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A SAÚDE E A POBREZA NO BRASIL Um Desafio Ético-Moral à Luz da Doutrina Social da Igreja

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A SAÚDE E A POBREZA NO BRASIL Um Desafio Ético-Moral à Luz da

Doutrina Social da Igreja

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Sérgio Grigoleto

A SAÚDE E A POBREZA NO BRASIL Um Desafio Ético-Moral à Luz da

Doutrina Social da Igreja

II Edição

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Maringá - PR

2014

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4 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

Copyright 2014 by Sérgio Grigoleto EDITORES:

Daniela Valentini José Francisco de Assis Dias

CONSELHO EDITORIAL: Prof. José Aparecido Pereira

Prof. Leomar Antonio Montagna Prof. Reginaldo Aliçandro Bordin

REVISÃO GRAMATICAL E DE ESTILO: Prof. Marta Cristina Bergamasco

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Rogerio Dimas Grejanim

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi

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Grigoleto, Sérgio

G857s A saúde e a pobreza no Brasil: um desafio

ético-moral à luz da doutrina social da

igreja. Sérgio Grigoleto. 1. ed. Maringá,PR:

Humanitas Vivens, 2014.

136 p.; 14x21 cm.

ISBN 978-85-8401-011-0

1. Documentos papais. 2. Sociologia cristã

católica. 3. Igreja e problemas sociais. 4.

Pobreza - saúde. I. Título.

CDD 22.ed.261.83

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SUMÁRIO SIGLAS E ABREVIAÇÕES................................................. INTRODUÇÃO.................................................................... CAPÍTULO I A HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA............. 1.1 A saúde Pública no Período do Brasil Colonial............... 1.2 As Campanhas Sanitárias e a

Economia Agroexportadora do Século XIX................... 1.3 A Intervenção do Estado nas

Relações de Trabalho: 1930-1945................................ 1.4 As Condições de Vida e Saúde no Brasil

no Período Entre 1945-1964......................................... 1.5 As Condições de Vida e de Saúde no Brasil

no Período Entre 1964-1980......................................... 1.6 Condições de Vida e Saúde no Brasil,

no Período Após 1980.................................................. 1.7 As Condições de Vida e Saúde no Brasil

de 1992 ao Governo Lula.............................................. CAPÍTULO II A RELAÇÃO ENTRE A POBREZA E A SAÚDE DA POPULAÇÃO NO BRASIL.......................... 2.1 Medicina, Saúde e Doença............................................ 2.2 Pobreza e Saúde no Brasil............................................. 2.3 Mortalidade Infantil........................................................ 2.4 Doenças Infecciosas e Parasitárias ou

“Doenças da Pobreza”.................................................. 2.5 O Problema Habitacional............................................... 2.6 O Aumento da Violência e a Mortalidade

por Causas Externas....................................................

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CAPÍTULO III A POBREZA À LUZ DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA.................................. 3.1 Leão XIII e a Rerum Novarum

(15 de maio de 1891).................................................... 3.2 Pio XI e a Quadragesimo Anno

(15 de maio de 1961).................................................... 3.3 João XXIII: a Mater et Magistra

e a Pacem in Terris....................................................... 3.3.1 Mater et Magistra (15 de maio de 1961)............... 3.3.2 Pacem in Terris (11 de abril de 1963)...................

3.4 O Concílio Ecumênico Vaticano II e a Gaudium et Spes....................................................

3.5 Paulo IV e a Populorum Progressio (1967).................... 3.6 João Paulo II e a Sollicitudo Rei Socialis (1987)............. 3.7 A Contribuição da Igreja Latino-Americana....................

3.7.1 Medellín............................................................... 3.7.2 Puebla................................................................. 3.7.3 Santo Domingo.................................................... 3.7.4 Aparecida............................................................

CONCLUSÃO..................................................................... BIBLIOGRAFIA..................................................................

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SIGLAS E ABREVIAÇÕES AA: Acta Apostolicae Sedis BPC: Benefício de Prestação Continuada CA: Carta encíclica Centesimus annus CELAM: Conselho Episcopal Latino-americano CEME: Central de Medicamentos CID: Classificação Internacional de Doenças CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CPMF: Contribuição Provisória sobre a Movimentação

Financeira DM: II Conferência Geral do Episcopado Latino-

americano – Conclusões da Conferência de Medellín

DNERu: Departamento Nacional de Endemias Rurais DP: III Conferência Geral do Episcopado Latino-

americano -Conclusões da Conferência de Puebla

EN: Carta encíclica Evangelii Nuntiandi FAO: Organização da Nações Unidas para a

Agricultura e Alimentação FAZ: Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social FHC: Fernando Henrique Cardoso GS: Carta encíclica Gaudium et spes HV: Carta encíclica Humanae vitae IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INAMPS: Instituto Nacional de Assistência Médica da

Previdência Social INPS: Instituto Nacional de Previdência Social LE: Carta encíclica Laboren exercens LG: Constituição Dogmática Lumen Gentium MM: Carta encíclica Mater et magistra OMS: Organização Mundial da Saúde ONU: Organização das Nações Unidas PBF: Programa Bolsa Família PIASS: Programa de Interiorização das Ações de Saúde

e Saneamento PNADs: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio POF: Pesquisa de Orçamentos Familiares

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PP: Carta encíclica Populorum progessio PPA: Plano de Pronta Ação PRONAM: Programa Nacional de Alimentação PRORURAL: Programa de Assistência ao Trabalhador Rural PT: Carta encíclica Pacem in terris QA: Carta encíclica Quadragessimo anno RN: Carta encíclica Rerum novarum SD: IV Conferência Geral do Episcopado Latino-

americano – Conclusões da Conferência de Santo Domingo

SRS: Carta encíclica Sollicitudo rei socialis SUS: Serviço Único de Saúde

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INTRODUÇÃO

Este trabalho que você tem nas mãos quer ser uma reflexão ético-moral à luz dos documentos da Doutrina Social da Igreja sobre a pobreza que afeta diretamente a saúde de milhões de brasileiros. Usamos o termo «pobreza» para designar a carência de recursos financeiros necessários para satisfazer as necessidades básicas como alimentação, moradia, instrução e acesso a tratamentos médico-sanitários; e o termo «saúde», como o define a Organização Mundial da Saúde «um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade».1

A ideia de desenvolver este tema surgiu de minha experiência pastoral como sacerdote, onde vivi em contato direto e diário com pessoas vítimas da pobreza em suas mais variadas formas, especialmente por aquelas que estavam doentes e não tinham dinheiro para pagar os tratamentos e medicamentos necessários para a cura, e também como Assessor Diocesano da Pastoral da Criança na diocese de Umuarama, por vários anos, onde pude acompanhar de perto o trabalho generoso de centenas de voluntárias no combate à desnutrição infantil e à falta de orientação em questões de higiene e saúde. Esta ideia foi se tornando mais forte durante as aulas de bioética, no primeiro ano de mestrado em teologia moral onde, refletindo sobre procedimentos médico-científicos que afetam um número consideravelmente baixo de pessoas, fui cada vez mais percebendo a importância e a necessidade de uma reflexão sobre a pobreza que afeta diretamente a saúde de milhões de pessoas no mundo

1 V. CORSINI, Codice delle Organizzazioni Internazionali, Giuffré, Milano

1958, 83, citado por Lino CICCONE, La vita umana, Edizione Ares, Milano

2000, 202.

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todo, particularmente no Brasil, e que é uma realidade contrária aos princípios ético-morais cristãos. E que apesar de ter sido denunciada e combatida pelos Papas, pelo Concílio Vaticano II e pelo Episcopado Latino-Americano através da Doutrina Social da Igreja é uma realidade anti-evangélica, que se torna ainda mais chocante e questionadora quando nos deparamos com o grande percentual da população brasileira que se declara «católico apostólico romano».

Seguiremos o método «ver, julgar e agir», tradicionalmente consagrado na metodologia pastoral latino-americana, com o objetivo de despertar o senso crítico e a capacidade de perceber a realidade em todo o seu conjunto. Como ela é, analisá-la segundo a Doutrina Social da Igreja e emitir um juízo ético-moral. Nossa pesquisa se desenvolve em três capítulos, formando um conjunto de dados, observações e reflexões que, esperamos, possam ser continuadas ao longo da vida do leitor, apontando também propostas e pistas de ações concretas.

No primeiro capítulo apresentaremos, ainda que de forma sucinta, a história da saúde pública brasileira, onde analisaremos a saúde pública desde o período colonial até nossos dias. Nesse capítulo encontramos várias dificuldades, principalmente a falta de registros históricos referentes ao período colonial, e o período atual onde muitas mudanças estão acontecendo com uma velocidade muito grande. Outra dificuldade é tratar de aproximadamente quinhentos anos de história de um país de dimensões continentais. Somos conscientes dessa limitação, mas pensamos que este olhar panorâmico seja importante para compreender as bases histórico-político-sociais da saúde pública no Brasil.

No segundo capítulo apresentamos a relação direta entre a pobreza e a saúde da população brasileira. Partimos da definição de saúde feita pela OMS, como «um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade» e

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apresentamos de forma sistemática dados que demonstram a precariedade da saúde da nossa população empobrecida. Nesse capítulo buscamos analisar algumas das consequências da pobreza, tais como: a mortalidade infantil, as doenças infectocontagiosas ou «doenças da pobreza», o problema habitacional e o aumento da violência e da mortalidade por causas externas. Consequências estas que somadas a outros fatores como a falta de esperança e de perspectivas de mudança, formam um círculo vicioso, agravando ainda mais a situação.

No terceiro capítulo apresentamos alguns dos documentos da Doutrina Social da Igreja que tratam diretamente sobre a questão da pobreza. Partimos da Rerum novarum, passando por diversas outras cartas encíclicas, pelo Concílio Vaticano II e a Gaudium et spes, até chegarmos à grande contribuição do Episcopado Latino-Americano, nas suas Conferências Gerais de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Nesse capítulo a nossa maior dificuldade foi sintetizar o conteúdo dos documentos magisteriais, sem perder a força de sua eloquência e por, esse fato, decidimos, em vários pontos, transcrever diretamente trechos dos documentos, por considerar que sua força original de expressão dificilmente pode ser captada ao serem sintetizados ou ditos de outra maneira.

Ao final, apresentamos a pobreza e a saúde no Brasil como um desafio ético-moral. Desafio este que deve nos questionar por ser fruto de livres decisões humanas, que constitui, por um lado um desafio social, econômico e político e, de outro, um desafio ético que coloca em evidência o mau uso da liberdade. Podemos também afirmar que constitui-se em um desafio eclesial que nos convida à verdadeira conversão.

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CAPÍTULO I

A HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA

1.1 A saúde Pública no Período do Brasil Colonial A percepção social das doenças, que se reflete na

forma que assume a organização da medicina, segue a lógica da importância relativa da população para o sistema produtivo em seu conjunto, respondendo assim a determinações de ordem tanto econômica quanto política. Por este motivo, para tratarmos da saúde dos brasileiros durante os diversos períodos da nossa história, devemos tratar também de outras dimensões como a dimensão econômica, intimamente ligada à saúde, e a dimensão política, intimamente ligada à dimensão econômica.

Um país colonizado, basicamente por degredados e aventureiros desde o descobrimento até a instalação do Império, não dispunha de nenhum modelo de atenção à saúde da população e nem mesmo o interesse, por parte do governo colonizador (Portugal), em criá-lo. Deste modo, a atenção à saúde limitava-se aos próprios recursos da terra (plantas, ervas) e, àqueles que, por conhecimentos empíricos (curandeiros e pajés), desenvolviam as suas habilidades na arte de curar. A vinda da família real ao Brasil, em 1808, criou a necessidade da organização de uma estrutura sanitária mínima, capaz de dar suporte ao poder que se instalava na cidade do Rio de Janeiro.

Até 1850 as atividades de saúde pública estavam limitadas à delegação das atribuições sanitárias às juntas municipais e ao controle de navios e saúde dos portos. Verifica-se que o interesse primordial estava limitado ao estabelecimento de um controle sanitário mínimo da cidade do Rio de Janeiro, capital do Império, tendência que se alongou por quase um século.

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O tipo de organização política do Império era de um regime de governo unitário e centralizador, o qual era incapaz de dar continuidade e eficiência na transmissão e execução a distância das determinações emanadas dos comandos centrais.

A carência de profissionais médicos no Brasil Colônia e no Brasil Império era enorme, para se ter uma ideia, no Rio de Janeiro, em 1789, só existiam quatro médicos exercendo a profissão. Em outros Estados brasileiros eram mesmo inexistentes. A inexistência de uma assistência médica estruturada fez com que se proliferassem pelo país os boticários (farmacêuticos). Aos boticários cabia a manipulação das fórmulas prescritas pelos médicos, mas a verdade é que eles próprios tomavam a iniciativa de indicá-los, fato muito comum2.

Não dispondo de um aprendizado acadêmico, o processo de habilitação nesta função consistia tão somente em acompanhar o serviço de uma botica já estabelecida durante um certo período de tempo, ao fim do qual prestavam exame perante a fisicatura, órgão que fiscalizava e regulamentava as profissões ligadas à «arte de curar» (médico, boticário, cirurgião, sangrador, partejador e curandeiro) e se aprovado, o candidato recebia a «carta de habilitação», e estava apto a instalar sua própria botica.

As duas primeiras escolas médicas no Brasil foram criadas, em 1808, pelo Príncipe D. João VI, atendendo a sugestão do Cirurgião-Mor dos Exércitos, Dr. José Maria Pincanço: uma em Salvador, a atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia; e a outra no Rio de Janeiro, a atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo o relato de Plácido Barbosa e Cássio Rezende, naquela época,

2 Nilson do Rosário COSTA, Lutas Urbanas e Controle Sanitário. Origens das políticas de saúde no Brasil, Vozes, Petrópolis 1985, 27.

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o ensino e o exercício da medicina em Portugal refletiam o atraso e a desídia. Facilmente se obtinha o diploma; a venialidade dos exames era habitual, enxameavam os médicos idiotas, que eram os curandeiros empíricos e ignorantes exercendo medicina. Não podia ser diferente desses moldes o regime adotado para o Brasil em 1808 em matéria de ensino e exercício da medicina.3

Na ocasião, constituiu-se uma verdadeira

conjuração, integrada por médicos portugueses, que se opunham ao ensino médico brasileiro. Talvez por isso é que a terceira escola médica do país somente tenha sido criada quase um século depois, em 1898, em Porto Alegre, a atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Embora as relações entre saúde e trabalho pareçam gritantes no modo de produção escravagista, são escassos os estudos que abordam esta questão no período colonial de nossa história.

Machado, aponta as características básicas da prática médica que vigorou no Brasil durante o período colonial:

1 - O baixo nível de medicalização da sociedade; 2 - O caráter puramente fiscalizador no campo da saúde; 3 - A quase total inexistência de uma prática médica voltada para a força de trabalho escrava.4

Somarriba, analisando a falta de uma política de

saúde voltada especificamente para a mão-de-obra escrava, aponta que «o tipo de tratamento dispensado ao escravo dependia de três variáveis principais: o preço de

3 Carlos Gentile DE MELLO, A medicina e a realidade brasileira, Achiamé, Rio de Janeiro 1983, 41. 4 Roberto MACHADO – al., Danação da norma, medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil, Graal, Rio de Janeiro 1978, 48.

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compra do escravo, a rentabilidade da produção escravista no mercado e a capacidade de trabalho de cada escravo individualmente»5. O escravo trabalhava até 18 horas por dia, sendo que o proprietário tinha o direito de aplicar castigos físicos sem interferência do poder público. As jornadas prolongadas estavam relacionadas com a extração do máximo da capacidade produtiva no menor período de tempo, e os castigos serviam para garantir a submissão ao trabalho.

Apenas na segunda metade do séc. XIX, com as limitações impostas ao tráfico de negros, surge alguma preocupação dos proprietários em aumentar a «vida útil» dos escravos (em 1730 em torno de 12 anos de trabalho para escravos jovens), com o fornecimento de algum tipo de serviço de saúde. As condições de alimentação e habitação eram precárias, sendo frequentes as pneumonias, tuberculoses e diarreias.

Numa aproximação sobre o estado de saúde, deve-se mencionar que, do final do séc. XIX até os anos 20, as doenças pestilenciais apresentavam elevada incidência. Devem ser citadas como doenças mais comuns e com elevado índice de mortalidade a febre amarela, a varíola, a tuberculose e a malária. A expectativa de vida, no período de 1870-1890, era de 33,9 anos.6

É importante destacar que as transformações políticas que se processam no final do séc. XIX, e que culminam com o fim da monarquia, instituem uma república oligárquica controlada pelos interesses de um poder rural exportador que tem no café os seus principais interesses. As primeiras Caixas de Aposentadorias e Pensões abrangiam apenas os ferroviários, marítimos e portuários, categorias fundamentais para a economia

5 M.M.G. SOMARRIBA, Medicina no escravismo colonial, Companhia das Letras, Belo Horizonte 1984, 14 6 J YUNES – E. PRIMO, «Caracterização demográfica e social da realidade brasileira», in E. L GONÇALVES, Administração de Saúde no Brasil, Livraria Pioneira, São Paulo 1982, 23.

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agro-exportadora do café. Apesar do Brasil ser um país de economia rural, não foram criadas políticas sociais para os trabalhadores rurais. Oliveira relaciona este fato com dois aspectos: um deles às formas pelas quais se organizavam as relações de trabalho no campo, cuja principal característica era o monopólio da aristocracia rural sobre a posse da terra, fazendo com que a relação com os trabalhadores fosse de troca de favores. Outro aspecto era a repressão ostensiva por parte do exército aos movimentos sociais camponeses até 1930 (Contestado e Canudos), que reivindicavam não a aplicação direta de políticas sociais, mas o acesso à posse da terra.7

1.2 As Campanhas Sanitárias e a Economia Agroexportadora do Século XIX Nas primeiras décadas do séc. XIX e segundo o

testemunho de J. F. Sigaud, um médico que clinicou no Rio de Janeiro e que é transcrito por Singer, a geografia médica do Brasil em 1832 era a seguinte:

[...] ao norte e debaixo do equador encontram-se os tifos, as febres eruptivas, as febres cerebrais, a hidropsia. Debaixo do trópico sul, apresentam-se as febres intermitentes perniciosas e acompanham ao longo dos grandes rios de São Francisco, Rio Doce, Paraíba e os pequenos rios que se lançam, na baía do Rio de Janeiro. O litoral do mar até os areais do Rio Grande, desde Campos até além de Santa Catarina, está cercado de uma cinta de febres intermitentes e Paranaguá reclama de disenteria. No centro e sul, o antraz no Rio Grande, o papo em São Paulo e a elefantíase em Minas Gerais formam um triunvirato endêmico.8

7 T.C. OLIVEIRA, «A evolução histórica da Previdência Social Rural no Brasil», in Revista Brasileira de Saúde Ocupacional 16 (1988) 26-32. 8 P. SINGER – al., Prevenir e Curar: o controle social através dos serviços de saúde, Forense, Rio de Janeiro 1978, 54.

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Dados registrados a partir de 1859, sobre o Rio de

Janeiro, dão conta das elevadas cifras de mortalidade por tuberculose, febre amarela, malária e varíola. Também em São Paulo a presença epidêmica de «doenças pestilenciais» acontece desde 1880. Tem sido assinalado pelos estudiosos que a repercussão dessas epidemias sobre as questões da produção agroexportadora foi sentida no fato de se colocarem empecilhos à imigração europeia.9

Data do final do séc. XIX e início do séc. XX uma tomada de posição frente às doenças transmissíveis que, baseando-se no conhecimento bacteriológico estabelecido nesse período, procurava atuar não somente através de campanhas, mas também, do saneamento ambiental. Muitas das medidas foram tidas como coercitivas e cerceadoras das liberdades individuais. Assim, por exemplo, a vacinação obrigatória contra a varíola, decretada em 9 de novembro de 1904, teve muitos opositores, tanto populares como militares. Houve choques entre a polícia e a população, levando inclusive à solicitação, ao Congresso Nacional, do Estado de Sítio.

Em 1918 ocorre a epidemia de gripe espanhola, que levou à paralisação das fábricas e dos transportes no Rio de Janeiro, mostrando a ineficiência do sistema sanitário estabelecido.10

Fica evidente que, durante todo esse período, as práticas sanitárias estiveram voltadas para um modelo que atuava em termos de campanhas, na tentativa de erradicar ou diminuir determinadas doenças infecciosas, mas que não agiam diretamente sobre os reais determinantes

9 E.E. MERHY, O capitalismo e a saúde pública: a emergência das práticas sanitárias no Estado de São Paulo, Brasiliense, São Paulo 1985, 36. 10 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria

RIGOTTO, (org.), Isto é trabalho de gente? Vida doença e trabalho no Brasil, Vozes, Petrópolis 1993. 94.

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dessas doenças. Ao ocorrer a institucionalização das práticas sanitárias estabelecem-se os institutos de pesquisa que, sem dúvida, trouxeram notável contribuição ao conhecimento das doenças.11

1.3 A Intervenção do Estado nas Relações de Trabalho: 1930-1945 O período de 1930 a 1945 caracteriza-se, do ponto

de vista da economia, pelo desenvolvimento industrial via substituição das importações, isto é, apoiado no mercado interno, associando o crescimento da produção à expansão do consumo. Este desenvolvimento é facilitado pela crise do modelo agrário-exportador determinada pela grande depressão econômica de 1929. Este detalhe é importante para podermos entender a situação da saúde pública durante este período.

O significado do setor industrial no início do período pode ser quantificado quando se verifica a contribuição que o mesmo trazia para o total da economia nacional, na ordem de 10%. Esta contribuição derivava principalmente dos produtos têxteis, calçados, móveis e produtos alimentícios, ao lado da produção de bens «intermediários», como cimento e ferro-gusa.12

No período entre 1939 e 1946 já se verifica o avanço do setor industrial que cresceu 60%, enquanto o

11 A.C.T. RIBEIRO – al., Campanhas sanitárias e sua institucionalização: um estudo histórico da saúde pública no Brasil, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1976, 50-54; B. FAUSTO, Trabalho urbano e conflito social: 1880-1945, Difel, Rio de Janeiro 197; P.S. PINHEIRO – M. HALL, A classe operária no Brasil: condições de vida e de trabalho, relações com os empresários e o Estado 1889-1930, Brasiliense, São Paulo 1981; C. FURTADO – al., Brasil: Tempos Modernos, Paz e Terra, Rio de Janeiro 1977. 12 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA– Raquel Maria

RIGOTTO, (org.) Isto é..., 97.

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setor agrícola apenas 7%.13 A Criação de novas indústrias, a expansão de siderurgia e o surgimento do Conselho Nacional do Petróleo foram fundamentais neste processo.

Em relação ao contexto político, o fato marcante do período é a Revolução de 30. A reorganização do Estado Brasileiro, após a revolução de 30, caracterizou-se pela presença de Getúlio Vargas por um período de 15 anos, basicamente dividido em duas fases. Até 1937, onde existia uma crise de hegemonia devido à disputa de diferentes classes na sucessão da oligarquia cafeeira, e após 1937, um período com características ditatoriais.

Neste período ocorreu uma reordenação das relações entre Estado e Sociedade, com maior intervenção do Estado no sentido do estabelecimento de políticas sociais com o objetivo de garantir o processo de industrialização e o controle do movimento dos trabalhadores, que no período entre os anos 30 e 35 se reorganiza. O tema da Previdência Social aparecia constantemente, com reivindicações dos trabalhadores para diminuição da contribuição, aumento dos benefícios, principalmente quanto à aposentadoria após 30 anos de serviço. As reivindicações também continuavam a insistir nas questões referentes à saúde dos trabalhadores, aos acidentes de trabalho, salários mais justos e jornadas de trabalho menos extenuantes.

Em relação às condições de saúde, embora sejam poucos os dados disponíveis sobre o estado de saúde da população, eles mostram que eram muito precárias. A população reivindicava uma maior atenção à saúde pública. A expectativa de vida ao nascer em 1940 era de 42,2 anos; a mortalidade infantil no Brasil em 1914 era de 202,33 em 1000 nascidos vivos. Em 1930, 45,7%, e em 1940, 43,5% das mortes foram causadas por doenças infecciosas e parasitárias, mostrando que este tipo de

13 A. COHN, «Problemas da Industrialização no século XX», in C.G. MOTA, (org.). Brasil em Perspectivas, Difusão Européia do Livro, São

Paulo 19734, 283-284.

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grupo de patologia era responsável quase pela metade de todos os óbitos.14

Quanto à intervenção do Estado, em termos de política de saúde, observa-se que antes de 1930 as ações sanitárias eram de responsabilidade do nível local, através de unidades administrativas com o nome de Departamentos, Serviços ou Direções Sanitárias. A partir de 1930 foram centralizadas no Ministério da Educação e Saúde, criado pelo Decreto n. 19.402 e regulamentado pelo Decreto n. 19.560 de 05/01/1931, o que possibilitou relativo avanço das ações de saúde para o interior do país. As ações de saúde pública concentram-se nas campanhas de combate a doenças infecciosas, coerente com o perfil de mortalidade do período. Uma outra modificação importante é que até o início dos anos 30, as atividades de saúde pública estavam concentradas no Departamento Nacional de Saúde Pública, dentro do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, incluindo também as atividades de higiene industrial. A criação dos diferentes ministérios fez com que as atividades deste Departamento fossem divididas. Por exemplo, o controle dos produtos de origem animal passou ao Ministério da Agricultura, a higiene e segurança do trabalho foram transferidas para a subordinação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a saúde pública passou para o Ministério da Educação e Saúde.15

Em termos de Previdência Social, o fato mais importante é a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões para as categorias profissionais dos trabalhadores urbanos. As Caixas de Aposentadorias eram organizadas anteriormente por empresas e se

14 J.S. YUNES – E. PRIMO, «Caracterização demográfica e social da realidade brasileira», in E.L. GONÇALVES, Administração de Saúde..., 45; J.S. YUNES – V.S.C. RONCHEZEL, «Evolução da mortalidade infantil e proporcional no Brasil», in Revista Saúde Pública 3 (1974) 27-38. 15 B.A. RODRIGUES, Fundamentos de administração sanitária,

Companhia das Letras, Brasília 19792, 245.

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restringiam às categorias vinculadas à produção do setor cafeeiro agroexportador.16

As características principais da Previdência Social nos anos de 1930 a 1945, segundo Oliveira e Teixeira, são: a redução dos benefícios e da prestação de serviços; a adoção de um modelo de acumulação de reservas financeiras e a participação do Estado na administração e no custeio; e a extensão dos Institutos a categorias profissionais anteriormente não abrangidas. Oliveira e Teixeira, definem o modelo adotado neste período como «capitalização», isto é, de acumulação financeira, servindo diretamente para a construção de indústrias nacionais. Ao mesmo tempo é veiculada a imagem do Estado como «doador» e ampliador dos direitos sociais dos trabalhadores. Na prática, os benefícios oferecidos serviam para garantir a reposição da força de trabalho, num período em que a expectativa de vida ao nascer era de 42 anos, e os índices de acidentes do trabalho elevados.17

A acumulação financeira através da Previdência Social, nos primeiros anos, foi justificada pela contenção das despesas públicas como forma de fazer face à crise econômica herdada pelo Governo Provisório. Posteriormente, descobriu-se o potencial da Previdência enquanto instituição financeira e se utilizavam de seus recursos para financiar a industrialização.18 A Previdência Social financiou as indústrias nacionais siderúrgicas, de celulose, energia elétrica e o crédito agrícola em áreas estratégicas para a economia do período. Além disso, o regulamento da maioria dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, previa também a concessão de empréstimos diretamente a empresários do setor privado (geralmente do setor de atividades a que estava orientado o Instituto).

16 B.A. RODRIGUES, Fundamentos..., 247. 17 J.A.A. OLIVEIRA – S.M.F. TEIXEIRA, (IM)Previdência Social: 60 anos de história da previdência no Brasil, Vozes, Petrópolis 1986, 59-64. 18 J.A.A. OLIVEIRA – S.M.F.TEIXEIRA, (IM)Previdência..., 70-72.

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A História da Saúde Pública Brasileira // 23

Mesmo com o crescimento econômico deste período, o serviço público de saúde não melhorou e o acesso à assistência médica por parte da população mais pobre tornou-se cada vez mais precário.

1.4 As Condições de Vida e Saúde no Brasil no Período Entre 1945-1964 O período ente 1945-1964, do ponto de vista da

economia, é caracterizado por um grande crescimento da industrialização, sendo uma nova etapa do processo de substituição das importações. Até 1955 a industrialização privilegiou a indústria nacional, com o governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), iniciou-se a abertura ao capital estrangeiro. A política desenvolvimentista do governo de Juscelino é descrita por Singer como um esforço à acumulação, à internacionalização da economia.19

Em relação ao contexto político, a principal característica é o processo de redemocratização do país, com a queda do Estado Novo. Ao lado disso, após o final da II Guerra Mundial, surge um movimento internacional de mudanças de postura do Estado, no sentido de ampliação de suas atribuições sociais.

De um lado houve um crescimento econômico, de outro, do ponto de vista político, um processo de redemocratização do país. Houve também, neste período, um processo de rápida urbanização. Em relação ao papel do Estado, este se amplia, visando uma ação mais efetiva e operacional no que se refere às suas atribuições sociais. No período pós Estado Novo ampliam-se os serviços e benefícios oferecidos pela Previdência Social. Pretendia-se assim, suavizar as tensões sociais com o estabelecimento de políticas sociais de caráter populista.

19 P. SINGER, A crise do “milagre”: interpretação crítica da economia brasileira, Paz e Terra, Rio de Janeiro 1976, 50-54.

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A esperança de vida ao nascer em 1950 era de 45,6 anos e em 1960, de 51,3 anos.20 Neste período se verifica o decréscimo do coeficiente de mortalidade infantil, passando de 170,20 em 1945 para 102,41 em 1964.21 Os altos índices de mortalidade infantil estavam associados à desnutrição e à falta de saneamento.

A razão de mortalidade proporcional (porcentagem de óbitos de indivíduos com mais de 50 anos) no Brasil em 1950 era de 26,67% e de 30,64% em 1964. A título de comparação, na Suécia em 1968 este valor era de 90,7%.22

A mortalidade proporcional por grupo de causas apresenta um dado interessante, pois em 1950 as mortes por doenças infecciosas e parasitárias correspondiam a 35,9%, caindo para 25,9%, em 1960. Por outro lado, as doenças do aparelho circulatório representavam 14,2% do total das mortes, em 1950, subindo para 21,5% em 1960. Estes dados sugerem um início na modificação do padrão de saúde-doença, com a permanência das mortes por doenças infecciosas e parasitárias, mas já apresentando um declínio e um aumento das doenças crônico-degenerativas, relacionadas com o desenvolvimento industrial.23

No final da década de 1950 cresce a prestação da assistência médica. Por exemplo, em 1949 o gasto com a assistência médica da Previdência Social era de apenas 7,3%, ampliando-se em 1960 para 19,3%.24 Estes dados refletem as pressões crescentes por cuidado médico, que

20 E.L. GONÇALVES, Administração..., 97. 21 J.S. YUNES – V.S.C. RONCHEZEL, «Evolução...», 33. 22 W. LESER, «Crescimento da população da cidade de São Paulo entre 1950 e 1970, e seu reflexo nas condições de saúde pública» in M.C.ANDRADE – al., Meio ambiente, desenvolvimento e subdesenvolvimento, HUCITEC, São Paulo 1975, 123. 23 Manoel Maurício de ALBUQUERQUE, Pequena história da formação social Brasileira, Graal, Rio de Janeiro 1986, 578. 24 J.C.S. BRAGA – S.G. PAULA, Saúde e previdência: estudos de política social, CEBES/HUCITEC, São Paulo 1981, 97.

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A História da Saúde Pública Brasileira // 25

acompanharam o processo de urbanização. Os baixos salários e as precárias condições de trabalho em geral transformaram em demanda os atos médicos para recuperação da saúde e capacidade de trabalho dos trabalhadores. Sem a ajuda da Previdência Social os trabalhadores não teriam condições de arcar com os custos médicos crescentes devido a incorporação de tecnologias.

No começo do governo de Juscelino Kubitschek, em consonância com as metas de desenvolvimento e produtividade, ocorre a criação do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), instituído pela lei n. 2.743, de 06/03/1956, com a centralização das campanhas sanitárias. Este departamento absorveu os serviços nacionais de malária, peste e febre amarela. Ele surgiu com a finalidade de combater 13 endemias: ancilostomíase, bócio-endêmico, bouba, brucelose, doença de chagas, esquistossomose, febre amarela, malária, filariose, leishmaniose, peste, hidatiose e tracoma.25

Uma característica importante deste período, conforme Ribeiro, é a discussão levantada sobre se o desenvolvimento industrial seria suficiente para resolver os problemas sociais, inclusive os de saúde. Criando-se, na época, a teoria do círculo vicioso da pobreza-doença. Círculo este que expressa a relação profunda entre a pobreza e a doença. Neste período os serviços públicos não eram suficientes para atender a toda a população, e os mais pobres, por não poderem pagar pelo atendimento médico hospitalar de empresas particulares, eram sempre os mais prejudicados.

25 A.C.T. RIBEIRO – al., Elementos conceituais desenvolvidos pela pesquisa: Campanhas Sanitárias da saúde pública no Brasil, Civilização

Brasileira, Rio de Janeiro 1977, 47.

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1.5 As Condições de Vida e de Saúde no Brasil no Período Entre 1964-1980 Neste período ocorreu o crescimento industrial

associado ao capital estrangeiro e uma forte concentração de renda. O Estado desempenhou um papel central no processo de acumulação, ou seja, o Estado como empresário passou a ser a fonte mais importante de capital de investimento.

No contexto político, o fato mais importante neste período, foi o golpe militar de 1964, que representou a instalação de um regime caracterizado pelo autoritarismo, excluindo a participação dos trabalhadores nas políticas públicas e sociais.26

Nas eleições de novembro de 1974, o descontentamento com o regime militar é manifestado, com um voto maciço na oposição. Este processo acompanha a crise econômica e torna clara a piora das condições de vida das classes médias e populares.

A expectativa de vida ao nascer no Brasil em 1970 era de 52,8 anos e de 57,9 anos em 1977. Este valor de 1977 apresenta grandes diferenças regionais pois, para São Paulo corresponde a 64,5 anos, enquanto para o nordeste 49,1 anos.27 Um estudo do IBGE-PNAD realizado

26 O golpe militar de 1964 foi um movimento político-militar deflagrado em 31 de março de 1964 com o objetivo de depor o governo do presidente João Goulart. Sua vitória acarretou profundas modificações na organização política do país, bem como na vida econômica e social. Todos os cinco presidentes militares que se sucederam desde então declararam-se herdeiros e continuadores da Revolução de 1964. Estende-se até o final do processo de abertura política, em 1985. É marcado por autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais, perseguição policial e militar, prisão e tortura dos opositores e pela censura prévia aos meios de comunicação. CENTRO DE PESQUISA E

DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL, «31 de março de 1964, o dia do Golpe Militar», Especial Golpe Militar, disponível em: http://www.unificado. com.br/calendario/03/golpe64.htm (Acesso em 22/04/08). 27 E.L. GONÇALVES, Administração..., 102.

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em 1976 mostrou que a esperança de vida ao nascer variava de acordo com o salário. Os que ganhavam menos de um salário mínimo apresentavam índices de 55,4 anos e os que recebiam mais de 5 salários 69,8 anos, para o Brasil como um todo o valor era de 60,8 anos. A título de comparação, a expectativa de vida ao nascer na Espanha em 1975 era de 70,4 anos para o sexo masculino e de 76,2 anos para o sexo feminino.28

Possas, descreve que: «a deterioração da situação econômica de 1964, acompanhada da concentração de renda e queda no salário mínimo real, levou a uma progressiva piora nos níveis de saúde» e cita o caso de Recife, onde «o coeficiente de mortalidade infantil elevou-se de 125,6 por 1000 nascidos vivos em 1964, para 229,9 em 1973, com um assustador incremento percentual de 83% em menos de 10 anos».29

Todos os dados apresentados revelam que as condições de saúde eram precárias, com a associação de doenças ditas como do desenvolvimento, como as doenças cardiovasculares e as doenças mentais e, ao mesmo tempo, a presença de elevados índices de doenças infecciosas, inclusive com endemias antes tidas como rurais que se expandem aos centros urbanos, como a doença de Chagas. Os altos coeficientes de mortalidade infantil demonstram que são decorrentes em muitos casos das precárias condições de vida (habitação, alimentação, saneamento, etc.).

Investigando a produção social das doenças, Possas demonstra que o padrão da população em geral, onde predominam as doenças decorrentes das precárias condições de vida, é diferente do padrão da população trabalhadora onde predominam as doenças

28 Demographic Year Book: 1981, United Nations, New York 1983, in José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria RIGOTTO, (org.), Isto é trabalho..., 124. 29 C.A. POSSAS, Saúde e trabalho: a crise da previdência social, Graal,

Rio de Janeiro 1981, 9.

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28 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

cardiovasculares, mentais, degenerativas e os acidentes ou doenças do trabalho. A partir desta constatação, mostrou que o critério de demarcação dos padrões de morbidade e mortalidade e a subordinação às formas capitalistas de produção, ou seja, ao sistema produtivo em seu conjunto, respondendo assim, a determinações de ordem tanto econômica quanto política. Ou seja, os problemas de saúde, neste período, em grande parte têm relação direta com as atividades profissionais, isto se deve ao fato do sistema capitalista visar apenas a produção e a redução de custos, o que quase sempre se torna um fator que é diretamente prejudicial à saúde dos trabalhadores, que são muitas vezes submetidos a longas jornadas de trabalho sem os devidos equipamentos e técnicas de segurança.30

Neste período histórico, as políticas públicas de saúde podem ser avaliadas em dois campos de ações: a saúde pública e a medicina previdenciária. A saúde pública predominou até 1960, sendo que no fim dos anos 70, sua atuação se restringia basicamente ao controle de endemias; campanhas de imunização, programas de suplementação alimentar e assistência materno-infantil. A saúde pública se dirigia à população em geral, principalmente à de baixa renda. Por outro lado, a medicina previdenciária se ampliou a partir dos fins da década de 50, e assumiu a predominância a partir da segunda metade dos anos 60. Voltada principalmente para a população trabalhadora, com o fornecimento da assistência médica individual para repor a força de trabalho (uma medida essencial para garantir o desenvolvimento industrial).31

Neste período a assistência médica individualizada se sobrepõe às medidas de saúde coletiva, para garantir o crescimento da industrialização. Isto se reflete nos

30 C. A. POSSAS, Saúde..., 183. 31 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria

RIGOTTO, (org.) Isto é trabalho..., 126.

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A História da Saúde Pública Brasileira // 29

crescentes gastos com a assistência médica e a diminuição do orçamento do Ministério da Saúde. O crescimento da assistência médica passa a ser de 24,7% do total das despesas dos institutos em 1966, elevando-se para 29,6% em 1967. Enquanto isso, a participação do Ministério da Saúde no orçamento da União foi reduzida progressivamente: 1964 -3,65%; 1968 -2,21%; 1972 -1,4% e 1974 -0,9%.32

O fator de maior destaque, neste período, é que em 1966 ocorre a fusão dos Institutos de Aposentadoria e Pensão, criando o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), através do Decreto n. 72, de 21/11/66. A criação do INPS representou a uniformização dos benefícios e serviços e também das contribuições. Entre os objetivos desta fusão estariam a racionalização e saneamento financeiro.

Uma característica do INPS é que os representantes do governo passam a ser majoritários em todos os órgãos colegiados, correspondendo a uma perda dos direitos dos trabalhadores de gerirem a instituição e de definirem a política previdenciária. A representação dos trabalhadores e empregados permanece minoritária até 1970, sendo então extinta. O distanciamento dos trabalhadores nos organismos de políticas públicas, em todas as instituições, fez parte da política do Estado durante todo o regime militar.33

Um fator muito importante a ser considerado é que o desconto do salário dos trabalhadores, neste período, é a base de sustentação financeira da Previdência Social. Apenas como referencial comparativo, Braga e Paula citam que os governos de outros países contribuem em média com 40% dos recursos previdenciários. No Brasil, a

32 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria

RIGOTTO, (org.) Isto é trabalho..., 129. 33 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria

RIGOTTO, (org.) Isto é trabalho..., 130.

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participação da União foi de 9,2% em 1967, chegando a 4,7% em 1976.34

A política adotada pela Previdência Social foi de compra de serviços do setor privado, resultando na ampliação dos hospitais particulares e no detrimento da sua rede própria. A incorporação de tecnologias cada vez mais avançadas no diagnóstico e tratamento médico ocorre em todo o mundo, são introduzidos exames complementares, mas que não tendem a substituir os exames anteriormente realizados. Os gastos da Previdência Social com assistência médico-hospitalar apresentam taxas muito elevadas de crescimento: 35,1% em 1964; 117,6% em 65 e 56,3% em 67. É criado um complexo médico-industrial onde o empresariado nacional está presente principalmente no fornecimento de serviços médicos e, secundariamente na produção de insumos (fármacos e equipamentos); a indústria estrangeira está presente na produção de fármacos e suas matérias-primas e na produção de equipamentos.35

Apesar dos crescentes recursos destinados à assistência médica previdenciária neste período, os indicadores de saúde não demonstram melhorias nesta área, com aumento da mortalidade infantil, o que pode ser explicado pela queda progressiva do salário mínimo real, entre outros fatores.36

É importante ainda, destacar a criação do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRORURAL), em maio de 1971. Por trabalhador rural, se definia:

pessoa física que presta serviços de natureza rural a empregador, mediante remuneração de qualquer espécie, e o produtor, proprietário ou não, que sem ser

34 J. C. S. BRAGA – S. G. PAULA, Saúde... 107. 35 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria

RIGOTTO, (org.) Isto é trabalho..., 130. 36 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria

RIGOTTO, (org.) Isto é trabalho..., 131.

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A História da Saúde Pública Brasileira // 31

empregado trabalha na atividade rural, individualmente ou em regime de economia familiar, assim entendido o trabalho dos membros da família, indispensável à própria subsistência e exercido em condições de mútua dependência e colaboração.37

Em 1972, tem início um processo de contenção de gastos com a assistência médica dos trabalhadores rurais. Com este objetivo, foi proposto que os serviços médicos dos sindicatos fossem transformados em locais de pronto-atendimento com encaminhamento dos casos mais complicados para os serviços próprios do INPS.

Após 1974, teve início uma nova conjuntura social que se refletiu nas políticas de saúde públicas, enfrentando uma forte crise econômica e política. As diferentes respostas à grave situação abrangem aspectos relacionados à assistência médica individual como a construção de hospitais, FAS (Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social), à ampliação da cobertura PPA (Plano de Pronta Ação), à distribuição de medicamentos CEME (Central de Medicamentos). Além disso, medidas emergenciais tiveram que ser tomadas em relação à meningite.

Ribeiro et al. analisam que o surto de meningite se iniciou por volta de 1971, 1972, e somente em 1974 chegou ao domínio público. Em meados de 1974, a meningite já se encontrava nas manchetes de jornais, e os desmentidos sobre o surto foram diminuindo. Houve então uma mudança de atitude do governo em relação à epidemia. Naquele momento as notícias encontradas eram, em maior parte, oficiais.38

Um detalhe importante de ser destacado é que a cidade de São Paulo foi a primeira a se mobilizar para

37 T.C. OLIVEIRA, «A evolução histórica da previdência Social Rural no Brasil», in Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, n. 16 (1988) 26. 38 A.C.T. RIBEIRO – al., Campanhas sanitárias e sua institucionalização: um estudo histórico da saúde pública no Brasil, Graal, Rio de Janeiro

1977, 87.

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enfrentar a meningite e surgiram os primeiros debates sobre a possibilidade de imunizar a população e controlar a doença. A meningite, por ser doença altamente contagiosa, rapidamente poderia se alastrar, e se constituir em uma séria ameaça ao processo produtivo, podendo afetar a economia. Mais uma vez pode-se constatar que a preocupação das autoridades nacionais não é de fato a saúde e o bem-estar da população, e sim a economia. Outro detalhe que não podemos deixar de ressaltar é que as prioridades da campanha contra a meningite, do sul para o norte/nordeste, e das capitais para o interior seguem o mapeamento corrente das principais áreas de aplicação de capital no país.

O Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), criado pela lei n. 6.168 de 09/12/1974, por solicitação do Conselho de Desenvolvimento Social, na área da saúde, serviu para financiar a construção de hospitais pela rede privada. A título de comparação, dos recursos do FAS para educação, 88% foi dirigido ao setor público, enquanto que à saúde apenas 20,3% teve o mesmo destino.39

A Central de Medicamentos (CEME), criada pelo Decreto n. 68.806 de 25/06/1971, recebeu maior atenção após 1974. Esta Central de Medicamentos tinha dois objetivos: a produção e a distribuição de medicamentos. Na prática o financiamento dos laboratórios oficiais para a produção de medicamentos foi pequeno. Os investimentos foram feitos na distribuição dos medicamentos, estendendo sua ação por todo o território nacional, nos Serviços Públicos de Saúde.40

O Plano de Pronta Ação (PPA) constituiu-se em uma rotina que previa a desburocratização do atendimento dos casos de emergência, garantindo a universalização do atendimento. Oliveira e Teixeira analisam que «essa

39 J.C.S. BRAGA – S.G. PAULA, Saúde..., 128. 40 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria

RIGOTTO, (org.) Isto é trabalho..., 133.

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A História da Saúde Pública Brasileira // 33

medida de grande valor político vinha a atender à demanda frequentemente expressa no noticiário jornalístico através de denúncias sobre casos de morte decorrentes da falta de atendimento.41

As mudanças ocorridas no Ministério da Saúde a partir de 1974 foram a criação do Programa Nacional de Alimentação (PRONAM) e do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS). Estes programas estavam voltados para as populações mais carentes, concentradas principalmente na região Nordeste.

Em 1978, através da lei n. 6.439, foi criado o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, visando a reorganização do sistema de saúde pública, racionalizando os custos e enfrentando a elevação dos gastos com assistência médica. Porém, a crise financeira da Previdência Social que se acentua a partir de 1978 é decorrente da queda dos salários, principal fonte de renda da Previdência Social Brasileira.

1.6 Condições de Vida e Saúde no Brasil, no Período Após 1980 Particularmente das últimas décadas, a

industrialização acelerada da produção, sustentada pela transformação do conhecimento científico em tecnologia, pela informática; o crescimento demográfico, a urbanização crescente, a expansão dos meios de comunicação de massa, transformando o planeta em uma «aldeia global», a serialização da mídia, entre outros fatores da vida moderna, é responsável por uma mudança substancial no viver dos brasileiros, tanto individual como coletivamente.

Pode-se dizer que, paralelamente ao processo de industrialização no Brasil, observam-se a redução nas

41 J.A.A. OLIVEIRA – S.M.F. TEIXEIRA, (IM)Previdência..., 250.

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taxas de mortalidade infantil e a elevação da expectativa de vida ao nascer, sugerindo uma melhoria das condições de vida da população. Entretanto, não pode deixar de ser registrada a diferença observada entre as cinco regiões brasileiras, especialmente o contraste entre o nordeste e o sul, correlacionada com as diferenças econômicas, socioculturais e a possibilidade de acesso a bens e serviços.42

A luta por melhores condições de vida e de trabalho ganhou novo impulso no cenário que se delineou no país, no final da década de 70, com o início do processo de retorno, lento e gradual, ao Estado de Direito, com a distensão da relação Estado autoritário burocrático/sociedade civil, no processo de abertura política ou transição democrática.

O processo social, desdobrou-se em uma série de iniciativas, entre elas a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, em março de 1986, e na Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, em dezembro do mesmo ano, que se constituíram em fóruns importantes de discussão da realidade brasileira, e de formulação de propostas para a Assembleia Nacional Constituinte, instalada no ano seguinte.

A nova Carta Constitucional Brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988, introduz um conceito de saúde, expresso no artigo 196:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção e recuperação.43

42 José Tarcísio BUSCHINELLI – Lys Esther ROCHA – Raquel Maria

RIGOTTO, (org.) Isto é trabalho..., 143. 43 SENADO FEDERAL, Constituição da República Federativa do Brasil. Texto Constitucional de 5 de outubro de 1988 com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais no 1/92 a 22/99 e Emendas Constitucionais de Revisão n. 1 edição atualizada em 1999, Artigo 196,

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A História da Saúde Pública Brasileira // 35

A saúde pública e a assistência social estão

contempladas nos artigos que vão do número 196 a 204 de nosso texto constitucional. Estes artigos apresentam alguns avanços, que sintetizamos da seguinte maneira:

A definição do direito universal à saúde (art. 196). A relevância dada às ações e serviços públicos de

saúde (art. 197). A constituição do Sistema Único de Saúde (SUS),

integrando os serviços e ações em uma rede hierarquizada, regionalizada, descentralizada, com atenção integral e participação da comunidade (art. 198).

A participação do setor privado de forma complementar, mediante contrato de direito público (art. 199).

A obrigação do empregador de indenizar o trabalhador vítima de acidente de trabalho, quando incorrer em dolo ou culpa, na vigência do seguro contra acidentes do trabalho (art. 201).

Proteção do trabalhador em situação de desemprego involuntário (seguro desemprego) (art. 201).

Proteção à maternidade e à gestante (art. 201). A habilitação e reabilitação das pessoas portadoras

de deficiências e a promoção de sua integração à vida comunitária (art. 203).

A garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (art. 203).44

Senado Federal, subsecretaria de Edições Técnicas, Brasília 1999, 117. 44 SENADO FEDERAL, Constituição da República Federativa do Brasil...,

artigos de 196 a 204, 117-120.

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1.7 As Condições de Vida e Saúde no Brasil de 1992 ao Governo Lula No período de 1991 a 1994, com a eleição do

Fernando Collor de Mello é implementada, com toda a força, uma política neoliberal-privatizante, com um discurso de reduzir o Estado ao mínimo. Embora no discurso as limitações dos gastos públicos devessem ser efetivadas com a privatização de empresas estatais, na prática a redução de gastos atingiu todos os setores do governo, inclusive o da saúde. Em função da criação do SUS (Sistema Único de Saúde), e do comando centralizado do sistema pertencer ao Ministério da Saúde, o INAMPS torna-se obsoleto e é extinto em 1993. Em 1995 Fernando Henrique Cardoso assume o governo, mantendo e intensificando a implementação do modelo neoliberal, atrelado à ideologia da globalização e da redução do «tamanho do estado».45

Em 1996 a crise de financiamento do setor saúde se agrava, e o próprio ministro da Saúde, Adib Jatene, reconhece a incapacidade do governo em remunerar adequadamente os prestadores de serviços médicos e de que a cobrança por fora é um fato (quem não podia pagar, não era atendido). Na busca de uma alternativa econômica como fonte de recurso exclusiva para financiar a saúde, o próprio Ministro propõe a criação da CPMF (contribuição provisória sobre movimentação financeira). É importante mencionar, esta «contribuição» que seria como um imposto, teria uma duração definida de vigência que seria por um período de um ano, e que os recursos arrecadados somente poderiam ser aplicados na área de saúde. Neste período a assistência médica hospitalar, principalmente à população mais pobre é quase totalmente comprometida: atendimento de pouca qualidade, filas de espera para o atendimento que em muitos casos chegavam a durar

45 Marcus Vinícius POLIGNANO, História das políticas públicas de saúde no Brasil, Papirus, Belo Horizonte 2005, 24-25.

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meses, falta de recursos para a realização de exames e procedimentos, greves constantes, etc.46

A crise de financiamento do SUS (cujo motivo de origem foi o baixo valor pago pelos serviços prestados pelos hospitais conveniados ao SUS e a demora na liberação desses recursos), agrava a operacionalização do sistema, principalmente no que se refere ao atendimento hospitalar. A escassez de leitos nos grandes centros urbanos passa a ser uma constante. Os hospitais filantrópicos, especialmente as Santas Casas de Misericórdia, de todo o país tomam a decisão de criar planos próprios de saúde, atuando no campo da medicina supletiva. No bojo do pacote recessivo é aprovado no congresso, em março de 99, o aumento da CPMF de 0,20 para 0,38 % (aquele imposto criado para ser provisório e que deveria ser destinado unicamente para a saúde).47

De 2003 a 2006, durante o primeiro mandato de governo do Presidente Lula,48 a política econômica favoreceu largamente os interesses do capital financeiro nacional e internacional, no entanto, o governo implementou uma série de programas e iniciativas direcionadas aos segmentos mais pobres da população brasileira, iniciativas estas que se refletiram diretamente na alimentação e consequentemente no campo da saúde.49

Uma das suas principais ações nesta área de combate à pobreza, é o programa chamado Bolsa Família.50 Um programa de transferência de renda para as

46 Marcus Vinícius POLIGNANO, História..., 26. 47 Marcus Vinícius POLIGNANO, História..., 28. 48 O primeiro mandato do Presidente Lula foi de 2003 a 2006; o segundo mandato, de 2007 a 2009. 49 Rosa Maria MARQUES – Áquila MENDES, «Servindo a dois senhores: as políticas sociais no governo Lula», Revista Katálysis, v. 10 n. 1 (2007) 16, in www.scielo.br/pdt/rk/v10n1/v10n1a03.pdf (Acesso: 09/04/08). 50 O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em

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famílias situadas abaixo da linha de pobreza. Esse programa, ainda no dizer oficial, foi criado para combater a miséria e a exclusão social e para promover a emancipação das famílias mais pobres. Essa iniciativa foi fruto da unificação de diversos programas pré-existentes, tais como o Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e o Auxílio Gás (cada um deles sob a tutela de um Ministério diferente durante a gestão FHC). Na realidade, deu-se uma ampliação muito significativa, tanto em relação à cobertura quanto em relação ao benefício concedido. Em maio de 2006 o programa estava implantado em 99,9% dos municípios brasileiros, beneficiando 11,118 milhões de famílias, atingindo, portanto, quase 47 milhões de brasileiros. Em relação ao valor do benefício, diferenciou-se dos benefícios concedidos anteriormente por introduzir uma parte fixa, não relacionada à existência de filhos em idade escolar, o

situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 60,01 a R$ 120,00) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 60,00), de acordo com a Lei 10.836, de 09 de janeiro de 2004 e o Decreto nº 5.749, de 11 de abril de 2006. O PBF integra o fome zero, que visa assegurar o direito humano à alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuindo para a erradicação da extrema pobreza e para a conquista da cidadania pela parcela da população mais vulnerável à fome. O Programa pauta-se na articulação de três dimensões essenciais à superação da fome e da pobreza: ▪promoção do alívio imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda à família; ▪reforço ao exercício de direitos sociais básicos nas áreas de Saúde e Educação, por meio do cumprimento das condicionalidades, o que contribui para que as famílias consigam romper o ciclo da pobreza entre gerações; ▪coordenação de programas complementares, que têm por objetivo o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários do Bolsa Família consigam superar a situação de vulnerabilidade e pobreza. São exemplos de programas complementares: programas de geração de trabalho e renda, de alfabetização de adultos, de fornecimento de registro civil e demais documentos. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO

SOCIAL, «Programa Bolsa Família», in http://www.mds.gov.br/ bolsafamilia/o_programa_bolsa_familia/o-que-e (Acesso: 09/04/08).

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que, sem dúvida, foi um avanço, não permitindo dizer que se trata de uma simples continuação de um programa já existente. Vale lembrar que as famílias beneficiadas, com filhos entre zero e 15 anos de idade, devem como contrapartida, matricular e garantir a frequência de seus filhos na escola, cumprir o calendário de vacinações, fazer o acompanhamento pré-natal e participar de ações educativas sobre o aleitamento materno e alimentação saudável.51

Outro elemento importante a ser considerado durante o governo Lula, é o salário mínimo e a renda dos trabalhadores. Entre dezembro de 2002 e setembro de 2006, o salário mínimo real aumentou 40%, beneficiando os trabalhadores de baixa renda e os beneficiários do piso previdenciário, principalmente rurais e do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Contudo, a evolução do rendimento dos trabalhadores não acompanhou essa melhora do salário mínimo, muito pelo contrário. O mau desempenho econômico registrado no primeiro ano do governo Lula (2003) provocou redução de 12,6% do rendimento médio habitual real52 do trabalhador brasileiro em relação a 2002.53

Diante de tudo o que foi exposto, podemos afirmar que o programa de transferência de renda, desenvolvido pelo governo Lula, de fato alterou as condições de vida das famílias beneficiadas, retirando-as da pobreza absoluta. Contudo, ao não estar associado a mudanças estruturais, pois os determinantes da pobreza não foram alterados, não impede que novos contingentes nessa situação

51 Rosa Maria MARQUES – Áquila MENDES, «Servindo...», 20-21. 52 No cálculo do rendimento médio habitual não são considerados as horas extras, os atrasos, as férias, etc. 53 IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio 2004, disponível em: www.ibge.gov/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2004. (Acesso 10/04/08).

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surjam e nem que essas famílias possam, a médio e longo prazo, viverem sem esses recursos.

Porém, neste período, a avaliação das condições de vida e saúde da população brasileira revela um quadro de extrema gravidade, parte de uma crise social mais ampla e profunda, cuja complexa configuração se traduz por profundas transformações no perfil epidemiológico e demográfico. As transformações demográficas expressam-se, sobretudo, pelo crescimento populacional com aumento da expectativa de vida e da população idosa. Enquanto as epidemiológicas, pelo avanço de doenças crônico-degenerativas (diabetes, câncer, doenças renais, entre outras), das cardiovasculares (doenças isquêmicas do coração, hipertensão e doenças cerebrovasculares) e dos transtornos mentais; a ocorrência crescente das causas externas (principalmente acidentes, intoxicações e homicídios); a persistência de doenças infecciosas e parasitárias, como a febre amarela silvestre, malária, tuberculose, meningite, hepatites virais e esquistossomose e o aparecimento de doenças emergentes (Aids, hantavirose) e re-emergentes (dengue, cólera).54O principal desafio que se coloca para o governo do Brasil, neste período, é o de garantir o direito constitucional da população ao atendimento de suas necessidades. Essa garantia passa desde a adoção de políticas promotoras da saúde e bem-estar em todas as regiões do País, nas zonas urbanas e rurais, à prevenção das principais doenças e agravos à saúde, até o atendimento dos casos mais graves e complexos.

54 Ana Maria de BRITO, «A saúde no governo Lula: da Constituição à inclusão social», in Jornal do Comércio, O PT no Poder, disponível em http://www2.uol.com.br/JC/sites/POSSE_LULA/desafios_saude.htm. (Acesso: 10/04/08).

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CAPÍTULO II

A RELAÇÃO ENTRE A POBREZA E A SAÚDE DA POPULAÇÃO NO BRASIL

2.1 Medicina, Saúde e Doença A medicina pode ser definida como o «conjunto de

conhecimentos científicos destinados a promover, proteger e recuperar a saúde do homem»55. Disso não se pode nem se deve concluir que a saúde é uma decorrência da prática da medicina. Não é a quantidade de médicos, de enfermeiros, de medicamentos, de leitos hospitalares, que determina o nível de saúde de uma população.

As categorias de saúde e de doença se referem a duas situações, à primeira vista de simples definição. Mas em efeito, delinear estes conceitos é uma tarefa um tanto complexa e não unívoca, sendo em estreita dependência dos diversos modelos antropológicos subjacentes e nem sempre claramente explicitados.56

A categoria tradicional de saúde era de natureza tipicamente médica porque se definia a saúde como ausência de doença e assim, se tomava como ponto de partida a doença entendia como um desvio das condições ideais de funcionamento e de integridade do organismo. Durante o século XX se impõe uma nova visão que alargava a compreensão da saúde às estruturas sociais,

55 Carlos GENTILE DE MELLO, A medicina e a realidade brasileira, Achiamé, Rio de Janeiro 1983, 13. 56 D. ENGELHARDT, «Health and Disease. History of a Concept», in W. T. REICH (a cura de), Encyclopedia of Bioethics, vol. 2, MacMillan, Nova Yorque 1995, 1085-1092; E. SCHOCKENHOFF, Etica della vita, Queriniana, Brescia 1997, 219-242; C. VIAFORA, «Malattia», in F. COMPAGNONI, (a cura de), Etica della vita, Paoline, Cinisello Balsano

1996, 81-116.

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trabalhistas, recreativas, educativas, habitacionais e alimentares.

A esta nova compreensão, mais ampla, podemos atribuir a definição de saúde feita pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no Protocolo de Constituição, em 22 de julho de 1946: «A saúde é um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade».57

Embora a medicina possa influir, de alguma maneira, nos indicadores técnicos que traduzem o grau de salubridade de determinado contingente demográfico, hoje, não se tem dúvidas: a saúde depende de como as pessoas se alimentam, como moram, em que condições trabalham, como se vestem, como se divertem. Em resumo, o nível de saúde depende do nível de vida.

Segundo Carlos Gentile de Mello, o pastor anglicano e economista Thomas Robert Malthus, celebrizado pela formulação da sua teoria de população, em 1798 fazia referência aos fenômenos que tendem a abreviar a duração natural da vida e mencionava os ofícios malsãos, os trabalhos rudes, penosos ou expostos à inclemência do tempo, a extrema pobreza, a má alimentação das crianças, a insalubridade das grandes cidades, os excessos de todos os gêneros e terminava referindo-se às doenças às epidemias, à guerra, à peste e à fome.58

A promoção da saúde é muito mais do que simplesmente a remoção dos agentes causadores de patologias e a reconstituição de um estado de ideal normalidade orgânica. É a promoção de comportamentos e de condições de vida que permitam à pessoa atingir um pleno bem-estar psíquico, físico e relacional. Se a saúde é uma realidade global, esta deve ser pensada e promovida

57 V. CORSINI, Codice delle Organizzazioni Internazionali, Giuffré, Milano 1958, 83, citado por Lino CICCONE, La vita umana, Edizione Ares, Milano 2000, 202. 58 Carlos. GENTILE DE MELLO, A medicina e a realidade..., 13.

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através de projetos que abranjam as mais diversas dimensões da pessoa humana, o que não pode ser objetivo apenas da medicina, mas que na medicina e nas políticas sanitárias, integradas ao interno de escolhas políticas de maior amplitude, encontram grande ajuda. A mesma medicina que a um tempo se ocupava quase que exclusivamente de curar as doenças, agora se apresenta sempre mais empenhada na prevenção e na promoção de estilos de vida saudáveis. A saúde se torna sempre mais um objetivo a perseguir coletivamente e um índice do progresso e desenvolvimento de uma sociedade. Sem deixar de ser uma grande prova para aqueles que têm responsabilidade pública de promover e defender a saúde da população.

A Constituição Federal Brasileira promulgada em 1988, no artigo n. 196 define, como já vimos no capítulo anterior:

A saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.59

Sendo a saúde um bem essencial da pessoa é

necessário que a sociedade se empenhe em reconhecer e promover para todos o direito à mesma. Apenas em nível social, a saúde entendida em um modo mais amplo, pode ser tutelada de forma adequada. O conteúdo deste direito depende do sentido preciso que atribuímos à categoria de saúde e pode prestar-se a equívocos e mal entendidos. A expressão direito à saúde não pode indicar o direito de

59 SENADO FEDERAL Constituição da República Federativa do Brasil. Texto Constitucional de 5 de outubro de 1988 com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/92 a 22/99 e Emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/94, Subsecretaria de Edições Técnicas, Brasília 1999.

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estar em saúde, porque a condição de saúde muitas vezes não é atingível através da medicina ou outros meios humanamente acessíveis. Existe, porém, o direito a ser ajudado pela sociedade e pela medicina socializada a reconquistar e conservar a própria saúde, através de adequadas condições de vida e acesso a tratamento e assistência médica, direitos básicos e fundamentais de qualquer cidadão. Este direito infelizmente sempre foi desrespeitado ao longo de nossa história e, em nossos dias, continua sendo gravemente desrespeitado. A origem deste desrespeito é a injustiça social e o desrespeito à dignidade humana.

O tema da saúde se entrelaça necessariamente com o tema da justiça e pode ser declinado segundo os diversos níveis e aspectos que a justiça sanitária conhece. Vai-se do problema da repartição dos recursos sanitários a nível planetário, a decisões cotidianas como renunciar a fornecer tratamentos onde uma vida não pode mais gozar de um estado de bem-estar ao menos mínimo, julgando como terapias inúteis a respeito de seus objetivos e negando, por causa disso, o permanente direito ao acesso aos tratamentos. É desconcertante pensar que um direito fundamental da pessoa, como o direito à saúde, possa ser relativizado a tal ponto e assumir contornos assim diversos nos diversos contextos culturais, sociais, políticos e existenciais.

A Igreja católica vem lutando contra esta grave injustiça social desde seus primórdios, promovendo a dignidade das pessoas, principalmente dos mais pobres e abandonados pela sociedade, com diversas formas de assistência: asilos, orfanatos, escolas e principalmente hospitais. Estas entidades assistenciais forneciam e fornecem, ainda hoje em muitos lugares, serviços que competem ao Estado. Ao longo de seus dois milênios de existência, o cristianismo vem inspirando muitas pessoas à prática da caridade, basta apenas recordar as diversas congregações religiosas surgidas com o carisma de assistência aos mais pobres e necessitados. Esta

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promoção e defesa da dignidade humana, que por séculos foi praticada como «obra de caridade», a partir de Leão XIII, com a Rerum Novarum, passa a ser entendida como «dever de justiça», conforme veremos mais adiante, no terceiro capítulo, ao tratarmos sobre a Doutrina Social da Igreja.

2.2 Pobreza e Saúde no Brasil Dado que a saúde, definida pela OMS como «um

estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade»60 está relacionada diretamente com fatores econômicos, parece-nos fundamental apresentar, ao menos em linhas gerais, a situação da pobreza no Brasil para podermos relacioná-la à saúde da população nas últimas décadas.

Dependente economicamente desde sua descoberta e mantido muitos séculos como mero fornecedor de matérias-primas para Portugal, Espanha, Holanda ou Inglaterra, somente nos últimos cinquenta anos o Brasil iniciou o rompimento com uma economia de monocultura e latifúndio, para implantar a policultura e a industrialização.61

O espaço de tempo desde que essas iniciativas começaram a ser tomadas até hoje é muito pequeno e, assim, o Brasil não conseguiu ainda lançar-se totalmente em uma «revolução industrial» capaz de alterar substancialmente algumas estruturas sociais já superadas.62

O valor da produção industrial brasileira supera em quase três vezes o valor da produção agrícola; no entanto, cerca de um quarto da produção industrial do país provém

60 V. CORSINI, Codice…, 83. 61 Manoel Maurício de ALBUQUERQUE, Pequena Historia..., 314. 62 Celso ANTUNES, Brasil: problemas e perspectivas, Vozes, Petrópolis 1973, 21. 62 Celso ANTUNES, Brasil..., 21.

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dos setores têxteis e alimentares que, em última análise, são produções agrícolas ou pastoris. Não podemos, portanto negligenciar o destaque da agricultura brasileira, constituindo com a produção industrial, uma das bases mais sólidas de nossa economia.63

Com cerca de 44% da população economicamente ativa dedicada à agricultura, coleta vegetal e pecuária, o Brasil é um grande produtor de culturas tropicais (café, arroz, milho, algodão, feijão, cana-de-açúcar), possuindo ainda um dos maiores rebanhos bovinos do mundo, muito embora a técnica agropecuária desenvolvida, de maneira geral, no nosso país, ainda esteja em estado quase primário de evolução.64

Os contrastes entre a renda interna e os padrões de alimentação e saúde são violentos. De um lado se convive com os danos causados pela fome e, de outro, com os males provocados por padrões de alimentação «ocidentais», uma dieta cada vez mais baseada em alimentos pobres em nutrientes e ricos em gordura e açúcares. São muitos os brasileiros que enfrentam dificuldades para se alimentar: sacrificam outros gastos básicos, recorrem a programas governamentais como a merenda escolar e a alimentação do trabalhador, ou dependem da caridade privada. Tais dificuldades foram recentemente captadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Com efeito, segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003, 47% das famílias brasileiras declararam ter restrições para comprar alimentos e entre estas, 14% afirmaram que o alimento disponível é insuficiente.65 Já em relação à obesidade, os dados existentes mostram mudanças nos hábitos alimentares dos brasileiros rumo a uma dieta cada vez mais desequilibrada. De um lado, aumenta-se a

63 Celso ANTUNES, Brasil..., 20. 64 Celso ANTUNES, Brasil..., 21. 65 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar social – 2005,

Ipea, Brasília 2005, 56.

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presença de alimentos ricos em gordura, em especial os de origem animal, além de açúcares e alimentos refinados. De outro, diminui-se a ingestão de nutrientes como carboidratos complexos e fibras. O impacto deste desbalanceamento no perfil nutricional já é evidente. Segundo a POF 2002-2003, 41% dos brasileiros adultos sofrem de sobrepeso; destes, 27% (10,5 milhões de pessoas) são considerados obesos. Com isso, cresce na população o risco de adoecer e de morrer em decorrência de males crônicos como diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer.66

Hoje o Brasil encontra-se mergulhado em uma profunda crise social, expressa principalmente pelos altos índices de violência e caracterizada pelo falimento dos sistemas de segurança pública e do sistema penitenciário. Também os sistemas educacional, habitacional e da saúde públicos são expressões claras dos efeitos da má distribuição de renda que nos coloca entre os países de maior desigualdade social.

Por razões de praticidade, consideraremos a pobreza em sua dimensão particular de insuficiência de renda (apesar de ser apenas uma das dimensões da pobreza), ou seja, há pobreza apenas na medida em que existem famílias vivendo com renda familiar per capita inferior ao nível mínimo necessário para que possam satisfazer suas necessidades mais básicas. O valor determinado pela linha de indigência refere-se ao custo de uma cesta alimentar básica definida regionalmente, que contemple as necessidades de consumo calórico mínimo de um indivíduo.67 A linha da pobreza é calculada como

66 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 56. 67 De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), o valor mínimo diário recomendado é de 2300 a 3100 calorias por pessoa, dependendo da idade e do tipo de atividade exercida pela pessoa. Fausto CUPERTINO, População e saúde pública no Brasil (Povo pobre é povo doente), Civilização brasileira, Rio de

Janeiro 1976, 11.

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múltiplo da linha de indigência, considerando os gastos com alimentação como uma parte dos gastos totais mínimos, referentes, entre outros, a vestuário, habitação e transportes.68

A pobreza, evidentemente, não pode ser definida de forma única e universal. Contudo, podemos afirmar que se refere a situações de carência, onde indivíduos não conseguem manter um padrão mínimo de vida condizente com as referências socialmente estabelecidas em cada contexto histórico. Desta maneira, a abordagem conceitual da pobreza absoluta requer que possamos, inicialmente, construir uma medida, invariante no tempo, das condições de vida dos indivíduos em uma sociedade. A noção de linha de pobreza equivale a esta medida. Em última instância, uma linha de pobreza pretende ser o parâmetro que permite a uma sociedade específica considerar como pobres todas aquelas pessoas que tenham uma renda abaixo deste valor.69

A partir da análise das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs), realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) podemos reconstruir a evolução da pobreza e da indigência no Brasil.70 Estas pesquisas domiciliares anuais permitem construir uma diversidade de indicadores sociais que retratam, entre outros, a evolução da estrutura da distribuição dos padrões de vida e da apropriação de renda dos indivíduos e das famílias brasileiras.71

68 Fausto CUPERTINO, População e saúde..., 11. 69 Ricardo Paes de BARROS – al., «Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável», in Revista Brasileira de ciências sociais 42 (2005) 2. 70 Estas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs), estão disponíveis no site do IBGE, in http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/ populacao/default_censo_2000.shtm. 71 Observe-se que não existem PNADs para os anos de 1980 a 1991 e para o ano de 1994.

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Em 1998, de acordo com os resultados das

PNADs, cerca de 14% da população brasileira vivia em famílias com renda inferior à linha de indigência e 33% em famílias com renda inferior à linha de pobreza. Deste modo, aproximadamente 50 milhões de brasileiros podem ser classificados como pobres e 21 milhões como indigentes.72

Segundo o resultado das PNADs, ao longo das últimas décadas a intensidade da pobreza manteve um comportamento de relativa estabilidade, com apenas duas pequenas contrações, concentradas nos momentos de implantação dos planos Cruzado e Real.73 Este

72 «Os cálculos do número de pobres geram controvérsias, dependendo da metodologia utilizada, chega-se a resultados diferentes. Em nível internacional, mesmo instituições que tradicionalmente tratam da pobreza, como o Banco Mundial e a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), da ONU, não usam os mesmos critérios para dimensioná-la. No Brasil também não há consenso sobre a melhor maneira de dimensionar a pobreza. O governo federal adota como parâmetro o salário mínimo. Os muito pobres ou indigentes são o grupo populacional com renda de até um quarto de salário mínimo domiciliar per capita; e os pobres, o grupo populacional com renda de até meio salário mínimo domiciliar per capita. Em ambas as definições, de indigentes e pobres, o cálculo dos grupos populacionais é feito a partir de um parâmetro de renda abaixo do qual se supõe que um indivíduo não consegue atender suas necessidades básicas. E o que distingue o cálculo de indigentes do de pobres é justamente o que se entende por necessidades básicas. Assim, há duas linhas: uma chamada de indigência e outra de pobreza. A primeira leva em conta somente a renda necessária para o suprimento alimentar. Já a de pobreza considera a renda suficiente para o suprimento das necessidades essenciais, incluindo, além de alimentação, moradia, transporte, saúde, educação, etc. Como não há parâmetros rigorosos para calcular essas outras necessidades, o valor da linha de pobreza é arbitrariamente considerado como o dobro do valor da linha de indigência, a partir da suposição de que essa renda é suficiente para suprir as necessidades básicas alimentares e não-alimentares»

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 60. 73 O Plano Cruzado, um plano de estabilização econômica, foi sem dúvida a maior intervenção do governo na economia brasileira, na história recente do país. Uma boa síntese deste plano e das consequências de sua aplicação pode ser encontrada em: José Odelso

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comportamento estável, com a porcentagem dos pobres oscilando entre 40% e 45% da população, apresenta flutuações associadas, sobretudo, à instável dinâmica macroeconômica do período. O grau de pobreza atingiu seus valores máximos durante a recessão do início dos anos 80, em 1983 e 1984, quando a porcentagem de pobres ultrapassou a barreira dos 50%. As maiores quedas resultaram, como dissemos, dos impactos dos planos Cruzado e Real, fazendo a porcentagem de pobres cair abaixo dos 30% e 35%, respectivamente. A combinação entre as flutuações econômicas e o crescimento populacional fez com que o número de pobres chegasse a quase 64 milhões na crise de 1984 e a menos de 38 milhões em 1986.74

No final da década de 80, registra-se uma aceleração no contingente da população pobre e, no período após a implantação do Plano Real, cerca de 10 milhões de brasileiros deixaram de ser pobres. O levantamento de dados de 2003 mostra que a renda domiciliar per capita média no Brasil era de R$ 360,50 equivalentes a um salário mínimo e meio. No entanto, quando se analisam os dados por Estados (unidades da Federação), observam-se discrepâncias. As rendas mais elevadas são dos habitantes das regiões Sudeste e Sul, com destaque para o Estado de São Paulo, com renda domiciliar per capita média de R$ 501,20, quase uma vez e meia a média nacional e mais de duas vezes o salário mínimo. Além de São Paulo, cabe mencionar o Distrito Federal que, apesar de sua população relativamente reduzida, apresenta renda domiciliar per capita média de R$ 685,90, quase duas vezes a renda média nacional e quase três vezes o salário mínimo. Já os Estados da região Nordeste detêm as menores médias, como o Estado do Maranhão, com renda per capita domiciliar média de R$

SCHNEIDER – al., Realidade Brasileira: estudo de problemas brasileiros, Editora Sulina, Porto Alegre 1990, 10,110-115. 74 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 58.

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A Relação Entre a Pobreza e a Saúde ... // 51

169,00, menos da metade da média nacional e menos que um salário mínimo.75

Os dados também demonstram que são grandes as diferenças entre a zona rural e a urbana no que diz respeito à população de baixa renda. A proporção de pobres no meio rural, em 2003, é mais que o dobro da observada no meio urbano (57,1% contra 27%). É verdade que, em termos absolutos, o maior número de pobres está no meio urbano: 38,7 milhões de brasileiros. No meio rural, são 15,3 milhões. Esse fato decorre, entre outros motivos, do acelerado processo de urbanização pelo qual o país passou nas últimas décadas, concentrando boa parte da população nas cidades (mais de 80%), fenômeno este agravado pela falta de saneamento e de infraestrutura. No entanto, ao analisar os dados em termos relativos, observa-se que a área rural é mais pobre, pois, por ser menos populosa (menos de 20% da população), é majoritariamente composta por pessoas pobres (57,1%).76

Avaliando por regiões, a região Nordeste é a que abriga o maior contingente de pobres, com 55,3% de sua população vivendo com até meio salário mínimo de renda domiciliar per capita. Esse percentual é entre duas e três vezes superior ao das regiões Sudeste e Sul, que apresentam as menores percentagens (20,4% e 18,1% respectivamente). Em termos absolutos, são 26,9 milhões de pessoas pobres no Nordeste, 15 milhões no sudeste e 4,7 milhões no Sul.77

A comparação do número de pobres do Brasil com o de outros países é dificultada em razão dos diferentes critérios e métodos por vezes usados pelos países.78 No

75 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 55. 76 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, Tendências ..., 54. 77 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, Tendências..., 55. 78 O dólar ajustado pela paridade de poder de compra (dólar PPC), que elimina as diferenças de custo de vida entre os países, permite alguma comparação entre os números de pessoas pobres e de pessoas

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entanto, em termos de desigualdade, é possível afirmar que a distribuição de renda no Brasil é uma das piores do mundo. Considerando o índice de Gini79 de 130 países selecionados, o Brasil é o penúltimo colocado (0,06) superado apenas por Serra Leoa (0,62). O índice brasileiro é aproximadamente duas vezes e meia pior que o verificado na Áustria (0,23) e na Suécia (0,25), nações que estão entre as que têm renda mais bem distribuída no mundo, e também pior que o observado em países com características semelhantes às brasileiras, como o México (0,53).80

Uma vez que a saúde tem uma dimensão ampla e significativa, que reflete os avanços obtidos pela sociedade na realização de seus objetivos de justiça social, alguns indicadores podem nos ajudar a compreender ainda melhor a relação direta entre a injustiça social, produtora de uma situação crônica de pobreza, e suas consequências diretas no estado de saúde de milhões de brasileiros. Entre estes indicadores, analisaremos a mortalidade infantil, as doenças infecciosas e parasitárias que ainda requerem controle

indigentes no Brasil e em outros países. Este mecanismo é utilizado pelo Word Bank na mensuração da pobreza e da indigência em vários países do mundo. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 61. 79 Índice de GINI: criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero a um (alguns apresentam de zero a cem). O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda. O valor um (ou cem) está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa detém toda a riqueza. Na prática, o Índice de Gini costuma comparar os 20% mais pobres com os 20% mais ricos. No Relatório de Desenvolvimento Humano 2004, elaborado pelo Pnud, o Brasil aparece com Índice de 0,591, quase no final da lista de 127 países. Apenas sete nações apresentam maior concentração de renda. Paulo Cezar RIBEIRO, «Índice de GINI», in Site dos índices, disponível em: http://www.ai.com.br/pessoal/indices/gini.htm (Acessado em 25/04/08). 80 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 61.

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(também chamadas de «doenças da pobreza»), o problema habitacional e a taxa de mortalidade por causas externas.

2.3 Mortalidade Infantil A mortalidade infantil tem sido historicamente

utilizada como um bom indicador de avaliação da saúde e das condições de vida da população, sendo interpretada como a probabilidade de um nascido vivo falecer antes de completar o seu primeiro ano de vida. Os valores de taxa de mortalidade infantil, ao longo dos censos foram classificados como altos até 1980, e com os resultados do Censo Demográfico 2000, já poderiam ser classificados como médios, de acordo com a OMS. A atuação da Pastoral da Criança,81 um mecanismo de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tem uma grande colaboração nesta mudança na taxa de mortalidade infantil.

Considerando-se os dados por regiões, a região Nordeste sempre se manteve em patamares elevados, embora com tendência declinante. A região Sul detém historicamente os menores índices de mortalidade infantil do país e com os resultados do Censo Demográfico 2000

81 A Pastoral da Criança é uma organização comunitária, ecumênica, de atuação nacional e internacional, que tem seu trabalho baseado na solidariedade humana e na partilha do saber. O objetivo é o desenvolvimento integral das crianças, desde a concepção até os seis anos de idade, em seu contexto familiar e comunitário, a partir de ações preventivas e que fortaleçam o tecido social e a integração entre as famílias e a comunidade. Sua principal característica é a sua imensa rede de solidariedade, formada por 267 mil voluntários, trabalhando no combate à fome, à desnutrição e à mortalidade infantil, que atuam em nível comunitário, e que dão sustentação à instituição. O voluntário da Pastoral da Criança realiza mais do que um trabalho junto às famílias que acompanha: ele tem uma missão de Fé e Vida, de fraternidade cristã, de amor e de corresponsabilidade social. Para um melhor conhecimento desta pastoral pode-se visitar o site: http://www. pastoraldacrianca. org.br/index.php.

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esses valores foram considerados baixos. Entre 1990 e 2000, a mortalidade infantil no Brasil passa de 47,5 óbitos de menores de 1 ano para cada 1000 nascidos vivos, para 29,7, ou seja, um decréscimo de 37,5%. Apesar dos avanços alcançados no indicador, ainda persistem profundos contrastes regionais. É importante destacar que durante este período, a região Nordeste apresentou um declínio na taxa de mortalidade infantil de aproximadamente 44%, destacando-se nesta região os Estados do Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba que apresentaram média superior àquele valor.82

Crianças menores de 1 ano de idade que morrem por 1000 nascidos vivos durante o período de 1 ano.

82 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, Tendências..., 52.

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Podemos também através dos dados do IBGE - censo 2000, comparar a taxa de mortalidade infantil do Brasil com as de outros países da América do Sul e em outros continentes.

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Juntamente com a mortalidade infantil, podemos associar a mortalidade materna como decorrente de condições de pobreza e de dificuldades de acesso a serviços de saúde de boa qualidade e de saneamento do meio ambiente. Tais condições ocasionam as deficiências nutricionais e aumentam o risco de contágio de doenças transmissíveis em crianças, assim como acarretam diversos problemas de saúde às mães que as podem levar à morte durante a gravidez, o parto e o período de amamentação do recém-nascido. As principais causas de morte materna no país são hipertensão arterial, infecções do pós-parto e complicações relacionadas ao aborto. A mortalidade de crianças e mães está diretamente relacionada às condições de assistência médica durante o período pré-natal, durante o parto e durante o

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desenvolvimento e crescimento da criança nos seus primeiros quatro anos de vida.83

Segundo dados da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa), a mortalidade infantil caiu no Brasil nas últimas duas décadas. Mas essa queda não foi proporcional entre as faixas etárias de menores de 1 ano. A redução foi proporcionalmente maior entre as crianças na faixa de 1 a 11 meses de idade (81%) do que entre aquelas com 0 a 6 dias de vida (41%).84 Assim, atualmente ganham cada vez mais destaque as causas de mortalidade infantil que dizem respeito às condições da gestante, do parto e da criança recém-nascida, sobretudo no período que vai do nascimento até aos 27 dias de vida, período esse, denominado de período neonatal. Houve uma redução significativa da mortalidade entre crianças menores de 5 anos durante a década de 1990, graças à melhora da cobertura vacinal e ao impacto de procedimentos simplificados de saúde, capazes de evitar as mortes provocadas por diarreias e infecções respiratórias. Esta redução, como já acenamos antes, é também devida ao trabalho de milhares de voluntários da Pastoral da Criança, que através de medidas simples como o soro caseiro para a reidratação oral, contribuem para reduzir a desidratação (muitas vezes, provocada pelo abastecimento inadequado de água), além de outras medidas simples para combater a desnutrição e a falta de higiene.85

83 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 80. 84 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, Tendências..., 52. 85 MINISTÉRIO DA SAÚDE, «Sistema de informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), IBGE, 2004», in INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar...,

84.

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2.4 Doenças Infecciosas e Parasitárias ou “Doenças da Pobreza”86 O controle de algumas doenças transmissíveis

pode ajudar a identificar os problemas que um país tem na área da saúde e, consequentemente, demonstrar quais os problemas sociais que mais diretamente afetam a sua população. No Brasil, é o caso da AIDS, da tuberculose, da dengue e da malária, entre outras doenças infecciosas e parasitárias.

A AIDS constitui hoje o maior exemplo de uma epidemia que ainda precisa ser controlada em toda a nossa extensão territorial. O número de novos casos vem se mantendo estável. Em 2002 registraram-se 31.047 novos casos da doença, em comparação com 31.622 em 1998, segundo estimativas do Ministério da Saúde. A mortalidade pela síndrome no Brasil é da ordem de 6 por 100 habitantes, sendo particularmente elevada nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A disseminação da AIDS no país trouxe, no entanto, reflexos na ocorrência de uma série de doenças infecciosas associadas, com destaque para a tuberculose que, apesar de ter sido considerada erradicada há algumas décadas, voltou a ser um problema de saúde pública.87

O Brasil ocupa em 2008, o 16º lugar entre os 22 países onde se verificam 80% dos casos de tuberculose diagnosticados no mundo. Meio milhão de brasileiros sofre

86 Literalmente podemos nos referir a estas doenças como «doenças da pobreza», pois dependem de fatores como saneamento básico, alimentação ou acesso à informação. De fato, essas doenças se concentram nos países pobres ou em desenvolvimento. Podemos nos referir a elas também como «doenças negligenciadas», pois são negligenciadas pela grande indústria farmacêutica que não se interessa (por questões econômicas) em desenvolver produtos que venham a combatê-las. 87 MINISTÉRIO DA SAÚDE, «Informações de saúde», in http://portal.saude. gov.br/saude/ (acesso em: 08/04/08).

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de males como esta doença. Nos últimos anos, a cada ano são 1,5 milhão de vítimas da tuberculose no mundo inteiro. No Brasil são cerca de 75 mil novos casos, com aproximadamente 5 mil vítimas.88

Um dos focos da tuberculose é a Favela da Rocinha, em pleno Rio de Janeiro, onde surgem, em média, 50 novos casos todo mês. A tuberculose é transmitida pelo ar e pelo contato com a saliva de uma pessoa infectada, e ainda não existe uma vacina totalmente eficaz contra ela.89

O mito de que a tuberculose é uma doença do passado contribuiu para que ela fosse meio «esquecida» pela população e também pelas autoridades sanitárias e hoje ela volta fortalecida, como uma doença oportunista, através da associação mortal com a AIDS, que deixa as pessoas com imunidade baixa, facilitando o seu desenvolvimento. Outros fatores agravantes são de ordem social, como a aglomeração em favelas, falta de condições de ventilação e luz solar, má alimentação, falta de saneamento básico e de medidas de higiene.90

Uma nova epidemia que afeta todo o país e chegou a apresentar mais de 5000 mil casos em 1998, e em 2002, aproximadamente o dobro do número habitual dos outros

88 MINISTÉRIO DA SAÚDE, Rede Interagencial de Informações para a Saúde, «Indicadores de mordibade e fatores de risco, D.2.2. Taxa de incidência de tuberculose», in http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?idb2006/d0202.def (acesso em: 08/04/08). 89 FANTÁSTICO, «Doenças da Pobreza», in Globo Vídeo – Player Notícias – Vídeo – Doenças da pobreza, in

http://fantastico.globo/jornalismo/ Fantastico/0,,AA 1669832,00html (acesso em: 20/01/2008). 90 A população carcerária comprova esses fatores, já que registra uma incidência de tuberculose 10 vezes maior do que a verificada nas pessoas de um modo geral. MINISTÉRIO DA SAÚDE, Rede Interagencial de Informações para a Saúde, «Indicadores de mordibade e fatores de risco, D.2.2. Taxa de incidência de tuberculose», in: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?idb2006/d0202.def (acesso em: 08/04/08).

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anos é a dengue.91 Causada por um vírus (existem quatro tipos diferentes de vírus da dengue - 1, 2, 3 e 4), que ocorre principalmente em áreas tropicais e subtropicais. As epidemias geralmente ocorrem no verão, durante ou imediatamente após períodos de chuva. A dengue pode ser transmitida por duas espécies de mosquitos (Aedes aegypti e Aedes albopictus),92 que picam durante o dia, ao contrário do mosquito comum, que tem atividade durante a noite. O processo de transmissão ocorre quando um mosquito se alimenta com o sangue de uma pessoa infectada e, após um período de incubação (8 a 10 dias), pica uma outra pessoa. Estes transmissores se proliferam em água parada (caixas d’água, cisternas, latas, pneus, cacos de vidro, vasos de plantas, etc.). A transmissão é mais frequente nas cidades.93

No Brasil, a erradicação do mosquito transmissor na década de 1930, realizada pelo controle da febre amarela, fez desaparecer também a dengue. No entanto, em 1976 ele manifestou sua presença em Salvador (BA). Em 1981 ocorreu uma epidemia (dengue vírus 1 e 4) em Boa Vista (RR) e, atualmente, a doença é registrada em todas as regiões do país. No Rio de Janeiro ocorreram três grandes epidemias: em 1986-87 (vírus 1), 1990-91 (vírus 2) e 2001-02 vírus 3), totalizando mais de meio milhão de casos.94

A malária também continua a ter alta incidência, embora restrita aos estados da região amazônica.95 É uma doença infecciosa potencialmente grave, causada por parasitas (protozoários do gênero Plasmodium) que são

91 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 88. 92 O mosquito Aedes Aegypti também pode transmitir a febre amarela. 93 Fernando S.V. MARTINS – Terezinha Marta P.P. CASTIÑEIRAS, «Dengue», in Centro de Informação em Saúde para Viajantes,

disponível em http://www.cives. ufrj.br/informacao/dengue/den-iv.html (acesso em: 12/04/08). 94 Fernando S.V. MARTINS – Terezinha Marta P.P. CASTIÑEIRAS, «Dengue...», 2. 95 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 88.

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transmitidos de uma pessoa para a outra através da picada de mosquitos do gênero Anopheles (quatro espécies diferentes podem produzir esta infecção). Como os protozoários ficam presentes na circulação sanguínea durante o período de infecção, a transmissão também pode ocorre a partir de transfusões de sangue, de transplantes de órgãos, da utilização compartilhada de seringas por usuários de drogas endovenosas ou da gestante para o filho (malária congênita) antes ou durante o parto. Ainda não existe vacina contra esta doença.96

No Brasil, a existência da malária é registrada de forma esporádica desde 1587. A partir de 1870, com o início da exploração da borracha na região amazônica, tornou-se um grande problema de saúde pública. Em 1999, foram registrados 635.646 casos na região amazônica. Atualmente a transmissão da malária está basicamente restrita a esta região, que compreende os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins.97

Além dessas doenças existem muitas outras, como a doença de Chagas, a varíola, a febre amarela e a hanseníase, que são agravadas pela falta de saneamento básico (esgoto, água tratada, coleta de lixo, etc.), pela má nutrição, pela grande densidade demográfica, pela falta de medidas de higiene e pela falta de informação. Fatores estes presentes principalmente entre as camadas mais pobres de nossa população, nas periferias das grandes cidades, em favelas e cortiços, bem como nas regiões mais afastadas como as pequenas cidades de interior e na

96 Fernando S. V. MARTINS – Terezinha Marta P. P. CASTIÑEIRAS -

Luciana G. F. PEDRO, «Malaria» in Centro de Informação em Saúde para Viajantes, disponível em

http://www.cives.ufrj.br/informacao/malaria/mal-iv.html (acesso em: 12/04/08). 97 Ministério da Saúde - Secretaria de Vigilância em Saúde, 2007. in Fernando S. V. MARTINS – Terezinha Marta P. P. CASTIÑEIRAS - Luciana G. F. PEDRO, «Malaria..., 2.

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zona rural. Estes fatores provocam uma inter-relação direta entre a pobreza e a falta de saúde.

2.5 O Problema Habitacional A falta de infraestrutura e de saneamento básico

nas moradias, bem como a aglomeração de moradores em um mesmo domicílio, como vimos anteriormente, são fatores que incidem diretamente sobre o favorecimento de doenças infectocontagiosas nas camadas mais pobres da população. A população que tem acesso a esses serviços é menos vulnerável a doenças associadas à provisão deficiente de saneamento, tais como infecções diarreicas (principal causa de mortalidade em crianças de até 5 anos) e parasitárias, dengue e leptospirose, entre outras. Por isso, passamos agora a analisar, ainda que brevemente, a situação do problema habitacional como fator que influi diretamente na saúde da parcela mais pobre população.

A análise dos dados apresentados pelo Censo Demográfico 2000, demonstram que os municípios que apresentaram perda populacional, como também aqueles que cresceram acima de 3,0% ao ano, são os que possuem menor acesso à rede geral de abastecimento de água. Essa característica ocorre também em relação ao acesso à rede de esgoto sanitário. Tais municípios, que no primeiro caso são os mais pobres e no segundo, predominam em áreas de expansão demográfica recente, são aqueles com maiores déficits de infraestrutura sanitária.98

Em relação ao número de moradores por quantidade de cômodos,99 observa-se que no conjunto de

98 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, Tendências..., 62. 99 O grau de adensamento do domicílio, também expressa a escassez de moradia. Por dificuldades de obtenção de informações sobre a metragem dos imóveis, o adensamento é calculado geralmente relacionando o número de pessoas com o número total de cômodos ou de dormitórios da moradia. O Senso Demográfico 2000, utiliza como

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municípios que cresceram mais de 3,0% ao ano, a proporção de domicílios elevada na faixa de mais de dois moradores por cômodo, é praticamente o dobro em relação aos demais estratos. Observa-se também, que os modelos tradicionais de famílias constituídas pelo responsável, cônjuge e filhos, vêm mantendo a supremacia ao longo dos censos e, em muitos casos, por dificuldades de moradia, está crescendo a tendência da convivência de mais de uma família na mesma casa.100

A escassez de oferta e o elevado preço da moradia, a segregação espacial da população mais pobre em favelas e outros tipos de assentamentos precários, como cortiços, loteamentos irregulares e clandestinos, estão entre os principais problemas habitacionais brasileiros. Além do déficit de serviços de infraestrutura como os de saneamento básico (serviços de água e esgotos).101

A urbanização rápida ocorrida a partir de 1940, que levou uma grande parte da população brasileira a concentrar-se nas grandes cidades, sem a necessária provisão de moradia e serviços de saneamento básico adequados, deu origem ao fenômeno chamado de «favelização»102. As favelas e os outros tipos de

indicador de superpovoamento uma densidade superior a três pessoas por dormitório. Este parâmetro é também utilizado pelo Ministério das Cidades nos estudos sobre déficit habitacional brasileiro. INSTITUTO DE

PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 98. 100 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 98. 101 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 94. 102 A favelização é um fenômeno essencialmente metropolitano, que revela uma forte demanda reprimida por acesso à terra e à habitação nas grandes cidades. Para representar as favelas, foi utilizado pelo Senso Demográfico 2000, os setores especiais de aglomerados subnormais, que correspondem à informalidade habitacional decorrentes do não-atendimento aos padrões construtivos e urbanísticos vigentes. O IBGE define como aglomerado subnormal o «conjunto (favelas e assemelhados) constituído por unidades habitacionais (barracos, casas, etc.), ocupando ou tendo ocupado até o período recente terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostas, em geral, de forma desordenada e densa e carentes, em sua

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assentamentos precários localizados nas áreas centrais e nas periferias das grandes cidades constituem, sem a menor dúvida, a expressão mais visível dos problemas habitacionais.

Segundo os dados do Censo Demográfico, em 2000 havia cerca de 1,7 milhão de domicílios localizados em favelas e assentamentos semelhantes abrangendo uma população de 6,6 milhões de pessoas, 53% das quais nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último Estado apresenta o maior percentual de favelados em termos relativos, sobretudo na capital, onde cerca de 20% da população reside nesse tipo de assentamento precário. O Estado de São Paulo concentra o maior número de pessoas moradoras de favelas em números absolutos.103

Um outro problema habitacional brasileiro grave é o ônus imposto pelo pagamento de aluguel, que desvia importantes recursos do orçamento familiar para custear a moradia e compromete a capacidade das famílias de satisfazer outras necessidades básicas, como alimentação, saúde, educação e lazer. Um dos indicadores para sintetizar o funcionamento do mercado habitacional e avaliar o acesso econômico à habitação é a participação do aluguel na renda familiar. Quando esta participação é muito acentuada, indica limitações na oferta de habitações ou o descompasso entre os preços das moradias e o nível de renda da maioria da população. 30% da renda familiar é o parâmetro usado internacionalmente para determinar a capacidade de pagamento pelos serviços de moradia Este também é o parâmetro utilizado pela Caixa Econômica Federal para os contratos de financiamento habitacional.104

Os dados apresentados pelo Censo 2000 demonstram que os Estados brasileiros onde as pessoas

maioria, de serviços públicos essenciais». IBGE. Metodologia do Censo Demográfico 2000, Rio de Janeiro 2001, 22. 103 IBGE. Metodologia..., 22. 104 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 98.

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comprometem mais de 30% de sua renda familiar no pagamento do aluguel residencial são: Distrito Federal (35%), Rio de Janeiro (34,2%) e São Paulo (28,4%). É importante também destacar alguns Estados da região Nordeste, como Pernambuco (27,2%) e Sergipe (26,2%).105

Estes dados também demonstram que uma parcela significativa da população brasileira (29%), não tem saneamento adequado.106 Além disso, a distribuição desses serviços entre as diferentes regiões do país e as diversas parcelas da população não ocorre de maneira uniforme. O déficit mais acentuado é nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A pior situação é a do Estado do Amapá, onde 91,2% da população urbana não possui saneamento básico adequado. A melhor situação é a de São Paulo, que tem o déficit de 6,7%.107

É evidente que os problemas de falta de saneamento, além de demonstrar a grave desigualdade social brasileira, atingem de forma mais drástica os segmentos populacionais mais pobres, que vivem nos municípios menores e mais pobres ou nas periferias dos grandes centros urbanos. Más condições de moradia podem levar a consequências nocivas para a qualidade de vida. Dentre as quais, o comprometimento da saúde física e mental das pessoas e o aumento de tensões sociais devido ao adensamento excessivo, fator que eleva

105 IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio 2003..., disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2003/default.shtm. 106 Para medir o déficit de saneamento básico, nas áreas urbanas, o IBGE utiliza um indicador que identifica a parcela da população que reside em domicílios que não possuem, simultaneamente água canalizada interna, proveniente da rede geral de distribuição, em pelo menos um cômodo; banheiros ou sanitários servidos por rede coletora de esgoto ou por fossas sépticas; e serviços de coleta direta ou indireta de lixo. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Radar..., 99. 107 IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio 2003..., 3.

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consideravelmente os índices de violência, como passaremos a analisar a seguir.

2.6 O Aumento da Violência e a Mortalidade por Causas Externas A violência não é um problema específico da área

da saúde. Porém, ela afeta diretamente esse campo. Como afirma Agudelo «[...] ela [a violência] representa um risco maior para a realização do processo vital humano: ameaça a vida, altera a saúde, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou como possibilidade próxima».108 Ou como analisa a organização Pan-Americana da Saúde (Opas) em seu documento sobre o tema:

a violência, pelo número de vítimas e a magnitude de sequelas orgânicas e emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu num problema de saúde pública em vários países [...] O setor saúde constitui a encruzilhada para onde confluem todos os corolários da violência, pela pressão que exercem suas vítimas sobre os serviços de urgência, de atenção especializada, de reabilitação física, psicológica e de assistência social.109 De acordo com Minayo e Souza, «a violência

apesar de ter conceito amplo, complexo, polissêmico e controverso, pode ser genericamente entendida como o evento representado por ações realizadas por indivíduos,

108 S. F. AGUDELO, «La Violencia: un problema de salud pública que se agrava en la región», in Boletin Epidemiologico de la OPS. (1990) 46. 109 OPAS (Organización Panamericana de la salud), «Resolución XIX», Violencia y Salud. Washington, DC: Opas disponível em

http://www.opas.org.br/informat.cfm. (Acesso em 23/03/08).

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grupos, classes ou nações que ocasionam danos físicos ou morais a si próprios ou a outros».110

A violência interessa ao setor da saúde principalmente em razão do número de mortes que provoca, bem como pela necessidade de atendimento médico necessário às pessoas lesionadas. Quanto aos gastos que os serviços de saúde têm com o tratamento de lesões e traumatismos, algumas observações são importantes. As internações decorrentes de lesões provocadas por causas externas nos hospitais próprios ou conveniados com o Sistema Único de Saúde, no Brasil, representam cerca de 6% do total de hospitalizações.111 Esse valor pode parecer baixo, mas totaliza algo como 700 mil internações hospitalares por ano. Ainda do ponto de vista de gastos hospitalares, os dados demonstram que em São Paulo esse valor corresponde a aproximadamente 8% do total despendido, o que evidencia que os pacientes traumatizados são mais onerosos, com gasto/dia 60% mais elevado do que os pacientes internados por causas naturais. Essa diferença decorre, provavelmente, de maior número de dias de hospitalização em Unidades de Terapia Intensiva e procedimentos mais dispendiosos, como cirurgias e diagnósticos por imagem.112

As mortes por violência estão incluídas na Classificação Internacional de Doenças (CID), no grande grupo das Causas Externas. Esta categoria, para o estudo da violência, como explica Mello Jorge, é muito limitada. Sua operacionalização se faz apenas através dos efeitos que se apresentam sobre as pessoas atingidas por lesões

110 MIMAYO, C.M.- E.R. SOUZA, Violência e saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva. História, Ciências, Saúde, Manguinhos 1998, 513. 111 IBGE, Censo 2000, disponível em:

http://www.nitvista.com/index_frame. php?url=%2Fcenso2000.php (acesso: 10/04/08). 112 Maria Helena Prado de MELLO JORGE, O impacto da Violência nos Serviços de Saúde. Faculdade de Saúde Pública da Universidade de

São Paulo, USP, São Paulo 1989, 3.

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e mortes. Em consequência, a denominação «causas externas» carrega uma suposta assepsia, na medida em que não expressa os conteúdos essenciais dos conceitos já melhor constituídos pela filosofia e pelas ciências humanas sobre a violência. Por exemplo, ela traz problemas quando se trata de decidir o caráter de acidentalidade ou direcionalidade dos atos, a legalidade ou a arbitrariedade das ações. Além disso, a categoria «causas externas» é pouco rigorosa, porque compreende em seu interior uma amplitude excessiva de eventos e processo. Aí estão incluídos todos os tipos de acidentes: suicídios, homicídios, lesões resultantes de operações de guerra e lesões que se ignora se foram infligidas acidental ou intencionalmente. A complexidade das manifestações da violência, por outro lado, não permite uma classificação muito precisa e, ao mesmo tempo, compreensiva. Por exemplo, num acidente de trânsito pode-se ter uma tentativa de homicídio ou de suicídio associadas, acompanhar-se de lesões, quedas, agressão, fraturas e traumas. A morte de uma criança de 0 a 4 anos cuja causa registrada no atestado de óbito é, por exemplo, queda, pode esconder um homicídio.113

As taxas de mortalidade por causas externas cresceram cerca de 50% do final da década de 70 para a primeira metade da década de 90 com importantes diferenças regionais.114 Especificamente em relação ao número de homicídios, as taxas são tão altas quanto, segundo Chesnais, as da Inglaterra na Idade Média.115 De

113 Maria Cecília de S. MINAYO, «Violência social sob a perspectiva da saúde pública», Cadernos de Saúde Pública, vol. 10 (1994) 5, in http://cienciaecultura. bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252002000100024&script=sci_arttest (acesso em 05/04/08). 114 Maria Helena Prado de MELLO JORGE –S. L. D. GOTLIEB, As condições de saúde no Brasil: retrospecto de 1979 a 1995. Fiocruz, Rio de Janeiro 2000, 45. 115 J. C. CHESNAIS, A Violência no Brasil. Causas e recomendações políticas para a sua prevenção, Ciência e Saúde Coletiva, São Paulo

1999, 53.

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acordo com Gawryszewski, na Cidade de São Paulo, os homicídios constituem o tipo de violência mais relevante, chegando a atingir, no município parcela que vai além de 60% do total de óbitos aí ocorridos, com taxas bastante elevadas.116

O perfil da mortalidade por causas externas no Brasil segue a tendência mundial, em termos de maior incidência sobre o sexo masculino e faixas etárias jovens, estando mais concentrada em regiões metropolitanas. A violência se manifesta principalmente no homem.117 Entre os possíveis fatores que elevam a taxa de mortalidade por fatores externos entre os jovens de sexo masculino estão o consumo exagerado de bebidas alcoólicas e o uso de drogas.118

Outro fator que tem crescido no Brasil elevando o número de mortes é o homicídio causado por armas de fogo, que revela o amplo acesso e disponibilidade das mesmas. De acordo com uma pesquisa feita com dados do Instituto Médico Legal de São Paulo, em 1960 esse tipo de arma foi responsável por 28,4% do total das mortes e no ano 2000, nos meses de abril, maio e junho, por 90%

116 V. P. GAWRYSZEWSKI, Homicídios no Município de São Paulo: perfil e subsídios para um sistema de Vigilância Epidemiológica, Extrato da tese de Doutorado em Sociologia, Universidade Federal de São Paulo, Digital, São Paulo 2002, 96. 117 As taxas de vítimas masculinas de homicídios são sempre superiores às femininas, chegando a ser 18 vezes superiores, como ocorre na Paraíba. Além de maiores vítimas de homicídios, os homens são muito mais presos por crimes contra a pessoa e contra a propriedade, o que parece indicar que se colocam mais em situações perigosas e estão mais propensos ao uso da violência do que as mulheres. Entretanto, as mulheres não estão totalmente fora desse problema, pois também cometem e sofrem violências físicas e são particularmente atingidas pela violência doméstica, pelo assédio e pela violência sexual. IBGE, senso 2000, disponível em: http://www.nitvista.com/ index_frame.php?url=%2Fcenso2000.php (acesso em: 02/04/08). 118 Maria Helena Prado de MELLO JORGE, Como morrem nossos jovens,

CNPD, Brasília 1998, 87.

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dos homicídios. Em Recife, outra capital brasileira, em 1997, as armas de fogo foram responsáveis por 97% das mortes por homicídios com vítimas menores de 20 anos.119

Outro tipo de morte por causas externas cujos números são muito altos no Brasil, é a morte por acidentes de trânsito. Neste tipo de mortes, diferente do que acontece nos países chamados desenvolvidos, onde a maioria das mortes é provocada por colisões de veículos, no Brasil as vítimas são principalmente pedestres e morrem por atropelamento. Estima-se que, para 10.000 pessoas que morrem no trânsito, 50.000 resistem com sequelas, cujos custos de tratamento e reabilitação são elevadíssimos, elemento que sobrecarrega o sistema de saúde público. Entre as vítimas deste tipo de morte, destaca-se a incidência sobre a faixa de 5 a 14 anos (idade escolar) e idosos de mais de 60 anos.120

A inter-relação entre a violência e a pobreza é de difícil interpretação, uma vez que, dados os múltiplos fatores que a esta se associam, é necessário cuidado para não cairmos em uma visão simplista de causa e efeito. O senso comum costuma responsabilizar a pobreza, quando não os pobres, pela violência. O raciocínio é simples: quando não se tem condições dignas de vida, qualquer indivíduo procura os meios imediatos disponíveis (furto, roubo e extorsão, entre outros) para ter suas necessidades atendidas. Os números mostram, no entanto, que a maioria absoluta das pessoas pobres não está envolvida com a criminalidade e que também os ricos praticam crimes e atos violentos. Porém, vários autores chamam a atenção para o fato de que a população pobre sofre de múltiplas privações que podem contribuir, principalmente entre os mais jovens, como fatores favoráveis à violência, como é o caso do desemprego. Recentemente pesquisas

119 FALBO et al. «Homicide in Children and adolescents: a case-control study in Recife, Brazil», Bulletin of PAHO, 70 (1) (2001), in Maria Helena Prado de MELLO JORGE, Violência..., 3. 120 Maria Cecília de S. MINAYO, «Violência..., 8.

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têm revelado que o registro de antecedentes policiais pode também ser apontados como fator de risco. Já o maior grau de escolaridade, a prática religiosa e a presença do pai em casa, são consideradas fatores de proteção.121

É muito interessante para nós destacarmos o papel da família e da comunidade religiosa como fatores de proteção que colaboram na integração social dos indivíduos, levando-os a superarem a solidão e a falta de sentido na vida que muitas vezes, em situações extremas, pode levar inclusive ao suicido e em situações menos graves, contribuem para estados depressivos, que prejudicam diretamente a saúde e o bem-estar das pessoas.

Este cenário de violência, nos apresenta os principais problemas de segurança no Brasil, que são: o número elevado e crescente de homicídios,122 principalmente nas capitais e regiões metropolitanas com mais de 1 milhão de habitantes; a alta taxa de vitimização da população, isto é, de incidência de furtos, roubos e vários tipos de agressões; o crime organizado, que além dos homicídios, provoca o aliciamento de crianças e jovens, o aumento da corrupção e do tráfico de armas; e os desfechos violentos de conflitos interpessoais, que afetam quotidianamente as pessoas no trânsito, em casa, nos bares e nos clubes. Além disso, há uma crise do sistema de segurança e de justiça criminal como um todo, que pode ser verificada a partir da impunidade dos infratores e dos casos de violência praticada por policiais e carcereiros. 123

121 Maria Helena Prado de MELLO JORGE, Violência..., 3. 122 Segundo os dados do IBGE, os homicídios em 2003 foram a primeira causa de óbito masculino na faixa etária entre 15 e 39 anos e a terceira causa de morte de homens de qualquer idade. IBGE, Senso 2003. 123 IBGE, Pesquisa de Vitimização - 2002 do convênio Ilanud/Fia-USP/GSI, in www.ilanud.org.br/analise.htm.

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Outro fator agravante da violência no Brasil é o crime organizado que mata, alicia jovens e controla áreas urbanas. É muito difícil medir a correlação de crimes com o crime organizado, sobretudo porque muitos são de autoria desconhecida, mas há um consenso de que ela é ampla e significativa. Crime organizado é um conceito vasto, que abarca diferentes tipos de crimes, geralmente cometidos pelas mesmas organizações criminosas em suas diferentes ramificações: sequestro, tráfico de drogas e de armas, roubos de cargas, assaltos a bancos, desvios de recursos públicos, tráfico de pedras e metais preciosos, pirataria de produtos e equipamentos, entre outros. A ilegalidade e o risco dessas diferentes atividades criminosas tornam a violência um importante instrumento para a proteção das mesmas, bem como das pessoas envolvidas.

O tráfico de drogas é uma das atividades mais destacadas do crime organizado. O Brasil participa desse comércio de diferentes formas: como produtor, principalmente de maconha; como distribuidor, sobretuto de cocaína; e como consumidor de maconha, cocaína, ecstasy, crack e heroína. A opinião pública, assim como os meios de comunicação, costumam dar mais atenção à ação das quadrilhas de traficantes das periferias das grandes metrópoles. No entanto, há quadrilhas atuando também em cidades médias e pequenas. A ação desses grupos produz grandes danos à sociedade como o alto número de assassinatos de policiais, de jovens e de usuários; aliciamento de crianças e adolescentes como «soldados» do tráfico; a corrupção de policiais, agentes penitenciários, advogados, promotores, juízes e políticos, o que compromete a legitimidade das instituições públicas; e também a dominação de grandes áreas urbanas com ações tais como a «lei do silêncio», o «pedágio», o «toque de recolher» e também a intimidação das pessoas. Estas ações se concentram principalmente nas favelas das grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo, onde vive a população mais pobre, como já vimos

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ao tratarmos do problema habitacional. Este setor da população, além de sofrer os danos à saúde, por parte dos usuários (como também os ricos), sofre diretamente com as ações violentas das quadrilhas que «dominam os morros» vivendo em condições de medo permanente, devido aos constantes confrontos entre as quadrilhas e a polícia, entre as quadrilhas rivais e mesmo os confrontos internos nas quadrilhas, pela disputa do poder. Estes conflitos podem ser comparados quase com um «estado de guerra». Infelizmente não é raro que pessoas inocentes morram nestas disputas, vítimas de «balas perdidas», como os noticiários anunciam quase diariamente. Por isso, podemos afirmar que a população mais pobre das periferias das grandes cidades brasileiras é a maior vítima das ações do narcotráfico, e que estas ações são objetivamente prejudiciais à vida e à saúde da população, especialmente dos mais pobres.

Devemos destacar que a falta de informações na área da violência é ainda muito grande. Os dados a respeito de homicídios, produzidos pelo Ministério da Saúde, apesar de serem os mais confiáveis, não contemplam milhares de mortes que são classificadas como eventos cuja intenção é indeterminada. Em 2003, enquanto as vítimas de homicídios somaram 51.478 casos no Brasil, os óbitos classificados como «eventos cuja intenção é indeterminada» somaram um total de 11.097 casos. Por sua vez, os registros de ocorrências criminais sofrem com a falta de uma padronização nacional dos registros e com a subnotificação dos casos. Em relação à subnotificação, por exemplo, uma pesquisa do IBGE indicou que 68% das vítimas de roubo ou furto e 66% das pessoas que sofreram alguma agressão física em 1987, não procuraram a polícia. Os principais motivos apontados

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foram «não querer envolver a polícia» e «não acreditar na polícia».124

É evidente a profunda conexão entre a pobreza e as condições de saúde das pessoas e das comunidades. Este quadro assustador demonstra que a justiça social está longe de ser uma realidade no Brasil. Esta triste situação, não prejudica apenas uma igualdade plena que permita a todo cidadão igual acesso a todos os bens de consumo, mas nas situações mais extremas e comuns, impede a milhões de brasileiros uma igualdade básica, ou seja, o acesso aos bens necessários à sua subsistência. Devemos admitir amargamente que no Brasil não existe nem mesmo uma igualdade básica e que a justiça social está ainda longe de acontecer.

Buscando alguma luz para estas questões, passaremos no próximo capítulo a analisar os documentos da Doutrina Social da Igreja, que nos ajudam a perceber a profundidade do tema e como a justiça social esteve presente ou ausente na história da humanidade e da Igreja. Justiça social que continua sendo uma dimensão profética, uma radical exigência evangélica, um dever moral, uma ação humanizante, constitutiva da evangelização e uma mudança estrutural da sociedade.

124 Nancy CARDIA, Direitos Humanos: Ausência de cidadania e “exclusão moral”, Arquidiocese de São Paulo/Comissão de Justiça e

Paz, São Paulo 1994, 57.

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CAPÍTULO III

A POBREZA À LUZ DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

O pobre provocando-nos e gritando: ‘Tenho fome e tu estás na origem da minha necessidade insatisfeita’ rompe nossa ordem e questiona todo o nosso sistema de princípios morais125. A reflexão ético-social de pensadores e teólogos

cristãos, bem como as orientações e critérios éticos com os quais os fiéis católicos, conscientes de sua fé, têm tentado viver suas vidas, é o que se tenta definir com a expressão: «Doutrina Social da Igreja». Porém, com esta expressão, se faz referimento fundamentalmente aos valores e orientações que o Magistério Pontifício, e também os Episcopados Regionais e Locais, tem entregado aos católicos para ajudá-los a discernir, desde sua fé, as ações a serem assumidas frente aos diversos problemas sociais, econômicos e políticos.126

No campo das questões econômicas, sociais e políticas, a Igreja acumulou em muitos séculos de sua história um patrimônio doutrinal considerável, ao qual contribuíram muitos pastores, padres e doutores, catequistas e operários no campo social que, sob diversos títulos e condições, afrontaram os problemas do mundo. Este patrimônio acumulado pode ser considerado como um corpo de princípios de moral social cristã, ao qual, os papas, desde Leão XIII, deram um caráter orgânico e

125 Enrique DUSSEL citado por José Ignacio CALLEJA, Un Cristianismo con Memoria Social. Teología Siglo XXI, San Pablo, Madrid 1994, 253. 126 Marie-Dominique CHENU, La Dottrina Sociale della Chiesa. Origine e sviluppo (1891-1971), Editrice Queriniana, Brescia 1977, 7-11.

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sistemático, comumente reconhecido como «Doutrina Social da Igreja».

A Doutrina Social não é outra coisa que as orientações e ensinamentos sobre como viver nossa fé em relação aos desafios que nos apresentam as dimensões sociais, econômicas, políticas e culturais de nossa vida em sociedade; como ser coerente entre a fé que confessamos e a nossa conduta social. Por tanto, a finalidade última da Doutrina Social da Igreja é a evangelização da realidade social, e fazê-la coerente com o Plano de Deus. As finalidades imediatas têm a ver com a solução de carências e de problemas humanos concretos. Estes, porém, têm sentido na medida em que se conectam e se articulam com o fim último.127

A doutrina Social não pode estar separada da missão evangelizadora da Igreja, lhe é inerente e essencial. A Doutrina Social da Igreja é inseparável e indissolúvel do anúncio da salvação de Deus em Cristo, que implica uma vida melhor para a pessoa, para toda pessoa, o que deverá traduzir-se em estruturas sócio-econômicas e políticas e em valores coerentes ao serviço da dignidade e direitos da pessoa...128

A origem do Pensamento Social situa-se na

experiência de contraste que os cristãos vivem entre alguns elementos do mundo social, político e econômico e as exigências éticas derivadas do Evangelho. Ler o Evangelho, o Novo Testamento, implica em abrir-nos à Palavra de Deus que nos desinstala de nossos esquemas

127 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ

- Eduardo ROJAS, Manual de Doctrina Social de la Iglesia. Colección Testos Básicos para Seminarios. Moral para la Evangelización Libertadora en América Latina, Vol. IV. Consejo Episcopal Latinoamericano, Bogotá 20012, 9-41. 128 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ

- Eduardo ROJAS, Manual…, 29.

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e comodidades e nos abre a novas exigências em relação ao nosso próximo, especialmente o mais pobre.129

Uma vez que este «patrimônio» é muito amplo, analisaremos apenas alguns dos seus principais documentos e a colaboração de cada um deles na busca de orientar os cristãos em seu empenho de viver a fé em suas várias dimensões, testemunhando, nas situações concretas da vida cotidiana, o seguimento de Jesus Cristo, de forma especial em relação ao combate à pobreza, pois, como vimos, ela é um dos fatores que influenciam diretamente no estado de saúde de milhões de pessoas.

3.1 Leão XIII e a Rerum Novarum (15 de maio de 1891)130 Podemos contextualizar o pontificado de Leão XIII

em plena revolução industrial, a qual provocou uma grande mudança na produção e distribuição de bens e serviços: a energia animal e humana foi substituída pela energia mecânica e a produção artesanal pela produção em série. Do ponto de vista político, este período se caracteriza por graves tensões entre a Igreja e o Estado Italiano. A Igreja também vivia um agudo conflito com as expressões científicas, culturais e ideológicas da época. Ao mesmo tempo em que a revolução industrial proporcionou grandes avanços na produção e no progresso econômico, levou um grande número de homens, mulheres e crianças a serem submetidos a condições de exploração, recebendo salários de subsistência.131

129 AA. VV, Doctrina Social de la Iglesia y lucha por la justicia, HOAC,

Madrid 1991, 24. 130 LEÃO XIII, Carta encíclica Rerum novarum, Acta Leonis XIII, 11 (1892), 97-144. 131 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ

- Eduardo ROJAS, Manual…, 232-235.

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A encíclica Rerum Novarum inaugurou a Doutrina Social da Igreja.132 Esta encíclica, «que trata das coisas novas», pode ser chamada de «a carta da questão operária». Leão XIII revela que há uma injustiça social atingindo os operários, e denuncia a concentração do poder econômico em poucas mãos, originando a multidão infinita dos proletários.133 Declara o uso comum dos bens criados, ou seja, o destino universal dos bens que pertencem em comum e indistintamente a todo o gênero humano, desde o começo, como ponto fundamental da Doutrina Social da Igreja. A propriedade privada, segundo Leão XIII,134 é um direito natural, se trata de uma dimensão mais conforme à natureza da pessoa, dotada de razão e com tendência a possuir as coisas e, por meio do trabalho, capaz de tornar a terra produtiva e transformar os bens materiais. Esse direito, segundo a Rerum Novarum, se prolonga na família. Um direito natural e primordial ao casamento e à sustentação da família.135

Leão XIII, fala de deveres, não somente do Estado, que deve tutelar os direitos de todos, mas especialmente dos patrões a respeito dos mais indefesos mediante a justiça do contrato de trabalho e do salário, e a respeito dos operários em oferecer um salário justo, garantindo dignidade de trabalho e denunciando certas posturas dos ricos:

132 Um bom artigo sobre a Gênesi da Rerum Novarum e que pode ajudar a compreender melhor as situações que levaram à sua promulgação é: «Genesi della Rerum Novarum» in Raimondo SPIAZZI, (a cura de), Enciclopedia del Pensiero Sociale Cristiano, Edizione Studio Domenicano, Bologna 1992, 718-719. 133 RN 11. 134 RN 4-7. 135 «A declaração da propriedade privada como direito natural e inviolável, parece que não se contradiz ao princípio segundo o qual Deus deu a terra à totalidade do gênero humano, para usufruir e desfrutar, pois é baseada no trabalho. Isto é, a propriedade deve ser fruto do trabalho humano e não da especulação». Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ - Eduardo ROJAS, Manual…, 236.

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Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem realçada ainda pela do cristão [...] o que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor de seus braços [...] entre estes deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém [...] Recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria, e especular com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer pessoa no preço de seus labores [...] Enfim os ricos devem precaver-se religiosamente de todo ato violento, toda fraude, toda manobra usurária que seja de natureza a atentar contra a economia do pobre, e isto mais ainda, porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um caráter mais sagrado. A obediência a estas leis - perguntamos nós - não bastaria só, de per si, para fazer cessar todo o antagonismo e suprimir-lhe as causas?136 É bem clara a posição de Leão XIII, que se

distancia da velha tese de que os ricos devem somente dar esmola aos pobres. A Rerum Novarum resgata o dever de justiça. De fato, exige mudança de comportamento dos ricos para praticar a justiça nas relações priorizadas pelo capitalismo industrial.137

Três elementos fundamentais desta encíclica são: O trabalho não é mercadoria e a determinação do seu valor não pode ser entregue às forças livres do mercado (RN 29); Existe uma justiça anterior e superior àquela meramente legal. Esta justiça natural ou superior será

136 RN 12. 137 Ildefonso Camacho LARAÑA, Doctrina Social de la Iglesia. Quince claves para su comprensión, Desclée, Bilbao 2000, 27.

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chamada, mais adiante, pelo papa Pio XI, de justiça social (Quadragesimo Anno, 57-58); A solução do conflito de classes é a aproximação das mesmas, por meio de associações de operários e patrões para conseguir um salário justo, para que o trabalhador se torne proprietário também (RN 30-31).

Esta encíclica é o documento que inspira e ao qual faz referência toda a atividade cristã no campo social, pois a situação dos operários é tratada em sua real amplitude e implicações sociais e políticas, para ser adequadamente avaliada à luz dos princípios doutrinais fundados na Revelação, na lei e na moral natural.

Com esse texto, corajoso e que aponta para o futuro, Leão XIII «conferiu à Igreja quase um "estatuto de cidadania" nas mutáveis realidades da vida pública»138 e «escreveu uma palavra definitiva»,139 que se torna «um elemento permanente da doutrina social da Igreja»,140 afirmando que os graves problemas sociais «poderiam ser resolvidos apenas mediante a colaboração entre todas as forças»141 e acrescentando: «Quanto à Igreja, esta não deixará nunca faltar de nenhum modo a sua obra».142

3.2 Pio XI e a Quadragesimo Anno (15 de maio de 1961)143 Quarenta anos depois, a situação está mudada. O

capitalismo vive uma das piores etapas de sua história, como consequência da crise econômica de 1929. As crises, cada vez mais frequentes e profundas, ameaçam arrastar o sistema democrático que lhe serve de apoio político. As correntes autoritárias se fazem atraentes,

138 CA 5. 139 CA 56. 140 CA 60. 141 CA 60. 142 RN 11; CA 56. 143 PIO XI, Carta encíclica Quadragesimo anno, AAS 23 (1931), 177-

228.

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agora, sob a forma de corporativismo fascista. Porém, nesta época, o socialismo conseguiu impor-se como governo na Rússia (1917) e se implanta com algumas características totalitárias que estremecem o Ocidente. O socialismo se apresenta como alternativa para as pessoas inquietas que sofriam as consequências do sistema capitalista, que já estava em crise.144

Celebrando os quarenta anos da Rerum Novarum, Pio XI promulgou a Quadragesimo Anno, como resposta às seguintes questões sociais: a situação de empobrecimento da classe operária (agravado pela urbanização); a concentração de renda, promovida pelo capitalismo liberal, e o conflito entre as classes sociais e o socialismo.145

Esta encíclica traz como subtítulo: «A restauração da ordem social em plena conformidade com as normas da lei evangélica» e rejeita o liberalismo e seu individualismo egoísta, apontando para a superação das tensões entre classes sociais para proteger os indivíduos do autoritarismo estatal do comunismo. Afirma que a propriedade privada tem um caráter individual e social que consiste em servir ao mesmo tempo aos indivíduos e ao bem comum:

Pela natureza ou pelo Criador foi conferido ao homem o direito de domínio privado, tanto para que os indivíduos possam atender às suas necessidades próprias e às de sua família, quanto para que, por meio dessa instituição, os bens que o Criador destinou a toda a família humana sirvam efetivamente para tal fim, o que só se pode obter observando uma ordem firme e determinada.146

144 Alfonso A. CUADRÓN, Juan Manuel DÍAZ, Santiago ESCUDERO, Fernando FUENTE, Juan SOUTO, Doctrina de la Iglesia. Manual Abreviado, BAC, Madrid 1996, 10-11. 145 Pietro PAVAN (a cura de) Dalla Rerum novarum alla Mater et magistra, Cor Unum, Cidade do Vaticano 1962, 93-106. 146 QA 45.

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De acordo com Pio XI, o salário deve ser um salário justo e não de sobrevivência e deve ser ajustado segundo as responsabilidades familiares.

Primeiro ao operário deve dar-se remuneração que baste para o sustento seu e de sua família. [...] Deve, pois, procurar-se com todas as veras, que os pais de famílias recebam uma paga bastante a cobrir as despesas ordinárias da casa. E se as atuais condições não permitem que isto se possa sempre efetuar, exige, contudo, a justiça social, que se introduzam quanto antes as necessárias reformas, para que possa assegurar-se um tal salário a todo operário adulto.147

De fato, podemos afirmar que, ao invés de pregar

a resignação aos pobres e exortar os ricos à prática da caridade, Pio XI, na Quadragesimo Anno, anuncia aos proletários seus direitos, convidando-os a organizarem-se para fazerem ouvir sua voz frente aos empresários e ao Estado. Aos ricos, por sua vez, lhes recorda que têm obrigações de justiça e que esta se deve entender como dar a cada um o seu. Isto é condição «sine qua non» de um autêntico amor cristão.148

A Quadragesimo Anno reforça o princípio de que o salário dever ser proporcionado não apenas às necessidades do trabalhador, mas também àquelas de sua família. O Estado, nas relações com o setor privado, deve aplicar o princípio de subsidiariedade, princípio que se tornará um elemento permanente da doutrina social. Esta encíclica reafirma o valor da propriedade privada, porém, recordando sua função social, em uma sociedade a ser reconstruída desde suas bases econômicas.

147 QA 71. 148 Mario TOSO, Welfare Society. La riforma del welfare: l’apporto dei pontefici. Seconda edizione riveduta ed ampliata, AS, Roma 2003, 92-

95.

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Segundo as Orientações para o estudo e o ensino

da doutrina social da Igreja na formação sacerdotal, Pio XI sentiu o dever e a responsabilidade de promover um maior conhecimento, uma mais exata interpretação e uma urgente aplicação da lei moral reguladora das relações humanas [...], com o objetivo de superar o conflito entre as classes e de chegar a uma nova ordem social baseada na justiça e na caridade.149

3.3 João XXIII: a Mater et Magistra e a Pacem in Terris Angelo Giuseppe Roncalli foi eleito papa no dia 28

de outubro de 1958 e tomou o nome de João XXIII. Tinha 77 anos e ninguém esperava que iria provocar na Igreja, uma revolução copernicana. Teve um breve pontificado, de 1958 a 1963. Neste período, a humanidade vivia as tensões e os temores da guerra fria, cuja expressão foi a construção do Muro de Berlim por ordem de Nikita Kruscev, em 1961.150

No chamado terceiro mundo, o conjunto dos países subdesenvolvidos, emergia com força a partir do processo de descolonização iniciado logo após a segunda guerra mundial e da Conferência de Bandoeng celebrada em 1955, que reuniu 24 países da Ásia e África. À grande tensão entre as classes sociais que havia sido o grande problema social durante o período anterior, sucede agora a tensão entre nações: entre o Norte desenvolvido e o Sul subdesenvolvido, entre o bloco capitalista ocidental e o bloco comunista do Leste, que incluía desde 1949 a China continental. Na América Latina, Fidel Castro, entra em Havana em 1959 e em 1961 se declarou marxista-

149 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Orientamenti per lo studio e l’insegnamento della dottrina sociale della Chiesa nella formazione sacerdotale, 21, Tipografia Poligrota Vaticana, Roma 1988, 24. (A tradução é minha). 150 Raimondo SPIAZZI, Enciclopedia..., 734.

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leninista. A crise dos mísseis instalados em Cuba em 1962 ameaçava uma catástrofe mundial.151

Todos os acontecimentos deste período foram acompanhados de uma grande prosperidade econômica, da qual gozavam os países capitalistas, incluindo o Japão e a China nacionalista. As economias, alemã e japonesa, e a criação do Mercado Comum Europeu, levou as Nações Unidas a proclamar a década do desenvolvimento, a partir de 1960. Um dos fenômenos mais notáveis desta década é o final do processo de descolonização que vinha sendo produzido desde 1945. Entre 1945 e 1960, 40 países, com uma população de 800 milhões de pessoas alcançaram sua independência e começaram a ensaiar seus projetos de desenvolvimento.152

João XXIII distanciou-se respeitosamente do estilo anterior. Renuncia a condenar, porém, mantém as mesmas convicções. O Concílio Vaticano II, que ele convocou e inaugurou, seguiu a sua linha pastoral.

3.3.1 Mater et Magistra (15 de maio de 1961)153 Esta encíclica comemora o septuagésimo

aniversário da Rerum Novarum e contém o ensinamento de João XXIII sobre a sociedade econômica. Podemos também dizer que, inicia metodologicamente uma nova época, na qual se concede uma grande importância à análise da realidade como ponto de partida. Ao mesmo tempo, segundo Laraña, o doutrinal perde o caráter central que possuía até agora nas outras encíclicas, e se abre a um processo que pela primeira vez, num documento desta índole, põe-se em relação com o ver, julgar e agir.154

151 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ - Eduardo ROJAS, Manual…, 265. 152 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ

- Eduardo ROJAS, Manual …, 265. 153 JOÃO XIII, Carta encíclica Mater et magistra, AAS 53 (1961), 401-464. 154 Ildefonso Camacho LARAÑA, Doctrina..., 35.

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A Mater et Magistra contempla um mundo em plena

mudança e apresenta uma síntese da Rerum Novarum e das aplicações e atualizações feitas por Pio XI e Pio XII. Traz a renovação de temas antigos, tais como: o salário, as estruturas de produção e justiça, a propriedade privada. E antecedendo a estes elementos, trata sobre a socialização, um tema novo na Doutrina Social da Igreja. Aborda também, os desequilíbrios setoriais da economia mundial, entre a agricultura e a indústria. Entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre desenvolvimento e crescimento econômico.155

São muito importantes as afirmações sobre a remuneração do trabalho, dentre as quais destacamos as seguintes:

Amargura profunda invade o nosso espírito diante do espetáculo tristíssimo de inumeráveis trabalhadores em muitas nações e continentes inteiros, os quais recebem um salário que os submete, a eles e às suas famílias, a condições de vida infra-humanas [...].156

[...] em alguns desses países, a abundância e o luxo desenfreado de uns poucos privilegiados contrasta, de maneira estridente e ofensiva, com as condições de mal-estar extremo da maioria. Noutras nações, obriga-se a atual geração a viver privações desumanas para o poder econômico nacional crescer segundo um ritmo de aceleração que ultrapassa os limites marcados pela justiça e pela humanidade. E noutras, parte notável do rendimento nacional consome-se em reforçar ou manter um mal-entendido prestígio nacional, ou gastam-se somas altíssimas nos armamentos.157

155 Restituto Sierra BRAVO, Ciencias sociales y Doctrina Social de la Iglesia. Tratado de Teología Social, Editorial CCS, Madrid 1996, 95-100. 156 MM. 65. 157 MM. 66.

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A Mater et Magistra, reafirma que «a Doutrina Social cristã é parte integrante da concepção cristã da vida» (MM. 225) e que «não deve ser apenas proclamada, e sim traduzida à realidade em termos concretos» (MM. 229).

Podemos dizer que as palavras-chave desta encíclica são comunidade e socialização. E que a Igreja é chamada, na verdade, na justiça e no amor, a colaborar com todos os homens para construir uma autentica comunhão. Por este caminho, o crescimento econômico não se limitará a satisfazer as necessidades dos homens, mas poderá promover inclusive a sua dignidade.158

3.3.2 Pacem in Terris (11 de abril de 1963)159 É o grande documento sobre a política nesta

época. O Papa o apresenta como uma grande oferta para todos os povos, sem distinção de raças ou de ideologias, com o objetivo de construir uma ordem mundial baseada na justiça e no respeito aos direitos humanos. Seu estilo se mostra positivo e se dirige não apenas aos católicos, mas a «todos os homens de boa vontade» (PT 91).

João XXIII, coloca em evidência os temas da paz e dos direitos humanos em uma época onde acontecia a chamada «guerra fria» e onde vários autoritarismos ameaçavam a liberdade e a dignidade humana. Pacem in Terris é a declaração pontifícia sobre os direitos humanos, em sintonia com as outras declarações oficiais da sociedade civil. Pio XI e Pio XII invocam também os direitos do homem, mas João XXIII representa um avanço porque elabora uma declaração mais completa e orgânica, e porque a situa como pedra angular de toda a doutrina política a serviço da comunidade mundial de todos os

158 PONTIFÍCIO CONSELHO DA JUSTIÇA E DA PAZ, Compendio della Dottrina Sociale della Chiesa, Libreria Editrice Vatinaca, Roma 2005, 52. 159 JOÃO XXIII, Carta encíclica Pacem in terris, AAS 55 (1963) 259-264.

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povos, cuja constituição é uma exigência do bem comum universal.

Ele foi o primeiro papa que destacou a importância dos direitos econômicos e sociais, como já tinha feito em Mater et magistra160 e para assegurar estes direitos afirma que é indispensável que a sociedade crie instituições democráticas, as quais, no seu exercício, estão sujeitas a uma lei superior (PT 46-48), e a paz consiste no respeito à ordem estabelecida por Deus (PT 1). O Papa apresenta ainda, o paralelismo que se estabelece entre direitos e deveres. Cada direito gera no próprio sujeito um dever de buscar sua realização efetiva e gera nos outros o dever, não só de respeitá-lo, mas até de contribuir para a sua realização (PT 29).

Ao mesmo tempo que valoriza o empírico e o sociológico, a encíclica acentua a motivação teológica.161 As principais questões tratadas são: A pessoa humana, seus direitos e deveres; as comunidades políticas e suas relações: natureza da autoridade, sua função, o bem comum, formas de governo, o comportamento dos cidadãos, etc.; uma autoridade política mundial, estabelecida por acordo entre as nações, para solucionar os problemas de dimensões mundiais. Avalia a atuação da ONU; o cristianismo e a política: sua atuação em todos os campos da vida pública.

É importante destacar a grande contribuição desta encíclica em relação à dignidade e aos direitos humanos, como acenamos antes, em uma época onde eram violentamente desrespeitos por regimes totalitários. Esta contribuição vem inclusive defender a saúde de milhões de pessoas, ao buscar defender seu «completo bem estar físico, psíquico e social» que, como vimos, constitui o

160 MM 58. 161 Alfonso A. CUADRÓN, Juan Manuel DÍAZ, Santiago ESCUDERO, Fernando FUENTE, Juan SOUTO, Doctrina…, 18.

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verdadeiro estado de saúde e não apenas «a ausência de doença ou enfermidade».162

3.4 O Concílio Ecumênico Vaticano II e a Gaudium et Spes163 O contexto internacional coincide com o próprio

contexto do pontificado de João XXIII, como já nos referimos anteriormente. Mesmo assim, é importante destacar que este Concílio, que se inicia em 1962 e termina em 1965. Inicia, por um lado, em clima de crescente tomada de consciência das desigualdades entre países ricos e países pobres, por outro lado, em um clima de otimismo que leva os padres conciliares a pensar que mediante a ação solidária dos países ricos, os países pobres possam superar o subdesenvolvimento. O concílio é preparado e se realiza em meio a um ambiente de renovação bíblica e teológica. Os nomes de teólogos notáveis como J. Danielou, J. Y. Congar, Karl Rahner, expressam a renovação profunda experimentada no fazer teologia, com uma profunda repercussão nas diferentes modalidades de pastoral. Na América Latina, um grupo de jovens teólogos se reunia em Metrópolis em 1964, para fazer teologia desde a América Latina. Entre eles, se destacavam Gustavo Gutiérrez e Juan Luis Segundo. O Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM), promovia diversas instâncias de reflexão teológica e pastoral, seguindo uma linha pastoral no estilo das Igrejas da França e da Bélgica.164

Este concílio mostrou, como nenhum outro, a universalidade da Igreja, já que, pela primeira vez, todos

162 V. CORSINI, Códice delle Organizzazioni Internazionali, Giuffré, Milano 1958, 83, citado por Lino CICCONE, La vita…, 202. 163 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes. AAS 58 (1966), 1025 - 1120. 164 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ - Eduardo ROJAS, Manual…, 273.

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os continentes estiveram representados. Expressou também a maturidade do espírito ecumênico, uma vez que os cristãos não católicos foram convidados como observadores. Devemos destacar também a importância do avanço dos meios de comunicação, que permitiram que os atos mais importantes do concílio chegassem por meio da televisão a milhões de pessoas.165

Analisaremos agora a Constituição pastoral Gaudium et spes do Concílio Ecumênico Vaticano II, que constitui uma resposta significativa da Igreja às expectativas do mundo contemporâneo. Nesta constituição,

[...] em sintonia com a renovação eclesiológica, se reflete uma nova concepção do ser comunidade dos crentes e povo de Deus. Essa suscitou um novo interesse pela doutrina contida nos documentos precedentes, sobre o testemunho e a vida dos cristãos, como via autêntica para render visível a presença de Deus no mundo.166 A Gaudium et spes é o documento mais importante

do Concílio Vaticano II sobre a questão social e traça o vulto de uma Igreja «intimamente solidária com o gênero humano e a sua história» (GS 1) que caminha com toda a humanidade e é sujeita junto com o mundo à mesma sorte terrena, basta lermos seu primeiro parágrafo para nos rendermos conta disso:

As alegria e esperanças, as tristezas e as angústias, dos homens do nosso tempo, sobre tudo dos pobres e de todos os que sofrem, são ao mesmo tempo

165 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ

- Eduardo ROJAS, Manual…, 274. 166 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Orientamenti per lo studio e l’insegnamento della dottrina sociale della Chiesa nella formazione sacerdotale, 24. Tipografia Poliglotta Vaticana, Roma 1988,

27 (A tradução é minha).

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alegrias e esperanças, tristezas e angustias dos discípulos de Cristo. Nada há de verdadeiramente humano que não encontre eco em seu coração.167

Ao mesmo tempo, essa encíclica, apresenta a

Igreja «como fermento e quase alma da sociedade humana, para renová-la em Cristo e transformá-la em família de Deus» (GS 40). Nos conteúdos abordados, afronta organicamente os temas da cultura, da vida econômico-social, do matrimônio e da família, da comunidade política, da paz e da comunidade dos povos, à luz da visão antropológica cristã e da missão da Igreja. Tudo é considerado a partir da pessoa e em direção da pessoa: «a única criatura sobre a terra que Deus quis por si mesma» (GS 24). A sociedade, as suas estruturas e o seu desenvolvimento devem ter por objetivo o «aperfeiçoamento da pessoa humana» (GS 25). Pela primeira vez o Magistério da Igreja, em seu nível mais alto, se expressa de modo assim amplo sobre os diversos aspectos temporais da vida cristã.

Se deve reconhecer que a atenção dada pela Constituição às mudanças sociais, psicológicas, políticas, econômicas, morais e religiosas estimularam sempre mais [...] a preocupação pastoral da Igreja pelos problemas dos homens e o diálogo com o mundo».168

Um parágrafo de suma importância para o nosso

tema, e que expressa de forma muito clara a missão confiada por Cristo à Igreja em relação à promoção humana, principalmente dos mais pobres, é o número 42:

[...] certamente, a missão própria confiada por Cristo à sua Igreja, não é de ordem política, econômica ou

167 GS 1. 168 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Orientamenti..., 28-29. (a

tradução é minha).

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social: o fim que lhe propôs é, com efeito, de ordem religiosa. Mas desta mesma missão religiosa deriva um encargo, uma luz e uma energia que podem servir para o estabelecimento e consolidação da comunidade humana segundo a Lei divina. E, também, quando for necessário, tendo em conta as circunstâncias de tempo e de lugares, pode ela própria, e até deve, suscitar obras destinadas ao serviço de todos, sobretudo dos pobres, tais como obras caritativas e outras semelhantes [...].169

A Gaudium et spes reconhece que a atividade

humana é o instrumento para transformar o mundo, resgatando a sua vocação de acordo com a vontade do Criador (GS 33-39). A vida econômico-social tem que estar a serviço da dignidade da pessoa e do bem comum, respeitando e promovendo a dignidade e a vocação integral da pessoa e o bem de toda a sociedade (GS 63-72). O destino universal dos bens é um pilar fundamental da doutrina social da Igreja. A justa distribuição dos bens é um dever de justiça, ressalta (GS 69). A Rerum Novarum falava de dever de caridade, enqueanto a Gaudium et spes afirma que é dever de justiça. O destino universal dos bens, que é vontade criacional de Deus, é prioridade absoluta e, então, qualquer forma de propriedade deve tender ao fim comum das coisas da terra. Por isso, todos têm o direito de ter uma parte de bens suficiente para si e suas famílias. A Gaudium et spes resgata o antigo princípio de Santo Tomás: «Na extrema necessidade, todas as coisas são comuns, isto é, todas as coisas devem ser tomadas em comum».170 Ou seja, aquele que se encontra em extrema necessidade tem o direito de pegar os bens dos outros, porém somente aquilo de que necessita (GS 69 a). Um acréscimo importante da Gaudium et spes é que o destino universal dos bens tem

169 GS 42. 170 SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Ed. Loyola, S. Paulo 2001, II – II, q.32,a.5 a 2; q.66, a.2., 438-439.

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como objetivo o bem dos povos da Terra, além dos homens como sempre era considerado. Isso significa que a problemática do uso dos bens da Terra torna-se planetária e conflitante não somente entre as pessoas, mas também entre os povos. Ou seja, há povos sem ter direito aos bens comuns, pois foram excluídos pelo sistema capitalista. Então, é necessário um caminho de justiça de dimensão planetária. Um processo que deve ser garantido pela comunidade internacional, para que se possa edificar a paz eliminando as causas das discórdias e das guerras que são as injustiças produzidas pelas desigualdades econômicas e pelo espírito de dominação (GS 83).

A Gaudium et spes insere pela primeira vez, na Doutrina Social da Igreja, a possibilidade de expropriação da propriedade privada pela autoridade pública quando a propriedade privada prejudica o bem comum, mediante, porém, uma compensação equitativa ao proprietário (GS 71). Enfim, a Gaudium et spes declara que a paz é o fruto da justiça (GS 78).

Esse texto constitui uma bênção definitiva à tarefa de promoção humana e contribui na preparação da Assembleia do Episcopado Latino-americano que acontecerá em Medellín. Paulo VI aprofundará na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (1975) este sentimento da Igreja.171

3.5 Paulo IV e a Populorum Progressio (1967) «O desenvolvimento é o novo nome da paz» (PP

76-80), afirma Paulo VI nesta encíclica, que pode ser considerada como uma ampliação do capítulo sobre a vida econômico-social da Gaudium et spes, não obstante, introduza algumas novidades significativas. Em particular, o documento traça coordenadas de um desenvolvimento

171 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ

- Eduardo ROJAS, Manual…, 278.

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integral do homem e de um desenvolvimento solidário da humanidade. O desenvolvimento como vantagem para todos, responde à exigência de uma justiça em escala mundial que garanta uma paz planetária e torne possível a realização de «um humanismo pleno» (PP 42), governado por valores espirituais.

Segundo a Populorum Progessio, para que seja verdadeiramente humano, o desenvolvimento tem que ser integral, ou seja, não somente econômico, mas também cultural, social, político, espiritual, moral e religioso. Nesta encíclica, Paulo VI empregou termos muito severos para criticar o capitalismo como «sistema nefasto» (PP 26). Nunca um documento social católico havia empregado termos tão severos. Paulo VI reforçou também o princípio da Gaudium et spes do destino universal dos bens como fim das coisas (GS 71 § 6). Por isso, segundo Paulo VI, a propriedade privada perde valor e há possibilidade de ser expropriada quando se torna um obstáculo à propriedade coletiva (PP 24). Enfim, esta encíclica apresenta o desenvolvimento como o novo nome da paz, e invoca uma justiça mais perfeita entre os homens porque o mundo está doente pela falta de fraternidade entre os homens e as nações (PP 66).

Gostaria de apresentar alguns números desta encíclica, que apontam de forma veemente a missão dos cristãos diante de desafios que, ainda hoje, exigem nossa atuação:

Certamente há situações, cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência que lhes corta toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade [...] (PP 30).

Desejaríamos ser bem compreendido: a situação atual dever ser enfrentada corajosamente, assim como devem ser combatidas e vencidas as injustiças que ela comporta. O desenvolvimento exige

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transformações audaciosas, profundamente inovadoras. Devem empreender-se, sem demora, reformas urgentes” (PP 32).

[...] hoje ninguém pode ignorar que, em continentes inteiros, são inumeráveis os homens e as mulheres torturados pela fome, inumeráveis as crianças subalimentadas, a ponto de morrer uma grande parte delas em tenra idade e o crescimento físico e o desenvolvimento mental de muitas outras correrem perigo. E todos sabem que regiões inteiras estão, por este mesmo fato, condenadas ao mais triste desânimo» (PP 45).

É evidente que a busca do verdadeiro

desenvolvimento integral do homem e dos povos, deve nos conduzir a superar a pobreza e a miséria em que vivem milhões de pessoas e, consequentemente, promover condições de vida mais dignas e com mais saúde para todos.

3.6 João Paulo II e a Sollicitudo Rei Socialis (1987)172 Nessa Carta encíclica, João Paulo II recolhe e

atualiza a mensagem da Populorum Progressio, ao comemorar seu vigésimo aniversário. Diante de um mundo que parece sair de uma forte crise econômica, segue-se mantendo um precário equilíbrio de blocos econômicos que obstaculizam, com seu permanente enfrentamento, o desenvolvimento dos povos mais pobres. A encíclica ressalta a importância dos ensinamentos da Populorum progressio e afirma a continuidade e constante renovação da Doutrina Social da Igreja.173

172 JOÃO PAULO II, Carta encíclica Sollicitudo rei socialis, AAS 80 (1988) 513-586. 173 Alfonso A. CUADRÓN, Juan Manuel DÍAZ, Santiago ESCUDERO, Fernando FUENTE, Juan SOUTO, Doctrina…, 27.

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Esta encíclica introduz a diferença entre progresso

e desenvolvimento e afirma que «o verdadeiro desenvolvimento não pode limitar-se à multiplicação de bens e serviços, ou seja, àquilo que se possui, mas deve contribuir à plenitude do “ser” do homem. Deste modo, se pretende delinear com clareza a natureza moral do verdadeiro desenvolvimento».174

Entre as novidades que essa encíclica apresenta, cabe-nos assinalar a insistência nos aspectos morais do subdesenvolvimento e sua relação com as chamadas «estruturas de pecado», derivadas dos pecados pessoais que em tais estruturas «se reforçam, se difundem e são fonte de outros pecados, condicionando a conduta dos homens» (SRS 36b). Também devemos destacar o profundo estudo que realiza sobre a solidariedade e o lugar central que confere a essa virtude nas relações sociais e internacionais e na solução dos problemas sociais e do subdesenvolvimento (SRS 38-40). Finalmente, devemos destacar que em seu número 41 declara que a Doutrina Social da Igreja não é uma terceira via, nem uma ideologia e que a mesma pertence ao campo da Teologia Moral.175 Em relação à opção ou amor preferencial pelos pobres, em seus números 42 e 43, afirma:

[...] a opção, ou amor preferencial pelos pobres. É esta, uma opção, ou uma forma especial de primado no exercício da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Esta se refere à vida de cada cristão, enquanto imitador da vida de Cristo, mas se aplica igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso modo de vida, às decisões a serem tomadas de forma coerente em relação à propriedade e ao uso dos bens.176

174 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Orientamenti..., 32 (A tradução é minha). 175 Restituto Sierra BRAVO, Ciencias…, 110-111. 176 SRS. 42.

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A preocupação que nos deve estimular em relação aos pobres - os quais, segundo a significativa fórmula, são os “pobres do Senhor”177 - deve traduzir-se, a todos os níveis, em atos concretos até chegar com decisão a uma série de reformas necessárias...178

Podemos, em linhas gerais, dizer que a Sollicitudo

rei socialis, põe em destaque à dimensão ético-moral do desenvolvimento, refere-se aos obstáculos que retardam o desenvolvimento como «estruturas de pecado», e convoca à conversão, através da solidariedade com os pobres. Este tema da solidariedade com os pobres, como caminho para o verdadeiro desenvolvimento humano foi aprofundado pelo Episcopado Latino-Americano em suas Conferências Gerais, como passaremos a ver.

3.7 A Contribuição da Igreja Latino-Americana Os documentos das Conferências Gerais do

Episcopado Latino-Americano (CELAM), realizadas em Medellín (1986), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992), não se reduzem simplesmente a uma tradução do ensino social da Igreja. Constituem uma compreensão do mesmo, a partir da realidade concreta de um continente em um determinado momento histórico e com um estilo que põe em prática a colegialidade episcopal.179 O Concílio Vaticano II exortou a que «o Povo de Deus, movido pela fé, que o impulsiona a crer que, quem o conduz é o Espírito do Senhor, procura discernir nos acontecimentos, exigências e desejos, dos quais participa juntamente com seus contemporâneos, os sinais verdadeiros da presença ou dos planos de Deus» (GS 11). Nesse espírito do

177 Porque o Senhor quis identificar-se com eles (Mt 25,31-46) e cuida deles de forma especial (cf. Sal 12[11],6; Lc 1,52 ss.). 178 SRS. 42. 179 Tony MIFSUD, Moral Social. Lectura solidaria del continente,

CELAM, Santa Fé de Bogotá 1994, 71-72.

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Vaticano II, buscando discernir nos «sinais dos tempos», a presença e a ação de Deus, o Episcopado Latino-Americano procurou fazer, em cada uma de suas conferências, uma profunda análise das diversas realidades encontradas neste continente, e apontar propostas concretas para tornar mais coerente e efetivo o seguimento de Cristo diante dos graves problemas de injustiça social que desafiam os fiéis cristãos. De maneira especial a pobreza que aflige milhões de pessoas nesse continente e que afeta diretamente a saúde dessas inteiras populações.

3.7.1 Medellín A Segunda Conferência Geral do Episcopado

Latino-Americano, celebrada em Medellín entre 26 de agosto e 6 de setembro de l968, é justamente um esforço episcopal para discernir os sinais dos tempos naquele continente. O tema da Conferência de Medellín foi a aplicação à América Latina das decisões e diretrizes do Concílio Vaticano II. O enfoque geral dos temas, segundo Fernando Bastos de Ávila, foi o desenvolvimento e a libertação cristã. Parte da constatação de uma situação de miséria, como fato coletivo, constituindo uma realidade de injustiça que brada aos céus. Medellín é também um apelo aos leigos para que exprimam numa atuação eficaz as exigências sociais do cristianismo.180

Em relação à situação de pobreza que, como vimos nos capítulos anteriores, incide diretamente na saúde das pessoas, essa assembleia do Episcopado Latino-Americano é um marco importante, pois denuncia a pobreza vivida pelos diversos povos latino-americanos como uma «violência institucionalizada».181 Nesse sentido,

180 Fernando Bastos de ÁVILA, Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja, Loyola, São Paulo 1991, 286-288. 181 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ - Eduardo ROJAS, Manual…, 327.

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são muito importantes as palavras do discurso proferido pelo Papa Paulo VI na abertura dessa conferência:

[...] devemos favorecer todo esforço honesto visando a promover a renovação e elevação dos pobres e de todos os que vivem em condições de inferioridade humana e social, [...] não podemos solidarizar-nos com sistemas e estruturas que encobrem e favorecem graves e opressoras desigualdades entre as classes e os cidadãos de um mesmo país sem realizar um plano efetivo para remediar as insuportáveis condições de inferioridade que muitas vezes sofre a população

menos favorecida.182

Entre as conclusões dessa assembleia, é tratada

com muita veemência a questão da pobreza na América Latina como fruto da injustiça social e que exige dos cristãos uma tomada de atitude para transformar com audácia e diligência, à luz do evangelho, essa realidade social, que ao mesmo tempo que questiona nossa vivência religiosa, convida-nos a um seguimento mais coerente ao Cristo que nos é apresentado pelos evangelhos.

É preciso insistir que o exemplo e o ensinamento de Jesus, a situação angustiosa de milhões de pobres na América Latina, as incisivas exortações de Paulo VI e do Concílio, colocam a Igreja latino-americana ante um desafio e uma missão da qual não pode fugir, mas deve responder com diligência e audácia adequadas à urgência dos tempos.183

O documento das conclusões dessa assembleia

faz também referência explícita à preferência efetiva que deve ser dada pela Igreja na atenção pastoral aos setores

182 PAULO VI, «Discurso na abertura da Segunda Conferência do Episcopado Latino-americano», in CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio. Conclusões de Medellín, Vozes, Petrópolis 19807, 17. 183 Med. 14, 7.

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mais pobres, denunciando as injustiças e buscando ajudar os responsáveis por estas situações, a compreender suas responsabilidades e obrigações, ou seja, faz um apelo à conversão das elites dominantes:

A ordem específica do Senhor de evangelizar os pobres deve levar-nos a uma distribuição tal dos esforços e do pessoal apostólico que se dê preferência efetiva aos setores mais pobres, necessitados e segregados por um motivo ou outro, estimulando e acelerando as iniciativas e estudos que se vêm realizando neste sentido [...]. Devemos tornar mais aguda a consciência do dever de solidariedade para com os pobres. Esta solidariedade significará fazer nossos seus problemas e lutas e saber falar por eles. Isto se concretizará na denúncia da injustiça e opressão, na luta contra a intolerável situação em que se encontra freqüentes vezes os pobres na disposição de dialogar com os grupos responsáveis por esta situação a fim de fazê-los compreender suas obrigações184.

Como compromisso com a evangelização, sendo

fiéis ao seguimento de Cristo, os bispos reunidos nesta assembleia, apresentaram também como conclusão a necessidade de defender os direitos dos pobres e oprimidos (2,22), e a necessidade dos leigos assumirem seu compromisso cristão em movimentos e organismos internacionais para promover o progresso dos povos mais pobres (10,15).

184 Med 14, 9-10.

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100 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

3.7.2 Puebla A Terceira Conferência Geral do Episcopado

Latino-Americano, realizou-se na cidade de Puebla de los Angeles, no México, de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979 e teve como tema: «Evangelização no presente e no futuro da América Latina». Seguindo o mesmo espírito da Conferência de Medellín, a Igreja na América Latina assumiu como nunca antes, uma postura de crítica social e de denúncia das injustiças em todas as suas formas.

Na década anterior, a Igreja havia enfatizado a denúncia da injustiça social expressa na pobreza e na marginalização e proposto como caminho de solução, reformas estruturais. Agora aponta como maior ameaça à justiça o desrespeito aos direitos humanos. Isso se deve, em grande parte, ao fato de muitos países latino-americanos, estarem sob regime de governo militar e muitos desses governos militares, inspirados na doutrina da «segurança nacional», buscarem «restaurar a ordem ameaçada» provocando graves desrespeitos aos direitos humanos (desaparecimentos, torturas, sequestros, terrorismo, insegurança, etc.)185. Essa situação provocou graves choques entre governos militares e setores da Igreja Latino-Americana, para a qual, o respeito aos direitos humanos supõe conjugar o desenvolvimento econômico com a democracia política, econômica e social. Nesse contexto de grande repressão política que se refletia em todos os setores da vida humana, em diversos países do continente, a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi do Papa Paulo VI (1975) alcançou uma profunda repercussão e sua influência no Documento de Puebla será decisiva. A expressão forte do Papa, no número 29, afirmando que não existe evangelização verdadeira sem

185 Tony MIFSUD, Moral Social..., 87.

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 101

promoção humana, legitimou definitivamente a postura dos bispos latino-americanos.186

É importante relembrar que, como bem definiu a Organização Mundial de Saúde, e como já foi destacado por nós na primeira parte de nosso segundo capítulo, «a saúde é um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade» (DP 1134). Por isso, podemos afirmar que o autoritarismo violento dos governos militares, em diversos países latino-americanos, se constituía em uma grave ameaça à saúde de seus cidadãos, pois os privava da liberdade de expressão e os submetia a viver sob uma grande pressão psicológica, ao mesmo tempo que limitava sua sociabilidade, pois as iniciativas de associação eram vistas como subversivas e punidas com extrema violência. Uma vez tendo claros esses efeitos negativos dos regimes militares sobre a saúde da população dos países latino-americanos, vejamos como o documento das conclusões de Puebla trata da pobreza, um dos fatores que, ao lado da violência, mais incide sobre o estado de saúde das pessoas.

O documento com as conclusões dessa assembleia se divide em cinco partes, das quais, o primeiro capítulo da quarta parte é dedicado à «opção preferencial pelos pobres». Nos centraremos agora em alguns pontos desse importante capítulo.

No parágrafo de número 1134, o Episcopado Latino -Americano volta a assumir a opção preferencial e solidária pelos pobres, já afirmada em Medellín:

A Conferência de Puebla volta a assumir, com renovada esperança na força vivificadora do Espírito, a posição da II Conferência Geral que fez uma clara e profética opção preferencial e solidária pelos pobres [...]. Afirmamos a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma

186 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ

- Eduardo ROJAS, Manual…, 342.

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102 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação.

Afirma o documento que independentemente de

sua situação moral ou pessoal, os pobres devem ser sempre os primeiros destinatários da missão da Igreja e a sua evangelização é o sinal e prova por excelência da missão de Jesus:

[...] os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for sua a situação moral ou pessoal em que se encontrem. Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama. Assim é que os pobres são os primeiros destinatários da missão e sua evangelização é o sinal e prova por excelência da missão de Jesus (DP 1142).

Também afirma que o serviço aos pobres é a

medida de nosso seguimento a Cristo e que devemos organizar este serviço para superar o mero assistencialismo e realizarmos uma verdadeira promoção humana, que não devemos dar como caridade aquilo que é de justiça, conforme os ensinamentos do Vaticano II:

Ao aproximar-nos do pobre para acompanhá-lo e servi-lo, fazemos o que Cristo nos ensinou, quando se fez irmão nosso, pobre como nós. Por isso, o serviço dos pobres é medida privilegiada, embora não exclusiva, de nosso seguimento de Cristo. [...] É de suma importância que este serviço do irmão siga a linha que o Concílio Vaticano II nos traça: “Cumprir antes de mais nada as exigências da justiça, para não ficar dando como ajuda de caridade aquilo que já se deve em razão da justiça; suprimir as causas e não só os efeitos dos males e organizar os auxílios de forma tal que os que os recebem se libertem progressivamente da dependência externa e se bastem a si mesmos” (AA 8) (DP 1145-1146).

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 103

Em suas linhas pastorais, o documento apresenta

o objetivo dessa «opção preferencial e solidária pelos pobres» (número 1153) e afirma que a mesma é uma exigência diante dos desequilíbrios econômicos da América Latina:

A opção preferencial pelos pobres tem como objetivo o anúncio de Cristo Salvador, que os iluminará sobre a sua dignidade, os ajudará em seus esforços de libertação de todas as suas carências e o levará à comunhão com o Pai e os irmãos, mediante a pobreza evangélica (DP 1153). Esta opção, exigida pela escandalosa realidade dos desequilíbrios econômicos da América Latina, deve levar a estabelecer uma convivência humana digna e a construir uma sociedade justa e livre (DP 1154).

Também é muito importante e nos deve fazer

refletir sobre a coerência da nossa vivência evangélica o que os bispos reunidos nessa assembleia afirmaram:

Vemos, à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres. O luxo de alguns poucos converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas. Isto é contrário ao plano do Criador e à honra que lhe é devida... (DP 28). Comprometidos com os pobres, condenamos como antievangélica a pobreza extrema que afeta numerosíssimos setores em nosso Continente» (DP 1159). As angústias e frustrações, se as consideramos à luz da fé, têm por causa o pecado, cujas dimensões pessoais e sociais são muito amplas... (DP 73).

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A expressão utilizada nesse número 73 recorda-nos aquela da Constituição Pastoal Gaudium et spes, que em seu número de abertura, que afirma que

as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de Cristo (GS 1). Já o número 281 apresenta-nos como exigência da

nossa fé a superação desta realidade de pobreza e miséria.

[...] a situação de miséria, marginalidade, injustiça e corrupção que fere nosso continente, exige do Povo de Deus e de cada cristão um autêntico heroísmo em seu compromisso evangelizador, a fim de poder superar semelhantes obstáculos [...] (DP 281).

A seguir, apresentamos «as feições» ou rostos dos

milhares de vítimas deste sistema, identificando-as com o Cristo sofredor, que «nos questiona e interpela». Podemos também perceber nesses números algumas das várias consequências da pobreza, entre as quais, aquelas que impedem uma vida verdadeiramente saudável.

Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona e interpela): feições de crianças, golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer, impedidas que estão de realizar-se, por causa de deficiências mentais e corporais irreparáveis, que as acompanharão por toda a vida; crianças abandonadas e muitas vezes exploradas de nossas cidades, resultado da pobreza e da desorganização moral da família; feições de jovens, desorientados [...] e frustrados [...] por falta de oportunidades de capacitação e de ocupação; feições de indígenas [...] vivendo segregados e em situações desumanas [...] feições de camponeses [...]

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em situação de dependência interna e externa, submetidos a sistemas de comércio que os enganam e os exploram; feições de operários, com frequência mal remunerados, que têm dificuldade de se organizar e defender os próprios direitos; feições de subempregados e desempregados [...] feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades, sofrendo o duplo impacto da carência dos bens materiais e da ostentação da riqueza de outros setores sociais; feições de anciãos cada dia mais numerosos, frequentemente postos à margem da sociedade [...] (DP 31-39).

Podemos afirmar que em todo o documento das

conclusões de Puebla destacam-se a pobreza, na qual se encontra a grande maioria da população latino-americana, e a violação constante da dignidade humana. Estas duas preocupações são tratadas de modo particular no quinto capítulo intitulado «Ação da Igreja em favor da pessoa na sociedade nacional e internacional» (números de 1254 a 1293) e se planteia a necessidade de um compromisso pela justiça social, para erradicar a pobreza e uma promoção dos direitos humanos, para que se respeite a dignidade humana.

Com toda a certeza, a Conferência de Puebla foi um momento crucial para a Igreja Latino-Americana, que com voz profética apresentou o enorme contraste entre a fé cristã e as situações de pobreza e opressão vividas na América Latina, situações estas que incidem de modo negativo sobre o estado de saúde da população. Ao mesmo tempo, a Conferência de Puebla foi uma forma de manter vivo o chamado a «abrir novos horizontes a esperança» (DP 1165).

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106 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

3.7.3 Santo Domingo A Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-

Americano aconteceu em Santo Domingo, na República Dominicana, de 12 a 28 de outubro de 1992. Nessa época, estava em andamento um processo de profunda transformação econômica na América Latina. Esse fenômeno ofereceu a oportunidade histórica de combinar o crescimento econômico com metas apreciáveis de justiça social. No panorama político já não restavam governos ditatoriais e os governos procuravam aplicar políticas de ajuste fiscal, apoiando a abertura ao comércio exterior. Surgiram vigorosas formas de associação intra-regional como o MERCOSUL que agrupa o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai.187

O cenário econômico começa a dar sinais de que uma nova era poderia estar começando, porém, da mesma forma que em Medellín e em Puebla, a pobreza na qual vive mais da metade dos latino-americanos, apresenta à Igreja e à sociedade um problema de enormes proporções.

O crescente empobrecimento a que estão submetidos milhões de irmãos nossos, que chega a intoleráveis extremos de miséria, é o mais devastador e humilhante flagelo que vive a América Latina e Caribe. Assim o denunciamos tanto em Medellín como em Puebla e hoje voltamos a fazê-lo com preocupação e angústia. As estatísticas mostram com eloqüência que na última década as situações de pobreza cresceram tanto em números absolutos como relativos. A nós, pastores, comove-nos até as entranhas ver continuamente a multidão de homens e mulheres, crianças e jovens e anciãos que sofrem o insuportável peso da miséria, assim como diversas formas humanas de exclusão social, étnica e cultural; são pessoas humanas concretas e irrepetíveis que vêem seus horizontes cada

187 Raúl Vergara DOXROUD - Exequiel Rivas GUTIÉRREZ - Dina MARTÍNEZ

- Eduardo ROJAS, Manual…, 356-359.

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 107

vez mais fechados e sua dignidade desconhecida» (SD 179).

Santo Domingo reafirma claramente a opção

preferencial pelos pobres. O grande desafio consiste agora em como fazer essa opção tornar-se eficiente, pois supõe implementar modelos de desenvolvimento econômico que combinem a eficiência produtiva com a equidade na distribuição da renda produzida. Também destaca com grande importância os direitos humanos, afirmando que toda violação aos direitos humanos contradiz o plano de Deus e é pecado. Os bispos destacam também que a existência de condições de extrema pobreza e de estruturas econômicas injustas que originam grandes desigualdades sociais, é uma grave violação dos direitos humanos, assinalando orientações muito claras para reforçar o compromisso da Igreja na defesa e proteção da vida humana desde o primeiro momento da concepção até seu último alento (números de 164-168).

Temos de aumentar a lista dos rostos sofridos que já havíamos assinalado em Puebla (cf. Puebla, 31-39), todos eles desfigurados pela fome, aterrorizados pela violência, envelhecidos por condições de vida infra-humanas, angustiados pela sobrevivência familiar. O Senhor nos pede que saibamos descobrir seu próprio rosto nos rostos sofridos dos irmãos (SD 179). [...] Na fé encontramos os rostos desfigurados pela fome, conseqüência da inflação, da dívida externa e das injustiças sociais; os rostos desiludidos pelos políticos que prometem, mas não cumprem; os rostos humilhados por causa de sua própria cultura, que não é respeitada, quando não desprezada; os rostos aterrorizados pela violência diária e indiscriminada; os rostos angustiados dos menores abandonados que caminham por nossas ruas e dormem sob nossas pontes; rostos sofridos das mulheres humilhadas e desprezadas; os rostos cansados dos migrantes que não encontram digna

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108 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

acolhida; os rostos envelhecidos pelo tempo e pelo trabalho dos que não têm o mínimo para sobreviver dignamente (SD 178).

Em conformidade com a definição de saúde feita

pela OMS podemos afirmar que esses são os rostos de pessoas que mesmo não sendo portadoras de doenças ou enfermidades, são os rostos de pessoas privas da verdadeira saúde, porque obrigadas a viver na miséria e excluídas pelo sistema social188. É justamente a opção preferencial e solidária pelo resgate da dignidade humana destas pessoas que é expressa como «opção preferencial pelos pobres» e é reafirmada ao longo de todo o documento de Santo Domingo.189 Esse documento também denuncia e adverte contra «a realidade de um continente no qual se dá um divórcio entre fé e vida, produzindo clamorosas situações de injustiça, desigualdade social e violência» (SD 24). O drama consiste em que essa mesma

falta de coerência entre a fé que se professa e a vida cotidiana, é uma das várias causas que geram pobreza em nossos países, porque os cristãos são souberam encontrar na fé a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis pela liderança ideológica e pela organização da convivência social, econômica e política de nossos povos (SD 161).

A modo de síntese, podemos dizer que este

capítulo nos apresentou de modo conciso como a Doutrina Social da Igreja, em sentido mais sistemático, foi sendo elaborada progressivamente desde a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII (1891), na medida em que a

188 V. CORSINI, Codice delle Organizzazione Internazionale, Giuffré, Milano 1958, 83, citado por Lino CICCONE, La vita…, 202. 189 Ver Documento de Santo Domingo, números: 4, 32, 33, 50, 85, 92, 95, 99, 178, 180, 195, 196, 200, 201, 202, 22, 227, 243, 249, 260, 267, 270, 275, 276, 296, 302, 303.

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 109

comunidade eclesial, atenta aos «sinais dos tempos» foi tomando consciência dos atropelos graves à dignidade das pessoas, dentre os quais, se destaca a pobreza, grave ameaça à vida e saúde de milhões de pessoas.

As primeiras Encíclicas Sociais se ocuparam da situação do proletariado industrial, submetido a jornadas extenuantes de trabalho e a salários insuficientes e da tensão entre as classes sociais (patrões e empregados). Mais adiante, o surgimento dos totalitarismos europeus e a segunda guerra mundial focalizaram a atenção dos Papas. Com João XXIII a questão social adquiriu dimensões internacionais e à tensão entre classes sucedeu a tensão entre os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos (ou países pobres e países ricos). O Concílio Vaticano II veio afirmar que os povos famintos interpelam com acento dramático aos povos opulentos e Paulo VI se levantou em defesa dos povos pobres, convidando a todas as nações do mundo a colaborarem em um grande esforço solidário, que faça possível o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens.

João Paulo II constatará que, apesar de alguns avanços, a humanidade vive uma situação de profunda desigualdade na distribuição dos bens e serviços destinados a todos os homens. Ele centrou sua atenção na dignidade da pessoa humana e seus direitos, no sentido mais profundo do trabalho humano, propondo uma visão teológica do desenvolvimento e nos convidando a refletir sobre as causas da crise do socialismo real. João Paulo II propõe como projeto histórico ideal uma sociedade fundada no trabalho livre, a empresa e a participação. Esta sociedade se fundamentará em uma cultura da solidariedade, cuja verificação será a economia da solidariedade.

O Episcopado Latino Americano, desde Medellín (1968), vem denunciando a injustiça institucionalizada na América Latina que se expressa de forma mais grave na

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pobreza que atinge mais da metade de sua população e propõe a «opção solidária e preferencial pelos pobres», convidando os latino-americanos a construírem uma nova sociedade baseada na comunhão e participação, onde todos tenham condições dignas de vida.

Resumindo alguns pontos fundamentais da Doutrina Social da Igreja na questão da justiça social, podemos destacar que, de Leão XIII a João Paulo II, o Magistério da Igreja tem manifestado uma preocupação sempre crescente pelo problema da justiça social. De fato, as encíclicas e os vários documentos do magistério representam um esforço contínuo visando despertar a consciência dos cristãos para as exigências de um cristianismo autêntico, envolvido eficazmente na difícil luta pela justiça no mundo e para que a Igreja seja uma verdadeira parceira no combate à injustiça social, causadora da pobreza e, consequentemente, da falta de saúde de milhões de pessoas.

A destinação universal dos bens da terra é o fio condutor de toda a Doutrina Social da Igreja, que declara que os bens são comuns e ninguém pode ser excluído (PP e SRS). Está aqui o direito do pobre ao bem comum, ou seja, direito de receber aquilo que lhe pertence por natureza e pelo desígnio de Deus. O resgate do bem comum como o referencial de todas as ações e o fim dos sistemas sociopolíticos e econômicos, combatendo a prioridade do indivíduo e do mercado livre que foi consagrado pelo sistema capitalista, significa retomar o plano de Deus, pois «Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém» (CA 31). A propriedade privada, sobre a qual pesa uma forte hipoteca social, pode ser expropriada quando prejudica a propriedade coletiva. Ela tem sentido quando é instrumento para garantir parte do bem comum a todos e a cada um e é intrinsecamente ilegítima quando concentra os bens nas mãos de poucos, excluindo a maioria, como é o caso do latifúndio.

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 111

O desenvolvimento não pode se reduzir a uma

mera questão econômica, mas tem que envolver todas as dimensões da vida. Precisa-se de um desenvolvimento integral e solidário (PP 42).

A Doutrina Social da Igreja apresenta os direitos humanos como caminho para a justiça social. A Pacem in Terris, de João XXIII, revela como os direitos humanos tornam-se a via para a realização da justiça e da paz no mundo.

A justiça social torna-se a justa distribuição dos bens da terra, assegurando os direitos de cada pessoa e de cada povo da terra, garantindo o acesso ao bem comum e às condições básicas para a realização da dignidade humana, os quais são necessários à saúde. Isso corresponde ao plano de Deus que se manifesta na história humana através da justiça social. Trata-se do Reino de Deus que já começa a acontecer na terra e que se concretiza por meio da igualdade social e da fraternidade universal. O dever de justiça, chamado também de solidariedade, é resgatado depois de vários séculos de silêncio e torna-se um compromisso não somente ético do cristão, mas também evangélico. Ou seja, o dever de justiça é uma das grandes exigências do Evangelho e que o cristão não pode tirar da própria vida. A justiça social precisa ser alimentada pela dimensão religiosa porque «o homem pode organizar a terra sem Deus, mas sem Deus só a pode organizar contra o homem. Humanismo exclusivo é humanismo desumano» (PP 42).

A opção evangélica solidária e preferencial pelos pobres não é somente uma perspectiva da construção da justiça social a partir dos oprimidos, mas também qualifica de modo decisivo a vida cristã e torna o Evangelho prática viva e não somente palavras. Esta opção nasce da capacidade de assumir o clamor dos pobres, ouvindo o grito dos excluídos pelo capitalismo (Med 14,9/10).

Os dois sistemas sociopolíticos e econômicos, o capitalismo e o comunismo, não conseguem realizar a

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112 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

justiça social. A crítica ao comunismo, rejeitado por inteiro, tem sido diminuída pelo fato de ter encontrado no socialismo alguns valores importantes pela busca do bem comum. Quanto ao sistema capitalista, a Centesimus Annus (43) afirma que o futuro é a partir do capitalismo, dando ao mesmo a direção do bem comum. Porém, João Paulo II na exortação apostólica pós-sinodal A Igreja na América (56), de 1999, denuncia o neoliberalismo como sistema que considera o lucro e o mercado livre como parâmetros absolutos dentro de uma concepção economicista da pessoa, prejudicando a dignidade humana e dos povos e empobrecendo sempre mais os excluídos.

O mesmo Papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil, em 1980, durante sua visita à Favela do Vidigal, no dia 2 de julho, falando a milhares de brasileiros, referindo-se ao texto de Mt 5,3 «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus», dizia que

Aos pobres – àqueles que vivem na miséria – ela diz que estão particularmente próximos de Deus e de seu reino. Mas, ao mesmo tempo, diz que não lhes é permitido – como não é permitido a ninguém – reduzirem-se arbitrariamente à miséria a si próprios e às suas famílias: é necessário fazer tudo aquilo que é lícito para assegurar a si e aos seus tudo aquilo que é necessário à vida e à manutenção. [...] com maior força, [a Igreja dos pobres] àqueles que têm de sobra e vivem no luxo, diz-lhes: [...] A medida das riquezas, do dinheiro e do luxo não é equivalente à medida da verdadeira dignidade do homem. [...] Se tens muito, se tens tanto, recorda-te que deves dar muito, que há tanto que dar. E deves pensar em como dar – como organizar toda a vida sócio-econômica e cada um dos seus setores, a fim de

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 113

que esta vida tenda à igualdade entre os homens e não a um abismo entre eles.190

Ainda, na mesma homilia, referindo-se às

autoridades políticas que têm poder de decisão, o Papa disse ao final de seu discurso:

A Igreja dos pobres fala, pois, assim: Fazei tudo, vós, particularmente que tendes poder de decisão, vós dos quais depende a situação do mundo, fazei tudo para que a vida de cada homem, na vossa terra, se torne “mais humana”, mais digna do homem! [...] Fazei tudo a fim de que desapareça, ao menos gradativamente, aquele abismo que separa os “excessivamente ricos”, pouco numerosos, das grandes multidões dos pobres, daqueles que vivem na miséria, daqueles que vivem nas favelas. Fazei tudo para que este abismo não aumente mas diminua para que se tenda à igualdade social. A fim de que a distribuição injusta dos bens ceda o lugar a uma distribuição mais justa [...].191

Estas palavras do Papa João Paulo II em sua

primeira visita ao Brasil, sendo proferidas justamente na Favela do Vidigal, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, de forma profética, recordando a todos que não pode existir seguimento de Cristo se não existe a busca da justiça social.

Gostaria também de destacar alguns pontos das duas Cartas Encíclicas do Papa Bento XVI, Deus caritas est e Spe Salvi.

Em Deus caritas est, o Papa Bento XVI afirma que o amor ao próximo, radicado no amor a Deus, é um dever antes de mais para cada um dos fiéis, mas é-o

190 JOÃO PAULO II, «Homilia na Favela do Vidigal» 2 de julho de 1980, in João Paulo II no Brasil, Peregrino de Deus, pelos longos caminhos dos homens, Íntegra das mensagens do Papa, Editora Santuário, Aparecida 19807, 21-23. 191 JOÃO PAULO II, «Homilia na Favela..., » 22.

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114 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

também para a comunidade eclesial inteira, e isto em todos os seus níveis [...]. Consequência disto é que o amor tem necessidade também de organização enquanto pressuposto para um serviço comunitário ordenado. A consciência de tal dever teve relevância constitutiva na Igreja desde seus inícios [...].192 Bento XVI, afirma ainda nessa encíclica que o

pensamento marxista sempre apresentou críticas às obras de caridade praticadas pelos cristãos, pois as via como uma forma de subtraírem-se à instauração da justiça e de tranquilizar a própria consciência (26). E mais adiante, no mesmo número, o Papa afirma a necessidade de criar uma ordem justa, na qual todos recebam a sua respectiva parte de bens na terra.

No parágrafo de número 28, Bento XVI afirma que a «justiça é o objetivo e, consequentemente também a medida intrínseca de toda a política» e que a «política e a fé se tocam», pois a fé consente à razão de realizar melhor a sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio e é justamente neste ponto que se coloca a Doutrina Social católica que quer servir à formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça. Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve ser enfrentado por cada geração.

Essa encíclica apresenta também as múltiplas estruturas de serviço caritativo no atual contexto social (30) e o perfil específico da atividade caritativa da Igreja (31).

Na carta encíclica Spe salvi,193 o Papa Bento XVI apresenta o «valor performático» próprio da mensagem evangélica, uma mensagem que produz fatos e transforma

192 BENTO XVI, Carta encíclica Deus caritas est, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2006. 193 BENTO XVI, Carta encíclica Spe salvi, Libreria Editrice Vaticana,

Città del Vaticano 2007.

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 115

a vida e recorda que aqueles que têm esperança vivem de um modo diferente, é doada a eles uma vida nova (2). Recorda-nos que a verdadeira esperança do homem, que resiste apesar de todas as desilusões, pode estar apenas em Deus e que a vida na sua totalidade é relação com Aquele que é a fonte da vida (27). Quase ao final dessa encíclica encontramos um parágrafo muito precioso que serve como estímulo a todos que são vítimas da grave situação de injustiça social, bem como àqueles que se fazem solidários e fraternos aos milhares de vítimas da pobreza e que tantas vezes, como verdadeiros profetas, sofrem duras consequências por denunciar essa situação de injustiça, contrária ao reino de Deus:

Sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por amor à verdade e à justiça; sofrer por causa do amor e para tornar-se uma pessoa que ama verdadeiramente – estes são elementos fundamentais de humanidade [...] O homem, tem para Deus um valor tão grande qie Ele mesmo Se fez homem para poder compadecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos é demonstrado na narração da Paixão de Jesus. A partir de lá entrou em todo o sofrimento humano alguém que partilha o sofrimento e a sua suportação; a partir de lá se propaga em todo o sofrimento a consolatio, a consolação do amor solidário de Deus, surgindo assim, a estrela da esperança(39).

Com este chamado ao amor e à esperança que

nasce da fé autêntica na paixão, morte e ressurreição de Cristo e que deve nos conduzir a uma grande e profunda transformação da nossa realidade social, marcada por grandes injustiças, encerramos este nosso trabalho, conscientes das palavras do Senhor:

[...] eu tive fome e me destes de comer, eu tive sede e me destes de beber, nu e me vestistes, doente e me visitastes [...] cada vez que fizestes estas coisas a um só destes meus irmãos mais pequeninos, o fizestes a mim [...] e cada vez que não fizestes estas coisas a um

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116 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

destes meus irmãos mais pequeninos, não o fizestes a mim.194

3.7.4 Aparecida

A V conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, realizada de 13 a 31 de maio de 2007, em Aparecida, no Brasil, ao tratar dos «rostos sofredores que doem em nós» (nn. 407-430), destaca entre estes rostos sofredores, os migrates, os enfermos, os dependentes de drogas e os detidos em prisões.

Cabe a nós destacarmos que entre estas categorias, os dependentes de drogas podem e devem ser percebidos e tratados como enfermos, dado que a dependência química é uma enfermidade.

No texto conclusivo desta conferência de Aparecida, o episcopado latino-americano e caribenho, destaca que desde o início da evangelização, o mandato de pregar o Reino de Deus e de curar os enfermos, tem sido cumpridos e que o combate à enfermidade em como finalidade alcançar a harmonia física, psíquica, social e espiritual para o cumprimento da missão recebida e que a Pastoral da Saúde, tem sido à luz da morte e ressurreição do Senhor, a resposta às grandes interrogações da vida, tais como o sofrimento e a morte (DA. 417-418).

Ao mencionar a importância da Pastoral da Saúde, na vida da Igreja e da sociedade civil, o documento afirma que esta pastoral vem a ser uma resposta ao homem de nosso tempo que vive em culturas nas quais a morte não cabe e é ocultada. A Pastoral da Saúde, ao anunciar a morte e ressurreição de Jesus, abre espaço para a dimensão espiritual e transcendente, unificando na economia sacramental de Cristo o amor de muitos agentes membros da comunidade cristã e profissionais da saúde, considerados como «bons samaritanos» (DA. 419). Ao tratar deste trabalho de visita e companhia aos enfermos

194 Mt 25,35-45.

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realizado por inúmeras pessoas, a maioria das quais voluntárias, o texto apresenta esta ação muitas vezes, discreta e silenciosa que nem mesmo é percebida pela maioria das pessoas, como a manifestação da maternidade da Igreja que «abriga com sua ternura, fortalece o coração e, no caso do moribundo, acompanha-o no trânsito definitivo» (DA. 420).

No parágrafo 421, o texto conclusivo da Conferência de Aparecida, exorta a que se estimule como grande prioridade nas Igrejas particulares a Pastoral da Saúde e que esta inclua diferentes campos de ação destacando o caso dos doentes portadores de HIV, e pede aos governos o acesso gratuito e universal aos medicamentos para a Aids, uma verdadeira pandemia que ceifa milhares de vidas a cada ano.

A modo de síntese, podemos dizer que este capítulo nos apresentou de modo conciso como a Doutrina Social da Igreja, em sentido mais sistemático, foi sendo elaborada progressivamente desde a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII (1891), na medida em que a comunidade eclesial, atenta aos «sinais dos tempos» foi tomando consciência dos atropelos graves à dignidade das pessoas, dentre os quais, se destaca a pobreza, grave ameaça à vida e saúde de milhões de pessoas.

As primeiras Encíclicas Sociais se ocuparam da situação do proletariado industrial, submetido a jornadas extenuantes de trabalho e a salários insuficientes e da tensão entre as classes sociais (patrões e empregados). Mais adiante, o surgimento dos totalitarismos europeus e a segunda guerra mundial focalizaram a atenção dos Papas. Com João XXIII a questão social adquiriu dimensões internacionais e à tensão entre classes sucedeu a tensão entre os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos (ou países pobres e países ricos). O Concílio Vaticano II veio afirmar que os povos famintos interpelam com acento dramático aos povos opulentos e Paulo VI se levantou em defesa dos povos pobres,

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convidando a todas as nações do mundo a colaborarem em um grande esforço solidário, que faça possível o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens.

João Paulo II constatará que, apesar de alguns avanços, a humanidade vive uma situação de profunda desigualdade na distribuição dos bens e serviços destinados a todos os homens. Ele centrou sua atenção na dignidade da pessoa humana e seus direitos, no sentido mais profundo do trabalho humano, propondo uma visão teológica do desenvolvimento e nos convidando a refletir sobre as causas da crise do socialismo real. João Paulo II propõe como projeto histórico ideal uma sociedade fundada no trabalho livre, a empresa e a participação. Esta sociedade se fundamentará em uma cultura da solidariedade, cuja verificação será a economia da solidariedade.

O Episcopado Latino Americano, desde Medellín (1968), vem denunciando a injustiça institucionalizada na América Latina que se expressa de forma mais grave na pobreza que atinge mais da metade de sua população e propõe a «opção solidária e preferencial pelos pobres», convidando os latino-americanos a construírem uma nova sociedade baseada na comunhão e participação, onde todos tenham condições dignas de vida.

Resumindo alguns pontos fundamentais da Doutrina Social da Igreja na questão da justiça social, podemos destacar que, de Leão XIII a João Paulo II, o Magistério da Igreja tem manifestado uma preocupação sempre crescente pelo problema da justiça social. De fato, as encíclicas e os vários documentos do magistério representam um esforço contínuo visando despertar a consciência dos cristãos para as exigências de um cristianismo autêntico, envolvido eficazmente na difícil luta pela justiça no mundo e para que a Igreja seja uma verdadeira parceira no combate à injustiça social, causadora da pobreza e, consequentemente, da falta de saúde de milhões de pessoas.

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 119

A destinação universal dos bens da terra é o fio

condutor de toda a Doutrina Social da Igreja, que declara que os bens são comuns e ninguém pode ser excluído (PP e SRS). Está aqui o direito do pobre ao bem comum, ou seja, direito de receber aquilo que lhe pertence por natureza e pelo desígnio de Deus. O resgate do bem comum como o referencial de todas as ações e o fim dos sistemas sociopolíticos e econômicos, combatendo a prioridade do indivíduo e do mercado livre que foi consagrado pelo sistema capitalista, significa retomar o plano de Deus, pois «Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém» (CA 31). A propriedade privada, sobre a qual pesa uma forte hipoteca social, pode ser expropriada quando prejudica a propriedade coletiva. Ela tem sentido quando é instrumento para garantir parte do bem comum a todos e a cada um e é intrinsecamente ilegítima quando concentra os bens nas mãos de poucos, excluindo a maioria, como é o caso do latifúndio.

O desenvolvimento não pode se reduzir a uma mera questão econômica, mas tem que envolver todas as dimensões da vida. Precisa-se de um desenvolvimento integral e solidário (PP 42).

A Doutrina Social da Igreja apresenta os direitos humanos como caminho para a justiça social. A Pacem in Terris, de João XXIII, revela como os direitos humanos tornam-se a via para a realização da justiça e da paz no mundo.

A justiça social torna-se a justa distribuição dos bens da terra, assegurando os direitos de cada pessoa e de cada povo da terra, garantindo o acesso ao bem comum e às condições básicas para a realização da dignidade humana, os quais são necessários à saúde. Isso corresponde ao plano de Deus que se manifesta na história humana através da justiça social. Trata-se do Reino de Deus que já começa a acontecer na terra e que

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se concretiza por meio da igualdade social e da fraternidade universal. O dever de justiça, chamado também de solidariedade, é resgatado depois de vários séculos de silêncio e torna-se um compromisso não somente ético do cristão, mas também evangélico. Ou seja, o dever de justiça é uma das grandes exigências do Evangelho e que o cristão não pode tirar da própria vida. A justiça social precisa ser alimentada pela dimensão religiosa porque «o homem pode organizar a terra sem Deus, mas sem Deus só a pode organizar contra o homem. Humanismo exclusivo é humanismo desumano» (PP 42).

A opção evangélica solidária e preferencial pelos pobres não é somente uma perspectiva da construção da justiça social a partir dos oprimidos, mas também qualifica de modo decisivo a vida cristã e torna o Evangelho prática viva e não somente palavras. Esta opção nasce da capacidade de assumir o clamor dos pobres, ouvindo o grito dos excluídos pelo capitalismo (Med 14,9/10).

Os dois sistemas sociopolíticos e econômicos, o capitalismo e o comunismo, não conseguem realizar a justiça social. A crítica ao comunismo, rejeitado por inteiro, tem sido diminuída pelo fato de ter encontrado no socialismo alguns valores importantes pela busca do bem comum. Quanto ao sistema capitalista, a Centesimus Annus (43) afirma que o futuro é a partir do capitalismo, dando ao mesmo a direção do bem comum. Porém, João Paulo II na exortação apostólica pós-sinodal A Igreja na América (56), de 1999, denuncia o neoliberalismo como sistema que considera o lucro e o mercado livre como parâmetros absolutos dentro de uma concepção economicista da pessoa, prejudicando a dignidade humana e dos povos e empobrecendo sempre mais os excluídos.

O mesmo Papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil, em 1980, durante sua visita à Favela do Vidigal, no dia 2 de julho, falando a milhares de brasileiros, referindo-se ao texto de Mt 5,3 «Bem-aventurados os

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 121

pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus», dizia que

Aos pobres – àqueles que vivem na miséria – ela diz que estão particularmente próximos de Deus e de seu reino. Mas, ao mesmo tempo, diz que não lhes é permitido – como não é permitido a ninguém – reduzirem-se arbitrariamente à miséria a si próprios e às suas famílias: é necessário fazer tudo aquilo que é lícito para assegurar a si e aos seus tudo aquilo que é necessário à vida e à manutenção. [...] com maior força, [a Igreja dos pobres] àqueles que têm de sobra e vivem no luxo, diz-lhes: [...] A medida das riquezas, do dinheiro e do luxo não é equivalente à medida da verdadeira dignidade do homem. [...] Se tens muito, se tens tanto, recorda-te que deves dar muito, que há tanto que dar. E deves pensar em como dar – como organizar toda a vida sócio-econômica e cada um dos seus setores, a fim de que esta vida tenda à igualdade entre os homens e não a um abismo entre eles.195

Ainda, na mesma homilia, referindo-se às

autoridades políticas que têm poder de decisão, o Papa disse ao final de seu discurso:

A Igreja dos pobres fala, pois, assim: Fazei tudo, vós, particularmente que tendes poder de decisão, vós dos quais depende a situação do mundo, fazei tudo para que a vida de cada homem, na vossa terra, se torne “mais humana”, mais digna do homem! [...] Fazei tudo a fim de que desapareça, ao menos gradativamente, aquele abismo que separa os “excessivamente ricos”, pouco numerosos, das grandes multidões dos pobres, daqueles que vivem

195 JOÃO PAULO II, «Homilia na Favela do Vidigal» 2 de julho de 1980, in

João Paulo II no Brasil, Peregrino de Deus, pelos longos caminhos dos

homens, Íntegra das mensagens do Papa, Editora Santuário, Aparecida

19807, 21-23.

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na miséria, daqueles que vivem nas favelas. Fazei tudo para que este abismo não aumente mas diminua para que se tenda à igualdade social. A fim de que a distribuição injusta dos bens ceda o lugar a uma distribuição mais justa [...].196

Estas palavras do Papa João Paulo II em sua

primeira visita ao Brasil, sendo proferidas justamente na Favela do Vidigal, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, de forma profética, recordando a todos que não pode existir seguimento de Cristo se não existe a busca da justiça social.

Gostaria também de destacar alguns pontos das duas Cartas Encíclicas do Papa Bento XVI, Deus caritas est e Spe Salvi.

Em Deus caritas est, o Papa Bento XVI afirma que o amor ao próximo, radicado no amor a Deus, é um dever antes de mais para cada um dos fiéis, mas é-o também para a comunidade eclesial inteira, e isto em todos os seus níveis [...]. Consequência disto é que o amor tem necessidade também de organização enquanto pressuposto para um serviço comunitário ordenado. A consciência de tal dever teve relevância constitutiva na Igreja desde seus inícios [...].197

Bento XVI, afirma ainda nessa encíclica que o pensamento marxista sempre apresentou críticas às obras de caridade praticadas pelos cristãos, pois as via como uma forma de subtraírem-se à instauração da justiça e de tranquilizar a própria consciência (26). E mais adiante, no mesmo número, o Papa afirma a necessidade de criar uma ordem justa, na qual todos recebam a sua respectiva parte de bens na terra.

196 JOÃO PAULO II, «Homilia na Favela..., » 22. 197 BENTO XVI, Carta encíclica Deus caritas est, Libreria Editrice

Vaticana, Città del Vaticano 2006.

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A Pobreza à Luz da Doutrina Social da Igreja // 123

No parágrafo de número 28, Bento XVI afirma que

a «justiça é o objetivo e, consequentemente também a medida intrínseca de toda a política» e que a «política e a fé se tocam», pois a fé consente à razão de realizar melhor a sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio e é justamente neste ponto que se coloca a Doutrina Social católica que quer servir à formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça. Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve ser enfrentado por cada geração.

Essa encíclica apresenta também as múltiplas estruturas de serviço caritativo no atual contexto social e o perfil específico da atividade caritativa da Igreja.

Na carta encíclica Spe Salvi,198 o Papa Bento XVI apresenta o «valor performático» próprio da mensagem evangélica, uma mensagem que produz fatos e transforma a vida e recorda que aqueles que têm esperança vivem de um modo diferente, é doada a eles uma vida nova. Recorda-nos que a verdadeira esperança do homem, que resiste apesar de todas as desilusões, pode estar apenas em Deus e que a vida na sua totalidade é relação com Aquele que é a fonte da vida. Quase ao final dessa encíclica encontramos um parágrafo muito precioso que serve como estímulo a todos que são vítimas da grave situação de injustiça social, bem como àqueles que se fazem solidários e fraternos às milhares de vítimas da pobreza e que tantas vezes, como verdadeiros profetas, sofrem duras consequências por denunciar essas situação de injustiça, contrárias ao reino de Deus:

Sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por amor à verdade e à justiça; sofrer por causa do amor e para

198 BENTO XVI, Carta encíclica Spe salvi, Libreria Editrice Vaticana,

Città del Vaticano 2007.

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tornar-se uma pessoa que ama verdadeiramente – estes são elementos fundamentais de humanidade [...] O homem, tem para Deus um valor tão grande qie Ele mesmo Se fez homem para poder compadecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos é demonstrado na narração da Paixão de Jesus. A partir de lá entrou em todo o sofrimento humano alguém que partilha o sofrimento e a sua suportação; a partir de lá se propaga em todo o sofrimento a consolatio, a consolação do amor solidário de Deus, surgindo assim, a estrela da esperança. Com este chamado ao amor e à esperança que

nasce da fé autêntica na paixão, morte e ressurreição de Cristo e que deve nos conduzir a uma grande e profunda transformação da nossa realidade social, marcada por grandes injustiças, encerramos este nosso trabalho, conscientes das palavras do Senhor:

[...] eu tive fome e me destes de comer, eu tive sede e me destes de beber, nu e me vestistes, doente e me visitastes [...] cada vez que fizestes estas coisas a um só destes meus irmãos mais pequeninos, o fizestes a mim [...] e cada vez que não fizestes estas coisas a um destes meus irmãos mais pequeninos, não o fizestes a mim.199

199 Mt 25,35-45.

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CONCLUSÃO Podemos Apresentar como considerações finais

deste estudo que a pobreza na qual vive milhões de brasileiros, não é um fenômeno natural, pois não é consequência de terremotos, secas ou chuvas torrenciais, nem mesmo consequência de sua incapacidade para o trabalho ou a produção. É algo que depende de livres decisões humanas, e que se constitui, por um lado, um desafio social, econômico e político, cuja solução compromete a paz social, e por outro lado, se constitui também como um desafio ético que ao colocar em evidência o mau uso da liberdade, convida à mudança ou, em termos cristãos, convida à conversão.

Esta pobreza se constitui na carência dos bens que são necessários para a satisfação das necessidades mais elementares da vida humana como alimentação, moradia, vestuário, assistência média ou sanitária, instrução ou educação e lazer, entre outras necessidades. E tem um influxo direto sobre o estado de saúde de milhões de pessoas, podendo até mesmo, em casos mais extremos, conduzir à morte.

Somos cientes que o tema que desenvolvemos não se esgota através das reflexões realizadas, mas a partir daquilo que foi apresentado nasce um anseio de continuarmos a aprofundar esta reflexão, a fim de contribuir de forma mais efetiva na compreensão da pobreza como um desafio ético-moral a ser superado.

A grave situação de fome e pobreza no Brasil não pode ser atribuída a problemas de ordem natural e sim a uma verdadeira responsabilidade moral, como podemos constatar ao longo do nosso primeiro capítulo. E, à medida que deixa de ser fruto de uma «catástrofe natural», torna-se um desafio ético-moral. Desfio este que coloca diretamente em risco a saúde e a vida de milhões de

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brasileiros, como demonstramos ao longo do nosso segundo capítulo.

Desta maneira, afirmamos que a grave situação de pobreza que atinge tantos brasileiros hoje não constitui apenas um mal, como sempre foi, mas um mal evitável, que tem, portanto, a categoria de um mal moral e que a existência desta grave situação ao longo de nossa história é um problema político e ético-moral, conforme constatamos, à luz dos documentos da Doutrina Social da Igreja, ao longo do nosso terceiro capítulo. Demonstrar que se trata de um mal, não é difícil, pois os dados falam por si, tendo em conta o número de brasileiros que vivem em condições de pobreza e de miséria. Estes dados tornam-se ainda mais eloquentes quando demonstram a tendência de que a riqueza se concentre cada vez mais nas mãos de um número menor de pessoas, enquanto a pobreza se estende a um número cada vez maior de pessoas.

É evidente a profunda conexão entre a pobreza e as condições de saúde das pessoas e das comunidades. Este quadro assustador demonstra que a justiça social está longe de ser uma realidade no Brasil. Esta triste situação, não prejudica apenas uma igualdade plena que permita a todo cidadão igual acesso a todos os bens de consumo, mas nas situações mais extremas e comuns, impede a milhões de brasileiros, uma igualdade básica, ou seja, o acesso aos bens necessários à sua subsistência. Devemos admitir amargamente que no Brasil não existe nem mesmo uma igualdade básica e que a justiça social está ainda longe de acontecer. Estes dados aqui abordados trazem à tona uma liberdade moderna fortemente desenvolvida pelo sistema capitalista liberal, uma igualdade triste e vergonhosamente massacrada, que levanta importantes questões éticas: pode haver liberdade sem justiça? A justiça social não é uma condição fundamental para fazer acontecer uma liberdade humanizante? Os limites éticos da liberdade não são

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Conclusão // 127

determinados pelas exigências da justiça? A liberdade individual pode destruir a liberdade coletiva?

Mesmo diante destes questionamentos podemos afirmar que a Igreja Católica, ao longo dos séculos, ao defender e promover a justiça social, tem contribuído de maneira muito específica no combate à pobreza e, como consequência, vem promovendo de modo concreto a saúde das pessoas. Podemos também afirmar que a situação de pobreza e de miséria, além de ser prejudicial à saúde de milhões de pessoas, é algo contrário ao ensinamento evangélico e que se é uma realidade que atinge tantos brasileiros é porque ainda estamos longe de viver a fé que professamos. O Brasil, onde a maioria da população se declara católica,200 é um dos países com maior desigualdade social, onde ainda hoje pessoas morrem vítimas da fome, ou, como aparece nos relatórios oficiais, por «desnutrição», ou por doenças infectocontagiosas que se proliferam pela falta de saneamento básico, sem falar nas centenas de mortes causadas pela violência que se agrava com a pobreza. Seguir a Cristo, praticar seus ensinamentos, professar a fé cristã, nos leva, como um imperativo moral, a lutar contra a miséria e a pobreza, defender a vida e a dignidade humana, promover melhores condições de vida e consequentemente de saúde, a exemplo de Cristo que veio ao mundo «para que todos tenham vida, e a tenham em abundância»201.

200 No ano 2000, 73,7% da população brasileira se declarou membro

da Igreja Católica Apostólica Romana. INSTITUTO BRASILEIRO DE

GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, Tendências..., 28. 201 JO 10,10.

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128 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

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130 // A Saúde e a Pobreza no Brasil ...

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O AUTOR:

Sérgio Grigoleto é padre do clero diocesano de Umuarama - PR, onde já desempenhou diversos trabalhos pastorais. Possui doutorado em Teologia Moral/Bioética pela Pontificia Accademia Alfonsiana - Roma (2011), com reconhecimento civil no Brasil pela PUC/Rio, Mestrado em Teologia Moral/Bioética pela Pontificia Accademia Alfonsiana - Roma (2008), graduação em Teologia pelo Seminário Santo Cura D’Ars - Argentina (2000) com convalidação pela Universidade Federal do Ceará (2013), bacharelado em Filosofia pelo Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória (1992). Atualmente é professor da Universidade Católica de Pernambuco. Tem experiência na área de Bioética, com ênfase no início da vida humana, atuando principalmente nos seguintes temas: bioética, embrião humano, eugenética, seleção de embriões e diagnose pré-natal.