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1 MATÉRIA-PRIMA Pra as de Fortaleza Lugares públicos, de identidade, de tradição de saberes e fazeres populares. REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE 7 DE SETEMBRO. WWW.FA7.EDU.BR | 2007 Praça do Ferreira

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MATÉRIA-PRIMA

Praças de FortalezaLugares públicos, de identidade, de tradição de saberes e fazeres populares.

REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE 7 DE SETEMBRO.

W W W . F A 7 . E D U . B R | 2 0 0 7

Praça do Ferreira

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Esta edição de lançamento da revista-laboratório MA-

TÉRIA PRIMA é a experimentação de uma proposta ino-

vadora no curso de Jornalismo da Faculdade 7 de Setem-

bro (FA7). Foi produzida pela turma do semestre 2006.2,

na disciplina de Jornalismo Literário. O projeto editorial

traz como foco e definição temática, as praças da cidade

de Fortaleza, como local de encontro, palco e cenário de

vida, de contato com o outro.

A partir da definição da praça como pauta, foram discu-

tidos os rumos que cada aluno e aluna teria de percorrer,

definindo quem procurar, quem entrevistar, como abor-

dar as principais fontes e personagens. Depois das con-

versas e dos novos caminhos, ajustes e desdobramentos,

era a hora de escrever. Como contar as histórias de tantos

tipos marcantes que praticamente ‘vivem e respiram’ nas

praças de Fortaleza, encaradas como espaço público da

memória histórica? Praças que abrigraram (e ainda abri-

gam) tanto a fachada quanto o pano de fundo para os

debates públicos, quer políticos, cultruais, esportivos ou

sociais.

O que é uma praça? É aquele ponto de referência em

uma cidade, como a Praça do Ferreira, estampada na capa

da revista. Um lugar público por definição, o coração de

Fortaleza. É na praça que a cidade se espelha como local

de identidade, de tradição, de saberes e fazeres, de conti-

nuidade e estabilidade.

Para esta edição, os alunos e alunas indicaram como

pauta as seguintes praças: Coração de Jesus, Castro Car-

reira, Portugal, Lagoinha, General Tibúrcio, Gustavo Bar-

roso, Voluntários, José de Alencar, Pio IX, Lago Jacarey e o

Bosque Eudoro Correia. Aleatoriamente, a Praça Gustavo

Barroso foi escolhida por dois alunos, um do turno da

manhã e outra do turno da noite. Interessante é observar

a diversidade dos olhares e enfoques dados por ambos,

ao mesmo espaço público. A praça vista como palco de

experiências humanas por excelência.

Vale reproduzir aqui um trecho do artigo do poeta e

escritor Daniel Duende, sobre uma praça em Brasília:

“Não é nos bancos, ou nas mesas, ou na escultura, ou

no chão de pedras pequenas e quadradas, que reside o

glamour da Pracinha da Palato. É nas pessoas que passam

e passaram por lá, e nas histórias que lá se desenrolaram.

Quantos amores começaram e acabaram por lá, quantos

porres felizes ou tristes foram celebrados, quantas brin-

cadeiras sagazes ou estúpidas... quanta pose foi feita ou

desfeita, e quanta vida se viveu por ali...”

A praça, portanto, é um lugar para ver e ser visto, para

passear, prosear. É o espaço comum, refletindo o próprio

espírito da cidade onde se insere.

Era isto, então. Boa leitura! De perferência em um

banco de praça....

EDITORIALFACULDADE 7 DE SETEMBRO - FA7 Diretor Geral:Ednilton Soàrez

Diretor Acadêmico:Ednilo Soàrez

Vice-Diretor:Adelmir Jucá

Coordenação de Comunicação Social:Ismael Furtado

Coordenação Editorial:Kátia Patrocínio

Projeto Gráfico: Raphael Lira

Foto da Capa:Jari Vieira

Jornalista Responsável: Miguel Macedo (MTB CE452 JP)

“As praças são as mãos de uma cidade. Lugar de encontro, ou promessa de encontrar.”Vicenç Llorca, poeta catalão.

“A praça é do povo, como o céu é do condor.”Castro Alves, poeta brasileiro.

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Praças deFortaleza

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Ao redor do Bosque há de tudo. São casas, prédios de

apartamentos, dois pequenos centros comerciais, farmá-

cia, floricultura, lojas de móveis, salão de beleza, loja de

equipamentos médicos, posto de combustível, lava-jato,

lojas de aparelhos de ar condicionado, posto de atendi-

mento da COELCE e outro da companhia aérea BRA, em

processo de falência.

Além disso, fica a uma quadra de importante centro

comercial que engloba, além do Center Um – o primeiro

shopping center de Fortaleza – inúmeros outros estabe-

lecimentos comerciais. São sapatarias, restaurantes, su-

permercados, bancos, lojas de brinquedos, de roupas, de

miudezas etc.

Não bastasse isso, o Shopping Del Paseo fica a apenas

duas quadras do local, enquanto que o Aldeota, outro

grande shopping center da cidade, fica a três quadras. Por

isso, não seria exagero afirmar que o Eudoro Correia está

encravado em uma das principais – e mais valorizadas –

regiões comerciais da cidade.

No entanto, por mais que tenha tantas características

de uma praça, o Eudoro Correia é, na verdade, um bos-

que, e, por isso, vamos assim considerá-lo. Ele conta com

uma pista de cooper de 600 metros de extensão, três ban-

cas de revistas, campo de futebol, quadra poliesportiva

e equipamentos para ginástica. Abriga também, em seu

subsolo, um posto da Prefeitura Municipal de Fortaleza,

no qual os garis da região recolhem, ao final de cada dia

de trabalho, o carrinho de mão e demais equipamentos

utilizados.

Tem vendedor de tapiocas, banca de jogo de bicho,

além de espaço destinado à prática de técnicas de rela-

xamento orientais, funcionando sempre com duas tur-

mas no início da manhã.

Muitos vão ao bosque diariamente para fazer cooper,

outros simplesmente para andar, todos preocupados em

manter a saúde perfeita. O movimento tem início quando

surgem os primeiros raios de sol, no mesmo instante em

que os garis começam a chegar para retirar seus equipa-

mentos de trabalho. Até às 8 horas é intensa a presença

dos andarilhos e atletas, movimento que só volta a se

intensificar no final da tarde, quando a temperatura fica

mais amena e agradável.

Mas nem todos estão ali somente por lazer. Inúmeras

pessoas, como o simpático Erandir Barroso Pires, vão

para trabalhar, e muito. Ele tem 12 anos de experiência

na venda de plantas e flores, profissão que começou exa-

tamente no bosque. O florista, que passou alguns anos

ausente do local, retornou há aproximadamente três

anos e hoje ocupa o box de número 20.

Trabalha de segunda a sábado e também vende adubos,

jarros e fertilizantes. Grande parte das plantas, diz ele,

vem de Holambra, em São Paulo, como lírio da paz, pi-

nheiro, tuia holandesa, azaléia, hortelã, bico-de-papagaio

e bromélia. Isto porque as plantas nordestinas não sobre-

vivem à sombra.

Erandir complementa sua renda com serviços de jardi-

nagem nas casas de clientes e conta que os produtos mais

vendidos são o mini-lacre (nas cores vermelha, amarela,

rosa, branca e salmão), a palmeira, o pinheiro (principal-

mente em época de Natal), a tuia holandesa e o bico-de-

papagaio.

O produto mais caro que vende é a palmeira cica re-

voluta. Custa entre cem e quinhentos Reais. A média de

faturamento diário é de aproximadamente duzentos reais.

Pedro Rodrigues dos Reis Filho é outro que trabalha no

Eudoro Correia. Ele é dono de uma banca de revistas que

Praça do Hospital Militar, Praça das Flores e Feira das

Flores. Por qualquer um destes nomes é conhecido o

Bosque Eudoro Correia, um dos mais bem localizados e

agradáveis de Fortaleza

Qual é a diferença entre bosque e praça? Quando

pensamos em um bosque, imaginamos um lugar re-

pleto de árvores, com muita sombra e sossego, e sem

qualquer contato com a cidade grande. É, enfim, o local

ideal para se fazer um piquenique. Já a praça nos dá a

noção de uma grande área destinada ao lazer, bastante

florida, só que encravada em centro urbano.

E o que dizem os dicionaristas a respeito dessas defi-

nições? Bosque seria, na definição de Aurélio Buarque

de Holanda, a “quantidade mais ou menos considerável

de árvores dispostas proximamente entre si”, e praça “o

lugar público cercado de edifícios; largo” ou “mercado;

feira”. A lingüista Maria Teresa Camargo Biderman, por

sua vez, imaginaria o bosque como a “área onde árvores

e outras plantas crescem espontaneamente; pequena

mata”, e praça como o “lugar público onde não há ca-

sas, mas jardins, parques, para passeio e diversão”.

O Eudoro Correia é um pouco de tudo isso. Não por

acaso é oficialmente classificado como bosque, já que é

uma das áreas mais verdes de Fortaleza. Atua, por assim

dizer, como um verdadeiro pulmão em região de in-

tenso congestionamento de veículos, que ocorre prin-

cipalmente em horário comercial dos dias úteis. É um

dos lugares mais agradáveis da capital cearense, com

vários ipês, bambus, paus-brasil, coqueiros, cajueiros e

mangueiras, dentre outras árvores.

Ocupa uma área de aproximadamente 25.000 metros

quadrados, no coração da Aldeota, um dos bairros mais

nobres da cidade. Dá frente para duas famosas aveni-

das, a Desembargador Moreira e a Padre Antônio To-

máz, bem como para outras duas ruas, também bastante

conhecidas, Barbosa de Freitas e Desembargador Leite

Albuquerque.

Mas tem muito de praça também. É um local rodeado

de construções e abriga uma das mais tradicionais feiras

de flores e pequenas plantas da cidade. São 38 pontos

de vendas em operação (de um total de 44), divididos

em boxes, que proporcionam um ar mais puro do que o

normalmente encontrado nas grandes cidades.

Por isso, se perguntarmos às pessoas onde fica o Bos-

que Eudoro Correia, a grande maioria não saberá dizer.

Basta, então, substituirmos a pergunta: “onde é a Praça

do Hospital Militar?” A resposta é imediata e quase unâ-

nime: “fica em frente ao Hospital Militar, na Avenida De-

sembargador Moreira.”

Pois é, o Bosque Eudoro Correia é mais conhecido

como a Praça do Hospital Militar. Isso ocorre pela pre-

sença do ilustre e antigo vizinho, o Hospital Geral do

Exército, popularmente conhecido como o Hospital

Militar. Mas também é chamado de Praça das Flores e

de Feira das Flores, exatamente em razão da famosa fei-

rinha ali existente.

O BOSQUE QUE É PRAÇA

Por Sérgio Paiva de Alencar

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Ao andar no Centro de Fortaleza, é difícil encontrar alguém que informe onde fica a Praça Castro Carreira. Isto se dá porque na preferência popular, ela é conhecida como Praça da Estação. Com 11.517,00 m², é limitada pe-las ruas General Sampaio, 24 de Maio, Dr. José Moreira e Castro e Silva. A maioria das pessoas que sobe e desce dos ônibus diariamente no terminal, que fica no meio da praça, não imagina o valor histórico contido naquele pré-dio, tão próximo. Do ponto de vista da história, a Estação Ferroviária Engenheiro João Felipe foi construída entre os anos 1879 e 1880, em estilo neoclássico. O prédio é tombado pelo Patrimônio Histórico do Ceará.

Em 1871 tem início a história deste lugar, com a cons-trução da estação central, do chalé para os escritórios e das oficinas da Companhia Cearense da Vila Férrea de Baturité. O primeiro trecho entre Fortaleza e Arronches, hoje Parangaba, foi concluído em 1873. A Estrada de Ferro de Sobral foi iniciada em 1878 e, em 1910, tanto a Estrada de Ferro de Baturité, quanto a Estrada de Ferro de Sobral são arrendadas à South American Rallway. Anos depois, em 1915, com o contrato rompido, passa a ser chamada Rede de Viação Cearense e volta a ser dirigida pelo governo da União. Em 30 de novembro de 1873 nasce oficialmente a primeira Estação de Fortaleza, a Es-trada de Ferro de Baturité.

É curioso, mas poucos sabem que a segunda e defini-tiva estação foi construída no local do antigo cemitério de São Casemiro, com mão-de-obra dos retirantes da seca de 1877. Foi inaugurada em 9 de julho de 1880, no Rei-nado de Dom Pedro II. Ainda hoje, quem entra no hall do prédio da estação, logo após a escadaria, do lado direito, e olha para cima, verá em letras antigas os dizeres: “Rei-nado de Dom Pedro II¨.

O sapateiro Daniel Pinheiro Bezerra, que aparenta ter 75 anos, lembra, saudoso, da praça que costumava freqüen-tar desde que tinha 6 anos, quando vendia maxixe na feira livre. Sim, a Praça da Estação já foi uma enorme feira li-vre, onde se comercializava de tudo, de frutas e verduras a utensílios domésticos, e até animais. “Como a feira dos pássaros, sabe?”, relembra Lôro.

É assim que Daniel é chamado, carinhosamente, Lôro. Seus olhos azuis contrastam com a pele queimada pelo sol, com rugas profundas que marcam seus anos de luta, sofri-mento, de pura sobrevivência. Há 25 anos Lôro trabalha como sapateiro, no mesmo lugar, com a mesma cadeira de ferro antiga. As cadeiras, aliás, são registradas na Regional da Secretaria de Serviço Urbano, onde o proprietário re-cebe uma carteirinha. “Tá vendo aquela outra cadeira ali? Eu comprei para o meu filho. O dono dela morreu e a famí-lia vendeu para mim. Os mais antigos, como eu, já morre-ram. O último era dono daquela outra cadeira abandonada. A família não está nem aí, e ninguém mais trabalhou nela.”

Lôro compara, e diz que nunca mais a clientela foi a mesma. Lembra que a Praça da Estação já foi bem freqüen-tada; as pessoas eram muito bem vestidas; todos os ho-mens usavam calça comprida e sapato social. “Hoje a praça é cheia de malandro. Antigamente não tinha essas coisas de andar de bermuda e chinelo”, reclama. Próximo de onde Lôro estava, passa Luís Ribeiro, aposentado da Rede Ferroviária. Ele faz questão de parar para cumprimentar o Lôro e a mim. Pouco tempo antes estive com Ribeiro, na Associação dos Ferroviários Aposentados do Ceará locali-zada na esquina da praça. Ali eles se reúnem todos os dias para jogar conversa fora, tomar um cafezinho e se divertir jogando. Também é possível mergulhar no passado e sentir como era a atmosfera daquela praça anos atrás.

PRAÇA CASTRO CARREIRA, A PRAÇA DA ESTAÇÃO

fica em frente à sua casa, localizada no cruzamento das

ruas Barbosa de Freitas e Desembargador Leite Albuquer-

que.

Lembra que, quando ali chegou, só havia cinco pés de

oiti, e que as demais árvores foram plantadas nas gestões

dos prefeitos César Cals Neto e Ciro Gomes. Prestativo,

mas com um pé atrás nas colocações, chega a reclamar da

falta de segurança, mas faz questão de dizer que nunca foi

assaltado.

Outra assídua do bosque é a florista Maria Evenir Vieira.

Há 18 anos, seu ponto de venda era na Praça Portugal, em

uma feirinha que ocorria sempre às sextas-feiras. Foi convi-

dada, naquela oportunidade, a ocupar um box no Eudoro

Correia, o que aceitou de imediato. Está lá desde a inaugu-

ração da feirinha.

Naquela época, recorda, havia também áreas destinadas

à venda de artesanato, comidas típicas e roupas, ativida-

des que ajudaram a incrementar o movimento, já que o

local era bastante deserto e as pessoas tinham receio de

freqüentá-lo. As flores e plantas que comercializa vêm da

Barra do Ceará e os jarros são produzidos em Maranguape.

As plantas que mais vende são o mini-lacre e a boa-noite.

Em época de Natal, por exemplo, a maior procura é pelos

pinheiros.

Saudosa, Evenir relembra o tempo em que não pagava

aluguel para uso do box, nem tinha despesas com água

(necessária para regar as plantas) ou vigilância (feita pelos

guardas municipais). Atualmente, além da despesa com

água, de aproximadamente R$16,00, ela paga mensalmente

R$60,00 de aluguel, além de idêntico valor para custear a

vigilância particular. Para piorar, afirma que as vendas são

muito inferiores aos valores de antigamente (seu fatura-

mento diário normalmente não chega a cem reais).

Além disso, Evenir tem muitas queixas com relação à

manutenção do bosque, que considera muito precária.

Já participou de inúmeras reuniões com autoridades

municipais e que já firmou vários abaixo-assinados,

juntamente com as pessoas que ali trabalham e fre-

qüentam, pleiteando melhorias.

Ela quer que seja instalada uma guarita da polícia.

Reclama que assaltos acontecem com freqüência, ao

meio-dia e à noite, sobretudo na área mais central do

bosque. Pede ainda que sejam instalados banheiros e

colocados cestos de lixo (antigamente existentes), pois

reclama que há fezes por toda parte e que as pessoas

jogam lixo até nos jarros das plantas que ela vende.

Com ar de tristeza, conclui que as autoridades são

indiferentes aos justos pleitos formulados pela comu-

nidade que ali freqüenta e trabalha.Por fim, mostra-se

sem esperança quanto à solução dos problemas apon-

tados.

E é por tudo isso que o Bosque Eudoro Correia é

a Praça do Hospital Militar, ou a Praça das Flores, ou,

ainda, a Feira das Flores. Todos esses nomes são de-

monstrações do afeto que a população de Fortaleza

tem pelo local, sobretudo as pessoas que ali trabalham

e as que moram nas proximidades, que são seus maio-

res usuários.

Por último, uma visão e um desejo. Para que o bos-

que ficasse ainda mais agradável, interessante seria que

as autoridades locais, hoje tão omissas, tivessem pelo

belo e florido espaço o mesmo carinho que a ele desti-

nam seus apaixonados freqüentadores.

Por Patricia NielsenMatéria-prima

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Não importa se é manhã, tarde ou noite. Com a

presença dos boêmios, a Praça Coração de Jesus está

sempre movimentada. Limitada pela Avenida Duque de

Caxias, no Centro de Fortaleza, a praça tem como prin-

cipal referência a Igreja do Sagrado Coração de Jesus,

que fica entre as ruas Pedro I, Sólon Pinheiro e Jaime

Benévolo. As árvores frondosas, bancos e um comércio

movimentado proporcionam encontros agradáveis de

amigos e vizinhos.

Batizada como Praça da Boa Vista, a Praça Coração de

Jesus foi inaugurada em 1880, algum tempo depois que

a igreja foi construída. Em 1881, em homenagem a José

Júlio de Albuquerque Barros, o Barão de Sobral, passou

a chamar-se Praça Dr. José Julio. Em 1890, por resolu-

ção do Conselho da Intendência Municipal, recebe a

denominação de Praça da Liberdade.

Os principais motivos do movimento nas ma-

nhãs e tardes no entorno da igreja são as inúmeras para-

das de ônibus e o terminal que fica ao seu lado direito.

O vai-e-vem dos passageiros faz com que vendedores

ambulantes circulem diversas vezes ao redor da praça.

Os ônibus não passam pelos principais terminais da ci-

dade. Fazem a rota de um bairro específico e voltam para

o centro. Funcionários da Empresa de Transporte Urbano

(ETUFOR), instalados em uma pequena cabine branca,

localizada ao lado do terminal, monitoram a ida e a volta

do transporte coletivo mais usado pelos cearenses. As

principais linhas de ônibus são: Conjunto José Walter/BR

116; Castelão/Visconde do Rio Branco; Av. Antônio Sales

e o Bairro de Fátima e 13 de Maio/Rodoviária.

Ao embarcar ou desembarcar em qualquer parada de

ônibus do terminal, as pessoas são abordados por ven-

dedores de vale-transporte e passe card. Eles cobram

10 centavos mais barato e assim tiram o seu sustento.

“Olha o vale, olha vale”, é o apelo mais usado pelos

vendedores.

Além do terminal de ônibus, a praça conta também

com pontos de referência conhecidos como: o Tribunal

Regional Eleitoral, o Supermercado Lagoa, a Faculdade

Tecnológica (FATECI), a Padaria Romana e a Pousada

Ideal.

No interior da praça, personagens do seu cotidiano:

banqueiros de jogo do bicho, engraxates, comerciantes

e funcionários de lojas propondo cadastro de cartão de

crédito. Antes de voltar para casa, pessoas que aguar-

dam a condução passam nas barracas para fazer um lan-

che ou comprar água. Os bancos servem de dormitórios

para sem-tetos e são pouco usados pela população.

O engraxate mais antigo o e mais famoso da praça é

José Ferreira. O “seu Zé” como é conhecido, trabalha

há 15 anos na praça e também conserta sapatos. O

horário de trabalho é de 7 da manhã às 18 horas. Tor-

cedor do Ceará, muitos amigos se juntam perto do seu

local de trabalho e conversam sobre futebol. Como é

final de ano, o movimento aumenta e o serviço de en-

graxate requer mais esforço e a hora de ir para casa

(bairro Aerolândia) passa ligeiro. Muitas mulheres o

procuram para consertar os sapatos. “Vem todo tipo

de cliente engraxar sapato, do mais pobre ao mais

rico”, afirma “seu Zé”.

O CORAÇÃO DE JESUSnO CEnTRO DE FORTALEzA

Agente da Estação, Luís Ribeiro, 64 anos, trabalhou em todos os setores, de telegrafista a agente comercial, cargo de que se orgulha muito. Isso porque, segundo ele, ao deixar de beber, começou a estudar, conseguiu melhor formação e subiu de cargo, tornando-se agente comer-cial. Trabalhou 36 anos na Estação. Viu toda a evolução da praça, de feira livre a parque de diversões e por último e, até hoje, terminal de ônibus.

No meio da conversa chega Antonio Serafim, compa-nheiro de trabalho de Luís. Vestindo camisa e calça social, assim como todos os outros aposentados, Antonio, 71 anos, fumava um cigarro atrás do outro. Não falou muito, mas concordava e sorria com as histórias que Luís con-tava. “Ele trabalhou como foguista e maquinista. Viajava para São Luís, Crato, Teresina e Recife”, recorda Luís, em-polgado. Orgulhoso, Antônio ainda completou: “por 31 anos trabalhei; todos os meus cinco irmãos também tra-balharam na mesma função, mas só sobrou um irmão”.

Segundo Luís, a da Estação era uma das praças mais

importantes e bem freqüentadas da cidade. Todas as

empresas de ônibus interestaduais nos anos 1960 fica-

vam ali, ao redor da praça. “Dava gosto de ver as pessoas

bem arrumadas que circulavam pela praça, que desciam

na Estação e freqüentavam o centro da cidade. O maior

crime foi extinguir as estradas de ferro. A estrada levou

progresso, cultura para o interior”, lembra, com saudo-

sismo, o aposentado que fez parte deste crescimento.

Em frente à Associação dos Aposentados fica o Cen-

tro de Turismo do Estado, conhecido como Emcetur.

Na edificação foi inaugurada uma prisão imperial, em

1866, que funcionou até 1970. “Foi toda construída de

areia de rio, com óleo de baleia e as portas de ferro

fundido vieram todas da Escócia”, conta um simpático

aposentado, conhecedor profundo do local. Por ironia

ou não, nas portas principais há flechas no topo que

apontam para cinco corações. O sapateiro Lôro disse

que na época em que a prisão funcionava, bem na es-

quina da praça, havia janelinhas com grades, de onde

os presos jogavam latinhas para a calçada por meio de

um fio. As pessoas que passavam colocavam dinheiro,

cigarros. Hoje a antiga Cadeia Pública abriga lojinhas de

artesanato, renda e confecção, além do Museu de Mi-

nerais do Ceará e o Museu de Arte e Cultura Populares.

Há rumores entre os comerciantes de que no local há

estranhas passagens secretas escondidas sob o piso da

histórica edificação.

Ao longo do tempo, o cenário mudou bastante. Hoje a

praça é tomada por ambulantes que vendem de tudo: fru-

tas, verduras, raspadinhas, jogo do bicho, vale-transporte.

Figura curiosa, o dono da barraquinha de churrasqui-

nhos, Ricardo, é o típico conversador. Por temer a fisca-

lização, prefere não se identificar. Há quatro anos vende

espetinhos na Praça da Estação, e todo santo dia começa

a montar seu carrinho às quatro horas da tarde.

Além dele, outras quatro pessoas vendem espetinho,

mas o do Ricardo tem um diferencial: acompanha baião

de dois e custa um Real. “O movimento começa às cinco

da tarde e vai até por volta das oito horas. Acabou o

trem, já era; só dá ladrão”, avisa. Depois de muita in-

sistência, contou como batizou seu carrinho, “Chur-

rasquinho do Maluco”. Não queria dizer, também por

medo da fiscalização, que proibiu a venda de bebida

alcoólica. O nome foi dado pelos freqüentadores que

tomam cachaça. “Não há como não vender pinga. Perco

a clientela. A maioria quer uma pinguinha para acom-

panhar o churrasco. Há sexta-feira em que vendo 19

litros de pinga e chego a vender 200 espetinhos”, revela

Ricardo. A noite vai chegando e o movimento de pes-

soas e ônibus aos poucos vai diminuindo. A Praça da Es-

tação, ou melhor, a Praça Castro Carreira vai seguindo

seu destino, guardando antigas lembranças do passado

e revelando novas realidades do presente.

Por Mario Jorge TelesMatéria-prima

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IGREJA DO CORAÇÃO DE JESUS

Construída em 1848, é a referência da praça. Cercada por grades, por falta de segurança, a igreja pos-sui apenas um aos católicos e visitantes. Logo na en-trada da igreja, o altar de São Francisco está exposto para quem deseja orar, acender vela ou agradecer ao santo, depositando fotos de cura de doenças. Quem en-tra é sempre abordado por dona Aparecida que pede dí-zimo de um Real para o Natal da igreja. “Mais tem Deus para lhe dar”, repete. Tudo estaria muito bem, segundo Aparecida, se não fosse pela falta de segurança. Ela diz que a praça é muito movimentada e à noite é escura demais, por falta iluminação. A sensação de medo entre os fiéis é inevitável. O horário da missa diária é de 7 horas da manhã e às 20h30min. Aos domingos, a missa acontece às 20 horas.

É notório o pedido de dízimo nos quatro can-tos e em toda parte do templo. Uma lojinha, perto da entrada, vende aos fiéis camisas (R$ 10), cds (R$ 2), terços (R$ 25), canetas (R$ 2), bolsas (R$ 3) e livros de oração (R$ 5). Logo na saída da igreja, uma barraca vende artigos religiosos de santos para oração e ficam á disposição dos fiéis que queiram levar uma lembrança.

Com bancas de guaraná e açaí, a praça é um ponto de

encontro para quem gosta da fruta exótica. São sete ban-

cas espalhadas na sua área. E pra quem deseja comprar

cartão telefônico ou cartão de celular pré-pago, quatro

cabines vendem cartões de todas as operadoras.

A praça possui 12 bancas de revistas. A mais antiga é a banca O Freitas. Manoel de Freitas trabalha há 31 anos no ponto e é muito conhecido. “Eu moro aqui. Essa banca é minha casa”. A rotina é diária e o seu horário vai de 7 da manhã às 19 horas. Uma característica marcante que o dono da banca tem, é ajudar as crianças que necessitam de alguns trocados para comer. Seu Freitas oferece caixas de bombons e chocolates para que os meninos vendam ao redor do centro. Com isso, parte do arrecadado serve para que as crianças tenham como pagar o almoço e o lanche. “Ajudo as crianças porque sei como elas sofrem e serve de estímulo para outros banqueiros também possam ajudar”. O número de meninos de rua é um problema. Eles circu-lam na praça e no Parque da Criança, bem ao lado.

Antes de ir para a escola, o adolescente Daniel Mon-teiro, 15 anos, tem de trabalhar para ganhar algum tro-cado. Junto com o tio, Monel Monteiro ele chega à praça às 7 da manhã e começa a vender árvores, lâmpadas e en-feites para o Natal. A concorrência é pequena, pois a bar-raca dele é a única que vende produtos natalinos. Daniel mora e estuda no bairro Tancredo Neves. Deixa a praça às 17h45min e entra na escola às 19 horas. “Meu pai está desempregado e minha mãe trabalha como dona de casa, por isso tento ajudar minha família a sobreviver. Devo o meu trabalho ao meu tio Manoel”. Não apenas de bancos e bancas de revista vive a praça. Há outras inúmeras bar-racas que vendem de lanches a cds e dvds, e se misturam no patrimônio público. Se duvidar há 30 barracas espa-lhadas no local, com pessoas tentando sobreviver. Cerca de 20 orelhões também fazem parte do cenário e ajudam a quem deseja se comunicar. “Ei chapa, me arranja um trocado pra inteirar o almoço?”, pede um homem mo-reno, sem camisa, acompanhado de cinco amigos. O pe-

dido veio de Francisco Leonardo Rocha Neto, morador de rua que, junto com os amigos, realiza trabalhos artísticos com o lixo que encontra nas ruas. Sem dinheiro e sem material, Leonardo pede esmolas para comer. Leonardo dia que,estudou até a 6ª série e há dois anos abandou a família para viver nas ruas com as drogas. “A gente está sem dinheiro, sem material. E o que a gente consegue é para comer, tomar uma pinga e fumar nosso baseado”, revela a rotina de todos os dias. Para se lavar e tomar água, Leonardo tem que ir ao Parque da Criança usar a torneira e o bebedouro. Mas quase sempre ocorrem problemas com os seguranças do parque. “Os homi não deixa nem agente lavar as mão, só porque agente tá mal vestido. Eles não deixa os moradores de rua usar o patrimônio. Prá nois eles não bota queixo porque se não eles come chi-bata. Para que agente paga imposto? Eu sei que não tenho casa, mas se eu comprar uma caixa de fósforos eu pago imposto”. E a vida segue, com o entra e sai dos ônibus no terminal da praça.

PARQUE DA LIBERDADE (CIDADE DA CRIAnÇA)

Localizado ao lado da Praça Coração de Jesus,

este espaço público foi, por muito tempo, o ponto de

encontro de namorados. Antigamente, era chamado La-

goa do Garrote, local de descanso dos viajantes. Hoje,

a Cidade da Criança, como é popularmente conhecida,

encontra-se totalmente murada e com grades ferro. O

parque serve como passatempo para inúmeros meninos

e meninas de rua. A Prefeitura de Fortaleza por meio da

Fundação da Criança e da Família Cidadã (FUNCI) tem

atuado no sentido de estimular a participação política e

social de crianças e adolescentes que moram nas ruas e

não possuem atividade no seu dia-a-dia.

Um detalhe característico que se acontece na

lateral do Parque é a panfletagem que acontece todos

os dias tanto por homens como por mulheres. O parque

tem como principal referência a Praça Coração de Jesus.

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Em posição majestosa estão os leões da Praça General Tibúrcio. Trazidos de Paris, os reis dos animais, ainda que só da floresta, enaltecem a riqueza arquite-tônica de um dos recantos mais tradicionais do centro de Fortaleza. Ostentando glória que um dia residiu na praça, os leões dão identidade ao espaço que é mais conhecido como a praça deles. Deles, os leões.

A área ocupada pela praça, hoje, ganhou relevância, inicialmente, por estar de frente para o que, na metade do século XIX, era a sede do governo cearense. Recebendo assim três denominações: “Largo do Palácio”, “Pátio do Palácio” e “Praça do Palácio”.

Em 1877, por decisão da Câmara Municipal, o espaço passou a denominar – se “Praça General Tibúrcio”, em homenagem ao cearense Antônio Tibúrcio Ferreira de Souza, que lutou na Guerra do Paraguai.

Um ano depois, imortalizou - se no centro da praça, um monumento em honra ao General, com a primeira estátua erguida no Estado do Ceará. Como na época as pessoas mais importantes eram enterradas dentro de uma igreja, Ti-búrcio, por toda a sua coragem, ganhou importância e um monumento próprio, onde foram colocados seus restos mortais, localizado debaixo da sua estátua.

A praça está localizada no centro de Fortaleza, entre as ruas Sena Madureira, General Bizerril, São Paulo e Guilherme Rocha. Ela hoje forma um importante conjunto arquitetônico com a Igreja Nossa Senhora do Rosário, a Academia Ce-arense de Letras (Antigo Palácio da Luz) e o Museu do Ceará (Antiga Assembléia Municipal).

Antes de fazer parte do conjunto arquitetônico, o local já foi cenário para a passagem de mais importantes figuras políticas. Conta José Pereira, de lúcidos 92 anos de vida, que no púlpito, que subiram desde parlamentares a mendigos a urinar, foi palanque até para discurso do ex - presidente Getúlio Vargas.

Pereira, como é conhecido na praça onde trabalha há mais de 50 anos, recorda saudosamente do seu primeiro abrigo, logo quando chegou a Fortaleza. Vindo da sua cidade natal, Jaguaruana, depois de quatro dias de viagem, encontrou repouso embaixo das frondosas copas das árvores da praça.

A importância do rei dos animais contrasta com a modestia dos frequentadores da praça Gentil Tibúrcio.

DA GLóRIA AOESQUECIMEnTO

Por Isabella Purcaru Matéria-prima

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Chegou à capital “sem lenço, sem documento”, com a

vontade inabalável de vencer na vida. A praça foi palco de

todas as suas tristezas, alegrias, superações. Seu primeiro

emprego foi no Sombreiro Bar (atual Restaurante Lions),

local onde já funcionou o mais importante restaurante de

Fortaleza. No prédio também funcionava o Hotel Brasil,

o mais renomado da cidade. Ele abrigava todas as ilustres

figuras que pela cidade passavam.

Hoje, Pereira trabalha em uma banca do Paratodos,

uma ilegalidade nordestina, que a polícia finge não ver.

Exerce essa atividade com o prazer de retornar todos os

dias para o seu primeiro porto.

A Praça General Tibúrcio já foi área nobre de Fortaleza.

Hoje, com a expansão da cidade, o centro se tornou um

espaço mais comercial, que funciona de 8h da manhã às

18h da noite. Com isso, a praça perdeu sua vitalidade.

Pereira conta que há quarenta anos, os ricos e boêmios

freqüentadores da praça, podiam chegar bêbados, por-

tando bens de valor e se darem ao luxo de adormecer nos

bancos. Ao acordarem percebiam que nada lhes faltava.

Com a desvalorização do centro como área nobre, a

praça passou a abrigar almas marginalizadas e prostituí-

das. Muito dos comércios que hoje existem nas proximi-

dades, antes eram motéis. Esta realidade contribuiu para

que a praça deixasse de ser bem freqüentada e que seu

espaço não fosse utilizado devidamente. De acordo com

o cambista Emanuel Mendes, que trabalha na praça há

mais de 30 anos, chegou uma época que não se podia

andar na General Tibúrcio em plena luz do dia, sem ser

assaltado.Emanuel freqüenta a praça desde criança. Visi-

tava todos os dias, quando ia deixar o almoço dos pais e

tios, que lá trabalhavam como cambistas.

Ele vivenciou uma época quando a ainda havia um esta-

cionamento na Rua General Bizerril, que acabou quando

construíram um calçadão que interliga a praça ao comér-

cio de papelarias. Emanuel lembra que, depois da cons-

trução do calçadão, passou a funcionar o comércio, que

hoje é conhecido como beco da poeira. Depois de muito

tempo o comércio foi retirado da General Tibúrcio, por

conta da sujeira deixada.

Outra presença ilustre está sentada em um banco de

madeira ao lado de uma árvore peculiar da praça, Ficus

– Bejamim: uma estátua da Rachel de Queiroz, no auge

de sua elegância. Ela foi colocada no começo de 2005,

e presencia o atual cotidiano do logradouro, que flutua

desde a comercialização do corpo até o exercício da so-

lidariedade.

Fernando Moreira, porteiro da Academia Cearense de

Letras, Conta que Rachel gostava muito da praça. Por

conta dos vândalos, havia a intenção de colocar a estátua

dentro da Academia Cearense. familiares da escritora po-

rém fizeram questão de que ela fosse colocada no local

que mais gostava. A vida da praça começa com a chegada

dos comerciantes. O comércio abre, o sol esquenta, mas

ela continua com sua sombra e ar fresco. Propício para

receber quem está enfadigado dentro das lojas, quem es-

pera alguém ou até mesmo quem passou a noite catando

latas na cidade. Paulatinamente começa a se formar um

grupo de amigos, batizados legalmente como: Associa-

ção amigos do Dominó. São aposentados, advogados,

comerciantes, policiais fora do horário de serviço, que

“brincam” por distração, para passar o tempo, a labuta.

Os amigos do dominó formam uma associação muito or-

ganizada, que se instalou na praça há mais de 15 anos.

Para participar tem que cumprir a regras, para que não

vire bagunça, nem prejudique ninguém. Só pode jogar

quem for associado e apresentar a carteira de associado.

As regras consistem em: Não pode...

Fumar quando estiver jogando; Estar embriagado;

Jogar com pessoas estranhas;

Eles começam a jogatina logo cedo e se tiver compo-

nente vão até anoitecer. O aposentado Francisco Ribeiro

da Silva, 72, vai todos os dias, de ônibus, do bairro Ben-

fica, para a praça, só para jogar. “É meu divertimento”,

José Pereira, 50 anos de praça: muitas histórias.

A estátua de Rachel de Queroz: agrega valor à praça apesar da ação de vandalos.

diz ele. A associação é sem fins lucrativos. O presidente

da associação pede apenas para que os conveniados

contribuam com um presente infantil, para animar as

festas organizadas pelos amigos do dominó no dia das

crianças e no Natal. Essa festa é feita anualmente, para

crianças carentes que vivem perto da praça.

A Praça dos Leões é espaço para muitas mani-

festações de caridade. No logradouro, também acon-

tece de terça a quinta-feiras um sopão, ofertado pela

Catedral de Fortaleza, que alimenta pessoas carentes

que rodeiam a praça. São distribuídos cerca de duzen-

tos copos. A sopa é feita com os donativos doados na

Igreja do Rosário e na Catedral.

A praça que ainda preserva a passagem do antigo bon-

dinho, que funcionava antes do automóvel dar o ar da sua

graça, recebe visitantes de todos os tipos. Seja para visitar

a Igreja; seja para visitar a Rachel, que tem melhorado a

freqüência dos visitantes da praça; seja só de passagem,

quem desceu ou quem vai pegar o ônibus; seja para fazer

o comércio do café, de livros ou até do próprio corpo;

seja para engraxar os sapatos; seja para fazer uma aposta no jogo do bicho. E no passar do dia, pode – se observar a quantidade de vidas, de objetivos, de realizações, de es-peranças, de um momento de cada um que passa por ali. Independente do sexo, idade, cor, raça ou religião. Todos que contribuem direto ou indiretamente para a história da praça, que há muito morre e revive.

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memoração anual do Dia do Estudante. Por último, a

Câmara iria instituir a Medalha João Nogueira, que será

concedida anualmente, no dia 11 de agosto, a um grê-

mio ou entidade estudantil que desenvolva atividades

em defesa da vida. Mais um ‘pedacinho’ da Praça da La-

goinha será ‘extraído’. Só restarão as pedras soltas do

passeio que se acumulam nos cantos da praça.

Uma das mais antigas da cidade, sua demar-

cação enquanto praça é anterior a 1859. Batizada em

1891 com o nome de Comendador Teodorico, passou a

ser chamada de ‘Lagoinha’ porque um dos afluentes do

riacho Pajeú passava pelo local e formava uma pequena

lagoa, que depois foi aterrada para a construção do es-

paço público.

A praça que foi bonita e bem cuidada, repleta

de bancos, de jovens e de muitas noites de festa, já so-

freu inúmeras perdas no decorrer de sua história. Em

1829 havia um coreto em forma de lira, demolido em

2001. Em 1930, um jardim foi construído com fonte lu-

minosa, importada da Alemanha, que hoje se encontra

na Praça Murilo Borges, em frente ao Banco do Nor-

deste. No dia 21 de abril de 2003, a estátua de Capis-

trano de Abreu, em bronze, fundida em Paris no início

do século passado, medindo 1,90m (tamanho natural)

e pesando cerca de 100 quilos, desapareceu da praça,

onde estava desde 1964. No mês seguinte a estátua foi

recuperada. Estava prestes a ser vendida como sucata

pelos ladrões.

João Capistrano Honório de Abreu, o homem

e o nome da Praça. Depois de resgatada após o “seqües-

tro” foi restaurada e devolvida ao seu ‘habitat’. Hoje,

os sinais da restauração já desapareceram. O monu-

mento encontra-se pichado e abandonado como o resto

da praça. Um dos primeiros grandes historiadores do

Brasil, ‘vive hoje’ em meio à história destruída. Talvez

o primeiro historiador a dar importância a elementos

populares ou menos elitistas, escrevendo uma história

sócio-econômica do Brasil. Cearense, nascido em Ma-

ranguape, em 23 de outubro de 1853, Capistrano de

Abreu, depois de nove obras publicadas faleceu, aos 73

anos, no Rio de Janeiro.

Passaram-se os anos e o lugar perdeu a am-

bientação bucólica, onde, nas noites das quartas-feiras,

a banda da polícia realizava retreta. Fortaleza vive o

dilema da modernidade sem se dar conta de que a or-

ganização do espaço urbano não pode ser feita apenas

para melhorar o fluxo de carros, sem contemplar a

construção de espaços de convivência lúdica, com áreas

verdes para caminhar, ler, escrever, contemplar, filoso-

far, agir...

Um aspecto curioso é a presença de duas bar-

bearias improvisadas nas calçadas da praça. Com espe-

lhos pendurados no muro da Casa de Saúde César Cals,

Chileno e Fofa cortam “barba, cabelo e bigode” por ape-

nas R$1,99. Chileno conta que trabalha há seis anos no

local e, como a procura havia aumentado, contratou os

serviços de Fofa, há quatro meses, para ajudá-lo a dar

conta do recado.

Luis Reginaldo, fiscal do comércio ambulante,

aproveitou os três anos de atuação na área para co-

nhecer historicamente os quatro cantos do logradouro

onde trabalha. E revela: o maior objetivo da fiscalização

é impedir que os ambulantes ocupem toda a praça. Eles

se limitam à parte esquerda dela. O trabalho acabou

duplicando: além de fiscal, tira onda de guia turístico.

Apesar de abandonada e sombria, a pobreza da praça

atrai jornalistas em busca de informações, inclusive his-

tóricas, para denunciar o abandono e resgatar o que foi

aquele espaço um dia. Quando isso acontece, Reginaldo

está a postos. Nunca esquece de ressaltar a história do

estudante João Nogueira Jucá, que tem seu busto imor-

talizado, em bronze, em um canto da praça, esquecido,

sem qualquer placa indicando quem ele é. Nada.

No dia 4 de agosto de 1959, o jovem estudante

João Nogueira Jucá passava em frente à Maternidade

Dr. César Cals, que fica ao lado da Praça da Lagoinha

e funciona neste local até hoje. No momento de sua

passagem, aconteceu uma explosão seguida de incên-

dio. João entrou no hospital em chamas e salvou muitos

recém-nascidos e parturientes. As pessoas gritavam ten-

tando impedi-lo, mas o grito maior foi o de uma mãe:

“- Por favor, meu filhinho ficou lá, salve-o pelo amor de

Deus!” Depois de salvar todos os ocupantes do hospital,

João caiu. Cerca de 80% do corpo do jovem foi consu-

mido pelo fogo. Ficou irreconhecível. Morreu dia 11 de

agosto, coincidentemente o dia em que se comemora o

Dia do Estudante. De tal modo, entrou para a história

como um símbolo do estudante cearense. Uma vez no

ano, dia 11 de agosto, é relembrado seu ato de bravura

por meio de homenagem do Corpo de Bombeiros, rea-

lizada na própria praça.

Por iniciativa do vereador Tin Gomes, a Câ-

mara Municipal de Fortaleza realizou em agosto deste

ano, uma audiência pública marcando o início do Pro-

jeto João Nogueira Jucá. O objetivo é resgatar a me-

mória do estudante. O projeto fpo pensado para três

etapas. Na primeira, pretendia recuperar o monumento

em homenagem ao estudante e transferi-lo da Praça da

Lagoinha, para o pátio externo do Colégio Liceu do Ce-

ará. O segundo passo era aprovar um Projeto de Lei que

declara João Nogueira Jucá, patrono dos estudantes de

Fortaleza e dispõe sobre esta homenagem junto à co-

LAGOInhA MACULADA

Sujeira, monumentos pichados e destruídos, bancos estraçalhados. Este é o cenário atual da Praça Capistrano de Abreu, popularmente conhecida como Praça da Lagoinha. Os transeuntes se resumem a mendigos. Os outros persona-gens que compõem o cenário da praça são vendedores ambulantes, geralmente de produtos roubados, o que gerou o apelido de ‘feira dos malandros’.

Por Renata Ribeiro Maciel Lopes Matéria-prima

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O lugar transmite uma sensação de tranqüilidade

a quem passa e respira ares de cidade pequena. Por

momentos é possível ignorar, completamente, todo o

barulho que venha da Avenida 13 de Maio, principal

acesso à Praça da Gentilândia, trazidos dos carros que

passam apressados, seja voltando para casa ou transi-

tando para aproveitar o resto do dia.

As casas ao redor da praça são antigas, mas nem to-

das estão habitadas por aqueles que viram, junto com

suas casas, o crescimento daquele espaço e as dife-

rentes etapas pelas quais passou até ser o que é hoje.

Do prédio azulado da república de estudantes, com

sua lateral decorada por roupas limpas dos moradores

que secam no varal – reduto de moças e rapazes que

vêm de outros lugares para estudar na Universidade

Federal do Ceará e não têm onde ficar em Fortaleza

-, é possível contemplar a praça. Enquanto a quadra,

melhorada na última reforma da prefeitura há cerca

de um ano, está cheia de garotos que a utilizam para

práticas esportivas.

Dois bustos foram erguidos em homenagens a im-

portantes homens para a história da Gentilândia: Dr.

Ludoviko Lázaro Zamenhof, criador do Esperanto, a

língua internacional, nascido em 15.12.1859 e fale-

cido em 14.04.1917; e José Gentil, homenageados

pela Prefeitura de Fortaleza em 1981. Gentil é respon-

sável pelo nome que foi dado ao bairro, hoje conhe-

cido como Benfica, e à praça. O local já foi palco de

manifestações homossexuais, de brigas entre gangues

rivais e arrastões. Hoje, tudo isso melhorou graças à

nova iluminação que a praça ganhou com a reforma

realizada pela prefeitura em 2005. As melhorias re-

sultaram em mais pessoas andando pelo lugar e mais

segurança.

Banca da Gentilândia

A banca que leva o nome da praça existe há mais de de-

zenove anos, e viu várias das muitas reformas que a praça

passou. Quando foi instalada, a praça já tinha passado por

outras tantas. “Cheguei aqui, o piso ainda era de cimento

batido. Só depois que colocaram esses azulejos,” diz Agri-

pino Marinho de Lima, 47 anos, dono da banca de revista,

casado e pai de dois filhos.

Agripino conta que a praça é um lugar tranqüilo, sem

muitos assaltos, e que o ambiente melhorou, mais ainda,

depois da última reforma, mas admite: “vez ou outra

acontece uma ocorrenciazinha, mas não é nada de muito

grave não”.

A tranqüilidade do logradouro, que já foi considerado

antigamente como sendo “praça de subúrbio”, faz com

que sua aparência lembre, ainda mais, as praças das pe-

quenas cidades do interior. Agripino, porém, com a ex-

periência dos anos de praça garante: “é sempre assim, até

em dia de semana. Durante o dia o movimento é pouco,

mas à noite melhora bastante.”

Os freqüentadores, na maioria, são estudantes universi-

tários, que moram na república aos fundos da praça, e os

moradores das casas no seu entorno. Muitos preferem o

início do dia para fazer cooper e passear com seus animais

de estimação, enquanto outros preferem o fim da tarde.

PRAÇA DE GEnTISVida na praça

Maria Vilhela foi criada no bairro da Gentilândia, mas

foi morar perto da praça, em uma casa cinza antiga, há

oito anos porque a filha gosta do lugar. “Por mim eu sai-

ria daqui. Velho quer sossego e por aqui sossego é coisa

que a gente não tem,” diz, timidamente, a senhora de 72

anos, dona de olhos azuis, curiosos e atentos.

“Sempre tem menino jogando bola na praça, gente an-

dando à noite aqui,” acrescenta, apontando para a quadra

onde alguns garotos jogam futebol e para os transeuntes

que já estão praticando caminhada de fim de tarde. Em

seguida, fecha a janela e volta para o interior da casa,

fugindo de todo o barulho.

Já Diana Maria Vieira Gomes, 51 anos, estatura me-

diana, sorriso brando e fala mansa, afirma com veemên-

cia que gosta do lugar, mesmo com todo o barulho.

“Agora que descobriram essa praça, quase todo dia tem

evento por aqui.” Ainda é categórica: só sai dali quando

Deus quiser.

Moradora de uma casa amarela, antiga - a porta da

frente, no mês de dezembro, tem sempre uma guirlanda

pendurada e as almofadas das cadeiras ganham moti-

vos natalinos, assim como o muro e as laterais - e que

primeiro foi dos pais, nascida e criada no local, ela diz

com orgulho que teve uma infância feliz e fez tudo o que

uma criança na sua época fazia. Não chegou a namorar

na praça, o que conta rindo, porque os pais eram muito

severos e não permitiam. É, também, com um sorriso

estampado e ares de quem faz uma gostosa viagem no

tempo, que lembra como era a praça. “Aqui, antigamente,

era uma coisa bem simples. Aí, na medida em que os pre-

feitos foram se elegendo, eles foram reformando até ela

ser do que jeito que é hoje”. Conta com entusiasmo que

a praça recebeu o nome de Gentilândia graças à família

que morava no bairro e era uma das mais importantes da

cidade naquela época. “Hoje onde é a reitoria da Univer-

sidade Federal do Ceará era a casa dos Gentil e sempre

ouvíamos música vindo de lá. Eles adoravam fazer uma

festa.”

Diana olha para calçada que já está sendo tocada pelos

raios de sol, indicando o fim da tarde e observa a movi-

mentação, enquanto mais e mais pessoas chegam, seja

para caminhar, seja para passear com os animais de esti-

mação. “Aqui o movimento é sempre muito grande.” Pra-

ticante de caminhadas, duas vezes ao dia, como a grande

maioria e muitos dos moradores antigos que ainda se

encontram lá, ela considera que a segurança poderia ser

mais confiável e diz, rindo, que “já roubaram um carro

aqui em frente a minha casa.”

Com um aceno, Diana se despede com uma aceno en-

quanto se prepara para mais uma caminhada na praça

que agora já começa a ter as primeiras luzes acesas.

O lugar está cheio de vida: pessoas sentadas em todos

os bancos; rodas de músicos, poetas, jogadores de RPG,

tomam conta do lugar. Sorrisos, cantos, versos. É a vida

noturna que começa a dar o ar da graça, mesmo quando

o céu ainda está em seu tom alaranjado, dando espaço

para as estrelas que logo brilharão escondidas, pela luz

dos postes. E é cantando o trecho de uma das músicas,

que por acaso escuto tocarem ao meu lado, que sorrio e

aceno de volta para Diana:

“Viver e não ter a vergonha de ser feliz

Cantar, e cantar, e cantar

A beleza de ser um eterno aprendiz.

Ah, meu Deus! Eu sei

Que a vida devia ser bem melhor e será,

Mas isso não impede que eu repita:

É bonita, é bonita e é bonita!”.

E com a beleza de um fim de tarde vou embora com a

certeza do dever cumprido.

Por Leilane Viana Soares Matéria-prima

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22 23

Estes são alguns dos cartazes/serviços espalha-

dos por diferentes tipos de estabelecimentos loca-

lizados no entorno do logradouro, alguns até com

dois – ou três – comerciantes dividindo um só es-

paço. A Praça dos Voluntários, localizada no Cen-

tro de Fortaleza, poderia ser chamada de praça da

diversidade. Poucos sabem seu verdadeiro nome.

Para dificultar ainda mais, a placa que a identifica,

está na parte de cima de uma das lojas de rações

que a cercam, quase escondida, com boa parte do

nome recoberto pela tinta de parede da última re-

forma do proprietário. Muitas pessoas passam pela

Praça dos Voluntários, sem mesmo saber que este é

seu nome. A conhecem, simplesmente, como Praça

da Polícia.

No início do século XX, era conhecida como

Largo do Garrote, uma alusão ao lago que come-

çava no local e se estendia até à Cidade da Criança,

atual Parque da Criança, em frente à Igreja do Co-

ração de Jesus. O gado que vinha de Messejana

tomava água e fazia descanso na sombra das árvo-

res. Muito mato e semideserto, o local seria o que

atualmente se conhece como açougue ao ar livre,

com pequenos currais, nos quais o gado era aba-

tido, debaixo das árvores e vendidos à sombra dos

cajueiros. Hoje, tão diversificado quanto o tipo de

loja da praça, são as pessoas que aproveitam a ar-

borização – com direito à sombra – proporcionado

pelo retângulo das árvores que formam a Praça dos

Voluntários, que ganhou este nome em 1932 como

forma de homenagear os cearenses que lutaram na

Guerra do Paraguai (1864-1870).

Sentado no banco verde, de base azul, Adelmo

Monteiro, 50 anos, que não mora em Fortaleza,

descansa nos intervalos entre uma e outra praça

da cidade: Lagoinha, Alencar, descendo pela Praça

do Ferreira, Leões e, finalmente, Polícia – como

ele mesmo diz. Morador de Tauá, distante 337 qui-

lômetros de Fortaleza, a cada 15 dias vem para a

capital comprar mercadoria para a distribuidora na

qual trabalha. Separado, pai de dois filhos – que

moram com a mãe em Minas Gerais – ele afoga as

mágoas, como mesmo diz, relembrando o último

relacionamento que não deu certo. Mesmo nunca

tendo sido casado, já morou com oito mulheres

ao longo da vida. “Meu problema é que sou muito

apaixonado”, revela, detalhando suas decepções.

Andarilho assumido, em 1976 foi de Tauá para

São Paulo – onde morou 20 anos – como a maioria dos

nordestinos, em busca de um futuro melhor. Chegando

lá, trabalhou lavando louça e depois como garçom. Seu

último emprego foi como gerente de uma padaria. Mo-

rando com os pais, seu Francisco Monteiro, de 80 anos,

e dona Expedita Sousa, de 82, ele se sente privilegiado

por ter ainda, na sua idade, pais vivos. Só reclama da pre-

ocupação deles com sua saúde. “Só gosto de tomar umas

de vez em quando”, confessa Adelmo. Mesmo chegando

em Fortaleza na sexta-feira, pretende permanecer na bo-

emia até domingo. “O trabalho fica pra segunda – feira”,

despede-se ele, rumo à próxima praça.

Salão de beleza, Farmácia Popular, loteria, Polícia Civil,

estacionamento, restaurante, gráfica, Secretaria de Finan-

ças do Município (SEFIN), Associação dos Magistrados,

lotérica, casa de ração, INSS, loja de máquinas, de con-

sertos de fogões, de bijuterias, de roupas, lanchonetes,

banca de revistas e muito mais. Sem sair da praça, é pos-

sível dispor de diferentes tipos de serviços. Alguns pio-

neiros, como a Maquilar e outros recém chegados como a

Farmácia Popular. Não só as ruas Monsenhor Luís Rocha,

Perboire e Silva, General Bezerril e rua do Rosário, que a

formam, mas em todas as ruas paralelas que dão acesso,

ou não, ao logradouro, continuam as variedades de co-

mércio, espalhando-se por todo o centro.

Denile, Milksa e Edso, grupo de três amigos e funcioná-

rios da empresa Hoepers S.A., localizada no prédio Vital

Rolin, na Rua do Rosário, passam todos os dias pela praça

às 7h30min quando vão para o trabalho e às 14 horas,

quando retornam. Receosos em perder o horário, eles

apanham o ônibus para descer na Praça Coração de Jesus.

O percurso até a empresa é pela Praça dos Voluntários.

Eles são unânimes em considerar que o espaço poderia

ter melhor aspecto, ser mais limpo e organizado. “Aos sá-

bados e domingos, as pessoas ficam nos bares em frente

à praça até tarde e, muitas vezes, colocam mesas até em

cima da calçada da praça”, critica Denile.

O intenso comércio no local e nos arredores forçou a

abertura de três estacionamentos, dois na lateral do INSS,

e outro, mais afastado da praça, no sentido do Parque da

Criança. Desses, dois são cobertos e um a céu aberto. E,

mesmo assim, o contorno da praça é todo feito por veícu-

los de funcionários e proprietários que colocam seus car-

ros em frente à praça ou em frente às lojas, deixando um

estreito espaço para a circulação de outros veículos. De

frente a um dos estacionamentos, Oliveira, 70, engraxa

todo dia a R$ 3,00, o par de sapatos. Há 26 anos nesse

ponto, ele chega às 7h30min e vai para casa quando o

movimento acaba, por volta das 18h30min. “Além de en-

graxar, conserto sapatos, vendo também usados, mas o

principal serviço que faço é consertar sandálias femininas

que se quebram quando as donas vêm ao centro”, diz o

experiente engraxate.

Integrante de um grupo de oito profissionais, todos

com quase a mesma idade, os engraxates da praça se

agrupam em filas, com o objetivo de disputar os clientes

que passam. Oferecendo seus serviços, eles amontoam

tamancos e chinelas no chão, cada um de frente a seu

respectivo dono. Essa é a maneira natural de concorrer

uns com os outros e apresentar seu produto. As pessoas

que cruzam a praça e, principalmente, as que sentam

nos bancos são a maior clientela, não só deles, mas dos

vendedores de flanelas, de Totolec, de cartões de crédito,

que bombardeiam o descanso de quem fica nos bancos.

O movimento dos prédios públicos INSS, SEFIN, Polí-

cia Civil e Farmácia Popular é de segunda à sexta-feira; só

a Farmácia Popular funciona no sábado até meio – dia.

No INSS, que fica no mais alto prédio da praça, pela Rua

General Bezerril, em frente à Polícia Civil, são feitos

diariamente, pedidos de aposentadoria, laudos

médicos, e entrada em licença maternidade. Na SE-

FIN, que fica pela Rua Monsenhor Luís Rocha, en-

tre a Rua do Rosário e a General Bezerril, ocupava

antigamente apenas um prédio. Recentemente,

foi construído um anexo, para possibilitar melhor

funcionamento. Na SEFIN são resolvidos casos de

pagamento, regularização, retiradas de certidões

negativas de débitos e fiscalização dos impostos

UM POUCODE TUDO

“AmoLAmos ALicAte” “FAzemos chAves” “comprAdos e vendemos cArtuchos”

Por Paula Cleidiany Queiroz Gondim Matéria-prima

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24 25

arrecadados no município tais como: Imposto sobre

Serviço (ISS), Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU)

e Imposto de Transmissão de Bens Imobiliários (ITBI).

Com o objetivo de supervisionar o recebimento desses

impostos a SEFIN é responsável por boa parte da movi-

mentação de contribuintes e veículos na praça.

Recém chegada, mas com importância essencial para

o setor de medicamentos, a Farmácia Popular, esquina

da Rua Monsenhor Luís Rocha e Rua do Rosário, é um

programa do Governo Federal, em parceria com a Fun-

dação Oswaldo Cruz, que reúne idosos e populares logo

cedo em aglomerados de frente à Farmácia a procura de

melhores preços. Maria Alice, de 71 anos, aposentada,

moradora do bairro Bom Jardim sempre que precisa vai

à farmácia garantir o desconto que tanta diferença faz no

orçamento mensal. “Eu uso remédio para colesterol. Na

farmácia do meu bairro uma cartela com 10 comprimidos

custa R$ 17,00 e compro aqui a cartela por R$ 3,50. Faz

muita diferença, por que nem ônibus eu pago para vir

comprar”, conta feliz.

Um dos primeiros prédios a fazer parte da praça, onde

está a Polícia Civil, na Rua do Rosário, já foi sede do antigo

Liceu do Ceará, no período em que a praça ainda se cha-

mava Largo do Garrote. Depois o prédio foi demolido e

construído no seu lugar a Central da Secretária de Polícia

e Segurança Pública, depois desativada, para uso exclusivo

da Polícia Civil. Na gestão do prefeito Raimundo Girão,

a praça cedeu homenagear os cerca de 6 mil voluntários

que partiram para a Guerra do Paraguai, em 1865. A deno-

minação foi dada em 1932 sob o decreto 75/31/12/1932 e

passou a se chamar “Praça dos Voluntários”.

Em homenagem ao Chefe da Nação, da época, foi le-

vantado em 1941 um busto do presidente Getúlio Vargas,

na reforma feita pela Prefeitura, na gestão de Raimundo

de Alencar Araripe. Nesse período foi toda remodelada:

ganhou dois jardins e nova iluminação. Atualmente os

bancos formam dois quadrados e dentro ficam os jardins

da praça. Entre os bancos fica o busto de Getúlio. Nos

dias atuais, populares ainda prestam homenagens, nas

datas de seu nascimento e morte, depositando flores aos

pés do busto. Há, até mesmo, aqueles que a chamam,

carinhosamente, de Praça Getúlio Vargas.

Das bancas de revistas que ficam em cada extremidade

da praça, uma em especial chama atenção pelo som de

uma caixa acústica, com alcance em todos os cantos da

praça. Ela já é parte integrante do local. Djavan é o dono,

tanto da banca quanto da caixa. Djavan, só Djavan, como

ele prefere ser chamado, trabalha há 16 anos e além de

revistas e jornais, vende alternativamente CDs de música

brega. O jogo de dama em frente à banca ou o de baralho,

ao lado, são alguns dos métodos práticos de promover a

publicidade de seus CDs. Mesmo cismado quando é esse

o assunto e, com medo da fiscalização, garante que só

ajuda a melhorar o ambiente da praça e colaborar com a

alegria dos amigos.

Mais antigo do que Djavan na praça só o dono da

banca localizada arás da dele. Não muito disposto a tro-

car idéias, ele – que preferiu não dizer o nome – fica

assistindo TV e atende os clientes, apenas esticando a

mão, sem mesmo olhar para as pessoas. A banca dele é

uma das maiores da praça. Todo o espaço interno é pre-

enchido e ainda recobre boa parte do chão. É dividida

em três espaços diferentes: à direita, ficam os livros; no

centro, as revistas; e à esquerda, a sessão pornô – por

sinal a maior e mais visível. O nome da banca “Terra

da Luz” ironicamente oferece os títulos que se vendem

por si sós – porque o proprietário permanece sentado,

assistindo. Do mais antigo ao caçula: Francisco Freire

comprou sua banca há três meses e até agora, satisfeito

com as vendas, manda buscar as revistas nas editoras e

ganha uma boa quantia de comissão em cima do preço

de capa, que ele não revela. “O que não se vende, eu

devolvo”, confirma, satisfeito por não correr risco.

Nos finais de semana, quando os prédios públicos es-

tão fechados, o comércio ambulante da praça se estende

na frente desses locais: calcinhas, sutiãs, piranhas, biju-

terias, porta – cartões, imãs de geladeiras, tudo a partir

de R$ 0,50. Alguns dividem a mesma locação com três

tipos de comerciantes diferentes. Não dá para saber nem

o nome da loja de tantos produtos diferentes no mesmo

local: rações para peixes junto com venda de queijos,

molhos e cachaças artesanais, salão de beleza junto com

gravação de carimbos e consertos para relógios, banca

do Paratodos e Totolec, com venda e troca de celulares e

acessórios. Sem falar do comércio não fixo de carrinhos

de cachorro – quente, frutas, verduras e até enfeites e

cartões de Natal. Eles passam, vendem um pouco de um

lado, um pouco do outro e partem para um novo ponto

de venda.

Enquanto os ambulantes se movimentam na praça, dois

rapazes com farda de fiscal da prefeitura, que deveriam

estar observando se todas pessoas que estão vendendo

mercadorias são cadastradas e, conseqüentemente, pa-

gam impostos, não parecem muito interessados no ser-

viço. Ao contrário, se afastam da área para se deliciarem

cada um com uma porção de batatinhas fritas...

Além da diversidade, a Praça dos Voluntários abriga

lojas especializadas no ramo de informática, como a Ma-

quilar, que iniciou esta atividade ainda com máquinas

de datilografia. Com a evolução tecnológica e a era dos

computadores, a loja passou a trabalhar com venda e

consertos de produtos de informática, impressoras, cal-

culadoras, telefones e também com carga e recarga, com-

pra e venda de cartuchos. Hoje, com mais de 25 anos de

serviço, abre caminho para a concorrência que se inicia

no próprio entorno da praça. Na Rua Perboyre e Silva,

vizinhas à Maquilar, há mais duas lojas, a “Júnior Faz

Tudo” e, mais nova da praça, a “Jaspefor”, que dispõe de

três lojas, duas ficam em frente à praça e a outra, na Rua

General Bezerril. Outra diferença nos serviços oferecidos

nos estabelecimentos ao redor da praça é o atendimento

e o estilo único. Ao som da banda Aviões do Forró, os fre-

qüentadores do Restaurante Bon Appetit se espalham pe-

las mesas, que se estendem pela calçada e também pelo

chão da praça. Sem precisar entrar no restaurante para

ter acesso ao cardápio, que fica em duas caixas pintadas,

logo na entrada, cada uma para um grupo de clientes es-

pecífico:

“Promoção p/ empresa: a partir de 5 pessoas

self service, sem peso: R$ 3,20.

Grátis 5 guaranás Kuat 290 ml,

ainda acompanha fruta.

Só o almoço R$ 3,00.”

A outra faixa para promoção individual, muda apenas

o preço para R$ 3,40. Um tanto cansativo para quem tem

que ler em pé e com fome. Mas, segundo Aline Bento, fre-

qüentadora quase diária do restaurante, a comida é o que

se pode chamar de BBB “Boa, Bonita e Barata”. As entre-

gas de refrigerante com gelo, água de coco e até aquela

cervejinha no local de trabalho são alguns dos pedidos

levados de um lado ao outro da praça, durante todo o

dia. Muitas vezes sozinhos no ambiente de trabalho, co-

merciantes acham mais prático telefonar para fazer o pe-

dido. A certeza da entrega do produto fica por conta da

fidelidade dos que freqüentam a Praça dos Voluntários.

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Theatro José de Alencar, espetaculo de ficção; na praça, dramas e alegrias do povo.

Ele chega e a maioria das pessoas já o conhecem.

Começa um ritual de cumprimentos e pequenas conver-

sas. Enquanto fala com as pessoas, ele se prepara para a

apresentação. Ali mesmo, em praça pública, troca a parte

de cima da roupa, passa um óleo pelo corpo e amarra

uma faixa na testa. Baixinho e musculoso, Quebra Coco

está pronto para começar o espetáculo. Nesse momento,

seu ajudante já tirou os cocos da bolsa e colocou-os so-

bre um pano estendido no chão. Wagner Viana, o Quebra

Coco, já é bastante conhecido pos sua arte. Já foi tema

de várias reportagens de televisão e conseguiu comprar

a casa própria com o prêmio de 15 mil reais que ganhou

no quadro “Se vira nos 30”, do Domingão do Faustão.

Para ter tanta popularidade, Wagner quebra cocos ba-

tendo neles com as próprias mãos, enquanto dá berros

de violência. É uma ação realmente impressionante. Por

isso mesmo, durante suas apresentações na Praça José de

Alencar, ele consegue juntar uma pequena multidão em

sua volta. É esse público que lhe paga ao fim da apresen-

tação. A Praça José de Alencar é o palco principal destas e

de outras manifestações da cultura popular.

Espaço quadrangular demarcado pelas ruas 24 de

Maio, Major Facundo, Guilherme Rocha e General Sam-

paio, a Praça José de Alencar, localizada no bairro Centro,

em Fortaleza, é um microcosmo da cidade. Nela, diaria-

mente, encontramos recortes do cotidiano, da cultura,

do linguajar, da expressão de existência do povo de For-

taleza. Nela, todos têm espaço, pois a José de Alencar é

praça pública, e se é pública é de todos, até mesmo de

delinqüentes, prostitutas, bêbados e mendigos. Estas são

algumas identidades que fazem parte do atual cenário

DE PATROCínIO A JOSÉ DE ALEnCAR:hISTóRIA E COTIDIAnO DE UMA PRAÇA.

Por Pedro Alves dos Santos Neto

Praça José de Alencar: um microcosmo de Fortaleza, com recortes docotidiano da cultura popular.

da praça, fazendo dela seu palco de expressão e exis-

tência. Encontramos também gente muito trabalhadora:

vendedores de todos os tipos de produto, de calcinha e

cueca até verduras e pomadas milagrosas, passando por

lanches, serviços e arte. Sim, tem vendedor de arte na

José de Alencar. Vendedores da própria arte. Arte de fa-

zer coisas que prendem a atenção de quem

passa, como o Quebra Coco.

A Praça José de Alencar é um verdadeiro

teatro, localizado em frente ao teatro de

mesmo nome. Enquanto o Theatro José de

Alencar apresenta espetáculos fictícios, a

Praça José de Alencar apresenta espetácu-

los reais, que são encenados, assistidos e

aplaudidos ou vaiados pelo povo. É o tea-

tro do povo. Pois é aqui onde encontramos

o povo da cidade de Fortaleza, vivendo seus

dramas e alegrias, vivendo suas histórias. A

Praça José de Alencar é um lugar de estó-

rias, que tem uma longa História própria.

No final do século 19, quando começou a ser conside-

rada como praça, o local não passava de um grande es-

paço vazio no meio de quatro ruas, como um quarteirão

que não foi construído. Com o movimento das pessoas

nas ruas e com a presença de Igreja Nossa Senhora do Pa-

trocínio, o lugar começou a ter função de praça e passou

a ser percebido como tal. Era a Praça do Patrocínio, nome

extra-oficial dado pelo povo, devido à igreja. Essa época

é anterior a 1870, ano em que o lugar foi oficialmente

batizado com o nome de Praça Marquez do Herval, em

homenagem ao patrono da Cavalaria do Exército Brasi-

leiro, Manuel Luiz Osório, conhecido como Marquez do

Herval. Mas o nome não pegou e o lugar continuou a ser

chamado de Praça do Patrocínio.

Em 1890, o lugar é mais uma vez batizado, dessa vez

com o nome pelo qual já era conhecido: Praça do Patro-

cínio. Nessa época, nos seus primeiros anos, era um dos

lugares mais bonitos de Fortaleza, com postes de ilumina-

ção a gás e um jardim bem cuidado e florido. No centro

da praça, um pavilhão coberto que abrigava os discursos

populares e políticos, além de servir de palco para ban-

das que tocavam valsas e xotes. Estamos em uma época

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Em 1910, o teatro estava pronto e deu-se sua inaugu-

ração. Com a presença do teatro, a praça passou a ser

popularmente chamada de José de Alencar. Em 1929,

em comemoração pelos 100 anos de nascimento do

escritor cearense, o nome da praça é oficialmente mu-

dado para Praça José de Alencar e um monumento com

uma estátua do escritor no topo, é construído bem no

meio da praça, em frente ao teatro. Em 1932, o lugar

tem seu nome alterado mais uma vez, voltando a ser

oficialmente chamado de Praça Marquez do Herval e

a denominação “José de Alencar” fica para seu jardim.

Nessa época, as praças possuíam jardins que tinham

nomes próprios, diferente do nome da praça. A praça

só receberia definitivamente o nome de José de Alencar

em 1938.

A presença do Theatro José de Alencar e da estátua

do escritor foram fundamentais para a nomeação defi-

nitiva. O decreto número 392, de 3 de agosto de 1938

é bem claro em relação a isso: “Considerando que na

atual Praça Marquez do Herval estão localizados o tea-

tro e a estátua de José de Alencar, sendo este o nome

porque aquela geralmente é conhecida, ficará denomi-

nada “Praça José de Alencar”, dando-se a denominação

de “Marquez do Herval” a um logradouro a ser inaugu-

rado nesta capital”, é o que diz o documento.

A Praça José de Alencar era um dos lugares mais

bonitos de Fortaleza, com belos jardins e bancos de

madeira. Era freqüentada por pessoas importantes da

sociedade: gente da política e da alta classe. Institui-

ções de prestígio funcionavam ali, como o Batalhão

de Segurança, responsável pela paz e ordem pública

de Fortaleza e a Escola Normal Pedro II, que funcio-

nou naquele lugar de 1825 a 1923. Durante um bom

tempo, a Praça José de Alencar sustentou todo seu

encanto e beleza. Mas, durante a década de 1950, co-

meçou a ser desgastada, principalmente pelo aumento

do comércio nas ruas do centro. Nessa década, a praça

passou a servir de espaço para a realização de feiras-

livres aos sábados e domingos. Durante a administra-

ção estadual de Valdemar Alcântara, a praça ganha sua

primeira reforma, sendo reinaugurada e entregue à

população no dia 13 de dezembro de 1979, com uma

grande festa de comemoração.

anterior à construção do Theatro José de Alencar, que

seria iniciada em 1908.

Em 1910, o teatro estava pronto e deu-se sua inau-

guração. Com a presença do teatro, a praça passou a

ser popularmente chamada de José de Alencar. Em

1929, em comemoração pelos 100 anos de nascimento

do escritor cearense, o nome da praça é oficialmente

mudado para Praça José de Alencar e um monumento

com uma estátua do escritor no topo, é construído bem

no meio da praça, em frente ao teatro. Em 1932, o lu-

gar tem seu nome alterado mais uma vez, voltando a

ser oficialmente chamado de Praça Marquez do Herval

e a denominação “José de Alencar” fica para seu jardim.

Nessa época, as praças possuíam jardins que tinham no-

mes próprios, diferente do nome da praça. A praça só

receberia definitivamente o nome de José de Alencar

em 1938.

A presença do Theatro José de Alencar e da estátua

do escritor foram fundamentais para a nomeação defi-

nitiva. O decreto número 392, de 3 de agosto de 1938

é bem claro em relação a isso: “Considerando que na

atual Praça Marquez do Herval estão localizados o teatro

e a estátua de José de Alencar, sendo este o nome por-

que aquela geralmente é conhecida, ficará denominada

“Praça José de Alencar”, dando-se a denominação de

“Marquez do Herval” a um logradouro a ser inaugurado

nesta capital”, é o que diz o documento. A Praça José de

Alencar era um dos lugares mais bonitos de Fortaleza,

com belos jardins e bancos de madeira. Era freqüentada

por pessoas importantes da praça, fazendo dela seu

palco de expressão e existência. Encontramos também

gente muito trabalhadora: vendedores de todos os tipos

de produto, de calcinha e cueca até verduras e pomadas

milagrosas, passando por lanches, serviços e arte. Sim,

tem vendedor de arte na José de Alencar. Vendedores da

própria arte. Arte de fazer coisas que prendem a aten-

ção de quem passa, como o Quebra Coco.

A Praça José de Alencar é um verdadeiro teatro, loca-

lizado em frente ao teatro de mesmo nome. Enquanto o

Theatro José de Alencar apresenta espetáculos fictícios,

a Praça José de Alencar apresenta espetáculos reais, que

são encenados, assistidos e aplaudidos ou vaiados pelo

povo. É o teatro do povo. Pois é aqui onde encontramos

o povo da cidade de Fortaleza, vivendo seus dramas e

alegrias, vivendo suas histórias. A Praça José de Alen-

car é um lugar de estórias, que tem uma longa História

própria.

No final do século 19, quando começou a ser consi-

derada como praça, o local não passava de um grande

espaço vazio no meio de quatro ruas, como um quartei-

rão que não foi construído. Com o movimento das pes-

soas nas ruas e com a presença de Igreja Nossa Senhora

do Patrocínio, o lugar começou a ter função de praça e

passou a ser percebido como tal.

Era a Praça do Patrocínio, nome extra-oficial dado

pelo povo, devido à igreja. Essa época é anterior a

1870, ano em que o lugar foi oficialmente batizado com

o nome de Praça Marquez do Herval, em homenagem

ao patrono da Cavalaria do Exército Brasileiro, Manuel

Luiz Osório, conhecido como Marquez do Herval. Mas

o nome não pegou e o lugar continuou a ser chamado

de Praça do Patrocínio.

Em 1890, o lugar é mais uma vez batizado, dessa vez

com o nome pelo qual já era conhecido: Praça do Pa-

trocínio. Nessa época, nos seus primeiros anos, era um

dos lugares mais bonitos de Fortaleza, com postes de

iluminação a gás e um jardim bem cuidado e florido.

No centro da praça, um pavilhão coberto que abrigava

os discursos populares e políticos, além de servir de

palco para bandas que tocavam valsas e xotes. Estamos

em uma época anterior à construção do Theatro José de

Alencar, que seria iniciada em 1908.

Os belos janrdins da praça deram lugar para calçadas, areia e capim.

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30 31

Mas o tempo não demoraria a fazê-la decadente. A

grande movimentação de pessoas atraídas pelo comár-

cio do centro da cidade não deixaria a praça recuperar

seu esplendor do passado. A praça começa a ser habi-

tada por identidades marginais. Estamos da década de

1980 e a praça passa a ser fim de linha e ponto de ônibus

para o transporte coletivo de Fortaleza. Surgem crianças,

moradoras de rua, fazendo assaltos e pequenos delitos.

Instala-se o comércio ambulante vendendo todo tipo de

mercadoria. A Praça José de Alencar começa a ser espaço

de trabalho para prostitutas, devido à presença de bote-

cos reunindo bêbados. Era o começo do que é hoje.

Atualmente, o jardim da praça não é mais que

certa quantidade de areia misturada ao capim surrado,

e a maior parte do chão é coberta por calçada. O mo-

numento com a estátua de José de Alencar continua lá,

e serve de encosto para mendigos e pessoas que param

para descansar. Diariamente, grande quantidade de pes-

soas passa pelo local. São pessoas que trabalham no cen-

tro da cidade ou que estão apenas passeando ou fazendo

compras. É um movimento intenso de gente. Um vai e

vem de corpos que faz da José de Alencar um lugar di-

nâmico, cheio de acontecimentos e episódios: assaltos,

gente passando mal, gente se esbarrando, brigas pesso-

ais, conversas, crianças chorando, correria, vendedores

anunciando aos berros seus produtos Esse é o clima da

José de Alencar.

E ela é assim todos os dias, exceto aos domingos,

quando as lojas do centro estão fechadas e a praça fica

praticamente vazia. Nos dias da semana, segunda a sá-

bado, o movimento começa por volta das sete e meia da

manhã e vai até as primeiras horas da noite, quando as

pessoas começam a ir embora e as ruas do centro ficam

semi-desertas. Mas nem quando chega

essa hora, a praça pára. Começa o movi-

mento dos botecos. É hora das prostitu-

tas venderem seus corpos aos homens

que se aglomeram para “fazer farra”

depois do trabalho. A praça passa a ser

um ambiente hostil para os que não a

freqüentam nesse horário.

Desde o início da manhã até a ma-

drugada, o cotidiano da Praça José de

Alencar é marcado pelo comércio, que é

movimentado pelos vendedores ambu-

lantes (nômades ou fixos), engraxates e

comerciantes do Beco da Poeira. Alguns

ambulantes ficam transitando, com suas

mercadorias agregadas ao corpo, e gri-

tando o preço e as vantagens para quem

comprar seus produtos. Outros ficam

parados, em suas barraquinhas. Vendem

batata frita, pastel e outros aperitivos

salgados, além da questionável salada

de frutas. Tem vendedor de antena, pi-

lha, caneta, controle-remoto, pomadas,

plantas medicinais, roupas e até estimu-

lantes sexuais, para os que sofrem do

mal. Na rua 24 de Maio fica o Beco da

Poeira, conhecido centro de comércio

popular. A presença do Beco da Poeira

aumenta o movimento na Praça José de

Alencar. Beco e praça estão sempre inte-

ragindo e trocando “públicos”.

Como um lugar de expressão popular,

a Praça José de Alencar também carrega

um aspecto religioso. Ela é espaço para

os que querem, em nome de Deus (ou

não), professar sua fé. São evangélicos

que vêm até a praça dar testemunho de

cânceres curados e informar sobre o fim

dos tempos, chamando toda a popula-

ção para uma conversão imediata, a fim

de garantir a salvação eterna para todos.

É quase sempre assim o discurso dos

“crentes”, como são chamados. Alguns

vêm ocasionalmente à José de Alencar,

“pregar a palavra”, outros já são conhe-

cidos por terem dias específicos para

fazer a “pregação”. Algumas pessoas

ouvem atentamente o que está sendo

dito. Outras param, olham e riem, con-

siderando o crente como um palhaço e

achando ridículo uma pessoa parada no

meio da praça soltando berros religio-

sos. E ainda há as videntes. Elas estão

sempre caracterizadas com vestidos

longos e coloridos. Abordam as pessoas

afirmando serem capazes de adivinhar

o futuro lendo a palma de suas mãos.

Tem gente que acredita e paga para ter

as mãos lidas, outros se aborrecem com

a ousadia das videntes, que geralmente

abordam as pessoas segurando-as pelo

braço, pegando-as de surpresa.

Muitas pessoas transitando, artistas se

apresentando e o comércio vendendo.

A Praça José de Alencar é, sem dúvida,

um lugar de agitação. Do alto do monu-

mento, José de Alencar, com uma mão

no peito e outra segurando uma caneta,

parece lançar um olhar observador so-

bre a praça. Ele talvez seja o único que

sabe de todos os personagens e histó-

rias que circulam na Zé de Alencar.

Nem a Homenagem ao escritor José de Alencar escapou da panfletagem com propaganda.

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Praça Portugal vista do alto: formas quadradas

Por Larissa Viegas

O CORAÇÃO DA ALDEOTA

O formato circular é único e chama atenção pelo tamanho e simetria. Vista do alto, o círculo se completa com as formas quadradas e retan-gulares do comércio e dos edifícios da região. A Praça Portugal, como que assinalasse o coração do bairro Aldeota, é um diferencial na capital cearense. Como uma nave espacial dos filmes de ficção, está no centro de duas das maiores e mais movimentadas avenidas do bairro, Dom Luiz e Desembargador Moreira. Por isso, vive, literalmente, circulada por muitos veículos, durante o dia inteiro.

A praça é Considerada o coração da Aldeota.

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34 35

O verde da natureza é pouco. Algumas árvores

compõem o cenário e no meio do tráfego de veículos,

ainda é possível ouvir o cantar de poucos pássaros. O céu

azul, com poucas nuvens brancas como algodão, dá um

toque contrastante, em meio ao mar de prédios coloridos

e de diversos tamanhos que circundam a praça.

Nem só a forma do espaço é curiosa. Apresenta ainda

alguns pontos que, muitas vezes, são passados desperce-

bidos. Em cada recanto do cruzamento das avenidas há

uma banca de jornais e revistas e um ponto de táxi. Nes-

ses canteiros também é possível encontrar a tradicional

banquinha do Paratodos (também conhecido como Jogo

do Bicho), quiosque que vende tapioca e churrasqui-

nho, uma agência do Bradesco, vendedores ambulantes,

o Shopping Bambuy, com sapataria, boate e butique e,

claro, o Shopping Aldeota.

Os shoppings, construídos em formato da letra “L”, se-

guem os cantos da praça. Se a Praça Portugal, os cantei-

ros e o shoppings fossem peças de quebra-cabeça, estes

se encaixariam perfeitamente. A vista do vigésimo andar

da torre comercial do shopping Aldeota, no escritório da

SecrelNet prova que, no meio de tantos prédios, o céu

ainda toca o mar e pontos verdes ainda compõem a pai-

sagem da cidade.

Lugar de encontro de muitas gerações, há 20 anos a

praça era bem mais movimentada, tão quanto a atual Ave-

nida Beira Mar. Todas as sextas-feiras era quase impossível

estacionar os carros. Os jovens se encontravam principal-

mente na fonte ( já desativada), na parte central.

O extinto Shopping Portugal era a principal atração. Em

seu lugar há uma obra, a qual, futuramente, dará lugar a

mais um edifício, dentre muitos outros que já existem

ao redor do grande círculo. Ponto de saída para festas

ou apenas para “jogar conversa fora”, jovens, que agora

são pais, freqüentaram a praça com planos de diversão,

apenas.

Hoje, aos sábados, encontrar um espaço para sentar

na grama verde da praça é quase impossível. Agora ela é

freqüentada por jovens das mais diferentes tribos, com

ideologias opostas, mas que possuem o mesmo objetivo

dos mais antigos: se divertir.

Pontas de cigarro completam o cenário de garrafas de

cachaça, vodka e refrigerante. Os flashes das câmeras

(digitais, é claro) surgem a cada minuto, iluminando a

noite de céu estrelado. A cor, independente do grupo, é

a preta. Maquiagem, blusas, calças, meias, tênis All Star.

Tudo preto.

O cenário da Aldeota começa a mudar às 18 horas. Me-

ninos, meninas, rapazes e moças, que têm entre 14 e 19

anos, são os representantes oficiais de tribos como RPG

¹, Emos ² e Otakus ³. A ida dos jovens à praça causa as

mais diversas opiniões em comerciantes e moradores da

região.

SEGURAnÇA EM PRIMEIRO LUGAR

De dentro do Shopping Aldeota, tudo parece estar nos conformes. Os seguranças, de ternos impecáveis e pon-tos de escuta nos ouvidos, rondam o local com o objetivo de manter a ordem e a segurança de lojistas e clientes.

Na parte administrativa, Lúcio Flávio Batista da Silva é o responsável pela brigada de incêndio. Em seu uniforme de bombeiro e nos coturnos, Lúcio, um simpático e calmo rapaz, apesar da profissão, alega que nunca houve qualquer caso em que foi preciso acionar os bombeiros, seja na parte interna do shopping ou na praça.

Ao contrário da situação física do shopping, a região

da praça pega “fogo” aos sábados. Quando os jovens

freqüentadores da Praça Portugal entram no Aldeota,

Leonardo de Melo, segurança do Shopping, dobra a sua

atenção. A “baderna”, como o segurança diz, pode come-

çar num simples piscar de olhos. A primeira impressão

não é a que fica quando se faz referência aos freqüenta-

dores da praça. A maioria possui comportamento exem-

plar. São raros os atos de vandalismo. Mesmo assim, com

as “antenas” sempre ligadas, os seguranças se comuni-

cam com freqüência quando vêem um “montinho preto”

caminhando na parte interna do shopping. E o trabalho

dos “homens-de-preto-com-gravatas” redobra.

Durante a semana o movimento do Aldeota é tranqüilo.

Trabalhando como segurança do complexo de lojas há

um ano, Leonardo nunca presenciou algo mais grave no

local. A segurança do shopping está restrita à calçada. Al-

guns passos à diante é responsabilidade da nunca vista

guarda municipal. A violência, tão presente em Fortaleza,

nunca fez vítima na porta do shopping. Não há registro

de assaltos. Mas, mesmo assim, todo o cuidado é pouco.

Não é difícil ver clientes pedindo aos seguranças que os

acompanhem até os seus veículos. O medo é visível: ao

atravessar a porta do Aldeota, as pessoas olham para os

dois lados. A presença de mendigos faz com que elas an-

dem mais rápido.

AnTES DE IR à PRAÇA...

Parece um ritual. Eles se encontram no Mc Donald´s,

vão ao Pão de Açúcar e passam o resto da noite se diver-

tindo. Seja bebendo, fumando, lanchando ou conver-

sando: a noite é o cenário e o palco é a praça.

Antes de tudo, um papo no Mc Donald´s. Quem

passa na porta, pensa que está havendo uma promo-

ção imperdível por causa do tumulto. Mas, olhando de

perto, nada mais é do que grupos reunidos. Detalhe:

sem qualquer bandeja da lanchonete à frente.

As mesas da parte externa são ocupadas e, com fre-

qüência, a gerente Ana Cristina precisa pedir para que

os jovens se retirem para dar espaço a algum cliente. O

pedido é feito uma, duas, cinco, dez vezes para grupos

diferentes em apenas um sábado. Felizmente, o stress

não é tão grande. Os (pré-)adolescentes resmungam,

mas não negam a solicitação.

Ana Cristina, funcionária da lanchonete do Aldeota há

um ano, sempre viu a praça lotada. Mesmo assim, o con-

sumo dos jovens no Mc Donald´s é pequeno. Apesar

disso, as vendas são boas. A localização da lanchonete,

em frente à praça e em um bairro nobre, é um fator fa-

vorável. Muita conversa. Muito cigarro. A fome e a sede

começam a bater. A solução para esses problemas está

no térreo do shopping. O supermercado Pão de Açúcar

é a fonte. As bebidas alcoólicas (vendidas apenas aos

maiores de 18 anos) são acompanhadas de refrigerante,

salgadinhos tipo Cheetos e Ruffles e biscoitos doces.

Antes de passar no caixa, durante as compras, os jo-

vens “aprontam” um pouco, como disse o gerente (a

loja não permite a divulgação do nome de seus funcio-

nários). Eles cantam, dançam e brincam nos corredores.

Biscoitos são arremessados de um lado para o outro, as

vozes ecoam. Parece que tudo é motivo de festa.

Os clientes se sentem incomodados. Uma vez, con-

fessa o gerente, jovens ainda quiseram andar de skate

no supermercado, mas não resistiram quando foram

“barrados” pelos seguranças. Mesmo assim, nenhuma

confusão entre clientes, “arruaceiros”, administradores

e seguranças. O preconceito ainda é grande. Tudo que

é diferente incomoda. E o Pão de Açúcar não foge à re-

gra. O gerente já recebeu inúmeras reclamações. Não só

pela bagunça, mas também pelo jeito deles se vestirem

e se maquiarem. “Estranhos” e “esquisitos” são adjeti-

vos bastante usados.

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ExPECTADORES

Como em toda área movimentada, na Praça Portugal

também há um local de apostas do Jogo do Bicho. O

responsável pela banquinha de madeira com uma placa

branca escrita “PARATODOS” com letras vermelhas é

Leôncio Ferreira, que não sabe exatamente há quanto

tempo trabalha no ramo.

Os clientes saem da rotatória, estacionam os carros

próximos aos táxis, descem, fazem suas apostas e vão

embora. Nada de jovens, gritaria, baderna ou qualquer

outra coisa. Seu expediente é das 9 às 17 horas.

Seu Leôncio vê, diariamente, centenas de carros pas-

sando à sua frente e algumas batidas, como ele mesmo

diz, “bestas”. A praça só recebe visita de pássaros, garis e,

no final do ano, decoradores para embelezar o período

de festas natalinas.

Já no comércio da leitura a história é um pouco dife-

rente. Os clientes, fiéis, visitam diariamente as bancas de

Danilo de Almeida, dono, há menos de um ano, de duas

das quatro bancas da praça.

As duas ficam em frente aos dois shoppings da praça e

próximas aos pontos de táxis. A primeira, a mais antiga,

na idade e na aparência, fica em frente ao Aldeota. A se-

gunda, construída mais recentemente, está localizada no

canteiro do Shopping Bambuy. O proprietário anterior

ocupou os pontos por mais de 18 anos.

Assim, como na aparência e nos funcionários, as ban-

cas se diferenciam também no quesito público, principal-

mente nos fins de semana. Os freqüentadores da praça

aos sábados visitam a banca próxima ao Aldeota. Danilo

reclama e, com ar de chateação, diz que eles não são

bons compradores.

A organização não é o forte desses adolescentes. Ao

entrar na banca, sempre em grupo, mexem nas revistas e

fazem uma “pequena bagunça”, como Danilo cita, a qual

muitas vezes, é preciso ser interrompida pelos funcioná-

rios. O local fica uma desordem quando eles saem.

Os jovens maiores de idade consomem apenas cigar-

ros, mas em grande quantidade. Maços e mais maços são

vendidos por final de semana. As “mini-chaminés” igno-

ram os doces e a cultura que está presente no estabeleci-

mento de dois metros quadrados. Os jornais só recebem

atenção quando eles sabem que terá alguma informação

que os interessa ou algo sobre eles.

A outra banca, apelidada pelos jovens de “banca tecno-

lógica”, recebe um público bem diferente. São pessoas

mais adúltas e moradores da região. Diariamente são

vendidos livros, revistas e jornais para elas.

Apesar do pequeno espaço e da aparente desor-

ganização, as bancas têm boas opções. Além dos serviços

básicos de jornais e revistas, também é possível comprar

refrigerantes, cigarros, balas, chocolates, salgadinhos

como Fandangos, sorvete, picolé e livros.

“CAnTO” BAMBUy

O trabalho do taxista que fica no ponto da Praça Portugal é tranqüilo. O carro muitas vezes vira casa e os bancos, ca-mas. É comum encontrar um taxista cochilando, principal-mente depois do almoço. Quando não, estão conversando ou falando ao celular. Os rádios estão sempre ligados, es-perando algum chamado.

A paisagem e a calma da semana torna o trabalho menos estressante. Mesmo assim, é cansativo esperar que mora-dores da redondeza e turistas busquem seu serviço.

Aderaldo Soares de Morais Filho trabalha no ponto em frente ao Shopping Bambuy há dois anos, desde

que se tornou taxista. Sobre os freqüentadores da praça, nada a declarar. “Não são meus clientes”, ele diz. Mas na hora de descrever, seu Aderaldo é preciso: “Eles vêm a pé, todos vestidos de preto. Não ‘dou muito valor’ a eles”. Mas, antes que receba algumas vaias ou críticas ele justifica sua opinião dizendo que seu pensamento seja este, talvez, por ser de outra geração.

Tapioca, prato típico do Ceará. Há restaurantes, lancho-netes e quiosques especializados em qualquer lugar: nas estradas, nos shoppings, nas ruas, em colégios e supermer-cados. E na Praça Portugal não poderia ser diferente. O quiosque de Maria José está na calçada do Shopping Bam-buy, em frente à sapataria Meia Sola.

Dona Maria é uma das duas sócias do quiosque, no qual trabalha há um ano. O ponto existe desde a abertura do shopping. A clientela é a mais variada possível. Funcioná-rios das lojas, moradores da cidade, turistas...

Os freqüentadores dos sábados não incomodam nem interferem no trabalho de dona Maria. Mesmo assim, os funcionários do shopping não gostam deles. O motivo: ba-nheiro. O banheiro do shopping é público. A bagunça e a sujeira que eles fazem incomodam.

Mas esse é um problema mais fácil de resolver. O incô-modo maior são os mendigos. A presença dessas pessoas, para dona Maria, gera uma má visão do shopping e do seu comércio.

É inevitável a aproximação deles, principalmente quando as pessoas estão comendo. A prefeitura não consegue re-solver esse problema que incomoda não só a ela, mas a todos da praça. Sobra para os seguranças do shopping re-solverem essa questão.

Mas não são apenas os mendigos que incomodam os co-merciantes do Shopping Bambuy. Duas vendedoras da loja Moda.com, que pediram para não ser identificadas, dizem que a localização do shopping prejudica as vendas. As ár-vores escondem o letreiro da loja e não há estacionamento gratuito (o estacionamento do shopping é Zona Azul, no qual o cliente precisa pagar uma taxa para ocupar uma das poucas vagas existentes).

Alguns freqüentadores estacionam no local, mas não sabem que o estacionamento é pago, passando por cons-trangimentos na hora de retirar o veículo. O movimento da loja é pequeno. A clientela é fiel e de classe média/alta.

As vendedoras acham que os freqüentadores da praça não prejudicam as vendas, já que a loja encerra seu ex-pediente antes da praça estar cheia. Até o momento, não receberam reclamações dos clientes.

No centro da praça, monumento presta homenagem aos portugueses.

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Quatro pontos de táxi nos quatro cantos, da praça Portugal.

OS “OCUPAnTES” DA PRAÇA

Jovens. Classe média/alta. Ambos os sexos. Al-

guns (poucos) assumem a bissexualidade ou a homosse-

xualidade. Muitos freqüentam a Praça Portugal escondi-

dos dos pais, por medo do que eles possam dizer.

Eles dizem que não se encaixam em nenhuma

tribo, que estão lá “só para curtir”. Freqüentam a praça

há mais de três anos, quase todos os dias da semana,

todos os sábados. São moradores da Aldeota. Não se-

guem estilos e se denominam “grupo restrito” ou “es-

quadrilha da fumaça”.

Durante a conversa, Caio, Jonatan, Michel, Fe-

lipe, Iuri e o outro Caio, tragam seus cigarros, quase sin-

cronizadamente. A bebida ainda não está na roda porque

é dia. Quase todos são maiores de idade. Drogas ilícitas

não fazem parte dessa tribo, ao contrário de algumas ou-

tras, que eles dizem fumar maconha.

Quando a “esquadrilha da fumaça” não está na

praça, seus integrantes gostam de jogar futebol e tentam

andar de skate na beira mar ou na própria praça. Ao con-

trário do que se pensa, as tribos vivem “em paz”. Não há

brigas. Cada uma respeita o espaço da outra. A tribo “da

moda” são os Emos, com maior número de “integrantes”.

UM AMBIEnTE DIFEREnTE

Este é o cenário da Praça Portugal. Uma praça

que, além do movimento de pessoas, registra grande

fluxo de veículos, a qualquer hora. O comércio está fun-

cionando normalmente. E o movimento é maior no final

de novembro, quando o Natal já está próximo. O trânsito

flui lentamente, pois é noite de sábado. Pessoas atraves-

sam as ruas correndo, jovens se divertem na praça.

Uma explosão inicia uma seqüência de três ou-

tras. Os seguranças se preocupam. Os pedestres se assus-

tam. Todos procuram de onde vieram os sons. Ah, tudo

bem! Nada de mais. Foram “só” alguns jovens que subi-

ram na armação da árvore de Natal da praça e lançaram

algumas bombinhas. Nada que a polícia, que apareceu

logo em seguida, não resolva.

Assim são os jovens. Independente da tribo a

qual pertencem, sempre surpreendem, sempre conse-

guem o que querem: chamar atenção.

No bairro de Fátima, exatamente na avenida 13

de Maio, Zona Oeste de Fortaleza, foi construída a Igreja de

Nossa Senhora de Fátima. Marilza Castro era muito criança,

mas ainda lembra da inauguração do templo católico, em

1958. “As mesmas formas de hoje, mas não tão bonita como

agora”. Marilza, como suas duas irmãs, nasceu no bairro,

na mesma casa, nos fundos da igreja, onde mora até hoje.

“Aqui era só mato. Havia poucas casas e, às vezes, a mamãe

pedia para um rapaz cortar o capim até a avenida. Depois

da minha casa não havia mais nada”.

Com o tempo, casas começaram a ser construí-

das nas redondezas. O local onde hoje está a pracinha, na

frente da igreja, não passava de um terreno com algumas

árvores e um campo de futebol de areia. “Um lugar comum,

sem nada que chamasse a atenção. Apenas um terreno que

poderia ser aproveitado”, recorda a moradora, e que logo

começou a ser aproveitado.

Numa cidade onde parecia não ter nada interes-sante foi exatamente este local o escolhido por eles, os ci-ganos. “Eles começaram a chegar e montaram suas tendas. Tudo aquilo era muito divertido para as crianças. Imagina, ciganos de todas as partes do Brasil, vindos até de mais longe, do exterior”! Marilza, com saudade estampada no rosto, mas feliz por lembrar de momentos nunca mais revi-vidos de sua infância, contava que sempre que conseguia, dava uma escapadinha de suas obrigações e corria até o grupo instalado perto de sua casa para que “aquelas mo-ças” tirassem o tarô e lessem sua mão para saber mais so-bre seu futuro. Principalmente as meninas se interessavam mais sobre o assunto, as previsões de futuro, como tam-bém “era bom de estar com aquele pessoal alegre e muito, mas muito bonito”, deixa escapar todo o encatamento.

Por Eduardo Carra

A PRAÇA SEM nOME,OU QUASE

O santuário de nossa senhora de Fá-tima é um templo de romaria e fé dos católicos.

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Com um terreno, livre e desocupado, na frente de uma igreja, era difícil não acontecer nada por ali. “Veio um circo! Tinha a lona parecida com as barracas das ciganas, sendo maior e colorida e só uma”. Mas, o circo não mar-cou muito a menina Marilza. Na sua lembrança aquele era apenas mais um circo divertido que estava perto da casa dela, com animais e palhaços. Reuniam-se as três irmãs para assistir aos espetáculos, já esquecidos hoje. E o circo também teve sua hora de partir. “O que mais poderia ocupar agora aquele lugar”? Era o que causava a sensação de saudade em ver o circo, abaixando o empa-nado e partindo.

Década de 1960. Marilza já adolescente não se lembra

ao certo quando começou a construção da pracinha na

frente da igreja. “Só sei sei que foi na década de sessenta,

não me lembro de data, meu amigo”. Esta construção

marcaria a história daquele local para sempre. A pracinha

foi concluída. Linda e limpinha, mas sem algum propó-

sito maior de funcionar algo em especial.

Mas, foi nos anos 1970 que teve inicio uma tradição

que marcou época. Atualmente, os padrões sociais e a

diversidade da feirinha da “Pracinha da Igreja”, como o

local passou a ser chamado, já não chega a ser o que foi.

Os freqüentadores da feirinha eram as pessoas ricas do

bairro e também de outros da cidade. “De tudo havia lá,

amigo, e as madames compravam roupas e bijuterias.

Funcionava como um shopping mesmo, que também

recebia barraquinhas de comida”. Uma feirinha muito

bem freqüentada e sem violência, coisa que Marilza faz

questão de ressaltar.

Por ser uma área desprotegida e freqüentada pela alta-

sociedade do bairro, começaram a rondar marginais que

desprestigiaram o local. O movimento e as vendas caíram

e a “Pracinha da Igreja” passou a ser local de encontro de

assaltantes e traficantes de droga. “Aconteceram algumas

reformas nos anos oitenta que não deram em nada. Lim-

pava, concertava, aparava e logo, logo se acabava tudo,

pois não havia segurança”, disse a moradora.

Por bom tempo, a praça ficou com a imagem de um espaço público sujo e perigoso. Em meados da década de 1990 este quadro começou a se inverter. Após outra reforma, as pessoas voltaram a freqüentar outra vez a fa-mosa Pracinha da Igreja de Fátima, que todo dia 13 de cada mês lota de fiéis, que vão à igreja fazer suas preces e homenagear a santa, e também de comerciantes ven-dendo objetos religiosos. A revitalização pelos moradores existia, mas por parte da prefeitura não passava de algu-mas pequenas obras feitas e pronto.

“Se não me engano teve uma reforma em 2001 que também não adiantou muito. E esta última reforma, que começou no final da administração Juraci Magalhães, e

foi completada e está sendo mantida pela Luiziane, foi a que fez diferença”, ressalta a moradora. A pracinha mu-dou de cara. Reformaram-na por completo, melhoraram o transito no seu entorno, redesenharam todas suas ca-racterísticas, tornaram-na mais agradável e finalmente co-locaram o que faltava para Marilza: seguranças.

Hoje, a pracinha continua com a feirinha, mas não tão

“bem freqüentada” como antes. Conta com quiosques,

que substituíram as barraquinhas de comida, possui uma

programação de eventos para jovens como música e es-

porte, e está policiada e conservada.

- E o nome da praça?

- O nome? O nome, não sei. Meu amigo, faça assim,

quando você passar pela praça, olhe uma pedra que tem

lá, com uma placa que deve ter o nome.

A pedra para a placa existe. A placa não. Foi arran-

cada. E a famosa pracinha da Igreja de Fátima continua

sem uma referência ao seu homenageado. Para aqueles

que não sabem, assim como a Marilza, o nome oficial

é Praça Pio IX.

Poucas pessoas têm o conhecimento de que o verdadeiro nome da pracinha da igreja de Fátima é uma homenagem ao Papa Pio IX.

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???

A primeira casa do primeiro conjunto construído à

beira do Lago Jacarey foi comprada por José Carlos Fer-

reira Maia, 62, em 1980. A Construtora Cearense anun-

ciou na seção de imóveis dos anúncios populares o início

do empreendimento que ficou conhecido como Mansões

do Lago, na Avenida Viena Weyne. Cada uma das sete pri-

meiras casas, todas de pavimento térreo, custava em torno

de quatrocentos mil cruzeiros. A preços de hoje, valem

R$180.000,00, em média.

Desde sempre, o bairro Cidade dos Funcionários com-

preende toda a extensão da Avenida Oliveira Paiva, desde a

BR-116 até a Avenida Perimetral - atualmente denominada

Avenida Washington Soares - no cruzamento conhecido

como Seis Bocas, exatamente onde funcionava o restau-

rante Toca do Coelho (é o novo!!). Descendo 400 metros

à direita na metade da Oliveira Paiva, sentido leste-oeste,

chega-se ao lugarejo da Cidade dos Funcionários conhe-

cida como Lago Jacarey. Seu Maia relembra como era di-

fícil o acesso, e mais difícil ainda a aceitação da família

em mudar-se para a sonhada casa própria. Os dois filhos

adolescentes e a esposa saíram a contragosto do sobrado

alugado na Aldeota, na Rua Torres Câmara, reclamando

do isolamento e da distância da nova morada. Para piorar

o fato de que apenas uma linha de ônibus servia o local,

fazendo a rota Praça do Coração de Jesus - Cidade dos

Funcionários via BR-116, a instalação de aparelhos telefô-

nicos na área era um luxo para poucos. Além de ser caro,

por vezes demandava tráfico de influência envolvendo al-

gum “peixe” da extinta Teleceará.

Apesar da falta de infra-estrutura e das constantes recla-

mações familiares, Seu Maia se sentia realizado. A beleza

e a paz do local lhe davam a certeza de ter feito um bom

negócio, que dentro em breve seria reconhecido pelos

que lhe condenavam naquele momento. Em frente à casa,

nascentes de água limpa brotavam do solo e abasteciam

o Lago Jacarey. No entorno, o matagal, abrigo natural de

cobras e escorpiões nativos, os quais eram motivo de mais

uma dentre as tantas queixas da família recém-chegada.

De quando em vez, a invasão dos abomináveis vizinhos

no território dos Maias obrigava os novatos a fatídica mis-

são de exterminar os peçonhentos. O passo seguinte era

exibir ao pai o monstro abatido como troféu, na tentativa

inútil de convencê-lo a mudarem dali.

E por falar em inutilidade, nada se compara a placa indi-

cativa com a inscrição BAIRRO CAMBEBA, afixada na praça

do Lago pela Prefeitura de Fortaleza, faz uns cinco anos. É

perda de tempo querer convencer a nós, moradores, em

plena praça, que o Lago é parte do Cambeba. Por mais

que a placa insista negando, “o Lago é bem aqui, o filé da

Cidade (dos Funcionários), e o Cambeba é lá acolá, pras

bandas da Messejana! Esse povo lá sabe de nada!”, bron-

queia o Maia, cheio de razão e de vontade de arrancá-la.

COPACABAnADO CAMBEBA

TEM JACARÉ Aí, MEnInO!

Difícil saber de onde vem a palavra Jacarey. No Auré-

lio, consta a grafia com “i” no final, e designa o nome de

uma planta da família das ramnáceas, da qual o juazeiro

é a espécie mais conhecida. Dentre os moradores mais

antigos, não há notícia de um só pé de juá nos arredo-

res, vivo ou derrubado nos últimos 30 anos. Ou seja,

no dicionário da língua portuguesa o significado não

guarda qualquer semelhança com a denominação dada

ao Lago.

A profundidade media aproximadamente dois metros

e meio e conta-se que, ao longo dos últimos trinta anos,

uma meia dúzia de pessoas, crianças e adultos, morre-

ram afogadas em suas águas. Esses mesmos moradores

falam de um tempo em que ali habitavam jacarés, mas

não há qualquer relato que confirme a preexistência de

répteis crocodilianos. No máximo, horripilantes répteis

como cobras e escorpiões e o mais asqueroso dos batrá-

quios, famoso sapo-cururu. Alguns dizem Jacaraí, ou-

tros Jacareí, mas são unânimes em difundir o folclore do

bairro que dá conta de que a origem da palavra vem da

aglutinação de jacaré+aí, talvez criada para amedrontar

as crianças e assim livrá-las de situações de perigo.

COPACABAnA DO CAMBEBA

Distante duas quadras do Lago, no rumo do Cambeba,

mora a aposentada Lemirte Pinheiro de Castro, 71, ex-

professora de Geografia do ensino médio, que chegou ao

bairro em 1976. Disposta a terminar o namoro da filha com

um rapaz que não lhe era bem-visto, restou-lhe deixar a

casa própria do Parque Araxá, assumindo pesadas presta-

ções para aquisição do novo imóvel. Também para ela não

foram poucas as queixas de seus familiares, e com a agra-

vante de que Dona Lemirte odiou o local desde o primeiro

dia. “Tudo era difícil, tudo era longe. Aqui era só brejo”,

diz, apontando para a rua. Ela conta que um dia cansou

de se martirizar, de esconder a filha e de esconder-se a si

própria. Substituindo auto-piedade por determinação a

viver melhor, saiu de porta em porta conclamando os vi-

zinhos para juntos iniciarem uma espécie de mutirão de

melhorias. Com a primeira quantia arrecadada contrataram

calceteiros - profissionais que trabalham na pavimentação

de ruas - e aos poucos foram desmatando, sentando pedras

e fincando placas nas ruas, como forma de minimizar o iso-

lamento que muitas vezes implicava no não recebimento

de correspondência e na falta de prestação de serviços do-

miciliares, como farmácias, gás butano etc.

Por Denise Gurgel

A primeira casa do primeiro conjunto construído à beira do Lago Jacarey foi com-prada por José Carlos Ferreira Maia, 62, em 1980. A Construtora Cearense anunciou na seção de imóveis dos anúncios populares o início do empreendimento que ficou conhecido como Mansões do Lago, na Avenida Viena Weyne. Cada uma das sete pri-meiras casas, todas de pavimento térreo, custava em torno de quatrocentos mil cruzei-ros. A preços de hoje, valem R$180.000,00, em média.

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Em pouco tempo os serviços coordenados por Dona

Lemirte chegaram ao Lago. Com as contribuições regula-

res de aproximadamente 50 moradores pagavam-se tra-

balhadores pela capinagem periódica das margens, cerca

de 500 metros de contorno. Aberto o acesso ao espaço,

a combinação entre a necessidade de lazer das crianças e

o tempo livre dos pais nos finais de semana resultou na

rotina dos piqueniques, oportunidade para todos farta-

rem-se de nadar e de comer camarões pescados na hora.

À época, apelidaram o lugar de Copacabana do Cambeba,

onde permaneciam até o limite do pôr-do-sol. Mais que

isso, impossível, pelo menos para quem tem sangue nas

veias. O coaxar eufórico da saparada funcionava como

toque de recolher, anunciando a pontualíssima chegada

dos mosquitos hematófagos. Às pressas e com o que res-

tava de iluminação natural juntavam-se os teréns e batiam

em retirada, deixando livre a área para os verdadeiros do-

nos do pedaço.

A UnIÃO PELA PRAÇA

Em 1985, e por iniciativa própria de Dona Lemirte,

nasceu a UNILAGO (Associação dos Moradores do Lago

Jacarey), entidade por ela presidida durante o biênio

inaugural e sobre a qual pouco comenta e muito lamenta.

Entre lágrimas, queixa-se de artimanhas políticas arma-

das por pessoas que colocavam interesses pessoais acima

das necessidades da comunidade, o que determinou o

abandono definitivo daquele que foi seu mais importante

projeto.

Para espantar a tristeza, retomamos estrategicamente

o assunto do meio ambiente. Dona Lemirte relembra a

qualidade da água do Lago, a vegetação abundante no

entorno, os bandos de garças e aves pernaltas, os cardu-

mes e os enxames, a harmonia e interdependência entre

os coletivos. Com a autoridade de quem domina a Ge-

ografia, detém-se na explicação dos conceitos de bioma

lacustre e cadeia alimentar e finaliza defendendo a neces-

sidade urgente de revitalização e conservação do Lago.

Declara-se “revoltada” com o assoreamento, responsável

pela profundidade atual de cerca de um metro. “Devido

ao crescente número de ligações clandestinas de esgoto,

hoje em dia só uma ou outra garça arrisca atravessá-lo a

pé, bicando uma larvinha aqui, outra acolá. E a associação

(UNILAGO) não faz nada!”, protesta. Pergunto-lhe então

sobre a atuação da atual diretoria, e ela diz que pouco

sabe, não conhece os membros. E alfineta: “Na minha

época, todo mundo me conhecia!”. Pura verdade. Logo

de manhã cedo, dá para ver as bocas de manilha despe-

jando líquidos espumantes na água turva onde uma garça

solitária cisca indecisa entre aguapés, dejetos orgânicos

e materiais plásticos. No centro, onde é mais profundo,

dois homens em pé, com os peitos à mostra, arriscando

umas piabinhas com uma tarrafa de trama miúda. À noite,

por hábito natural, é hora dos ratos enormes abandona-

rem a morada nas manilhas e saírem à caça. Também é

verdade que a fundadora Lemirte, assim como o pioneiro

Maia, têm lugar de destaque dentre os moradores mais

conhecidos e respeitados do bairro.

Nas noites de sexta e sábado da primeira semana do

mês, uma banca da UNILAGO é armada no meio da

praça, a fim de recolher a contribuição voluntária mensal

de cinco reais dos associados. Pedi para ver a prestação

de contas, e a resposta foi que trariam na noite seguinte,

domingo. “Não precisa, não, era só curiosidade”, disse,

como forma de propiciar um ambiente mais agradável

para a conversa com Dona Lurdes, 52, espécie de tesou-

reira da UNILAGO. Enquanto ela me preparava o recibo

(moro lá desde 1997 e confesso que contribuí poucas ve-

zes) falava sobre o muito que há por fazer e sobre como

as contribuições estão escasseando (argumentei que, no

meu caso, contribuí todas as vezes que a cobrança ba-

teu à minha porta e que é esperar demais do associado

que compareça à praça nas datas e horários do plantão

da UNILAGO). Perguntei-lhe sobre o que me parece mais

importante, que é o fato de as ligações clandestinas desa-

guarem dejetos no Lago. “A Prefeitura não tá nem aí, e a

CAGECE só vive enrolando a gente!”

Dois diretores se achegaram, apresentando-se como

Seu Antonio e Seu Oliveira, alardeando que logo, logo ha-

verá correntes de ferro na borda do Lago e que também

em breve teremos policiamento, ocupando finalmente a

guarita deserta desde a instalação há mais de um ano.

Quanto à revitalização, acreditam que a UNILAGO nada

pode fazer, que o assunto compete exclusivamente à Se-

cretaria Executiva Regional II. Me despeço na certeza de

que o Lago ainda vai agonizar por um bom tempo, pelo

menos enquanto as gestões da UNILAGO considerarem

Ecologia e Meio Ambiente questões secundárias, até que

resolvam chamar a atenção dos órgãos de imprensa para

a gravidade dos problemas do bairro e exigir do poder

público o cumprimento das leis de preservação e conser-

vação ambiental.

DIA E nOITE, nOITE E DIA

Deixando a profundidade de lado – dá licença, Bel-

chior? - e aparentemente indiferentes ao processo de

degradação, os freqüentadores do Lago são assíduos e

pontuais no cumprimento de seus objetivos. Às cinco da

manhã aparecem os primeiros coopistas, e até às nove o

rodísio de turmas de andarilhos é intenso. Durante esse

período, babás e bebês tomam banho de sol, caninos

encoleirados fazem no asfalto o passeio matinal, comer-

ciantes abrem as portas, ambulantes de café circulam,

transeuntes vêm e vão.

Às quartas, bem cedinho, um carro de som percorre as

ruas do bairro anunciando a venda de frutas e verduras

no ônibus da CEASA (Centrais de Abastecimento), esta-

cionado na margem sul do Lago. A copa das ingazeiras

sombreia o comércio, enquanto as vagens de sementes

chacoalham ao vento, produzindo o fundo musical para o

canto dos pássaros. Fascinados com o banquete multicor,

pardais atrevidos não resistem à tentação e arriscam-se

em vôos rasantes sobre as bancas, com bicadas certeiras

nos frutos mais suculentos, espalhando delicioso aroma

tutti-frutti.

Das dez às dezesseis o movimento acalma, e daí pra

diante recomeçam os coopistas do crepúsculo dando vol-

tas até perto de vinte e uma horas, repartindo o espaço

com bebês e babás banhados, outras coleiras e cães, fatu-

ramentos encerrados, caixas zerados à espera do tilintar

da noite, barracas improvisadas com tudo à venda, tran-

seuntes que vão e vêm. Nos bancos, presença constante

de amantes aconchegados sob o sereno do luar, agra-

ciados com a brisa fresquinha e carregada das melodias

dedilhadas pelos amadores de violão que se encontram

para tirar um som

Nas noites de fim-de-semana tem ferveção completa:

gente em ebulição, altos barulhos e lixo demais. Trenzi-

nhos arrodeiam o lago, abrindo caminho entre os carros-

boate de forró-pancadão e a fumaça dos churrasquinhos

de filé-miau e do acarajé. Tem pula-pula, profusão de

barracas de bugigangas, butiques a céu aberto e, como

não podia deixar de ser, as figuras carimbadas dos pira-

teiros de CDs e DVDs, habituées de todos os lugares e

horários. Tem pipoca, estalinho, algodão-doce, sorvete;

bola, balão, bicicleta, pedalinho e skate; dominó, novena,

panfletagem, até comício tem.

Todas as tribos se encontram e se identificam, cada qual

na sua, porém em comum o fato de habitarmos a mesma

aldeia, o Lago Jacarey, que a tudo vê mas não consegue

ser enxergado em agonia, refletida no espelho turvo,

impróprio e fedido de suas águas. Falta-nos consciência

ecológica e responsabilidade sócio-ambiental, enfim, sen-

sibilidade e tomada de posição, capazes de transformar

observação passiva individual em indignação coletiva, to-

mada de posição em ação concreta envolvendo os setores

privado e público. Falta-nos acima de tudo pressa, pois

o tempo da degradação corre a passos largos rumo ao

irreversível e abominável fim.

Matéria-prima Matéria-prima

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Olho para o relógio: são 16h35 min. Creio ser um bom horário para uma conversa sobre a Praça Gustavo Barroso, a famosa “Pracinha do Liceu”. Estou receoso de estar só neste local. Penso que há alguém me olhando, existindo até uma possibilidade de desistir e voltar em outra hora acompanhado de alguém.

Avisto duas senhoras conversando em um banco, o que me dá coragem e me deixa entusiasmado para prosseguir. Após anunciar o motivo de estar na praça, percebo que elas se sentem mais à vontade e começam a falar sobre a última reforma e suas contribuições.

Maria, a mais simpática e inquieta das duas, diz que mora no bairro Jacarecanga, desde 1941, ao lado do Co-légio Liceu do Ceará. Cursou só até a quarta série e não estudou no Liceu, além de nunca ter parado na praça para conversar.

Surpreso, pergunto se é verdade que ela jamais andou na praça nesses sessenta e cinco anos.

- É verdade sim, meu filho! Nunca me interessei em an-

dar aqui, pois sempre trabalhei desde pequena, quando

ainda tinha dez anos. Hoje é a primeira vez que parei,

pra conversar com ela aí – diz, apontando para a amiga.

Esta revelação me era muito estranha, pois até eu que moro um pouco distante, já havia passado pela praça, mesmo que poucas vezes.

Maria, com seus óculos escuros, crucifixo no pescoço e uma camisa com a imagem de Nossa Senhora de Fátima, não entendeu bem o direcionamento da conversa e come-çou a falar de suas dores e problemas de família.

Fiquei fascinado com a necessidade que as pessoas têm de falar de seus problemas e a imagem que o profissional de jornalismo passa para a população. A conversa, no en-tanto, já estava tomando um rumo totalmente diferente, mas não quis parecer deselegante e ouvi aquela pequena velhinha de voz baixa e sotaque bem nordestino, até sua última frase.

Agradeci as informações das senhoras e antes que eu me despedisse, elas expressaram um último apelo, que ao longo de minhas entrevistas perceberei ser o maior pe-dido dos moradores desta área.

- Consiga uma cabine policial pra cá, que é só o que

está faltando aqui.

Segui visualizando o espaço que compunha a praça e não me recordava como ele era, mas vejo que o verde do-mina atualmente o que torna o clima bem agradável.

Algumas barracas com comidas típicas, muitos jovens conversam e namoram nos bancos, crianças jogam na qua-dra. Elas são do bairro e jogam num time que faz parte de uma associação da comunidade local.

George e Mário já estão montando o “pula-pula”, que é a grande atração para as crianças, que foram as mais beneficiadas com a reforma feita pela Prefeitura de For-taleza. Além do “pula-pula”, a quadra foi toda reformada: colocaram novas tabelas de basquete, toda a instalação hidráulica foi recuperada e um playground foi colocado no meio da praça.

Além disso, a Empresa Municipal de Limpeza e Urba-nização (Emlurb) executou o projeto paisagístico com a plantação de 22 árvores das espécies Pau-brasil, Man-

gueira, Jambo, Ipê, Adenatérias e Cássia Siamesa. A equipe

do Departamento Técnico de Urbanização também reali-

zou a poda de limpeza em 103 árvores de toda área. Para

complementar, foram plantados 275 metros quadrados

de grama esmeralda, alem do plantio de 1.054 arbustos

diversos como Espirradeira, Eu e tu, Llacre, Mini-lacre,

Agaves, Yucas e Crótons.

Toda obra de recuperação da Praça Gustavo Barroso,

feita pela prefeitura, teve um custo de R$ 36.570 mil, se-

gundo dados da Secretaria Executiva Regional II (SER II).

Caminho em direção ao Liceu e avisto a estátua de Gus-

tavo Barroso, bem no centro da praça, mais uma vez pin-

chada por vândalos. Atravesso a escadaria que dá acesso à

recepção, onde muitos estudantes se encontram batendo

papo e namorando.

Sou atendido por Albenir, 34 anos. Ele pede que eu es-

pere até que os alunos saiam. Surpreendo-me com o pro-

cedimento de controle adotado pelo colégio para entrada

e saída de pessoas. Estudantes têm que confirmar série,

número e nome para que possam sair antes do horário. Já

eu tive que dar toda uma “entrevista” para poder entrar.

Creio que Albenir não entendeu o que eu disse, pois

me direcionou para a biblioteca, como se fosse pesquisar

algum assunto em livros para um trabalho escolar. Porém,

nada deixa de ser proveitoso, pois na biblioteca encontro

o ex-estudante do Liceu, Diego Felício, de 19 anos, uma

aluna de nome Ludmila, que veio do Mato Grosso do Sul

para morar em Fortaleza, e a senhora Celina, responsável

pela biblioteca.

Não muito satisfeito com o resultado da reforma na

praça, Diego contesta o valor que a prefeitura disse ter

gasto nas obras de recuperação. Para ele, nada mudou e

praticamente nada foi feito. Aluno do Liceu desde 2002,

diz já ter se acostumado com os assaltos e roubos que

acontecem naquela área. A criminalidade não impediu

que o aluno continuasse o seu cursinho pré-vestibular na

mesma instituição de ensino.

As pessoas do próprio bairro são, para Diego, as respon-

sáveis pela violência local. As gangues do Jacarecanga, diz,

se misturam com as de outros bairros para praticar crimes

nas proximidades da praça.

Neste momento sou interrompido por Celina, que diz

ter se mudado do Jacarecanga para o Bairro de Fátima,

devido ao alto índice de criminalidade daquela área.

- Estudei aqui todo o científico, mas depois que estu-

praram e mataram uma senhora aqui no bairro, não

pensei duas vezes e me mudei com toda minha família.

Celina jamais deixou que os filhos estudassem no Liceu,

pois, segundo ela, o ensino tinha “caído muito” e a vio-

lência local não a ia deixar tranqüila com seus filhos estu-

dando lá. Por isso, sempre estudaram no Colégio Marista

Cearense. Com muito orgulho e um leve sorriso no rosto,

Celina me surpreende ao dizer que a filha mais velha, re-

cebeu uma bolsa de estudos e hoje cursa jornalismo na

Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Eis que a sirene toca, já são 17h30min. É hora de ir

embora, pois o colégio já terminou suas atividades. Uma

enorme fila se forma na porta de saída, enquanto não é

aberta.

Muitos alunos se direcionam ao ponto das “topiques”

que fica ao lado da quadra de futebol de salão. Outros vão

para as paradas de ônibus ao lado do prédio do Corpo

de Bombeiros. A grande maioria, entretanto, permanece

na praça.

Avisto um senhor sentado com um cachorro no colo.

É o Paulo, morador do bairro Jacarecanga há 75 anos e

assíduo freqüentador da Praça Gustavo Barroso.

Tomando cuidado para não assustar o cachorro, me

OS nOVOS E AnTIGOSOLhARES DA PRAÇA.

Por Miguel Martins Matéria-prima

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aproximo de Paulo, que é um simpático velhinho calvo,

de baixa estatura, olhos azuis e uma voz bem grave. Não

querendo falar muito, deixa bem claro apenas que ali

sempre freqüentou, mesmo antes de qualquer reforma.

Outras vezes, diz, já reformaram, mas o que deveria acon-

tecer era a conservação com o espaço reformado.

- Deveria se cuidar sempre, coisa que ninguém aqui do

bairro faz, critica.

Fala das figuras ilustres que ali moravam como Cor-

deiro Neto, Pedro Filomeno, além de outros que ele, no

momento, não lembrava. Pede para que eu vá ao encon-

tro do professor Lócio, antigo morador local e possuidor

dos jornais de Jacarecanga.

-Você diz que é do Sete de Setembro, que faz jornalismo.

Ele, como professor, vai lhe atender na hora e você vai

tirar dez com certeza.

Muito sorridente, Paulo me alerta para que eu vá du-

rante o dia, pois já era tarde e o professor Lócio, já está

bem idoso. Respeitando sua vontade, decido me retirar e

prometo ir à casa do dito professor no dia seguinte.

Antes de ir embora, paro para olhar algumas revistas

em uma banca na esquina e aproveito para conversar com

a proprietária, Márcia, 42 anos.

Muito simpática e com aparência de menos idade, ela é

espírita e me parece vê sempre o lado bom das coisas.

Há seis anos trabalhando na banca, decidiu mudar-se

para o local com os três filhos. Já no primeiro ano em que

se mudara, um trauma abalou sua família. Seu filho mais

velho foi comprar pizza na lanchonete da praça quando

dois homens armados o abordaram levando seu celular,

dinheiro e o carro em que ele se encontrava.

- Apenas o carro foi recuperado, mas o bem maior, que

é a vida de meu filho, graças a Deus, foi preservado.

Apesar do trauma sofrido, Márcia diz que não pensa em

sair dali, pois para ela, a violência e o descaso com a vida

do próximo existem em qualquer lugar.

Ela também fala que a praça já havia sido reformada na

gestão anterior, mas lamenta que a comunidade não saiba

preservar o espaço reformado.

- A única diferença é que está mais iluminado. Fora

isso... O que precisamos é de uma cabine policial dentro

da praça. Há guardas municipais, mas uma cabine, pelo

menos, amedrontaria os criminosos. Aqui é um ótimo

ponto, é daqui que tiro o sustento para casa. E como já

disse, violência existe em todo o lugar.”

Fiquei imaginando, se Márcia se acostumou com aquela

realidade ou se, na verdade, ela se sente bem naquele lu-

gar, como o senhor Paulo e a dona Maria.

Celina não agüentou muito e “fugiu” para um bairro

que, segundo ela, não tem como comparar com o Jaca-

recanga. Diego disse ter se acostumado com a situação

local e ainda persiste fazendo cursinho pré-vestibular no

mesmo local que concluiu o ensino médio.

O caso mais interessante, porém, e que deveria ser mais

abordado é o da garota Ludmila, que deixou Mato Grosso

do Sul e veio para o Ceará. Das três vezes que perguntei

se ela estava gostando de Fortaleza, do bairro e da praça, a

resposta veio sempre com um sorriso.

“É BEM DIFEREnTE, nÉ?!”

Deixo a Praça do Liceu e continuo minha caminhada

pela Avenida Francisco Sá. A cada novo olhar, vou me des-

lumbrando com a arquitetura dos antigos prédios, deste

que foi um dos primeiros bairros nobres da cidade. Hoje,

pouco esquecido, pede mais amparo por parte das autori-

dades, para se manter ainda vivo e com dignidade.

Matéria-prima Por Islene Moraes

Em 1845, o Liceu do Ceará teve sua administração trans-

ferida para as proximidades da então Praça Fernandes

Vieira. Ainda que, com o passar do tempo, tenha havido

mudança de nome para Praça Gustavo Barroso, sela-se a

“vox populi”. Não importando qual o nome – aliás, quem

sabe verdadeiro nome da praça? - todos a conhecem so-

mente como a Pracinha do Liceu.

Próxima ao centro de Fortaleza, a pracinha do Liceu foi,

e ainda é, ponto de encontro de pessoas das mais variadas

classes sociais. No passado, recebera em seus bancos alu-

nos do Liceu, hoje personalidades ilustres. Hoje continua

a receber os alunos do colégio, mas muitos com perspec-

tivas de um futuro não tão ilustre. Aprendizes de mari-

nheiros vindos de todos os locais do país, moradores das

redondezas, transeuntes, trabalhadores, idosos e pessoas

que simplesmente gostam da praça. Enfim, todos os tipos

e estereótipos, passam, sentam, encontram-se, fazem sua

história nas calçadas da praça.

Pela manhã, colorem suas calçadas os que começam a

preparar as barracas para mais um dia de labor, os espor-

tistas amadores, o jardineiro e os vizinhos do largo. Mais

ou menos às 11:30h, o toque avisa o término da aula. Os

estudantes saem em multidão, rapidamente a praça fica

tomada pelos que preferem ficar mais um pouco para ba-

ter um papo. Os bancos de concreto são ocupados por

casais de namorados, os alunos reúnem-se à mesa de

pingue-pongue para o jogo. Para os que querem matar a

fome, opção é o que não falta. Há duas barracas na praça

servindo lanches, refeições e todos os tipos de petiscos.

A barraca do seu Silvestre, localizada quase ao centro da

praça e bem de fronte à saída do colégio, é a mais popu-

lar. São 25 anos enchendo o paladar de visitantes, famí-

lias e dos trabalhadores das redondezas. O proprietário,

Silvestre Neto de Oliveira Mota de 55 anos, é o caixa e

afirma: “A praça é tranqüila. Nunca fui assaltado. Dificil-

mente aparece algum menino se queixando de roubo de

celular.”

A concentração da praça se volta para a barraca do seu

Silvestre. Ninguém se preocupa com a vestimenta. O que

mais chama à atenção são as opções de pratos. As mesas

brancas dão lugar aos que saem da fila de pagamento. Os

mais despojados estão de boné, sandália rasteira e, quase

PRACInhA DO LICEU: OnDE SE RESPIRA VIDA.

Um vento carregado de mar assobia entre as construções. Corta o calor do meio dia, levantando as folhas deitadas ao chão e também as saias das meninas. Os pássaros can-tam enquanto os alunos gritam festejando o fim das aulas. De um canto, pouco mais à margem, vem um cheiro bom de comida feita na rua. Os carros passam, as motos buzinam e os ônibus tomam a frente de todos. O som agudo de uma sirene irrompe no espaço e identificamos o que lhe é particular. Vem do quartel do Corpo de Bombeiros. Logo, veículos saem rapidamente e enfim reconhecemos a personalidade da praça.

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sempre, ficam sem camisa. Já outros, que trabalham por

perto, usam uniformes. Cada um escolhe onde quer fi-

car. Um casal maranhense almoça, tranqüilo. E, em meio

a tanta conversa, não percebe quem está mais interessado

na comida: o cãozinho do casal. A companhia mais ines-

perada vem do céu. São os pombos que se alimentam de

todas as migalhas que caem ao chão.

As árvores e as plantas, que embelezam os canteiros,

recebem cuidados especiais.O responsável por manter o

verde da praça é o jardineiro Francisco Monteiro da Silva

de 37 anos. Sozinho, ele cuida das plantas e está atento a

todo movimento da praça “Sempre some alguma placa. Já

roubaram a placa da estátua do Gustavo Barroso e, recen-

temente, sumiu a placa que informava a última reforma

da praça na gestão da prefeita Luizianne Lins”, comenta

o jardineiro, chamando a atenção para o descaso do po-

liciamento durante o dia. Vestindo um uniforme verde,

como a esperança de um dia o descaso acabar, o jardi-

neiro molha a terra e ao mesmo tempo conversa com um

menino descalço que se aproxima. Ele não se importa em

dar atenção à curiosidade do garoto. A água é espalhada

pelos canteiros dando vida às plantas. O dia ensolarado

também ajuda o trabalho de Francisco. Quando se sente

cansado, senta em um dos bancos, acomoda -se, tira um

cigarro do bolso e passa a fumar pensativo. Vira a cabeça

de um lado para o outro. Nada o tira a concentração, pois

os 10 minutos servem para pensar na vida e contemplar

a beleza da praça.

O nome que batiza a praça é em homenagem ao ex-

liceísta Gustavo Barroso. Advogado, professor, político,

contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista, nas-

ceu em Fortaleza, em 29 de dezembro de 1888, e fale-

ceu no Rio de Janeiro, em 3 de dezembro de 1959. Em

8 de março de 1923, foi eleito para a Cadeira n.º 19 da

Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Silvério

Gomes Pimenta.

Foi redator do Jornal do Ceará (1908-1909) e do Jornal

do Comércio (1911-1913); professor da Escola de Meno-

res, da Polícia do Distrito Federal (1910-1912); secretário

da Superintendência da Defesa da Borracha, no Rio de

Janeiro (1913); secretário do Interior e da Justiça do Ce-

ará (1914); diretor da revista Fon-Fon (a partir de 1916);

deputado federal pelo Ceará (1915 a 1918); secretário da

Delegação Brasileira à Conferência da Paz de Venezuela

(1918-1919); inspetor escolar do Distrito Federal (1919

a 1922); diretor do Museu Histórico Nacional (a partir de

1922); secretário geral da Junta de Jurisconsultos Ame-

ricanos (1927); representou o Brasil em várias missões

diplomáticas, entre as quais a Comissão Internacional de

Monumentos Históricos (criada pela Liga das Nações) e

a Exposição Comemorativa dos Centenários de Portu-

gal (1940-1941). Em honra à sua memória, ao centro da

praça, ergue-se sua estátua que, a mercê do vandalismo e

do descaso das autoridades, jaz pichada e sem a placa que

lhe identificava.

As instalações do Corpo de Bombeiros, ao lado da

praça, comemoraram 72 anos no dia 7 de setembro de

2006. As dependências do prédio vermelho, já serviram

e ainda servem, eventualmente, de prisão. Pela livre ex-

pressão, a escritora Rachel de Queiroz foi mantida presa

na época da ditadura. O preso mais recente é o juiz Pedro

Percy que maatou um vigilante na cidade de Sobral.

A frase, “Corpo de Bombeiros Militar – Liceu do Ceará.

Somos fortes porque somos unidos”, está pintada na late-

ral do colégio, em frente ao quartel dos Bombeiros, para

lembrar o comando do coronel Leonel Pereira de Alencar

Neto - 1995 a 2000. Os 5 anos foram marcados por uma

parceria entre o Corpo de Bombeiros e o Liceu do Ceará,

quando foram ministradas palestras, a pintura das depen-

dências do colégio e a poda das árvores. Com a mudança

de comando, a ajuda ficou restrita ao socorro em caso de

emergência, ressalta o cabo Sena, de 33 anos.

A vida desbrava na praça. Se durante o dia é parada certa para os que passam em seus arredores, à noite é reduto de uma alegria e lazer insondáveis. De tantas reformas so-fridas, a última trouxe de volta o brilho das lâmpadas de néon e o calor de famílias, amigos e namorados que apro-veitam o cair da noite para se deliciar com uma agradável brisa sob as estrelas.

As crianças correm, brincam, andam de bicicleta, jogam bola, ressuscitam os velhos pega-pega e esconde-esconde, mas gostam mesmo é do pula-pula e da cama-elástica. De quinta a sábado, das 17:00 às 23:00, Carlos Henrique faz a festa da criançada. Dono dos brinquedos, ele já está há dois anos na praça e gosta muito de ver a molecada pu-lando e dando cambalhota.

Bruno Azevedo, 21 anos, filho do vizinho Piauí, for-mando da Escola de Aprendizes de Marinheiros, vê na praça um ponto de encontro com os amigos. A diversão é garantida nas quadras, onde participa das boas e velhas peladas. “Também é bom usar os equipamentos de ginás-tica. A gente sai da escola e vem se exercitar aqui. Rola um clima de descontração e uma paquera com as meninas que vêm e vão”, afirma o jovem marinheiro, que está de par-tida para o Rio de Janeiro, após onze meses em Fortaleza, mas promete voltar. “A cidade é muito boa. Gente bem humorada, brincalhona. Vou voltar sempre que puder!”

A barraca do Seu Silvestre também abre para a vida no-turna. Agora, porém, a clientela tem outras exigências. Longe da pressa do dia, as pessoas que vêm à praça que-rem sentar, conversar, tomar uma bebida e relaxar. Mas a concorrência não dá mole. Barracas de caipirinha espa-lham-se pela praça e conquistam um público fiel, com o bom papo e a simpatia de quem está por trás do balcão.

Mas ir à pracinha do Liceu e não tomar um caldo de cana com salgado, é como ir à Roma e não ver o Papa! Há dez anos, com um preço sempre convidativo, Aki Lan-ches faz história.

A lanchonete está bem em frente à praça, especializada

em caldo de cana geladinho e feito na hora. Às vezes, a

quantidade de clientes é bem maior do que os dois únicos

atendentes podem dar conta. “Tem horas que o negócio

aqui é estressante. Só tem dois pra atender, receber o di-

nheiro e fazer o caldo. Quando está muito cheio a gente

tem que ficar ligado, pois o pessoal pode ‘vazar’ sem pa-

gar”, explica Luís, irmão de Farias, o dono da lanchonete.

“Em geral, aqui fica cheio entre seis e oito da noite. É

muita gente mesmo! Nós pedimos o dinheiro adiantado

para evitar os engraçadinhos, mas sempre tem um esperto

que ‘passa a perna’. O preço de R$ 0,50 por um copo de

caldo e um salgado chama muita gente. Principalmente o

pessoal de baixa renda”.

Entre salgados, copos, a moedeira e os pedaços de cana,

uma mochila pendurada bem ao centro da lanchonete

chama a atenção. Com o logotipo da Marinha bordado, a

mochila é produto da confecção que lá funciona. “A gente

faz todo tipo de fardamentos e acessórios. Mas o que dá

dinheiro mesmo é o lanche”, afirma Luís.

A bela vista da praça é complementada pelas constru-

ções que a rodeiam. Casarões antigos, com arquitetura co-

lonial, propriedades do patrimônio histórico de Fortaleza,

lembram-nos de que no passado, o bairro fora o reduto

das elites.

Seja pelas pernas das meninas que desfilam de mini-

saia, pelos corpos malhados dos jovens que jogam bola,

pelas crianças que vem e vão, pelas pessoas que se sentam

para colocar a fofoca em dia, a Pracinha do Liceu trans-

borda em vida. O preconceito de que é um reduto de

marginais cai quando pisamos em sua calçada. Todos os

tipos de pessoas vão à praça, mas sempre com saudáveis

objetivos: descontrair-se, relaxar e admirar a beleza que a

praça esbanja. De dia ou de noite, aqui se respira vida.

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FACULDADE 7 DE SETEMBRO