repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... ·...

278
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Cleber Vinicius do Amaral Felipe Itinerários da conquista: uma travessia por mares de papel e tinta (Portugal, séculos XVI, XVII e XVIII) Campinas 2015

Transcript of repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... ·...

Page 1: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Cleber Vinicius do Amaral Felipe

Itinerários da conquista: uma travessia por mares de papel

e tinta (Portugal, séculos XVI, XVII e XVIII)

Campinas

2015

Page 2: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão
Page 3: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão
Page 4: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta

pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 08

de setembro de 2015, considerou o candidato CLEBER VINICIUS DO AMARAL

FELIPE aprovado.

Prof. Dr. Paulo Celso Miceli

Profa. Dra. Adma Fadul Muhana

Prof. Dr. Guilherme Amaral Luz

Prof. Dr. Luiz Cesar Marques Filho

Prof. Dr. Leandro Karnal

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo

de vida acadêmica do aluno.

Page 5: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

AGRADECIMENTOS

Ao professor Paulo Miceli, pela orientação e pelas sugestões sem as quais o

trabalho não alcançaria o ponto em que chegou.

Aos professores Alcir Pécora e Luiz Marques, pela leitura atenta do texto de

qualificação.

Aos professores integrantes da banca de defesa, Adma Muhana, Guilherme Amaral

Luz, Leandro Karnal e Luiz Marques, que gentilmente se dispuseram a ler a versão

final da tese.

Ao CNPq, pela bolsa de estudos.

Aos professores da Unicamp, pelo aprendizado.

Aos professores da UFU, pela participação em minha formação.

Aos meus pais, pelo carinho e pelas orações.

Aos colegas, pela convivência.

À Cláudia, pelo amor e por singrar ao meu lado no decorrer de todo o trajeto

acadêmico.

Ao Heitor, filho querido, que logo vai chegar para tripular a família.

A Deus, por fazer deste itinerário uma conquista.

Page 6: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

RESUMO

Este estudo tem por objeto as peripécias marítimas retratadas em exemplares

épicos e relações de naufrágio que circularam ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII

em Portugal. Estes acidentes marítimos devem ser compreendidos a partir de uma

concepção providencialista da expansão portuguesa. No limite, este

providencialismo ilumina esta experiência e supõe uma promessa redentora em

meio a um mundo de provações e desventuras. O incidente pode ser entendido,

portanto, como elemento de uma poética capaz de provocar uma compreensão

espiritual da expansão portuguesa nos quadros de uma história salvífica, da qual os

portugueses seriam coautores. A relação entre a virtude ético-política da prudência e

a virtude teologal da caridade parece ser uma chave de compreensão da inventio

dos súditos portugueses nas práticas letradas aqui estudadas, pois supõe,

simultaneamente, a “política do céu” e a “política das obras”, isto é, a presença de

Deus na história e a existência de homens capazes de obrar conforme Sua vontade.

Palavras-chave: epopeia; relatos de naufrágio; experiência ultramarina.

Page 7: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

ABSTRACT

This is a study of the maritime adventures present in some narratives that have

circulated over the centuries XVI, XVII and XVIII in Portugal. These maritime

accidents must be understood as a providential design of portuguese expansion.

Ultimately, this providentialism illuminates this experience and assumes a redeeming

promise in the midst of a world of trials and misfortunes. The incident can be

understood, therefore, as part of a poetics capable of causing a spiritual

understanding of Portuguese expansion in the frames of a salvific history, which the

Portuguese would be co-authors. The relationship between virtue ethical-political of

prudence and the theological virtue of charity seems to be a key to understanding the

inventio of the Portuguese subjects in literacy practices studied here as it assumes

simultaneously the presence of God in history and the existence of men capable of

obrar according to His will.

Keywords: epic; shipwreck’s genre; overseas experience.

Page 8: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 10

CAPÍTULO 01 ................................................................................................................................... 21

GÊNERO ÉPICO ................................................................................................................................ 21

CAMÕES E OS LUSÍADAS .................................................................................................................. 24

NAUFRÁGIO DE SEPÚLVEDA.............................................................................................................. 46

CAPÍTULO 02 ................................................................................................................................... 55

A COLETÂNEA BRITIANA .................................................................................................................... 55

CAPÍTULO 03 ................................................................................................................................... 92

A EXPERIÊNCIA TRÁGICA .................................................................................................................. 92

LÁGRIMAS DE PORTUGAL ................................................................................................................. 99

RETRATOS DE TEMPESTADES ......................................................................................................... 107

O CABO DAS TORMENTAS E A TRAGÉDIA MARÍTIMA .......................................................................... 126

CAPÍTULO 04 ................................................................................................................................. 141

RAZÃO DE ESTADO E O CORPO MÍSTICO PORTUGUÊS ....................................................................... 141

PRODUÇÃO DE CONCÓRDIA ............................................................................................................ 148

O AMOR ........................................................................................................................................ 161

O AMOR PRÓPRIO E O AMOR NÃO CORRESPONDIDO ENTRE OS DEUSES ............................................. 171

A EXPERIÊNCIA DO SACRIFÍCIO........................................................................................................ 182

A BOA-MORTE ................................................................................................................................ 190

A MÁQUINA DO MUNDO E O MISTÉRIO PROVIDENCIAL ........................................................................ 199

CAPÍTULO 05 ................................................................................................................................. 208

CONSIDERAÇÕES SOBRE A HOSPITALIDADE ..................................................................................... 208

O VELHO DO RESTELO E A CRÍTICA À COBIÇA ................................................................................... 231

RETA RAZÃO APLICADA AO AGIR ...................................................................................................... 248

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................ 268

FONTES .......................................................................................................................................... 270

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................... 273

Page 9: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

PRÓLOGO

Para ler historicamente exemplares poéticos como Os Lusíadas (1572),

de Camões, e o Naufrágio de Sepúlveda (1594), de Jerônimo Corte-Real, e relatos

de naufrágio, como aqueles que compõem a História Trágico-Marítima (1735-1736),

de Bernardo Gomes de Brito, o leitor deve dominar vários repertórios de informação:

a instituição retórica (preceituada por Aristóteles, Cícero, Quintiliano...), preceitos do

gênero épico (desenvolvidos por Aristóteles, Horácio, Longino...), informações

históricas (fornecidas por João de Barros, Fernão Lopez de Castanheda, Pero de

Magalhães Gandavo, Diogo do Couto...), referências poéticas (retiradas de Homero,

Virgílio, Horácio, Boiardo, Ariosto...), mitológicas (aludidas por Hesíodo, Ovídio...),

filosóficas (apresentadas por Platão, Sêneca, Estrabão, Macróbio...), éticas

(catalogadas por Aristóteles, Tomás de Aquino...), cristãs (escritas por S. Basílio, S.

Gregório, S. Paulo, S. Dionísio Areopagita...). Além disso, é recomendável o

conhecimento de cartas náuticas, de conceitos próprios da marinhagem, de

expressões latinas, de categorias astrológicas e de tratados de geografia. Mesmo

supondo a possibilidade de fazer todas estas leituras e refazer as escolhas de

poetas e narradores dos séculos XVI-XVIII, não resta dúvida de que este

procedimento é sempre parcial e provisório, pois discorrer sobre um mundo extinto

significa admitir a impossibilidade de reconstitui-lo em sua completude. Logo, refazer

os passos dos homens de outrora não significa ressuscitar suas intenções ou

vontades, mas repor suas escolhas narrativas, levantar hipóteses sobre seus

encadeamentos e propor uma forma verossímil de concebê-las. Nestes termos,

admite-se a possibilidade de conhecer os códigos linguísticos e as circunstâncias de

sua produção sem, no entanto, desconsiderar a enorme distância espaço-temporal

que nos separa deste mundo que não mais existe a não ser pelas ruínas que

atravessaram os séculos para chegar até nós.

Page 10: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

10

INTRODUÇÃO

As experiências “trágico-marítimas” das quais nos ocupamos devem ser

compreendidas a partir de uma concepção providencialista da expansão portuguesa.

No limite, é este providencialismo que ilumina a experiência “trágica”, não se

tratando, portanto, do incidente como fim ruinoso e funesto, mas de um

acontecimento penoso acompanhado de uma promessa redentora em meio a um

mundo de provações e desventuras. As lágrimas, por exemplo, entendidas sob uma

perspectiva católica contrarreformada, não são reflexo de um pessimismo, mas

muitas vezes a própria manifestação da sabedoria do homem prudente e ajuizado,

que percebe as misérias do mundo e, concomitantemente, a graça misericordiosa do

perdão divino. Nestes termos, as lágrimas poderiam ser apreendidas como tópicas

de purgação, purificação, penitência. O “trágico”, neste sentido, também pode ser

entendido como uma poética capaz de provocar uma compreensão espiritual da

expansão portuguesa nos quadros de uma história salvífica, da qual os portugueses

seriam coautores. É por esta razão que o termo segue entre aspas, afinal, o que de

fato pode ser concebido como trágico nestas circunstâncias históricas? Na definição

proposta por Rafael Bluteau na primeira metade do século XVIII, trágico designa o

gênero poético que Aristóteles, dentre outros, preceituou, mas também algo que

sucedeu de forma “nem sempre” triste e funesta.1 A ponderação deste clérigo deve

ser levada em consideração quando o termo for utilizado ao longo deste trabalho

para designar os incidentes marítimos.

Vários termos foram e continuam sendo utilizados para caracterizar e

diferenciar as mais diversas “literaturas” produzidas entre os séculos XVI e XVIII:

“oficial”, “marginal”, “eufórica”, “disfórica”, “positiva”, “negativa”, “épica”, “antiépica”,

“crítica”, “acrítica”, “heroica”, “anti-heroica”, “imperial”, “anti-imperial”, “fictícia”,

“realista”, “triunfalista”, “pessimista”, “glorificante”, “decadentista”, “conformista”,

“reacionária”, “renascentista”, “maneirista”, “barroca”. Alguns conceitos afirmam um

suposto posicionamento ideológico ou político; outros buscam precisar as intenções

e inclinações do “autor” e/ou o teor de suas palavras; uns poucos nomeiam a

estética à qual os textos supostamente estariam filiados. Todas estas categorias, da

forma como normalmente são utilizadas, carregam consigo anacronismos, pois

1 BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Português e Latino (...). Colégio das Artes da Companhia de Jesus: Coimbra, 1712-1728, vol. 8, p. 236.

Page 11: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

11

pressupõem noções ou práticas posteriores aos objetos que pretendem categorizar.

O próprio termo literatura é problemático, pois significa, neste caso, erudição,

ciência, “notícia das boas letras”.2 O literato, portanto, seria um homem “de grande

literatura”, douto, discreto, versado nas letras, e não o responsável por um registro

ficcional dotado de autonomia estética.

Em 1872, Joaquim Nabuco publica o livro Camões e os Lusíadas, obra na

qual recapitula os traços que considera mais marcantes na epopeia em questão. Ele

afirma tratar-se de um “poema nacional” pautado em “patriotismo puro”, que supera

as obras de Virgílio e de Dante, pois une o “sentimento suave da Eneida” e as

alegorias “imponentes” da Divina Comédia. Nabuco, ao ler Camões, afirma sentir o

“perfume de mocidade e de originalidade” por tratar-se do “esforço de uma única

inteligência”, ao contrário das poesias de Homero e Virgílio, por exemplo, que

denotavam o “gênio de muitas gerações”.3 Num livro mais recente, António José

Saraiva atribuiu às personagens d’Os Lusíadas falta de vida e ânimo, supondo a

inexistência do heroísmo entre elas. O autor desconfia que o foco da narrativa seja

as deidades mitológicas, e não Vasco da Gama e seus pares.4 Além disso, Saraiva

contrapõe uma forte “ideologia cavaleiresca” do poeta, pautada em costumes

medievais como a nobreza de armas, e uma inclinação ao “humanismo” que

justificaria a adoção de um plano mitológico.5

2 Idem, vol. 9, p. 562. 3 Ver: NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistico. 1872, pp. 69-85. 4 Muitas vezes as personagens mitológicas, sob o efeito de prosopopeia, são consideradas aquelas que realmente agem no decorrer das narrativas épicas. António José Saraiva afirma que os deuses não são “simples retórica, mas as figuras com que se ata e desata a própria fábula do poema” e considera que “n’Os Lusíadas não há outras personagens vivas senão os deuses”, o que delega aos heróis um papel de meros coadjuvantes, que “limitam-se a presenciar, a esperar e a agradecer”. Se entendermos na mitologia uma função alegórica, que muitas vezes dá a entender a presença dos desígnios da providência, a afirmação de Saraiva se justifica. Contudo, o herói não apenas presencia, espera e agradece como também lê, nas entrelinhas, a matéria providencial, e age como instrumento de Deus, para a materialização de suas vontades. A esse respeito, ver: SARAIVA, António José. Luís de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, pp. 158-166. 5 Enquanto Saraiva se refere à falta de vivacidade das personagens de Camões, João Adolfo Hansen chama a atenção para a encenação poética de um ânimo moderado e afinado à prudência e bom juízo aristotélicos, não se tratando, portanto, de passividade ou ausência de ímpeto heroico. Ao contrário dos deuses mitológicos, que agem com intensidade patética, Hansen acredita que Gama “sempre mantém o caráter prudente”, e pondera: “se a ação de Vasco da Gama é mais oratória e eloquente que épica e heroica, isso ocorre, contudo, não porque Camões erre poeticamente, mas porque o inventa como emblema das virtudes cristãs e fidalgas” salientando, em seguida, que “toda virtude cristã é heroica”. Hélio Alves, por sua vez, afirmou que a representação de Vasco da Gama “fornece a informação e a motivação necessárias para ser interpretada, no seu todo, como uma denúncia de falso heroísmo”, uma vez que boa parte de suas ações ao longo do poema acaba por reproduzir “comportamentos moralmente intoleráveis”, reduzindo as possibilidades da admiratio épica. Para mais informações, ver: HANSEN, João Adolfo. Introdução: Notas sobre o gênero épico. In:

Page 12: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

12

No que se refere à constatação de Saraiva sobre a existência de um

Camões “repartido em pedaços”,6 o que se percebe é uma consciente mobilização

de figuras de elocução que imita e estiliza a matéria histórica, emula7 os grandes

cânones poéticos e retoma lugares comuns referentes às grandes batalhas/cruzadas

travadas no Oriente, à luz de uma história sacra. Por outras palavras, a matéria

celebrada no poema de Camões encontra-se em harmonia com os protocolos

político-teológicos regidos pela monarquia portuguesa, e as provas argumentativas

incorporadas no poema seguem de perto os manuais retóricos, por isso tendem a

instruir e deleitar o seu público, e não a confundi-los com obscurantismos e

contradições.

José Cândido de Oliveira Martins pondera sobre o contexto no qual a

História Trágico-Marítima foi publicada e, em seguida, discorre sobre o gênero ao

qual ela se articula, entendendo-o como um misto de “crônica” e “reportagem

jornalística”, de enorme circulação pela sua “vivacidade” e “dramatismo”. Integrante

da “literatura de viagens”, este gênero, marginal em relação ao “sistema literário

instituído” e eivado por “uma mundividência maneirista ou mesmo barroca”,

apresentar-se-ia como contrário à ideologia das descobertas. Citando Antonio

Tabucchi, Martins afirma que a História britiana seria, por excelência, a “antiepopeia

das descobertas”, o reverso da medalha das gestas heroicas dos portugueses nos

mares.8 A visão crítica e antiépica, portanto, aparece como reação à decadência que

assolava Portugal e como fundamento de uma “literatura anti-heroica e anti-

TEIXEIRA, Ivan. (org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 75; HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 182; ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, p. 511. 6 SARAIVA, António José. Luís de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, p. 166. 7 A emulação nos remete à apropriação e re-contextualização de argumentos e procedimentos retóricos inscritos na tradição do gênero – procedimento recorrente na poesia épica dos séculos XVI-XVII. Não se trata de servilismo ou imitação pueril do engenho poético de outrora, mas da tentativa de incorporação das partes mais belas e difíceis do costume, ainda que para valer-se delas em outro contexto. Em outras palavras, o poeta que emula procura alinhar o seu texto à autoridade da obra imitada, esperando que o leitor pudesse identificar a fonte imitada para poder julgar as conveniências da emulação e a nova adequação dos lugares-comuns. O engenho, portanto, é proporcional à capacidade do poeta de apropriar-se do que há de mais agudo nas instituições do mundo antigo, recorrendo a fontes referenciais para causar igual deleite, ainda que a matéria poética verse sobre outros padrões de excelência. Ver: HANSEN, João Adolfo. Introdução: Notas sobre o gênero épico. In: TEIXEIRA, Ivan. (org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, pp. 17-25. 8 De acordo com Tabucchi, a História Trágico-Marítima “sarebbe restata nella letteratura portoguese come l’anti-epopea per eccelenza delle scoperte, il rovescio della medaglia delle gesta eroiche dei portoghesi sui mari”.

Page 13: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

13

imperial”. Vislumbra-se, portanto, uma “retórica da decadência”, de tom mais realista,

escuro e trágico, contraparte de uma “retórica historiográfica ou ideológica”, vertente

“acrítica” de exaltação do empreendimento português.9

É possível distinguir, em geral, três posturas recorrentes no que se refere

aos estudos da História Trágico-Marítima: uma delas apreende esta narrativa como

gênero novo, noticioso, marginal, híbrido, escrito com maior “liberdade” em relação

aos protocolos retóricos se comparado aos gêneros “canônicos”;10 outra costuma

associa-los à estética maneirista ou barroca para justificar a presença de uma

suposta “retórica da decadência”;11 a última destaca seu teor “disfórico” e apreende

os relatos como sendo a contraparte “realista” da fantasiosa “euforia” épica.12 Por

outras palavras, os relatos de naufrágio são analisados (1) a partir de um suposto

“realismo” e de um compromisso em noticiar sem recorrer a artifícios retóricos, (2)

através de categorias românticas que supõem termos anacrônicos como “estética”,

“trauma”, “decadência”, e (3) como gênero “crítico” e, por extensão, antiépico, por

supostamente ferir ou reagir à “ideologia” portuguesa tão bem empregada na

epopeia lusíada e na historiografia de João de Barros, por exemplo. Parece-nos que

estes três procedimentos partem, respectivamente, de três equívocos: o primeiro de

um conceito tortuoso de retórica e de uma leitura anacrônica do gênero histórico; o

segundo busca filiar os exemplares deste gênero a movimentos literários do século

9 Ver: AGUIAR E SILVA, Vítor (coord.). Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011. 10 Para Lanciani, a HTM seria o “reverso da medalha das exaltantes crônicas oficiais”. Tratar-se-ia de uma literatura não imperialista de consumo, semelhante às reportagens jornalísticas. Angélica Madeira destaca o aspecto híbrido do gênero, escrito de forma “livre” se comparado aos cânones da retórica. Antecipando as personagens alegóricas do Barroco, esta literatura apresenta, segundo a autora, um cenário de crise que não abrange apenas Portugal, mas a Europa como um todo. Ver: LANCIANI, Giulia. Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII. Portugal: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, pp. 28-29; MADEIRA, A. Livro dos naufrágios: ensaio sobre a história trágico-marítima. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005. 11 Custódio afirma que se trata de uma “antiepopeia” ou contraparte às crônicas e histórias oficiais, que apresenta nova “mentalidade estética” e esboça um retrato “original” dos navegantes numa conjuntura de crise. Em vários aspectos, afirma o autor que o relato de naufrágio antecipa características do Barroco. Ver: CUSTÓDIO, Pedro Balaus. A História Trágico-Marítima: do herói ao anti-herói (Dissertação de mestrado). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992. 12 Para Christine Zurbach, o relato de naufrágio seria uma espécie de “antiepopeia dos Descobrimentos” destinada ao “consumo de massas”, tratando-se de um objeto literário “híbrido” e disfórico, por relatar o “fracasso” da empresa lusitana. José António Costa Ideias afirma tratar-se de um gênero “novo”, de conotação “trágico-disfórica”, configurando uma “antiepopeia dos descobrimentos”. Ver: ZURBACH, Christine. História e ficção nos relatos de naufrágio. O caso da “Relação da muy notavel perda do Galeão Grande São João”. In: SEIXO, Maria Alzira; CARVALHO, Alberto (orgs.). A História Trágico-Marítima – Anpalises e perspectivas. Lisboa: Edições Cosmos, 1996; IDEIAS, José António Costa. A Relação de viagem e naufrágio da nau “São Paulo”, de Henrique Dias. Consagração martirológica e libelo acusatório. In: SEIXO, Maria Alzira; CARVALHO, Alberto (orgs.). A História Trágico-Marítima: análises e perspectivas. Lisboa: Edições Cosmos, 1996.

Page 14: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

14

XIX, como se fosse possível “ajustar” suas particularidades às teorizações

românticas e psicologistas que supõem a naturalidade de categorias como

“literatura”, “estética”, “pessimismo”; o último, por fim, utiliza pares de conceito como

“euforia/disforia”, “épico/antiépico”, “crítico/acrítico” pressupondo uma dicotomia

(uma literatura “oficial” e outra “marginal”) que dificilmente acomodaria a diversidade

dos gêneros retóricos.

As práticas letradas dos séculos XVI-XVIII eram doutrinadas em

conformidade com os domínios da retórica, ou seja, dividiam-se em gêneros e

subgêneros com regras e preceitos bem definidos.13 Aristóteles definiu a retórica

como sendo a contraparte da dialética, tendo por objetivo “discernir os meios de

persuasão em cada caso”.14 A persuasão tornar-se-ia possível de duas formas: uma,

independe da arte, se pauta nos testemunhos e confissões mediante tortura. A

outra, baseada na arte, ajuda o orador a encontrar no costume (consuetudo)

argumentos eficazes, levando-se em consideração a ocasião, a matéria tratada e os

ouvintes. Por outras palavras, ele elenca lugares-comuns15 retóricos para convencer

13 Os gêneros “são protocolos que classificam e hierarquizam as matérias tratadas segundo usos particulares, oficiais e não-oficiais, tornando-as adequadas a destinatários específicos compostos como "leitores implícitos" na variação estilística da forma. A formalização das regras dos vários gêneros impede, quando se considera sua mediação, que se tome o discurso como transparência dando acesso direto a um "real" pretotalizado. O trabalho define o discurso como prática, propondo que a reconstituição das regras que o formalizam pode impedir, por exemplo, que um discurso deliberativo produzido em circunstância oficial seja lido univocamente, ou que uma desqualificação epidítica formulada em circunstância polêmica seja tomada como informação verdadeira”. HANSEN, João Adolfo. Barroco, Neobarroco e Outras Ruínas. In: Floema Especial (UESB), ano II, n. 2, 2006, p. 13. 14ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011, livro I, 1, 1355b10, pp. 43-44. 15 Lugar-comum (topos entre os gregos, locus entre os romanos), neste caso, não deve ser entendido como ideia de senso comum repetida como clichê. Trata-se de um esquema de argumentação no ato da produção de discursos. Retoricamente, Aristóteles cogita a possibilidade de colecionar topoi ou argumentos gerais, mobilizados para a discussão de coisas prováveis (endoxa) com a finalidade de gerar persuasão. Em Cícero, o locus era como um molde, definido como “sede do argumento”. Seus usos são partilhados coletivamente, a partir da imitação (mímesis aristotélica ou imitatio latina), o que sugere não uma repetição mecânica e servil, mas uma variação elocutiva efetuada por meio da imitação. Cícero diz que “o lugar é escrito na tabuinha de cera da mente como uma questão indeterminada (quaestio infinita) ou argumento genérico que o orador e o poeta acham em elencos que memorizam como um molde que preenchem com uma questão determinada ou particular da causa de que tratam (quaestio finita)”. Por isso, retoricamente, há dois discursos no discurso: “o dos lugares-comuns de cada gênero, que são memorizados, achados e aplicados como teses ou questões genéricas e indeterminadas, e o das referências particulares, que especificam e variam os lugares indeterminados como hipóteses ou questões determinadas”. Ver: HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: MUHANA, Adma, et. al. (orgs.). Retórica. São Paulo: Annablume; EIB, 2012, pp. 166-167. Ao definir o lugar comum como “sedes argumentorum”, Quintiliano afirma que ele não deve ser buscado indiscriminadamente, em qualquer lugar, pois a busca requer precisão. Para tanto, ele utiliza o símile dos peixes, que podem ser encontrados em regiões específicas, diferindo em termos de habitat, ou da profundidade na qual se encontram. O mesmo vale para os argumentos. Ver:

Page 15: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

15

e persuadir, pautando-se na endoxa (argumentos prováveis, correspondentes à boa

opinião) e no decoro (adequação do discurso ao auditório, às circunstâncias e ao

assunto).16

Aristóteles distingue três espécies de retóricas ou três gêneros oratórios:

retórica deliberativa, feita como exortação a fazer ou não fazer coisas; tratando do que é vantajoso e desvantajoso, relaciona-se com o futuro; retórica judicial ou forense, feita como acusação ou defesa; tratando do justo ou do injusto, relaciona-se principalmente com o passado. Retórica epidítica: feita como elogio ou vituperação, trata do nobre e do vil e se relaciona com o presente. Quando fala de gênero deliberativo, sobre o futuro, o orador usa lugares-comuns como “o útil, o honesto, o fácil, o agradável, o necessário, o que se deve fazer, o que se deve evitar, o que se deve temer, o que se deve esperar” etc. No gênero epidítico, faz o elogio de coisas boas e belas e o vitupério de coisas más e feias, fala de lugares como “os bens (males) do corpo, a beleza e a feiura; e os bens (males) do ânimo ou da alma, as virtudes e os vícios”. No gênero judicial, em que se ocupa do passado, fala por exemplo “da culpa (da inocência) do réu, do lugar do crime, dos instrumentos do crime, das motivações, das leis, dos castigos” etc.17

No que diz respeito à efetuação do discurso, Aristóteles determina quatro

etapas fundamentais: a inventio (busca de coisas verdadeiras ou verossímeis que

tornam provável a matéria discursiva),18 dispositio (distribuição/arranjo das coisas

QUINTILIANO. Institutio oratoria. Edizione con testo a fronte a cura di Adriano Pennacini. Torino: Einaudi, 2001, v. 1, livro V, 10, 20, p. 565. 16 O decoro, para Horácio, é a união de duas noções: a de verossímil, que em Aristóteles é o resultado da imitação, e a de conveniência, pressuposto da persuasão. Trata-se, assim, da “unidade da obra poética adquirida pela concórdia de suas partes em relação tanto à matéria, aos fins, e ao auditório, como ao poeta, e contrária portanto a toda ‘monstruosidade’ e ‘bizarria’, desprovida de ordenação interna, em que os sujeitos e os predicados não se correspondem, em que os termos não se combinam, em que cada parte diverge do todo”. Adma Muhana trata, também, do decoro seiscentista, que “tem estabelecido qual combinação de particulares compõe o todo verossímil em cada um dos gêneros poéticos – e neste sentido ‘decoro’ passa a englobar ‘verossímil’. Sabido pelas artes retórica e poética que há três estilos de dizer (humilde, medíocre e grave), três gêneros de discurso (judiciário, deliberativo e demonstrativo) e três espécies imitativas (cômica, trágica e épica) e que cada um detém seu próprio verossímil, as poéticas investigam qual combinação de particulares eles comportam”. Ver: MUHANA, Adma. A epopéia em prosa seiscentista – uma definição de gênero. São Paulo: EDUNESP, 1997, pp. 53-55. O decoro, no caso, é determinado pelo costume (consuetudo), através do qual o poeta atinge excelência no gênero que exercita. O costume determina “o decoro interno do poema como adequação das suas partes ao todo e, deste, aos preceitos da auctoritas imitada. Simultaneamente, prescreve o decoro externo como adequação verossímil à recepção”. HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (Org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 20. 17 HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: MUHANA, Adma, et. al. (orgs.). Retórica. São Paulo: Annablume; EIB, 2012, pp. 165-166. 18 Na instituição retórica, invenção (do latim inventio, do grego heuresis) significa achar, encontrar. Nesse caso, achar/encontrar coisas verdadeiras ou semelhantes ao verdadeiro da opinião.

Page 16: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

16

pensadas e imaginadas),19 elocutio (uso de palavras adequadas)20 e actio

(dramatização das coisas e palavras para uma audiência). A estas quatro partes, os

latinos acrescentam uma quinta: a memoria (que o anônimo da Retórica a Herênio

define como “tesouro das coisas inventadas” e “guardiã de todas as partes da

retórica”, o que é repetido por Cícero e por Quintiliano).21 Em suma, o orador busca

lugares-comuns em sua memória, elenca aqueles que convêm à matéria que quer

tratar, confere-lhes um arranjo apropriado, escolhe palavras convenientes e define a

forma adequada de exprimi-las.22 Em cada um dos gêneros oratórios, “aplicam-se

lugares de invenção, ordens de disposição e clarezas de elocução que efetuam

verossimilhanças e decoros específicos”.23

Quanto ao estilo, Aristóteles diz que o orador “não deve incorporar nem

baixeza nem exagero, mas ser apropriado ao seu tema”.24 Na prosa, por exemplo,

ele prescreve a utilização de procedimentos menos refinados, por tratar-se de um

assunto mais ordinário. Certas ações, como a de um escravo ou de um homem

muito jovem proferindo belas frases em torno de um tema trivial, ferem o decoro, por

isto são inadequadas. Mesmo na poesia, diz ele, a expressão conveniente pode ser

condensada e atenuada, ou às vezes amplificada. Neste caso, o autor de um texto

em prosa deve dissimular a sua arte e dar a impressão de discursar naturalmente, e

não com artifícios.25 Logo, não se deve “falar vulgarmente de assuntos importantes,

19 Quintiliano utiliza um símile para mostrar a ineficiência da invenção sem a disposição: para a construção de um edifício, não é suficiente recolher pedras, madeira e outros materiais indispensáveis, pois é necessário habilidade para que os construtores possam dispor-lhes e colocar-lhes oportunamente. O mesmo sucede com a arte oratória. Por esta razão, a disposição é a segunda das cinco partes da retórica, porque sem ela a invenção não apresenta nenhum significado. Além disso, Quintiliano diz que uma monstruosidade é criada se as partes do corpo humano ou as partes de uma estátua são dispostas sem harmonia, o que também ocorre no discurso. QUINTILIANO. Institutio oratoria. Edizione con testo a fronte a cura di Adriano Pennacini. Torino: Einaudi, 2001, v. 2, livro VII, proêmio, 2, p. 3. 20 No caso, valendo-se de outro símile, Quintiliano diz que o discurso sem elocução é semelhante à espada que continua embainhada. É preciso conhecimento de técnicas, daí a conveniência de exercícios e da imitação. Idem, livro VIII, proêmio, 15, p. 123. 21 [CÍCERO, M. T]. Retórica a Herênio (c. 82 a.C.). São Paulo: Hedra, 2005, livro III, 28, p. 181. 22 Como diz Quintiliano, a retórica é a ciência do falar bem, sendo útil, mas também uma arte e uma virtude. Sua matéria são todos os argumentos sobre os quais se quer falar. Divide-se em três gêneros, e cada um deles é constituído de ideias e palavras. No que se refere às ideias, deve-se resguardar a invenção, às palavras, a elocução, e ambas devem ser bem dispostas. A memória abraça a tudo, e a ação deve valorizar o argumento. O dever do orador é informar, comover e deleitar. Ver: QUINTILIANO. Institutio oratoria. Edizione con testo a fronte a cura di Adriano Pennacini. Torino: Einaudi, 2001, v. 2, livro VIII, proêmio, 6-7, p. 119. 23 Ver: HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: MUHANA, Adma, et. al. (orgs.). Retórica. São Paulo: Annablume; EIB, 2012, pp. 171. 24 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011, livro III, 2, 1404b1, p. 214. 25 Idem, livro III, 2, 1404b15, pp. 214-215.

Page 17: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

17

nem falar solenemente de assuntos triviais”,26 pois, neste caso, o discurso perde sua

conveniência.27 Os auditórios, no final, concluem “que o orador exprime a verdade

porque nessas circunstâncias os indivíduos estão animados de sentimentos que

parecem se identificar com os seus; e mesmo que não seja assim, o auditório supõe

que as coisas sejam como o orador lhes diz que são”.28

A epopeia e a história, em termos retóricos, afinam-se aos gêneros

demonstrativo (ou epidítico) e deliberativo, elogiando/aconselhando e/ou

censurando/desaconselhando de forma instrutiva e deleitosa. Quanto às etapas do

discurso, ambos os gêneros propõem tópicas de invenção, partes da disposição e

figuras de elocução em conformidade com a verossimilhança e decoro próprios,

propondo um estilo conveniente à matéria tratada. Um estudo que considera todos

estes aspectos mencionados deve levar a sério as ponderações que Alcir Pécora faz

na introdução do livro Máquina dos gêneros, ao chama a nossa atenção para a

necessidade de se estudar a tradição dos gêneros aos quais os textos dos séculos

XVI-XVIII se vinculam, ou seja, perscrutar as convenções ou artifícios retórico-

poéticos comuns ao gênero em questão. Esta preocupação é relativa à necessidade

de se entender as tópicas discursivas como instrumentos de adequação do texto à

audiência, gerando efeitos específicos, determinados historicamente. O objetivo,

portanto, seria o de questionar a aplicação de lugares comuns para evitar, por

exemplo, a associação entre o texto e o que se entende por “real”. Por outras

palavras, o texto não se reduz e não se explica exclusivamente através do contexto

histórico. No entanto, Pécora pondera:

O gênero não tem de ser puro ou inalterável em duas disposições, assim como o objeto não é idêntico à aplicação de um conjunto de prescrições encontradas em determinadas preceptivas do período: paráfrases de manuais de retórica não dão conta dos sentidos específicos dos objetos. Ao contrário, a tendência histórica básica dos mais diferentes gêneros é a de desenvolver formas “mistas”, com dinamicidade relativa nos distintos períodos, que impedem definitivamente a descrição de qualquer objeto como simples coleção de aplicações genéricas.29

26 Idem, livro III, 7, 1408a10, p. 227. 27 Santo Agostinho, repetindo Cícero, afirma que aos três objetivos do orador (instruir, agradar e converter) correspondem três tipos de estilo: estilo simples para instruir, estilo temperado para agradar e estilo sublime para converter. Ver: AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002, capítulo 8, 34, pp. 241-242. 28 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011, livro III, 7, 1408a20, p. 228. 29 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 12.

Page 18: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

18

Por esta razão, seria arriscado afirmar que o sentido de um texto é

redutível ao seu pertencimento a um gênero específico, muito embora as categorias

do gênero possam orientar uma leitura adequada do exemplar em questão. Convém

ressaltar que a licença de invenção, no caso dos poetas que estudamos, “é restrita

pelos preceitos retóricos que funcionam como limites convencionais de seu arbítrio

poético”.30

Outra asseveração igualmente importante diz respeito às suspeitas que

os estudiosos devem alimentar a respeito do próprio “contexto”, entendendo que se

trata de outra chave argumentativa, instrumentalizada também como gênero

discursivo. A questão que se coloca é a de não confundir ou hierarquizar as

narrativas entendidas como “históricas” e as narrativas “literárias”, como se uma

correspondesse ao “real” e a outra à “ficção”. O que distingue um e outro são os

usos diferenciados que fazem das tópicas discursivas, da disposição textual e,

muitas vezes, das figuras de elocução incorporadas no corpo do texto, mas não uma

suposta fidedignidade em relação a um possível “real” sobreposto ao texto ou

incorporado às suas entrelinhas. Desta forma, o texto poético e o contexto histórico

estão “condenados à criação de efeitos que não são ‘o real’, mas que podem

significar ‘o real que se está disposto ou obrigado a admitir neste tempo’”. Pécora

conclui: “se o texto literário não é ‘reflexo’ de ‘o real’, tampouco o ‘não literário’ o é”.31

Por fim, no terceiro ponto de sua exposição, Pécora salienta que a leitura

dos efeitos retóricos incorporados pelos textos deve levar em consideração sua

datação, ou seja, que os “verossímeis textuais” são, no caso, “produtos temporais”.

Trata-se de evitar qualquer possibilidade de naturalizar os conceitos e lugares

comuns, pois, apesar das possíveis semelhanças, há uma grande variedade de

discursos e recursos utilizados, de efeitos produzidos, o que nos leva a insistir na

dimensão histórica do discurso. Para recapitular, Alcir Pécora reconheceu,

inicialmente, a importância da invenção textual e de seus procedimentos genéricos

para, em seguida, postular a irredutibilidade do contexto a algo exclusivamente

externo aos textos ou aos constructos históricos. Em seguida, como terceiro

procedimento a ser adotado, o autor afirma que, para ler bem os efeitos propiciados

30 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 161. 31 Idem, p. 14.

Page 19: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

19

pelos textos, é preciso considerar as marcas temporais que os definem, ou seja,

apreender os verossímeis textuais como produtos históricos.

Isto nos permite introduzir a assertiva de Hansen, de que os códigos

poéticos dos textos produzidos na América portuguesa durante os séculos XVI-XVIII

são retóricos, imitativos e prescritivos. São retóricos porque se baseiam na imitação

dos auctores (ou autoridades) da poesia antiga, isto é, na imitação dos costumes do

gênero. No caso da poesia épica, por exemplo, os auctores de maior destaque são

Homero, Virgílio, Camões, Tasso, dentre outros. Assim, a auctoritas pode ser

definida como “norma retórica coletiva e objetiva”.32 Determina-se, assim, o decoro

interno, através do qual o autor se compromete com a adequação das partes do

discurso à unidade textual e, desta, com os preceitos da auctoritas imitada, e o

decoro externo, que diz respeito à adequação do texto à recepção. O caráter

imitativo, portanto, é relativo justamente a esta recorrência aos textos referenciais no

que concerne a cada gênero, e o caráter prescritivo, por sua vez, implica na

dimensão datada destas tópicas e categorias, sendo os discursos, no caso,

moralizantes e exemplares, pois reproduzem uma noção de história mestra da vida

doutrinada teologicamente pela Igreja Católica. A audiência, nestes termos, acaba

por julgar não somente os elementos moralizantes da obra, mas também os efeitos

técnicos e a eficácia da imitação.

A poesia épica e os relatos de naufrágio se inserem necessariamente em

debates históricos a partir de códigos linguísticos específicos, o que nos leva a

cogitar a possibilidade de diálogos entre textos mais ou menos contemporâneos a

eles. Há, nessa perspectiva, uma base discursiva e cultural da qual participam as

narrativas aqui analisadas. Não é dificultoso supor, portanto, que as bases sobre as

quais se ergue o canto poético e a narrativa histórica não se desvinculam dos

propósitos políticos e éticos que lhe subsidiam.

Disposição dos capítulos:

No primeiro capítulo discorremos sobre algumas características do gênero

épico para, em seguida, ponderar sobre particularidades d’Os Lusíadas e do

32 HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (Org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 29.

Page 20: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

20

Naufrágio de Sepúlveda. No segundo, para tratar da História Trágico-Marítima,

estudamos o gênero histórico e analisamos algumas convenções presentes nos

relatos de naufrágio. O terceiro é uma reflexão sobre o que poderíamos chamar de

“poética do naufrágio”, pois problematiza peripécias marítimas, levando-se em

consideração a maneira como poetas e narradores recorreram à tradição para

incorporar diferentes lugares-comuns, trabalhando-os a partir de uma concepção

providencialista de história. O quarto capítulo problematiza a metáfora do corpo

místico e a tópica do amor enquanto doença (quando convertida em vaidade ou

transfigurada em ódio) e remédio (caso da virtude teologal da caridade). O quinto

capítulo discorre sobre as tópicas da hospitalidade, da cobiça e da prudência,

buscando nelas caminhos para a conformação do éthos do súdito português. Por

outras palavras, os dois capítulos iniciais discorrem sobre os gêneros épico e

histórico, precisando suas peculiaridades. O terceiro pondera sobre uma noção

muito particular de tragédia, que não pode ser confundida com pessimismo, trauma

ou decadentismo. O quarto e o quinto capítulo propõem o estudo de algumas

virtudes fundamentais na constituição de uma persona exemplar, pretendendo

demonstrar que, ao fim e ao cabo, os propósitos das epopeias e relatos de naufrágio

não são tão conflituosos como se costuma dizer.

Page 21: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

21

CAPÍTULO 01

Gênero épico

Para pintar um retrato de Helena, Zêuxis teria solicitado aos habitantes de

Crotona a presença das cinco mais belas jovens, para assimilar o que há de mais

sublime em cada uma e, assim, retratar um corpo digno desta personagem

homérica. Este famoso pintor grego, por outras palavras, pretendia compor uma

persona detentora de grande beleza aproveitando-se dos atributos admiráveis de

figuras particulares, empíricas. Esta anedota, que se encontra na História natural de

Plínio, o Velho, ajuda-nos a compreender melhor os heróis épicos que Homero

empregou em seus poemas, sendo eles detentores de atributos grandiosos (também

baseados em características particulares) que determinam seu caráter (ou éthos).

Em seu Tratado da imitação, Dionísio de Halicarnasso cita uma passagem em que

Homero retrata o atrida Agamêmnon: “Nos olhos e na cabeça é ele semelhante a

Zeus que lança o raio,/ Na cintura a Ares, no peito a Posídon”.33 Seu retrato figura

um éthos espelhado nas deidades, tamanha a nobreza de seu porte. O tipo heroico

figurado nas epopeias (assim como a bela personagem retratada na pintura de

Zêuxis) difere do indivíduo que protagoniza uma narrativa histórica. Mas de que

maneira?

Aristóteles estabelece, em sua Poética, uma distinção entre poesia e

história, supondo a superioridade da primeira em relação à segunda: a poesia é

composta e sistematizada segundo os critérios da verossimilhança, ou seja, a

matéria poética não se ocupa somente do ocorrido, mas privilegiadamente de ações

possíveis, plausíveis e/ou prováveis. Aristóteles afirma que o mais conveniente seria

optar pelo “impossível verossímil”, e não pelo “possível incrível”, pois “os assuntos

poéticos não só não devem ser constituídos de elementos irracionais, mas neles não

deve entrar nada contrário à razão”.34 A história, por outro lado, é a narrativa sobre

os acontecimentos verdadeiros. Ela “estuda o particular”, diferentemente da poesia

que, sendo mais filosófica, atém-se ao “universal”.35 Em suma, a história precisa

33 DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Tratado da imitação. Tradução de Raul Miguel Rosado Fernandes. Lisboa: INIC, 1986, p. 67. 34 Ver: ARISTÓTELES. “Arte Poética”. In: BRANDÃO, R. O. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, livro XXV, p. 87. 35 Idem, livro IX, pp. 43-45.

Page 22: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

22

assegurar uma suposta fidelidade à ordem natural dos acontecimentos, narrando

verdades sem o uso de ornamentos excessivos. A poesia, ao contrário, não se atém

à sucessão cronológica da narrativa e trata a matéria histórica de maneira elevada e

verossímil.36

A polêmica em torno da relação entre poesia e história foi duradoura.

Luciano de Samósata, por exemplo, tratou da diferença entre história e encômio,

afirmando que a missão do encomiasta é elogiar e agradar uma personagem,

dispondo de licença para mentir. Na história, ao contrário, não seria admissível nada

de mentiroso.37 Poetas, para Luciano, possuem uma “liberdade pura”, ao contrário

dos historiadores, que dispõem de uma “liberdade temperada”. O historiador deve ter

cautela para não se tornar adulador, pois assim a história acabaria se tornando “uma

espécie de poesia em prosa”.38

36 Hartog esclarece: “Para Aristóteles, com efeito, o poeta é aquele que faz (poiein) narrativas (muthoi) que, pela implementação da mimesis, representam ações. A história, em contrapartida, não está do lado do fazer, nem da representação: o historiador não faz os fatos, mas contenta-se em “dizer o que se passou” (legein ta genomena) e, em caso algum, compete-lhe poiein ta genomena”. HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, pp. 111-112. 37 LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 185. 38 Idem, p. 187. A concepção da história como poesia em prosa remete a outra polêmica. Dionísio de Halicarnasso, por exemplo, opera com a proximidade entre história e poesia. Em um livro que tem por objeto principal os escritos de Tucídides, ele destaca a preocupação deste historiador com a verdade, quando se propõe a evitar elementos míticos e fictícios, que enganam e seduzem o público. Ele ressalta também as falhas estilísticas, a obscuridade e incorreção das expressões do historiador, alegando a inconveniência dos discursos. Dionísio desculpa os antecessores do ateniense que escreveram utilizando como matéria relatos míticos para registrar as histórias de povos e lugares. Boa parte desta memória seria fruto de uma tradição oral, que não deixam de ser verdadeiros por transmitirem, sem acrescentar ou tirar, as memórias e tradições. Assim, ele manifesta uma preferência pela história de tipo retórico e moral, pois deveria instruir e agradar os ouvintes. Algo parecido faz Quintiliano, quando apreende a história como um “poema em prosa”, apresentando muitas qualidades que deveriam ser evitadas pelo orador, pois ela estaria preocupada mais com o futuro do que com as questões imediatas: “a totalidade da obra é composta não para a realização de algo ou para um combate presente, mas para a memória da posteridade e a fama do talento”. No entanto, é possível retirar algo de útil da história, talvez para uma digressão, ou quem sabe para a obtenção de fatos e de exemplos, “em que o orador deve ter sido principalmente instruído”. Ver: DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Tratado da imitação. Tradução de Raul Miguel Rosado Fernandes. Lisboa: INIC, 1986, p. 58. Sobre a preferência de Dionísio por uma história afinada à retórica e à moral, ver: JÚNIOR, Pedro Ipiranga. Diálogo entre Luciano de Samósata e Dionísio de Halicarnasso: o estatuto do historiador dentro e fora do horizonte mítico. In: SCRIPTA CLASSICA ON-LINE. Literatura, Filosofia e História na Antiguidade. Número 1. Belo Horizonte: NEAM/UFMG, abril de 2003. Disponível em: http://www.scriptaclassica.hpg.com.br. Acesso em: fevereiro de 2013. No que se refere a Quintiliano, ver: QUINTILIANO. Instituições Oratórias, 10, 31, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 165.

Page 23: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

23

No Dell’Arte Historica (1636), Agostino Mascardi diferencia história e

poesia, dizendo que a primeira fundamenta-se na verdade e a segunda na fábula.39

A história, para este autor, seria o “espelho da humanidade” e se veria representada

pelo pintor Dionísio, que “coloca todo o engenho em transportar um rosto para sua

tela”, pintando a natureza como foi fabricada, sem ferir a verdade. Polignoto, tal

como um poeta, “formava com arte os retratos mais belos que a natureza não havia

fabricado” e “colocava seu engenho para bordar um vulto nas suas telas”.40

Seguindo os passos de Aristóteles, Mascardi afirmou que Polignoto, no âmbito da

pintura, imitava pessoas (personae) superiores, a exemplo de Homero no campo da

poética. Diferentemente do Estagirita, ele discorreu sobre duas formas de

verossimilhança: uma falsa porque derivada da poética e outra verdadeira e

proveniente da história. Na sequência, ele retoma a tópica ciceroniana da historia

magistra vitae, afirmando que se escreve história “para formar no ânimo de quem lê

o simulacro da virtude, imitado dos exemplos de tantos ínclitos heróis”,41 e a tópica

de Dionísio de Halicarnasso segundo a qual a história seria “uma filosofia composta

de exemplos”.42

Como se pode ver, as analogias entre os ofícios do poeta e do pintor são

recorrentes, bem como a diferenciação aristotélica entre poesia e história. Mas como

poderíamos definir, em particular, o gênero épico?

No capítulo V da Arte Poética, Aristóteles define a epopeia retomando as

características que este gênero compartilha com a tragédia. A princípio, ambos os

gêneros se aproximam quanto à opção que fazem pelos objetos de imitação:

homens superiores e exemplares, merecedores de glória imorredoura.43 No entanto,

a tragédia é dramática e a matéria que ela privilegia dificilmente ultrapassa o

intervalo de um dia. A epopeia, além de dramática, é narrativa, o que lhe confere a

possibilidade de investir na variedade e “diversificação dos episódios”, de modo a

39 Ver: SINKEVISQUE, Eduardo. Com Furores de Marte e com Astúcias de Mercúrio: O Dell’Arte Historica (1636) de Agostino Mascardi. In: Topoi, v. 7, n. 13, 2006, p. 342. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi13/Topoi%2013_artigo%203.pdf. Acesso em: janeiro de 2013. 40 Ver: idem, pp. 343-344. 41 Idem, p. 345. 42 Idem, ibidem. 43 Sobre o assunto, ver: HANSEN, João Adolfo. Introdução: Notas sobre o gênero épico. In: TEIXEIRA, Ivan (org.). Épicos: Prosopopeia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca-Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, pp. 26-27.

Page 24: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

24

impedir a monotonia e, consequentemente, o tédio de seu auditório.44 Para tanto, a

epopeia recorre exclusivamente ao verso heroico, por ser “o mais pausado e

amplo”.45 A tragédia, por outro lado, utiliza metros variados. Estes são alguns dos

aspectos que levam Aristóteles a afirmar a superioridade da tragédia em relação aos

outros gêneros poéticos.

Além de estilizar a narrativa histórica, o poeta épico dispõe os episódios

de forma a garantir a coesão interna da obra. Convém, portanto, que “as partes

estejam de tal modo entrosadas que baste a supressão ou o deslocamento de uma

só, para que o conjunto fique modificado e confundido”.46 Aristóteles complementa: é

recomendável que as fábulas “encerrem uma só ação, inteira e completa, com

princípio, meio e fim, para que, assemelhando-se a um organismo vivente, causem o

prazer que lhe é próprio”.47 A recusa pela narrativa cronológica, portanto, não

pressupõe a incoerência da obra que, tal como um organismo, deveria garantir que

cada parte da narrativa cumprisse sua função de forma a preservar a harmonia do

todo.

Se Aristóteles reconhecia a superioridade da tragédia em relação à

epopeia, Pires de Almeida (e muitos outros, antes e depois dele) considerou o

poema épico superior aos demais gêneros.48 Torquato Tasso, por exemplo, afirmou

a superioridade da epopeia, definida como “imitazione d'azione illustre, grande e

perfetta, fatta narrando con altissimo verso”, que pretendia “muovere gli animi con la

maraviglia e di giovare in questa guisa”.49 Esta definição, que se afina às de

Aristóteles e Horácio, foi mantida com poucas variações enquanto durou o gênero,

que alcançou sua ruína no crepúsculo do século XVIII.

Camões e Os Lusíadas

O mais antigo retrato de Camões de que se tem notícia foi mencionado

numa portada do manuscrito d’Os Lusíadas, publicado graças ao apoio do conde de

44 ARISTÓTELES. “Arte Poética”. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, livro XXIV, p. 46-48. 45 Idem, livro XXIV, p. 47. 46 Idem, livro XXIII, p. 45. 47 Idem, ibidem. 48 Ver: MUHANA, Adma. Discurso sobre o poema heroico – Comentário. In: REEL (Revista Eletrônica de Estudos Literários), Vitória, a. 2, v. 2, 2006, pp. 1-23. 49 TASSO, Torquato. Discorsi dell´Arte Poetica ed in Particolare Sopra il Poema Eroico. A cura de Giorgio Petrocchi. Milano: Mursia Editore, 1974, p. 822.

Page 25: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

25

Vimioso. Pintado pelo espanhol Fernão Gomes na década de 1570, deste retrato

resta-nos apenas uma cópia feita por Luís José Pereira de Resende na primeira

metade do século XIX, a pedido do 3º duque de Lafões. Ele figura um Camões de

vestimenta pomposa e com o olho direito ferido. Existem várias representações

posteriores, e muitas delas mostram-no coroado com louros, munido com armadura

e, eventualmente, em posse de sua epopeia e/ou de uma pena. Todas estas

“pinturas” evidenciam não propriamente um homem, mas um tipo discreto, versado

nas letras e experimentado nas armas, que se feriu em batalha e cantou com

grandiloquência os feitos memoráveis dos portugueses. Assim como a poesia, o

retrato pode mobilizar tópicas retóricas para dar a ver/ler uma persona, e não

propriamente um indivíduo.

Manuel Severim de Faria também pintou um retrato, cerca de 40 anos

após a morte do poeta, discorrendo sobre características de seu corpo, espírito e

humor:

Foi Luís de Camões de meã estatura, grosso & cheio de rosto, & algum tanto carregado da fronte, tinha o nariz comprido levantado no meio, & grosso na ponta; afeava-o notavelmente a falta do olho direito (...); ainda que não era gracioso na aparência, era na conversação muito fácil, alegre & dizidor (...), posto que já sobre a idade deu algum tanto em melancólico.50

As informações sobre a vida do poeta Luís Vaz de Camões são

escassas.51 A data de seu nascimento é incerta (provavelmente entre 1524 e 1525),

bem como o local no qual nasceu (Alenquer, Lisboa, Coimbra ou Santarém). Em

1549 começou sua vida de viajante, embarcando para Ceuta na posição de soldado

raso, por lá permanecendo até 1551, um ano antes de supostamente perder o olho

direito na batalha contra os sarracenos. De acordo com Manuel Severim de Faria

(1583-1655), ele partiu para a Índia em 1553 e de lá regressou em 1569, tendo em

mãos a versão manuscrita d’Os Lusíadas. Faria afirma que Camões foi obrigado a

aguardar até 1572 para imprimir o poema, devido às dificuldades impostas pela

Grande Peste.52 O rei D. Sebastião, a quem o poema foi dedicado, recompensou o

50 FARIA, Manuel Severim de. Discursos Vários Políticos. Évora: impressor Manuel de Carvalho, 1624. 51 Ver: SARAIVA, António José. Luís de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, pp. 11-25. 52 Retomamos estes dados tão somente para dar a ler uma das versões recorrentes sobre a trajetória de vida do autor d’Os Lusíadas. Sobre os escritos de Manuel Severim de Faria, ver: ANDRADE, Luiz

Page 26: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

26

poeta com um soldo anual de quinze mil réis, quantia precária que ele usufruiu até o

final de sua vida.53

Foi na época em que esteve no Extremo Oriente que Camões entrou em

contato com A história do descobrimento e conquista da Índia, de Fernão Lopes de

Castanheda, e com as duas primeiras Décadas da Ásia, de João de Barros. Sabe-se

que ele teve acesso, também, às anotações de Pedro Nunes sobre o livro Tractatus

de sphaera, escrito no século XIII por Johannes Sacrobosco.54 João Adolfo Hansen

lembra que alguns aspectos de sua vida foram estilizados em sua poesia, sobretudo

através da lírica amorosa e elegíaca. No caso, Camões é retratado como tipo

aristocrata, católico, letrado e soldado. Ele pertencia a uma família galega da

pequena nobreza que se instalou em Portugal no século XIV, durante o reinado de

d. Fernando I. Trata-se de um “fidalgo pobre”, lembra-nos Hansen, tipo letrado

orgulhoso da nobreza e com dificuldades de conceber a riqueza como critério

definidor da hierarquia. Não apreciava o comércio ou o trabalho manual, mas

valorizava a carreira das armas. Assim como Diogo de Couto, ele vislumbra uma

mudança de valores, afirmando que “o ânimo guerreiro dos fidalgos do século XV foi

trocado pela vulgaridade dos mercadores”.55

O poema épico que garantiu a Camões fama duradoura pode ser dividido

da seguinte maneira: proposição (canto I, est. 1-3), momento no qual se declara o

assunto a ser tratado; invocação (canto I, est. 4-5), na qual Camões recorre às

imaginárias e inspiradoras ninfas do rio Tejo (localizado na Península Ibérica);

dedicatória (canto I, est. 6-18), momento no qual o poeta oferece a obra ao rei D.

Sebastião, seu contemporâneo; narrativa (canto I, est. 19, ao canto X, est. 144), que

se ocupa da exposição da fábula épica; e epílogo (canto X, est. 145-156), no qual

Camões exorta D. Sebastião a tomar com prudência as rédeas do Império lusitano,

em tons de humilde finalização.56 Não se pode esquecer, também, do alvará régio e

Cristiano. Os preceitos da memória: Manuel Severim de Faria, inventor de autoridades lusas. In: História e Perspectivas, Uberlândia, EDUFU, n. 34, 2006, pp. 121-122. 53 NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistico. 1872, pp. 8-33. 54 Ver: MICELI, Paulo. O desenho do Brasil no teatro do mundo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002, pp. 13-17. 55 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 169. 56 Esta subdivisão é sugerida por Hennio Birchal. Ver: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005, pp. 31-36.

Page 27: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

27

do parecer inquisitorial, assinado por Frey Bertholameu Ferreira, que acompanham a

primeira edição da obra.

Nem todos aplaudiram o título que Camões escolheu para sua epopeia,

por não seguir de perto as escolhas de Homero e Virgílio, que utilizam o título para

aludir ora ao nome do herói/protagonista (é o caso da Odisseia e da Eneida) ora ao

cenário em que se deflagra o conflito bélico (como ocorre na Ilíada).57 De acordo

com o helenista Jean-Pierre Vernant, o herói cantado na épica greco-latina “é ao

mesmo tempo o representante das expectativas coletivas, o responsável pela

salvação comum e um indivíduo que coloca suas façanhas pessoais acima de

tudo”.58 Desta forma, nomear o protagonista no título da obra indica que suas

façanhas individuais favoreceram a sobrevida da coletividade de que faz parte.59

Quando Camões inventa seu título, ele salienta a importância da harmonia e da

concórdia estabelecida entre os habitantes do reino que, em uníssono, deveriam

assegurar a unidade do Império. A tomar, então, pelo caráter “corporativista” da

política portuguesa, é possível inferir que a referência a heróis, no plural, poderia

favorecer a recepção por parte dos leitores, que deveriam cogitar a possibilidade de

conquistar reconhecimento e fama, caso suas ações se ajustassem em alguma

medida às condutas heroicas retratadas no poema.60 Não é de se estranhar,

portanto, que o poeta tenha optado pelo título Os Lusíadas, dispensando o singular

Vasco da Gama. O louvor épico salienta a necessidade de harmonia do organismo

social, independentemente do local ou do(s) herói(s) que a conduzem. A poesia

cristã canta a coesão do corpo místico e, concomitantemente, o respeito às

hierarquias. Neste sentido, o que interessa não é se o aedo nomeia um ou mais

heróis, mas se o seu canto assegura a vitória da ordem sobre o caos, seja em uma 57 Nas palavras de Luís António Verney (1713-1792), Camões, apesar do “engenho poético” e da “imaginação fecunda”, investiu na criação de uma obra defeituosa, devido à falta de erudição, de juízo e de discernimento. Verney criticou a opção pelo título ao afirmar que “os mestres da arte tomam o título, ou da pessoa, como Odisseia, Eneida, ou do lugar de acção, como Ilíada”. O poeta português, “em vez de tomar o dito título de Vasco da Gama etc., toma-o de todos os portugueses, buscando para isto um termo latino que tanto calça aos portugueses navegantes, como aos que ficaram no reino”. Ver: VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar (Cartas sobre Retórica e Poética). Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 167. 58 VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, p. 384. 59 De acordo com Jacques Rancière, o poema épico “é o livro da vida de um povo, expressão de um mundo onde o caráter de cada individualidade exprime em sua unidade o ethos de uma coletividade”. RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 33. 60 Não estamos sugerindo que as obras de Homero e Virgílio não pudessem ter, também, uma expressão político/educativa. O que fica em destaque, neste caso, é simplesmente a maneira de lidar com o(s) herói(s) e, principalmente, com as formalidades do texto que, afinal, encenam em suas linhas circunstâncias distintas e separadas por um longo intervalo de tempo.

Page 28: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

28

capitania ou na capital do Império. Esta é uma das condições para a existência da

concórdia: que o indivíduo, antes de lutar pela ordem geral, ordene a sua própria

vontade, aceitando e incorporando o lugar hierárquico que lhe é atribuído.

Desta forma, ainda que pautado em uma proposta distinta, seu teor não

se distancia totalmente do epos61 homérico, no qual o herói “não é separado do que

realizou, efetuou, nem do que o prolonga”.62 No caso da obra camoniana, que é

destinada ao rei D. Sebastião, faz todo o sentido referir-se aos lusitanos, pois o

prolongamento do monarca situa-se justamente nos súditos que o servem. A

presença do herói supria a falta “física” do rei, ao mesmo tempo em que encarnava o

“corpo político” do mesmo, e é nesse ponto que ambos se completavam. Não é o

caso, aqui, de o rei e o herói pensarem de forma similar, mas de o rei pensar e agir

através do herói que, na poesia épica, não detém vontade própria que não esteja

atrelada à vontade régia. O efeito de fazer-se presente, desta forma, é fundamental

na propagação das designações régias, o que indica que o pacto colonial

transcende sua realidade dicotômica restrita aos ciclos econômicos.63

As partes d’Os Lusíadas

Camões utiliza uma série de argumentos nas três primeiras estrofes de

sua epopeia (que correspondem à proposição) para introduzir a matéria, o gênero e

o estilo de seu poema:

As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas

61 Epos, neste caso, deve ser apreendido como discurso, narração e/ou palavra. É desta expressão que deriva o termo “épico”. 62 VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, p. 343. 63 Sobre a relação entre o herói e o rei, ver: LUZ, Guilherme Amaral. “Produção da concórdia: a poética do poder na América portuguesa (sécs. XVI-XVIII)”. In: Varia Historia, Belo Horizonte: UFMG, v. 23, n. 38, 2007, pp. 558-560.

Page 29: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

29

Se vão da lei da Morte Libertando: Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar engenho e arte.64 Cessem do Sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandre e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevante.65

Como convém à proposição, o aedo assinala o objeto de seu canto:

anuncia as “armas e os barões assinalados”, aludindo por sinédoque às façanhas

militares, matéria privilegiada da épica. João Adolfo Hansen afirma que este trecho

recupera um estilo alto e sublime, pois emula o primeiro verso da Eneida: “Eu canto

as armas e o barão primeiro”.66 Torquato Tasso, em sua Jerusalém Libertada,

recorre ao mesmo verso para principiar seu poema: “Canto l’arme pietose e ’l

capitano”.67 No entanto, Camões não reduz seu louvor a um herói apenas, mas a um

conjunto de barões que não identifica de imediato, o que justifica o uso da terceira

pessoa do plural. Outro poeta que pluraliza o objeto de seu canto é Ludovico Ariosto

em seu Orlando Furioso, ao cantar “Le donne, i cavallier, l’arme, gli amori”.68 Mais

adiante, Camões salienta o caráter inédito das façanhas que vai cantar, pois os

navegantes singraram mares nunca dantes navegados, ultrapassando a ilha de

Ceilão (também conhecida como Taprobana). O poeta adianta para o leitor que as

ações que vai narrar terminam com a edificação de um “Novo Reino”, à maneira de

Virgílio que, em seu exórdio, antecipa que a razão última da trajetória de Eneias é a

fundação de Roma.69

64Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofes 1-2, pp. 87-88. 65 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 3, p. 88. 66 Ver: HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 19. 67 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofe 1, p. 113. 68 ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso: cantos episódios. Tradução, introdução e notas de Pedro Garcez Ghirardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, canto I, estrofe 1, p. 51. 69 Em uma coletânea de ensaios publicados em 2006, Francisco Murari Pires retoma a historiografia helênica para aproximá-la da composição épica, afirmando que autores como Heródoto e Tucídides são tributários de certas convenções próprias na narrativa homérica. Dois dos princípios aventados pelo autor se sobrepõem: a dimensão arqueológica, ligada ao início da narrativa e, portanto, ao fato a ser narrado, e a dimensão etiológica, referente à causalidade. Se o objeto do canto é “as armas e os barões assinalados”, a causa do elogio é a fundação de um Novo Reino. Sobre os princípios acima referidos, ver: PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 274-275.

Page 30: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

30

Na segunda estrofe, Camões precisa e demarca os fundamentos de sua

narrativa. O objetivo central que alicerça o seu canto, afirma, é a ampliação da fé

cristã e expansão do Império português. Em razão deste propósito, o poeta pluraliza

e especifica os seus protagonistas: são objetos de seu elogio os nobres “barões

assinalados”, os “Reis” e os homens de valor que conquistaram memória perene em

virtude de suas ações.70 Quando contempla este “corpo” de heróis, o aedo exalta a

importância de determinados integrantes do Império,71 que deveriam atender ao

modelo de conduta ensejado pela ortodoxia católica. É importante lembrar, neste

caso, que o poeta reforça a ética cristã e o respeito à hierarquia política, sob a

orientação de uma concepção de história providencialista e, portanto, centrada na

figura de Deus.

Se na primeira estrofe Camões faz menção às “armas” para indicar, por

sinédoque, a matéria alta que fundamenta seu canto, na segunda estrofe ele atribui

ao poeta (e, por extensão, a si mesmo) a responsabilidade de divulgar os feitos que

deveriam integrar a memória coletiva. Destaca-se a matéria histórica e, na

sequência, a arte que a torna atrativa aos pósteros. Seguindo a preceptiva

aristotélica que define a poesia como imitação da ação (práxis), Camões concede-

nos uma prévia daquilo que está por vir.

Para finalizar sua proposição, Camões justapõe duas memórias para

julgar qual delas é a mais digna de canto e louvor, mandando cessar as navegações

e os feitos de Ulisses e do troiano Enéias, bem como a fama de Alexandre o Grande,

e do imperador romano Trajano. Pela emulação da memória do modelo, se amplifica

a magnitude do canto que se quer edificar, que contempla os feitos de um corpo

português: corpo do qual faz parte o aedo e o(s) herói(s). Para reforçar a

superioridade portuguesa, o poeta retoma a relação hierárquica estabelecida entre

homens e deuses pagãos: se, como versa o poeta antigo, os homens (mortais)

deviam respeito às deidades (imortais), laço que constitui a axiologia épica em

Homero, para os portugueses esta hierarquia se esvazia, o que indica depreciação

70 De acordo com Maria Leal de Matos, o poema “não intenta a glorificação do homem em geral, mas – muito particularmente – a dos portugueses que se empenham nas descobertas, empreendimento que assume um significado religioso bem determinado e bem inserido no seu momento histórico”. MATOS, Maria Vitalina Leal de. Introdução á Poesia de Luís de Camões. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983, p. 25. 71 Camões inclui, dentre os participantes de seu canto, integrantes da nobreza em suas duas variantes mais gerais: da nobreza “natural”, hereditária, e da nobreza “política”, concedida pelo direito positivo. Ver: HESPANHA, António Manuel. “A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime”. In: Tempo, v. 11, n. 21, 2006, pp. 135-136.

Page 31: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

31

do modelo politeísta e amplificação do lugar que se confere à religião cristã. Quando

o poeta afirma que Netuno – deus romano dos mares – e Marte – deus romano da

guerra – obedeceram aos nautas portugueses, ele não apenas subverte as

hierarquias pagãs como também amplifica as habilidades dos lusitanos, atribuindo-

lhes perícia nas artes da navegação e nos artifícios bélicos.72 À musa antiga resta o

silêncio, pois a narrativa camoniana lhe ofusca o canto.73 Assim, o exórdio de

Camões tende a cumprir sua função: tornar o auditório dócil, atento e benevolente.74

Na invocação, o poeta/aedo conjura o auxílio competente de uma ou mais

divindades, com o objetivo de alcançar a inspiração poética. Pires menciona que o

canto “constitui dom divino, bem concedido pela divindade a agraciar aquele mortal

que é particularmente distinguido como aedo”,75 que cumpre o papel de mediador.76

Em termos de disposição, a invocação pode encontrar-se fundida à proposição,

como no caso dos poemas homéricos, ou pode sucedê-la, como ocorre na Eneida.

Os versos de abertura da Ilíada, por exemplo, além do apelo à divindade, demarcam

o tema do canto e denunciam a fragilidade humana.77 Homero requisita o apoio da

“Deusa” e introduz sumariamente a matéria poética a ser tratada: a cólera de

Aquiles, inicialmente mobilizada contra o rei dos aqueus, Agamêmnon. Neste caso, a

invocação não guarda qualquer individualidade em relação à proposição, como

72 Neste momento, é importante lembrar que o épos homérico, valendo-se da axiologia épica, estabelece uma hierarquia rígida que distingue homens e deuses: “opondo a excelência da existência divina contra as misérias da condição humana”. No presente caso, a mesma convenção é retomada, com o intuito de subverter a hierarquia, a ponto de afirmar que são os deuses que devem préstimos aos navegantes portugueses. Sobre a axiologia épica, ver: PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 147-166. 73 “Em resumo, a Proposição camoniana constitui uma sapientíssima estrutura retórico-imitativa, cuja principal característica, do ponto de vista poético, é conjugar, com grande perícia, os veios estruturais oriundos de Virgílio e de Ariosto, enquanto os procura elevar a um plano de harmonia. O último verso da Proposição tem assim um valor paradigmático: Camões propõe-se fazer confluir os modelos fundamentais do gênero épico, depurando-os, atualizando-os e, deste modo, superando a contingência de cada um”. Ver: ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, pp. 202-203. 74 RETÓRICA A HERÊNIO (c. 82 a.C.), [PSEUDO CÍCERO]. São Paulo: Hedra, 2005, p. 55. 75 PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, p. 208. 76 “Contraposta a sapiência divina à ignorância humana, as representações afirmadas pela invocação às Musas revestem o canto de uma aura de sacralidade, que confere autoridade à narrativa do aedo”. Idem, p. 245. 77 “A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,/ o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas/ trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades/ de valentes, de heróis, espólio para os cães,/ pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;/ desde que por primeiro a discórdia apartou/ o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles”. CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero. São Paulo: Arx, 2003, vol. 1, canto I, v. 1-7, p. 31.

Page 32: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

32

ocorre, também, na Odisseia,78 em que o aedo invoca os auxílios da “Musa” e

destaca a virtude capital do herói que vai cantar: a astúcia. O auxílio divino, neste

caso, tende a oferecer fidedignidade aos feitos enredados, grandiosos a ponto de

merecer tratamento “sublime”.

Na Eneida, por fim, a proposição/invocação expõe sumariamente o teor

da matéria e requisita os auxílios da musa.79 Diferentemente de Homero, que invoca

a deidade no primeiro verso da obra, Virgílio anuncia o “seu” canto, adotando a

primeira pessoa do singular para divulgar a matéria poética. Só então, o poeta pede

o auxílio da “musa”, cuja sabedoria épica lhe permitiria entender o ressentimento de

Juno, que tantos infortúnios lança sobre “um barão na piedade assinalado”.80 Em

todos os casos, o aedo é apresentado “como o depositário humano de um saber que

é originalmente divino, o saber das Musas”.81 Na medida em que a responsabilidade

pela fidedignidade da narrativa recai sobre as deidades, a opção por ceder ou não a

“verdade” depende do arbítrio das mesmas. Em outras palavras, o aedo não possui

meios de investigar a fidedignidade da narrativa ditada pelas Musas, restando a ele

reproduzir os desígnios e acreditar na boa intenção delas.82

78 “Do homem fala-me, ó Musa, astuto, que por muito/ tempo perambulou, depois que destruiu a sagrada/ praça-forte de Tróia; que viu as cidades e conheceu/ o espírito de muitos homens, que padeceu sobre o mar/ muitas dores em sua alma, lutando pela própria vida/ e pelo regresso dos companheiros”. Cf. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005, pp. 83-84. 79 “Eu canto as armas e o barão primeiro,/ Que, prófugo de Tróia por destino,/ À Itália e de Lavínio às praias veio./ Muito por mar e terra contrastado/ Foi do poder dos numes, pelas iras/ Esquecidas jamais da seva Juno:/ Muito sofreu na guerra, antes qu’em Lácio/ Cidade erguesse e introduzisse os deuses:/ D’onde a gente Latina origem teve,/ D’Alba os padres, e os muros d’alta Roma./ As causas tu me conta, ó musa; dize/ Por que lesa deidade, ou de qu’ultraje,/ A rainha dos deuses ressentida,/ Passar por tantos casos da fortuna,/ Tantos trabalhos arrostar faria/ Um barão na piedade assinalado./ Cabe em peitos celestes ira tanta?”. VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro primeiro, p. 5. 80 Esta é uma tradução recorrente da frase latina “insignem pietate virum”, que integra a invocação da Eneida. O termo pietate, no caso, designa um dos atributos de Enéias. Esta categoria não deve ser revestida do sentido cristão que comumente lhe atribuímos, pois, no caso de Virgílio, um homem “piedoso” é aquele que cumpre seu destino atento aos deveres e obrigações. Enéias, herói pius, não contraria os deuses ou abandona sua família. Ver: VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Apresentação. In: VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XII. 81 PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, p. 243. 82 Ver: Idem, pp. 247-248. Como nos recorda, também, Jacy Seixas, “a memória mítica não constrói um vínculo necessário com a verdade; os saberes provenientes da memória podem ser verdadeiros ou falsos”. A autora cita, em seguida, um trecho da Teogonia, no qual Hesíodo atribui às Musas a seguinte fala: “Sabemos contar mentiras semelhantes às realidades; mas sabemos também proclamar verdades”. SEIXAS, Jacy Alves de. “Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica”. In: História: questões & debates. Curitiba: Editora da UFPR, n. 32, vol. 17, 2000, p. 79.

Page 33: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

33

Tal como Virgílio, Camões separa a proposição da invocação. Ao invocar

as Tágides, ninfas do rio Tejo, ele requisita o engenho ansiado:

E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mim um novo engenho ardente, Se sempre em verso humilde celebrado Foi de mim vosso rio alegremente, Daí-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloquo e corrente, Porque de vossas águas Febo ordene Que não tenham inveja às de Hipocrene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa, E não de agreste avena ou flauta ruda, Mas de tuba canora e belicosa, Que o peito acende e a cor ao gesto muda; Dai-me igual canto aos feitos da famosa Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; Que se espalhe e se cante no universo, Se tão sublime preço cabe em verso.83

Com modéstia afetada o aedo pede o auxílio das Tágides.84 Ele invoca,

em seguida, um “engenho ardente” e um “estilo grandíloquo e corrente”, além de

entonação e “fúria sonora”,85 para o bom desempenho nos domínios da eloquência

poética. O recurso da invocação, que assume a necessidade de intervenção

competente de personagens divinas, confere confiabilidade aos versos narrados,

frente à incapacidade do poeta de dissimular, e anuncia com autoridade e prudência

os predicados que caracterizam o aedo. Aproveitando-se deste recurso, o poeta

mede seu engenho – inspirado pelas Tágides – remetendo à agudeza poética dos

antigos, que recorriam às águas inspiradoras da fonte Hipocrene, criada por Pégaso

no monte Hélicon.86 Se, por um lado, Camões modestamente compromete-se com a

verdade, por outro, ele mais uma vez engrandece seu engenho.

83 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofes 4-5, p. 88. 84 Sob a máscara do vulgo, o aedo assume duas posições: uma inferior (indicando suposta deficiência de engenho perante o leitor discreto) e outra superior (e, portanto, apreciativa, demonstrando possuir a humildade que falta aos poetas vaidosos que, no ato do louvor heróico, buscam as glórias somente para si). Este “lugar humilde”, além de configurar um éthos favorável ao orador/aedo, concomitantemente amplifica a grandiosidade dos feitos a serem narrados. Ver: PÉCORA, Alcir. “A história como colheita rústica de excelências”. In: PÉCORA, Alcir. As excelências do governador: o panegírico fúnebre a d. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 52. Ver também: LUZ, Guilherme Amaral. O canto de Proteu ou a corte na colônia em Prosopopéia (1601) de Bento Teixeira. In: Tempo, Revista do Departamento de História da UFF. Niterói-RJ: v. 25, 2008. 85 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 05, p. 88. 86 HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de José Antonio Alves Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 105.

Page 34: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

34

A dedicatória é um lugar adequado para a explicitação de uma espécie de

“pacto” firmado entre poeta e homenageado. Nela, o aedo esclarece sumariamente

o teor do poema, projeta medidas políticas, discorre sobre a nobreza do dedicatário

e clama por sua benevolência. Não se trata somente do elogio a um passado ilustre,

mas também de exortação do homenageado perante a possibilidade de um futuro

que, como sugere o poeta, pode ser ainda mais grandioso. Alcir Pécora nos

esclarece que a épica de Camões “constrói efeitos tão desolados e contrários em

tudo ao que se esperaria de um canto de louvor à pátria. Uma pátria, de resto, que,

no presente da enunciação, produz-se sem quase traço da antiga grandeza que

dera causa ao canto”.87 É nesta linha de descontentamento que a exortação faz-se

necessária, sob a ótica de um projeto político que pretende vencer as limitações

impostas no presente da enunciação.

A dedicatória de Camões, portanto, é um discurso epidítico/suasório, que

apresenta sentenças lapidares, memórias fundacionais e esperanças de um novo

reino. Suas primeiras estrofes louvam o homenageado e introduzem a qualidade de

seus feitos. Nelas, é possível localizar a conjugação de duas das tópicas que

fundamentam o canto: a dilatação do Império e o “aumento da pequena

Cristandade”, introduzindo D. Sebastião, portanto, dentre os heróis que anuncia na

proposição. O aedo remete-se, ainda, à linhagem de seus antepassados e à

necessidade de conter a “moura lança”.88 Para além da exposição sumária dos

caminhos da narrativa, o poeta exalta os seus próprios versos na medida em que

enaltece a figura do rei, o que sugere que seus versos tornam-se caros na medida

em que são aceitos por aquele que encabeça a hierarquia política e, portanto, é o

detentor de maior poder dentre os membros do Império.

Em momento subsequente, Camões equaciona outras duas tópicas em

sua dedicatória: o lugar da amizade,89 quando garante que o seu interesse é tão

somente cantar as ilustres proezas do rei, e o lugar da fidelidade, quando se dispõe

a seguir o homenageado cegamente, devido ao seu histórico de ações, inclinações e

87 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 141. 88 Os Lusíadas, 2008, canto I, estrofes 6-7, p. 19. 89 Este lugar é artifício retórico recorrente: além de despertar a boa vontade de quem é agraciada pelo cotejo, a amizade declarada concede fidedignidade aos relatos, uma vez que um amigo não mentiria para outro. Este lugar pode ser percebido, por exemplo, em Cícero, quando este diz escrever para atender ao rogo do amigo Quinto. Ver: CÍCERO, Marco Túlio. Diálogos del Orador. In: Obras Escogidas, Buenos Aires: El Ateneo, s/d. Libro Primero (excerto), p. 18.

Page 35: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

35

em razão do próprio lugar hierárquico que ocupa. É frente a estes méritos que o

poeta espera tantas outras medidas e resoluções por parte do monarca:

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império O Sol, logo em nascendo, vê primeiro; Vê-o também no meio do Hemisfério, E quando desce o deixa derradeiro; Vós, que esperamos jugo e vitupério Do torpe Ismaelita cavaleiro, To Turco Oriental e do Gentio Que inda bebe o licro do santo Rio, Inclinai por um pouco a majestade, Que neste tenro gesto vos contemplo, Que já se mostra qual na inteira idade, Quando subindo ireis ao eterno templo; Os olhos da real benignidade Ponde no chão: vereis um novo exemplo De amor dos pátrios feitos valerosos, Em versos divulgado numerosos.90

Ao mesmo tempo em que louva o histórico de feitos do rei, o poeta busca

persuadi-lo a realizar outros, e usa como argumento a provável obtenção de fama

em idade madura, proporcional à grandeza de suas ações. Em consequência, o rei

D. Sebastião subiria ao “eterno templo”, metáfora que postula, de um lado, a

conquista da “imortalidade” através da memória cantada que sobrevive ao tempo, e,

de outro, a própria salvação eterna, em resposta às nobres ações de alguém que,

para fazer uso de outra metáfora, cumpriu bem suas funções como “braço” da

Providência. Valendo-se da discrição, o aedo demonstra um sutil descontentamento

em relação ao tempo presente e uma aguda ânsia por mudanças. Dissimulado, o

poeta confere tamanhos atributos ao rei que as ações sugeridas – enfrentamento ao

gentio, navegações ultramarinas, dilatação do Império – aparecem como fruto das

intenções do próprio rei, e não do poeta, já que sua modéstia afetada não lhe provê

competência ou ousadia para tal intromissão.91 É preciso que se tome o lugar da

amizade como lugar da justiça que propaga, dentre outras coisas, o respeito às

hierarquias: a tópica da modéstia afetada tende justamente a retomar as distâncias

políticas sob as quais se encontram as partes envolvidas no louvor. 90 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofes 8-9, p. 91. 91 Baltasar Gracián toma esta medida como prudente e conveniente. De acordo com o jesuíta, “os príncipes gostam de ser ajudados, mas não sobrepujados. Ao aconselhá-los, faça-o como se os lembrasse de algo esquecido, não como se acendesse a luz que ele é incapaz de ver”. Trata-se de um lugar de humildade, portanto, na qual as considerações do poeta soam como lembretes. Ver: GRACIÁN, Baltasar. A Arte da Prudência. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 1998, aforismo 07, p. 27.

Page 36: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

36

Ouvi: que não vereis com vãs façanhas, Fantásticas, fingidas, mentirosas, Louvar os vossos, como nas estranhas Musas, de engrandecer-se desejosas: As verdadeiras vossas são tamanhas, Que excedem as sonhadas, fabulosas, Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro E Orlando, ainda que fora verdadeiro.92

O poeta refuta o apoio das musas, responsáveis pelo teor “fantástico”,

“fingido” e “mentiroso” da épica antiga. A verdade, neste sentido, negligenciada

pelos poetas Ariosto e Boiardo, remonta à fidelidade da narrativa e ao verossímil

histórico. Após estas considerações, Camões continua com suas exortações:

E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso, Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, Tomai as rédeas vós do Reino vosso: Dareis matéria a nunca ouvido canto. Comecem a sentir o peso grosso (Que pelo mundo todo faça espanto) De exércitos e feitos singulares De África as terras e do Oriente os mares. Em vós os olhos tem o Mouro frio, Em quem vê seu exício afigurado; Só com vos ver o bárbaro Gentio Mostra o pescoço ao jugo já inclinado; Tétis todo cerúleo senhorio Tem para vós por dote aparelhado, Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro, Deseja de comprar-vos para genro.93

Mais uma vez movido pela prudência, o poeta exorta o rei à ação,

promovendo uma aliança entre várias temporalidades: menciona o histórico

exemplar do rei, insufla seu ânimo no tempo presente através dos versos que entoa

e, ao mesmo tempo, busca convencê-lo a mobilizar seus exércitos para, num futuro

próximo, invadir e (re)conquistar territórios africanos. Na estrofe seguinte, de

maneira complementar, o aedo se justifica ao fazer menção à facilidade com a qual

o rei consegue dominar os “gentios”, que se entregam ao jugo perante uma figura

tão admirável:

Em vós se vêem, da Olímpica morada, Dos dois avós as almas cá famosas;

92 Os Lusíadas, 2008, canto I, estrofe 11, p. 20. 93 Os Lusíadas, 2008, canto I, estrofes 15-16, p. 22.

Page 37: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

37

Uma na paz angélica dourada, Outra, pelas batalhas sanguinosas. Em vós esperam ver-se renovada Sua memória e obras valorosas; E lá vos tem lugar, no fim da idade, No templo da suprema Eternidade. Mas, enquanto este tempo passa lento De regerdes os povos que o desejam, Daí vós favor ao novo atrevimento, Para que estes meus versos vossos sejam; E vereis ir cortando o salso argento Os vossos Argonautas, por que vejam Que são vistos de vós no mar irado, E costumai-vos já a ser invocado.94

Faz-se, aqui, menção aos antepassados de D. Sebastião, que

conquistaram, à sua maneira, glória imorredoura.95 O alerta do aedo parte do

pressuposto de que o rei não poderia se esconder na sombra de seus

consanguíneos. Ele deveria, ao contrário, amplificar (pela emulação) sua fama e,

assim, conquistar seu lugar no templo da Eternidade. Por fim, no encerramento de

sua dedicatória, Camões afirma que o rei deveria agir desta maneira para merecer

seus versos, ou seja, é justamente por propor ações futuras que os versos serão

merecidos somente quando o projeto recomendado for cumprido. Nisto, evidencia-se

a cumplicidade entre presenteador e presenteado: se o rei não atendesse aos rogos,

o mérito da obra seria imerecido; contudo, se conseguisse atendê-los, a fama

ecoaria merecidamente pela eternidade.

Este pacto estabelecido através da dedicatória fica nítido também no

alvará régio que acompanha a edição de 1572. Há um trecho no qual o rei afirma:

E este meu Aluara se imprimirá outrosi no principio da dita obra, o qual ey por bem que valha & tenha força & vigor, como se fosse carta feita em meu nome, por mim assinada (...).96

94 Idem, canto I, estrofes 17-18, pp. 22-23. 95 Interessante notar que a recorrência aos feitos dos antepassados atenta o leitor para uma ideia de repetição, como condição para se firmar o estatuto da nobreza. Em outras palavras, fala-se de uma noção de hábito aristotélico que supõe certa permanência dos costumes, medida contrária à conduta artificial, desordenada e provisória do príncipe de Maquiavel. Neste sentido, não é o caso de não haver dinâmica ou particularidades de uma geração à outra, mas de (dever) haver certa continuidade no que se refere à própria primasia do nome, dos feitos e, assim, da “natureza” da nobreza. Ver: HESPANHA, António Manuel. “A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime”. In: Tempo, v. 11, n. 21, 2006, pp. 134-135. 96 CIDADE, Hernâni. Os Lusíadas (com ilustrações de Lima de Freitas). São Paulo: Círculo do Livro, 1979, p. 21.

Page 38: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

38

Há que se considerar tal alvará como parte da obra, uma vez que se trata

de um registro protocolar que autoriza o poema. Além de concordar com a

impressão da obra, o rei diz que o alvará deve ser recebido como uma carta

assinada por ele: com validade, força e vigor. Quando aceita a obra, o rei não

apenas admite e aprova os dizeres de Camões, como tende a ampliar o interesse do

leitor pela obra. Ou seja, com ganhos recíprocos, o autor vale-se de uma estratégia

tal que inviabiliza a recusa do rei e, consequentemente, a impressão da obra, e o rei

aceita as virtudes a ele atribuídas e, como prova maior da fidedignidade da obra,

afirma que a mesma deve ser impressa junto ao seu alvará, que a autoriza. Poeta

ganha proteção régia, o rei ganha um retrato primoroso: ambos, portanto, ganham

prestígio relativo e proporcional à posição que ocupam na hierarquia política.

No epílogo de Camões, os lugares da modéstia afetada e do acúmulo de

experiência articulam-se à tópica das letras e armas:

“Tomai conselho só de experimentados, Que viram largos anos, largos meses, Que, posto que em cientes muito cabe, Mais em particular o experto sabe”. Mas eu que falo, humilde, baixo e rudo, De vós não conhecido nem sonhado? Da boca dos pequenos sei, contudo, Que o louvor sai às vezes acabado. Nem me falta na vida honesto estudo, Com longa experiência misturado, Nem engenho, que aqui vereis presente, Cousas que juntas se acham raramente. Para servir-vos, braço às armas feito; Para cantar-vos, mente às Musas dada; Só me falece ser a vós aceito, De quem virtude deve ser prezada. Se me isto o Céu concede, e o vosso peito Dina empresa tomar de ser cantada, Como a pressaga mente vaticina, Olhando a vossa inclinação divina”.97

O aedo, dotado de “honesto estudo” e “longa experiência”, serve o rei

através do canto e das armas, da pena e da espada. A interação entre ambos os

atributos lega ao poeta a possibilidade de ver, aprender e ensinar. Assim, sua fala

prudente requisita o apreço de homem experimentado que, apesar da dissimulada

rudeza, enseja o aceite e a aprovação real. Esta tópica, comum à educação cortesã,

97 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofes 152-154, p. 324.

Page 39: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

39

prima pela possibilidade de atender ao chamado do rei e, em seguida, a partir da

experiência adquirida, educar os homens discretos, ensinando-lhes a maneira

adequada de servir ao reino. Como nos adverte Alcir Pécora, “as armas apenas,

sem a companhia das letras, significam mais que a falta ou a perda da arte:

significam a impossibilidade de continuidade dos feitos grandiosos”. Logo, a “falta de

estima da arte não implica apenas a rudeza dos heróis, mas a própria limitação de

sua virtude heroica, incapaz de atingir o verdadeiramente sublime”.98

Além do lugar da amizade, inscrito na afeição do mestre pelo pupilo, há

ainda a referência à idade avançada daquele, que contrasta com a “tenra idade”

deste. Ou seja: o mestre, experimentado nas proezas da vida, nas relações de corte

e nos hábitos educados e adequados às mais diversas circunstâncias, orienta

aquele que, ainda jovem, não viveu o suficiente para fazer bom juízo das coisas.

Não obstante seja o aedo mais versado e experiente, não deixa de ocupar um lugar

prudente, pois reconhece a honra e notoriedade da família de seu pupilo. Trata-se

de uma conjunção de lugares aparentemente adequada, pois, ajustada às

hierarquias, a fala do velho não precisa remontar aos padrões excelentes de corte.

Ainda assim, sendo ele detentor de larga experiência, poderia então narrar proezas

e exemplos pouco conhecidos e distantes do convívio cortesão. Por fim, usufruindo

da confiança e da afeição decorrentes da amizade, o mestre poderia sugerir

condutas e modos de agir sem, contudo, faltar com o respeito devido aos superiores

hierárquicos.

Sabendo desta larga repercussão dos lugares comuns, que são

apropriados em diferentes gêneros discursivos, é preciso lembrar, com Pécora, de

outro aspecto ligado primordialmente à exortação política: a arte em Camões deve

ser apreendida como publicidade de um passado ilustre e como figuração de um

futuro ainda mais grandioso, que está por vir. Os escritos, neste sentido, são

modelados segundo os costumes da educação cortesã. Pécora nos lembra que

o feito histórico não atinge verdadeiramente a sua plenitude heroica ou sublime antes que se produza o canto que desempenha o seu valor, isto é, sem que se acrescente aos sucessos das armas o espírito das letras. Ao passado grandioso da pátria é necessário que se ajunte a inteligência dele, pela arte, a fim de que o acidental e particular dos feitos alcance o estatuto

98 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, pp. 151-152.

Page 40: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

40

necessário e universal de virtude e excelência, que comunica perfectibilidade aos seres.99

O poeta/cortesão, portanto, deve dominar as habilidades atribuídas a

Marte e o engenho conferido a Apolo e ao seu séquito de Musas. Ao invocar as

ninfas do Tejo, Camões insiste:

Olhai que há tanto tempo que, cantando O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, A Fortuna me traz peregrinando, Novos trabalhos vendo e novos danos: Agora o mar, agora exprimentando Os perigos Mavórcios inumanos, Qual Cânace, que à morte se condena, Nua mão sempre a espada e noutra a pena;100

O poeta emula a Heroides de Ovídio ao mencionar a personagem

mitológica Cânace, filha de Éolo e de Enarete, que teria sustentado uma relação

incestuosa com Macareu, seu irmão. Numa mão, encontra-se a espada com a qual

cometeria suicídio a mando de seu pai. Na outra, segura a pena que utilizou para

escrever uma carta a Macareu. A analogia não é despropositada, pois o lugar que o

poeta desempenha seria, afinal, o lugar do trágico.

Camões discorre, ainda, sobre o reconhecimento dos vassalos que,

movidos pelo trabalho e pelo respeito à hierarquia política, reproduzem os princípios

reinóis:

E não sei por que influxo de Destino Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Que os ânimos levanta de contino A ter para trabalhos ledo o rosto. Por isso vós, ó Rei, que por divino Conselho estais no régio sólio posto, Olhai que sois (e vede as outras gentes) Senhor só de vassalos excelentes. Olhai que ledos vão, por várias vias, Quais rompentes leões e bravos touros, Dando os corpos a fomes e vigias, A ferro, a fogo, a setas e pelouros, A quentes regiões, a plagas frias, A golpes de Idolatras e de Mouros, A perigos incógnitos do mundo,

99 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 162. 100 Os Lusíadas, 2008, canto VII, estrofe 79, p. 219.

Page 41: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

41

A naufrágios, a peixes, ao profundo! Por vos servir, a tudo aparelhados; De vós tão longe, sempre obedientes A quaisquer vossos ásperos mandados, Sem dar respostas, prontos e contentes. Só com saber que são de vós olhados, Demônios infernais, negros e ardentes, Cometerão convosco, e não duvido Que vencedor vos façam, não vencido.101

O rei deveria, portanto, interceder pelos vassalos valorosos, sobretudo os

detentores de experiência:

Favorecei-os logo, e alegrai-os Com a presença e leda humanidade; De rigorosas leis desalivai-os, Que assim se abre o caminho à santidade. Os mais experimentados levantai-os, Se, com a experiência, têm bondade Para vosso conselho, pois que sabem O como, o quando, e onde as cousas cabem.102

O poeta exorta o rei a orgulhar-se de seus súditos. Não apenas daqueles

que servem com armas, mas também com as letras, forma de reprodução e

distribuição do poder. Refere-se, também, ao sacrifício a que se submetem estes

mesmos súditos, em diferentes circunstâncias: alvos de naufrágios, setas, fogo,

fome. Utiliza-se, assim, da argumentação com base na subserviência, na

preeminência, para justificar a benevolência do monarca, que deveria favorecê-los e,

assim, instigá-los a continuar com a mesma conduta. Só assim, intercedendo pelo

bem comum, é que o rei consumaria a própria soberania de seu reinado. Note-se

que, perante estas exortações, o título da obra pode recobrar outro aspecto que não

a mera menção ao corpo do Estado: refere-se, talvez, à necessidade de

reconhecimento da boa estirpe portuguesa, não somente em relação aos guerreiros,

mas também aos letrados, que retratam com papel e tinta tipos exemplares dignos

de imitação.

A proposição e a dedicatória podem ser lidas em conjunto, pois a

segunda especifica aspectos do heroísmo coletivo aludido na primeira. O epílogo

pode, igualmente, ser lido em analogia com as oitavas finais do canto V, em que há

uma valorização da arte e uma censura àqueles que a desvalorizam. A princípio, o

101 Idem, canto X, estrofes 147-148, p. 322. 102 Idem, canto X, estrofe 149, p. 323.

Page 42: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

42

poeta recorda que seu poema fundamenta-se na verdade histórica e censura

aqueles que se prenderam, como Ariosto, a ficções e fantasias.103 Na sequência, ele

afirma que as ações portuguesas de fato ultrapassaram os feitos antigos, como

queria Vasco da Gama, mas deixa claro que é necessário valorizar as letras para

que as ações gloriosas perdurem. Reforça-se, no caso, a tópica das letras e armas,

amplificada através da figura de Júlio César:

Vai César sojugando toda França E as armas não lhe impedem a ciência; Mas, nüa mão a pena e noutra a lança, Igualava de Cícero a eloquência. O que de Cipião se sabe e alcança É nas comédias grande experiência. Lia Alexandro a Homero de maneira Que sempre se lhe sabe à cabeceira. Enfim, não houve forte Capitão Que não fosse também douto e ciente, Da Lácia, Grega ou Bárbara nação, Senão da Portuguesa tão somente. Sem vergonha o não digo: que a razão De algum não ser por versos excelente É não se ver prezado o verso e rima, Porque quem não sabe arte, não na estima. Por isso, e não por falta de natura, Não há também Virgílios nem Homeros; Nem haverá, se este costume dura, Pios Eneias nem Aquiles feros. Mas o pior de tudo é que a ventura Tão ásperos os fez e tão austeros, Tão rudos e de engenho tão remisso, Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.104

Após dizer que os portugueses desvalorizavam a pena, o aedo menciona,

como consequência, a ausência de poetas do porte de Virgílio e Homero, estes sim

valorizados nas circunstâncias históricas em que existiram. Até mesmo o

protagonista da epopeia camoniana não é poupado desta mácula:

Às Musas agardeça o nosso Gama O muito amor da pátria, que as obriga A dar aos seus, na lira, nome e fama De toda a ilustre e bélica fadiga; Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, Calíope não tem por tão amiga Nem as filhas do Tejo, que deixassem As telas d'ouro fino e que o cantassem.

103 Ver: Idem, canto V, estrofes 86-90, pp. 167-168. 104 Idem, canto V, estrofes 96-98, pp. 170-171.

Page 43: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

43

Porque o amor fraterno e puro gosto De dar a todo o Lusitano feito Seu louvor, é somente o pros[s]uposto Das Tágides gentis, e seu respeito. Porém não deixe, enfim, de ter disposto Ninguém a grandes obras sempre o peito: Que, por esta ou por outra qualquer via, Não perderá seu preço e sua valia.105

Os antigos, portanto, tiveram seus feitos superados, mas, quanto à

valorização das letras, acabaram por superar os portugueses. Camões, assumindo a

posição de conselheiro, não deixa de orientar o leitor quanto à melhor maneira de se

alcançar a glória:

Por meio destes hórridos perigos, Destes trabalhos graves e temores, Alcançam os que são de fama amigos As honras imortais e graus maiores; Não encostados sempre nos antigos Troncos nobres de seus antecessores; Não nos leitos dourados, entre os finos Animais de Moscóvia zibelinos; Não cos manjares novos e esquisitos, Não cos passeios moles e ouciosos, Não cos vários deleites e infinitos, Que afeminam os peitos generosos; Não cos nunca vencidos apetitos, Que a Fortuna tem sempre tão mimosos, Que não sofre a nenhum que o passo mude Pera algüa obra heróica de virtude; Mas com buscar, co seu forçoso braço, As honras que ele chame próprias suas; Vigiando e vestindo o forjado aço, Sofrendo tempestades e ondas cruas, Vencendo os torpes frios no regaço Do Sul, e regiões de abrigo nuas, Engolindo o corrupto mantimento Temperado com um árduo sofrimento; E com forçar o rosto, que se enfia, A parecer seguro, ledo, inteiro, Pera o pelouro ardente que assovia E leva a perna ou braço ao companheiro. Destarte o peito um calo honroso cria, Desprezador das honras e dinheiro, Das honras e dinheiro que a ventura Forjou, e não virtude justa e dura. Destarte se esclarece o entendimento, Que experiências fazem repousado,

105 Idem, canto V, estrofes 99-100, pp. 171-172.

Page 44: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

44

E fica vendo, como de alto assento, O baxo trato humano embaraçado. Este, onde tiver força o regimento Direito e não de afeitos ocupado, Subirá (como deve) a ilustre mando, Contra vontade sua, e não rogando.106

Com a desvalorização das letras, corrente em seu tempo, o poeta acaba

inscrevendo para si um lugar trágico. Seria, portanto, de se esperar que Camões não

cantasse os feitos de homens que desmereciam glórias imorredouras, devido à

ingratidão para com aqueles que lustravam suas memórias:

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse A quem ao bem comum e do seu Rei Antepuser seu próprio interesse, Imigo da divina e humana Lei. Nenhum ambicioso que quisesse Subir a grandes cargos, cantarei, Só por poder com torpes exercícios Usar mais largamente de seus vícios; Nenhum que use de seu poder bastante Pera servir a seu desejo feio, E que, por comprazer ao vulgo errante, Se muda em mais figuras que Proteio. Nem, Camenas, também cuideis que cante Quem, com hábito honesto e grave, veio, Por contentar o Rei, no ofício novo, A despir e roubar o pobre povo! Nem quem acha que é justo e que é direito Guardar-se a lei do Rei severamente, E não acha que é justo e bom respeito Que se pague o suor da servil gente; Nem quem sempre, com pouco experto peito, Razões aprende, e cuida que é prudente, Pera taxar, com mão rapace e escassa, Os trabalhos alheios que não passa. Aqueles sós direi que aventuraram Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida, Onde, perdendo-a, em fama a dilataram, Tão bem de suas obras merecida. Apolo e as Musas, que me acompanharam, Me dobrarão a fúria concedida, Enquanto eu tomo alento, descansado, Por tornar ao trabalho, mais folgado.107

Há uma coerência entre as oitavas finais dos cantos V, VI e VII no que se

refere aos juízos proferidos pelo poeta. No canto V, quando Gama está concluindo

106 Idem, canto VI, estrofes 95-99, pp. 197-198. 107 Idem, canto VII, estrofes 84-87, p. 221.

Page 45: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

45

sua narrativa ao rei de Melinde, há um momento de amplificação dos feitos

portugueses, que são sobrepostos às memórias antigas. Na estrofe 92, a imitação

dos antigos é utilizada para se fazer uma apologia à valorização dos poetas. De

acordo com Camões, os feitos portugueses realmente superam os antigos, mas não

há incentivo para a divulgação destes feitos através da arte. Na ocasião, ao mesmo

tempo em que lança uma censura aos capitães que não dominam as letras, o poeta

coloca em evidência a tópica da pena e da espada, que tão bem caracteriza o seu

epílogo. Como disse Pécora, o poeta retira do acontecimento ilustre o que ele tem

de sublime para, assim, fundamentar seu canto.

No final do canto VI, Camões oferece um caminho para a obtenção de

glórias, reforçando o lugar comum da experiência “trágica” enquanto terreno propício

para a obtenção de fama. Para tanto, o poeta afirma que o heroi deve apoiar-se no

tronco ilustre dos antepassados para emular seus feitos e reafirma as tópicas da

experiência e da recusa às honrarias decorrentes dos bens materiais. No canto VII,

por fim, Camões invoca as ninfas do Tejo e do Mondego, edifica para si um lugar

melancólico, trata das injustiças promovidas pelos heróis, recorre à tópica da

curiosidade e da necessidade de valorização da arte, defende a harmonia do corpo

místico e censura a mentira e o roubo. Quando assinala virtudes merecedoras de

reconhecimento, Camões se define como portador delas e, ao mesmo tempo,

convence o leitor de que abraça-las significa tornar-se um súdito digno de canto

épico e fama perene.

Vitor Aguiar e Silva tem razão ao advertir sobre os perigos de uma leitura

antológica, isto é, que privilegia alguns episódios em detrimento de outros.108 As

partes da epopeia camoniana se entrelaçam, e parece ser deste entrelaçamento que

nasce a harmonia que lhe é própria.

Camões emulou os poemas greco-romanos, mas admitiu que as

circunstâncias históricas em que viveu não permitiram que ele alcançasse o estatuto

daqueles poetas. Ou seja, apesar de reconhecer a matéria de sua epopeia como

superior, sem o incentivo à arte, não haveria a valorização do poeta, tampouco a

perpetuação de feitos ilustres. Era a pena do poeta que atribuía forma à história e

retirava dela atributos para orientar a conduta dos leitores. Sem esta orientação, não

haveria a reprodução de grandes feitos, e sem estes feitos, não haveria mais razão

108 Ver: AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, pp. 93-107.

Page 46: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

46

para custear o labor poético. Não se tratava propriamente de pessimismo, mas de

um argumento que amplifica o valor de sua epopeia ao retratar o empenho solitário

de um poeta que perseverava na luta pelo bem comum.

Para reforçar a grandiosidade do conflito bélico que narrou, Tucídides

mencionou seu potencial trágico, que teria superado a guerra de Tróia (Homero) e

as Guerras Médicas (Heródoto). Quando reconheceu a impossibilidade de novos

Homeros e Virgílios, Camões desenhou os reveses de seu presente para amplificar

sua determinação, uma vez que agiu privado do incentivo de seu tempo. Se a arte

seria o veículo para a promoção do heroísmo, na falta dela, heroico torna-se o

sacrifício daquele que a ela se dedica.

Naufrágio de Sepúlveda

Jerônimo Corte-Real, filho de Manuel Corte-Real, donatário de capitanias

açorianas, e de D. Brites de Mendonça, nasceu em local e data desconhecidos. Não

há informes sobre sua vida antes de 1561, ano em que entrou na Ordem de Cristo e

se casou com D. Luísa da Silva. Ao que tudo indica, foi militar ativo e levou vida

“livre e perigosa” antes de casar-se. Muito do que se imagina sobre sua vida é

baseado em sonetos contidos nos próprios manuscritos do autor, atribuídas a poetas

e autores contemporâneos seus. Gomes Freire de Andrade referiu-se a ele como

“Homero Lusitano”. Num epigrama, Antonio Ferreira afirmou que o céu concedeu a

Jerônimo Corte-Real vários dons: com o pincel, ele seria capaz de vencer natureza e

arte; com a espada, representava Marte; poucos compunham versos e manuseavam

a lira como ele. Diogo Bernaldez chamou a atenção para o seu “espírito raro” e

afirmou que Marte concedeu-lhe a lança, Apolo a lira, Orfeu a voz, Amor cedeu-lhe a

branda pena, e a natureza presenteou-lhe o pincel. Alvarez Pereira afirmou que ele

supera o pintor Apeles e que chega a vencer o próprio Orfeu: “Tudo que diz com a

língua obrou com a espada”, disse ele. Dom Jorge de Meneses mencionou seu

“divino canto” e afirmou que ele honrou sua pátria, celebrando e defendendo-a com

a espada. Num epigrama do mesmo autor, outras características do poeta foram

pontuadas: nobreza, esforço, engenho. Pero Andrade de Caminha, referindo-se ao

seu engenho, afirmou que Corte-Real, com cores vivas, “mostra aos olhos quanto

canta”, surpreendendo e espantando néscios e doutos. Vislumbra-se, através destes

Page 47: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

47

caracteres, um tipo excelente, conhecedor de letras e armas, que lutou por Portugal

e celebrou suas vitórias com poemas engenhosos e agudos.109

Pouco se sabe sobre a recepção de suas letras: o poeta foi mencionado,

por exemplo, na poesia de Juan Rufo Gutiérrez, num poema de 1584. Lope de Veja

Carpio coloca-o lado a lado com Camões, assim como Juan de Solórzano. Francisco

de Quevedo y Villegas o tem por “doutíssimo”. António de Sousa de Macedo o

considera insigne e ilustre. Manuel de Faria e Sousa, por sua vez, afirma que as três

estâncias d’Os Lusíadas sobre o naufrágio de Sepúlveda apresentam valor superior

ao poema de Corte-Real sobre o mesmo assunto. No século XIX, as opiniões

variaram: Garret e Denis destacaram seus “maus versos” e “mau gosto”, mas

reconheceram algumas virtudes. Costa e Silva é generoso ao reconhecer

fragmentos altos, mas repete que as três oitavas de Camões superam seu poema.

Camilo Castelo Branco e Teófilo Braga repudiam Corte-Real.110

Ao longo do prólogo ao leitor do Sucesso do Segundo Cerco de Diu

(1574), o poeta amplifica a importância dos feitos portugueses e elogia os poetas

antigos, dizendo que se Virgílio pudesse cantar os feitos portugueses, escreveria

coisa espantosa, jamais vista antes. Com modéstia afetada, ele assume o encargo

de escrever sobre o segundo cerco de Diu, admitindo que outros poetas poderiam

escrever com maior diligência e engenho. No entanto, afirma que fez o possível,

tentando não fugir à verdade, e pede a benevolência do leitor, para perdoar os erros

e levar em consideração o seu intento, que é o de cantar grandes feitos

portugueses, de forma que possam ser lembrados na posteridade. No prólogo ao rei

D. Sebastião, ele afirma que escreve com versos heroicos, tratando de combates,

socorros e outras ações, para que “a invenção da pintura satisfaça à rudeza do

verso”.111

Em 1594, foi impresso na oficina de Simão Lopez o Naufrágio e lastimoso

sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua

mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S.

João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Na primeira

página, logo abaixo do título, há um complemento em itálico: E a peregrinação que

109 Ver: CORTE-REAL, Jerônimo. Sucesso do Segundo Cerco de Diu: estando Dom João Mascarenhas por capitão da fortaleza. Ano de 1546. Lisboa: Oficina de Antonio Gonçalvez, 1574, s/p. 110 Ver: CORTE-REAL, Jerônimo. Poesia. Introdução, seleção, fixação de texto e notas de Hélio J. S. Alves. Coimbra: Angelus Novus, 1998, pp. XI-LIII. 111 Idem, ibidem.

Page 48: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

48

tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Na mesma

folha, outras informações foram dispostas na seguinte ordem: o gênero do poema

(composição em verso heroico, com uso da oitava rima), o nome do poeta (Jerônimo

Corte Real) e o nome do dedicatário, acompanhado de seus títulos (D. Teodósio,

Duque de Bragança e Barcelos, Marquês de Vila Viçosa, Conde de Ourem, Senhor

das vilas de Arraiolos e Portel). Por fim, acusa-se a presença das licenças (do Santo

Ofício, do Ordinário e de sua Majestade), a oficina de impressão (de Simão Lopez),

o privilégio real (com duração de 10 anos, como de costume) e o ano da impressão

(1594).112 Com um total de 206 páginas, o Naufrágio de Sepúlveda não enumera

estrofes. Os seus 17 cantos utilizam versos decassílabos brancos, empregando a

oitava rima em algumas ocasiões, como nos discursos das personagens.

No prólogo presente na versão setecentista do Naufrágio de Sepúlveda, o

editor menciona a excelência e a singularidade do poema, tratando-se de

composição digna de “lição pública”. O poeta teria demonstrado verdadeira

sublimidade de estilo. Além disso, afirma que o poema encontra-se revestido de

belos episódios, de linguagem elegante e pura, com uso de figuras que avivam as

pinturas, respeitando o decoro da epopeia. Como foi publicada postumamente, a

dedicatória da primeira edição foi escrita pelo seu genro, Antonio de Sousa, que

menciona a fidalguia e a nobreza de ânimo de seu sogro e o caráter fidedigno do

poema (chama-o de história, por ser detentor de um “verdadeiro discurso”).113 Não

se sabe quem foi o autor do prólogo presente na edição princeps.

Cada um dos cantos do Naufrágio de Sepúlveda é antecedido por um

breve resumo, que pode auxiliar no entendimento da disposição do poema. De

acordo com Hélio Alves, há duas histórias paralelas no poema:114

Por um lado, desenha-se a intriga de quatro protagonistas, Leonor de Sá – com quem a narração começa –, o pai Garcia de Sá, o pretendente e depois

112 CORTE-REAL, Jerônimo. Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. E a peregrinação que tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Lisboa: Oficina de Simão Lopez, 1594. Deste momento em diante, em razão da extensão do título, utilizaremos somente Naufrágio de Sepúlveda, tanto no corpo do texto quanto nas notas de rodapé. Neste último caso, será indicado somente o título, o ano e o número da página. 113 CORTE-REAL, Jerônimo. Sucesso do Segundo Cerco de Diu: estando Dom João Mascarenhas por capitão da fortaleza. Ano de 1546. Lisboa: Oficina de Antonio Gonçalvez, 1574, pp. 1-3. 114 Um sumário da narrativa do poema de Corte-Real pode ser encontrado em: ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, pp. 233-240.

Page 49: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

49

amante Manuel de Sousa Sepúlveda, e finalmente o único dos quatro que, ironicamente, não tem a palavra no poema a não ser depois de morto: Luís Falcão. Leonor e Manuel apaixonam-se, Garcia combina o matrimônio da filha com Falcão, Manuel faz saber secretamente a Garcia que Leonor era casada clandestinamente com ele, esta acaba por confessar ao pai a relação, Garcia enclausura-a, os amantes trocam correspondência secreta em que confirmam a fidelidade amorosa, Manuel concebe na mente o assassinato de Falcão e leva-o a efeito, Falcão é enterrado, Garcia (contrariado) dá a mão de Leonor a Manuel, celebram-se as bodas em Goa, nascem dois filhos do casal, partem para Portugal, naufragam na costa do Natal, sobrevivem ao naufrágio para sofrer a fome, a sede e as adversidades duma caminhada desorientada em terra, morre um filho duma relação anterior de Manuel, o espírito de Falcão brada a Deus por justiça, morre Leonor, e Manuel desaparece no arvoredo. Nos seus pontos mais evidentes, esta é a imperfeita intriga humana principal de Sepúlveda. Por outro lado, em relação de parataxe com a anterior, Corte-Real inventa uma intriga divina principal. Amor, que tudo havia feito para que se acendesse a paixão entre Leonor e Manuel, fica ofendido com os obstáculos colocados por Garcia de Sá. Por isso, vai falar com sua mãe Vénus em Pafos para se queixar e procurar uma solução. Vénus conta-lhe acerca dum outro filho seu, Ânteros, nascido, por recomendação do oráculo de Témis, para que Amor deixasse de ter o aspecto duma criança e crescesse. Ânteros, que «a seu cargo tem vingar agravos/ e as injúrias de Amor satisfazê-las», voará com seu irmão à ilha de Némesis, também chamada Raunúsia, onde ambos encontrarão o ódio, a ira e a determinação necessários para trazer com eles a Pafos a deusa da vingança. Entretanto, Vénus conseguirá de Vulcano um raio com o qual Cupido, fisicamente transformado pela experiência da viagem (no regresso, a sua mãe mal o reconhece), matará Luís Falcão em Diu, satisfazendo os seus maus sentimentos. A descrição da viagem de Amor e Ânteros entre as ilhas gregas e os paços de Némesis, com o aspecto e o recheio destes, enchem o quadro. Finalmente, Vénus e Amor presidem às bodas de Leonor e Manuel Sepúlveda, e procuram beneficiar-lhes o leito matrimonial, mas a meio da noite de núpcias, ao entenderem que estava guardado um fim terrível aos noivos, partem dali e regressam tristes a Pafos para nunca mais aparecerem em cena.115

A estas duas histórias paralelas agregam-se duas ações secundárias:

No plano humano, a viagem de Pantaleão de Sá, um dos capitães de Sepúlveda, inicia-se já depois do naufrágio, com o destacamento de uma pequena força por ele comandada, enviada a auxiliar militarmente um régulo hospitaleiro. Depois do combate, Pantaleão conhece um velho africano que o convida a deixar os seus homens por algum tempo, para que possa contar-lhe episódios da História passada e futura de Portugal, ilustrados nas paredes duma caverna. O capitão português fica a saber também através do astrólogo ancião que em Pantaleão, e noutros como ele, se depositam as esperanças dum futuro de liberdade política. Mais tarde, quando Leonor e Manuel estarão prestes a chegar ao grau último de degradação, Pantaleão escapa e salva-se da morte. No plano divino, por seu turno, surgem, durante a viagem de Sepúlveda, Proteu no mar e nas praias, Pã na floresta interior e Febo nos céus, deuses invariavelmente acometidos de paixão por Leonor. A acção destas divindades, juntamente com as vozes de ninfas do rio e da floresta, corre

115 ALVES, Hélio J. S. Corte-Real, a Evolução da sua Arte. In: Península. Revista de Estudos Ibéricos, n. 2, 2005, p. 185. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2963.pdf. Acesso em: janeiro de 2013.

Page 50: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

50

paralela à dos náufragos até para além do desaparecimento destes. Esta é a parte narrativa do Sepúlveda que mais se afasta da noção de enredo: os três deuses actuam sempre em separado, conforme a zona onde deambulam os náufragos, estabelecendo relações apenas com as divindades do respectivo meio ou «reino». Cada um tem uma história individual de desejo amoroso a revelar, que nunca se entrelaça com as outras. Resta saber em que medida estes amores se associam ao Amor da acção divina principal, uma associação inexistente no plano narrativo mas sugerida pelo simbolismo panteísta do poema.116

Feito este sumário do poema, convém investigar algumas partes suas, a

começar pela proposição, na qual Corte-Real antecipa a matéria de seu canto:

Hum sucesso infelice: hum triste caso Hum funesto discurso: a morte horrenda Do Sepúlveda, canto: & juntamente

O miserável fim daquela ilustre Belíssima Lianor, a quem fortuna Mostrou da cruel roda, o mais adverso: Mais abatido & mais mísero estado.117

Nada de barões assinalados neste caso (ainda que o poema assinale

muitos heróis portugueses). Vários adjetivos foram empregados para amplificar a

natureza trágica da matéria poética. Não há alusão à máquina mitológica, muito

embora ela se mostre fundamental. O aedo deixa claro que discorre sobre apenas

“um” sucesso infeliz, “um” triste caso. Apesar de mencionar a “morte horrenda do

Sepúlveda” e o “miserável fim” de Leonor de Sá, ambos os episódios encontram-se

associados a uma única experiência, que se inicia com um naufrágio e termina com

uma peregrinação por terras inóspitas. Quando menciona seu “funesto discurso”, no

segundo verso da proposição, o poeta pode estar se referindo ao poema que

escreveu, ou talvez esteja indicando a relação de naufrágio que utilizou como

principal fonte para escrever seu poema.

A vós ó Redentor, que nas entranhas Puríssimas da Virgem sacra, & pia: Vos encerrastes Deos & homem perfeito, Intervindo em tal obra o Espírito Santo, A vós Christo lesu que no Calvário, Encravado na cruz por nós morrendo, Lavastes nossas culpas na sangrenta

116 Idem, pp. 185-186. 117 CORTE-REAL, Jerónimo. Naufrágio de lastimoso sucesso de perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindo da Índia para este reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Lisboa: oficina de Simão Lopes, 1594, s/p. Disponível em: http://archive.org/details/naufragioelastim00cort. Acesso em: janeiro de 2013.

Page 51: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

51

Fonte; aberta com a lança de Longinho. A vós peço senhor alto socorro, Que o de Helicon não quero, neq Apollo Levemente me inspire o doce alento: Dando-me saber novo, & claro engenho, Nam lhe peço da Lyra o som suave, Nem que o meu canto faça sonoroso, Vosso favor invoco: este só peço Para cantar o caso acerbo, & duro O Naufrágio espantoso, o cruel caso, Daqueles que mil vezes submergidos Nas procelosas ondas, la na terra Desconhecida, foram todos mortos.118

É também com modéstia afetada que o poeta requisita a intervenção

divina, recusando, assim como Camões, o auxílio das musas e a inspiração de

Apolo. Na sequência, ele delimita seu pedido: não quer o som suave da lira,

tampouco um canto sonoroso, mas somente o favor divino. Por um lado, o poeta

pode estar reforçando sua modéstia, requisitando o amparo de Deus para assegurar

a veracidade de seus versos. Por outro, pode estar se referindo a um estilo médio,

situado entre o canto suave da lira e o canto sonoroso da tuba. No entanto, não

seria este, por excelência, o lugar do gênero histórico, e não do épico? Sabemos

que o poema de Corte-Real é baseado num relato de história, que recorre à

disposição in ordo naturalis e que não se ocupa de matéria bélica, mas de um caso

acerbo e duro, que se inicia com um naufrágio “espantoso” e termina com a morte de

todos em uma terra desconhecida. Talvez seja para cantar uma matéria tão trágica

que o poeta requisite o amparo divino. Neste caso, o poeta pode não estar

reivindicando um estilo médio, mas uma matéria média, situada entre os diálogos

pastoris e as guerras da epopeia.

Há outras quatro invocações ao longo do poema de Corte-Real, estando a

primeira delas localizada no canto sexto:

Canta tu Musa minha a desestrada, Triste navegação, e o trabalhoso Miseravel discurso, do mortífero Infelice, funesto, e mao sucesso. De Neptuno também canta a braveza: O ímpeto, e furor do fero Éolo, E o proceloso mar todo revolto, Com fortes, e terribeis tempestades. Dame favor ò Musa, porque diga, E notifique ao mundo aquela infausta Antecipada morte, que com tanta

118 Idem.

Page 52: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

52

Razão, merece ser sempre chorada.119

No canto sétimo, deparamo-nos com outra, direcionada a Deus:

O Deos omnipotente, ò senhor nosso Daime agora favor, que he necessário, Pera que contar possa aqui o perigo Quase chegado ao fim deste receio.120

A próxima situa-se no oitavo canto:

Agora Musa minha, agora he tempo Que tu comigo cantes o discurso Da peregrinação mortal, e o triste Infortunado fim de tanta gente. Os trabalhos, as guerras, os perigos Sobresoltos, traições, estrago, e mortes Da vera informação de tantos males Pois certo sou que tu deles te lembras.121

A quarta, colocada no último canto, foi direcionada a Calíope:

Calyope divina agora he tempo Onde me he o teu favor mais necessário Torname ao coração aquela força Quem em termo tao estreito tem perdida Concedeme vigor ao fraco espírito, Que co a presente dor já desfallece. A mão, e a língua guia, que recusam Prosseguir e tratar passo tao forte Dentro no peito geme est’alma minha, Lastimada, e doida do ímpio caso. Do sucesso cruel, e fim tao triste Que aqui guardado estava a tal beleza.122

Se, de início, o poeta dá a impressão de dispensar o panteão greco-

romano, logo ele desengana o leitor, pois vários deuses mitológicos participam da

experiência de Manuel de Sousa Sepúlveda e Leonor de Sá. A invocação, no caso,

amplifica o aspecto dramático do episódio a ser narrado, pois o aedo pede ajuda por

se julgar incapacitado de narrar, sozinho, tão trágico desfecho.

As quatro invocações referidas aparecem em momentos muito específicos

do poema: a primeira antecede a partida de Sepúlveda de Cochim, rumo ao

119 Idem, p. 58. 120 Idem, p. 76. 121 Idem, p. 85. 122 Idem, p. 200.

Page 53: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

53

desfecho ruinoso de sua viagem. Desta vez, o poeta nomeia entidades mitológicas

(Netuno, Éolo) e, mais uma vez, elenca uma série de adjetivos para amplificar o

caráter trágico da matéria que vai tratar. A segunda invocação, dirigida a Deus,

ocorre no momento em que o aedo precisa descrever a tempestade que abate o

galeão São João. A terceira, novamente direcionada à Musa, antecede a

peregrinação dos nautas, após o naufrágio de que foram vítimas. Na ocasião, ele

especifica a matéria (trabalhos, guerras, perigos, sobressaltos, traições, estragos,

mortes) e pede à Musa informações verdadeiras. A quarta e última invocação

antecede a morte de Leonor de Sá e o desaparecimento de Sepúlveda nas matas da

Terra do Natal, sendo desta vez direcionada à musa da poesia épica, Calíope. O

aedo, neste caso, pede força e vigor, pois seu espírito já se encontrava enfraquecido

devido à dor e crueldade vivenciadas ao longo da narrativa.

Como assinalamos no início deste tópico, vários poetas atribuíram à

persona de Corte-Real grande habilidade no manuseio da pena, da espada e do

pincel. Outros encontraram nele um Homero lusitano. O prólogo e a dedicatória,

também reafirmaram seus atributos. Trata-se de uma espécie de homenagem

fúnebre e reconhecimento de seus méritos, o que realça a excelência de seu retrato.

Este súdito dedicou-se à escrita de um poema que cantou o “lastimoso” fim de

Manuel de Sousa Sepúlveda e d. Leonor de Sá. Para tanto, ele mobilizou

maravilhoso para pintar uma intriga e retirar dela uma forma reta de agir. Assim

como no caso d’Os Lusíadas, as falhas do protagonista podem ser contrastadas com

a discrição do poeta. O poema, que ilustra situações de vingança, de assassinato,

de ciúmes e vaidades, parece reforçar a importância da virtude da caridade. O Amor,

no caso, desempenha um papel central, talvez por manifestar a falta de juízo do

protagonista e motivar o crime que torna imperativo o castigo posterior. Não se trata

propriamente de pessimismo, mas de uma cadeia de acontecimentos que justifica a

centralidade da virtude teologal da caridade e indica as consequências de sua

ausência, como é possível notar no prólogo anônimo da editio princeps do poema,

que reconhece no Naufrágio um

discurso em que se pode claramente ver as variedades e pouca firmeza dos estados que na vida se tem por felizes. E se bem olhardes vereis quão certo está o castigo ainda que tarde aquele que por seus delitos cometidos contra a caridade e amor com que devíamos amar nossos próximos, o merecem, e

Page 54: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

54

que não deve a tardança dele fazer-nos esquecer da certeza com que o devemos temer.123

123 Idem, s/p.

Page 55: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

55

CAPÍTULO 02

A coletânea britiana

A História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito, contou com o

amparo da Academia Real da História Portuguesa, fundada a 08 de dezembro de

1720 por iniciativa do clérigo D. Manoel Caetano de Sousa (1658-1734) e do 4º

Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Meneses (1673-1743). Não se pode dizer

ao certo se Bernardo Gomes de Brito chegou a fazer parte desta instituição. As

poucas informações biográficas sobre ele foram fornecidas por Diogo Barbosa

Machado, membro da Academia desde a sua fundação e contemporâneo do coletor.

Sabe-se, por exemplo, o nome de seus pais (Domingos Gomes e Mariana de Brito),

o local e a data de seu nascimento (Lisboa, 1688).124 Além disso, Machado faz

alusão à sua “feliz memória”, “boa compreensão” e “estudiosa aplicação”.125 Nas

licenças que acompanham a HTM, existem alguns epítetos que qualificam sua

pessoa: no caso, Brito é reconhecido como compilador e cultivador da História que,

com cuidado, diligência e curiosidade, coligiu relações de naufrágio úteis e

agradáveis.

A História de Brito divide-se em dois tomos, publicados respectivamente

em 1735 e 1736. Na editio princeps, o título é apresentado em caixa-alta, com letras

capitais: nomeia-se, no caso, o gênero (histórico) e a matéria da coletânea

(experiências trágico-marítimas). O título é seguido de outras especificações: em

que se escrevem cronologicamente os naufrágios que tiveram as naus de Portugal,

depois que se pôs em exercício a navegação da Índia. Este texto, que nesta edição

se encontra em itálico e com fonte consideravelmente menor, determina a

disposição da coletânea (organizada em ordem cronológica) e especifica a matéria

(naufrágio de naus portuguesas na Carreira da Índia). Após estes informes,

deparamo-nos com o número do tomo, o nome do dedicatário (“Augusta Majestade

do Muito Alto e Muito Poderoso Rei D. João V”), o nome do coletor, o selo real, o

local em que a obra foi dada à estampa (Lisboa Ocidental), a oficina que a imprimiu

124 Ver: MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: Identidade e Condição Humana. Lisboa: Edições Colibri, 2001, p. 11. 125 MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana, Historica, Critica, e Cronologica... Tomo I. Lisboa: Oficina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1741, p. 532.

Page 56: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

56

(da Congregação do Oratório), a data (em algarismos romanos) e a afirmação de

que o exemplar segue com as licenças necessárias para impressão.

No tomo I, com um total de 479 páginas, encontramos a dedicatória ao rei

D. João V, as licenças (papal, episcopal e real), um index e seis relações de

naufrágio. No tomo II, que soma 538 páginas, constam as licenças, o index e outras

seis relações. São, portanto, 12 relações de naufrágio escritas ao longo de 50 anos

(1552-1602).126

Na dedicatória, Brito utiliza alguns argumentos que conferem um lugar à

coletânea, a si próprio e ao rei:

Como V. Majestade, por sua real grandeza, se fez augusto protetor da História, erigindo a sua preclara Academia, parece que permitiu aos afortunados historiadores deste século a glória de recorrer ao seu real asilo, indulto de que agora me valho para pôr aos reais pés de V. Majestade, nestes tomos, estes fragmentos históricos, que já perdem o horror de lastimosos, na fortuna de dedicados, conseguindo eu para aqueles vassalos desta coroa (que agora o são de V. Majestade com melhor estrela) nos seus naufrágios o mais feliz porto, senão para as suas vidas, para as suas memórias. O Céu dilate a vida de V. Majestade para felicidade desta Monarquia.127

Na posição de historiador, Brito dedica os “fragmentos históricos” que

coligiu ao rei D. João V, “protetor da História” e criador da Academia Real de História

Portuguesa. Mas qual seria a função do historiador no momento em que a História

Trágico-Marítima foi impressa? Evocando uma passagem de Cícero, o clérigo

Raphael Bluteau, que também foi membro da referida Academia, afirma que

“historiador” é o “escritor de alguma história”.128 A história, para ele, é “narração de

coisas memoráveis, que tem acontecido em algum lugar, em certo tempo, e com

certas pessoas, ou nações”.129 Estes elementos estão implicados na dedicatória de

Brito, quando afirma que seu propósito é conseguir para os vassalos da Coroa o

mais “feliz porto, senão para as suas vidas, para as suas memórias”. Bluteau, ao

final, retoma a definição ciceroniana da história: “testemunha do tempo, a luz da

verdade, a vida da memória, a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade”.130

126 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. Nas próximas referências, utilizaremos somente as iniciais deste livro (HTM) e o número da página. 127 HTM, p. 01. 128 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, volume 04, p. 41. 129 Idem, p. 39. 130 Idem, p. 40.

Page 57: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

57

É possível encontrar alguns sentidos para a “história” na primeira

proposição da Academia Real da História Portuguesa, acompanhada de um estatuto

que define os fundamentos da história que se queria produzir. A intenção, no caso,

era constituir duas histórias: uma eclesiástica e outra secular. O proponente, Manoel

Caetano de Sousa, comparou a história a um edifício, mencionando os muitos

artífices responsáveis por sua construção e a necessidade de uma “planta” na qual

se estabelecessem as “regras da arte” convenientes à empreitada. O fruto do

trabalho conjunto, no caso, seria um “corpo proporcionado em todas as suas partes”.

O estilo, no caso, deve ser puro, claro, escrito em língua portuguesa, não como

anais, a não ser no que se refere à divisão por matérias, com narração sem

interrupção e disposta cronologicamente. A Cronologia e a Geografia foram

consideradas os dois “olhos” da história.131 Dentre os assuntos que ela trata, não

poderiam faltar, claro, as guerras e descobrimentos, temas contemplados pelos

“fragmentos históricos” de Brito.

Os esforços dos acadêmicos foram mobilizados não apenas para a escrita

da(s) história(s), mas também para a reunião de documentos nos quais os

acadêmicos pudessem recolher informes históricos. Esta busca, de acordo com

Manoel Telles da Silva, era dificultosa, talvez pela escassez de homens capazes de

efetuá-la. A(s) história(s) incluía(m) vários subgêneros, tais como as hagiografias, as

genealogias, as crônicas, as notícias, as relações, dentre outros. A “verdade” da

história mantinha laços estreitos com a virtude do homem português, ou seja, a

produção historiográfica estava atrelada a um tipo característico de serviço prestado

à Coroa. Uma das censuras da obra de Telles da Silva, realizada pelo Marquês de

Abrantes, propõe um enunciado que chamou nossa atenção: “Se qualquer História é

testemunha do tempo, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, e

mensageira da antiguidade, que será da História de Portugal? Será testemunha do

merecimento, luz da erudição, vida do entendimento, mestra da heroicidade,

mensageira da glória imortal?”132 Após fazer esta pergunta, o censor afirma que esta

mera transposição de epítetos não seria o suficiente para explicar seu parecer. O

autor retoma a tópica ciceroniana da historia magistra vitae e a propõe com novo

formato, desta vez matizando as prioridades da própria Academia. No entanto, este

131 Ver: Coleção dos documentos, estatutos e memórias da Academia Real da História Portuguesa... In: História da Historiografia, Ouro Preto, n. 03, 2009, pp. 216-235. 132 SILVA, Manoel Telles da. História da Academia Real da História Portugueza. Lisboa: Officina de Joseph Antonio Sylva, 1727, s/p.

Page 58: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

58

novo formato não refuta ou contraria o antigo: alude-se ao mérito dos portugueses, à

erudição e entendimento daqueles que escrevem história, à heroicidade das ações e

à fama decorrente delas. Faz-se, portanto, um exercício de particularização da

tópica em conformidade com os protocolos da Academia, que continua com o

objetivo de propor a exemplaridade da história portuguesa em suas dimensões

eclesiástica e secular. O texto em questão trata do que o censor chama de sucessos

e ações da “República das Letras”, o que justifica muitos dos epítetos empregados.

Aliás, o censor faz um deslocamento muito interessante, para afirmar que a história

então narrada não perde em nada perante as histórias antigas, muitas vezes

conseguindo superá-la no que se refere não apenas aos exemplos elencados, mas

também à escrita empregada.

As informações sobre os autores das relações de naufrágio, no geral, são

escassas, mas alguns deles gozam de fama, muitas vezes em razão de outros

escritos que lhe foram atribuídos: é o caso de Diogo de Couto, por exemplo, que

continuou a escrita das Décadas da Ásia após a morte de João de Barros. João

Batista Lavanha, por sua vez, foi cosmógrafo-mor de Portugal e, além de tratados

sobre a arte da navegação, escreveu genealogias de reis. Manuel de Mesquita

Perestrelo, que chegou a ser capitão da fortaleza de Maluco por três anos, deixou-

nos, em 1576, um roteiro de viagem que orienta no trecho situado entre o Cabo da

Boa Esperança e o Cabo das Correntes.133 Sobre outros narradores (caso de

Henrique Dias, Manuel Rangel, Gaspar Afonso, Melchior Estácio do Amaral e

Manuel Godinho Cardoso) pouco se sabe.

Dos doze relatos, quatro (III, VI, VIII e XI) focalizam a viagem de ida e

sete (I, II, IV, V, IX, X, XII) apresentam-nos a torna-viagem. O relato de número VII

ocupa-se somente de uma parcela do retorno (Brasil-Portugal). A extensão das

narrativas varia: o quarto relato, sendo o menor, soma 33 páginas. O sexto conta

com um total de 128 páginas. Dois dos relatos (I, VII) apresentam um prólogo, e

apenas um (XII) exibe uma dedicatória. Três deles (VI, X, XI), embora destituídos de

prólogo, delimitam bem o exórdio, com informações introdutórias.

Em termos de invenção, disposição e elocução, os relatos apresentam

algumas características em comum: a adoção da narrativa in ordo naturalis, a

moderação dos encômios, a opção por uma narrativa clara e verossímil, a

133 Ver: MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: Identidade e Condição Humana. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp. 16-21.

Page 59: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

59

valorização do sentido da visão em detrimento da audição, o uso de digressões,

exemplos, descrições e amplificações, a recorrência a um gênero humilde ou tênue,

a retratação de uma história de caráter providencialista, o domínio de termos

náuticos, latinos, astrológicos, a emulação de auctores consagrados pela tradição

retórico-poética.134 No que se refere à disposição, Giulia Lanciani sugere o seguinte

arranjo: (1) antecedentes-partida, (2) tempestade, (3) naufrágio-arribação, (4)

peregrinação e (5) retorno-salvamento.135 Esta sugestão é pertinente no sentido de

orientar a leitura dos relatos, mas nem todos eles reproduzem sistematicamente este

ordenamento.

Os relatos devem ser lidos a partir das regras discursivas de seu tempo:

quando são apreendidos como exteriores à sua própria história (reflexo da realidade,

pessimismo, oposição ideológica à empresa descobrimentista, prenúncio do

Barroco, originalidade estética e/ou ressentimento psicológico), normalmente deixa-

se de lado seu estilo. O estilo, no caso, deve ser entendido como linguagem

“fortemente regrada por prescrições de produção e de recepção”.136 Como disse

João Adolfo Hansen em seu estudo sobre as sátiras atribuídas a Gregório de Matos,

termos como “pessimismo”, “ressentimento”, “plágio”, “imoralidade”, “realismo”,

“oposição nativista crítica”, “libertinagem” e “revolução” podem até apresentar “algum

valor metafórico de descrição de um efeito particular de sentido produzido pela

recepção”, mas não dão conta historicamente do seu funcionamento como prática

discursiva de uma época.137 As tópicas retóricas não devem ser lidas como empiria,

pois esta leitura desconsidera as particularidades histórico-retóricas do discurso e

valoriza um vivido psicológico improvável.

No que se refere às suas características genéricas, a relação de naufrágio

pode ser lida como subgênero das formas historiográficas ou desdobramento do

gênero histórico, como é o caso das crônicas, notícias, tratados, panegíricos, anais,

vidas, histórias e diários. Todos esses gêneros (ou subgêneros) historiográficos

utilizam lugares-comuns epidíticos, tratando-se de uma “prosa imitativo-

134 Há referências a poetas (Homero, Virgílio, Ovídio), preceptistas (Aristóteles, Horácio, Cícero, Luciano de Samósata), autoridades do Cristianismo (Jó, Davi, S. Basílio, S. Gregório, S. Paulo, S. Dionísio Areopagita), filósofos (Platão, Aristóteles, Sêneca, Estrabão, Macróbio) e, principalmente, à Sagrada Escritura (sobretudo a fragmentos do Antigo Testamento). 135 Ver: LANCIANI, G. Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII. Portugal: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979. 136 HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, São Paulo: Ateliê Editorial, Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 32. 137 Idem, p. 33.

Page 60: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

60

emuladora”138 e não de transposição de realidades empíricas. A narrativa de

naufrágio é trágica, ou seja, determina-se o sentido das narrativas como histórias

que começam bem e terminam (nem sempre) mal. A experiência trágica, no caso,

pressupõe e reafirma a existência de Deus, ou seja, Deus continua atuando

providencialmente no tempo mesmo quando os episódios são trágicos. Para melhor

compreender as condições de produção dos relatos de naufrágio, é necessário

estudar as particularidades do gênero histórico e as tópicas retóricas antigas que

continuam a fazer parte de sua narrativa nos séculos XVI-XVIII.

O gênero histórico e o subgênero relação

Tucídides tratou da guerra entre atenienses e peloponésios, assegurando

a grandiosidade deste evento. Em seu proêmio, ele declara a ausência do teor

mítico em detrimento de uma escrita clara e útil, que teria serventia duradoura:

ktema es aiei, aquisição para sempre. Sua narrativa, baseada em indícios e no

exame apurado, na autópsia, denota uma busca criteriosa pela verdade (alêtheia).139

Quando registra, por exemplo, os sintomas e distúrbios causados pela peste que

assolou Atenas, Tucídides zelava por “legar aos homens vindouros o conhecimento

informativo preciso que lhes capacitasse reconhecer, no futuro, um eventual surto

daquela epidemia que atrozmente surpreendera seus contemporâneos”.140 Os

remédios humanos mostraram-se inúteis contra esta ocorrência: nota-se um estado

de anormalidade no qual também o médico perece, por manter contato com os

pacientes contaminados. É um fenômeno proteico, como indica Murari Pires, pois se

manifesta de forma múltipla e contraditória, variando em rápidas sucessões e

metamorfoses que se esquivam do entendimento humano. Mudança sutil do kléos

épico ao ktema tucidideano, que permite a persistência da figura do herói: não mais

através da métis de Ulisses ou da ira de Aquiles, mas da prudência de Péricles141 e

da clarividência de Temístocles.142 Hartog discorre sobre a sutileza desta mudança:

138 O termo foi utilizado em: SINKEVISQUE, Eduardo. Usos da ecfrase no gênero histórico seiscentista. In: História da Historiografia, Ouro Preto, n. 12, 2013, pp. 45-62. 139 HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 63. 140 PIRES, Francisco Murari. “Tucídides e Maquiavel: diálogos sobre a (in)utilidade e a (des)valia da história”. In: SEIXAS, Jacy; CERASOLI, Josianne; NAXARA, Márcia (orgs.). Tramas do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: EDUFU, 2012, p. 503. 141 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro VI, V, 1140b1, 8-11, p. 133; CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Tradução e notas

Page 61: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

61

Por sua declamação, retomada incessantemente, o aedo de outrora oferecia um kleos imortal aos mortos heroicos. Heródoto tinha pretendido impedir que as marcas da atividade dos homens viessem a apagar-se, ao deixarem de ser relatadas. Tucídides, ao escolher “deixar por escrito”, desde seu começo, uma guerra que ele sabia que deveria ser “a maior” de todas, apresenta sua narrativa como um “ktema para sempre”. É sensível o deslocamento do kleos ao ktema. O tempo da epopeia havia chegado realmente a seu termo. Daí em diante, em vez de preservar do esquecimento as ações valorosas, trata-se de levar os homens do futuro a receber um instrumento de inteligibilidade do próprio presente: a Guerra do Peloponeso, construída por seu primeiro (mas também, em certo sentido, último) historiador como ideal-tipo. Em vez de um instrumento de previsão do futuro, ela pretendia ser ferramenta de decifração dos presentes por vir.143

Políbio, por sua vez, propõe uma história “pragmática”. Ele diz: “nós que

não buscamos tanto o prazer do futuro leitor, mas a utilidade dos que desejam

aprender, deixamos de lado todo o resto para consagrar-nos a esta parte”.144 Neste

sentido, ele segue os passos de Tucídides ao afirmar a centralidade da utilitas na

escrita da história. A história pragmática, no caso, é composta por três partes: do

estudo diligente de memórias e de outros documentos, da análise de eventos

políticos e do reconhecimento de cidades, rios, lugares, lagos, distâncias, enfim, da

geografia. Não por acaso, Políbio considera Ulisses o primeiro grande historiador,

pois, em seu retorno a Ítaca, ele viu, conheceu pessoalmente e passou por aflições.

Como afirma Hartog, a história, neste caso, deveria oferecer uma “educação política

mais eficaz”, “o melhor treino para a ação” e ensinar “a suportar dignamente os

reveses da fortuna”. Políbio emula Platão para dizer como os historiadores devem

proceder:

Parece-me, é também o princípio da história que tal homem [Ulisses] busca. Com efeito, Platão diz que os assuntos humanos só irão bem quando os filósofos reinarem ou os reis filosofarem. Eu, de minha parte, diria que os assuntos da história só irão bem quando os homens de ação se ocuparem em escrever histórias – não incidentalmente como hoje, mas por julgarem que se trata do que há de mais necessário e de mais belo para eles, consagrando-se a isso, sem distração, enquanto durar sua vida – ou então

de Amador Cisneiros. Livro primeiro, XVI. In: Os pensadores. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 295. 142 Sobre a heroicidade de Péricles e Temístocles, ver: MAGALHÃES, Luiz Otávio de. Tucídides: a inquirição da verdade e a latência do heróico. In: JOLY, Fábio Duarte. História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, pp. 13-43. 143 HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 63. 144 POLÍBIO. Histórias, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 121.

Page 62: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

62

quando os que se ocupam em escrever considerarem que a experiência tirada das próprias ações é necessária para a história.145

Somente a história contemporânea é factível, e nisto Políbio aproxima-se

de Tucídides. Outro nexo é a valorização da experiência política e militar. Convém

recordar que Tucídides ficou exilado durante duas décadas.146 Para Políbio, era

necessária a criação de uma história universal para, através de uma visão do

conjunto, entender-se melhor as vicissitudes da Fortuna.147 Se Tucídides afirmou a

grandiosidade da guerra do Peloponeso demonstrando sua superioridade em

relação aos conflitos passados, Políbio busca entender os trâmites da Fortuna, pois

esta, “ainda que inove e combate continuamente com a vida humana, simplesmente

jamais realizou obra nem combateu combate como em nossos dias”.148 Aqueles que

se ocuparam de histórias particulares padecem, segundo Políbio, de

algo próximo do que experimentam os que contemplam partes disjuntas de um corpo que foi animado e belo, considerando-se fieis testemunhas oculares da atividade e da beleza do animal. Se, com efeito, logo alguém reunisse as partes e compusesse de novo o animal por inteiro, com sua aparência e o garbo de sua alma, e, em seguida, de novo mostrasse a essas mesmas pessoas, de imediato, penso, todas elas concordariam que estavam muitíssimo longe da verdade e próximas de quem sonha.149

Os historiadores romanos também retomam as discussões sobre a

utilitas, implicada na tópica ciceroniana da história exemplar, que é bem conhecida

entre os historiadores: “a história é testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da

memória, mestra da vida, mensageira do passado”.150 Por isso, cabia ao orador

prudente narrar os eventos históricos, pois ele conhecia, simultaneamente, a matéria

a ser tratada e a forma adequada de dizê-la.

145 Idem, pp. 123-125. 146 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, 5, 26, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 85. 147 Como lembra François Dosse, Políbio compara a história universal a um organismo “em que todas as partes são estreitamente solidárias, o que permite evidenciar não só certas continuidades históricas, mas fazer história comparada, captar a concordância dos fatos em universos aparentemente sem nenhum vínculo”. Por isso ele recorre, também, a dados geográficos e etnográficos: para construir sínteses coerentes. Ver: DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 47. 148 POLÍBIO. Histórias, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 117. 149 Idem, ibidem. 150 CÍCERO apud TEIXEIRA, F. C. Uma construção de fatos e palavras: Cícero e a concepção retórica de história. In: Varia Historia: Belo Horizonte, vol. 24, n° 40, 2008, p. 557.

Page 63: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

63

Assim, se em Tucídides existe a pressuposição tácita de que o phronimos é potencialmente o melhor historiador, por ser capaz de observar e compreender com clareza as variações da realidade sem se deixar levar por simpatias e partidarismos diversos, conformando a fidúcia necessária à validação do procedimento da autópsia, em Cícero a unidade retórica entre res e verba só pode ser alcançada pelo prudente, um orador eloquente que seja ao mesmo tempo profundo conhecedor da matéria tratada.151

Se em Tucídides era necessário ver para crer, em Cícero o ver

relacionava-se à elocução narrativa, ou seja, ele afirma que é através da palavra que

se coloca a matéria histórica “diante dos olhos” dos leitores. Salústio, de forma

parecida, busca produzir uma lição honesta a partir dos modelos de virtude que

apresenta. Em Guerra de Jugurta, além de reforçar a utilidade da memória dos fatos

passados, Salústio utiliza uma analogia que esclarece a forma como concebe esta

utilidade: os retratos dos ancestrais.

Sem dúvida, aquela cera e argila não têm em si tanta força, mas a memória dos fatos passados faz crescer essa flama no peito dos homens excepcionais, não se apaziguando antes de sua virtude ter igualado sua reputação e sua glória. Ao contrário, pelos costumes de hoje, quem dentre todos não rivaliza com seus ancestrais pela riqueza e gastos, não pela probidade e atividade?152

Já em Conjuração de Catilina, parece predominar um elogio à prudência,

entendida como a principal das virtudes por articular a concórdia civil e o equilíbrio

dos apetites, como afirma Felipe Charbel.153 Ao amplificar as virtudes de César e

Catão e vituperar os vícios de Catilina, Salústio inventa um éthos virtuoso e outro

vicioso. Tal como Cícero, Salústio detém conhecimentos políticos e militares. Além

disso, ele insiste na centralidade do narrar, como afirma Sebastiani:

Se Salústio não vivenciou o período, conhecia todavia muito bem o ambiente senatorial e o jogo político romano, do qual participou sob auspícios de César, até retirar-se para escrever história. Muito mais do que uma forma de crítica indireta à sua própria época, o enfoque no passado remoto se baseia na convicção de que a experiência presente somada a algum outro instrumento teórico permitiria que o historiador se libertasse dos laços que o prendem ao presente. Esse instrumento teórico se fundamentava numa ideia comum entre Cícero e Salústio: a de que a história é tarefa de indivíduos capacitados para escrevê-la, mas que não

151 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010, p. 167. 152 SALÚSTIO. Guerra de Jugurta, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 173. 153 Idem, p. 175.

Page 64: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

64

necessitam especificamente de experiência direta dos fatos narrados, e sim do conhecimento da maneira apropriada de narrá-los.154

No que se refere a Cícero, François Dosse fala de uma “poética da

história”, que “obedece ao horizonte de busca da verdade com o fito moral de

formação do homem”.155 Cícero prioriza, segundo Dosse, um discurso que “deve

permanecer num estilo fluente e amplo, conservar um ritmo regular, ampliando-se ao

evitar as asperezas”.156 Em seguida, o autor afirma que esta poética da história tem,

por princípios básicos, a prudência e a justiça.157

Em Plutarco, a noção da história como mestra da vida é reforçada pela

metáfora do espelho: ele se ocupa de escrever vidas para “organizar e conformar”

sua própria vida “às virtudes daqueles, como se olhando num espelho”.158 Por

analogia, o historiador é aquele que “hospeda”, através da história, a memória de

grandes homens, “tomando de suas ações o que é mais forte e mais belo para

conhecer-se”.159 Em A Glória dos Atenienses, ele afirma que “a imagem da glória

alheia reflete e brilha dos empreendedores para os escritores, aparecendo as ações,

através das palavras, como num espelho”.160 Como afirma Hartog, Plutarco

concentra a glória verdadeira nos homens de ação, sendo que a dos historiadores é

toda emprestada. No caso, o espelho seria o próprio historiador, que reflete para o

leitor a imagem da glória alheia.161

Para Luciano, assim como para Políbio, o historiador é um homem de

ação e a história deve ser pragmática. Aproximando-se de Tucídides, a história para

Luciano deve ser também “uma aquisição para sempre, mais que uma peça de

concurso, voltada para o presente”.162 Não se privilegia, portanto, o interesse do

historiador, mas tão somente a utilidade futura da história escrita no presente. O

propósito de Luciano, no entanto, não é negar o prazer decorrente da história, mas 154 SEBASTIANI, Breno Battistin. A política como objeto de estudo: Tito Lívio e o pensamento historiográfico romano do século I a. C. In: JOLY, Fábio Duarte. História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, pp. 80-81. 155 DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 95. 156 Idem, ibidem. 157 Idem, p. 96. 158 PLUTARCO. Vida de Timoleonte, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 175. 159 Idem, ibidem. 160 Idem, p. 179. 161 Ver: HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 184-185. 162 LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 199.

Page 65: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

65

associá-lo à utilidade: a história pode ser ornada, mas de “figuras sem peso e que

não pareçam artificiais, já que estas tornam o estilo semelhante às sopas muito

temperadas”.163 É necessário, portanto, “algum sopro poético para inflar as velas

com bons ventos e elevar a nau sobre a crista das ondas”.164 O modelo de

historiador, para Luciano, é Xenofonte, responsável por uma história verdadeira, útil

e, portanto, justa. É preciso alcançar, ainda, a harmonia do texto, pois “tudo deve ser

homogêneo e da mesma cor, harmonizando-se o resto do corpo com a cabeça”.

Muitos historiadores, no entanto, “põem a cabeça do Colosso de Rodes num corpo

de anão. Outros, pelo contrário, apresentam corpos acéfalos, sem proêmios, e

entram direto no assunto”.165

Embora a tópica Historia Magistra Vitae tenha sido cunhada por Cícero,

vimos que a ideia de a história ser um saber privilegiado na orientação do agir é

virtualmente tão antiga quanto a invenção da historiografia grega. Marcelo Jasmin

recorda que “a suposição das potencialidades pragmáticas do conhecimento

histórico era lugar comum na consciência historiadora anterior” a Cícero. Ele

continua:

A empresa historiográfica original, verdadeira “operação contra o tempo”, cuja pretensão era “salvar do esquecimento” (Heródoto) as ações dignas por sua grandeza para transformá-las numa “aquisição para sempre” (Tucídides), sugeria entre suas finalidades primordiais conhecer no passado as bases adequadas para o agir presente. Conhecer a história, supunha-se, poderia levar os homens a repetirem os sucessos anteriores sem incorrerem novamente em antigos erros. Num contexto de pensamento em que a imitação da experiência alheia era prescrita como remédio para a ausência de experiência própria, e em que se considerava o sucesso anterior dos grandes homens como bom critério na avaliação do possível êxito das ações contemporâneas, a história ganhou o estatuto de saber indispensável à formação dos homens públicos.166

Marcelo Jasmin destaca, ainda, a vocação pedagógica, pragmática e

paradigmática da história mestra da vida: pedagógica porque orienta o agir no

presente a partir de lições extraídas do passado; ela é também pragmática, com

“seu conteúdo ético-político voltado para a ação individual à qual se creditava a força

impulsionadora da política e se reservava o lugar primordial na narrativa”; por fim,

ela é paradigmática porque “seu método de ensino se consubstanciava na difusão 163 Idem, p. 73. 164 Idem, ibidem. 165 Idem, p. 55. 166 JASMIN, Marcelo Gantus. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 17.

Page 66: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

66

daquelas situações consideradas exemplares e que serviam, por isso mesmo, como

verdadeiros modelos de conduta para todos os homens”.167 Considerada em sua

longa duração, este topos não é concebido de forma homogênea: Heródoto investiu

no relato dos costumes de gregos e “bárbaros” para entender as guerras médicas.

Para Tucídides, a história deveria estar necessariamente ligada aos assuntos

políticos para assegurar sua validade. Em Cícero, a história estava revestida de um

teor moral, da mesma forma que a historiografia cristã medieval, que pretendia

“apresentar a essência pecaminosa do homem e a alternativa paradigmática da

santificação”.168 A chamada historiografia renascentista, por sua vez, seguindo os

cânones historiográficos antigos, foi essencialmente política. Todas estes informes,

muito simplificados, não pretendem outra coisa senão dar a entender que a historia

magistra vitae é plural.

Pensemos, agora, nas especificidades da história cristã portuguesa dos

séculos XVI e XVII levando em conta as considerações de Hansen sobre o assunto:

A principal dessas especificidades é o modo qualitativo pelo qual concebem a temporalidade como emanação ou criação de Deus que inclui a natureza e a história, subordinando-as providencialmente no projeto de salvação. A representação propõe que a natureza e a história são simultaneamente efeitos criados por essa Causa e signos reflexos dessa Coisa, ou seja, que ela mesma, representação de efeitos e signos, é signo e efeito. A história, incluída no tempo como uma de suas figuras proféticas, é concebida providencialmente, pois recebe do tempo, que é criado, sua participação na substância divina, que a aconselha e orienta para um fim superior. A concepção relaciona a experiência do passado e a expectativa do futuro como previsibilidade, pois afirma-se que a Identidade de Deus, Causa Primeira, repete-se em todas as diferenças históricas do tempo, tornando análogos ou semelhantes todos os seus momentos, desde a Criação até o presente dos intérpretes.169

Raphael Bluteau, através da autoridade de Santo Agostinho, lembra que a

Sagrada Escritura é portadora de uma história irrefutável, ou seja, não há história

verdadeira que a contrarie.170 Logo, o conteúdo dos relatos de naufrágio inclui,

necessariamente, a presença de Deus, que se repete “em todas as diferenças

históricas”. Não há punição que não Lhe diga respeito, não há acontecimento no

qual Ele não esteja presente. Há, porém, limitação humana, pois o homem não

167 Idem, p. 19. 168 Idem, p. 20. 169 HANSEN, João Adolfo. Barroco, Neobarroco e Outras Ruínas. In: Floema Especial (UESB), ano II, n. 2, 2006, p. 58. 170 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, volume 04, p. 39.

Page 67: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

67

entende com clareza os sentidos da justiça divina. Se todos os momentos históricos

são análogos, justamente por implicarem a identidade de Deus, deduz-se que a

história pode ensinar maneiras de agir conformadas à vontade da Providência. Neste

sentido, a história ensina a reta razão e demonstra como aplica-la ao agir, a partir

dos erros ou dos acertos alheios. Em outras palavras, ela ensina prudência.

O prólogo e a dedicatória da História da Província de Santa Cruz (1576),

de Pero de Magalhães Gandavo, mobilizam lugares comuns recorrentes em

exemplares do gênero histórico. Muitos destes topoi foram amplificados nos versos

que Camões dedica a este historiador. O argumento central do poeta, efetuado

através de uma fábula onírica, conta com a participação de três divindades do

panteão greco-romano: Marte, Apolo e Mercúrio. O deus da guerra, que brandia uma

“lança furiosa”, afirma, com voz “pesada e temerosa”, que uma obra se torna famosa

quando oferecida “a quem por armas resplandeça”. Apolo, ao contrário, assegura

que somente o dedicatário sapiente/prudente poderia defender apropriadamente

uma obra, alegando que a “dureza das armas” é contrária à eloquência. Mercúrio,

portando seu caduceu, dissipa a contenda ao propor a possibilidade de aliar pena e

espada, sinédoque que indicam, respectivamente, o uso das letras e das armas. O

deus mensageiro menciona os exemplos de Alexandre e César, que portavam “nu’a

mão livros, noutra ferro e aço”, e orienta Gandavo quanto à escolha do dedicatário,

indicando dom Lionis Pereira. Dois argumentos da deidade justificam a escolha: por

um lado, ele foi educado pelas Musas, com quem aprendeu as artes, a ciência, as

virtudes morais e a inclinação divina. Por outro, ele se tornou capitão “forte e

maduro” devido às experiências vivenciadas no Oriente, causando admiração por

parte dos amigos e temor por parte dos inimigos. Marte e Apolo adiam a porfia e

aprovam a escolha de Mercúrio. Gandavo acorda deste sonho com sua decisão

tomada. Na sequência, Camões menciona o “claro estilo” e o “engenho curioso” da

História. Por fim, dirigindo-se ao dedicatário, o poeta faz uso de uma analogia,

dizendo que o historiador deve ser defendido da mesma forma que o muro de

Malaca, local onde Lionis Pereira conquistou sua fama e consagrou sua memória.171

Após esta fábula, o leitor encontra um soneto no qual Camões discorre

sobre a vitória de dom Lionis em batalha contra o rei de Achém, em Malaca. Quando

o aedo se silencia, o narrador entra em cena. Inicialmente, com modéstia afetada,

171 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, pp. 70-73.

Page 68: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

68

Gandavo reconhece que detém um “fraco entendimento” e menciona sua obrigação

de pagar, mesmo que com limitações, “alguma parte do muito que se deve” ao herói

a quem se dirige.172 É possível encontrar, aqui, um dos preceitos da Retórica a

Herênio. No caso das recomendações referentes ao gênero demonstrativo (ou

epidítico), que contempla tanto a prosa historiográfica quanto a poesia, o autor

anônimo menciona quatro arrazoados dos quais é possível extrair uma introdução:

da pessoa que elogia/vitupera, da pessoa elogiada/vituperada, dos ouvintes e/ou do

próprio assunto abordado. No primeiro caso, em se tratando de um elogio, o

encomiasta pode aludir ao seu dever de escrever aquela matéria, por exigência da

amizade e da admiração que devota à personagem elogiada, ou pode mencionar

seu zelo, o que justifica a divulgação de virtudes que merecem ser recordadas.173

Parece-nos que Gandavo faz uso deste procedimento em sua epístola dedicatória.

Sob a máscara da rusticidade, a persona do historiador assume, neste

caso, duas posições: uma inferior, indicando suposta deficiência ou incompletude em

relação ao leitor discreto, e outra superior e, portanto, apreciativa, indicando possuir

a humildade que falta aos historiadores vaidosos que, através da adulação, buscam

as glórias somente para si. O lugar de humildade não é, portanto, um substituto para

a falta de engenho, mas uma licença para o livre exercício da discrição. Por outras

palavras, deste lugar não é possível inferir a má formação do narrador, pois se trata

de um artifício retórico adequado às liminares discursivas, pois o tipo humilde é

convincente, apto a captar a benevolência do leitor/ouvinte.

Em outro fragmento da dedicatória, Gandavo menciona o nobilíssimo

sangue e a clara progênie da qual se origina dom Lionis, sem deixar de referir os

troféus decorrentes “das grandes victorias e casos bem afortunados que lhe hão

succedido nessas partes do Oriente em que Deus o quiz favorecer com tão larga

mão”.174 No terceiro livro da Retórica a Herênio, o autor alude à tríplice divisão dos

elogios e vitupérios, que podem ser dirigidos a coisas externas, ao corpo ou ao

ânimo. As coisas externas são aquelas que podem acontecer “por obra do acaso ou

da fortuna, favorável ou adversa: ascendência, educação, riqueza, poder, glória,

cidadania, amizades”. Quanto ao corpo, convém elogiar seus atributos vantajosos:

“rapidez, força, beleza, saúde”. Dizem respeito ao ânimo “as coisas que comportam

172 Idem, p. 75. 173 Ver: [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, pp. 163-167. 174 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 75.

Page 69: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

69

nossa deliberação e reflexão: prudência, justiça, coragem, modéstia”.175 Nota-se,

portanto, que Gandavo atende estas recomendações ao elogiar a ascendência de

dom Lionis. Se tomarmos os versos de Camões como parte integrante da

dedicatória, é possível distinguir, também, elogios à força deste “grande Capitão” e à

coragem e prudência com as quais enfrentou várias vicissitudes em Malaca.

Em vias de finalizar sua dedicatória, Gandavo utiliza algumas tópicas que

Camões já havia mobilizado anteriormente: a valorização da conciliação entre letras

e armas, a importância das lições advindas das escrituras, o uso da brevidade como

procedimento adequado à história e a benignidade com a qual o dedicatário deveria

acolher esta “breve história”. Além disso, o historiador afirma ter sido “testemunha de

vista”, informação que deveria atestar a veracidade da narrativa.176 Convém

recordar, mais uma vez utilizando a Retórica a Herênio, das três coisas que convém

à narração que se ocupa do tratamento da verdade: clareza, brevidade e

verossimilhança. A clareza, diz o anônimo, pode ser obtida, por exemplo, seguindo a

ordem cronológica dos acontecimentos. A brevidade também contribui com a clareza

do discurso, pois se atém ao âmbito do necessário. O verossímil, por fim, é

viabilizado quando se fala “como o costume, a opinião e a natureza ditam”.177

Outro conjunto de tópicas foi utilizado no prólogo que Gandavo dirige ao

leitor. Mais uma vez com dissimulação honesta, ele mobiliza o lugar da humildade,

atestando que escreve por necessidade, tendo em vista que outros, com maior

engenho, não se interessaram pela matéria ou desconheciam sua grandiosidade.

Ele tece, então, um elogio às terras do Brasil, aludindo à prática, consagrada entre

os antigos, de perpetuar a memória através da história. Gandavo retoma o topos

ciceroniano da historia magistra vitae e abre mão de epítetos preciosos e de

vocábulos eloquentes em prol de um estilo fácil e chão (humilde), que propicia o

deleite do leitor/ouvinte. Por fim, ele se desculpa com os leitores discretos (doutos,

prudentes), que deveriam perdoar suas faltas, atitude que não esperava dos idiotas

(vulgares, néscios), que costumam maldizer tudo sem nada perdoar.178

No livro IV da Retórica a Herênio, quando o anônimo trata

especificadamente da elocução, encontramos uma exposição sobre os três gêneros 175 Ver: [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, p. 161. 176 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 75. 177 Ver: [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, pp. 59-69. 178 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, pp. 76-77.

Page 70: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

70

de figura: grave, médio e baixo. À história convém justamente o gênero médio, que

se localiza entre as palavras ornadas do gênero alto (que Gandavo negou em seu

prefácio) e as palavras atenuadas do gênero baixo.179 Cícero, em seu De Oratore,

afirma algo parecido ao alegar que, no caso da história, é preciso perseguir “um

gênero oratório difuso e arrastado, que flua regularmente com uma certa suavidade,

sem essa aspereza própria ao tribunal e sem os aguilhões que as fórmulas têm no

fórum”.180 Prima-se por uma escrita verdadeira e imparcial, mas também verossímil.

Além disso, quanto ao gênero de figura, requer-se algo difuso, arrastado, humilde. A

história, portanto, efetua o deleite e a instrução dos auditórios: por ser útil, ela

aproxima-se do gênero deliberativo sem, no entanto, com ele confundir-se.

Em 1552 foi publicada a Primeira Década da Ásia. No prólogo, João de

Barros (c. 1496-1570) retrata a diferença entre a “virtude generativa” da Natureza,

que é renovável, e os feitos humanos, que dependiam da memória escrita, “Divino

artifício” que lega aos pósteros registros das ações e bons exemplos. A “elocução

artificial das letras” reúne um conjunto de “caracteres mortos” que contém em si

“espírito de vida”, afirma o autor.181 No prólogo da Terceira Década da Ásia,

publicada em 1563, Barros emula, inicialmente, o Timeu de Platão, para ressaltar a

importância de se conhecer a antiguidade das coisas. Homens que não valorizam as

lições de história continuam sendo “moços”, com ânimo “sempre mancebo”. Mais

adiante, o historiador retoma a autoridade de Cícero para censurar aqueles que

menosprezam a História e voltam os olhos exclusivamente para o presente,

preocupados somente com seus afetos e desejos. Ele mobiliza também os dizeres

de Aristóteles, para quem os exemplos do passado não apenas satisfazem o

entendimento, mas causam deleite. João de Barros faz uso de uma analogia

agudíssima ao apreender a História como campo onde se encontra semeada toda a

doutrina Divina, Moral, Racional e Instrumental: quem “pastar o seu fruto” vai

convertê-lo em “forças de entendimento” e memória para a condução de uma vida

justa e perfeita, aprazível a Deus e aos homens. Barros não para por aí, pontuando

algumas das leis que deveriam ser seguidas pelos historiadores: jamais desviar-se

179 Ver: [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, pp. 213-221. 180 CÍCERO. Do Orador, II, 62-64, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 151. 181 Ver: BARROS, João de. Da Asia: Dos feitos, que os Portuguezes fizeram na conquista, e descubrimento das terras, e mares do Oriente – Década primeira (parte primeira). Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, s/p.

Page 71: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

71

da verdade, não escrever movido pelo ódio, não utilizar argumentos inverossímeis,

não desvalorizar a imitação, a eloquência, o decoro.182

De acordo com o licenciado Manuel Severim de Faria, João de Barros,

além de ser um súdito exemplar e virtuoso, guardou com muita eficácia todas as leis

da história: as partes essenciais (verdade, clareza e juízo) e as partes integrantes.

Além disso, o licenciado encontra nos escritos deste historiador o bom uso dos três

gêneros retóricos (demonstrativo, deliberativo e judiciário), uma escrita clara, com

uso prudente da descrição, com justa disposição e exemplos dignos de registro.

Decerto Severim de Faria compôs uma Vida, gênero retórico afinado ao

demonstrativo pela vertente encomiástica. Nestes termos, o louvor é menos um

retrato subjetivo e autônomo e mais um retrato objetivo, que inventa tipos, personae

dignas de imitação justamente por atender às prerrogativas do poder constituído e

integrar a memória do auditório, que reconhece no elogio um modus operandi

adequado às circunstâncias de seu presente.183

No prólogo de sua História do descobrimento & conquista da Índia pelos

Portugueses (1554), Fernão Lopez de Castanheda menciona a utilidade da história,

que ensina o que devemos fazer e de que devemos fugir. No entanto, ele afirma que

as lições de história são muito mais úteis aos príncipes do que aos homens privados,

pois o erro de um governante atinge todos que ele governa, ao passo que o erro de

um privado atinge somente a ele. Por isso, o príncipe deve retirar da história a

melhor maneira de aperfeiçoar-se, pois ela instrui através da experiência e dos

exemplos. Castanheda utiliza, ainda, da amplificação, para retratar a superioridade

dos feitos portugueses em relação aos feitos passados.184 Amplifica também a

importância de se ver os lugares sobre os quais discorre, para evitar equívocos

muitas vezes repetidos pelos historiadores que o precederam. Este historiador

consultou cartas, sumários e colheu testemunhos de pessoas “dignas de fé”. No

prólogo do livro três, salienta também o fato de ele ser homem “experimentado”, que

viu tormentas, batalhas no mar, navios naufragando, tudo para amplificar a

autoridade do seu relato como fruto da visão ou da experiência. 182 Ver: BARROS, João de. Da Asia: Dos feitos, que os Portuguezes fizeram na conquista, e descubrimento das terras, e mares do Oriente – Década terceira (parte primeira). Lisboa: Regia Officina Typografica, 1777, s/p. 183 Para mais informações sobre a Vida de João de Barros escrita por Manuel Severim de Faria, ver: ANDRADE, Luiz Cristiano. Os preceitos da memória: Manuel Severim de Faria, inventor de autoridades lusas. In: História e Perspectivas, Uberlândia, EDUFU, n. 34, 2006. 184 Ver: CASTANHEDA, Fernão Lopez de. História do descobrimento & conquista da Índia pelos Portugueses. Coimbra, 1551-1561, 8 vol. Disponível em: http://purl.pt/15294. Acesso em: março/2013.

Page 72: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

72

Fala-se muito do caráter trágico dos relatos de naufrágio, e pouco do seu

caráter prudencial. Já disse, com muita pertinência, Luis Cabrera de Córdoba:

Hazen prudentes, mas los malos sucessos q los buenos. Ver la prudencia con que se governaron para salir dellos, o para venir a ellos, es lo util para enseñar las vidas y costumbres. Si ay siempre felicidad, no ay para que industria, arte, ni consejo, pues alli solo govierna la fortuna.185

Nos relatos de naufrágio existem duas grandes fórmulas em se tratando

da exemplaridade da história: em uma deles, busca-se ensinar prudência através do

relato das viagens e dos erros ou acertos dos homens de outrora. Na outra,

pretende-se preservar a memória da intervenção providencial, única realmente

capacitada a livrar os nautas dos grandes males ocorridos no decorrer da viagem.

Na carta dedicatória do relato de naufrágio da nau Conceição (1627), por

exemplo, João Carvalho Mascarenhas declara a serventia de sua narrativa, que é

fundada “sobre uma matéria de pouca estima e baixo sujeito, por serem sucessos

acontecidos entre escravos e cativos”, o que não deixa de ter algum espírito e

curiosidade, nem deixa de “ser exemplar em história”.186 Quanto aos trabalhos

mencionados no relato, diz ele, “não perde nada sabê-los quem não os

experimentou”.187 A utilidade da matéria tratada fica ainda mais evidente no trecho

seguinte: “Não se isentando ninguém por mais próspero que seja, de cuidar que lhe

pode acontecer o que tem acontecido a tantos, e o que tem notícia de coisas

semelhantes já sabe se há-de haver nelas”.188

Padre Júlio Francisco, responsável pela licença do Ordinário que se

encontra no primeiro tomo da coletânea, afirma que Bernardo Gomes de Brito trata

dos “lastimosos” e “infelices” sucessos das naus da Carreira, reunidas em um livro

cuja lição, suave e agradável, não desagrada em nada os bons costumes da Santa

Fé. Ele é utilíssimo “para que os que houverem de navegar, desenganados dos

muitos e gravíssimos perigos de vida a que se expõem, concebam um santo temor

da morte”, e para “os que ficarem em terra compadecendo-se dos navegantes os

ajudem com fervorosas orações a escapar de tamanhos perigos: e todos nas

185 CÓRDOBA, Luis Cabrera de. De historia, para entenderla y escrivirla, p. 27. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=TiA_AAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em: março/2013. 186 PERES, Damião (org.). Viagens e naufrágios célebres dos séculos XVI, XVII e XVIII, vol. 1. Porto: Tipografia e Encadernação Alberto de Oliveira, 1937, p. 25. 187 Idem, ibidem. 188 Idem, ibidem.

Page 73: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

73

calamidades de sucessos tão lamentáveis aprendam a miséria e inconstância deste

mundo”.189 Esta licença data de julho de 1729. Na licença do Paço, de agosto de

1729, Frei Lucas de Santa Catharina é brevíssimo ao mencionar a dignidade do

trabalho do compilador, “útil aos cultivadores da Historia”.190 Frei Manoel de Sá, na

licença do Santo Ofício, afirma tratar-se de um “teatro da História”, no qual é

encenado um papel “verdadeiramente trágico” e exemplar.

Padre José Troyano, na licença do Santo Ofício do segundo tomo da

coletânea, insiste na necessidade de se relatar as ocorrências do naufrágio como

paga pela salvação providencial, citando a autoridade do Eclesiástico: “Qui navigant

mare, enarrent pericula”. Este é um fragmento da passagem bíblica que diz o

seguinte: “Os que navegam sobre o mar contam os seus perigos; ouvindo-os,

ficaremos arrebatados de admiração” (Ec 43: 26). Só experimentando a braveza do

mar e a força da tormenta para “representar vivamente” uma tempestade desfeita.

Desta vez, o padre cita Virgílio para estabelecer uma analogia entre a prática antiga

de pendurar no Zambujeiro (espécie de oliveira) os despojos do naufrágio e o livro

de Brito, que dá a conhecer os naufrágios portugueses:

Forte sacer Fauni foliis Oleaster amaris Hic steterat, nautis olim venerabile lignum, Servati ex undis ubi figere dona solebant Laurenti divo et votas suspendere vestes.191

Segue a tradução para o português de José Victorino Barreto Feio e de

José Maria da Costa e Silva:

Sagrado, acaso, a Fauno um zambujeiro De amargas folhas nesse campo havia, Lenho outrora dos nautas venerado, Que ao naufrágio escapando, vinham nele Dons pendurar ao Nume de Laurente E as devotadas vestes.192

189 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo primeiro. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1735, s/p. 190 Idem. 191 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo segundo. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1736, s/p. 192 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro décimo segundo, p. 404.

Page 74: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

74

Nota-se, portanto, que a serventia do livro é múltipla: é obra que comove

e incentiva o “agradecimento a Deus Senhor Nosso” pelas misericórdias recebidas e

também é útil “aos que navegam às partes da Índia, e continuamente cursam aquela

Carreira, para que no perigo alheio aprendam a evitar o próprio”.193 A censura do

Frei José da Assumpção, Qualificador do Santo Ofício, diz que o livro deve ser

apreendido como

espelho em que cada um dos que neste proceloso mar deste mundo vivem, todos os dias se contemplem: pois nada menos (proporcionadamente) em a terra se encontra, do que em mar acontece: certo para a terra, e mar he este livro útil, e proveitoso, porque dos infortúnios, que em hum e outro elemento se experimentam, e das misericórdias de Deus, que tanto em uma como em outra parte nos assistem, faz a expressam que basta para todos crerem estas já mais não hão de faltar a quem souber animosamente depreca-las: lograram-na os invictos Varões dos quais esta presente história nos faz especial menção.194

O censor menciona a grandiosidade da história narrada e dos nautas que

a protagonizaram, pois “as adversidades não puderam eximi-los do amor que à

virtude tinham”. Ele cita Lucano, que diz “Crevit in adversis virtus” (Sua coragem

cresceu com a adversidade) e um provérbio latino, “Felix, quem faciunt aliena

pericula cautum” (Feliz daquele que aprende com os erros alheios), para conferir

autoridade à seguinte assertiva: “são ditosos para o mundo aqueles a quem os

perigos alheios fazem acautelados para em semelhantes não caírem”. Outra

utilidade do livro é a possibilidade de “aprender nele o como se alcança de Deus a

sua piedade, temendo a Divina justiça, avisados de outros, antes que de si mesmos

se valham”. Frei José de Assumpção menciona o que disse Valerius Maximus:

“Lento gradu ad vindictam sui Divina procedit ira, tarditatemque suplicii gravitate

compensat” (A ira divina avança em passo lento para a vingança Sua, mas

compensa com a gravidade o tardio do suplício), e Provérbios, “Quem diligit

Dominus corripit”, fragmento do versículo “Porque o Senhor repreende aquele a

quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem” (Pro 3: 12).195 Frei Xavier

de Santa Tereza, responsável pela licença do Paço, emula o relato de naufrágio

narrado pelo cosmógrafo João Baptista Lavanha ao dizer que o livro de Brito é o

193 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo segundo. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1736, s/p. 194 Idem. 195 Idem.

Page 75: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

75

“melhor Roteiro a todos os navegantes dos mares da Índia”, no qual não se pode

achar nada que se oponha ao espírito das “prudentes Reais Leis”.196

No exórdio no relato de naufrágio da nau Santo Alberto, o narrador

menciona como este texto pode orientar a partir da prudência, pois o naufrágio

ensina como se devem haver os navegantes em outro que lhes pode acontecer, de que remédios proveitosos usarão nele e quais são os aparentes e danosos de que devem fugir, que prevenções se farão para ser menor a perda no mar e mais segura a peregrinação por terra, como com menos perigo desembarcarão nela. E a causa da perdição desta nau (que é o quase de todas as que se perdem), a relação do caminho mostra qual devem seguir e deixar, que apercebimentos farão para a sua grandeza e dificuldade, como tratarão e comunicarão com os cafres, com que meios farão com eles o necessário comércio, e sua bárbara natureza e costumes.197

Na sequência, ele complementa:

E para que de cousas tão importantes e novas se tenha o necessário conhecimento, escrevo este breve tratado, resumindo nele um largo cartapácio que desta viagem fez o piloto da dita nau, o qual emendei e verifiquei com a informação que depois me deu Nuno Velho Pereira, capitão-mor que foi dos portugueses nesta jornada.198

O “cartapácio” é um livro de mão, em que se escrevem várias matérias.

Em outras palavras, o narrador entra em contato com as anotações do piloto, que

confere e emenda com a ajuda de Nuno Velho Pereira, capitão de Sofala

(Moçambique), que esteve nesta jornada. A posição do narrador, na situação de

“cosmógrafo-mor”, justifica a introdução e os apontamentos sobre a utilidade dos

relatos de naufrágio.

O mesmo pode ser dito sobre a conclusão do tratado das batalhas que

fecha a coletânea de Brito, que lega lição aos pósteros:

O verdadeiro partir de Lisboa há-de ser antes que o Sol passe a Equinocial; bem de experiência há disso; e porque isto se não previne a tempo, arribam tantas naus, como arribaram no ano de 1601, que de nove que partiram arribaram cinco; e também se arriscam a muito as naus que não partem da Índia dentro em dezembro, para passarem o cabo de Boa Esperança no verão daquele polo em que então está o Sol. E finalmente, a felicidade desta carreira, mediante Deus, está em as naus não serem feitas de madeira verde, senão muito seca e colhida na lua velha de janeiro, no último da minguante e na minguante de dia, porque é verdadeira sezão de

196 Idem. 197 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 375. 198 Idem, ibidem.

Page 76: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

76

ser cortada (como as uvas vindimadas em setembro); tem então a madeira madurez, tem menos humor, é leve, seca mais depressa, dura mais, e não revê nem empena; e não só as naus de tal madeira serão mais leves e mais duráveis, mas mais fortes e estanques, porque a pregadura nesta madeira colhida de vez, é fixa, e fixo o calafetado. Consiste em serem as naus varadas a monte, para que se enxuguem e não se conservem úmidas; e bom é o conserto não ser de empreitada, nem cortando, porque tudo se fará à provisão que nisto desarma, e não convém. E as naus a que não for necessário conserto é muito importante, em descarregando, serem mui bem lavadas por dentro e muito bem esgotadas, passado o lastro acima para isso, porque o lodo e as águas chocas que trazem lhes apodrecem as quilhas e picas. Consiste, finalmente, em partirem em março de Lisboa antes do equinócio e da Índia dentro em dezembro e com carga ordinária, e não sobrecarregada; e todas estas cousas são factíveis, e podendo-se fazer, podia ser que não houvesse tantas perdas, que magoam até as pedras.199

Há um sentido providencial que orienta a história, neste caso. Basta

retomar a licença do padre José de Assunção, qualificador do Santo Ofício, quando

diz que se aprende, com estas relações, “como se alcança de Deus a sua piedade,

temendo a Divina justiça, avisados de outros, antes que de si mesmos se valham”.

Ou seja, aprende-se a navegar, mas também a temer a justiça divina e os meios de

se alcançar sua piedade. Na sequência, ele diz que os castigos de Deus, “ensaios

da sua ira”, são também “prendas do seu amor”, e é nesse momento que a ideia de

“pessimismo” ou de “decadência” torna-se ineficaz. Não que a opinião de um censor

venha a dirigir a leitura de todos os relatos, mas esta é uma tópica presente em

Tomás de Aquino, que as retira da Bíblia para representar a justiça insondável de

Deus, que nem sempre é inteligível para os homens. Deus testa o homem, como fica

claro em algumas passagens do livro sagrado, e pune com a intenção de fazê-los

aliviar o peso dos pecados e, assim, alcançar a salvação. É por isso mesmo que o

leitor atual estranha e considera inverossímil a atitude de Jorge de Albuquerque, que

se mantêm firme na fé mesmo frente aos mais terríveis infortúnios. A leitura do livro

de Jó, por exemplo, ajuda-nos a compreender como as obras divinas, mesmo

quando inconsistentes frente ao que espera o homem, têm um sentido justo,

salvífico.

No prefácio do relato de naufrágio da nau Conceição (1627), João

Carvalho Mascarenhas evidencia seu intuito:

Meu intento foi contar verdades (que em tudo o que escrevo como testemunha de vista poderei jurar), pelo que me pareceu não ser necessário adorno de palavras, nem linguagem floreada, que esta muitas vezes serve

199 Idem, pp. 542-543.

Page 77: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

77

mais de escurecer e confundir a história, que de a declarar e dar gosto a quem a lê; e também foi dar a entender clara e brevemente, como prático na milícia da Índia e na de diversas partes, e como quem militou nelas, a valorosa peleja desta nau, e a força que nossos inimigos têm na cidade de Argel, e os trabalhos que em serviço desta coroa tenho passado.200

Na sequência, ele frisa mais uma vez o gosto decorrente da narrativa: “e

posto que o contentamento de contar trabalhos passados me pode ficar por prêmio,

o ser bem aceita o terei por tão grande, quanto é o gosto com que a ofereço”.201 O

narrador se aproxima da história pragmática de Tucídides, Políbio e Gandavo, na

medida em que dispensa o adorno e a linguagem floreada e utiliza as tópicas da

clareza e brevidade. Vimos, no início deste tópico, que este procedimento estava

previsto na Retórica a Herênio, sobretudo em se tratando de obras fundamentadas

na verdade. João Carvalho Mascarenhas aproxima-se dos historiadores gregos da

Antiguidade mais uma vez quando afirma ter sido “testemunha de vista” e quando

informa sua posição política e militar, já que serviu/militou na Índia em atenção aos

ditames da Coroa. A superioridade da visão é central como forma de assegurar a

verdade, como ocorre em Tucídides, por exemplo, que prioriza o sentido da visão

em detrimento da audição por julgar a memória muito frágil. De acordo com Felipe

Charbel

a proeminência da visão [em Tucídides] põe em segundo plano a discussão sobre a tensão entre logos e ergon, pois, desde que o historiador não queira ludibriar seus ouvintes / leitores, o relato proveniente de testemunho ocular assegurará a verdade (alétheia) da exposição, no sentido do desvelamento do que poderia ter-se ocultado rapidamente com a ação destrutiva do tempo.202

A mesma distinção é efetuada também por Políbio, quando diz: “nós

temos, por natureza, como que dois instrumentos com os quais tudo aprendemos e

investigamos, a audição e a vista, sendo muito mais verdadeira a vista, conforme

Heráclito, pois os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos”.203 Políbio

utiliza este argumento para censurar a abordagem de Timeu, personagem de Platão,

200 PERES, Damião (org.). Viagens e naufrágios célebres dos séculos XVI, XVII e XVIII, vol. 1. Porto: Tipografia e Encadernação Alberto de Oliveira, 1937, p. 25. 201 Idem, p. 28. 202 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010, p. 554. 203 POLÍBIO. Histórias, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 121.

Page 78: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

78

que prioriza a forma mais fácil e menos fidedigna de narrativa, baseada no que se

ouviu dizer.

O exórdio do relato de naufrágio da nau São Francisco levanta elementos

que, igualmente, reforçam a imprescindibilidade da utilidade e do deleite:

O desejo e sede com que isto me pediu quem por muitas vias me podia mandar, como mandou outras muitas cousas os anos que debaixo de sua obediência me teve, e o gosto com que me ouvia e fazia referir algumas das muitas cousas que por nós passaram, ou nós por elas, estes anos que andamos errando tantos mares e terras, quantas nunca Ulisses imaginou que podia haver para se navegar e errar, me obrigou a lho pôr por escrito e dar conta, para sua consolação e dos mais que a lerem, ainda que em suma e mui cifrada, desta nossa tão larga e trabalhosa peregrinação, com dobrado interesse. O primeiro, meu, assim por ser cousa tão natural, como diz Sêneca, folgar cada um com o fim de seus males, como pelo que Macróbio diz que sentem aqueles que andaram por mares e terras quando são perguntados de quem os não sabe, pelos sítios dessas terras, portos e enseadas dos mares, respondendo com tanta vontade e pintando todos esses lugares, agora com palavras, agora com o dedo e algum ponteiro, tendo por grande glória pôr diante dos olhos alheios o que eles viram com os seus; e então lhes dá maior gosto quem lho pergunta, quando por esses mares e terras se viu em maiores afrontas e perigos e escapou deles. O segundo, e mais principal, seu, de quem para isso me está convidando, como outro Anfitrião a Teseu, que o não privasse do doce fruto de meus trabalhos, os quais quanto mais duros foram de sofrer tanto mais docemente lembram, e por isso lhe contasse os horrendos casos por que passara. E assim quero eu contar parte dos desta peregrinação tão nova e de si tão meritória, à qual foi Nosso Senhor servido dar fim depois de três anos e dezenove dias, começada para um oriente e prosseguida por tantos ocidentes, e acabada, enfim, no mesmo ponto donde o compasso deu princípio a este círculo tamanho, que por ser círculo, depois de fechado fica sem princípio nem fim.204

Ao fazer uso da tópica da amizade, indicando que o relato foi escrito a

pedido de outro a quem devia obediência, o padre Gaspar Afonso efetua a captatio

benevolentiae, ou seja, seu relato é produto mais da obrigação para com um

superior do que necessariamente fruto da vontade pessoal. Após mencionar o gosto

que a narrativa de infortúnios causava em seus pares, o narrador amplifica sua

“larga e trabalhosa peregrinação” ao afirmar que conheceu mais lugares do que

Ulisses em sua empresa épica. Se lembrarmos da opinião de Políbio segundo a qual

o herói homérico representa convenientemente a função do historiador ideal

justamente por ter conhecido muitos lugares e passado por muitos trabalhos, é

possível entender o teor valorativo desta analogia. Na sequência, o narrador adverte

sobre a brevidade do seu escrito, lugar comum que, como veremos, se faz presente

204 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 427.

Page 79: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

79

na grande maioria dos relatos de naufrágio. Para justificar seu empreendimento, ele

destaca que escreveu com “dobrado interesse”. Quando fala do seu interesse, ele

invoca dois auctores: Sêneca, que diz ser coisa natural folgar cada um com o fim de

seus males (Gandavo também utiliza o termo folgar em sua dedicatória), e Macróbio,

ao referir-se à transmissão, por parte de pessoas que experimentaram grandes

perigos e deles escaparam, de uma memória por meio da palavra transmitida como

pintura, de forma a “pôr diante dos olhos alheios” o ocorrido. Nota-se, aqui, que a

vivacidade do relato é tida como critério de verossimilhança, como meio de

transmissão de uma “pintura” por intermédio de palavras. Trata-se do ut pictura

poesis horaciano, que assegura a equivalência entre os ofícios de poetas e pintores.

Quando o padre Gaspar Afonso fala da outra parte interessada, isto é, do

leitor, ele requisita, desta vez implicitamente, a autoridade de Sêneca ao referir-se a

um episódio do seu Hércules furioso envolvendo Anfitrião e Teseu:

Anfitrião. Deus, que tem o poder, favoreça o meu desejo e assista minhas fraquezas. Ó magnânimo companheiro de meu grande filho, revela o elenco de suas virtudes: quão longo é o caminho que conduz aos tristes manes; como suportou duros grilhões o cão do Tártaro. Teseu. Tu me obrigas a recordar ações horrendas mesmo para uma mente tranquila. A custo, ainda, há certeza da aura vital; turva-se a luz de meus olhos e minha vista enfraquecida apenas suporta o desabituado dia. Anfitrião. Vence, Teseu, por completo, tudo o que de pavor resta no fundo de teu peito e não prives do melhor fruto de teus trabalhos: o que foi duro de suportar é doce de se lembrar. Conta as horrendas desventuras.205

O leitor do relato, no papel de Anfitrião, estaria pedindo ao narrador, que

ocupa posição análoga à de Teseu, “que o não privasse do doce fruto” de seus

trabalhos, “os quais quanto mais duros foram de sofrer tanto mais docemente

lembram”.206 O sofrimento, portanto, não impede a obtenção de deleite, muito pelo

contrário: ele o amplifica.

Também é esclarecedor o prefácio do relato de naufrágio da nau Santo

Antônio, capitaneada por Jorge de Albuquerque Coelho:

Costume foi mui bem recebido entre os antigos quando alguma pessoa escapava de notável perigo ou enfermidade apresentar no Templo uma tábua em que o perigo ou enfermidade estivesse escrito. Prova ser isto

205 MARCHIORI, Luciano Antonio B. S. Hércules furioso de Sêneca: estudo introdutório, tradução e notas (Dissertação de mestrado). São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), 2008, pp. 75-76. 206 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 427.

Page 80: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

80

assim Strabo, no oitavo livro de sua Geografia, dizendo que o primeiro que pôs a Medicina em arte foi Hipócrates, recolhendo todas estas tábuas e escritos em que se continham as doenças que sucederam a cada um e o remédio de que contra elas usara. Pois sendo assim (benigno Leitor) não creio que deixará este breve Sumário de um naufrágio tão estranho como este de ser bem recebido, pois ambas as razões tem por si. A primeira, a obrigação que temos todos os que chegamos vivos deste trabalho a porto de salvamento de notificarmos ao mundo a mercê que a Virgem Madre de Deus nos fez em nos livrar dos estranhos e não cuidados trabalhos que passamos; e a segunda, mostrar o remédio de que nós neste caso tão temeroso aproveitamos, que foi de muitas lágrimas, contrição e arrependimento de culpas passadas, pedindo de contínuo misericórdia a Nosso Senhor. E nenhuma cousa esperei menos que poder este naufrágio vir a ser sabido por escrito, porque ainda que nossa natureza é sujeita aos trabalhos, todavia não agasalha bem a lembrança deles, pela pena que nos dá o que vimos com os olhos. E quem diz que a lembrança dos trabalhos passados dá gosto, não se viu nunca nestes nem em outros semelhantes, porque o gosto que se recebe na memória deles nasce do descanso em que se vê quem os passou e não do lembrar-se de ver tão particularmente a morte ao olho, como dizem. E não haja ninguém por fraqueza o que digo, porque Virgílio, excelente Poeta, em um tão valeroso e esforçado cavaleiro como pintou em Enéas, pôs muito receio de contar os trabalhos passados, dizendo que lhe fugia o entendimento da lembrança deles. E por esta razão não esperei de escrever este discurso. Porém por me parecer que seria ingrato às grandes mercês que de Nosso Senhor recebemos os que deste naufrágio escapamos, dos quais eu fui um deles e o mais pecador, determinei fazer esta Relação por ver quantos anos há que isto aconteceu sem até hoje haver pessoa que de cousa tamanha fizesse memória. E persuadido de alguns meus amigos que a imprimisse, não o quis fazer sem que primeiro a mostrasse a Jorge de Albuquerque, que nesta nau vinha; e como ele fosse a principal pessoa da companhia e o que mais trabalhos passou por nos animar e esforçar, assim com palavras de consolação como com obras e orações, que de contino fazia a Nosso Senhor, não no achei remoto desta lembrança em cousa alguma, antes me trouxe à memória outras muitas cousas de que eu estava bem esquecido; e muitas mais deixei de escrever, as quais pediriam (a meu juízo) outro tanto papel. Mas por me parecer que estas de que faço menção bastam para dar motivo aos homens que louvem ao Senhor e tenham sempre muita confiança na sua misericórdia quando nos maiores trabalhos se virem, quis antes ser notado de breve que de preluxo. Porque meu intento principal é ser Nosso Senhor louvado e glorificado de todos, o qual, usando de sua benignidade com afligidos, os tira de perigos e chega o salvamento. Pelo que peço não olhem às palavras, que são as que são, mas o intento, que é ser o Senhor louvado para sempre.207

O autor recorre à tópica tucidideana do ktema es aiei (aquisição para

sempre) em seu “breve Sumário”. Alude-se, no caso, a Hipócrates, mas para

mencionar um procedimento que também é o de Tucídides, isto é, o de insistir que o

escrito deve ter serventia, utilidade.208 Convém mencionar, mais uma vez, o relato de

207 Idem, pp. 263-264. 208 As analogias entre os ofícios do historiador e do médico são recorrentes nos escritos antigos. Ver: POLÍBIO. História. Seleção, tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996, livro XII, pp. 415-417.

Page 81: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

81

Tucídides sobre a peste de Atenas, que apresenta uma função similar à das tábuas

de Hipócrates citadas por Estrabão.209

O narrador faz referência à brevidade do relato e simula modéstia ao dizer

que depende da benignidade do leitor. Em seguida, ele diz que seu escrito tem as

mesmas razões de ser que as tábuas de Hipócrates: primeiro, a função de notificar

e, portanto, de ser útil; a segunda, de legar aos pósteros remédio, possível com base

em “lágrimas, contrição e arrependimento”. O uso da tópica do remédio, muito

comum nas letras portuguesas dos séculos XVI, XVII e XVIII, se articula, neste caso,

à metáfora aristotélico-escolástica do corpo político. No caso, a saúde de Portugal

depende do bem comum, da concórdia entre seus membros. Logo, a história

propicia remédio para combater as doenças do reino, sejam elas físicas, morais,

políticas.

Na sequência, o narrador vale-se de uma informação correlata àquela do

relato de naufrágio da nau São Francisco, possivelmente inspirada em Sêneca:

“ainda que nossa natureza é sujeita aos trabalhos, todavia não agasalha bem a

lembrança deles”. A ideia é reforçada na sequência: “e quem diz que a lembrança

dos trabalhos passados dá gosto, não se viu nunca nestes nem em outros

semelhantes”, pois “o gosto que se recebe da memória deles nasce do descanso em

que se vê quem os passou e não do lembrar-se de ver tão particularmente a morte

no olho, como dizem”. Lisa Voigt nota que este prefácio apresenta algumas

diferenças em relação ao texto original. Na primeira edição, afirma-se: “assim como

a memoria dos dias alegres, & felices, conforme a openião de alguns Philosophos,

causa tristeza, & dór em outros estados diferentes, assim a memoria dos males, &

dos trabalhos, fora delles, causa deleytação, & contentamento”.210 É possível que,

dentre os filósofos que menciona, encontre-se Cícero, que diz que

nada, com efeito, é mais conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstâncias e as vicissitudes da Fortuna. Ainda que, quando experimentadas, não tenham sido desejáveis, serão todavia agradáveis de se ler: a recordação livre da dor passada tem efetivamente seu prazer; com certeza, para os que não passaram por nenhum dissabor e contemplam os males alheios sem nenhuma dor, a própria piedade é agradável.211

209 STRABO. The geography of Strabo. 1928, book 14, chapter 2. Disponível em: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/14B*.html. Acesso em: dezembro/2012. 210 Cf. VOIGT, Lisa. Naufrágio, cativeiro, e relações ibéricas: a História trágico-marítima num contexto comparativo. In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 24, nº 39, 2008, p. 208. 211 Idem, ibidem.

Page 82: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

82

Antes de Cícero, Aristóteles afirmou algo parecido, retomando a seguinte

passagem da Odisseia: “O homem, muito depois, experimenta o prazer mesmo ao

preço/ De recordar os sofrimentos, se houver muito suportado e mourejado”.212

Aristóteles diz que o “prazerosamente memorável não é apenas o que, quando

efetivamente presente, era prazeroso, mas também algumas coisas que não eram,

desde que seus resultados posteriormente revelaram-se nobres e bons”. É

prazeroso, diz ele, “o simples estar livre do mal”.213

Faz-se referência, por fim, a Virgílio, grande poeta que “pôs muito receio

de contar os trabalhos passados, dizendo que lhe fugia o entendimento da

lembrança deles”. Assim, o narrador alega que seu escrito veio à luz por duas

razões: porque, de outra forma, teria sido ingratidão não contar as grandes mercês

recebidas de Deus, e por não haver outra pessoa disposta a fazê-lo (argumento

similar é utilizado por Gandavo em sua História). Com modéstia afetada, o narrador

afirma que contou com o apoio de Jorge de Albuquerque, principal da nau, que

recordou coisas que o escritor havia se esquecido, o que não impediu a brevidade

da narrativa. Como é de praxe, a modéstia é requerida no desfecho do prefácio:

“Pelo que peço não olhem às palavras, que são as que são, mas o intento, que é ser

o Senhor louvado para sempre”.

Custódio afirma que o heroísmo de Jorge de Albuquerque é fruto desta

suposta intervenção da personagem na escrita do texto. Ele diz:

Este pequeno enxerto poderá explicar, em parte, muita da atenção dada, ao longo do relato, à figura de Jorge de Albuquerque. Não só porque este teve acesso ao conteúdo do relato, antes de ser impresso como, por outro lado, parece ser esta uma figura bem simpática ao narrador, para além de ser ainda o principal da companhia.214

No caso, não negamos a possibilidade de haver uma tentativa de adular o

protagonista, prática comum neste momento como forma de obtenção de prestígio.

No entanto, o autor toma como “reais” duas tópicas discursivas igualmente

recorrentes: o lugar da modéstia, perceptível no momento em que o autor discorre

212 Trata-se de uma fala de Eumeu, que acolheu Odisseu em sua tenda quando este retorna disfarçado para casa. HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, canto XV, vv. 380-401, p. 265. 213 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011, livro I, 11, 1370b1-10, p. 94. 214 CUSTÓDIO, Pedro Balaus. A História Trágico-Marítima: do herói ao anti-heroi (Dissertação de mestrado). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992, p. 127.

Page 83: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

83

sobre as limitações de sua memória, que foi emendada pela intervenção do herói

que os liderara, e o lugar da amizade, a partir do qual o dedicatário toma para si o

lugar de amigo do presenteado, o que supõe a fidedignidade do relato justamente

pela confiança que deveria existir entre eles.

No relato de naufrágio da nau São Paulo, Henrique Dias, com modéstia,

alude à função de seu escrito:

E porque querer escrever nossos infortúnios e acontecimentos de cada dia (pois não passou nenhum que os não tivéssemos) seria um grande processo e causaria mais fastio ao leitor que contentamento (já que as cousas compridas, como afirma o Poeta, costumam ser desprezadas e tidas em pouco, e agradar as breves), não tratarei mais que com a maior brevidade que em mim for possível as cousas notáveis que nos aconteceram, assim na viagem como na perdição, e os dias em que foram, usando de toda a verdade que me assiste, pois em o que meu engenho e palavras faltarem, ela só bastara para lhes dar ornamento e decoro; porque o caminho que a nau fazia todos os dias, e os rumos a que governava, e em que alturas, deixo ao que compete o tal ofício, que são homens do mar e que têm seus roteiros por suas partidas e graus, pois não sou desta profissão, e era tão noviço no mar, por ser esta a primeira vez que fora do Reino saí, que nem os rumos da agulha sabia. Pelo que não parece razão que me mete no alheio e vedado nem tome o seu a seu dono, por me não dizerem o que o excelente pintor Apeles disse ao sapateiro atrevido, querendo-lhe taxar, não sabendo mais que fazer sapatos, as perfeições do rosto de uma imagem que ele estranhamente, com sutil engenho e grande artifício havia pintado e composto, por haver de antes emendado a própria figura uma correia de sapato, que ele havia já notado: “Que o sapateiro com o sapato e o barqueiro com a barca”. Pelo que é certo é medir-se cada um com seu pé e medida. E assim no que eu nesta parte disser que for necessário para declaração e ornamento de minha história, se se achar falta ou erro, peço e rogo aos mais entendidos nesta corte mo emendem com bom ânimo e vontade, deitando tudo à melhor parte.215

O narrador afirma optar pela escrita concisa e verdadeira. A

grandiosidade da verdade, no caso, deveria compensar as faltas de Henrique Dias,

no que se refere ao seu “humilde” engenho. Além disso, ele afirma que o agrado

decorrente das narrativas breves é preferível ao fastio causado pela prolixidade.

Assim, Dias refere-se àquilo que não fará parte de sua narrativa por não ser matéria

de seu entendimento, como dados técnicos relativos ao caminho trilhado pela nau,

que é assunto dos “homens do mar”. Para ilustrar seu posicionamento, ele retoma,

provavelmente via Plínio, o Velho, e sua História Natural, a anedota de Apeles e o

sapateiro. Conforme esta anedota, um sapateiro sugeriu ao pintor Apeles uma

mudança na sandália que havia retratado, orientação que o pintor atendeu

prontamente. No entanto, o sapateiro, entusiasmado, resolveu fazer outra crítica, 215 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, pp. 195-196.

Page 84: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

84

desta vez referente ao rosto da gravura, ao que Apeles teria respondido: “Ne supra

crepidam sutor judicaret”, ou seja, um sapateiro não deve julgar algo para além de

seu ofício. Embora a frase presente no relato seja outra, “que o sapateiro com o

sapato e o barqueiro com a barca”, o sentido é o mesmo: cada um deve se ocupar

com aquilo que lhe diz respeito. No final, o narrador refere-se à sua “história” e pede

pela benevolência do leitor “mais entendido”, isto é, discreto, para que, na ocasião

de possíveis erros, estes devem ser emendados com “bom ânimo e vontade,

deitando tudo à melhor parte”.

As tópicas da brevidade e clareza do relato ajustam-se perfeitamente ao

propósito de se alcançar a verdade. Outras narrativas adotam este procedimento,

como no caso do primeiro relato da coletânea de Brito:

e Fernão d’Álvares Cabral varou em terra na boca do rio do Infante, junto do cabo de Boa Esperança, cuja viagem, naufrágio, desterro e fim, posto que com comum estilo, direi o que alcancei na experiência de meus trabalhos, sem acrescentar nem diminuir a verdade do que se me oferece a contar.216

Em outra narração, a brevidade justifica-se pelas limitações da memória

humana:

Posso afirmar com verdade a todos os que isto lerem, que não escrevo aqui a metade de tudo o que passamos, porque nem quando passei estes trabalhos tinha lembrança nem comodidade para os escrever, nem depois de passados me sofria a memória querer que se lhes representassem, mas somente é aquilo que me pode lembrar do muito que padeci nesta viagem.217

Esta alusão à fragilidade da memória, que podemos encontrar também

em Tucídides, seria a justificativa para a brevidade do relato. O importante, no caso,

não é recordar tudo, mas ser sincero quanto àquilo que seria possível lembrar. O

narrador reforça na sequência:

A tudo isto fui testemunha de vista, por isso o contei. Seja louvado Nosso Senhor, que me chegou a estado de poder escrever isto, cousa que muitas vezes cuidei que não poderia ser; mas somente Deus é o que sabe tudo; seja ele bendito e louvado para todo o sempre.218

216 Idem, p. 28. 217 Idem, p. 290. 218 Idem, p. 291.

Page 85: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

85

Por último, gostaríamos de retomar um prefácio que não se encontra

presente na coletânea de Brito, mas que, originalmente, encontrava-se agregado ao

relato de naufrágio da nau São Bento. Não se pode dizer, ao certo, o motivo da sua

exclusão. Segue o prefácio:

Acha-se posto em memória por alguns escritores antigos, que sabendo os moradores de Corinto Cidade situada na garganta do Peloponeso, agora chamado Morea, como El-Rei Filipe de Macedônia abalava com grande poder de gente para os senhorear; e determinado eles em morrer antes pelejando que perder sua antiga liberdade, para que melhor lhe pudessem resistir se começaram de aperceber das cousas necessárias à sua defesa. Pelo que uns recolhiam água e mantimentos, outros reparavam os muros e torres, outros alimpavam e faziam prestes as armas, de maneira que cada um por si e todos juntamente se ocupavam em fazer alguma coisa em proveito da república: e como nestes dias estivesse dentro da Cidade o Cínico Diógenes, a quem a atenção de sua ciência libertava dos trabalhos dos outros, vendo que a revolta do tempo o fazia estar desocupado, por não haver quem então acudisse aos estudos, tomou uma pipa [vaso grande de barro] em que fazia sua habitação, e começou tombá-la de uma parte para a outra: E sendo perguntado por que fazia aquilo respondeu. Bulo com esta pipa, para que entre tantos ocupados, eu só não seja visto estar ocioso. E assim eu a exemplo de Diógenes vendo como os mais dos que escaparam desta jornada se ocupam em escrever os trabalhos dela, posto que conheço de mim que não irei mais ao propósito no pouco que posso dizer a respeito do muito que há para contar, porque só não seja tachado de ocioso, quis ser companheiro nisto como o fui nas outras coisas. E juntamente para que se houver alguém que pesaroso de ver em tão poucos dias gastada do esquecimento uma dor tão geral, e acontecimento tão raro, queira levantá-lo deste abismo eterno e perpetua-lo a pesar do tempo na memória dos vindouros (empresa certo assaz devida a tão lastimoso caso) ache neste trabalho de minha pena a verdadeira informação dele.219

Antes de iniciar a análise, convém retomar o exórdio de Luciano de

Samósata presente em seu Como se deve escrever a história:

Vendo e ouvindo isso, ó amigo, ocorreu-me aquele caso do filósofo de Sínope: quando se dizia que Filipe já marchava contra a cidade, os coríntios todos ficaram perturbados e se puseram em ação, um preparando as armaduras, outro trazendo pedras, outro reparando as muralhas, outro reforçando o parapeito, outro ainda ocupado com alguma coisa útil. Então, Diógenes, vendo aquilo, já que não tinha nada para fazer – pois ninguém precisava dele para coisa alguma – cingiu o manto e, com muita seriedade, começou também ele a rolar o tonel [grande vaso de terracota] no qual morava, para cima e para baixo do Crânio [Ginásio de Corinto onde vivia Diógenes]. Algum de seus amigos perguntando-lhe: “Por que você está fazendo isso, Diógenes?” – “Rolo também eu meu tonel” – ele dizia – “a fim de que não pareça o único desocupado no meio de tantos que trabalham”.220

219 Cf. MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: Identidade e Condição Humana. Lisboa: Edições Colibri, 2001, p. 34. 220 LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 35.

Page 86: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

86

Na sequência, Luciano justifica a retomada desta anedota:

Também eu, ó Filon, para não ser o único mudo numa ocasião em que tanta gente se mete a falar, nem, como um figurante cômico, de boca aberta e em silêncio, ficar sendo empurrado, julguei ser bom, quando me for possível, rolar meu tonel, não de modo a escrever a história ou discorrer sobre os acontecimentos (não sou atrevido a tal ponto nem você deve temer tal coisa de mim), pois sei quão grande é o perigo de rolar pedras abaixo um tonelzinho como o meu, sem muita resistência: bastará que se choque com uma pedrinha para que se tenha de recolher seus cacos.221

Jacyntho Lins Brandão afirma que a anedota, quando retomada por

Luciano, assume um papel importante:

Luciano identifica sua função com a do filósofo, o que tem duas consequências para a concepção de seu projeto: em primeiro lugar, o diagnóstico do movimento em massa da multidão de historiadores que se entregam então ao elogio da vitória romana sobre os partos não passa de um páthos, ou seja, uma doença que afeta seu julgamento, sua inteligência, bom senso, razão e conhecimento dos fatos; em seguida, consequência disso, a definição da diatribe como remédio, um gênero a serviço do ideal cínico de liberar os homens pela franqueza e a verdade.222

Angélica Madeira afirma que a anedota de Diógenes não apresenta

nenhuma relação com o naufrágio, funcionando como “índice da cultura do narrador,

recurso retórico, exemplo de erudição, já que não há comparação entre ela e os

motivos que o levaram a iniciar esta tarefa a que se obriga”.223 De fato é um recurso

retórico que, como se viu, encontra-se em Luciano. Difícil, no caso, é supor que não

há relação entre o prólogo de Como se deve escrever a história e o relato de

naufrágio. Neste, é possível discernir a modéstia afetada do narrador e argumentos

que buscam assegurar a veracidade da narrativa. A negação do ócio em detrimento

da ação é outro procedimento que o prefácio propõe, quando salienta a utilidade

decorrente da escrita e o propósito de registrar a memória de um “acontecimento tão

raro”. Todos estes argumentos, juntos, efetuam a captatio benevolentiae. Com a

historieta, no caso, o narrador do relato de naufrágio evidencia a emulação e

estabelece uma analogia entre a atitude de Diógenes e a sua, servindo inteiramente

ao propósito de seu relato, que é legar remédio aos pósteros, seja o remédio

221 Idem, ibidem. 222 BRANDÃO, Jacyntho Lins. A história justa. In: LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, pp. 151-152. 223 MADEIRA, A. Livro dos naufrágios: ensaio sobre a história trágico-marítima. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005, p. 53.

Page 87: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

87

humano originado do labor, seja o remédio divino, única razão de o narrador estar

vivo para registrar, por escrito, Sua misericórdia.

Na censura do Ordinário, de Júlio Francisco, encontra-se presente a

tópica horaciana que associa utilidade e deleite, no momento em que ele diz que a

“lição” que propõe a História Trágico-Marítima é “suave” e “agradável”, o que fez

com que a lesse num curto espaço de tempo. Além disso, o censor adverte que a

narrativa é útil em diferentes aspectos: para os que forem navegar, pois propõe o

desengano em relação aos perigos que existem no mar, para ensinar a importância

do “temos da morte”, para orientar aqueles que ficam em terra e que devem rezar

pelos seus, e para evidenciar a “miséria e inconstância deste mundo”. A tópica da

inconstância do mundo, como se pode ver, ao propor a contingência e suas

dinâmicas, faz ver que a “máquina do mundo” não é inteiramente previsível. A

questão a se fazer é: como seria possível que estas lições, que foram formuladas à

custa de tantas vidas, pudessem deleitar? Como a lição poderia ser “agradável”?

Alguns autores entendem que havia, nestas circunstâncias, um “gosto pelo trágico”,

sintomático de um momento caracterizado pela emergência do Barroco.

Gostaríamos, no entanto, de investigar como a tradição (retórica e poética) trata a

relação entre a experiência trágica e o deleite.

Josiah Blackmore afirma que a dedicatória que Bernardo Gomes de Brito

dirigiu ao rei D. João V e as licenças que acompanham os dois volumes da HTM

atenuaram ou mesmo eliminaram o terror que caracterizava as narrativas de

naufrágio, para somá-las à memória coletiva/oficial. A coletânea, no caso, estaria

reunindo e “domesticando” vozes dispersas e dissonantes, integrando os relatos

(trágicos) ao cânone historiográfico e confirmando o passado heroico de Portugal.

Antes de indagar sobre esta neutralização de um potencial negativo, é preciso

investigar se ele de fato existia nestas narrativas de naufrágio. Por outras palavras,

não há dúvidas de que estas relações se ocupam de episódios trágicos da história

portuguesa, mas não parece que Brito ou os censores precisassem atenuá-los, pois

sua matéria não nos parece “marginal” ou “disfórica” em relação ao projeto imperial.

Blackmore apresenta uma tese interessante: a de que não há uma contradição entre

o projeto imperial e a experiência do naufrágio. Ele chega a dizer que Camões

concebe esta experiência trágica no próprio tecido imperial, como algo que não pode

ser dissociado dele. A tese é profícua, mas parece-nos problemático conceber uma

ambiguidade nesta associação, ou seja, de fato não parece haver uma contradição,

Page 88: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

88

mas também não está claro se há um potencial negativo que precisasse ser

atenuado para que estas narrativas integrassem a história portuguesa.224

O fragmento abaixo corresponde ao prólogo da segunda edição da

relação de naufrágio da nau Santo Antônio, publicada em 1601:

Ainda que a obrigação de criado por si não era bastante, pera que durandome a vida, a empregasse sempre no serviço de suas cousas: Com tudo, a segunda obrigação, que são as mercês que de vossa mercê continuamente recebo, & o particular amor com que me faz, são outros novos estímulos, pera que empreenda sempre cousas árduas em seu serviço. E porque assim como a memoria dos dias alegres, & felices, conforme a opinião de algus Philosophos, causa tristeza, & dor em outros estados diferentes, assim a memoria dos males, & dos trabalhos, fora delles, causa deleytação, & contentamento. E porque as obras de vossa mercê, em todos os estados estão manifestando seu louvor, como na guerra que teve na quietação da Capitania de Paranambuco, aonde o conselho, o esforço, & as forças do animo juvenil, no governo da Raynha Dona Catherina de gloriosa memória, forão bastantes, pera que em espaço de cinco anos continuados, domasse, & sojeytasse a mais barbara, & indômita nação que temos descoberta, & deyxasse aquele estado a custa de muyto seu sangue, pacifico, & domado: Pois que num só assalto de hua fortaleza dos enemigos, com nove flechadas nos peytos, & rosto, assegurou a mayor parte de sua victoria. Vemos que não menos o amostrou na infelice jornada de Africa, aonde parece, que querendo a fortuna dar tamanha queda ao nome Portuguez, & donde todos ficarão queyxosos pera sempre, só nelle vossa mercê ficou com tanta vantagem, que parece que fica triunfando: Pois que no mais hórrido condicto da batalha, da o cavalo ao seu Rey, & cumpre com a obrigação leal do seu sangue, & do seu viguroso esprito: Ferido, & trespassado de tantos pelouros, & lanças, por lhe ajudar a defender sua vida. E não menos o vimos nas cousas de paz, & no governo delas, & nas cousas domesticas, & familiares, na prontidão do engenho, na urbanidade da conversação, & na grandeza da liberalidade: Que tudo são cousas que raramente forão concedidas, senão a varões magnates: E em vossa mercê as vemos todas, como em claro espelho reluzentes. E porque não faltasse as da fortuna do mar, tambem foy nelle tam perseguido, que a muytos causou o naufrágio de seus trabalhos, hum piedoso espanto. E porque de todo se não extinguisse tal memoria, & desejando de fazer a vossa mercê algum serviço, tomey este trabalho, de novamente renovar este seu Naufragio, porque a memoria dele, que a muytos pode servir de exemplo de constância de piedade, lhe causasse agora nesta tranquilidade de animo, deleytação, & alegria. Tambem vao juntas a elle alguas Rimas, de animo mais afeyçoado, que poético, Vossa mercê receba tudo com aquella benevolência natural com que sempre favoreceo minhas cousas: Que isso me bastara pera ficar satisfeyto do trabalho delas. Deos guarde, & prospere, vida, & estado e vossa mercê, por muytos, & muy largos annos, pera seu santo serviço.225

Este prólogo de Antonio Ribeiro refere um conjunto de tópicas que já

mencionamos em outras ocasiões: a da obrigação para com o dedicatário, o deleite

224 Ver: BLACKMORE, Josiah. Manifest perdiction: shipwreck narrative and the disruption of empire. Minnesota: University of Minnesota Press, 2002. 225 PILOTO, Afonso Luís. Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho. Lisboa: Oficina de António Álvarez, 1601, s/p.

Page 89: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

89

proveniente de matéria trágica após sua ocorrência, a exemplaridade das ações e,

claro, a modéstia afetada, que exige benevolência por parte do leitor discreto, em

razão da precariedade do escrito que lhe é dado a ler. Além disso, Antonio Ribeiro

traça um breve retrato do dedicatário Jorge de Albuquerque, detentor de engenho,

urbanidade e liberalidade. Estes atributos foram mencionados após a descrição de

situações das quais participou o herói, como a luta contra o índio em Pernambuco e

a guerra contra o gentio no norte de África, na qual Jorge de Albuquerque

supostamente cedeu seu cavalo ao rei para salvar-lhe a vida. Fica evidente,

portanto, a tópica das letras e armas e o tom encomiástico deste discurso

preambular. Vale lembrar que, após estes dizeres, há um soneto em que o herói é

comparado a antigos heróis, superando a todos:

Rico o gram Cresso foy, Mas avarento, Liberal Alexandro, Mas altivo, Anibal moderado, Mas lascivo, Honesto Scipião, Mas muyto isento. Brando Tullio, Mas vil de nascimento, Illustre Cesar foy, Mas vingativo, Nos antigos, dalgum vicio captivo. Vimos sempre o mays alto pensamento. Vejo riqueza em vos de Cresso, & mão, Para dar de Alexandro, & humanidade Doutro Anibal, de Scipião pureza. De Tullio, & Cesar, siso, e magestade: Sem cubiça, sem vicio, ou ambição, Sem ira, sem temor, & sem crueza.226

Amaral segue de muito perto os passos de Antonio Ribeiro, como se pode

ver na dedicatória a d. Teodósio:

Entre Trinta, & oito náos da India (Excellentissimo Principe.) Que este Reyno perdeo em obra de vinte annos, ouve em alguas sucessos tam famosos, & dignos de notar, que me moverão relatar parte delles neste breve tratado, que com devido acatamento ofereço a V. Excellencia: Por me parecer, que tãto sentirá ecclipsarse à nação Portuguesa (com taes perdas) a gloria com que floreceo nesta navegação, & conquista que emprendeo (Principalmente no tempo do fellicissimo, & invictissimo Rey Dom Emanuel vosso visano) quanto estimará todos seus bõs sucessos. E que não só aos que escaparão dos que refiro, resultará gosto de seus trabalhos, vendo que chegarão a noticia de V. Excellencia, mas eterna memoria dos que nelles acabarão gloriosamente. Receba V. Excellencia com sua costumada affabelidade esta pobre relação de minha mão rude, & indocta, para que fique ella amparada, & desculpado meu atrevimento. Deos guarde a V. Excellencia. De Lisboa a trinta de Novembro de 1604.227

226 Idem, ibidem. 227 AMARAL, Melchior Estácio do. Tratado de batalhas. Lisboa: Oficina de António Álvarez, 1604, s/p.

Page 90: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

90

E, em seguida, no capítulo introdutório:

Assi como nas obras naturaes, nunca entende a natureza fazer algua debalde, antes em todas leva sempre respeito, a algum fim proveitoso. Assi guiado eu de natural compaixão dos q no mar, passão trabalhos, & fortunas (pellas em que nelle muitas vezes me vi) desejando com o favor divino, que deste meu piqueno trabalho, & breve tratado (que escrevi pellas mais verdadeiras informações que achey de pessoas de credito, & authoridade) tirem algum fructo os que continuão, a perigosa, & trabalhosa carreira Oriental. Em que a experiencia dos varios sucessos della (alcãçada tãto á custa de nossa nação Portuguesa, & de tantos & tão assinalados varões que nella perecerão) tem ensinado mais que a natural Philosophia, & grande engenho dos famosos Mathematicos, & Cosmographos que della escreverão sem a verem. E posto que a lição dos terribeis espectaculos, & casos de los desestrados da furtuna, não dá alivio, antes cõpaixão, sempre he perda ficarem sepultados, no esquecimento do tempo, & charecerem os futuros da verdadeira noticia delles. Especialmente dos que são tam memorados, como o sucesso do galeão Sanctiago com os Olandeses, na Ilha de Sancta Elena, no anno de 1602. E o da não Chagas com os Ingleses nas ilhas dos Açores no anno de 1594. capitainas ambas desta navegação. Sobre que me dispus a escrever este tratado. Porque quanto a mim são mais horrendos, & dignos de eterna noticia, que quantos socederão nella des que teve principio té oje que à 194. annos. Como podem cotejar os que tiverem lido as historias Orientaes. E se os curiosos que as não lerão, & lerem este tratado, o quiserem ver. Para isso lhe recito aqui, todas as que são escriptas, & tem saido a luz te este presente anno de 1604. E por ellas verão tambem os tropheos das armas Portuguesas pugnando pella Exaltação da Sancta Fè Catholica contra toda a potencia dos Imperios, & Reynos Orientaes: E como tem avassalados à Monarchica coroa deste reyno, perto de quarenta Reys coroados do Oriente. Verão mais pellas ditas historias, a Floresta Celestial pela redondeza do mundo, do Sagrado Evangelho, & com quanta gloria de nosso Senhor IESU CHRISTO triumpha a Sancta & Catholica Igreja Esposa sua, até as mais remotas partes da terra, contra todo o poderio dos infernos. E por este pobre tratado, os que não entrarão no mar, coligirão pelos muitos naofragios, nelle referidos, & socedidos nesta carreira, & pellas causas, & desastres delles, quão charo custa tudo o que se traz da India: E como a cubiça, póde mais que todos os temores. Acharão nelle tambem consolação, aquelles a que acontecerem menores, ou semelhantes sucessos, (de que Deos os livre) para terem nelles paciencia, & se advertirem, & previnirem quanto for possivel, contra semelhantes casos, advertindose, nos que tanto à sua custa os experimentarão. Ca não he nenhum tam experimentado nas cousas do mar, & da guerra, que lhe não seja necessario advertirse de muitas mais, pella variedade, & incerteza delas.228

De todas as relações de naufrágio, esta talvez seja a que melhor define o

gênero: assinala o valor do testemunho, reforça a importância da experiência, indica

que sua matéria supera a dos filósofos, matemáticos e cosmógrafos, que muitas

vezes escreviam sobre o assunto sem tê-los vivenciado, reformula a tópica do

deleite decorrente das ações trágicas, dizendo que o afeto resultante delas é a

compaixão, amplifica a importância das relações que colige em detrimento de todas

228 Idem, ibidem.

Page 91: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

91

as outras, vale-se da modéstia afetada, menciona o teor instrutivo decorrente do seu

tratado e chama a atenção do leitor para a inconstância (ou desconcerto) do mundo,

que exige prudência e, portanto, advertências provenientes da história.

Aqueles que dizem que o mar das tragédias marítimas figura

metonimicamente as penas do inferno se esquecem de que as histórias trágico-

marítimas não são meras transposições de fatos, como fica evidente em seus

discursos preambulares. Os autores que afirmam que o relato de naufrágio

representa o lado mais “realista” da empresa ultramarina se esquecem de que a

“verdade” histórica, neste caso, é escrita a partir de um elenco de lugares comuns

que buscam assegurar este efeito de verdade, que é modelado retoricamente e,

portanto, não conhece o realismo e subjetivismo românticos que surgem com a(s)

literatura(s) do século XIX. Aqueles que tomam o naufrágio como metonímia de uma

decadência portuguesa não se recordam de que incidentes marítimos abundam em

histórias e epopeias desde a Antiguidade, e que a fragilidade humana foi

representada já nas mitologias greco-romanas, não sendo atributo particular do que

reconhecem como sendo o “Barroco”. Por fim, aquele que lê o relato de naufrágio

como sendo o reverso da dimensão positiva da epopeia se esquece de que epopeia

não é apenas luz, e que história não é somente penumbra. Para letrados católicos

que creram em Deus e, portanto, na orientação providencialista da história, seria

impossível apreender um mundo no qual só existissem labores e penúrias. Por isso

mesmo, é difícil falar de “pessimismo” ou de “decadência”, pois há uma retórica

prudencial que une os mais diversos gêneros em um mesmo projeto salvífico.

Page 92: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

92

CAPÍTULO 03

A experiência trágica

Por intermédio das Musas, Homero canta a gesta de grandes heróis,

inventando tipos como Aquiles e Ulisses, mas versa também sobre a fragilidade

humana. A preservação do feito ilustre só seria possível por intermédio do canto

inspirado, que anuncia a memória e celebra o kléos, a fama imorredoura. Na

proposição/invocação da Ilíada, depois de pedir o auxílio da Musa, o aedo introduz o

embate entre Aquiles, filho de Peleu, e Agamêmnon, “rei dos homens”, que “aos

Aqueus tantas penas / trouxe, e incontáveis almas arrojou ao Hades / de valentes,

de heróis, espólio para cães, / pasto de aves rapaces”.229 Algo parecido ocorre nas

liminares da Odisseia, quando Homero menciona as dores que Ulisses padeceu em

seu retorno, “empenhado em salvar a vida e garantir o regresso dos

companheiros”.230

Francisco Murari Pires nota uma “contraposição agonística” entre a Ilíada

e a Odisseia: a primeira epopeia discorre sobre um herói jovem que parte de casa

para a guerra, conquistando fama imorredoura em contrapartida à perda do regresso

(nóstos); a segunda canta um herói maduro que da guerra retorna ao lar. A Ilíada

aborda o antes, quando Tróia estava intacta e Aquiles com vida. Na Odisseia,

presenciamos o depois, a memória e a lembrança do luto e dos sofrimentos

passados. A Odisseia é, para Aristóteles, uma fábula complexa porque lida com a

memória e, em consequência, não poderia fugir às peripécias ocorridas no decorrer

dos 20 anos do itinerário de Ulisses. O contraste se pronuncia: “enquanto aquela

aponta o princípio da história do heroico, esta aponta o fim”.231 Firma-se, portanto, a

“axiologia épica”:

A grandeza humana, realizada em sua dimensão heroica, é consequentemente trágica. A consecução dos feitos grandiosos que distingue os heróis, demarcando o domínio de honras adstrito à esfera de seu poder, comporta, entretanto, paralelamente a multiplicidade de males e sofrimentos conexos a tais feitos. A axiologia épica, assim, logo assinala,

229 HOMERO. Ilíada, v. 1. Tradução de Haroldo de Campos. Introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, I, 2-5, p. 31. 230 HOMERO. Odisseia, v. 1: Telemaquia. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010, I, 2-5, p. 13. 231 PIRES, F. M. Mithistória. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, p. 162.

Page 93: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

93

pelas lembranças inaugurais de seus Proêmios, seu enviezamento trágico, destacando o duplo aspecto portentoso que define a moira da grandeza heroica.232

Em uma passagem presente no capítulo final da Ilíada, Aquiles convida o

rei troiano a cessar o pranto e a serenar a dor do coração, já que um destino comum

assola todos os homens:

Assim os deuses urdem o fadário dos infaustos mortais: um viver agoniado, sendo os numes incólumes; pois há dois cântaros nos umbrais de Zeus, cheios de dons que ele nos dá, um de ruins, de bons o outro. Mescla-os Zeus fulmíneo e os versa: ora o mal, ora o bem, deparará quem os receba; quando maldosos opróbrios apenas colha, malsinado vagará pela terra divina, famélico, menosprezado por mortais e deuses.233

Do épos homérico à história herodoteana, a mudança é sutil: se a

axiologia épica canta feitos que transitam pelas obras divinas ou pelas sagas

heroicas, a axiologia em Heródoto se ocupa da memorização das realizações

humanas.234 Ele renuncia às certezas do aedo para aproximar-se de um

conhecimento verdadeiro,235 assumindo a tarefa de retardar o esquecimento dos

grandes feitos dos homens. Assim como o aedo, ele busca “domesticar a morte,

socializando-a”.236

Tucídides, ao tratar da guerra entre atenienses e peloponésios, pontua

um rol de sofrimentos e infortúnios que caracteriza este episódio insigne, e também

assegura a superioridade desta guerra em relação aos conflitos anteriores. A guerra

do Peloponeso, que “acarretou para a Grécia, no seu decorrer, sofrimentos como

não houve outros”, proporcionou a captura e despovoamento de cidades, exílios e

assassinatos. Um conjunto de outras ocorrências “coincidiu com esta guerra”, como

terremotos, eclipses solares, grandes secas e uma epidemia da peste.237 Sendo

assim, os proêmios da “história nascente com Heródoto e Tucídides, reiterando as

convenções originalmente (im)postas pelo ‘épos’ homérico, reafirmam o princípio

232 Idem, p. 166. 233 HOMERO. Ilíada, v. 2. Tradução de Haroldo de Campos. Introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, XXIV, 525-534, p. 471. 234 Ver: PIRES, F. M. Mithistória. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 166-167. 235 Ver: HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Organização de José Otávio Guimarães. Tradução de Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 30-33. 236 DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 8. 237 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, I, 23, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 81-83.

Page 94: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

94

axiológico que determina a eleição do episódio historiado dada a sua grandeza

trágica”.238

Entre os romanos cogitava-se que a narrativa de infortúnios poderia

causar deleite, caso tratasse de matéria alta, escrita com eloquência. É o caso de

Cícero que, através de uma carta, pede ao amigo e historiador Lucéio para escrever

e celebrar seu consulado: “nossas desventuras te fornecerão, na escrita, uma

grande variedade, cheia de um certo prazer que pode veementemente reter os

espíritos na leitura, graças ao escritor que tu és”.239 Ele continua:

Nada, com efeito, é mais conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstâncias e as vicissitudes da Fortuna. Ainda que, quando experimentadas, não tenham sido desejáveis, serão todavia agradáveis de se ler: a recordação livre da dor passada tem efetivamente seu prazer; com certeza, para os que não passaram por nenhum dissabor e contemplam os males alheios sem nenhuma dor, a própria piedade é agradável.240

O procedimento aludido por Cícero difere dos demais ao insistir no prazer

decorrente das vicissitudes da Fortuna e tomar a escrita eloquente como necessária

à efetivação deste mesmo prazer. Logo, a história encerra conflitos e dissabores,

mas propicia também o deleite, sobretudo por tratar de males alheios.

Tito Lívio, no prefácio de Ab Urbe Condita, diz que não pretendia

confirmar ou negar a tradição legada pelos poetas. Ele registra uma paulatina queda

dos princípios morais, dos costumes, decadência esta que se mostra amplificada no

seu presente. “Não podemos mais suportar nem nossos vícios, nem seus remédios”,

ele diz, buscando luz em meio às sombras de seu tempo.241

O que principalmente há de são e fecundo no conhecimento dos fatos é que consideras todos os modelos exemplares, depositados num monumento, em plena luz: daí colhes para ti e para teu estado o que imitar; daí, evitas o que é infame em sua concepção e em sua realização.242

Na posição de historiador romano não pertencente à aristocracia

senatorial, Tito Lívio valorizava sobremaneira os domínios da retórica e,

diferentemente de Heródoto e Tucídides, que escreviam sobre ocorrências mais ou 238 PIRES, F. M. Mithistória. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, p. 179. 239 CÍCERO. As Familiares, 5, 12, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 157. 240 Idem, ibidem. 241 LÍVIO, Tito. Ab Urbe Condita, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 207. 242 Idem, ibidem.

Page 95: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

95

menos contemporâneas, ele discorreu sobre um passado romano mais recuado.

Sem experiência político-militar, ele distancia-se de Políbio, de Cícero e de outros

que julgavam necessária a conciliação entre a escrita da história e a atividade

política. Seu investimento nos exempla é recorrente, o que lhe permite diferenciar

um período áureo de outro consumido pela decadência (cogita-se que o corte

cronológico estipulado por Tito Lívio seja o ano de 188 a. C.). Os exempla

permitiriam não somente a instrução dos leitores, mas também a compreensão da

história romana e o destacamento de valores morais e virtudes de aceitação

universal. De acordo com Breno Sebastiani, Lívio torna-se o “primeiro historiador a

transformar em objeto de estudo algo que era fruto do conhecimento indireto,

seguindo a preceituação ciceroniana para a qual a história era tarefa de

oradores”.243

Tácito esclarece, no prefácio de suas Histórias, o teor de sua narrativa:

primeiramente, ele menciona, sem nomear, autores que se deixaram mover pela

ignorância da coisa pública, pela vontade de bajular ou, ao contrário, pelo ódio

contra os dominantes, o que acabou “fraturando” a verdade que registraram. Assim,

uns se tornaram hostis, outros submissos, deixando de lado a preocupação com a

posteridade. A verdade, no caso, deve ser proferida sem amor e sem ódio. Como

nota François Dosse, a “poética histórica” de Tácito afina-se aos ensinamentos de

Cícero, ou seja, acata o “respeito pela ordem cronológica, a difusão das informações

geográficas necessárias, a explicação das intenções dos autores, a narrativa dos

acontecimentos importantes e a busca de suas causas”.244

A obra de Tácito, que se ocupa do principado do “divino Nerva” e do

reinado de Trajano, é rica em desventuras, como ele próprio admite:

Realizo uma obra rica em desventuras, atroz por seus combates, dividida por sedições, selvagem mesmo na própria paz: quatro príncipes assassinados a ferro; três guerras civis, muitas guerras externas, muitas guerras mistas; prosperidade no Oriente, adversidades no Ocidente; perturbações na Ilíria, a Gália cambaleante, a Bretanha completamente subjugada e logo perdida; os povos dos sármatas e suevos levantados

243 SEBASTIANI, Breno Battistin. A política como objeto de estudo: Tito Lívio e o pensamento historiográfico romano do século I a. C. In: JOLY, Fábio Duarte. História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, p. 95. 244 DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 105.

Page 96: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

96

contra nós; os dacos famosos por nossos mútuos desastres; e até as armas dos partos postas em movimento pelo capricho de um falso Nero.245

Além disso, ele cita alguns desastres que subjugaram a Itália, como os

incêndios ocorridos em Roma, que devastaram santuários e o próprio Capitólio, a

prática de adultérios, os exílios, a selvageria das cidades e o levante dos servos

contra seus senhores. Após nomear todos estes infortúnios, ele pondera, dizendo

que o século “não foi tão estéril em virtudes que não produzisse também bons

exemplos”. Em seguida, ele diz: “jamais as mais atrozes desventuras do povo

romano e os indícios mais suficientes deram prova de que os deuses não se

encontram preocupados com nossa segurança, mas com o nosso castigo”.246 Em

outro momento, à maneira de um segundo prefácio, Tácito alerta para a utilidade de

sua narrativa, dizendo:

Nosso trabalho dispõe de espaço estreito e inglório: com efeito, havia uma paz imóvel ou moderadamente atacada, os negócios da cidade aflita e um príncipe indiferente ao progresso do império. Entretanto, não seria desprovido de proveito examinar essas coisas, à primeira vista sem importância, nas quais está a origem do movimento que leva a fatos muitas vezes essenciais.247

Demarca-se um viés ruinoso, caracterizado por labores, dissabores e

reveses da fortuna. Este quadro proporciona não somente o deleite, mas também a

instrução decorrente de lições morais. A memória, afinal, parece preferir tudo o que

foge ao corriqueiro, como lembra-nos o anônimo da Retórica a Herênio:

As coisas pequenas, comezinhas, corriqueiras, que vemos na vida, não costumamos guardar na memória, porque nada de novo ou admirável toca o ânimo. Mas, se vemos ou ouvimos algo particularmente torpe, desonesto, extraordinário, grandioso, inacreditável ou ridículo, costumamos lembrar por muito tempo. É assim que esquecemos a maioria das coisas que vemos ou escutamos a nossa volta, mas quase sempre nos lembramos muito bem de acontecimentos da infância. Isso não pode ter outra causa senão que as coisas usuais facilmente escapam à memória, as inusitadas e insignes permanecem por mais tempo.248

O conceito de “trágico” está afixado no título da coletânea de Bernardo

Gomes de Brito: História trágico-marítima. No entanto, os estudiosos que dela se

245 TÁCITO. Histórias, I, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 209-211. 246 Idem, p. 211. 247 Idem, p. 215. 248 [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, III, 35, p. 191.

Page 97: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

97

ocupam costumam insistir no caráter pessimista de sua composição, que seria

sintomática de uma “crise” europeia. A alegação desta crise baseia-se,

normalmente, em muitas tópicas retóricas que mencionamos no decorrer deste

capítulo, que historiadores utilizavam porque a escrita da história assim o requeria. É

preciso ter cautela para não associar um lugar-comum à empiria. Entender as

narrativas como desdobramentos de uma “situação histórica depressiva” acarreta

vários problemas, sobretudo porque tal procedimento não leva em consideração o

caráter datado e, portanto, histórico dos códigos linguísticos empregados. Quando

se concebe uma crise geral, textos escritos naquele contexto acabam sendo

apreendidos com um tom pessimista, emergencial, às vezes reacionário e

contestatório.

Os grandes males narrados nos relatos de naufrágio são, na maioria das

vezes, males naturais, como a tempestade que devasta o navio e evidencia a

limitação dos remédios humanos. Por outro lado, estes mesmos eventos naturais

podem indicar castigo divino, para punir o orgulho e a cobiça dos mareantes. O

incidente pode ser uma oportunidade para uma provação, em que os sobreviventes

precisam demonstrar sua fé na Providência. A ideia de que estas narrativas são

pessimistas é redutora, pois leva em consideração o sofrimento e o fracasso

humanos e deixa de lado a figura de Deus, que é central na narrativa. Não podemos

nos esquecer de que estas narrativas afirmam o sentido transcendental da história,

mesmo quando a experiência que retrata é denominada “trágica”.

De acordo com Lisa Voigt, tanto os relatos de naufrágio quanto os de

cativeiro não fogem à ideologia imperial e católica, pois, “em vez de simplesmente

mostrarem os perigos da viagem, incentivam a religiosidade e o comportamento

exemplar tanto dos que ficam, como dos que se lançam à experiência ultramarina”.

A autora menciona, posteriormente, as iniciativas de Giulia Lanciani e Maria Alzira

Seixo, que admitiram a presença da ideologia imperial e, ao mesmo tempo, uma

dimensão antiépica das relações, identificando nelas elementos contraditórios e

ambíguos. Voigt chega à conclusão de que estas narrativas não podem ser

separadas do contexto imperial, pois não representam simplesmente uma “inversão”

da ideologia expansionista, “apesar da atração desta possibilidade para as nossas

sensibilidades pós-coloniais”.249 Em outras palavras, o epíteto “antiepopeia dos

249 Ver: VOIGT, Lisa. Naufrágio, cativeiro, e relações ibéricas: a História trágico-marítima num contexto comparativo. In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 24, nº 39, 2008, pp. 201-226.

Page 98: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

98

Descobrimentos” tende a sugerir um conjunto de equívocos quando associado aos

relatos de naufrágio, pois supõe uma reação contra a ideologia expansionista.

Numa das licenças do Santo Ofício que acompanham a História Trágico-

Marítima, Fr. Manoel de Sá menciona os “trágicos sucessos” dos navios e galeões

na Carreira da Índia e a “heroicidade” dos espíritos magnânimos que enfrentaram

uma grande leva de infortúnios, como peregrinações por terras incógnitas e

bárbaras, a ira dos mares, o descuido dos pilotos etc.250 Fr. Francisco Xavier de S.

Teresa, noutra licença, acentua a gravidade das travessias relatadas amplificando

sua importância: fala das “viagens, que em diversos tempos, e em diferentes mares

antigamente se fizeram, nenhuma semelhança tem com as que se leem neste livro,

não só com horror, mas com lástima”. Ele cita várias empresas antigas, como as de

Ulisses e Eneias, e afirma que “todas estas viagens tão longas, tão perigosas, e por

mares nunca dantes amansados, não tem, nem podem ter comparação com as que

se contam nestas funestas e melancólicas Relações”.251 Convém recordar a

contenda presente na historiografia grega antiga, quando Heródoto realçou a

grandiosidade das guerras médicas em relação à matéria homérica, e Tucídides

narrou a Guerra do Peloponeso para demonstrar como ela supera todas que a

antecederam. O censor, utilizando um argumento análogo, afirma que os

navegantes antigos descobriram terras e ilhas novas, mas também conquistaram

tesouros e riquezas, o que amenizou os trabalhos passados e fez com que

esquecessem os grandes perigos. No caso da História Trágico-Marítima, pelo

contrário, as narrativas remetem a nautas que

deixavam os tesouros que traziam para a Pátria, adquiridos, ou na guerra à custa da própria vida, ou na paz à custa de impertinentes negociações, umas vezes no coração vorás do Oceano, e outras nas desertas e incultas praias da África, expostos à rapina da Bárbara e ambiciosa Cafraria.252

Utiliza-se o critério “sofrimento” para amplificar não somente as

dificuldades, mas a grandiosidade das viagens portuguesas. Não se trata de indícios

empíricos que apontam para uma época decadente, mas de argumentos, tópicas,

250 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo primeiro. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1735, s/p. 251 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo segundo. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1736, s/p. 252 Idem, ibidem.

Page 99: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

99

figuras e arrazoados que indicam ao leitor discreto as glórias que os nautas lusitanos

mereciam. Ao menos neste caso, o censor não retrata um Portugal decadente, mas

sim um Portugal que se esforça “por mares nunca dantes navegados”. Se os

trabalhos e dissabores da empresa ultramarina insinuam grandeza e glória,

realmente há algo de funesto nestas experiências?

Lágrimas de Portugal

Fernando Pessoa inicia um de seus poemas com a seguinte exclamação:

“Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!”.253 O poeta faz uso

de uma prosopopeia quando coloca Portugal a chorar, e de uma hipérbole, quando

dá a entender que uma boa parcela do mar corresponde às lágrimas que os

portugueses derramaram. Estas duas figuras ajudam a compreender melhor o título

do poema, “Mar português”, que indica uma relação de posse em dois sentidos: é

português porque foi desbravado por iniciativa deste Estado, e também porque é

fruto de seu pranto. Resta, então, identificar algumas das fontes que originaram

estas lágrimas, para traçar uma espécie de genealogia do “mar português”. No

entanto, convém antecipar que muitos povos antigos prantearam, e muitas destas

lágrimas correram pelo mar Egeu, desembocaram no mar Mediterrâneo,

atravessaram o estreito de Gibraltar e chegaram, finalmente, à imensidão do

Atlântico.

O Atreide Agamêmnon, contrariado com os primeiros resultados da

guerra, chorou e chegou a cogitar o retorno, sentindo-se como que traído por Zeus,

que lhe prometera a vitória.254 Pátroclo pranteia copiosamente ao lado de Aquiles

que, afastado da batalha, prejudicava sobremaneira os gregos. Aquiles, “pastor-de-

povos”, comove-se perante as lágrimas do amigo e, em sua fala, vale-se de um

símile que deixa ver o estado em que se encontrava Pátroclo: “Que nem menina que

corre atrás da mãe, querendo colo, e às roupas dela se apega, e impede que

caminhe, enquanto ergue os olhos, chorosa, a pedir que a carregue; choras que

nem menina, meu Pátroclo”.255 O curioso é que o próprio Aquiles, depois que

253 PESSOA, Fernando. Mar Português. In: Mensagem. Lisboa: Edições Ática, 1959, p. 58. 254 HOMERO. Ilíada de Homero: vol. I. Tradução de Haroldo de Campos, introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, canto IX, vv. 14-17, p. 329. 255 HOMERO. Ilíada de Homero: vol. II. Tradução de Haroldo de Campos, introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, canto XVI, vv. 7-11, p. 137.

Page 100: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

100

Agamêmnon toma sua cativa Briseida, chora por acreditar-se desonrado até receber

conforto da mãe, a deusa Tétis, que “afagava o filho em prantos”.256 Vale recordar

que este foi um dos motivos decisivos que afastou o herói da guerra. No entanto,

Aquiles volta atrás quando fica sabendo da queda de Pátroclo, morto pela espada de

Heitor, príncipe troiano.257 O herói emociona-se e protagoniza uma cena patética, na

qual arranca seus cabelos e lança cinzas sobre o rosto, comovendo até mesmo Tétis

e as Nereides. Aquiles chora quando fica sabendo do ocorrido, no decorrer das

homenagens fúnebres e quando se recorda do pai e do filho ainda pequeno que

deixou para trás quando decidiu integrar os exércitos de Agamêmnon. Até em sonho

ele soluça quando Pátroclo lhe aparece e exige presteza no enterro.258 Nem mesmo

Hipnos, deus que proporciona e preside o sono, conseguiu refrear seu pranto.259 Por

fim, há o episódio no qual Aquiles é convidado a abandonar sua ménis, sua ira, ao

receber em sua tenda o rei Príamo, pai de Heitor, que pretendia tomar de volta o

corpo do filho para efetuar as honras fúnebres. Ambos, após conversa inicial, caem

em prantos: um pela morte do filho, o outro pelo amigo que morreu e pelo seu

próprio pai, deixado desamparado em sua pátria.

As lágrimas de Ulisses, Penélope e Telêmaco, por sua vez, abasteceram

o mar Jônico e suas adjacências. Penélope chora ao longo dos anos a espera do

marido, frente à possibilidade de ter que unir-se a um dos pretendentes que

ansiavam pelo trono de Ítaca. Telêmaco, filho do casal, chora pela ausência do pai,

e parte para recolher informações sobre o seu paradeiro. Ulisses derrama lágrimas

quando contempla a possibilidade de sair da ilha de Calipso, na qual foi feito

prisioneiro por sete anos, e chora ainda mais quando escuta o aedo Demódoco

cantando a guerra de Tróia. Vale lembrar que a Odisseia é a “epopeia do retorno”,

do retorno “doloroso”, sendo habitada pela “ausência e construída em torno da

memória”. Quando chora perante a “exatidão” do canto de Demódoco, Ulisses utiliza

como critério sua experiência e vivencia, segundo Hartog, um luto por si mesmo. No

caso, as lágrimas do herói estariam exprimindo a experiência do tempo, justamente

porque lida com a memória, diferentemente do que ocorre na Ilíada.260

256 Idem, vol. I. Canto I, vv. 360-361, p. 51. 257 Idem, vol. II. Canto XVIII, vv. 22-53, pp. 231-233. 258 Idem, vol. II. Canto XXIII, vv. 97-99, p. 393. 259 Idem, vol. II. Canto XXIV, v. 06, p. 441. 260 Ver: HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Organização de José Otávio Guimarães e tradução de Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 16-29.

Page 101: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

101

Todo este “mar de lágrimas” alcança, finalmente, o Mediterrâneo,

atingindo a costa africana e unindo-se ao pranto derramado na antiga Cartago.

Assim como Ulisses, comovido com o canto do aedo, também Enéias chora diante

das pinturas de um templo cartaginês que rememorava a guerra de Troia. Alguns

pesquisadores costumam distinguir na épica de Virgílio uma faceta trágica, obscura,

que configuraria o reverso da epopeia. Quanto maior é a queda, diz-se, maior é a

grandeza do feito que dela decorre. Por outras palavras, há uma penumbra em meio

à luz do canto heroico, caracterizado pelo “duro aprendizado da condição

humana”.261

Os poetas e narradores portugueses emularam os gregos e romanos para

cantar/narrar os episódios que arrancaram dos portugueses as lágrimas que

formaram o seu mar.

Para prosseguir, segue outro fragmento poético de Pessoa: “Por te

cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas

noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar!”.262 Estes versos emulam a

passagem d’Os Lusíadas que discorre sobre a partida de Vasco da Gama, ocorrida

a oito de julho de 1497. Parentes, amigos, desconhecidos e “mil religiosos diligentes”

acompanharam a procissão que partiu da antiga Ermida de Nossa Senhora,

localizada à margem do rio Tejo. As mães, desamparadas, lamentavam a partida

dos filhos, que as abandonavam para se tornarem alimento de peixes. As esposas

temiam a partida dos maridos por “caminho duvidoso”, deixando de lado o amor,

levado “com as velas” pelo vento. Depois dos lamentos todos, o poeta utiliza uma

prosopopeia seguida de uma hipérbole para dar a ler o sofrimento dos que ficavam:

“Os montes de mais perto respondiam, / Quase movidos de alta piedade; / A branca

areia as lágrimas banhavam, / Que em multidão com elas se igualavam” (Canto IV,

vv. 89-92). Fernão Lopes de Castanheda263 e João de Barros264 insistiram,

261 Ver: GRIZOSTE, Weberson Fernandes. O Reflexo antiépico de Virgílio no indianismo de Gonçalves Dias. Dissertação de Mestrado. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009; CARVALHO, Teresa de. Epopeia e antiepopeia: de Virgílio a Alegre. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008. 262 PESSOA, Fernando. Mar Português. In: Mensagem. Lisboa: Edições Ática, 1959, p. 58. 263 “E ao embarcar saíram todos em procissão de nossa senhora de Belém um mosteiro da ordem de São Jerônimo, e iam descalços e sem pelote [roupas] e círios acesos nas mãos, e os frades rezando: e ia com eles a maior parte da gente de Lisboa, e a mais dela chorava com piedade dos que se iam embarcar crendo que haviam todos de morrer”. CASTANHEDA, Fernão Lopez de. História do descobrimento e conquista da Índia pelos Portugueses. Coimbra, 1551, livro I, p. 07. Disponível em: http://purl.pt/15294. Acesso em: março/2013.

Page 102: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

102

igualmente, no choro vertido na praia de Belém, conhecida também como “praia das

Lágrimas”, como bem lembra o narrador do naufrágio da nau Conceição, Manuel

Rangel.265 A designação “praia das Lágrimas” foi mencionada por João de Barros na

sua primeira Década, expressão utilizada pelos que partiam, pois o caminho inverso,

ou seja, de retorno, fazia merecer outra expressão: “terra de prazer”.266

Castanheda, Barros e Camões discorreram sobre o medo e a dúvida em

relação ao porvir, sobre as lágrimas derramadas e sobre a piedade dos que

permaneceram em terra firme. O olhar enternecido que acompanhava da praia o

avançar das naus era correspondido pelo olhar lacrimoso dos nautas que

avançavam mar adentro, contemplando a segurança do lar. Outras tantas lágrimas a

somar-se à imensidão azul, e a tripulação sequer havia ultrapassado os limites do

Tejo.

No decorrer do itinerário dos navegantes, sobretudo quando a nau

encontrava-se à mercê dos ventos e das ondas, as lágrimas e soluços eram

abundantes. Luís Pereira, no sexto canto de sua Elegiada (1588), narra os

infortúnios de Manuel de Sousa Sepúlveda e sua família a bordo do Galeão São

264 “Ao seguinte dia, que era sábado oito de Julho, por ser dedicado a Nossa Senhora, e a Casa de muita romagem; assim por esta devoção, como por se irem despedir dos que iam na Armada, concorreu grande número de gente a ela. E quando foi ao embarcar de Vasco da Gama, os Freires da casa com alguns Sacerdotes, que da Cidade lá eram idos dizer Missa, ordenaram uma devota procissão, com que o levaram ante si nesta ordem: ele, e os seus com círios nas mãos, e toda a gente da Cidade ficava detrás respondendo a uma Ladainha, que os Sacerdotes diante iam cantando, até os porem junto dos bateis, em que se haviam de recolher. Onde feito silêncio, e todos de joelhos, o Vigário da Casa fez em voz alta uma confissão geral, e no fim dela os absolveu na forma das Bulas, que o infante D. Henrique tinha havido para aqueles, que neste descobrimento, e conquista falecessem, (como atrás dissemos). No qual ato foi tanta lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia posse das muitas, que nela se derramam na partida das Armadas, que cada ano vão a estas partes, que Vasco da Gama ia descobrir: donde com razão lhe podemos chamar praia de lágrimas para os que vão, e terra de prazer aos que vem. E quando veio ao desfraldar das velas, que os mareantes segundo seu uso deram aquele alegre princípio de caminho, dizendo boa viagem, todos os que estavam prontos na vista deles com uma piedosa humanidade dobraram estas lágrimas, e começaram a encomendá-los a Deus, e lançar juízos, segundo o que cada um sentia daquela partida. Os navegantes, dado que com o fervor da obra, e alvoroço daquela empresa embarcaram contentes, também passado o termo do desferir das velas, vendo ficar em terra seus parentes, e amigos, e lembrando-lhes que sua viagem estava posta em esperança, e não em tempo certo, nem lugar sabido, assim os acompanhavam em lágrimas, como em o pensamento das coisas, que em tão novos casos se representam na memória dos homens. Assim que uns olhando para a terra, e outros para o mar, e juntamente todos ocupados em lágrimas, e pensamento daquela incerta viagem, tanto estiveram prontos nisso, até que os navios se alongaram do porto”. BARROS, João de. Da Asia: Dos feitos, que os Portuguezes fizeram na conquista, e descubrimento das terras, e mares do Oriente – Década primeira (parte primeira). Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, pp. 277-279. Disponível em: http://www.archive.org. Acesso em: janeiro/2013. 265 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 97. 266 BARROS, João de. Da Asia: Dos feitos, que os Portuguezes fizeram na conquista, e descubrimento das terras, e mares do Oriente – Década primeira (parte primeira). Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, livro IV, cap. II, pp. 277-279.

Page 103: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

103

João. Durante uma tempestade, sua mulher, d. Leonor, encontrava-se debaixo da

escotilha, com os filhos apertados contra o peito e sem descansar “a bomba em

botar fora / As saudosas lágrimas que chora”. No entanto, como pode “pouco com a

tempestade” a “força do choro”, de nada adiantou bombear as lágrimas, já que a nau

corria às vistas do cabo, chamado “da Esperança, / Por ser ditoso quem dobrá-lo

alcança”.267 Ao final do canto, depois de ocorrido o naufrágio e com o triste fim da

peregrinação, outra passagem de alto teor patético chamou-nos a atenção:

Sepúlveda deixa a família por um instante para conseguir alimento e, quando

retorna, encontra sua mulher e filhos sem vida. Depois de enterrá-los em completo

silêncio e sem derramar uma lágrima sequer, o capitão do desventurado Galeão São

João avança rumo às florestas, “com rouca voz mil lástimas dizendo, / De mágoa

enternecendo as pedras duras”.268

Esta figura de prosopopeia aparece também em Camões, justamente em

uma das três oitavas dedicadas à experiência trágica de Sepúlveda, que fez “as

pedras abrandarem / Com lágrimas de dor, de mágoa pura”.269 Melchior Estácio do

Amaral, no último relato de naufrágio da História de Brito, termina a narrativa

dizendo que os inúmeros naufrágios que vitimaram naus portuguesas “magoam até

as pedras”.270 Alguns episódios dramáticos poderiam comover até mesmo os

animais, tópica que nos remete a Homero, que coloca os cavalos de Pátroclo a

chorar quando este tomba em batalha. Sem saber se recuavam ou avançavam, eles

ficaram “junto à biga pluribela, fronte para o solo inclinada, lágrimas ardentes

escorrendo das pálpebras”.271 Em Camões, no episódio que canta o destino trágico

de Inês de Castro, esta, defendendo-se contra os agressores que a queriam morta,

pede para ser colocada entre “liões e tigres”, para ver se neles acharia a piedade

que “entre peitos humanos” não encontrou. No canto II, Vênus, banhada em

lágrimas, pediu a Zeus que intervisse a favor dos portugueses, oferecendo mostras

de brandura “que moveram de um tigre o peito duro”.272 Manuel de Mesquita

Perestrelo, na relação de naufrágio da nau São Bento, diz que a míngua e

267 PEREIRA, Luís. Elegiada: dirigida ao sereníssimo Senhor Cardeal Alberto, Arquiduque de Áustria, e Governador dos Reinos de Portugal. Lisboa: impressa por Manuel de Lyra a requerimento de Francisco de Miranda, 1588, canto VI, p. 74. 268 Idem, p. 91. 269 Os Lusíadas, canto V, estrofe 48, p. 157. 270 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 543. 271 HOMERO. Ilíada de Homero: vol. II. Tradução de Haroldo de Campos, introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, canto XVII, vv. 437-439, p. 211. 272 Os Lusíadas, canto II, estrofe 42, p. 60.

Page 104: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

104

desamparo dos nautas “a tigres e ursos moveriam a piedade”.273 Em outro momento,

ele afirma que nos cafres se encontra menos piedade que em todos os “Tigres de

Hircânia”.274 Jerônimo Corte-Real, quando descreve os perigos por que passou

Sepúlveda, afirma que o mísero espetáculo foi infeliz o suficiente para “demover

Hircanos Tigres”.275 Para ilustrar a crueldade humana, Shakespeare também

menciona estes tigres. A Hircânia ficava no atual território do Irã, sendo muito

referida pela literatura latina justamente pela ferocidade dos tigres que lá se

encontravam.

As experiências trágicas, como se pode ver, são volumosas. Mas as

lágrimas, que foram derramadas com tamanha abundância, denotam

necessariamente algo como pessimismo ou decadência?

No último quartel do século XV, veio a lume o Malleus Maleficarum,

escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger. Na primeira parte do

livro, especificadamente na questão de número XII, os autores refletiram sobre a

existência da bruxaria. Retomando, inicialmente, auctores da Sagrada Escritura e

filósofos “pagãos”, Kramer e Sprenger discorreram sobre a responsabilidade do

homem, quando recebe o dom da vida, e sobre a existência do mal. Eles partem de

uma concepção providencialista para dizer que tudo o que existe deve passar,

antes, pela aprovação de Deus, e que sua justiça permite a prevalência do pecado,

da culpa, do castigo, da perda. Deus conhece as coisas na sua generalidade e na

sua particularidade e, por isso, não há qualquer coisa fora da providência. Em outro

momento, os autores afirmam que há, de um lado, o provedor particular, que deve

afastar de si todo o mal que puder, pois não é capaz de extrair bem do mal, e o

provedor universal, Deus, capaz de extrair bem dos males particulares. Ou seja,

seria possível extrair bem da perseguição dos tiranos, pois foi dela que teria surgido

a paciência dos mártires. Os inquisidores mencionam Santo Agostinho, que disse:

“Tão misericordioso é o Deus Todo-Poderoso que não permitiria que o mal atingisse

as suas obras se não fosse tão onipotente e tão bom ao ponto de até mesmo do mal

273 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 71. 274 Idem, p. 55. 275 CORTE-REAL, Jerônimo. Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. E a peregrinação que tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Lisboa: Typografia Rollandiana, 1783, canto VII, p. 77.

Page 105: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

105

extrair o bem”.276 Na sequência, Kramer e Sprenger dialogam sobre a prevalência do

mal, do pecado e do sofrimento, iniciando com duas proposições: toda criatura

comete pecados, e isto é permitido por Deus. Seria impossível, portanto, a

transmissão da impecabilidade às criaturas.

Na questão XV, tratam os autores do fato de inocentes sofrerem punições

pelos pecados das bruxas. Baseando-se em Tomás de Aquino, os inquisidores

dividem os castigos em três categorias: (1) o homem ao homem pertence e, por isso,

suas ações podem acarretar em castigo para o outro; (2) o pecado de uma pessoa

pode ser transmitido a outra por imitação, quando, por exemplo, a criança imita o

pecado do pai, ou quando um escravo usufrui dos bens ilícitos adquiridos por seus

donos, ou pode ser transmitido por consentimento, quando por exemplo uma

autoridade consente com o pecado, podendo afetar a outros; (3) o pecado é

comunicado pela permissão Divina para a condenação da unidade da sociedade

humana, para que o homem cuide do próximo e este se abstenha do pecado, e para

que o pecado pareça ainda mais detestável, pois o pecado de um redunda sobre

todos, como se todos fossem um só corpo.277 A punição tem o efeito esperado

quando o homem suporta pacientemente os males, pois castigo sem paciência

torna-se vingança. Assim, mesmo a bruxaria pode vir a causar um grande bem:

“quando a morte é aguardada com resignação e devoção, e oferecida na sua

amargura a Deus, pode adquirir de algum modo um caráter corretivo”.278 A morte

violenta, por exemplo, “de quem a merece ou não, é sempre corretiva, quando

suportada com paciência e na graça. Tanto mais para os castigos infligidos por

causa dos pecados dos outros”.279

Para Kramer e Sprenger, o castigo divino “é de dois tipos, espiritual e

temporal. No primeiro caso, nunca há punição sem culpa notória. No segundo, por

vezes a punição se faz sem que haja culpa, mas nunca sem que haja uma causa”.280

Neste segundo tipo, “ora é infligido pelo pecado de outrem, ora sem que tenha

havido qualquer pecado, pessoal ou de outra pessoa, mas pela existência de outra

276 KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. 17ª ed. Tradução de Paulo Fróes. Introdução de Rose Marie Muraro. Editora Rosa dos Ventos, 1997, p. 161. 277 Ver: idem, pp. 175-176. 278 Idem, p. 177. 279 Idem, ibidem. 280 Idem, p. 178.

Page 106: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

106

causa, ora ainda pela existência de culpa pessoal, sem a participação do pecado de

outra pessoa”.281

Logo, é por cinco causas que Deus castiga os homens em vida: (1) para

Sua glória, quando o castigo infligido é miraculosamente removido, como no caso do

cego de nascença ou da ressurreição de Lázaro; (2) para que se adquira o mérito

pelo exercício da paciência e também para que a virtude oculta se manifeste aos

outros; (3) para que a virtude possa ser preservada mediante a humilhação pelo

castigo. Essas três causas justificam o castigo sem culpa. No caso da existência de

culpa, os homens são castigados (4) para que a danação eterna já comece nessa

vida e (5) para que possam ser purificados, pela expulsão e neutralização da culpa

através do castigo.

Pensando desta forma, o pranto nem sempre é consequência do pecado

ou da culpa, já que é possível vivenciar males particulares que propiciam um bem

maior. Logo, a experiência trágica, quando lida em chave providencialista, não pode

ser entendida como pessimismo ou decadência, pois é condição da própria

existência. Poder-se-ia acrescentar, ainda, que chorar é uma atitude racional (e

mesmo prudencial), uma vez que o sofrimento é condição da existência humana.

O mundo seria mais digno de riso ou de lágrimas? Qual seria o homem

mais prudente: Demócrito, que sempre ria, ou Heráclito, que sempre chorava? Estas

questões foram propostas em uma academia romana no ano de 1674, ficando o

padre Antônio Vieira responsável por defender as lágrimas de Heráclito. Na ocasião,

Vieira afirma que o pranto implica o uso da razão, pois é fruto de um conhecimento

verdadeiro do mundo. Mundo que ele identifica como sendo um “mapa universal de

misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes”, um “teatro imenso”,

trágico, funesto, lamentável.282 Quem não chora perante tal cenário, diz Vieira,

“mostra que não é racional”.283 Na sequência, para provar que o riso de Demócrito

não passava, na verdade, de pranto, o jesuíta enumera três níveis de sofrimento:

com lágrimas (dor moderada), sem lágrimas (dor agravada) e com riso (dor suma e

excessiva). Note-se, portanto, que, para desconstruir a hipótese segundo a qual o

mundo é mais digno de alegria, Vieira afirma que o sorriso pode ser consequência

de uma dor aguda. Logo, Demócrito sofria mais do que Heráclito perante o teatro do

281 Idem, ibidem. 282 VIEIRA, Antônio. As lágrimas de Heráclito. Fixação de textos, introdução e notas de Sônia N. Salomão. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 543. 283 Idem, p. 544.

Page 107: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

107

mundo e, em razão disso, ria sem cessar. Além disso, da lágrima é possível extrair

um efeito edificante, pois “quem quer imprimir os seus afetos e a sua doutrina nos

corações, não deve endurecê-los, deve abrandá-los”.284 Tingir o rosto alheio de

lágrimas pode se converter, portanto, em um eficaz instrumento de persuasão.

Quem ri atenua os males; as lágrimas, ao contrário, os amplifica. Pranto é natureza,

diz Vieira citando Plínio, pois o homem nasce chorando e fica condenado ao eterno

pranto, fruto do pecado original, que o privou da felicidade na qual foi criado. Em seu

último argumento, o jesuíta contrapõe a situação inicial de felicidade plena, na qual a

potência do chorar estaria ociosa, e a atual situação miserável, em que seria

verossímil a ociosidade da potência do sorrir.

O pranto é uma forma de tocar a alma do fiel, de persuadi-lo quanto ao

caminho a ser percorrido. Sendo, portanto, efeito de dor e sofrimento, é comum que

episódios dramáticos apareçam aqui e acolá com finalidade edificante, isto é, como

meio de instrução moral que visa edificar um éthos. Mas haveria algum desajuste

entre o incidente marítimo e o canto épico, como algumas vezes se alega? As

lágrimas, ao que tudo indica, podem muito bem ser a manifestação da sabedoria do

homem prudente e ajuizado, que apreende as misérias (ou desconcertos) do mundo,

mas também a graça misericordiosa do perdão divino. Como falar de pessimismo,

ou mesmo de tragédia (no sentido corrente do termo) nestas circunstâncias?

Se, como diria Pessoa glosando Camões, o mar a Portugal pertence

devido ao pranto que os portugueses choraram, não é de se estranhar que muitos

deles tenham se afogado nas próprias lágrimas.

Retratos de tempestades

A Odisseia é generosa em episódios que abordam dramas marítimos.

Com a ausência de Poseidon, que visitava a terra dos Etíopes, Zeus envia Hermes à

ilha de Calipso para libertar Ulisses. O herói parte com vento propício, mas Poseidon

o avista nas proximidades da terra feácia e planeja uma nova série de infortúnios.

Com o seu tridente em mãos, ele congrega as nuvens e agita o mar, iniciando uma

tempestade. Os ventos Euro, Zéfiro, Bóreas e Noto impedem o avanço da nau de

Ulisses que, frente ao quadro que se desenhava à sua volta, exclama:

284 Idem, p. 547.

Page 108: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

108

Quão infeliz! Ai de mim! Que me falta passar de mais grave? Pois bem receio que a deusa tivesse a verdade anunciado, quando falou dos trabalhos que na água eu passar deveria antes de a pátria alcançar. Ora tudo, de acordo, se cumpre. Com quantas nuvens esconde ora o céu Zeus Olímpico! As ondas como levanta, também, suscitando furiosos remoinhos dos ventos todos! É força que a Morte matura me colha. Três, quatro vezes felizes os Dâneos que lá na planície da grande Tróia morreram, por simples amor aos Atridas! Bem preferira cumprir o Destino e morrer ali mesmo, naquele dia em que os Teucros, visando-me lanças aêneas, inumeráveis jogavam, em torno do morto Pelida. Honras fúnebres teria e aos Aqueus minha fama espalharam. Ora é razão que pereça por modo assim mísero e escuro.285

Uma onda robusta precipita-se sobre a embarcação, obrigando o herói a

abandonar o leme. O mastro parte-se em dois, forçado por um “turbilhão

tempestuoso de ventos num vórtice unidos”. A deusa Ino (também conhecida como

Leucotéia), protetora dos marinheiros, interfere, aconselhando Ulisses a abandonar

a nau e seguir a nado até a costa da Esquéria. Na sequência, Atena refreia os

ventos:

Somente Bóreas ligeiro deixou, porque as ondas abrisse, té que aos Feácios, amantes do remo, chegasse o guerreiro filho de Zeus, e da Morte e do negro Destino escapasse. Dessa maneira flutuou duas noites e dias nas ondas encapeladas, a ver muitas vezes a Morte ante os olhos.286

Duas tópicas se destacam nestes fragmentos: o lamento do herói, que

receava uma morte mísera e escura, porque destituída de honras fúnebres, e a

“visualização” da morte como forma de amplificar o teor trágico do episódio.

Emulando a epopeia homérica, Virgílio se constitui como auctoritas do

gênero com sua Eneida, poema cuja leitura tornou-se imperativa no ambiente letrado

do qual participou, por exemplo, Luís de Camões. A tempestade, no caso,

desenrola-se logo no primeiro canto. Planejando a queda de Eneias e de seus

homens, Juno desce à morada de Eolo, que impera sobre “ventos e ruidosas

tempestades, e com grilhões e cárcere os refreia”. A deusa pede-lhe que liberte os

ventos e afunde as naus troianas, oferecendo-lhe em troca a mais bela das ninfas,

Deiopéia. Eolo atende ao pedido e, com sua lança, instiga os ventos. Densas

285 HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, vv. 299-312, p. 106. 286 Idem, vv. 385-389, p. 108.

Page 109: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

109

nuvens “o céu e o dia de repente ocultam aos olhos dos Troianos”. Todo o ar “com

crebros raios resplandece: tudo a morte apresenta aos navegantes”. Virgílio, como

se pode ver, mobilizou a tópica que Homero utilizou para amplificar os perigos

relativos à tempestade.287 O lamento de Eneias em meio à procela é análogo ao de

Ulisses:

Oh mil vezes, exclama, venturosos Os que de Tróia junto aos altos muros À vista de seus pais morrer puderam! Oh de todos os Dâneos o mais forte, Tidides, que eu a sorte não tivesse De nos campos Ilíacos, pugnando, Sucumbir do teu braço aos duros golpes, E o espírito exalar! onde prostrado Jaz o valente Heitor do Aquíleo ferro, Onde o ingente Sarpédon, onde tantos Escudos, capacetes, e robustos Corpos d’heróis nas ondas volve Símois.288

Após proferir estas palavras, Aquilão rompe-lhe a vela, os remos se

despedaçam e a nau fica à mercê das ondas, que se erguem como “um monte”,

abrindo um “largo hiato” no mar. Noto arremessa três embarcações contra “cegos

penedos” e Euro encalha outras três em “baixas Sirtes”. A nau dos Lícios, após três

redemoinhos, é devorada pelo mar, e as de Ilioneu, Acates e Abas foram

destroçadas pelo temporal: “abertas as junturas dos lados, por mil rombos as

inimigas ondas vão bebendo”. João Manuel Nunes Torrão diz que, através das

exclamações de Eneias, é possível inferir que estivesse desejando a morte.289 Não

seria, todavia, o kléos (ou fama imorredoura) o objeto de desejo do herói? Parece-

nos, portanto, que Eneias valoriza a morte em campo de batalha contra oponente

ilustre, emulando a passagem homérica que mencionamos há pouco.

287 Há diferenças significativas entre os episódios de Homero e de Virgílio no que se refere à situação em que se encontravam os heróis: Odisseu não estava na companhia de seus homens e lutava sozinho na jangada, “num grandioso cenário deserto da presença humana”, o que torna sua fala solitária. O discurso de Eneias, ao contrário, é como “um solilóquio do homem perante a divindade”, ainda na companhia dos seus. Ver: PEREIRA, Maria Helena Rocha. A tempestade marítima de “Os Lusíadas” – Estudo comparativo. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 208. 288 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro primeiro, p. 9. 289 TORRÃO, João. Manuel Nunes. A tempestade no De GestisMendi de Saa. In: Actas do Congresso Internacional [Anchieta em Coimbra – Colégio das Artes da Universidade (1548-1998)]. Edição da Fundação Eng. António de Almeida. Porto, 2000, pp. 648.

Page 110: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

110

Em outro momento, já nas proximidades da Itália (ou Hespéria), outra

tormenta afasta Eneias de seus intentos:

No alto-mar se engolfara toda a armada, Já não se avistava terra alguma; Tudo era mar e céu, quando atra nuvem Por cima da cabeça me aparece, Trazendo escura noite e grã tormenta, E co’as trevas o mar se torna horrendo. Os ventos o revolvem de contino; Todo em serras se eleva o equóreo plaino: Dispersos pela fúria da procela, Na vastidão do pélago vagamos. A cerração o dia envolve, e a noite Chuvosa o céu nos rouba: uns após outros Raios, rasgando as nuvens, se sucedem.290

Ao discorrer sobre a tempestade que impediu a viagem de Ceix, que

desejava chegar à ilha de Delfos para consultar o Oráculo, Ovídio faz uso de tópicas

análogas às de Virgílio, como no momento em que usa metáforas topográficas para

amplificar o tamanho das ondas, comparando-as a montanhas, ou quando diz que a

água era lançada tão alto que atingia as estrelas. Em outra passagem, Ovídio diz: “o

mar, uma hora era alçado a uma altura que equivalia à de uma montanha e deixava

à vista, lá embaixo, os vales e os abismos do inferno”. Outra metáfora aguda é

evocada quando o poeta equipara o choque das ondas contra o casco do navio e a

investida do aríete contra as muralhas de uma fortaleza. O lamento de uma morte

sem sepultura também aparece em outra passagem, quando o poeta diz que um

homem “inveja a morte em terra firme, porque assim poderia ser enterrado”.291 A

imitação, como se pode ver, é cumulativa: não se trata de repetição servil, mas da

mobilização poética de argumentos agudos que, por sua vez, remetem à autoridade

imitada.

Em Agamêmnon, Sêneca investe Euríbades de narrar os infortúnios

marítimos que recaírem sobre as tropas gregas após a guerra de Tróia. A viagem

começa com “aura suave”, sendo as naus conduzidas pelo “mole Zéfiro”. Quando se

afastam da costa troiana,

(...) grave murmúrio, prenhe de ameaças, cai do cimo das colinas

290 VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. Edição organizada por Paulo Sérgio de Vasconcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro terceiro, p. 79. 291 OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Vera Lúcia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003.

Page 111: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

111

e longo tempo as praias e os rochedos gemem; a onda infla agitada aos ventos que vão vir, súbito a lua então se esconde, estrelas caem; nem há somente noite: um denso nevoeiro cobre as trevas e, extinta toda a luz, confunde mar e céu.292

Os ventos interferem, agitando as ondas. Os efeitos são drásticos:

Era de crer que o mundo inteiro era arrancado de suas bases e, aberto o céu, que os próprios deuses despencavam, cobrindo a tudo um negro caos. Resistem ao vento as ondas e o vento de volta as faz rolar; o mar em si mesmo não cabe: aos astros se ergue o pélago, perece o céu e a borrasca e os refluxos mesclam suas águas. Nem este alívio é dado, enfim, às desventuras: ver e saber ao menos de que mal perecem. As trevas lhes oprimem os olhos; do atro Estige faz-se a noite infernal. Chamas caem, porém, e, contraída a nuvem, fulge o raio atroz e aos aflitos, tal é o dulçor dessa má luz, que a pedem. Por si mesma a esquadra se avaria, proas e flancos abalroam-se uns aos outros. Aquele, o mar, ao entreabrir-se, arrasta abaixo, engole-o e num outro mar o regurgita; (...) Nada ousa o senso e a praxe: a arte cede aos males.293

Intervêm, logo, os lamentos dos moribundos, como de praxe:

(...) Pirro inveja o pai, Ulisses, a Ájax, o mais jovem Atrida, a Heitor, a Príamo, Agamêmnon; ao que jaz em Troia, feliz o chamam, quem morrer logrou em luta, quem a fama eterniza e o chão vencido cobre.294

José Eduardo Lohner afirma que a narrativa sobre a tempestade, em

Agamêmnon, é uma mescla de relato trágico e épico, “com o mensageiro assumindo

a posição de um narrador onisciente, cambiando o estilo indireto e o direto, à

maneira da narrativa heroica”.295 Além disso, o autor percebe várias associações

entre as tempestades em Sêneca, Virgílio e Ovídio,296 embora, no caso específico

de Sêneca, ela seja evocada com um sentido muito particular, alegórico,

292 SÊNECA. Agamêmnon. Tradução, introdução, posfácio e notas de José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Globo, 2009, ato III, vv. 466-474, p. 63. 293 Idem, vv. 485-507, pp. 61-63. 294 Idem, vv. 512-516, p. 63. 295 LOHNER, José Eduardo dos Santos. Nota introdutória. In: SÊNECA. Agamêmnon. Tradução, introdução, posfácio e notas de José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Globo, 2009, p. 12. 296 Idem, p. 187.

Page 112: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

112

representando a ira de Clitemnestra contra o esposo. Na esteira de Isabelle Jouteur,

Lohner nota uma tentativa contínua de amplificar, em termos de extensão, a

narrativa imitada, ou seja, os versos de Virgílio superam os de Homero, Ovídio

duplica o número de versos de Virgílio, e Sêneca, conhecedor que era da Eneida e

das Metamorfoses, estende ainda mais o episódio, apresentando-o com um total de

157 versos.297

A tempestade é recorrente também em algumas passagens bíblicas. O

navio no qual viajava Paulo vagava nas proximidades da ilha de Chipre quanto Júlio,

o centurião encarregado da viagem, encontrou uma nau de Alexandria, na qual

colocou Paulo e os outros prisioneiros. A viagem seguiu lentamente, e os ventos

impossibilitaram à nau aportar em Cnido. Assim, costearam a ilha de Creta até

chegar a Bons Portos, nas vizinhanças da cidade de Lasaia. A época não era

propícia para a navegação, e Paulo sabia bem disso, mas não lhe deram ouvidos: o

centurião preferiu escutar os conselhos do piloto e do mestre. O vento estava brando

e, por prudência, continuaram costeando a ilha de Creta, mas não muito tempo

depois uma ventania tomou-lhes de surpresa e, sem poder resistir a ela, o navio foi

arrebatado e arrastado. Temendo encalhar em Sirte, arriaram as velas e

entregaram-se à mercê dos ventos. Devido ao rigor da tempestade, os marinheiros

jogaram fora a carga. No terceiro dia, despojaram-se dos acessórios do navio. Com

a insistência do temporal, muitos perderam a esperança de salvação. Paulo, perante

as circunstâncias, convida-os a adquirir coragem, afirmando que o navio tombaria

sem baixas. Isto lhe foi informado por um anjo de Deus, que apareceu durante a

noite e disse que ele deveria comparecer diante de César. A coragem, portanto, é

invocada com base na fé em Deus. Somavam 14 dias de tormenta. Alguns, temendo

o choque com um baixio, buscaram fugir, mas foram contidos, pois a salvação

dependia da aquiescência e união de todos. Em seguida, Paulo pediu a todos que

se alimentassem e jogassem fora o trigo restante, para aliviar o navio. 276 pessoas

compunham a tripulação. O dia clareou e o navio aproximava-se de uma terra

desconhecida. Os mareantes levantaram âncoras e rumaram para a praia, quando

deram numa língua de terra, ficando a proa encalhada e a popa aberta pela força

com a qual lhe batia o mar. Alguns nadaram, outros rumaram à praia em cima do

tabuado do navio, mas nenhum dos tripulantes pereceu. Haviam chegado à ilha de

297 Idem, p. 188.

Page 113: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

113

Malta. Por sorte, os indígenas que habitavam a ilha eram pacíficos, e o principal da

ilha, de nome Públio, era hospitaleiro, acolhendo-os por três dias. Três meses

depois, os náufragos tomaram um segundo navio, também de Alexandria, que

invernava na ilha. Este navio levava por insígnias os Dióscuros, ou seja, a imagem

de Cástor e Pólux, que ornavam a proa do navio. Deste ponto em diante, a viagem

correu sem grandes problemas.

Há também o salmo 107, em que o rei Davi conta sobre uma tormenta:

Os que se fizeram ao mar nos seus navios, para comerciarem nas grandes águas, esses viram as obras do Senhor, e as Suas maravilhas no alto mar. À sua voz surgem as tempestades, e as ondas se levantam; elevam-se até aos céus e descem até aos abismos, as suas almas desfalecem agoniadas. Oscilam e cambaleiam como ébrios e toda a perícia se desvanece.

Como se pode ver, a movimentação das ondas é descrita com figuras

mobilizadas também nas epopeias, com a diferença de que a amplificação volta-se

para as “obras do Senhor”, e não propriamente para a procela, que é resultado de

Sua vontade.

No século VI foi escrito, com versos hexâmetros, De Actibus Apostolorum

(História Apostólica), do poeta cristão Arátor, que discorre sobre a gesta

evangelizadora dos dois grandes “pilares da Igreja”, S. Pedro e S. Paulo.

Portugueses do século XVI travaram conhecimento com esta obra, como se pode

ver pelo estudo de Aires Barbosa que, em 1516, publicou um comentário detalhado

do poema, acompanhado do texto original.298 Na seção XVII do livro II, o poeta trata

do episódio da tempestade que acometeu Paulo quando ele seguia rumo à Itália:

(...) Logo a quietude do pélago foi quebrada pelos sopros do Euro, e a paz fingida do mar cerúleo embranqueceu em inchadas ondas. Por todo o lado o mar se enfurece e, levantando a sua massa do abismo irado, nega uma rota segura ao navio em apuros, que, elevado até aos astros e daí precipitado, se une ao mar, seguidor da terra e do céu. A mão hábil para a navegação carece da ajuda de uma arte amiga, perdem o ânimo por causa do gélido pavor e, cegos sob o negro nevoeiro, vêem o naufrágio iminente e, nas profundezas cerradas,

298 MANSO, José Henrique. Introdução. In: ARÁTOR. História Apostólica – A Gesta de S. Paulo. Tradução do latim, introdução e notas de José Henrique Manso. Universidade de Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010, p. 13.

Page 114: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

114

aparece a imagem da morte.299

Trata-se de uma versificação dos Atos dos apóstolos e imitação da

epopeia de Virgílio, como nota José Manso, responsável pela tradução do poema.300

Em De Gestis Mendi de Saa (1563), poema atribuído a José de Anchieta,

as metáforas topográficas também foram evocadas, como no momento em que o

narrador afirma que o vento Sul “se atira torcendo em vórtices as ondas/ e sacode

em turbilhões horrendos o mar tenebroso,/ que se enfurece ao peso da borrasca,

ergue em montanha/ as águas turvadas e as lança raivoso às alturas”.301 Na

sequência, alude-se à presença repetida da morte espectral: “o terror invade a todos

e a todos agita. Entra o medo, já tremem de horror e o espectro da morte se agarra

teimoso aos olhos espavoridos da gente”.302 Os tripulantes, chorando “um rio de

lágrimas”, gemiam: “Pai bondoso dos céus e tu, Cristo benigno,/ que nos preparas?

dizei-nos: permitirás que morramos/ no meio das ondas, ó Pai? que sejamos vil

pasto/ dos peixes vorazes”. Em seguida, dizem todos em uníssono: “Vem auxiliar

teus remidos,/ Redentor nosso, não nos trague o negro abismo dos mares”.303 Mais

uma vez é lamentada a morte em alto-mar, em que os corpos sem sepultura se

reduziam a alimento de peixes.

Em Os Lusíadas, o mestre da nau foi o primeiro a notar uma nuvem negra

e a mudança repentina dos ventos. A procela iniciou-se subitamente. O responsável

por ela foi Baco, que pediu a Eolo a intervenção dos ventos. O mestre ordenou o

recolhimento das velas, mas os ventos não esperaram e “em pedaços a fazem cum

ruído que o mundo pareceu ser destruído”. O céu “fere com gritos nisto a gente, cum

súbito temor e desacordo”. O mestre, depois de lançar o alerta e mandar amainar,

pede aos marinheiros para alijarem tudo ao mar e trabalharem nas bombas, pois a

nau estava alagada. Os nautas atendem ao pedido com presteza, mas os “mares

temerosos” os derribaram. A metáfora mobilizada para amplificar a força dos ventos,

desta vez, é bíblica:

299 ARÁTOR. História Apostólica – A Gesta de S. Paulo. Tradução do latim, introdução e notas de José Henrique Manso. Universidade de Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010, Seção XVII, vv. 1071-1081, p. 102. 300 Este tradutor nota, por exemplo, nexos entre um fragmento do episódio da tempestade descrito por Arátor e uma passagem do terceiro livro da Eneida (vv. 564-566). 301 ANCHIETA, José de. De Gestis Mendi de Saa - Poema épico. Introdução, versão e notas do Pe. Armando Cardoso. São Paulo: Edições Loyola, 1986, vv. 2131-2134, p. 187. 302 Idem, vv. 2143-2145, p. 187. 303 Idem, vv. 2166-2181, p. 189.

Page 115: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

115

Os ventos eram tais, que não puderam Mostrar mais força de ímpeto cruel, Se pera derribar então vieram A fortíssima Torre de Babel. Nos altíssimos mares, que cresceram, A pequena grandura dum batel Mostra a possante nau, que move espanto, Vendo que se sustém nas ondas tanto.304

Em outra oitava, a amplificação repete o procedimento metafórico há

pouco aludido:

Agora sobre as nuvens os subiam As ondas de Netuno furibundo; Agora a ver parece que desciam As íntimas entranhas do profundo. Noto, Austro, Bóreas, Áquilo queriam Arruinar a máquina do mundo; A noite negra e feia se alumia Cos raios em que o Pólo todo ardia.305

O quadro trágico estava desenhado e Vasco da Gama, frente às

intempéries, recorre a remédio “santo e forte” e lamenta, como era costume, a morte

em alto-mar:

Vendo Vasco da Gama que tão perto Do fim de seu desejo se perdia, Vendo ora o mar até o Inferno aberto, Ora com nova fúria ao céu subia, Confuso de temor, da vida incerto, Onde nenhum remédio lhe valia, Chama aquele Remédio santo e forte, Que o impossível pode, desta sorte: “Divina Guarda, angélica, celeste, Que os Céus, o Mar e Terra senhoreias: Tu, que a todo Israel refúgio deste Por metade das águas Eritréias; Tu, que livraste Paulo e defendeste Das sirtes arenosas e ondas feias, E guardaste, cos filhos, o segundo Povoador do alagado e vácuo mundo: Se tenho novos medos perigosos Doutra Cila e Caríbdis já passados, Outras Sirtes e baxos arenosos, Outros Acroceráunios infamados,

304 CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Organização, apresentação e notas de Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2008, canto VI, 74, p. 192. 305 Idem, canto VI, 76, p. 192.

Page 116: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

116

No fim de tantos casos trabalhosos, Por que somos de Ti desamparados, Se este nosso trabalho não Te ofende, Mas antes Teu serviço só pretende? Oh! Ditosos aqueles que puderam Entre as agudas lanças Africanas Morrer enquanto fortes sustiveram A santa Fé nas terras Mauritanas! De quem feitos ilustres se souberam, De quem ficam memórias soberanas, De quem se ganha a vida, com perde-la, Doce fazendo a morte as honras dela!”306

Como se pode ver nestas oitavas, além da passagem dos hebreus pelo

Mar Vermelho, Camões faz menção à tempestade bíblica que acometeu Paulo e ao

dilúvio. Com o propósito de amplificar o terror vivenciado pelos marinheiros, o poeta

imita a Eneida e uma ode de Horácio307 ao mencionar os monstros mitológicos e

descrever o movimento das ondas. Vênus foi a responsável pelo abrandamento da

fúria dos ventos, que atacavam a nau como “touros indômitos”.

Que Camões conhecesse a história de Ceix, muito provavelmente a partir

de Ovídio, também não há dúvidas, já que faz alusão a ela:

As Alciôneas aves tristes canto Junto da costa brava levantaram Lembrando-se de seu passado pranto, Que as furiosas águas lhe causaram.

No Naufrágio de Sepúlveda, Corte-Real menciona “tenebrosa, fria e muda

noite”, tomada por um “silêncio geral”, acalentada por “brando vento” e um “rumor

surdo”. A tempestade, também aqui, surge repentinamente. O piloto lê os astros,

manuseia o astrolábio, observa a agulha e faz os cálculos necessários para

descobrir sua localização. Amphitrite, no canto anterior, havia persuadido Eolo a

lançar contra a embarcação de Sepúlveda uma tormenta sem precedentes. O piloto

foi o primeiro a perceber as mudanças do vento e a pressentir o que estava por vir:

tomado por um “intrínseco medo”, ele perde a voz e se empalidece. Após

experimentar esta sensação de temor, ele visualiza um “vulto escuro” que profetiza

306 Idem, canto VI, vv. 80-83, pp. 193-194. 307 De acordo com Maria Helena Rocha Pereira, os versos “Doutra Cila e Caríbdis já passados,/ Outras Sirtes e baixos arenosos” emula os versos 302 e 303 da Eneida, e o verso “Outros Acroceráunios infamados” imita as Odes (I, 3) de Horácio. Ver: PEREIRA, Maria Helena Rocha. A tempestade marítima de “Os Lusíadas” – Estudo comparativo. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987.

Page 117: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

117

males e “mil calamidades e misérias”. O piloto, horrorizado, observa novamente o

céu estrelado, e contempla, nas estrelas, os sinais do mau presságio:

Três dias havia já que o grão Filésio Com perfulgentesraios ilustrava O feroz animal que em grave angústia A Fenícia deixou com roubo estranho, Quando a soberba nau falta de velas (Mas ah muito mais falta de ventura!) Teve vista da costa donde o cabo De Esperança tem nome, inda que incerta. Ali os soberbos ventos desmandados, Correndo sem concerto a todas partes, Se arremessam no mar e de alto a baixo O revolvem com fúria num momento. Cobre-se o céu de grossas, negras nuvens, Os ventos mais e mais cad’hora crescem; Já se escurece o céu, já com soberba, Inchadas, grossas ondas se levantam. A nau começa já a passar trabalho, Já começa a gemer e em tal afronta O apito soa, brada o mestre, acodem Com presteza varões no mar expertos. Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo, Levanta lá no céu furiosas ondas; Austro bramando corre ali com fúria, Dando um balanço à nau que quase a rende; Vem com grande furor Bóreas raivoso, Comete por d’avante, o passo impede, Encontra as grande velas e, por força, Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa. Rompe-se por mil partes o céu e arde Em ligeiro, apressado, vivo fogo. Um rugido espantoso vai correndo Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto. Arremessam-se lanças pelos ares De congelada pedra em água envolta Com espantoso ímpeto e, rasgadas, As densas, negras nuvens raios cospem. De um golpe, as velas vêm todas abaixo. Colhem-nas com trabalho e afronta imensa. O forte marinheiro, ainda que ousado, Do evidente perigo sua e treme. Já nas pontas de mil fragosas serras A nau se mostra alçada, e já sumida Em vales profundíssimos parece Cobrir-se de altos montes de água grossa. Áquilo, Noto e Euro com braveza Contra a mísera nau todos se esforçavam, Das espantosas ondas levemente Aqui e ali a deitam e afadigam.308

O uso da prosopopeia em relação à nau e aos ventos amplifica o trabalho

e as misérias por que passaram os nautas: 308 CORTE-REAL, Jerónimo. Poesia. Introdução, selecção, fixação de texto e notas de Hélio J. S. Alves. Braga/Coimbra: Angelus Novus, 1998, vv. 201-248, pp. 117-118.

Page 118: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

118

A nau afadigada, abalançando-se De ua para outra parte, arranca e quebra Três encurvados ferros dos que o leme Co’a popa ajuntam, cosem, prendem e ligam. Vem Subsolano, indómito e furioso, Com espantoso cenho e vista horrível. Com grande ímpeto chega, leva e rompe A vela com que a nau se sustentava. Grita o piloto: “Arriba, arriba, cerra!” E lança o leme à banda, mas isenta Não lhe obedece a nau, nem dá por ele, E já quase rendida se atravessa. Acodem (mas em vão) piloto e mestre, Acodem marinheiros e, tombando Uns por cima dos outros sem poder-se Suster nem dar remédio, se maltratam. Noto com grande fúria ali arremessa Três poderosas ondas, dão-lhe em cheio, Rompem, quebram, destroçam e ao mar deitam Os fortes, proveitosos aparelhos.309

Os ventos continuam com suas investidas:

Estando em tal afronta, chega o bravo Áfrico com rosto horrendo; encontra e fere, Com incrível força o grosso mastro Que para o resistir cuida estar firme. Dá-lhe um pesado golpe e nas enxárcias Um zunido espantoso se levanta. A seca árvore brada e já rendida Deixa-se vir abaixo feita em rachas. A gávea e mastaréu que toca as nuvens, Olhando com desprezo os cá de baixo, A sua presunção, antes altiva, Humilde está debaixo já das ondas. Traz Áquilo cruel, com força imensa, Valentíssimas ondas espantosas; Umas sobre outras caem, o fero as força Que com ímpeto e fúria se embraveçam.310

É comum, também, o uso de símiles para caracterizar a amplitude da

tormenta, que se torna ainda mais eficaz com o uso de metáforas topográficas:

Como quando se vê, por estendido Campo, grão multidão de grossas reses E outros rebanhos mil de simples gado, Fugindo, com clamor alto e tristonho, Da fúria com que o rio, inchado e solto, Por grandes invernadas vem cobrindo Com grande estrondo d’água turva o campo, Levando com rigor tudo o que alcança, Empuxando-se vão, pelo castigo

309 Idem, vv. 261-280, pp. 118-119. 310 Idem, vv. 285-300, p. 119.

Page 119: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

119

Que o seu guardador rústico, afrontado Do perigo evidente, com voz alta E com duro aguilhão dá se atrás ficam; Assim as soberbas ondas, constrangidas Da força e do poder de Áquilo, bramam. Tornadas em medonhas, altas serras, Ameaçam esta nau triste e infelice. O grão Bóreas raivoso ao céu levanta Ua terrível onda, e com medonho, Espantoso e cruel semblante, afronta A nau rendida já ao vento imigo. Dá-lhe na popa em cheio, quebra e rompe, Desfaz e arromba o leme, e lá por cima Dos soberbos castelos, se arremessa Ao grão convés e nele deixa um lago, Onde a mesquinha, fraca, inútil gente Quase afogada ao céu grita, dizendo: “Ó poderoso Deus! Ó pai piedoso! Ah senhor, ah senhor, misericórdia!”311

Na sequência, o poeta mobiliza a tópica da “comoção de feras” para dar a

ler o caráter lastimoso do episódio:

O mísero espetáculo infelice, Bastante a demover hircanos tigres, Ver femininos gritos que apressados Com acento afligido os ares rompem. A nau sumida torna a oferecer-se Ao trabalho e perigo de outro encontro. Mostrando ali outra vez a submergida Proa, dentro no mar a popa esconde.312

Eolo, movido pela cólera, vai até o local da tormenta e cobra dos ventos

maior eficácia, fazendo, como é costumeiro em exemplares do gênero épico, um

discurso que apela para a vaidade dos ventos e para a ousadia dos nautas:

[...] “Sempre a força Das portuguesas naus ficará firme E com tanta soberba, desprezando De Neptuno o poder e o meu, se alarguem Por mares profundíssimos que desta Forte nação só foram navegados? Não posso já sofrer tantas injúrias, Quais esta belicosa, forte gente Me faz cada momento!” Tais palavras Soltando Eolo, aos ventos assim disse: “Apartai-vos, ó fracos, desta empresa, Pois que tanto vos dura ua nau fraca. I mover com brandura os verdes ramos Dos álemos frondosos e altas faias. Um murmúrio formai neles suave

311 Idem, vv. 301-328, p. 120. 312 Idem, vv. 329-336, pp. 120-121.

Page 120: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

120

E recreai com brando, fresco assopro Os acesos ardores do molesto, Intolerável, duro, seco Estio. Dai a honra de tal feito a quem justos E devido lhe são casos maiores”.313

Após esta arenga, os ventos recobram seu vigor e, com fúria e força,

arrancaram da tripulação gritos e clamores que “até às estrelas chegam”.

Em A Conceição, poema de Tomás António Gonzaga do qual resta-nos

apenas fragmentos, uma nau portuguesa passa por apuros quando Vênus, que

neste caso coloca-se contra a empresa lusa, pede que Eolo intervenha com um

temporal. Ela oferece ao “rei potente” nove ninfas. No entanto, contrariando a oferta,

o rei diz que não são necessários presentes para que devote à deusa obediência.

Ainda assim, ele aceita uma das ninfas, da escolha da deusa, não como paga pelo

serviço, mas com o propósito de estreitar os laços de amizade entre eles. A deusa

oferece-lhe Danopéia e, quando tenta narrar a afronta dos portugueses, Eolo a

interrompe, dizendo que o ocorrido não lhe interessa porque não é juiz, cabendo-lhe

tão somente executar o que lhe é mandado. Vênus agradece e deixa clara a sua

sede de vingança, a ser executada com vagar. O rei move o cetro, rompe um

penedo e libera Noto, que sai bramindo furioso. Ordenado a cumprir as ordens de

Vênus, este vento segue em seu encalço rumo ao Brasil, até avistar a nau. Noto

(...) alarga, e enche as rugosas bochechas; curva o corpo, põe na cintura as mãos: respira, e sopra. As águas pouco a pouco se encapelam; e dentro em pouco tempo está formada a tormenta medonha. O bom piloto, aocatavento firme, agora manda que o leme se alivie: agora ordena que se meta de encontro. Os joanetes e mais as grandes gáveas já se arriam para assim se quebrar do impulso a força.314 Uma onda se levanta mais crescida e se deixa cair com toda a força na proa do navio. O grande beque depois de levantar-se sobre as nuvens desce ao profundo inferno: já vem outra mais forte que a primeira, nele bate, e o grande beque treme: já se enrolam a terceira, e a quarta, e não podendo

313 Idem, vv. 351-370, p. 121. 314 GONZAGA, Tomás Antônio. A Conceição: O Naufrágio do Marialva. Transcrição, introdução e notas de Ronald Polito de Oliveira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995, vv. 164-174, pp. 203-204.

Page 121: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

121

o beque resistir a tanta força um grande estalo deu e fez um rombo apesar das cavilhas, que o sustentam.315

A personificação dos ventos e a descrição das ondas são novamente

evocadas, desta vez emulando a epopeia lusíada.

Os relatos de naufrágio mobilizam muitos dos lugares comuns que

referimos. A experiência de “ver a morte diante dos olhos” a cada perigo que

ameaça a integridade da nau foi evocada no prefácio do relato de naufrágio da nau

Conceição, publicado na primeira metade do século XVII:

Não há coisa mais pesada de levar, e horrível para temer, do que a morte, como bem disse o Filósofo Aristóteles, e ainda melhor nos ensina a experiência; porém com boa licença do Filósofo, e da mesma experiência, o medo da morte ainda parece que é pior que a mesma morte, como da guerra diz o provérbio, que é pior o medo da guerra imaginada que experimentada: a razão disto é, porque a morte levada em realidade, nunca é mais que uma só; e morrer uma só vez é dita, como disse Sêneca, mas a morte imaginada na imaginativa por repetição de medos, é morte muitas vezes repetida. Este entre outros males trás consigo o naufrágio, porque quantas ondas conspiram contra a embarcação, tantas mortes bebe o naufragante: e por isto é pior castigo a morte muitas vezes temida, que uma só vez sofrida, como bem disse S. Jerônimo, e em consequência desta verdade, diz o mesmo Santo, que merecendo Caim muitas mortes pela que deu a seu irmão Abel, lhe pôs Deus um final para o não matarem, e diz que isto mais foi lanço de justiça, que efeito de misericórdia, porque ainda que o não quis matar, deixou-lhe medo contínuo, para que cuidasse que todos o queriam matar; e lançadas bem as contas, maior castigo era o medo da morte repetida muitas vezes na imaginação, que padecia uma só vez por efeito. Não há em toda a natureza espetáculo mais horrível, que um miserável naufrágio, quando indo os passageiros mais descuidados, entregues à liberdade das ondas, se vem de improviso assalteados de uma horrenda tempestade, ou de algum repentino tufão, no qual os ares, e os mares, os raios, e os coriscos, e o Mundo todo parece que se conjura, e conspira em perdição dos tristes navegantes, obrigando-os com a fúria do temporal a dar com a nau em través, e a desfazê-la em rachas, entre infames cachopos. A vista de tão lamentável sucesso, e de tantas representações de morte desastrada, se podem chamar três, e quatro vezes bem-aventurados os que morrerão à força do ferro violento em terra, e não entre as ondas furiosas no mar irado; porque aqueles morrem uma só vez, e acabam depressa, como dizia Epaminondas; porém os que acabam em algum naufrágio quantas ondas os não matam, tantas lhe dilatam a vida, para os matar com a mesma vida, que para eles é morte prolongada. Pelo que contarei um lastimoso Naufrágio do número daqueles, com que os nossos Portugueses fizeram célebre o mar Oceano: e porque Diogo de Couto na sua Sétima Década, e Francisco de Andrade na Vida del Rei D. João o III tocam brevemente, e ele tem muito que contar pelo que nos pertence por razão dos nossos três Padres da Companhia de Jesus, que nele acabaram, o quero aqui referir mais por extenso.316

315 Idem, vv. 188-198, p. 204. 316Esta versão não corresponde à que Brito coletou. Ver: RANGEL, Manoel. Relação do lastimoso naufrágio da nau Conceição chamada Algaravia a nova de que era capitão Francisco Nobre a qual se

Page 122: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

122

Embora seja imprecisa a data de publicação deste relato, sabe-se, ao

menos, que é posterior a 1616, devido às obras que nele são mencionadas (a Vida

do rei D. João III, de Francisco de Andrade, foi escrita em 1613, e a Década Sétima

de Diogo de Couto foi publicada em 1616). Para o narrador, a ameaça da morte e o

medo de sua consecução causam mais lástima do que a morte em si, que não

ocorre mais de uma vez. Ao valorar a morte “à força do ferro violento” em detrimento

daquela ocorrida “entre as ondas furiosas no mar irado”, ele utiliza a tópica da morte

no mar. O narrador do relato de naufrágio da nau Santa Maria da Barca mobiliza o

mesmo argumento, quando reproduz o discurso de um dos marinheiros: “bem viam

que melhor era morrer às lançadas que morrer afogado”.317

O uso de metáforas topográficas também é recorrente, como se pode ver

no relato de naufrágio da nau São Paulo:

aos oito de junho tivemos tanta trovoada com tanta água com que os mares foram em tanto crescimento, tão alterados e de levadia, vindos todos do sul, que a nau trabalhava muito, e metia de popa a proa de maneira que cada vez que caía parecia de uma alta torre e que se queria sepultar nos abismos.318

Em outro momento, o narrador amplifica a iminência da morte ao dizer

que estavam metidos num “pau podre, tão perto da morte (segundo a resposta do

Filósofo sobre os que navegam) como a grossura da tábua da nau sobre que

vão”.319 Na sequência, ele diz:

Os mares eram tão grandes, tão altos, como altíssimas torres, tão furiosos e soberbos, que parece graça querer pintar e escrever o que se não pôde crer senão de quem o viu e passou; pois é como do vivo ao pintado, porque como pode nenhum engenho, por mais sutil, delgado e agudo que seja, segurar ou pintar uma tempestade destas, em que acontecem mil desastres e mil invenções de trabalho?320

perdeu nos baixos de Pero dos Banhos em 22 de Agosto de 1555. Lisboa: Oficina de Antônio Alvarez, s/d. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasraras/or639510/or639510.pdf. Acesso em março/2013. 317 Idem, p. 175. 318 BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores/Contraponto Editora, 1998, p. 197. 319 Idem, p. 206. 320 Idem, p. 210.

Page 123: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

123

Henrique Dias amplifica os tormentos causados pela tempestade ao

mencionar que mesmo um pintor/narrador engenhoso seria incapaz de retratá-

los/descrevê-los com verossimilhança. Após assumir esta postura de modéstia

afetada, o narrador continua a descrever a tormenta:

Assim que os mares, pela antiga contenda que entre eles e os ventos há, de que por derradeiro são vencidos e domados, andando já levantados da noite passada, se incharam e ensoberbeceram de maneira que pareciam mui altíssimas torres, fazendo uns vales entre onda e onda, de tanta baixeza e profundidade que a cada cair da nau parecia cair nos abismos e quererem-na engolir e sorver enfim de todo.321

Há outra passagem em que fica nítida a emulação de uma das

tempestades da Odisseia:

tão seguro ia buscar a terra, como que ele fora tão justo que lhe fora mandado e concedido de Deus ter os ventos tanto de sua mão e de sua parte, e metidos no odre, como as fábulas fingem, para poder usar deles e tirar da manga cada vez que quisesse os ventos da terra, nortes e nordestes, e não alguns ponentes e travessões, que nos destruíssem e dessem conosco à costa; e assim, ajuntando-se nossas culpas e pecados com sua muita soberba, caímos do Céu como Lúcifer.322

Em seguida, Henrique Dias imita Cícero: “em todas as fortunas e males

muito mais miserável cousa é o vê-los e passa-los que ouvi-los ou conta-los”.323 Em

outro momento, à maneira de Jerônimo Corte-Real, Dias desloca a tópica da

comoção das bestas, afirmando que a cena trágica comoveria homens criados entre

tigres da Hircânia e/ou alimentados pelo leite de víboras. Há, por fim, a citação do

salmo 106, do profeta Davi, ao final do relato:

Os que descem ao mar nas naus, fazendo operações nas águas muitas, esses viram as obras do Senhor e as suas maravilhas no profundo. Determinou, e veio logo o espírito da tempestade e levantaram-se suas ondas, e sobem até os Céus e descem até os abismos, e as suas almas em tais trabalhos pasmaram, turbaram-se e moveram-se, e como alienados do siso, pereceu todo o seu saber. E nisto chamaram ao Senhor quando estavam atribulados, e de todas as suas necessidades os livrou, e tornou a tempestade em um vento fresco e suave e abrandaram as ondas do mar; alegram-se porque cessou sua fúria; e enfim os pôs no porto de seu contentamento.324

321 Idem, pp. 219-220. 322 Idem, pp. 225-226. 323 Idem, pp. 229-230. 324 Idem, pp. 258-259.

Page 124: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

124

A comoção das bestas é mencionada em outro relato, desta vez para

aludir aos tormentos decorrentes de uma peregrinação por terras “bárbaras”:

Um dia tão ricos e contentes, indo fazendo sua viagem com uma nau tão potente, tão rica e cheia de louçainhas, e ao outro sumir-se-lhes debaixo dos pés e ir-se entesourar tudo nas entranhas do mar. Que mais lastimoso apartamento de amigos que o que viram estes, deixando-os por aquelas praias acabando seu termo, em outra consolação e companhia que a solidão daquelas bárbaras areias? Que mais incerta peregrinação que esta que por aqui vão fazendo, vendo-se cada hora em tantos riscos e perigos, e tudo, enfim, por esta maneira tão lastimoso que por se aquelas areias houvera tigres e leões, certo que se puderam compadecer mais deles do que o fizeram daquele escravo Androdo, a quem um leão em África sustentou tantos tempos em uma cova, por estar manco com um estrepe metido por um pé, o qual lhe o leão tirou, e lambendo a chaga com sua língua, o sarou.325

Há, ainda, menções a tormentas bíblicas, como no relato de naufrágio das

naus Águia e Garça: “fez uma tão grande tempestade de vento e chuva que parecia

acabar-se o mundo e soverter-se a terra com outro segundo Dilúvio”,326 e a

representação da “morte diante dos olhos”, como nos relatos de naufrágio da nau

São Tomé (“tudo quanto viam lhes representava a morte”327) e da nau Santiago (“A

grita e a confusão da gente era grandíssima, como de homens que se viam sem

nenhuma esperança de remédio, no meio do mar que bramia, com a morte diante

dos olhos, na mais triste e horrenda figura que imaginar se pode em nenhum dos

naufrágios passados”328).

Outros textos mais ou menos contemporâneos aos relatos de naufrágio

utilizam estes lugares comuns, como é o caso da carta que o padre Fernão da

Cunha envia aos padres e irmãos do colégio de Évora em 1562, ressaltando a

grande dimensão das ondas (“As ondas eram tão grandes que pareciam tocar no

céu, outras que desciam aos infernos”), a grandiosidade da tormenta (“dizia o piloto

que dezenove vezes passara esta carreira, mas que não se lembrava de ter visto

coisa semelhante, posto que havia visto outras mui grandes”) e a associação entre a

tempestade e a ação demoníaca (“O vento era tão grande que não havia quem se

pudesse ter direito e que os mesmos demônios vinham com ele e chuveiros tão

escuros que pareciam o mesmo inferno, e assim as mais cousas”). A amplificação

das ondas é novamente evocada em uma relação de viagem anônima (“E o mar 325 Idem, p. 366. 326 Idem, p. 137. 327 Idem, p. 345. 328 Idem, p. 302.

Page 125: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

125

inchou de tal modo que parecia que subíamos ao céu”) e em uma carta do padre

Didacus do Soveral, datada de 1554 (“ondas tão grandes que pareciam serras mui

altas, tão brancas como neve e muitas vezes pareciam mais altas que o mastro”).

Há, ainda, a carta do padre Manuel Álvares aos confrades de Coimbra, de 1562, que

atribui vida à embarcação (“a nau arfava muito, e tomava muita água”) e assinala a

distância entre a narrativa e o ocorrido (“É mui diferente contar isto e vê-lo como

passou”).329

Os lugares comuns percorrem os séculos e atravessam mares para

chegar até nós, por intermédio de diferentes gêneros discursivos. A licença destes

narradores é convencional e limitada, porque atende aos preceitos retóricos e

poéticos edificados, por exemplo, para o tratamento de tempestades. A história é

tempo e destruição. Sua matéria é, por excelência, a contingência, a mudança. Esta

é uma das razões por que a melancolia de Camões e dos narradores de naufrágio

continuam a comover, já que somos mortais e reconhecemos a inevitabilidade da

angústia, da tragédia, do sofrimento ou, como diria Camões, dos desconcertos do

mundo. Vasco da Gama sofreu, os náufragos sofreram e também nós sofremos. Ao

final, o que resta-nos? Letras e ruínas: palavras proferidas e registradas para

descrever o que outros já presenciaram ou poderiam presenciar. Afinal, não era este

o sentido da escrita: orientar os pósteros através de um (nunca finalizado) castelo de

memórias? Enquanto o tempo passar, memórias novas vão surgir. Mas a história

não é mais o que foi até o século XVIII, tampouco a poesia. Aproximamo-nos dos

homens dos séculos XVI e XVII porque continuamos a encarar a finitude, mas nos

distanciamos por ter conferido outro sentido à escrita (histórica e/ou poética),

atribuindo-lhe outras finalidades. Àquela época, textos remetiam a outros textos, que

por sua vez remetiam a outros, num processo cumulativo a partir do qual se conferia

sentido às coisas do mundo, inclusive à tragédia. Muito do que se concebe como

melancolia em Camões foi, antes, melancolia homérica. Muitos que ouvem a grita da

marinhagem portuguesa estão ouvindo, também, ecos do desespero troiano. Muitas

das aparições da morte que acometeram os nautas são colhidas de passagens

bíblicas. O leitor não peca ao supor que, nos séculos XVI e XVII, devido aos

naufrágios e demais infortúnios, havia angústia e melancolia. Ele peca ao entender

que estas tópicas afloram ou ganham sentido somente ali, enquanto desdobramento

329 Cf. LOPES, Paulo. O Medo do Mar nos Descobrimentos – Representações do fantástico e dos medos marinhos no final da Idade Média. Lisboa: Edições de Livros e Revistas, 2009, pp. 193-202.

Page 126: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

126

de uma “crise” que disseminava pessimismo. As tempestades, mesmo as históricas,

são tipificadas e, portanto, devem ser tratadas como tal. Só é possível medi-la a

partir das medidas inventadas pelos narradores e poetas e, levando-se em

consideração os procedimentos artísticos da época, a medida é feita com os olhos

voltados para a tradição.

O Cabo das Tormentas e as tragédias marítimas

Américo da Costa Ramalho, em estudo de 1975, afirma que Camões foi

muitas vezes acusado de não dominar com propriedade o grego, por ter atribuído ao

gigante o nome “Adamastor”, e não “Damastor”, termo este que aparece na

Gigantomaquia, do poeta romano Claudiano. No entanto, Sidónio Apolinar,

contemporâneo de Claudiano, utiliza o termo “Adamastor”, bem como dicionários

latinos do século XVI.330 Para Ramalho, este gigante anuncia (ou prenuncia) os

naufrágios da História Trágico-Marítima, “série de catástrofes devidas a causas

diversas, que foram para os Portugueses como que o preço da glória que iam

conquistar por mares nunca dantes navegados”.331

Tratar-se-ia, como queria Fernando Alves Pereira, de um “desvio do

gênero épico”, que “contradiz a natureza épica ao condenar as ações dos

navegadores e ao vaticinar os nefastos destinos dos heróis, cuja ousadia é

sublimada mas ao mesmo tempo condenada”?332 De acordo com este autor, os

sinais de pessimismo e mau augúrio que presidem a fala do velho do Restelo são

acentuados pelo gigante, espécie de “hipérbole”, portanto, do excerto que encerra o

canto IV. Adamastor, no caso, precisa as catástrofes apenas implicadas no discurso

do velho do Restelo, como já haviam constatado Hernâni Cidade e Jorge de

Sena.333

De acordo com Massaud Moisés, o episódio em questão contém a

“mitificação das dificuldades que a Natureza opunha à penetração lusa ‘por mares

nunca dantes navegados’ e do seu malogro ante a impavidez dos nautas

330 Ver: RAMALHO, Américo da Costa. Estudos Camonianos. Coimbra: Instituto de Alta Cultura – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1975, pp. 33-40. 331 Idem, p. 43. 332 PEREIRA, Fernando Alves. Uma leitura dos excursos n’Os Lusíadas. Dissertação de mestrado. Natal: Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2005, p. 127. 333 Idem, p. 124.

Page 127: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

127

quatrocentistas”.334 Adamastor anuncia profeticamente os infortúnios que recairiam

sobre os portugueses que ousassem trafegar uma nova rota marítima de acesso à

Índia. Para Bianca Morganti, trata-se de uma fábula repleta de ekphrasis que

recobrem o episódio de uma atmosfera tensa e patética.

Ao tratar de personagens presentes em peças alegóricas, David Quint

discorre sobre a figura do Gigante Adamastor.335 Após uma breve introdução, o autor

recorda que um dos pressupostos adotados pelo poeta “moderno” foi o de promover

a invenção poética sem se desvencilhar da matéria histórica. Em seguida,

discorrendo sobre o artifício da emulação, o autor menciona uma possível

aproximação entre Adamastor e o ciclope Polifemo, indicando várias similitudes

descritivas adotadas por Homero e Camões. Quando à descrição da figura do

gigante camoniano e de seu “passado”, Quint afirma que existem lugares comuns

presentes nas Metamorfoses de Ovídio e em algumas éclogas de Virgílio. Conclui,

assim, que Camões combinou toda uma sorte de representações antigas de

Polifemo para esboçar a figura de Adamastor. O autor chega a considerar, inclusive,

uma possível conotação entre a atitude de Dido, personagem da épica de Virgílio, e

Adamastor, sobretudo no que se refere às imprecações vaticinais de ambos.

A associação entre figuras mitológicas não era desconhecida pelos

críticos camonianos dos séculos XVII-XIX. O censor José Agostinho de Macedo

afirma que Camões teria “furtado” a ideia matriz do gigante Adamastor de Lucano.

Ele descreve uma sucessão de analogias que supostamente comprovariam o roubo,

e todas elas são avidamente recusadas por Saraiva, que acusa Macedo de estar

inventando analogias para detratar o poeta. Para tentar diminuir o engenho

camoniano, Macedo afirma que o poeta emulou Ariosto, quando este descreveu a

figura de Brunel no seu Orlando Furioso.336 Segue o fragmento:

Sabe que nem seis palmos de estatura Tem ele, a fronte crespa e cabeluda, Morena a pele, a cabeleira escura, Pálida a cara, por demais barbuda, Olhos inchados, turva a catadura, Chato o nariz, a celha mui peluda, E o trajo, porque a imagem saibas toda,

334 MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 92. 335 QUINT, David. Epic and Empire: politics and generic form from Virgil to Milton. Princeton: Princeton University Press, 1992, p. 99. 336 MORGANTI, Bianca. A Mitologia n’Os Lusíadas – Balanço Histórico-Crítico. Dissertação (Mestrado). São Paulo: IEL/Unicamp, 2004, pp. 111-115.

Page 128: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

128

Estreito e curto, de correio à moda.337

Saraiva discorda, assegurando que Brunel não era um gigante, tampouco

tinha o semblante parecido com o de Adamastor. No entanto, a emulação não seria

de todo impossível, a começar pelas similitudes: a “fronte crespa e cabeluda” de

Brunel e os cabelos crespos de Adamastor; os “olhos inchados” do primeiro e os

“olhos encovados” do segundo; a cara “por demais barbuda” da personagem de

Ariosto, e a “barba esquálida” da figura camoniana; a cara “pálida” de Brunel e a cor

“pálida” de Adamastor. Por outro lado, há que se considerar, também, que Camões e

Ariosto adotam a etopeia como procedimento do retrato epidítico, o que faz com que

o leitor “visualize” melhor o ethos das personagens mencionadas.

É muito apropriado o paralelo entre Adamastor e Polifemo, não apenas

devido aos aspectos destacados por David Quint, mas também em razão de outras

analogias possíveis de serem observadas, quando nos atentamos para a emulação

camoniana da Eneida. No terceiro livro desta epopeia, Enéias desembarca na terra

dos Ciclopes e encontra um dos antigos companheiros de Ulisses, de nome

Aquemênides, filho de Adamasto.338 Também neste livro, o grego acima referido

narra os infortúnios de Ulisses e de seus homens perante a figura assombrosa de

Polifemo, “monstro horrendo, disforme, desmedido”.339 Se voltarmos à descrição de

Adamastor como figura “robusta”, “disforme” e de “grandíssima estatura”, notaremos

a aproximação entre os termos utilizados. Não é curioso que a personagem

camoniana, cuja descrição remonta, em vários aspectos, à estatura do ciclope

homérico/virgiliano, apresente o nome de um grego referenciado justamente no

momento em que Enéias é alertado/prevenido sobre a história do ciclope Polifemo?

Em Ovídio, as descrições de Polifemo de fato assemelham-se ao perfil de

Adamastor. De acordo com a ninfa Galatéia, o ciclope apresentava um “rosto feio” e

hábitos horrendos, como os de se barbear com uma foice e se pentear com um

ancinho. Quando devotou seu amor à ninfa, ele abandonou o seu instinto assassino.

Na canção de Polifemo descrita por Ovídio, a personagem tece um elogio à amada,

pintando também sua conduta áspera que impedia o romance de ambos. Por fim, o

gigante enumera tudo aquilo que poderia oferecer à Galatéia, chegando a louvar até 337 ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso: cantos episódios. Tradução, introdução e notas de Pedro Garcez Ghirardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, canto III, estrofe 72, p. 110. 338 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro terceiro, p. 97. 339 Idem, livro terceiro, p. 98.

Page 129: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

129

mesmo o seu aspecto: “veja como sou grande”, exclama com orgulho. Como fez

também na Odisseia, Polifemo se vangloria alegando a suposta inferioridade de

Júpiter, que provavelmente não o excederia em tamanho e força. O ciclope diz, por

fim, que a ninfa ganharia também um sogro portentoso: Poseidon, responsável pela

tempestade arremessada contra a embarcação de Ulisses na Odisseia. Como se já

não bastasse, Ovídio retrata, ainda, a voz “forte e terrível” do grotesco Polifemo,

quando ele “ruge de raiva” e ataca o pretendente de Galatéia, Acis.340 Ovídio e

Camões utilizam a écfrase para gerar efeitos visuais e sonoros.

Não seria estranho, por fim, que a transformação de Adamastor em um

rochedo como punição pelas suas transgressões se equiparasse à transformação de

Atlas em um rochedo, devido à investida de Perseu que, em posse da cabeça da

Medusa, pune o titã pela falta de hospitalidade e pelo desprezo perante suas glórias

e a glória de seu pai, Júpiter.341 O episódio era conhecido por Camões, que se refere

a ele na última estância de sua epopeia.342

O tipo gigante:

Ao ultrapassar as dez valas que integram o oitavo círculo do Inferno,

Dante avista o que parecia ser um conjunto de torres altas e grandiosas:

e tal como na cerca arredondando Montereggion de torres se coroa, assi, do poço a margem circundando, torrejava metade da pessoa dos horríveis gigantes que ameace Jove do céu ainda quando troa.343

Montereggion é uma das 36 comunas italianas da Província de Siena,

situada na região da Toscana. Dante evoca a imagem das torres que “coroam” esta

comuna para remeter-se aos titãs fulminados por Zeus, que estavam agrilhoados em

poços congelados e obstruíam a passagem do oitavo para o nono círculo do Inferno.

Quando avista Nemrod, um dos gigantes acorrentados, Dante compara sua face ao

340 Ver: OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003, livro treze, pp. 277-280. 341 Idem, pp. 89-90. 342 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofe 156, p. 325. 343 Inferno, XXXI, 40-45, 279.

Page 130: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

130

“pino de S. Pedro em Roma”.344 A construção mencionada não corresponde à

estrutura da atual Basílica de São Pedro, que começou a ser edificada na primeira

metade do século XVI. É impossível restituir por completo a bagagem cultural que

compõe o mundo do poeta, mas Dante consegue amplificar o porte físico da

personagem com uma analogia arquitetônica, ainda que o leitor não consiga

formular um retrato preciso do edifício em questão.

Em outro momento, quando o gigante Anteu ajuda Dante e Virgílio a

chegar à entrada do nono círculo, o poeta utiliza outra analogia, desta vez para

descrever o movimento da enorme criatura:

Tal como se afigura a Garisenda, quando passa uma nuvem, inclinada, de modo tal que ao seu encontro penda, me parecia Anteu, na atenção dada a vê-lo a inclinar-se e foi nessa hora quem bem quisera eu ir por outra estrada.345

A torre Garisenda, com aproximadamente 47 metros de altura, encontra-

se ao lado da Torre degli Asinelli, com seus quase 98 metros. As Duas Torres, forma

corrente de designá-las, foram construídas na Bolonha, Itália, no século XII.

Garisenda conta com mais de 3 metros de inclinação, o que justifica a analogia entre

ela e a figura curvada de Anteu. Talvez para amenizar uma metáfora muito

rebuscada, o poeta tenha adotado a similitude “tal como” para trabalhar com um

efeito hiperbólico. Longino, valendo-se da autoridade de Aristóteles, afirma que a

adoção do “como se” ameniza um possível atrevimento por parte do poeta e suaviza

a metáfora, evitando, por exemplo, o empolamento do discurso.346 Ao discorrer

sobre a ekphrasis enquanto exercício de eloquência, Hansen afirma que o “como se”

empregado pelo autor (que exerce um efeito análogo ao “tal como”) é fundamental

na ficcionalização da enargeia, da “vividez”, pois o “autor finge transferir para a

enunciação do narrador uma imagem pictórica com que compõe o enunciado como

se efetivamente fizesse as passagens entre pintura e discurso”.347

344 Inferno, XXXI, 59, 279. 345 Inferno, XXXI, 136-141, 283. 346 LONGINO. Op. cit., p. 100. 347 HANSEN, J. A. As categorias epidíticas da ekphrasis. In: Revista USP, 2006, n° 71, p. 87.

Page 131: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

131

A hipérbole é uma figura de linguagem que expressa uma ideia de forma

exagerada. Podemos encontrar outro exemplo desta figura no canto V d’Os

Lusíadas, quando o poeta descreve as feições do gigante Adamastor:

Tão grande era de membros, que bem posso Certificar-te que este era o segundo De Rodes estranhíssimo Colosso, Que um dos sete milagres foi do mundo, Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso, Que pareceu sair do mar profundo. Arrepiam-se as carnes e o cabelo A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!348

A comparação entre o Adamastor e o Colosso de Rodes, uma das sete

maravilhas do mundo que chega a medir trinta metros de altura, amplifica a estatura

do gigante camoniano. Hansen afirma que o uso de períodos compostos e extensos,

com muitas orações longas, é “condição para a abundância da magnificência”.349 Na

estrofe acima, além de descrever a grandiosidade do Cabo das Tormentas através

da figura da prosopopeia, Camões demonstra a reação aterrorizada dos nautas

frente à sublimidade do retrato poético. Através dos monumentos evocados, Dante e

Camões evidenciam350 ao leitor o porte físico dos gigantes e a intensidade da

surpresa dos protagonistas ao se depararem com estas criaturas.

O titã de nome Efialtes causa em Dante um assombro quase indescritível:

Não foi tremoto tão duro e funesto, sacudindo uma torre assim tão forte, como Efialto a sacudir-se presto. Então temi mais do que nunca a morte, e bastava o terror, se à fera bruta eu não vira cadeias de tal sorte.351

O protagonista teme pela sua vida e descreve, com muita agudeza, o

terror que o envolve.

348 Os Lusíadas, V, 40, 155. 349 HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (Org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 81. 350 Para Cícero, evidentia corresponde ao ato de colocar a coisa descrita “como que diante dos olhos”. Longino, ao discorrer sobre a noção de sublime, adota o termo enargeia num sentido similar, tratando-se do objetivo dos oradores, que deveriam comover e convencer os seus leitores. Ver: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 20. 351 Inferno, XXXI, 106-111, p. 281.

Page 132: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

132

Depois de chegar ao nono círculo infernal, no qual estão confinados os

traidores, Dante percorre as quatro zonas do Cocito: Caina, na qual se encontram os

traidores de parentes; Antenora, na qual se localizam os traidores do partido e da

pátria; Tolomea, que enclausura os traidores de hóspedes; e, por fim, a Judeca, que

encerra os traidores de benfeitores e o próprio Lúcifer. Quando percorre a quarta

zona e depara-se com aquele que, antigamente, foi o mais belo dentre os anjos,

Dante descreve seu estado de assombro:

Como eu fiquei então gelado e rouco, não perguntes, leitor, que o não derivo de escrever, que falar seria pouco. Eu não morri e não me fiquei vivo: pensa agora por ti, à flor de engenho, no que fiquei, disto e daquilo esquivo.352

João Adolfo Hansen afirma que o verso 25, “Io non mori’ e non rimasi vivo”,

sintetiza a “impossibilidade de dizer o horror do mal”.353

Segue, por fim, a figura de Lúcifer descrita por Dante:

Imperador do reino em dor tamanho saía a meio peito ao gelo baço; e mais com um gigante eu me convenho do que os gigantes co ele em cada braço: já vês como era o todo no reduto de parte assim formada a tal compasso.354

A figura de Lúcifer é una e trina, funcionando como uma antítese de Deus.

Ele é apresentado como um monstro tricéfalo: as suas três faces metaforizam a

inversão perversa dos atributos da Santíssima Trindade. Hansen explica-nos: a cabeça

do meio, de cor vermelha, simboliza o ódio (e, portanto, a falta de amor, atributo central

do Espírito Santo); a da direita, amarelo-esbranquiçada, representa a impotência (ou

seja, a falta de potência, simbolizada pelo Pai); a da esquerda, por fim, negra, retrata a

ignorância (um contraponto à sabedoria própria de Cristo). Dante continua sua

descrição:

Se belo foi como é agora bruto e contra quem o fez o olhar lhe brilha,

352 Inferno, XXXIV, 22-27, 303. 353 HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010, p. 19. 354 Inferno, XXXIV, 28-33, 303.

Page 133: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

133

bem deve proceder só dele o luto. Oh, quanto me pareceu grã maravilha quando três faces vi em sua testa! A da frente vermelha se encorrilha; e cada uma das outras, junta a esta, em meio a cada ombro se encavala, e as três se vão juntar na crista infesta: e amarelece a destra em branco rala; a sinistra de ver era tal, quais os que o Nilo percorrem vala a vala. De cada uma sai par de asas tais, quanto o pássaro há-de carecê-lo: velas do mar assim não vi jamais. Não tinham penas, mas a modo o pêlo seria de morcego; e as agitava, do que três ventos dava um atropelo: e já Cocito todo enregelava. Com seis olhos chorava e aos mentos rente baba sangrenta e ranho gotejava. De cada boca esfacelava a dente um pecador, ripando-lhe a medula, e a cada um de três punha dolente.355

Apreende-se, assim, uma écfrase engenhosa e aguda que ajuda a

amplificar o aspecto horrendo de um anjo caído.

A écfrase é figura destinada à produção de afetos através da “descrição

verbal viva e detalhada de uma pessoa, lugar, acontecimento ou objeto que,

produzindo um forte efeito visual e sonoro, causasse um consequente impacto

emocional nos ouvintes daquele discurso”.356 Seus artifícios tendem a exercer sobre

o auditório um “efeito de realidade”, através do qual se pretende mover afeições e

estimular juízos retos. Trata-se de uma relação intrínseca entre descrição

(descriptio) e a vivacidade e clareza do que é descrito (euidentia), o que confere a

impressão de que “o fato está acontecendo diante dos olhos do leitor” que, no caso,

age como “testemunha ocular”.357 Vejamos, então, como os nautas portugueses

foram subitamente surpreendidos pelo gigante:

Porém já cinco sóis eram passados Que dali nos partíramos, cortando Os mares nunca de outrem navegados, Prosperamente os ventos assoprando, Quando ua noite, estando descuidados Na cortadora proa vigiando, Ua nuvem, que os ares escurece,

355 Inferno, XXXI, 34-57, 304-305. 356 MORGANTI, Bianca. “A morte de Laocoonte e o Gigante Adamastor: a écfrase em Virgílio e Camões”. In: Nuntius Antiquus, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, nº 1, 2008, p. 1. 357 Idem, p. 2.

Page 134: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

134

Sobre nossas cabeças aparece. Tão temerosa vinha e carregada Que pôs nos corações um grande medo; Bramindo o negro mar de longe brada Como se desse em vão nalgum rochedo. “Ó potestade, disse, sublimada, Que ameaço divino ou que segredo Este clima e este mar nos apresenta, Que mor causa parece que tormenta?358

A fortuna, até então próspera, ameaça voltar-se contra os protagonistas.

A narrativa inicialmente dá a entender o advento de uma tempestade. O aedo faz

uso de imagens que denotam perigo, descrevendo as nuvens “escuras” e o mar

“negro”, características que atribuem ao enredo um cenário propício para a

deflagração de catástrofes. Vasco da Gama, em função da ocasião inesperada,

recobra-se de incertezas e de ansiedade: logo em seguida, clama pelo

esclarecimento divino. O leitor poderia questionar: esta demonstração de temor não

acaba prejudicando os propósitos da obra, na medida em que o herói evidencia sua

humanidade, suas fraquezas? Esta interrogação, na verdade, é uma armadilha e,

para desconstruí-la, convém retomar alguns escritos de Sêneca. Para demonstrar

que o sábio estoico não é uma persona inverossímil, o autor explica a Lucílio:

O sábio também pode estremecer, sofrer, perder a cor, pois tudo isto são sensações fisicamente naturais. Onde é que está então a desgraça, quando é que estes sintomas se tornam um mal verdadeiro? É apenas quando causam o abatimento da alma, quando levam o homem a confessar a sua servidão, quando o forçam a arrepender-se de si mesmo. O sábio será capaz de dominar a fortuna com a virtude, ao passo que muitos adeptos da filosofia se deixarão assustar por ameaças de somenos importância. Neste ponto será nosso o erro de exigirmos de um principiante aquilo que exigimos de um sábio.359

Vasco da Gama, neste caso, não deve ser julgado pela sua reação

imediata frente à aparição de um grande obstáculo em sua travessia marítima, mas

sim pelo seu discernimento quando, passado o susto, encara o infortúnio. Desta

forma, o primeiro impulso ou reação, como insiste Sêneca, é involuntário, mas o

controle e o comedimento, num segundo momento, são voluntários e decisivos.360

358 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofes 37-38, pp. 157-158. 359 SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Tradução, prefácio e notas de J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 281. 360 Sêneca afirma: “La pasión consiste no em ser comovido por la aparencia de los objetos exteriores, sino em abandonarse a ella y continuar la sensación accidental. Engáñase quien crea que la palidez, las lágrimas, la excitación de deoses impuros, un suspiro profundo, el repentino brilho de los ojos u

Page 135: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

135

Não podemos nos esquecer de que, ao ser surpreendido, Gama pede o

auxílio divino, ou seja, ainda que sua postura inicial seja perdoada pelo estoicismo

de Sêneca, há que se perceber também uma postura humilde, humana, de um

súdito devoto que busca esclarecimento divino. Os nautas logo percebem que não

se tratava de uma tempestade:

Não acabava, quando ua figura Se nos mostra no ar, robusta e válida, De disforme e grandíssima estatura; O rosto carregado, a barba esquálida, Os olhos encovados, e a postura Medonha e má, e a cor terrena e pálida; Cheios de terra e crespos os cabelos, A boca negra, os dentes amarelos.361

Camões não poupa fôlego para detalhar a fisionomia do gigante e

precisar o seu aspecto pavoroso, o que permite a apreciação visual da cena por

parte do leitor. Neste caso, o efeito de prosopopeia é conveniente, pois as formas

descomunais e disformes do Adamastor adiantam a dimensão e deformidade dos

infortúnios que se queria anunciar. Devemos recordar a passagem na qual também

Ulisses e seus companheiros se abismaram com a figura grandiosa de Polifemo: “O

berreiro do gigante nos quebrou o ânimo. A voz cavernosa daquele corpo

descomunal nos arrasou”.362 Ulisses, assim como Gama, foi o primeiro a dialogar

com o gigante.

Como se não bastasse uma descrição tão detalhada, o gigante, em tom

“horrendo e grosso” de fala, dirige-se rudemente aos portugueses:

[...] “Ó gente ousada, mais que quantas No mundo cometeram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, E por trabalhos vãos nunca repousas, Pois os vedados términos quebrantas

otra cualquiera emoción parecida, son indicios de pasión o manifestación del ánimo, no comprendiendo que no pasan de impulsos corporales. Así es que muchas veces el hombre más valeroso palidece al empuñas las armas”. Tradução: “A paixão consiste não em ser comovido pela aparência dos objetos exteriores, mas em se prender a ela e continuar a sensação acidental. Enganam-se quem crê que a palidez, as lágrimas, a excitação de deuses impuros, um suspiro profundo, o repentino brilho dos olhos ou qualquer outra emoção parecida são indícios de paixão ou manifestação do ânimo, não compreendendo que não passam de impulsos corporais. Assim é que muitas vezes o homem mais valoroso empalidece ao empunhar as armas”. SÊNECA, Lúcio Aneu. De la ira. Disponível em: http://www.mediafire.com/?yzhjzdux5nz. Acesso em: abril/2011. 361 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofe 39, p. 158. 362 HOMERO. Odisséia, v. 2: Regresso. Tradução, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010, canto 9, v. 256-257, p. 129.

Page 136: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

136

E navegar meus longos mares ousas, Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, Nunca arados de estranhos ou próprio lenho; Pois vens ver os segredos escondidos Da natureza e do úmido elemento, A nenhum grande humano concedidos, De nobre ou de imortal merecimento; Ouve os danos de mi que apercebidos Estão a teu sobejo atrevimento, Por todo o largo mar e pola terra Que inda hás de sojugar com dura guerra.363

Joaquim Nabuco afirma que Camões não silenciou as primeiras

expedições marítimas, muito pelo contrário:

não era por certo Vasco da Gama quem desejaria que se riscasse da história a narração das viagens de Bethencourt, Vaz e Zarco, Noli, Velho, Diogo Cano, e sobretudo Bartholomeu Dias, como se desfez no mar o rasto de seus navios. Os perigos vencidos por outros venceu-os também elle, mas elle passou onde os outros pararam.364

De acordo com Nabuco, a pretensão do poeta com este episódio foi a de

dar forma e voz ao passado vencido pelo gênio português. Desta forma, as

catástrofes vaticinadas não seriam outra coisa senão o “preço fatal da verdadeira

grandeza”.365 Estes recursos – visuais e sonoros – seriam, portanto, uma maneira de

melhor retratar as glórias portuguesas?

Inicialmente, o aedo recorreu aos efeitos visuais: agora, atribuiu voz

profética ao gigante, que ressaltou a ousadia dos portugueses, que desbravaram

novas rotas marítimas. Frente a tamanho atrevimento, Adamastor acusa os

portugueses de terem ultrapassado os limites impostos aos mortais, sejam eles

nobres ou não. Tal insolência, afirma, é passível de danos, de punição. Isto nos

remete a uma possível releitura da noção de hybris grega, da imoderação, do

excesso mundano. A transposição da fronteira que distanciava e diferenciava

homens e deuses, na tradição grega, teria despertado a ira dos deuses.366 A ousadia

lusitana despertou, na mesma medida, a ira do gigante:

363 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofes 41-42, pp. 158-159. 364 NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistico. 1872, pp. 89-90. 365 Idem, p. 180. 366 Sobre a hybris grega, ver: SEIXAS, Jacy Alves de. A imaginação de outro e as subjetividades narcísicas: um olhar sobre a in-visibilidade contemporânea [o mal-estar de Flaubert no Orkut]. In: NAXARA, M. R. C. at. al. (orgs.) Figurações do outro na história. Uberlândia: EDUFU, 2009, p. 69.

Page 137: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

137

Sabe que quantas naus esta viagem, Que tu fazes, fizeram de atrevidas, Inimigas terão esta paragem, Com ventos e tormentas desmedidas! E da primeira armada que passagem Fizer por estas ondas insofridas, Eu farei de improviso tal castigo, Que seja mor o dano que o perigo! Aqui espero tomar, se não me engano, De quem me descobriu suma vingança. E não se acabará só nisto o dano De vossa pertinence confiança: Antes, em vossas naus vereis, cada ano, Se é verdade o que o meu juízo alcança, Naufrágios, perdições de toda sorte, Que o menor mal de todos seja a morte!367

Os dotes proféticos de Adamastor, que prescrevem um fim trágico às

ousadias náuticas, não incluem Gama e sua frota. A censura do gigante nada tem

de realmente profética, pois sua narrativa versa sobre acontecimentos passados.

Trata-se do desaparecimento de Bartolomeu Dias, aquele que supostamente

descobriu o Cabo das Tormentas e que se perdeu durante uma tempestade. Em

contrapartida, o caráter de agouro que se atribui à fala da personagem confere

autoridade ao relato: a personificação do Cabo das Tormentas anuncia os perigos

iminentes com os quais se deparam aqueles que ousam fazer parte da empresa

ultramarina movidos pela ambição e pela vaidade. Se por um lado, aceitamos que

Adamastor representa os perigos impostos pelo mar, por outro, ele exerce o papel

de um juiz prudente que, através da longuíssima experiência adquirida, somada aos

dotes proféticos, adverte Gama e seus tripulantes sobre os castigos reservados

àqueles que imprudentemente abraçam a condição de pecador.

O tempo da epopeia:

Gama reage frente aos perigos vaticinados pelo gigante inquirindo:

“Quem és tu? Que esse estupendo / Corpo, certo, me tem maravilhado”.368 Neste

momento, ocorre uma reviravolta na narrativa e Adamastor não mais assusta os

nautas como antes. A partir do momento em que ele se identifica como o “Cabo das

367 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofes 43-44, pp. 159-160. 368 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofe 49, p. 161.

Page 138: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

138

Tormentas”, passa então a ser conhecido, e deixa de ser exótico, de ser novidade,

como afirma Yara Vieira:

Enquanto figura que se desenrola na história, objeto de conhecimento, portanto, o Adamastor perde a sua categoria de perigo absoluto e entra na normalidade constituída. O Adamastor que conta a sua história é, assim, muito diferente do monstro profético que ameaça com a infinita possibilidade das desgraças futuras.369

Adamastor conta sobre seus infortúnios do passado, quando lutou contra

“o que vibra os raios de Vulcano”, Zeus. Afirma que se apaixonou por Tétis, “esposa

de Peleu”, e que se voltou contra todos os deuses olímpicos, recobrando para si o

império dos mares. Como não desconhecia a “grandeza feia” de seu gesto,

Adamastor determinou tomar a ninfa à força, mas esta, astuta, lhe promete devoção

ao término da guerra. Quando ela termina, contudo, o gigante é enganado, pois

visualiza Tétis e, quando corre em seu encalço e lhe abraça, percebe que está

enamorado de um rochedo. Assim narra o desafortunado:

Converte-se-me a carne em terra dura; Em penedos os ossos se fizeram; Estes membros, que vês, e esta figura Por estas longas águas se estenderam. Enfim, minha grandíssima estatura Neste remoto Cabo converteram Os Deuses e, por mais dobradas mágoas, Me anda Tétis cercando destas águas.370

Finda a narrativa, Adamastor se desfaz em lágrimas e logo desaparece.

Vieira nota que o gigante “é simultaneamente a projeção do temor do futuro

enquanto desconhecido, e do passado, enquanto resíduo de experiências

traumáticas”.371 Em um primeiro momento, ele vaticina infortúnios; em seguida,

conta sobre seus infortúnios particulares. Adamastor versa sobre os perigos do

excesso e demonstra sua própria trajetória como exemplo: por um lado, ele é

guardião das terras orientais e profeta das supostas calamidades futuras; por outro,

ele se apresenta, rompendo com o caráter de novidade, e conta sobre sua própria

hybris, que lhe legou uma punição exemplar.

369 VIEIRA, Yara Frateschi. “Adamastor: o pesadelo de um ocidental”. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 235. 370 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofe 59, pp. 165-166. 371 VIEIRA, Yara Frateschi. “Adamastor: o pesadelo de um ocidental”. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 240.

Page 139: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

139

As advertências e admoestações lançadas pelo gigante, longe de ter o

mero objetivo de aterrorizar os navegantes, parece instruir os leitores sobre a

necessidade de propósitos virtuosos: ou seja, a procedência vaidosa na busca por

fama é condenável e, portanto, suscetível de castigos. As censuras do gigante são

direcionadas àqueles que agem em desconformidade com as pretensões do Império

português e/ou da Igreja Católica. Por outro lado, aqueles que atendem, assim como

Gama, aos anseios de seu “tempo”, podem ser considerados prudentes e, em

consequência, conquistar a boa vontade da fortuna: sendo assim, o caráter

supostamente profético da voz de Adamastor não passa de um artifício que não lesa

os princípios da ortodoxia cristã, mas os serve, pois não retrata nada além de

eventos circunscritos no passado, dignos de memória e integrantes da história

providencial portuguesa.

Se o leitor/ouvinte “vir” o gigante e “ouvir” suas ponderações, ele pode se

deixar instruir e mover. Morganti afirma que “a produção da clareza e vivacidade por

meio de recursos técnicos fornecidos pela linguagem, que gera no leitor a sensação

de visão e audição da cena descrita, permite, através de um procedimento

exclusivamente verbal, a manifestação ficcional de um afeto”.372 É necessário

ponderar, assim, que a produção artificial de um afeto ou de uma virtude se

fundamenta na verossimilhança. O auxílio visual e auditivo contribui para a

edificação de uma conduta prudente: neste caso, o apelo aos afetos – pela via do

infortúnio épico – tende a localizar as trágicas consequências de atitudes ousadas e

vaidosas, que não priorizam o bem comum. Ao leitor, então, resta aprender a traçar

o caminho oposto e se deixar levar pelo exemplo legado por Vasco da Gama.

É no dilema de uma história exemplar de caráter providencialista que se

coloca o Adamastor. Sua figura é oportuna porque embaralha as temporalidades:

suas previsões não passam de memórias que os leitores d’Os Lusíadas

provavelmente dominavam. Trata-se de um mito (com raízes certamente homéricas)

que encerra um obstáculo natural. Com seus vaticínios e rememorações fabulosas,

o gigante instrui Gama no seu presente, sendo o herói aquele a principiar a empresa

colonizadora e inaugurar rotas desconhecidas. O futuro que Adamastor adianta aos

nautas para o leitor já era passado, mas o incerto futuro do leitor poderia ser

372 MORGANTI, Bianca. “A morte de Laocoonte e o Gigante Adamastor: a écfrase em Virgílio e Camões”. In: Nuntius Antiquus, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, nº 1, 2008, p. 11.

Page 140: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

140

devidamente trilhado caso ele se apegasse à virtude. O destino infausto do gigante

orienta Gama, e o destino vitorioso do navegante lusitano ilumina uma dimensão

exemplar a ser trilhada no futuro.

Ampliar o Império e difundir a ética cristã: estas eram as intenções

imediatas do herói. Júpiter profetiza logo no primeiro canto da epopeia lusitana o

sucesso da empresa portuguesa, tranquilizando Vênus. Ao final da obra, a ninfa

Calíope e a deusa Tétis cantam outros tantos sucessos portugueses, a serem

viabilizados num futuro que, para o leitor, já era passado. Esta estrutura se conforma

à dimensão circular da epopeia, que começa e termina reafirmando a glória

portuguesa. Adamastor não é um oráculo feito Tirésias, que orienta Ulisses

apresentando-lhe o seu futuro. Suas profecias são, ao mesmo tempo, eficazes e

ineficazes: realmente predizem o futuro, levando-se em consideração que a fábula

poética ambienta-se no momento da empresa liderada por Gama, da qual o leitor

encontra-se distanciado cerca de oitenta anos (portanto, um vaticínio em

retrospecto), e é ineficaz porque não impede a consecução da jornada do herói, pois

suas predições, em momento algum, colocam em xeque os propósitos que

motivavam Vasco da Gama. O gigante, transformado em rochedo feito Atlante,

cumpre sua pena eterna como Prometeu e chora suas angústias tal como Édipo. Ele

que, outrora, desejou avidamente o domínio dos mares a ponto de desafiar e

enfrentar os deuses olímpicos. Ambicioso, descomedido e, ainda assim, escalado

para censurar a cobiça e ensinar comedimento.

Page 141: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

141

CAPÍTULO 04

Razão de Estado e o corpo místico português

De acordo com João Adolfo Hansen a “razão de Estado” pressupõe uma

“ligação necessária e sacralizada do Estado ao soberano”. Trata-se de um

“imperativo em nome do qual, alegando o interesse público, o poder absoluto

transgride o direito”. Há três argumentos que buscam fundamentar esta

transgressão: “as medidas excepcionais são necessárias; um fim superior justifica os

meios empregados; o segredo deve ser mantido”. Nesta direção, a “razão de

Estado” seria uma “técnica de conquista, conservação e ampliação do poder”,373

com vistas à “manutenção da unidade interna do reino, entendido como corpo de

ordens e estamentos fortemente hierarquizados, garantindo sua soberania contra

inimigos externos”.374 Não se trata de um conceito homogêneo, muito pelo contrário:

os debates em torno dele se deram de forma acalorada. Isto é perceptível, por

exemplo, na postura assumida por juristas católicos perante as convicções de Lutero

e Maquiavel:

Segundo os juristas católicos, Lutero e Maquiavel podem ser identificados porque ambos rejeitam a lei natural da Graça inata como base moral apropriada para a vida em sociedade. Ainda segundo eles – e o mesmo argumento se acha em Botero – é falsa a ideia de Maquiavel de que a finalidade primeira do poder é a conservação do Estado e de que, para tanto, é lícito usar de todos os meios, justos ou injustos, bons ou maus, como “razão de Estado” definida pela necessidade, assim como é falsa a ideia de Lutero de que o homem é incapaz de distinguir o bem do mal e de que, por isso, o Príncipe governa por “direito divino” para impor a lei e a ordem enquanto “razão de Estado” definida como segredo inviolável.375

Para Antônio Vieira, a Providência divina e a prudência humana

harmonizam-se na “razão de Estado”, definida como “possibilidade concreta de

conciliação dos valores cristãos com a eficácia a obter-se nas operações temporais

em que se joga a soberania do rei e Reino”.376 De acordo com Alcir Pécora, a

efetivação da “razão de Estado” em Vieira requer prudência, uma vez que a razão

373 Ver: BOTERO G. (1589), La ragion di Stato. Roma: Donzelli, 1997, p. 07. 374 HANSEN, João Adolfo. “Razão de Estado”. In: NOVAES, Adauto. A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 135-136. 375 Idem, p. 150. 376 PÉCORA, Antonio Alcir Bernárdez. “Política do céu (anti-Maquiavel)”. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 191.

Page 142: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

142

deve atender a um determinado fim valendo-se da “ocasião” adequada, que pode

ser percebida através de um exame apurado das circunstâncias. A “ocasião”

propícia seria o momento no qual a vontade histórica e a Vontade divina se ajustam.

Por outras palavras, é neste intervalo que a “política de obras” e a “política do céu”

entram em sintonia. A “razão de Estado” deve designar uma operação “que, ao

admitir o justo fim, considera imediatamente quais os meios capazes de atender a

ele tendo em vista o seu impacto sobre o ânimo corrompido das gentes”.377 Uma

finalidade jamais seria atendida em sua totalidade se os meios empregados não

fossem orientados pela razão e iluminados pela Providência.

Para se pensar os pressupostos implicados nas versões católicas de

“razão de Estado”, é necessário retomar a metáfora do “corpo místico”. Esta tópica

foi utilizada muitas vezes por escritores e juristas da contrarreforma, que retomavam

os escritos de São Tomás de Aquino para pensar, por exemplo, os fundamentos e

as características da monarquia portuguesa nos primeiros séculos da colonização.

De acordo com Hansen, duas referências principais se unem na fórmula do corpo

místico português: uma delas é teológica, e diz respeito à república cristã. Dentre as

práticas que representa bem o aspecto corporativo da Igreja, destaca-se o

sacramento da Eucaristia, através do qual a hóstia banhada em vinho consagra a

comunhão do corpo e do sangue de Cristo. No momento da comunhão, todos os

fiéis compartilham de um mesmo corpo e de um mesmo Pai, o que concretiza um

vínculo orgânico e filial.378

A outra faceta do corpo místico é jurídica e sugere a harmonia

estabelecida entre a “razão política” e a “ética cristã”. Esta harmonia é referida nos

estudos de Ernest Kantorowicz, que retomam o sistema teológico-político medieval,

doutrina que foi apropriada para legitimar as bases monárquicas de Portugal,

regulamentar sua hierarquia e justificar os atributos sacros do rei. A metáfora do

corpo místico subtende a necessidade e relevância de uma hierarquia articulada

com rigidez, entendida como reflexo da lei natural. O Império português seria regido

pelo rei, cabeça da hierarquia política e, portanto, o responsável pela condução

sadia de seu reino. Aos súditos, integrantes do corpo político e subservientes à

vontade da cabeça, restaria o respeito incondicional, fator que proporcionaria o bem

377 Idem, p. 195. 378 Ver: HANSEN, João Adolfo. “Letras coloniais e historiografia literária”. In: Matraga: Revista do Programa de Pós Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: Ed. Caetés, nº 18, 2006.

Page 143: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

143

comum. Ora, se Cristo guia os fiéis tendo como fito a salvação dos mesmos, o rei,

por analogia, orientaria os componentes do seu reino devido à autoridade sacra que

detém, tornando-se o mediador entre o céu e a terra.379 Desta forma, a subordinação

implicava o bom uso do livre-arbítrio,380 e o respeito aos superiores se tornaria

legítimo porque análogo à situação cristã, marcada pela submissão do corpo de fiéis

aos dogmas da Igreja Católica, encabeçada por Cristo.

O rei, portanto, apresentava uma natureza dupla, ao mesmo tempo

humana e sagrada. Este revestimento místico de sua imagem política permitiria a

edificação de uma ideia de “reino” que ele personificava e administrava, ainda que

não pudesse frequentar toda a extensão geográfica do mesmo. Por necessidade, o

sentido orgânico da sociedade de corte permitia e promovia uma distribuição das

responsabilidades entre os súditos, como condição para seu bom regulamento.

Como se dava, portanto, esta distribuição de tarefas e o devido ordenamento dos

integrantes do reino? Como assegurar a organicidade do corpo político português?

Como suprir a inevitável ausência física do rei? Questões como estas impulsionaram

uma renovação historiográfica considerável nas últimas décadas que, dentre os seus

vários propósitos, pretendia vencer as limitações impostas pelas análises

reducionistas que, em linhas gerais, atribuíam à metrópole portuguesa a função de

“centro administrativo” e às suas colônias um caráter “periférico”, assinalado pela

submissão irrestrita às necessidades metropolitanas. O “pacto colonial”, sob a lente

desta inovação, fundamenta-se em práticas que ultrapassam o “exclusivo

metropolitano”, que subtendia a sujeição das colônias, tomadas como polos

economicamente complementares, à monarquia portuguesa, compreendida como

centro de onde emanava toda e qualquer manifestação do poder.

Ao estudar os escritos jurídicos portugueses do Antigo Regime, António

Manuel Hespanha insiste na inconsistência das teorias que se pautam na suposta

uniformidade jurídica do Império, alegando a inexistência de um modelo político

genérico que englobasse a expansão lusitana em sua totalidade. Conforme o autor,

várias explicações buscaram delinear as motivações imperiais na empresa 379 Ver: KANTOROWICZ, Ernst Hartwig. Os dois corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 132-137. 380 É preciso recordar, com Castiglione, que a verdadeira liberdade não “é viver como se quer, mas viver segundo as boas leis, e é tão natural, útil e necessário obedecer quanto comandar”. Ele termina dizendo que “o corpo tem aptidão natural para obedecer à alma como o instinto a razão”. A tópica do livre-arbítrio, portanto, não se desatrela da obediência natural que lhe fundamenta. Ver: CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 287.

Page 144: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

144

colonizadora, como o engrandecimento do rei, a expansão da fé cristã, finalidades

comerciais, dentre outras. Chamando a atenção para a insuficiência destas

hipóteses, Hespanha nos alerta para a “pluralidade de tipos de laços políticos”, que

impediam definitivamente o estabelecimento de uma regra uniforme de governo,

fator este que poderia delimitar e enquadrar o alcance e as fronteiras do poderio

português. Em razão disto, o autor afirma ter existido, em Portugal e em suas

colônias, uma “estrutura administrativa centrífuga”, isto é, um modelo de monarquia

corporativa que admitia a existência de diversas modalidades de laços políticos e de

instituições de poder, que detinham certa autonomia em relação à Coroa.381

Esta relativa autonomia conferida às instituições portuguesas de outrora

se traduzia em uma necessidade própria do Antigo Regime, que não pretendia e

nem poderia trabalhar com a simbologia da dureza e da opressão. A historiadora e

antropóloga Maria Fernanda Bicalho, na esteira de Hespanha, afirma que o pacto

político firmado entre o rei e seus subordinados não respeitava criteriosamente à

relação mando-obediência. Muitas vezes, os reis praticavam a “liberalidade régia”,

política ligada à suposta bondade do monarca para com os seus súditos que, em

troca, deveriam ser obedientes. Este procedimento reforçava os laços de

solidariedade, cativando o ânimo dos súditos na medida em que se semeava honra

e glória entre eles.382 A condução do bem comum, desta forma, não pressuporia

necessariamente um rigor coercitivo.383

No artigo “Uma leitura do Brasil colonial – bases da materialidade e da

governabilidade do Império”, João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Fernanda

Bicalho desenvolveram duas categorias que são chaves de interpretação do que

poderíamos chamar de “mecanismos de poder” do sistema colonial. A primeira é a

381 HESPANHA, António Manuel. “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes”. In: FRAGOSO, João. et. al. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 169-175. 382 Sugerimos a leitura do texto: BICALHO, Maria Fernanda. “Pacto colonial, autoridades negociadas e o Império Ultramarino Português”. In: SOIHET, Rachel. et. al. (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. 383 Entendemos o conceito de reciprocidade com as limitações que lhe imputou Aristóteles, no momento em que buscou definir um patamar de ações localizadas entre a justiça e a injustiça. Para o autor, a reciprocidade não se identifica com a justiça distributiva, tampouco com a justiça corretiva. Ao contrário, ela se baseia na retribuição proporcional, o que leva em consideração as trocas e suas possíveis implicações. Ora, relendo esta assertiva, consideramos igualmente que a reciprocidade, em uma sociedade de corte, leva em consideração o desnivelamento das posições hierárquicas ocupadas, de forma que as trocas e favores são proporcionais aos lugares políticos que as partes envolvidas ocupam. Ver: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro V, V, pp. 112-115.

Page 145: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

145

“economia do bem comum”, forma de “reinvenção” do Império português com base

em um sistema hierárquico excludente. Este pressuposto se baseia numa rede de

reciprocidade, num “fornecimento de serventias” regulado conforme diferentes

estratégias adotadas pela sociedade colonial e suas elites. A segunda categoria é a

“economia política de privilégios” que, complementando a “economia do bem

comum”, baseia-se na lealdade e na vassalagem enquanto forma de “produção” de

súditos ultramarinos. Trata-se da garantia dos laços de sujeição e do sentimento de

pertença dos vassalos às estruturas sócio-políticas do Império. Promove-se, assim,

uma aliança entre o discurso da conquista e uma lógica de caráter clientelar inscrita

na economia de favores.384

A legitimação da “razão de Estado”, por intermédio da metáfora do “corpo

místico”, pressupõe a “pluralidade dos membros e a diversidade das funções, numa

integração das partes que é ordem”.385 Nesta direção, há pelo menos três aspectos

a serem considerados: o bem comum é o fim último da “razão de Estado”; a

desigualdade é natural; a obediência é pressuposto de soberania e, por isso, uma

das primeiras virtudes que sustenta a “razão de Estado”, sendo requisito para a

harmonia do todo social. Nesta direção, os conceitos de razão e de ordem se

justapõem: para garantir a harmonia do reino, os integrantes deveriam ordenar suas

paixões e condutas para obedecer aos seus superiores, ocupando com prudência o

seu devido lugar.

Contrariar as disposições hierárquicas, portanto, ocasionava discórdias,

como é possível perceber no relato de naufrágio da nau S. Bento. Vários homens a

bordo deixaram de respeitar Fernão D’Álvares Cabral, o capitão-mor, e resolveram

criar um “corpo, cuja cabeça (posto que não nestes maus ensinos) era o

contramestre”.386 A desobediência decorrente desta empreitada levou o capitão a

formar um conselho, para definir a melhor forma de agir perante o levante: optaram

por tentar dissuadir o contramestre, “que era bom homem e sempre se mostrara seu

amigo”,387 o que funcionou, pois ele desenganou os rebelados e demonstrou grande

obediência ao capitão. Mas a fortuna, que “não se contenta com pouco”, tomou a

384 FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Uma leitura do Brasil colonial – bases da materialidade e da governabilidade do Império”. In: Penélope, Revista de História e Ciências Sociais, Lisboa, n. 23, 2000, pp. 67-88. 385 HANSEN, João Adolfo. “Razão de Estado”. In: NOVAES, Adauto. A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 139. 386 HTM, p. 54. 387 Idem, pp. 55-56.

Page 146: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

146

vida do capitão, que usufruiu de uma bela-morte graças à sua prudência e conduta

em geral. No entanto, era necessário rearticular o “corpo”, temporariamente apartado

de sua “cabeça”:

E depois que assim estivemos juntos, vendo como para nossa salvação era necessário que fôssemos sempre unidos em um corpo, regidos por uma só pessoa, e esta jurada aos Santos Evangelhos, para que não houvesse os rebuliços que dantes havia, pusemos logo isto em obra; e como de noventa e dous homens que àquele tempo éramos por todos, setenta fossem dos do mar, todos estes juraram que Francisco Pires, o contramestre, era muito para aquilo, e que se o fizessem capitão a ele obedeceriam.388

A desordem anunciada é decorrente da desarticulação do corpo. A

reordenação do mesmo dependeria de sua rearticulação, agora encabeçada por um

novo integrante, que ascende na hierarquia para organizar o conjunto de suas

partes. Algo parecido ocorreu com os tripulantes da nau Conceição, quando o

capitão Francisco Nobre fugiu com alguns de seus homens e deixou o navio à

própria sorte. Como ainda restava esperança, o narrador relata:

Ordenamos pôr regra sobre nossas vidas em o mantimento, e ordem a tudo, para que dela pudéssemos merecer o que Deus quisesse determinar. Pelo que demos ordem em fazer logo capitão a quem déssemos obediência, e foi eleito D. Álvaro de Ataíde, sobrinho do conde da Castanheira, homem mancebo, de idade de vinte anos, de boa condição e amigo de todos, mas não era para o cargo que lhe demos, por não ser temido e ser juntamente mancebo.389

Manuel Rangel anuncia e reprova a escolha do novo capitão, mas o que

interessa no episódio é a importância conferida à ordem, através da qual se poderia

remediar a situação. D. Álvaro de Ataíde era “homem mancebo” e não inspirava

temor, ou seja, faltava-lhe experiência e autoridade. Ele mesmo o percebeu,

assumindo desde então uma postura cautelosa e defensiva, mas logo deixou o

comando, alegando má disposição e enjoo. No entanto, as escolhas para capitão

nem sempre eram imprudentes, como no caso da opção feita pelos tripulantes da

nau São Paulo. O padre da Companhia de Jesus que viajava nesta nau, de nome

Manuel Álvares, convocou a todos e, “com palavras dignas de tal varão e a tal tempo

necessárias”, disse:

388 Idem, pp. 57-58. 389 Idem, p. 103.

Page 147: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

147

Caríssimos Irmãos em Cristo, trago-vos à memória aquele santo dito do Evangelho, que Omne regnum in se divisum desolabitur, e com a concórdia é tão certo que as cousas pequenas e mui mínimas se fazem muito grandes e duráveis, e com a discórdia as cousas muito grandes se desfazem e diminuem, e tornam em nada; devia-vos, Irmãos, de lembrar que todas as outras naus que se perderam no cabo de Boa Esperança, como foi o Galeão, e S. Bento, e outras muitas, uma das cousas que destruiu e totalmente matou a gente delas foi a discórdia que entre si houve, fazendo-se e dividindo-se em magotes, e entregando suas armas, e confiando-as dos inimigos de nossa santa Fé, bárbaros e cruéis e tão cobiçosos do nosso sangue. Não diminuamos nossas forças, pois virtus unita fortior est se ipsa dispersa. E pois somos próximos e todos irmãos, e de tanto tempo companheiros, em tão breve lugar, onde tantas fortunas havemos passado e corrido, penetrando a grandeza toda do oceano, com todos os perigos e tormentas quantas outros jamais sofreram. E assim espero e fio na muita misericórdia de Cristo e sua Santíssima Morte e Paixão sermos todos juntos no Céu, seus mártires e seus cavaleiros, o que aqui acabarmos, pois assim nos escolhe o Senhor para a Glória e para ele ser melhor servido e seu Santo Nome glorificado e nos pôr a salvamento em terra de cristãos, livrando-nos de nossos inimigos em seu braço forte. Pois tendo a ele por nós, Quis contra nos? É-nos, caríssimos, muito necessário e cousa importantíssima termos uma cabeça todos, de que os membros se rejam, governem e a que obedeçamos, por não sermos corpos sem almas; e para isto haver feito, eu por minha ordem e hábito, com conselho de todos os principais, olhando o que mais pertence e é proveitoso ao nosso bem comum, digo que elejamos e criemos por nosso capitão o que foi até o presente soberano para tudo, ao próprio Rui de Melo da Câmara, pois para o ser basta só ser feito da mão da Rainha, Nossa Senhora, e haver-lhe entregue ela esta sua nau e gente que ela e El-Rei seu neto, Nosso Senhor, tanto estimam e prezam, sob cuja capitania e bandeira até aqui havemos militado, e é que ele tem dado mostras de singular e humaníssimo capitão; pelo que não há ai a quem melhor se entregue, e com razão, o cargo; o que tudo, crede, nos não digo nem aconselho, senão por bem de todos e segundo minha consciência e alma e como religioso, e da Companhia de Jesus, que estimo tanto, e quero a salvação da vida e da alma do menor escravo cristão que entre nós há, como a minha própria; e já de mim deveis ter conhecido, pois de todos sou padre espiritual, se vos falarei verdade ou não, e desejarei vossa salvação; e para de todo vos tirar de má suspeita em minhas palavras, pois são puras e limpas e ditas como de pai a filho, eu vos juro, quanto a mim, e vos prometo por minhas ordens, desta ilha me não partir nunca sem todos juntos.

Por se tratar da fala de um padre, é comum a presença de fragmentos do

Evangelho em latim, forma de autorizar seu posicionamento com base na Sagrada

Escritura. Além disso, ele assinala a importância da concórdia evocando exemplos

de outros naufrágios, como os ocorridos com o Galeão São João e com o Galeão

São Bento. Para a sobrevivência da tripulação, seria preciso restaurar a ordem e

eleger uma “cabeça” que pudesse reger a todos. Manuel Álvares menciona os

atributos do “singular e humaníssimo” Rui de Melo da Câmera, tomando-o como

melhor candidato para intervir pelo “bem de todos”. Os exemplos acima reafirmam

os pressupostos da razão de Estado, uma vez que as condutas das personagens

Page 148: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

148

propõem a centralidade da obediência e de uma hierarquia bem definida como forma

de garantir o bem comum.

Produção de concórdia390

Reunidos em concílio, os deuses olímpicos deliberavam sobre o destino

de Vasco da Gama e de seus homens. Com entonação profética, Júpiter revela a

vitória dos portugueses em sua empresa no ultramar:

Prometido lhe está do Fado eterno, Cuja alta lei não pode ser quebrada, Que tenham longos tempos o governo Do mar que vê do Sol a roxa entrada. Nas águas têm passado o duro Inverno; A gente vem perdida e trabalhada. Já parece bem feito que lhe seja Mostrada a nova terra que deseja.391

O “Fado eterno” promete que os portugueses terão o governo do mar. A

conduta que lhes confere tal prestígio é contemplada e legitimada pela “alta lei”, à

qual todos os eventos humanos se submetem. Esta graça, que assume diferentes

conotações, será legada aos portugueses por diferentes razões: bravura,

persistência, sujeição a trabalhos contínuos, dentre outras. A figura de Júpiter, com

seus vaticínios e alegações, pode ser entendida a partir de algumas chaves de

leitura: por ser aquele que preside o Olimpo, a autoridade de sua fala e as suas

resoluções são enunciadas com dignidade, como se ele ocupasse o papel de causa

segunda. Em outras palavras, as ponderações de Júpiter apresentam

alegoricamente a vontade providencial. Em versos esclarecedores, Camões admite

esta analogia: “E também, porque a santa providência / Que em Júpiter aqui se

representa”.392 Por outro lado, levando-se em consideração os seus intentos, a voz

do deus autoriza a fortuna favorável, pois recompensa os portugueses com bons

agouros. Sua fala, portanto, mostra-se ajuizada e seus desígnios ecoam com

entonação divina.

390 Título inspirado no trabalho: LUZ, Guilherme Amaral. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013, pp. 33-56. 391 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 28, pp. 96-97. 392 Idem, canto X, estrofe 83, p. 240.

Page 149: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

149

O deus Baco toma para si outra postura: sua oposição frente aos

“vaticínios” que favorecem os portugueses leva-o a mobilizar um grande arsenal de

infortúnios contra os nautas. Além de ser um deus pagão, Baco exerce o papel de

mentor dos mouros, o que lhe rende duplo estigma – o de pagão e o de infiel – e

torna suas atitudes ainda mais reprováveis. Na épica camoniana, é próprio desta

deidade agir em dissonância com os preceitos da ortodoxia cristã, utilizando-se da

vaidade, do engano, da ambição. Ao contrário de Júpiter, Baco age como o

antagonista da providência: aquele que trama obstinadamente as desventuras,

instrui astutamente sua prole de mouros e corrobora a efetivação das peripécias.

Enquanto ornatos poéticos, Júpiter e Baco aprimoram o estilo da épica e,

em consequência, deleitam os leitores; metaforicamente, ambos mobilizam,

figurativamente, a boa e a má fortuna, respectivamente. Como alegorias, Júpiter

remonta à vontade providencial e encabeça as hierarquias celestes. Baco, por outro

lado, opõe-se às disposições hierárquicas e aos desígnios divinos, representando o

antípoda de Júpiter.393 Esta leitura pode embasar-se, por exemplo, em uma das

versões mitológicas na qual Baco fora expulso do Olimpo pela enciumada Juno, uma

vez que o deus é fruto do amor proibido entre Júpiter e a mortal Sêmele. Quer se

adote esta ou outra interpretação, os deuses, na ordem da épica cristã, dinamizam a

narrativa e personificam o fado, a Providência, a perdição, o pecado, o bárbaro, o

cristão etc.

A relutância de Baco, no que se refere às conquistas ultramarinas

lusitanas, decorre de sua vaidade,394 pois ele temia ser esquecido. Temor este que

se justifica pela sua fama no oriente, local no qual é considerado o responsável pela

difusão da civilização e pelo fabrico do vinho.395 Ou seja: a glória dos portugueses,

393 Sobre as possíveis leituras que se possa fazer da mitologia n’Os Lusíadas, ver: MORGANTI, Bianca. A Mitologia n’Os Lusíadas – Balanço Histórico-Crítico. Dissertação (Mestrado). São Paulo: IEL/Unicamp, 2004, pp. 156-171. 394 A vaidade pode ser entendida como a exposição imprudente dos pensamentos. De acordo com o filósofo italiano seiscentista Torquato Accetto, “o erro que se pode cometer com o compasso que gira em torno da opinião que temos de nós mesmos costuma ser a causa de que transborde aquilo que se deve reter nos limites do peito; pois quem se estima mais do que é efetivamente, apenas fala como mestre, e, parecendo-lhe que todos os outros sejam menos que ele, faz pompa do saber e diz muitas coisas que sua boa sorte poderia ter calado”. Accetto está refletindo sobre a “dissimulação honesta”, mas podemos entender suas inferências mais amplamente, pois esta soberba e o descompasso entre o “ser” e a “imagem que o ser faz de si próprio” é amplamente prejudicial a qualquer sociedade que viva com base em disposições hierárquicas rígidas, como é o caso da monarquia portuguesa. Ver: ACCETTO, Torquato. Da dissimulação honesta. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 63. 395 Ver comentários à estância 30 em: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 97.

Page 150: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

150

caso viessem a descobrir as rotas marítimas de acesso às Índias, ofuscaria a sua, e

a memória de uma divindade olímpica sucumbiria nas águas do Letes mitológico

(apresentado como “negro vaso de água do esquecimento”396 ou “rio do negro

esquecimento e eterno sono”397) devido à ousadia dos mortais.398 O aedo

desacredita as crendices pagãs – ao querer lançar as memórias de Baco nos confins

do esquecimento – e, ao mesmo tempo, valoriza e amplifica a memória das

conquistas lusitanas. Sepulta-se, de uma só vez, um deus pagão (que representa as

crenças heterodoxas) e os feitos inverossímeis (em contraposição à vivacidade e

verossimilhança dos feitos portugueses).

Vênus e Marte apoiam Júpiter e defendem a vitória dos portugueses.

Frente aos argumentos de ambos, o deus patrono mantém-se favorável ao sucesso

lusitano e encerra o concílio, mesmo sem o consentimento do ressentido Baco.

Encerrada a comitiva das deidades, o aedo se ocupa de Vasco da Gama e sua frota

que, a esta altura, velejavam em algum ponto entre Madagascar e Moçambique.

Gama, súdito do rei a quem a “fortuna sempre favorece”, ancora em uma ilha e se

depara com os mouros pela primeira vez. O encontro, que parecia fluir bem, leva o

descontente Baco a maquinar uma maneira de impedir o avanço dos heróis.

Resoluto, o deus maquina pensamentos soberbos que reafirmam o seu lugar entre

as deidades olímpicas:

Está do Fado já determinado Que tamanhas vitórias, tão famosas, Hajam os portugueses alcançado Das Indianas gentes belicosas. E eu só, filho do Padre sublimado, Com tantas qualidades generosas, Hei de sofrer que o Fado favoreça Outrem, por quem meu nome se escureça?399

396 Os Lusíadas, 2008, canto I, estrofe 32, p. 27. 397 Idem, canto X, estrofe 09, p. 281. 398 Entre os gregos da Antiguidade, Letes “é uma divindade feminina que forma um par contrastante com Mnemosyne, deusa da memória e mãe das musas. Segundo a genealogia e teogonia, Lete vem da linhagem da Noite (em grego Nyx, Nox em latim), mas não posso deixar de mencionar o nome de sua mãe. É a Discórdia (em grego, Eris, em latim, Discordia) – o ponto escuro nesse parentesco”. Como nos lembra Jacy Seixas, o rio do esquecimento “não constitui necessariamente uma divindade negativa ou necessariamente funesta”. Desta forma, a relação entre Mnemosyne e Letes “não configura um mito unificado da memória e do esquecimento (inexistente tanto em Hesíodo quanto em Píndaro); mas a realidade do esquecimento imbrica-se à da memória”. Ver: WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 24. Ver também: SEIXAS, Jacy Alves de. “Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica”. In: História: questões & debates. Curitiba: Editora da UFPR, n. 32, vol. 17, 2000, p. 79. 399 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 74, p. 103.

Page 151: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

151

A vaidade é retratada como conduta vil que impede o respeito às

hierarquias e, logo, a manutenção da paz pública. Na narrativa camoniana, Baco

desrespeita seu pai, crime grave e passível de punição. O deus do vinho arquiteta

seus pretensos enganos à revelia do poder instituído, atitude indigna e fruto da

cobiça, da supervalorização das vontades particulares. Em Tomás de Aquino, a

vaidade conforma-se a uma atitude imprudente, pois se baseia na “falta de governo

de si próprio” e na cega priorização do particular em detrimento do bem comum, o

que incita o desrespeito às escalas superiores da hierarquia.400 Os pensamentos

soberbos de Baco remontam às ações de Juno que, no contexto da Eneida, cogita

“no íntimo do peito” os seus privilégios, uma vez que precede os imortais e é “de

Jove esposa e irmã”.401 Baco se envaidece por ser “filho do Padre sublimado” e se

deixa dominar pela ira e insanidade, à maneira de Juno. A postura de ambos os

deuses dista em grandes proporções da de Vasco da Gama e de seus pares,

apresentados como súditos fiéis ao rei:

Corrupto já e danado o mantimento, Danoso e mau ao fraco corpo humano; E, além disso, nenhum contentamento, Que sequer da esperança fosse engano. Crês tu que, se este nosso ajuntamento De soldados não fora Lusitano, Que durara ele tanto obediente, Porventura, a seu Rei e a seu regente?402

Se, de um lado, há um deus vaidoso que facilmente desrespeita as

ordens do pai/rei/deus, de outro agem os lusitanos, homens que, mesmo submetidos

aos mais graves infortúnios, continuam a acatar as ordens e a respeitar a hierarquia.

No primeiro caso, situa-se a corrupção do bom juízo promovida pela vaidade; no

segundo, o juízo dos heróis traduzido em fidelidade. A estrofe acima afirma que a

obediência é devida não somente ao rei, mas também a Vasco da Gama, aquele

que representa e manifesta a vontade do rei em ocasião de sua ausência. Em outros

termos, nas adjacências de sua nau, Gama é aquele que mais detém voz de

400 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 31-32. 401 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro primeiro, pp. 6-7. 402 Os Lusíadas, 2008, canto V, estrofe 71, p. 163.

Page 152: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

152

comando, devido ao lugar privilegiado que ocupa na hierarquia política e por agir

como instrumento do rei, que se faz presente por seu intermédio.

Se o deus Baco, através de uma fala vaidosa, utiliza a origem nobre como

critério para justificar sua fama e contrariar a vontade providencial, Jorge

d’Albuquerque Coelho assume uma postura modesta ao afirmar que os incidentes

ocorridos com a nau Santo Antônio seriam devidos aos seus pecados e faltas.403 Em

um de seus discursos, após ter passado por inúmeras provações, o protagonista

admitiu a gravidade dos vários trabalhos e danos sofridos, mas utiliza este mesmo

argumento para demonstrar que cada superação deveu-se à intervenção divina. Em

seguida, ele afirma que os trabalhos e provações são mimos do Senhor, e que Ele

os deixaria viver para testemunhar seus milagres. Na conclusão, além de invocar

uma passagem do Evangelho, o narrador utiliza uma metonímia e uma hipérbole

para arrematar a ideia nuclear de seu argumento: “Portanto, irmãos meus, postos

neste estado de fé e confiança neste Senhor, esperemos que neste pedaço de pau

nos livrará do profundo abismo do mar”.404 A postura de Jorge d’Albuquerque Coelho

não dista muito da de Vasco da Gama e contraria os argumentos de Baco. Enquanto

o deus menciona sua estirpe nobre, seu poderio e seus direitos enquanto divindade

do panteão grego, o heroi católico alude à sua condição de pecador, continua a

cumprir com seus deveres de súdito e admite que qualquer poder provém de Deus e

da sua providência.405

Na Prosopopeia, também protagoniza por Jorge de Albuquerque Coelho,

o aedo lhe atribui grandes virtudes e refere a sua origem nobre:

E vós, sublime Jorge, em quem se esmalta A estirpe d’Albuquerques excelente, E cujo eco da fama corre e salta Do cauro glacial à zona ardente, Suspendei por agora a mente alta Dos casos vários da olindesa gente, E vereis vosso irmão e vós supremo No valor abater Quirino e Remo.406

403 Idem, p. 270. 404 Idem, p. 283. 405 Sobre os discursos pronunciados por Jorge d’Albuquerque Coelho ao longo do relato de naufrágio da nau Santo Antônio, ver: VITORINO, Clara. A “palavra” de Jorge de Albuquerque. Ensaio sobre “Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque vindo do Brasil no ano de 1565”. In: SEIXO, Maria Alzira; CARVALHO, Alberto. A História Trágico-Marítima: análises e perspectivas. Lisboa: Edições Cosmos, 1996, pp. 200-207. 406 Prosopopeia, 2008, canto III, p. 124.

Page 153: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

153

O elogio que o aedo lhe dirige não contradiz a modéstia do heroi, muito

pelo contrário: reafirma suas virtudes. Quando Baco menciona suas próprias

conquistas e méritos, seu discurso soa como vaidoso, sobretudo pela conduta que

ele assumiu ao longo da narrativa. No caso de Jorge d’Albuquerque, suas virtudes

são mencionadas pelo narrador, e não por ele próprio, o que confere aos dizeres

certo grau de confiabilidade e aceitação. Por outras palavras, o decoro do discurso

em homenagem a um terceiro corresponde à falta de decoro de um discurso que

tem por objeto as virtudes do próprio orador que o profere. A tópica retórica

mobilizada em ambos os casos é a da origem (genus), segundo a qual os filhos

geralmente se assemelham aos pais e aos ancestrais. A maneira como ela foi

utilizada nos exemplos referidos, contudo, causam juízos opostos: de um lado, a

fama da família Albuquerque, de Pernambuco, e de outro, a infame ancestralidade

das divindades pagãs.

O herói católico bem ajuizado, portanto, é aquele que prioriza o bem

comum e se manifesta tal como o rei se manifestaria caso estivesse presente,

utilizando de seu discernimento e ponderando bem o seu agir. Esta impossibilidade

de o rei se fazer presente fisicamente e, em contrapartida, a presentificação do

mesmo através da fidelidade de seus súditos é essencial para a construção da ideia

política de um reino, como nos adverte Ana Paula Megiani:407 a ordenação do reino

dependeria do compromisso dos homens e de sua disposição enquanto súditos

atentos e benevolentes. O jesuíta Baltasar Gracián, em suas máximas sobre a

prudência, discorre sobre este bom juízo:

Nem todo mundo é rei, mas seus atos devem ter a mesma dignidade, dentro dos limites de sua esfera. Uma maneira régia de fazer as coisas: grandiosidade de ação, uma mente sublime. É preciso assemelhar-se a um rei em mérito, mesmo não sendo, pois a verdadeira soberania está na integridade dos costumes. Não teremos de invejar a grandeza se se pudermos servir-lhe de padrão. Aqueles que se encontram próximos ao trono, em especial, devem tentar assimilar um pouco da verdadeira superioridade. Procurem partilhar os dons morais da majestade, em vez da pompa, e aspirar a coisas elevadas e substanciais, em vez da vaidade tola.408

Dentre os lugares comuns presentes nesta passagem, situam-se a

dignidade do agir, a importância do mérito e da integridade dos costumes e a

407 MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004, p. 16. 408 GRACIÁN, Baltasar. A Arte da Prudência. São Paulo: Martin Claret, 1998, aforismo 103, p. 63.

Page 154: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

154

superioridade moral (que orientam o agir) frente à pompa (aspiração de prêmios e

mercês). Por outras palavras, o homem deve se espelhar em um bom rei,

independente se integra ou não a realeza ou se ocupa uma posição de destaque no

corpo político do Império. Como estímulo, ele deveria “aspirar a coisas elevadas e

substanciais”, atento aos desígnios que partem da Providência.

Os homens que ocupam lugares privilegiados no corpo social deveriam

interceder pelos seus subordinados. A importância da posição que se ocupa é

proporcional à gravidade das responsabilidades adquiridas, o que faz do rei,

representante de Cristo na terra, o grande responsável pela administração do

Império. Neste sentido, a vaidade é intolerável em um organismo que pretende

manter sua coesão com base na prescrição de lugares hierárquicos. Ela indispõe um

indivíduo contra o outro, ao mesmo tempo em que o leva a conferir primazia aos

seus interesses privados. Esta atitude intensifica o seu descaso pelos seus pares e

altera os seus interesses mais urgentes: a prioridade passa a ser fruto da cobiça.

Torna-se latente o desejo por fama e glória, e não mais a submissão ao bem

coletivo. A vaidade leva o pastor terreno a querer se igualar e substituir o verdadeiro

“Pastor”, tutor das ovelhas: Cristo.

A fidelidade, que segue em direção contrária à vaidade, ajuíza os homens

quanto aos caminhos retos que devem ser percorridos. Os súditos deveriam

incorporar os desígnios que partiam da Coroa portuguesa, e abraçá-los

independentemente da ocasião. Quando desembarca nas proximidades da cidade

de Melinde, por exemplo, Vasco da Gama é bem recepcionado, mas, precavido, o

herói opta por não desembarcar de imediato e envia um emissário até o rei para

justificar a sua conduta:

E não cuides, ó Rei, que não saísse O nosso Capitão esclarecido A ver-te ou a servir-te, porque visse Ou suspeitasse em ti peito fingido; Mas saberás que o fez, por que comprisse O regimento, em tudo obedecido, De seu Rei, que lhe manda que não saia, Deixando a frota, em nenhum porto ou praia. E, porque é de vassalos o exercício, Que os membros têm, regidos da cabeça, Não quererás, pois tens de Rei o ofício, Que ninguém a seu Rei desobedeça [...];409

409 Os Lusíadas, 2008, canto II, estrofes 83-84, pp. 70-71.

Page 155: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

155

Camões recorre à metáfora do corpo místico para discorrer sobre a

função da “cabeça” do reino e de seus “membros”. É obrigação do súdito, portanto,

cumprir o regimento que lhe compete e manter-se fiel a ele. No caso, o emissário

afirma ao rei que Gama não nutria suspeitas em relação à sua boa intenção quando

se recusou a desembarcar, mas o fez por respeito à cabeça do reino.

Após a deliberação do emissário, o rei de Melinde se mostra

impressionado com a fidelidade de Vasco da Gama:

[...] E o Rei ilustre, o peito obediente Dos Portugueses na alma imaginando, Tinha por valor grande e mui subido O do Rei que é tão longe obedecido.410

Apesar de desejar o desembarque imediato dos navegantes lusitanos, o

rei aceita a resolução do herói, pois reconhece na postura de Vasco da Gama algo

ilustre a ser preservado:

De não sair em terra toda a gente, Por observar a usada preeminência, Ainda que me pese estranhamente, Em muito tenho a muita obediência. Mas, se lho o regimento não consente, Nem eu consentirei que a excelência De peitos tão leais em si desfaça, Só por que o meu desejo satisfaça.411

O rei de Melinde tem em alta estima a preeminência, ou seja, o respeito

às ordens superiores. Na sua posição de rei, esta disposição de ânimo é essencial

para a articulação e administração de um Império. Ele, então, age de maneira

contrária à de Baco: longe de criar qualquer ressentimento contra os portugueses,

ele coloca em segundo plano suas vontades e prioriza a determinação dos visitantes

estrangeiros. Mais uma vez, a ausência de vaidade demonstra a boa disposição do

rei, ao contrário dos mouros que, até então, haviam travado conhecimento com

Gama e sua tripulação. É sobre a égide deste juízo prudente que, posteriormente, o

rei mouro e o herói lusitano travariam amizade. Por outro lado, se o rei de Melinde

mostra-se surpreendido, é por desígnio providencial, que ilumina seu entendimento.

410 Idem, canto II, estrofe 85, p. 71. 411 Idem, canto II, estrofe 87, p. 71.

Page 156: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

156

Nesta leitura, Vasco da Gama age como instrumento que apresenta ao infiel a

verdade por intermédio da Revelação. Não por acaso, o poeta deixa transparecer a

centralidade do papel desempenhado pelo rei de Melinde, referindo-se a ele como

“Rei mais amigo”,412 “Sublime Rei”,413 “Rei benigno”,414 “Rei ilustre”,415 “Rei

Pagão”,416 e “Pagão benigno”.417

O bem comum é apresentado como uma meta associada aos interesses

do Estado português. Ele nasceria, conforme Hansen, “do controle que os membros

desse corpo deviam impor-se a si mesmos, reprimindo os apetites particulares, para

obterem e manterem a concórdia do todo, como unidade pública da paz”.418 Frente a

esta assertiva, deduz-se o seguinte: o todo depende de suas partes para concretizar

a “unidade pública de paz”; a parte necessita conter os “apetites particulares” em

prol da coletividade. Por outras palavras, a pessoa, para ser aceita e fazer parte do

“corpo” em que vive, deve agir e ser o que este corpo dela espera; em contrapartida,

o corpo precisa de “partes” comprometidas para proporcionar a concórdia. Ser

prudente, nesta chave escolástica, significa se tornar a peça que a monarquia cristã

portuguesa almeja para o quebra-cabeça do bem comum.

A conduta dos heróis afina-se à noção de prudência política adotada por

Tomás de Aquino. Trata-se de uma forma de “retidão de governo”, a partir da qual os

súditos, fazendo bom uso do livre arbítrio, deveriam “dirigir-se a si mesmos na

obediência aos governantes”, evitando a priorização de si em favor do bem

coletivo.419 Nesta medida, a pessoa deve governar a si mesma e, em consequência,

se deixar governar pelo rei ou superior hierárquico a quem deve serviço. Como

exemplo, há um trecho de Jerusalém Libertada na qual os grandes heróis cristãos se

dobram perante a integridade de Godefredo:

Os mais o aprovam. Cabe-lhe o comando E o conselho também; leis á vontade Impor aos que se forem sujeitando; E escolher guerra e paz em liberdade.

412 Idem, canto II, estrofe 61, p. 65. 413 Idem, canto II, estrofe 79, p. 69. 414 Idem, canto II, estrofe 82, p. 70 e canto II, estrofe 104, p. 76. 415 Idem, canto II, estrofe 85, p. 71. 416 Idem, canto VI, estrofe 01, p. 173. 417 Idem, canto VI, estrofe 03, p. 173. 418 HANSEN, João Adolfo. “Introdução”. In: PÉCORA, Alcir. Poesia seiscentista – Fênix renascida & Postilhão de Apolo. São Paulo: Hedra, 2002, pp. 27-28. 419 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 52-53.

Page 157: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

157

Os dantes seus parceiros do seu mando Se submetem agora à autoridade. Isto feito, voando corre a fama, E pela voz dos homens se derrama.

Godefredo aos soldados aparece, Que o julgam digno do supremo posto; E as saudações que a multidão lhe tece E o aplauso aceita plácido, composto. Depois de tantas mostras agradece De obediência e amor, sereno o rosto, Decide, mal o dia vindo seja, Que a hoste pronta em largo campo esteja.420

Antes desta aprovação, contudo, os guerreiros cristãos ouviram uma

máxima que lhes ergueu o ânimo, proferida por um ancião de nome Pedro, o Ermita:

Formai um corpo só, o qual sustenham Todos os membros seus, como é preciso; Um chefe nomeai-lhe; e que este o império Exercite no sumo ministério.421

É razoável supor que a conotação orgânica a que incorre tal advertência

ajusta-se à metáfora do corpo místico, pois cada integrante do exército cristão

deveria agir conforme autoridade do chefe que seria escolhido. É a partir deste

conselho que todos optam por se submeter à Godefredo, escolhido por Deus para

guiar as tropas cristãs rumo a Jerusalém. Com placidez, isto é, sem afetação ou

cerimônia demasiada, o herói de bom grado acata a “obediência” e o “amor” de seus

subordinados. Bela conjunção esta, que equipara a obediência à liberdade da ação

reta, e o amor ao laço filial que transcende a pura serventia. O amor, certamente

com conotações platônicas, investe o súdito de um ânimo que ultrapassa qualquer

interesse ou vaidade. Só com amor e obediência seria possível formar o tal “corpo”,

encabeçado pelo chefe, nomeado pelos súditos e escolhido por Deus.

Decerto, os súditos nada fariam caso não houvesse uma política de

benefícios da qual pudessem usufruir. A fidelidade, na épica camoniana, é

recompensada pela obrigação da reciprocidade, isto é, o ato de servir pressupõe

certos benefícios àquele que serve como, por exemplo, em ocasiões nas quais o rei

confia ao súdito uma grande responsabilidade. O aedo d’Os Lusíadas contempla

420 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofes 33-34, p. 121. 421 Idem, canto I, estrofe 31, p. 120.

Page 158: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

158

este lugar comum, recorrendo à tópica da amizade que se estabelece entre o rei

português e o nauta Vasco da Gama, no momento em que este último é designado

para liderar a empresa ultramarina:

E com rogo e palavras amorosas, Que é um mando nos Reis que a mais obriga, Me disse: “As cousas árduas e lustrosas Se alcançam com trabalho e com fadiga; Faz as pessoas altas e famosas A vida que se perde e que periga, Que, quando ao medo infame não se rende, Então, se menos dura, mais se estende. Eu vos tenho entre todos escolhido Para uma empresa, qual a vós se deve, Trabalho ilustre, duro e esclarecido, O que eu sei que por mi vos será leve.” Não sofri mais, mas logo: “Ó Rei subido, Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve, É tão pouco por vós, que mais me pena Ser esta vida cousa tão pequena.”422

Neste episódio, o rei D. Manuel menciona a bravura e a experiência de

Vasco da Gama e, por isso, lhe concede uma missão ilustre. Antes disso, o rei

disserta sobre a necessidade e o valor do “trabalho”, quando visa o bem estar geral:

é esta motivação que, de fato, confere glória e fama aos homens munidos de

princípios, garante o rei. Este é um lugar comum presente, por exemplo, nos escritos

de Hesíodo, quando este afirma: “A riqueza é sempre acompanhada de mérito e

glória. E seja qual for a tua sorte, trabalhar é o melhor para ti”.423 Recorrendo ao

lugar da amizade, o rei concede ao protagonista trabalho “ilustre, duro e

esclarecido”. Estas instruções e o reconhecimento movem o herói que, animoso,

acata as designações prontamente. Ao final, o aedo recorre à tópica da brevidade da

vida, presente, por exemplo, nos textos de Homero, como no caso em que é

retratado o ressentimento de Aquiles perante a sua condição de mortal. Outro

episódio, do qual extraímos o fragmento abaixo, é resultado de uma conversa entre

o troiano Glauco e o grego Diomedes:

[...] Símile à das folhas, a geração dos homens: o vento faz cair as folhas sobre a terra. Verdecendo, a selva

422 Os Lusíadas, 2005, canto IV, estrofes 78-79, p. 141. 423 HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Tradução de Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2010, pp. 76-77.

Page 159: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

159

enfolha outras mais, vinda a primavera. Assim, a linhagem dos homens: nascem e perecem.424

Havia uma fronteira intransponível que distinguia a condição humana da

condição das divindades: o homem, na épica de Homero, apresenta vida curta,

enquanto os deuses viviam eternamente. Em Camões, este lugar recobra outra

dimensão: a imortalidade da alma, possibilidade cristã de salvação e vida eterna.

Esta finalidade seria alcançada se o vassalo cristão se dispusesse a cumprir seu

legado, definido, legitimado e sugerido pelo rei, representante de Cristo na terra e

detentor de um lugar sacro e hierarquicamente sem equivalência.

O comprometimento dos súditos assegurava a possibilidade de

premiações justas e dignas. A reciprocidade, neste caso, é proporcional aos serviços

prestados em favor da Coroa portuguesa, como ensina Bento Teixeira em sua

Prosopopeia:425

Mas quem por seus serviços bons não herda, Desgosta de fazer coisa lustrosa, Que a condição do rei que não é franco O vassalo faz ser nas obras manco.426

A falta de franqueza por parte do rei que não valoriza a fidelidade de seus

súditos é entendida como indecorosa, pois não cumpre com os protocolos da

reciprocidade. A não premiação, neste caso, seria um repelente contra qualquer boa

vontade que pudesse partir do leitor. São prudentes aqueles que, ansiosos por

ascensão social, servem ao rei; por outro lado, é prudente o rei que estimula e

incentiva a boa disposição de seus subordinados. Tomás de Aquino fala de uma

modalidade de prudência muito particular, que nomeia “prudência de reinar”,427

compatível com o modelo de rei justo ao qual nos referimos. Para cogitar a

possibilidade de uma relação concorde, anseia-se pela manutenção de um “pacto”

político, a partir do qual uma das partes se dispõe a servir perscrutando benesses e

recompensas, e a outra concede honrarias diversas para, assim, obter respeito.

424 HOMERO. Ilíada (em versos). Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, canto VI, pp. 146-150. 425 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013, pp. 121-122. 426 Prosopopeia, 2008, canto XX, p. 129. 427 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 51-52.

Page 160: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

160

O pacto político, entretanto, prescreve modos de agir convenientes ao

poder vigente, de tal maneira que as prioridades do monarca se confundem com as

prioridades do herói anunciado. O herói personifica, assim, a vontade do rei, agindo

como braço do mesmo e, inversamente, na ausência do rei, ele encabeça a

hierarquia, sempre atento às prescrições reinóis, pois anseia por reconhecimento e

premiações. O poeta, à sombra deste poder, dispõe lugares hierárquicos e instrui

sobre a maneira prudente de agir, pois se trata de um agir subserviente à Coroa.

Vislumbrar possibilidades de reciprocidade, neste modelo de ação, é antever o que

pode vir a ocorrer e perscrutar com perspicácia as boas oportunidades que,

porventura, surgirem.428

Caberia ao rei, enquanto administrador do Império, cativar e qualificar os

seus súditos e movê-los na direção que lhe convinha: já o súdito deveria ser fiel e

grato ao rei:

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse A quem ao bem comum e do seu Rei Antepuser seu próprio interesse, Immigo da divina e humana Lei. Nenhum ambicioso, que quisesse Subir a grandes cargos, cantarei, Só por poder com torpes exercícios Usar mais largamente de seus vícios;429

A estrofe acima trata do súdito que quebra o “pacto”, pois retrata alguém

que privilegia suas ambições e abandona o bem comum e a lealdade ao rei. Em

decorrência desta atitude, este súdito se torna inimigo da lei divina e da lei civil. A

fidelidade, portanto, é avaliada como escolha prudente e legítima. A vaidade, por

outro lado, é tratada como ilegítima e própria daqueles que se encontram ou se

colocam à margem do poder legitimado. Como observa Camões, a vaidade leva o

indivíduo a ser inimigo da “divina” e da “humana” lei. Isto nos remete a uma

passagem trágica da Antígona, de Sófocles:

Destaca-se a prudência sobremodo Como a primeira condição Para a felicidade. Não se deve Os deuses ofender em nada. A desmedida empáfia nas palavras

428 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013, pp. 33-56. 429 Os Lusíadas, 2008, canto VII, estrofe 84, p. 221.

Page 161: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

161

Reverte em desmedidos golpes Contra os vaidosos que, já na velhice, Aprendem, afinal, prudência.430

Sófocles contrapõe as leis humanas, defendidas pela heroína Antígona, e

as leis da pólis, protegidas pelo então governante Creonte. O embate é resultado de

uma iniciativa da protagonista, que decide enterrar seu irmão Polinices contra a

vontade do líder político. Este, que representa o Estado e lhe devota cega

obediência, tende a suprimir as vontades particulares da Antígona em prol das leis

positivas. Ambas as personagens, no caso, delinquiram: uma por desafiar as leis do

homem, e outra por desconsiderar as leis divinas. Ambas foram igualmente punidas:

Antígona foi enterrada ainda com vida e Creonte foi responsabilizado pelo suicídio

do filho Hémon, noivo da Antígona, e de sua mulher Eurídice, que culpou o

governante pelo trágico destino do filho.431 Sendo assim, aquele que antepõe seus

interesses privados acima da lei do Estado e/ou da lei divina acaba por se exceder,

ainda que a Antígona, ao contrário de Creonte, não tenha incorrido em hybris: se

Sófocles prescreveu os castigos da pena de morte e da perda de entes queridos,

Camões reiterou o esquecimento como consequência de atitudes igualmente

imprudentes, que desmerecem louvor, fama, glória e, sobretudo, salvação.

O amor:

Um dos episódios mais conhecidos d’Os Lusíadas trata das desventuras

pelas quais passou a personagem Inês de Castro, amante do príncipe Pedro. Após a

430 SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 68. 431 Pierre Aubenque nos lembra: “o crime de Creonte, o que constitui sua ‘desmesura’, certamente não é ter preferido sua cidade à suas afecções (pois isso nunca foi crime para os gregos), mas, ao recusar sepultura a seu inimigo morto, o de ter ultrapassado os poderes do homem que se detém diante das portas da morte. A culpa de Creonte foi ter querido substituir os deuses para solucionar um problema humanamente insolúvel. Ao fim da tragédia, é um Creonte mal arrependido que vai lançar ao coro uma última réplica e dar lugar ao mais belo hino jamais escrito em louvor à prudência”. Em relação à passagem da Antígona, que retomamos na página anterior, Aubenque levanta algumas diretrizes que atravessam a lição ensejada: “fazer o melhor a cada passo, se preocupar com as conseqüências previsíveis, mas deixar o imprevisível aos deuses; suspeitar das ‘grandes palavras’, que não são somente vazias, mas perigosas, quando se pretende aplicá-las sem mediações à realidade humana que talvez não esteja predestinada a ceder-lhes; não rivalizar com os deuses na possessão de uma sabedoria sobre-humana, que rapidamente se revela inumana quando pretende impor conclusões ao homem. É tudo isso, que não se aprende senão com a idade e a experiência, que a tragédia já chamaria phronein”. AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 260-261.

Page 162: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

162

morte de seu pai, D. Afonso IV, Pedro tornou-se imperador de Portugal (1357).

Quando trata desta matéria, o aedo enumera as características do amor:

Tu, só, tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.432

O poeta prepara o leitor para uma narrativa de cunho trágico e, por isso,

relaciona o amor à tragédia, atribuindo a ele adjetivos como “áspero” e “tirano” e

chamando a atenção para a sua dimensão irracional. Torquato Tasso, em Jerusalém

Libertada, retrata esta mesma dimensão ao dizer:

Debalde! Amor aconselhar que importa? Para a prudência nunca ouvidos teve.433

O amor pode atrelar-se, ainda, ao esquecimento: na Odisseia, o amor

muitas vezes impediu a consecução do retorno de Ulisses a Ítaca. Harald Weinrich

retoma dois episódios significativos a esse respeito: o primeiro, localizado no décimo

canto, narra as aventuras de Ulisses e de seus homens nas terras desconhecidas da

deusa Circe. Antes de transformar os emissários do herói em porcos, Circe deu a

eles uma bebida enfeitiçada, que causava o esquecimento. Quando os emissários

bebem da “droga do esquecimento”, deixam de priorizar o retorno e os laços de fides

com seu comandante. Ulisses resiste ao encantamento graças a um antídoto cedido

por Hermes, mensageiro dos deuses. Desta forma, ele pôde convencer a deusa a

conferir forma humana novamente aos seus companheiros. Não obstante tenha se

livrado do encantamento das drogas, Ulisses logo seria vítima de outro, mais eficaz

e contra o qual não há antídoto: o amor. O herói fica na companhia da deusa

durante um ano, período no qual deixa de priorizar o retorno. O estímulo dos amigos

é que confere ao amante novo fôlego para consecução do nóstos.

No segundo episódio, Ulisses enamora-se de Calipso, ninfa repleta de

artimanhas. Também neste caso, o amor separou o herói do retorno durante sete

432 Os Lusíadas, 2008, canto III, est. 119, p. 110. 433 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto V, estrofe 78, p. 226.

Page 163: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

163

longos anos. A ninfa chega a oferecer a ele o néctar e a ambrosia, elementos

associados à imortalidade. Tornando-se imortal, Ulisses esqueceria todos os laços

terrenos. Mais uma vez Hermes, a mando de Zeus, comunica a Calipso os intentos

do deus patrono de deixar o herói partir. Poseidon, desaprovando a intromissão de

Zeus, lança uma tempestade que destrói a balsa do herói. É assim que Ulisses

acaba chegando à terra dos feácios, local onde narra estas duas peripécias

aludidas.434

Ora, o que é a vaidade senão a expressão corrente de um amor próprio

em demasia? O que é a paixão cega senão um mal irracional e, portanto, destituído

de comedimento? Entretanto, o que seria da fidelidade não fosse o amor nutrido

pelo outro? Haveria sacrifícios, não estivesse o amor presente no peito dos heróis?

No Banquete, Platão assegura que “às ações vis e desonestas se liga a

desonra e às boas ações está ligado o amor”.435 Em seguida, ele assevera:

Se fosse possível formar, por algum modo, um Estado ou um exército exclusivamente composto de amantes e amados, assim se obteria uma constituição política insuperável, pois ninguém faria o que fosse desonesto, e todos, naturalmente, se estimulariam para a prática de belas coisas.436

No primeiro caso, o amor institui a bondade. No segundo, ele fundamenta

uma constituição política adequada. Além disso, há que se considerar o ato do

sacrifício, pois, segundo Platão, “só o fazem os que verdadeiramente amam”.437

Na Ética a Nicômaco, Aristóteles discorre sobre a amizade associando-a

ao amor. Para tanto, ele escreve sobre três espécies de amizades: duas delas são

acidentais, pois uma volta-se para a utilidade e a outra para o prazer. A terceira

modalidade, entendida como a mais perfeita, fundamenta-se em uma relação

recíproca estabelecida entre homens igualmente dotados de virtude. Esta é a mais

perfeita relação porque se baseia no amor incondicional e durável. Desta forma, “os

inferiores serão amigos em vista do prazer ou da utilidade”, ao passo em que os

homens de bem “são semelhantes entre si por serem bons”.438 Esta última

434 Ver: WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 34-37. 435 PLATÃO. Apologia de Sócrates; Banquete. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 1999, p. 103. 436 Idem, p. 104. 437 Idem, ibidem. 438 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro VIII, IV, p. 180.

Page 164: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

164

modalidade deve reger e fundamentar um modelo político baseado na monarquia.

Aristóteles afirma que o monarca “faz bem aos seus súbditos, na medida em que,

sendo bom, olha por que eles vivam bem, tal como o faz o pastor com os seus

rebanhos de cabras. Daí também que Homero chame a Agamémnon ‘pastor de

povos’”.439

A disposição do governante para com os seus governados reflete uma

relação baseada no amor. Ele se volta para o bem comum ao contrário dos

vaidosos, como preconiza o próprio Aristóteles:

Nós criticamos as pessoas que se amam a si próprias dizendo delas depreciativamente que estão “apaixonadas por si próprias”. Também parece que o vil faz tudo por paixão por si, e quanto mais depravado for, tanto mais está apaixonado por si – há queixas contra ele por não ser capaz de fazer nada que se desvie do seu interesse. Mas o que é excelente age em vista da nobreza da ação e quanto melhor for a pessoa, tanto mais age com esse objetivo em vista. Age em vista do si de outrem amigo, deixando o seu próprio si de lado.440

Não é por acaso que Camões associa a vaidade à tirania, valendo-se da

tópica do “desconcerto do mundo”:

E vê do mundo todo os principais Que nenhum no bem público imagina; Vê neles que não têm amor a mais Que a si somente, e a quem Filáucia ensina; Vê que esses que frequentam os reais Paços, por verdadeira e sã doutrina Vendem adulação, que mal consente Mondar-se o novo trigo florescente. Vê que aqueles que devem à pobreza Amor divino, e ao povo, caridade, Amam somente mandos e riqueza, Simulando justiça e integridade. Da feia tirania e de aspereza Fazem direito e vã severidade. Leis em favor do Rei se estabelecem; As em favor do povo só perecem. Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, Senão o que somente mal deseja. Não quer que tanto tempo se revele O castigo que duro e justo seja.441

439 Idem, livro VIII, XI, p. 190. 440 Idem, livro IX, p. 210. 441 Os Lusíadas, 2008, canto IX, estrofes 27-29, pp. 258-259.

Page 165: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

165

Na primeira estrofe, o aedo afirma ao leitor que a vaidade (Filáucia)

encontra-se presente na maioria dos homens, que acabam desprezando o bem

público em prol de suas vontades particulares. É conveniente lembrar que a

adulação, atributo comumente associado a tais homens, opõe-se à amizade

verdadeira que não se baseia em interesses acidentais. O amor próprio mostra-se

“um terreno de acesso inteiramente propício à investigação sobre nós”;442 o adulador

encontra na vaidade alheia um convite para atuar. Na segunda estrofe, Camões

refere-se à tirania como modelo de governo que não se preocupa com as coisas

públicas e, por isso, encontra-se apartada do Amor divino, que incentiva a caridade

e a pobreza, e não o apego demasiado às riquezas e ao mando.

Há uma passagem digna de nota em Orlando Furioso (1516), de Ludovico

Ariosto. O protagonista, Orlando, passa boa parte da narrativa perseguindo sua

amada Angélica que, no entanto, não lhe correspondia o afeto. A fúria de Orlando,

referida a princípio no título da obra, é a fúria de um amante que se deixa afetar pela

paixão e, por isso, afasta-se da guerra e das obrigações conferidas aos súditos. No

canto XXIII, a loucura do protagonista fica mais explícita devido à revelação de que

sua amada havia correspondido a outro.443 Só ao final da epopeia é que o amigo de

Orlando, Astolfo, vai à lua para reaver o juízo do companheiro. Quando devolve ao

protagonista sua sanidade, este se esquece da amada e, assim, retorna à guerra

contra os “infiéis”. O amor que leva Orlando a desviar-se da razão é similar à atitude

de Eustáquio que, em Jerusalém Libertada, desacata as ordens de seu superior

para participar da escolta de sua amada.444 É necessário lembrar que o alvo de seu

amor era, na verdade, uma mulher repleta de más intenções, que queria desviar os

soldados cristãos do caminho da razão. O amor, neste caso mal direcionado,

desorienta o herói perante a hierarquia política e o cega, pois a prioridade que o

move é tão somente o bem estar da amada.

Aludindo ao poder do amor, Camões salienta:

Mas quem pode livrar-se, porventura, Dos laços que Amor arma brandamente

442 PLUTARCO. Como tirar proveito de seus inimigos, seguido de Da maneira de distinguir o bajulador do amigo. Tradução de Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 27. 443 Ver: ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso: cantos episódios. Tradução, introdução e notas de Pedro Garcez Ghirardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, pp. 255-256. 444 Ver: TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto V, estrofes 80-81, pp. 226-227.

Page 166: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

166

Entre as rosas e a neve humana pura, O ouro e o alabastro transparente? Quem, de uma peregrina formosura, De um vulto de Medusa propriamente, Que o coração converte que tem preso, Em pedra não, mas em desejo aceso?445

Para pintar os efeitos irresistíveis do amor, Camões refere-se à perícia

destrutiva da Medusa. Na mitologia, o herói Perseu é incumbido de trazer a

Polidectes, rei de Sérifo, a cabeça desta Górgona. Para fazê-lo, ele se vale de

acessórios e instrumentos que acentuam sua métis: um escudo “polido como

espelho” cedido por Atena, para revidar o olhar mortal da personagem, uma “foice

adamantina” fornecida por Hermes, para cortar-lhe o pescoço, sandálias aladas e o

elmo da invisibilidade de Hades, para facilitar-lhe a fuga posterior ao embate, e um

alforje especial para depositar a cabeça da oponente. Como se sabe, antes de ser

transformada em monstro horrendo, a Medusa fora uma linda donzela que ousou

competir com Minerva (equivalente à deusa Atena), incorrendo em hybris.

Interessante o paralelo de Camões que, para pintar o amor, recorre a uma

personagem cujo destino trágico decorre de sua vaidade e do atrevimento em tentar

se igualar a uma deusa (ou mesmo de superá-la).446

Vernant afirma que encarar a face da Medusa é lidar com o “outro”, com

“nosso duplo”, completamente estranho. Trata-se do exercício de uma “alteridade

radical”, efetivada ao “cruzar o olhar com o olho que por não deixar de nos fixar

torna-se a própria negação do olhar”.447 Ver e ser visto pela Medusa inaugura uma

relação de reciprocidade, na qual direcionamos um olhar que retorna, ao

depararmos com “nós mesmos no além”.448 Insiste Vernant:

Ver a Górgona é olhá-la nos olhos e, com o cruzamento dos olhares, deixar de ser o que se é, de ser vivo para se tornar, como ela, Poder de morte.

445 Os Lusíadas, 2008, canto III, estrofe 142, p. 116. 446 Sobre o mito da medusa, ver: HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Tradução de Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2010, pp. 35-36; OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003, livro quatro, pp. 89-101; BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. São Paulo: Martin Claret, 2006, pp. 158-160; PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 18-21; FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, pp. 243-249. 447 VERNANT, Jean-Pierre. A morte dos olhos: figurações do outro na Grécia antiga. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 105. 448 Idem, p. 106.

Page 167: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

167

Encarar Gorgó é perder a visão em seu olho, transformar-se em pedra, cega e opaca.449

Nesta circunstância da efetivação da alteridade extrema, entramos em

contato com “a maior das distâncias” e com “o estranhamento mais completo”.450 O

amor descrito por Camões é igualmente fruto da reciprocidade, da alteridade vertical,

isto é, se o olhar fulminante da Górgona nos arremessa para baixo, em direção à

morada de Hades, o amor nos impele às alturas. Se o olhar da Medusa nos

apresenta a morte inevitável, o amor concede-nos vida, daí a contraposição entre a

“pedra”, fim daquele que encara a monstruosidade mitológica, e o “desejo aceso”,

chama viva e densa que interpele o viver conjugal. Neste caso, ser um “vulto de

Medusa” significa apreender seus dotes inquebrantáveis, mas em um novo sentido,

fundamentado nos laços formosos e brandos do Amor. Não seria o amor, neste

caso, fruto igualmente de uma “alteridade radical”?

Voltando ao caso de Inês de Castro, sua morte foi fruto de um amor que,

para a maioria de seus contemporâneos, era proibido e prejudicial:

Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o filho que tem preso, Crendo com sangue só da morte indigna Matar do firme amor o fogo aceso.451

Para impedir que o príncipe Pedro se casasse com uma mulher

castelhana, o que poderia colocar em risco a autonomia de Portugal, o rei, seu pai,

sugere a morte da personagem, insinuação prontamente aceita pela nobreza. No

entanto, a pedido da moribunda, o rei apieda-se e concede-lhe clemência, mas os

nobres não se refreiam e assassinam Inês. É neste contexto que a estrofe acima

retomada faz sentido: o que se tenta fazer é tirar a vida de Inês para, assim, apagar

o fogo do amor que queimava no peito daquele que assumiria o trono português. Na

sequência, o príncipe Pedro torna-se rei e se vinga dos malfeitores que causaram a

morte de sua amada.

Quando é alertado sobre a morte de Pátroclo, Aquiles retorna à guerra em

busca de vingança. O mais forte dos aqueus enfrenta e aniquila o príncipe troiano,

ultrajando seu corpo ao redor do pátio de Tróia. Do amor devotado ao companheiro

449 Idem, p. 103. 450 Idem, p. 104. 451 Os Lusíadas, 2008, canto III, estrofe 123, p. 111.

Page 168: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

168

morto em batalha desdobra-se a indignação acompanhada de uma necessidade de

saciar o vazio com a atitude vingativa. Príamo, rei de Tróia, adentra com temeridade

o acampamento grego, encontra-se às escondidas com Aquiles e insiste na

devolução do corpo ultrajado de Heitor, para que as honras fúnebres pudessem ser

devidamente prestadas. Se não pôde poupar a vida do príncipe troiano, Aquiles ao

menos refreou sua ira para apiedar-se do rei lacrimoso e conceder-lhe a

possibilidade de enterrar seu filho e principiar o luto de maneira adequada. Neste

caso, a vingança associa-se à explosão apaixonada de Aquiles, que devotava

fidelidade ao amigo através de um pacto de convívio e de gratidão. Na epopeia

camoniana, trata-se de uma ação decorrente da injustiça cometida contra Inês,

pretendente de Pedro.

O amor reforça a constância do agir, reaviva a fidelidade, nutre os

caprichos dos vaidosos, atiça a paixão e, por isso, relaciona-se com a prudência de

formas variadas. Orlando apenas retomou o caminho da constância quando se

“esqueceu” definitivamente da amada. Recobrou o juízo e, então, a fidelidade ao rei.

A arte da prudência, nestes termos, pressupõe o controle das paixões, o que inclui o

amor. Este deve ser regido pela mediania, pois tudo o que envolve excessos

desdobra-se em uma atitude viciosa. É o amor prudente que reafirma a boa intenção

dos poetas quando, com modéstia, salientam a reta intenção que os move a

presentear o dedicatário. O amor garante, portanto, a reciprocidade, assim como

deveria garantir a amizade. É a amizade perfeita que garantiria os laços políticos

necessários para o reforço do bem comum e, portanto, o estabelecimento da

harmonia entre os integrantes do reino. A tópica da obediência, associada ao

sentimento do amor, justifica a boa conduta do súdito, que deveria mobilizar seu

livre-arbítrio em prol do bem comum.

É preciso repensar a afinidade entre razão e ordem, no que tange à

relação estabelecida entre amor e prudência. Não há ordem sem a intervenção de

homens prudentes. Por outro lado, uma amizade forte não sobrevive sem amor, pois

é através deste sentimento que os homens obedecem sem hesitar. O amor sustenta,

portanto, a manutenção da ordem e a produção do bem comum. Se for

desdobramento da imprudência, no entanto, o amor afasta-se da mediania e, por

isso, reproduz a discórdia. A amizade é uma chave de entendimento, pois o amor

ligado a ela deve ser necessariamente recíproco, e é a reciprocidade que sustenta a

Page 169: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

169

concórdia estabelecida entre o rei e os seus súditos. O amor, nesta direção, é ora

agente harmonizador, ora o responsável pela discórdia.

Recordemos a referência ao Cupido que Camões faz no canto IX de sua

epopeia. Esta personagem, conquanto utilize de suas setas para atiçar e seduzir os

homens, nem sempre mira com a prudência devida:

Destes tiros assim desordenados, Que estes moços mal destros vão tirando, Nascem amores mil desconcertados Entre o povo ferido miserando; E também nos heróis de altos estados Exemplos mil se vêm de amor nefando, Qual o das moças Bíbli e Ciniréia, Um mancebo de Assíria, um de Judéia.452

As alusões presentes neste trecho referem-se a personagens

emblemáticas: como é indicado nas notas da edição, Bíbli apaixonou-se pelo irmão,

Ciniréia pelo pai, Antíoco, o “mancebo de Assíria”, pela madrasta, e Amnon, “de

Judéia”, filho de David, se apaixonou pela irmã. Admite-se, então, uma faceta

nefasta do amor, que propulsiona relações “contra a natureza” e, portanto,

heterodoxas.

Mais tarde, Camões vai tratar do episódio da Ilha dos Amores, no qual

Vênus, auxiliada pelo filho, atiça o amor das Ninfas e Nereidas, para que estas

seduzissem os nautas portugueses. Repleto de alegorias, o episódio evidencia o

significado de tal sedução, afirmando que estas entidades mitológicas

personificavam a fama e a honra dos nautas lusitanos que, após a efetivação de

ações heroicas, acabam sendo imortalizados na memória. Cupido atende aos apelos

de Vênus: os lusitanos unem-se às deidades e, assim, a memória de seus feitos

torna-se matéria poética legada à posteridade. No entanto, para além desta faceta

do amor evidentemente marcante na epopeia, a deusa Tétis apresenta à Vasco da

Gama a “máquina do mundo”, tópica associada à cosmografia de Ptolomeu. Gama

tem uma visão privilegiada dificilmente concedida aos mortais, testemunhando os

fundamentos da revelação divina. Camões, no entanto, assevera:

Vês aqui a grande máquina do Mundo, Etérea e Elemental, que fabricada Assim foi do Saber, alto e profundo,

452 Os Lusíadas, 2008, canto IX, estrofe 34, p. 260.

Page 170: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

170

Que é sem princípio e meta limitada. Quem cerca em derredor este rotundo Globo e sua superfície tão limada, É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende, Que a tanto o engenho humano não se estende.453

O discurso platônico estabelece uma hierarquia de dimensões relativas ao

amor: amor às formas físicas belas, à beleza da mente, à ética, às instituições

(relativas ao governo e ao modo de governar), à ciência (responsável pela harmonia

e ordenamento do universo) e, por fim, à beleza em sua essência (ligada às

realidades superiores do universo, à visão do sol tematizada na alegoria da caverna

presente no livro VII da República). É nesta dimensão que o amor oscila entre a

mortalidade e a imortalidade, daí o Eros platônico não poder ser nem homem, nem

imortal. Todas estas dimensões do amor devem ser consideradas, pois o que Vasco

da Gama encontra não é outra coisa senão o “sol” da alegoria platônica transmutada

nas verdades da revelação cristã. O amor com as ninfas, no caso, seria o primeiro

estágio de um sentimento que ascende significativamente.

A ética cristã demarca a conduta dos portugueses durante toda a

narrativa. O amor pelas coisas perecíveis é substituído pela caridade e, portanto,

pelo desapego aos bens mundanos e apego às coisas elevadas. É o bem comum

que, dentre outras coisas, guiam os portugueses rumo ao estabelecimento da

concórdia e da harmonia mística do corpo político. A trajetória heroica leva,

inevitavelmente, à ascensão do herói que, assim, completa o percurso da vida e

obtém a imortalidade que lhe é devida, na forma não apenas de memória perene,

mas salvação, marcada pelo rompimento dos grilhões da caverna platônica e acesso

irrestrito às verdades providenciais.

Assim, seguindo mais ou menos a linha argumentativa evidenciada no

livro III e, sobretudo, no livro IV d’O Cortesão, o amor pode ser entendido como um

“móvel superior”, uma medida de acesso à virtude. Neste caso, a importância não

recai necessariamente sobre o sentimento do amor, mas sim nas motivações que o

amor imputa às suas partes, que tendem à superação e ao aperfeiçoamento das

virtudes, sendo, por isso, um “meio” adequado. O amor, ato da conquista e

manutenção do interesse recíproco, tende a mover a espécie humana rumo à

perfeição, sendo este sentimento devidamente orientado por preceitos prudentes e,

portanto, racionais, a integrar a virtude cortesã. Manuel de Sousa Sepúlveda, de 453 Idem, canto X, estrofe 80, p. 302.

Page 171: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

171

acordo com um narrador anônimo, é um homem generoso e liberal, pois se incumbe

de alimentar e auxiliar seus homens. Seu destino trágico e os vários trabalhos que

experimenta, portanto, contrastam com seu perfil de fidalgo nobre e cavaleiro.454 O

mesmo ocorre com Fernão d’Álvares Cabral, “fidalgo de muita estimação” no reino,

que enfrenta a desobediência de seus homens e convida-os a voltar à razão. Jorge

de Albuquerque Coelho também é retratado como detentor de liberalidade e

generosidade, que protagoniza uma relação de naufrágio e o poema de Bento

Teixeira.455 Estas duas virtudes partem da “cabeça” do organismo político, como se

pode ver no caso dos três capitães mencionados. Em meio às desventuras

vivenciadas ao longo da travessia, encontra-se, portanto, indícios de uma postura

cortesã motivados pelo amor às partes integrantes do corpo místico português.

O amor próprio e o amor não correspondido entre os deuses

No Naufrágio de Sepúlveda, o Amor ocupa, em algumas ocasiões, papel

análogo ao de Baco na epopeia lusíada, afinal, é ele o responsável pelo crime que

justifica todos os incidentes e infortúnios ocorridos com Sepúlveda e sua família. De

fato, ele seria a transposição semântica do estado de espírito do protagonista, como

adverte Hélio Alves.456 Quando não consegue unir o protagonista e Leonor de Sá em

matrimônio, devido à intervenção do pai da pretendente, Amor recorre à sua mãe,

Vênus, para enfrentar o “torpe, vil, baixo interesse”457 que acabou por contrariá-lo.

Quando descreve d. Leonor, o aedo toma sua beleza como sendo artifício divino:

A branca cor do rosto acompanhada De uma cor natural honesta, e pura E a cabeça de crespo ouro coberta Lembrança do mais alto céu faziam. Praxitheles, nem Phidias não lavraram De branquíssimo mármore igual corpo; Nem aquele, que Zêuxis entre tantas Formosuras, deixou por mais perfeito. Não se igualava a este, antes ficava,

454 HTM, p. 5. 455 Ver: MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: identidade e condição humana. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp. 222-229. 456 ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, p. 668. 457 CORTE-REAL, Jerónimo. Naufrágio de lastimoso sucesso de perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindo da Índia para este reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Lisboa: oficina de Simão Lopes, 1594, p. 21.

Page 172: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

172

Abatido, e julgado e pouco preço. Que mal pode igualar-se humano engenho Com aquilo em que Deus tal saber nos mostra. Da boca o suave riso alegra os ares Mostrando entre Rubis, orientais Perlas, E sobre tudo quanto a natureza Lhe deu perfeito, a graça se avantaja. No peito ebúrneo, as pomas que em brancura Levam da neve o justo preço e a palma Apartando-se, deixam de açucena Alvíssima um florido, e fresco vale. Quem pode (sem perder-se) louvar coisa Onde não chega humano entendimento? Oh fortuna cruel, que fim tão triste Guardaste para uma obra tão perfeita.458

Para Hélio Alves, o poder do Amor paira ostensivamente sobre homens e

deidades do poema de Corte-Real, não se tratando, porém, do amor “universal e

benevolente do cristianismo, mas o amor negativo, cruel e aniquilador da linguagem

do desejo sexualizado”.459 O aedo utiliza vários termos vis para defini-lo: menino

“cruel”, “bravo”, “soberbo”,460 “cego”, “tirano”, “injusto”, “malicioso”, “desleal”, “falso

amigo”, “vingativo”.461 Para perder sua aparência infantil, Amor une-se a seu irmão,

Anteros, e juntos partem rumo à ilha vingativa. O intuito de ambos era proporcionar o

assassinato de Luis Falcão, que deveria desposar Leonor de Sá. Para descrever a

ilha em questão, o poeta esboça um locus horrendus:

Em torno era cercada de fragosa Intratável, ferrenha penedia, Ouvem-se em cada parte aves noturnas Com funesto gemido, e voz carpida. Lá na primeira entrada junto à praia Se faz um aposento entre penedos: Entre cavernas negras onde um fogo Escuro, e negro lume, as carcomia. E na côncava sombra um varão fero Pesado, melancólico, e tristonho: De semblante cruel, de aspecto duro: De olhos sanguinolentos, residia. Grão contrário de Amor, de Amor se aparta Toda coisa amorosa lhe aborrece, Um pestífero ardor lhe abrasa o peito O rosto envolto mostra em cor sulfúrea.462

458 Idem, pp. 5-6. 459 Idem, p. 670. 460 Idem, p. 9. 461 Idem, p. 6. 462 Idem, p. 33.

Page 173: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

173

Sendo guiados pelo “pesado, melancólico, e tristonho” Ódio, Amor e seu

irmão cruzam com a Ira:

(...) uma brava, fera e alta giganta De semblante feroz e vista horrível Mostra ânimo indignado, que mil casos Pesados e cruéis empreenderia, De bravo aspecto e olhos inflamados Regando-os em veneno, arde em fúria. Alterada, e frenética se move Pela concavidade, e sítio estério, E com uivos e gritos a caverna Retumba com assento, e voz terrível.463

Acompanhados da Ira, seguem rumo ao paço da Determinação, que

apresentava dois rostos, um de aspecto benévolo, gracioso, humilde a afável, e

outro duro, áspero, obstinado e pronto para ocasionar males, trabalhos e perigos.

Optando pela segunda face, a comitiva completa-se e seguem rumo aos aposentos

de Raunusia. Antes da chegada, porém, um ancião de aspecto grave e venerável

intervém, e busca dissuadir o Amor:

(...) torna-te atrás ó cego moço, Não leves mais avante tal intento, Não vás aprisionado, que se fazes As cousas com furor terás fim triste. Não te entregues à cólera que induz Arrebatados ânimos a males, Olha que de tais obras, muitas vezes Sucede vários casos infelizes. O que contigo trazes deixa um pouco: Ficar-te-á libertado, claro o juízo, Que andar acompanhado de ódio e ira Ou uma, ou outra vez corre perigo. A determinação branda não deixes Por essa que te leva a um ímpio caso Olha que o movimento arrebatado Em grandes males é sempre homicida Com desapaixonados olhos anda, Tira deles o véu que a luz impede, Vais por caminho escuro pedregoso: Quem te leva, a um barranco te encaminha. Que esperas de Ódio, e Ira? Que pretendes Da determinação com que vais firme? Pois vais furioso, e cego, já te obrigas Passar pelo rigor de qualquer culpa.464

463 Idem, pp. 33-34. 464 Idem, p. 35.

Page 174: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

174

O “sábio antigo”, no entanto, não consegue impingir-lhe o bom juízo, pois

o Ódio, a Ira e a Determinação apressavam o Amor, afirmando que os dizeres de um

varão caduco de nada valiam. Deixando para trás os bons conselhos, logo chegam

aos aposentos da fúria:

Os paços de Raunusia fabricados Na boca estão de um longo escuro vale Pelo qual vem correndo com bramido Arrepiado, e medonho, um rio de sangue. Traz a funesta veia cem mil corpos E cem mil rostos pálidos tombando Em represados lagos se sumia Aquele objeto triste miserável. Os altos aposentos rodeados De armas, e vários modos de vingança, Carregado, e mortífero era o sítio: Com sombras e sinais de mau agouro.465

Não há, na caverna, pintura de vivas cores, mas nódoas tristes e “mil

sinais horrendos” espalhados pelas paredes, com memórias de vinganças já

passadas. Ódio, ira, determinação e fúria foram os ingredientes necessários para

efetivação da vingança pela qual tanto ansiava o Amor. A morte do pretendente de

d. Leonor provocou murmúrios e causou indignação, mas “o tempo avaro amigo de

mudanças fez tratável, e brando o duro caso”.466 O poeta utiliza uma tópica de

Cícero para afirmar que nada resiste ao tempo, nem mesmo os grandes males:

Aquilo que antes era espanto à gente, E o que nos assombrou ontem, já hoje Leve o faz parecer brando, e tratável. Não há tristeza grande, que não cure: Não há dor que com ele [o tempo] seja grave Todo o mal, e rigor, toda aspereza Este velho cruel nos torna fácil.467

Tampouco os deuses conseguiam se livrar dos desatinos do Amor. A

cegueira da paixão acomete, por exemplo, o deus Proteu, o primeiro a se deixar

enfeitiçar pela bela Leonor.

Não basta longa idade autorizada Por muita experiência e curso antigo: Nem basta ser prudente para os laços,

465 Idem, p. 36. 466 Idem, p. 40. 467 Idem, p. 41.

Page 175: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

175

Que o cauteloso Amor, cada hora inventa. Já mil sucessos tristes, já mil mortes: Já mil desventuras, e mil males Profetizei a muitos, mas não soube, Nem pude deste (ah mísero) guardar-me.468

Prole de Tétis e do titã Oceano, esta divindade do panteão grego

integrava o Conselho dos Anciões, em virtude de sua sabedoria e de suas

habilidades proféticas. Como não era de seu agrado revelar os vaticínios aos

mortais, metamorfoseava-se, adquirindo o aspecto de figuras que pudessem

afugentá-los.

Em Prosopopeia, o deus pagão Lêmnio,469 epíteto que designa Vulcano

ou Hefesto, deus olímpico que assenhoreava o fogo metalúrgico, ocupa papel

análogo ao de Baco. Hesíodo, em sua Teogonia, afirmou que Hefesto é “nas artes

brilho à parte de toda a raça do Céu”.470 Homero considera-o um “deus astucioso”.471

Ainda que habilidoso e “notável artista”,472 este deus é retratado como sendo

“coxo”.473 Vernant e Détienne nos lembram: “pernas tortas, andar oblíquo, direção

dupla e divergente”, todos estes traços “evocam de forma insistente o mais famoso

dos ferreiros”. Trata-se de um deus cuja métis “se define em relação ao fogo”, e não

à agilidade.474 Eis como Bento Teixeira o apresenta:

Porque Lêmnio cruel, de quem descende A bárbara progênie e insolência, Vendo que o Albuquerque tanto ofende Gente que dele tem a descendência, Com mil meios ilícitos pretende Fazer irreparável resistência Ao claro Jorge, varonil e forte, Em quem não dominava a vária sorte.475

Personificação da vileza, o deus da forja resiste ardilosamente às

conquistas do protagonista e sua tripulação. Enquanto pai e tutor da barbárie, 468 Idem, p. 62. 469 Este epíteto é utilizado, por exemplo, na Eneida. Ver: VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro oitavo, p. 260. 470 HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de José Antonio Alves Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 157. 471 HOMERO. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s/d], canto VIII, p. 140. 472 Idem, p. 141. 473 Idem, ibidem. 474 DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, p. 249. 475 Prosopopeia, 2008, canto XLV, p. 138.

Page 176: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

176

Lêmnio move uma empreitada contra a disseminação da fé cristã. Este deus pode

ser pensado de três maneiras distintas:476 como figura de ornato, ele reforça o estilo

épico; como metáfora, ele personifica e simboliza o infortúnio, a astúcia vil; o sentido

alegórico nos possibilita algumas especulações: em uma das versões mitológicas, o

deus ferreiro foi arremessado do Olimpo pela mãe, Juno, devido à sua aparência

disforme, queda que lhe tornou coxo. Essa deformidade, no texto de Bento Teixeira,

pode indicar uma natureza “coxa” dos pagãos, que manquejavam por

desconhecerem a fé cristã. Por outro lado, consta na tradição cristã que Lúcifer e os

anjos aliados sofreram queda semelhante, por se rebelarem contra Deus: foram

precipitados para o Inferno. Reza uma das vertentes mitológicas, adotada por

Homero, que foi Zeus quem expulsou Hefesto do Olimpo, por tê-lo desafiado:477 esta

versão refina outra analogia possível, frente à inveja e ao desafio que Lúcifer lança

contra Deus. Estas leituras não seriam absurdas em uma sociedade fortemente

cristianizada, como é o caso do Império português nos séculos da expansão

ultramarina. Nos versos que se seguem, há indícios que se afinam a tal leitura:

Na parte mais secreta da memória, Terá mui escrita, impressa e estampada Aquela triste e maranhada história, Com Marte, sobre Vênus celebrada. Verá que seu primor e clara glória Há de ficar em Lete sepultada, Se o braço português vitória alcança Da nação que tem nele confiança.478

Na Odisseia, quando Ulisses se encontrava em meio aos feácios, o aedo

Demódoco cantou os amores pérfidos entre Ares e Afrodite, esposa de Hefesto. Este

último, alertado sobre o incidente pelo Sol, produziu uma “rede artificiosa”, cadeia

inquebrantável para aprisionar os amantes imortais. Após simular uma partida para a

ilha de Lemnos, Ares e Afrodite se aventuraram a caminho do leito do deus ferreiro e

foram capturados pela armadilha. Os adúlteros, movidos pela paixão, foram

476 Ver: MORGANTI, Bianca. A Mitologia n’Os Lusíadas – Balanço Histórico-Crítico. Dissertação (Mestrado). São Paulo: IEL/Unicamp, 2004, pp. 156-171. 477 “Por tentar socorrer a mãe Hera, que brigava com Zeus, foi por este lançado do Olimpo no espaço vazio. O deus caiu na ilha de Lemnos e ficou aleijado. Foi Tétis quem o recolheu e levou para sua gruta submarina”. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 138. 478 Prosopopeia, 2008, canto XLVI, p. 138.

Page 177: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

177

expostos diante de todo o Olimpo.479 Esta passagem foi mencionada por Proteu na

estrofe acima.

Em seguida, o poeta trata dos riscos que Lêmnio corria, caso os

portugueses conquistassem a glória: certamente, o deus seria esquecido. Este

esquecimento recobre-se de significados: por um lado, a prole do deus pagão,

conhecendo e se submetendo aos portugueses, abraçaria o cristianismo; por outro,

entendendo que Lêmnio possa representar o demônio, a investida lusitana, em sua

conotação missionária, dominaria e amansaria aqueles que “tem nele confiança”,

isto é, Jorge d’Albuquerque ofereceria a palavra de Deus àqueles que só conheciam

a fama e os ardis do diabo. O aedo recorre, ainda, ao recurso da écfrase para

descrever a aparência de Lêmnio, possivelmente emulando o procedimento adotado

por Camões na descrição do gigante Adamastor:

E com rosto cruel e furibundo, Dos encovados olhos cintilando, Férvido, impaciente, pelo mundo;480

O deus é retratado como um ser repugnante e desfigurado, justamente

por personificar o antípoda do herói. As compleições de Lêmnio podem simbolizar a

essência vil e mortificante do paganismo, do “outro”, daquele que não abraça os

preceitos da fé cristã. Por outro lado, como ocorre na descrição do Adamastor, estes

detalhes certamente estimulavam os afetos dos leitores, frente não somente ao deus

mitológico como também a tudo aquilo que ele representa: o pecado, o paganismo,

a barbárie, a heterodoxia. A écfrase permite que o auditório memorize a devassidão

dos vícios associados a esta personagem, medida esta que presentifica o mal e

delineia fisicamente os seus contornos de imoralidade.

Ao tomar nota da empreitada de Jorge d’Albuquerque contra sua prole de

pagãos, Lêmnio se volta contra ele. Convicto de poder conter o avanço dos

portugueses, que dizimavam e convertiam os seus “filhos”, o deus ferreiro, à maneira

de Baco, persuade o deus Netuno, senhor dos mares, requisitando uma tempestade

que pudesse conter a embarcação do protagonista. Para alcançar seu intento,

Lêmnio pede o auxílio dos deuses marinhos, recorrendo a argumentos soberbos e

vaidosos que reafirmam sua posição entre as deidades pagãs: 479 Ver: HOMERO. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s/d], canto VIII, v. 266-366, pp. 139-142. 480 Idem, canto XLVII, p. 138.

Page 178: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

178

E pôde Juno andar tantos enganos, Sem razão, contra Tróia maquinando, E fazer que o Rei Justo dos troianos Andasse tanto tempo o mar sulcando? E que vindo no cabo de dez anos De Cila e de Caríbdes escapando, Chegasse à desejada e nova terra, E co latino rei tivesse guerra? E pôde Palas subverter no Ponto O filho de Oileu per causa leve? Tentar outros casos que não conto Por me não dar lugar o tempo breve?481

O primeiro canto remonta à Eneida, indicando os infortúnios que Juno

moveu contra as embarcações de Enéias. No segundo canto, ainda emulando o

poeta latino, Bento Teixeira recorre a um dos argumentos que compõem as

conjecturas de Juno, quando se utiliza de seu ardil contra o herói troiano:

[...] Mas não pôde Palas queimar a frota dos Argivos, Submergi-los nas ondas, pela culpa E frenesins d’um só, do Ayax de Oileu? Ela mesma de Jove dardejando Lá das nuves o rápido corisco, As naus destrói, co’o vento empola os mares: E ao mísero que flamas vomitava Do roto peito, n’um tufão o toma, E na ponta o cravou de agudo escolho. E eu, que rainha os imortais precedo, De Jove esposa e irmã, há tantos anos Co’um só povo guerreiro? Quem de Juno Há de mais adorar a divindade, Ou súplice ao altar vítima impor-lhe?482

O deus Lêmnio utiliza-se de uma argumentação similar, quando reafirma

sua “majestade” e seus atributos:

Eu por ventura sou deus indigete, Nascido da progênie dos humanos, Ou não entro no número dos sete, Celestes, imortais e soberanos? A quarta esfera a mim nãos e comete? Não tenho em meu poder os centimanos? Jove não tem o céu, o Mar, tridente? Plutão, o reino da danada gente?

481 Idem, cantos XLVIII-XLIX, p. 139. 482 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro primeiro, pp. 6-7.

Page 179: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

179

Em preço, ser, valor, ou em nobreza, Qual dos supremos é mais qu’eu altivo? Se Netuno do mar tem a braveza, Eu tenho a região do fogo ativo. Se Dite aflige as almas com crueza, E vós, ciclopes três, com fogo vivo, Se os raios vibra Jove, irado e fero, Eu na forja do monte lhos tempero? E com ser de tão alta majestade, Não me sabem guardar nenhum respeito? E um povo tão pequeno em quantidade Tantas batalhas vence a meu despeito?483

À maneira de Juno, os apelos de Lêmnio recorrem à vaidade, pois ambos

requerem o direito que outro deus usufruiu no passado.

O discurso deste deus, que apela tanto para a tópica da amizade quanto

para o recurso da dissimulação, consegue convencer Netuno e o seu séquito

marinho, que logo administram uma tempestade contra a embarcação portuguesa. O

deus da água atende aos rogos do deus do fogo. É no mar, mais uma vez, que os

infortúnios se desdobram: local das incertezas, do medo, do esquecimento. Sob o

efeito de prosopopeia, a voz do deus ferreiro, que invoca um fim trágico para a nau

de Jorge d’Albuquerque, personifica e manifesta as pretensões do esquecimento.

Nessa perspectiva, sua intenção muito se assemelha ao intuito das sereias, que

oferecem, segundo Hartog, “o esquecimento de uma morte ignominiosa, sem

sepultura, sem marca de lembrança. Ouvindo-as (como se escutasse um aedo

cantar depois de sua morte), o herói perde tudo: o Kléos e o nóstos, a glória e o

retorno. Já está morto”.484 Trata-se, portanto, de uma morte sem glória, avessa à

morte recoberta de glórias cantada pelas Musas arregimentadas por Apolo.485

Há uma estratégia comum, portanto, que equipara os discursos de Baco,

de Lêmnio e de Juno. No entanto, este artifício não remonta somente às alegorias

mitológicas, podendo estar presente em fábulas cristãs, como no caso da obra de 483 Idem, cantos L-LII, pp. 139-140. 484 HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 47. 485 As Sereias podem ser entendidas como “Musas de baixo” ou “Musas do esquecimento”, pois sua função é minar ou arruinar a economia do kléos. Ceder à atração destas personagens sedutoras seria “ausentar-se para sempre de si mesmo”. “Imortais e isoladas em sua ilha, as Sereias têm apenas como ouvintes suas vítimas: não cantam jamais para os ‘homens do futuro’, diferentemente do aedo inspirado. Pelo canto, não ‘enterram’ os mortos, mas fazem dos vivos desaparecidos. Quem se deixa celebrar por elas na terceira pessoa paga, por esse prazer momentâneo, o mais alto preço”. Ver: HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Organização de José Otávio Guimarães. Tradução de Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 28-29.

Page 180: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

180

Torquato Tasso. No canto IV de sua obra Jerusalém Libertada, Plutão reúne os

demônios para, então, traçar um plano contra os cruzados cristãos. Segue uma

parte de sua palestra perante a comitiva:

E, inertes, nós os dias passaremos, Sem que brioso fogo nos acenda? Que mais se fortaleça sofreremos Na Ásia o seu povo, e que a Judéia renda? Crescer a sua honra deixaremos, E que o seu nome se dilate e estenda? Que soe em novos bronzes esculpido, E em mais línguas e cantos repetido? Que tombem nossos ídolos quebrados? Que a ele quem nos segue se converta? Que lhe sejam os votos consagrados, E o incenso, e o ouro e a mirra haja em oferta? Que dos templos sejamos expulsados, Onde sempre tivemos porta aberta? Que nos falte das almas o tributo, E habite vosso rei um ermo bruto? Porém não; que inda em nós não se extinguiu Esse espírito forte e brio antigo, Que de ferro e de fogo nos cingiu Para atacar o céu, nosso inimigo. Se então tamanho esforço sucumbiu, Foi o valor do grande empenho amigo; Tocou nos mais felizes a vitória; Do invencível arrojo a nós a glória.486

O apelo à vaidade e ao passado lastimoso se faz presente no discurso do

príncipe que impera entre os anjos caídos. Temendo o alargamento do nome de

Deus, ele impele seus subordinados contra os soldados de Cristo. Seus

questionamentos podem ser comparados à argumentação de Baco e de Lêmnio,

pois todos eles representam alegoricamente o “outro”: Baco representa o “mouro”,

Lêmnio o “indígena” e Plutão o “infiel”. Embora as alegorias encenem cenários

distintos e personagens variadas, há um sentido em comum, pois todas elas buscam

resistir à trajetória dos nobres heróis cristãos.

No Naufrágio de Sepúlveda, Amphitrite também age desta maneira

quando, enciumada, requisita a Eolo uma tempestade contra a nau que transportava

Leonor. Primeiro, o aedo ressalta sua simulação:

486 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofes 13-15, p. 186.

Page 181: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

181

No coração lhe ferve uma raivosa Penosíssima dor, quase insofrível. No tristonho semblante mostra claro Avorrecer Lianor sem causa justa: Todo seu pensamento era buscar-lhe Morte, de que ficasse satisfeita. O ódio tem secreto, outro mal finge E com falso acidente a raiva encobre: Fraco semblante mostra, mas no peito Hum gusano cruel a consumia.487

Em seguida, Amphitrite relata seu desgosto:

Saberás rei que a minha honra está posta (ò Deus que ido consentes) em tal termo Com tal abatimento que me fora Muito melhor morrer, que assim ter vida. Das partes orientais no proceloso Reino do meu Neptuno, entrou soberba Uma vã mulherinha assim arrogante Que cuida que em fermosa excede a todas. Com desprezo tratou as minhas Ninfas, E as princesas do mar tão veneradas A mim nem cortesia, nem respeito, Antes sinais mostrou de ter em pouco. Cuidara por ventura ir se gabando Ufana, e de levar de nós vitória Como a leva do triste velho Protheo Que caduca, e não sabe já o que escolhe. Pois enganada está, que se se julga Por mais fermosa, e mais que todas rara, A somenos fermosa das marinhas Ninfas, o He muito mais, muito mais que Certifico-te rei que se não vingas nela. Esta minha desonra que a mim mesma Com minhas próprias mãos me tire a vida Por sempre não viver com tanta mágoa.488

Ao que Éolo responde:

(...) valerosa Princesa, por tão pouco não se aflijas. Nem ponhas em balança a tua beleza Co essa que vale tão pouco, e se presume Igualar-se contigo, terá o pago Conforme ao temerário pensamento.489

487 CORTE-REAL, Jerónimo. Naufrágio de lastimoso sucesso de perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindo da Índia para este reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Lisboa: oficina de Simão Lopes, 1594, p. 72. 488 Idem, p. 74. 489 Idem, p. 75.

Page 182: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

182

O fato de Proteu ser renegado por d. Leonor causou indignação em

Amphitrite e, após testemunhar a beleza da pretendente, ela maquina toda uma

sorte de artifícios para tirar-lhe a vida. A deidade fica “torvada, muda, triste, e

pensativa”,490 e passa a alimentar uma dor secreta. Em seguida, fica inventando e

traçando remédio para tal afronta, sem repouso, nutrindo uma fúria injusta. Mais

adiante, o poeta afirma que ela “nunca hum’ora teve mais de repouso”,491 nutrida de

raivosa dor, “quase insofrível”. Ela guarda um ódio secreto, e planeja sua morte. No

semblante ela mostra o “coração triste” e “fraco semblante”, mas mantém a “alma

invejosa” e a vontade de vingar-se.492 Resolve, então, recorrer a Netuno, “Rey

soberbo” ao qual “foi dado dos ventos o poder, mando, e governo”. Para tanto, faz

uma falsa acusação: diz que Leonor de Sá agiu com soberba, presunção, tratando

as Ninfas sem as honras devidas. Após evocar a comitiva de ventos, Amphitrite

recorre a Éolo, que nota seu abatimento, ao que ela diz:

Não te espantes Rei verme diferente, Espantate de verme ainda com vida. Se meu mal não te move a que vigança Me des, eu ma darei de mim, que a honra Perdida me restaure, pois mofina, Mais que todas nasci, mais sem ventura.493

Estes deuses manifestaram e reafirmaram seus atributos no momento em

que foram contrariados pela humanidade. Todos eles requisitaram temporais,

maquinando o fim da ameaça de que foram vítimas. O amor próprio, portanto, foi

suficiente para estimular a prática da vingança, talvez um dos desdobramentos mais

vis do amor mal direcionado ou não correspondido. Este retrato vicioso de um deus

enciumado e violento foi constantemente contrastado com o perfil humilde e leal do

súdito que lhe causou aborrecimentos. Exposto o vício, fica o aedo incumbido de

evidenciar sua contraparte.

A experiência do sacrifício

490 Idem, p. 67. 491 Idem, p. 71. 492 Idem, p. 72. 493 Idem, p. 73.

Page 183: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

183

Dentre as histórias que um velho sábio narrou a Pantaleão de Sá no

Naufrágio de Sepúlveda, consta a de um heroi que ele descreve com os seguintes

caracteres:

Um varão forte e leal, de qualidade, De ilustre sangue e antiga geração. No semblante mostrava gravidade, No peito, honrada e alta opinião. Dom Martinho de Freitas se chamava Que a parte do rei Sancho sustentava.494

O aedo ressalta a origem ilustre e menciona algumas virtudes de Martim

de Freitas para, em seguida, discorrer sobre um episódio no qual ele defendia um

castelo do rei Sancho contra a investida do “Bolonhês valente”, D. Afonso III. Devido

à longa duração do cerco, os partidários do heroi começaram a passar fome e a

perder o ânimo. Martim de Freitas, então, convence-os a recobrar a força, mas logo

fica sabendo da morte de Sancho. Em razão disso, ele abre os portões da fortaleza

à investida inimiga, e D. Afonso III, vitorioso, requisita a presença do varão “tão forte,

tão leal, tão valoroso” que assim procedeu. Na sequência, o poeta expõe alguns

juízos:

Quanto devem de ser aborrecidos De todos, os que são mal inclinados! Dos tais em nenhum tempo recebidos Sejam os ímpios votos depravados, Que de um humor diabólico movidos Se mostram ao pior afeiçoados! Se a víbora veneno dá mortal, Os maus que podem dar se não for mal? Os reis que feios casos cometeram Em tempo antigo e lá noutras idades, A causa principal foi porque creram Corações de perversas qualidades. Arrebatados ânimos moveram A mil aborrecidos crueldades, A sem-razões tirânicas, forçosas, A injustiças cruéis e rigorosas. Devem trazer os reis os mais prudentes, Zelosos da justiça e caridade, Longe deles aqueles que presentes Com artifício fingem santidade. Não devem de admitir os diligentes Na triste execução de crueldades,

494 CORTE-REAL, Jerônimo. Poesia. Introdução, seleção, fixação de texto e notas de Hélio J. S. Alves. Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 27.

Page 184: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

184

Que estes fazem os reis aborrecidos Dos seus, e com mortal ódio temidos. Que os que grandes empresas acabaram, Com sucessos heroicos gloriosos, Não foi por desamor, antes ganharam As vontades dos seus sendo amorosos. Destes, altas empresas cá ficaram Para exemplo dos bons e virtuosos. Lede as antigas mais graves histórias E dos passados reis vede as memórias.495

Estes pareceres foram ditos após D. Afonso III ser aconselhado a matar

Martim de Freitas. Ele, claro, procede de forma contrária, detentor que era de “ânimo

real, justo e perfeito”. O aedo não apenas ressalta a importância da história e dos

exemplos que ela dá a conhecer, como afirma que os reis devem manter perto de si

homens prudentes, justos e caridosos, para agir com retidão e amor. Estes versos

sobre o desconcerto do mundo fazem recordar três oitavas de Camões, dentre as

quais duas já foram mencionadas anteriormente:

E vê do mundo todo os principais Que nenhum do bem público imagina; Vê neles que não têm amor a mais Que a si somente, e a quem Filáucia ensina; Vê que esses que frequentam os reais Paços, por verdadeira e sã doutrina Vendem adulação, que mal consente

Mondar-se o novo trigo florescente.

Vê que aqueles que devem à pobreza Amor divino, e ao povo, caridade, Amam somente mandos e riqueza, Simulando justiça e integridade. Da feia tirania e de aspereza Fazem direito e vã severidade. Leis em favor do Rei se estabelecem; As em favor do povo só perecem. Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, Senão o que somente mal deseja. Não quer que tanto tempo se revele O castigo que duro e justo seja. Seus ministros ajunta, por que leve Exércitos conformes à peleja Que espera ter co o mal regida gente Que lhe não for agora obediente.496

495 Idem, pp. 30-31. 496 Os Lusíadas, canto IX, 27-29, pp. 258-259.

Page 185: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

185

O velho sábio conta a Pantaleão de Sá, também, sobre a investida de D.

Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir. Como anteriormente, ele inicia pintando o

caráter do responsável pela ação:

A Portugal virá um valoroso Rei de ânimo constante e peito ardente, Indómito guerreiro, belicoso, Mui liberal, magnânimo e clemente.497

D. Sebastião, segundo o aedo, apesar das virtudes acima apontadas, não

contava com experiência suficiente para julgar a malícia de seus conselheiros.

Aquele juvenil Rei valoroso, De adulação notória aconselhado, O caso empreenderá tão duvidoso Com forte peito pouco experimentado. De uma alta, heroica fama cobiçoso De esforçados varões acompanhado, Pelas ondas, a remo a vela inchada, Verá em breve a costa desejada. Como perseguirei a fera história Sem lágrimas, sem dor e sem tristeza? Ao mundo ficará viva a memória Da perdição de tanta e tal nobreza. Ver-se-á de Portugal a ilustre glória Com desastrada volta em grão baixeza, Não por falta de peitos belicosos, Mas por culpa de alguns ambiciosos Que mal aconselhando se enriquecem, Que mal quer ser o Rei aconselhado, Os maus intentos destes prevalecem E o que fala verdade é reprovado. Fazem crer que o geral bem apetecem E o seu particular é respeitado. Costume antigo em Reis que sempre aceitam Quem lhes sabe mentir, verdade enjeitam.498

Mais uma vez, alude-se àqueles que, ambiciosos, aconselham mal para

benefício próprio. No caso, foram justapostas duas tópicas: a juventude cobiçosa e a

ambição daqueles que almejam poder, como se pode notar na passagem abaixo:

Olhai que faz a pouca experiência, Olhai que faz um ânimo furioso, Vede o que faz a indouta adolescência,

497 CORTE-REAL, Jerônimo. Poesia. Introdução, seleção, fixação de texto e notas de Hélio J. S. Alves. Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 35. 498 Idem, pp. 36-37.

Page 186: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

186

Sem prudente conselho proveitoso. Poder-se-á bem julgar naquele dia Com justa razão ser temeridade, Não forte coração, não valentia, Mas uma cega e solta mocidade.499

A derrota não justifica a ausência de memória gloriosa, e o aedo recorre

ao critério do “merecimento” para lamentar a queda dos nobres guerreiros que

tombaram em Alcácer-Quibir:

Não mereciam ser assim tratados Varões tão nobres, fortes e guerreiros, Pois os tempos antigos já passados Nunca deram de si tais Cavaleiros. Podem ser com razão sempre louvados No mundo, podem ser sempre os primeiros Que alcançarão famosa, honrada glória E vivos ficam sempre por memória.500

Por fim, o poeta afirma que o ocorrido afina-se à vontade divina, sendo o

castigo aplicado por Deus “justo” e “merecido”:

Aqui vistes, senhor, em este dia O que se cumprirá como vos digo. Perder-se-á tal e tanta fidalguia E todos perdereis um Rei amigo. E pois que nada enfim cá se desvia Do justo, merecido, alto castigo, Não se mostre nenhum ambicioso Muito mais temerário que animoso.501

Como já se viu anteriormente, as vítimas de um castigo providencial nem

sempre são punidas por seus pecados ou falhas. Além disso, mesmo em situações

“trágicas” como esta, é possível vislumbrar ações nobres das quais ficam memórias

duradouras. É o caso, por exemplo, da ação de Jorge d’Albuquerque Coelho

relatada na Prosopopeia de Bento Teixeira. Este nobre heroi e seu irmão, que

acompanharam o rei D. Sebastião na peleja em Marrocos, deixaram em completo

desconforto o deus e narrador Proteu, que foi afetado pela grandeza destes heróis:

Anteparou aqui Proteu, mudando As cores e figura monstruosa,

499 Idem, p. 38. 500 Idem, p. 41. 501 Idem, p. 42.

Page 187: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

187

No gesto e movimento seu mostrando Ser o que há de dizer coisa espantosa. E com nova eficácia começando A soltar a voz alta e vigorosa, Estas palavras tais tira do peito, Que é cofre de profético conceito:502

A metamorfose de Proteu ocorria em momentos de aflição, quando o deus

era surpreendido por mortais que buscavam suas revelações proféticas. Na

Prosopopeia, sua angústia não deriva de sua captura, mas sim da matéria que

deveria narrar, virtuoso e trágico ao mesmo tempo. Jorge e Duarte Coelho se

dispuseram a acompanhar o rei D. Sebastião em seu trajeto até o norte de África,

obedientes à hierarquia de valores e eficientes no que se refere ao propósito de

“dilatar” o Império português. Em meio às peripécias da guerra, Jorge d’Albuquerque

testemunhou e protagonizou um episódio singular: a montaria de seu rei tombou,

entregue ao cansaço. O rei, igualmente fatigado, mas inflado em meio à batalha,

encontrou-se desalentado, mas não indefeso, manejando sua espada com fúria e

precisão. O herói, solidário à condição de D. Sebastião, logo cedeu o seu cavalo, e o

rei, em contrapartida, prometeu-lhe recompensas ao término do embate. Não houve

retorno, ao menos para o rei. Jorge, que sobreviveu não sem herdar sérias sequelas,

nada ganhou senão experiência e honra, pois, dentre todos, fora o único a atender

ao chamado do rei quando ele mais precisou. O herói não evita que seu superior

tombe, mas cede sua vida para servi-lo. Esta peripécia, além de instigar a

compaixão do protagonista, tende a despertá-la também no leitor. Jorge

d’Albuquerque dirigiu ao rei português palavras de afeto no momento em que lhe

entrega a montaria:

Vejo-vos co cavalo já cansado, A vós, nunca cansado, mas ferido, Salvai em este meu a vossa vida, Que a minha pouco vai em ser perdida. Em vós do luso reino a confiança Estriba, como em base só, fortíssimo; Com vós ficardes vivo, segurança Lhe resta de ser sempre florentíssimo. Entre duros farpões e moura lança, Deixai este vassalo fidelíssimo, Que ele fará por vós mais que Zopiro Por Dario, até dar final suspiro.503

502 Prosopopeia, 2008, canto LXXIII, p. 147. 503 Prosopopeia, 2008, cantos LXXVI-LXXVII, p. 148.

Page 188: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

188

Logo de início, duas tópicas saltam aos olhos: a fidelidade e a aceitação

da morte em favor das hierarquias. É notável a brandura do herói, que dispensa um

tratamento repleto de afeição pelo rei, quando ressalta os seus dons bélicos e o seu

preparo físico. Esta característica é sintomática de um momento no qual as batalhas

pela reconquista de territórios situados no norte da África detiveram ampla

repercussão em território português.504 É necessário salientar que o poeta escreve

num momento em que o destino trágico de D. Sebastião já era sabido. Isto torna a

atitude de Jorge d’Albuquerque ainda mais nobre, pois sua tentativa de evitar a

queda do rei também procurou impedir, indiretamente, a perda de autonomia do

Império. Conscientemente, portanto, o aedo estabelece um lugar de prestígio para o

seu herói, que concedeu ao rei uma oportunidade de conservar a coroa lusitana.

O protagonista se coloca em perigo em prol do corpo místico português,

através de sua devoção à cabeça do reino, D. Sebastião. Sua atitude, contudo, não

livrou o rei de um futuro desafortunado, mas este não parece ser o propósito do

aedo: antes, o realmente significativo é a presteza do “vassalo fidelíssimo”, que

lutaria pelo rei até o seu último “suspiro”. Jorge hierarquiza a importância da vida em

paralelo com a dignidade da posição política, quando julga sua vida de pouco valia

se comparada à do rei. Este trunfo atende aos requisitos retóricos de instruir –

através da conduta exemplar e incondicional – mover – valendo-se da compaixão

frente a um ato de sacrifício voluntário – e deleitar – por intermédio do ímpeto

guerreiro do herói. Ao final, em resposta ao feito ilustre do Albuquerque, o rei

“promete, se de tal empresa / Sai vivo, o fará senhor grandíssimo”, ou seja, a

reciprocidade deve ser entendida como resposta direta à lealdade dos súditos que,

neste caso, não foi atendida em razão do “desaparecimento” do monarca.

Sérgio Buarque de Holanda observa que a façanha de Jorge

d’Albuquerque remonta a um lugar comum proveniente das “lendárias gestas da luta

dos povos ibéricos contra o inimigo de sua fé”.505 O episódio protagonizado pelo

herói de Prosopopeia provavelmente não é verdadeiro, como observa Holanda, mas

justifica a atitude do rei, que promete torná-lo “grande” na ocasião de seu retorno.

Sendo verídico ou não, esta passagem amplifica os feitos da personagem e se

504 Ver: HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 29-31. 505 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos da literatura colonial. São Paulo: Brasiliense, 5ª Ed., 1991, p. 34.

Page 189: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

189

mostra verossímil, na medida em que retrata o engrandecimento decorrente de

ações nobres e prudentes.

Como afirma Aristóteles, o mais belo dos reconhecimentos é “o que

sobrevêm no decurso de uma peripécia”. A união entre peripécia e reconhecimento

“excitará compaixão ou terror” através de uma ação “que produz destruição ou

sofrimento”.506 No caso do episódio mencionado há pouco, provoca-se a compaixão

perante o desamparo do rei e terror frente à possibilidade da morte do herói, que

opta pela manutenção do bem comum, e não pelos temores relativos à vida

passageira. Desta forma, D. Sebastião não pôde efetivar seu retorno, ao contrário de

Jorge d’Albuquerque que, por tentar concedê-lo ao rei, conquista, ele próprio, o

kléos e o nóstos.

A amizade e o amor são, portanto, dois dos pilares que mantêm o corpo

político harmônico e concorde. O relato de naufrágio da nau Santiago menciona uma

passagem interessante: desesperados em busca de salvação, notaram os

mareantes que o batel no qual iam embarcados não suportaria o peso de tantas

pessoas, ao que decidiram lançar ao mar algumas pessoas para, assim, possibilitar

o salvamento da maioria. O capitão Duarte de Melo, embora nutrido de “muito

sentimento cristão”, não enxergava outra maneira de proceder senão esta.

Determinaram lançar fora 17 pessoas, e um dos sentenciados afirmou ser injusto

salvar dois irmãos, Gaspar Ximenes e Fernão Ximenes, homens honrados naturais

de Lisboa. Embora tivessem amigos presentes na nau, a deliberação acabou

privilegiando o argumento do nauta, ao que decidiram lançar Gaspar Ximenes, o

mais velho dentre os dois irmãos. Fernão Ximenes, no entanto, saltou diante do

irmão e, “com o amor fraternal com que o amava”, o tirou das mãos de todos, e não

conseguindo dissuadir os companheiros do veredito, tomou o lugar do irmão. “Foi

esta fineza bem digna de se perpetuar e nunca esquecer na memória dos homens,

onde no amor ficou mais levantada que na amorosa contenda de Pílades e

Orestes”.507

O episódio acima mencionado parte de uma possível referência a três

tragédias antigas: Coéforas, de Ésquilo, Electra, de Sófocles, e Electra, de

Eurípedes. Nas três peças, é possível perceber a grande amizade entre Orestes,

506 ARISTÓTELES. “Arte Poética”. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, livro XI, p. 31. 507 HTM, p. 313.

Page 190: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

190

filho de Agamêmnon e Clitemnestra, e Pílades, filho de Estófilo e Anaxíbia, irmã de

Agamêmnon. A amizade só foi possível devido a uma tragédia, na qual Clitemnestra

e Egisto, seu amante, tramam e promovem o assassinato de Agamêmnon, quando

este retorna da guerra de Tróia. No caso, Electra, irmã de Orestes, o entrega a um

amigo, temendo maus tratos por parte da mãe e do amante. Quando Orestes se

torna um adulto, ele retorna a Argos com seu amigo para vingar a morte do pai.

Cada uma das tragédias trabalham estes detalhes de maneiras distintas, o que torna

impossível saber a qual delas o relato de naufrágio faz referência. Na versão de

Ésquilo, Pílades é o primo mudo de Orestes, tendo sido ambos criados como irmãos

na corte de Estrófio. Na obra de Eurípedes, Apolo ordena a vingança, e Pílades

manifesta, através de palavras, o valor de sua amizade.508

O irmão arremessado ao mar resolveu nadar atrás do batel, o que fez

durante cerca de três horas, e os mesmos que decidiram arremessá-lo, apiedados

de tanto esforço, resolveram resgatá-lo. Esta atitude de um irmão para com o outro

faz recordar os dizeres de Sêneca sobre a amizade:

Mas nada agrada tanto à alma como uma amizade fiel e doce. Que felicidade a de encontrar corações aos quais se possa sem temor confiar quaisquer segredos; consciências, que nos temem menos do que a nossa; companheiros, cuja palavra acalma nossas inquietações, cujos conselhos guiam nossas decisões, cuja alegria dissipa nossa tristeza e cuja vista seja para nós um prazer!509

Este alerta procura assegurar a tranquilidade da alma e a concórdia da

pátria, que deve ser estendida a todo o universo, “a fim de oferecer à virtude o mais

amplo campo de ação”.510 Cícero entende a concórdia de maneira análoga:

Assim como os sons despertados nas liras e nas flautas, combinados com o canto e a voz, produzem um conjunto harmônico que agrada ao ouvido inteligente, ao passo que as dissonâncias o incomodam, assim também um Estado, prudentemente composto da mescla e equilíbrio de todas as ordens, concorda com a reunião dos elementos distintos; e o que no canto é chamado pelos músicos de harmonia é, no Estado, a concórdia, a paz, a união, vínculo sem o qual a República não permanece incólume, do mesmo modo que nenhum pacto pode existir sem a justiça.511

508 Ver: MARTINS, Rafael Chaves. Pílades e Horácio: o valor da amizade em Hamlet e em Orestes. Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/online/IXsemanadeletras/lei/Rafael_Chaves_Martins.pdf. Acesso em: fevereiro/2013. 509 SÊNECA, Lúcio Aneu. Da tranquilidade da alma. Tradução e notas de Guilio Davide Leoni. In: Os pensadores. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 403. 510 Idem, p. 399. 511 CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Tradução e notas de Amador Cisneiros. Livro primeiro, XVI. In: Os pensadores. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 337.

Page 191: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

191

No caso da sociedade portuguesa dos séculos XVI-XVII, a concórdia

poderia ser pensada como “coincidência da vontade de todos quanto ao fim do

corpo político”512 e também como tranquilidade da alma e regramento das vontades

para que seja possível a efetivação plena do amor.513

A bela morte

Na Ilíada, Aquiles alcançou uma morte heroica e bela. Indignado com a

sua condição de mortal, ele desejava uma maneira de vencer a finitude e, antes de

partir para o cerco de Tróia junto aos aqueus, recebeu uma importante advertência

de sua mãe, Tétis: caso fosse para a guerra, conquistaria a glória que tanto

desejava, mas pagaria com a vida; se não partisse com os gregos, viveria uma longa

vida e seria vítima do esquecimento. O herói optou pela guerra, diante da tentação

de vencer a condição de mortal. Do ponto de vista humano, Aquiles era reconhecido

por portar uma força descomunal, que o fazia se destacar nos conflitos bélicos; do

ponto de vista das deidades, no entanto, era um ser vulnerável, de vida breve. A

condição de mortal foi o principal artifício e estímulo para que Aquiles entrasse na

guerra.514

Heitor foi retratado como herói “defensivo”, que protegia seus domínios e

sua família. Ao contrário de Aquiles, varão solitário que lutava para perpetuar sua

fama, Heitor lutava pelo pai, esposa, irmão, filho. Sua trágica derrota, conforme

Vernant, se deu a partir do momento em que ele se isolou, lutando frente a frente

com Aquiles.515 Sua heroicidade dependia da união, da coletividade. Ao se colocar

nas mesmas condições que Aquiles, herói sem escrúpulos movido pela sede de

vingança, ele cavou sua própria sepultura. Heitor, defendendo sua timé (honra),

aceita o desafio, ao ser ludibriado pela deusa Atena que, assumindo a forma de um

dos filhos de Príamo, estimula-o a lutar, prometendo-lhe ajuda no campo de batalha.

Envergonhado pela morte de Pátroclo, Heitor sela seu destino. Aquiles vence e,

após a vitória, ata o corpo de Heitor ao seu carro de guerra e arrasta seu corpo para

humilhar os troianos que assistiam ao duelo. Heitor só obteve uma bela morte

512 HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, São Paulo: Ateliê Editorial, Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 267. 513 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013, pp. 39-40. 514 VERNANT, J. P. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, pp. 10-12. 515 Idem, p. 385.

Page 192: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

192

quando seu corpo foi recuperado pelo rei. A morte de Aquiles, ao contrário, não se

mostra trágica, pois ele optou pela morte prematura por escolha própria.516

Aristóteles adverte-nos: “será chamado corajoso o homem que se mostra

destemido em face de uma morte honrosa”.517 Esta morte honrosa, quando acomete

heróis portugueses, recobra uma nova configuração:

Estava no castelo de Faria Um português leal digno de glória, Nuno Gonçalves é que residia Nele, como ficou por clara história. E vendo que o Sarmiento já vencia: Inda que era sangrenta a sua vitória, O castelo deixando a bom recado, Entre os seus cavaleiros vem armado.518

Nuno Gonçalves foi feito prisioneiro pelos castelhanos. Imaginando que o

filho entregaria o castelo sob sua guarda caso ameaçassem a vida do pai, este

herói, com dissimulação, pediu a Sarmiento que o enviasse à fortaleza para levar um

recado ao filho, requisitando sua rendição. Quando chegaram à muralha do castelo,

o discurso que proferiu surpreendeu a todos:

Já sabeis filho meu como jurei A el Rei nosso senhor com grão firmeza E a homenagem, e fé sincera lhe dei, De guardar esta sua fortaleza. O acontecimento mal não suspeitei, Em que agora me vejo em tal baixeza, Nas mãos de meus inimigos vencedores, Por terem mor poder, forças maiores. Por benção paternal filho vos mando, Que o castelo del Rei o defendais, Nenhum pacto sobre isso aqui aceitando: Mas antes o inimigo resistais. Ainda que do feroz contrário bando Aqui fazer pedaços me vejais, Estai firme, constante, estai seguro Que menos é morrer que ser perjuro. A el Rei de Portugal nosso senhor O entregareis, e a quem ele mandar, Não vos mova de mim piedade, ou amor. Nem tormentos que aqui me vejais dar. Passarei levemente a morte e a dor: Pois imortal a fama há de ficar, Guardai minha homenagem prometida Que eu quero, e estimo mais, que a própria vida.519

516 Ver: idem, pp. 381-388. 517 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 69. 518 P. 145.

Page 193: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

193

Firmeza, sinceridade e fidelidade são virtudes que caracterizam Nuno

Gonçalves, que pediu ao filho constância não apenas para resistir à ofensiva

inimiga, mas para assegurar a fama imortal do pai, em razão de seu sacrifício.

Contrariamente a este exemplo de nobreza, muitas vezes os soldados

portugueses se deixavam dominar pelo medo, pela covardia e pela inconsideração,

como ocorre em um dos episódios de Os feitos de Mem de Sá, de Anchieta:520

Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços, fervesse-lhes no peito um sangue mais quente, acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe, e esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens, atirando-os para as sombras eternas do inferno. Mas, ai! que imensa é a humana inconstância! Estes, mais aqueles começam de vacilar, vai-os prendendo pavor covarde, cada vez maior, ao verem que a onda dos índios cresce, já recuam e se furtam à luta, esgueirando-se insensivelmente, esses covardes sem nome. Tornam às naus, desligando da margem as barcas. Abandonam o chefe, que ignora esse ato de infâmia, entre poucos companheiros, o furor da pele renhida.521

O aedo, como que consternado, instrui-lhes com severidade:

Para onde fugis, desgraçados? que medo vil vos assalta o coração sem brio? que inimigo estais perseguindo tão à pressa? Já não vos movem os louros das duas vitórias e as fortalezas que tomastes com a morte de seus defensores? Apavorados de terror indigno, não vos envergonha abandonar assim vosso chefe à fúria dos bárbaros entre tantos perigos, ao peso de tantos trabalhos. Para onde fugis? Sustai o passo! A maior parte dos vossos sucumbe: voltai ligeiros e, ao lado do chefe, valentes destruí o arraial. Para que tanto amor pela vida?522

Temerosos frente à possibilidade da morte em batalha, alguns

portugueses abandonaram o herói, movidos pelo apego à vida e aos prazeres

mundanos. Além do desrespeito à hierarquia, os homens sob o comando de Fernão

de Sá priorizam o “eu” em detrimento do “nós”: perde-se, então, a harmonia orgânica

519 Idem, p. 146. 520 A desconsideração implica um “defeito do reto juízo”, quando alguém “falha no reto julgar por desprezar ou negligenciar os aspectos que se requereriam para dar um juízo reto”. Ver: TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 82. 521 De Gestis Mendi de Saa, 1970, livro I, v. 554-566, p. 113. 522 Idem, livro I, v. 567-576, p. 113.

Page 194: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

194

do corpo de súditos do rei que deveriam priorizar as realizações do todo, e não as

vontades individuais de suas partes. O desequilíbrio afetivo leva à obliteração do

bem comum e, conseguintemente, coloca a empresa em risco. Este exemplo tende a

demonstrar que a instabilidade pode partir de indivíduos que já integravam o corpo

místico do Império. Além disso, ele auxilia na produção de afetos, na medida em que

sugere que o leitor também pode se deixar levar pela inconstância.

Quando se dá conta da grande superioridade numérica dos indígenas,

Fernão de Sá recua com seus homens a caminho das naus, mas percebem que os

fugitivos tomaram-nas e partiram. Recorrendo a outro símile, o aedo demonstra

como a conduta do herói distava daquela outra, própria dos covardes:

Os inimigos se apinham ao redor e o carregam com gritos de terror e com flechas: não lhes dá a horda descanso, como caçadores à volta do leão que freme asseteado: ele a raivar ruge horrendamente e feroz ameaça com o olhar torvo, ora este, ora aquele, impertérrito rasga com a boca em sangue os corpos que alcança: Eles o apertam, ficam-lhe lanças nas costas, nos flancos à porfia, até que todo roto de feridas sucumbe e a terra treme ao baque dos membros robustos.523

Depois de muita peleja, o filho de Mem de Sá tomba acossado como um

leão. O jovem herói conquista, então, a bela morte, maior graça concedida aos

cristãos:

Ó venturoso moço, prostrado na arena sangrenta depois de devastar valente as hordas selvagens, bela morte juncou teu sepulcro de mil setas e corpos. Não te assediou o peito a fome do ouro nem da vaidade; mas a paixão imensa da glória divina e a honra imaculada de Cristo te imola nesse altar, para que sejam tuas feridas a vida de muitos. Vencido pelo amor da pátria e liberdade dos teus, vergaste a cabeça ante a morte, sob a espada inimiga tombando na juventude em flor, primavera da vida. Sem tremer, desprezaste a terra pelo bem dos amigos, deixaste escapar, pelas chagas abertas, a vida. Grande jovem, eis tua glória! os séculos todos saberão que preferiste morte cruel à desonra de Deus, da pátria e do pai, e que, desconhecendo o temor cobarde, expuseste a vida aos maiores perigos e apagaste, com teu sangue o incêndio da guerra que surgia ameaçador. Lembrar-se-ão os teus Lusos e confessarão agradecidos dever-te tal benefício: graças a tua morte, eles vivem e desfrutam da paz.

523 Idem, livro I, v. 633-641, p. 117.

Page 195: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

195

Venturoso Jovem, entre os felizes, nas alturas celestes brilha a tua glória irmanada à glória divina. Privado embora do sepulcro teu corpo, escondido embora no seio da terra ou no ventre dos índios, nada se te dá. Fica-lhes esta glória mesquinha, depois que as hordas ferozes com sua imensa ruína juncaram as fortalezas, e com o sangue selvagem encheram o leito do rio, e dobraram as cervizes altivas à força de golpes, e se lhes abrandaram as iras.524

Ao final do livro I, Mem de Sá se deixou consolar pelo fato de que a morte

do filho salvou a vida de vários súditos do rei. O herói, à maneira de Deus, que

enviou Cristo para redimir os pecados da humanidade, sacrificou seu filho por uma

causa nobre.525

À maneira de Fernão de Sá, Duarte Coelho intercedeu pelo bem comum.

Ao avistar soldados lusitanos em fuga durante a batalha de Alcácer-Quibir, o herói

não poupa censuras:

(...) Donde vos is, homens insanos? Que digo: homens, estátuas sem sentido,

Pois não sentis o bem que haveis perdido? Olhai aquele esforço antigo e puro Dos ínclitos e fortes lusitanos, Da pátria e liberdade um firme muro, Verdugo de arrogantes mauritanos; Exemplo singular para o futuro Ditado e resplendor de nossos anos, Sujeito mui capaz, matéria digna Da mantuana e homérica buzina. Ponde isto por espelho, por traslado, Nesta tão temerária e nova empresa; Nele vereis que tendes já manchado De vossa descendência a fortaleza. Á batalha tornai com peito ousado, Militai sem receio, nem fraqueza, Olhai que o torpe medo é crocodilo Que costuma, a quem foge, persegui-lo.526

Duarte faz alusão aos “exemplos” lusitanos do passado, cuja memória

tornou-se perene. Sendo um dos heróis de Prosopopeia, Duarte Coelho anuncia a

existência de outros modelos de conduta, que ele também procurava imitar. Em

seguida, o herói censura os fugitivos, afirmando que eles deveriam refletir a braveza

524 Idem, livro I, v. 660-688, pp. 117-119. 525 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. O éthos do aedo e a constituição jesuítica do herói: Anchieta e Mem de Sá. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n° 174, 2008, pp. 35-40. 526 Prosopopeia, 2008, cantos LXXXIII-LXXXV, pp. 150-151.

Page 196: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

196

e a coragem das personagens que protagonizam a história de Portugal, cuja

dignidade rendeu-lhes reconhecimento póstumo. A fuga dos portugueses, portanto,

era recepcionada como um desrespeito às hierarquias: sendo assim, o protagonista

não apenas se manteve fiel às ordens impostas, como também instruiu seus pares

sobre o melhor caminho a ser seguido. Estas advertências, de caráter didático, são

direcionadas também aos leitores, ou seja, a passagem elucida o quão indignos são

a covardia e o desrespeito, advertindo o leitor sobre as implicações de tais condutas

e sugerindo um caminho inverso, digno de imitação. O herói de Prosopopeia

continua suas asseverações:

E se o dito a tornar-vos não compele, Vede donde deixais o rei sublime? Que conta haveis de dar ao reino dele? Que desculpa terá tão grave crime? Quem haverá que por traição não sele Um mal que tanto mal no mundo imprime? Tornai, tornai, invictos portugueses, Cerceai malhas e fendei arneses.527

As orientações de Duarte Coelho indicam que o desacato às hierarquias

era crime grave e passível de castigos severos. Conhecendo o desfecho trágico da

batalha, o aedo se empenha em retratar bons e maus súditos. As advertências sobre

“um mal que tanto mal no mundo imprime” sugere que a união das coroas ibéricas,

evento decorrente do desfecho da batalha acima, se efetivou graças à traição e ao

descompromisso por parte de súditos que se acovardaram e desampararam o rei

desafortunado. Em Prosopopeia, estas sugestões não foram acatadas (é preciso

lembrar que o destino já estava selado para os participantes desta empresa). O que

se espera, através de um movimento axiológico, é que a audiência pese na balança

uma e outra causa, se instruindo sobre as falhas impostas por uma e as benesses

colhidas por intermédio da outra. Tendo em vista o insucesso de suas asseverações,

Duarte conclui:

(...) Corações efeminados, Lá contareis aos vivos o que vistes, Porque eu direi aos mortos que fugistes.528

527 Prosopopeia, 2008, canto LXXXVI, p. 151. 528 Idem, canto LXXXVII, p. 152.

Page 197: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

197

Duarte Coelho, à maneira de Fernão de Sá, mostra-se destemido perante

a morte. A aceitação e, neste caso, a premeditação da morte é tópica bastante

recorrente, por exemplo, na épica homérica, na qual a boa morte se dá no ápice da

juventude, em razão de um duelo ou combate: Heitor, para defender a sua honra

(timé), aceita o desafio de Aquiles para um duelo; Aquiles, por outro lado, mesmo

frente às admoestações da mãe, que lhe vaticina um final trágico em Troia, luta por

amizade à Pátroclo, vítima de Heitor. O renome, neste momento, era um recurso

para se combater a finitude humana.529 Jean-Pierre Vernant afirma que “o indivíduo

não é separado do que realizou, efetuou, nem do que o prolonga: suas obras, as

façanhas que executou, seus filhos, sua família, seus parentes, seus amigos. O

homem está no que faz e no que o liga aos outros”.530 Nos exemplos homéricos,

bem como no de Duarte Coelho, herói e morte se familiarizam.531 Frente ao trágico

fim de Duarte, Proteu lança os seguintes comentários:

Ó alma tão ditosa como pura, Parte a gozar dos dotes dessa glória, Donde terás a vida tão segura, Quanto tem de mudança a transitória Goza lá dessa luz que sempre dura; No mundo gozarás de larga história, Ficando no lustroso e rico templo Da ninfa Galatéia por exemplo.532

O prudentíssimo Duarte, modelo exemplar de alma “ditosa” e “pura”, tem

acesso irrestrito à bem-aventurança. Esta premiação é o artifício último concedido

àqueles que, em vida, foram condutores justos e fiéis do corpo místico. As glórias,

neste caso, não garantem apenas uma “larga história”, na qual o herói se converte

em “espelho de virtudes”, mas também acesso à “luz que sempre dura”, à glória

celeste. Duarte lutou até cessar suas forças e ser feito cativo, garantindo a presença

de testemunhas (os soldados que se acovardaram) e morrendo, trajeto trilhado

também por Aquiles, que usufruiu de “larga história”533 graças à sua participação na

529 Ver: VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, pp. 381-388. 530 Idem, p. 343. 531 Sobre a familiaridade da morte, ver: ARIÈS, Philippe. O Homem diante da morte. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981, vol. 1, pp. 3-31. 532 Prosopopeia, 2008, canto XC, p. 153. 533 Neste caso, a “larga história” é correspondente ao conceito de glória imperecível, tratada por Hartog. Segundo este autor, “há muitas formas de morrer. O herói aceita morrer no combate, ultrapassar as portas do Hades e do esquecimento, contanto que obtenha, em troca, o Kléos, que viva pelo canto do aedo e na memória social. Aquiles, escolhendo morrer diante de Tróia, renuncia ao retorno (nóstos) para os seus, mas ganha, ele sabe, uma “glória imperecível”. Ver: HARTOG,

Page 198: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

198

guerra de Troia. Produz-se, artificialmente, uma “boa morte” enquanto finalidade

última a ser almejada por homens prudentes: neste caso, ornar a morte de uma

personagem histórica e cogitar a consequente salvação indica um efeito pedagógico,

pois ensina que o destemor e o respeito às hierarquias evita qualquer possibilidade

de morte, enquanto fim, o que sugere um novo início, medida providencial estipulada

àqueles que são merecedores. A aceitação da morte, por parte do herói, não

equivale, contudo, à aceitação dos seus pares:

Mas enquanto te dão a sepultura, Contemplo a tua Olinda celebrada, Coberta de fúnebre vestidura, Inculta, sem feição, descabelada. Quero-a deixar chorar morte tão dura ‘Té que seja de Jorge consolada, Que por ti na Ulisséia fica em pranto, Enquanto me disponho a novo canto.534

Sob o efeito de prosopopeia, Olinda, “coberta de fúnebre vestidura”, chora

a morte do herói. Sua aparência sugere sofrimento, e a ausência de luz projeta

escuridão sobre um infortúnio digno de “pranto”. Esta personificação de um local

amplifica e universaliza o sofrimento do luto perante o afortunado Duarte Coelho. O

choro generalizado é proporcional à universalidade do reconhecimento do herói

sepultado. Algum consolo será prestado apenas quando Jorge d’Albuquerque

ocupar o posto de donatário. O reconhecimento póstumo do herói, portanto, é

garantia de uma vida exemplar e prova a consumação de sua bela morte.

Jorge d’Albuquerque usufruiu do kléos e do nóstos. Duarte Coelho, seu

irmão, não compartilha da mesma sorte, obtendo a fama perene, mas não o retorno.

As axiologias épicas que contrastam a Ilíada e a Odisseia se coadunam na narrativa

de Bento Teixeira, sem deixar de encenar os destinos ruinosos reservados aos

heróis. Vasco da Gama, quando também atinge o kléos na ilha dos amores, não é

privado do retorno, mas Fernão de Sá, assim como Duarte, não regressa ao lar. O

aedo católico não deixa de ressaltar, portanto, o destino trágico e os sofrimentos

decorrentes da finitude humana. Retornamos, portanto, à condição ambígua da

François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 45. 534 Prosopopeia, 2008, canto XCI, p. 153.

Page 199: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

199

heroicidade,535 que eleva o homem a uma situação de destaque, mas, no final, nem

mesmo o herói escapa dos desígnios ruinosos reservados à humanidade: a

diferença é que, no caso do herói cristão, há lugares distintos pelos quais se pode

seguir viagem.

A máquina do mundo e o mistério providencial

Eis o que disse Tétis a Vasco da Gama antes de apresentar-lhe a grande

máquina do mundo:

Faz-te mercê, barão, a Sapiência Suprema de, cos olhos corporais, Veres que não pode a vã ciência Dos errados e míseros mortais. Segue-me firme e forte, com prudência, Por este monte espesso, tu cos mais.” Assim lhe diz, e o guia por um mato Árduo, difícil, duro a humano trato.536

Convém assinalar, com Hansen, que Vasco da Gama contempla a “forma

invisibilíssima ou substância metafísica do universo”, que não pode ser apreendida

pela ciência humana.537 O herói é convidado a seguir, com prudência, os passos de

Tétis. Neste caso, a reta razão de Gama é iluminada pela Graça divina. A prudência,

portanto, é possível na medida em que a ação do protagonista adequa-se aos

desígnios da Providência. O mato “Árduo, difícil, duro a humano trato”, de acordo

com Hansen, é uma “figuração que encontramos em textos platônicos dos séculos

XV e XVI”.538 No caso, o mato alegoriza a vida sensível, que é temporariamente

535 Trata-se do princípio teleológico, tratado por Murari Pires. O herói homérico, no caso, se destaca frente aos demais, pela superioridade de sua condição implicada no conceito de areté, categoria definidora da heroicidade. Se, por um lado, o herói se singulariza perante o meramente humano, por outro ele compartilha do mesmo destino conferido aos mortais, determinado pela finitude inevitável. Sabe-se, de antemão, que a condição da imortalidade é apanágio dos deuses e de outras criaturas superiores. Aos heróis, resta o destacamento perante os conflitos bélicos enquanto trunfo a assegurar larga difusão de seus feitos e de seu nome por intermédio da memória. Através do kléos, portanto, o herói “inscreve seu nome na memória que o épos atualiza”. É através desta teleologia que “o heroico viabiliza o modo humano de ser divino”. Há uma reserva a ser feita, no entanto: a honra a ser colhida pelo homem advém de trabalhos e esforços, não constituindo, por outro lado, uma dificuldade ao ser apreendida pelos deuses, que dela faz uso corriqueiro, substanciado no deleite. Por esta razão, a celebração do kléos do herói nos remete à labuta e aos penares a que este se submete. Ver: PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 182-194. 536 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofe 76, p. 301. 537 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 184. 538 Idem, ibidem.

Page 200: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

200

deixada para trás. É possível notar uma aproximação entre este episódio d’Os

Lusíadas e o terceto inicial da Divina Comédia: “No meio do caminho em nossa

vida,/ eu me encontrei por uma selva escura/ porque a direita via era perdida”.539 De

acordo com Vasco Graça Moura, a selva representa os erros e desvios da condição

humana. Há, portanto, um nexo que comunica os dois fragmentos, pois os

protagonistas Dante e Vasco da Gama deixam para trás aquilo que é próprio da

mísera condição humana para participar de outro plano, inacessível aos “errados e

míseros mortais”. Ambas as personagens, com “olhos corporais”, testemunham,

graças à intervenção da Providência, eventos que escapam à “vã ciência”.

A máquina do mundo é um artifício. O termo máquina, do grego mékhané,

designa “qualquer invenção produzida com arte pela inteligência artificiosa, a

métis”.540 De acordo com Hansen, a “forma do universo revelada na máquina do

mundo é artifício do engenho divino, que a gera com razão, doutrina e ordem. A

máquina do mundo é o universo fabricado artificiosamente pelo engenho de Deus, o

autor máximo”.541 Hansen afirma que ela é

finita, como efeito e signo fabricados por artifício divino, mas ilimitada [...] Sua racionalidade atesta que é divina a arte inventada pelo Arquétipo, a pura esfera inteligível, nua, pura e invisível de Deus. Absolutamente indeterminado e inacessível à razão humana, Deus a cerca com seus nove coros de anjos, movendo-a com Amor.542

A máquina reproduzida por Camões é etérea e Elemental: a parte etérea

é celestial, feita da “quintessência imutável e lúcida”; a parte Elemental, por sua vez,

“corresponde aos orbes compostos dos quatro elementos pitagóricos, ar, terra, água

e fogo”.543 Na sua epopeia, Camões retrata os orbes planetários, indica a

complexidade de seu curso, afirma a imobilidade da Terra e discorre sobre os quatro

elementos dos quais ela é feita.

Debaixo deste grande Firmamento, Vês o céu de Saturno, Deus antigo; Júpiter logo faz o movimento, E Marte abaixo, bélico inimigo;

539 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Editora Landmark, 2005, “Inferno”, canto I, vv. 1-3, p. 31. 540 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 185. 541 Idem, ibidem. 542 Idem, p. 186. 543 Idem, ibidem.

Page 201: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

201

O claro Olho do céu, no quarto assento, E Vênus, que os amores traz consigo; Mercúrio, de eloquência soberana; Com três rostos, debaixo vai Diana. Em todos estes orbes, diferente Curso verás, nuns grave e noutros leve, Ora fogem do Centro longamente, Ora da Terra estão caminho breve, Bem como quis o Padre onipotente, Que o fogo fez e o ar, o vento e neve, Os quais verás que jazem mais adentro E têm co Mar e Terra por seu centro.544

Estes versos provavelmente foram emulados em Prosopopeia, pois

também aqui são descritos os quatro elementos que configuram o Universo e a

configuração das Estrelas Fixas, tal como foi preconizada por Ptolomeu:

O marchetado Carro do seu Febo Celebre o Sulmonês, com falsa pompa, E a ruína cantando do mancebo, Com importuna voz, os ares rompa. Que, posto que do seu licor não bebo, À fama espero dar tão viva trompa, Que a grandeza de vossos feitos cante, Com som que ar, fogo, mar e terra espante.545

As luzentes estrelas cintilavam, E no estanhado mar resplandeciam, Que, dado que no céu fixas estavam, Estar no licor salso pareciam. Este passo os sentidos preparavam Àqueles que d’amor puro viviam, Que, estando de seu centro e fim ausentes, Com alma e com vontade estão presentes.546

Apropriando-se da cosmologia de Ptolomeu, Camões e Bento Teixeira

aderem-se ao geocentrismo, ou seja, a Terra, esférica e imóvel, é situada no centro

do universo. Em torno dela giram os nove orbes materiais: Lua, Mercúrio, Vênus,

Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Para Ptolomeu, os planetas não reproduzem círculos

perfeitos, mas trajetórias muito complexas que podem ser matematicamente

calculadas. Na sequência, encontra-se o Céu das Estrelas Fixas, mencionado por

Tétis na estrofe 88, e o Primeiro Móvel, que gira e faz mover os outros orbes. Acima

dele, por fim, localiza-se o Empíreo, que é feito de éter imaterial e guarda as puras

544 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofes 89-90, p. 305. 545 Prosopopeia, 2008, canto VI, p. 125. 546 Idem, canto IX, p. 126.

Page 202: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

202

almas. A luz que exala “cega o olhar sensível e a razão humana, incapazes de vê-lo

e entendê-lo”.547

Camões afirma a impossibilidade de definir Deus: “[...] o que é Deus,

ninguém o entende,/ Que a tanto o engenho humano não se estende”.548 Dante

Alighieri insistiu nesta propriedade indescritível do Artífice, quando adentrou o último

círculo do Paraíso. O Empíreo, no caso, “é pura Luz intelectual – pois vem de Deus,

Intelecto infinito – plena de Amor infinito, verdadeira Alegria do Bem que transcende

toda doçura”.549 A figura circular que chega aos olhos de Dante e de Camões repõe

a antiga definição de Deus como “círculo infinito e perfeito que tem o centro em toda

parte e a circunferência em nenhuma”.550 Dante, no caso, entende o enigma sem

poder descrevê-lo com palavras. Em Camões, Deus, que também é comparado ao

círculo infinito e perfeito, “desce pelos vários orbes circulares e finitos como Amor da

sua Forma invisibilíssima, que neles participa analogicamente”.551

Torquato Tasso também menciona e descreve o Empíreo, reafirmando a

cosmologia ptolomaica e, provavelmente, emulando a Comédia de Dante:

No empíreo se assentava; além do augusto Orbe que são juízo não governa, Donde tudo compõe e ordena, justo E bondadoso com razão superna, Da eternidade sobre o sólio augusto Com três luzes fulgindo numa eterna. Estão-lhe aos pés, com grande acatamento, Natura, fado, tempo, movimento, E o espaço, e aquela que aniquila e torna Em fumo o ouro, as glórias, a conquista, Como na altura apraz; nem a transtorna A cólera dos homens; não na avista. De resplendor tão vivo Ele se adorna, Que da maior pureza ofusca a vista. Imortais infinitos o rodeiam, Que iguais desigualmente se recreiam.552

547 Idem, p. 187. 548 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofe 80, p. 302. 549 HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010, p. 36. 550 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 186. 551 Idem, ibidem. 552 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto IX, estrofes 56-57, pp. 328-329.

Page 203: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

203

Tasso menciona o orbe que o juízo humano não apreende, pois é regido

pela “razão superna”. As “três luzes” aludem à trindade mencionada por Dante da

seguinte maneira: “Ne la profonda e chiara sussistenza/ de l’alto lume parvermi tre

giri/ di tre colori e d’una contenenza”.553 O resplendor que orna o Criador “ofusca a

vista”, afirma o poeta. Nota-se que, tal como Dante e Camões, Tasso utiliza a

metáfora da luz para justificar a impossibilidade de descrever aquilo que a razão

humana não governa. Isto confirma o quão privilegiado foi Vasco da Gama, ao

contemplar as feições da “máquina do mundo”, artifício supremo:

Aqui um globo vêem no ar, que o lume Claríssimo por ele penetrava, De modo que o seu centro está evidente, Com a sua superfície, claramente. Qual a matéria seja não se enxerga, Mas enxerga-se bem que está composto De vários orbes, que a Divina verga Compôs, e um centro a todos só tem posto. Volvendo, ora se abaixe, ora se erga, Nunca se ergue ou se abaixa, e num mesmo rosto Por toda a parte tem; e em toda a parte Começa e acaba, enfim, por divina arte.554

O único meio adequado de figurar a Essência de Deus, “que é

absolutamente sublime, invisível, indizível e impensável, é propor a indefinição da

figura”,555 como faz Dante, Camões e Tasso. Na estrofe 78 do canto X, Camões

adota a definição euclidiana da esfera como “superfície de revolução produzida pelo

movimento da circunferência em torno do diâmetro, movimento que faz que os

círculos cresçam até o meridiano e depois diminuam”.556 Quando Deus se mostra a

Dante e permite que Vasco da Gama testemunhe a máquina do mundo, as luzes e o

esclarecimento são apenas “prefácios de sombra”, ou seja, é impossível aos olhos

mortais entender uma Essência que a razão humana desconhece. A Luz absoluta,

que se manifesta surpreendentemente no canto XXXIII do Paraíso e se apresenta a

Dante como enigma, “ofusca a vista”, nas palavras de Torquato Tasso, e em

553 “E na profunda e clara substância/ do alto lume três círculos vi vir/ de três cores e de uma continência”. ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Editora Landmark, 2005, “Paraíso”, canto XXXIII, vv. 115-117, pp. 884-885. 554 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofes 77-78, p. 301. 555 HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010, p. 40. 556 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 186.

Page 204: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

204

Camões “a vista cega”.557 O olhar humano contempla somente aquilo que a razão

consegue assimilar, ou seja, é impossível que um homem consiga desmembrar o

artifício que fundamenta a máquina do mundo, pois “Quem cerca em derredor este

rotundo/ Globo e sua superfície tão limada,/ É Deus”.558

A organicidade da obra de Camões parece, em alguns momentos, se

explicar em retrospecto, ou seja, há passagens iniciais que só entendemos com

propriedade ao final da narrativa. Após falar do Empíreo, Camões discorre sobre

Deus, “que por segundas/ Causas obra no Mundo, tudo manda”.559 Esta causa

segunda muitas vezes é incorporada pelos deuses pagãos. Tétis afirma que a

encenação das deidades mitológicas pretende somente deleitar a audiência. Para

tanto, a deusa nega a si própria quando admite: “eu, Saturno e Jano,/ Júpiter, Juno,

fomos fabulosos,/ Fingidos de mortal e cego engano”.560 A poesia está para terminar,

e a alegoria já não é mais necessária.

A máquina do mundo é finita, sendo um artifício da Providência, mas é

ilimitado por conter informações e revelações que o “olho físico” não contempla a

não ser em ocasiões muito especiais. Virgílio, alegoria da Razão, e Beatriz, alegoria

do amor, orientam Dante rumo à contemplação daquilo que a o ser vivo não pode

apreender e, por isso, os enigmas são parcialmente compreendidos. Da mesma

forma, a Causa Segunda representada pela deusa Tétis convida Vasco da Gama a

contemplar uma imagem artificiosa e, no entanto, invisível à razão humana, que é

passageira. A máquina do mundo, que pode ser entendida como o maior de todos

os artifícios da epopeia de Camões, dissimula o verdadeiro aspecto da Causa

Primeira e, ao mesmo tempo, desengana aquele que a contempla. O Amor orienta

os itinerários do protagonista, a razão ajuda o leitor a “ver” a partir do olhar prudente

do narrador e a ordenação/disposição dos quadros forja uma memória e retrata os

vários estágios da condição humana.

Camões, na esteira de Dante, adotam a concepção ptolomaica, que

tinha sido desmentida pelas navegações do século XV [...] quando Camões termina Os Lusíadas, em 1567, as inovações e a velha fidalguia já tinham sido substituídas pela Inquisição, pela censura intelectual, pela perseguição religiosa e pela mentalidade mercantil. O canto presente faz a apologia do projeto imperial da conquista do mundo pela fé e pelas armas, e,

557 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofe 81, p. 302. 558 Idem, canto X, estrofe 80, p. 302. 559 Idem, canto X, estrofe 85, p. 304. 560 Idem, canto X, estrofe 82, p. 303.

Page 205: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

205

simultaneamente, o poeta afirma que vem cantar “a gente surda e endurecida”, na estrofe 145 do Canto X.561

A poesia camoniana precisou passar pela censura inquisitorial e adaptar-

se à ortodoxia então vigente. Os elementos teológicos e políticos que conferiam

sentido à máquina do mundo deveriam ser manuseados com prudência. Hansen

adverte:

A alegoria da máquina é, nesse sentido, um meio poético-metafísico com que Camões figura a alma portuguesa em estado de receptividade extática da unidade invisível do divino. A união sexual dos navegantes com as ninfas aquáticas e a de Vasco da Gama com Tétis alegorizam o casamento de Portugal com o mar. A visão da máquina do mundo alegoriza seu contato extático com o princípio metafísico, o Bem para além do movimento aparente das esferas, que fundamenta e orienta providencialmente a união e a viagem por meio de Vênus, seu instrumento ou causa segunda. Em outras partes, o episódio da máquina do mundo fundamenta o domínio físico do mar e das novas terras da África, da Ásia e da América como domínio físico teológico-político da monarquia católica sobre regiões e religiões gentias e infiéis, divinizando a história de Portugal.562

Quando contemplam o artifício divino através da máquina do mundo,

Dante e Vasco da Gama assimilam a verdade sem poder dizê-la. Quando apreciam

aquilo que a razão humana não pode inventariar, o leitor apreende a pintura poética

sem poder defini-la. Assim como Dante, Vasco da Gama inicialmente presenciou

trevas, infortúnios, labores e perigos. Ao final da trajetória, ambos se afastam da

“selva” que representa a condição humana para participar de um plano Providencial

repleto de luz e esclarecimento. A finalidade que Dante atribui à Comédia, em uma

carta dirigida ao seu protetor Cangrande della Scala, parece orientar também os

itinerários d’Os Lusíadas: “remover os que vivem nesta vida do estado de miséria e

levá-los para o estado de felicidade”.563

As revelações sobre a máquina do mundo só ocorreram ao final da

jornada do herói, depois de ter passado por grandes desventuras. De acordo com

Corte-Real, a Providência comumente age de forma misteriosa:

Quem poderá fugir futuros males, Sucessos desastrados, fins ocultos?

561 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 191. 562 Idem, ibidem. 563 HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010, p. 11.

Page 206: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

206

Ou quem pode alcançar altos mistérios Que a suma providência assim atribui? Com vãos prometimentos nos engana O mundo lisonjeiro, falso e breve: Com fantásticos bens que num momento Trazidos entre as mãos se nos consumem. Enlevados andamos, prometendo Sempre a nosso desejo ledo efeito, E no meio de um mar profundo e largo De pensamentos vãos nos engolfamos. Com próspera esperança, um bem ditoso Afirmamos, nas coisas mais incertas, Sem nos lembrar já mais a ordem tão triste Da nossa humana, fraca natureza. Andemos sobre aviso, e vigiemos: Que o sacro Redentor assim ensina, Pois o dia cruel, e hora tão forte Da furibunda morte não se alcança.564

Priorizar os bens mundanos em prol dos bens duradouros implica ignorar

que, no fim, todos vão ser julgados a partir dos mesmos critérios:

Vede os confusos montes dos defuntos No mundo vede que tudo é possível, Os vulgares, e os nobres vereis juntos Com estrago espantoso, e mal terrível. Neste dia cruel vereis transuntos Desta vida mortal o caso horrível, Que o pobre, o rico, e fraco, e o que é mais forte São todos em geral iguais na morte.565

Após desenganar-se perante as aparências, o mais seguro seria contar

com a intervenção de Deus:

Incerto é o fim das coisas, e o sucesso Do mal, ou bem futuro a nós oculto, Pois temos, por passar tão vários casos: Chamar sempre por Deus é o mais seguro.566

Os mistérios podem ser apreendidos de formas variadas, como deixa ver

o poeta ao discorrer sobre a maneira como o vulgo os concebe:

Assim no céu está determinado Por um juízo altíssimo escondido,

564 CORTE-REAL, Jerónimo. Naufrágio de lastimoso sucesso de perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindo da Índia para este reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Lisboa: oficina de Simão Lopes, 1594, p. 86. 565 Idem, p. 165. 566 Idem, p. 127.

Page 207: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

207

Chamam-lhe os rudes estrela, ou fado, Sorte, ou destino mísero influído. Mas Deus é o que nos põe no ledo estado, Nos abate também no avorrecido, Como quer a sua alta providência, Que nele está o saber, nele a potência.567

Seria próprio do néscio, portanto, levar em consideração as aparências e

perder de vista o verdadeiro bem:

Ó fraca natureza, ó saber fraco De todos os mortais, ó erro cego Que por seguir um vício, perca o homem O bem que só para ele está guardado. Triste miséria humana, que não sente Numa doce aparência, a morte amarga, E em verdes frescas ervas, a serpente Venenosa, e cruel, não vê escondida.568

De um lado, há o altíssimo juízo de Deus, oculto aos olhos, mas manifesto

na história; de outro, a cegueira do vulgo, que enxerga o que lhe apetece e despreza

o bem duradouro. O sacrifício, a boa morte, a vaidade, a cobiça, a caridade... É

possível elencar uma lista infindável de ações, virtudes e vícios orientados pelo amor

(próprio, pelo próximo, por Deus). A poesia parece retirar dos exemplos históricos

e/ou fabulosos os fundamentos ou predicados deste sentimento. Com encômios e

vitupérios, proporciona-se o desengano do leitor. Onde muitos contemplam uma

contradição (epopeia/antiepopeia), poder-se-ia observar a proposta de uma

harmonia cósmica centrada no reto direcionamento do amor e sintetizada

artificialmente no globo da etérea e elementar máquina do mundo.

567 Idem, p. 165. 568 Idem, p. 64.

Page 208: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

208

CAPÍTULO 05

Considerações sobre a hospitalidade

A mitologia nórdica indica algumas passagens que valorizam os dons da

hospitalidade. Há, por exemplo, um episódio no qual Odin desafia um inimigo seu, o

gigante Hrungnir, para uma corrida de cavalos. O deus montava Sleipnir, um cavalo

de oito patas muito ligeiro. Gullfaxi, a montaria do gigante, também era incrivelmente

veloz. Durante a corrida, que foi muito acirrada, Odin valeu-se de uma artimanha:

desviou-se do caminho demarcado de modo a atalhar por Asgard, a morada dos

deuses. Por um momento, o gigante se conteve, o que proporcionou ao deus a

vantagem necessária para assegurar a vitória. No entanto, o vencedor admitiu sua

deslealdade e, para compensar o oponente, convidou-o para um banquete em seus

domínios. Hrungnir aceitou o convite e mostrou-se inclinado a exagerar no hidromel,

abandonando qualquer vestígio de prudência. Ébrio, o gigante começou a falar

sobre a futura destruição de Asgard e prometeu poupar Sif, esposa de Thor, e Freya,

a mais bela dentre as deusas, pois elas seriam convertidas nos mais belos espólios

de guerra. Neste momento, Thor chega de viagem e contempla a imagem do gigante

dirigindo suas palavras impetuosas a Sif. O gigante, no auge de sua imoderação,

brada diante do recém-chegado: “Venha, venha logo desfrutar desta jovem dos

encantadores cabelos dourados, pois logo ela mudará de dono!”. Thor, que já erguia

seu martelo Mjollnir, foi contido pela voz severa do pai: “Pare! Não pode matar um

visitante à nossa mesa. Isto seria infringir, gravemente, a lei da hospitalidade a que

todos estamos obrigados!”. Na sequência, o marido ultrajado propôs um duelo, e

Hrungnir não pôde recusar por ter violado todas as leis de cortesia para com seu

anfitrião. Ao final, Thor foi gravemente ferido, mas saiu vitorioso.569

Estudiosos afirmam que a hospitalidade era pensada de uma maneira

muito peculiar entre os povos celtas. De acordo com Korstanje, existam dois

significados mais gerais para o termo: primeiramente, tratava-se de um

procedimento religioso, em que se recebia um peregrino como sendo um enviado

dos deuses. Por outro lado, é possível encontrar uma conotação jurídica, pois a

hospitalidade era uma forma de assegurar o equilíbrio político por meio de pactos e

569 FRANCHINI, A. S. As melhores histórias da mitologia nórdica. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2004, pp. 169-172.

Page 209: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

209

contratos entre diferentes tribos ou clãs. No caso, este dom é pensado menos como

uma “virtude” (no sentido cristão do termo) e mais como uma conduta

institucionalizada, com regras muito bem delimitadas. Existiam até mesmo exceções

que prescreviam a recusa à hospitalidade sem macular a honra, como nos casos de

abusos por parte dos hóspedes. Sendo assim, a própria normatização da

hospitalidade admite algumas exceções.570 Korstanje acredita que existe uma linha

comum entre as línguas indo-europeias no que diz respeito ao termo latino hostis.

Baseando-se nos estudos de Paloma Chamorro, o autor lembra que os termos

inimigo, estrangeiro e hóspede, que para nós remete a significados muito distintos,

se correlacionavam nas línguas indo-europeias, de forma que hostis designava mais

uma situação de “equilíbrio” do que necessariamente de “hostilidade”. Hospes, por

outro lado, designava geralmente a garantia de livre circulação e a obrigação de

prestar serviços em caso de necessidade.

Em seu estudo etnográfico sobre a presença da dádiva entre sociedades

primitivas, Marcel Mauss nota o predomínio de uma tendência à troca e ao

estabelecimento de alianças políticas (no caso de chefes tribais, por exemplo),

religiosas (por meio de hecatombes e ritos cerimoniais), econômicas e diplomáticas

(incluindo-se aqui a prática da hospitalidade). Mauss focaliza tribos, clãs e frátrias da

Polinésia, Melanésia e do Noroeste Americano, problematizando a ambivalência das

trocas, que eram ao mesmo tempo interessadas (em razão de rivalidades, de

disputas políticas, do anseio por prestígio) e desinteressadas (movidas, assim, pela

generosidade, pela honra e pela boa vontade). Por tratar-se de uma obrigação para

com o outro, os atos de dar, receber e retribuir eram termos decisórios no contrato

de acolhimento, seja para iniciar ou preservar os pactos firmados. Em outras

palavras, Mauss percebe que, em decorrência do ato generoso que fundamenta as

alianças, contraia-se também uma dívida, pois a reciprocidade era uma condição

para a manutenção das relações então estabelecidas. Podemos pensar, assim, no

caminho inverso: a recusa da hospitalidade, do presente oferecido, da retribuição,

culminava numa ofensa à honra, que poderia ocasionar uma guerra. A hospitalidade

e a hostilidade, neste caso, não ocupam polos opostos, mas ancoram a própria

edificação do pacto que, em tese, deveria perpetuar-se enquanto houvesse

reciprocidade entre as partes envolvidas.

570 Ver: KORSTANJE, M. E. Las formas elementales de la hospitalidad. In: Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, v. 4, n. 2, 2010, pp. 86-111.

Page 210: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

210

Podemos pensar, por exemplo, no caso dos grupos polinésios, dentre os

quais se situam os clãs de Samoa. Existia entre eles um termo de vital importância,

mana, condição do vínculo estabelecido e da autoridade adquirida, por exemplo, por

um chefe político. Neste caso, por basear-se num sistema monárquico, a divisão

hierárquica era muito rígida e, por esta razão, as práticas que permeavam as trocas

não eram tão rígidas quanto às práticas do potlatch, comum no Noroeste Americano.

As tribos de Maori, por outro lado, se aproximavam mais do potlatch, pois os clãs

eram mais isolados e a rivalidade era explícita. Entre os Maori existia um rígido

tratado de hospitalidade, dividido em etapas muito bem estabelecidas: de início, faz-

se o convite. No caso, o hóspede, além de aceitar, não deveria reparar nas

condições econômicas do anfitrião, mas sim na boa vontade e na generosidade de

sua ação. Em seguida, haveria uma refeição portentosa, na qual o anfitrião se

converteria num humilde observador, que se faria presente para garantir a satisfação

do hóspede. Por fim, no ato da partida, o hóspede deveria receber o viático (ou

provisão) para seu retorno.

No caso da Melanésia, as políticas de troca se aproximavam muito do

potlatch, pois as divisões hierárquicas não eram muito nítidas. Nas ilhas de

Trobriand, bem como nas ilhas Massim, situadas a Noroeste da Nova Guiné, era

recorrente o uso do termo kula, traduzido como “círculo”. Kula ancorava a instituição

de trocas, mas não se equiparava ao gimwali, referente às trocas econômicas de

mercadorias úteis. Tratava-se, na verdade, de um contrato que possibilitava a

formação de um vínculo forte, através do qual se demonstrava generosidade e

reforçava a honra das partes envolvidas. O que Mauss busca passar ao leitor não é

a impressão de que existia uma conexão entre estes vários povos, mas de que estas

trocas respondiam a particularidades próprias de cada tribo, clã ou frátria. De fato, a

mana, o kula e o potlatch eram requisitos para a constituição de uma persona, que

deveria apresentar um histórico louvável, sob pena de perder sua honra e, em

decorrência disso, seu posto hierárquico.571

Do latim hospitium, hospitalidade designa o ato de hospedar, o

acolhimento afetuoso. Nas epopeias de Homero e Virgílio, a palavra hóspede 571 PLENTZ, Renata Soares. Hospitalidade: trocas humanas versus trocas mercadológicas. In: Revista Hospitalidade. São Paulo, ano 2, n. 2, pp. 47-68, 2005. LANNA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva. In: Revista de Sociologia e Política. Curitiba, nº 14, v. 14, pp. 173-194, 2000. LIMA, Maria do Socorro Lacerda. A Dádiva da agressão. In: Espaço Ameríndio, v. 3, n. 2, 2009. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, com uma introdução à obra de Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss. Tradução de Lamberto Puccinelli. São Paulo: EPU, 1974.

Page 211: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

211

detinha um sentido duplo, pois designava aquele que hospeda e aquele que é

hospedado. Neste caso, é possível distinguir uma espécie de pacto baseado na

philia, termo grego que nos remete tanto à noção de amizade quanto à de amor.

Philoi eram, por exemplo, os membros de um genos, unidos não apenas pelo

sangue, mas também por um pacto de ajuda mútua que deveria ser sustentado

entre familiares. Também eram philoi os aliados políticos, os cidadãos de uma

mesma pólis, os companheiros de armas e, o que nos interessa aqui, os

hóspedes.572 Em um episódio da Ilíada, Diomedes interrompe sua luta contra Glauco

ao descobrir que seus pais estavam ligados pela xenia, caracterizada pela troca de

dádivas e de respeito entre os “contratantes”.573

A partir do momento em que Ulisses, sob as ordens de Agamêmnon,

parte rumo a Troia em respeito ao pacto existente entre eles, a desventura começa a

fazer parte de sua jornada. Dez anos após sua partida, durante seu regresso, uma

sucessão de infortúnios lhe acomete: a oposição do deus Poseidon, em razão do

assassinato de Polifemo; o canto inebriante das sereias; a ação dos Lotófagos, que

oferecem a flor de lotos simulando os dons da hospitalidade; a sedução de Calipso,

que tenta imputar-lhe a hybris (o excesso) ao oferecer-lhe o dom da imortalidade,

atributo divino. A imortalidade e o esquecimento, no caso, poderiam desestruturar o

cosmos: a perda da condição de homem (que o deixaria deslocado, sem lugar, uma

vez que não seria mais humano, mas também não seria um deus) e o esquecimento

da frátria, do genos e de suas origens, poderiam impedir o seu regresso. Após

enfrentar todos estes contratempos, Ulisses ainda encontra resistência em sua

própria casa, onde se encontravam alojados os pretendentes de Penélope, sua

esposa.

Como afirmamos há pouco, Poseidon dificultou o retorno do herói devido

ao assassinato de Polifemo, ciclope que aprisionou Ulisses e doze de seus

companheiros, alimentando-se de meia dúzia deles. A falta de hospitalidade, neste

caso, contrasta com as recepções afetuosas por parte de Nestor574 e Menelau,575

572 Ver: VÁRZEAS, Marta. Amor e Amizade em Sófocles. In: PEREIRA, Belmiro Fernandes; DESERTO, Jorge (orgs.). Amor e Amizade em... Homero, Sófocles, Eurípedes, Platão, Ovídio, Petrônio, Jean Jouffroy. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8322.pdf. Acesso em: 05/2012. 573 Ver: SILVA, Luciene Silva. Héracles e Odisseu: dois pesos e duas medidas da hospitalidade grega. In: Revista Todas as Letras. São Paulo, n. 6, pp. 19-24, 2004. 574 Ao perceber que Telêmaco e Mentor (Atena) pretendiam dormir nas naus, Nestor logo se interpõe: “Zeus me guarde e os outros imortais também de consentir que deixeis minha casa para dormir no navio como se eu fosse um pobretão, carente de cobertores e tapetes. Reservo-os para meu próprio

Page 212: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

212

quando Telêmaco, filho de Ulisses, visita-os para saber do paradeiro de seu pai. De

um lado, portanto, há os “homens comedores de pão”, que se dedicam ao labor e se

alimentam da carne de animais sacrificados em homenagem aos deuses. Este é, por

definição, o espaço da sociabilidade, circunscrito ao ambiente da pólis. Por outro

lado, existem seres “marginais”, cujos hábitos são estranhos e heterodoxos. Quando

Ulisses se depara com os Lotófagos, por exemplo, define-se aí um espaço no qual a

agricultura inexiste, assim como limites geográficos precisos. Os habitantes ali são

indiferentes à sociabilidade. Nada de trigo, nada de pão, nada de hecatombes em

homenagem às deidades.576 Este seria o caso de Polifemo que, além de praticar a

antropofagia, chega a zombar do “Zeus hospitaleiro”, quando acolhe os visitantes

gregos com grilhões.

Em outra passagem, Ulisses, que havia chegado a Ítaca disfarçado,

recebeu os dons da hospitalidade a mando de Penélope. A governanta Euricléia, ao

lavar os pés do herói, percebe uma cicatriz na sua coxa e reconhece seu antigo

senhor. Ela é tomada por um alegre sobressalto, mas Ulisses a contém, pois ainda

não era o momento adequado para a revelação. Auerbach afirma que o ato de lavar

os pés é “usual nas velhas estórias como primeiro dever de hospitalidade”.577

Escalado para cumprir os desígnios divinos, Eneias, no livro IV da

epopeia virgiliana, abandona Dido, sua anfitriã e amante, e rompe com os laços de

hospitalidade. Assim, o herói segue o seu itinerário. Desiludida, Dido comete

suicídio, não sem antes conjurar uma reação por parte dos deuses, que haveriam de

vingá-la, haja vista a decepção por que passou. Sabe-se que seus rogos não foram

em vão, pois vários infortúnios dificultaram o itinerário de Eneias e sua tripulação.

Antes de cogitar as motivações de Eneias ao partir, convém recordar que a primeira

a romper com a fides foi Dido, que teme consequências nefastas ao não cumprir o

conforto e para o descanso de meus hóspedes. Asseguro que leitos confortáveis nunca faltam em meu palácio. Enquanto eu viver, o filho de um herói como Odisseu não passará a noite num convés. Meus filhos são herdeiros da hospitalidade a todos que procuram este solar”. Ver: HOMERO. Odisséia, v. 1: Telemaquia. Tradução, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010, canto 3, v. 345-355, p. 81. 575 Eteoneu, um dos servidores de Menelau, pergunta a ele sobre a possibilidade de recepcionar ou não dois estranhos que batiam à porta. O rei Menelau responde-lhe: “Filho de Boeto, caro Eteoneu, não me parecias tolo, mas agora tua conversa me soa infantil. Recorri, ao regressar, à hospitalidade de muitos, homens que nem me conheciam. Zeus nos guarde de contratempos futuros. Desatrela já os cavalos. Que os estrangeiros venham à minha mesa”. Ver: Idem, canto 4, v. 20-36, pp. 91-93. 576 Ver: HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 33-35. 577 AUERBACH, Erich. Mimesis – A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p. 01.

Page 213: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

213

seu dever para com Siqueu, a quem estava ligada por um pacto forte. A personagem

se deixa levar pela paixão provocada por Eneias. No entanto, persuadido por

Mercúrio, porta-voz de Zeus, o herói prepara sua partida em segredo. Dido, ao

devotar ao troiano amor e fides, acaba abandonando seu povo, o que alguns críticos

apreendem como sendo um fracasso de sua missão. Se Eneias parte quando vê sua

Tróia sendo consumida pelo fogo, Dido também parte com parcela de seu povo para

fugir da tirania de Pigmalião, rei de Tiro e seu irmão. Em outras palavras, Dido

rompe com a fides devotada a Siqueu, abandona sua missão (o que constitui a

hamartia, isto é, o grave erro)578 em prol da consumação de um amor; Eneias, a

pedido de Zeus, segue sua viagem e rompe com a hospitalidade oferecida por

Cartago para consumar sua missão.579

Talvez um bom caminho para se pensar a fides seja retomando o

conteúdo de uma carta, atribuída a Ovídio, na qual são narradas as últimas palavras

de Dido antes do suicídio. Na carta, são vários os argumentos retóricos utilizados

pela personagem para deter Eneias em Cartago: como nos mostra Márcia Regina de

Faria da Silva, os versos são fortes e demonstram a desilusão de Dido: “Contudo

estás decidido a ir e abandonar a infeliz Dido, / E os mesmos ventos levarão as

velas e a fidelidade? / Estás decidido, Eneias, a soltar os navios com a aliança, / A

perseguir os reinos da Itália, que ignora onde estejam?”. O primeiro argumento,

portanto, fundamenta-se no rompimento da palavra do herói, do pacto entre as

partes envolvidas. Outro comentário, igualmente forte, tem por tema o paradeiro dos

penates, imagens de divindades adoradas geralmente em âmbito privado, que

Eneias salvara de Tróia: “A onda submergirá os deuses arrebatados dos

incêndios?”.580

No desfecho da epopeia, o herói troiano enfrenta Teucro em campo de

batalha. Após vencer o duelo, o protagonista poderia poupar seu adversário, que,

desarmado, pedia clemência. Para efetivar um antigo acordo de gratidão firmado

com Evandro, no entanto, o herói assassina seu oponente. Evandro havia

hospedado Eneias e concedido um batalhão de soldados a ele, dentre os quais se

578 Sobre este conceito, ver: SILVA, Márcia Regina de Faria. O trágico nas heróides de Ovídio. Tese (doutorado em letras clássicas). Rio de Janeiro: UFRJ, 2008, pp. 69-88. 579 Recomendamos a leitura de: TEIXEIRA, Cláudia Amparo Afonso. Épica e tragédia no episódio da Dido virgiliana. In: Ágora. Estudos Clássicos em Debate 8, 2006, pp. 41-57. 580 SILVA, Márcia Regina de Faria. As heróides e o trágico. In: BOTELHO, José Mário (org.). Estudos reunidos: linguagem, literatura e estilística. Rio de Janeiro: Botelho editora, 2006, pp. 41-50. Disponível

Page 214: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

214

destacava seu único filho, Palante, morto em combate pela destra de Teucro. O

troiano, atendendo aos rogos de um pai desconsolado que precisou enterrar o

próprio filho, não poupou seu oponente, sobretudo ao visualizar o cinturão de

Palante que Teucro vestia. Eneias, neste momento, “arde em fúrias, e a ira o faz

terrível”.581 Trata-se de um episódio enigmático, sujeito às mais variadas

indagações.

Eneias foi “injusto”? Porque ele não se “apiedou” do adversário

desarmado? Estas e outras perguntas desfilam, em sua própria ambição de

solucionar os enigmas desta passagem, pressupostos anacrônicos. O termo latino

pietate, utilizado para caracterizar Eneias, não pode ser equiparado à piedade em

sua conotação cristã. A pietas romana consistia na obediência irrestrita aos deuses e

aos superiores hierárquicos. O adjetivo pius, proveniente de pietas, é muito

recorrente na Eneida: trata-se de um epíteto que “indica o estrito cumprimento dos

deveres para com os deuses, a família e o Estado, cumprindo a vontade de Júpiter,

em consonância com o destino”.582 Aristóteles afirma que a piedade consiste numa

certa pena causada pela aparição de um mal destruidor e aflitivo que afeta quem

não merece ser afetado.583 O que é reforçado, aqui, é a ideia de empatia (ou

simpatia), que reforça o sentimento de reciprocidade na medida em que o

observador apiedado calcula que o mal que aflige o outro pode recair sobre si e

sobre seus pares.

Assim, podemos reformular as questões levantadas no parágrafo anterior:

quais são as implicações contidas num desrespeito deliberado frente às

asseverações dos deuses? O que se diria de uma quebra do pacto entre amigos, e,

portanto, entre iguais?584 Acatar as vontades de Dido e poupar a vida de Teucro

581 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro décimo segundo, p. 410. 582 VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Apresentação. In: VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XII. 583 Ver: ARISTÓTELES. Retórica. Prefácio e introdução de Manuel Alexandre Júnior. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, pp. 184-186. 584 Como nos lembra Trajano Vieira através de uma alusão aos escritos de Émile Benveniste, a relação entre anfitrião e hóspede era selada pela sýmbolon, “signo de reconhecimento, anel rompido de que os parceiros conservavam as metades correspondentes. O pacto efetivado sob o nome de philótes faz dos contratantes phíloi: a partir de então se comprometem com a reciprocidade de favores que constitui a hospitalidade”. Trajano Vieira demonstra a centralidade da hospitalidade e da reciprocidade remetendo-se, ainda, à relação entre Glauco e Diomedes, Aquiles e Agamêmnon, Heitor e Ájax. Ver: VIEIRA, Trajano. “Introdução”. In: CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero, vol. 1. São Paulo: Arx, 2003, pp. 16-20. Hesíodo afirma na sua obra Trabalhos e dias: “quem faz mal a um suplicante ou a um hóspede, ou sobe ao leito de seu irmão para desfrutar em segredo das

Page 215: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

215

implicaria nestes dois atos, que sugerem transgressão em duas direções: em

relação à fronteira estabelecida entre homens e deuses e no rompimento da fides,

que reforça um pacto de gratidão e reciprocidade. Quanto à ira que move Eneias a

eliminar seu oponente, devemos recordar, com Aristóteles, que existe uma relação

possível entre a ira e a coragem: para o filósofo, a ira “é o que há de mais arrojado

para fazer alguém atirar-se na frente do perigo”. No entanto, os corajosos “agem por

causa da glória, a ira apenas colabora com eles”. Esta coragem “nascida da ira

parece basear-se inteiramente numa natureza instintiva. Quando se lhe acrescenta a

decisão e o fim em vista, então, pode valer como verdadeira coragem”.585

De acordo com Márcia Regina de Faria da Silva, o comportamento de

Enéias revela três valores romanos fundamentais: a pietas, a uirtus e a humanitas.

Movido pela uirtus, o herói pondera seu agir, não empreende uma busca

desenfreada pela areté (glória) guerreira e prioriza o bem estar do grupo com

valentia e retidão. A pietas, por sua vez, reforça um senso de reciprocidade,

sobretudo de dever em relação aos deuses.586 Predestinado, Enéias foi incumbindo

de liderar uma empresa que repercutiria na fundação de Roma. Ao recusar o amor

de Dido, o herói reafirma a sua missão. Quando clama por vingança, a rainha de

Cartago é atendida: os comentadores observam que o “vingador” reclamado pela

personagem “é o prenúncio de Aníbal” e, portanto, de uma das Guerras Púnicas.

Paulo Sérgio de Vasconcellos acredita que não apenas Aníbal, mas também o

guerreiro Turno busca efetivar a vingança clamada por Dido em seu embate final

contra Enéias, mas sem sucesso.587

Há inúmeras passagens bíblicas que levantam juízos sobre a

hospitalidade. Lê-se, por exemplo, no livro dos hebreus: “Não vos esqueçais da

hospitalidade, pela qual alguns, sem o saberem, hospedaram anjos” (Hebreus 13, 2).

Em Levítico há uma recomendação semelhante: “Se um estrangeiro vier habitar

convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja entre vós como um

compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo” (Levítico 19, 33-34). Em uma

passagem de Gênesis (18, 1-15), Deus aparece a Abraão num dia de muito calor intimidades de sua esposa, age de forma desprezível”. HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Tradução de Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 77. 585 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro III, VIII, pp. 73-74. 586 SILVA, Márcia Regina de Faria. Dido e Enéias e o mito da fundação de Roma. Disponível em: http://www.filologia.org.br/revista/39/04.htm. Acesso em: agosto/2011. 587 VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Apresentação. In: VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XIII.

Page 216: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

216

através da figura de três homens. Abraão rapidamente prostra-se diante deles,

dizendo-lhes: meus senhores, “se encontrai graça diante de vossos olhos, não

passeis avante sem vos deterdes em casa de vosso servo. Vou buscar um pouco de

água para vos lavar os pés”. Nota-se que o primeiro procedimento seguido

assemelha-se àquele adotado para com Ulisses, quando é acolhido em sua própria

casa. Abraão continua: “Descansai um pouco sob esta árvore. Eu vos trarei um

pouco de pão, e assim restaurareis as vossas forças para prosseguirdes o vosso

caminho; porque é para isso que passaste perto de vosso servo”. O procedimento de

oferecer alimento antes da conversação também se faz presente na Odisseia, no

episódio em que Ulisses é acolhido na corte do rei Alcínoo. Por fim, os três homens

aceitam o convite de seu servo.

Abraão pediu a Sara, sua esposa, que cozesse alguns pães. Em seguida,

deu ao seu servo um novilho para ser abatido. Por fim, pegou a manteiga e o leite,

servindo os peregrinos, que comeram sob a árvore. Quando todos estavam

saciados, um deles disse ao anfitrião: “Voltarei à tua casa dentro de um ano, a esta

época; e Sara, tua mulher, terá um filho”. Convém mencionar que Abraão e Sara já

eram velhos. Esta, ouvindo por detrás da tenda, sorri em segredo, imaginando se

aquilo seria possível. O Senhor, então, diz ao anfitrião: “Por que se riu Sara,

dizendo: ‘Será verdade que eu teria um filho, velha como sou?’ Será isso porventura

uma coisa muito difícil pro Senhor? Em um ano, a esta época, voltarei à tua casa e

Sara terá um filho”. Deus concede ao casal um dom, pois encontrou em seu servo

uma fides inabalável e um acolhimento atencioso.

Outra passagem (Gênesis 19, 1-29) apresenta as circunstâncias a partir

das quais Sodoma é destruída. Lot, antes da destruição, acolhe em sua casa dois

estrangeiros e oferece-lhes abrigo. A princípio, eles se recusam, mas Lot insiste e os

persuade. No entanto, a população de Sodoma se reúne para expulsar os

forasteiros, mas o anfitrião protege seus hóspedes: “Suplico-lhes, meus irmãos, não

cometeis este crime. Ouvi: tenho duas filhas que são ainda virgens, eu vo-las trarei,

e fazei delas o que quiserdes. Mas não façais nada a estes homens, porque se

acolheram à sombra do meu teto” (Gênesis 19, 7-8). A população não lhe dá ouvidos

e avança sobre ele, mas os dois estrangeiros salvam-lhe a vida. Ambos eram anjos,

enviados para destruir a cidade e aniquilar a população que nela vivia. Antes, no

entanto, eles pedem a Lot que reunisse sua família e amigos o quanto antes. Todos

eles seriam poupados graças à postura assumida pela personagem.

Page 217: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

217

Uma passagem de Lucas (7, 36-50) trata de uma “pecadora perdoada”

que, descobrindo que Jesus encontrava-se na casa de um fariseu, vai até lá com um

vaso de alabastro cheio de perfume. Quando chega, ela chora na presença do

Senhor, derrama lágrimas em seus pés e enxuga-os com os cabelos, beijando-os e

ungindo-os com perfume. O fariseu, de nome Simão, pensa: se aquele homem fosse

de fato um profeta, saberia que a mulher prostrada à sua frente era uma pecadora.

Jesus, então, conta-lhe sobre um credor que perdoou a dívida de dois homens: um

deles devia-lhe cinquenta denários e o outro quinhentos denários. Jesus perguntou-

lhe qual dos devedores amará mais o credor, ao que Simão responde: “aquele a

quem ele mais perdoou”. O Senhor concorda e, voltando-se para a mulher, diz: “Vês

esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para lavar os pés; mas esta

com as suas lágrimas regou-me os pés e enxugou-os com seus cabelos”. Mais uma

vez este ritual se faz presente, como digno da piedade do Senhor, que continua:

“Não me deste o ósculo: mas esta, desde que entrou, não cessou de beijar-me os

pés. Por isso te digo: seus numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela tem

demonstrado muito amor. Mas ao que pouco se perdoa, pouco ama”.

Afirmamos que a noção de pietas presente nas epopeias de Homero e,

sobretudo, na Eneida de Virgílio, não é similar à piedade cristã. Esta talvez seja a

oportunidade adequada para discorrer um pouco mais sobre ela, utilizando as

reflexões de Tomás de Aquino, para quem a piedade deve existir, em primeiro lugar,

em relação a Deus. Esta, diferentemente de todas as outras, deve ser

inquebrantável. No mais, deve existir piedade em relação aos consanguíneos ou

familiares, aos concidadãos e aos amigos da pátria. Neste caso, a piedade associa-

se a uma situação de dever para com o outro. É a posição de devedor que fortifica o

pacto entre as partes envolvidas, pois quem deve precisa pagar. O homem piedoso,

em primeiro lugar, tem uma obrigação a cumprir: prestar serviço às pessoas para as

quais deve. Em segundo lugar, ele precisa honrar seus acordos “dentro das devidas

medidas”, jamais colocando em segundo lugar a piedade em relação a Deus. Há,

portanto, uma diferença entre a piedade e o respeito: a primeira é devida ao Senhor

e às pessoas próximas. O respeito é devido às pessoas mais distantes, para as

quais não devemos muitas obrigações.588

588 Sugerimos a leitura de: OLIVEIRA, Terezinha. A piedade e o respeito em Tomás de Aquino: virtudes para a vida citadina do século XIII. In: Notandum. São Paulo / Porto, ano XIII, nº 24, 2010, pp. 79-98.

Page 218: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

218

Podemos perceber na obra de Dante Alighieri um eco desta intolerância

frente à falta de hospitalidade. Dentre as quatro zonas do Cocito, rio congelado que

cruza o nono círculo infernal, situa-se a Tolomea, que confina os traidores de

hóspedes. O apelido que recebe remete-nos a duas fontes: a primeira referente ao

faraó Ptolomeu que, parar agradar Júlio César, envia-lhe a cabeça decapitada de

Pompeu, seu hóspede. Há, por outro lado, a personagem bíblica de Ptolomeu,

governador de Jericó que matou Macabeu, seu cunhado, e os filhos deste, durante

um jantar em sua casa. Independentemente da versão adotada, o propósito de

Dante mostra-se claro. Interessante perceber que, diferente de todas as outras

almas danadas, a do traidor de comensais é lançada ao Inferno no momento mesmo

do delito. No entanto, seu corpo continua a viver, possuído por um demônio.

Dante encontra-se com Alberigo, da família Manfredi, um dos chefes dos

Guelfos em Florença. Ele mandou matar um irmão e um sobrinho que tinha

convidado para jantar. A punição que recebe é dura, a ponto de fazê-lo implorar a

Dante e a Virgílio o seguinte: “um de vós dois o viso me desvele,/ que eu desafogue

a dor que o peito emprenha/ um pouco, antes que o pranto se enregele”.589 Mais

adiante, o poeta avista Branca d’Oria, componente de uma família ilustre de Gênova,

cujo corpo ainda estava no mundo em 1300, ano em que Dante teria feito sua

viagem pelos três planos que compõem a Comédia. Ele fez massacrar o cunhado,

senhor de Logodero, em 1275, o que justifica a punição que lhe é imputada. A

punição sofrida pelos traidores de hóspedes mostra-se dolorosa: o “próprio pranto ali

chorar não deixa”,590 pois as lágrimas logo congelavam. Enterrados no lago

congelado até a cabeça, não podiam retirar a crosta de gelo que se formava sobre

seus olhos. Dante usa uma similitude que “faz ver” o estado das almas: “o começo

das lágrimas ensopa/ e assim como viseiras de cristal/ já enche sob os cílios toda a

copa”.591 Dante não atende aos rogos de Alberigo, mencionado no parágrafo

anterior: “Não lhos abri, reversos;/ e cortesia foi ser-lhe vilão”.592

A tópica da hospitalidade é recorrente nos escritos portugueses, inclusive

nas relações de naufrágio. Após o incidente ocorrido com o galeão São João, em

1552, o capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e os sobreviventes chegaram à praia

589 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Editora Landmark, 2005, Inferno, XXXIII, v. 110-112, p. 229. 590 Idem, ibidem, v. 94, p. 297. 591 Idem, ibidem, v. 97-99, p. 297. 592 Idem, ibidem, v. 149-150, p. 301.

Page 219: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

219

da Terra do Natal, na África. Depois de alguns meses caminhando a esmo, os

portugueses encontraram um velho cafre, senhor de duas aldeias. Ele pediu a

Sepúlveda e a seus homens “que não passassem dali, que estivessem em sua

companhia, e que ele os manteria o melhor que pudesse”.593 Conta-nos o narrador:

Assim que este rei cafre apertou muito com Manuel de Sousa e sua gente que estivessem com ele, dizendo-lhe que tinha guerra com outro rei por onde eles haviam de passar, e queria sua ajuda; e que se passassem avante que soubessem certo que haviam de ser roubados deste rei, que era mais poderoso que ele; de maneira que, pelo proveito e ajuda que esperava desta companhia, e também pela notícia que já tinha de portugueses por Lourenço Marques e Antônio Caldeira, que ali estiveram, trabalhava quanto podia por que dali não passassem; e estes dous homens lhe puseram nome Garcia de Sá, por ser velho e ter muito o parecer com ele e ser bom homem que não dá dúvida senão que em todas as nações há maus, e bons; e por ser tal fazia agasalhos, e honrava aos portugueses, e trabalhou quanto pôde que não passassem avante, dizendo-lhes que haviam de ser roubados daquele rei com que ele tinha guerra. E em se determinar se detiveram ali seis dias. Mas como parece que estava determinado acabar Manuel de Sousa nesta jornada coma maior parte de sua companhia, não quiseram seguir o conselho deste reizinho, que os desenganava.594

O velho cafre acolheu, alimentou e honrou os portugueses como era

devido. No entanto, vendo o rei que “o capitão determinava de se partir dali, lhe

pediu que antes que se partisse o quisesse ajudar com alguns homens de sua

companhia contra um rei que atrás lhe ficara”.595 Após o pedido de ajuda, Sepúlveda

e os portugueses sob seu comando não puderam recusar, pois o cafre ofereceu-lhe

mantimentos e hospedagem. É possível falar de um “pacto”, de uma conduta

recíproca em retribuição à hospitalidade prestada?

Após o episódio acima relatado, o protagonista encontra outros cafres

que, diferentemente dos primeiros, simulam cordialidade. Ao se encontrarem, os

cafres perguntam aos portugueses o que eles buscavam e oferecem mantimentos e

comida, contanto que os nautas os acompanhassem até onde se encontrava seu rei,

não muito distante:

Dali ao lugar onde estava o rei havia uma légua, e como chegaram lhes mandou dizer o cafre que não entrassem no lugar, porque é cousa que eles muito escondem, mas que se fossem pôr ao pé de umas árvores que lhes

593 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 14. 594 Idem, pp. 14-15. 595 Idem, p. 15.

Page 220: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

220

mostraram, e que ali lhes mandaria dar de comer. Manuel de Sousa o fez assim, como homem que estava em terra alheia.596

É notável que, à maneira de Abraão, os cafres convidam os portugueses

para descansar sob a sombra de uma árvore. Os portugueses ficaram cinco dias sob

o cuidado deles, até que Sepúlveda pede a um deles uma casa para alojar sua

mulher e filhos. Seu pedido é atendido, mas os cafres afirmam que os mantimentos

locais se esgotariam caso ficassem ali todos os seus homens. Como possibilidade,

um dos cafres disse que os portugueses deveriam se separar e seguir com ele para

outras aldeias, onde poderiam encontrar novos mantimentos. Esta foi a primeira

artimanha: dividir os inimigos. Em seguida, o cafre pediu que entregassem as armas

de fogo, prometendo devolver assim que um navio português viesse buscá-los.

“Como Manuel de Sousa já então andava muito doente e fora de seu perfeito juízo,

não respondeu, como fizera estando em seu entendimento; respondeu que ele

falaria com os seus”.597 A segunda artimanha foi lançada: “o parecer de Manuel de

Sousa e dos que com ele consentiram não era de pessoas que estavam em si,

porque se bem olharem, enquanto tiveram suas armas consigo nunca os negros

chegaram a eles”.598 Assim, “mandou o capitão que pusessem as armas, em que

depois de Deus estava sua salvação, e contra a vontade de alguns e muito mais

contra a de d. Leonor, as entregaram”.599 Tão logo as armas foram entregues, os

cafres começaram a roubar as posses portuguesas, deixando claras suas

verdadeiras intenções.

É possível perceber vultos desta simulação também nas epopeias

portuguesas. Quando o deus olímpico Mercúrio aparece, em sonho, para Vasco da

Gama, a pedido de Júpiter, ele lhe adverte:

Não tens aqui senão aparelhado O hospício que o cru Diomedes dava, Fazendo ser manjar acostumado De cavalos a gente que hospedava; As aras de Busíres infamado, Onde os hóspedes tristes imolava, Terás certas aqui, se muito esperas. Foge das gentes pérfidas e feras, Vai-te ao longo da costa discorrendo,

596 Idem, p. 18. 597 Idem, ibidem. 598 Idem, p. 19. 599 Idem, ibidem.

Page 221: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

221

E outra terra acharás de mais verdade, Lá quase junto donde o Sol, ardendo, Iguala o dia e noite em quantidade; Ali tua frota alegre recebendo Um Rei, com muitas obras de amizade, Gasalhado seguro te daria E, para a índia, certa e sábia guia”.600

Aludindo a Diomedes, antigo rei da Trácia, e Busíres, rei egípcio

reconhecido por sacrificar estrangeiros em suas terras, Mercúrio alerta Gama sobre

as perversas intenções do rei de Mombaça. Todavia, poderiam encontrar boa

acolhida em terras muito próximas, afeitas à boa hospitalidade. Mais uma vez a

hospitalidade é utilizada como critério de diferenciação entre a constância dos justos

e a inconstância dos injustos. No decorrer da empresa de Vasco da Gama, Baco

administra sucessivos enganos recorrendo a diversos subterfúgios. Em um deles, o

deus aproveita da inconstância e indisposição dos mouros para movê-los contra os

portugueses:

Porém disto que o Mouro aqui notou E de tudo o que viu, com olho atento, Um ódio certo na alma lhe ficou, Uma vontade má de pensamento. Nas mostras e no gesto o não mostrou Mas, com risonho e ledo fingimento, Tratá-los brandamente determina, Até que mostrar possa o que imagina.601

Os mouros escondem, no íntimo, um ódio em relação às ações, crenças e

costumes dos portugueses. Contudo, eles simulam simpatia e cordialidade, fator que

certamente leva o leitor discreto a condená-los. Através de conselhos vis e

enganosos, Baco procura convencer os mouros sobre a infâmia dos navegantes.

Como bons pupilos, os mouros utilizam-se também do engano para ocultar o que

sentiam, que, no momento, não poderia ser revelado. Ardiloso, o deus ainda elabora

um segundo engano, caso o primeiro falhasse. Disfarçado, ele aconselha o regedor

dos mouros:

E também seu que tem determinado De vir por água a terra, muito cedo, O Capitão, dos seus acompanhado,

600 Os Lusíadas, 2005, canto II, estrofes 62-63, p. 65. 601 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005, canto I, estrofe 69, p. 102.

Page 222: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

222

Que da tensão danada nasce o medo. Tu deves de ir também cós teus armado Esperá-lo em cilada, oculto e quedo, Porque, saindo a gente descuidada, Cairão facilmente na cilada. E, se ainda não ficarem deste jeito Destruídos ou mortos totalmente, Eu tenho imaginada no conceito Outra manha e ardil que te contente: Manda-lhe dar piloto que de jeito Seja astuto no engano, e tão prudente, Que os leve aonde sejam destruídos, Desbaratados, mortos ou perdidos.602

Baco requisita um piloto que, no jeito, seja “astuto no engano” e

“prudente”. Ser “no jeito” significa parecer ser uma coisa que não se é. Em outra

estrofe, o deus reforça seu plano afirmando que o piloto deve ser “sagaz”, “astuto”,

“sábio em todo dano”.603 De fato, Baco previu bem: a emboscada para captura dos

portugueses fracassou. Tal como Polifemo, os mouros mostraram-se indiferentes à

hospitalidade. Em razão do fracasso, como que num pedido de desculpas, eles

enviaram o piloto “falso” e “instruído nos enganos”,604 que tentou levar Gama e os

seus homens para Quiloa, para uma armadilha. Antes de desembarcarem, Vênus

interveio, desviando a nau portuguesa: foi a partir desse desvio que chegaram a

Mombaça, território no qual Baco tramaria outra cilada.

Para convencer os portugueses de que aquela ilha era habitada por

cristãos, o deus Baco toma a forma de um, para enganá-los:

Mas aquele que sempre a mocidade Tem no rosto perpétua, e foi nascido De duas mães, que urdia a falsidade Por ver o navegante destruído, Estava numa casa da cidade, Com rosto humano e hábito fingido, Mostrando-se Cristão, e fabricava Um altar suntuoso que adorava. Ali tinha em retrato afigurada Do alto e Santo Espírito a pintura, A cândida Pombinha, debuxada Sobre a única Fênix, Virgem pura. A companhia santa está pintada Dos Doze, tão turvados na figura, Como os que, só das línguas que caíram

602 Os Lusíadas, canto I, estrofes 80- 1, p. 40. 603 Idem, canto I, estrofe 83, p. 41. 604 Idem, canto I, estrofe 97, p. 44.

Page 223: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

223

De fogo, várias línguas referiram.605

O artifício de antropomorfização não é atributo exclusivo de deuses

pagãos, podendo ser constatado também em entidades angelicais, inclusive em

poesias épicas contemporâneas à obra de Camões. Para convocar Godefredo e

instigá-lo à guerra, por exemplo, Deus toma como emissário o arcanjo Gabriel e

envia ao herói orientações. Para ser visto pelo destinatário da mensagem, o arcanjo

toma a forma de um homem:

Como fosse invisível, disfarçou-se, Tomou forma visível, de ar cercada; Fingiu figura humana; mas ornou-se Co’a majestade aos anjos facultada; Fez-se não bem mancebo inda na idade, E a áurea como cercou de claridade.606

Gabriel é o anjo da Anunciação: nas páginas bíblicas, ele é escalado para

levar inúmeros desígnios divinos aos mortais. É, por exemplo, aquele que revela à

Virgem Maria sobre o nascimento do filho de Deus, explicando-lhe sua missão e

instruindo-lhe quanto à intervenção do Espírito Santo.607 Seria imprudente julgar que

esta escolha do emissário tenha sido feita ao acaso. Não obstante, Camões também

se vale de emissários, mas, quando o faz, invoca o deus Mercúrio, mensageiro de

Zeus. É esta personagem que, no canto II d’Os Lusíadas, aparece no sonho de

Gama e o persuade a seguir rumo a Melinde, terra onde os portugueses seriam

muito bem acolhidos.608

Afora esta correlação, é preciso considerar que o ardil de Baco, bem

como a sua finalidade, em muito se diferenciava dos propósitos de Ulisses, apesar

de recorrerem a uma ação mais ou menos compatível. O engano é mal quisto e

anunciado com repulsa na épica de Camões, pois está sendo manejado pelas mãos

astutas e imprudentes de Baco. A astúcia à qual nos referimos se assemelha àquela

postulada por Tomás de Aquino, que entende como sendo própria dela o

empreendimento por “caminhos inautênticos, tortuosos e simulados”, com a 605 Idem, canto II, estrofes 10-11, p. 51. 606 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofe 13, p. 116. 607 Lc. 1, 26-38. 608 Mercúrio, emissário de Zeus, também orienta Ulisses em seu caminho de volta à Ítaca, como no momento em que cede ao herói um antídoto contra os feitiços da deusa Circe, ou quando adverte a ninfa Calipso sobre a vontade de Zeus de ver Ulisses livre de seus amores para, assim, efetivar seu retorno.

Page 224: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

224

finalidade de obter algum fim, seja ele bom ou mau. A astúcia, como retratada no

poema, vê-se destituída de qualquer prudência ou temperança; muito pelo contrário,

a ânsia de Baco pela perduração de sua fama e a ira que nutre contra os

portugueses tornam os seus gestos e ações inteiramente vaidosos609 e egoístas. O

esquecimento lhe impõe verdadeiro terror:

Está do fado determinado Que tamanhas vitórias, tão famosas, Hajam os Portugueses alcançado Das Indianas gentes belicosas. E eu só, filho do Padre sublimado, Com tantas qualidades generosas, Hei de sofrer que o Fado favoreça Outrem, por quem meu nome se escureça?610

Baco, deus pagão e representante dos mouros, engana os portugueses

se prostrando frente a um altar cristão, ou seja, a personificação do paganismo

simula o seu oposto para dar vazão aos fingimentos arquitetados. Por outro lado, o

deus afirma ser filho do “Padre sublimado”, mas ainda assim é aquele que

deliberadamente o desrespeita, quanto à resolução em favor dos nautas. Se no

primeiro momento, Baco simboliza o mais ávido dos enganos, no segundo ele

demonstra a cegueira causada pela vaidade e pelo consequente desdém às

hierarquias. Além de não ouvir os retos conselhos do pai, Júpiter, ele se ocupa em

dar falsos conselhos aos mouros, movendo-os contra os heróis lusitanos.

É justamente o ânimo irado que impossibilita o deus de “aproximar futuro

e passado”, ou seja, de prever os acontecimentos vindouros. Desta maneira, o perfil

de Baco se assemelha ao gênio de Agamêmnon que, colérico, consente com a

ausência de Aquiles na batalha contra Tróia e, em outro momento, recusa a um

velho sacerdote troiano a devolução de sua filha. No primeiro caso, os gregos

correram o risco de perder a guerra; no segundo, sendo o troiano um grande devoto

de Apolo, esta deidade enviou uma grande chuva de flechas e abateu um bom

contingente de gregos, o que quase ocasionou o retorno destes à pátria. De acordo

com Marcel Dètienne e Jean-Pierre Vernant, o mesmo ocorre na assembleia troiana

que deveria definir os rumos da guerra: enquanto Polidamas, o prudente, dirigia aos

609 Os dois homens enviados para sondar a ilha são facilmente enganados. “Os dois Cristãos, não vendo que enganados / Os tinha o falso e santo fingimento”. Falso, porque fruto de um engano arquitetado por Baco, e santo porque a prostração diante de Cristo era digna e verdadeira. Ver: idem, canto II, estrofe 13, p. 52. 610 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 74, p. 103.

Page 225: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

225

partícipes sábios conselhos sobre precauções e estratégias, Heitor atiça o ânimo

dos presentes, chamando-os para travar logo a batalha fora dos muros de Troia. O

herói se deixa domar pela raiva e pela ingenuidade da juventude.611 A vaidade,

portanto, converte-se em um eficaz catalisador de imprudências.

Gama e os tripulantes se livraram da cilada graças a uma nova

intervenção da deusa Vênus que, juntamente às Nereidas, desviaram a nau, o que

causou um grande rebuliço entre os portugueses, que não estavam entendendo a

voraz mudança de direção. Os mouros, observando toda esta movimentação,

acreditam que o engano que arquitetavam havia sido descoberto e, amedrontados,

saltavam da embarcação como “rãs”. O piloto, que deixou o simulacro de lado e

mostrou o seu “eu” verdadeiro, também fugiu junto aos seus. Notando esta

movimentação repentina, Gama percebe a trama que haviam tecido e agradece à

intervenção “divina”. Neste momento, fica claro que a proteção de Vênus equivale,

alegoricamente, à proteção celeste. Gama delibera:

Oh! Caso grande, estranho e não cuidado! Oh! Milagre claríssimo e evidente! Oh! Descoberto engano inopinado! Oh! Pérfida, inimiga e falsa gente! Quem poderá do mal aparelhado Livrar-se sem perigo, sabiamente, Se lá de cima a Guarda Soberana Não acudir à fraca força humana?612

Em outro momento, quando os portugueses já se encontravam nas Índias,

Baco aparece disfarçado de Maomé no sonho de um sacerdote, advertindo-o sobre

a má conduta dos cristãos que ali faziam residência temporária:

(...) “Guardai-vos, gente minha, Do mal que se aparelha pelo immigo Que pelas águas úmidas caminha, Antes que esteis mais perto do perigo”.613

Tendo em vista a descrença do sacerdote, que não deu importância ao

sonho, Baco insistiu:

611 DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, p. 24. 612 Idem, canto II, estrofe 30, p. 56. 613 Idem, canto VIII, estrofe 48, p. 236.

Page 226: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

226

Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces? Pois saberás que aqueles que chegados De novo são, serão mui grande dano Da Lei que eu dei ao néscio povo humano.614

Primeiramente, Baco inflama a má vontade dos mouros; em seguida

disfarça-se de cristão e adora o “Deus verdadeiro”, o que corrobora a

inverossimilhança da sua própria existência; por fim, ele toma a forma de Maomé e

indispõe um sacerdote que, a princípio, nada tinha contra os navegantes. A

simulação, portanto, é um lugar comum na conduta de Baco. Os mouros, em

consonância com as vontades do deus do vinho, se deixam manipular:

Diversos pareceres e contrários Ali se dão, segundo o que entendiam; Astutas traições, enganos vários, Perfídias, inventavam e teciam; Mas, deixando conselhos temerários, Destruição da gente pretendiam, Por manhas mais sutis e ardis milhares, Com peitas adquirindo os regedores.615

Vários termos, nesta estrofe, definem a astúcia dos mouros: traição,

engano, perfídia, manha, sutileza, ardil. O sonho do maometano foi suficientemente

persuasivo para indispor todos que dele tomaram conhecimento contra os

portugueses. O Catual, frente aos pareces desfavoráveis, também se indispôs e

teceu uma traição para impedir o retorno dos nautas. Gama pede por uma escolta

que pudesse transportá-lo até a nau. A reação do Catual, frente ao pedido, leva o

herói a desconfiar de seus propósitos:

Pouco obedece o Catual corrupto A tais palavras; antes, revolvendo Na fantasia algum sutil e astuto Engano, diabólico e estupendo, Ou como banhar possa o ferro bruto No sangue aborrecido, estava vendo, Ou como as naus em fogo lhe abrasasse, Por que nenhuma à pátria mais tornasse.616

614 Idem, canto VIII, estrofe 49, p. 236. 615 Idem, canto VIII, estrofe 52, p. 237. 616 Idem, canto VIII, estrofe 83, p. 244.

Page 227: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

227

Mais uma vez o aedo se ocupa em definir a conduta dos mouros:

corrupção, sutileza, astúcia, engano “diabólico” e estupendo. Gama desconfia de

uma cilada:

Nestas palavras o discreto Gama Enxerga bem que as naus deseja perto O Catual, por que com ferro e flama Lhas assalte, por ódio descoberto. Em vários pensamentos se derrama; Fantasiando está remédio certo Que disse a quanto mal se lhe ordenava. Tudo temia; tudo, enfim, cuidava.617

O que nos mouros é corrupção, em Gama aparece como discrição. Se o

Catual se entrega a maquinar estratagemas vis, trata-se de um engano diabólico; no

caso de Gama, é “remédio certo”. Não há uma disposição que, por si só, seja má ou

boa, pois depende de como é arregimentada e por quem está sendo conduzida. A

imprudência e indisposição do Catual garantem, no corpo da narrativa, o seu

fracasso. A boa vontade e os princípios retos anunciados por Gama, que tentava

preservar o bem comum mesmo em terras estrangeiras, fez dele um exemplo:

Insiste o Malabar em tê-lo preso, Se não manda chegar à terra a armada. Ele, constante e de ira nobre aceso, Os ameaços seus não teme nada; Que antes quer sobre si tomar o peso De quanto mal a vil malícia ousada Lhe andar armando, que pôr ventura A frota de seu Rei, que tem segura.618

No caso de um herói prudente, até mesmo a ira alcança um estatuto

“nobre”.619 Gama se sacrifica para garantir a segurança de seus homens, a “frota de

seu Rei”, mesmo sabendo que, dentre os navegantes, era aquele que se situava em

posição mais avantajada na hierarquia social. O indivíduo pode ser astuto ou

617 Idem, canto VIII, estrofe 86, p. 245. 618 Idem, canto VIII, estrofe 90, p. 246. 619 Para Aristóteles, a cólera/ira não se relaciona necessariamente à conduta malévola. Para este autor, o homem “que se irrita justificadamente nas situações em que se deve irritar ou com as pessoas com as quais se deve irritar, e ainda da maneira como deve ser, quando deve ser e durante o tempo em que deve ser, é geralmente louvado”. Aristóteles conclui que este homem “quer permanecer imperturbável e não quer ser levado pela emoção, e apenas o sentido orientador lhe poderá prescrever as situações em que deve irritar-se e durante quanto tempo”. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro IV, V, p. 95.

Page 228: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

228

prudente. Um bom chefe, por exemplo, apresenta um perfil de homem prudente,

como alerta Camões:

Tal há de ser quem quer, co dom de Marte, Imitar os ilustres e igualá-los: Voar co pensamento a toda parte, Advinhar perigos e evitá-los; Com militar engenho e sutil arte Entender os imigos e enganá-los; Crer tudo, enfim; que nunca louvarei O Capitão que diga: “Não cuidei”.620

O dom de Marte, ou seja, o engenho militar é um dos pré-requisitos na

composição de um bom chefe. Não obstante, é próprio de um homem prudente

premeditar perigos e afastá-los, antes de recorrer às estratégias bélicas. O engano

decorre da premeditação da malícia alheia, ou seja, é para evitar um conflito de

proporções maiores que um bom general compreende o inimigo e se prepara para

contê-lo. No caso da inevitabilidade do conflito, o homem prudente deve saber

utilizar o bom juízo também em campo. Quando Gama discorre sobre a Batalha do

Salado, a astúcia prudente portuguesa é pormenorizada e medida com uma

referência bíblica:

Qual o membrudo e bárbaro Gigante, Do Rei Saul, com causa, tão temido, Vendo o Pastor inerme estar diante, Só de pedras e esforço apercebido, Com palavras soberbas, o arrogante Despreza o fraco moço mal vestido, Que, rodeando a funda, o desengana Quanto mais pode a Fé que a força humana:621

O poema nos remete ao famoso episódio no qual Davi derrota o gigante

Golias que, vaidoso, conta com a vitória antecipadamente. Esta fábula, no contexto

d’Os Lusíadas, foi invocada para simbolizar a presunção dos mouros que, contando

com um maior contingente de guerreiros, desprezava os cristãos que lhe faziam

frente. Os mouros não contavam com o apoio da Deidade cristã, ou seja, com a “fé”

que, em muito, supera a natureza do que é “mundano”. A astúcia, quando

relacionada a um perfil prudente e discreto, em nada afeta a moral dos heróis, que

agiam de acordo com as circunstâncias, mas sem perder de vista a ética cristã e a

620 Os Lusíadas, 2005, canto VIII, estrofe 89, p. 216. 621 Os Lusíadas, 2008, canto III, estrofe 111, p. 107.

Page 229: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

229

finalidade nobre que os movia. A derrota frente à soberba é um lugar comum

recorrente nas tragédias. É o caso, por exemplo, da soberba dos titãs quando

enfrentaram os Olímpios. Como Prometeu recorda,

dei os mais sábios conselhos aos Titãs, sem conseguir, porém, persuadi-los. Desprezando a astúcia, julgaram, com o orgulho da sua força, que lhes seria fácil tornar-se os senhores pela violência (...) não era recorrendo à força nem à violência mas à astúcia que os vencedores alcançariam o império. Foi o que eu disse, mas nem sequer se dignaram olhar-me.622

Por esta razão, Prometeu abandona os seus pares para se aliar a Zeus,

que ouviu e aproveitou-se da habilidade e astúcia do titã, pois ainda não ocupava o

trono e precisava de aliados competentes. O próprio Camões conta-nos o resultado:

Cometeram soberbos os Gigantes, Com guerra vã, o Olimpo claro e puro; Tentou Perito e Téseu, de ignorantes, O Reino de Plutão, horrendo e escuro. Se houve feitos no mundo tão possantes, Não menos é trabalho ilustre e duro, Quanto foi cometer Inferno e Céu, Que outrem cometa a fúria de Nereu.623

Camões amplifica os feitos lusitanos aludindo a dois episódios

mitológicos: a empreitada dos gigantes contra os deuses olímpicos e a tentativa de

rapto da personagem Prosérpina, que é sequestrada por Plutão (ou Hades) e,

posteriormente, se casa com ele. Esta última empresa foi promovida por Perito, rei

de Lapitas, e pelo herói Teseu, responsável pela vitória contra o Minotauro. Ambos

vão até o submundo para cumprir esta missão: Perito acaba morto e Teseu é

capturado, mas, posteriormente, é resgatado por Hércules. O aedo utiliza estes dois

episódios para engrandecer a empresa portuguesa liderada por Vasco da Gama.

Voltando à narrativa de Prometeu, os titãs, assim como Golias, são

representados como arrogantes porque confiavam na eficácia da brutalidade e da

força física e desprezavam os meios estratégicos e argutos. Dessa forma, Détienne

e Vernant asseveram:

Explícito em Ésquilo, esse tema do dólos, ao mesmo tempo, astúcia, armadilha e liame mágico, opondo-se à simples força e conferindo o êxito nas lutas pela soberania, encontra-se em todas as narrativas míticas dos

622 ÉSQUILO. Prometeu Agrilhoado. In: Teatro completo. Lisboa: Estampa, 1975, p. 114. 623 Os Lusíadas, 2008, canto II, estrofe 112, p. 78.

Page 230: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

230

combates que Zeus deve sustentar para erguer-se e manter-se no topo do poder.624

É desta forma que os portugueses, mesmo em menor quantidade,

venceram e garantiram sua soberania. Tal como Zeus, que precisava manter-se no

topo das deidades, também os portugueses deveriam primar pela manutenção do

Império cristão. Já os mouros, tal como Golias e os titãs, movidos pela vaidade e

pela confiança na força física e nos números, foram surpreendidos pela prudência

dos oponentes.

Os valores são adequados às inclinações de quem os viabiliza: se, para

descrever a conduta dos mouros, fala-se de “astuto engano”, “engano diabólico”,

“perfídias”, “manhas”, no caso dos heróis portugueses, trata-se de “discrição”, “sutil

arte” ou de “adivinhar perigos”. Todos os termos referem-se a modos de agir: no

primeiro caso, de uma astúcia desprovida de prudência, pois movida com maus

intentos; no segundo, de prudência cristã. A prudência confere ao herói a

capacidade de saber agir com bom juízo, já que eles priorizam as ordens superiores

e a manutenção do bem comum. Os portugueses detêm um “militar engenho”, como

Marte, e os atributos necessários para “enganar” os adversários corruptos, ou seja, a

capacidade de materializar o “desengano” à maneira de Davi. Necessário lembrar,

com o Cortesão de Castiglione, que o bom príncipe, para ser justo, deve eleger

“magistrados sábios e homens exemplares, cuja prudência seja verdadeira

prudência acompanhada de bondade, caso contrário não é prudência, mas

astúcia”.625 O caso do cortesão ideal segue de perto a distinção feita por Aristóteles

e, mais tarde, por Santo Tomás de Aquino: a prudência como atributo voltado para o

bem comum, e a astúcia como artifício a priorizar as vontades privadas.

Juízos sobre a hospitalidade, como se pode ver, podem ser encontrados

em fontes de diferentes proveniências e, no caso português, ajudam a definir um

éthos prudente e a compreender a natureza dos mouros e cafres. As interferências

de Baco, portanto, com seus enganos e astúcias, muitas vezes representam as

inclinações vis dos mouros. É como se o deus pagão personificasse e

potencializasse a natureza corrompida, repondo atitudes e crenças que

caracterizavam o tipo mouro. Este procedimento poético não dista totalmente da 624 DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, p. 61. 625 CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 296-297.

Page 231: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

231

iniciativa de Henrique Dias quando, em seu relato de naufrágio, discorreu sobre a

natureza dos marinheiros em geral:

É condição já mui velha de marinheiro contradizer sempre o bem e aprazer-lhe o mal, por sua natural e má inclinação, e não consentir nunca, nem admitir, conselho nem coisa dita sobre seu ofício, ainda que saiba muito certo, e tenha por averiguado, perder-se a nau com quantos nela vão, se o contrário fizerem.626

A poesia apresenta alegoricamente o que a matéria histórica informa, mas

ambas participam de uma retórica prudencial, definindo ou representando tipos

dignos de encômios ou vitupérios. A ampliação do império (e, portanto, do corpo

místico português) e a divulgação da fé cristã dependiam do conhecimento prévio

desta natureza humana, para só então definir um caminho no sentido de contê-la,

direcioná-la, redefini-la.

O velho do Restelo e a crítica à cobiça

Muitos leitores e estudiosos se deixaram inquietar pelos dizeres desta

personagem camoniana. Faria e Sousa, um dos primeiros comentadores da epopeia

lusíada, afirmou que o velho do Restelo representava o reino de Portugal.627 O

filólogo alemão Wilhelm Storck o equiparou ao coro das antigas tragédias gregas.

Teófilo Braga encontrou nas asseverações deste sábio um teor de protesto político

contra as iniciativas da monarquia portuguesa.628 Joaquim Nabuco toma-o como

descendente dos antigos heróis, sendo ele o “vulto de uma idade vencida”, e/ou

representante do povo.629 Afrânio Peixoto associa sua fala ao “juízo da multidão”,

interpretando-o como personificação do “outro” Portugal, nortenho, agrícola,

próspero, conservador e terrestre.630 Hernâni Cidade considera esta figura um

sintoma da “esquizofrenia” de Camões, dividido como estava entre a condenação e

a exaltação da empresa ultramarina.631 Esta posição de Cidade foi amplificada por

Sylmara Beletti e Frederico Barbosa, que sugerem o “fim orgânico dos Lusíadas”

626 HTM, p. 223. 627 Apud. AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, pp. 117-118. 628 BRAGA, Teófilo. Camões. A obra lírica e épica. Porto: Livraria Chardron, 1911. 629 NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, 1872, PP. 96-101. 630 PEIXOTO, Afrânio. Ensaios Camonianos. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1947, p. 205. 631 CIDADE, Hernâni. Luís de Camões: o épico. Amadora/Portugal: Bertrand, 1975, p. 147.

Page 232: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

232

justamente pela existência de um “Camões ideológico” e de um “Camões contra-

ideológico”.632 Fernando Alves Pereira refere também ao “conflito de ideias” pelo

qual estaria passando Camões, em uma época em que tudo “parecia contraditório”,

sendo a fala do velho do Restelo o desabafo de um povo explorado, deixado à parte

em sua pátria.633

J. S. da Silva Dias não toma o sábio como um porta-voz de Camões, mas

o associa à “expressão do pessimismo histórico, ético e antropológico que alastrou

em Portugal, desde o terceiro quartel do século XVI, sobre a gesta nacional dos

descobrimentos e sobre o império ultramarino, tanto em África como no Oriente”.634

Esta forma de pensar seria corroborada, por exemplo, por Beatriz Fiquer, que

igualmente associa as admoestações do velho à situação decadente de Portugal.635

Massaud Moisés aprecia seu discurso como texto medieval, heterodoxo, contrário ao

mercantilismo, um “contraponto dialético do arcabouço renascentista do poema”.636

José de Pina Martins estabelece nexos entre os dizeres do velho do Restelo e de Sá

de Miranda, o que o leva a classifica-lo como uma espécie de “anti-herói”. Analogias

entre escritos de Antonio de Guevara e o episódio camoniano foram observadas por

Vítor Aguiar e Silva, para quem a personagem camoniana acabaria por efetuar a

“dilaceração do monolinguismo épico”, decorrente, quem sabe, da “ambivalência

indecidível com que Camões aprecia, valora e julga a empresa dos

descobrimentos”.637

Os pareceres da fortuna crítica, como se pode ver, tomam a fala do velho

do Restelo ora como contraponto à glorificação das navegações portuguesa,

espécie de “anticlímax da epopeia”,638 para utilizar uma expressão de Alfredo Bosi;

ora como expressão de um “outro” Portugal, medieval, campestre, antigo; ora como

desdobramento de um pessimismo histórico, com indícios da decadência

632 BELETTI, Sylmara. BARBOSA, Frederico. Inês de Castro e o velho do restelo. São Paulo: LANDY, 2001, p. 61. 633 PEREIRA, Fernando Alves. Uma leitura dos excursos n’Os Lusíadas. Dissertação de Mestrado. Natal: Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2005. 634 Apud. AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, p. 122. 635 FIQUER, Beatriz. A decadência portuguesa n’Os Lusíadas e a recepção contemporânea do épico camoniano. São Paulo: Editora Fiuza, 2012. 636 MOISÉS, Massaud. “A Fala do Velho do Restelo”: Heterodoxia? In: Homenagem a Alexandrino Severino. Austin/Texas: Host Publications, 1993. 637 AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, p. 128. 638 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 37-45.

Page 233: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

233

portuguesa. Muitas análises apreendem o século XVI como um momento

“contraditório” e “decadente” da história portuguesa, no qual um poeta agudo como

Camões só poderia manifestar-se com “pessimismo” e “ambiguidade”. Não é por

acaso que o episódio continua a despertar o interesse dos estudiosos, afinal, foi

vítima de polêmicas desde a primeira metade do século XVI. No entanto, muitas

análises acabam associando a fala da personagem às intenções do poeta, como

António Sérgio, que supõe uma simpatia do poeta pelo velho do Restelo.639 José

Régio, além de propor um Camões esquizofrênico, cogita uma solidariedade do

poeta para com este episódio.640 Esta hipótese também agrada a António José

Saraiva, que acredita tratar-se do próprio poeta manifestando-se pela boca de sua

personagem, demonstrando reprovação pela matéria histórica de que se ocupa.641

Hernâni Cidade chega a associar o tom de desalento do poeta à experiência não

apenas do poeta, mas também de outros contemporâneos seus, como aqueles que

escreveram as histórias trágico-marítimas.642

As maneiras como o episódio camoniano é lido coincidem, muitas vezes,

com a forma como são tratadas as narrativas de naufrágio. Também nesse caso,

supõe-se a existência de informes mais “realistas”, espécie de “lado obscuro” da

epopeia. Fomes, naufrágios, pestes e outros elementos desta natureza acabam

sendo associados a uma situação de “decadência”, que supostamente já teria sido

indicada na epopeia lusíada. Parece-nos que estas análises não são absurdas ao

propor analogias entre as experiências trágicas das navegações e a polêmica fala

do velho do Restelo: o que nos inquieta são os elementos utilizados para propô-las.

Será mesmo que o velho do Restelo e as narrativas de naufrágio propõem o

estilhaçar da dimensão épica dos descobrimentos, tratando-se de uma “indisfarçável

metonímia da decadência”?

A personagem de Camões situa-se, historicamente, no ano da partida de

Vasco da Gama. Entre este momento e a edição da epopeia lusíada há um intervalo

de mais de 70 anos. O futuro que o velho do Restelo “profetiza” corresponde a

episódios do passado, que o poeta e o leitor já conheciam. A personagem é uma

invenção camoniana que reúne em si a experiência do poeta, e não propriamente de 639 SÉRGIO, António. Obras completas. Ensaios IV. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1972. 640 Ver: AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, pp. 120-121. 641 SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 147. 642 CIDADE, Hernâni. Luís de Camões II: o épico. 2ª ed. Lisboa: Revista da Faculdade de Letras, 1953, p. 125.

Page 234: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

234

alguém que já contava com idade avançada no crepúsculo do século XV. Quando

Camões confere voz ao sábio, o desfecho das navegações já era sabido. Sendo

assim, devemos partir do pressuposto de que o leitor, ao deparar-se com este

episódio, já conhecia os resultados dos feitos portugueses que o poeta toma por

matéria. Logo, é preciso investigar a autoridade que a figura do velho confere aos

informes que o poeta lhe atribui.

É comum tomar o velho do Restelo como um tipo “medieval”, “agrícola”,

“nortenho”, “pessimista”, “contraditório”, “disfórico” e, portanto, contrário ao tipo

“industrioso”, “aventureiro”, “sulista”, “marítimo”, “otimista”, “eufórico”. Antes de

qualquer coisa, como saliente o próprio Camões, devemos concebê-lo como tipo

“velho” e “experiente” para, só então, compreender algumas das implicações de

seus dizeres.

A valoração da experiência aparece em diferentes episódios da Ilíada.

Durante a homenagem fúnebre tributada a Pátroclo, os aqueus se preparavam para

uma corrida. As palavras abaixo foram proferidas por Nestor e direcionadas ao seu

filho, que se preparava para a competição:

Ainda que moço, meu filho, aprendeste de Zeus e Posido, Que te são muito afeiçoados, as regras da equestre corrida. Não necessito, por isso, falar-te com muitas minúcias, Que em torno à meta voltear te é bem fácil. Contudo, são lerdos Teus dois cavalos, razão por que temo qualquer desventura. Em recompensa, se os outros aurigas dispõem de parelha Mais desenvolta, a eles todos excedes em férteis recursos. Deves, portanto, meu caro, valer-te de todos os meios Que te ditar o intelecto; a perder não me venhas o prêmio. Na derrubada das árvores, mais vale o jeito que a força; É a habilidade, somente, que em mar tempestuoso permite Ao timoneiro seu frágil batel conduzir com firmeza. Com arte, assim, vence o auriga prudente os demais contendores.643

O astuto Antíloco, que aprendeu as artes equestres com os deuses,

superava todos os seus oponentes no quesito habilidade. Para dizê-lo, o poeta

evoca um símile, equiparando sua perícia à de um timoneiro prudente que conduz

seu frágil batel por um mar tempestuoso. Contudo, seus cavalos eram inferiores, o

que poderia prejudicá-lo e legar a vitória a outro que, menos habilidoso, contava com

corcéis mais ágeis. Na corrida, Antíloco utiliza-se de malícia astuta, e aproveita-se

do kairos (momento oportuno) para vencer o carro de Menelau, que seguia na 643 HOMERO. Ilíada (em versos). Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, canto XXIII, v. 306-318, p. 506.

Page 235: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

235

dianteira. Devido às suas manobras desleais, Antíloco é censurado por Menelau,

detentor da “experiência do velho” e, por isso, um herói que “pode explorar de

antemão as vias múltiplas do futuro, pesar os prós e os contra, decidir com

conhecimento de causa”, previsão que faltou ao filho de Nestor, indicando “a falta de

reflexão da juventude” e a impulsividade que lhe priva do reto agir.644 Para enganar

Menelau, a “astúcia prudente de Antíloco interpreta a loucura. O jovem, calculando

seu golpe e conduzindo reto seus cavalos sobre a linha escolhida, simula a

irreflexão e a impotência, fingindo não ouvir Menelau gritando-lhe para tomar

cuidado”.645 Menelau desvia-se do caminho, pois acreditava que a manobra de

Antíloco se devia à falta de experiência, mas o jovem estava simulando, sem se

preocupar com os resultados de sua ação, mas voltando-se inteiramente para o

imediato e para a possibilidade da vitória seguida de glória.

Aristóteles ocupou-se da tópica das idades em sua Retórica. Aqueles que

atingem a fase adulta, diz ele, “não mostrarão nem confiança excessiva oriunda da

temeridade, nem temores exagerados, mas manter-se-ão num justo meio

relativamente a estes dois exemplos”.646 Alia-se, a um só tempo, o belo, que atrai o

jovem, e o útil, ambicionado pelo velho. No caso dos velhos, o filósofo orienta: “como

viveram muitos anos, e sofreram muitos desenganos, e cometeram muitas faltas, e

porque, via de regra, os negócios humanos são malsucedidos, em tudo avançam

com cautela e revelam menos força do que deveriam”.647 O acúmulo de experiência

priva-os do ímpeto da juventude, mas alimenta seu juízo e temperança, de forma a

torná-los bons conselheiros.

Em meio à multidão que assistia à partida das naus na praia de Restelo,

um velho se ergue, meneando a cabeça em claro sinal de desaprovação, e adverte

aos presentes em alto e bom som:

Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C’uma aura popular, que honra se chama. Dura inquietação da alma e da vida,

644 DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, pp. 22-23. 645 Idem, p. 30. 646 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Edições de Ouro, 1980, capítulo XIV, p. 156. 647 Idem, capítulo XIII, p. 155.

Page 236: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

236

Fonte de desamparo e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios! Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Sendo dina de infames vitupérios; Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com que se o povo néscio engana.648

A fama, neste caso, significa glória movida pela vaidade, desejo pela

autorrealização. Esta motivação, afirma a personagem, é digna dos mais infames

vitupérios. O “povo néscio”, que muito facilmente se deixa enganar, concebe esta

cobiça como algo realmente “ilustre”. O velho, no entanto, assumindo o papel de

homem discreto, não se deixa levar pelas tentações da glória infame, julgando tal

tendência como desajuizada, como uma avaria à empresa no ultramar. Saraiva

acredita tratar-se de um desprezo pelo vulgo decorrente da formação humanística do

poeta.649 No entanto, da forma como aparece no poema, estas palavras parecem

sugerir a imprescindibilidade do desengano, pois homens sem letras e/ou de

experiência reduzida tendem a apreender as coisas do mundo pela aparência.

Em outro momento, o velho do Restelo coloca em evidência a dilatação

do Império e, novamente, o propósito dos nautas:

Deixas criar às portas o inimigo Por ires buscar outro de tão longe Por quem se despovoe o Reino antigo, Se enfraqueça e se vá deitando a longe! Buscas o incerto e incógnito perigo Por que a fama te exalte e te lisonje Chamando-te senhor, com larga cópia, Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!650

A incerteza do trajeto e das futuras consequências da viagem nos remete

à novidade da empresa que estava por iniciar. A ambição por “novos reinos”, diz o

sábio, levaria ao abandono de Portugal e desamparo da população. Em outra

estrofe, ele amaldiçoa aquele que inventou a primeira nau, pois esta criação

estimulou o anseio por descobertas e, em consequência, por fama, comum àqueles

que se alimentam da cobiça. A estes, a personagem deseja a inglória e a perda do

nome, que é duplamente trágico: o nome se perde com o corpo, que perece nos

648 Os Lusíadas, 2005, canto IV, estrofes 95-96, p. 145. 649 SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 124. 650 Os Lusíadas, 2005, canto IV, estrofe 101, p. 148.

Page 237: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

237

confins do mar, e a fama se esvai em seguida, em decorrência do fracasso da

empresa. Para estes, o que a empresa lhes renderia?

Que promessas de reinos e de minas De ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? Que histórias? Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?651

De acordo com Alexei Bueno, estas duras palavras com entonação

profética poderiam muito bem decorrer da ansiedade causada pelos horrores de um

naufrágio, ou pelos perigos que assolavam a tripulação durante os árduos

momentos da viagem.652 Ou seja, tomando a estrofe acima como referência, nada

há de restar para aqueles que têm a fortuna como obstáculo. Não haverá consolo,

riquezas, mercês, histórias, pois os propósitos, quando movidos pelo ímpeto

particular, são desde a sua gestação perdidos. Não entendemos, como quer Hernâni

Cidade, a existência de um Camões favorável e outro contrário à empresa no

ultramar. As orientações de conduta que o poema propõe, antes de qualquer coisa,

tendem a demonstrar um caminho acertado e moralmente correto, e outros que,

apesar de recorrentes, são imorais e enganosos. Para isso, o poeta

engenhosamente adota um procedimento retórico apologético: anuncia uma postura

favorável e outra que lhe contradiz. Ao aedo, portanto, caberia divulgar e alinhar as

posturas possíveis, utilizando a desfavorável para legitimar e amplificar as

propriedades daquela julgada favorável. Por outras palavras, como que numa

balança, deveriam ser pesados os prós e os contra da empresa ultramarina: na

equação final, predomina a postura mais acertada e ajuizada. Isto mantém certa

coerência com a seguinte afirmativa de Pécora:

O poema não apenas louva o feito acabado, como se viu, mas corrige moral e juridicamente o imperfeito e enganado, às suas próprias custas e do desejo reto que o move. Neste ponto, em que o gênero epidítico confunde-se com o judiciário, o louvor se faz, antes de mais nada, por negativa e exclusão, com a grave incumbência de distinguir o falso herói do verdadeiro, e banir aquele do seu canto.653

651 Idem, canto IV, estrofe 97, p. 145. 652 BUENO, Alexei. Introdução. In: BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores / Contraponto Editora, 1998, p. X. 653 PECORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 153.

Page 238: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

238

Não há, assim, a omissão de posturas contrárias às que o poeta canta,

mas sim a refutação dialética dos argumentos contrários à empresa ultramarina, o

que confere maior importância à postura que se quer defender. Eleva-se o mérito da

ação ajuizada e, por inversão, desacredita-se o seu inverso em prol de uma didática

que ensina como não agir. Supor, portanto, o “fim orgânico” do poema significa

negar a unidade épica e seu engenho retórico-poético. Em momento posterior,

Camões continua sua censura à cobiça:

E ponde na cobiça um freio duro, E na ambição também, que indignamente Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente; Porque essas honras vãs, esse ouro puro, Verdadeiro valor não dão à gente. Milhor é merecê-los sem os ter, Que possuí-los sem os merecer.654

Anuncia-se o falso herói e, ao mesmo tempo, subtende-se a necessidade

do herói verdadeiro. É do primeiro que trata o velho de Restelo e o movimento que

Camões delimita para o seu poema tende a valorizar Gama como herói prudente: ele

anuncia, a princípio, o alter vaidoso no ato da partida para, no decorrer da trama

épica, demonstrar que Vasco da Gama e seus homens correspondiam justamente

ao oposto. Postula-se o caminho tortuoso para, a partir dele, demarcar a justa ação.

O aedo define seus protagonistas como sendo o oposto do que preconiza, com

censuras severas, o velho sábio:

Quão doce é o louvor e a justa glória Dos próprios feitos, quando são soados! Qualquer Nobre trabalha que em memória Vença ou iguale os grandes já passados. As invejas da ilustre e alheia história Fazem mil vezes feitos sublimados. Quem valerosas obras exercita, Louvor alheio muito o esperta e incita.655

Quanto à empresa movida por “justa glória”, o velho de Restelo nada tem

a censurar. Este louvor “doce”, resultado de trabalhos suados, é que ancora a

matéria poética. No caso, os artifícios retóricos utilizados não pretendem corroborar

a “organicidade” do poema, mas sim, contando com a discrição do auditório,

654 Os Lusíadas, 2008, canto IX, estrofe 93, p. 276. 655 Idem, canto V, estrofe 92, p. 169.

Page 239: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

239

desconstruir uma postura “vulgar” e, sobre ela, erigir uma justa e memorável. Se não

existe, por um lado, contradição e dubiedade quanto à postura assumida pelo poeta,

por outro, há a necessidade de julgar a melhor conduta de forma prudente, evitando-

se o seu oposto.

Como recorda Afrânio Peixoto, a figura de um velho é conveniente nesta

ocasião: a experiência, no caso, é requisito de prudência. A comparação que

Peixoto faz entre esta sábia personagem e o coro de musas da tragédia grega é

pertinente: afinal, compete ao coro, dentre outras coisas, alertar o(s) protagonista(s)

e os leitores sobre os riscos ocasionados pela desmedida, passível de finais

trágicos. A figura do velho, à maneira, por exemplo, de Nestor, conselheiro dos

gregos na empresa contra Troia, recobra para si o discernimento e a experiência de

alguém que viveu o suficiente para formar juízos sobre a atitude de um homem e

sobre as “coisas do mundo”. Para utilizar, por fim, o exemplo que inaugura este

tópico, o juízo provindo da experiência pode ser associado à Menelau que, frente às

ousadias do oponente Antíloco, soube impor seu bom juízo e censurar a dissimulada

desconsideração do jovem. Desconsideração que Tomás de Aquino avalia como

sendo imprudente, pois denota “defeito no reto juízo”.656

A experiência é categoria fundamental para se entender o teor daquilo

que diz o velho do Restelo. Como nos adverte Pierre Aubenque, a experiência, em

Aristóteles, “supõe a soma do particular e está, pois, na rota do universal”. Em

seguida, ele afirma:

A experiência não é repetição indefinida do particular, mas já se introduz no elemento da permanência; é esse saber antes vivido do que aprendido, profundo porque não deduzido, e que reconhecemos naqueles dos quais dizemos que “têm experiência”.657

Neste caso, a experiência é retratada não apenas como requisito para a

prudência, mas como parte dela. Já pensando na leitura que São Tomás de Aquino

faz da prudência, o papel central do homem que detém esta virtude é “aplicar os

princípios universais às conclusões particulares do âmbito do agir”.658 Aquino não

656 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 82. 657 AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, p. 99. 658 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 11.

Page 240: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

240

restringe o conceito de prudência à experiência, o que seria reduzir um termo ao

outro. Muito pelo contrário, a prudência que ele chama de “verdadeira” ou “perfeita”

depende também do ensino e de outros elementos que ele divide em dois setores

mais gerais: a dimensão cognoscitiva, referente à memória, razão, inteligência,

docilidade e sagacidade, e a dimensão de comando, relativa à previdência,

circunspeção e prevenção.659

Vociferando, o velho de Restelo termina sua arenga:

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pôs em seco lenho! Digno da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa Lei que sigo e tenho! Trouxe o filho de Jápeto do Céu O fogo que ajuntou ao peito humano, Fogo que o mundo em armas acendeu Em mortes, em desonras (grande engano!). Nenhum cometimento alto e nefando Por fogo, ferro, água, calma e frio, Deixa intentado a humana geração. Mísera sorte! Estranha condição!660

Estes trechos foram retirados das últimas três estrofes do canto IV e nos

levam a recordar outro lugar comum associado ao caráter do velho. Aristóteles

afirma que o acúmulo de experiência leva o homem a desenvolver certos aspectos

excessivos em seu caráter: se tornam, por exemplo, desconfiados e suspeitosos,

pois sofreram inúmeros desenganos durante a vida. De acordo com o filósofo, eles

“vivem de recordações mais que de esperanças, porque o que lhes resta de vida é

pouca coisa em comparação do muito que viveram”.661 O fato de amaldiçoar aquele

que criou a primeira nau, destinando-lhe o inferno, a desilusão frente à humanidade,

que se utilizou do fogo cedido por Prometeu para provocar mortes e desonras, e a

tentação a que se submete a “humana geração” faz com que o velho, adornado de

uma vasta experiência, se atenha mais ao “útil”, deixando de lado a esperança e se

mostrando pouco propenso à espera.662 Como ele se pauta mais nas recordações,

significa que nenhum exemplo despertou-lhe esperança. Sua insatisfação, portanto,

659 Idem, pp. 20-30. 660 Os Lusíadas, 2008, canto IV, estrofes 102-104, p. 144. 661 Ver: ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Edições de Ouro, 1980, capítulo XIII, pp. 154-155. 662 Idem, ibidem.

Page 241: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

241

antecede a jornada de Vasco da Gama. A possível conotação “pessimista” do velho

de Restelo pode soar como uma prova a ser vencida, uma vez que o artifício

apologético tende a conferir feições à postura vil para que ela possa, em seguida,

ser refutada com argumentos que apelam para as ações nobres dos protagonistas.

Este aspecto pode ser apreendido, também, nos escritos de Horácio

quando, em sua arte poética, estabelece o éthos das idades: o velho, para ele, age

geralmente com temor e frieza e apresenta um caráter descontente, tratando-se de

um homem “inerte e ávido do futuro”, e “louvador dos tempos passados”. Por esta

razão, Horácio afirma que ele “castiga e censura os que são mais novos”.663 Mais

uma vez, esta interpretação sugere que a inclinação do velho de Restelo se dê mais

pela idade e por esta desconfiança perante as gerações que lhe sucedem, do que

necessariamente por “prever” aspectos negativos referentes à empresa de Vasco da

Gama. Longino, seguindo os passos de Horácio, enfatiza e generaliza o

“pessimismo” dos homens em relação ao seu presente, dizendo que é comum falar

mal do seu tempo.664

Para utilizar um exemplo mais ou menos contemporâneo à obra

camoniana, o éthos da velhice é retomando também por Baldassare Castiglione.

Seguindo os passos de Aristóteles e de Horácio, ele afirma:

Não sem maravilha, várias vezes considerei onde surge um erro, que se acredita ser próprio dos velhos, pois neles se encontra universalmente: é ele o de que quase todos louvam os tempos passados e criticam o presente, vituperando nossas ações, maneiras e tudo aquilo que não faziam em sua juventude.665

Castiglione, assim como Aristóteles e Horácio, não deixa de salientar os

ganhos acumulados com o passar do tempo, como prudência, juízo, moderação etc.

Isto não impede, contudo, que os velhos se tornem críticos e pouco afeitos aos

jovens, por entender que “todo bom costume e toda boa maneira de viver, toda

virtude, tudo enfim, vai sempre de mal a pior”.666

663 HORÁCIO. Arte poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 57. 664 LONGINO. Do sublime. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 113. 665 CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 83. 666 Idem, ibidem.

Page 242: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

242

A reprimenda efetuada na praia de Restelo, portanto, extrapola a empresa

de Vasco da Gama, tratando-se de um alerta ao leitor ambicioso que se deixa mover

pela cobiça. O velho, prudente e experimentado, olha para o presente com

pessimismo e sem esperanças, o que deixa o seu olhar turvo perante as

possibilidades de glória vindoura. O que falta a ele, no caso, é o conhecimento da

empresa de Vasco da Gama, que, àquela altura, estava por iniciar.

O velho do Restelo é um retentor de memórias, que ele revela como se

fossem profecias. O lugar do qual fala esta sábia personagem de fato coloca os

dados que expõe num futuro próximo, que para o leitor são acontecimentos

passados e bem conhecidos. A longa vivência deste experimentado súdito

português lhe confere autoridade para falar com juízo e “prever”, sem nenhuma

implicação heterodoxa, fatores que confirmariam as suas proposições. Embora

crítico, sua fala amplifica as conquistas portuguesas que se iniciariam ali, com a

partida de Vasco da Gama. Suas profecias e imprecações, portanto, não se mostram

incapazes de deter o fluxo dos acontecimentos. Conjuga-se, portanto, os atributos

comumente associados ao lugar destinado ao “velho”, como a experiência e o

“pessimismo” em relação ao presente, e uma postura instrutiva, pedagógica, que

orienta ao apontar para os erros a serem evitados. É como se as advertências, que

presumimos serem direcionadas aos nautas portugueses, ultrapassassem este limite

e, como profecias, fossem direcionadas ao futuro, aos leitores, aos pósteros que,

ciente de todas aquelas memórias narradas pela personagem camoniana, evitariam

recair em erro semelhante. A unidade da obra não apenas se mantém como também

atende ao decoro externo, adequando-se à recepção.

É verossímil que o velho, na situação de retentor de memórias, signifique

a personificação da memória compartilhada não necessariamente no momento da

partida de Vasco da Gama, mas dos leitores d’Os Lusíadas. Estas memórias,

coletivas e anônimas, forjadas através do engenho poético, encontram no velho do

Restelo subsídio e autoridade. De individualidade caduca e “pessimista”, esta

personagem passa a simbolizar as aflições, as dores, o sofrimento, mas também os

anseios, as perspectivas, os sonhos e, sobretudo, os juízos que assinalam uma

conduta ética ao condenar a cobiça, a ambição e as paixões em geral. A trajetória

de Vasco da Gama nos leva a entender o seu silêncio frente às admoestações do

velho: não é o silêncio de quem ignora o que foi dito, tampouco de quem não

apreende a pertinência daquelas palavras. Trata-se do silêncio de quem não se

Page 243: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

243

identifica com o perfil pintado pela personagem. Um silêncio reflexivo que poderia

denotar humildade, atenção e aprendizado. As palavras do velho de Restelo, que

supomos serem direcionadas aos nautas portugueses, ultrapassam as naus

lusitanas, trafegam pelos mares da poesia épica camoniana para, finalmente,

ancorar os juízos do leitor.

A cobiça e (a limitação d)os remédios humanos:

Segue abaixo uma das odes atribuídas a Horácio, traduzida por Ariovaldo

Augusto Peterlini:

Que a Deusa poderosa e senhora de Chipre, que de Helena os irmãos, rutilantes estrelas, e o pai dos ventos, tendo a todos prisioneiros, mas não o Iápix (noroeste) favorável, a bom porto te conduzam, ó nau, que me deves Vergílio, que de ti confiei; suplico o restituas são e salvo aos confins dos litorais da Ática e me preserves a metade de minha alma. Tinha carvalho e três de bronze duras lâminas em volta ao peito o que, primeiro, ao mar bravio ousado confiou uma frágil jangada; o que não vacilou ante o vento Africano (sudoeste) num vórtice veloz de encontro aos Aquilões (nordeste), nem feias Híades temeu, nem fero Noto, senhor maior que o qual não tem o Adriático, quer queira encapelar, quer serenar as ondas... De que aproximação da morte não tremeu quem, sem lágrimas, viu esses monstros nadantes, quem viu, primeiro, o mar nas fúrias da borrasca e as fragas enfrentou de nome Acroceráunias. Inutilmente um Deus sensato separou, com o oceano divisor, as terras, se, contudo, ímpios batéis os mares cruzam proibidos... Audaz em tudo ousar, a raça humana vai precípite rompendo as leis, em sacrilégios. Atrevido e falaz foi o filho de Jápeto, quando em nefasto ardil trouxe aos povos o fogo. Com o fogo roubado à etérea morada, sobre a terra tombou a desgraça da fome e estranha multidão de doenças sem nome... E o outrora moroso implacável da morte, tão distante até ali, amiudou seu passo. Foi com ímpias asas ao homem não dadas que Dédalo o vazio do espaço esquadrinhou. Hércules, num trabalho, o Aqueronte rompeu. Nada para os mortais existe de difícil. Pedimos com loucura o próprio imenso céu, nem deixamos jamais, por nosso sacrilégio, que Júpiter descanse a ira de seus raios.

Page 244: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

244

O poeta, no caso, pede a Vênus, aos irmãos Cástor e Pólux (constelação

protetora dos navegantes) e a Éolo que guiem a nau de Virgílio. Esta ode é

entendida como exemplar do gênero propemtikon\n, discurso de boa viagem

recorrentemente praticado por poetas “helenísticos”. Este poema foi alvo de

polêmicas, pois não há consenso quanto ao teor da ode (se sério ou irônico) ou à

motivação do poeta (elogiar a audácia humana ou condená-la). A ode certamente

mobiliza a tópica da ousadia humana ao indicar feitos que desafiam os desígnios

“superiores”. Há quem a conceba como alegoria, através da qual o aedo estaria

elogiando as habilidades poéticas de Virgílio, que teria navegado pelos mares da

epopeia.667 Em outra ode, Horácio utiliza a tópica da aurea mediocritas, que diz:

“Feliz aquele que, longe dos negócios,/ como a antiga raça de mortais,/ faz trabalhar

seus bois nos campos paternos,/ livre de toda usura,/ e não o acorda, qual a um

soldado, a cruel trombeta,/ nem teme o mar bravio, / e evita o fórum e os soberbos

limiares / dos poderosos”.668

Passando ao lado das polêmicas relativas a estas odes, é possível notar

que Camões as emulou no canto IV de sua epopeia, justamente no episódio de

velho do Restelo. Por outras palavras, Camões imitou um gênero comumente

utilizado em discursos de boa viagem num momento decisivo do poema: a partida

das naus rumo à descoberta das Índias. Se o poeta lusitano leu metaforicamente a

ode, compreendendo-a como elogio a Virgílio, talvez as imprecações do velho do

Restelo, além de orientar os leitores quanto às condutas virtuosas, amplificaria a

própria empresa poética de Camões, que estaria singrando os mares da epopeia à

maneira do poeta romano.

Henrique Dias, em seu relato de naufrágio da nau São Paulo, de certa

forma mobiliza estes tópicos retóricos ao discorrer sobre os perigos do mar e o

conforto de quem permanece em terra:

Pelo que a experiência nos ensina que quem o pode escusar vive em mais tranquilidade de espírito de tanta confusão, e antes, com menos na terra que atravessar o mar por coisas tão transitórias, e de pouca dura; e na terra

667 Ver: HASEGAWA, Alexandre Pinheiro. O Epodo X de Horácio e a recusa do gênero épico. In: Cadernos de Literatura em Tradução, n. 5, pp. 77-103. 668 Apud. FONSECA, Carlos Alberto Louro. Horácio em A vida de Soares de Passos. In: Humanitas: Instituto de Letras da Universidade de Coimbra, 1967, p. 80. Sobre a ode I, 3, ver: FREITAS, Leandro César de Albuquerque. Ecos bucólicos: relações entre as Bucólicas de Virgílio e a primeira parte da Marília de Dirceu de Gonzaga. Dissertação de mestrado. João Pessoa: Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, 2008, p. 25; CARUSO, Pellegrino. Problemi testuali nel libro primo dei Carmina di Orazio. Dottorato. Universitá Degli Studi di Salerno, 2010.

Page 245: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

245

viver como bom cristão, cumprindo a Lei de Deus dentro no grêmio da Santa Madre Igreja de Roma e multiplicando os talentos que o Senhor a cada um de nós entregou, porque dando-lhe boa conta, mereçamos ouvir dele no porto de salvação aquela suave voz: “Vem, bom servo e fiel, porque em pouco foste fiel, sobre grandes cousas te porei; entra em o prazer e contentamento de teu Senhor, que é a Glória”, a qual ele por sua bondade nos queira dar.669

Este desfecho da narrativa remete ao seu princípio, quando o narrador

afirma: “Acontece muitas vezes a voz do povo ser juízo do Senhor e falar pela boca

dele o que há-de vir”.670 Se podemos associar o “juízo do Senhor” à voz emprestada

ao velho do Restelo, dificilmente se poderia crer que suas asseverações fossem

contrárias ao projeto de ampliação do império e divulgação da fé cristã. Antes de

retomar a Parábola dos Talentos e referir à tranquilidade de quem pode ficar no

reino e multiplica-los, Henrique Dias havia citado o salmo 106, que discorre sobre a

experiência dos homens no mar e a reconhece como obra do Senhor. Com duas

passagens bíblicas, portanto, o narrador alude à felicidade de quem permanece em

terra e multiplica seus talentos e à prudência e temor necessários para fazer cessar

as tempestades. O vociferar do velho do Restelo, tipo detentor de vasta experiência,

não parece contradizer a empresa ultramarina, mas ponderar sobre suas fortunas e

fadigas. Mais fácil seria não se colocar à prova, mas, como assevera Henrique Dias,

nem todos podem ser dar ao luxo de evita-la.

Horácio toma por corajoso o primeiro que encarou o mar bravio. O velho

do Restelo condena-o pela mesma coragem, já que oferece condições para a

promoção da cobiça e ambição humanas. Ambos mencionam as experiências de

Prometeu, Hércules e Dédalo para amplificar as implicações da empresa

navegadora e condenar os excessos, a hybris. Trata-se, neste caso, de uma

amplificação da arrogância e da promoção de uma política do desengano.

O poeta Jerônimo Corte-Real nos faz entender o quão odioso lhe parece

o pecado da cobiça:

Muito pode a cobiça, mas se imprime Nos fracos corações baixos vulgares, Não há torre, nem muro onde não suba: Não há prisão tão forte, que não rompa No que se mostra mais cerrado entra, O que parece mais seguro escala, Por demais é guardar, nem ter vigia

669 HTM, p. 259. 670 Idem, p. 193.

Page 246: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

246

No que por qualquer preço fica fácil.671

Tal como o velho do Restelo, o aedo, neste caso, associa o poder

destrutivo da cobiça ao vulgo (“fracos corações baixos vulgares”). Os relatos de

naufrágio também aludem à prática da cobiça, reproduzida ao longo das

navegações, sobretudo quando relacionada aos então chamados “homens do mar”.

No relato de naufrágio da nau São Bento, deparamo-nos com a seguinte narrativa:

Esta noite, porque fazia luar, foram três marinheiros correr a praia com esperança da tormenta passada, e acharam na boca do rio um tubarão lançado à costa, o qual repartiram entre si, e cada dous dedos de posta nos venderam por quinze e vinte cruzados; e a falta doutros mantimentos fazia tanta sobejidão que compradores que depois do corpo ser levado a este preço não faltava quem desse pela metade da cabeça vinte mil réis; de modo que bem se pudera comprar nesta terra muito arrezoada quinta com o que aquele peixe rendeu.672

Para além da avareza e do interesse no lucro, há, em outra passagem,

desta vez localizada no relato de naufrágio da nau São Paulo, uma alusão que

ressalta a natureza vil desses homens:

E por certo cousa muito miserável e de contar a diversidade das condições humanas; e muito mais para chorar suas cobiças e misérias, porque, indo a nau caindo sobre o ilhéu, em que apenas havia tocado, já a gente do mar andava escalando arcas e arrombando câmeras, e fazendo fardos e trouxas, como se estiveram em terra habitada e de muitos amigos, comarcãos e vizinhos de sua pátria e natureza, e tivessem mui seguros e certos, caminhos e direitas estradas por onde caminhassem, e embarcações boas em que navegassem.673

A descrição continua:

Desta maneira andavam, uns roubando e destruindo tudo, assim os que estavam na nau como outros que estavam em terra, abrindo barris, arcas e caixões, que o mar já de si deitava; mas quem se espantará ou haverá por novidade achar-se isto em gente do mar, tão inumana, se os conhecer, e lhes souber das más inclinações, e quão pouca lei tem com Deus, nem caridade com o próximo?674

671 CORTE-REAL, Jerônimo. Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. E a peregrinação que tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Lisboa: Typografia Rollandiana, 1783, p. 16. 672 HTM, p. 63. 673 Idem, p. 233. 674 Idem, ibidem.

Page 247: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

247

A crítica, no caso, não foi direcionada à obtenção de riquezas

simplesmente, mas à maneira vil de se obtê-las: “foram deitando todas as riquezas e

louçainhas, de que a nau ia riquíssima, ganhando tudo com tanto suor de uns, e com

tanto encargo de outros”.675 Note-se, portanto, o momento de desengano:

como homens pasmados, parecendo um sonho, verem assim uma nau, em que havia pouco iam navegando, tão carregada de riquezas e louçainhas que quase não tinham estimação, comida das ondas, submergida debaixo das águas, entesourando nas concavidades do mar tantas coisas, assim do que nela iam, como dos que ficavam na Índia, adquiridas pelos meios que Deus sabe.676

Riquezas, tratadas com tanta estimação, acabavam se tornando

instrumentos de perdição:

e não foi também aqui pequeno o lugar que a infinidade de perdidas fazendas ocupava, porque tudo quanto podíamos estender os olhos de uma e outra parte daquela praia estava cheio de muitas odoríferas drogas e outra infinita diversidade de fazendas e cousas preciosas, jazendo muitas delas ao redor de seus donos, a quem não somente não puderam valer na presente necessidade, mas ainda a alguns, de quem eram sobejamente amadas na vida, com seu peso foram causa da morte; e verdadeiramente que era uma confusa ordem com que a desventura tinha tudo aquilo ordenado, e que bastava a memória daquele passo para não ser a pobreza havida por tamanho mal que por lhe fugir deixemos a Deus e o próximo, pátria, pais, irmãos, amigos, mulheres e filhos, e troquemos tantos gostos e quietações pelos sobejos que cá ficam. Enquanto vivemos nos fazem atravessar mares, fogos, guerras e todos os outros perigos e trabalhos, que nos tanto custam; mas por não contrariar de todo as justas escusas que por si podem alegar os atormentados das necessidades, cortarei o fio ao católico estilo, porque me ia e levava a memória e medo do que ali foi representado, recolhendo-me a meu propósito, que é escrever somente a verdade do que toca aos acontecimentos desta história.677

Após o naufrágio, já durante a peregrinação, a cobiça dos “nativos”

passava, igualmente, a trazer problemas aos portugueses, então desamparados de

quase todas as suas posses:

E como o propósito com que este rei ali nos desejava, não fosse todo fundado em virtude, mas parte em interesse, como peste geralmente criada nas mais das pessoas (por rústicas que sejam), e este fosse haver de nós algum ouro ou joias dele, não porque lhe sejam necessárias para seus usos, mas por saberem que os portugueses do navio que ali foram os anos passados compraram estas cousas aos que roubaram a Manuel de Sousa Sepúlveda a troco de contas, que eles têm por tão precioso tesouro como nós a pedraria ou seu semelhante, como discreto e sagaz que era quis haver isto à mão com o menos escândalo nosso que ser pudesse.678

675 Idem, p. 345. 676 Idem, pp. 349-350. 677 Idem, p. 39. 678 Idem, p. 81.

Page 248: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

248

Em outro momento, a pobreza é tomada como um dos incentivos à

viagem, justificativa para o enfrentamento de mares bravios:

Assim, não nos contentando com o que nos é dado e concedido de Deus, nos obriga nossa cobiça, omnium malorum radix, deixar nossa amada pátria e lares próprios, tão desejados, só por fugirmos à pobreza, que não pode ser maior que a deste estado, em que sofremos e passamos o fogo e frio de ambas as zonas, tão memoradas dos antigos, a que eles nunca cometeram nem viram, e menos experimentaram suas quenturas e frialdades.679

O narrador retoma a autoridade de Ovídio, dizendo “que cresce o amor e

cobiça do dinheiro, tanto quanto ele mais cresce”, e que por isso as riquezas

“enganam e atraem para si os ânimos mortais”.680 As consequências, na maioria das

vezes, são dramáticas, como no episódio que segue:

rostos cobertos de tristes lágrimas e de uma amarelidão e trespassamento da manifesta dor e sobejo receio que a chegada da morte causava, ouvindo-se também de quando em quando, algumas palavras lastimosas, sinal certo da lembrança que ainda naquele derradeiro ponto não faltava dos órfãos e pequenos filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos pais que cá deixavam.681

O desengano, no caso, faz enxergar uma vida que a cobiça não deixou

ver. As lágrimas manifestaram-se como resultado da purgação e da penitência, num

reconhecimento derradeiro da condição de pecador.

Reta razão aplicada ao agir

Em trabalho sobre a prudência nos escritos de Aristóteles, Pierre

Aubenque afirma que a existência do homem prudente (phronimos) precede a

determinação da essência/natureza da prudência (phrônesis), isto é, o phronimos

não é apenas o intérprete da reta regra, mas o portador vivo da norma e, portanto, a

personificação da regra. Esta deve ser entendida como critério definidor da justa

medida que, por sinal, é discernível somente aos olhos do homem dotado de

phrônesis. O homem prudente é o único capaz de fornecer um julgamento reto e, por

esse motivo, consegue deliberar bem tendo em vista uma ação circunstancial e

679 Idem, p. 221. 680 Idem, ibidem. 681 Idem, p. 33.

Page 249: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

249

contingente.682 Por outras palavras, não há prudência sem, antes, haver um modelo

de conduta a ser seguido. No entanto, não se deve perder de vista algumas

categorias caras às analises de Aristóteles: o homem prudente pode priorizar os

bens relativos ao âmbito particular ou pode agir em prol dos homens em geral, em

observância à dimensão do bem comum. A vida feliz, finalidade última que tangencia

a ética aristotélica, envolve justamente a superação das finalidades particulares e a

priorização dos bens humanos. Por esta razão, Aristóteles faz do homem o centro de

sua ética sem divinizá-lo, como nos lembra Aubenque. A prudência, então, seria “o

substituto propriamente humano de uma Providência que falha”.683

Desta forma, a phrônesis é entendida como uma disposição prática

responsável pelo reconhecimento das virtudes morais. A prioridade, no caso, é a

adoção de meios oportunos capazes de incidir na consumação de fins almejados.

Felipe Charbel afirma que a escolha (proairesis) é central na definição do agir

prudente em Aristóteles, pois é através dela que se recorre aos meios adequados

para se atingir o fim proposto.684 Assim, não basta “saber o que é justo e nobilitante.

É preciso, acima de tudo, saber escolher o justo, transformá-lo em ação e conduta”,

o que é possível através da “ponderação de cada acidente, de cada lance fortuito a

que os homens estão sujeitos”.685 O phronimos deve se orientar de acordo com a

reta razão, de forma que a prudência se configura como faculdade intelectual

atrelada à parte calculadora da alma racional. O desejo de ser bom e de ocasionar o

bem principia a resolução acertada e o cálculo racional a ser aplicado perante a

contingência das coisas humanas. É de vital importância, portanto, a consideração

das ocasiões e das oportunidades (kairos).686

682 A deliberação, no caso, “consiste em procurar os meios para realizar um fim previamente posto”, tratando-se de uma “condição sem a qual a ação humana não pode ser boa ação, ou seja, virtuosa”. A deliberação diz respeito aos meios, e não aos fins, e prioriza o útil, e não o bem. Em outras palavras, ela pode ser mobilizada na efetuação de ações vis. No caso, o phronimos deve aliar à deliberação uma finalidade virtuosa. Sobre o assunto, ver: AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 173-192. 683 Idem, p. 155. 684 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 58. Sobre o conceito de proairesis, ver: AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 193-229. 685 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 60. 686 A noção de kairos, entendida como tempo oportuno ou ocasião favorável, indica “o bem segundo o tempo, ou ainda, o tempo enquanto nós o consideramos bom”. Ver: AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 193-229.

Page 250: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

250

A phrônesis é um dos atributos que caracteriza, também, o sábio estoico.

Guy Hamelin questiona a possibilidade de aproximação entre a prudência aristotélica

e a sabedoria estoica, desenvolvendo sua argumentação a partir de alguns

paralelos. A princípio, o autor percebe que a phrônesis constitui uma habilidade para

os estoicos. Aristóteles, ao contrário, distingue habilidade e prudência. Outro

argumento que sustenta a hipótese de Hamelin é o de que, para os estoicos, não há

uma distinção categórica entre sophia e phrônesis, como aquela elaborada por

Aristóteles. Assim, o conhecimento do sábio torna-se infalível, enquanto o prudente

aristotélico não consegue se livrar inteiramente do contingente, do fortuito.687

Pierre Aubenque julga haver uma grande distância entre a noção de

phrônesis aristotélica e a phrônesis estoica, aproximando-se da tese de Hamelin. O

autor lembra que não há na definição estoica a divisão entre a parte “científica” e a

parte “opinativa” ou “deliberativa” (à qual estaria ligada a prudência) da alma

racional, tampouco a distinção entre um bem absoluto, objeto da sabedoria (sophia),

e um bem para o homem, objeto da prudência (phrônesis). Não há, portanto, a

atribuição à prudência de “um campo distinto do da sabedoria, que era para

Aristóteles o contingente”.688

Tratando-se dos estoicos, isso não surpreende: a prudência aristotélica, substituto humano de uma sabedoria demasiado superior para nosso mundo, estava ligada à distinção do necessário e do contingente, do mundo divino e do mundo sublunar. No universo estoico, animado em todas as suas partes por um mesmo logos, não havia lugar para duas virtudes intelectuais, mas para uma única, que coincidisse com o Logos universal.689

Zenão (334 a.C.-262 a.C.), considerado o fundador do estoicismo, afirma

que a phrônesis “coloca ordem nas paixões e dá uma justa medida aos prazeres”.

Desta forma, “quando a phrônesis dá a cada um o que lhe é devido, ela é justiça, e

quando nos indica o que é preciso evitar, é temperança; quando nos ajuda a

suportar a adversidade, é coragem”.690 Para Zenão, “há diferentes virtudes, as quais

são inseparáveis através da prudência; no entanto, na medida em que ele as define,

acaba por igualá-las à prudência”. Assim,

687 Ver: HAMELIN, Guy. “O sábio estóico que possui o discernimento aristotélico?”. In: Revista Archai (Revista de Estudos sobre a origem do pensamento ocidental). Universidade de Brasília, 2010. 688 AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, p. 294. 689 Idem, pp. 295-296. 690 Idem, p. 194.

Page 251: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

251

quem tem qualquer uma das virtudes, na medida em que todas elas são atualizações da prudência em determinado tipo de contexto, tem todas; justamente, ter prudência é ter as virtudes morais a serem aplicadas nos diferentes contextos em que o agente se encontra.691

O estoico Crisipo (278-206 a.C.), na esteira de Zenão, assegura que as

virtudes da coragem, da justiça, da prudência e da temperança são inteiramente

distintas, mas implicadas entre si: ou possuímos todas as virtudes, ou não

possuímos nenhuma delas.692 O homem prudente, desta forma, contém em si todas

as outras virtudes. Areté (virtude) e eudaimonia (felicidade) são indissociáveis no

sábio estoico: o homem virtuoso é necessariamente feliz. Para ser virtuoso e,

portanto, feliz, ele deve manter sua natureza em sintonia com a Natureza universal,

que rege todas as coisas. Em suma, a “reta razão aplicada ao agir” torna o homem

feliz na medida em que sua conduta atualiza o Logos universal.

De acordo com Markus Silva, a phrônesis em Epicuro (341 a.C.-270 a.C.)

não deixa de ser uma “sabedoria prática”, aproximando-se da concepção aristotélica.

No entanto, Epicuro distancia-se de Aristóteles “por atribuir à phrônesis a primazia

sobre outros saberes, definindo a filosofia como um ‘exercício’ e definindo a filosofia

em seu sentido mais alto como phrônesis, ou sabedoria no agir”.693 Nestes termos, a

prudência concede ao homem a possibilidade de refletir acerca do que é natural e

necessário saber, tanto do ponto de vista prático quanto teórico. É da phrônesis que

provém todas as outras virtudes, pois não é possível viver de modo justo e

prazeroso sem os seus auxílios. A prudência, portanto, é o “exercício prático da

sabedoria”, a “sabedoria no agir”, um “requisito básico para o exercício da filosofia,

mas não é por isso mais importante ou mais precioso que a filosofia”.694

Para Silva, há no mínimo três categorias que devem ser revistas para se

entender com clareza a abrangência da prudência em Epicuro: o logismós, a

ataraxía e a autárkeia. O logismós é uma “operação do pensamento”, um “cálculo ou

raciocínio que engendra uma medida, ou ainda uma capacidade de medir, ponderar,

dimensionar”.695 Phrônesis e logismós são “elementos depuradores dos desejos e

691 Ver: SPINELLI, Priscilla Tesch. A Prudência na Ética Nicomaquéia de Aristóteles. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, pp. 171-173. 692 Idem, p. 173. 693 SILVA, Markus Figueira. Epicuro: sabedoria e jardim. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Natal, RN: UFRN, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2003, p. 74. 694 Idem, p. 75. 695 Idem, p. 74.

Page 252: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

252

moduladores da conduta”.696 A ataraxía designa o equilíbrio, a tranquilidade da alma,

a imperturbabilidade. Trata-se de um estado de alma livre dos valores não naturais e

desnecessários. Nesta direção, a ataraxía é “a máxima expressão da phrônesis,

enquanto sabedoria de agir a partir de si mesmo”.697 Por fim, a autárkeia é o

fundamento do éthos do sophós, e implica na “independência”, na autossuficiência.

É necessária uma ação pautada na phrônesis e no logismós para que ela se ajuste à

autárkeia. Estes três conceitos “definem a possibilidade de ponderação, de se

estabelecer uma medida para o agir e, através do exercício da autárkeia, o sophós

define por si mesmo o bastante para a realização dos seus desejos naturais e

necessários”.698

José Américo Pessanha afirma que, para compreender a ética epicurista,

faz-se necessário diferenciar o “verdadeiro prazer”, que é estável, dos prazeres que

resultam “em pesares ou partem de carências, movendo-se entre insatisfações”.699

O primeiro é um “prazer em repouso” (voluptas in stabilitate) e o segundo um “prazer

em movimento” (voluptas in motu).700 O prazer verdadeiro, meta dos epicuristas, não

consiste em satisfazer uma necessidade, mas sim eliminá-la, preceito que permite a

efetivação da ataraxía. Uma persona prudente deveria atender somente aos desejos

naturais e necessários, atingindo a ausência de dor (indolentia) e evitando a

impulsividade instintiva. Nestes termos, o sábio epicurista é “um asceta que utiliza a

compreensão racional do mundo e da vida para racionar os próprios desejos”.701

Para Epicuro, a “direção da vida moral é exercida pela razão, pelo

raciocínio e não pelos prazeres”. A phrônesis, no caso, “é aquela que governa os

prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que não podem

ser praticados”.702 Isto indica uma forte influência da doutrina socrática, que “reduzia

todas as virtudes à prudência, e esta à ciência ou sabedoria”.703 Epicuro afirma:

696 Idem, p. 76. 697 Idem, p. 81. 698 Idem, p. 86. 699 PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 104. 700 Idem, pp. 104-105. 701 Idem, p. 106. 702 FERREIRA, Anderson D’Arc. “A raiz etimológica da virtude da prudência em Santo Tomás de Aquino”. In: Dissertatio – Revista de Filosofia. Universidade Federal de Pelotas (UFPel), número 01, 2000, p. 155. 703 Idem, p. 154.

Page 253: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

253

O princípio e o maior bem é a prudência, da qual nascem todas as outras virtudes; ela nos ensina que não é possível viver agradavelmente sem sabedoria, beleza, e justiça, nem possuir sabedoria, beleza e justiça sem doçura. As virtudes encontram-se por sua natureza ligadas à vida feliz, e a vida feliz é inseparável delas.704

A ética epicurista valoriza o tempo, o acúmulo de experiência, o passado,

a memória e, consequentemente, a velhice. O bem passado “é jamais perdido: a

memória se incumbe de mantê-lo vivo e fazê-lo, com toda força, outra vez

presente”.705 O desvio no tempo, “na direção do passado (memória) ou do futuro

(esperança), permite a alegria em meio à adversidade”.706 O sábio, portanto, deve

exercer pleno domínio sobre imagens, sensações e desejos, pleiteando condições

de vida adequadas e cogitando a possibilidade de buscar, através da memória e/ou

da previsão, elementos que orientam a reta razão sempre em conformidade com a

natureza. A prudência é a virtude por excelência, o “bem supremo” a partir do qual

as outras virtudes se originam.707 Neste aspecto em particular, estoicos e epicuristas

entram em acordo.

Em vários de seus escritos, Cícero tece um conjunto de críticas a Epicuro,

acusando-o de ser responsável por uma doutrina na qual “o prazer sempre merece

ser buscado por si mesmo, pelo fato mesmo de ser prazer”.708 O autor afirma que

Epicuro, “que de filósofo só tinha a máscara”, apresenta um julgamento que não

difere “do instinto dos animais”. Cícero finaliza: “nada de nobre, grandioso e divino

está ao alcance de quem rebaixa de tal modo os seus pensamentos a um assunto

tão vil e desprezível”.709 Nas obras A virtude e a felicidade e Da amizade, Cícero

demonstra simpatia pela filosofia estoica ao considerar, por exemplo, que a paixão é

um “desregramento da nossa razão”710 e que a vida feliz é o “quinhão de uma alma

tranquila, na qual não irrompe nenhum desses movimentos impetuosos que

704 EPICURO. Antologia de textos de Epicuro. In: Os Pensadores, vol. V, tradução e notas de Agostinho da Silva. São Paulo, 1973, p. 27. 705 PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 109. 706 Idem, pp. 109-110. 707 Ver: EPICURO. Máximas Principais. Tradução, introdução e notas de João Quartim de Moraes. São Paulo: Edições Loyola, 2010, pp. 21-23. 708 CÍCERO, Marco Túlio. A virtude e a felicidade. Tradução de Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 87. 709 CÍCERO, Marco Túlio. Da amizade. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 44. 710 CÍCERO, Marco Túlio. A virtude e a felicidade. Tradução de Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 43.

Page 254: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

254

desordenam a razão”.711 A virtude, que deveria levar o homem a seguir a razão e a

ordem da natureza, divide-se em quatro partes na filosofia ciceroniana: prudência,

justiça, constância e temperança. A primeira, que mais nos interessa neste trabalho,

é definida como “o conhecimento daquilo que é bom, daquilo que é mau e daquilo

que não é nem bom e nem mau”.712

Para Cícero, o “homem eloquente deve cultivar uma gama de virtudes

morais sem as quais sua oratória é vazia; em contrapartida, suas qualidades morais

não têm utilidade para a cidade se não forem acompanhadas de eloquência”.713 A

retórica, para ele, não deve ser pensada à revelia da filosofia, pois um sábio apenas

é capaz de instruir, mover e deleitar se unir ratio e oratio. Interessante notar que a

melhor forma de vida, para Cícero, é a vida pública. Para a doutrina epicurista, ao

contrário, o homem deve voltar-se para interior, evitando sempre que possível

participar dos assuntos políticos ligados à cidade. Não há felicidade na política,

ensina Epicuro. Alcançar o bem, neste caso, é um empreendimento exclusivamente

ético, pois implica na priorização da serenidade espiritual, impossível de ser

conquistada diante dos tormentos da pólis.714 Sabe-se que os escritos de Cícero

foram muito importantes entre os humanistas, sobretudo por estimular o

aperfeiçoamento ético, filosófico e político através do par sabedoria/eloquência.715

Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), por sua vez, afirma que a seita de Epicuro “tem

má reputação, é difamada, mas sem razão”.716 Ela é comumente criticada por eleger

o prazer como requisito para a felicidade. No entanto, como vimos anteriormente, o

“prazer” do qual fala Epicuro é específico. Sêneca afirma que “os preceitos de

Epicuro são veneráveis e retos”, pois o “prazer é reduzido a proporções mínimas e

exíguas”.717 Muitos, no entanto, buscam em seus escritos “patrocínio e pretexto para

suas paixões carnais”.718

711 Idem, p. 18. 712 YATES, Frances Amelia. A arte da memória. Tradução de Flavia Bancher. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2007, p. 39. 713 ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 126. 714 Ver: PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 93. 715 Ver: ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, pp. 130-143. 716 SÊNECA, Lúcio Aneu. Da vida feliz. Tradução de João Carlos Cabral Mendonça. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 34. 717 Idem, p. 33. 718 Idem, p. 32.

Page 255: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

255

Na sequência, Sêneca aconselha o leitor: “que sua confiança não seja

desprovida de prudência, nem sua prudência destituída de firmeza”.719 A felicidade,

para Sêneca, pertence àquele que possui juízo reto e, em decorrência disso, “confia

à razão todas as situações da sua vida”.720 Nossa guia deve ser a natureza: “a razão

a observa e consulta”. A virtude, em consonância com a natureza e com a razão,

“aguça os ouvidos”, pesa os prazeres antes de admiti-los e “não dá valor aos que

aprovou; é verdade que os admite, porém se alegra não em usar deles, mas em

moderá-los”.721 Apesar de simpatizar com alguns escritos de Epicuro, Sêneca

reafirma constantemente sua afinidade com o estoicismo. Na esteira de Cícero, ele

destaca a importância da participação do homem na vida pública. De acordo com

Norberto Luiz Guarinello, esta dimensão política muitas vezes é negligenciada pela

historiografia, que costuma focalizar o caráter individualizante do estoicismo romano

sem matizar que parte significativa da elite política romana recorria à ética dos

estoicos para unificar, no universo das relações humanas, a vida privada e a

existência pública. Foi Sêneca, afinal, que atribuiu a Nero a imagem do rei-filósofo,

que “ocupa entre os homens, como coletividade, a posição que a razão ocupa no

homem como indivíduo”.722

Convém retomar, após esta breve digressão com Sêneca, uma passagem

do livro Da amizade na qual Cícero elogia Quinto Múcio Cévola. O autor afirma:

quando Cévola “argumentava prudentemente ou emitia sentenças breves e

eloquentes, eu memorizava com cuidado suas palavras e tratava de tornar-me mais

douto graças à sua prudência”.723 Esta passagem, que integra o preâmbulo da obra,

destaca a centralidade da prudência, ressalta a importância das sentenças

provenientes de homens experimentados e valoriza a memória. Para Cícero, a

prudência se divide em três partes: memória, inteligência e providência. Ela se

encontra associada necessariamente à deliberação e à eloquência. Felipe Charbel

afirma que, para Cícero, o aprendizado da prudência, que depende sobremaneira da

eloquencia e do conhecimento prático, “se dá pela observação atenta e respeitosa

719 Idem, p. 21. 720 Idem, p. 16. 721 Idem, p. 26. 722 GUARINELLO, Norberto Luiz. Nero, o estoicismo e a historiografia romana. In: Boletim do CPA. Campinas, n° 1, 1996. Site: http://antiguidadeonline.org/index.php/antiguidade/article/view/50/49. Acesso: setembro/2011. 723 CÍCERO, Marco Túlio. Da amizade. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 4.

Page 256: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

256

dos grandes homens do presente e leitura sobre os grandes homens do passado”.724

Logo, esta virtude designa uma disposição intelectual “capaz de articular o

entendimento do passado, a visão do presente e a antevisão do futuro, de modo a

possibilitar a urdidura de juízos honestos, desejáveis por si mesmos e em acordo

com a virtude e suas partes”.725

Tomás de Aquino também busca entender o conceito de prudência. Em

2005, Jean Lauand editou um tomo da Suma Teológica no qual o teólogo, em

diálogo com Aristóteles, discorre sobre o conceito em questão. Ele define esta

virtude como recta ratio agibilium (reta razão aplicada ao agir), uma forma de razão

prática que leva o homem a priorizar o bem comum em detrimento de suas vontades

particulares.726 Esta premissa afina-se aos dizeres de Aristóteles quando, em sua

Ética a Nicômaco, afirma que a sensatez é a capacidade de agir com prudência

(phrônesis) e temperança (sofrosyne), o que implica levar em consideração o bem

estar geral.727 A valorização do bem comum, conceito que integra a matriz das

reflexões de Aquino sobre a prudência, implica o abandono das vaidades, dos laços

profanos e iníquos, e a total devoção ao corpo místico da Igreja que, em tese,

deveria ser regido organicamente, de modo a unir todos os seus

agregados/subordinados em torno de protocolos inteiramente cristãos. Tal como o

corpo humano, que deve manter seus membros em harmonia para não haver

prejuízos no seu funcionamento, também a Igreja deveria unir os fiéis e expurgar ou

expulsar os contrários. Pode parecer contraditório, mas o livre-arbítrio, neste caso,

deve servir à subordinação voluntária do sujeito à conformidade do bem estar

humano.

Neste sentido, é preciso que a aproximação entre Aristóteles e Aquino

não obscureça algumas reservas a serem feitas, pois o primeiro escreve sobre um

modelo de ação voltado para a relativa suficiência do homem. A prudência em

Aristóteles seria uma virtude intelectual que possibilitaria a orientação das ações

humanas tendo em vista o seu teor incerto e, na maioria das vezes, imprevisível.

Tomás de Aquino, por sua vez, afirma que a prudência é parte de um modelo de 724 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 63. 725 Idem, p. 62. 726 Ver: TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 156-171. 727 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro VI, V, pp. 132-134.

Page 257: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

257

conduta inteiramente afinado à vontade da Providência. Este modelo reproduz os

desígnios divinos ainda que pautado nas limitações humanas, tratando-se, portanto,

de um atributo que se situa entre a virtude intelectual e a virtude moral. Embora

ambos concordem com a definição da prudência como “reta razão aplicada ao agir”,

é preciso quebrar com a noção anacrônica segundo a qual Tomás de Aquino

adequa-se inteiramente à doutrina aristotélica. Caso contrário, ele haveria de negar

a própria doutrina cristã, à qual se agarrou com tanto fervor.728

Em sua tese de doutoramento, Felipe Charbel Teixeira questiona o

conceito de prudência em Maquiavel (1469-1527) e em Guicciardini (1483-1540),

afirmando que, na acepção de ambos os florentinos, esta virtude remonta a uma

“reta razão”, ainda que sob novas vestes. No caso, a prudência traduz-se em uma

maneira de lidar com o contingencial, com o incerto. Daí a metáfora que Teixeira faz

alusão no título de sua tese: “timoneiros”, tópica que remonta à arte da navegação.

Um bom navegante deveria ter bom juízo e ser capaz de examinar as

transformações e sutilezas das coisas humanas e antever os acidentes. Convém

lembrar, com Hansen, que Platão e os estoicos gregos “sistematizaram a alegoria do

piloto que conduz o navio a um porto seguro através do mar tempestuoso, para

significar o bom governante que conduz a cidade com segurança através das

dificuldades políticas”.729

A tomar pelos escritos de Maquiavel e Guicciardini, Teixeira destaca a

possibilidade de conjugação entre o cálculo preciso e a boa administração das

práticas letradas, que delineiam retoricamente categorias comuns e necessárias à

preservação de um padrão de prudência. Em outras palavras, ser prudente implica

poder estimar, conforme as circunstâncias e ocasiões, as possibilidades de agir com

precisão e sucesso, sem esquecer ou desvalorizar as práticas letradas e os

argumentos de outrora. Trata-se não mais da phrônesis aristotélica, tampouco da

prudentia tomista, mas de um novo padrão de retidão: “uma prudenzia distanciada

728 É necessário dizer que o aristotelismo, em seu início, se mostrou incompatível com a noção da verdade revelada, ou do Deus-criador, próprias do cristianismo. Tomás de Aquino não segue à risca as premissas aristotélicas, mas promove uma releitura das mesmas, o que serve para se pensar os escritos posteriores. É provável que boa parte da doutrina de Santo Tomás de Aquino tenha vínculos, também, com o pensamento platônico, o que nos leva a rever o anacronismo que atribui a Agostinho uma veia platônica, e a Tomás de Aquino uma postura puramente aristotélica. Sugerimos a leitura de: KOYRÉ, Alexandre. “Aristotelismo e Platonismo na Filosofia da Idade Média”. In: Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 22-45. 729 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 181.

Page 258: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

258

do quadro das virtudes cardeais e dos imperativos éticos que a atrelavam à justiça e

às demais virtudes morais”.730

Este atributo passa a ser concebido, então, como “disposição calculativa

retoricamente vinculada ao decoro letrado dos gêneros discursivos e à produção de

efeitos persuasivos”.731 Para Teixeira, portanto, a prudência em ambos os autores

que estuda não deixa, em absoluto, de ser uma recta ratio. O que se modifica,

assevera, é o que se concebe como “reta razão”, uma vez que Maquiavel e

Guicciardini se distanciam da filosofia segundo a qual esta retidão associa-se a um

imperativo ético de justiça.732 Desta forma, ambos se aproximam da filosofia

aristotélica ao conceber a prudência como uma disposição prática, distanciando-se,

por outro lado, de Cícero, que considera a interdependência entre prudência e

justiça. Aproximam-se de Cícero, no entanto, ao atribuírem à prudência um caráter

de predição associada, sobretudo, aos assuntos políticos. Há, neste aspecto, uma

releitura das três dimensões da prudência ciceroniana: memória – releitura do

passado – inteligência – compreensão do presente – e previsão – antecipação das

ocorrências vindouras.

Ao menos no caso de Maquiavel, podemos afirmar que o homem

prudente recorre necessariamente a modelos dignos de imitação e, neste sentido,

talvez haja outra possibilidade de proximidade com Aristóteles que, por sua vez,

julga a necessidade de existir o phronimos para, então, se prescrever e delimitar um

padrão de phronêsis. Além de se certificar da inconstância da natureza humana,

Maquiavel assegura que o passado se repete insistentemente no futuro, com

algumas variações relativas à contingência dos assuntos humanos. Por esta razão, a

imitação dos bons exemplos possibilitaria o cálculo mais ou menos certeiro e a

previsão de ocorrências futuras. Apesar de não chegar a ser um antídoto preciso

contra a fortuna, a prudência é, ao menos, um paliativo que confere ao homem certa

segurança, tornando-o menos vulnerável aos caprichos do acaso. Assim, Maquiavel

adverte que o homem que não possui virtù pode aparentar tê-la, bastando repetir os

730 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 17. 731 Idem, ibidem. 732 Idem, p. 82.

Page 259: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

259

passos de um arqueiro prudente que, ajustando a mira do arco, pode vencer os

vários obstáculos dispostos entre o ponto de disparo e o alvo.733

Guicciardini não entendia a “imitação” superficial dos antigos como uma

solução e, por isso, não apreendia a virtù como algo estável, muito pelo contrário:

ele via a corrupção e a decadência como dados inevitáveis, ainda que passíveis de

atenuação. Esta atenuação era devida especialmente à intervenção de homens

prudentes, dotados de rapidez e de meios adequados para antecipar as ações e

resoluções dos principais agentes políticos.734 Para este autor, o homem prudente

deve ser perspicaz, unindo a “prudência natural” que lhe é comum à experiência,

sem desconsiderar o papel da “educação retórica”. Tal homem é reconhecido pela

sua flexibilidade e pela capacidade de adaptação perante as “coisas do mundo”,

sejam elas acidentais – atreladas à fortuna – ou substanciais – e, portanto,

imutáveis. Não é o caso de Guicciardini desvalorizar os escritos antigos, mas de

considerá-los tal como Maquiavel, valendo-se de um juízo reto que não abdique as

circunstâncias históricas do presente.

Uma das diferenças fundamentais entre a prudentia tomista e a prudenzia

em Maquiavel é, portanto, a forma de se conceber a verdade: em Aquino, a verdade

é inflexível, natural, porque associado à sinderesis; em Maquiavel, a verità effetualle

é provisória e retórica. Esta última nos remete aos bons efeitos retóricos a serem

causados em um auditório de homens prudentes.735 Este detalhe, dentre outros,

demonstra a pertinência da associação entre prudência e retórica, que se ampara,

sobretudo, no domínio do provável. Sobre a sinderesis, por outro lado, Baltasar

Gracián (1601-1658), em seu tratado sobre a prudência, afirma que se trata “do

trono da razão, da base da prudência”, uma “inclinação conatural a tudo o que mais

se conforma à razão”. É, por fim, uma “dádiva do céu”, o que pressupõe o caráter

inflexível e natural que lhe é comum.736

733 A metáfora do arqueiro pode ser encontrada em: MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe: comentários de Napoleão Bonaparte. São Paulo: Hemus, 1996, capítulo VI, p. 66. 734 Ver: TEIXEIRA, Felipe Charbel. “O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método prudencial de análise da política”. In: Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 50, n. 2, 2007, pp. 325-349. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/218/21850204.pdf. Acesso em: abril/2011. 735 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, pp. 84-90. 736 GRACIÁN, Baltasar. A Arte da Prudência. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 1998, aforismo 96, p. 60.

Page 260: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

260

Michel Senellart afirma que há uma questão contextual que distancia o

conceito maquiavélico de prudência da categoria anteriormente utilizada por Tomás

de Aquino. Antes da invasão francesa de 1494, que arrancou a Itália de seu relativo

isolamento, os florentinos acreditavam na possibilidade de controlar os

acontecimentos através da razão. Um sucesso, no caso, para se tornar duradouro,

deveria ser alcançado através de um caminho de moderação, definido através do

cálculo racional. A virtus, neste caso, permitia dispor favoravelmente a fortuna. A

partir da invasão e das ocorrências posteriores a ela, a força se tornou um fator

decisivo, e os florentinos vivenciaram “a passagem súbita de um mundo ordenado,

regido pela Providência, a um mundo de violência, atravessado por forças aleatórias

e ameaçadoras”.737

Senellart fala de uma tripla transformação, em Maquiavel, das relações

entre virtus e fortuna: a princípio, uma “relação agonística”, e não mais estática: “não

basta mais ser homem de bem, virtuosus, para merecer os favores da fortuna”. É

preciso “combatê-la, por um esforço de cada instante”.738 A segunda transformação

determina a “passagem do conceito ético-político de virtus ao de virtù, carregado de

conotações guerreiras”. Esta passagem “atesta que a realidade não é mais

percebida como o espaço harmonioso onde se manifestam as perfeições singulares,

mas como o palco de uma batalha permanente”.739 A virtù “não designa mais uma

forma superior de qualificação ética, mas a atitude criativa, própria do homem de

Estado, contrária à passividade dos súditos”.740 Enfim, a terceira e última

transformação: “sendo a conservação do stato o fim da virtù, não implica mais o

emprego de qualidades constantes, mas uma extrema mobilidade de espírito”.741

Logo, não “há norma universal da virtù, porque seu domínio é aquele, instável, em

perpétua mutação, das coisas submetidas ao movimento do tempo”.742 O conceito

de prudência, em Maquiavel, parece acompanhar estas mudanças operadas em seu

pensamento, na medida em que ela precisa se adequar à virtù principesca.

As ações de Vasco da Gama muitas vezes reforçam a hierarquia política

e, portanto, as ambições de seu rei. Mas seria lícito dizer que o éthos de Gama é

737 SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 239. 738 Idem, p. 240. 739 Idem, ibidem. 740 Idem, ibidem. 741 Idem, ibidem. 742 Idem, p. 241.

Page 261: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

261

absolutamente pautado na virtude da prudência? Se seguirmos os passos de Hélio

Alves, a resposta a esta questão seria negativa. Para ele, há um desajuste entre o

retrato do protagonista pintado n’Os Lusíadas e as descrições do mesmo presentes

nas crônicas históricas, que consideram Gama um homem prudente e sábio. No

caso da epopeia, estariam ausentes os qualificativos necessários para a

configuração de um heroi que, pelo contrário, chega mesmo a reproduzir certas

ações viciosas. Dentre as imprudências que Hélio Alves encontra espalhadas pelo

poema, destaca-se a falta de tato diplomático do capitão, descuidado a ponto de

maldizer os turcos (com quem os povos de Moçambique mantinham relações

amigáveis) e contradizer a crença do xeque. Assim, o ódio dos mouros seria devido

não ao Cristianismo, mas à maneira como o capitão-mor se manifestou frente a eles.

O poeta, portanto, teria desconstruído o caráter e a conduta do heroi, esvaziados da

prudência que cronistas como Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros lhe

quiseram atribuir. A ingenuidade de Gama se faz presente em outros momentos,

como no episódio em que aceitou, sem hesitar, o piloto enviado pelo xeque de

Moçambique. Parecia faltar a Gama, no caso, a capacidade preventiva. Muitas de

suas faltas, no entanto, acabaram sendo compensadas pela intervenção dos deuses

mitológicos, como Vênus e sua equipe. Embora o poeta lhe atribua qualidades, as

ações do protagonista, segundo Alves, não corresponderiam às virtudes que

Camões valorizava. Seria o caso do episódio em que o capitão engana o Samorim,

ao dizer que as pretensões do rei português seria travar amizade e acordos

comerciais. Tratar-se-ia, portanto, de falsas promessas, como fica claro ao longo do

poema. É como se o capitão não pudesse emular as virtudes que o poeta tanto

valorizava.743

Para alegar a falta de prudência demonstrada no modo como Vasco da

Gama conduziu suas ações, Hélio Alves disse que mesmo uma conduta condenável

pode reforçar um éthos prudente, pela inversão. Por outras palavras, com a

denúncia de um falso herói, poder-se-ia reforçar o padrão ético encomiado pelo

aedo. A prudência que faltou a Gama, a Sepúlveda, a muitos dos navegantes que

experienciaram um naufrágio, não deixaria de reforçar uma determinada retórica

prudencial.

743 Ver: ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, pp. 449-511.

Page 262: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

262

Se há desajuste entre os dizeres e a conduta de Gama, de fato falta-lhe

prudência em algumas passagens, tendo em vista que este conceito insinua a

aplicação da reta razão ao agir. Mas falar de um “falso herói” seria, contudo,

exagero. Se os deuses mitológicos intervêm para sanar as falhas do protagonista,

isto decorre do papel nuclear exercido por Deus, que utiliza Gama como seu arauto.

Camões precisou incorporar o sentido providencial da história não apenas para

justificar o uso do maquinário mitológico, mas também para retratar os limites do

homem português. A experiência singular da empresa ultramarina não pressupõe a

“restauração” do cosmos, prioridade esta dos heróis antigos. O campo de

experiências, no caso da viagem de Vasco da Gama, não daria conta das ações por

ela inauguradas. Não se trata, portanto, de restaurar uma ordem perdida, mas de

trilhar um caminho novo contando com o amparo divino.

A conduta de Gama não é impecável, mas sua subserviência à vontade

providencial, refletida na virtude da caridade, assegura seu amparo e o posterior

sucesso da empresa. Isto porque ele é um dentre os vários instrumentos que Deus

mobiliza para obrar em Seu nome. Mas isto não quer dizer que a prudência não seja

requerida, sobretudo em se tratando das viagens ultramarinas.

Os relatos de naufrágio também indicam alguns caminhos prudentes que

poderiam impedir incidentes marítimos. De acordo com Manuel Severim de Faria, o

que mais causava naufrágios era o tamanho da nau e o concerto mal feito com uso

inadequado da querena. Na época de D. Manuel, diz ele, as naus não

ultrapassavam 400 toneladas. No reinado de D. João, as naus atingiram 800, 900

toneladas, tudo para atender ao comércio. Poupar em não colocar outros vasos

(navios ou galés) e transportar mais pimenta, que pareciam duas vantagens, acabou

se mostrando desvantagens: a quantidade muito grande de pessoas (700, 800

homens) acentuava a disseminação de doenças, ocasionando um grande número

de baixas. Em segundo lugar, o grande número de pessoas estimulava a

sobrecarga, entulhando caixas e outros bens diversos. Faria fala particularmente dos

anos de 1591 e 1592, em que partiram 22 embarcações do reino, e apenas duas

voltaram, isto porque estas eram mais frágeis e vieram com pouco carregamento. De

acordo com o autor, houve um crescente endividamento no reinado de D. João, e D.

Sebastião busca remediar a situação, imprimindo um regimento em 1570, que

limitava a tonelagem das naus em 450. No reinado de D. Felippe que, talvez por

ironia, foi chamado de o prudente, mais uma vez as naus são ampliadas. Como os

Page 263: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

263

custos eram exorbitantes em termos de manutenção, resolveram utilizar a querena

italiana, que não era conveniente às naus da Carreira da Índia. De três naus que

partiam, afirma Faria, raramente chegavam duas, havendo um agravamento dos

naufrágios. O superficial concerto das naus, com a querena italiana, é outro fator

agravante. Ele menciona o caso da relação de naufrágio da nau S. Alberto, atribuída

a João Batista Lavanha, e afirma que as naus pequenas são mais ágeis,

recepcionam melhor os ventos, se mostram mais eficazes em situações de peleja,

pedem menos fundo, ao contrário das naus maiores, e não se conforma com a

cobiça dos marinheiros portugueses, que excedem a carga e não se atentam para a

disposição dela.744

De acordo com João Batista Lavanha, as tormentas do cabo da Boa

Esperança não causaram o naufrágio da nau Santo Alberto, mas sim a querena (ou

carena, parte do navio que fica abaixo do nível da água) e a sobrecarga, resultado

da “cobiça dos contratadores e navegantes”:

Os contratadores, porque como seja de muito menos gasto dar querena a uma nau que tirá-la a monte, folgam muito com a invenção italiana, a qual posto que serve para aquele mar de levante a cujas tormentas e tempestades podem parar galés e onde cada oito dias se toma porto, neste nosso oceano é o seu uso uma das causas da perdição das naus, porque além de se apodrecerem as madeiras (posto que sejam colhidas em sua sazão) com a contínua estância no mar, e desencadernarem-se com as voltas da querena e grande peso de tamanhas carracas, calafetando-as por este modo recebem mal a estopa, por estarem úmidas e pouco enxutas; e quando depois, navegando, são abaladas de grandes marés e combatidas de rijos ventos, despedem-na, e abertas dão entrada à água, que as soçobra. E assim tem mostrado a experiência que quando esta danosa invenção se não usava fazia uma nau dez ou doze viagens à Índia, e agora com ela não faz duas.745

Os artífices podem, também, ser negligentes na construção e no reparo

das naus:

Acrescentam este dano os oficiais que as fazem ou consertam de empreitada (que em toda a fábrica é prejudicial), os quais, por apoupar em o tempo (já que não podem as matérias), não acabam cousa alguma como convém e se requer em obra de tanta importância, e assim deixam tudo imperfeito; e descobrindo na nau velha eivas e faltas que se remendaram bem sem perda sua, dissimulam com elas e enfeitam o dano de maneira

744 Ver: FARIA, Manuel Severim de. Notícias de Portugal. Lisboa: Officina Craesbeeckiana, 1655, pp. 241-246. 745 HTM, pp. 379-380.

Page 264: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

264

que pareça bem consertado, e debaixo dele fica a perdição escondida e certa.746

A negligência em relação à madeira é outro fator que poderia provocar a

perdição das naus portuguesas:

Cortam-se também as madeiras fora de seu tempo e sazão, a qual é na Lua minguante de janeiro, pelo que são pesadas, verdes e dessazonadas, como tais torcem, encolhem e fendem, e desencaixam-se do seu lugar, com que, despedindo a pregadora e estopa, abrem, e com a umidade da água de fora e grande quentura da pimenta e drogas de dentro, logo se apodrecem e corrompem na primeira viagem; e assim basta uma só tábua colhida sem vez para causar a perdição de uma nau. Tal devia ser a madeira desta, pois a sua quilha (base e fundamento de todas as naus) era tão podre que depois que a fúria dos mares arrancou o seu fundo donde estava e deu com ele à costa (com algumas peças de artilharia que nele ficaram) com uma cana de bengala a desfez Nuno Velho Pereira em pequenos pedaços.747

Os navegantes não são menos culpados, diz Lavanha,

importando-lhes mais, pois aventuram as vidas na nau, a qual carregam sem a necessária distribuição das mercadorias, arrumando as leves na parte inferior e as pesadas na superior, devendo ser ao contrário. E por enriquecerem brevemente, de tal maneira a sobrecarregam que passam a devida proporção da carga da nau, a qual excedida, é forçado que fique incapaz de governo, e que precedendo qualquer das cousas apontadas abra e se vá a pique ao fundo. E é esta tão forçosa que sem ela quase não bastam as outras a perderem uma nau, e esta sem elas sim, mostrando a experiência que algumas naus velhas, remendadas e consertadas com querena, vêm da Índia, porque não trazem nem a carga com que podem, e as novas com a sobrecarga se perdem.748

Em suma, a cobiça pode causar a perdição da nau: por intermédio dos

contratadores, que para poupar gastos recorrem à querena italiana, inapropriada à

navegação portuguesa, por intermédio dos artífices, que, na construção e conserto

das naus, cortam a madeira em tempo inapropriado ou remendam superficialmente

as rachaduras, e por intermédio dos próprios navegantes, que sobrecarregam a nau

e/ou distribuem a carga de maneira indevida.

João Batista Lavanha escreve alguns textos sobre arquitetura naval, na

tentativa de orientar os arquitetos através de uma arte criada a partir da “grosseira

prática dos fabricantes de navios”, enumerando e discorrendo sobre preceitos que

pudessem orientar a construção das naus. Vários conhecimentos são requisitados:

746 Idem, p. 380. 747 Idem, ibidem. 748 Idem, ibidem.

Page 265: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

265

sabedoria, prudência, habilidade e competência discursiva. Além disso, é preciso

entender de astronomia, para que o corte da madeira respeite às influências do céu,

aritmética, para calcular os gastos e utilizar os recursos necessários, geometria, para

a projeção e a construção das partes da nau, mecânica, para a criação de máquinas

e aparelhos necessários à navegação. Há, pelo menos, quatro etapas da construção

de uma nau: inicialmente, o navio toma forma na imaginação. Esta forma é

aperfeiçoada pelo entendimento e transposta para a planta, através da qual se

emenda as falhas da imaginação. Não basta saber as medidas, é preciso também

construir um modelo, que possa servir de exemplo para as construções. De acordo

com Lavanha, engana-se aquele que acredita poder construir uma nau somente

através das medidas.

As melhores madeiras, afirma Lavanha, provém da teca e do angelim,

naturais da costa do Malabar. Em Portugal, deve-se priorizar o azinho e o sobro.

Convém que a madeira seja rija, para resistir ao ímpeto do mar, enxuta, para não

apodrecer, de sumo amargo e resinento, para evitar o busano (molusco que ataca a

madeira não apenas das naus, mas também dos cais e embarcadouros), e brandas,

para não estalarem depois de lavradas. Além disso, é preciso observar os sinais da

natureza: as folhas e frutos muito comunicam sobre o interior das árvores, sua

natureza. Por isso convém as árvores de casca áspera, folhas crespas e fruto duro,

pois oferecem uma madeira densa e forte. Melhor as árvores que crescem devagar,

pois são mais fortes. O corte no momento certo: depois que dão fruto, e a

observância da lua, deve cortar nas minguantes da lua dos dois meses mais

chegados ao princípio do inverno, dezembro e janeiro. Isto porque acreditava-se que

a lua tenha a umidade por qualidade, e que sua maior proximidade com a terra

acarretava o levantamento de vapores úmidos, umedecendo e amolecendo os

corpos a ela sujeitos.749

Melchior Estácio do Amaral também discorre sobre os cuidados que se

deve ter em relação à madeira:

A felicidade desta carreira, mediante Deus, está em as naus não serem feitas de madeira verde, senão muito seca e colhida na lua velha de janeiro, no último da minguante e na minguante de dia, porque é verdadeira sezão de ser cortada (como as uvas vindimadas em setembro); tem então a madeira madurez, tem menos humor, é leve, seca mais depressa, dura

749 Ver: MICELI, Paulo. O ponto onde estamos: viagens e viajantes na história da expansão e da conquista (Portugal, século XV e XVI). 4ª ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008, pp. 59-65.

Page 266: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

266

mais, e não revê nem empena; e não só as naus de tal madeira serão mais leves e mais duráveis, mas mais fortes e estanques, porque a pregadura nesta madeira colhida de vez, é fixa, e fixo o calafeto. Consiste em serem as naus varadas a monte, para que se enxuguem e não se consertem úmidas; e bom é o conserto não ser de empreitada, nem cortando, porque tudo se fará à provisão que nisto desarma, e não convém. E as naus a que não for necessário conserto é muito importante, em descarregando, serem mui bem lavadas por dentro e muito bem esgotadas, passado o lastro acima para isso, porque o lodo e as águas chocas que trazem lhes apodrecem as quilhas e picas.750

Amaral ainda menciona a impertinência da querena italiana,

que se dá a estas naus, não por melhor fim, mas por poupar parte do custo que fazem pondo-se a monte, como importa a estas nossas carracas; e às naus de Levante baste embora a querena no mar, porque a sua carga é de vidros e espelhos e o seu mar diferente do oceano, e em que cada três dias podem tomar porto; basta que é mar de gales, aonde bastam umas naus vazias como torres; e as nossas naus da Índia atravessam o mar oceano de pólo a pólo, e passam o cabo de Boa Esperança, não carregadas de vidro, senão sobrecarregadas de grandes máquinas de caixões e fardos e drogas pesadíssimos, e contendem com a fúria dos quatro elementos, e caminham cinco e seis mil léguas, com todo o sucesso do tempo; e a querena para elas é tão danosa, como se tem visto pela multidão das naus que, depois que ela se usa, se perderam na forma que logo se verá, não por desastres, como algumas das já nomeadas, mas por cobiça e pouco tento, e por se cuidar que é provisão a querena, e provisão dar-se o conserto das naus de empreitada, e que se poupa na bolsa dos contratadores. Em esta forma perde-se o Reino assim pela surda, porque a querena desencaderna toda uma nau, e é forçado calafetá-la molhada, e mal vista pela quilha e partes importantes, e a empreitada conserta-se como quer e não como deve; e a nau, para ser bem consertada, há-de ser pondo-se a monte e secando-se primeiro muito bem, porque não cuspa o calafetado, começando-se a ver pela quilha, o que não se pode fazer de querena; e em tais adereços se há-de proibir toda a empreitada e advertir com grande tento que se lhe não mete pau nem tábua, senão muito seca, enxuta e colhida de vez, qual é a lua velha de janeiro.751

Quando trata da sobrecarga, Amaral menciona várias naus (S. Lourenço,

Reis Magos, Salvador, S. Tomé, S. Francisco dos Anjos, S. Luís, Santo Alberto,

Nazaré, S. Cristóvão, S. Paulo, Nossa Senhora do Rosário) que naufragaram entre

os anos de 1585 e 1595.752 Foram 38 naus perdidas num espaço de 20 anos (1582-

1602). Algumas por desastres, outras devido à cobiça decorrente da sobrecarga.

Apontam-se duas grandes causas: partida tardia de Lisboa, causa da arribada, e

partida sobrecarregada da Índia, causa de perdição (ambas são remediáveis, alerta

Amaral).753

750 HTM, pp. 542-543. 751 Idem, p. 540. 752 Idem, pp. 540-541. 753 Idem, p. 542.

Page 267: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

267

Além disso, é preciso preocupar-se com a data de partida, tanto de

Lisboa, quanto da Índia:

O verdadeiro partir de Lisboa há-de ser antes que o Sol passe a Equinocial [preferencialmente, em março]; bem de experiência há disso; e porque isto se não previne a tempo, arribam tantas naus, como arribaram no ano de 1601, que de nove que partiram arribaram cinco; e também se arriscam a muito as naus que não partem da Índia dentro em dezembro, para passarem o cabo de Boa Esperança no verão daquele pólo em que então está o Sol.754

No caso da História Trágico-Marítima, menciona-se a partida tardia dos

galeões São João, que parte de Cochim em fevereiro de 1552, e São Bento, que

desamarra da barra de Cochim em fevereiro de 1554, e das naus Águia e Garça,

que partem de Cochim em janeiro de 1559. Embora não seja a causa fundamental

dos incidentes ocorridos com as naus Santa Maria da Barca, São Tomé e Santo

Alberto, todas elas não conseguiram partir de Cochim no mês de dezembro, por isso

não conseguiram dobrar o cabo de Boa Esperança.

A enumeração das negligências cometidas ao longo da travessia marítima

e as censuras proferidas pelo velho na praia de Restelo coadunam-se, ao que

parece, num projeto prudencial e providencial, pois valorizam a reta razão (na

mesma medida em que censuram a sua falta) enquanto caminho conveniente na

concretização da “política do céu”. Sacrificar-se, tombar em campo de batalha por

uma causa nobre, hospedar o próximo, valorizar o bem comum em detrimento das

vontades particulares, navegar com prudência pelos mares bravios, temer a Deus,

crer em Sua divina misericórdia: estas são algumas das ações associadas ao éthos

prudente e caridoso sobre as quais poetas e narradores discorreram, como forma de

deixar entrever não somente a miserável condição em que o homem poderia

encontrar-se, mas também a possibilidade de se compreender as venturas e

desventuras da expansão portuguesa nos quadros de uma história salvífica da qual

os portugueses seriam coautores.

754 Idem, ibidem.

Page 268: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

268

Considerações finais

Comprimida entre o céu e o mar, a nau muitas vezes seguia embalada

pelas ondas bravias, incentivando a grita dos navegantes. Seu corpo volumoso era

largo na proa para cortar o Oceano e estreito na popa para não perder velocidade. O

casco ovoide parecia trincar a cada pancada: a água entrava por baixo,

atravessando as feridas abertas, por cima, com a chuva que as nuvens

precipitavam, e pelas laterais, quando as ondas testavam a corpulência do navio.

Muitos dos mareantes, que sequer usufruíram das riquezas há pouco acumuladas,

retornaram à condição de miseráveis. O mar, embrulhado pela seda portuguesa e

sedento de cobiça, tomava para si as fazendas reais. Como verdadeiro glutão, ele

devorava vorazmente o velame, as escassas provisões, os corpos sôfregos da gente

do mar. Mesmo com as mercadorias alijadas, a nau seguia demasiado pesada,

vergando sobre o próprio peso: embora desnutridos, os homens carregavam consigo

seus pecados. O vozerio que clamava por misericórdia divina não ganhava altura,

pois a culpa tornou-se um contrapeso. Os relâmpagos cegavam os pobres

mareantes, mas a morte permanecia no campo de visão de todos. O encontro entre

um baixio e o flanco da nave, a inexperiência do piloto, a fortuna imprevisível, o

descumprimento do regimento, a imperícia dos artífices, o ataque corsário, a

qualidade da madeira, o atraso da viagem: são inúmeras as situações que poderiam

causar um naufrágio, mas todas elas derivavam do arbítrio humano.

No “espelho do céu” às vezes era possível contemplar, também, as

feições da prudência e da caridade. A experiência do piloto, a coragem do capitão, a

diligência dos homens, a penitência dos pecadores, a misericórdia divina: são

inúmeras as possibilidades de reverter o quadro que o parágrafo anterior pintou de

forma dramática. O homem pode ser pequeno frente às intempéries, mas não

impotente. O uso e corte da madeira adequada, a presença de uma guarnição, o

respeito ao regimento, o acatamento à hierarquia, a disposição apropriada das

fazendas, a viagem sem atraso, o conhecimento das monções, enfim, o agir movido

pela reta razão poderia revigorar a saúde da nau conferindo-lhe força para chegar a

seu destino. A intervenção benevolente das deidades mitológicas, neste caso, não

deve ser pensada como critério que invalida o heroísmo, mas como potência que o

sustenta, pois pressupõe a manifestação providencial. Sendo assim, parece

dificultoso falar de “pessimismo”, de “trauma”, de “crise” ou de “decadência”, pois as

Page 269: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

269

condutas encenadas nestas práticas letradas, sejam elas merecedoras de encômios

ou vitupérios, voltam-se para a promoção de uma retórica prudencial destinada à

orientação dos leitores/ouvintes.

Se por vezes falta prudência aos protagonistas, ela parece integrar o

éthos do poeta/narrador de forma incontestável. Se o narrador, por um lado, ajuíza

sobre a matéria da qual se ocupa e instrui/deleita a partir dela, o poeta, por outro,

“resolve” o feito na medida em que tira dele seu predicado e o apresenta de forma

verossímil. Não seria de todo imprudente supor que a trama envolvendo as

personagens auxilia na promoção da prudência deste poeta/narrador, que reúne em

si qualificativos definidores de um bom súdito. No caso, é possível distinguir um

sentido edificante na experiência “trágica”, que pressupõe perda e ganho, medo e

esperança, perdição e salvação. Todos estes pares, quando encenados histórica

e/ou poeticamente, proporcionam o desengano, o que insinua um desfecho positivo.

Desta forma, a relação entre a virtude ético-política da prudência e a

virtude teologal da caridade parece ser uma chave de compreensão da inventio dos

súditos portugueses nas práticas letradas aqui estudadas, pois supõe,

simultaneamente, a “política do céu” e a “política das obras”, isto é, a presença de

Deus na história e a existência de homens capazes de obrar conforme Sua vontade.

Este é o argumento que esta tese buscou retratar. Resta ao leitor perdoar a rudeza

do traçado com benevolência, preencher as lacunas com discrição e corrigir as

imprecisões com prudência.

Page 270: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

270

Fontes ACCETTO, T. Da dissimulação honesta. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Editora Landmark, 2005. ALIGHIERI, D. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010. AMARAL, Melchior Estácio do. Tratado de batalhas. Lisboa: Oficina de António Álvarez, 1604. ANCHIETA, José de. De Gestis Mendi de Saa - Poema épico. Introdução, versão e notas do Pe. Armando Cardoso. São Paulo: Edições Loyola, 1986. ARIOSTO, L. Orlando Furioso: cantos episódios. Tradução, introdução e notas de Pedro Garcez Ghirardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Edições de Ouro, 1980. ARISTÓTELES. “Arte Poética”. In: BRANDÃO, R. O. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985. ARISTÓTELES. Arte poética. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009. ARISTÓTELES. Retórica. Prefácio e introdução de Manuel Alexandre Júnior. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora “AVE MARIA”, Edição Claretiana, 1989. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. CAMÕES, L. Os Lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008. CAMÕES, L. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisseia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005. CASTIGLIONE, B. O cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997. [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005. CORTE-REAL, Jerônimo. Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau

Page 271: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

271

chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. E a peregrinação que tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Lisboa: Typografia Rollandiana, 1783. ÉSQUILO. Prometeu Agrilhoado. In: Teatro completo. Lisboa: Estampa, 1975. FARIA, Manuel Severim de. Notícias de Portugal. Lisboa: Officina Craesbeeckiana, 1655. GONZAGA, Tomás Antônio. A Conceição: O Naufrágio do Marialva. Transcrição, introdução e notas de Ronald Polito de Oliveira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. HESÍODO. Os trabalhos e os dias (primeira parte). Tradução de Mary de Carmo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1996.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de José Antonio Alves Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006.

HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Tradução de Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2010. HOMERO. Ilíada (em versos). Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

HOMERO. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s/d].

HOMERO. Odisséia. Tradução, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010. LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009. NABUCO, J. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistico. 1872. PILOTO, Afonso Luís. Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho. Lisboa: Oficina de António Álvarez, 1601. SÊNECA, Lúcio Aneu. Agamêmnon. Tradução, introdução, posfácio e notas de José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Globo, 2009. SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Tradução, prefácio e notas de J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. TASSO, T. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. TEIXEIRA, B. Prosopopéia, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1972. TELES, G. M. Camões e a poesia brasileira. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979.

Page 272: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

272

TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005. VIRGÍLIO. Eneida: edição bilíngue. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Organização, apresentação e notas de João Ângelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2014. VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Page 273: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

273

Referências bibliográficas AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Edições Cotovia, 2008. AGUIAR E SILVA, Vítor. Camões: Labirintos e Fascínios. Lisboa: Edições Cotovia, 1994. AGUIAR E SILVA, Vítor (coord.). Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011. ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001. AMÓRA, André Luiz Alves Caldas. Manuel de Sousa Sepúlveda: a construção e a desconstrução mítica de um grande herói trágico português. Tese (doutorado). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2011. ANDRADE, L. C. Os preceitos da memória: Manuel Severim de Faria, inventor de autoridades lusas. In: História e Perspectivas, Uberlândia, EDUFU, n. 34, 2006. AUBENQUE, P. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008. BELETTI, S. BARBOSA, F. Inês de Castro e o velho do restelo. São Paulo: LANDY, 2001. BLACKMORE, Josiah. Manifest perdiction: shipwreck narrative and the disruption of empire. Minnesota: University of Minnesota Press, 2002. BOXER, Charles R. An introduction to the História Trágico-Marítima. In: Miscelânea de estudos em honra do prof. Hernâni Cidade. Lisboa: Publicações da Faculdade de Letras, 1957, pp. 05-56. BOXER, Charles R. The Tragic History of the Sea. Minnesota: University of Minnesota Press, 2001. BUENO, Pablo Emilio Pérez-Mallaína. El hombre frente al mar: naufragios en la Carrera de Indias durante los siglos XVI y XVII. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1997. CARUSO, Pellegrino. Problemi testuali nel libro primo dei Carmina di Orazio. Dottorato. Universitá Degli Studi di Salerno, 2010. CIDADE, H. Luis de Camões: o épico. Amadora [Portugal]: Bertrand, 1975. COLLINGWOOD, R. G. A ideia de História. Tradução de Alberto Freire. Lisboa: Editorial Presença, 1981. CUSTÓDIO, Pedro Balaus. A História Trágico-Marítima: do herói ao anti-herói. Dissertação (mestrado). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992. DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008. DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

Page 274: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

274

FREITAS, Leandro César de Albuquerque. Ecos bucólicos: relações entre as Bucólicas de Virgílio e a primeira parte da Marília de Dirceu de Gonzaga. Dissertação de mestrado. João Pessoa: Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, 2008. GARCIA BERRIO, Antonio. Poética: tradição e modernidade. Tradução de Denise Radanovic Vieira. São Paulo: Littera Mundi, 1999. HANSEN, J. A. A máquina do mundo. In: NOVAES, A. (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004. HANSEN, J. A. Introdução: Notas sobre o gênero épico. In: TEIXEIRA, I. (org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. HANSEN, J. A. Letras coloniais e historiografia literária. In: Matraga: Revista do Programa de Pós Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: Ed. Caetés, nº 18, 2006. HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Organização de José Otávio Guimarães. Tradução de Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. HARTOG, F. “Primeiras figuras do historiador na Grécia: historicidade e história”. Tradução de Francisco Murari Pires. In: Revista de História. FFLCH-USP, 1999. HASEGAWA, Alexandre Pinheiro. O Epodo X de Horácio e a recusa do gênero épico. In: Cadernos de Literatura em Tradução, n. 5, pp. 77-103. JOLY, Fábio Duarte. História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007. KANTOROWICZ, E. H. Os dois corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval, São Paulo: Companhia das Letras, 1998. LANCIANI, Giulia. Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII. Portugal: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979. LANCIANI, Giulia. Os Relatos de Naufrágio: Conjunturas sobre as motivações de um género literário. In: História e Antologia da Literatura Portuguesa – século XVI. Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. LANCIANI, Giulia. Santa Maria da Barca: três testemunhos para um naufrágio. Lisboa: Imprensa Nacional, 1983. LAPA, Manuel Rodrigues. Quadros da História Trágico-Marítima. 5ª ed. Lisboa: Seara Nova, 1972.

Page 275: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

275

LIMA, D. E. A épica de Cláudio Manuel da Costa: Uma leitura do poema Vila Rica. Dissertação de mestrado, São Paulo: USP, 2007. LUZ, G. A. Carne humana: canibalismo e retórica jesuítica na América portuguesa (1549-1587). Uberlândia: EDUFU, 2006. LUZ, G. A. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013. LUZ, G. A. O canto de Proteu ou a corte na colônia em Prosopopeia (1601) de Bento Teixeira. In: Tempo, Revista do Departamento de História da UFF. Niterói-RJ: v. 25, 2008. LUZ, Guilherme Amaral. Pero de Magalhães Gandavo e a ética ultramarina portuguesa na Terra de Santa Cruz. In: História e Perspectivas. Uberlândia: Edufu, nº 32/33, pp. 67-90, 2005. MACHADO, Ronaldo Silva. História e Poesia na Poética de Aristóteles. In: MNEME (Revista de Humanidades). Departamento de História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, v. 02, n. 03, pp. 41-49, 2001. MADEIRA, Angélica. Livro dos naufrágios: ensaio sobre a História Trágico-Marítima. Brasília: UnB, 2005. MAIA, Márcia Vieira. O imaginário das viagens marítimas em narrativas portuguesas e africanas. Tese (doutorado). Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2010. MARGARIDO, Alfredo. O trabalho de luto nos relatos de naufrágio. In: Afreudite, ano IV, n. 7/8, 2008, pp. 73-83. MARTINS, João Cândido. Naufrágio de Sepúlveda: texto e intertexto. Lisboa: Editora Replicação, 1997. MARTINS, W. História da Inteligência Brasileira: Volume I (1550-1794). São Paulo: Cultrix, 1978. MATOS, M. V. L. Introdução á Poesia de Luís de Camões. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983. MEGIANI, A. P. T. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. MELLO E SOUZA, L. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, São Paulo: Companhia das Letras, 1986. MELLO E SOUZA, L. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. MICELI, Paulo. Dia-a-dia no mar: viagem e naufrágio da nau São Paulo, em 1551. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. MICELI, Paulo Celso. O desenho do Brasil no teatro do mundo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

Page 276: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

276

MICELI, Paulo. O ponto onde estamos: viagens e viajantes na história da expansão e da conquista (Portugal, século XV e XVI). 4ª ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008. MISSIO, E. Acerca do conceito de Dissimulação Honesta de Torquato Accetto. Tese de doutoramento. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 2004. MOISÉS, M. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997. MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: identidade e condição humana. Lisboa: Colibri, 2001. MONIZ, António Manuel de Andrade. O Homo Habilis na História Trágico-Marítima: as metamorfoses do engenho. In: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa: Edições Colibri, n. 15, 2003, pp. 119-137. MORAES, Hélvio. A crítica historiográfica de Francesco Patrizi nos Dez diálogos da Historia (Veneza, 1560) – Estudo e tradução comentada. Tese (doutorado). Campinas: Universidade de Campinas, 2010. MORGANTI, B. A Mitologia n’Os Lusíadas – Balanço Histórico-Crítico. Dissertação (Mestrado). São Paulo: IEL/Unicamp, 2004. MORGANTI, B. A morte de Laocoonte e o Gigante Adamastor: a écfrase em Virgílio e Camões. In: Nuntius Antiquus, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, nº 1, 2008. MUHANA, Adma. A epopeia em prosa seiscentista – uma definição de gênero. São Paulo: EDUNESP, 1997. OLIVEIRA, Raquel Trentin. Para ler Camões. In: Rev. Let. São Paulo, v. 51, n. 1, 2011, pp. 9-21. PALMA-FERREIRA, João. Naufrágios, Viagens, Fantasias e Batalhas. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1980. PÉCORA, A. Política do céu (anti-Maquiavel). In: NOVAES, A. (org.).. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 174-206. PÉCORA, A. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001. PEIXOTO, A. Ensaios Camonianos. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1947. PEIXOTO, A. PINTO, Pedro A. Dicionário d’os Lusíadas de Luis de Camões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1924. PINTO-CORREIA, João David. Os naufrágios na literatura portuguesa – propostas para um estudo. In: VENTURA, Maria da Graça A. Mateus (coord.). As rotas oceânicas: sécs. XV-XVII/Quartas Jornadas da História Ibero-Americana. Lisboa: Edições Colibri, 1999. PIRES, F. M. História e Poesia (comentários ao Proêmio tucidideano). In: R. História. São Paulo, n. 121, pp. 27-44, 1989.

Page 277: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

277

PIRES, Francisco Murari. Mithistória. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, 2 vol. PIRES, Francisco Murari. “Tucídides e Maquiavel: diálogos sobre a (in)utilidade e a (des)valia da história”. In: SEIXAS, Jacy; CERASOLI, Josianne; NAXARA, Márcia (orgs.). Tramas do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: EDUFU, 2012. PIVA, L. O discurso épico de Luís de Camões. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, pp. 151-162. PRETI, Dino F. Camões e a realidade histórica. Dissertação (mestrado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1969. QUINT, D. Epic and Empire: politics and generic form from Virgil to Milton. Princeton: Princeton University Press, 1992. RAMALHO, Américo da Costa. Estudos Camonianos. Coimbra: Universidade de Coimbra/Instituto de Alta Cultura, 1975. REBOUL, O. Introdução à retórica, São Paulo: Martins Fontes, 2000. RODRIGUES, José Maria. Fontes dos Lusíadas. Prefácio de Américo da Costa Ramalho. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1979. SANTOS, Halysson F. Dias. Epopeia como exercício de memória. In: IV Encontro Estadual de História – AMPUH, Bahia, 2008. SARAIVA, A. J. Luís de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980. SEIXO, Maria Alzira. Poéticas de viagem na literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. SEIXO, Maria Alzira, CARVALHO, Alberto (orgs.). A História Trágico-Marítima: análises e perspectivas. Lisboa: Cosmos, 1996. SENELLART, M. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006. SERGIO, António. Em torno da História Trágico-Marítima. Ensaios – vol. VIII. Lisboa: Sá da Costa, 1974. SÉRGIO, António. História trágico-marítima: narrativas de naufrágios da época das conquistas. Lisboa: Sá da Costa, 2008. SILVA, Leidivaldo dos Santos. Expansão portuguesa à Ásia: um estudo a respeito das narrativas de naufrágio de naus e galeões da Carreira da Índia, da História Trágico-Marítima. Monografia (graduação). Maranhão: Universidade Estadual do Maranhão, 2009. SINKEVISQUE, Eduardo. Com Furores de Marte e com Astúcias de Mercúrio: O Dell’Arte Historica (1636) de Agostino Mascardi. In: Topoi, v. 7, n. 13, pp. 331-378, 2006. SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e Política: A prosa histórica dos séculos XVII e XVIII – introdução a um debate sobre gênero. Dissertação (mestrado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000.

Page 278: repositorio.unicamp.brrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281229/1/Felipe_CleberVin... · UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão

278

SORDO, Vera Moya. Manifestaciones de miedo durante la navegación atlántica ibérica. Mediados del siglo XV a principios del siglo XVII. Tesis (maestra en historia). México: Universidad Nacional Autónoma de México – Facultad de Filosofía y Letras, 2011. TABUCCHI, Antonio. Interpretazioni della “História Trágico-Marítima” nelle licenze per il suo “imprimatur”. In: Quaderni Portoghesi, nº 5, Pisa: Giardini Editori, 1979. TEIXEIRA, C. A. A. Épica e tragédia no episódio da Dido virgiliana. In: Ágora. Estudos Clássicos em Debate 08, pp. 41-57, 2006. TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. TEIXEIRA, Felipe Charbel. Uma construção de fatos e palavras: Cícero e a concepção retórica da história. In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 24, nº 40, pp. 551-568, 2008. URBANO, Maria Luisa. História trágico-marítima: uma visão maneirista do homem: queda, expiação e morte. Dissertação (Mestrado). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992. VALLE, R. M. “A perpetuação da hierarquia: sentidos políticos do encômio poético de Cláudio Manuel da Costa”. In: In: História e Perspectivas, Uberlândia, EDUFU, n. 34, 2006. VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Épica I: Ênio e Virgílio. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. VIEIRA, T. “Introdução”. In: CAMPOS, H. Ilíada de Homero, vol. 1. São Paulo: Arx, 2003. VIEIRA, Y. F. “Adamastor: o pesadelo de um ocidental”. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, pp. 229-240. VILÀ i TOMÀS, L. Épica e Império: imitación virgiliana y propaganda política em la épica española del siglo XVI. Tese de Doutorado. Barcelona: Universitat Autônoma de Barcelona, 2001. VILA MAIOR, Dionísio. Relatos de Naufrágio: configurações estilísticas. In: Letras de Hoje. Porto Alegre: Ed. PUCRS, v. 35, n. 02, 2000, pp. 7-38. VOIGT, Lisa. Naufrágio, cativeiro, e relações ibéricas: a História trágico-marítima num contexto comparativo. In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 24, nº 39, 2008, pp. 201-226. WEINRICH, H. Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. WILLIAMS, Rachel Saint. Ars Historica e artes de governar na Castela Seiscentista. In: Ars Historica, v. 01, n. 01, pp. 99-110, 2010.