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Copyright 2014 by iPhoto Editora

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, trans-mitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, seja este eletrônico, mecânico, de fotocópia, de gravação, ou outros, sem prévia autorização escrita da iPhoto Editora.

Produção: iPhoto EditoraEditor: Altair HoppeRedação de textos: Aidil VanconcellosRevisão: Duda CostaIlustração: Antonio de CássyoProdutora de moda: Aidil VanconcellosMaquiagem: Geison PrudêncioImpressão e acabamento: Gráfica Coan

Dados de Catalogação na Publicação

Garrido, LuizRetratos - Técnica, Composição e Direção / Luiz Garrido, 2a edição - Santa Catarina: iPhoto Editora, 2014

ISBN 978-85-63565-05-1

1. Fotografia 2. Retratos 3. Técnicas

Índice para catálogo sistemático

1. Fotografia de retratos: técnica, composição e direção

iPhoto EditoraRua 1950, 1022 - CentroBalneário Camboriú - SC - 88.330-476Tel / Fax: (47) 3056-5022

Atendimento ao cliente: [email protected] de Atendimento: 0800 601 5622Website: www.iphotoeditora.com.br

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Perfilados jaziam aqueles armários de aço, aguardando que seus co-mandantes com uma chave ordenassem abri-los. Num desses dias alegres por qualquer coisa – rolava o ano de 1972 ou 1973 –, bradei ao meu guar-dador: “Abre-te, ó sésamo!”. Mal sabia que ao meu lado, alguém cabeludo tentava abrir o seu. Olhamo-nos e pacificamente nos cumprimentamos. Estávamos alojados no departamento fotográfico da revista Manchete, uma das revistas da Bloch Editores. O cabeludo com suas longas madeixas na minha vida chama-se Luiz Garrido com Z, recém-chegado de Paris com to-das aquelas prosopopeias europeias, vestido num guarda-roupas de fazer inveja a qualquer circense, dada as honrarias em querer se mostrar.

Menino festivo, de esquerda, já apaixonado pela fotografia, trancou matrícula no Rio de Janeiro quando cursava o segundo ano na faculdade de economia. Mandando-se para a capital francesa, para acabar seu curso de economia, esqueceu a economia e foi estudar fotografia na faculdade de Vincennes e na École Nationale de Photographie Française, quando nesse mesmo período teve a oportunidade de conhecer John Lennon e Yoko Ono, por ocasião da estada do casal em Paris na famosa jornada “Bed-in for Pe-ace”. Não era pouca coisa, não. Garrido começou a fotografar a pareja no hotel Plaza Athénée e foi convidado por Yoko para acompanhá-los em Lon-

ÉRAMOS JOVENS E NÃO SABÍAMOS

PREFÁCIO

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dres e Amsterdã. Uma festa! Anos dourados, por que não? Garrido, então, influenciado por notórios da moda como Irving Penn, Helmut Newton, Patrick Demarchelier, Ralph Gibson, David Bailey e outros não menos famosos, Walter Chin, Ruven Afanador, Martin Parr, Michel Conte, Ni-gel Parry, Albert Watson e Matthew Rolston, voltou seu olhar ao retrato. Abria e fechava e, em cada pálpebra acelerada nos segundos finitos, lá estavam Alain Delon, Gina Lollobrigida, Alfred Hitchcock. Enquanto o pai havia esquecido de mandar as esperadas mesadas, Garrido levou ou-tros amassos e agressões ao atuar com a cara e a coragem fotografando como paparazzo nas festas noturnas. Já aos 24 anos de idade, atuando efetivamente na sucursal do bureau em Paris, da revista Manchete, pôde respirar melhor, e foi nesse tempo que começou a sacar que existem os caras que fazem a diferença no retrato, aquele que tem uma “ginga” e maneira de ser. E deitou compostura grafando sentimento e psicologia. Hoje amadurecido, trabalha nos olhos tristes de um notório, nas som-bras gêmeas ou no brilho adocicado de uma atitude. Encapeta na hora vivenciando sempre uma ideia na cabeça. Inteiro e muito bem de saúde, incorpora a máxima de o bom fotógrafo nunca estar em off, e ainda não anda com “aquele assistente de alguém que tem problema de coluna...”.

Lança neste momento esta proposta, o livro Retratos, compêndio endereçado àqueles que traduzem este viés fotográfico como uma ex-pressão maior, àqueles que possam descobrir na posse da pose induzida ou não um estado de direito ao desfrute, conhecendo assim cada perso-nagem de forma bem mais íntima e próxima. O retrato foi, certamente, uma das primeiras alternativas da fotografia e, já naqueles tempos pós-descoberta, o imaginário acasalado entre o fotógrafo e o fotografado fluía como consulta recíproca de reconhecimento e doação. Haverá ainda, por parte do Garrido, a generosidade de uma exposição guiada quando ele fala sobre suas fotos.

Walter FirmoFotógrafo

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10 A história da minha história15 De um mundo de anônimos a todos os rostos

19 Capítulo 1 | Retratos de Personagens20 O primeiro personagem: Rogéria26 Um bom retrato: Maitê Proença30 Um revólver na mesa: Armando Falcão35 O túnel da sensualidade: Isadora Ribeiro39 A cena inesperada: Lucio Costa43 O corte: Ferreira Gullar46 Olhar que diz tudo: Betinho50 Três dias com ACM54 As máscaras de Armando Valles58 Lula63 Cauby Peixoto: Passado e presente67 Pura Técnica: Doc Dog71 História em três tempos: Fernando Torres78 Influências: Oscar Niemeyer81 Com uma panela na cabeça: Ziraldo84 As duas cabeças do “Corpo”87 O acerto da luz errada: Ivo Pitanguy90 Os contrastes de Pedro Bial94 Suor e cerveja com Zeca Pagodinho97 A força de uma imagem: Diego Hypólito100 No intervalo do jogo: Faustão103 Retrato com lente errada: Gilberto Gil106 Sombras e semelhanças: Irmãos Caruso108 On/Off: João Moreira Salles112 Jô pelo avesso116 Tom Jobim

119 Capítulo 2 | Retratos de Beleza

139 Capítulo 3 | A edição de retratos140 A Importância da edição143 Dicas para a edição de imagens144 Olho no contato

149 Capítulo 4 | Equipamentos157 10 Dicas para fotografar retratos158 Analógico X Digital160 Imagens e influências168 Autores e estilos de retratos

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Todo mundo me pergunta como eu comecei. É uma curiosidade fre-quente querer saber o início de uma trajetória profissional que consegue alcançar objetivos. Em qualquer profissão. No meu caso, não teve muitos mistérios. Quando jovem, pensei em estudar economia. Na época, estava na moda. E eu decidi por esse caminho. Passei no vestibular, entrei para a faculdade e fui trabalhar em um banco. Era o caminho certo, o normal. A família de acordo. De repente, me vi insatisfeito e achando que tinha que mudar alguma coisa. Mudei de rumo e resolvi viajar para Paris, ainda, oficialmente, para estudar economia. Já tendo cursado dois anos aqui, com mais dois anos na França conseguiria acabar meu curso.

Convenci meus pais com esse argumento e eles investiram em mim. Com dificuldades e muito esforço, bancaram minha viagem e o início dos meus estudos. O tempo diria como ficaria a situação depois. Eu teria que trabalhar para ajudar também. Cheguei em Paris num momento emble-mático, 1968. O auge do movimento estudantil, das lutas pela liberdade de expressão dentro das faculdades, confusão geral. Isso atrasou o início das aulas e também me fez parar e pensar se era isso o que eu queria. Mesmo assim, continuei lá os estudos em economia. Meu interesse pelo assunto não durou mais de quatro meses. Larguei a faculdade e dirigi meu foco

A HISTÓRIA DA MINHA HISTÓRIA

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para a fotografia. Foi muito difícil, uma decisão louca. Imagine, naquela época, meu pai esperando um filho economista formado na França, e recebendo um presente de grego: um filho fotógrafo! Naqueles tempos, a profissão de fotógrafo era marginalizada, só muito devagar a coisa foi mudando. Surgiram fotógrafos com curso em escolas no exterior, fotó-grafos arquitetos, fotógrafos economistas e por aí vai.

O panorama da fotografia brasileira finalmente tomou um rumo em que nós começamos a ser respeitados, surgindo revistas nas quais a fotografia tinha uma importância fundamental. Na Europa, duro, fui esquecido, com vergonha de reclamar a falta da minha mesada, que era para estudar economia. Fiz de tudo: fotografei vernissages, fui pi-giste (uma espécie de freelancer), trabalhava ao mesmo tempo para várias revistas brasileiras e corria atrás de artistas tentando vender as fotos para as agências. Queria estudar, ter um conhecimento da técnica fotográfica, então fui à luta.

Procurei um curso técnico e fui parar na Escola Nacional de Foto-grafia Francesa. Eu queria aprender tudo desde o início. Meu primeiro ano foi de técnica pura, estudando a construção de lentes. Foi muito bom. Até hoje penso e repito que é preciso dominar extremamente bem a técnica para exercitar a criatividade. Não adianta ter ideias e não saber como fazer. Depois dessa escola, fui ainda estudar na Bélgica, onde fiz um curso de Teoria das Cores na AGFA, e na Faculdade de Vincennes, em Paris. Mais tarde, completei meu aprendizado acadêmico com um curso de Editoria Fotográfica em Londres.

Ainda estudando e tentando me aperfeiçoar, fui trabalhar na su-cursal da revista Manchete em Paris. Isso foi muito importante para mim, porque pude exercer meu novo ofício na prática do dia a dia e depois, como correspondente de imprensa, virei realmente fotógrafo profissional. Foi dessa forma que tive a oportunidade de fotografar cele-bridades como Alain Delon, Gina Lolobrigida e Alfred Hitchcock. Esses

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eram os personagens que faziam notícia naquela época, e eu costumava ser escalado para fotografá-los em eventos ou entrevistas para a revista. Além disso, devo o meu contrato com a Manchete à série de fotos que fiz de John Lennon e Yoko Ono em Paris. Na época, eu ainda era freelancer e esse foi meu passaporte de entrada na Bloch Editores. Viram as fotos, gostaram e me contrataram. Foi uma época ótima. Em Paris, estável, com salário justo, horários não tão rígidos e longe da sede da empresa. Tudo era mais fácil. Sabendo administrar, conseguia tempo livre para mim, para pensar em outras coisas, desenvolver trabalhos pessoais. Foi aí que começou também meu interesse por moda. Passei a cobrir coleções, fazer editoriais de moda, capas para as revistas femininas do grupo Bloch. Montei um estúdio e co-mecei a ter mais intimidade com o equipamento de iluminação. Me apai-xonei por retratos. Aprendi a observar as pessoas, fazer sua leitura e clicar seu momento. Nesse processo de aprendizado de luzes e nuances, muito me ajudou o hábito de frequentar museus, estudar os impressionistas, e ainda ficar sempre antenado na cena cultural da cidade, indo a exposições, teatro e cinema, além de consumir livros e livros sobre fotografia. Nesse processo de formação, é preciso fechar o ciclo, aliar os conhecimentos técnicos ao máximo de informação cultural que se possa ter. Você jamais fará uma boa foto de alguém se não souber um pouco de sua história. Um bom retrato do Hitchcock só seria possível conhecendo seus filmes e assim por diante.

Tive bons professores no meu aprendizado, digamos, extracurricular. Na minha vivência do dia a dia, pude contar com a experiência e a gene-rosidade de um grande fotógrafo, Alécio de Andrade, meu colega na Man-chete. Aprendi muito com ele, com sua sensibilidade, sua forma de captar imagens e sua paciência de me ensinar caminhos. Outro artista a quem devo muito é Frans Krajcberg. Visitei muitos museus com ele e aprendi a olhar pinturas. Frequentei muito sua casa/ateliê em ocasiões em que lhe mostrava minhas fotos e ele dizia que tudo estava errado. Como um mestre, me dava aulas de composição, espaço, cor e volume, e mandava fazer tudo de novo. Era uma figura carinhosamente mal-humorada. Me dava grandes broncas, acabava comigo e, em seguida, pacientemente me ensinava tudo como deveria ser. Devo muito ao Krajcberg.

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Voltei para o Brasil. Todo mundo tem sua hora de voltar. Continuei trabalhando na Bloch Editores. Sempre tive um temperamento inquieto, meio rebelde. Nunca me acomodei com a ideia de cumprir tarefas, fazer as fotos que me mandavam fazer. Era comum nas redações das revistas de moda as chamadas “referências”, que nada mais eram do que páginas de revistas estrangeiras arrancadas e colocadas na frente dos fotógrafos para serem copiadas. Eu odiava isso e tentava fazer da minha maneira, o que nem sempre era aceito sem algumas discussões. Aqui cabe um conselho: sempre acredite nas suas ideias, ouse errar. Se você tem uma bagagem téc-nica e cultural sólida, não aceite reciclar ideias copiadas, mostre as suas.

Um grande fotógrafo com quem também aprendi muito foi o José Antonio. Ele me ensinou uma coisa muito importante: existem fotos que podem ser refeitas e outras que se perdem para sempre. Estamos sempre correndo este risco. A nossa responsabilidade é grande, portanto, temos que nos valorizar. Esta foi uma bandeira que sempre carreguei comigo. Aprendi muito com todos os meus assistentes e acredito que eles também

Luiz Garrido, frente a frente, PhotoShow - 2009

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aprenderam muito comigo. É uma relação muito estreita, a gente convi-ve com eles inúmeras horas por dia, por isso às vezes a relação é difícil. Existe atrito, mas sempre contornável. Eu sempre tive bons assistentes. Nós precisamos ter confiança neles, pois eles sempre levam a culpa, mas sempre nos salvam. Devo muito a eles. Voltando à minha história, chegou uma hora que eu não queria mais patrão. Optei pelo voo solo. Resolvi ser freelancer, o que era muito difícil, e comecei a fotografar muita capa de disco. Fiz capas de Chico Buarque, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor e muitos outros. Foi nessa época também que comecei a trabalhar muito para a Editora Abril fotografando editoriais de moda. Quando você é freelancer, não tem um patrão, tem vários. É fundamental aprender a lidar com vários estilos de revistas e vários enfoques de diretores de arte, editores, produtores etc. E é preciso muito jogo de cintura para não perder o “seu” estilo. Manter sua assinatura mesmo que suas fotos sejam para mídias tão diferentes quanto Vogue e Interview.

Vivia na ponte aérea, pois morava no Rio, mas trabalhava muito em São Paulo, principalmente no Estúdio Abril, que naquela época era no Cur-tume. Dormia muito em hotéis e, cansado, decidi fazer minha base numa só cidade, escolhendo o Rio. O Rio tinha várias agências de publicidade, muita concorrência, mas também muitas fotos, tanto de publicidade como capas de disco e editoriais. Foi nesta época que abri minha própria empre-sa, o estúdio Casa da Foto, com mais três fotógrafos amigos, que continuam amigos até hoje – Paulo Pinho, Levindo Carneiro e Ricardo de Vicq. Essa experiência durou uns vinte anos e foi ali que passei a maior parte do tem-po da minha trajetória como fotógrafo. Hoje, tenho com Humberto Cesar a Casa 2, um ateliê de impressão digital. Tento agora passar um pouco dessa experiência em uma nova aventura, que é lançar um livro contando algu-mas das minhas histórias. Escolhi um tom irreverente, porque é o meu jeito de ser, sempre com um olhar crítico, mas tentando mostrar os personagens deste livro de uma forma verdadeira. No fim, quem conta mesmo todas as histórias é o olhar da minha câmera.

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O retrato é a mais antiga e a mais popular aplicação da fotografia. De tão popular, “retrato” virou sinônimo de “fotografia”. É, também, o seu aspecto socialmente mais transformador. Quando a fotografia iniciou sua trajetória, em 1839, só a aristocracia, altos prelados, generais e homens de fortuna tinham o privilégio de ter o seu rosto representado. Com a entrada em cena da fotografia, as poses e trejeitos, artefatos e adereços contribuíram para a construção do sujeito moderno, que se processou em sintonia com a consolidação do retrato como forma de representação visual do indivíduo, embora cada processo tenha a sua própria dinâmica e genealogia.

A figuração humana foi representada nas várias formas de retrato pelo desenho, pela pintura e pela gravura. Desde a Antiguidade os retra-tos em efígies, bustos, emblemas e insígnias são associados às encenações do poder. Entretanto, o retrato só ganhou força na cultura ocidental a partir do século XIV, estabelecendo-se como um dos mais prestigiosos gêneros da pintura, quando a Renascença colocou o homem como centro das atenções. Até hoje, como sabemos, a pintura mais famosa do mundo é um retrato, a “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci (1503 - 1507). De produção cara e lenta, que demandava técnica apurada e raro talento, o retrato pintado era privilégio dos mais ilustres membros da sociedade,

DE UM MUNDO DE ANôNIMOS A TODOS OS ROSTOS

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que constituíam, por sinal, seu único público observador. Nesse jogo de olhares refletidos, o retrato, como gênero de representação visual, servia como certificado de distinção e de pertencimento social aos pares de uma mesma elite. Indivíduos que se reconheciam socialmente pela imagem que viam refletidas nos espelhos da imaginação pictórica.

A fotografia veio mudar radicalmente essa situação, dando a todos a possibilidade de também terem seu rosto representado, contribuindo assim de forma decisiva na construção de uma nova subjetividade. Desta vez, totalmente moderna, pois associada às conquistas de um mundo que se aproximava espacialmente pelo aumento da velocidade dos meios de pro-dução e que reconfigurava sua história no novo ritmo do instantâneo. Com a invenção da “carte de visite”, pelo fotógrafo francês Eugène Disderi, em 1854, o retrato fotográfico começou a ficar acessível a um número maior de pessoas e transformou-se em verdadeira mania social. Surgiu o hábito de se fazer circular socialmente a própria imagem, mas também a imagem de personalidades públicas, como governantes e artistas. A importância inerente ao retrato, cultivada por tantos séculos apenas pela e para a elite social, foi assim se diluindo por toda a sociedade. Cada vez mais pessoas foram conquistando o direito de ter sua individualidade perpetuada pela imagem e, desta forma, puderam se sentir também importantes.

Antes do fim do século XIX, o retrato já se encontrava na condição de elemento essencial no funcionamento da sociedade, da representação de si à relação do indivíduo com o Estado. Transformou-se em verdadeiro pré-requisito da cidadania desde que outro francês, Alphonse Bertillon, teve a eficiente ideia de incorporar um pequeno retrato de não mais que três por quatro centímetros no cantinho das fichas de identificação da polícia de Paris (1882). Atualmente, sem retrato não há documento de identidade, um instrumento básico para o exercício da cidadania. O re-trato é, ainda, o gênero fotográfico que, desde o seu surgimento, tem tido a maior diversidade de usos – pessoais e institucionais, mas também cien-tíficos, é bom lembrar – e que continua a se reinventar sem deixar de ser o que sempre foi. Basta acompanhar seu emprego na internet, nos sites de

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relacionamento, Twitter, blogs e similares. Hoje, mais do que nunca, para ser é preciso estar representado em imagem e o indivíduo é, para todos os efeitos sociais, o que sua imagem expressa. O retrato foi decisivo também para conferir à fotografia seu caráter de verdade e de testemunho irre-corrível de um fato. Ao ver o retrato tão parecido com a pessoa retratada, fruto da aplicação incorruptível, da ciência traduzida em aparelho foto-gráfico, não havia quem não acreditasse na fotografia como reprodução fiel do mundo visível. Por outro lado, o retrato também é o último refúgio da pessoa amada, a imagem que se apega à superfície sensível e resta mesmo depois que o tempo apaga da memória as demais lembranças. Os retratos são como próteses da memória individual que garantem aos vivos uma certa esperança de imortalidade.

O retrato fotográfico trouxe também uma nova magia a essa rela-ção com a própria imagem e com a imagem do outro. Ao contrário de um rosto pintado, que pode ter sido tão simplesmente inventado pelo pintor, juntando os olhos de um com o sorriso de outro, o retrato fotográfico nos remete sempre a alguém que realmente existiu. A força de comunicação, a reconstrução da sensação de realidade muda completamente, exigindo um maior grau de engajamento por parte do observador. É o que acon-tece quando comparamos, por exemplo, as magníficas gravuras em preto e branco representando cabeças de escravos inventariadas por Rugendas com as “carte de visites”, de Christiano Jr., dos escravos de ganho que cir-culavam pela Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, onde ficava seu estúdio. A ilusão de realismo das gravuras de Rugendas, em que pese inclusive o rigor etnográfico do seu trabalho, se esmaece diante da sensação de pre-sença que emana do olhar do africano que atravessa o século na fotogra-fia de Christiano Jr.. O retrato fotográfico colocou como protagonistas da encenação da vida todos os que passam pela Terra, em substituição aos rostos anônimos, porque inventados, que povoaram a pintura até então. O retrato, como as demais aplicações da fotografia, como vimos, tem vá-rios usos sociais e desempenha as mais diversas funções no plano pessoal, social e institucional. Vai da objetividade da documentação à subjetivida-de artística, mas guarda sempre, como característica inalienável, o fato

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de ser um testemunho dos valores da sociedade em que é produzido. Nem sempre o retrato reflete fielmente o caráter ou até os traços mais marcan-tes de um indivíduo, mas é inexoravelmente um testemunho das relações sociais que contextualizam e orientam a sua produção.

Por fim, o retrato materializa, de forma sutil mas categórica, a rela-ção do fotógrafo com o retratado. O resultado é sempre fruto da equação entre a percepção do fotógrafo e sua leitura do modelo, materializadas na direção de cena e na iluminação, para ficarmos no básico, e aquilo que o retratado quer mostrar ou acaba mostrando, estimulado pelo fotógrafo. Até aí estamos na mesma dinâmica de sempre, naquela relação herdada da pintura. O que a fotografia trouxe de novidade é a possibilidade de escandir o tempo e selecionar um átimo de momento que, se insinuando no fluxo de vida do retratado, capture a expressão daquilo que, talvez, nem ele tenha consciência. Com a vantagem de que, como é um pro-duto da máquina, não se pode imputar a materialidade dessa expressão à imaginação do autor. Essa nova magia inerente à imagem técnica, tão evidente nas fotos de documentação e de reportagem, é o que faz a dife-rença também na foto posada e nos oferece os rostos que existem por trás de todos os rostos.

Milton Guran

Doutor em Antropologia Mestre em Comunicação Social

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Não foi o primeiro retrato, com certeza, mas, sem dúvida, considero que esse tenha sido meu primeiro personagem, aquele em cuja imagem eu consegui inserir toda a contradição e personalidade da pessoa fotografada. Foi como retratar não só a forma física, mas o que está por dentro da pes-soa que está posando para mim, que está se expondo à minha lente. Era a formalização de uma ideia que já vinha, há muito tempo, martelando na minha cabeça: a de retratar de dentro para fora. Precisamente nesse senti-do, eu tive uma sorte imensa! Na época, anos 90, eu trabalhava como cola-borador da revista Interview e me foi proposto fazer um ensaio fotográfico com a Rogéria, que estaria também dando uma entrevista ao repórter da revista. Topei na hora. Mas fiquei dias imaginando como realizar as fotos.

Como retratar esse personagem tão controvertido, de fortíssima per-sonalidade e conhecido da mídia nacional? Não era tarefa fácil. Quem eu iria encontrar? Alguém receptivo, afável, ou pouco paciente com fotos e entrevistas? Essas preocupações rodopiavam na minha cabeça enquanto meu assistente na época, o Cacá, e eu tentávamos o contato com a Rogéria e, simultaneamente, colhíamos informações sobre ela. Depois de inúmeros telefonemas, conseguimos marcar o dia da foto, que seria na sua casa, no Leme, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, próximo à praia. Na tarde com-

O PRIMEIRO PERSONAGEM: ROGÉRIA

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binada, batemos à porta do apartamento da Rogéria, um tanto ansiosos, sem saber quem nos esperava. Seria ela ou Astolfo, seu verdadeiro nome de batismo, que consta em seu RG, e o qual não pretende mudar por nada desse mundo? Assim como também jamais pensou em mudar de sexo, ci-rurgia cada vez mais comum no mundo dos transexuais. Acontece que ela se assume travesti e assim pretende continuar sempre lutando pelos seus direitos de cidadão, exigindo respeito e falando o que pensa.

Grande alívio! Rogéria é extremamente simpática, educada, gentil e absolutamente profissional. Toparia qualquer coisa, estava disposta a aceitar as ideias que fossem propostas para a foto sem grandes interferências. Isso tornou tudo mais fácil, a empatia com aquele personagem foi instantânea e as ideias começaram a fluir. Um detalhe: ela não tinha em seu guarda-roupa nenhuma peça masculina, nada de calça, paletó ou gravata. Sim, Astolfo só se veste como Rogéria, mesmo no seu dia a dia. E essa foi a primeira vez que utilizei roupa minha para realizar um retrato. Em geral, uso somente as rou-pas dos meus fotografados, sem tentar mudar em nada sua maneira de ser ou vestir. Tento me aproximar o máximo do seu “eu como eu sou”.

Definida a forma de fotografar aquele personagem, parti para o mais óbvio: nua, é claro. Pelo menos da cintura para cima. Pedi que dei-tasse no sofá e, tendo com fundo um belíssimo desenho que decorava a parede de sua sala, comecei a trabalhar. Equipamento mínimo: flash de bateria, apenas um guarda-chuva, nada de muito fio, enfim, nada que me desviasse a atenção e me fizesse perder um bom momento, uma expres-são importante da pessoa fotografada. Nada de ficar de quatro procuran-do tomadas ou algo parecido. Atenção total na pessoa em frente à câmera. Tudo fluiu muito bem, mas ainda não era o que eu queria, a ideia que eu imaginava passar não era essa. Na realidade, demorei três dias até chegar ao conceito do retrato que eu diria: é isso! Consegui, a foto é essa! E isso acabou acontecendo dentro do meu estúdio, em Botafogo, no Rio. Duran-te esses três dias de convivência com a Rogéria, jogamos muita conversa fora, trocamos muitas ideias, fui ouvinte de relatos íntimos e isso ajudou muito na confiança que se estabeleceu entre nós. Aliás, o papo com os

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FICHA TÉCNICA

Equipamento:Câmera: Nikon F5Lente: 35 mm f/1.4

Exposição: ISO 200, abertura f/16 e velocidade 1/125s

Iluminação:Um refletor parabólico

Captura: Filme Kodak Tri-X

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fotografados é fundamental. Você precisa conhecer a pessoa, tirar dela o máximo de informações para colocar na sua foto, pesquisar o seu íntimo, prestar atenção nos seus pontos vulneráveis e se fazer aceito. Confiança entre o fotógrafo e o fotografado é imprescindível. Aliás, isso se estende a toda a equipe envolvida na sessão de fotos. Um fato engraçado aconteceu com o meu assistente no segundo dia. Eu queria a opinião da Rogéria sobre as fotos feitas no dia anterior antes de continuar o trabalho. Pedi, então, ao Cacá que fosse ao Leme mostrar as fotos. Ele ficou grilado, inse-guro de ir sozinho. Isso só gerou gargalhadas gerais, eu dei uma peitada no Cacá, tipo “qual é cara, está com medo de quê?”, e ele foi. Como já disse, eu ainda não tinha a foto que queria. Lembrei, então, de uma foto do Richard Avedon. Um trabalho em que ele fotografou um travesti mos-trando tudo, ou seja, o sexo do homem. Eu pensei em fazer isso, pensei em chocar, causar polêmica. Mas não foi assim que, finalmente, a foto ficou clara na minha cabeça.

Mudamos o cenário para estúdio. Eu continuei trabalhando com o mesmo equipamento: um flash, um guarda-chuva, o mínimo possível. Acrescentei apenas uma lona de fundo. Quanto à câmera: uma Nikon F5 com lente F35 mm em 1.4 de abertura. Naquela época, trabalhava-se com filme (o que é ótimo!) e eu sempre usei TRI X. Raramente utilizei mais de dois ou três rolos de filme nos meus trabalhos de retrato. Isso bastava, porque, embora você tenha três dias para realizar o trabalho, a foto definitiva, quando você a encontra, não leva mais de 15 minu-tos para ser feita. Estou falando de retrato personalizado, grifado, aquele único. Por outro lado, dependendo do fotografado, você não terá mais do que esses 15 minutos para fazer a foto. Existem trabalhos em que se tem o mínimo de tempo e você tem que se virar para conseguir. É prática e muito olho! No estúdio, comecei por colocar a Rogéria contra o fundo de lona, de terno e gravata na parte de cima e nada mais na parte de baixo. Ficou grotesco. Não gostei do resultado. A ideia não era boa, não tinha a foto. Foi aí que tivemos um estalo, um clique, que daria certo: por que não fazemos metade Astolfo, metade Rogéria? Unir as duas personalidades

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numa só imagem. Perfeito. Ela cruzou as pernas (em pé), escondeu o sexo, tirou o paletó, balançou os longos cabelos louros e... era isso! Consegui retratar o que tinha dentro daquele personagem, mostrar a duplicida-de, assumida por ela mesma, e formalizar uma imagem que choca, sim, mas não agride. Essa foto já causou muita polêmica, já me colocou em algumas situações complicadas, como na ocasião de uma exposição que fiz em Brasília em novembro de 2007 durante o evento FotoArte. A foto fazia parte da mostra de retratos “Os Heróis”, que acontecia no salão de exposições do Senado.

Quando eu soube que o local da exposição seria o salão do Senado, fiquei preocupado e falei com a organizadora do evento, Karla Osório. Ela autorizou a colocação da foto da Rogéria. “Os Heróis” é um trabalho que venho desenvolvendo há muitos anos, e o conceito de herói é absolu-tamente pessoal. Acredito que cada indivíduo possa ser um herói em um determinado contexto, sob um determinado enfoque. E é nesse aspecto que incluo a Rogéria, como autêntica batalhadora do direito de assumir sua real personalidade. Não era difícil imaginar o que viria a seguir. A exposição foi censurada e cancelada, o que gerou um bom bate-boca na mídia. Posteriormente, a exposição foi realizada na Galeria Ecco, em Brasília, com a presença da própria Rogéria. Ela fez questão de prestigiar o evento, o que mostra, mais uma vez, seu imenso profissionalismo. Esse é, com certeza, o trabalho mais polêmico que eu já realizei. Porém, con-sidero um dos mais gratificantes, porque tenho a certeza de que consegui trazer para fora, para o olhar do público e do leitor, a verdadeira alma do meu retratado.

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Considero essa foto um marco na minha coleção de retratos. Foi nesse trabalho que, pela primeira vez, eu senti que poderia fazer bons portraits, com identidade, assinatura. A partir daí, comecei minha coleção, minha série de retratos. Era por volta de 1983 e não parei até hoje. Foi uma enco-menda do diretor de arte Sergio Liuzzi para um cartaz do filme Prova de Fogo, do diretor Marco Altberg, em que Maitê Proença era a principal pro-tagonista. Tratava-se de um filme de suspense, meio terror, e eu fiquei com a batata quente na mão. Como transmitir isso tendo à frente uma mulher extremamente bonita e sensual? Eu não a conhecia e fiquei sem saber como seria tentar transformar um ícone de beleza, com uma figura bem marcada na mídia, em algo estarrecedor, que transmitisse a trama do filme em uma única foto para o cartaz de cinema. Mas pensei que, afinal de contas, ela era uma atriz e, assim sendo, teria recursos suficientes para transformar-se em um “monstro” se fosse necessário. Começamos a sessão de fotos e tive a ideia de explorar os olhos da Maitê. Seria pela expressão do olhar que eu tentaria passar o “terror” do filme. Nada mais. Pedi que abrisse bem os olhos, fizesse cara de espanto, coloquei a luz bem de frente, chapada, para não criar volumes. Sempre coloco a luz acima do rosto, a uns 40 a 60 cm, virando o guarda-chuva para baixo. Usei flash de bateria, sombrinha branca, de modo a criar uma luz uniforme. Trabalhei com uma lente 80 mm F:1.4 e a máquina era uma Nikon F4 com filme TriX 35 mm. Essa foto me fez também perceber que existem duas formas de se fazer um retrato, mesmo que seja um trabalho específico, por encomenda, para um deter-minado fim, como, nesse caso, para um cartaz de filme. A primeira forma é você tentar tirar do seu fotografado uma atitude ou expressão específica que reporte ao conteúdo da mensagem que se quer passar, naquele caso

UM BOM RETRATO: MAITÊ PROENÇA

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a do filme. Aí a direção da foto é no sentido de fazer a pessoa representar algo, encenar uma ideia. A segunda forma, e foi fazendo o trabalho com a Maitê que percebi, é você procurar fazer com que a foto mostre a verdadei-ra personalidade de quem está à sua frente, que a alma aflore no momento do clique. Que o retrato seja a imagem do sujeito, e não a representação do mesmo. Foi por aí que optei trabalhar. Em vez de fazer portraits com um conceito predefinido, com uma ideia já formatada, preferi realizar os retratos “das pessoas” independentemente de sua utilização. Político, ator, músico, atleta, não importa qual será a utilização dessa foto. O que conta é que ela transmita verdade.

O importante em um portrait é que se tenha uma assinatura. Você olha um trabalho de mestres como Richard Avedon, Irving Penn, Diane Ar-bus, Annie Leibovitz ou Arnold Newman, só para citar alguns, e percebe que cada um tem seu estilo, cada um tem uma linha de trabalho reconhecida quase que instantaneamente, ao primeiro olhar. Isso é assinatura. Um exercí-cio fundamental e que alimenta as ideias na hora da foto é o da interiorização e percepção visual 360 graus. É preciso estar sempre antenado com o mundo ao redor. Constantemente ando pela rua, no metrô ou em qualquer outro ambiente com muita gente, tentando imaginar quem seria a pessoa à minha frente. Faço mentalmente uma historinha daquele sujeito, criando imagens a partir da sua aparência. Quem seria? Um médico, advogado, funcionário público, atriz, dona de casa? Isso pode parecer maluco, mas abastece você de informações visuais e imaginárias que certamente ajudam na hora de se deparar com alguém na frente de sua câmera. Faz parte da sua bagagem de informações. Vai ser útil para você “sacar” seu retratado. Além das ideias, a parte técnica, evidentemente, é fundamental na composição da imagem fi-nal. Você compõe a luz, o ângulo e o ambiente com a finalidade de transmitir uma ideia. No meu caso, trabalho da seguinte maneira: nunca recorro ao zoom, trabalho sempre com as lentes muito abertas e uso, em geral, 35 mm F:1.4, 85 mm F:1.4 e 105 mm F:2.8 micro. A composição da luz é com flash lateral, normalmente vindo do lado direito de quem fotografa (esquerdo do retratado) e um pouco do alto, para dar uma sombra projetada abaixo do pescoço. Esse ângulo fica a mais ou menos 45 graus do retratado, e não cos-tumo usar rebatedor. Não sei por que a escolha do lado. É apenas uma ma-neira minha de trabalhar, juro, sem nenhuma conotação política. Por favor!

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FICHA TÉCNICA

Equipamento:Câmera: Nikon F4Lente: 85 mm f/1.4

Exposição: ISO 400, abertura f/16 e velocidade 1/60

Iluminação:Flash com sombrinha branca

Captura: Filme Kodak Tri-X