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© Depositphotos unesp ciência fevereiro de 2018 ano 9 número 93 DIREITO CRIME DE TRáFICO DE PESSOAS CINEMA REVISITANDO PEDRO ALMODóVAR Insubiota TRATAMENTO ALTERNATIVO PARA DIABETES

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unespciênciafevereiro de 2018 ∞ ano 9 ∞ número 93

Direito Crime de tráfiCo de pessoas

Cinema revisitando pedro almodóvar

Insubiotatratamento alternativo para diabetes

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fevereiro 2018 | UnespCiênCia 3

Editorial

Jornada diversa e multifacetada

I mersos na maratona cotidiana, muitas vezes esque-cemos das gentilezas básicas da vida. Uma delas é o

reconhecimento a quem nos dá apoio. Para não cometer essa falha, gostaríamos de agradecer, na pessoa do vereador e presidente Jéferson Yashuda Farmacêutico, à Câmara Municipal de Araraquara, SP, pela inclusão, em dezem-bro último, nos anais da Casa de Leis local da matéria publicada na revista unespciência de novembro de 2017 intitulada Novos fármacos para tratamento da tuberculose.

Isso nos motiva a trabalhar cada vez mais e melhor. Nesta edição, nossos principais temas são o Insubiota, projeto voltado para um tratamento alternativo para dia-betes; a complexidade dos conflitos contemporâneos na África; o crime de tráfico de pessoas; a cerâmica indígena no Brasil; análise do filme Julieta, de Pedro Almodóvar; os 100 anos do livro Tropas e boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos; e a defesa da universidade pública, gratuita, de qualidade e sustentável.

Para completar, na edição online, temos textos sobre a Indústria 4.0; a literatura e sua capacidade de desnudar a verdade da política; elos entre fornicação, fármacos e funk; escritos de Rosa Luxemburgo; e Seminário Prepa-ratório para a Bienal Afro-Brasileira do Livro.

Obrigado a todos que compartilham de nossa jornada diversa e multifacetada!

Governador Geraldo Alckmin

Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e InovaçãoMárcio França

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAReitorSandro Roberto ValentiniVice-reitorSergio Roberto NobrePró-reitor de Planejamento Estratégico e GestãoLeonardo Theodoro BüllPró-reitora de GraduaçãoGladis Massini-CagliariPró-reitor de Pós-GraduaçãoJoão Lima Sant’Anna NetoPró-reitora de Extensão UniversitáriaCleopatra da Silva PlanetaPró-reitor de PesquisaCarlos Frederico de Oliveira GraeffSecretário-geralArnaldo CortinaChefe de GabineteCarlos Eduardo VerganiAssessor-chefe da Assessoria de Comunicação e ImprensaOscar D’Ambrosio

Presidente do Conselho CuradorMário Sérgio VasconcelosDiretor-presidenteJézio Hernani Bomfim Gutierre Superintendente administrativo e financeiroWilliam de Souza Agostinho

Diretor de redação Oscar D’AmbrosioArte Hankô Design (Ricardo Miura)Assistente de arte Andréa CardosoColaboradores Danielle Biscaro Pedrolli, Jean-Jacques A. Vidal, João Eduardo Hidalgo, Luiz Gonzaga Marchezan, Nathan Vinícius Ribeiro, Paulo Cesar Corrêa Borges, Sérgio Luiz Cruz Aguilar, Vera Lucia Messias FialhoCapellini (texto) Conteúdo online Jorge Muniz Junior, Luis de Oliveira Nascimento, Sinésio Ferraz Bueno, Thiago Barbosa Alves de Souza (texto) Amanda Fernandes (foto) Revisão Maria Luiza SimõesProjeto gráfico Hankô Design (Ricardo Miura) Produção Mara Regina MarcatoApoio de internet Marcelo Carneiro da SilvaApoio administrativo Thiago Henrique Lúcio Endereço Rua Quirino de Andrade, 215, 4o andar, CEP 01049-010, São Paulo, SP. Tel. (11) 5627-0327. www.unespciencia.com.br [email protected]

Impressão 46 Indústria e Logística de ImpressosTiragem 3 500 exemplaresÉ autorizada a reprodução total ou parcial de textos e imagens desde que citada a fonte. Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da Universidade.

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opiniÃoem defesa da UnespVERA LUCIA MESSIAS FIALHO CAPELLINI

Sumário

farmáCiainsubiota: um tratamento alternativo para diabetesNATHAN VINíCIUS RIBEIRODANIELLE BISCARO PEDROLLI

Sumário

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Confira o material exClusivo no site:WWW.unespCienCia.Com.Br

engenharia De proDuçÃoindústria 4.0 – transformação e desafios para o Cenário brasileiroLUIS DE OLIVEIRA NASCIMENTO E JORGE MUNIz JUNIOR

literaturaa literatura e sua capacidade de desnudar a verdade da políticaSINÉSIO FERRAz BUENO

Cultura popularfornicação, fármacos e funkTHIAGO BARBOSA ALVES DE SOUzA

leituraescritos de rosa luxemburgo ganham nova edição

foto Do mêsseminário preparatório para a bienal afro-brasileira do livroAMANDA FERNANDES

relações internaCionaisa complexidade dos conflitos

contemporâneos na áfrica: algumas reflexões

SÉRGIO LUIz CRUz AGUILAR

Direitoalguns aspectos relevantes sobre o crime de tráfico de pessoasPAULO CÉSAR CORRêA BORGES

arteCerâmica

indígena do brasil

JEAN-JACQUES A. VIDAL

Cinemarevisitando pedro almodóvar através de seu mais recente filme – Julieta (2016)JOãO EDUARDO HIDALGO

literatura100 anos de

tropas e boiadasLUIz GONzAGA

MARCHEzAN

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FarmáciaFarmácia

ir além da digestão e proteção contra agentes patogênicos. Estudos recentes mostraram que a microbiota intestinal desempenha um papel ativo nos processos imunológicos, de resistência à insulina, deposição de gordura, inflamação, na pressão arterial e até na depressão[1; 3].

Microrganismos probióticos são, há muito tempo, reconhecidos por fornecer benefícios à saúde, e um número crescente de estudos tem mostrado quais espécies influenciam po-sitivamente a saúde humana. Mas, agora, os cientistas estão começando a modificar gene-ticamente bactérias probióticas para exibirem um comportamento desejado e ajudarem a tratar doenças específicas. Essas bactérias são chamadas de Probióticos 2.0 ou Designer Probiotics[4]. Por exemplo, Steidler e colabora-dores criaram uma cepa de Lactococcus lactis, a partir da bactéria comumente usada para

A s injeções de insulina para o tratamento da diabetes têm salvado incontáveis vidas

desde que foram usadas pela primeira vez, na década de 1920. Desde então, o processo de produção passou por enormes avanços, com melhoras no rendimento e grau de pureza do produto, além da geração de análogos de insu-lina que ampliaram as opções de tratamento. Porém, a forma de administração continua inalterada. Neste contexto, o projeto Insubiota propõe uma abordagem completamente inova-dora para a administração da insulina, fazendo uso de bactérias probióticas que naturalmente povoam o intestino humano.

Na última década, aumentou o interesse pelo papel desempenhado pelo microbioma humano, tanto na saúde como na doença. A relação comensal que desenvolvemos com nossa microbiota ao longo da evolução parece

fermentar produtos lácteos, capaz de produzir interleucina-10, uma citocina anti-inflamatória humana. As bactérias modificadas secretam continuamente a interleucina-10 enquanto habitarem o trato intestinal. Quando usada na alimentação dos ratos, L. lactis modificada curou ou preveniu a enterocolite experimen-tal[5]. Já Hwang e colaboradores criaram uma Escherichia coli probiótica capaz de eliminar a infecção intestinal por Pseudomonas aeru-ginosa em modelos animais e ainda prevenir uma nova infecção[6].

Os probióticos geneticamente modifica-dos apresentam um enorme potencial para combater doenças crônicas, atuando como pequenas fábricas, sintetizando terapêuticos dentro do intestino humano. Colite, diabetes mellitus e intolerância à lactose são alguns exemplos de doenças que poderiam ser com-

batidas com bactérias geneticamente modi-ficadas. Dentre estas, a diabetes se mostra uma forte candidata ao desenvolvimento de um tratamento alternativo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, de 1980 a 2014, o número de indivíduos com diabetes quadruplicou, atingindo cerca de 422 milhões de pessoas[7]. A diabetes mellitus tipo 1, uma forma crônica e mais grave da doença, é carac-terizada por deficiência na produção de insu-lina devido à destruição autoimune de células ß-pancreáticas. Neste caso, o paciente produz pouca ou nenhuma insulina, e acaba sendo totalmente dependente do hormônio exógeno para sobreviver. Outros tipos de complicações como neuropatias, retinopatias e doenças car-díacas podem ser desenvolvidos ao longo dos anos como resultado da doença [7; 8]. O trata-mento convencional para diabetes consiste em injeções intravenosas periódicas da insulina. No entanto, um grande número de pacientes

expressa rejeição ao método devido à sua na-tureza invasiva, que causa efeitos colaterais indesejáveis. Assim, estudos de tratamentos alternativos menos invasivos são desejados.

Com essas informações em mãos, o grupo de pesquisa SynBio Unesp aceitou o desafio de construir um probiótico, geneticamente modificado, para a produção de insulina dire-tamente no intestino do paciente diabético. Foi concebido assim o projeto Insubiota, inscrito na edição de 2017 da Competição Internacional de Máquinas Geneticamente Modificadas – iGEM pelo time iGEM Unesp AQA.

Vários obstáculos precisavam ser transpos-tos já na concepção do projeto: I) A variante natural da insulina sofre processamento pós--síntese, algo impossível de ser realizado por bactérias probióticas; II) A insulina produzi-da precisa ser secretada pela bactéria; III) A

APRESENTAçãO EM BOSTON É PREMIADA COM MEDALHA DE OURO

insubiota: um tratamento alternativo para diabetes

OS PROBIóTICOS GENETICAMENTE MODIFICADOS APRESENTAM UM ENORME POTENCIAL PARA COMBATER DOENçAS CRôNICAS

Ao lado, foto do time completo, composto por alunos de graduação em Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia e em Farmácia Bioquímica, alunos de pós-graduação do programa Biociências e Biotecnologia aplicadas a Farmácia, e professores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp.

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NATHAN VINíCIUS RIBEIRO E DANIELLE BISCARO PEDROLLI

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FarmáciaFarmácia

capacidade de penetração da insulina através do epitélio intestinal é baixa; IV) A produção de insulina deve ser controlada de acordo com a necessidade do paciente; V) O probiótico geneticamente modificado precisa ser capaz de se instalar, mesmo que temporariamente, na microbiota intestinal da pessoa diabética.

Para dispensar a necessidade de proces-samento pós-síntese e, assim, possibilitar o uso de bactérias probióticas para a produção de moléculas ativas de insulina, o grupo uti-liza um análogo de cadeia única da insulina, desenvolvido por Hwang e colaboradores[9]. Esta variante é sintetizada já em sua forma final ativa, sendo ainda mais estável que a variante natural.

Para a secreção da insulina pela bactéria probiótica, foi adicionado um sinal peptídico à cadeia única da insulina, que serve como um endereçamento, indicando à bactéria co-mo destino final da insulina o ambiente ex-terno. O sinal é removido durante o processo de transporte. Assim, apenas a insulina é li-berada pelo probiótico.

A administração de insulina por via oral tem sido intensamente estudada, mas apresenta algumas barreiras que inviabilizam seu uso, como a degradação no trato digestivo superior e a baixa permeabilidade da insulina através do epitélio intestinal. Por se tratar da possível administração da bactéria probiótica e não da insulina diretamente, a degradação deixa de ser uma barreira, já que probióticos são capazes de sobreviver às condições impostas pelo trato digestivo. Para resolver o problema relacionado à absorção, foi adicionado à ca-deia da insulina um peptídeo de penetração celular, cuja capacidade de carrear outros peptídeos através de membranas tem sido relatada[10].

O controle da produção de insulina foi planejado para funcionar durante a síntese da insulina. Um sensor molecular de glicose foi projetado para apenas permitir a síntese de insulina, dentro do probiótico, quando o açúcar oriundo da alimentação for detectado.

Por fim, a capacidade de colonização do probiótico geneticamente modificado foi tes-tada, com auxílio de um simulador, na mi-crobiota intestinal de uma pessoa portadora de diabetes tipo I. Sabe-se que nem todo probiótico persiste na microbiota intestinal após ingestão. Também é sabido que bactérias geneticamente modificadas podem apresentar capacidade reduzida de competir com outros microrganismos não modificados. Assim, ve-rificar que o probiótico modificado era capaz de permanecer por pelo menos 24 h na mi-crobiota intestinal de uma pessoa portadora de diabetes tipo I (em ambiente simulado) foi um resultado bastante encorajador.

Esta foi a concepção apresentada pelo ti-me iGEM Unesp AQA na cidade de Boston (USA), em novembro de 2017, e que foi pre-miada com a medalha de ouro. O trabalho ainda se encontra em fase inicial de desen-volvimento. Por possuir um caráter extrema-mente inovador, o projeto ainda necessita de muitas provas de funcionamento e otimiza-ções. Mas é exatamente esta capacidade de inovar que é reconhecida pela competição.

referênCias

[1] Marques Fz, Mackay CR, Kaye DM. Beyond gut feelings: how the gut microbiota regulates blood pressure. Nat Rev Cardiol. 2017.

[2] Lima-Ojeda JM, Rupprecht R, Baghai TC. “I Am I and My Bacterial Circumstances”: Linking Gut Microbiome, Neurodevelopment, and Depression. Front Psychiatry. 2017; 8:153.

[3] Torres-Fuentes C, Schellekens H, Dinan TG, Cryan JF. The microbiota-gut-brain axis in obesity. Lancet Gastroenterol Hepatol. 2017; 2(10):747-56.

[4] Maxmen A. Living therapeutics: Scientists genetically modify bacteria to deliver drugs. Nat Med. 2017; 23(1):5-7.

[5] Steidler L, Hans W, Schotte L, Neirynck S, Obermeier F, Falk W, et al. Treatment of murine colitis by Lactococcus lactis secreting interleukin-10. Science. 2000; 289(5483):1352-5.

[6] Hwang IY, Koh E, Wong A, March JC, Bentley WE, Lee YS, et al. Engineered probiotic Escherichia coli can eliminate and prevent Pseudomonas aeruginosa gut infection in animal models. Nat Commun. 2017; 8:15028.

[7] Organization WH. Global report on diabetes. France: WHO Press; 2016.

[8] Ng DT, Sarkar CA. Nisin-inducible secretion of a biologically active single-chain insulin analog by Lactococcus lactis Nz9000. Biotechnol Bioeng. 2011; 108(8):1987-96.

[9] Hua QX, Nakagawa SH, Jia W, Huang K, Phillips NB, Hu SQ, et al. Design of an active ultrastable single-chain insulin analog: synthesis, structure, and therapeutic implications. J Biol Chem. 2008; 283(21):14703-16.

[10] Kamei N, Nielsen EJ, Khafagy el S, Takeda-Morishita M. Noninvasive insulin delivery: the great potential of cell-penetrating peptides. Ther Deliv. 2013; 4(3):315-26.

nathan vinícius ribeiro, graduando em engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia.

Danielle Biscaro pedrolli, professora do Departamento de Bioprocessos e Biotecnologia.

Acima, apresentação em Boston. No palco, da esquerda para a direita, Rafael Brull Tuma, Patrick Neves Squizato e Nathan Vinicius Ribeiro, todos alunos de graduação em Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia.

Ao lado, placa de petri contendo as bactérias probióticas geneticamente modificadas crescendo em meio de cultura.

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NATHAN VINíCIUS RIBEIRO E DANIELLE BISCARO PEDROLLI

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Relações InternacionaisRelações Internacionais

O s principais conflitos africanos da atua-lidade são complexos e podem ser en-

quadrados nos chamados sistemas regionais de conflitos. É o caso da região do Rio Mano, dos Grandes Lagos e do Sahel. Assim sendo, não podem ser analisados de forma isolada, nem ser “resolvidos” sem que se leve em conta os demais países que influenciam de alguma maneira em cada conflito interno. É o caso dos conflitos no Mali, na República Centro Africana (RCA), na República Democrática do Congo (RDC) e no Sudão do Sul, dentre outros. A multiplicidade de atores envolvidos, internos e externos, com diferentes interesses, percepções e capacidades, torna difícil a iden-tificação das dinâmicas que operam em cada

um deles, e que se alteram de acordo com a evolução dos acontecimentos.

Parte dos conflitos armados em andamen-to na África são considerados prolongados, na concepção apresentada por Edward Azar, empreendidos por grupos comunais em ra-zão de necessidades básicas como segurança, reconhecimento e aceitação, acesso justo às instituições políticas e participação econômi-ca, mantendo-se ao longo do tempo porque as causas profundas da violência não são resol-vidas. Alguns desses conflitos são chamados “intratáveis” por evidenciarem característi-cas que fogem das expectativas normais de respostas a intervenções como: resistência a mudanças; dificuldade de definir quais as motivações (às vezes invisíveis); padrões de escalada e desescalada que se alteram em termos de níveis de intensidade (períodos de calmaria que de repente se transformam em violência e vice-versa); resposta desproporcio-nal à magnitude das intervenções, podendo, por vezes, parecer “resolvidos” mas retornam abruptamente porque suas causas profundas

não foram devidamente tratadas. Sob o ponto de vista da análise sistêmica

de conflitos, as interações que se processam entre estruturas e os atores envolvidos, e entre os atores, são complexas e diferentes em termos dos contextos em que ocorrem, das questões envolvidas, das relações que moldam essas questões, dos processos que se desenrolam e dos resultados que geram.

Os conflitos complexos apresentam dife-rentes subsistemas (fluxo de refugiados, ativi-dades ilícitas transnacionais, luta pelo poder político, controle de recursos naturais, etc.) e relações entre as partes do conflito e entre elas e todos os subsistemas que produzem determi-nados efeitos. Além disso, há fatores invisíveis

AS INTERAçõES SãO INFLUENCIADAS POR FATORES VISíVEIS E NãO VISíVEIS, COMO ETNIA, RELIGIãO, IDENTIDADE, CULTURA, RECURSOS, QUEIXAS E DESCONFIANçAS, ENTRE OUTROS

a complexidade dos conflitos contemporâneos na áfrica: algumas reflexões

A INCAPACIDADE DE “RESOLVER” OS PRINCIPAIS CONFLITOS ARMADOS AFRICANOS DA ATUALIDADE RESULTA EM DANOS àS POPULAçõES CIVIS DOS ESTADOS ONDE ELES SE DESENROLAM

Na foto, integrantes de uma Brigada de Resposta da Força da MONUSCO que demonstram técnicas de combate. A Brigada foi mandada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas para neutralizar todos os grupos armados na parte oriental da República Democrática do Congo.

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SÉRGIO LUIz CRUz AGUILAR

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Relações InternacionaisRelações Internacionais

(ou ‘irracionais’) como necessidades, queixas, ódio, desconfiança e interesses que se fazem presentes em relação aos atores envolvidos.

Ou seja, as interações são influenciadas por fatores visíveis e não visíveis, como etnia, religião, identidade, cultura, recursos, queixas e desconfianças, entre outros, e as dinâmicas do sistema e dos subsistemas dos conflitos se alteram rapidamente quando ocorrem deter-minados eventos-chaves, criando imprevisibili-dade dos resultados. As dinâmicas operam em estruturas existentes, e determinadas ações e/ou eventos acabam desencadeando a violência que resulta, de alguma forma, num conflito regionalizado.

Normalmente estão presentes nos confli-

tos africanos fatores como violência direta, violência estrutural, deficiências do Estado e construção de identidades e diferenças. Há um alto grau de variação nas relações entre gru-pos armados existentes, bem como a criação de novos grupos por conta do baixo nível de institucionalização desses atores. As facções se mostram extremamente flexíveis em rela-ção aos padrões de alianças, que ocorre tam-bém por conta da pouca clareza dos objetivos reais de cada grupo. A violência direta acaba gerando a militarização geral de todo o país onde o conflito ocorre. A violência estrutural inclui extrema – e crescente – pobreza, exclu-são ou marginalização da maioria em relação aos direitos econômicos, sociais, humanos e culturais, além da desigualdade em todos os aspectos. A violência estrutural estimula a vio-lência direta em todos os níveis, do indivíduo às comunidades, vilas, cidades, etc. As defici-ências de governança, democracia e Estado de Direito estão presentes em todos os Estados africanos onde há conflitos na atualidade. A

Sudão do Sul, da RCA, do Mali e do Sudão é que análises deficientes resultam em formas de intervenção que não conseguem “resolver” os conflitos. As operações de paz desdobradas pela Organização das Nações Unidas (ONU) nesses países, apesar do grande efetivo empre-gado, têm se mostrado incapazes de encerrar os conflitos e estabelecer um clima de paz.

Apesar dos efetivos desdobrados e dos man-datos mais intrusivos aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU, autorizando o uso da força para proteção de civis nas cinco maiores operações em andamento – MONUSCO (RDC), MINUSCA (RCA), UNMISS (Sudão do Sul), MINUSMA (Mali) e da UNAMID (Darfur-Sudão) –, o resultado tem sido questionável.

As intervenções deficientes falham em com-preender as dinâmicas que operam nos conflitos – as condições de enquadramento estrutural e as causas subjacentes –, ou seja, os fatores que contribuem para a formação e disseminação dos conflitos, bem como as relações entre os atores e entre eles e as estruturas no espaço

e no tempo, cujos resultados reabastecem o sistema.

Mesmo que, do ponto de vista factual, seja extremamente difícil explicar todas as possíveis causas e dinâmicas presentes nesses conflitos complexos, deve haver um esforço de se anali-sar de forma abrangente e sistemática todos os contextos, fatores, atores e dinâmicas envolvi-das nesses processos conflituosos.

A incapacidade de “resolver” os principais conflitos armados africanos da atualidade re-sulta em danos às populações civis dos Esta-dos onde eles se desenrolam, normalmente o segmento mais afetado pela violência e cuja proteção é o principal objetivo do uso da força pelas forças internacionais, além de elevados custos para a ONU.

Nesse sentido, os atores envolvidos nas ten-tativas de conformar a paz nesses países afri-canos devem dar mais atenção à análise dos conflitos como base para a construção de formas de intervenção, sejam elas de peacekeeping, peacemaking ou peacebuilding.

sérgio luiz Cruz aguilar é professor do Departamento de sociologia e antropologia da unesp – Câmpus de marília/sp, onde coordena o grupo de estudos e pesquisa sobre Conflitos internacionais (gepCi) e o observatório de Conflitos internacionais (oCi). É professor do programa de pós-graduação em relações internacionais san tiago Dantas (unesp, unicamp e puC-sp) e do programa de pós- -graduação em Ciências sociais da unesp – Câmpus de marília/sp

luta pelo poder político, na maioria deles, e o controle de recursos naturais, em alguns de-les, como na RDC, mobilizam identidades/diferenças principalmente étnicas, em prol de interesses particulares, o que acaba alimen-tando a violência.

Os conflitos operam em três níveis que se interconectam: local (entre grupos, peque-nas comunidades, nativos e não nativos, etc.), nacional (poder central e grupos armados de oposição) e regional (provocado pelas ligações transnacionais entre os atores).

A conformação de sistemas regionais de conflitos se dá como resultado das dinâmicas que operam nas condições estruturais, bem como na moldura que as guerras regionaliza-das provocam nas estruturas. Assim, a análise sistêmica centra-se na relação entre estrutu-ras, dinâmicas e resultados cuja compreensão permite a visualização melhor do conflito e, por conseguinte, das melhores formas de in-tervenção.

O que se verifica nos casos da RDC, do

Há UMA SÉRIE DE FERRAMENTAS E TÉCNICAS QUE AUXILIAM A ANáLISE DE CONFLITOS E QUE SãO UTILIzADAS POR CENTROS DE PESQUISA, AGêNCIAS E ORGANIzAçõES INTERNACIONAIS

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Incertezas políticas e histórico de golpes de Estado fazem parte do cotidiano do Mali. Nos últimos anos, a instabilidade aumentou com a ação de grupos extremistas islâmicos que tentam combater o governo do país.

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SÉRGIO LUIz CRUz AGUILAR

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DireitoDireito

É diante dessa conjuntura que se busca identificar os impactos da vulnerabilidade das pessoas na exposição aos riscos do tráfico in-terno e internacional, para fins de exploração sexual e laboral, que se constitui em forma contemporânea de escravidão[2], em pleno século XXI, temática que preocupa diversos organismos nacionais e internacionais (ONU, OIT, OIM, etc.), e que tem fomentado diver-sas pesquisas em redes das quais o Progra-ma de Pós-graduação em Direito da Unesp (PPGDireito/Unesp/Franca) participa, tais como a Red Iberoamericana de investigación sobre formas contemporáneas de esclavitud y Derechos Humanos[3]; Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo[4]; em certa medida, com enfoque na relação de empresas transnacionais e direitos humanos, o Consór-cio Latino-Americano de Pós-Graduação em Direitos Humanos[5]; e o Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em DDHH[6], liderado pela Unesp.

A partir da análise das alterações legislativas

A realidade brasileira e de toda a América Latina revela um grande contingente de

pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e expostas a diferentes formas de exploração, destacando-se a laboral e a sexual, além da exposição a diferentes formas de violência e de violação de diversos direitos humanos fundamentais.

Nos últimos anos, diferentes crises aumen-taram a grave situação de vulnerabilidade so-cial das pessoas, particularmente das mais pobres, ampliando os riscos de exploração e violação de direitos. Neste sentido, destaca-se que, segundo o relatório “Síntese dos Indica-dores Sociais – 2017”, no Brasil, “(...) a taxa de desocupação da população em geral subiu de 6,8%, em 2014, para 11,3%, em 2016”. Além disso, a análise da referida pesquisa permitiu concluir a maior vulnerabilidade dos jovens me-nos qualificados: “45,8% dos jovens de 18 a 24 anos e 39,2% dos jovens de 25 a 29 anos com no máximo o ensino fundamental incompleto não estudavam nem estavam ocupados”[1].

TEXTO ANALISA A VULNERABILIDADE DAS VíTIMAS

alguns aspectos relevantes sobre o crime de tráfico de pessoas

dos países da União de Nações Sul-America-nas – Unasul, implementadas para adequação ao Protocolo de Palermo[7], que é de 2000 e entrou em vigor no Brasil através do Decreto n. 5.017, de 12 de março de 2004, dois as-pectos relevantíssimos ganharam o centro dos debates jurídicos e multidisciplinares concernentes ao consentimento e ao abuso da situação de vulnerabilidade em relação ao tráfico de pessoas, por vezes caracterizando o denominado “dumping social”, na cadeia produtiva, por meio das terceirizações feitas por empresas, inclusive transnacionais.

O CONSENTIMENTO NO TRáFICO DE PESSOAS PARA FINS DE TRABALHO ESCRAVO E EXPLORAçãO SEXUALNo Protocolo de Palermo, o crime de tráfico de pessoas se caracteriza e o consentimento da vítima é irrelevante apenas quando obtido por meio de ameaça, violência física ou moral, sequestro, fraude, engano, abuso de autorida-de, abuso de vulnerabilidade ou pagamento,

bem como é, absolutamente, desconsiderado o consentimento em relação aos menores de dezoito anos, que nos documentos interna-cionais são o marco etário normativo para a caracterização de “criança”.

Na legislação penal dos países da Améri-ca do Sul, constata-se que apenas o Brasil, o Chile e o Peru incorporaram a relevância do consentimento para a descaracterização do crime de tráfico de pessoas, quando ausen-tes aqueles meios violentos ou fraudulentos de sua obtenção. Para os demais países da Unasul, o consentimento é irrelevante e os meios ilícitos para sua obtenção ou agravam a pena ou são qualificadores[8], repercutindo na majoração da pena a ser aplicada.

A atualização da legislação penal brasi-leira é recente[9] e ocorreu através da Lei n. 13.344, de 6 de outubro de 2016, inclusive implicando no reconhecimento da sua retro-atividade benéfica aos casos de condenações anteriores, em que foi reputada irrelevante a presença do consentimento da vítima, carac-

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DireitoDireito

terizando-se o que em Direito denomina-se “abolitio criminis”[10].

Embora esse tipo de criminalidade seja permeado pela clandestinidade e, por vezes, no caso de trabalho em condições análogas à de escravo ou exploração sexual, possa es-tar presente um aparente consentimento da vítima, os números oficiais são expressivos.

Segundo levantamento feito pela Câma-ra Criminal do Ministério Público Federal, em 2017, estão em andamento 225 casos de tráfico de pessoas, com 15 condenações (8 em primeira instância e 7 em segunda ins-tância), assim distribuídos: 78 ações penais na primeira instância da Justiça Federal; 29 ações penais na segunda instância (Tribunais Regionais Federais – TRFs); 97 inquéritos policiais; e 21 procedimentos investigatórios conduzidos pelo próprio MPF[11].

DESAFIOS ATUAIS PARA A EXECUçãO DA POLíTICA CRIMINALNo III Congreso Jurídico Internacional sobre formas contemporáneas de Esclavitud, reali-zado em Lima/Peru, de 20 a 21 de novembro de 2017, com a participação de membros do Ministério Público do Peru e de pesquisa-dores ibero-americanos e especialistas em tráfico de pessoas para diferentes fins de exploração, mas principalmente sexual e la-boral, dentre os desafios atuais, foi desta-cada a dificuldade existente em comprovar nos processos criminais o que as legislações penais indicam como “abuso de vulnerabilidade”, como hipótese de exclusão da valida-de do consentimento da vítima, principalmente em relação aos três países que já se adaptaram ao Protocolo de Palermo: Brasil, Peru e Chile.

Outro desafio apresentado a partir das pesquisas realizadas na Unesp referiu-se à relação da terceirização na cadeia produtiva da indústria têxtil e da mineração com o trabalho escravo, caracte-

rizando em alguns casos já julgados[12] pela Justiça do Trabalho até mesmo o dumping social[13].

É urgente a disseminação de uma cultura corporativa que previna tais situações violadoras de direitos humanos fundamentais, inclusive por meio de uma política de compliance e, no caso de empresas transnacionais, através da implementação dos denominados Princí-pios de John Rudggie, que foram aprovados pela ONU como Principios Rectores sobre las empresas y los derechos humanos: puesta en práctica del marco de las Naciones Uni-das para “proteger, respetar y remediar”[14].

Por certo, não será efetiva a política crimi-nal para enfrentamento do tráfico de pessoas, por meio de atos administrativos infralegais e inconstitucionais, como se pretendeu através da Portaria n. 1.129, de 13 de outubro de 2017, restringir o conceito de trabalho escravo à res-trição da liberdade de ir e vir da vítima[15], em afronta às Convenções 29 e 105, da OIT, à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho, previstos como fundamen-to da República Federativa do Brasil, além de ignorar os objetivos fundamentais do país na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, para alcançar o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginali-zação, reduzir as desigualdades sociais e pro-mover o bem de todos, como expressamente está previsto no artigo 1.o, incisos III e IV, e

no artigo 3.o, inciso I, II, III e IV, ambos da Constituição Federal.

Tanto é assim que, em decisão liminar da Ministra Rosa We-ber[16], o Supremo Tribunal Fe-deral suspendeu aquela portaria, em 23 de outubro de 2017, e o Ministério Público Federal pro-pôs ação de improbidade admi-nistrativa[17], em 6 de dezembro de 2017, em face do Ministro do Trabalho por omissão deliberada e pelo desmonte da política pú-blica de erradicação do trabalho escravo.

referênCias

[1] IBGE. Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2017. (Estudos & Pesquisas: Informação Demográfica e socioeconômica, vol. 37). Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/ liv98965.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2017.

[2] BORGES, Paulo César Corrêa. La trata de personas como expresión de formas contemporáneas de esclavitud em América del Sur. In: El derecho ante las formas contemporáneas de esclavitud. 1 ed. Madrid/España: Tirant Lo Blanch Editorial, 2017, v.1, p. 369-398.

[3] Vejam-se maiores detalhes em: <http://rediberoamericana.com/>. A RIIFCEDH é liderada pela Universidad de Granada/Espanha e foi criada sob os auspícios da la Asociación Universitaria Iberoamericana de Posgrado (AUIP), a partir do Proyecto de Investigación del Plan Nacional DER2011-25796: “El Derecho ante las formas contemporáneas de esclavitud”.

[4] Vejam-se maiores detalhes em <goo.gl/78zDs1> ou em <http://www.gptec.cfch.ufrj.br/>. O GPTEC é liderado pela UFRJ.

[5] Vejam-se maiores detalhes em <http://www.consorciodh.ufpa.br/ES_convenio.htm>. O CLAPGDH é liderado pela Universidade Federal do Pará e conta com o apoio da Fundação Ford.

[6] Vejam-se detalhes em <https://goo.gl/AL51B6> ou <http://www.netpdh.com.br/2012/>.

[7] BRASIL. Decreto-lei

n. 5.017, de 12 de março de 2004: Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em: 17 dez. 2017.

[8] BORGES, Paulo César Corrêa. Panorama da legislação de combate ao trabalho escravo na América do Sul. IN: BORGES, PCC (Org.). Formas contemporâneas de trabalho escravo. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica Editora, 2015. (Série “Tutela penal dos direitos humanos), n. 4.

[9] BRASIL. Lei n. 13.344, de 6 de outubro de 2016: Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm#art13>. Acesso em: 15 dez. 2017.

[10] Neste sentido é o Acórdão do T.R.F. da 3ª Região: Apelação criminal n. 0003784-95.2010.4.03.6181/SP, julgado em 25 set. 2017.

[11] BRASIL TEM 225 casos de tráfico de pessoas sendo investigados, aponta MPF: Vítimas têm como destino atividades como exploração sexual e trabalho forçado. O Globo, 25 jul. 2017. Disponível em: < https://goo.gl/wVksBs>. Acesso em: 17 dez. 2017.

[12] Veja-se a íntegra de

sentença da 3.a Vara do Trabalho de São Paulo, no Caso zara, em <http://reporterbrasil.org.br/2014/04/integra-da-sentenca-

judicial-em-que-zara-e-responsabilizada-por-escravidao/>.Acessado em: 16 dez. 2017.

[13] BORGES, Paulo César Corrêa; ARRUDA, Amanda Amorim. A relação do trabalho escravo com o dumping social, na cadeia produtiva: a estratégia da terceirização. Revista da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas – ABRAT, ano 1, n. 1, 191-207, jan./dez. 2017, Belo Horizonte, Fórum, 2017.

[14] Aprovado pela ONU, A/HRC/17/31. Disponível em: <http://www.ohchr.org/documents/issues/business/A.HRC.17.31.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2017.

[15] BRASIL. Ministério do Trabalho. Portaria n. 1.129 de 13 de outubro de 2017: Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro--desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo 2-C da Lei n. 7998, de 11 de janeiro de 1990; bem como altera dispositivos da PIMTPS/MMIRDH Nº 4, de 11 de maio de 2016. Disponível em <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=82&data=16/10/2017>. Acesso em: 13 dez. 2017.

[16] A íntegra da decisão monocrática na ADPF n. 489-MC/DF está disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF489liminar.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2017.

[17] A íntegra da inicial da ação de improbidade administrativa está disponível em <https://goo.gl/rquUU9>. Acesso em 18 dez. 2017.

Paulo César Corrêa Borges, mestre e doutor em Direito pela Unesp, com pós-doutoramento na Universidad de Sevilla. Professor assistente-doutor de Direito Penal na Unesp (FCHS, Câmpus de Franca); coordenador do NETPDH; presidente da Comissão Permanente de Pesquisa da FCHS; membro do Conselho do PPGDIREITO e da CCPG da Unesp.

É URGENTE A DISSEMINAçãO DE UMA CULTURA CORPORATIVA QUE PREVINA SITUAçõES VIOLADORAS DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

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PAULO CÉSAR CORRêA BORGES

UnespCiênCia | fevereiro 2018 17fevereiro 2018 | UnespCiênCia

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Arte

AS PEçAS APRESENTADAS REPRESENTAM UM SABER

Arte

primas como a argila extraída do fundo do igarapé, as sementes para alisar as peças e a madeira para queimar. São importantes tam-bém as técnicas, comportamentos, atitudes, gestos e emoções que envolvem esta prática artística.

Em 1986, visitei a cidade de Cacoal, em Rondônia, a convite da indigenista Maria do Carmo Barcellos, com quem conversei muito sobre as peças cerâmicas que os índios traziam para vender. Fiquei impressionado naquele momento com a beleza da forma e a coloração das peças, sem nenhuma decoração. Pensei na possibilidade de realizar um trabalho com eles e fiquei muito contente quando me con-vidaram para visitar a aldeia.

Como resultado dessa convivência, muito

N este artigo, tratamos de um aspecto es-pecífico da cultura material dos índios

Paíter Suruí de Rondônia e Asurini do Xingu-PA, a cerâmica. Essa arte para esses povos envolve muito mais do que apenas o fator ce-râmico, pois sabemos que em uma sociedade indígena a cultura material se insere em um universo maior, que inclui as relações sociais, a relação com a natureza e com a sobrenature-za. A arte, e mesmo as práticas tecnológicas, não ficam desligadas destas outras dimensões.

As peças apresentadas representam um sa-ber e no caso dos Suruí envolvem um ritual em sua produção. Estas peças são fabricadas somente durante o período da seca, isto é, os meses de junho, julho e agosto, período este mais adequado para obtenção das matérias

gratificante, com os Suruí, especialmente pelo interesse que manifestaram em acompanhar e participar de minha pesquisa, defendi em 2011 no IA/Unesp a minha tese de mestrado: “A cerâmica do povo Paíter Suruí de Rondônia: continuidade e mudança cultural, 1970-2010”. Para esse trabalho, além dos índios, pude con-tar com o apoio de minha orientadora, Profa. Dra. Geralda Mendes F.S. Dalglish (Lalada) e, em especial, da antropóloga Dra. Betty Mindlin, cujas obras sobre os Paíter Suruí foram referência constante para entender a histó-ria desse povo e suas característi-cas socioculturais. Esse trabalho também não teria sido possível sem o acompanhamento altamen-

EXPOSIçãO MOSTRA CULTURA MATERIAL DOS PAíTER SURUí/ RO E ASURINI/ XINGU/PA

Cerâmica indígena do brasilte qualificado do líder e professor indígena, Uraan Anderson Suruí.

Já a partir de 2010, houve o interesse de promover, de maneira mais qualificada e em colaboração com os índios, a valorização da arte cerâmica suruí no meio urbano. Com o apoio de acadêmicos, galeristas, curadores e do Museu do Índio – FUNAI (RJ), os índios suruís conseguiram espaço e oportunidade,

segundo eles inovadoras, para par-ticipar de uma série de eventos, todos relativos à sua arte mais re-levante e diferenciada, a cerâmica.

Em 2015 tivemos a oportuni-dade de conhecer os Asurini do Xingu no estado do Pará, povo que se distingue pela rica produ-

Peças do povo Asurini do Xingu – PA. A cerâmica para esses povos tem uma íntima relação com o meio ambiente de onde provêm as matérias- -primas para sua confecção e muitos dos padrões para sua ornamentação.

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JEAN-JACQUES A. VIDAL

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ção cerâmica, de forma bastante diferente dos Paíter Suruí. Essa diferença nos leva a uma primeira constatação: a arte cerâmica indígena é extremamente diversificada no que se refere tanto à tecnologia como ao estilo, às formas produzidas, à decoração e às implicações so-ciais e cosmológicas indissociáveis da atividade.

Após o trabalho de campo entre os Asurini e a leitura de textos sobre os significados dos grafismos aplicados em sua cerâmica (Mül-ler, R. P. 1993, 2009) sentimos a necessidade de ampliar nossos horizontes e enriquecer o nosso conhecimento sobre a diversidade da produção cerâmica ameríndia. A primeira constatação é que não existe uma tradição cerâmica, mas uma grande variedade de tra-dições, cada qual profundamente inserida em um contexto sociocultural, ambiental e histórico específico.

Esta constatação, entretanto, não pode obscurecer que existem muitas semelhanças na cerâmica ameríndia a serem registradas: o fato de ser uma tarefa essencialmente femi-nina e uma atividade exclusivamente artesa-nal, além de, apesar de algumas diferenças,

ser elaborada com técnicas e procedimentos bastante semelhantes.

Constatamos também que todas as socie-dades amazônicas que produzem cerâmica possuem regras, a serem obedecidas na sua fabricação. Outro fator comum, apesar das mudanças, adaptações e inovações, é o fato de os índios atribuírem à atividade cerâmica uma posição privilegiada nas suas respecti-vas culturas, sendo considerada, em alguns casos, como um definidor de identidade para si mesmos e frente a outras etnias indígenas ou aos não índios. Verificamos também o papel importante da cerâmica na mitologia e cosmologia indígenas, assim como sua ín-tima relação com o meio ambiente de onde provêm as matérias-primas para sua confecção e muitos dos padrões para sua ornamentação.

É importante lembrar que, em todas as sociedades indígenas amazônicas, os donos dos conhecimentos e das artes são seres so-brenaturais com os quais é preciso negociar, geralmente através da atividade xamânica (LAGROU, E., 2009). Este é um aspecto fundamental da arte indígena.

São notórias as diferenças entre o processo de fabricação e o estilo das peças cerâmicas suruí e asurini do Xingu. Podemos verificar visivelmente estas diferenças nas peças ao lado, Figura 2 e Figura 3, coleção particular Betty Mindlin.

As belas formas e a coloração de tons quen-tes, sem nenhuma decoração intencional a não ser os matizes provenientes da própria matéria-prima muito apreciados entre os Su-ruí, agregam um valor estético a suas peças e valorizam as suas formas. Sempre ficamos muito intrigados com a perfeição das formas, acabamento e qualidade técnica da cerâmica suruí. Ainda mais por não possuir nenhuma decoração, como acontece entre os Asurini do Xingu. Constatamos em ambos os casos que todos os procedimentos para a fabricação destas cerâmicas são extremamente elaborados e dirigidos especificamente para a obtenção de um resultado de alta qualidade funcional e estética.

referênCias biblioGráfiCas

LAGROU, E. Arte Indígena no Brasil. Belo Horizonte: Editora C/arte, 2009.

MINDLIN, B. Vozes da origem/ (seleção e organização) Betty Mindlin e Narradores Suruí; tradução e transcrição das gravações Antonio Ipokarã. Rio de Janeiro: Record, 2007.___________. Diários da floresta. São Paulo: Terceiro Nome, 2006

___________. Nós Paiter. Os Suruí de Rondônia. Petrópolis: Vozes, 1985.

MÜLLER, R. P. Os Asurini do Xingu: história e arte. 2 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1993.

____________. Ritual da Imagem: arte Asurini do Xingu. Rio de Janeiro: Museu do índio, 2009.

SILVA, F. A. As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asurini do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica.Tese de doutorado apresentada ao programa de pós- -graduação em antropologia social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP,2000.

VIDAL, J. J. A. A cerâmica do povo Suruí de Rondônia: Continuidade e mudança cultural 1970 – 2010. Tese de mestrado apresentada ao Instituto de Arte da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. UNESP. 2011.

VIDAL, L. Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP, EDUSP, 1992.

fiGUra 1 Ceramista asurini dando acabamento em peça cerâmica decorada. Aldeia do Koatinemo, Xingu – PA, 2015.

fiGUra 2 Peça asurini, Xingu – PA.

fiGUra 3 Peça suruí – RO, 1980.

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JEAN-JACQUES A. VIDAL

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Jean-Jacques a. vidal.

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Patty Diphusa), nascido em 1957 em Madri, que frequentava a Casa das Costus (diminuti-vo de Las Costureras, formada pelos pintores Juan Carrero 1955-1989 e Enrique Naya 1953--1989), e circulava pela cidade assustando os franquistas semi-apodrecidos e os conserva-dores em geral. Fabio não era músico e como Almodóvar não tinha voz alguma, mas a ideia era mais uma questão estética, de parecer, do que realmente ser. A dupla dinâmica lançou um LP de vinil, chamado Como está o banheiro de senhoras! Antes de ser diretor e lançar seu primeiro filme, Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, em 1980, Almodóvar era cantor e performer.

Sobre o enredo de Julieta, mais recente obra de Almodóvar, um post de 18 de novembro de 2015, do site de El Deseo informa que ele é baseado no livro Silêncio de Shusaku Endo (1923-1996), e que o título fora mudado para evitar confusão com a nova obra de Martin

L a Movida espanhola é um movimento de renascimento cultural surgido depois de

quatro décadas de uma existência cinza e an-tiquada. O ditador Francisco Franco morreu depois de causar muitos danos ao povo e ao país, em 1975, deixando uma Espanha pobre, atrasada e perdida numa realidade que remon-tava ao início do século 20. O movimento é herdeiro da Pop Art americana e os grandes centros como Nova York e Londres são irradia-dores de uma cultura que valoriza o efêmero e o estereotipado, os subgêneros, as ex-estrelas e os produtos da sociedade de consumo. Esta nova onda trouxe um grupo de pessoas que não tinham experiência com a música, mas estavam dispostas a montar uma banda e dar shows-happenings por Madri e pelos outros centros urbanos da Espanha. Neste cenário New Wave e como eles dizem Rocanrol (Rock & Roll) surge Pedro Almodóvar, que se junta a Fabio de Miguel (ou Fanny MaCnamara, ou

ARTIGO MOSTRA COMO O CINEASTA ESPANHOL RETOMA PERSONAGENS E HISTóRIAS DA SUA PRóPRIA OBRA, DE OUTRO PONTO DE VISTA OU COM OUTRO TRATAMENTO

revisitando pedro almodóvar através de seu mais recente filme – Julieta (2016)

As atrizes Emma Suárez (à esq.) e Adriana Ugarte (à dir.) são protagonistas em Julieta. Ao centro, o diretor Pedro Almodóvar.

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JOãO EDUARDO HIDALGO

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Scorsese. Mas na entrevista de 20 de março para El País Almodóvar diz que se baseou em três contos de Alice Munro, escritora Prêmio Nobel em 2013, que são Chance (Destino, em espanhol), Soon (Pronto, em espanhol) e Silence (Silencio), três contos que têm como personagem central Juliet e que fazem parte do livro de contos Runaway (A fuga, em por-tuguês, e Escapada, em espanhol). Para os mais atentos devo lembrar que a personagem Vera Cruz (atentar para o nome, La vera cruz em espanhol significa ‘a verdadeira cruz’) de La piel que habito está lendo, no seu quarto--prisão, Escapada de Munro. E Almodóvar sugeriu que Elena Anaya lesse o livro para inspirá-la na criação da personagem, na época foi divulgado que Almodóvar tem os direitos de Escapada desde 2009. Neste filme novamente as artes visuais têm papel central na história, a escultura O homem sentado do artista Mi-quel Navarro é um fio condutor na trama.

Também aparecem quadros do pintor galego Seoane, de Lucien Freud, Richard Serra e de Dis Berlin, que também desenha a tatuagem de Xoan. Na parede do apartamento novo de Julieta, logo no início do filme, vemos o car-taz do espetáculo teatral The old woman, de Robert Wilson, e uma fotografia da esquina da Calle Alcalá com a Calle Sevilla (do Palacio de la Equitativa) que dialoga com a ‘esquina Almodóvar’ (Alcalá com Gran Vía), tão amada e fotografada pelo diretor.

Quanto ao método de criação, faz parte do universo Almodóvar retomar personagens e histórias da sua própria obra, de outro ponto de vista ou com outro tratamento, recurso que eu chamo de autocitação paródica. A história de Volver (2006) é o resumo do livro da es-critora Amanda Gris (Marisa Paredes), que é rejeitado por sua editora no filme La flor

de mi secreto (1995). A enfermeira Manuela aparece como personagem secundário neste mesmo filme, para voltar como protagonista de Todo sobre mi madre (1999). O cinema e, em segundo lugar, a literatura sempre foram fontes fundamentais na criação de Pedro Almodó-var. Elas podem ser somente uma estrutura, que quase não se percebe, como quando em Átame! Ricki (Antonio Banderas) apresenta a sua vida como pontos num mapa para Marina (Victoria Abril) e depois se declara dizendo, que só tem 50 mil pesetas no bolso e quer ser um bom pai para os filhos dela. Esta estrutura repete as do filme Bus Stop (Nunca fui santa, 1956) da fala de Cherie (Marilyn Monroe) pa-ra a sua camareira, mostrando onde estava e para onde queria ir (pontos num mapa) e da declaração do apaixonado Bo (Don Murray) para ela, e devemos lembrar que a persona-gem de Almodóvar, Marina (Victoria Abril), era uma ex-atriz pornô, que agora entrava no mercado de filmes sérios, os mesmos boa-tos que pesavam sobre o passado de Marilyn Monroe. Nos últimos anos, principalmente depois de La piel que habito (2011) as artes visuais voltaram a ter importância central na narrativa almodovária, neste filme o diálogo é com a obra de Louise Bourgeois (1911-2010), Guillermo Pérez Villalta, Goya, Velázquez e inclusive com um quadro de Tarsila do Ama-ral, que Almodóvar deve ter visto na grande exposição Tarsila do Amaral feita pela Fun-dação Juan March, em Madri, de fevereiro a maio de 2009 (a fundação fica a cinco ou seis quarteirões da produtora El Deseo).

Neste último filme o personagem central é uma mulher, Julieta, retratada em dois mo-mentos de sua vida, aos 20 e aos 40. A relação mãe e filha é central na trama, o que não é novidade em Almodóvar, lembremos Tacones lejanos (De salto alto, 1991) que trata da doen-tia relação de Rebeca (Victoria Abril) e Becky (Marisa Paredes); e Volver (2006) da mãe Irene (Carmen Maura) e sua filha Raimunda (Pe-nélope Cruz) e da filha desta, Paula (Yohana Cobo), que mata o pretenso pai. Em Julieta (2016) as citações, paródias e o que chamo de

autocitação, que são a marca central do estilo Almodóvar, estão pelo filme todo, por mais que pareça um novo Almodóvar, que agora adapta histórias alheias (ledo engano) e não mais oferece ao público um filme original. Já na primeira imagem vemos uma tela vermelha, que lembra a tela de teatro que baixa no final de Todo sobre mi madre (1999) e sobe no iní-cio de Hable con Ella (2001). A seguir somos apresentados a um conjunto de materiais que vão definir e estar presentes durante o filme: dentro de uma caixa de papelão, típica de mudanças, vemos a protagonista colocar uma estátua de um homem sentado (com leves tra-ços de O pensador de Rodin), um livro de arte com esta escultura na capa e o autor Lorenzo Gentile (personagem do filme), uma caixa de CDs Playing the piano e Out of noise (2009) de Ryuichi Sakamoto, compositor e pianista de música Thecno (que fez a trilha sonora de Tacones Lejanos, 1992, de Almodóvar). Julie-ta prepara sua mudança para Portugal, com Lorenzo Gentile, da estante na sua frente ela pega o livro El amor (1971) de Margueri-te Duras, que fala de três personagens: uma mulher grávida, um viajante e um homem que sempre caminha (oposição óbvia ao “hombre sentado”), que se isolam numa ilha, sempre frente ao mar (alguns elementos que apare-cem em Julieta). Na parede o cartaz da peça The old woman, adaptação de Robert Wilson da obra do russo Daniil Kharms (1905-1942), onde um escritor é assombrado pelo fantasma de uma velha mulher, Julieta é atormentada por dois fantasmas, o homem do trem e Xo-an, seu marido. E ainda uma foto da esquina da Calle Alcalá com a Calle Sevilla no centro de Madrid, que faz uma paródia da “Esqui-na Almodóvar”, assim nomeada por ele, que é a esquina de Calle Alcalá com la Gran Vía. Nesta esquina do edifício Metrópolis (1911) Esteban, de Todo sobre mi madre, é atropelado e morre e Isabel (Penélope Cruz) quase dá a luz a seu filho Victor em Carne Trémula (1996).

Julieta abre uma gaveta e vemos uma co-leção de recortes de jornal, método de Leo em La flor de mi secreto (1995) e Enrique de

La mala educación (2004), e que Almodóvar já disse que é o seu para encontrar histórias. Num recorte chama atenção o título, é ‘Es-quilmando el mar’ (esgotando o mar). E no fundo da gaveta há um envelope azul que Ju-lieta abre levemente, não vemos o conteúdo e joga no lixo. Este cesto de lixo Almodóvar diz que é o dele (no Pressbook), não sei se de sua casa ou de El Deseo. Neste filme convivem três etapas na vida da protagonista, a atual de 2016, a de 1985 e a de 1998, lembrando a estrutura de La mala educación (2004). No presente (2016), Julieta andando por Madri en-contra Beatriz, amiga inseparável de sua filha Antía, o encontro que é o detonador do filme acontece na esquina das calles (ruas) Monte Esquinza e Marques de Riscal, no bairro de Salamanca, moradia da alta burguesia madri-lena. Acredito que Almodóvar queria mostrar

O CINEASTA ESPANHOL REVELA-SE NESTE VIGÉSIMO LONGA-METRAGEM MADURO E COM UMA NARRATIVA REFINADA

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Fotografia da esquina da Calle Alcalá com a Calle Sevilla (do Palacio de la Equitativa) que dialoga com a “esquina Almodóvar” (Alcalá com Gran Vía), tão amada e fotografada pelo diretor.

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JOãO EDUARDO HIDALGO

UnespCiênCia | fevereiro 2018 25fevereiro 2018 | UnespCiênCia

Julieta, Direção: Pedro Almodóvar,Espanha,El Deseo.

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CinemaCinema

o lado moderno de Madri filmando na frente de um edifício arquitetonicamente atual e criativo. Beatriz vem acompanhada de dois rapazes e um trans masculino, uma mulher no processo de transformação em homem, que também é uma autocitação. O trans é vivido por Bimba Bosé (1975-2017), sobrinha de Miguel Bosé, o transformista Letal de Ta-cones lejanos (1991). Bimba aparece com os cabelos laranja e um batom excessivamente rosa na boca, que é circundada por impúberes fios de barba. E mais, temos que lembrar que durante La Movida a Calle Monte Esquinza era um dos polos de reunião do grupo, nes-ta rua ficava a Casa-estúdio de Pablo Pérez-Minguez (1946-2012), fotógrafo quase que oficial do período (junto com Alberto García Alix), e onde foram rodadas algumas cenas de Laberinto de pasiones (1982), segundo filme de Almodóvar. O primeiro Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón (1980) teve cenas rodadas na Casa-convento dos artistas plás-ticos conhecidos como Costus, Enrique Naya

(1953-1989) e Juan Carrero (1955-1989). A dois quarteirões dali fica a Calle Almagro, rua on-de vivia Lucía (Julieta Serrano), antagonista de Pepa (Carmen Maura) em Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988). Autocitações em abismo, que criam uma trama complexa e que possibilitam múltiplas leituras. É incrível como Madri é um personagem forte e constan-te neste novo filme de Almodóvar, suas ruas, praças, parques e bairros são o cenário que prevalece no filme todo; a última vez que esta presença foi notada nos filmes de Almodóvar foi em Carne trémula (1997).

Julieta descobre que sua filha, que ela não vê há 12 anos, vive perto do lago Como, na Itália, tem três filhos, dois meninos e uma menina. Esta informação é bastante chocante para causar uma mudança brusca em sua vida, ela termina a relação com Lorenzo e resolve voltar ao antigo bairro onde vivia com sua fi-lha, antes do rompimento. Ela pega o cesto de lixo (o de Almodóvar) e abre o envelope azul, que tem dentro uma foto dela com sua filha

Antía toda rasgada, atrás dela o autorretrato (Reflection 1985) do pintor Lucien Freud, que tem como principal característica mostrar os defeitos (físicos e emocionais) de seus mode-los, que às vezes ninguém mais percebe, e da incomensurável passagem do tempo. Uma grande mostra de Freud aconteceu em Vie-na, de outubro de 2013 a janeiro de 2014, no Kunst Historisches Museum, na qual esta tela estava presente. Neste autorretrato Freud está com olhar triste, amargurado e a expressão de seu rosto mostra um descontentamento com a vida, exatamente como está Julieta no presen-te. Neste momento Julieta começa a escrever um diário onde promete contar tudo o que não tinha dito para a sua filha Antía. Ela promete contar sua história, que inclui o nascimento da filha, voltamos para 1985, quando Julieta era uma jovem professora de literatura clás-sica e dentro de um trem que ia para Madri conheceu Xoan (Daniel Grao, de longe o me-lhor ator do filme), um pescador da Galícia, de origem cubana, que ia comprar um motor para um de seus barcos. Na passagem para o passado a cena começa com um galho de ár-vore batendo violentamente na janela do trem e assustando Julieta, adiantando que a história será misteriosa e com algumas mortes pelo meio dela. Na mesma cabine de Julieta está um senhor de uns 60 anos que está com um aspecto triste e solitário e tenta puxar conver-sa com ela, mas ela não está para papo e sai da cabine sem responder. Julieta foge para o vagão restaurante e conhece Xoan, com quem começa um jogo de sedução, os dois veem jun-tos um cervo que corre perto do trem, Julieta diz que ele está procurando uma companhei-ra, Xoan diz que sua mulher está em coma há cinco anos (lembrar de Alícia, de Hable con Ella) e a convida para passear na plataforma quando o trem para, por alguns minutos, em uma estação. Ela não está vestida para sair na neve e fica onde está, lendo La tragédia griega de Albin Lesky, quando o trem começa a se movimentar, dá uma freada brusca, derru-bando pessoas e objetos e Julieta volta para a sua cabine, que está vazia e teme pelo pior

quando vê pessoas correndo pela neve fora do trem. Pegando a mala do homem descobre que ela está completamente vazia. Xoan está com um grupo que traz algo em uma maca, e para desespero de Julieta é o homem triste da sua cabine. Consolada por Xoan, que fica com ela na cabine eles iniciam um caso amo-roso, citando a posição dos amantes de Carne trémula, abraçando-se estando cada um com a cabeça alinhada com os pés do outro. Cada um segue seu caminho, Julieta dá aula em Madri e nestas aulas fala de Ulisses, o grande herói e marinheiro, que segue o caminho da aventura e do desconhecido quando abandona sua Ítaca e depois, quando Calipso lhe promete a vida eterna, prefere o mar e enfrentar seu destino. A Ítaca de Xoan é Redes e a eternidade lhe é

dada por Ava, que o eterniza na escultura do homem sentado.

Passados seis meses acaba o período de contrato de Julieta e ela recebe uma carta sur-presa de Xoan, que diz que tudo segue igual, que sua mulher Ana continua sendo um ve-getal. Julieta decide ir até Redes, o povoado da Galícia onde Xoan mora e chega no dia do enterro de Ana. É recebida por Marian (Rossy de Palma), que é uma empregada que já se fez dona da casa, decide tudo, interfere em tudo e mais, sabe de todas as histórias. Xoan che-ga e a encontra adormecida, fazem amor e ele pede que ela fique. No outro dia de manhã Xoan assiste ao sono de Julieta sentado como a estátua ‘O homem sentado’ (lembrar que Ava, já direi quem ela é, dá a estátua para Julieta somente quando está no hospital morrendo). Xoan lhe diz que vai lhe apresentar Ava, que é uma artista como ela e ela diz – eu não sou artista, dou aulas de literatura clássica. Julieta se torna amiga de Ava, a escultora, e gosta de lhe contar lendas e mitos enquanto ela trabalha

FAz PARTE DO UNIVERSO ALMODóVAR RETOMAR PERSONAGENS E HISTóRIAS DA SUA PRóPRIA OBRA, DE OUTRO PONTO DE VISTA OU COM OUTRO TRATAMENTO ©

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Cena do filme Julieta. Os atores Daniel Grao (Xoan) e Adriana Ugarte (Julieta).

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e fuma (como a personagem Huma de Todo sobre mi madre). Em um dia especial no Atelier de Ava, Julieta fala que “os Deuses criavam os seres e lhes davam dons, como o pássaro que pode voar, mas que quando criaram o Homem notaram que todos os dons tinham acabado, por isto o homem nasce nu e sem dons” e em seguida anuncia: estou grávida.

Julieta tem a filha e lhe chama Antía, um nome típico da Galícia, vai apresentá-la à fa-mília na Andaluzia e aqui temos duas elipses (salto para o futuro) juntas, ela apresenta a neta e depois volta com a menina já com nove anos, este recurso duplo quebra um pouco o ritmo do filme. Nesta visita Julieta vê a mãe bem debilitada, com alguma doença dege-nerativa cerebral, que lhe dá momentos de lucidez dentro de uma letargia. Julieta vê seu pai interessado na empregada, que se chama Sanáa (atentar para o nome), que conheceu

num festival de música sacra de Fez. Esta parte da história familiar de Julieta não acrescenta nada ao filme e desvia a atenção para perso-nagens que não têm nenhuma importância na trama, deveria ter sido eliminada na edição, é um apêndice dramático inútil.

Quando Julieta volta desta viagem a nenhu-ma parte, ela vê que Xoan fez outra tatuagem com o desenho de um A&J, e ela exclama alegre Antía e Julieta, mas poderia ser Ava e Julieta, as duas mulheres que disputaram o amor de Xoan\Ulisses. O desenho da tatua-gem é de Dis Berlin (pseudônimo de Mariano Carrera, pintor e ilustrador espanhol nascido em Soria em 1959), artista que participou de La Movida e que é colaborador habitual de Almodóvar, e do qual aparecem dois quadros no filme. Logo depois desta volta o clima entre Marian e Julieta fica insustentável, Marian vai aposentar-se e Julieta quer voltar a trabalhar, e Marian alerta “a profissão de uma mulher

é sua família”, e acrescenta “é quando as coi-sas acontecem”. Como uma harpia Marian está pronta a exercer papel de ave de rapina e contar a traição de Xoan e Ava no passado. Julieta tem uma grande discussão com Xo-an e sai para andar, Xoan abandonado com a palavra na boca transforma-se no segundo fantasma de Julieta, pois sai para o mar e uma tormenta épica o engole e devolve em pedaços para Julieta.

E como em qualquer tragédia grega a vida continua, Antía está em um acampamento enquanto tudo acontece, lá conhece Beatriz, com quem fica tendo uma amizade e depois uma ligação muito forte. Antía não volta para Redes e vai para Madri, para onde também vai Julieta. Quando elas se encontram na casa de Beatriz elas ficam diante de uma gravura de Richard Serra chamada Reykjavik, de 1991, que faz parte da coleção do Reykjavík Art Museum, que realizou uma grande mostra do

artista de maio a setembro de 2015. A obra parece original, pois pode-se notar a assina-tura e a numeração da versão no canto direito (a gravura tem 46 versões numeradas). Ela se compõe de dois blocos negros retangulares que não chegam a se tocar. Eles lembram estacas fixadas na beira-mar, para amarrar barcos nos portos. É assim que Julieta e Antía estão; elas estão vivendo momentos diferentes e não chegam a se conectar. Pela vontade de Antía ficam morando em Madri e ela vai até Redes fechar a casa e volta mais distanciada da mãe, por mais que esta não perceba. Neste novo apartamento em Madri a nova Julieta madura (Emma Suárez) é revelada no banho, imitan-do o gesto de Verônica ao estender o sudário onde aparece o rosto de Cristo, a cena imita a pintura do Meister der Heiligen Veronika, mestre alemão ativo entre 1400 e 1420.

Quatro anos se passam e Bea vai estudar nos Estados Unidos e Antía decide fazer um

retiro espiritual nos Pirineus. Antía reúne seus pertences, entre eles uma foto de seu pai e uma da cantora Chavela Vargas (1919-2012) espe-cializada em rancheras, e uma paixão musical de Almodóvar. Quando Antía sai pela porta Julieta vê o homem do trem e Xoan, seus fan-tasmas, sem saber que Antía se tornará mais um deles. Três meses depois Antía, deveria voltar do retiro, mas manda uma responsável informar à mãe que ela decidiu dar outra di-reção para a sua vida e a mãe não faz parte desta nova trajetória. Parece uma crítica de Almodóvar aos novos movimentos sectários que surgiram no mundo e na Europa, que envol-vem religião ou ideologia e isolam o indivíduo. Todos os dias do aniversário de Antía Julieta compra um bolo e espera pelo cartão de Fe-liz Aniversário, que chegará invariavelmente sem remetente para: Julieta Arcos, Calle Fer-nando VI, n. 19, 3.º Piso, Madrid, CP 28004. Depois de três aniversários assim, Julieta se

EM JULIETA, O FINAL, ALÉM DE ABERTO, PARECE UM POUCO BRUSCO, MAS ERA A HORA DE TERMINAR

A atriz Emma Suárez, como Julieta, em sua fase mais madura.

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cansa e resolve mudar de apartamento e vai para uma área de Madri que não tem relação nenhuma com Antía. Antes da mudança no antigo quarto de Antía nota-se em cima da ca-ma um mapa-múndi deslocado, como o mapa--múndi na sala de Pepa em Mujeres al borde de un ataque de Nervios, o mapa da Espanha no quarto de Leo em La flor de mi secreto e o mapa-múndi na sala de Marco em Hable con Ella. Mas lembrando, em 2016, treze anos de-pois do desaparecimento voluntário de Antía, Julieta encontra por acaso Bea e fica sabendo que ela tem três filhos, dois meninos e uma menina, e vive perto do Lago Como na Itália e tudo muda.

Temos então uma apresentação em flash-back da relação de Julieta com Lorenzo Gentile, um crítico de arte amigo de Ava, que sai do elevador prestando muita atenção em Julieta na última visita desta a Ava, que está interna-da com esclerose múltipla. Lorenzo acaba se

apresentando para Julieta no enterro de Ava, e ela diz que Ava o deixou de presente, junto com a escultura do homem sentado. Julieta e Lorenzo começam uma relação adulta que não contempla a existência de Antía, vemos os dois se conhecendo e passeando por Ma-dri, vão ao Cines Princesas, que produziram o segundo longa de Almodóvar, Laberinto de Pasiones (1982). No presente (2016) Julieta en-contra Beatriz uma segunda vez e finalmente se inteira da relação de amor que sua filha e Beatriz tiveram e da fofoca/confissão feita por Marian em Redes, sobre a circunstância da morte de seu pai, Xoan. Todas estas revelações deixam Julieta atordoada, ela sai caminhando pelas ruas de Madri e acaba atropelada sob o olhar de Lorenzo, que a tem seguido pela cidade, depois de voltar de Portugal, como ele mesmo confessa, como um personagem de Patricia Highsmidt (1921-1995). Neste re-

atar Lorenzo vai até o apartamento de Julieta e recolhe a correspondência e os diários que ela começou a escrever para Antía. Ela lhe pergunta se ele leu o diário, ele diz que não e ela percebe a carta e ao virar fica emocionada com o remetente: Antía Feijóo, Mix-Parking Cioss, Cioss, 6637, Sonogno, Suiza. Julieta chora muito e ouvimos a voz da filha em off dizendo que ela tem três filhos e que o mais velho, Xoan, se afogou em um rio, e que a par-tir daí ela imaginou a dor que a mãe sofreu com a sua desaparição. No carro a caminho da Suíça Julieta diz para o fiel Lorenzo que não vai perguntar nada, que tudo deve acontecer naturalmente. O carro nos deixa na beira da estrada e avistamos os Pirineus e ouvimos a forte voz de Chavela Vargas cantando Si no te vas (Se você ficar):

Si no te vas, te voy a dar mi vidasi no te vas, vas a saber quien soyvas a tener lo que muy pocas gentesalgo muy tuyomucho, mucho amorHay cuanto diera yopor verte una vez masamor de mi cariñoPor Dios que si te vasme vas a hacer llorarcomo cuando era un niño.

Como em muitos filmes de Almodóvar a música acrescenta e descreve com mais precisão sentimentos e personagens, que não estavam tão delimitados a princípio. Chavela fala da tristeza e da solidão que Julieta sentiu com o desaparecimento da filha, da destruição de seu mundo através das lágrimas e do sofrimento.

Quando vi o filme pela primeira vez em São Paulo, em junho de 2016, em um cine-ma frequentado por cinéfilos, e por aman-tes de cinema em geral ouvi, “nossa isto não é mais Almodóvar, como ele mudou”. Nada mais equivocado, Almodóvar está cada vez mais orgânico, seu método está presente na estrutura do filme e sua amada e idolatrada Madri, inclusive com uma alusão da “Esqui-

na Almodóvar” está mais óbvia que nunca. A evolução de um autor com a idade é óbvia e esperada, o que podemos discutir é o resulta-do do filme como um todo. Acho Julieta um bom filme, vejo alguns problemas no roteiro, a família de Julieta não tem nenhuma função dramática, fica perdida entre uma sequência e outra do filme. As duas elipses para o futuro, com as duas visitas de Julieta e Antía aos pais dela, confundem e não estão bem pensadas. É um erro às vezes repetido por Almodóvar, em Kika logo no início, quando Ramón (Alex Ca-sanovas) desperta da catatonia da falsa morte, temos uma elipse para o futuro e em seguida um flash-back, e nós ficamos fazendo con-ta de onde estamos na história. Outro dado, a Julieta jovem (Adriana Ugarte) é contida, intensa, a madura (Emma Suárez) é over e histérica o tempo todo, até quando sorri, não parecem a mesma pessoa. A interação Julieta jovem e Xoan é fantástica, e inclusive quan-do se passa uma década Xoan, vivido por um só ator, convence como o pai que agora en-tra na maturidade, as duas Julietas não. Mas o resultado geral é bom, o roteiro mostra-se competente em unir elementos que vêm de várias fontes, literatura, teatro, artes visuais e música; apesar de os créditos dizerem que é uma adaptação da obra de Munro, o conjunto é bem diferente da simples adaptação para o cinema de seus contos. Ava é um personagem muito bom e Inma Cuesta o defende bem, mas aparece como um cometa; a segunda Antía (Blanca Parés) tem um rosto e uma voz muito expressivos, mas fica pouco em cena.

Também estão presentes em Julieta os “per-sonagens visitantes” dos filmes de Almodóvar: Agustin Almodóvar é o comissário do trem, que avisa o tempo da parada na estação – “diez minutos de parada” –, Esther García está con-versando com Julieta no cemitério, no enterro de Ava, e Fernando Iglesias está na porta do ônibus, na ida de Antía para o acampamento. Quem tem boa memória lembra da cena de Fernando Iglesias nadando submerso na pis-cina em Hable con Ella, enquanto ouvimos o violão de Caetano Veloso dedilhando os pri-

meiros acordes de Cucurrucucu paloma, e ele sai da piscina até a cintura e abre um grande sorriso sedutor, para a câmera que tem por trás Almodóvar.

Almodóvar revela-se neste vigésimo longa- -metragem maduro, com uma narrativa refina-da e principalmente com um método de cria-ção desenvolvido nos últimos 40 anos, a que ele está ontologicamente ligado. Em Julieta, o final, além de aberto, parece um pouco brus-co, mas era a hora de terminar, pois a relação de Julieta e Antía agora, depois de todos os traumas, é outra história, que não tem lugar nesta obra. Esperar somente obras-primas de um diretor, escritor ou pintor é injusto com os mesmos. Cada obra tem o seu lugar na carreira de seus criadores, e altos e baixos, sucessos e fracassos fazem parte da trajetória de todos. Julieta é um filme eficiente, com qualidades e defeitos, fiel ao estilo de Almodóvar, mas sem a maestria de Todo sobre mi madre ou a inventividade de Hable con Ella, mas que vale a pena ser visto e revisto.

JULIETA É UM FILME EFICIENTE, COM QUALIDADES E DEFEITOS, QUE VALE A PENA SER VISTO E REVISTO O diretor Pedro

Almodóvar, no intervalo de gravação. Ao fundo, a atriz Adriana Ugarte caracterizada como Julieta.

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JOãO EDUARDO HIDALGO

UnespCiênCia | fevereiro 2018 31fevereiro 2018 | UnespCiênCia

João eduardo hidalgo é doutor em Comunicação pela universidade de são paulo e pela universidad Complutense de madrid. professor da faculdade de arquitetura, artes e Comunicação, unesp, Câmpus de Bauru.

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LiteraturaLiteratura

E m 2017, o livro de contos Tropas e boia-das, de Hugo de Carvalho Ramos, com-

pletou seu centenário. O Departamento de Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás celebrou a data com o evento “100 anos de Tropas e boiadas”, realizado nos dias 4 e 5 de dezembro. Além de conferências, mesas-redondas e exibições de curtas-metragens, a programação contou com o lançamento da edição comemorativa da obra aniversariante, a 12.ª edição, reali-zada pela Editora da UFG. Trata-se de um trabalho bem cuidado e fundamentado no zelo de duas outras edições: a 5.ª, de 1965, da Livraria José Olympio Editora, e a 8.ª, de 1997, da Editora da UFG, organizada pelo professor Gilberto Mendonça Teles.

A 5.ª edição traz dados biográficos, emen-tas, correções relativas às edições anteriores e uma alentada introdução de Manoel Ca-valcanti Proença, mantida tanto na 8.ª, como

pelo leitor brasileiro. Seu autor morreu em 1921, aos 26 anos. Tímido em vida, cultivou a literatura com poucos amigos e dois irmãos, notadamente, com uma irmã, por meio de cartas, nas quais fica explícita sua preferên-cia pela fatura dos contos de Poe. Tal como Poe e Maupassant, Hugo de Carvalho Ramos ensandeceu e suicidou-se.

Edgar Allan Poe morreu com 40 anos, Anton Pavlovich Tchékhov, com 44 e Guy de Maupassant, com 43. Esses escritores, que nortearam a narrativa do conto literário, morreram na entrada da maturidade. Poe, no final da sua vida, atormentou-se, enlouqueceu, assim como Maupassant. Tchékhov, médico, foi vítima de uma doença incurável da época. A vida literária de Maupassant, talvez, tenha sido a mais rica entre as dos três, uma vez que conviveu com Zola e Flaubert. Tchékhov, o mais reservado entre eles, aproximou-se discretamente de Gorki e Tolstoi. Graças a

Charles Baudelaire, a obra de Poe, enquanto vivia, foi mais lida na Europa do que nos Es-tados Unidos. Maupassant e Tchékhov foram bem acolhidos pelos leitores de seus países.

A presença do legado de Poe na obra de Carvalho Ramos faz-se visível na adoção da narrativa circunscrita, no caso, a um espaço recortado do ermo do sertão goiano e orien-tada para o desenlace de uma gesta de tro-peiros. De modo menos recorrente, o código de conduta do tropeiro de tal gesta é expos-to pelo narrador do autor goiano, que, após a construção da cena literária, aproxima-se de um confidente, personagem da história, a fim de confabular, observar seus testemu-nhos, feitos e façanhas em tropeadas. Essa estratégia literária remete ao conto policial de Poe, ao modo como apresenta o detetive diante de diálogos reservados com o narra-

dor, amigo e confidente.Os contos regionalistas de Carvalho Ramos

estabelecem relações com a fábula, a lenda, a crônica, o caso goiano e, surpreendentemen-te, com a carta, conforme o conto Nostalgias, em que o autor-narrador-personagem evoca, de forma confessional, a memória sertane-ja dos ermos goianos, próximo também do narrador de Gente da gleba, única novela do livro, ocupada com as regras da vida rural na representação de algo perpetuado pelo mundo agrícola, estático: o coronelismo, que penaliza um grupo social sertanejo, distante do estado de ânimo de uma sociedade urba-na, que experimenta um momento histórico transitório.

Preservando a qualidade de edições ante-riores e incorporando novos textos de apre-sentação e estudo, a nova edição é um gesto comemorativo de sucesso, que, certamente, ampliará a divulgação da obra.

ARTIGO ESTUDA EDIçãO COMEMORATIVA LANçADA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIáS

100 anos de tropas e boiadas

luiz gonzaga marchezan é professor da faculdade de Ciências e letras da unesp de araraquara.

A NOVA EDIçãO É UM GESTO COMEMORATIVO DE SUCESSO, QUE, CERTAMENTE, AMPLIARá A DIVULGAçãO DA OBRA

na 12.ª edições. A 12.ª, ora lançada, traz um prefácio do professor Antón Corbacho Quin-tela, que historia as operações gráficas pelas quais a obra passou desde seu lançamento. Além disso, soma outros três estudos: o do escritor Miguel Jorge, voltado para impressões acerca da linguagem usada por Hugo de Car-valho Ramos para retratar em contos a vida sertaneja; o do professor Revalino Antonio de Freitas, que examina o contexto da obra, a organização e funcionamento da sociedade que definiu os comportamentos dos protago-nistas; e o do professor Gilberto Mendonça Teles, que investiga a estrutura diversificada das narrativas, do conto à novela. O já refe-rido texto de Manoel Cavalcanti Proença, que exalta o estilo eloquente do regionalismo na contística de Hugo de Carvalho Ramos, permanece, encerrando o volume.

Os contos de Tropas e boiadas, ao comple-tarem 100 anos, ainda são pouco conhecidos

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Tropas e boiadas – Edição comemorativa do centenário da primeira edição da obra.Hugo de Carvalho Ramos,Editora UFG.

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Opinião

várias secretarias. Acabamos de criar o Cen-tro de Inovação Tecnológica. Vários de nossos professores nem colaram grau e já foram apro-vados nos concursos de Bauru e região e estão também nas escolas privadas. Alguns não per-manecem, pois a Educação Básica em nosso país não é prioridade, não existe valorização da carreira docente.

Se queremos mudar esta nação, precisare-mos colocar na ordem do dia esta prioridade, a valorização da educação e do educador.

Para não esquecer, criamos a primeira e única sala de Recursos para alunos com su-perdotação da rede estadual de São Paulo aqui na periferia de Bauru. Temos um projeto de avaliação da qualidade da educação ofertada para pessoas com deficiência, superdotação e transtornos globais do desenvolvimento inédito no País. E uma infinidade de outros projetos nas diferentes áreas. Não quero me delongar, pois temos números exatos de todos os projetos com o alcance de cada um deles, que devemos colocar à disposição da comunidade.

Faço um pedido a você, leitor: abra o ano de 2018 em suas redes sociais, mesmo que você não seja um usuário direto certamente tem na família e em seu entorno pessoas que as utilizam, e valorize a Unesp, conheça os muitos trabalhos desenvolvidos, envolva-se.

A Unesp é de todos nós. Vamos lutar jun-tos. Não vamos deixar que o corporativismo de poucos destrua o trabalho de muitos ser-vidores públicos que se colocam a serviço do bem comum.

O pedido de valorização da instituição é primeiramente para que a Unesp seja enten-dida como parte de nossa comunidade e aí sim, juntos, encontraremos formas pacíficas pela manutenção.

Ninguém defende aquilo de que não faz parte.

T erminou 2017. Se esta fosse a última energia que a minha vida me reservas-

se, usaria com a maior simplicidade do mundo para dizer estas poucas palavras em Defesa da nossa Unesp como Patrimônio Público de nossa sociedade. Por que pedir isso? Porque precisa-mos esclarecer alguns pontos fundamentais.

É verdade. Erramos, sim, na forma de ad-ministrar nossas universidades, que nasceram para uma elite, mas podemos aprender juntos outras formas de governar. Também é verdade que o corporativismo existiu e existe, mas não podemos permitir que cada gota de suor de muitos servidores públicos que batalham no exercício diário de sua profissão pelo combate às imensas injustiças sociais seja motivo para considerar que está tudo perdido.

Tão fundamental quanto o feijão e o arroz que compramos no supermercado é o nosso fazer para um mundo mais justo. É mentira que a universidade se mantém distante da so-ciedade. Iniciei minha carreira na Educação Básica na região em 1991, hoje estou na vice--direção da Faculdade de Ciências da Unesp.

Assim como eu, vários dirigentes, professores, coordenadores dos atuais sistemas de ensino do Estado de São Paulo e dos municípios, públicos e privados, estão ou estiveram cursando parte ou toda sua formação profissional na Unesp. É importante lembrar que, em 2018, metade de nossos alunos que ingressam na Unesp vieram exclusivamente de escolas públicas.

Vários de nossos projetos de extensão, pes-quisa e ensino têm, ao longo dos 30 anos de encampação que comemoraremos em 2018, contribuído coletivamente para a melhoria da qualidade de vida, de problemas que assolam a população em diferentes áreas, inclusive alguns premiados, sistemáticos e consolidados com Apae, Sorri, Hospital Estadual, Maternidade Santa Isabel, com as prefeituras por meio das

em defesa da Unesp

vera lucia messias fialho Capellini é vice--diretora da faculdade de Ciências da unesp de Bauru.

VERA LUCIA MESSIAS FIALHO CAPELLINI

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