aula,

mas garantir a aprendizagem do aluno, formulando, ao mesmo tempo, a

necessidade de aprendizagem escolar aqui e agora, e sobretudo a aprendizagem

para a vida, permanentemente.

Início de nota de rodapé

57- BÖHME, G. & STEHR, N. 1986. The knowledge society — The growing impact of

scientific knowledge on social relations. Boston, D. Reidel Publishing

Company, p. 19.

58- AEC. Revista de Educação. 1994. “Qualidade total na educação — A rnudança

conservadora”. Ano 23, n° 92, jul./set. Brasília, AEC do Brasil.

Fim de nota de rodapé

Página 91

Por conta disso, imagina-se que todos os cursos, antes de pretenderem se

especializar profissionalmente, precisam dedicar um ou dois semestres à

propedêutica básica, que alguns resumiriam em filosofia, linguagem e matemática,

como metáfora simplificada do saber pensar. Este saber pensar é o cerne

profissional, mais até que os conteúdos, ainda que estes, por isso, não se tomem

secundários. Como todos os conteúdos envelhecem cada vez mais rapidamente, ser

profissional é, sobretudo, saber renovar a profissão, e isto advém das habilidades

básicas, de teor processual metodológico. E isto principalmente que temos de

aprender nas instituições educacionais. Nesta trilogia estão incluídos todos os

fundamentos da aprendizagem reconstrutiva, também os metodológicos, que nos

levam a saber questionar a ciência, a argumentar com propriedade, a manusear

dados com capacidade interpretativa, e assim por diante. Esta atividade

metodológica não poderia ficar para depois ou para o fim do curso, porque é

propriamente a porta de entrada.

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Em branco

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2

PESQUISAR E ELABORAR

Tomo como definição mínima de pesquisa questionamento reconstrutivo. Quero

dizer pelo menos duas coisas: é mister haver questionamento atitude crítica diante

da realidade, de tendência desconstrutiva e analítica, preocupada com desvendar os

fenômenos para além da superfície; e é mister haver reconstrução — elaboração

própria, individual e/ou coletiva, proposta dotada de alguma autonomia. Estou

realçando prerrogativas metodológicas, ainda sem me referir a conteúdos. Desde já,

muitas atividades que se querem pesquisa não o são porque permanecem ainda em

simples considerações gerais, “reflexões mais ou menos dispersas”, descrições

externas dos fenômenos e problemas, fichamento estereotipado de livros ou textos,

amontoado de dados e assim por diante. Toda pesquisa implica atividade

sistemática e é, 110 fundo, sempre exercício acurado de argumentação própria.

Podemos, para ordenar o espaço, distinguir pelo menos quatro gêneros de

pesquisa: teórica, quando nos propomos a tratar assunto teórico, como seria

desvendar conceito, quadro de referência de autor, polêmica acadêmica;

metodológica, quando que- remos estudar métodos, sua tessitura procedimental,

estrutura operativa, ou questões de metodologia, como aferir postura metodológica

de certo autor, ou a da1ética que seria própria de Marx; empírica, quando a intenção

é também levantar dados empíricos ou factuais, para dar suporte relativo a

proposição

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hipotética; prática, quando existe compromisso político de usar a ciência para fins de

intervenção direta na realidade, como é a pesquisa participante (59). Escusado dizer

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que tais gêneros se interconectam naturalmente, sendo difícil exercitarmos um deles

puramente. Com isto digo também que nem toda pesquisa precisa Ievantar dados

empíricos, embora jamais façam mal, desde que se evite o empirismo. E de todo

prudente promover pesquisas que exijam mais que dedicação teórica, também para

cultivar a capacidade de agir, não só de pensar. Tática útil é partir das práticas,

levando-as à teorização e imprimindo-lhes, a seguir, inovação pertinente.

Importante é distinguir entre pesquisa como princípio cientifico e como princípio

educativo. Estou trabalhando aqui sobretudo o segundo sentido, porque se trata de

propedêutica básica, não de atividade profissional da pesquisa. Quer dizer, estou

propondo pesquisa como estratégia fundamental de aprendizagem reconstrutiva e

de gestação da autonomia do sujeito, para que possa produzir conhecimento do qual

seja a referência central. Podemos sempre banalizar a pesquisa, aceitando qualquer

coisa. Entretanto, tomando um mínimo de cuidado metodológico, parece claro que

somente podemos aceitar como pesquisa o que for dotado de algum nível de

questionamento reconstrutivo, evitando-se a tendência reprodutiva. No início, todo

aluno “cópia”, porque é modo de iniciar. Em seguida, sob orientação do professor,

passa a ver que reproduzir nada acrescenta. Põe-se, então, a buscar elaboração

própria, que vai aprimorando, à medida que pesquisa sistematicamente. E neste

sentido que proponho ser a pesquisa o modo de vida das instituições educacionais.

Não pode ser vista como atividade especial de gente especial, mas como ambiente

mais natural de aprendizagem.

Falta-nos, como regra, ambiente acadêmico adequado, através do qual se

estabelecem expectativas consolidadas e comuns de como se entende e pratica a

aprendizagem no professor e no aluno. Quando tal ambiente é viciado pela aula

apenas expositiva, reprodutiva, decorre que pesquisa e elaboração própria passam

a ser vistas como atividades raras, para não dizer exóticas. No fundo, ninguém

estuda de verdade, e, por isso, ninguém aprende

Início de nota de rodapé

59- DEMO, P. 1985. Investigación participante Mito y realidad. Buenos Aires,

Kapelusz.

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Fim de nota de rodapé

Página 95

de verdade. Passa-se o tempo vendo conteúdos alheios, repassados de modo

reducionista,e treinando o aluno a reproduzir posicionamentos obsoletos. E preciso,

pois, dizer com todas as letras que o ambiente acadêmico adequado começa pelo

professor, pois aluno adequado é também função do professor adequado. O

professor certamente não faz milagres, mas é a peça central da aprendizagem. Para

não incidir em contradição performativa clássica, precisa saber aprender mais que

ninguém. Diante de professor que aprende bem, estuda dedicadamente, produz

conhecimento sistematicamente, traz para os alunos textos seus, o aluno tem pelo

menos exemplo edificante do que é aprender. Em contra- partida, diante de

professores que apenas reproduzem aulas, dificilmente o aluno chega à ideia de que

educação tem como objetivo fundamental gestar a autonomia.

A elaboração própria torna-se, então, atividade estratégica, em primeiro lugar porque

reflete a capacidade reconstrutiva, de onde surge o impulso para a autonomia. O

que não se elabora, fica ainda fora, adere por imitação, ou seja, não entra. Neste

sentido, elaboração própria é a base da aprendizagem ativa, através da qual o aluno

tenta, sob orientação do professor, fazer-se autor, ter ideias próprias, argumentar

com autonomia, entrar em polêmicas com capacidade de argumentar, propor

projetos próprios. De quebra, aprende a língua, já que escrever bem advém

sobretudo de fazer isto sistematicamente. Muitas vezes, em matérias mais

tecnológicas ou similares, os alunos dificilmente sabem se expressar por escrito de

modo adequado, porque, embora possam fazer cálculos magistralmente, não

aprendem a verbalizar, argumentar e contra-argumentar, tecer textos. Esta atividade

tem sido valorizada tanto mais por imposição do mercado, que, tornando-se cada

vez mais restritivo em termos de emprego, exige que os profissionais saibam trazer

propostas de trabalho, mais do que esperar na fila. Mas este não pode ser o

argumento decisivo. A ideia mais essencial é a gestação da autonomia, parte central

da cidadania. A elaboração própria precisa ser o indicador inequívoco de que

sabemos elaborar nossa história própria.

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Para tanto, convém sempre combinar elaboração individual e coletiva. Uma não

substitui a outra, pois cada qual tem seu lugar. A elaboração individual é importante

porque aprimora a capacidade própria de propor e traduz o talento de cada um. A

coletiva também é importante, porque, em sociedade, é preciso

Página 96

saber trabalhar em equipe. Somos mais facilmente brilhantes na elaboração

individual, também porque temos liberdade plena. Na coletiva, o consenso é a

grande meta, o que implica dúbia postura: de uma parte, significa maneira decisiva

de praticar a democracia, e, de outra, acarreta concessões tendencialmente

medíocres. Como, porém, na vida o que vale são acordos mais ou menos comuns, o

trabalho em equipe precisa ser valorizado, desde que não substitua o individual e

seja realmente produtivo. Em grupo, tendemos a produzir menos, porque o ritmo é

naturalmente mais lento, até porque todos precisam ter o direito de se expressar.

Todavia, regra fatal do trabalho em grupo é que cada membro precisa elaborar

individualmente para poder manifestar-se produtivamente. E comum em certos

contextos valorizar a tarefa coletiva por motivos escusos: não exigir nada de cada

qual, passar o tempo conversando à solta, impor o esforço a alguém que faz pelos

outros, auto-avaliar-se complacentemente etc. Trabalhar em grupo deve ser

claramente um modo fundamental de estudar e aprender, não de estabelecer pactos

da mediocridade.

Importante seria pensar em “laboratório de aprendizagem”, geralmente localizado na

pedagogia, em que se poderia ver, com os próprios olhos, o que é aprender na

teoria e na prática, para professores e alunos. Permanecemos em táticas

reprodutivas também porque não somos levados a perceber alternativas, sobretudo

alternativas concretas. Nesse laboratório deveria existir repositório sempre renovado

de experiências (boas e más), vídeos disponíveis, materiais didáticos com signo

alternativo, documentação sobre experiências diferenciadas, modos de usar

didáticas menos ordinárias, bem como ser lugar onde se possa discutir a

aprendizagem. Desconhecemos, quase sempre, a discussão em torno da

aprendizagem, deixando-a para pedagogos que, por sua vez, ainda entendem

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pedagogia como “dar aula”. Na prática, esta seria a grande transformação esperada:

toda entidade educacional é, em primeiro lugar, local primoroso de aprendizagem

reconstrutiva política. Frequentamo-las com o propósito declarado de aprender,

sobretudo de aprender a aprender e sempre de modo permanente.

É irônico e no fundo ridículo que as inovações nos sejam trazidas pelo mercado,

que, finalmente, também descobriu que é fundamental, na vida, manejar

conhecimento com autonomia. É triste ver a universidade a reboque das inovações

capitaneadas pelo mercado, correndo atrás de causa perdida. Precisamos

definitivamente

Página 97

entender que é fundamental aprender para a vida individual e sobretudo coletiva,

não para apenas competir. Trata-se, em primeiro lugar, de gestar aquela cidadania

que sabe manejar conhecimento com qualidade formal e política, diferente, por isso,

de outras cidadanias que a sociedade propicia e motiva. Usa vantagem comparativa

mais decisiva dos tempos atuais, no sentido mais preciso de saber fazer história

própria, sem esquecer que o saber pensar inclui saber cuidar e acreditar. A

pretensão de autonomia implica escrutínio crítico de todas as dependências,

também perante o mercado, que pode tornar-se problema cada vez mais

angustiante no futuro, à revelia da produtividade crescente. Saber pesquisar deve

ajudar também a inserir-se no mercado, mas sobretudo a saber confrontar-se com

ele, para que o bem comum seja referência principal.

Página 98

Em branco

Página 99

3

TRABALHO CIENTÍFICO

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Quando pesquisamos, pretendemos fazer trabalho com marca científica. Fazer

ciência implica procedimentos estereotipados que podem tornar a tarefa uma rotina

repetitiva, mas, mantendo em mente o compromisso com o saber pensar, expressa

caminho sempre possível de criatividade e crítica. Sem pretender apresentar

receitas, porque criatividade é seu contrário, podemos sistematizar trabalho

científico em alguns passos logicamente ordenados:

a)começamos por conceber terna, que é diferente de temática; tema indica problema

circunscrito, do qual se vê o começo e o fim, sobretudo do tamanho de quem o quer

tratar; não se pode assumir qualquer tema, por mais atraente que possa ser, porque

sua viabilidade vem em primeiro lugar; tema mais bonito é o mais viável, sobretudo

para iniciantes; usando exemplo, tema é a árvore e temática o bosque: é

fundamental encontrar a árvore, de preferência aquela árvore que posso tratar

melhor, seja porque já li alguma coisa a respeito, já discuti algo em torno dela, tenho

dados a respeito, sinto-me mais familiar; tema confuso Ieva a tratamento confuso e é

perda de tempo e falta de lógica descobrir depois que é melhor abandonar o tema;

b) ao tema acrescenta-se hipótese de trabalho, que significa apontar para problema

ou questão que queremos resolver ao tratar o tema; diz aonde queremos chegar, o

que pretendemos mostrar, descobrir, testar. Trata-se de pergunta aberta, feita como

subterfúgio

Página 100

de orientação durante o percurso. Não precisa ser procedimento reducionista, de

teor positivista, como se fosse o caso “verificar hipóteses” e manejar dados como

base inquestionável; ao contrário, acena com suspeita aberta para dar conta de

certo fenômeno, podendo, no percurso, ser confirmada a suspeita ou negada. A

hipótese, com isso, define ainda melhor o tema, porque o prende a certa pergunta,

permitindo, por exemplo, decidir o que ler, que dados buscar ou fazer, que teoria

pode ser pertinente etc. Quando nos perdemos no trabalho, o problema geralmente

é da hipótese malfeita ou mal definida, permitindo caminhos variados e mesmo

contraditórios. Por exemplo, se é o caso ou não ler certo autor, podemos facilmente

decidir se a hipótese for cristalina, bem como se já dei conta do tema ou não

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também pode ser visualizado à luz da hipótese; assim, hipótese é inventada para

sugerir caminho e lançar luz sobre ele;

b) formulando alguns exemplos, podemos apresentar a ideia de estudar a pobreza

da maioria da população. Logo se vê que não é tema, mas típica temática. Pergunta-

se que pobreza, em que nível, que faceta, não toda e qualquer pobreza. Daí pode

surgir a suspeita de que parte fundamental da pobreza é a dificuldade de inserir-se

no mercado. Com isto estamos indo para certa direção que primazia a relação

material da pobreza e, dentro desta relação material, a ligação com o mercado.

Podemos lançar a hipótese de que o fator fundamental da pobreza é o desemprego

e tentamos, então, construir um caminho de pesquisa que nos leve até lá: mostrar

que os pobres são tendencialmente mais desempregados, que ocupam empregos

precários ou subempregos, que não possuem condições de pleitear bom emprego;

todavia, esta direção já parece grande demais para trabalho de semestre, em que

temos apenas três a quatro meses para pesquisar. De repente, reduzimos nossa

hipótese a estudar apenas o desemprego aberto, tentando mostrar que os pobres

são as vítimas mais comuns dele. Fazendo isto, porém, podemos descobrir outros

horizontes também interessantes do problema, por exemplo, que a pobreza política

é mais fatal que a pobreza material, porque o que faz do pobre alguém realmente

excluído é, sobretudo, a incapacidade de lutar pela sua causa; espera a solução dos

outros e jamais supera a dependência. Esta ideia poderia levar a outra hipótese,

abandonando a primeira ou redefinindo-a, desde que também fosse afunilada para

caminho operativo viável. Quero com isto dizer que é importante saber formular a

hipótese,

Página 101

sobretudo que precisa significar problema interessante, atraente, intrigante, que me

mova a pesquisar também com algum entusiasmo. Outro exemplo pode ser a ideia

de estudar o fracasso escolar dos alunos no ensino fundamental: lanço como

hipótese que se deve sobretudo à pobreza das famílias dos alunos, em particular à

fome; não vou estudar qualquer fracasso — há infinidade deles — mas algo

específico, para ver se de fato a fome tem esta influência e até que ponto. Posso

descobrir, entre outras coisas, que tem influência, mas nem tanto, e que a

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aprendizagem precária dos alunos se deve também e talvez sobretudo a outros

fatores; já seria resultado interessante descobrir que fome é fator importante, mas

nunca único e por vezes nem o mais decisivo. Posso deixar para próxima pesquisa ir

atrás dos outros fatores que suspeito serem ainda mais fatais;

d) recomenda-se sempre que tema e respectiva hipótese de trabalho sejam

elaborados por escrito, com algum detalhe, para que o professor possa ter uma ideia

mais nítida da clareza da proposta e, sobretudo, de sua viabilidade. A orientação do

professor é essencial, em particular com alunos iniciantes, que facilmente embarcam

em canoa furada, ou por excesso de entusiasmo, ou por desinteresse. De modo

geral, os alunos ainda não têm ideia do montante de leitura ou dados que respectivo

tema implica, deixando-se levar pela fascinação imediata; embora toda hipótese

possa ser burilada no meio do caminho, não deveria inventar outro caminho, porque,

na maioria das vezes, implica começar de novo e causa desestímulo. A proposta de

manejar criativamente hipóteses de trabalho é consonante, ademais, com questão

Iógica do saber pensar: não colocamos pergunta inteligente, se não temos nenhuma

ideia da resposta; pergunta que nada sabe da resposta sequer aparece no contexto

científico. Assim, é essa hermenêutica que está em jogo e que o aluno precisa, com

o tempo, aprender a manusear para poder “dar conta de tema”. Não se trata mais de

apenas “dar uma olhada” no tema. passar ao largo, fazer considerações gerais e

reflexões dispersas, mas “matar” o tema, ir ao ponto, resolver a hipótese, sem

colocar nisto qualquer ansiedade, porque sabemos que a ciência não produz

verdades, apenas hipóteses instigantes. E aí temos outra face fundamental da

formulação de hipóteses: sua abertura infinita a novos questionamentos; significa o

convite concreto a desbravar caminhos ainda não andados, deixando em aberto

tudo que descobre; é exercício de abertura, não aposta fatal;

Página 102

e) a seguinte fase do trabalho científico pode ser visualizada na necessidade de

arranjar argumentação adequada para sustentar a promessa da hipótese. Trata-se,

pois, de estudar fundamentos teóricos disponíveis, para podermos atingir nível

explicativo, para além de meras descrições, acúmulo de autores e dados,

arrolamento de idéias vindas de fora. Num primeiro momento, trata-se de estudar a

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bibliografia considerada pertinente, de modo sistemático e reconstrutivo, de tal sorte

que o aluno possa se confrontar com os autores e discutir suas argumentações. Não

basta apenas repassar autores para dizer o que se viu em cada qual, mas é

fundamental construir base teórica de caráter explicativo. Teoria é necessária para

oferecer condições explicativas do fenômeno, trabalhando as razões de ser assim e

não de outra maneira; porque não podemos, a rigor, verificar as hipóteses toma-se

tanto mais necessário fundamentar o que se pretende dizer, primeiro, buscando

apoio na literatura disponível e, num segundo momento, tecendo montagem própria

da argumentação. Assim, podemos fazer aí divisão de trabalho sucessiva: primeiro,

vemos autores com profundidade; depois, fazemos nosso texto teórico próprio, em

que buscamos argumentar com alguma autonomia. Ciência não se basta com

simples descrições (como as coisas são), mas busca suas razões (por que são).

Voltando a um dos exemplos: não basta descrever crianças com fome e que

aprendem mal, pois é mister estabelecer, se possível, a relação entre os dois

fenômenos para saber se passar fome “explica” a má aprendizagem. A necessidade

de fundamentação teórica vai, por certo, até a algum ponto, geralmente determinado

pela premência do tempo: podemos Ier, no extremo menor, apenas um ou outro

autor, e no extremo maior, todos os que julgamos importantes, cabendo aí também a

intervenção do professor para orientar o aluno a tirar o maior proveito possível

dentro do realismo de um semestre, por exemplo. O correto, entretanto, seria dar

conta do tema, ou seja, trabalhar o suficiente para que o tratamento do tema tenha

corpo científico satisfatório. Os limites serão sempre imprecisos, embora seja a

qualidade do tratamento mais importante do que a sua quantidade. Não é

recomendável estatuir número de páginas previamente a serem escritas, porque

conduz à acomodação ou à redução, sendo importante o aluno aprender, com o

tempo, a dizer com razão adequada se o tema está sendo tratado de modo

suficiente ou não;

Página 103

f) dependendo do tema, a fase seguinte seria coleta e produção de dados, voltados

para secundar a hipótese. No espaço de um semestre é sempre difícil assumir este

tipo de compromisso, sobretudo o de produzir dados primários. Como regra,

preferem-se dados secundários, ou seja, aqueles já existentes e disponíveis. Os

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dados empíricos não resolvem a hipótese, porque a indução não é capaz de tal

façanha, mas a corroboram, trazendo-lhe ademais o sabor de coisa concreta. E

importante levar em conta que o dado é, ele mesmo, já produto teórico, porque,

sendo indicador da realidade, indica a parte da realidade considerada importante em

sua coleta e tratamento. Será mister evitar dois extremos: credulidade sobre o dado

e fuga obsessiva, como se o dado já fosse recaída no empirismo. Tratando-se de

dados qualitativos, será tanto mais cuidadosa sua devida formalização de teor não

linear, permitindo a necessária abertura crítica para quem duvide deles ou os quiser

refazer;

g) por fim, a fase final pode ser vista na realização da hipótese, fechando o percurso.

Tendo definido tema e hipótese, montado base teórica explicativa e cercado de

dados indicativos, podemos agora dizer se a promessa da hipótese se sustenta ou

não. No exemplo do fracasso escolar, é possível descobrir que a hipótese é apenas

em parte correta, porque haveria outros fatores que tolhem a aprendizagem mais

que a fome, com exceção, é claro, dos casos extremos. Não se trata da conclusão

do trabalho, que seria apenas o lugar, sempre breve, para arrematar o esforço

dispendido, ressaltando sobretudo o achado mais fundamental; trata-se de mostrar,

com detalhe adequado, se o problema assumido no início pode ser resolvido e o

tema considerado suficientemente tratado, o que se conseguiu mostrar e o que ficou

ainda não solucionado, bem como outras pistas, se for o caso, que poderiam, em

esforço ulterior, ter até melhor sucesso. Não buscamos, pois, resultados definitivos,

demonstrações peremptórias, mas argumentações inteligentes que revelem

capacidade explicativa, habilidade de tecer texto com profundidade, competência

metodológica para ordenar tema e lhe oferecer corpo elaborado.

Não se diz aqui, por outro lado, que cada pedaço seja capítulo, porque, em

determinadas circunstâncias, cada parte pode ser desdobrada em vários capítulos.

Diz-se, entretanto, que todo trabalho científico precisa ser ordenado em capítulos,

não sendo adequado fazer texto corrido ininterrupto, porque revela, ao lado

Página 104

de não saber ordenar texto, que não se apontam momentos mais e menos

relevantes da discussão. Podemos desenhar, então, as seguintes partes

logicamente concatenadas e que podem ser tantos ou mais capítulos:

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Introdução:

tema e hipótese.

Base explicativa:

a) teórica: estudo

bibliografia e

elaboração teórica

própria;

b)empírica:

produção coleta

de dados e de

vida interpretação.

Realização da

Hipótese:

Realizar a

promessa da

hipótese,

mostrando se o

caminho

hipotético pode

ou não ser

mantido.

Conclusão:

Achado central.

Sugere-se que a introdução conste apenas do enunciado do tema e da hipótese,

com breve justificativa, tendo esta a finalidade de mostrar que se tem devida clareza

da tarefa a ser feita. Pode caber numa página só, evitando-se fazer introduções que

já são, no fundo, capítulo, ou que perambulam perdidamente para lá e para cá, ou

que expressam reflexões metidas a “filosofia” barata. Serve apenas para dizer o que

o texto quer resolver, com a maior clareza possível. A base explicativa pode conter

vários capítulos. Não necessita, obrigatoriamente, de tratamento empírico, embora

este possa sempre ser útil e indicativo. A realização da hipótese também pode

abrigar mais de um capítulo e serve para mostrar que o aluno se instrumentou

adequadamente para dar conta do tema, estabelecendo as devidas relações e

chegando aos resultados cabíveis no contexto de sua argumentação. A conclusão

não deve ultrapassar uma página e mostra sobretudo o achado mais central do

trabalho.

Esta estruturação obedece a certa lógica da reconstrução científica, mas pode ser

implantada de maneiras muito diversas, dependendo também da tessitura de cada

matéria ou curso. Tratando-se de um semestre, pode-se supor que se ordene o

trabalho em quatro etapas sucessivas, seguindo os meses. No primeiro mês,

geralmente mais curto, faz-se a parte introdutória: definir tema e hipótese de

trabalho. A orientação do professor é crucial nesta fase, porque os alunos podem

mostrar grandes dificuldades de acertar o tema, sobretudo quando a matéria Ihes é

muito nova ou complexa. Seria o caso, antes de mais nada, de realizar algumas

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leituras conjuntas e proferir uma ou outra aula de caráter introdutório, para que o

aluno tenha idéia preliminar

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da abrangência da discussão pretendida. Quem 1ê certamente tem mais e melhores

idéias. No segundo mês, pode-se passar para o estudo bibliográfico, cabendo tratar

autores dentro do método da “contraleitura” desconstrutiva, seguindo-se, no terceiro

mês, a reconstrução teórica própria do aluno. No quarto mês deve ocorrer a

realização da hipótese e o arremate do trabalho, compondo as partes anteriores. A

avaliação do aluno já estaria implicitamente resolvida, porque oferece pelo menos

quatro elaborações cumulativas, sendo estas a base avaliativa, não provas, a esta

altura, totalmente desnecessárias e artificiais.

Este ordenamento semestral pode ser muito melhorado, introduzindo ainda, de

acordo com cada professor, momentos de exposição individual ou em grupo do

andamento dos trabalhos. Pode-se também aceitar trabalho feito em grupo, desde

que, nas fases segunda e terceira, apareça tratamento individualizado. Por exemplo,

cada aluno assume certa vertente, teórica ou grupo de autores, e elabora também

individualmente. É claro que a primeira e a quarta fases precisam ser feitas, neste

caso, coletivamente. Enfim, estou defendendo aqui apenas metodologia correta de

aprendizagem, não modelo acabado ou único de ordenamento de partes e fases, ou

de conteúdos. Sequer existe aqui preocupação em coibir as aulas, que podem

continuar, desde que não atrapalhem a aprendizagem dos alunos. Ao mesmo

tempo, será sempre o caso respeitar preferências e experiências pessoais dos

professores, com a ressalva de que só fazem sentido se favorecerem a

aprendizagem dos alunos. Os trabalhos científicos iniciais serão naturalmente

preliminares, mas podem aprimorar-se com o tempo, dando oportunidade de

aparecerem desempenhos cada vez mais primorosos.

Esta metodologia conflita, quase sempre, com o currículo extensivo, que exige o

tratamento de matérias excessivas por semestre, com base na expectativa obsoleta

de que o profissional se faz pelo repasse de conteúdos e sua absorção. Muitos

professores, se pudessem, dariam ainda mais aulas, porque teria ficado algo de fora

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durante o semestre. Esta maneira de ver precisa ser substituída pelo currículo

intensivo, que prefere o tratamento verticalizado de temas a tratamentos superficiais

horizontalizados de estilo reprodutivo. O aluno deveria pesquisar, por semestre, não

mais que quatro temas, imprimindo a cada um deles tratamento verticalizado pelo

trabalho de pesquisa sistemática. Com isto não

Página 106

aprende apenas conteúdos, mas sobretudo como renová-los permanentemente. Não

estou, por outra, dizendo que toda matéria cabe neste figurino, sem mais. Mas digo

que todas deveriam buscar modos didáticos que garantam a aprendizagem do

aluno, mais do que a aula do professor. Nesta perspectiva, já não caberia reprovar

em assa, porque revelaria que reprovado foi o professor, bem como não cabe

inventar promoção continuada, como se desempenho já não fosse importante. Sem

entrar a fundo na questão da avaliação aqui, parece hoje clarividente que sua

finalidade única é garantir a aprendizagem dos alunos. Para isto classifica, escalona,

mensura, e, não por último, incomoda60. O professor não sabe se o aluno está

aprendendo adequadamente, se não avaliar. Esta avaliação diretamente colada na

aprendizagem faz parte essencial da tarefa do professor.

Início de nota de rodapé

60-DEMO, P. 1999c. Avaliação — Sob o olhar propedêutico- 2° ed. Campinas,

Papirus. DEMO, P. 1999g- Mitologias da avaliação. Campinas, Autores Associados.

Fim de nota de rodapé

Página 107

4

ARGUMENTAR E CONTRA-ARGUMENTAR

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A arte mais refinada da ciência é saber argumentar, utilizando, para tanto, todas as

instrumentações metodologicamente consideradas válidas. Como nenhuma

fundamentação toca o fundo da questão, seja por conta da circularidade

hermenêutica, ou porque o intento científico é metodologicamente circunscrito àquilo

que pode captar na realidade, ou porque a lógica implica universais assumidos e

não comprováveis pela própria lógica, ou porque a realidade é sempre maior e mais

complexa que qualquer teoria, argumentar torna-se tanto mais necessário. A grande

questão está em que a argumentação bem-feita é aquela que se abre à contra-

argumentação, não a que a evita. O olhar honesto não ofusca outros olhares, mas

os conclama, para, juntos, poderem ver um pouco melhor. Esta transparência é tão

necessária, quanto difícil, levando-se em conta que os cientistas são, como toda

gente, de carne e osso. Em muitas argumentações as manobras de convencimento

prevalecem sobre aquelas destinadas a fundamentar. Tais manobras começam

geralmente com o recurso a clássicos e a autores em geral, cuja autoridade

pareceria reconhecida. Este apelo mostra, desde logo, que a ciência é constituída de

paradigmas vigentes, cuja validade pode expressar-se mais pela fidelidade do que

pela competência. Embora todo argumento de autoridade não possa ser aceito,

porque vem de fora e é

Página 108

estranho à capacidade de se fundamentar com os próprios meios, tem enorme força

no meio científico. Basta ver o processo de elaboração de tese de mestrado ou

doutorado. De uma parte, vale como rito acadêmico de credenciamento e muitos

alunos já demonstram aí do quanto são capazes, inclusive em termos de autonomia.

De outra, costuma prevalecer a submissão ao orientador, ao grupo do qual faz parte

o orientador, à tradição dominante na respectiva universidade, aos autores

considerados centrais para o desenvolvimento do tema, e assim por diante. É neste

sentido que se diz ser a tese rito de passagem. Depois de feita, melhor é jogá-la fora

e começar de novo, com a devida autonomia.

Neste último caso, argumentar pode seguir outro caminho: colocar no papel o que os

examinadores gostariam de escutar, citar o que se imagina obrigatório, ventilar as

idéias consideradas vigentes no momento. O questionamento cede lugar à

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vassalagem. Mesmo assim, no sentido correto argumentar é sobretudo questionar,

seguindo dois passos decisivos: num primeiro momento é mister aprender os

argumentos disponíveis nas teorias pertinentes; num segundo momento, transformar

tais argumentos em argumentos próprios. Com isto digo que o primeiro momento

precisa revestir-se principalmente da habilidade desconstrutiva: contra ler o

argumento alheio, decompô-lo, decifrá-lo, descobrir sua tessitura mais íntima, para,

em seguida, elaborá-lo com mão própria, assumindo feição alternativa. Chamamos a

este segundo momento de reconstrução, porque partimos do que já existe,

aprendemos do que já está aprendido, conhecemos do que está disponível. A

argumentação dificilmente é construtiva, porque isto implicaria extrema originalidade.

O comum dos mortais reconstrói as argumentações, e nisto se torna sujeito do

próprio discurso.

Dentro desta perspectiva, argumentar significa devassar o conhecimento disponível

da maneira mais completa possível. Um dos caminhos é dominar a literatura

pertinente. Alguns chamam a isto de “revisão da literatura”, embora muitas vezes se

restrinja a arrolar os autores. Se bem-feìta, porém, em sentido tìpicamente

desconstrutivo, permite transitar pelas teorias e polêmicas, categorias e conceitos,

escolas e dissidências, de tal sorte que o conhecimento disponível esteja à mão. A

partir daí, torna-se mais fácil contrapor-se em sentido reconstrutivo, buscando

formulação própria. Argumentar, assim, não pode ser o gesto simplório de quem

pede arrimo à autoridade alheia, escondendo-se atrás dos

Página 109

outros, mas de quem se apresenta como sujeito capaz de ocupar espaço próprio.

Tal ocupação de espaço próprio admite, por certo, tonalidades específicas, de

acordo também com a personalidade de cada um, havendo estilos mais secos, mais

herméticos, mais metafóricos, mais complexos, mais soltos, e assim por diante, mas

que não podem ocultar a intenção primeira de aduzir fundamentação ao que se diz.

Exemplo refinado desta trajetória é Habermas. Levando em conta sua obra

monumental em torno do agir comunicativo, faz o percurso de revisão de todos os

grandes clássicos, tomando-os todos a sério (61). Seu gesto inicial é sempre de

análise simpática, embora profundamente desconstrutiva. Discute, questiona todas

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as idéias, aceitando as que lhe parecem pertinentes, e reconstruindo teoria própria,

marcantemente original, embora também sempre polêmica, como é de seu feitio.

Suas propostas nunca endossam a perspectiva de aceitação tranquila. Ao contrário,

colocam “lenha na fogueira”, porque assim entende ciência: o lugar privilegiado do

discurso questionador. Pois somente é científico o que for discutível (62).

Todo processo de argumentação tem, por isso mesmo, suas artimanhas. Como não

produzimos nada definitivo ou inconcusso, tomamos providências também para

encobrir os vazios. Podemos, por exemplo, ajeitar os dados para que a hipótese saia

mais facilmente corroborada, ou fazer autor importante dizer o que pretendemos

para podermos melhor andar em sua sombra, ou desqualificar posicionamentos que

nos incomodam alegando sua pequena receptividade no meio acadêmico, ou fixar-

se no que o grupo gosta de ouvir. Em parte, trata-se de fenômeno absolutamente

normal, tanto em sentido hermenêutico — não escapamos de interpretar a realidade

e autores — como em sentido social — a afinação com o paradigma dominante

pode ser mais decisiva que a lógica. Collins mostra em sua obra sobre sociologia

das filosofias que o motor principal dos avanços científicos é o conflito, não somente

aquele das polêmicas acadêmicas seriamente conduzidas, mas igualmente a intriga.

Neste caso, a contra-argurmentação toma o rumo do argumento ad hominem,

atacando a pessoa, e não mais a idéia. Dependendo do ambiente cultural, a

Início de nota de rodapé

61- HABERMAS, J. 1982. Theorie des Kommunikativen Handelns. 2 vols. Frankfurt,

Suhrkamp.

62- DEMO, P. 1999i. Pesquisa e construção do conhecimento — Metodologia

cientifica no caminho de Habermas. 2º ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

Fim de nota de rodapé

Página 110

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crítica serena é fenômeno peregrino, porque se confunde com ofensa. Em certos

círculos, como a pedagogia comum, a crítica é obsessivamente empurrada para a

“crítica positiva”, apelando-se, neste caso, para compromisso educativo do dever de

elogiar e sustentar a auto-estima. Perde-se de vista que o sentido central da crítica é

tipicamente desconstrutivo e que é disto que advém a aprendizagem, não do elogio.

Por certo, existe o lugar pedagógico do elogio, mas não substitui a função crítica da

argumentação. Esta, por sua vez, não precisa ser desabrida. Mas, mesmo devendo

ser sempre elegante, não pode fugir de desconstruir o conhecimento disponível,

mostrando erros e impropriedades. Daí provém a inovação.

Torna-se, por isso, muito importante exercitar a capacidade de argumentar, em

particular de comparar argumentações dispo- níveis para tentar decidir qual e por

que seria melhor. Alguns critérios, do ponto de vista metodológico, poderiam ser,

referindo-se a textos pretensamente científicos:

a) discurso lógico, com começo, meio e fim, sistematicamente desenvolvido,

destituído de contradições, de tal sorte que uma idéia segue da outra, até o final, de

modo natural; não pode, ao terminar o texto, aparecer idéia sem precedente ou

contrária ao que se dizia; não vale o discurso frouxo, ao estilo de palavreado solto,

que diz por dizer, ou para encher papel;

b) tratamento aprofundado das idéias, para além de meras descrições,

considerações gerais, reflexões dispersas, acúmulo de conceitos desconexos; é

sempre preferível qualidade à quantidade:

uma idéia bem trabalhada é melhor que muitas superficiais; pesa muito a definição

acurada dos termos, seu uso meticuloso e sistemático, o senso por distinções finas

e bem moduladas;

c) busca ostensiva de fundamentar o que se diz, em duplo sentido principal: apoio

em teorias vigentes, serenamente desconstruídas, e proposta de elaboração própria

a partir das idéias dos outros; aparece isto, por exemplo, na habilidade de

reconstruir polêmica, na qual, ao lado de mostrar que se sabe das coisas, também

se é capaz de apontar saídas, alternativas, outros olhares;

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d) apuro metodológico, em particular no que se refere à estruturação do trabalho, ao

manejo conceitual e dos dados, à concepção e condução da hipótese, ao sentido de

cientificidade; embora esta perspectiva possa decair para ritualismos vazios,

valorizando mais modos de fazer do que o fazer, considera-se

Página 111

critério central da cientificidade, já que, para fazer ciência, é essencial saber o que é,

suas potencialidades e limites;

e)originalidade, não em sentido obsessivo, mas dentro do espaço reconstrutivo, que

sempre procura ultrapassar a reprodução; é fundamental que o texto represente

capacidade do autor de lidar com alternativas.

Com tais critérios, ainda que sempre complexos ao extremo, pode-se, por exemplo,

avaliar a qualidade dos textos e dizer que um é melhor que outro. Quando o

professor avalia os trabalhos dos alunos, segue, mais ou menos, algo similar. Como

regra, apreciamos um autor, não só pelas idéias interessantes, mas sobretudo pela

sua solidez de argumentação. Fica ainda melhor quando as duas coisas se casam:

originalidade e boa fundamentação. E neste contexto que várias polêmicas

metodológicas surgem sempre, como a disputa entre metodologias quantitativas e

qualitativas. Esta polêmica reflete modos alternativos de argumentar, postando-se,

de um lado, os que tendem a insistir em métodos objetivos de análise da realidade,

sobretudo em mensurações e experimentos controlados, e, de outro, os que

pretendem flexibilizar o manuseio da realidade, partindo do ponto de vista que

realidade tão flexível só pode ser bem tratada flexivelmente. Principalmente no

campo das ciências humanas, fatores subjetivos são por vezes os mais relevantes e

nem sempre a frequência quantitativa indica a pertinência dos dados. De todo o

modo, qualquer que seja o tipo de argumentação, todos se inclinam ao propósito de

formalização, ou seja, à cata de padrões recorrentes à luz de alguma hipótese

sugestiva. Também quando realizamos pesquisa qualitativa, por exemplo, usando

observação participante, pesquisa-ação, questionários abertos, entrevistas

livremente gravadas, histórias de vida, o material coletado precisa ser ordenado,

codificado, sistematizado, ou seja, vamos atrás de seus algoritmos, aquelas partes

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menores que fazem sentido e mais se repetem. Podemos descobrir que este

caminho não foi muito proveitoso, mas geralmente é o primeiro passo. Na prática

usamos três passos mais recorrentes:

a) levantamos a frequência de dados, termos, fatos, supondo que o mais frequente

pode ser o mais importante;

b)dentro da hipótese de trabalho, podemos então perguntar o que seria importante

para além ou à revelia da frequência, do ponto de vista da fonte de dados; coisas

que aparecem pouco

Página 112

podem ser, por vezes, as mais importantes, sobretudo em ambientes mais

hermenêuticos;

c) por fim, caberia ainda perguntar o que nós mesmos consideramos importante,

perante a massa de dados, ou seja, do ponto de vista do intérprete; o olhar arguto

pode descobrir, na greta das coisas, componentes ilustrativos e por vezes até mais

explicativos, dependendo, é claro, muito da experiência com pesquisa.

A massa de dados, em si, não é aproveitável em estado bruto, porque assemelha-se

a quarto desarrumado onde queremos procurar alguma coisa específica. Para

encontrar esta coisa, podemos aplicar as três táticas: primeiro, tento observar se

existe alguma lógica na desarrumação, de tal sorte que seja possível indicar lugares

preferenciais por similitude (se estou procurando um botão da camisa, não vou

procurar no meio dos livros, ou se estou procurando uma caneta, vou procurar onde

estão livros e cadernos); segundo, depois de mapear o quarto, posso perguntar o

que o mapa poderia estar escondendo; terceiro, posso partir de minha capacidade

de interpretação e aí, por exemplo, Iembrar que deixei a caneta perto do telefone na

sala. Todas as três táticas são procedimentos formalizantes, que buscam reduzir

complexidade a esquemas mais simples, através dos quais a realidade poderia ser

melhor visível. São também reducionistas, porque a complexidade do fenômeno é

diminuída, sem falar que os próprios métodos selecionam o que neles cabe.

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Vale, pois, dizer que toda pesquisa, por mais crítica e autocrítica que seja, descobre

e encobre a realidade, por várias razões: porque é olhar seletivo, conforme seus

métodos; porque a hipótese de trabalho privilegia caminhos em detrimento de

outros; porque todo dado é teoricamente predeterminado; porque a presença do

sujeito nunca pode ser gratuita. Esta é a sina da ciência: para ver melhor alguma

coisa, a tem de isolar, controlar, medir, que são procedimentos metodológicos de

enfoque especializado. Por isso, seu método principal é a análise, porque imagina

ver melhor pelas partes, não pelo todo. Produzir dados é sempre, ao mesmo tempo,

maneira de revelar e mentir, não por má vontade, mas por limite científico natural no

contexto da base empírica.

Página 113

5

QUESTÕES DA BASE EMPÍRICA

Tomemos o exemplo da inflação, medida por algum indicador qualquer. Aparecem

na imprensa números que assinalam a dinâmica do fenômeno: estaria subindo,

estável, ou caindo. É forte a tendência a acreditar nos dados, principalmente quando

acompanhados de parafernália técnica que não entendemos ou manipulados pelas

autoridades. Aqui vale sobretudo o princípio científico de desacreditar, porque,

primeiro, todo dado não fala por si, mas no contexto da teoria que o concebeu,

produz e interpreta. Segundo, para termos dados de inflação, é preciso definirmos o

que entendemos por inflação, para além da obviedade dos preços que sobem.

Qualquer subida de preço seria inflação? Ou, qual a subida de preço que interessa

medir, porque indicaria melhor o processo inflacionário? Estamos, pois, diante de

questão tipicamente teórica (além de ideológica), anterior a qualquer mensuração

empírica. Buscamos acordo sobre que preços vamos acompanhar mensalmente, e

aí, neste processo seletivo, pode entrar muita malandragem, deixando de fora, por

exemplo, preços que poderiam indicar velocidade maior da inflação, como o da

gasolina. Podemos inventar “cesta básica” de preços pretensamente mais próxima

dos interesses populares, mas igualmente menos sensível a movimentos

inflacionários. Por isso mesmo, a inflação que o governo mede tem certo perfil,

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enquanto a dos trabalhadores — levantada no Brasil pelo DIEESE — tem outro: é

sempre bem maior.

Página 114

o governo, dentro da lógica do poder, depura dados de inflação, com o objetivo de

mostrar capacidade de controle.

Ademais, os limites conceituais são sempre naturalmente vagos. Trata-se mais de

decisão política do que técnica acordar sobre quantos itens entram no cálculo, sem

falar que expressando conceito por indicadores mensuráveis já provoca efeito de

enfocamento reducionista. Neste sentido, os dados sobre inflação permitem apenas

vislumbre sempre muito problemático do fenômeno e dentro de polêmicas

interpretativas intermináveis. Mesmo assim é de grande utilidade teórica e prática,

desde que não se olvidem os limites naturais da empreitada científica. É difícil saber

se, diante de certos dados, estamos na iminência de surto inflacionário ou em

período “normal”. Se o índice de inflação sobe, em certo mês, 5%, seria entendido

como total descontrole na Europa, mas talvez como normal no Brasil. Neste caso, a

interpretação estaria também vinculada a história passada de hiperinflação, coisa

que a Europa não conhece mais há muito tempo. A questão metodológica mais

árdua na produção e coleta de dados é que a relevância da realidade não é evidente

em si. Precisa ser interpretada, com apoio de teorias explicativas, que já determinam

posicionamentos prévios, mesmo que chamemos de “hipóteses”. O sujeito não se

aproxima da realidade desarmado, mas como sujeito interpretante, sob certas

expectativas de relevância. Um bom pesquisador, diante dos dados do IBGE, toma

um ou dois números e escreve um livro. O outro — sobretudo o iniciante — olha

para a montanha de dados e não consegue ver nada digno de nota.

Mesmo assim, a fabricação de dados é sempre proposta pertinente, desde que se

evite o empirismo. Este significa reduzir a realidade a seus indicadores empíricos,

mensuráveis, recaindo, como se diz, na ditadura do método. Quantificar a realidade

é sempre possível, porque manifesta, também quando a vemos como especialmente

qualitativa, traços recorrentes. Quando buscamos respeitar sua não linearidade, não

deixamos de estudá-la sob o foco da formalização. No fundo, buscamos levantar na

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dinâmica não linear o que pareceria linear (algoritmos). Neste sentido, dados sempre

cristalizam o fenômeno e é mister saber o que se ganha e perde. Saber produzir e

usar dados é arte fundamental, sobretudo quando se sabe postá-Ios como indicação

criativa, muito restritos, mas capazes de mostrar facetas também pertinentes.

Página 115

É incorreto imaginar que toda quantificação seja recaída no positivismo. Seu abuso

sim, mas não seu uso. A guisa de exemplo: num dos últimos relatórios do Banco

Interamericano de Desenvolvimento sobre concentração de renda na América

Latina, ficou de novo patente que este fenômeno é inacreditavelmente exasperado,

mostrado pelo índice de Gini. Dividindo a população por decis (cada vez 10% dela),

vê-se que os decis inferiores se apropriam de parcelas ínfimas da renda, enquanto

os decis superiores fazem o inverso, com tendência crescente. Até aí nada de novo.

Entretanto, comparando-se o nono e o décimo decis superiores, nota-se que a

distância entre os dois é enorme, desproporcional ao ritmo de concentração dos

decis anteriores. Enquanto nos Estados Unidos esta diferença seria de 60%, na

Escandinávia de 30%, na América Latina seria de 160% e no Brasil por volta de

200%. Este dado indicaria que a renda, além de extremamente concentrada, está

cada vez mais nas mãos de apenas 10%. Um país dos 10%, coisa que também já

vimos muitas vezes... Tem mais: olhando dentro do décimo decil superior, podemos

observar que somente 15% são empresários, enquanto 85% são autônomos e

empregados, sinalizando que o processo de concentração da renda está se

complexificando: haveria muitos empregados e autônomos ganhando rendas muito

elevadas, denotando que a classe trabalhadora já seria cada vez menos

homogênea. Ao analisar tais dados, o que estou fazendo? Pro- curando na

quantificação, insinuações interessantes de facetas qualitativas do fenômeno. Donde

se pode concluir que a qualidade pode também ser estudada na contraluz da

quantidade (63).

Com efeito, o debate sobre pesquisa qualitativa muitas vezes tem se perdido em

polêmicas estéreis, embora tenha surgido claramente como reação à ditadura do

método. De uma parte, parece claro que a pesquisa de orientação positivista

privilegia, unilateraliza ou exclusiviza a face mensurável da realidade, pela simples e

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limitada razão que cabe melhor em seus métodos. De outra parte, pode interessar a

pesquisadores as faces menos mensuráveis da realidade, o que os motivou a

buscar métodos alternativos, não no sentido Iógico, pois todos são minimamente

Início de nota de rodapé

63- Exemplo deste tipo de esforço pode ser encontrado em: DEMO, P. 1992.

Cidadania menor — Algumas indicações quantitativas de nossa pobreza política.

Petrópolis, Vozes.

Fim de nota de rodapé

Página 116

vezes representam disjuntiva, que, na prática, deveriam ser um todo: quantidade a

serviço da qualidade, ou como condição de qualidade. A sabedoria da felicidade

está em transformar o passamento extenso em passagem intensa. Pois nenhuma

solução é total, e o homem como problema não tem solução, pois não é defeito, mas

modo de ser. Nisto precisamente é desafio, pretensão, ânsia, afã. A história é

passageira, mas em cada fase não acaba; ao contrário, continua. Continua sempre,

não porém como continuidade contínua, mas como eterno recomeço. No plano

formal, algo contraditório. Na história real, apenas contrário. Toda superação é

também recomeço. Não há solução final e definitiva, como não há felicidade eterna,

que já seria extensão da monotonia.

Ao se vencer um desafio, vem o próximo; ao se realizar um ideal, surgem outros.

Continuidade extensa é a morte. A morte é a extensão mais monótona que a história

conhece. Se toda revolução, de um lado, envelhece, a partir de dentro, como regra

da vida, por outro, aí mesmo elabora seu recomeço. Pois todo clímax é passageiro,

por mais que o desejemos eterno. Eternidade não poderia ser compreendida como

continuidade da mesmice, na horizontalidade estável, mas como auge da

intensidade. Verticalmente eterno é o momento total, não por durar sempre, mas por

buscar esgotar a profundeza da intensidade no momento da passagem. É o

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momento que vale tudo, tão intenso que é possível “morrer de felicidade”. A vida

toda vale este “instante total”. Na história, não interessa a eternidade como linha

reta, sempre a mesma, formal e fria, mas a curva dinâmica em busca do ápex. Este

é apenas o momento mais alto — um só —, mas define seu alcance. A felicidade

realiza os dois momentos marcantes de sua intensidade: a passagem pelo clímax

intenso e efêmero — e a seguir o recomeço da nova fase. Por isso o momento

profundo é o autêntico processo, processo de recomeço, em que a passagem não

se pulveriza na insignificância, mas se eterniza na violência da intensidade.

Qualidade não é sólida; é frágil. Não tem resistência dura daquilo que se petrifica

(64). É passageira, para retornar. Recriar é seu signo. Só se recria o que passa. O

melhor é sempre mais passageiro.

Início de nota de rodapé

64- BERMAN, M. 1986. Tudo que é sólido desmancha no ar — A aventura da

modernidade. São Paulo, Companhia das Letras.

Fim de nota de rodapé

Página 118

A vida tem sua sabedoria no equilíbrio contrário entre desejos infinitos e realizações

parciais. O prazer sexual é exemplo: por mais forte que seja o desejo, também

satura. Mesmo divertir-se pode ser cansativo. É fundamental variar. Todavia, a

surpresa não pode ser diária, pois já não surpreenderia. O orgasmo é por definição

passageiro, pois é gesto fisicamente Iimitado. Na sua passagem pode ser intenso,

profundo, totalizante. Mas não é factível sua continuidade extensa, tanto por

impossibilidade física, como sobretudo porque quebraria seu encanto. E lei da vida:

após o clímax vem inevitavelmente a calma. Esta é que dura, o outro passa. E

possível inventar modos e jeitos para prolongar o prazer, mas é especialmente

importante poder recriá-lo. Passagem criativa, que passa, não para desaparecer,

mas para reviver. Esta é a eternidade que interessa; a outra aborrece.

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Diante dos desejos infinitos, não há solução cabal. Há propriamente pactos, porque,

no fundo, mais do que solucionar nossos problemas, mudamos de problemas. Pois

toda solução reencontra novos problemas e toda fase propicia a seguinte. Esta cisão

é fundamental para se compreender o ser dialético. Tem a constituição de problema

estrutural, para ser histórico. Assim, em parte não é problema, pois, sendo problema

na estrutura, não é problema histórico, mas condição dada. A limitação histórica não

limite, porque tal incompleição não é falta, mas marca. A unidade de contrários está

na sua alma. Não é acidente, descuido, nem degeneração, mas modo de ser.

Portanto, não pode haver receita definitiva da felicidade, por mais que nela se

reconheçam lógicas. Felicidade é arte, criatividade. É sabedoria, que provém

sobretudo da prática irreptível. Se é variação, passagem, seria contraditório querer

receita da qualidade, porque teríamos que inventar a receita da não-receita. Como

garantir a continuidade invariante do que é essencialmente provisório? Não se pode,

a rigor, programar o improviso. Intensidade também é surpresa.

A felicidade tem a lógica e a consistência da flor: não há como separar sua beleza

da fragilidade e do fenecimento. O fenecimento não é apenas a destruição de sua

beleza, mas condição de recomeço. Deve-se aceitar que a flor é bonita porque

fenece. Flor que fica sempre é de papel, artificial. Cópia. A flor viva vive a

contrariedade da vida: desgasta-se, passa. A seguir, brota de novo. A felicidade

possui o frenesi do desejo eterno na sua estrutura, mas realiza-se na passagem

intensa de um momento

Página 119

na sua história. Ser feliz é multiplicar momentos felizes. Ou: saber deglutir a

infelicidade, que é diária, para saborear melhor a felicidade, sempre que for possível.

Felicidade, não se passa por ela. É ela na passagem. A maior infelicidade é querer a

felicidade total, toda hora. Todo amor acaba traído. Dói. Mas recomeça. Olhar a

qualidade a partir da ótica da felicidade pode induzir a restringir o desafio ao plano

pessoal ou psicossocial. Para nossos fins aqui, o realce maior estará ligado ao

horizonte político do ser humano, no qual o repto central não é ter mais, mas ser

melhor. Trata-se de visualizar a história como obra coletiva, na qual, principalmente

sob o horizonte da cultura e da identidade cultural, o ser humano comprova que é

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capaz de fazê-la, ou seja, de fazer e fazer-se oportunidade. Certamente, não

podemos destruir o contexto dialético da história, quer dizer, qualidade política não

expressa apenas o lado bom, não só porque este não está sozinho, mas sobretudo

porque tende a ser minoritário. A história conhecida propende muito mais a ser um

ato de afirmação excludente, do que de solidariedade ilimitada. Assim, na cultura de

cada povo não está escrito apenas a comprovação histórica de sua competência em

identificar-se, sobreviver e fazer uma sociedade comum, mas igualmente de

conquistar espaço próprio e de se impor. Por isso, quando falamos de competência

histórica, a tendência é interpretá-la como conquista que se impõe. Ao dizermos,

entretanto, “competência humana”, buscamos res- saltar a história solidária (65).

Tudo isto, porém, é interessante de se dizer, mas dificílimo de pesquisar. Tomemos

como exemplo a proposta de pesquisar o engajamento político em fenômenos

associativos. Podemos ir mais pelo lado quantitativo, contando o número de

membros, quantas vezes se reúnem, atendimento interno e externo. Entretanto,

pode ser indicação enganosa, se estivermos interessados na intensidade. A

associação reúne-se toda semana, mas não aparece quase ninguém. Pode ter

muitos sócios, mas fictícios. A mera soma de sócios não produz a qualidade da

associação, e haveria mesmo cientistas dispostos a mostrar que a associação

menor, onde os sócios ainda se conhecem face a face, tem chances melhores de

engajamento do que as maiores, irremediavelmente

Início de nota de rodapé

65- Sobre esta discussão em torno da qualidade, veja capítulo específico em:

DEMO, P. 1998d. Questões para a teleducação. Petrópolis, Vozes.

Fim de nota de rodapé

Página 120

burocratizadas. Por outro lado, podemos ter assembléia cheia, mas ninguém fala,

porque o Iíder fala sozinho e todos obedecem. Com isto, parece claro que o caminho

quantitativo ajuda em certa medida, mas nem de longe resolve a questão da

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qualidade. Mas, como consigo saber se existe engajamento político? Mesmo sendo

qualquer proposta extremamente frágil, posso aventar alguns vislumbres:

a) é viável colher a opinião dos sócios que se dizem engajados, para averiguar como

definem seu engajamento; esta informação pode ser incompleta ou mesmo

enganosa, porque todo sócio tende a fazer boa figura, verbalizando engajamento

que, na prática, não cumpre; mas podemos também encontrar casos de genuíno

engajamento, que diálogo aberto e controlado pode minimamente codificar;

b) é viável observar a prática dos sócios que se dizem engajados, e averiguar o que

sucede de concreto; será possível ver gama muito variada de comportamentos, mais

ou menos convergentes, o que permitiria alguma análise da intensidade;

c) é viável também observar a atuação da associação conforme seus objetivos

sociais, para além de suas verbalizações, e chegar a notar se faz o que diz ou

apenas diz que faz;

d) é viável, ademais, colher informação na sociedade que é alvo das ações da

associação, para averiguar até que ponto se reconhece o engajamento político e

como se define concretamente.

Em qualquer caso, trabalho dimensões etéreas, que facilmente escapam à

formalização. Reconhecer isto, porém, não impede de reconhecer que é possível

pesquisar, com as devidas cautelas. Entre estas, está a regra de que a metodologia

usada deve poder ser refeita por todos que dela duvidarem. Num primeiro plano,

esta regra rejeita que pesquisa qualitativa admita qualquer procedimento,

acobertando banalidades insustentáveis. Num segundo plano, recomenda postura

metódica, cientificamente controlada, para permitir discussão crítica e autocrítica. Ao

mesmo tempo, a questão da intensidade e da emergência não cabe adequadamente

nos quadros da representatividade estatisticamente controlada, por- que não é, a

rigor, mensurável. O que se perde em representatividade pode ganhar-se em

profundidade, desde que esta seja minimamente formalizada. É comum o uso de

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“depoimentos”, sobretudo quando pesquisamos populações excluídas. Toma-se logo

importante anotar que o depoimento em si não se Constitui

Página 121

em argumento, porque lhe falta a ambiência científica que o senso comum, como

regra, não tem. Mas o pesquisador pode lhe atribuir valor científico, dependendo do

tratamento metodológico aplicado. Por exemplo, em vez de esperar de depoimentos

qualquer valor “demonstrativo”, pode-se valorizar seu caráter “ilustrativo” ou

“exemplar”. Encher páginas e páginas de depoimentos pode apenas expressar que

estamos substituindo as vacas sagradas da academia por outras ainda mais frágeis.

Mesmo em nível inicial, será sempre fundamental motivar os alunos a pesquisarem,

também em áreas qualitativas. Não se tratará tanto de resolver problemas — que a

ciência sequer resolve — como para aprender a problematizar, sobretudo os

próprios dados. Produzir e analisar dados é tão importante quanto desconfiar deles.

Seu bom uso depende, mais que tudo, de saber de seus limites. Exemplo

interessante disso é o livro sobre as “mentiras mensuradas”, mostrando que a curva

de Gauss é mais abusada em análises estatisticamente controladas, do que bem

usada (66).

Início de nota de rodapé

66- KINCHELOE, J. L. et alii (ed.). 1997. Measured lies — The bell curve examined.

New York, St. Martins’s Press.

Fim de nota de rodapé

Página 122

Em branco

Página 123

6

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OBTER E PRODUZIR INFORMAÇÃO

Antes de inventar dados, é mister trabalhar a informação já disponível. Digamos, se

quero estudar o fracasso escolar, em vez de logo meter-me a fabricar questionários,

aplicar e analisar, posso descobrir que em algum lugar existem dados importantes a

respeito, por exemplo, no INEP (órgão de pesquisa e avaliação do Ministério da

Educação). Lá se fazem avaliações recorrentes sobre o desempenho escolar dos

alunos, além de censos sobre professor, escola, livro didático etc. De repente,

encontro tudo já mais ou menos pronto e estatisticamente controlado. Quer dizer, é

fundamental saber encontrar informação, mantendo-se a par de todos os modos

possíveis e imagináveis. Hoje temos via sugestiva à mão: a Internet. Entrando no

site do INEP, será possível ter idéia do que se pode obter pela via eletrônica e que,

para trabalho de semestre, pode fartamente bastar. O manuseio de dados será

facilitado sobretudo pelo interesse do Departamento em promover tais atividades,

seja cultivando acessos eletrônicos a bancos importantes de dados, fazendo

convênios com entidades que produzem dados, seja armazenando dados

diretamente, sobretudo os de interesse mais imediato, bem como produzindo dados

próprios. Existem temas recorrentes que será o caso sempre acompanhar: por

exemplo, dados sobre criminalidade urbana, principais indicadores do desempenho

econômico do país, índices educacionais básicos, e assim por diante.

Página 124

Existe a regra segundo a qual o dado melhora, se usado e criticado. Por exemplo,

na década de 60 e 70, usávamos o conceito de renda per capita como indicador de

renda individual das pessoas, sabendo, entretanto, que seu poder indicativo era

muito limitado, por várias razões: as pessoas não gostam de dizer sua renda, tanto

quando ganham pouco, como quando ganham muito; tendem a revelar apenas a

“renda forma”, ou seja, aquela de fonte legal e de preferência fixa, como é o salário;

escondem fontes eventuais, sobretudo escusas. O enfoque individual também

obscurece a realidade familiar, onde as rendas precisam ser divididas.

Imaginávamos que a informação contida na “renda individual per capita” abrangeria

talvez por volta de apenas 50% do montante geral da renda. As estatísticas

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apontavam tal incongruência no fato de que uma percentagem elevada — digamos

30% das pessoas — não tinha qualquer fonte de renda (apareciam na estatística

como “sem rendimentos”). Dificilmente é aceitável que tanta gente viva do nada.

Provavelmente fazem parte de orçamentos domésticos em que recebem apoio

coletivo de sobre- vivência, ou possuem fontes eventuais de renda não declarada,

ou sobrevivem de auxílios de outros ou da rua... Com isto, desenvolveu-se a idéia da

“renda familiar per capita”, que ainda não consegue captar toda a renda — é claro —

mas é bem mais abrangente e indicativa. Esta melhora do dado proveio sobretudo

de seu uso e crítica.

Algo similar se pode dizer do velho indicador da renda per capita dos países e que

um dia valia como indicador de desenvolvimento. Com efeito, este indicador diz

apenas a relação entre população e renda, não sua distribuição. Desde logo,

esperávamos do dado algo que sequer poderia dar, estando o erro muito mais nos

intérpretes do que nele mesmo. Refletindo melhor sobre o conceito de

desenvolvimento, fomos descobrindo que o desempenho econômico é fundamental,

mas jamais o único e fator, e hoje possivelmente nem mesmo a relação mais central.

A ONU, através do Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),

publica todo ano Relatório do Desenvolvimento Humano, ranqueando os países de

acordo com três indicadores: educação, expectativa de vida e poder de compra. O

fator econômico aparece, obviamente, mas em terceiro Iugar. Em primeiro, está

educação. Por quê? Porque na definição de desenvolvimento privilegia-se o conceito

de “oportunidade”. Ora, que fatores estão mais próximos de proporcionar

oportunidades? O que dá mais

Página 125

oportunidade às pessoas, sobretudo que fator favorece às pessoas “fazerem-se

oportunidade”? Possivelmente, em primeiro lugar, a educação, e, em segundo lugar,

a longevidade. Até chegar aí, muita água correu por debaixo da ponte, e, sem que a

polêmica tenha terminado, conseguimos discussão pelo menos mais rica e dados

mais pertinentes. Na prática, há países com altíssima renda per capita e população

geral muito pobre, bem como há outros com renda per capita modesta, mas melhor

distribuída.

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Ademais, é necessário sempre observar criticamente a consistência de tais dados,

porque, tratando-se de realidades nacionais, seu poder indicativo é muito

problemático, a começar pela facilidade de manipulação. Caracteristicamente, na

primeira versão do Relatório do Desenvolvimento Humano em 1990, os Estados

Unidos apareceram ranqueados por volta do 20° lugar, o que lhes pareceu muito

desagradável. Alguns anos depois, postavam-se nos primeiros Iugares, sob efeito de

clara manipulação dos dados, já que, em termos de qualidade de vida (não apenas

de quantidade), há muitos países à frente, como a Escandinávia em peso e vários

países da Europa. No caso do Brasil, tem se saído muito mal, porque, sendo

educação um dos fatores mais precários de nossa realidade, nunca conseguiu

postar-se abaixo do 50° lugar, que obteve em 1990. Continua incômodo que, sendo

mais ou menos a 10a economia mundial, em qualidade de vida esteja mais de cinco

vezes atrás. Esta análise mostra, de todos os modos, que o dado não é primeiro.

Depende da referência teórica e indica o que esta referência o faz indicar. E

construto, não representação direta da realidade. No IBGE não está o Brasil real,

mas possivelmente o oficial. Mesmo assim, é de suma importância produzir os

dados do IBGE, não só para fins oficiais, muitas vezes suspeitos, mas sobretudo

para acesso público em termos de informação disponível e recorrente.

Todavia, não havendo informação disponível, é mister inventar. “Inventar” não deixa

de ser termo correto, porque, ao fazermos informação nova, sendo construto, não

podemos deixar de reconhecer que não só indicamos, como também manipulamos a

realidade. Em ciências sociais, usa-se muito a aplicação de questionários e os

distinguimos entre fechados e abertos. Os questionários fechados buscam

informação previamente formalizada, encaixando as respostas em formatos já

definidos: “sim”, “mais ou menos”, “não”. Digamos a pergunta: aprova o atual

Página 126

desempenho do presidente da República? Podemos simplificar as respostas em

apenas sim e não, bem como podemos nuançar dentro de escala mais ampla, o que

certamente será preferível. O respondente, mesmo que queira nuançar ainda mais,

terá de encaixar-se nas gavetas previstas. No caso de questionário aberto, a

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resposta pode ser gravada ou será anotada em detalhe, deixando-os o respondente

falar à vontade. Pode ser muito mais realista, mas, metodologicamente falando,

coloca inúmeros problemas, tais como:

a) a abertura é, em grande parte, ilusória, porque, depois, o pesquisador precisa

formalizar as respostas, encaixando-as em categorias analíticas. A conversa, como

aparece gravada, mesmo muito interessante e viva, não serve para fins analíticos,

porque precisa ser “reduzida” a padrões recorrentes, conforme alguma hipótese de

trabalho que lhe traça a relevância. A abertura é importante para que a informação

flua melhor e expresse de maneira mais palpável a qualidade do dado, mas não

evita a necessidade de formalizar; antes, é outra maneira, menos linear, de

formalizar;

b) a abertura não pode ser total, porque, se não houver pelo menos roteiro prévio, as

informações, depois, não somam. E fundamental, metodologicamente falando, que

cada nova entrevista replique os mesmos contextos analíticos, para que sejam

comparáveis. Se, por um lado, a conversa, quanto mais solta, mais pode ser

qualitativa, por outro, mais complicada para ser formalizada;

c) as entrevistas precisam ser feitas de tal modo que possam ser refeitas, para fins

de teste ou de superação de dúvidas. Se a conversa for fortemente “particular”,

deixa o esquema de análise e torna-se impraticável a busca de alguma

universalização do dado, algo inerente à pretensão científica de expressar faces

recorrentes da realidade, não surtos individuais irrepetíveis. Para tanto, é

fundamental o roteiro, bem como a maneira de “conduzir” por parte do entrevistador,

para não perder o fio da meada;

d)em entrevistas mais profundas, que implicam “arrancar” do entrevistado posições

mais sensíveis, escusas, pudicas, a questão se complica ainda mais. Por vezes, o

entrevistador faz bem em dar a entender que o entrevistado pode falar o que quiser,

para deixá-lo à vontade, desde que isto seja a estratégia de falar o que o roteiro

prevê, porque, no fundo, só será aproveitado o que

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couber no roteiro. Isto mostra que a abertura esconde tática manipulativa evidente,

embora defensável neste caso;

e)a entrevista pode ser feita também em tom de diálogo crítico, no qual o

entrevistador tenta, quando necessário, encurralar o entrevistado, para evitar

evasivas ou mesmo inverdades. Neste caso, entretanto, talvez nunca saberemos se

a informação finalmente obtida é mentira por parte do entrevistado ou o que se

queria ouvir por parte do entrevistador. Quando a entrevista vira “interrogatório”,

corre o risco de descobrir “verdade” mais profunda, escondida, bem como de obrigar

o interrogado a assumir a culpa, mesmo que seja inocente.

Esta visão crítica, todavia, mostra não só o lado precário do dado, mas igualmente

sua beleza. Dado quadrado, toscamente linear, bruto, não indica nada, porque, mais

que tudo, “amarrota” a realidade. Para indicar algo e sempre fragilmente, precisa ser

elegante, bem trabalhado, fino, refinado, tendo como virtude principal abertura

irrestrita ao questionamento. Isto é tanto mais relevante quanto mais nos

interessamos por “dados qualitativos”, a começar pela dubiedade do termo: dados

qualitativos são algo em si contraditório, porque expressam, se tanto, as facetas

mensuráveis da qualidade. Estas sempre existem, porque nada é tão qualitativo que

não possa, de alguma forma, ser “mensurado”, ainda que muito grosseiramente. Por

exemplo, o Quociente de Inteligência (QI) representa a tentativa de mensurar algo

intensamente qualitativo, em particular quando definimos inteligência pela habilidade

de saber pensar. Os testes podem ser facilmente ridicularizados, porque tendem a

aprisionar facetas quantificáveis, e facilmente desandam em mera memorização, por

exemplo. Decorar datas históricas está longe da capacidade de sua interpretação

crítica. Memorizar fórmulas matemáticas não indica, necessariamente, que se sabe

matemática. Mesmo assim, pode-se usar o QI como primeira aproximação, com

todas as cautelas, como podemos usar a “renda per capita” para comparar países,

mas sabendo que este indicador não indica desenvolvimento e, sim, apenas a

relação estatística entre população e renda.

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Alguns pesquisadores mesclam perguntas fechadas e abertas, servindo ambas de

teste mútuo e complementação. Seja como for, é preciso sempre ter em mente

propriedades e impropriedades dos procedimentos. Digamos que estou estudando a

capacidade de aprender de professores básicos, algo que tem faces qualitativas

Página 128

claras. Posso começar por quantificações aproximativas: quantos livros técnico-

científicos leu no último ano? Como resposta, formalizo previamente três saídas:

nenhum, até dois, mais de dois. Tais delimitações refletem tessitura teórica implícita,

como seria a expectativa de que ler dois livros num ano já seria algo considerável.

Na Alemanha, certamente espera-se muito mais. Está implícito também que para

aprender é mister ler, ou que seria fundamental para o professor participar do mundo

cultural dos livros técnico-científicos. Analisando melhor, porém, esta informação

pode ser muito tosca, porque não discrimina entre leitura que aprende e outra que

não aprende. Com efeito, o professor pode ter folheado dois livros, ou lido sem ter

entendido. Em vista disso, posso acrescentar outra pergunta mais aberta: diga até

três conceitos básicos de cada livro que leu! Por certo, esta indicação ainda é

magra, tanto porque pode inventar, quanto porque três conceitos podem ser tidos

como relação insatisfatória. Posso, por isso, abrir mais ainda a pergunta: diga, com

palavras próprias, qual o conteúdo de cada livro! Aí corro outros riscos: falar muito

sem dizer nada, inventar história para impressionar, apontar conteúdo de livro que

Ieu em outra época como se fosse de agora... Não encontro solução final, pois não

existe. De todos os modos, a informação proferida por outrem será aceita por mim

como se fosse verdadeira, e nem sempre tenho condições de desvendar isso, sem

falar que, no fundo, não se pode desvendar. Mesmo assim, posso colher dados

muito importantes, apesar da extrema fragilidade, por exemplo, que a maioria dos

professores não lê mais que dois livros por ano.

Tudo se complica ainda mais quando se trata de universo dito qualitativo,

significando por isso quase sempre entrevistar poucas pessoas. Foge-se de fazer

entrevista representativa estatisticamente falando, para nos compensarmos com

escavação pro- funda de realidades mais complexas e delicadas. Tomemos como

exemplo: estou pesquisando como as pessoas definem felicidade, algo, desde logo,

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difícil de definir. Por hipótese, fixo-me em frequentadores da Igreja Universal do

Reino de Deus, supondo que felicidade facilmente se relaciona com religiosidade e

ultimamente esta Igreja tem sido muito procurada. Como se vê, já tomamos grandes

decisões teóricas prévias, mesmo que sejam descritas como hipóteses. Surge,

então, a pergunta: quantas pessoas vamos entrevistar? Dez, cinquenta, cem? No

fundo, não há maior diferença, já que não se busca representatividade. Podemos, no

Página 129

máximo, dizer que é prudente não ficar com apenas algumas pessoas, porque o

risco de idiossincrasia é grande demais. Mas o tamanho desta prudência é, de novo,

insolúvel. De minha parte, faria cem entrevistas, apenas por razões externas de bom

senso: é fácil fazer percentuações, é número “razoável”, permite espaço

comparativo mais tranquilo... Melhorou as coisas se “estratifico” a amostra,

delimitando por alguns critérios como “frequentadores semanais”, “adeptos de mais

de um ano”, para garantir melhor que as respostas tenham relação mais visível com

religiosidade. Depois, vêm outros problemas: as pessoas não falam facilmente sobre

felicidade, desconfiam que estejam sendo estereotipadas porque a imprensa tem

criticado está Igreja, querem antes pedir licença para o pastor, sem falar que

respostas altissonantes sobre felicidade tendem a indicar o contrário, pois quem é

feliz não “toca trombeta na esquina”. Por fim, se conseguir obter tais dados, posso

ter em mãos, ao mesmo tempo, algo muito interessante e precário, e que, no

máximo, clarifica, ilustra, delineia a questão da relação entre felicidade e

religiosidade.

Com efeito, é possível afirmar que a pesquisa qualitativa tem sido abusada a torto e

a direito nas ciências humanas, servindo a manipulações sonsas de toda ordem.

Nem sempre a intenção em si profundamente correta de obter informação mais

qualitativa se realiza, porque os dados obtidos são sobretudo aleatórios, feitos sem

roteiro adequado, afoitos em termos de ecoar informações indicativas mais comuns,

perdidos em depoimentos descompromissados metodologicamente falando.

Esquecemos os limites da própria ciência e de todos os métodos, também dos

qualitativos, e respondemos a erro com erro oposto. Se a pesquisa empírica

clássica, mesmo evitando o empirismo, não satisfaz para fenômenos mais

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qualitativos, a pesquisa dita qualitativa também não resolve todos os problemas, já

que, por definição epistemológica, é impraticável devassar a realidade por completo.

O que a pesquisa qualitativa pode fazer, e tem nisto todo seu direito, é realçar

horizontes alternativos, apontar dimensões esquecidas ou reprimidas, chamar a

atenção para o que se esconde à sombra, clarificar os silêncios, as reticências.

A sociedade já está habituada à enxurrada de informações que aparecem

publicamente na imprensa e na televisão. Torna-se mais visível em tempos

eleitorais, quando os índices de aprovação e voto passam a ser críticos das chances

de cada candidato.

Página 130

De uma parte, impressiona que os Institutos de Pesquisa obtenham indicações tão

potentes de amostras tão miseráveis. Embora tenham caminho bem andado de

estratificação da amostra, porque já sabem o peso relativo de cada componente (por

gênero, idade, renda, domicílio, anos de estudo etc.), tais pesquisas parecem-me

muito insatisfatórias para produzir a segurança que os candidatos esperam. De

outra, esperamos delas o que nunca podem dar: certeza. Primeiro, são cálculos

probabilísticos, com margem de erro implícita e normal. Segundo, refletem tendência

tipicamente não linear, o que leva a equívocos constantes, como dormir vitorioso e

acordar derrotado.

Pesquisa qualitativa é muito mais severa e complexa. Ao contrário da expectativa

comum, sobretudo em ciências humanas. A fineza de dados mais sensíveis só pode

aparecer no decurso de trabalho beneditino, obsessivamente cauteloso e crítico.

Todo questionário, antes de ir a campo, precisa ser submetido a pré-teste, porque

mesmo pesquisadores experimentados cometem seus percalços. Arte essencial é

saber fazer perguntas claras, bem discriminadas, que evitam duplo sentido ou

sentido esparramado, conduzindo a respostas precisas. Existem instituições que

“vendem” perguntas já prontas, porque foram submetidas a testes estatísticos e

podem ser utilizadas com relativa tranquilidade.

Página 131

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7

TEORIZAR E PRATICAR

Forma interessante de pesquisar é partir da prática, submetendo-a a nova

teorização. Dizemos que toda teoria precisa confrontar-se com a prática, porque, isto

fazendo, tem que mudar, pois é impossível coincidência completa entre ambas. Vale

o reverso: toda prática precisa voltar para a teoria, para poder ser revista e por

vezes superada. A prática tem suas virtudes, a começar por ser concreta, fazer parte

da realidade, acontecer de verdade. Mas tem suas Iimitações: tende a converter-se

em rotina, girando em torno de si mesma. Para evitar isso, é necessário propor,

permanentemente, um banho de teoria crítica. Por exemplo, se os professores

básicos teorizassem sua prática de modo crítico, poderiam descobrir, entre outras

coisas, que os alunos aprendem pouco e que parte deste problema pode provir dos

próprios professores pouco interessados na aprendizagem do aluno. Isto posto,

segue o passo seguinte que é propor soluções à luz de novos estudos que possam

trazer idéias renovadas (67).

A sociologia mostra facilmente que a sociedade se agarra a normas e valores,

constituindo sistema tendencialmente repetitivo

Início de nota de rodapé

67- Veja interessante estudo de práticas didáticas comparadas em educação básica,

mostrando a superioridade da japonesa por saber, mais que as outras, teorizar suas

práticas: STIGLER, J. W. & HIEBERT, J. 1999. The teaching gap — Best ideas from

the worlds teachers for improving education in the classroom. New York, The Free

Press.

Fim de nota de rodapé

Página 132

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de comportamento. Mais ou menos, fazemos todos os dias a mesma coisa. Em

aulas de introdução à sociologia, sempre propus que os alunos pesquisassem o

seguinte tema: “Sou medíocre”. A princípio, levavam susto. Depois, pensando bem,

percebiam que a tendência à mediocridade é avassaladora em nossa vida. A família

vive rotineiramente, o casamento vira reprodução enfadonha, as amizades mofam

porque são sempre as mesmas, trabalhamos, por vezes trinta anos, no mesmo lugar

e do mesmo jeito, mantemos comportamento similar a vida toda. A mudança só

pode provir do contrário, ou seja, de sacudir a rotina. Primeiro, há que detectar a

rotina, desconstruindo-a. Segundo, há que contrapropor, para sair da rotina. Assim,

é imaginável renovar nossas pretensões profissionais, rever a educação de nossos

filhos, voltar a estudar para aprender melhor, e assim por diante. O espírito crítico é

alimentado tanto pela teoria como pela prática. A prática comparece como outra

oportunidade de fazer boa teoria e a teoria boa oportunidade para encontrar prática

renovada. Quando falamos de paradigma científico, no fundo estamos apontando

sobretudo para seu lado rotineiro. Forma-se escola de pensamento e pesquisa,

geralmente sob a batuta de um ou mais líderes, à medida que as idéias se

sedimentam e, com isso, também se cristalizam. Observando bem, a reprodução de

idéias predomina sobre sua renovação. Os “donos” do paradigma cuidam que idéias

novas sejam filtradas ou afastadas. E difícil que o paradigma seja abalado de dentro.

O confronto mais propriamente vem de fora, de outra posição que se dispõe a

questionar e apresentar alternativas.

Método interessante de observar práticas é a observação. Para tomar-se

cientificamente adequada, precisa de procedimentos metódicos específicos.

Observar inclui plano de pesquisa, com tema e hipótese, levantamento teórico

pertinente e trabalho explicativo bem argumentado, além da coleta de dados

sistemáticos que permitam mapear o terreno e nele intervir de modo alternativo.

Muitas observações não incluem a intervenção direta, como seria, por exemplo,

observar o comportamento dos jovens em bailes violentos, com a intenção de

conhecer suas características principais, deixando-se para os políticos a

intervenção. Esta distinção, entretanto, está caindo em desuso, porque é

sumamente artificial. Mesmo que se tratasse de tese de doutorado, interessada

apenas em desenhar compreensão de traços centrais do fenômeno, a própria

presença do observador, de certo modo, influi no fenômeno,

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Página 133

sobretudo quando existe consciência disso por parte do observado. Esta questão é

hoje reconhecida até mesmo em física, em particular na física quântica, na qual o

estudo de partículas nelas influi, mudando-lhes a trajetória, dinâmica ou outras

marcas possíveis (68). A par disso, sobretudo tratando-se de fenômenos sociais, é

impraticável a isenção, primeiro porque não podemos abdicar da condição de sujeito

interpretativo — não é viável vermo-nos de fora, saindo da própria pele — e segundo

porque os contextos sociais nos evolvem naturalmente pela própria pertença cultural

ou similitudes comportamentais.

Chamamos de observação participante aquela em que deliberadamente tomamos

parte do fenômeno observado, como é o caso do antropólogo que vive na aldeia

pesquisada. Entretanto, este nível não implica que o pesquisador intervenha na

aldeia, razão pela qual o adjetivo “participante” é um pouco forçado. Realmente

participante seria aquela observação que implica inserção no projeto político do

grupo observado, como é o caso dos intelectuais orgânicos de movimento

associativo de luta. Algumas vezes, chamamos a isto de “pesquisa participante”,

incluindo duplo intento: pesquisar e intervir (69). Trata-se de “pesquisa prática”,

direcionada a alimentar a contra-ideologia do grupo. Podemos ver este tipo de

pesquisa no DIEESE, por ser órgão de pesquisa dos Sindicatos, com a finalidade de

alimentar a Iuta sindical. Nem por isso confunde-se ciência e ideologia, por mais que

andem juntas. Quando se trata de levantar a inflação, usam-se os melhores métodos

e teorias disponíveis em ciência. Entretanto, não se basta com levantar, teorizar. O

objetivo declarado é participar de modo cientificamente melhor plantado na luta

sindical. Os pesquisadores, por sua vez, como regra, fazem parte do movimento de

luta como militantes ostensivos, desempenhando duplo papel: como cientistas,

estudam da maneira melhor argumentada possível a inflação; como militantes, usam

este conhecimento para proporcionar ao movimento condições aprimoradas de luta.

Com isso não estamos dizendo que toda pesquisa deva ser participante. E sempre

possível estudar um tema teoricamente

Início de nota de rodapé

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68- CASTI, J. L. 1998. The Cambridge Quintet — A work of scientific speculation.

Reading, Massachusetts, Perseus Books.

69- DEMO, P. 1985. Investigación participante — Mito y realidad. Buenos Aires,

Kapelusz.

Fim de nota de rodapé

Página 134

para fins de sua categorização renovada ou alternativa. Sobretudo nos cursos

universitários, as pesquisas propendem a permanecer neste limite, como são as

teses de mestrado e doutorado. Não é mister ver nada de errado em grupo de

alunos que pretende entender o fenômeno da pobreza política sem estar ainda

preocupado em combater. É claro que o mero estudo cheira a alienação e é por isso

que facilmente tachamos a formação universitária de alienada, porque vive no

mundo da teoria ou no mundo da lua (70). Quando deixamos a universidade, nada

sabemos de prático. Neste sentido, seria de todo oportuno introduzir a teorização

das práticas, porque, sem qualquer prejuízo da teoria, acrescenta o contato com

realidades concretas, muito além dos estágios caricaturais. Em certo sentido, o

aluno nunca deveria sair da prática, como se, para estudar, fosse necessário

suspender a vida concreta. Toda reforma curricular deveria prever esta parte,

introduzindo matérias que pudessem ser pesquisadas a partir da prática, com-

binando elegantemente habilidade teórica com capacidade de intervenção.

O enfoque da prática, devidamente teorizada, possibilita a descoberta de desacertos

arraigados encobertos pela rotina. Tomando-se o exemplo da escola básica, uma

observação atenta poderia perceber:

a)que o projeto pedagógico tão decantado não existe; é apenas discurso vazio;

b)que as promessas de planejamento participativo são tendencialmente farsantes; a

comunidade é chamada para convalidar o que já está decidido;

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c) que a eleição de diretor, menos que conquista democrática, é tática de autodefesa

da escola para proteger espaço intocável do professor;

d)que os alunos aprendem muito mal e os professores sequer se preocupam com

isso;

e)que os professores mandam os alunos estudar, mas eles mesmos não estudam.

Este é o lado negativo. Poderíamos também encontrar como certa prática de

avaliação totalmente comprometida com a aprendizagem

Início de nota de rodapé

70-BOTOMÉ, S. P. 1 996. Pesquisa alienada e ensino alienante — O equívoco da

extensão universitária. Petrópolìs, Vozes.

Fim de nota de rodapé

Página 135

do aluno estaria surtindo bons efeitos, ou que a eleição de diretor ocasionou

redobrado ânimo nos professores. O problema da teorização das práticas é que

demanda algum tempo, porque precisa ser vista, experimentada, codificada, para

ser estudada. Supõe, pois, para além de todo cuidado teórico, a dedicação a coletar

e produzir dados, para, em seguida, interpretar e contra- propor. Deve-se distinguir

prática de ativismo ou de intervenção atabalhoada, já que estamos falando de

prática cientificamente orientada. A prática se prestaria bem a trabalho de equipe,

permitindo dividir tarefas práticas e teóricas, somando-as tanto melhor. Facilitaria a

interdisciplinaridade também, embora esta seja por vezes mal interpretada. Primeiro,

há que distinguir entre trabalho de grupo e trabalho interdisciplinar. Naquele, trata-se

de ajuntar forças, neste, de ajuntar disciplinas. Embora um grupo homogêneo —

digamos de pedagogos — possa fazer até certo ponto trabalho interdisciplinar — por

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exemplo, cada um aportando enfoque diverso ao problema da aprendizagem:

biológico, linguístico, cibernético, psicológico etc. —, o mais comum é que a

interdisciplinaridade vinga melhor em grupo heterogêneo. Uma coisa é cinco

pedagogos aportarem sugestões de disciplinas diversas, outra é tais sugestões

provirem de profissionais das próprias disciplinas. Não se pode pretender que

interdisciplinaridade conjugue a superficialidade do conhecimento, porquanto

conhecimento mais profundo é sempre especializado. Combatemos o excesso de

“disciplinarização”, porque estreita por demais o olhar ao aprofundá-lo apenas

verticalmente. Mas mantém-se a necessidade de especialização, porque é o preço

da profundidade. Neste sentido, a interdisciplinaridade não quer prejudicar a

verticalização do conhecimento e, sim, mas alargar até onde possível sua

horizontalização. É por isso que trabalho interdisciplinar é, mais propriamente, coisa

de grupo.

A interdisciplinaridade posta em grupo destaca, de imediato, do que se trata. Não

interessa somar saberes similares, mas díspares, capazes de ver o que outros não

vêem. Interessa, ao mesmo tempo, o olhar profundo, de quem vê bem. Trata-se,

pois, de somar profundidades, que poderiam iluminar a questão tanto mais. Dentro

do grupo, espera-se que cada membro cumpra seu papel, ou seja, dê conta de sua

especialização. O matemático espera que o sociólogo lhe traga o que a melhor

sociologia possível teria a dizer e vice-versa. Faz pouco sentido um se meter a

substituir o outro. Pois serão todos superficiais e banais.

Página 136

Em branco

Página 137

8

MEIOS CIBERNÉTICOS

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Na sociedade do conhecimento, a teleducação comparecerá provavelmente em

todos os espaços educacionais, para melhor e por vezes para pior. Seu maior

problema é que propende para o instrucionismo, porquanto prefere restringir-se a

processar in- formação e repassá-la para frente. Apesar de sua extraordinária

potencialidade, tem permanecido como “telensino”, muitas vezes apenas

interessado em enfeitar a aula. Seu grande desafio é descobrir a aprendizagem de

teor reconstrutivo político, fazendo aparecer em seu espaço formação, para além da

informação. Em alguma medida, a tendência instrucionista provém da discussão em

torno da inteligência artificial, centrada no processamento de dados e tendo como

pano de fundo a teoria representacionista da realidade. A biologia, em particular as

neurociências, estão solapando esta pretensão, porque o próprio cérebro, em sua

tessitura conexionista, não é claramente equipamento reprodutivo. Da parte da física

apareceu a teoria da emergência, que tem procurado mostrar dinâmica reconstrutiva

típica de toda realidade. Penrose postula que o cérebro deverá ser explicado

possivelmente por outras teorias ainda não disponíveis, provavelmente quânticas.

Rejeita que o computador possa aprender, porque não está, pelo menos até o

momento, dotado da capacidade interpretativa emergencial

Página 138

(71). É o que também assevera Dreyfits, apesar do fogo cruzado desta polêmica já

azeda (72). O computador é ainda máquina excessivamente Iinear, muito longe de

poder “imitar” o funcionamento do cérebro, embora, dados os avanços persistentes,

um dia se possa imaginar computador que saiba pensar. Já o cérebro — chamado

por alguns de meatware para jocosamente indicar que pedaço tão simples e

especial de came pode, sendo em si mera matéria orgânica, produzir coisas tão

diferentes de sua base, como consciência, esperança, amor — contém

complexidade inaudita de componentes — 100 bilhões de neurônios, multiplicados

por todas as conexões imagináveis entre eles, onde claramente se nota o que

Norretranders supõe: o mais é diferente. Não se pode, a rigor, crer que esta

máquina tão fantástica não possa, um dia, ser desmontada e remontada pelo ser

humano, como aponta Kurzweil, falando das “máquinas espirituais”. Os

computadores do futuro trarão inovações surpreendentes, desde seu tamanho

microscópico até sua necessidade de corpo e espírito (73).

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Seja como for, a pesquisa, tanto em sua versão de princípio científico quanto na de

princípio educativo, não prescindirá dos meios cibernéticos. Tendência relevante e já

em marcha é apontada por Tapscott, ao estudar a geração digital e seu gosto pela

aprendizagem em rede. Embora os críticos questionem este entusiasmo, porque o

computador serve, para a juventude, mais de entretenimento do que de ferramenta

de estudo, é possível vislumbrar que a aprendizagem em rede poderá explodir as

salas de aula. Não vai eliminar as escolas, mas as vai transformar em laboratórios

de aprendizagem, com duas inovações mais cruciais: quanto ao professor, passará

a orientador, já que a missão de reproduzir conhecimento será assumida pela

instrumentação eletrônica; quanto ao aluno, rejeitará o instrucionismo, exigindo

condições efetivas de aprendizagem autêntica, voltada para a habilidade inequívoca

de reconstruir conhecimento. A partir daí, outras inovações ocorrerão, entre elas:

Início de nota de rodapé

71- PENROSE, R. 1994. Shadows of the mind — A search for the missing science of

consciousness. New York, Oxford Univ. Press.

72- DREYFUS, H. L. 1997. What computers still cant’ do — A critique of artificial

reason. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press.

73- KURZWEIL, R. 1999. The age of spiritual machines — When computers exceed

numan intelligence. New York, Viking.

Fim de nota de rodapé

Página 139

a) a aprendizagem virtual se tornará normal e talvez predominante. Sem substituir a

presença física, torna-se obsoleto admitir que se possa aprender apenas sentado

numa carteira escutando a aula do professor. A orientação do professor toma-se

tanto mais necessária, mas também pode ser feita a distância;

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b) a aprendizagem reconstrutiva politica se imporá como exigência fundamental do

direito de aprender, já que “growing up is about learning” (crescer é aprender), na

linguagem de Tapscott. Propostas reprodutivas, professores que apenas dão aulas,

cursos noturnos montados apenas sobre exposições requentadas, currículos

dedicados apenas a transmitir conteúdos em massa tornar-se-ão relíquias de

passado subdesenvolvido;

c) sobretudo as pós-graduações serão organizadas sob a forma de teleducação,

admitindo-se aos poucos o uso da imagem como forma de argumentar. Será

possível compor tese de mestrado e doutorado em vídeo, filme, CD-ROM, ou

qualquer outro veículo eletrônico, sem prejuízo dos rigores acadêmicos usuais,

sobretudo da necessária argumentação teórica e arrumação metodológica;

d) tornar-se-á natural o trabalho em equipe, com tendência interdisciplinar, qual

empreitada coletiva, sobretudo em rede, de reconstrução sistemática de

conhecimento, acrescentando-se principalmente a idéia de aprendizagem

permanente. Todos poderão participar, fundar, propor grupos virtuais de estudo, com

a vantagem de atender a gostos individuais também. O direito de estudar se imporá

como fundamento do direito à oportunidade, e sua organização será cada vez mais

virtual;

e) os abusos da teleducação, aos poucos, serão questionados e, pelo rnenos em

parte, superados, porque, tratando-se de sociedade do conhecimento, expedientes

reprodutivos serão vistos como espoliação indevida. O próprio mercado tenderá,

dentro da Iógica da competitividade, a expelir propostas imbecilizantes, ainda que

mantenha sua imbecilização própria capitalista;

f) o acesso à informação estará resolvido, pelo menos como disponibilidade. O

problema será a sobrecarga de informação, sua baixa qualidade informativa,

sobretudo formativa, abusos do sistema em termos de filtragem e tendenciosidade;

g) a globalização chegará em cheio à aprendizagem, com seus lados pertinentes e

perversos: de um lado, a luta por monopólios de software e hardware será de vida e

morte, tornando

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Página 140

letra morta a expectativa de democratização fácil da informação; de outro, a

comunicação correrá, mais ou menos sem peias, solta pelo mundo, em redes como

a Internet.

Os meios cibernéticos não substituem a geração direta de dados pelos

pesquisadores, claramente, mas acrescentam campo inigualável de oportunidades,

à medida que praticamente todos os temas possíveis e imagináveis obtiverem algum

tratamento. Pode-se ter influência negativa no sentido do abandono dos clássicos,

das discussões mais complexas e detidas, das simplificações crescentes enlatadas,

mas isto é do negócio. Sabendo usar, o acesso ao mundo das informações estará

mais ou menos aberto, dependendo ainda — sempre — das condições financeiras

de cada um e de cada instituição. Em termos concretos, são dois os horizontes mais

fundamentais:

a)teremos acesso ao mundo da informação e do conheci- mento, como usuários,

podendo participar relativamente de seus avanços e disponibilidade, em sentido

global. O que se faz de novo, imediatamente pode ser visto e acompanhado, não em

toda extensão, porque os “donos” não abrem sua “caixa preta”, mas pelo menos em

alguma extensão. Basta olhar para a maior livraria virtual do mundo —

“AMAZON.COM” —, onde podemos acompanhar a dinâmica das publicações muito

de perto, já selecionada por best-sellers, para cada área, incluindo-se ainda

resenhas de toda sorte sobre todo autor importante; embora os custos de comprar

tais livros sejam elevados, é possível afirmar que aí podemos seguir os passos das

inovações com grande detalhe. Esta é, entretanto, a perspectiva de como somos

influenciados, de como recebemos a informação, de como podemos socializar

conhecimento. Muito mais decisivo é o próximo horizonte:

b)trata-se de participar da dinâmica de gestação do conhecimento e da informação,

para que nos seja possível manter a condição de sujeito. O que discrimina os povos

entre desenvolvidos e subdesenvolvidos é sobretudo esta relação muito desigual:

uns poucos são os “donos” do conhecimento, outros tantos — a grande maioria — o

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reproduzem. Para aproximar-se desta oportunidade, o primeiro requisito é poder

participar dos circuitos cibernéticos, em particular usar a Internet; o segundo é

pleitear inserir-se em grupos virtuais de estudo, nos quais se torna possível

intercambiar informação e conheci mento, mas sobretudo participar de ambiente

produtivo de informação e conhecimento. Trata-se,

Página 141

na verdade, de grupos de pesquisa que buscam ostensivamente aprendizagem

reconstrutiva. Não só é possível participar de tais grupos, como é possível também

— pelo menos em tese — inventar grupos novos, abrindo novos sites na Internet,

por exemplo.

Dois são, portanto, os desafios maiores: como não sucumbir ao entupimento da

informação, em particular daquela feita para desinformar; e como aprender de

verdade, sem ser o joguete de esquemas alheios que nos reduzem à reprodução.

Diante disso, o currículo atual se tomará cada vez mais caduco, em particular sob

seu aspecto reprodutivo. Em vez de ficar escutando professor facilmente

desatualiza&, é preferível navegar na Internet à procura de novidades, desde que

não fiquemos na postura de telespectador. Como o mundo cibemético é marcado

pela velocidade, tende à superficialidade. Teremos cada vez mais produtos

facilitados — por exemplo, os clássicos em cinco páginas para cada um a cores—,

banalizações primárias de polêmicas extremamente árduas, truncamento de

trajetórias argumentativas. Aí mora o perigo. Não podemos aceitar que a

aprendizagem reconstrutiva política possa se tornar procedimento fútil, encontrada

em doses de todo calibre na Internet. Em vez de sólida cultura científica,

conquistada com duro trabalho reconstrutivo profundo, podemos nos contentar com

camada superficial de tinta, borboleteando por todos os autores, tendo deles no

máximo informação preliminar. Em certa medida, esta é a idéia de “fichar livro”. Bem

entendida, é pertinente. Como é feita, trata-se de reprodução deslavada, quando

não de deturpação pura e simples do autor.

A teleducação, entretanto, tomará conta de outros espaços, em particular da

educação profissional, tornada já educação per- manente, no contexto também do

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direito de estudar sempre. À medida que os conteúdos profissionais envelhecem —

em certos espaços com incrível velocidade — é preciso recuperar a flexhilidade,

acompanhar novos passos, vislumbrar as tendências, e isto se faz melhor pela

teleducação, única via de acesso mais universal, em qualquer tempo e Iugar.

Possivelmente, os próprios consumidores da televisão e de outros cantos

cibernéticos tomarão suas providências, coibindo os desmandos do mercado, para

abrir espaços às expectativas de informação e conhecimento necessários para a

aprendizagem permanente. Todavia, este movimento também mostrará a verdadeira

arqueologia do saber, que esconde, no

Página 142

fundo de suas entranhas, o eterno tema do conhecimento proibido74. Somente algo

tão importante para o ser humano poderia ter tão ostensiva dupla face: serve para

desmascarar a realidade, ao mesmo tempo que a máscara. A velocidade com que

os avanços ocorrem, em áreas de extrema sensibilidade como é a biologia, trará,

mais que nunca, a sensação dúbia de oportunidade inigualável e risco iminente, em

particular porque o conhecimento é menos filho da inteligência do que da inteligência

do poder. Sua força está na competitividade. Quando falamos de oportunidade,

fazemos na verdade discurso ingênuo, porque está em jogo a capacidade de

competir, em particular no mercado capitalista. Grande miséria é constatar que a

verve inovadora do conhecimento foi aprisionada pelo mercado e é lá que melhor se

realiza hoje. Pois Iá não há peias de qualquer espécie na direção do lucro e da

submissão dos outros. Basta observar que a concentração do conhecimento tende a

ser maior que a concentração da renda.

Por isso, o discurso cibernético da equalização de oportunidades precisa ser tomado

com extrema cautela crítica. É certo que tudo fica mais barato, mais acessível e que

um dia computador será eletrodoméstico comum, presente em qualquer casa e

qualquer canto. Mas é mister observar que esta abertura é direcionada pelo

mercado, não pela cidadania. O que é mais acessível não é o que mais interessa à

cidadania, mas o que interessa consumir. Barateia-se sobretudo o lado fútil da

cibernética, que tem como intenção primeira nos avassalar. O discurso cibemético

da democracia facilmente propaga o mesmo engodo da globalização, quando, sob a

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cantilena de chances globalizadas, melhor repartidas, sem fronteiras, esconde-se

outra forma, tanto mais severa, de discriminação. Na realidade, somente os Estados

Unidos são globalizados, porque globalizantes, enquanto os outros países estão

mais propriamente acuados. E baile onde se pode entrar, desde que seja no espaço

determinado e se dance a música prescrita. O preço da entrada é a subalternidade

(75).

Esta crítica, todavia, não pode obnubilar o fato de que se trata também de campo de

oportunidades, mesmo para países

Início de nota de rodapé

74- SHATTUCK, R. 1996. Forbidden knowledge — From Prometeus 10

pornography. New York, St. Martins Press.

75- LÉVY, P. 1999. Cibercultura. São Paulo, Editora 34.

Fim de nota de rodapé

Página 143

mais atrasados. Em vez de olhar apenas de longe e se contentar com os restos,

cabe ocupar os espaços possíveis, primeiro como “carona”, e depois tomando o

volante, onde for viável. Para humanizar o mundo cibemético, é preciso ocupá-lo.

Vale aí lembrar que o conhecimento é “limite aberto”, pois, se não pode devassar

tudo, precisa transformar tais limites em desafios abertos. Alguma esperança

sempre se pode depositar em sua capacidade de autocorreção: comete erros, mas,

questionando-os, pode refazer.

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Conclusão

A CONSTRUÇÃO SOCIAL

DA AUTONOMIA

Sendo central ao saber pensar a gestação da autonomia, sobretudo solidária, cabe

estabelecer brevemente sua relação com política social. Não se trata, pois, apenas

de aprendizagem escolar, mas de aprendizagem para a vida. De certa maneira, o

centro da cidadania é saber pensar. É claro que, para a cidadania, o aspecto

associativo é preponderante, porque significa, em primeiro lugar, a capacidade

coletivamente organizada de conquistar a autonomia. Saber pensar comparece

como estratégia metodológica, habilidade de aprender, gestação da consciência

crítica, e nisto faz parte do centro da cidadania. Pondo assim, também digo que

saber pensar não pode resolver, por si só, os problemas sociais. Mas pode colocar

as coisas em direções mais efetivas e traduzir para os excluídos oportunidades mais

palpáveis. Retoma-se o papel fundamental da educação para a cidadania, acrescido

pela orquestração da habilidade reconstrutiva com a habilidade política.

Pobreza política

O enfoque da pobreza política tem ressaltado sobremaneira a importância do saber

pensar, à medida que se firmou a idéia de que o centro da pobreza é menos a

destituição material, do

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que a ignorância. A discussão surgiu no contexto da política social (76), em

particular do combate à pobreza, e hoje é também vastamente usado nos Relatórios

do Desenvolvimento Humano da ONU/PNUD, sobretudo após 1997. Pretende

assinalar que pobreza não pode ser reduzida à carência material, por mais

importante que esta sempre seja, porque significa fundamentalmente fenômeno de

exclusão política. Ser pobre é menos não ter do que não ser. Passar fome é grande

miséria, mas é miséria ainda maior não saber que, primeiro, fome é inventada e

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imposta, e, segundo, que para superar a fome não basta receber comida, mas é

essencial ter condições de prover o próprio sustento. Com isto, passou-se a

considerar ignorância como centro da pobreza: pobre é sobretudo quem não sabe

ou é coibido de saber que é pobre. Não se permite que se constitua sujeito capaz de

história própria. Assim, pobreza não implica apenas estar privado de bens materiais,

mas sobretudo estar privado de construir suas próprias oportunidades. Quando se

fala de ignorância, entretanto, não estamos indicando aquela que todo educador

sabe que não existe, já que todo ser humano está hermenêutica e culturalmente

plantado, desenvolve cultura própria, saberes compartidos, mantém patrimônios

históricos, identidades múltiplas, mas aquela historicamente produzida, cultivada e

reproduzida.

Quanto aos Relatórios do Desenvolvimento Humano, publicados todo ano desde

1990, apesar de seu fulcro neoliberal óbvio, possuem o mérito de, definindo

desenvolvimento como oportunidade, acentuar principalmente sua face política (77).

Critérios econômicos continuam importantes, mas passam a ser considerados

dentro de um conjunto em que já não aparecem como os principais. O critério

principal de desenvolvimento é educação, porque está mais próxima da capacidade

de construir oportunidades. A qualidade educativa popular poderia ser considerada a

vantagem comparativa mais decisiva. No contexto do capitalismo neoliberal esta

proposta soa irônica e contraditória, mormente quando aplicada para a América

Latina, como é o caso da CEPAL, ao falar de “educação e conhecimento” como eixo

da transformação produtiva

Início de nota de rodapé

76- DEMO, P. 1998c. Pobreza política. 7 ed. Campinas, Autores Associados.

77- PNUD. 1990-1998. Human Development Report. New York, ONU. Veja

sobretudo Relatório de 1997. DEMO, P. 1997. Combate à pobreza —

Desenvolvimento como oportunidade. Campinas, Autores Associados.

Fim de nota de rodapé

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com equidade (78). Embora a ONU, como entidade tipicamente neoliberal, esteja

comprometida ideologicamente com a economia capitalista de mercado, isto não

impede de reconhecer que alguns de seus técnicos e expertos produzem conceitos

e idéias interessantes e pertinentes.

O processo de produção da ignorância foi retomado academicamente pelas teorias

pós-modernas e pós-colonialistas, algumas de cariz feminista, como é o caso de

Sandra Harding (79), que apontam, como eco também das propostas de Foucault80,

que a relação principal que o conhecimento mantém é com o poder, não com a

verdade. Certamente, a busca da verdade é central para a pesquisa, mas, sendo o

conhecimento fenômeno também multicultural, socialmente plantado, não pode ser

visualizado como neutro ou socialmente desencamado. Habermas (81), dentro de

suas propostas ligadas ao agir comunicativo, cunhou a definição de verdade como

pretensão de validade, para sinalizar a dialética entre facticidade e validade,

admitindo que a cientificidade não pode prescindir de critérios políticos, e que por

vezes dominam o cenário. Não por outra razão, ocorreu ultimamente recuperação

visível da “retórica”, como faz Perelman (82), no sentido de conjugar habilmente

argumento com convencimento. Parece claro que é próprio de todo processo de

convencimento não só iluminar, mas igualmente ofuscar, como reconheceria

qualquer teoria mais crítica do mundo das comunicações (83).

Irremediavelmente pobre é quem sequer consegue saber que é pobre. Falta-lhe

consciência crítica para, primeiro, ler sua

78- CEPAL. 1992. Equidad y transformación productiva — Um efoque integrado.

Santiago, CEP L. CEPAL/ORELAC. 1 992. Educacion y conocimiento — Eje de 1ª

transformación productiva con equidad. Santiago, CEPAL.

79- HARDING, S. 1998. Is science multicultural? Postcolonialisms, .feminisms, and

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Página 148

realidade, como diria Paulo Freire, e, depois, para enfrentá-la dentro de projeto

político alternativo. Faltando-lhe esta consciência crítica, não consegue fazer-se

sujeito capaz de história própria, esperando, pois, a solução dos outros. O sistema

se aproveita desta circunstância para mantê-lo como “massa de manobra”,

incluindo-o como beneficiário, não como cidadão. Embora o Welfare State tenha

sido grande invenção, sobretudo porque pretendeu — nos gloriosos trinta,

principalmente na Europa Central — impor os direitos da cidadania acima do

mercado, não conseguiu ultrapassar a barreira do mercado capitalista, ou da lógica

abstrata da mercadoria, na interpretação atual de Kurz84. Entre outras coisas,

perdeu-se visivelmente a politicidade da educação, à medida que é vista como via

principal de inserção no mercado, não como condição fundamental da criação e

exercício dos direitos85. A valorização da sociedade do conhecimento também é

dúbia, porque aprecia a qualidade formal (manejo do conhecimento), não a

qualidade política.

Este tipo de visão poderia oferecer outras estratégias de combate à pobreza, muito

diferentes das neoliberais, que apostam apenas na capacidade do mercado —

nunca demonstrada em âmbito mundial — de distribuir renda. O último Relatório do

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B1D86 é exemplar neste sentido: reconhece que a pobreza sobretudo na América

Latina persiste e aumenta — o índice de Gini em países como o Brasil está por volta

de 0.60 (a média mundial é metade disso); mais ainda: a diferença entre o decil

superior (dos 10% mais ricos) e o nono, que nos Estados Unidos seria por volta de

60%, na Escandinávia de 30%, na América Latina atingiria 160%, e no caso do

Brasil mais ou menos 200%; mais:

nesse decil superior, apenas 15% seriam empresários, o que denunciaria processo

de concentração de renda também promovido por autônomos e assalariados

extremamente privilegiados. Entretanto, o Relatório mantém a expectativa de mera

distribuição de renda, enquanto, na verdade, trata-se de “redistribuição”,

entendendo-se

Início de nota de rodapé

84- KURZ, R. 1996. O colapso da modernização — Da derrocada do socialismo de

caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro, Paz e Terra. KURZ, R.1997.

Os últimos combates. Petrópolis, Vozes.

85- DEMO, P. 1998a. Charme da exclusão social. Campinas, Autores Associados.

86- BANCO INTERAMERICANO DE DESARROLLO. 1998. América Latina Frente a

la Desigualdad — Progreso Económico v Social en Arnerica Latina— Informe 1998-

1999. Washington, Banco Interamericano de Desarrollo.

Fim de nota de rodapé

Página 149

por isso a necessidade política, mais que econômica, de retirar de quem tem demais

e transferir para quem tem de menos. Esta reestruturação das relações de poder

não provem do mercado, mas sobretudo da cidadania. Política social não pode ser

feita com as sobras do sistema. Neste sentido, o combate à pobreza precisa,

primeiro, da consciência crítica do pobre, de preferência politicamente organizado,

ou seja, começa com a cidadania. A seguir, implica inserção no mercado, e, por fim,

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assistência social. Daí seguiria a necessidade de política social do conhecimento,

tipicamente emancipatória e pós-moderna, na qual educação deteria a posição-

chave, ainda que jamais exclusiva ou setorialista.

Pobreza política não é outra pobreza, mas a mesma, vista politicamente. Tem como

marca que o combate à pobreza não pode ser beneficência, concessão. doação.

Precisa ser conquista coletivamente organizada, com base em cidadania reflexiva e

combativa. Porquanto o sistema não teme o pobre com fome; teme o pobre que

sabe pensar. Tarefa principal da educação seria, pois, confrontar-se com a pobreza

política, desfazendo o véu de ignorância historicamente produzido sobre as

camadas populares, que os impede de tomar em suas mãos o rumo de sua história.

Esta tarefa lhe é própria, por conta de sua politicidade, em todos os casos mais

decisiva que a inserção no mercado de trabalho. Em primeiro lugar vem o cidadão,

depois o consumidor e o beneficiário (87).

Construção social da autonomia

Para a construção social da autonomia, a superação da pobreza política é questão-

chave. Questiona modos correntes de fazer política social, porque não Ievam a sério

que a figura central para combater a pobreza só pode ser o pobre. Autonomia não

pode ser fabricada de fora, imposta, concedida, mas conquistada. o modelo da

comuna de Paris é particularmente adequado, porque aposta no associativisrno

Iaboral, definindo o estado corno

Início de nota de rodapé

87- DEMO, P. 1998a. Charme da exclusão social. Campinas, Autores Associados.

DEMO, P. 1997. Combate à pobreza — Desenvolvimento como oportunidade.

Campinas, Autores Associados. DEMO, P. 2000. Política social do conhecimento.

Petrópolis, Vozes (no prelo).

Fim de nota de rodapé

Página 150

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instância delegada de serviço público (88). O combate à pobreza precisa, por

conseguinte, orquestrar três níveis de compromisso:

a)assistência, para as populações que não conseguem sobreviver com meios

próprios, em particular crianças, idosos e portadores de necessidades especiais;

trata-se de direito radical de sobrevivência, porque sem este os outros não se

efetivam;

b) inserção no mercado, por motivos de auto sustentação econômica, levando-se em

conta a relevância de obter fonte estrutural de renda;

c)cidadania, através da qual se consuma o projeto de autonomia, fazendo do pobre

o artífice de suas próprias soluções.

Entre os três níveis há visível hierarquia, dentro da necessidade de compor a todos.

Cidadania é o componente mais central. Tomados isoladamente, nada funciona.

Assistência é importante, mas não gesta autonomia. Se malfeita, contribui

fortemente para produzir dependência irreversível nos pobres. Torna-se

assistencialismo, quando o pobre é levado a vender sua alma em troca de comida e

favores. A inserção no mercado representa condição fundamental, desde que não se

assuma o mercado como palavra final. O neoliberalismo, entretanto, tem como

mensagem explícita recuperar a centralidade do mercado, ou seja, sua

competitividade. As necessidades dos trabalhadores serão satisfeitas no contexto da

competitividade, o que tem gerado fortes desigualdades, além de processo

crescente de concentração da renda e redução do emprego. A cidadania indica a

essencialidade da competência humana para compreender seus problemas e gerar

soluções, sempre na condição de sujeito. Nos dois níveis anteriores, o ser humano

aparece como objeto tendencialmente. Chamamos de cidadania tutelada aquela que

se orienta exclusivamente pelo mercado, produzindo atrelamento severo e

apostando na ignorância das pessoas. Chamamos de cidadania assistida aquela

que já tem noção de direito, mas o entrega nas mãos do Estado e de seus agentes,

revidando outra forma de dependência, por vezes não menos severa. Pode cultivar a

ignorância, à medida que os benefícios estejam condicionados à subserviência.

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Entretanto, a construção social da autonomia não pode ser discurso teórico, mas

caminho concreto de ocupação dos espaços,

Início de nota de rodapé

88- DEMO, P. 1999h. Participação é conquista — Noções de política social

participativa. 4 ed. São Paulo, Cortez.

Fim de nota de rodapé

Página 151

inclusive do mercado. Não se basta com a distribuição da renda. Quer sua

redistribuição, ou seja, o reordenamento das clivagens sociais. Para tanto, a ação

política é a mais relevante, sem com isto desprestigiar as outras (econômicas,

assistenciais etc.). A maior indignidade histórica do ser humano é a ignorância, a

situação de massa de manobra, o extermínio do sujeito. Precisa primeiro libertar-se

disso, para ter noção de libertação. Precisa saber pensar para questionar sua

condição histórica e imaginar caminho próprio de solução. Não dispensa apoios

externos, mas os considera complementares. Carece de assistência, mas precisa

libertar-se desta restrição. Carece do Estado, mas deve controlá-lo estritamente,

para que sirva aos interesses dos excluídos. Saber pensar surge, então, como fulcro

central da política social, porque sinaliza o caminho das soluções próprias, em três

níveis mais ostensivos:

a) inclui, num primeiro momento, superar a ignorância, elaborar consciência crítica,

“Ier” a realidade, chegar a perceber onde estamos metidos, o que estão fazendo

conosco, que tipos de limitações nos estão sendo impostas. Esta é a grande

abertura que a educação pode oferecer: saber questionar, desconstruir a pobreza

como condição fatal para atinar que é possível alternativa, desde que a saibamos

inventar. Ignorância não é apenas não saber das coisas, é principalmente aceitar

que só resolvemos nossos problemas com a ajuda dos outros, sobretudo pelos

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outros, como se estes fossem a peça-chave da questão. Ignorância mesmo é deixar

de ser sujeito de sua própria cabeça; é literalmente não saber pensar;

b) inclui, num segundo momento, saber organizar-se, porque importante de verdade

é a cidadania coletivamente organizada, que pode colocar em marcha os achados

obtidos pelo questiona- mento. Uma vez compreendidos criticamente os problemas,

podemos buscar meios de confronto e, entre eles, sobressai a capacidade

organizativa, que potência infinitamente a cidadania individual. Começa, então, o

processo mais concreto de gestação da autonomia, quando se tenta fazer história

própria, ao fazermos e sobretudo nos fazermos oportunidade;

c) inclui, num terceiro momento, inventar projeto alternativo, desenhado pelo saber

pensar e implantado pelo saber organizar-se. Pode-se lutar concretamente por

ocupar espaços políticos (formar partidos, eleger representantes, chegar a postos-

chaves de governo),

Página 152

espaços econômicos (reforma agrária, processos de redistribuição de renda,

chances para pequenos empreendimentos), espaços culturais (direitos de

identidade, de minorias, de comunicação), e assim por diante.

Neste sentido, política social do conhecimento tem como fulcro mais saliente o saber

pensar. Projeto inadiável toma-se, então, garantir a universalização qualitativa da

educação básica, pela razão essencial de que a população precisa saber pensar.

Com efeito, o sistema não teme pobre com fome — é fácil tapar a boca com prato de

comida —, mas teme pobre que sabe pensar

— e difícil fugir ao questionamento de alguém que sabe ler a realidade. E

precisamente neste contexto que a aprendizagem reconstrutiva política ganha seu

maior significado, porque está direcionada frontalmente para a gestação do sujeito

capaz de história própria. Esta maneira de ver repele, em primeiro lugar, as

propostas neoliberais, porque implicam a ignorância do pobre, à medida que se

pretende tutelá-lo por completo. A ignorância mais comprometedora da sociedade

do conhecimento é vender a proposta de que mercado é intocável e que Iiberdade e

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felicidade das pessoas e sociedades se decidem aí, pretendendo transformar a

competitividade em princípio básico da cidadania. A liberdade que o mercado

garante é aquela privada, apropriada, privilegiada, supondo sempre que as maiorias

tenham como sina sustentar, com sua exclusão, o bem-estar da elite. Em segundo

lugar, esta maneira de ver questiona, em parte, o Welfare State, porque fez da

assistência seu princípio central da política social, perdendo de vista que é mister

redistribuir renda e poder. A transformação do excluído em beneficiário tem como

consequência mantê-lo atrelado ao Estado, como se este fosse o garante da

cidadania. Abafa-se o princípio central da autonomia, à medida que se implanta a

expectativa de que é feita, dada, concedida pelo Estado. Na verdade, o garante real

da cidadania é a sociedade consciente e organizada. O Estado somente se dedica

às causas populares quando devidamente controlado, como se diz taxativamente na

Comuna de Paris.

A manipulação comandada pelo Estado pode ser menos comprometedora que a

outra do mercado, mas ambas são, no fundo, “manipulativas”. Prejudicam a

gestação do sujeito capaz de saber pensar e de se saber pensar. A emancipação é,

por isso mesmo, fenômeno complexo e arriscado, porque não pode prescindir

Página 153

de “intelectuais orgânicos”, como em todo processo educativo e de gestação da

autonomia, mas pode aí mesmo inverter-se. Com efeito, teoria da pobreza jamais

será produzida pelo pobre. Entretanto, o pobre precisa elaborar certo nível de

consciência crítica da pobreza, sem o que não alcança o patamar de sujeito. Não

pode apenas ser pensado pelos outros. Precisa saber pensar-se a si mesmo. Saber

pensar-se a si mesmo é um dos traços mais profundos do saber pensar. Condição

central de libertação.

O “saber” do saber pensar

A ambigüidade do conhecimento é sua força e fraqueza. O “saber” do saber pensar

pode tomar o rumo do “sabido” ou da “sabedoria”. A produção da ignorância também

é “arte”, quando feita com toda fineza de procedimentos que a ciência faculta. Trata-

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se da racionalidade da irracionalidade, porque, assim como a falta de lógica é outra

lógica, a irracionalidade tem sua racionalidade. Conhecimento não se opõe à

ignorância, porque, em termos dialéticos, é apenas seu contrário. Contrário, em

dialética, significa forma excludente de incluir. Faz parte intrínseca. Pois não há

como iluminar sem produzir sombra. Manipular a consciência alheia ainda é o

produto mais sofisticado e procurado do conhecimento.

Saber pensar pode ter muitas caras:

a) pode aludir a saber não pensar, descartando a autocrítica, para que não nos

incomode e deixe o caminho aberto para manipular;

b) pode aludir a “não saber”, cultivando o lado útil da ignorância esperta;

c) pode indicar o saber pensar como esperteza, manobra, vantagem, para impedir

que outros pensem, ou que pensem o que Ihes é imposto pensar, ou que deixem de

se preocupar em pensar, porque são “pensados” pelos espertos;

d) pode acenar para a inovação pela inovação, perdendo todo sentido ético

e) pode ser atrelado ao mercado, interpretando o “saber” como encampação do

mercado, inserção subalterna.

Página 154

Mas há sempre o outro lado também. O da sabedoria, na dialética do “limite aberto”,

na luta contra o dogma, na desparadigmatização dos paradigmas, na discutibilidade

das propostas, no discurso cuidadoso metodologicamente e capaz de entender, na

capacidade de reinventar também a si mesmo, autocorrigindo-se

hermeneuticamente, no “saber” que sabe sobretudo que pouco sabe. Sendo

ignorância produzida a situação mais indigna do ser humano, porque lhe rouba a

oportunidade de fazer-se sujeito, o conhecimento é seu horizonte mais precioso e

arriscado. Aprender pode ser visto como saber viver perigosamente. Quem foge de

todo perigo, não vive, porque vive acuado. Quem ama o perigo nele pode sucumbir.

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Viver perigosamente é buscar compor-se com tal ambigüidade, sem perder a

habilidade de evitar riscos, mas igualmente sem perder a sabedoria de os cultivar.

Página 155

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