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REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E SAÚDE DO TRABALHADOR

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REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL ESAÚDE DO TRABALHADOR

Resumo: Analisar a saúde do trabalhador exige, na contemporaneidade, a compreensão do impacto do regimede acumulação flexível como resposta do capital e do capitalismo, seus rebatimentos nas relações de trabalho,bem como a compreensão das respostas articuladas pelo Estado, valendo-se de reformas neoliberais. Elas têmtransferido as ações de saúde para a circunscrição do mercado, o que significa, em última instância, inserir oEstado no campo de ação da concorrência, do capital. Com base nesse enfoque é que se estruturou a aborda-gem do tema.Palavras-chave: saúde do trabalhador; flexibilidade; processo de trabalho.

Abstract: Analyzing employee health care requires, in these times, an understanding of the impact of the flexibleaccumulation regime as a response to capital and capitalism and how both are reflected in labor relations.Also required is an understanding of the State’s neoliberal approach to reform, which has transferred healthcare issues to the domain of the market, ultimately positioning the State in a competitive role against capital.Key words: employee health care; flexibility; labor process.

MARIA BEATRIZ COSTA ABRAMIDES

MARIA DO SOCORRO REIS CABRAL

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 3-10, 2003

nalisar o impacto do regime de acumulação fle-xível1 na saúde do trabalhador pressupõe com-preender a crise estrutural do capital e do capi-

talismo no plano internacional em sua crise mais profun-da e prolongada, iniciada a partir de 1973, no epicentrodo capitalismo. Essa crise estrutural cinge, em sua gêne-se, a própria crise mundial do petróleo e a queda tendencialda taxa de lucro. Em réplica a esses fatos, o capital buscaalternativas para retomar seus níveis de acumulação, quese expressam em novas formas de gestão e controle dotrabalho, e obtêm a ampliação da exploração da força detrabalho, pela mais-valia relativa (inovação tecnológica)e pela mais-valia absoluta (ampliação do ritmo de traba-lho).

Essas mudanças no processo produtivo têm na acumu-lação flexível sua referência central, cujo esteio advémda “flexibilidade dos processos de trabalho, dos merca-dos, dos produtos e padrões de consumo” (Harvey,1995:140). Essas mudanças repercutem na reproduçãosocial – esfera do Estado – que, com a implantação doneoliberalismo, passa a reger-se pela soberania do mer-cado. O processo de trabalho sofre profundas modifica-ções, na década de 80, nos países de capitalismo avança-

do, com desdobramentos e inflexões diferenciadas, a par-tir da década de 90, nos países industrializados do cha-mado Terceiro Mundo.

As modificações ocorridas pela diferenciação dos pro-cessos de trabalho na produção: fordismo, taylorismo etoyotismo, ou acumulação flexível, pressupõem, na ordemdo capital, formas diferenciadas de exploração, culminan-do na acumulação flexível, cujas repercussões profundasafetam a “objetividade e subjetividade da classe-que-vive-do-trabalho, e, portanto, a sua forma de ser” (Antunes,1995:15).

O fordismo, como maneira de organização do traba-lho, surge em 1914, quando Henry Ford introduz a jorna-da de 8 horas a cinco dólares de recompensa para o traba-lho em linha de montagem, e se espraia pelo setorprodutivo. Essa forma de organização desenvolve-se econsolida-se nos países capitalistas ocidentais em mea-dos da década de 70. Apresentando momentos de dife-renciação em seu desenvolvimento, pode-se dizer que atin-ge a maturidade no período imediato ao pós-guerra,persistindo até 1973. “O fordismo pode ser compreendi-do, fundamentalmente, como a forma pela qual a indús-tria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo

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deste século [...], e cujos elementos constitutivos básicoseram dados pela produção em massa, através da linha demontagem e de produtos mais homogêneos; através docontrole do tempo e movimentos, pelo cronômetrotaylorista e produção em série fordista” (Antunes,1995:17).

O fordismo e o taylorismo,2 que predominaram em gran-de parte da indústria capitalista, apresentam ainda comocaracterística “a separação entre a elaboração e a execu-ção no processo de trabalho: fragmentação das funções,trabalho parcelar pela existência de unidades fabris con-centradas e verticalizadas e pela construção e consolida-ção do operário-massa, do trabalhador fabril” (Antunes,1995:17).

O fordismo apresenta uma separação entre gerência,concepção, controle e execução ante um novo tipo de re-produção da força de trabalho, no reconhecimento explí-cito de que produção em massa significava consumo emmassa (Harvey, 1995). Essa forma produtiva, presente notecido social, foi construindo uma cultura e um modo devida, firmando “um esforço coletivo para criar, com velo-cidade sem precedentes e com uma consciência sem igualna história, um novo tipo de homem, um novo tipo de tra-balhador [...] um modo específico de viver, pensar e sen-tir a vida” ajustado à nova forma de trabalho e ao novoprocesso produtivo (Gramsci apud Harvey, 1995:121).Estruturou-se, enfim, o novo sistema de reprodução daforça do trabalho, um novo sistema de controle, de gerên-cia, uma nova psicologia, um novo tipo de sociedade de-mocrática, racionalista e capitalista. O consumo em mas-sa, necessário aos padrões de acumulação fordista“subsumiu o tempo e o lazer” do trabalhador a certo tipode controle necessário às expectativas e à racionalidadeda produção.

Nesse período, o capitalismo atingiu altas taxas de ex-pansão mundial. Um momento histórico de ondas largas,expansivas do capitalismo, e foi considerado “a era deouro” (E. Hobsbawm). A produção fordista e a reprodu-ção keynesiana tornaram-se fortes aliadas no processocapitalista de desenvolvimento do pós-guerra.

A regulação e a intervenção estatal keynesiana,consubstanciada no Estado de bem-estar social – WelfareState –, ocorre nos países centrais do capitalismo, ope-rando uma gestão social do sistema e concretizando “umEstado com forte iniciativa no campo de políticas sociaisredistributivas e com pronunciada intervenção por servi-ços e equipamentos sociais, fiador de controles tributá-rios sobre o capital e articulador institucional de parce-

rias entre capital e trabalho, sobre a base do jogo políticodemocrático” (Netto, 1994:98).

Durante esse processo de expansão do capitalismo, oEstado desenvolve políticas sociais e de emprego afina-das com as exigências de produtividade e de lucratividadedas empresas sob controle do grande capital. Essa inter-venção regulacionista, longe de ser universal, é voltadaunilateralmente para a força de trabalho economicamenteativa e inserida no sistema produtivo.

O keynesianismo, ao desenvolver políticas sociais e deemprego, incorpora um Estado de Regulação, de reivin-dicações dos trabalhadores que passam a ceder ao ideáriodo pacto social fordista-keynesiano. Esse acordo confi-gura a derrota do movimento sindical operário, que con-solidou o terreno político para a hegemonia do pacto es-pecificado, e consubstanciou um sindicalismo nos marcosda institucionalidade, com garantia de um terreno seguropara o movimento do capital.

Nos países periféricos, incluindo-se aí a América Lati-na, e entre eles o Brasil, o Welfare State não se consoli-dou, já que suas economias encontravam-se subordinadasao capitalismo monopolista, ainda que tivessem um Esta-do com algum sistema de proteção social. É importantefrisar que, no Brasil, as políticas sociais, do período Vargasà Constituição de 1988, segundo Vieira, têm refletido ocomportamento de uma classe dirigente que oscila entre ainércia e a modernização, imposta de fora, orientado pelogrande capital.

As transformações econômicas e sociais ocorridas nosanos 70, associadas ao acirramento da concorrência mun-dial no mundo capitalista e ao emprego de novas tecnologias,configurando o que se convencionou chamar de Terceira Re-volução Industrial, contribuíram para afirmar e moldar umnovo processo de acumulação de tipo flexível.

A acumulação flexível caracteriza-se pelo surgimentode setores de produção inteiramente novos, novas manei-ras de fornecimento de serviços financeiros, novos mer-cados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de ino-vação comercial, tecnológica e organizacional. Envolve,também, rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimen-to desigual, tanto entre setores como entre regiões geo-gráficas, criando, por exemplo, um vasto movimento noemprego do chamado “setor de serviços”, bem como con-juntos industriais completamente novos em regiões até en-tão subdesenvolvidas” (Harvey, 1995:140).

A acumulação flexível, com o toyotismo, torna-se parao capital tanto uma forma de maior exploração quanto demaior controle sobre a força de trabalho. A reestruturação

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produtiva está baseada em aumento de produtividade, efi-ciência, qualidade, novas formas de tecnologia e de ges-tão, efetivando-se por intermédio das inovações tecno-lógicas. Desse processo de trabalho advém basicamente aprecarização e a desestruturação das relações clássicas deprodução, de gerenciamento e de envolvimento da forçade trabalho. Viabilizam-se os Círculos de Controle deQualidade (CCQs) – e o Comprometimento com a Quali-dade Total (TQC), exigindo a participação dentro da or-dem e do universo da empresa (Antunes, 1995:16). Asdecorrências desse processo favoreceram o processo deflexibilização do trabalho que conduziu à desregu-lamentação de direitos sociais e trabalhistas: reduziu oquantitativo do operariado fabril; incrementou a tercei-rização e a subproletarização; estimulou o trabalho pre-cário e parcial e ampliou o desemprego estrutural, entreoutros danos trabalhistas. Pode-se apontar, ainda, osurgimento do operário polivalente, o aumento da produ-tividade, a redução do operariado fabril, o atrelamento damercadoria à demanda determinada, ou seja, a manuten-ção do estoque mínimo, conforme a lógica do just in time,que objetiva “o melhor aproveitamento possível do tem-po de produção (incluindo-se também o transporte, o con-trole de qualidade e o estoque)” (Antunes, 1995:26), e osistema kanban, que utiliza placas ou senhas para a repo-sição de preços e de mercadorias, mantém os estoques nomínimo, para repô-los de acordo com a demanda, consti-tuindo ambos a substância do modelo japonês.

O mercado de trabalho passa por mudanças radicais emrazão do processo de acumulação flexível, com flutuaçõesconstantes, aumento da competição, redução do poderaquisitivo do trabalhador e enfraquecimento do poder sin-dical, que começa a atuar na defensiva em razão da gran-de quantidade de mão-de-obra excedente (desempregadosou subempregados, ou precarizados vinculados à econo-mia informal), o que dissocia ainda mais os interesses daclasse trabalhadora.

O processo de trabalho em curso no toyotismo apre-senta uma base de sustentação ideológica que atinge nãosomente a objetividade – base material da classe operária –,mas também sua subjetividade – sua consciência de clas-se, sua organização e seus valores. Os CCQs e TQCs sãoinstrumentos diretos de propagação ideológica e decooptação dos trabalhadores. Estabelece o “envolvimentocooptado”, em que a subsunção do trabalho ao capital ésuperior à existente nos processos de trabalho anteriores,em que na nova lógica organizacional o trabalhador passaa ser o controlador de si mesmo. Nos CCQs a empresa é

concebida como o prolongamento da casa, e o debate es-tabelece-se a fim de traçar metas e objetivos para que otrabalhador possa se destacar na empresa, como forma deamenizar os processos de luta da classe trabalhadora emseu campo de autonomia e independência de classe. Ficaóbvio o lema da Toyota: “Proteger a nossa empresa paradefender a vida”, o que expressa, de modo claro, a pers-pectiva ideopolítica adotada nesse processo de trabalhodesenvolvido pelo capital.

O “sindicato-casa” é incentivado, na condição de or-ganização cooptadora, para ser o interlocutor dos traba-lhadores que são denominados pela empresa de “colabo-radores”, e o que se confirma em todo o processo produtivoé a ampliação da exploração da classe trabalhadora.

A desconcentração do espaço físico e a concentraçãode capital constituem o desafio mais intenso que o capitalcria para a classe trabalhadora. A motivação exploradorada atual introdução de novas tecnologias evidencia-se namobilidade do capital para regiões que oferecem o bara-teamento da força de trabalho, possibilitando, por um lado,uma maior lucratividade para a mercadoria, sob controledos oligopólios, na internacionalização da economia e docapital, e, por outro, um aumento na exploração da classetrabalhadora.

Uma outra decorrência que se evidencia, no caso bra-sileiro, é o processo de desindustrialização que vem su-cedendo em grandes centros industriais como São Pauloe o ABC Paulista, com a migração das empresas para ointerior e para outros Estados que oferecem redução noscustos, liberação de impostos e força-de-trabalho mais ba-rata e menos organizada.

Concretamente, porém, não se pode afirmar que tudoseja toyotismo, pois o processo de desfordização encon-tra-se em curso. Portanto, os processos de trabalho expres-sam-se de forma mesclada e diferenciada em diversos paí-ses, acarretando o desemprego tecnológico, associado aoforte desemprego estrutural inerente à profunda crise docapital.

O receituário produtivo apresenta ainda como caracte-rísticas a complexificação e a heterogeneidade da classetrabalhadora; o trabalho operado em equipe, apresentan-do multiplicidade e flexibilidade de funções; e a amplia-ção e diversificação das formas de exploração do traba-lho humano.

A competitividade e a concorrência intercapitalistaproduz a destruição ou a precarização, sem precedentesna era moderna, da força humana que trabalha e a degra-dação crescente que destrói o meio ambiente, na relação

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metabólica do homem com a natureza no processo de pro-dução de mercadorias e valorização do capital (Antunes,1998).

PROGRAMÁTICA NEOLIBERAL EMCONSONÂNCIA COM A ACUMULAÇÃOFLEXÍVEL

O processo de reestruturação do capitalismo estabele-ce dois tipos de ajuste estrutural distintos, mas inerentesao movimento do capital: o primeiro ocorre na esfera daprodução, mais conhecida como reestruturação produtiva(base material da sociedade), e o segundo na esfera polí-tica do Estado referenciado ao neoliberalismo.

O neoliberalismo surge após a Segunda Guerra Mun-dial, na Europa e na América do Norte, como uma reaçãocontra o Estado de Regulação de bem-estar Social, sus-tentado pela social-democracia, no modelo keynesiano. Otexto de origem do neoliberalismo, escrito por Hayek, em1944, intitulava-se O caminho da servidão. De acordo coma ideologia e a teoria proposta nesse ideário neoliberal,era necessário combater as raízes da crise que se origina-va no poder dos sindicatos e do movimento operário, quepressionavam por melhores salários, condições de vida etrabalho e ampliavam os gastos sociais, assumidos peloEstado. Desse modo, seu propósito era o de “combater okeynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as basesde um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regraspara o futuro” (Anderson, 1995:10). Nesse momento, oataque era dirigido diretamente ao Partido Trabalhistainglês. As idéias neoliberais passam, porém, ao plano daação programática em 1973, quando o mundo capitalistaenfrenta uma crise estrutural, com longa e profundarecessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas decrescimento com altas taxas de inflação (Anderson, 1995).Margareth Thatcher, em 1979, na Inglaterra e RonaldReagan, em 1980, nos Estados Unidos, iniciam a implan-tação do neoliberalismo, possibilitando ao grande capitalarquitetar um plano internacional de expansão. Na Amé-rica Latina, sua execução mais severa inicia-se em 1989,para dar cumprimento ao Consenso de Washington3 – ago-ra, aprimorado com o Dissenso de Washington, 2000 –que responde aos ditames do FMI e do Banco Mundial econcretiza-se na abertura de novos espaços de explora-ção do capital privado e na disseminação da presença doEstado na economia.

A programática neoliberal preconiza a concepção deque “o mercado é entronizado como instância societal

mediadora por excelência no plano econômico e no planopolítico, sacralizando o Estado mínimo” (Netto, 1994:75).Essa programática, consubstanciada, portanto, no Estadomínimo e mercado máximo, é a expressão da reestruturaçãoprodutiva, delineada no processo que vincula economiasnacionais e internacionais em um novo momento da mer-cadoria e da divisão social do trabalho, como se refereMota.

O projeto neoliberal oriundo da estratégia internacio-nal do capital estabelece uma política econômica mone-tarista com ampla privatização de empresas estatais, emque o “Estado mínimo” e o “máximo de mercado” sãoelementos constitutivos do grande capital dos oligopólios.

O neoliberalismo rege-se pela soberania do mercado.Na América Latina sua execução dar-se-á com base em:disciplina fiscal, estabilidade monetária, redução de gas-tos públicos, reforma tributária, liberalização financeirae comercial, alteração das taxas de câmbio, investimentodireto estrangeiro, privatizações e desregulamentação.

As políticas neoliberais implantadas por Reagan eThatcher têm “nos social-democratas os grandes execu-tores dessas políticas: Mitterrand, na França; Gonzáles,na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália;Papandroeou, na Grécia” (Anderson, 1995). As economiasdo Leste europeu são atingidas pelo neoliberalismo, apóssua derrocada, em 1989.

A primeira experiência neoliberal sistemática do mun-do ocorreu no Chile, em 1973, e serviu como laboratóriointernacional. Pinochet implementou o ideário neoliberalcom dura repressão ao movimento operário e socialistado país, instalando “uma das mais cruéis ditaduras milita-res do pós-guerra” (Anderson, 1995:19). A Bolívia tam-bém foi pioneira na América Latina, pois tal programainiciou-se no ano de 1983. Nos demais países latino-ame-ricanos, o fim dos anos 80 significou a expansão doneoliberalismo: no México, consolida-se em 1988; naArgentina, com Menen, em 1989; na Venezuela, comPeres, em 1988; e no Peru, com Fugimori, em 1990.

A ofensiva neoliberal no Brasil inicia-se no final dogoverno Sarney e perpassa os governos Collor e Itamar,aprofundando-se e consolidando-se com FHC (1994/2002). Sua implantação vem imprimindo uma políticamonetarista com ajustes econômicos efetivados com basena oferta monetária, na privatização de estatais e de ser-viços públicos rentáveis, no corte nos gastos sociais, atécom demissão de trabalhadores em serviço público, natransferência de renda e de patrimônio público para o se-tor do capital privado, na quebra de monopólios com a

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entrada do capital estrangeiro, na privatização de setoresestratégicos associada à internacionalização (petróleo,telecomunicações, siderurgia, mineração), na sobreva-lorização da taxa cambial, na mercantilização de políti-cas sociais, acompanhada da refilantropização na área daassistência, nas políticas sociais compensatórias, em subs-tituição a políticas sociais de caráter universal; na priva-ção de direitos sociais (educação, saúde, previdência, as-sistência) e na desregulamentação de direitos sociais etrabalhistas. O neoliberalismo consubstancia o Estadomínimo para os trabalhadores e o Estado ampliado para ocapital, em que os interesses privados sobrepõem-se aosinteresses públicos, de caráter universal.

Nessa perspectiva, a Reforma do Estado4 prevê a exis-tência de um núcleo estratégico em que se definam políti-cas; um setor de atividades essenciais, compreendendo asáreas de auditoria, fisco, segurança, arrecadação de im-postos e tributos e de advocacia, etc. Nas chamadas áreassociais o Estado concorre com o mercado, com repercus-sões na política de seguridade, saúde e previdência, e nasáreas de educação e cultura. Um quarto setor compreendeas atividades exclusivamente de mercado, com amplo pro-grama de privatização.

A política de seguridade – saúde, previdência e assis-tência –, com a Constituição de 1988, são definidas comode caráter universal e equitativas, mas, na óptica neoliberal,são redefinidas e orientadas por uma política que associapublicização e privatização.

O PROCESSO SAÚDE E DOENÇA DOSTRABALHADORES E AS RESPOSTASARTICULADAS DO ESTADO

A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada emBrasília-DF em 1986, expressou uma concepção ampla desaúde, entendendo-a como “a satisfação das necessidadesbásicas de acesso a uma alimentação regular e nutritiva,moradia adequada, transporte seguro, serviços de saúde eeducação eficientes, para além da simples ausência dedoenças, a falta de uma renda mínima que assegure essesdireitos, constitui-se para uma ampla camada de trabalha-dores, em efetiva deterioração de suas condições de vidae reprodução da força de trabalho” (Mattos et al., 1995:48).

Compreender a saúde nessa dimensão significaentendê-la nas diversas formações sociais e na divisãosocial e técnica do trabalho. No capitalismo as condi-ções objetivas e subjetivas da classe trabalhadora e suaprópria condição de classe são afetadas pelo caráter

destrutivo do capital, em sua estrutura orgânica meta-bólica de relação dos homens entre si e com a nature-za, em que a propriedade privada dos meios de produ-ção, a superexploração da força de trabalho, e o Estadoa serviço da ordem burguesa determinam um viver emorrer. A força de trabalho, considerada mercadoriabásica no processo de produção capitalista, é requeridapelo mercado, mas lhe é exigido ter a saúde necessáriapara executar um processo de trabalho: “Para o capi-tal, a saúde – entenda-se a saúde suficiente – é um sim-ples e relativizado componente da mercadoria força detrabalho” (Ribeiro, 1997:102). Portanto, saúde e capa-cidade técnica são elementos indissociáveis da capaci-dade de trabalho. A força de trabalho é para serconsumida e substituída na medida de seu desgaste,como qualquer outro componente do processo de pro-dução. O trabalhador tem, por sua vez, consciência desua capacidade técnica e sabe que, para exercitá-la,precisa ter saúde. A relação indissociável entre saúde ecapacidade técnica, e o processo histórico de lutas daclasse trabalhadora pela redução da jornada de traba-lho e por melhores condições de vida, possibilita am-pliar postos de trabalho bem como proteger esses doiscomponentes da capacidade produtiva.

A intensidade e o ritmo acelerado no trabalho e o nú-mero excessivo de horas na jornada são decisivos naprecarização da saúde do trabalhador, podendo eliminá-lo, precocemente, do mercado. Nas condições de traba-lho estão incluídas as atividades corporais e mentais dostrabalhadores, bem como os elementos materiais, físico-químicos, ambientais, temporais e também as relações detrabalho.

O capital, historicamente, incorpora o trabalho da mu-lher, o infantil e o da juventude desde o primeiro ciclo daRevolução Industrial, na Inglaterra, como forma de am-pliar sua exploração, dilatando a margem de mais-valia, oque concorre para o barateamento do preço da força detrabalho: “O valor da força de trabalho era determinadonão pelo tempo de trabalho necessário para manter indi-vidualmente o trabalhador adulto, mas pelo necessário àsua manutenção e a de sua família. Lançando à máquinatodos os membros da família do trabalhador no mercadode trabalho, reparte ela o valor da força de trabalho dohomem adulto pela família inteira. Assim, desvaloriza aforça de trabalho do adulto” (Marx apud Ribeiro,1997:104).

O movimento operário brasileiro desde sua origem vemlutando pela garantia de uma jornada de trabalho reduzi-

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da, sem redução de salário, e obteve algumas conquistasque hoje estão ameaçadas pela flexibilização dos direitostrabalhistas, pela prevalência do acordado sobre o legis-lado.

Outro elemento analítico a ser considerado na com-preensão da saúde é a relação da força de trabalho nasdiferentes ocupações requeridas pela divisão sociotécnicado trabalho nos diferentes ramos da atividade econômica.Os componentes que caracterizam o exercício de deter-minada ocupação são históricos e sociais, mutáveis notempo e no espaço, com conseqüências diferenciadas en-tre essas doenças, embora, em dado processo produtivo,em certo espaço sociocupacional, possam ocorrer casosimediatos ou próximos de doenças recorrentes e aciden-tes do trabalho, mas a existência desses fenômenos nãopode levar a uma neutralização do risco ou do dano, umavez que ambos inserem-se em uma temporalidade sócio-histórica e cultural específica.

É possível, ainda, uma terceira dimensão que pode in-fluir na condição de saúde, embora os trabalhadoresvivenciem as mesmas circunstâncias de vida e de traba-lho, dadas por sua condição de classe, exercendo funçõessemelhantes, muitas vezes em uma mesma empresa ouocupação com relações de trabalho semelhantes, e quepodem ou não vir a ser afetados em sua condição de saú-de individual.

A dimensão social da saúde é “abrangente e correspondeao ciclo do capitalismo e às condições objetivas onde elese desenvolve. Ela se expressa nas relações sociais e deprodução e tem a ver também com as tecnologias dos pro-cessos produtivos e de organização do trabalho incorpo-rados pelas empresas. A causalidade mais ou menos apa-rente do trabalho com a ocorrência de doenças e acidentesé apenas um modo violento e explícito de evidenciar essadeterminação” (Ribeiro, 1997:65).

A Saúde do Trabalhador, diretamente vinculada ao pro-cesso de relações sociais de produção, apontou para anecessidade de uma discussão, de um debate e de umaintervenção na área denominada Saúde do Trabalhador narede pública de serviços de saúde no Brasil a partir dadécada de 80, impulsionada pelas lutas e reivindicaçõesdo movimento dos trabalhadores. Portanto, a área da Saúdedo Trabalhador surge como “uma prática social instituinte,que se propõe a contribuir para a transformação da reali-dade de saúde dos trabalhadores, e por extensão a da po-pulação como um todo, a partir da compreensão dos pro-cessos de trabalho particulares, de forma articulada como consumo de bens e serviços e o conjunto de valores,

crenças, idéias e representações sociais próprios de umdado momento da história humana” (Dias, 1995:27).

O objeto da Saúde do Trabalhador pode ser definidocomo o processo de saúde e doença dos homens em suarelação com o trabalho. Trabalho, no capitalismo, é en-tendido como a subsunção do trabalhador ao capital noprocesso produtivo de superexploração do trabalho hu-mano e extração da mais-valia, mas também compreendi-do como pólo de resistência e luta dos trabalhadores pormelhores condições de vida e trabalho, em que a saúde éparte constitutiva desse processo.

No Brasil, desde 1988 a Saúde do Trabalhador confi-gura-se como prática institucionalizada no interior do Sis-tema Único de Saúde e do ponto de vista da luta sindical.A CUT organiza o Instituto de Saúde no Trabalho parainstrumentalizar o processo de luta e negociação dos tra-balhadores. A política relativa aos benefícios acidentáriosfoi incorporada como cobertura prestada pela Previdên-cia Social, em 1969, constituindo-se no Seguro-Aciden-te. Alterações substantivas vêm sendo realizadas no Se-guro-Acidente, com a alteração do cálculo, com perdasvisíveis para os trabalhadores, além de alterações na sis-temática de comunicação do acidente.

É importante ressaltar que o governo FHC, embora játenha lançado a debate público a proposta de liquidaçãodo Seguro-Acidente, nos marcos da Previdência Públicaestatal, substituindo-a pela criação de Mútuas – organiza-ção associada constituída pelo patronato e pelos trabalha-dores –, acredita-se que a pressão do próprio movimentosindical tem dificultado a efetivação de tal proposta.

IMPACTOS DO REGIME DEACUMULAÇÃO FLEXÍVEL

A reestruturação produtiva no Brasil, com a preca-rização das relações de trabalho, a intensificação de rit-mos, a perda de postos de trabalho e a exigência depolivalência (requisições diferenciadas na atividadelaborativa) têm ampliado e agravado o quadro de doen-ças e riscos de acidentes nos espaços socioocupacionais.As inovações tecnológicas, a microeletrônica, a robóticae a automação presente na atual fase de reprodução docapital no plano internacional e nacional ampliam as doen-ças relativas ao trabalho, como a LER/Dort (lesões poresforço repetitivo e distúrbios osteomoleculares), em se-tores de produção individual ou de serviços, descortinandoum dos frutos mais dramáticos do processo de acumula-ção flexível e afetando, conseqüentemente, as condições

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de trabalho e de existência desses trabalhadores em seucotidiano nas diferentes esferas da vida social. Os regis-tros de LER/Dort incidem com maior freqüência em algu-mas atividades ocupacionais: digitadores, caixas de ban-co e comércio, telefonistas, empacotadores, trabalhadoresde empresas de processamento de dados, entidades comer-ciais e financeiras, indústria editorial e metalúrgica, entreoutros, e, particularmente, na área de telemarketing a LERtem crescido em ritmo acelerado. E nos quadros clínicosda LER/Dort, incluem-se: tenossinovite, tendinite, bursitee mionite, provocando inflamação em várias áreas dosmembros superiores. Esse quadro associa-se, de um lado,à incorporação de novas tecnologias, máquinas digitais,computadores e maquinário em geral, com a aceleraçãodo ritmo de trabalho, de modo que possa responder àsexigências do processo produtivo; de outro, as atividadesrepetitivas não qualificadas têm sido também responsá-veis por quadros de LER.

A precarização das relações de trabalho com demis-sões constantes, trabalho por tempo determinado, desem-prego, terceirização, quarteirização, perda de direitos so-ciais e trabalhistas são expressões de um conjunto deefeitos das relações de trabalho sobre a saúde do traba-lhador, como estafas, fadigas, ansiedades e insegurançapermanente, dores lombares e generalizadas, distúrbiosemocionais, dentre outros. Portanto: “os males da saúdeocasionados pela ausência de trabalho não são somenteaqueles vinculados à queda do nível de qualidade de vidae, conseqüentemente, da condição geral de saúde, mas,também, aqueles relacionados ao sofrimento mentaladvindos do sentimento de impotência individual, sensa-ção de carência de sentidos da vida, ausência de normas,distanciamento cultural e isolamento social, que resultamnormalmente em respostas psicológicas básicas, comoagressão, repressão, fixação (comportamentos rígidos eestereotipados), apatia (Lira e Weinstein apud Mattos etal., 1995:49).

É importante ressaltar que no cenário produtivo brasi-leiro convivem as novas tecnologias do processo de acu-mulação flexível e sua forma estruturante de trabalho comprocessos de trabalho fordista/taylorista clássicos, em queainda predominam os acidentes de trabalho típicos – am-putação, morte e doenças profissionais características deramos de produção como: silicose, asbestoses, hidrage-rinos, bezenismo, entre outras.

Os processos de terceirização e quarteirização têm sidoresponsáveis pela realização de atividades produtivas nointerior das residências dos trabalhadores, com expansão

do risco para além das fronteiras dos espaços socioocu-pacionais, atingindo crianças e mulheres. Outro aspecto aconsiderar é o do aumento da presença feminina em ativi-dades precarizadas, com baixos salários, sem direitosprevidenciários e trabalhistas. Para as que estão inseridas,formalmente, no mercado de trabalho, existe a constanteameaça de retirada desses direitos, como a licença-mater-nidade e a possibilidade de demissão no período de ges-tação (abandono da Convenção 103 da Organização In-ternacional do Trabalho).

A importação de mais tecnologia, por sua vez, tem con-figurado a transferência de tecnologias obsoletas e peri-gosas, causando danos ao meio ambiente e à saúde dapopulação.

As transformações profundas ocorridas nessa quadrahistórica, no ambiente da internacionalização do capital edo capitalismo em sua crise estrutural, com alterações sig-nificativas no processo produtivo e na esfera do Estado,vem destruindo conquistas sociais históricas da classe tra-balhadora na luta por melhores condições de vida e traba-lho. Essa razão destrutiva aliena ainda mais o trabalhohumano, apresentando um quadro de miséria e de destrui-ção da própria vida.

A relação saúde-doença é fortemente afetada nesse pro-cesso de barbarização da vida social pela investida dogrande capital. O desafio posto para a classe trabalhadoraé o de retomar seus instrumentos de luta – o partido e osindicato no âmbito da autonomia e da independência declasse. Estes, na última década, vêm sofrendo uma inflexãosignificativa com um giro do movimento na direção so-cial-democrata e abandono gradativo das lutas sociais emdetrimento de acordo na esfera da institucionalidade. Ogrande desafio para a classe trabalhadora é a retomadadas lutas imediatas por direitos sociais e trabalhistas, bemcomo sua perspectiva histórica de luta anticapitalista nohorizonte de uma sociedade emancipada de auto-organi-zação dos indivíduos livremente associados, na perspec-tiva marxiana.

NOTAS

1. Padrão produtivo do capitalismo caracterizado pela flexibilidade nosprocessos de trabalho, mercados, produtos e padrões de consumo.

2. Fordismo-taylorismo – padrão produtivo do capitalismo desenvol-vido no século passado, que tem como características: produção emmassa, produção concentrada e verticalizada, com controle de tempoe movimentos.

3. É a denominação estabelecida ao conjunto de medidas e políticasnecessárias à implementação do projeto neoliberal no continente Lati-

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no-americano, que tiveram o consenso do Fundo Monetário Internacio-nal (FMI), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird), doBanco Mundial e do governo norte-americano, em reunião ocorridaem Washington, em 1989.

4. Redimensionamento do papel do Estado, atribuindo-lhe como mis-são precípua a segurança, a fiscalização e a arrecadação. Ênfase àtransferência para a iniciativa privada de caráter público das polí-ticas sociais.

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MARIA BEATRIZ COSTA ABRAMIDES: Professora da Faculdade deServiço Social e Coordenadora do Núcleo Temático “Relações de Traba-lho” da PUC-SP.

MARIA DO SOCORRO REIS CABRAL: Professora da Faculdade deServiço Social e Coordenadora do Núcleo Temático “Qualidade de Vidae Saúde” da PUC-SP.

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DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

O

DOENÇAS DO TRABALHOexclusão, segregação e relações de gênero

Resumo: A partir do quadro geral dos acidentes e doenças do trabalho, analisam-se a evolução e as caracterís-ticas sociais e demográficas das LER/Dort na RMBH nos anos 90 do século XX. Para isso, retém-se a dinâmi-ca do mercado de trabalho e os mecanismos de exclusão e segregação que lhe são subjacentes, identificando,ao final, da perspectiva de ocupação e gênero, situações específicas e conseqüências diferenciadas à saúdedos trabalhadores.Palavras-chave: doenças do trabalho; LER/Dort; segregação ocupacional por gênero.

Abstract: Using as its basis a general overview of work-related accidents and illnesses, this article analyzesthe evolution and social and demographic characteristics of the LER/Dort in the RMBH in the 1990s. To thisend, consideration is given to the dynamics of the labor market and the underlying mechanisms of exclusionand segregation, ultimately identifying specific situations and unique consequences affecting worker healthaccording to occupational type.Key words: labor-related illnesses; LER/Dort; occupational and work-type segregation.

CELSO AMORIM SALIM

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 11-24, 2003

crescimento das LER/Dort entre as doenças dotrabalho vem sendo objeto de estudos tópicos di-versos. Todavia, mesmo pela justificativa da

multidisciplinaridade, a maioria das análises existentesconcentra-se basicamente em aspectos parciais ou espe-cíficos da etiologia da doença, reduzindo tanto aborda-gens mais amplas – inclusive em nível conceitual – quan-to o seu entendimento das rápidas mutações por que vempassando o mundo do trabalho.1

Abstraindo-nos de uma análise sobre as suas manifes-tações clínicas, pontua-se, no entanto, que, embora nãosejam doenças recentes, as LER/Dort vêm, sem dúvida,assumindo um caráter epidêmico, sendo algumas de suaspatologias crônicas e recidivas, ou seja, de terapia difícil,porque se renovam precocemente quando da simples re-tomada dos movimentos repetitivos, gerando uma inca-pacidade para a vida que não se resume apenas ao am-biente de trabalho.

Mesmo que vários fatores intervenham na formação dasLER/Dort, sua determinação, em última instância, perpassapela estrutura social, relacionando-se, sobretudo, com asmudanças em curso na organização do trabalho e secun-dariamente com as inovações tecnológicas peculiares à

reestruturação produtiva. E mais: sob as relações de gê-nero, o seu acometimento quantitativo maior expressa-se,sobretudo, através da mulher trabalhadora, fato diretamen-te relacionado não a uma “suposta” propensão biológica,mas, como veremos, ao papel e à forma de inserção damulher nas divisões social e sexual do trabalho. Por outrolado, a expansão dos casos de LER/Dort vem acarretan-do, pelos números ascendentes de benefícios pleiteadosou concedidos, fortes impactos no sistema de previdênciapública e, por conseguinte, na distribuição do ônus para oconjunto da sociedade.

Buscando a compreensão das determinações das LER/Dort no contexto da relação saúde-doença como processosocial resultante do desgaste do trabalho (Laurell eNoriega, 1989), tomamos como cenário de nosso objetode estudo as mudanças macros ocorridas no mercado detrabalho da Região Metropolitana de Belo Horizonte –RMBH nos anos 90. Vale dizer que, no contexto daRMBH, a análise da evolução e das características sociaise demográficas das LER/Dort, assim como das relaçõesde exclusão social e segregação ocupacional que lhe sãosubjacentes, será diretamente remetida às novas condiçõesde organização do trabalho.

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Nesse sentido, pela perspectiva sociológica e combase em diferentes fontes de dados, a investigaçãodireciona-se, em especial, para a análise das LER/Dortconsoante quatro aspectos: primeiro, o contexto da evo-lução das ocorrências de acidentes e doenças do traba-lho; segundo, a dinâmica do mercado de trabalho emgeral e na RMBH em particular, enfatizando-se os in-fluxos do emprego e desemprego e o Setor Serviços;terceiro, o quadro das mudanças sociodemográficas emcurso; quarto, a incorporação da categoria gênero,identificando situações específicas assim como asconseqüências diferenciadas à saúde de homens e mu-lheres. Especificamente, dados epidemiológicos doNusat2 – Núcleo de Referência em Doenças Ocupacionaisda Previdência Social são arrolados na perspectiva, atra-vés da análise comparativa, de compreender tanto a evo-lução do perfil das LER/Dort – isto é, segundo as variá-veis sexo, idade, escolaridade, ocupação e renda – como,em especial, os agravos resultantes da situação ocupa-cional dos trabalhadores e trabalhadoras distribuídossegundo os ramos de atividade econômica e tempo nasfunções inerentes às ocupações no mercado de traba-lho da RMBH.

Importante registrar que os dados do Nusat, amplos ebasicamente remetidos aos casos diagnosticados de doen-ças do trabalho, a par de facultarem a perspectiva analíti-ca proposta, constituem, no geral, exemplo concreto decomo podemos redirecionar ações conjuntas para amelhoria das estatísticas e indicadores sobre a saúde dotrabalhador. Isso, sem dúvida, não desconsiderando apotencialidade dos trabalhadores como rica fonte de in-formações para o delineamento de perfis apropriados datrajetória recente das doenças do trabalho na RMBH, mor-mente em seu mercado formal de trabalho. Afinal, desdea extinção do Nusat, e perante a não-realização de pes-quisas amostrais apropriadas, a RMBH necessita de in-formações mais acuradas sobre a questão, apesar de suainquestionável emergência.

APORTES TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Diante da complexidade do tema “reestruturação pro-dutiva” – no caso, englobando novo padrão tecnológico,mudanças organizacionais, novos valores e práticas degestão, novo perfil do trabalhador, etc. – e suas imbricaçõescom o processo de saúde do trabalhador em estruturascapitalistas, serão apontados abaixo apenas alguns elemen-tos teóricos atinentes ao tema “organização do trabalho e

determinação social do processo saúde-doença”, com oobjetivo de tão-somente destacar o fio condutor do pre-sente estudo.

Mudanças na Organização Social do Trabalho

As novas formas de organização do trabalho associa-das ao processo de reestruturação produtiva configuram-se como resposta à crise de realização capitalista ocorri-da no modelo anterior, caracterizado pela generalizaçãodos princípios tayloristas-fordistas.

Diante do novo modelo econômico surgido nos anos80 nos países avançados, destacam-se, consoante Pires(1998:45-46) “a grande importância do setor eletrônico;a intensa aplicação da tecnologia digital de base micro-eletrônica na estrutura industrial; e os progressos nos se-tores da química fina, dos novos materiais, da biotec-nologia e da engenharia genética, beneficiados com osprogressos da informática”. E mais: contrapondo-se à ri-gidez anterior, as mudanças suportam-se “no complexoeletrônico, e a automação integrada flexível é uma de suascaracterísticas mais importantes”.

No entanto, as mudanças no processo de trabalho, so-bretudo em formações capitalistas periféricas, caracteri-zaram-se pela justaposição de formas tradicionais e ino-vadoras, ou seja, através do que se poderia chamar de“modernização conservadora” com fortes resquícios dasegunda revolução industrial e tecnológica. Daí a manu-tenção e/ou revitalização dos princípios tayloristas-fordistas, pela desqualificação e controle autoritário daforça de trabalho (Braverman, 1977).

Na realidade, a par dessas inovações tecnológicas,advieram mudanças organizacionais que causaram impac-tos imediatos em todo o processo de trabalho. Exemplar-mente, ante a verticalização das empresas, promove-se aterceirização quando várias atividades passaram a serexternalizadas, possibilitando maiores trocas intersetoriais,a diversificação e ampliação do Setor Serviços, oenxugamento do quadro de pessoal das grandes empre-sas, etc. Ainda na direção do aprofundamento da divisãodo trabalho social, novos segmentos, refletindo a necessi-dade de rever custos e reduzir pessoal, indicam umapresumível terceirização da terceirização – a chamadaquarteirização – que implica o concurso de novas empre-sas para gerenciar atividades que foram terceirizadas, ouseja, “um maior enxugamento dos setores próprios daempresa que gerenciam o trabalho das empresas tercei-rizadas” (Pires, 1998:47).

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DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

É claro que esses processos não se restringem ao uni-verso fabril, avançando sobre o Setor Serviços e alteran-do suas clássicas funções, relações e condições de traba-lho (Offe,1989). Todavia, mesmo ampliando a suaparticipação na estrutura ocupacional, o Setor Serviços,diante dos impactos das novas tecnologias, não tem am-pliado suficientemente os postos de trabalho a fim de ab-sorver o desemprego gerado em outros setores (Pochmann,1999).

Ao lado da redução do emprego direto e da maiorsubcontratação de trabalhadores, as novas relações deprodução e formas de gestão se traduzem em alteraçõestanto na organização da produção – “just in time, layout,logística, redução do tamanho da planta, terceirizaçãoe parcerias com fornecedores” – como na organizaçãointerna do trabalho, “com redução de hierarquia, tra-balho em ilhas, trabalho mais qualificado no núcleoestável e pouco qualificado nas atividades secundárias”(Pochmann, 1999:35-36). Paralelamente, além dodeclínio do trabalho na produção e das mudanças nomercado e nas relações de trabalho, entre outras, des-tacando-se a desregulamentação, a flexibilização e o en-fraquecimento do poder sindical (Toledo, 1997), vêmocorrendo modificações profundas na natureza, signi-ficado e conteúdo do trabalho.

Mais especificamente, no processo de terceirização,várias conseqüências podem ser apontadas. Porém, lem-brando os seus possíveis impactos na saúde do trabalha-dor, destacamos as seguintes: a) segmentação e diferencia-ção dos trabalhadores quanto às condições de trabalho –por exemplo, em relação ao gradiente de afastamento desdeo centro da cadeia produtiva até as diversas unidades pe-riféricas; b) por um lado, pulverização da base e enfra-quecimento do poder sindical; por outro, flexibilizaçãodos direitos trabalhistas; c) redução dos empregos diretose indiretos ao longo da cadeia produtiva; d) intensifica-ção do ritmo de trabalho e aumento da pressão no am-biente de trabalho.

No Brasil, particularmente nas regiões metropolitanas,tais processos se suportaram na heterogeneidade do mer-cado de trabalho, caracterizado pela queda do empregono setor formal e expressiva elevação da ocupação no se-tor informal, que, por sua vez, inclui os “sem-carteira as-sinada” e os trabalhadores “por conta própria”. Esses,somados aos desempregados, indicariam não apenas o graude precariedade do mercado de trabalho como, sem dúvi-da, as bases em que se assenta o próprio processo deprecarização das condições de trabalho, atribuídos por

exemplo, à reprodução de baixos níveis salariais, à não-cobertura da seguridade social e à falta de assistênciamédica. Processo, hoje, que não pode ser exclusivamenteimputado ao setor informal do mercado de trabalho, pois,em direções e graus variados, também tem avançado so-bre o contingente de trabalhadores registrados.

Determinação Social das LER/Dort

Consoante Laurell e Noriega (1989), pressupõe-se quea partir da determinação histórica e social dos processosde saúde e doença se torna possível analisar os impactosdos ambientes de trabalho (condições materiais) e dasformas de organização do trabalho (condições sociais his-toricamente determinadas) na vida dos trabalhadores.

Por conseguinte, essenciais não são as característicasestáticas do posto de trabalho, mas os “movimentos dinâ-micos dos elementos do processo de trabalho”. Enfim, ascausas como expressão particular da forma específica dese produzir e, portanto, de trabalhar, ou melhor, de inser-ção na estrutura social via divisão social do trabalho, ins-tância que torna possível a análise das formas de desgastedas cargas de trabalho e sua relação com as doençasocupacionais. Isso porque “a construção teórica da rela-ção entre processo de valorização, processo de trabalho,cargas de trabalho e processo de desgaste confere certacapacidade de predição com relação ao que caracteriza opadrão de desgaste de um determinado grupo de trabalha-dores” (Laurell e Noriega, 1989:110).

No caso das LER/Dort, a retenção do caráter social doprocesso saúde-doença e de sua determinação possibilita,diante de suas diversas patologias, entender suas mani-festações de forma concreta, isto é, em seus aspectosmultifáticos remetidos às condições organizacionaispatogênicas. Evita-se, assim, a centralidade da análise dasLER/Dort nos “fatores” – pautada, por exemplo, em ex-plicações multicausais ou multifatoriais – que, via de re-gra, reduzem, através do paradigma médico dominante,as LER à condição de fenômeno biológico e individual,cujo diagnóstico clínico, aliás, problemático, tem sidoobjeto de grandes controvérsias. Contrapondo-se às abor-dagens meramente aditivas, Lima (1997:249) aponta: “en-quanto as dimensões organizacionais, estruturantes essen-ciais da situação de trabalho, forem consideradas apenascomo mais um ‘fator’ dentre outros, como acontece comas abordagens tradicionais, as LER permanecerão um pro-blema incompreensível e as tentativas de sua prevenção,inefetivas”.

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EMPREGO E PRECARIZAÇÃO DIANTE DEACIDENTES E DOENÇAS DO TRABALHO

Quadro Geral

No último quartel do século XX, o Brasil apresentouum quadro bastante adverso em relação tanto à expansãodo mercado de trabalho quanto à melhoria das condiçõeslaborais daqueles que, a expensas do número crescentede excluídos, ali se encontravam engajados.

Em um contexto duplamente caracterizado pela pro-longada estagnação econômica das décadas de 80 e 90 –também conhecidas como “décadas perdidas” – e pelaabertura unilateral de mercado, observaram-se, além dainevitável “exportação de empregos” para outros países,mudanças internas de monta na organização e nos proces-sos de trabalho, seja através da adoção de novas tecno-logias, seja em nome da competitividade, por meio da ra-cionalização da produção, sobretudo por mudançasorganizacionais voltadas à redução de custos. Mais que aprimeira, basicamente atrelada à inovação, a última foi tidacomo a principal responsável tanto pela elevação da taxade desemprego como pela maior precarização das condi-ções de trabalho em geral, por exemplo, por subcontra-tações ou terceirização.

Particularmente, os anos 90 foram piores em indicado-res do mercado de trabalho. O índice de desemprego paraaquela década foi, em média, de 6,1%. Vale dizer, por umlado, que a cada ano da década de 90, cerca de 570 miltrabalhadores perderam seus postos, conforme atestam osdados da Fundação IBGE. Por outro, segundo a PNAD,também realizada pelo IBGE, a mera elevação do empre-go informal e da subcontratação no total de ocupados de41,5% para 49,4%, entre 1990 e 1997, resultou no incre-mento de 6,4 milhões de trabalhadores3 sem qualquer pro-teção legal, ou seja, simultaneamente sob os impactos daexclusão de direitos e da precarização no ambiente de tra-balho. E, como vimos, o Setor Serviços, mesmo amplian-do a sua participação relativa na estrutura geral de em-pregos, diante de sua nova inserção econômica, não temsido capaz de se contrapor ao desemprego ascendente,especialmente nas regiões metropolitanas.

No entanto, como sorte de contradição, foi nesse contex-to que emergiram propostas de flexibilização do mercado detrabalho voltadas à redução tanto da jornada de trabalho, porbanco de horas, como de direitos trabalhistas, por regimesjurídicos diferenciados, em que, especialmente para a pequenae média empresa, aventou-se inclusive a reversão de direitos

já consignados.4 Isso sem desconsiderar que, paralelamenteàs deficiências na cobertura da fiscalização, foi – e continuasendo – inexpressivo o aumento de cláusulas sobre saúde econdições de trabalho nos Acordos Coletivos de Trabalho(Salim, 2001).

Em outras palavras, um quadro caracterizado por doisaspectos: por um lado, pela retração do mercado de tra-balho; por outro, pelo avanço na deteriorização das con-dições laborais daqueles cujos postos ou ocupações seencontram em níveis diferenciados de formalidade dasrelações contratuais ou empregatícias. Situação, enfim, quetem trazido importantes reflexos nas variações e tendên-cias dos acidentes do trabalho no país.

Entrementes, paralelamente à redefinição do Setor Ser-viços, ocorreram a queda dos assalariados na participa-ção total da população economicamente ativa (PEA) e oincremento de todo o mercado informal de trabalho. O úl-timo, hoje, em muitos casos, com participação majoritá-ria no mercado de trabalho e indícios de saturação na ab-sorção de trabalhadores excluídos do setor formal,traduz-se, inexoravelmente, no maior número de trabalha-dores à margem dos direitos sociais, como o acesso à pre-vidência social e ao bem-estar no ambiente de trabalho,através do inalienável direito a saúde e segurança.

De forma reflexa, as estatísticas disponíveis indicaram,no final da década, uma nova tendência quanto ao quadroacidentário no país. Em 1999, pela primeira vez na histó-ria laboral do país, tivemos uma maior ocorrência de aci-dentes do trabalho no Setor Serviços. Segundo a Previ-dência Social, enquanto, entre 1997 e 1999, a participaçãodesse setor subiu de 38,7% para 44,6%, inversamente, aparticipação da Indústria caiu de 49,2% para 44,2%.5 Par-ticipação, inclusive, que se estende ao número de casosfatais, ou seja, às mortes decorrentes de acidentes do tra-balho. Nesse particular, destacaram-se os grupos ocupa-cionais dos ramos de atividade Serviços e Comércio eTransporte e Comunicação, como destacou Waldvogel(2002). Aliás, a autora, em sua criteriosa análise, apontaa emergência de se considerarem os fatores exógenos aoambiente de trabalho na detecção dos riscos intrínsecosdos acidentes do trabalho, especialmente nos casos em queos trabalhadores têm ampliado para o espaço público olocal de trabalho, incorporando, neste caso, novos riscosàs suas atividades laborais como, por exemplo, a violên-cia do cotidiano, expressa, principalmente, nas taxas dehomicídios, acidentes com veículos a motor, atropelamen-tos, etc. Eventos, infelizmente, muitas vezes à margem dasestatísticas disponíveis sobre acidentes do trabalho.

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DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

Razão, dentre outras, que impõe a não-desconsideraçãodos limites intrínsecos nas fontes de dados que interferemna qualidade das informações sobre o quadro de saúde-doença relacionado ao trabalho no Brasil (Salim, 1999).Isso porque, basicamente referidas à infortunística dostrabalhadores do setor formal urbano, as estatísticas ofi-ciais resumem-se, sobretudo, aos indicadores mínimos ede cunho burocrático – uma vez que, no geral, o são parafins dos benefícios previdenciários dos trabalhadoresregistrados – dos efeitos do trabalho no quadro de aci-dentes típicos e de trajeto, incapacidades permanentes outemporárias e mortes provocadas. Exatamente por isso sãotidas como subestimadas, retratando apenas parcialmentea realidade acidentária do mercado de trabalho brasileiro.

Apesar disso, e ainda consoante dados da PrevidênciaSocial, mesmo com a queda do número total de acidentesdo trabalho, incluindo aí o número absoluto de mortes, aproporção de acidentes graves e o número de mortes poracidentes registrados, cresceram no tempo, ou seja, seugrau de letalidade, especialmente até 1995, quando, à ex-ceção de 1992, os índices foram ascendentes, voltando,no entanto, a recrudescer ao final da década de 90.

Por outro lado, inversamente à queda absoluta dos aci-dentes de trabalho, ocorreu um forte crescimento das doen-ças relacionadas ao trabalho durante toda a década de 90,valendo aqui assinalar as mais diretamente relacionadasàs recentes mudanças na organização do trabalho, em queas LER/Dort afiguraram-se como caso emblemático.

De fato, como reflexo de novos riscos nos processosprodutivos e nos ambientes de trabalho, houve uma forteelevação nos coeficientes de doenças profissionais nosanos 90.6 E isso foi mais do que sintomático, na medidaem que, afora outros motivos, esses coeficientes retrata-ram um momento – mais precisamente, o final da décadade 90 – em que se ergueu, por parte do Ministério da Pre-vidência e Assistência Social, um verdadeiro “biomboinstitucional” para dificultar o diagnóstico e o reconheci-mento de tais doenças, especialmente das LER/Dort, e,por conseguinte, a consignação de direitos aos lesionados(Araújo, 2001).7 Por outro lado, ainda que eloqüentes, sãocoeficientes que não podem ser dissociados de problemasinerentes às conhecidas dificuldades de melhoria nos sis-temas de notificação das doenças do trabalho em diferen-tes contextos institucionais, ou seja, são calcados em ine-quívoca subenumeração de casos de doenças do trabalho.

Pesquisa recente do Instituto Nacional de Prevençãodas LER/Dort (Prevler), realizada pelo Datafolha, comfinanciamento do Ministério da Saúde,8 mostrou que,

apenas na cidade de São Paulo, cerca de 310 mil traba-lhadores sofrem de LER/Dort, ou seja, casos realmentediagnosticados. Isso equivale a 4% de todos os pau-listanos acima de 16 anos de idade e 6% de todos ostrabalhadores da cidade. Número, aliás, muito acima dos19 mil casos dessas doenças contabilizados pelo Mi-nistério da Previdência no ano de 2000.9 E mais: apesquisa da Prevler aponta que esse número pode estaraquém da realidade, uma vez que 4,7 milhões de traba-lhadores relataram algum sintoma decorrente dessasdoenças e 508 mil trabalhadores encontravam-se ocu-pados em situações de risco, fato que pode transformá-los em novos portadores de LER/Dort – doença, regis-tre-se, que tem sido a responsável pelo maior númerode afastamentos do trabalho em São Paulo.

Situação e Tendências em Belo Horizonte

As variações nos indicadores demográficos, de empregoe condições de saúde e segurança no trabalho na RMBH,apontam para uma tendência divergente ou, até, parado-xal.

Segundo o IBGE, enquanto o crescimento populacionaldecresceu de 2,5% para 1,9%, respectivamente nos perío-dos de 1980-91 e 1991-96, a PEA cresceu, em média, 0,4%ao ano no último período, passando de um contingente de1.610,4 mil para 1.642,5 mil pessoas.10 Já a taxa de de-semprego, refletindo a crise econômica que se estendedesde os anos 80, em elevação progressiva, saltou de 4,1%,em 1991, para 4,6%, em 1996.11

Quadro, na verdade, fortemente caracterizado pelomovimento geral de “desassalariamento” e precarizaçãodo trabalho vis-à-vis ao crescimento de ocupações nomercado informal de trabalho, que sozinho respondeu porquase 50% de todas as ocupações no âmbito da RMBH,segundo a PME.

Considerando a distribuição das pessoas que trabalha-ram segundo a posição na ocupação, verificou-se, aindasegundo o IBGE, um decréscimo absoluto e relativo nonúmero de trabalhadores com carteira assinada, que pas-sou de um contingente de 804,8 mil, em 1991, para 736,2mil, em 1996, implicando uma taxa média anual negativade 1,8%. Em contrapartida, o número de ocupados semcarteira assinada – isto é, não-registrados – , crescendo auma média de 3,9% ao ano, saltou, no período, de 339,5mil para 394,3 mil trabalhadores. Já a categoria dos tra-balhadores “por conta própria” aumentou de 328,7 mil para353,8 mil indivíduos, ou seja, 1,4% ao ano. Em relação

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ao total da população ocupada na RMBH, as duas últimascategorias representaram 42,4% e 47,7%, respectivamente,nos anos 1991 e 1996.

Apesar do caráter parcial das estatísticas disponíveissobre os agravos à saúde do trabalhador – mesmo em re-lação à cobertura do setor formal (Salim, 2000b) –, ob-servou-se, no âmbito da RMBH, o contraditio relaciona-do à diminuição dos acidentes de trabalho, por um lado, eelevação dos índices de doenças ocupacionais, por outro.Tendência que, guardadas as devidas proporções, foi amesma observada para o conjunto do Estado de MinasGerais. Tal tendência reverteu-se a partir de 1998, quan-do então se observou uma brusca e inusitada queda nosregistros de doenças do trabalho em relação ao conjuntode acidentes do trabalho registrados nas publicações daPrevidência Social. Situação basicamente explicada pelaimposição de novas condições para os diagnósticos clíni-cos, apesar da manutenção das condições produtoras dasdoenças e tibieza das ações preventivas na área no perío-do (Gráfico 1).12

Entre 1991 e 1996, Minas Gerais registrou, cumulati-vamente, 21.158 casos dessas doenças. Apenas em 1996foram 8.010 casos, o que representou um crescimento de55,6% em relação ao ano anterior. Desses, um total de4.587 registros, correspondendo a 57,3% do total para oEstado, referia-se aos municípios mais industrializados daRMBH: Belo Horizonte (3.063), Contagem (1.063) eBetim (461).13

GRÁFICO 1

Evolução dos Acidentes Típicos e Doenças do TrabalhoMinas Gerais – 1990-96

GRÁFICO 2

Distribuição dos Atendimentos das Doenças do Trabalho, por DiagnósticoMinas Gerais – 1996

A ascensão dos casos de LER/Dort nos anos 90, alémde facultar índices já caracterizados como epidêmicos,indica, sem dúvida, a sua maior proeminência entre todasas doenças ocupacionais atendidas pelo Nusat/INSS-MG.Aliás, essas doenças não foram apenas crescentes emdiagnósticos, como também se tornaram campeãs absolu-tas na distribuição dos benefícios acidentários por espé-cie diagnosticada.14

Em adição ao Gráfico 2, vale registrar que, ainda em1996, a maior incidência das LER/Dort no rol das doen-ças ocupacionais confirma que estão em primeiro lugartanto nos atendimentos individuais (49,2%) como nos aten-dimentos coletivos (92,3%) do Nusat. Sintomaticamente,mesmo nos atendimentos por ausência de doença profis-sional, as suspeitas de LER foram as mais expressivas(32,6%), seguidas, de longe e em ordem decrescente, pe-las suspeitas de leucopenia (22,1%), perdas auditivasinduzidas por ruído – Pair (18,6%), asma/alergia respira-tória (5,8%), etc.

Considerando-se todo o período 1991-96 (Tabela 2),o incremento das LER/Dort na RMBH, estimado pela taxageométrica de crescimento, ocorreu a uma taxa média de32,8% ao ano. Valor que, além de preocupante como ques-tão de saúde pública, foi muito superior a qualquer outroindicador sociodemográfico apresentado anteriormente.

CARACTERIZAÇÃO E ANÁLISE DAS LER/DORT

Veremos que as manifestações das LER/Dort, atendo-seaos mecanismos de exclusão social, se dão por diferencia-Fonte: INSS/Beat – Boletim Estatístico de Acidentes do Trabalhador, 1990-1996.

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1996.(1) Perda auditiva induzida por ruído.

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DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

ções marcantes tanto em suas características sociodemo-gráficas – sexo, idade, escolaridade e renda – quanto em suarelação com os diferentes ramos de atividade econômica e afunção desempenhada pelo lesionado na estrutura ocu-pacional, sendo esta última decisiva na compreensão dasformas de desgaste e adoecimento do trabalhador.

Esta parte do artigo reporta-se parcialmente a traba-lhos anteriores do autor, em que também foram utilizadosdados do Nusat. Dados que resultaram de consultas exaus-tivas em seus arquivos e relatórios disponibilizados. Par-te desse material, em forma de pôster, foi apresentada noVI Congresso da Abrasco (Salim, 2000a). Outra parte, deforma mais estruturada, foi utilizada em outro trabalho(Salim, 2001), do qual reproduzimos as tabelas 1, 4 e 5,na íntegra. No entanto, os demais quadros e tabelas foramremodelados e organizados conforme o escopo deste tra-balho,15 o qual redireciona a análise para as novas dimen-sões das LER/Dort, no que diz respeito ao seu caráter deexclusão social, decorrente tanto da segregação ocupacio-nal como das relações de gênero que lhe são peculiares.

Perfil Sociodemográfico

Uma análise da estrutura etária dos trabalhadores porta-dores de LER/Dort indica uma clara predominância de ca-sos na faixa etária de 30 a 39 anos, cujas taxas, refletindoparticipações extremas em dois momentos, oscilaram de43,5%, em 1994, para 36,0%, em 1998. Tendo comoreferencial o intervalo de 20 a 39 anos, os percentuais na-queles anos foram 74,4% e 59,9%, respectivamente. Apesardo relativo envelhecimento dos lesionados no tempo, até 1997as freqüências relativas dos diagnósticos de trabalhadores

vitimados, com idades entre 20 e 39 anos, não foi inferior adois terços dos casos registrados. Por outro lado, conside-rando-se toda a série estatística (Tabela 1), observou-se que,apenas em 1994, não ocorreu qualquer registro de portadorde LER/Dort entre trabalhadores com menos de 20 anos deidade – situação, infelizmente, não verificada nos demais anos,quando então, mesmo de forma oscilante, constataram-seregistros de casos.16

Quanto à distribuição dos casos por sexo, por ora des-tacamos que, nos anos 90, as LER/Dort atingiram sobre-maneira e de forma ascendente a mulher trabalhadora naRMBH.

Se no período 1991-96 responderam, em média, porquase três quartos dos casos diagnosticados, essa relaçãode tendência aumentou no tempo, passando de 76,0%, em1996, para 80,0%, em 1998 (Tabela 2).

TABELA 1

Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, segundo Faixa EtáriaRegião Metropolitana de Belo Horizonte – 1992-98

Faixa EtáriaPessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat

1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

Total (Nos Absolutos) 328 550 554 1.160 1.703 1.373 815

Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Até 20 Anos 1,2 1,5 - 0,7 1,8 0,8 1,5

20 a 29 Anos 42,4 42,2 30,9 36,8 34,1 29,6 23,9

30 a 39 Anos 36,3 37,1 43,5 37,0 37,2 39,5 36,0

40 a 49 Anos 17,1 16,5 21,8 21,7 21,8 25,3 31,4

50 ou Mais 3,0 2,7 2,9 3,7 5,2 4,7 7,1

Não-Declarado - - 0,9 0,1 0,0 0,0 0,1

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1992-1998.

TABELA 2

Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, por SexoRegião Metropolitana de Belo Horizonte – 1991-98

Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat

Anos Mulheres HomensTotal

Nos Absolutos % Nos Absolutos %

1991 249 75,5 81 24,5 330

1992 237 75,7 76 24,3 313

1993 384 69,8 166 30,2 550

1994 400 72,2 154 27,8 554

1995 830 71,6 330 28,4 1.160

1996 1.295 76,0 408 24,0 1.703

1997 1.086 79,1 287 20,9 1.373

1998 652 80,0 163 20,0 815

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1991-1998.

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Mesmo disponível apenas após 1994, a série históricade dados sobre os níveis de escolaridade do portador deLER/Dort apresenta uma importante inversão de tendên-cia. Como tal pode ser considerada como um dos sinto-mas de aprofundamento da exclusão social.

De fato, constata-se o seguinte: enquanto caiu a inci-dência de trabalhadores lesionados de nível superior –passando de 22,4%, em 1994, para apenas 9,6%, em 1998 –,aumentou o registro daqueles cuja escolaridade não ultra-passava o primeiro grau, ou seja, com menos de oito anosde estudos: de 1994 a 1998, passou de 30,1% para 45,7%(Tabela 3). Índices que corroboram a relevância do nívelde escolaridade como elemento de peso na eficácia dasações preventivas voltadas à minimização dos danos desaúde no ambiente de trabalho.

De forma similar à escolaridade, a medição da variá-vel salário por faixas de salários mínimos para a caracte-rização dos lesionados – que também passou a ser com-putada apenas a partir de 1994 – aponta, ao longo dotempo, para a tendência de maior incidência da doençaentre os situados na base da pirâmide social – fato quereforça o seu caráter socialmente excludente.

Na realidade, o crescimento relativo dos portadores deLER/Dort com rendimento mensal situado entre um e doissalários mínimos elevou-se de 11,9%, em 1994, para29,8%, em 1998. Considerando a faixa de lesionados querecebem até três salários mínimos, os índices foram 32,5%e 45,2%, respectivamente. Ainda no mesmo período, asmaiores quedas observadas foram na faixa intermediáriade três a cinco salários – de 23,7% para 18,2% – e na fai-xa dos que recebiam mais de cinco salários – de 38,1%para 27,0%. Todavia, em relação à penúltima faixa, o pontode inflexão, no sentido de descenso da curva, ocorreu apartir de 1995, quando, segundo os dados do Nusat, asLER/Dort passaram a ser mais diretamente associadas aostrabalhadores de menor renda (Gráfico 3).

Segundo Ramos de Atividade Econômica e Ocupações

Na caracterização das LER/Dort segundo ramos de ati-vidade e ocupações, constatou-se, de longe, uma maiorparticipação do setor Serviços no cômputo geral dos ca-sos diagnosticados. Situação, no entanto, que não se resu-me apenas aos casos de doenças de trabalho, posto queoutras modalidades de acidentes do trabalho – típico e detrajeto – também têm se estendido àquele setor. Comovimos, isso estaria relacionado a processos aparentemen-te díspares, porém não-divergentes, como a reorganiza-

ção do trabalho, o avanço da precarização e os impactosdas novas tecnologias.

Conforme Tabela 4, ao final do período localizado,apenas os ramos compostos pelas instituições financeiras,comércio varejista e prestação de serviços voltados àsempresas que, sozinhos, responderam por 39,4% dos ca-sos de LER/Dort na RMBH. Vale lembrar que no últimoramo estão as atividades de terceirização, como, por exem-plo, os serviços de vigilância, segurança e limpeza.

Em um período de seis anos, compreendido entre 1992e 1998, as instituições financeiras reiteradamente conti-nuaram campeãs na produção das LER/Dort.17 Também

TABELA 3

Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat,segundo Escolaridade

Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1994-98

EscolaridadePessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat

1994 1995 1996 1997 1998

Total (Nos Absolutos) 554 1.160 1.703 1.373 815Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Não-Alfabetizado 0,7 0,9 1,1 0,7 2,0

1º Grau 29,4 41,6 46,2 40,4 43,7

2º Grau 45,5 39,7 40,2 41,2 43,9

Superior 22,4 15,0 12,2 13,9 9,6Técnico 0,7 1,6 0,0 0,0 0,0

Não-Declarado 1,3 1,4 0,5 3,8 0,9

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1994-1998.

GRÁFICO 3

Distribuição dos Atendimentos de LER/Dort,por Faixa de Salários Mínimos (SM)

Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1994-98

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1994-1998.

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DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

foi considerável o aumento na participação do comérciovarejista – supermercados e lojas de artigos variados –que, desde 1996, aproxima do índice das instituições fi-nanceiras. Em 1998, enquanto essas intituições responde-ram por 13,9% dos diagnósticos de LER/Dort, o comér-cio varejista, que também passou pela modernizaçãotecnológica, respondeu por 12,6%, ocupando, ainda, osegundo e terceiro lugares nos anos de 1996 e 1997, res-pectivamente 13,0% e 12,7%.

Por fim, dois outros ramos de atividade devem ser des-tacados: serviços de saúde e prestação de serviços. O pri-meiro, ironicamente por pertencer ao setor saúde, mas tam-bém porque sofreu impactos da sua reestruturação produtiva –como terceirização e o uso intensivo de novas tecnologias(Pires, 1998) –, elevou sua participação na incidência dasLER/Dort de 4,7%, em 1993, para 11,5%, 1998, passandodo oitavo para o quarto lugar no período.18 O segundo, atre-lado ao processo de terceirização e expandindo-se veloz-mente no período, destacou-se sobretudo no ano de 1998,quando, com 12,9% dos casos, representou o segundo ramocom o maior número de trabalhadores acometidos por LER/Dort na RMBH. Comparativamente, seu valor foi de 8,1%em 1997 (Tabela 4).19

Consoante tal situação, foram constatadas mudançasexpressivas no perfil das ocupações dos trabalhadores por-tadores de LER/Dort atendidos e diagnosticados no Nusat.

Inicialmente, o maior número de diagnósticos dessasdoenças concentrou-se na categoria dos digitadores, que

ocupou o primeiro lugar em todo o período 1991-1994.Na época, o segundo e terceiro lugares foram os seguin-tes: telefonista e auxiliar de produção na indústria eletrô-nica, em 1991; auxiliar administrativo e telefonista, em1992; auxiliar de escritório com digitação e caixa bancá-rio, em 1993; caixa bancário e auxiliar de escritório, em1994.20

Na segunda metade dos anos 90, os digitadores perde-ram a posição de liderança anterior. Situação explicadapelas evidências de diferenciações nas condições de tra-balho por categoria, basicamente decorrentes de açõespreventivas tópicas ou, o mais provável, pela maior mo-bilidade do trabalho, possibilitada, por exemplo, pelarotatividade da mão-de-obra. De qualquer forma, outrasocupações tornaram-se ou permaneceram relevantes nasmanifestações das LER/Dort, como trabalhadores dos ser-viços de saúde, caixas comerciários, faxineiras e traba-lhadores dos serviços de limpeza, caixas bancários e es-criturários (Tabela 5).

Sobre o Desgaste da Força de Trabalho

Como destacamos anteriormente, a exposição direta aosriscos em diferentes ambientes de trabalho determinaria,segundo a categoria das ocupações, escalas variadas nodesgaste físico do trabalhador. Situação que, diante daqualidade e natureza dos dados acessados, aqui será ana-lisada apenas da perspectiva da distribuição dos casos

TABELA 4

Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, segundo Ramo de Atividade Econômica (1)Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1992-98

RamosPessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat

1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

Total (Nos Absolutos) 328 550 554 1.160 1.703 1.373 815

Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Instituições Financeiras 23,8 26,7 35,4 20,5 16,7 21,0 13,9

Serviços de Comunicação 10,7 - 6,5 - - - -

Indústria Siderúrgica e Metalúrgica 6,1 - - - - - -

Indústria de Material Elétrico e Eletrônico - 10,5 - 9,2 - - -

Serviços de Saúde - - - 11,9 10,2 10,8 -

Comércio Varejista - 8,0 - - 13,0 12,7 12,6

Serviço Administrativo de Locação de Bens Móveis - - 10,3 - - - -

Prestação de Serviços - - - - - - 12,9

Outros 59,5 54,7 47,8 58,4 60,0 55,6 60,6

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1992-1998.(1) Para cada ano, estão relacionados somente os três ramos que apresentaram o maior número de casos de LER/Dort. Daí o superdimensionamento de “Outros”.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

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diagnosticados por tempo de ocupação ou de exercícioprofissional em dada função.

No período focalizado, mesmo tendo diminuído osdiagnósticos de LER/Dort entre os trabalhadores compouco tempo na ocupação, observou-se, no geral, aindauma elevada proporção desses trabalhadores portadoresde LER/Dort, tendência que ocorreu – em graus e/ou ra-

TABELA 5

Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, segundo Ocupação (1)Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1995-98

OcupaçãoPessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat

1995 1996 1997 1998

Nos Absolutos % Nos Absolutos % Nos Absolutos % Nos Absolutos %

Total 1.160 100,0 1.703 100,0 1.373 100,0 815 100,0Auxiliar Administrativo/Auxiliar de Escritório 119 10,3 201 11,8 143 10,4 87 10,7

Digitador - - 155 9,1 - - 47 5,8

Caixa Bancário 112 9,7 149 8,7 124 9,0 70 8,6

Faxineira/Auxiliar - - 129 7,6 154 11,2 98 12,0

Caixa Comércio - - 104 6,1 97 7,1 69 8,5

Escriturário - - - - 82 6,0 - -

Trabalhador de Serviço de Saúde 95 8,2 - - - - - -

Montador de Chicote 82 7,1 - - - - - -

Trabalhador Industrial de Material de Transporte 74 6,4 - - - - - -

Outros 678 58,4 965 56,7 773 56,3 444 54,5

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1995-1998.(1) Para cada ano, estão relacionadas apenas as cinco ocupações que apresentaram o maior número de casos de LER/Dort.

mos de atividade variados – paralelamente à crescenterotatividade da mão-de-obra, informatização e automaçãode processos.

As ocorrências entre aqueles com até dois anos de tra-balho, isto é, a partir de 1996, ainda permaneceram ele-vadas (Tabela 6): entre 1996 e 1998, os trabalhadores comtempo de trabalho segundo os estratos de 2 a 4 e de 4 a 9

TABELA 6

Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat,segundo Tempo de Função

Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1994-98

Tempo de FunçãoPessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat

1994 1995 1996 1997 1998

Total (Nos Absolutos) 554 1.160 1.703 1.373 815

Total (%) (1) 39,5 (1) 39,2 100,0 100,0 100,0

< 6 Meses 1,1 1,4 2,1 1,9 1,3

De 7 Meses a 2 Anos 8,5 9,4 21,4 16,5 9,8

De 2 a 4 Anos 6,9 8,4 18,4 15,8 18,4

De 4 a 9 Anos 10,1 9,5 26,0 27,7 24,8

De 9 a 14 Anos 7,9 5,2 13,0 17,7 27,7

> 14 Anos 5,1 4,6 17,1 19,4 16,8

Não-Declarado 0,0 0,8 2,1 1,1 1,1

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1994-1998.(1) Os dados dos relatórios estão incompletos para os anos assinalados.Nota: Para 1994, o valor 39,5% corresponde a um total de 219 casos, assim distribuídos: 92digitadores, 91 caixas bancários, 23 montadores de chicotes e 13 operadores de produção na in-dústria automobilística; para 1995, o valor de 39,2% corresponde a um total de 455 casos, assimdistribuídos: 82 montadores de chicote, 112 caixas bancários, 119 auxiliares administrativos e deescritório, 68 digitadores e 74 trabalhadores na indústria de material de transporte.

GRÁFICO 4

Distribuição dos Atendimentos de LER/Dort, por Tempo de FunçãoRegião Metropolitana de Belo Horizonte – 1994-98

Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1994-98.

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DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

anos de atividade laboral (Gráfico 4) representaram, emmédia, respectivamente, cerca de 20% e 25% dos casosdiagnosticados.

LER/DORT E GÊNERO

Na Tabela 2 constatamos que as LER/Dort acomete-ram majoritariamente a mulher trabalhadora da RMBH,em curto espaço de tempo e de forma ascendente.

Sem dúvida, os números citados, mais do que merossuportes para indicadores quantitativos, em tese, reves-tem-se de riqueza de significado, constituindo-se emreferencial ou ponto de partida para análises cujos desdo-bramentos teóricos poderiam ser amplos no planointerdisciplinar. Contudo, da perspectiva da análise for-mal, tais números não possibilitam uma adequada carac-terização das LER/Dort no contexto das relações de gê-nero, pois seriam necessárias desagregações que não foramdisponibilizadas pelo Nusat mas apenas os totais paraambos os sexos, em relação às seguintes variáveis: esco-laridade, rendimento, ramo de atividade, ocupação e tem-po na função dos lesionados.

Buscando superar essa lacuna, Wajnman et al. (1998)propõem, segundo sexo e grupos de base de ocupaçõesda Rais, importantes questões sobre a hipótese deprevalência dessas doenças entre as mulheres – no caso,em parte, porque se referem apenas à distribuição dos casosde LER/Dort via dados do Nusat até 1996.

Desse modo, para o ano 1996, as autoras analisaramdois aspectos: o efeito de composição da sobredetermi-nação feminina nas ocupações mais prevalentes em LER/Dort sobre a incidência diferencial por sexo21 e as tendên-cias recentes de contratações de mulheres nas ocupaçõesmais prevalentes.

No primeiro caso, mesmo que novas análises sejamnecessárias, constatou-se a predominância feminina noscasos de LER/Dort. Segundo as autoras, “os casos femi-ninos superam largamente os 50%, exceto em cinco gru-pos: operadores de máquinas-ferramenta, classificadoresde correspondências, carteiros e mensageiros, trabalhado-res metalúrgicos e siderúrgicos não-classificados, repara-dores de equipamentos elétricos e eletrônicos e pintores edecoradores de vidro e cerâmica”. Sendo assim, hipoteti-camente, por meio de estatísticas padronizadas, se os pe-sos dos sexos fossem similares, a proporção de mulherescom LER/Dort seria “sempre e muito acima dos 50%,exceto apenas nos grupos de classificadores de correspon-dência, carteiros e mensageiros e trabalhadores meta-

lúrgicos e siderúrgicos não-classificados, nos quais o pesorelativo da participação feminina é ínfimo” (Wajnman etal., 1998:12).

Como o maior número de casos entre as mulheres nãopode ser justificado em função da maior participação daforça de trabalho feminina naquelas ocupações mais rela-cionadas a tais doenças, vale lembrar que dados agrega-dos em níveis maiores podem, inclusive, mascarar as for-mas nas quais as relações de gênero se materializam numamesma ocupação, em que, por exemplo, a mulher acabaassumindo tarefas mais monótonas e repetitivas, comoobservaram Cândido e Neves (1997).22

Como as LER/Dort não são outra coisa senão reflexoda impossibilidade de controle dos trabalhadores sobre aprópria saúde, a expressão de sua desigualdade segundoo gênero revela seu lado trágico quanto à maior exposi-ção e exploração da mulher como força de trabalho – si-tuação, enfim, resultante do processo histórico de segre-gação ocupacional (Oliveira; Ariza, 1997), que, no geral,vem imputando à mulher um conjunto diferenciado de ta-refas específicas, ou seja, mais repetitivas e monótonas.

Exatamente por isso, é essencial ir além da divisão dotrabalho na busca de se compreender a desigualdade nadistribuição das LER/Dort entre os trabalhadores, parasituá-las no campo das relações de gênero, redefinidas,por sua vez, pelas novas formas de organização do traba-lho, nas quais, sem dúvida, as condições de precarizaçãotêm-se revelado particularmente mais deletérias à saúdedas mulheres.

Agravante é o fato que, no cômputo da distribuição dapopulação assalariada na RMBH por sexo, a participaçãoda mulher tem sido marcante nas empresas com até noveempregados, onde, não raramente, são mais problemáti-cas as ações preventivas de saúde e segurança. Nesse seg-mento de empresas, a participação relativa da força detrabalho feminina evoluiu de 35,6%, em 1996, para 39,0%,em 1998 (Fundação João Pinheiro/Dieese/FundaçãoSeade, 1999:3).

Considerando-se a distribuição da população desem-pregada na RMBH por sexo e idade, constata-se, em 1998,que, entre as mulheres desempregadas, as faixas etáriasrelativamente mais expressivas – isto é, de 18 a 24 anos,com 35,3%, e de 25 a 39 anos, com 33,5% – são pratica-mente coincidentes com aquelas em que as LER/Dort têmsido mais freqüentes. Aliás, a última faixa, a mais exten-sa, constitui a única em que o desemprego entre as mulhe-res é superior ao dos homens (Fundação João Pinheiro/Dieese/Fundação Seade, 1999:4). Todavia, o perfil da po-

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pulação desempregada segundo o atributo sexo indica oseguinte: em 1998, de um contingente de 297 mil desem-pregados na RMBH, 51,1% eram mulheres e 48,9% ho-mens. Mais especificamente, “enquanto a taxa de desem-prego anual para ambos os sexos foi de 15,9% da PEA,18,7% das mulheres economicamente ativas encontravam-se na situação de desemprego, contra 13,7% dos homens”(Fundação João Pinheiro/Dieese/Fundação Seade, 1999:3).

Ademais, a par da discriminação, que acaba dificultandoo acesso da mulher a determinadas ocupações – sobretu-do no setor industrial, o mais formalizado e protegido – ,as diferenças de rendimento entre homens e mulheres,mesmo com a elevação do nível de escolaridade das últi-mas, reforçam as desigualdades de gênero no mercado detrabalho. Desigualdade, indubitavelmente, que acabourefletindo no quadro geral e dinâmico das LER/Dort naRMBH.

CONCLUSÕES

Como citado anteriormente já indicaram elementos re-lacionados à compreensão das determinações, dinâmica eprincipais impactos das LER/Dort, apontaremos, comoconclusão, alguns aspectos mais gerais que, por serem dealcance maior, extrapolam, digamos, o próprio espaço daRMBH. Com isso, não estamos minimizando a necessi-dade de aprofundamento de alguns aspectos abordados,em especial quanto à análise mais detida de algumas variá-veis ou, em nível mais global, à verificação do suposto“efeito de composição da sobredeterminação feminina”em certas ocupações e, mais especificamente, acerca dastendências e variações no tempo das contratações de mu-lheres naquelas ocupações mais prevalentes, como suge-rem Wajnman et al. (1998).

Reflexo da “reestruturação produtiva” e principalmentedas novas formas de organização do trabalho que lhe sãoafeitas, a epidemia de LER/Dort também se imbricaria àspressões inerentes à maior exploração da força de traba-lho advinda tanto de novas tecnologias e situações de ris-cos como dos imperativos relacionados, por um lado, aoestreitamento do mercado formal de trabalho e, por ou-tro, ao alargamento do setor informal, cujas precarieda-des reforçariam os agravos à saúde do trabalhador. Nocaso, o processo de terceirização, transferindo custos ereduzindo ainda mais as condições de trabalho, reforça-ria esses agravos, pela possibilidade de maior rotatividadedos trabalhadores, burla à legislação trabalhista e omis-são à atenção com a saúde do trabalhador.

Já as variações dos casos de LER/Dort em relação aosramos de atividade econômica – expressivas, sem dúvida– não seriam senão reflexo das mudanças ocorridas nomercado de trabalho e, sobretudo, na organização dosprocessos de trabalho, tal como constatamos na RMBH,mormente em segmentos fabris e do setor Serviços quesofreram impactos mais diretos na informatização eautomação. No geral, esses segmentos aprofundaram asubordinação do trabalho vivo ao trabalho morto, possi-bilitando um maior controle do trabalho em si, através demáquinas, atividades repetitivas, tarefas pouco diver-sificadas, etc. Sendo assim, o advento dos novos proces-sos se relacionaria não apenas à maior sobrecarga de tra-balho originária da redução de postos e número de pessoalempregado como também ao aviltamento das tarefas, àintensificação do ritmo do trabalho e assim por diante.Nesse sentido, a própria alternância das ocupações gera-doras de LER/Dort nos anos 90, assim como as variaçõesna exposição aos riscos em ambientes de trabalho, asso-ciadas ao desgaste decorrente do tempo no exercício dafunção pelo trabalhador/trabalhadora, dá conta da com-plexidade de suas determinações sociais. Isso sem consi-derar as intricadas questões relacionadas aos diagnósti-cos clínicos e à luta na busca por direitos dos lesionados;luta que, para muitos, é contraponto à ameaça maior doprocesso de exclusão social. Processo cujos impactos naRMBH têm estigmatizado sobretudo trabalhadores jovens,em sua maioria do sexo feminino, situados nos níveis maisbaixos de escolaridade e renda.

Por fim, destacamos duas particularidades inerentes àsLER/Dort que, de certa forma, são convergentes ou so-brepostas: a síndrome da exclusão e a questão da segre-gação por gênero.

A primeira, de forte impacto social, se explicaria pelaqualidade de vida negada, uma vez que os incapacitadospor essas doenças, majoritariamente jovens e mulheres,situando-se nas faixas etárias mais produtivas do ciclo devida, vêem-se, pela invalidez ou aposentadoria precoce,sem o referencial de vida que a sociabilidade pelo traba-lho, em tese, representaria para eles ante a impossibilida-de da doença ocupacional.

A segunda, na perspectiva das relações de gênero, seexpressaria pela proporção majoritária das mulheres en-tre os portadores de LER/Dort. Fato essencialmente re-sultante dos processos de divisão social e sexual do tra-balho que, invariavelmente, têm respondido pela exclusãosocial e econômica das mulheres (Oliveira; Ariza, 1997).Vale dizer: pela determinação da segregação por gênero

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DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

no mercado de trabalho, a partir de situações concretas,como, por exemplo, as condições precárias do trabalhofeminino extradoméstico, agravadas pela segregaçãoocupacional e discriminação salarial das mulheres peran-te os homens. Em particular, a segregação ocupacional,ante a eventualidade da dupla jornada de trabalho – de-corrente das divisões sexuais do trabalho na família e so-ciedade – ampliaria a possibilidade de desgaste da forçade trabalho feminino e, por conseguinte, de mudança quan-to à manifestação do gênero nas doenças do trabalho. En-fim, uma situação, como lembra Hirata (2001:111), na qual“os mais atingidos são os jovens, os pouco qualificados,do sexo feminino”, ou seja, que não pode ser dissociadado quadro geral em que homens e mulheres vêm sendodistintamente afetados pelo desemprego devido a idade,qualificação profissional ou condição familiar.

Em resumo, neste trabalho, procuramos analisar umquadro no qual a manifestação das doenças do trabalho –aqui também focalizadas da ótica da exclusão social – vemafetando, apesar de seus matizes, trabalhadores de ambosos sexos em diferentes estágios e circunstâncias de suasvidas produtivas. Infelizmente, como vimos, as estatísti-cas especializadas de que dispomos ainda não retratam asdimensões efetivas desse quadro senão como sorte de si-mulacro da realidade imediata.

NOTAS

1. A sigla LER (lesões por esforço repetitivo), tem o seu correlato eminglês que é RSI – Repetitive Strain Injuries. Recentemente, o gover-no alterou sua denominação para Dort – Distúrbios OsteomuscularesRelacionados ao Trabalho (Diário Oficial da União, de 11 de julho de1997). Como não há consenso sobre essa renomeação, e por concor-darmos que tal procedimento, ao eliminar a idéia de repetitividade,retira a força do nexo causal da doença com o trabalho, optamos pormanter a expressão original LER. Todavia, acatando sugestões ou pro-cedimentos recorrentes, optamos aqui pela utilização da sigla geminadaLER/Dort (Araújo, 2001).2. Representativos, singulares e pontuais, esses dados viabilizaram gran-de parte da nossa análise empírica. Criado em 1989, como resposta aocrescimento das doenças ocupacionais, o Nusat foi, em âmbito nacio-nal, órgão único do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Loca-lizado em Minas Gerais, suas ações, voltadas para o controle e preven-ção das doenças ocupacionais, propiciaram a construção de importan-te banco de dados, que suportaram a publicação anual de estatísticasrelativas à RMBH nos anos 90. Infelizmente, sob os influxos da“reestruturação” dos serviços públicos, o Nusat, que poderia ter servi-do de modelo para outras unidades da federação, foi, infelizmente,extinto ao final de 1999.3. Estimativa apontada pelo economista Cláudio Dedecca, da Unicamp(Jornal do Brasil, 30/05/99).

4. Registre-se que, mesmo as Comissões de Conciliação Prévia – CCPs,criadas pela Lei Federal no 9.958, de 12/01/2000 –, com o objetivo dedesafogar a Justiça do Trabalho e agilizar soluções para os conflitos,

recentemente vêm sendo acusadas de práticas irregulares que lesariamos trabalhadores. Entre elas, a não-verificação da existência ou não dedoença profissional nos acordos selados, ou seja, fecham acordos semsaber o resultado do exame médico demissional do trabalhador (Folhade S.Paulo, 07/09/2002, Caderno B, p.14).

5. Conforme AEPS – Anuário Estatístico da Previdência Social, 1999.Todavia, apesar de indicarem uma nova tendência, esses dados podemestar um pouco comprometidos pelo fato de empresas terceirizadas, mui-tas vezes vendedoras de serviços nos ramos industriais, serem, na verda-de, meras prestadoras de serviços e, portanto, formalmente contabilizadasno setor Serviços. Daí a necessidade de novas pesquisas sobre o tema.

6. Ainda não há, entre os especialistas, consenso quanto à construçãode coeficientes na área. Todavia, são reveladores alguns números di-vulgados, como, por exemplo, por Bombardi (2001:218), mostrandoque os coeficientes de doenças profissionais no Brasil, para cada 100mil trabalhadores registrados, elevaram de 26,92, em 1990, para 155,07,em 1998. O pico, ocorrido em 1997, foi de 196,37 casos.

7. O autor apresenta as marchas e contramarchas relacionadas às mu-danças na legislação previdenciária acerca do diagnóstico das LER/Dort. Especialmente, reporta-se à Norma Técnica de Avaliação de In-capacidade para Fins de Benefícios Previdenciários, publicada no Diá-rio Oficial da União, em 20/08/98.

8. Essa pesquisa ouviu 1.072 trabalhadores com mais de 16 anos e detodos os ramos de atividade na cidade de São Paulo. Os entrevistadosforam selecionados por sexo, idade, renda e escolaridade (Folha deS.Paulo, 07/10/2001, Caderno C).

9. No Rio de Janeiro, pesquisa do Sindicato dos Bancários entre osseus 32 mil associados revelou que praticamente 45% da categoria ti-nha sintomas da doença, ou seja, cerca de 14 mil trabalhadores (Jor-nal do Brasil, 25/03/01).

10. A ênfase no período 1991-96 não é arbitrária, uma vez que, orien-tada consoante as atualizações das principais fontes de dados do IBGE– Censo Demográfico, PNAD e PME –, possibilita análises compara-tivas mais acuradas, com base nos dados sociodemográficos eepidemiológicos disponíveis para período intercensitário. Também serefere ao período não apenas de plena atividade do Nusat como de au-sência de menores barreiras institucionais quanto aos diagnósticos ereconhecimento das LER/Dort como doenças do trabalho. Ademais, oano de 1996 correspondeu, na década de 90, ao momento de pico dosdiagnósticos e atendimentos dos casos de LER/Dort.

11. A Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE, privilegia a taxade desemprego aberto em 7 dias. Metodologicamente diferente, a Pes-quisa de Emprego e Desemprego (PED) da Fundação Seade e Dieesedestaca, além da taxa de desemprego aberto em 30 dias, as taxas dedesemprego oculto por trabalho precário e por desalento. Segundo essa,para 1996, a taxa de desemprego na RMBH oscilou de 11,8%, em ja-neiro, para 10,7%, em dezembro.

12. Cf. Araújo (2001). Ver nota 6 deste artigo. A propósito, registra-mos que, para todo o Estado de Minas, a partir dos dados do AnuárioEstatístico da Previdência Social, foram estimados os seguintes coefi-cientes para cada grupo de 100 mil trabalhadores registrados: 180,63,em 1995; 134,72, em 1996; 288,55, em 1997. Interessante é que, para1997, o coeficiente de Minas foi muito superior ao do Brasil, de 196,37casos. Veja coeficientes afins apresentados nas notas 6 e 16 deste tra-balho.

13. Dados extraídos do Boletim Estatístico de Acidente do Trabalhodo INSS e reproduzidos no Relatório Anual do Nusat de 1996 – dadosque diferem daqueles publicados pelo Anuário Estatístico da Previ-dência Social, mas que, aqui, possibilitam uma análise comparativadas ocorrências entre municípios. Assim, considerando o período de1995-1996, observou-se o seguinte crescimento relativo das doenças:56,5%, em Belo Horizonte; 54,2%, em Contagem, -9,2%, em Betim.Outros municípios mineiros, como Uberlândia e Juiz de Fora, doisimportantes centros industriais, tiveram índices menores no período:

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o primeiro, com 548 casos em 1996, cresceu 30,8%; o segundo, com406 casos, teve um acréscimo de 19,7%.

14. Durante 1996, a procedência da clientela do Nusat foi a seguinte:65,6% de Belo Horizonte, 25,6% da Grande Belo Horizonte e 8,8% deoutros municípios do Estado.

15. Aproveitamos para agradecer enfaticamente ao estagiário de esta-tística Antônio Padma Franco Vidal Mota por sua valiosa colaboraçãoe apoio de última hora nessas tarefas.

16. Os números absolutos para cada ano, assim como suas participa-ções relativas são: em 1992, 4 (1,2%); em 1993, 8 (1,5%); em 1995, 8(0,7%); em 1996, 30 (1,8%); em 1997, 11 (0,8%); em 1998, 12 (1,5%).

17. Em Minas Gerais, o ramo de intermediação financeira foi o queapresentou, em 1995, o mais elevado coeficiente de invalidez perma-nente em decorrência de acidentes de trabalho: 163,13 por 100 miltrabalhadores. Na seqüência, respectivamente em segundo e terceirolugares, vieram os ramos da indústria extrativa, com 145,75, e da cons-trução, com 86,46 (apud Carneiro, 1997:85).

18. Dados não mostrados na Tabela 4 devido ao critério adotado.

19. Dados não mostrados na Tabela 4 devido ao critério adotado.

20. Uma análise mais detalhada da relação LER/Dort e ocupações, abran-gendo o período 1991-96, encontra-se em Carneiro (1997:88-93).

21. Aqui as autoras lançaram mão de “proporções de casos femininospadronizadas, que exprimem qual seria a proporção de casos femini-nos de LER caso a participação de homens e mulheres na ocupaçãofosse a mesma (50%)” (Wajnman et al., 1998:12).

22. Este trabalho sugere a importância de novos estudos com vistas àtestabilidade de outras hipóteses.

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TRABALHADORES, DIREITO À SAÚDE E...

N

TRABALHADORES, DIREITO À SAÚDEE ORDEM SOCIAL NO BRASIL

o início dos anos 80, em encontro com MárioPedrosa, um intelectual de esquerda de grandeprestígio no país e no mundo, um grupo de ami-

gos conversava sobre as novas perspectivas que se abriamcom as grandes mobilizações operárias. O regime militarestava em franco processo de decomposição. A uma certaaltura da conversa, um tom sombrio perpassou a avalia-ção de Mário Pedrosa sobre as previsões. “As nossas clas-ses dominantes” – advertiu – “nunca fizeram concessõesrealmente importantes para as classes dominadas. E sa-bem por que? Porque as lutas sociais nunca redundaramem vitórias significativas, pois via de regra foramescamoteadas ou perdidas com golpes de Estado e implan-tação de regimes autoritários.”

Hoje, passados tantos anos, Mário já faleceu e vive-mos sob um regime formalmente democrático; parece quealgumas concessões foram realmente feitas depois de tantaslutas. Será mesmo?

O problema apontado por Mário Pedrosa, no início dosanos 80, remete à questão da dominação consensual declasses no Brasil, ou seja, a hegemonia. A construção doconsenso, na medida em que pressupõe melhorias na po-sição relativa de alguns segmentos das classes domina-

Resumo: O ensaio considera a política de saúde parte essencial do processo de legitimação da ordem socialburguesa democrática. Examina a formulação dessa política no processo de redemocratização política e apon-ta o problema da segmentação social das clientelas do sistema de saúde instituído. Assinala a solidariedadesocial entre os trabalhadores como condição para a superação do problema da eqüidade na saúde.Palavras-chave: política social; legitimação; solidariedade social.

Abstract: This essay argues that health policy is an essential legitimizing factor with regard to the bourgeoisdemocratic social order. It examines how policy is formulated within the political re-democratization processand considers the social segmentation of the clients of the existing health care system. It highlights the importanceof worker solidarity in overcoming inequities in health care.Key words: social policy; legitimization; social solidarity.

EDUARDO NAVARRO STOTZ

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 25-33, 2003

das, traz como proposição implícita a máxima dividir parareinar. As políticas sociais implementadas pelo Estadopodem ser entendidas como mecanismos destinados atransferir rendas – via benefícios – entre diferentes gru-pos sociais, sendo que sua função essencial é resolver aquestão da redistribuição da riqueza nos termos da ma-nutenção da ordem burguesa.

Não é mais desta forma e perspectiva analítica que as ciên-cias sociais tratam do tema das políticas sociais atualmente.A abordagem da hegemonia ou dominação consensual foi,ao longo do processo de redemocratização política do Bra-sil, abandonada e, com isso, a legitimação da ordem deixoude conferir sentido ao estudo das políticas sociais no Brasil.O tratamento dado ao tema das políticas sociais na literaturabrasileira recente tendeu a se deslocar na mesma direçãoimposta pela mudança do regime político, isto é, da expecta-tiva da “cidadanização” das classes trabalhadoras (Fleury,1994). Buscou-se orientar a pesquisa e a reflexão de acordocom um modelo interpretativo baseado na experiência dosEstados de Bem-Estar Social do capitalismo avançado(Aureliano e Draibe, 1989).

De acordo com Liana Aureliano e Sonia Draibe (1989),a intervenção social do Estado fortaleceu, a partir de 1964,

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um desenvolvimento econômico conservador e socialmen-te excludente. As autoras indicam as características dosistema de proteção social brasileiro: extrema centrali-zação política e financeira no nível federal das ações so-ciais do Governo; uma formidável fragmentação insti-tucional; exclusão da participação social e política dapopulação nos processos de decisão; princípio do auto-financiamento do investimento social; e princípio daprivatização. Quando examinam a política social da NovaRepública, as autoras assinalam como, no discurso ofi-cial, pretendeu-se a superação do assistencialismo e da for-ma tutelar de proteção, em prol de uma concepção calca-da nos direitos sociais de cidadania. Porém, no tocante àscondições de efetivação do discurso, o padrão de prote-ção social do Estado autoritário não foi alterado em seuspilares básicos, financeiros e organizacionais.

Entretanto, a política de saúde seria uma exceção, de-monstrando a possibilidade de outro rumo do campo daproteção social. De fato, a descentralização, a participa-ção popular, o financiamento público e o acesso com baseno princípio do direito, características do sistema de saú-de mais marcantes a partir de 1991, parecem reverter atendência dominante nas políticas sociais, apontada pelasautoras. Um estudo histórico das lutas sociais no processode redemocratização permitiria, contudo, examinar inclu-sive os mesmos aspectos sob uma outra ótica que não aquelarestrita à análise setorial, no plano de uma política socialespecífica, dos avanços (ou retrocessos) de certos princí-pios. Não é irrelevante – antes o contrário – que o Conse-lho Nacional de Saúde (CNS) tenha recentemente elabo-rado um documento para ser entregue aos candidatos àPresidência da República, no qual se cobra o compromis-so com o investimento público na oferta de serviços. Tra-ta-se de um desafio que, nas palavras do documento, põeem questão a eqüidade na saúde (CNS, 2002). Desafio quetraduz, a nosso ver, a questão da legitimação da ordemburguesa democrática.

A APREENSÃO DE CONCEITOS DE UM CORPOTEÓRICO NÃO É ESPONTÂNEA E NEM FRUTODO PENSAMENTO ISOLADO

A reforma sanitária – processo que será examinado naseção seguinte do texto – pode ser vista como uma refor-ma setorial no contexto de um processo de redemo-cratização política que mobilizou quase toda a sociedadebrasileira ao longo de mais de uma década. A apreensãointelectual deste processo teve como eixo interpretativo a

concepção sobre as relações entre sociedade civil e Esta-do, de Antonio Gramsci, tal como formulada nas duaspublicações brasileiras mais significativas de sua vastaporém fragmentada obra, os assim denominados Cader-nos do Cárcere.1

Pode-se dizer que o referencial gramsciano constitui opatrimônio comum das esquerdas na época da redemo-cratização política. Um dos núcleos de pesquisa organi-zados na área da saúde, em meados dos anos 80, fez umaapropriação singular do pensador e militante comunistaitaliano. A “leitura” realizada por esses pesquisadorespartia da preocupação com a dimensão educativa ecognitiva em jogo nas relações entre pesquisadores, téc-nicos e profissionais de saúde e movimentos sociais, nasquais, pela mediação dos serviços públicos, se construíaum conhecimento implícito das possibilidades e limitesda ação dos interesses sociais. Os valores, crenças e no-ções a respeito de direitos e deveres dos distintos sujei-tos, alvos de todo um processo de interpretação que con-feria ao aprendizado e à socialização um caráter muitasvezes ambíguo e/ou contraditório, foram especialmentedestacados no relatório final da pesquisa realizada pelonúcleo (Valla, 1988).

Dentre os aspectos da apropriação dos textos grams-cianos, ressalta-se em particular o entendimento de que,sob o capitalismo programático, há uma interpenetraçãoentre as duas esferas. Segundo o relatório: “Se a socieda-de civil compreende o conjunto de organismos quecorrespondem à função de hegemonia que a burguesiaexerce em toda a sociedade, inserimos nesse conceito tantoas associações de moradores em favelas, como os órgãosdo Estado, nos diversos níveis e atribuições. Trata-se deuma noção ampliada da sociedade civil. Marx compreen-deu-a, na Ideologia Alemã, como a expressão das rela-ções sociais entre os homens na produção de sua vida.Gramsci ampliou esta concepção para abranger a supe-restrutura ideológica, isto é, a organização através da quala classe dominante difunde a sua ideologia (organizaçãoescolar, imprensa, fração cultural da magistratura e dooficialato das Forças Armadas, assim como a Igreja)”.

Deve-se abrir aqui um breve parêntesis. A importânciade Antonio Gramsci, no Brasil, é contemporânea aos pri-meiros sinais da crise do regime militar. Em 1977, no IVCongresso das Classes Produtoras, ao lado de uma posi-ção favorável à desestatização da economia, vários repre-sentantes do que se convencionou a chamar de burguesianacional manifestaram a defesa do retorno à democracia.Neste mesmo ano, as manifestações de massa dos estudan-

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tes no Rio de Janeiro e em São Paulo ampliaram o descon-tentamento social com as limitações do regime em expres-sar interesses divergentes. No ano seguinte, entravam emcena os operários com uma onda de greves a partir dasfábricas: “O problema da legitimidade começou a tomarforma mais nítida na sociedade e a intelectualidade‘redescobre’ Gramsci. Sua concepção sobre o Estado, aindaque referida à dominação de classe, permitia pensar a novaproblemática, assim como informa uma nova prática dosintelectuais que compunham o Estado. A rede pública desaúde, ensino e demais entidades estatais voltadas para aspolíticas sociais deixaram de ser vistas como espaços ex-clusivos de controle e coerção. A leitura ‘gramsciana’ per-mitia pensá-los como verdadeiras ‘trincheiras’, dentro deuma longa ‘guerra de posições’ para a conquista dehegemonia da sociedade. Contudo, o longo processo dedecomposição do regime militar – apresentado oficialmentecomo institucionalização, na forma geiselista e golberianade abertura lenta e gradual – marcou-se também por certasparticularidades, dando lugar a uma clivagem de fileirasno movimento de oposição. A conquista de posições nointerior do aparelho de Estado, dentro de uma concepçãocrescentemente instrumental, distanciou-se, cada vez mais,da resistência cristalizada por uma concepção de autono-mia do movimento popular” (Valla, 1988).

Neste contexto, qual era a leitura de Gramsci feita pe-los intelectuais da área da saúde? A leitura passava porGiovanni Berlinguer, que propunha a conquista de posi-ções do Estado por meio de avanço do movimento popu-lar (Oliveira, 1989). O relatório do núcleo de pesquisa con-tém, a esse respeito, uma advertência: “a falta de um forterespaldo no movimento popular que, diga-se de passagem,não adquiriu ainda suficiente vigor e estruturação no se-tor de saúde coloca o risco permanente de a conquista dahegemonia transformar-se em processo de cooptação”.

Entretanto, em que pese o entendimento de que o pro-cesso de democratização do Estado implicava o reforçodo papel da sociedade civil por meio de participação dasclasses trabalhadoras representadas por seus órgãos repre-sentativos – chamados a participar de estruturas criadaspelo Estado, de modo a obter um mínimo de consenso e,assim, legitimar a direção política que a classe dirigentepretendia imprimir ao conjunto da sociedade –, não esta-va ainda claro, para a intelectualidade acadêmica na áreada saúde, que o segmento mais organizado dessas classes– o operariado do “setor moderno” – estava, apesar daposição oficial de sua representação sindical nacional,auto-excluindo-se da participação no futuro sistema úni-

co de saúde. Tratava-se, em certa medida, do resultado denegociações diretas entre os sindicatos de trabalhadoresda indústria e o patronato, no qual o atendimento pela “me-dicina de grupo” aparecia como uma vantagem diante dasdificuldades de acesso dos serviços de saúde oferecidospelo Inamps.

Uma nova compreensão das relações entre estratificaçãosocial e papel das políticas sociais (Brunhoff, 1985)2 foiproposta, pioneiramente, por Regis de Castro Andrade,que desafiou o consenso acadêmico ao formular a idéiade que as modernas ditaduras requeriam mecanismos delegitimação próprios, distintos daqueles das democraciasparlamentares. Cometeu, inclusive, o “sacrilégio” de ba-sear-se nas idéias de Gramsci.

No caso brasileiro, a ditadura militar teria construído,por meio de políticas sociais, uma normatividade regula-dora das relações de classe entre capital e trabalho, evi-tando as conseqüências desorganizadoras do desenvolvi-mento capitalista selvagem no Brasil (Andrade, 1982). Oautor assinala que a tecnocracia privilegiava o recurso àspolíticas públicas para integrar as massas de trabalhado-res “com carteira”, deixando os mecanismos de mercadooperarem no que dizia respeito ao operariado das indús-trias modernas. As transferências de renda se faziam porintermédio de fundos previdenciários, de modo que esteúltimo setor, que contribuía mais, favorecia o primeiro epermitia inclusive a extensão de benefícios para o tercei-ro segmento, como as empregadas domésticas e os traba-lhadores rurais.3 Do ponto de vista dos beneficiários dapolítica social, o autor distingue três estratos: o operaria-do do setor moderno; a massa dos assalariados “com car-teira”; e a massa dos trabalhadores urbanos e rurais dosetor “informal”. Esta avaliação da estratificação socialsupunha uma tendência ao assalariamento, concomitantecom o desenvolvimento industrial e a urbanização.

A REDEMOCRATIZAÇÃO E O “RESGATE DADÍVIDA SOCIAL”: UMA AVALIAÇÃO DAREFORMA SANITÁRIA

As eleições municipais de 1972 consagraram o Movi-mento Democrático Brasileiro – MDB – oposição legalao regime militar – em 31% das 100 maiores cidades. Em1976, este percentual passou para 59% e, em 1982, para83%. Nesse último ano, ocorreram as eleições diretas paraos governos estaduais, com a vitória das oposições (Par-tido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB ) emSão Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

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Os resultados eleitorais e os novos arranjos político-institucionais que daí decorreram foram expressão de umenorme movimento de massas que tomou conta do Brasila partir de 1977, inicialmente um movimento de estudan-tes, representativo das classes médias, e depois movimen-tos do proletariado, numa onda de greves inédita na nossahistória.

O fim do regime militar, antecipado por aqueles resul-tados políticos, aconteceu apenas em 1984, quando – emconseqüência da campanha das “diretas-já” – milhões depessoas foram às ruas nas principais cidades do país. Aemenda parlamentar das eleições diretas para a Presidên-cia da República foi uma “pedra cantada”, pois, nas re-gras do jogo anteriormente impostas pelos militares, eramnecessários 2/3 dos votos do Congresso para modificar aConstituição, algo inviável diante da composição parla-mentar dominante. A solução seguida foi a da eleição in-direta, por meio de Colégio Eleitoral. O candidato dos mi-litares não foi apoiado pela maioria governista que, porsua vez, deu origem a uma cisão partidária. Um grupo deparlamentares liderado por Antonio Carlos Magalhães,José Sarney e Aureliano Chaves deixou então o partidogovernista (PDS) e criou o Partido da Frente Liberal (PFL).Este partido estabeleceu uma aliança com o PMDB, cons-tituindo a Aliança Democrática, o que tornou possível aeleição indireta de Tancredo Neves, um político “mode-rado” do MDB, e de José Sarney, egresso do PDS.

Nos anos seguintes, os movimentos populares partici-param de fóruns institucionais, articularam-se politicamen-te para influir na redefinição da ordem jurídica que con-solidaria a ordem democrática (Assembléia Constituinte)e apoiaram candidaturas em eleições proporcionais. Naárea da saúde, atores institucionais representaram essesmovimentos, dando-lhe voz e projeto, no processo conhe-cido como reforma sanitária.

É importante observar que a redemocratização políticatrazia como pressuposto o chamado “resgate da dívidasocial” legada pelo regime militar. A esperança de umaredistribuição da renda fazia parte dos cálculos do proces-so democrático em marcha no período. É importante assi-nalar também que, no começo dos anos 80, os tecnocratasda equipe econômica sob comando de Delfim Neto prefe-riram evitar a adoção integral de políticas de austeridade,tal como propostas pelo Fundo Monetário Internacional.A elevação das taxas de juros, os cortes nos gastos públi-cos, a abertura da economia e a flexibilidade cambial quefaziam parte do receituário do FMI poderiam, se coloca-dos em prática, comprometer a transição política.

Porém, quando se consideram, do ponto de vistadistributivo, os precários resultados obtidos pela políticasocial implementada ao longo dos anos 80 e 90, avulta-sea importância da reforma sanitária.

A institucionalização desse processo de reforma dapolítica de saúde começou em 1981, com a participaçãode sanitaristas no corpo técnico do Conselho Consultivode Saúde Previdenciária. Nesse momento, surgiu uma pro-posta de reorganização do sistema de saúde de cunhoprivatizante, que previa a organização de um setor priva-do autônomo capaz de atingir 78 milhões de pessoas, dasquais 70 milhões estariam vinculadas à modalidade do tipo“convênio-empresa”. Os 40% restantes seriam cobertospelo setor público.

A derrota dessa proposta manifestava o enfraquecimentodos interesses privados no processo institucional, mascorrespondia também à situação econômico-social da épo-ca. Entre 1981 e 1983, o Brasil atravessou uma forterecessão econômica e o investimento público e privado caiudrasticamente, mantendo-se baixo durante toda a décadade 80. O impacto dessa situação desorganizou um movi-mento que tinha levado à ação direta milhões de trabalha-dores. Por outro lado, essa mesma situação tornava inviável,naquele momento, canalizar, para um sistema privado,parcelas significativas da população trabalhadora.

A partir de 1984, com a recuperação da economia, omovimento sindical retomou impulso. Porém, o mecanis-mo inflacionário em que se baseou o crescimento econô-mico e o estabelecimento de pisos salariais por categoriaenfraqueceram o movimento sindical. Teve início umalenta, mas progressiva, divisão interna no movimento sin-dical, processo que levou as lideranças a um horizonte denegociações cada vez mais limitado às categorias profis-sionais. Sua posição passou a ser a de negociar a saúdenos acordos coletivos de trabalho, voltando as costas aosistema público então (em parte ainda hoje) marcado porgraves deficiências em termos de acesso e qualidade. Omovimento sindical refluiu politicamente, abandonou aarena política, saiu das ruas e deslocou-se para o interiordas instituições do Estado.

Durante a década de 80, outros atores entraram em cena,como os movimentos sociais urbanos, movimentos eco-lógicos, de mulheres, de negros, de portadores de deficiên-cias, de parentes e amigos das vítimas de trânsito, de fa-miliares de doentes mentais e de aposentados.

Uma análise sociológica da reforma sanitária nesteperíodo deixa patente que os profissionais e técnicos dasaúde, os professores universitários, enfim, um segmento

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das classes médias urbanas, posicionaram-se como porta-vozes dos anseios das camadas mais pobres da populaçãotrabalhadora perante o aparelho de Estado encarregado daprovisão dos serviços públicos.4

A organização do “movimento sanitário” começou porvolta de 1976,5 como um dos desdobramentos da vitóriaeleitoral do MDB, do qual participou grande número deprofissionais e técnicos da área da saúde vinculados aoPartido Comunista Brasileiro. Entidades civis como oCebes e a Abrasco tinham, segundo Sonia Fleury (1977),uma influência “institucionalista” mais forte, em detrimen-to de experiências voltadas para a redemocratização “porbaixo”. De acordo com a autora, a perspectiva daaglutinação das tendências renovadoras do setor saúde,em nível profissional, era uma manifestação da políticade frente democrática ampla que estava na origem da sualiderança.

A outra perspectiva, mais identificada com o Partidodos Trabalhadores e as Comunidades Eclesiais de Base,estaria localizada em experiências de participação popu-lar6 que, aliás, tiveram um peso muito grande nos anos 70e 80. Pode-se lembrar aqui, entre outros, dos movimentospopulares da Zona Leste, na cidade de São Paulo, doMovimento Popular de Saúde (Mops), organizado princi-palmente no interior do Brasil, e do Movimento de Rein-tegração dos Hansenianos (Morhan).

Apesar das clivagens apontadas, no movimento da re-forma sanitária estava presente, de acordo com Fleury(1997:26), um ideário comum,7 pautado nas seguintes di-mensões: “a construção de um novo saber que evidenciasseas relações entre saúde e estrutura social; a ampliação daconsciência sanitária onde a Revista Saúde em Debate foi,e continua sendo, seu veículo privilegiado; a organizaçãodo movimento social, definindo espaços e estratégias deação política”.

A estratégia adotada pelos atores institucionais domovimento pela reforma sanitária foi basicamente a depropor e encaminhar a unificação das instituições estataisencarregadas da saúde da população e descentralizar asações para os níveis subnacionais, em especial para os mu-nicípios. A unificação implicava superar a medicinaprevidenciária, organizada para os trabalhadores do mer-cado formal de trabalho pelo Instituto Nacional de Assis-tência Médica e Social, vinculado ao Ministério da Previ-dência.

O período entre 1982 e 1987 foi marcado pelos confli-tos de implementação dessa estratégia, cuja superaçãosomente aconteceu com a unificação de todo o setor esta-

tal no Ministério da Saúde e a extinção do Inamps. Issoocorreu a partir de 1986, com a VIII Conferência Nacio-nal de Saúde, com cerca de 3.000 participantes e 1.000delegados votantes. Os princípios defendidos na resolu-ção final da Conferência foram depois consagrados naConstituição de 1988, sob o lema Saúde direito de todos,dever do Estado.

A institucionalização do SUS começou a tomar corponos anos 90, como resultado dos interesses criados com aestratégia da unificação descentralizada do sistema desaúde ao longo da década anterior; mais concretamente,os interesses políticos dos secretários municipais de saú-de que se organizaram em Conselho Nacional, em 1987.O Conasems tornou-se um ator institucional de peso naimplementação da reforma sanitária porque, pelas origens,ideologia e posição política, seus participantes identifi-cavam-se com o movimento sanitarista dos anos 70 e 80.

Contudo, o movimento da reforma sanitária deparou-se com uma mudança radical de cenário e de perspectivaspara a política pública nos anos 90. Com a eleição deFernando Collor de Mello, o país entrou na “era neo-liberal”. O principal problema vivenciado nessa década,do ponto de vista da institucionalização do SUS, foi o dofinanciamento público.

Enquanto no período compreendido entre 1987 e 1994o gasto público total como percentual do PIB diminuiu,nos anos subseqüentes ao Plano Real o problema passoua ser o da contenção do déficit público, em razão dos acor-dos assinados pelo governo de Fernando Henrique Car-doso com o Fundo Monetário Internacional. É por issoque, apesar da lenta recuperação dos valores, o orçamen-to executado tem sempre ficado abaixo do aprovado(Lobato, 2000).

À seletividade imposta pelos mecanismos de financia-mento, com o recurso ao “surrado método do racionamen-to” (Vianna, 1998:142), agregou-se, pela percepção dasdificuldades de acesso e baixa qualidade dos serviços, a“auto-exclusão” das classes médias e de importantes seg-mentos dos trabalhadores urbanos. Assim, o sistema aca-bou desembocando numa espécie de “universalizaçãoexcludente” (Favaret e Oliveira, 1989).

Nesse aspecto é importante questionar o suposto de queo problema possa estar, no que diz respeito aos trabalha-dores, nas limitações da estrutura de articulação de inte-resses (Vianna, 1998). A negociação direta entre patrõese empregados, depois de 1984, que substituiu a interven-ção repressiva do Estado, somente pode ser vista comoum obstáculo à ação coletiva de caráter público, porque,

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ao mesmo tempo em que e a quantidade e a qualidade dosserviços eram bastante precárias, tentativas de estabele-cer alianças em torno de objetivos mais amplos tinhamfracassado. E onde fracassaram? Principalmente no Esta-do de São Paulo, onde uma nova relação entre sindicatose rede pública de serviços, a exemplo dos metalúrgicosde Santos e químicos do ABC, estava em organização nasegunda metade da década de 80 (Stotz e Cruz Neto, 1989).

Deve-se ressaltar, porém, que a auto-exclusão dos tra-balhadores urbanos com maior capacidade de organiza-ção nunca chegou a ser completa. Na verdade, a tendên-cia à universalização do acesso ao sistema público de saúdesempre esteve em jogo, principalmente por causa do grauda concentração de renda vigente no país e das caracte-rísticas restritivas do setor médico privado em termos deoferta, cobertura e preços dos seguros. O problema temsido a forma como o acesso acontece. As relações entreos dois setores, – o privado e o público – são marcadastanto por um padrão de acesso universal quanto por umaapropriação clientelística e privada do público.8

O sistema apresenta uma tendência à universalização,marcado, porém, por fortes contradições. O Sistema Úni-co de Saúde, instituído pela Constituição brasileira de1988, volta-se, de fato, para a maioria da população. Con-tudo, ao lado desse sistema existe uma ampla clientela dosetor privado autônomo, estimada em 29 milhões de usuá-rios (IBGE, 1998). O crescimento desse setor foi aindamaior nos últimos anos. A denominação sistema único desaúde é, portanto, uma contradição em termos. O corretoseria chamá-lo de sistema público de saúde.

É em torno das dificuldades de acesso universal ao sis-tema de saúde9 e do problema da segmentação social dasclientelas que se desenrolam os capítulos do processo delegitimação da ordem burguesa no Brasil. Os articuladoresdo movimento sanitário, em suas diferentes vertentes, sem-pre tiveram essa percepção. A dimensão do déficit de co-bertura da população e uma avaliação política da necessi-dade de expandir a oferta de serviços públicos de saúdelevaram os planejadores, no Ministério da Saúde, à for-mulação do Programa de Saúde da Família (PSF). O pro-grama, instituído em 1994 como uma estratégia dereorientação do modelo assistencial, teve sua imple-mentação em todo o país apenas a partir de 1998, em de-corrência dos estímulos financeiros de que passou a dis-por. Apresentado como uma estratégia de reorientação domodelo assistencial, deve ser avaliado inicialmente comoum programa de extensão da cobertura, centrado em açõesbásicas de saúde.10

A percepção desse programa como uma possível res-posta às imposições de ordem macroeconômicas decor-rentes dos acordos com o FMI fica sugerida no artigo deMaria Ceci Misoczky (1995:6-7). A autora aponta para arelação entre o pacote mínimo essencial de saúde públicae de serviços clínicos proposto pelo Banco Mundial (1993)e o modelo de atenção à saúde que é uma espécie dereedição da medicina pobre para pobres baseada na Aten-ção Primária da Saúde: “Também não é difícil associareste modelo de atenção com o modelo da medicina de fa-mília/comunitária. É evidente que, para oferecer o pacotemínimo essencial, médicos especialistas, mesmo nas es-pecialidades básicas, são desnecessários, assim como in-vestimentos na qualificação e modernização da rede deserviços. Nesta perspectiva, fazem sentido as menções doPresidente FHC sobre a possibilidade de melhorar a saú-de sem aumentar o orçamento do SUS”.

Qualquer sistema de saúde deve funcionar de modo acompensar, no plano individual, problemas cuja determi-nação ou condicionamento devem ser atribuídos às rela-ções sociais opressivas e à falta de proteção social diantedelas.11 Fracassos ou limitações em cumprir esse papelconstituem em si fatores de des-legitimação da ordemsocial. Então, como se deve analisar, à luz dessa proble-mática, o movimento reformista na saúde?

Um olhar retrospectivo (Escorel, 1998) aponta paraas limitações de uma escolha estratégica. A autora afir-ma que os articuladores do movimento sanitaristapriorizaram a ocupação dos “espaços públicos”, sepa-rando-se do movimento popular de origem. Passaram,em decorrência, a sofrer as limitações das alianças im-postas pelas instituições públicas de saúde, ora trans-formadas em locus de contra-hegemonia. Na verdade,o argumento a favor da contra-hegemonia somente te-ria plausibilidade, na perspectiva gramsciana de “guerrade posições”, se amparado numa ampla e forte aliançaentre profissionais e técnicos do setor público e os po-tenciais beneficiários desse setor: os trabalhadores dacidade e do campo. Isso não aconteceu.

O MUNDO DO TRABALHO:DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Entretanto, cabe indagar, diante da constatação de umaretração profunda do movimento operário e das manifes-tações dos trabalhadores em geral, se ainda tem sentidofalar de políticas sociais e legitimação da ordem com re-ferência ao mundo do trabalho.

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Há um consenso entre os analistas de que o movimen-to operário-sindical está vivendo, em todo o mundo, umaprofunda crise de identidade em virtude da ampliação dainsegurança do e no trabalho provocada pela ofensiva in-ternacional do “capital reestruturado” (Mattoso, 1994).Fazem parte dessa ofensiva a “flexibilização” dos direi-tos sociais, a terceirização das atividades, o desempregoe o subemprego que se traduzem em decréscimo no nú-mero de associados, perda de prestígio e esvaziamento dopapel dos sindicatos, com dificuldade maior de articulara vontade coletiva dos trabalhadores em suas respectivasbases.12

A ação dos trabalhadores refluiu das formas mais cen-tralizadas de luta para o microcenário das empresas. Po-rém, uma vez chegada a este nível, atingiu o que VictorMeyer (2001) denominou de “núcleo duro” da resistênciados trabalhadores.

Essa situação tem suscitado um questionamento quan-to à centralidade da categoria trabalho para definir padrõesde sociabilidade e de funcionamento da ordem social in-clusivas sob o sistema capitalista (Offe, 1994). A diversi-dade e heterogeneidade das condições que se apresentamno mundo do trabalho aparecem como base empírica parasustentar essa argumentação.

Navarro (1993) contesta tal perspectiva analítica daSociologia (e também dos economistas “regulacionistas”)ao chamar atenção para o dado histórico da heteroge-neidade estrutural das relações e condições de trabalhosob o capitalismo desde os seus primórdios. A classe tra-balhadora sempre esteve estratificada por diversas cate-gorias, a exemplo das profissões, dos grupos étnicos e dogênero. Para constatar a diversidade que marca estrutu-ralmente a classe operária, basta lembrar as páginas queMarx consagra, em O Capital, à acumulação de capital eà criação de uma superpopulação operária relativa.

Por outro lado, a “solidariedade de classe” depende deuma atuação política que procure preservar ou conquistardireitos sociais para o conjunto dos trabalhadores. Refor-mas gerais baseadas na redistribuição de recursos entre ocapital e o trabalho – e não entre os trabalhadores combase em fundos sociais – estimulam a unidade e contri-buem para superar a fragmentação imposta pelas formasdo desenvolvimento atual do capitalista.

Inscritas nesse horizonte, as lutas dos trabalhadoreseuropeus contra as tentativas de reforma neoliberal noâmbito do Estado de Bem-Estar produziram alguns even-tos de grande magnitude, a exemplo da greve dos ferroviá-rios na França, em 1995. Paralisação de grande amplitu-

de envolvendo assalariados, desempregados e aposenta-dos somente obteve êxito porque foi desencadeada pelaorganização dos “cheminots” (ferroviários) e contou como apoio da maioria absoluta da população (Meyer, 2001).

E no Brasil? No mesmo ano em que os ferroviáriosparalisaram a França, o governo de Fernando HenriqueCardoso, em nome da estabilidade monetária e da ortodo-xia do Plano Real, conseguiu impor uma derrota políticaaos petroleiros em greve (Lobo e Stotz, 1998). Poder-se-ia ver ali o início de um prolongado refluxo do movimen-to sindical. De fato, aquela greve aparece como um “pon-to de viragem” de um movimento que refluiu para o interiordas empresas. Apenas no final da década de 90, assisti-mos à primeira greve dos metalúrgicos de São Paulo e doABC, demonstrando também que a resistência operava porcaminhos não visíveis.13

Porém, não estaria o sindicalismo brasileiro excessi-vamente amarrado ao atrelamento imposto pelo Estado ou,ainda, dominado por uma tradição corporativista para vis-lumbrar novos horizontes, abertos a reivindicações decunho social e político? Isso depende. Se na sociedade aúnica previsão realista é a da luta, as circunstâncias sem-pre podem favorecer a emergência de lutas mais amplas,dependendo, em boa medida, da capacidade das lideran-ças saberem aproveitar as circunstâncias. Um exemplodisso foi a ocupação, em 1992, das dependências do Hos-pital Antonio Pedro pelos metalúrgicos de Niterói, emprotesto contra o fechamento da emergência e a ameaçada criação de dupla porta de entrada para pacientes dossetores privado e público. O hospital, vinculado à Uni-versidade Federal Fluminense, é uma instituição de refe-rência terciária de toda a região litorânea do Estado doRio de Janeiro.14 Foi um evento isolado que trazia, po-rém, do ponto de vista prático, um certo enfrentamentodo corporativismo e que mostrou, de modo concreto, oponto de vista operário sobre interesses mais amplos doque os de uma categoria específica.

Recentemente, jornal de grande circulação no meioempresarial noticiou, com destaque, o fracasso daprivatização do setor de saneamento básico na Bahia. Amobilização e a luta envolveram, de um lado, a Igrejacatólica e o sindicato de trabalhadores e, de outro, prefei-tos sob a liderança de Antonio Carlos Magalhães e amultinacional inglesa Thames Water. No processo demobilização popular contra a privatização da EmpresaBaiana de Saneamento (Embasa), a maior empresa de sa-neamento do Nordeste, foram recolhidas assinaturas paraviabilizar projetos de lei de iniciativa popular. Em Salva-

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dor, o projeto entregue à Câmara dos Vereadores contavacom 92 mil assinaturas. Com a suspensão da privatizaçãoda Embasa, o BNDES passou a não ter mais nenhum pro-cesso de venda das 27 empresas estaduais do setor (Va-lor,15 a 17/03/2002).

O que esses eventos indicam é que a participação polí-tica dos segmentos mais organizados dos trabalhadoresurbanos pode reforçar as reivindicações e aspirações damaioria dos segmentos – mais pobres e vulneráveis – dasclasses trabalhadoras pelo direito à saúde, expresso porpolítica públicas de promoção das condições de vida, masigualmente por cuidados aos problemas de saúde, querdizer, oferta adequada de serviços públicos de qualidade.Trata-se de uma verdadeira agenda política a ser assumi-da pelo movimento sindical e pelos que se consideramherdeiros do movimento da reforma sanitária, dentro e forade governos populares. O desafio maior do movimentoorganizado dos trabalhadores consiste em transformarmovimentos e lutas locais ou mesmo regionais em movi-mentos políticos, sob os termos mais amplos da seguridade(ou proteção) social. Em última análise, é o próprio perfildas políticas públicas e sua relação com o regime políticodemocrático que está em pauta nesta perspectiva.

NOTAS

1. Os Cadernos foram publicados inicialmente pela Editora Civiliza-ção Brasileira, em 1968, sob os títulos de Maquiavel, a Política e oEstado Moderno e Concepção Dialética da História.2. A primeira edição da obra na França data de 1977.3. A manipulação clientelística dos eleitores, através da falsificaçãodos benefícios previdenciários, foi praticada com certa freqüência pe-los partidos oficialmente permitidos pela ditadura militar, principal-mente nas cidades do interior do país.4. Uma análise do movimento sob a perspectiva dessas forças sociaisencontra-se em Escorel (1998).5. Nesse ano, surge o Cebes – Centro Brasileiro de Saúde Coletiva. Aolado do Cebes, grupos acadêmicos do Instituto de Medicina Social, daUERJ, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz e dos depar-tamentos de medicina preventiva e comunitária, que então se organi-zavam nas universidades em São Paulo e Bahia, iniciaram, em 1977,uma articulação nacional com vistas a impulsionar programas de resi-dência em medicina preventiva, social ou de saúde pública. O objeti-vo era formar quadros dentro da nova concepção delineada na funda-ção do Cebes. Tais iniciativas convergiram para a fundação da Abrasco– Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, em 1979,uma entidade organizada para reunir tanto docentes quanto profissio-nais de saúde com pós-graduação lato sensu.6. É interessante que a autora inscreva, nessa tendência, o movimentode reforma psiquiátrica.7. É importante registrar, nesse sentido, a tradução de textos oriundosda esquerda marxista nos Estados Unidos e em países da América La-tina, publicados em instrumentos para a formação de sanitaristas, aexemplo dos Textos de Apoio PEC-ENSP/Abrasco (Ciências Sociais,Epidemiologia, Planejamento).

8. Eis como isso acontece: o SUS oferece, sob contrato, leitos e servi-ços a planos e seguros de saúde (“dupla porta”); usuários do sistemaprivado utilizam a rede pública, especialmente para itens de alto custo(medicamentos para Aids, clínicas especializadas) e emergência, mui-tas vezes graças às suas influências sobre os corpos médicos das uni-dades de saúde. Porém, não se pode deixar de observar que, quanto aoatendimento ambulatorial em geral, a massa de associados aos planose seguros privados “desonera” a rede pública de grandes contingentesde usuários.

9. Outra dimensão é a da desigualdade regional na oferta pública deserviços. Os serviços de alta complexidade, por exemplo, concentram-se na região Sudeste, em especial na cidade de São Paulo.

10. A importância das ações básicas de saúde é inegável diante do perfildas causas de mortalidade proporcional da população brasileira, nasquais as mortes por doenças evitáveis ainda têm um peso considerá-vel. Porém, é impossível esquecer que, nos padrões vigentes na socie-dade brasileira, os mais pobres morrem mais por todas as causas.

11. Para Navarro (1983), a medicina reproduz a ideologia capitalista(liberalismo e individualismo) ao atribuir a causa das enfermidades afatores individuais, ao mesmo tempo em que participa na alienaçãocaracterística da sociedade capitalista ao transformar os cidadãos emusuários, em receptores de cuidado, sem controle sobre a natureza e adefinição de sua própria saúde.

12. A fragmentação do mundo do trabalho é uma resultante do proces-so imediato da reestruturação industrial, isto é, da tendência à“focalização” das empresas em seus negócios ou atividades principais.A natureza econômica desse processo e sua justificativa na ideologiada livre empresa tornam mais difícil a resistência coletiva, na medidaem que o questionamento do direito de propriedade não integra a cul-tura e a tradição de luta do operariado, principalmente em países comoo Brasil.

13. Numa greve considerada legal pela Justiça do Trabalho, osmetalúrgicos das montadoras e autopeças do ABC conquistaram, em2000, 10% de aumento salarial. A ameaça do desemprego deixou deter eficácia naquele momento por conta da situação do mercado de tra-balho no setor, indicando, provavelmente, o fim de uma fase de acu-mulação de capital. Nas palavras de Maria Cristina Cacciamali, pro-fessora de economia do trabalho da USP: “as empresas estão enxutas,não têm mais como cortar custos e, se demitirem, terão de substituirpessoal e treinar o novo empregado” (Folha de S.Paulo, 18/11/2000,B-6).

14. Informações prestadas por Aluísio Gomes da Silva Junior, em 07de julho de 2002.

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A SAÚDE DO TRABALHADORNA SOCIEDADE 24 HORAS

Resumo: Este artigo trata, em um primeiro momento, de fatores subjacentes às diferenças individuais quantoà tolerância ao trabalho em turnos e noturno. Associadas a esses fatores, também são apresentadas caracterís-ticas do trabalho que podem ou não favorecer a tolerância ao trabalho em turnos. Em um segundo momento,apresenta-se medidas de intervenção que visam minimizar as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadoresquanto à saúde e ao bem-estar orgânico e social.Palavras-chave: trabalho em turnos; organização do trabalho; ergonomia.

Abstract: This article first addresses the underlying factors determining the varying tolerance of individualsto swing and night shifts. Also discussed are features of specific jobs that may or may not favor the toleranceto variable and evening shifts. The second part of this article proposed measures to improve workers’ healthand physical and social well-being.Key words: shift work; organization of labor; ergometrics.

CLAUDIA ROBERTA DE CASTRO MORENO

FRIDA MARINA FISCHER

LÚCIA ROTENBERG

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 34-46, 2003

tualmente, existem no Brasil cerca de 64 milhõesde pessoas com 10 anos ou mais ocupadas emvários tipos de trabalho, conforme dados obti-

dos pelo recenseamento realizado no ano 2000.1 Quase ametade dessa população (cerca de 28 milhões) trabalhamais que as 44 horas semanais, previstas na Constituiçãode 1988 como a jornada máxima de trabalho semanal. Paraque essa jornada semanal seja cumprida, parece bastanterazoável supor que, pelo menos no caso de parte dessestrabalhadores, o trabalho seja exercido além do horáriodiurno. Há, portanto, uma parcela da população econo-micamente ativa que, além de trabalhar mais que o núme-ro de horas semanais previstas em lei, ainda o faz em ho-rário noturno.

Adiciona-se a essa parcela de trabalhadores os que,embora não trabalhem mais que 44 horas semanais, o fa-zem em horários não usuais e obtém-se o número de tra-balhadores em turnos e noturnos da população brasileira.Infelizmente, não há dados oficiais sobre o tamanho des-sa população em nível nacional. Em 1994, levantamentoda Fundação SEADE na área metropolitana de São Paulocaracterizou como trabalhador em turnos ou noturno 8,6%da população (Fischer et al., 1995). Valendo-se desses

dados, estima-se haver cerca de 10% da população brasi-leira ativa que trabalha em turnos ou à noite. Acredita-seque essa porcentagem seja até maior, uma vez que o ofe-recimento de serviços disponíveis muitas horas por dia,durante os dias de semana e fins de semana, vêm aumen-tando nos últimos anos. Pode-se citar, como exemplos,todos os serviços de telecomunicações, de processamentobancário, de distribuição de correspondência rápida, oscentros de compras (shopping centers, supermercados),hotéis, lazer (cinemas, restaurantes, academias de ginás-tica, clubes sociais e esportivos), serviços educacionais.Em outras palavras, além dos serviços essenciais há umaquantidade cada vez maior de produção de bens e presta-ção de serviços que funcionam ininterruptamente. Para queesses bens sejam produzidos e os serviços prestados vemocorrendo aumento da população que trabalha em turnos,em horário noturno ou em horários irregulares.

A demógrafa americana Harriet Presser (1999), ao apon-tar os efeitos do trabalho em turnos na sociedade, comentaos principais fatores que influenciaram o aumento do traba-lho realizado além dos tradicionais horários diurnos e nosfins de semana: as rápidas mudanças que ocorreram nos pro-cessos tecnológicos, as características demográficas das po-

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A SAÚDE DO TRABALHADOR NA SOCIEDADE 24 HORAS

pulações, a globalização econômica. Esse último fator levoua um grande incremento de atividades no setor de serviços,particularmente nas empresas que utilizam computadores emrede para manter seus negócios. O e-business criado com osserviços da Internet, bem como o aumento das corporaçõesinternacionais que têm escritórios e serviços em vários paí-ses do mundo, foi um importante passo para a expansão dotrabalho não diurno, e em dias tradicionalmente dedicadosao descanso semanal.

Não há, portanto, como negar a existência de uma “so-ciedade 24 horas”, a qual depende de vasto número detrabalhadores, que estão, por sua vez, sujeitos à exposi-ção de fatores psicossociais do trabalho que interferemnos processos saúde-doença.

Neste artigo, serão abordados alguns desses fatores,seus efeitos na saúde dos trabalhadores, assim como asprincipais medidas de intervenção que visam minimizaras dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores quanto àsaúde e ao bem-estar orgânico e social.

FATORES SUBJACENTES ÀS DIFERENÇASINDIVIDUAIS QUANTO À TOLERÂNCIA AOTRABALHO EM TURNOS E NOTURNO

As condições de trabalho e a organização do trabalhoinfluenciam de forma significativa a tolerância ao traba-lho em turnos e noturno. Particularmente, trabalhar emhorários não diurnos pode levar os trabalhadores a ter piordesempenho em suas tarefas, a expô-los a maiores riscosde acidentes de trabalho e, de forma mais acentuada, aestressores ambientais, que podem levá-los à incapacida-de funcional precoce.

Condições de Trabalho

Há vários séculos, já haviam sido estabelecidas jorna-das de trabalho diurna e noturna, em especial nas ativida-des industriais, extrativas e dos serviços de saúde. Em1556, o médico Georg Bauer descreve, em seu livro DeRe Metallica, as dificuldades pelas quais passavam osmineiros do terceiro turno (o turno da noite) (Hunter,1975). Escrito há 447 anos, este livro relata uma situaçãoque ainda ocorre nos dias de hoje: o trabalho noturno com-binado com vários outros estressores ambientais. Nos tem-pos atuais, as empresas empenham-se em bons resultadosnos custos de produção, preocupam-se com a obsoles-cência técnica dos equipamentos e implantam o trabalhoem turnos, incluindo as jornadas noturnas, sempre que as

razões técnicas e econômicas se manifestarem (Rutenfranzet al., 1989).

As escalas de trabalho em turnos geralmente adotadassão bastante variadas, e em uma mesma empresa podehaver várias escalas. Nas décadas de 60 e 70, escalas deturnos em que predominava o rodízio semanal dos horá-rios de trabalho eram bastante freqüentes. Atualmente, emfunção dos estudos realizados que evidenciaram a neces-sidade de redução do número de jornadas noturnas, essetipo de escala de turnos cede lugar às jornadas com ro-dízio mais rápido com poucos dias de trabalho noturno,jornadas extensas e irregulares, e as com trabalho em horá-rios flexíveis. Segundo Härmä (1998), os novos padrõesdas escalas de trabalho em turnos seguem uma tendênciamundial decorrente da introdução de novas tecnologiasde produção, das flutuações das demandas, que associa-das às mudanças econômicas e à globalização levariamas empresas a organizarem de forma mais eficiente suashoras de trabalho.

Knauth (1993) analisa escalas de turnos, destacandovárias características que devem ser consideradas paraanálise. Para determinar aspectos positivos e negativos deuma escala, é necessário avaliar, pelo menos, o seguinte:o número de turnos consecutivos de trabalho, a duraçãode cada turno, os horários de início e final dos diversosturnos, a direção do rodízio entre os vários turnos, a regu-laridade dos horários de trabalho, a flexibilidade do siste-ma de turnos, os horários parciais ou em turno completo,a distribuição do tempo livre (pausas entre jornadas detrabalho em turnos).

Os denominados “Arranjos de Horários de TrabalhoInovadores” (Innovative Worktime Arrangements) têmsido utilizados para ajustar o tempo operacional às neces-sidades da força de trabalho. Também são utilizados parafazer frente a flutuações da produção, a ausências dos tra-balhadores, a exigências e necessidades dos clientes. Por-tanto, setores tradicionais de serviços e administração cadavez mais utilizam escalas de trabalho variáveis, aumen-tando ou reduzindo tempos de trabalho de acordo com asnecessidades. É cada vez mais freqüente, entre empresaseuropéias, a substituição das tradicionais escalas sema-nais de trabalho por períodos de tempo determinados, emque os empregados são recrutados a trabalhar certos diasou semanas de cada mês. A anualização das horas de tra-balho tem sido uma dessas práticas atualmente em uso naEuropa (Hornberger, 1998).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 determinoua redução da jornada de trabalho em turnos “ininterruptos

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de revezamento”, com redução diária da jornada de tra-balho a 6 horas, ou negociação coletiva (Brasil, 1988). Aorganização temporal do trabalho em turnos e noturnocausa importantes impactos no bem-estar físico, mental esocial dos trabalhadores. Usualmente, além desses hámúltiplos outros fatores de risco presentes no ambientede trabalho. São eles de variadas naturezas (física, quími-ca, biológica e organizacional) e estão relacionados a umagrande variedade de perturbações de ordem física epsicossocial. Muitas das dificuldades enfrentadas pelasorganizações, como, problemas na administração de pes-soal, nas comunicações, na manutenção de elevados ní-veis de segurança no trabalho, somam-se às dificuldadesjá existentes, intrínsecas ao trabalho em turnos e noturno.

Em estudo conduzido em empresa do setor gráfico emSão Paulo, foi observado que a concentração de solventesno ambiente de trabalho era fator de risco adicional à saú-de para os trabalhadores em turnos, aumentando os riscosde perda auditiva (Morata et al., 1997), problemas alérgi-cos, respiratórios e dermatológicos, bem como o risco dodesenvolvimento de arritmias cardíacas.

Os aspectos associados ao trabalho em turnos e a se-gurança individual e pública são motivo constante de preo-cupação, pois existem limitações causadas pelo horárioimpróprio de atuação, que podem levar a graves inciden-tes e acidentes do trabalho (Akerstedt; Horne, 1995). Alémdos numerosos acidentes causados pela sonolência exces-siva de motoristas que adormecem na direção de veículos(Administração Nacional de Segurança nas Rodovias,1999), já ocorreram grandes acidentes na indústria, comoos que provocaram vazamento de material radioativo deusinas nucleares (Three Mile Island nos Estados Unidos eChernobyl na Ucrânia) e as explosões em indústria quí-mica com vazamento de produtos tóxicos (Bophal na Ín-dia) que ocorreram de madrugada. No entanto, além dotrabalho noturno, as causas apontaram outros fatoresdesencadeantes, como a falta de manutenção, procedimen-tos inseguros, e má comunicação entre os membros dasequipes que trabalhavam naqueles locais.

Uma das análises mais divulgadas na literatura sobreerros/acidentes relacionados ao trabalho em turnos foipublicada originalmente por Folkard e Monk (1979). Es-tes autores analisaram vários trabalhos publicados querevelavam distintas freqüências de respostas e erros aolongo do período de 24 horas; os diversos trabalhos pu-blicados referem-se a: velocidade de responder a chama-das telefônicas, freqüência nos erros de leitura de instru-mentos, freqüência de adormecimento ao volante,

velocidade de tecer fios em empresa da fiação de tecidos,freqüência de ausência de resposta a sinais de alerta emmaquinistas de trem e de pequenos acidentes em hospital.Em todas elas, observa-se clara tendência a piores resul-tados e maior número de acidentes durante a madrugada eno começo da tarde. Provavelmente, isso ocorreria emrazão do pior desempenho durante o período noturno, queestaria associado à queda ou diminuição na expressãocomportamental de alguns ritmos biológicos, com espe-cial ênfase ao da temperatura corporal. Esse ritmo apre-senta valores mais baixos durante a noite, concomitanteao aumento da sonolência e conseqüente queda de rendi-mento de algumas funções cognitivas (Monk, 1989).

Usualmente, os riscos no trabalho são analisados emfunção de padrões de segurança industrial estabelecidospara o trabalho diurno. Entretanto, há demonstrações dosagravos dos efeitos mais sérios de exposições ocupacio-nais durante os períodos não diurnos. As variaçõescircadianas nos efeitos tóxicos levaram vários pesquisa-dores a questionar a segurança das exposições de acordocom os limites de tolerância aos agentes causadores dedoenças ocupacionais (Lieber, 1991).

Em recente estudo apresentado no XIV InternationalSymposium on Night and Shiftwork, em Wiesensteig, Ale-manha (1999), pesquisadores canadenses e franceses ob-servaram que os distúrbios de sono e a fadiga crônica eramos principais problemas diretamente relacionados ao tra-balho em turnos de 12 horas diárias em uma refinaria ca-nadense. A redução do número de empregados obrigava aempresa a necessitar, freqüentemente, de muitas horasextras, o que era fator de risco adicional, especialmentedurante o turno diurno, resultando em excessiva fadiga,diminuição dos padrões de segurança e de confiabilidadeno trabalho (Bourdouxhe et al., 1999). Os autores con-cluíram sua apresentação dizendo que não se deve anali-sar os vários aspectos das escalas de turnos fora do con-texto em que se encontram, ou seja, é necessário tambémavaliar que tipo de tarefas são conduzidas, quais as prin-cipais cargas de trabalho, quantas pessoas realizarão otrabalho, que treinamento receberam, etc. Análisesergonômicas do trabalho auxiliam na tarefa que deve de-terminar o número de pessoas que comporão as equipesdos vários turnos de trabalho, nos distintos períodos dodia e da noite, em cada setor da empresa.

Em vários países europeus e nos Estados Unidos, in-dústrias petroquímicas trabalham 12 horas diárias. Comessa prática, pesquisadores questionam as jornadas pro-longadas e seus efeitos nas manifestações de fadiga e nas

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A SAÚDE DO TRABALHADOR NA SOCIEDADE 24 HORAS

possíveis repercussões na segurança do trabalho (Rosa,1995).

As causas que envolvem a fadiga no trabalho são múl-tiplas e em geral são decorrentes das associações entre asmás condições de trabalho, o desencontro entre os ritmosbiológicos e os horários de trabalho. Segundo Sallinen(1997), a fadiga é mais freqüente durante à noite e em ho-rários de trabalho que se iniciam muito cedo de manhã.Nesses últimos pode ocorrer uma privação parcial de sonopor exigir que o trabalhador acorde muito cedo, dessaforma reduzindo o período de repouso. Especialmente ànoite, a privação de sono causada pelas dificuldades derepouso diurno e a dessincronização dos ritmos biológi-cos podem reduzir significativamente os níveis de alertados trabalhadores e acentuar os sintomas de fadiga(Akerstedt, 1996).

Fatores Individuais

O aumento do tempo de trabalho em turnos conduz auma cronificação de sintomas provocados pelo trabalho.De acordo com alguns autores (Koller, 1983; Haider etal., 1988), quanto maior o número de anos trabalhandoem turnos, maior o número de queixas e o desenvolvimentode patologias associadas a esse tipo de esquema de traba-lho. Conforme afirma Costa (1998), “a idade favorece umaintolerância progressiva, pois geralmente está associadaà instabilidade de ritmos circadianos, distúrbios de sono,depressão e um declínio na capacidade física e na saúde”.Assim, a idade é fator de risco adicional para o desenvol-vimento de problemas de saúde e do denominado “enve-lhecimento funcional precoce” que pode atingir os traba-lhadores em turnos ainda em idade produtiva. Monk eFolkard (1992) chamam a atenção para esse problema, poishaverá maiores contingentes de trabalhadores em turnoscom idades próximas aos 50 anos ou mais, no final dessadécada. Isso foi observado em estudos realizados em em-presas petroquímicas privadas no Brasil, nas quais já hásignificativo número de pessoas com larga experiência pro-fissional cujas idades estão ao redor, ou acima dos 50 anos.Essas pessoas, valiosas para as empresas nas quais traba-lham, poderão enfrentar mais dificuldades no trabalho emturnos, especialmente se as jornadas de trabalho forem maisextensas (12 horas diárias) e tiverem menos folgas sema-nais.

À medida que as pessoas envelhecem modificam-secertas características dos ritmos biológicos que estão decerta forma associadas à tolerância ao trabalho em tur-

nos. Alguns estudos demonstraram que as pessoas maisvelhas preferem dormir mais cedo do que anteriormenteo faziam. Desse modo, as pessoas tornam-se ao longo dosanos mais matutinas, o que pode dificultar a tolerância aturnos noturnos (Akerstedt; Torsvall, 1981). SegundoWever (1981), isso poderia causar maior interferência nodesempenho e mais sintomas subjetivos ao trabalhar ànoite. Pessoas com hábitos e preferências vespertinos sen-tem-se ativas mais tarde, à noite, preferem levantar-se maistarde de manhã, do que as pessoas matutinas. Os indiví-duos com fortes tendências à vespertinidade parecem to-lerar melhor o trabalho noturno do que os matutinos(Monk; Folkard, 1992).

Outra característica relacionada com a personalidadefoi avaliada e associada com a tolerância ao trabalho emturnos: neuroticismo e extroversão. Observou-se que in-divíduos neuróticos e introvertidos são menos capazes desuportar o trabalho em turnos e efeitos do jet-lag, do quepessoas neuróticas extrovertidas (Colquhoun; Folkard,1978).

Determinantes Sociais eEstratégias de Cunho Social e/ou Doméstico

Os problemas sociais vividos pelos que trabalham emturnos, particularmente à noite, relacionam-se a um coti-diano essencialmente diferente do restante da comunida-de como a distribuição temporal de suas atividades, comojá se viu. Dependendo do esquema de turnos, podem en-frentar dificuldades de convivência com familiares e ami-gos, além da relativa impossibilidade de participar de cur-sos ou outros compromissos regulares, caminhando parao isolamento social. Diversos aspectos da vida socio-familiar podem facilitar ou dificultar seu dia-a-dia, atuan-do, portanto, como fatores importantes no processo detolerância ao regime de trabalho. Nesse contexto, caberessaltar os papéis sociais assumidos pelos trabalhadores,seja em casa, como cônjuge, pai/mãe, filho/a ou parente,seja fora do ambiente familiar, onde assumem papéis emrelação aos amigos, clubes e atividades religiosas, entreoutras. Enfim, há toda uma rede de sociabilidade cujascaracterísticas tanto podem sobrecarregar o trabalhador,como, ao contrário, levá-lo a lidar melhor com o trabalhoem turnos.

O gênero tem forte influência na tolerância ao trabalhoem turnos, agindo mais pelas vias sociais do que por viasbiológicas (Härmä, 1995; Nachreiner, 1998). Entre os quetrabalham à noite, por exemplo, a reorganização da rotina

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– com intuito de acomodar no período diurno o sono e asdemais atividades que compõem sua vida – é mais com-plexa para as mulheres, em função do papel tradicional-mente atribuído a elas quanto à casa e à família. Para elas,a realização do trabalho doméstico é prioritário em rela-ção às demandas do sono, particularmente entre as quetêm filhos, como comenta Gadbois (1981) em relação aenfermeiras que trabalham à noite. As exigências do tra-balho doméstico reduzem a disponibilidade de tempo parao sono doméstico (Rotenberg et al., 2001); além disso, otempo dedicado ao lazer também tende a ser menor entreas trabalhadoras em turnos, quando comparadas a seus co-legas do sexo masculino (Knauth; Costa, 1996).

Cabe mencionar que a divisão desigual do trabalho do-méstico entre homens e mulheres nem sempre se reflete emdiferentes graus de tolerância ao trabalho em turnos. De fato,os estudos comparativos de homens e mulheres apresentamresultados contraditórios. Beermann e Nachreiner (1995), porexemplo, não observaram diferenças quanto aos aspectos dasaúde subjetiva e a problemas psicossociais, ao passo queOginska et al. (1993) revelaram menor duração do sono emaior freqüência de queixas de sonolência entre trabalhado-res do sexo feminino. Esses dados corroboram a observaçãode Dirkx (1991) quanto à comparação entre amostras femi-ninas e masculinas. Segundo o autor, quando se analisa variá-veis relacionadas ao sono, os resultados são mais homogê-neos do que quando se analisa outros indicadores do impactodo trabalho em turnos.

O caráter social subjacente às diferenças entre homense mulheres fica particularmente evidente quando se anali-sa aspectos da vida familiar, como a presença de criançasem casa. Sabe-se, de longa data, que o ruído de criançasprejudica bastante o sono diurno em trabalhadores emturnos (Rutenfranz et al., 1989). Desse modo, ao obser-var menor duração do sono em trabalhadores com filhos(em relação aos demais), Anderson e Bremer (1987) atri-buem o resultado ao ruído das crianças. Quanto a traba-lhadores do sexo feminino, a relação presença de filhosversus sono refere-se a atividades de cuidado, como anecessidade de interromper o sono para preparar as refei-ções (Gadbois, 1981) ou para levar ou buscar as criançasna escola (Rotenberg, 1997), embora obviamente não sepossa descartar o efeito adverso do ruído sobre o sonodas trabalhadoras. Segundo Härmä (1993), a possibilida-de, ou não, de contar com organizações relacionadas aocuidado dos filhos é fator fundamental nas comparaçõesentre trabalhadoras com e sem filhos em relação aos dis-túrbios do sono e queixas sobre a fadiga.

Outro aspecto das diferenças de gênero refere-se aoefeito da presença do cônjuge, como comenta Nachreiner(1998) em revisão recente sobre a tolerância ao trabalhoem turnos. Segundo o autor, para as mulheres trabalhado-ras, a presença do cônjuge está relacionada a maior cargade trabalho em casa, ao passo que para o trabalhador, apresença da esposa pode significar aspecto favorável àtolerância. Assim, estudos sobre a rotina doméstica entreas esposas de trabalhadores indicam um esforço delas paraadaptar os horários das refeições aos turnos de trabalhodo marido, adiar os serviços domésticos cujo ruído possaprejudicar seu sono diurno (Knauth; Costa, 1996) e evitaro ruído de crianças durante o dia (Bunnage, 1981). Essasprecauções, que expressam o suporte doméstico por partedo cônjuge, refletem a aceitação do trabalho em turnospelos membros da família (Monk; Folkard, 1985;Wedderburn, 1993). Como ressalta Monk (1990; 1994),quaisquer que sejam as estratégias comportamentais dostrabalhadores para lidar com o trabalho em turnos, ape-nas o apoio do meio social e doméstico pode garantir seuefetivo sucesso.

Entre os padrões comportamentais adotados pelos tra-balhadores, as estratégias ativas no sentido de estruturarsua vida em função dos horários de trabalho contribuemfortemente para os índices de tolerância (Härmä, 1993), esão descritas como commitment to nightwork, (compro-metimento com o trabalho noturno). A expressão foi usa-da por Folkard et al. (1978) ao compararem grupos de en-fermeiras que trabalhavam quatro ou duas noites porsemana, tendo constatado uma tendência, entre as profis-sionais do primeiro grupo, a cochilar à tarde antes da pri-meira noite de trabalho e a apresentar um sono mais lon-go entre as jornadas, o que não ocorria entre as demaisenfermeiras. Essas diferenças, que os autores atribuírama diferentes graus de comprometimento, refletiam diferen-tes níveis de tolerância ao trabalho, avaliados medianteajuste dos ritmos circadianos de temperatura e da sensa-ção de mal-estar.

O grau de organização dos horários de sono e dasrefeições também foi observado por Adams et al. (1986),que demonstraram a adoção desses padrões como sufi-cientemente importante para superar as expectativas deadaptação/tolerância baseadas no tipo cronobiológico,em traços da personalidade e em algumas característi-cas do ciclo vigília-sono, com ênfase no caráter ativodas estratégias individuais. Segundo Monk e Folkard(1985), o comprometimento em relação ao horário detrabalho representa um dos mais potentes fatores

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subjacentes às diferenças entre as pessoas quanto à to-lerância ao trabalho em turnos, mediando, inclusive osmais evidentes, como os relacionados ao sexo/gênerodo trabalhador, provavelmente porque as possibilida-des de organizar a vida tendem a diferir entre homens emulheres, como já mencionado.

Um desdobramento dessa linha de investigação refe-re-se à análise da escolha do turno de trabalho como fatorde tolerância ao mesmo. Em estudo com profissionais daenfermagem, Barton (1994) observou que a escolha dotrabalho noturno (geralmente em função de conveniênciasdomésticas e do adicional noturno) em oposição ao traba-lho em turnos como o único disponível, tende a favorecera tolerância ao trabalho em turnos, o que foi atribuído àmaior probabilidade, entre os que trabalham à noite, deestruturar suas vidas de forma a dar conta das dificulda-des associadas ao horário de trabalho.

A tolerância ao trabalho em turnos também é influen-ciada pela personalidade do indivíduo em termos rela-cionais. De acordo com Waterhouse et al. (1992), os 10%de trabalhadores que gostam do trabalho em turnos inclu-em diversas pessoas com hábitos solitários nas quais asvantagens econômicas e o lazer diurno podem superar asdesvantagens de um estilo de vida anormal, quando com-parado às demais pessoas. Nessa mesma linha, parece sermais fácil lidar com o trabalho em turnos quando a reali-zação de um hobby ou a preferência por outras atividadesnão dependem de contatos sociais (Walker, 1985). Já en-tre os que se ressentem do desencontro social em relaçãoa toda a comunidade, cabe mencionar a prática de traba-lhadores em turnos alternantes de estabelecer vínculos deamizade com os próprios colegas de turma (os que estãotrabalhando sempre nos mesmos horários que ele) paraque possam realizar atividades sociais em seus dias defolga (Walker, 1985).

O Sono em Trabalhadores em Turnos eEstratégias Relativas ao Sono para Lidarcom os Horários de Trabalho

Diante das evidências de problemas gerados pela in-versão do ciclo vigília-sono e conseqüente privação dosono de trabalhadores, pode-se dizer que as estratégiasindividuais relacionadas aos hábitos de sono são essen-ciais para permitir a adaptação ao trabalho em turnos.

Tratando-se dos horários de realização dos episódiosde sono em relação ao início do trabalho, é importantedistinguir os diferentes horários de início do trabalho,

de acordo com cada um dos turnos. Por exemplo, antesda primeira noite de trabalho, é bastante comum que aspessoas durmam à noite toda, acordando pela manhãnão muito cedo, ao redor de 8 horas da manhã. Existemtrabalhadores que ainda tiram um cochilo horas antesde iniciar o trabalho, que, em geral, tem a duração de15 min a 1 hora. Já nas noites subseqüentes só resta aotrabalhador o dia para dormir. Muitos chegam em casae dormem imediatamente, outros só vão dormir à tar-de. Principalmente entre os que dormem de manhã es-tão os que antecipam o sono, pois tiram um cochilopoucas horas antes do início do trabalho. Dados da li-teratura estimam em um terço o número de trabalhado-res que tiram um cochilo no final da tarde ou começoda noite (Knauth; Rutenfranz, 1981; Akerstedt, 1998).Em geral, não há ocorrência de cochilos quando osoperários trabalham no turno vespertino. Já com rela-ção ao turno matutino, verifica-se que um terço dos tra-balhadores tira um cochilo à tarde, notadamente quan-do o início do trabalho é muito cedo, e os leva a acordarpor volta das 4 horas da manhã (Akerstedt, 1998).

Menna-Barreto et al. (1993) sugeriram que a regulari-dade do horário de realização do episódio de sono antesdo trabalho seria o fator mais importante para a adapta-ção ao trabalho. Entretanto, essa estratégia ainda causapolêmica, pois há pelo menos um estudo em que se verifi-cou que a regularidade dos inícios dos episódios de sononão está relacionada à adaptação psicológica de mulheresque trabalham à noite (Rotenberg, 1997).

Alguns autores sugeriram (Minors; Waterhouse, 1981;Minors; Waterhouse, 1983) que após a divisão das 8 ho-ras “normais” de sono em dois episódios de 4 horas cada,os ritmos biológicos estabilizariam-se, desde que um dosepisódios de sono ocorresse em um horário preesta-belecido do dia. Esse episódio de sono em horário fixocorresponderia ao “sono âncora” (anchor sleep) e per-mitiria maior tolerância dos trabalhadores ao turno no-turno. Entretanto, a dificuldade de um indivíduo, quetrabalhe em um esquema de turnos alternantes, em terque realizar um episódio de sono com duração de 4 ho-ras em horário preestabelecido pode impedir o exercí-cio dessa estratégia.

Outros sugeriram que para compensar a privação par-cial de sono, característica dos trabalhadores em turnos enoturnos, a necessidade de sono fosse suprida com a rea-lização de episódios de sono (em especial cochilos) sem-pre que possível, independente do horário em que elesfossem realizados (Dinges et al., 1987; Naitoh et al., 1982).

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A irregularidade desses episódios de sono, porém, pode-ria provocar maior dessincronização no sistema detemporização do organismo.

A habilidade dos trabalhadores para cochilar, sejamtrabalhadores submetidos a horários regulares ou irregu-lares de trabalho, não é a mesma para todos (Moreno, 1998;Moreno et al., 2000). Essa característica também é um dosfatores individuais que influenciam a tolerância aos horá-rios de trabalho. Assim como as pessoas podem ser clas-sificadas de acordo com hábitos e preferências, pode-sepensar também em “divisores do sono” (ou fragmentadoresdo sono) e “não-divisores do sono” (ou não-fragmen-tadores do sono, do inglês split sleepers e non-splitsleepers).

As necessidades de sono são bastante distintas de umindivíduo para outro e, portanto, dormir de 7 a 8 horas acada 24 horas pode ser suficiente para um trabalhador enão para outro em que a necessidade de sono é maior. Issoocorre porque o padrão de duração do sono da espéciehumana apresenta frações de sono e vigília distintas entreos indivíduos. Os que dormem mais tempo são chamadosde “grandes dormidores” (costumam dormir mais de 8horas) e os que passam pouco tempo dormindo são cha-mados de “pequenos dormidores” (dormem menos de 8horas). Logo, um pequeno dormidor, poderia ser qualifi-cado de grande vigilante, porque permanece mais tempoem vigília do que dormindo. O mesmo raciocínio podeser utilizado para o grande dormidor, que poderia ser clas-sificado de pequeno vigilante (Webb et al., 1970). Con-clui-se, portanto, que as estratégias referentes à duraçãode sono dependerão das características de cada trabalha-dor, tanto em relação à habilidade de dividir o sono totalem vários episódios, quanto em relação à duração de sono.

De acordo com Horne (1991), o sono poderia ser divi-dido em essencial e opcional (do inglês core and optionalsleep). O sono essencial ocuparia os primeiros 3 ou 4 ci-clos de sono e por ser flexível poderia ser reduzidogradativamente (20-30 min por dia durante algumas se-manas). Desse modo, adultos poderiam adaptar-se a dor-mir diariamente cerca de 2 horas a menos sem que issoprovocasse sonolência diurna. No entanto, o próprio Horneafirma que alguns indivíduos podem apresentar como es-trutura de sono “natural” apenas a observada no sono es-sencial.

Lavie (1996) discute a proposta de Horne reforçandoa idéia de que não há dúvida que pessoas que dormemmuito pouco (cerca de 4 horas por dia), pois consideramo sono como grande perda de tempo, podem viver muito

bem se suficientemente motivadas para isso. Todavia, osque reduzem o sono sem estímulo suficiente para perma-necer em vigília, sofrem de sonolência diurna.

Stampi (1992) sugere que a espécie humana desfrutade uma habilidade endógena em adormecer várias vezesao dia, que se expressaria em determinadas situações. Elepropôs o padrão polifásico de sono como estratégiaadaptativa para situações em que os indivíduos não po-dem dormir o quanto gostariam, como ocorre com equi-pes de resgate em catástrofes como terremotos, enchen-tes, etc. A proposta de Stampi é que diante de umaquantidade reduzida de sono, os indivíduos adaptariam-se melhor a um padrão polifásico ou semipolifásico(bifásico) de sono do que ao padrão monofásico.

Existem vários fatores que determinam se a duraçãototal de sono ideal para um indivíduo pode ser alcançadacom a realização de um único episódio de sono (padrãomonofásico) ou mais de um (padrão bifásico ou polifásico).Em primeiro lugar, existe uma propensão individual quedetermina a habilidade de um indivíduo em dormir emdiferentes horários (já citada), além disso há fatores deordem social que determinam a necessidade de se realizarvários episódios de sono. Um estudo do sono diurno empessoas que trabalham em turno fixo-noturno revela queo percentual de trabalhadores(as) que em geral dormemduas vezes por dia é semelhante entre homens e mulheres(44% e 40%, respectivamente), mas que a divisão do sonoem mais de um episódio apresenta, aparentemente, umcaráter diferente nas duas amostras (Rotenberg et al.,2001). Entre as mulheres, dividir o sono está associado àcurta duração do sono matutino e à presença de filhos deaté 10 anos, ao passo que entre os homens, o número deepisódios de sono/dia não se mostra associado nem à pre-sença de filhos, nem à duração do sono matutino. Poder-se-ia especular que as diferenças entre as mulheres quan-to à realização de mais de um episódio por dia são maisfacilmente atribuídas a seu papel em relação ao cuidadodos filhos do que a diferenças individuais quanto aos pa-drões de sono. Já entre os homens, as diferenças indivi-duais parecem mais evidentes, em função da maior possi-bilidade de escolher os horários de sono, já que eles nãotêm atribuições durante o dia. O papel social da mulher,nesse caso, parece ser um fator social de extrema impor-tância na determinação do padrão de sono, seja polifásicoou monofásico, mas também na própria possibilidade deadotar a estratégia que possa parecer mais adequada, comosugerem os relatos dos(as) próprios(as) trabalhadores(as)(Rotenberg et al., 2001).

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MEDIDAS DE INTERVENÇÃO

Nível Coletivo

Como já se viu, o trabalho em turnos implica proble-mas inevitáveis, já que contraria princípios biológicos ede convivência social. Nesse sentido, as medidas para li-dar com (do inglês coping) os efeitos adversos do horáriode trabalho não são propriamente soluções para esses pro-blemas, mas recomendações que visam minimizar as difi-culdades dos trabalhadores quanto à saúde e ao bem-estarpsicossocial. Essas medidas incluem mudanças nos esque-mas temporais de trabalho e intervenções que permitemaos trabalhadores lidar com o esquema de trabalho ou ten-dem a reduzir suas conseqüências.

As medidas mais efetivas para contrabalançar os efeitosnegativos do trabalho em turnos envolvem o desenho de es-quemas de trabalho. O envolvimento interativo das partesenvolvidas permite obter maior sucesso nas mudançasorganizacionais (Gartner et al., 1998; Lillqvist et al., 1997;Smith, P.A. et al., 1998). As necessidades das empresas e osinteresses de grupos de trabalhadores em turnos devem serclaramente discutidos entre as partes interessadas.

Nesse contexto, deve-se ressaltar que não há um es-quema temporal “ótimo”, ou seja, cada esquema apresen-ta vantagens e problemas do ponto de vista orgânico, psi-cológico ou social (Knauth, 1993). Pesquisadores da área,bem como entidades internacionais vinculadas à melhoriadas condições de vida e trabalho – como a EuropeanFoundation for the Improvement of Living and WorkingConditions – preconizam algumas recomendações ergo-nômicas que visam humanizar os esquemas de turnos(Wedderburn, 1991a).

Uma das recomendações nessa área refere-se à mini-mização dos turnos fixos noturnos. Caso isso não seja viá-vel, sugere-se que a seqüência de noites trabalhadas sejaa menor possível – de duas a quatro noites consecutivas(Knauth, 1993). O número de noites de trabalho está dire-tamente relacionado à velocidade de rotação dos turnos,ou seja, o número de dias em que o indivíduo trabalha emdeterminado horário. Há certa concordância entre os au-tores quanto à preferência por turnos de rotação rápida(Akerstedt, 1996). Levando em conta que os turnos derotação rápida causam menos mudanças nos ritmoscircadianos (Costa et al., 1994), provocam menor débitode sono (Williamson; Sanderson, 1986; Tepas; Mahan,1989) e favorecem os contatos sociais dos trabalhadores(Knauth; Schönfelder, 1990), eles devem ser incentiva-

dos em detrimento dos esquemas de rotação lenta, comoos que “rodam” a cada semana, por exemplo.

Além dos problemas diretamente associados ao traba-lho noturno, deve-se considerar que os turnos matutinostambém tendem a provocar débitos de sono, por causa daredução do sono na(s) noite(s) que precede(m) a jornadamatutina quando ela se inicia muito cedo. A afirmativa,que é tanto mais verdadeira quanto mais cedo for o inícioda jornada, decorre das evidências de que mesmo preci-sando acordar cedo no dia seguinte, as pessoas não ne-cessariamente conseguem dormir muito mais cedo em fun-ção não apenas de pressões sociais para manter-seacordada, mas também de características dos relógios bio-lógicos que as impedem de pegar no sono muito mais cedoque o habitual (Folkard; Barton, 1993). Outra recomen-dação refere-se ao sentido de rotação dos turnos. Os tur-nos que rodam no sentido horário, nos quais o indivíduotrabalha na seqüência manhã-tarde-noite, são mais ade-quados do ponto de vista dos ritmos biológicos do que osturnos que adotam sentido anti-horário, em virtude da ten-dência natural do sistema circadiano humano de adaptar-se mais facilmente ao atraso de fase do que ao seu avanço(Monk; Folkard, 1992).

No que se refere à duração dos turnos, alguns setores ado-tam as “semanas curtas de trabalho ” (compressed workweeks),esquemas nos quais a pessoa trabalha por um período supe-rior a oito horas, e que resulta em uma semana com menosde cinco dias de trabalho. (Tepas, 1985). Esse tema tem me-recido especial atenção nos debates sobre esquemas de tra-balho, haja vista a tendência atual de adoção de turnos de 12ou 10 horas, em substituição aos de oito horas (Axelsson etal., 1998; Lowden et al., 1998). As opiniões a respeito dasvantagens e problemas decorrentes desses esquemas são con-troversas. No entanto, os efeitos negativos sobre a fadiga têm-se revelado fatores importantes em diversos estudos, comoexibe a revisão de Smith, L. et al. (1998). Seja como for, sãonecessárias pesquisas sistemáticas a longo prazo, de formaque se avalie os efeitos desses turnos de trabalho. De acordocom alguns autores, os turnos de 12 horas só devem ser co-gitados se a natureza do trabalho e da carga de trabalho fo-rem ajustadas para atividades de longa duração, se o esque-ma é planejado para minimizar o acúmulo da fadiga, se háarranjos adequados para cobrir faltas e se não houver neces-sidade de cumprir horas-extras (Knauth et al., 1990).

Como facilmente se pode perceber, não há como conci-liar todas as recomendações, de forma que os esquemas deturnos envolvem prós e contras cuja análise é uma empreita-da complexa, já que a atuação de diversas variáveis devem

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ser consideradas. Nesse contexto, cabe mencionar o desen-volvimento de programas de computador para auxiliar nastarefas de implantação e modificação de escalas de trabalho.Com base no desenvolvimento de programas especiais, épossível planejar e construir complexas escalas de turnos queatendam aos diferentes setores da mesma empresa e que te-nham incorporados critérios ergonômicos em seu desenho.Modificações nas escalas de turnos devem sempre ser acom-panhadas de avaliações anteriores e posteriores às mudan-ças. É comum serem observadas variações na satisfação notrabalho, no sono, alerta e desempenho dos trabalhadores,após implantar novos tipos de turnos (Axelsson et al., 1998;Smith, L. et al., 1998).

De acordo com a European Foundation for theImprovement of Living and Working Conditions, um dosaspectos mais importantes no que tange às medidas de inter-venção refere-se à mudança de mentalidade em relação àcompensação básica pelas inconveniências do trabalho no-turno (Wedderburn, 1991b). A medida tradicionalmente ado-tada – o pagamento extra dos trabalhadores – é consideradainsuficiente para compensar o desgaste decorrente do esque-ma de trabalho. De fato, as medidas de compensação sãoobjeto de profundas mudanças, havendo atualmente crescenteconscientização de que pagar um extra ao indivíduo que tra-balha à noite não o ajuda a dormir melhor, nem a lidar me-lhor com eventuais problemas familiares a que ele se expõe.Introduzida por pesquisadores holandeses nos anos 70(Thierry et al., 1975), essa abordagem diferencia a compen-sação financeira das intervenções que contribuem para re-duzir ou amenizar o impacto dos horários de trabalho, como,por exemplo, o atendimento médico periódico aos trabalha-dores. Como comenta Wedderburn (1991b), os méritos des-se modelo residem em sua flexibilidade, ou seja, a escolhadas medidas depende da situação concreta e na ênfase dadaà redução dos custos humanos e sociais por meio de medi-das direcionadas para cada um dos custos.

Nesse contexto, a redução da “dose” de trabalho no-turno é uma forma efetiva para reduzir os efeitos negati-vos do trabalho noturno a que o trabalhador é exposto. Oaumento no número de folgas, a aposentadoria precoceou transferência para turnos diurnos são algumas das for-mas de conseguir esse intento. Algumas dessas medidasoferecem ao trabalhador uma oportunidade para compen-sar problemas relacionados ao sono e à realização das ta-refas domésticas, nos casos em que não haja horas-extrasou um segundo emprego (Wedderburn, 1991b).

A permissão para dormir à noite durante o turno de tra-balho é uma medida que visa reduzir a fadiga e o débito

de sono, que tendem a se acumular ao longo de várias noitesde trabalho. A questão dos cochilos durante os turnos écontrovertida, tendo sido debatida durante o XIV Inter-national Symposium on Night and Shiftwork (1999).Kazutaka Kogi, renomado pesquisador do Instituto deCiência do Trabalho no Japão, defendeu a posição de queos cochilos durante a noite reduzem a fadiga durante eapós o turno e mantêm melhores níveis de alerta ao longoda jornada, em especial a noturna. Há, entretanto, opiniõescontrárias a essa prática, como a de Donald Tepas, deConnecticut, USA, pesquisador da área de trabalho emturnos por várias décadas. Segundo ele, os episódios desono prolongado durante o trabalho poderiam atrapalharo repouso após a jornada. No entanto, os débitos crônicosde sono acumulados ao longo das noites de trabalho po-dem vir a facilitar o sono “involuntário”.

Algumas medidas podem ser extremamente benéficasà vida social do trabalhador, como, por exemplo, a pro-moção, pela empresa, de atividades de lazer e esportedurante o dia. Seminários no fim de semana podem favo-recer contatos com a família. No contexto da vida socialdo trabalhador, cabe ressaltar que os fins de semana li-vres e esquemas de rotação rápida contribuem em muitopara reduzir o isolamento social a que os trabalhadoresem turnos são expostos.

A realização de exames médicos periódicos em traba-lhadores em turnos é uma medida essencial, consideran-do que essa é uma população sob risco. Alguns pesquisa-dores enfatizam a necessidade de se ampliar a iniciativarecente de uma clínica (shiftwork clinics), planejada es-pecificamente para atender aos trabalhadores em turnos(Monk; Folkard, 1992).

Como se viu, são várias as possibilidades de intervençãoque consideram os critérios cronobiológicos. Obviamente, aadoção dessas medidas envolve negociações entre emprega-dores e trabalhadores nem sempre conciliáveis. Cabe lem-brar o papel da legislação vigente no país quanto ao estímu-lo à implementação de mudanças, como a que se espera venhaocorrer no Brasil em função de nova legislação que estabe-lece novas regras relacionadas a fatores de risco no trabalhoe suas conseqüências à saúde. De acordo com um decretogovernamental recém-publicado (Brasil, 1999), grande nú-mero de agentes etiológicos de natureza ocupacional são agorareconhecidos pelo Ministério da Previdência Social, em con-sonância com a “Classificação Internacional de Doenças(CID-10)”. Os esquemas de trabalho em turnos e noturnoforam reconhecidos como agentes etiológicos de problemasdo ciclo vigília-sono, o que evidencia a necessidade de ava-

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A SAÚDE DO TRABALHADOR NA SOCIEDADE 24 HORAS

liações específicas nessas populações de trabalhadores. Essanova legislação deve induzir as empresas a realizaremmelhorias em seus esquemas de turnos a fim de prevenir afas-tamentos causados pelo trabalho em turnos e noturno, queresultem em disputas legais.

Nível Individual

Como já discutido, não há apenas uma única soluçãopara o trabalho em turnos, mas uma complexa rede de fa-tores que podem ser modificados para facilitar a tolerân-cia do trabalhador ao trabalho em turnos. Além das medi-das coletivas citadas no item anterior, o próprio trabalhadorpode adotar algumas rotinas especiais para lidar melhorcom seus horários de trabalho.

De acordo com Monk e Folkard (1992), essas medidasindividuais dividem-se em três áreas: sono, ritmos bioló-gicos e situação social/doméstica do trabalhador. Em re-lação ao sono, os autores sugerem que hábitos regularesfacilitam a tolerância ao trabalho em turnos. Rosa et al.(1990) recomendam que o trabalhador deve dormir, nomínimo, 6 horas, mas lembram que a maioria das pessoasprecisa dormir mais do que isso. Dormir em quartos si-lenciosos, escuros e com temperatura agradável tambémsão recomendações feitas pelos higienistas de sono e quedevem ser realizadas pelo trabalhador.

Com relação aos ritmos biológicos, Monk e Folkard (1992)propõem que o cronotipo do trabalhador deve ser considera-do na escolha do tipo de esquema de trabalho. Portanto, osmatutinos devem optar por turnos que iniciem mais cedo,enquanto indivíduos vespertinos apresentam mais facilida-de em adaptar-se ao trabalho noturno. Segundo esses mes-mos autores, o peso da situação social e doméstica em pro-mover ou dificultar a tolerância do trabalhador ao trabalhoem turnos é bastante considerável. O apoio da família aoacompanhar o trabalhador em atividades sociais em seus ho-rários livres, bem como manter o ambiente doméstico ade-quado a seu sono diurno, é fundamental para a adaptaçãodele ao horário de trabalho.

A prática de exercícios físicos, técnicas de relaxamen-to e uma dieta leve com pouca gordura e carboidratos sãomedidas sugeridas por Rosa et al. (1990).

A exposição à luz intensa no final da tarde também podeaumentar os níveis de alerta durante a noite dos trabalha-dores. Essa medida vêm sendo muito discutida após di-versas pesquisas demonstrarem que a luz intensa podeafetar a ritmicidade biológica (Rosa et al., 1990). A luzintensa altera a liberação de melatonina, hormônio pro-

duzido pela glândula pineal, que, em geral, é liberado naprimeira porção do sono noturno. O aumento dos níveisde melatonina induz ao sono, logo, a alteração de seusníveis também altera os níveis de sonolência de um indi-víduo. A exposição à luz intensa no final da tarde reduzi-rá a liberação de melatonina ou atrasará sua liberação,alterando os níveis de alerta durante a noite dos indiví-duos expostos (Dijk et al., 1995). Em alguns estudos decampo, com o trabalhador exposto à luz intensa combina-da com o uso de óculos escuros durante o dia (sobretudono caminho do trabalho para casa pela manhã), concluiu-se que não há mais dúvidas que a exposição à luz intensapode auxiliar trabalhadores em turnos a adaptar-se a no-vas rotinas de sono e vigília, porém existem ainda algu-mas questões que precisam de respostas, como: qual a in-tensidade e a duração mais adequada de exposição à luzpara promover a mudança de fase nos ritmos biológicosnecessária para cada tipo de turno? (Eastman et al., 1995).Por esse motivo, estudos que utilizam luz intensa tantoem laboratório, quanto em campo vêm adquirindo enor-me relevância nos últimos anos.

Considerando que, nas grandes metrópoles, vive-se cadavez mais numa sociedade 24 horas, um número crescentede pessoas depara-se com as dificuldades de trabalhar emhorários não diurnos e/ou fins de semana, o que torna re-levante a identificação das conseqüências do trabalho emturnos e das possibilidades de amenizar os problemas porele causados. Este artigo objetivou apresentar as múlti-plas facetas dessa questão e suas possíveis soluções.

NOTAS

Este artigo corresponde à adaptação do capítulo “Tolerancia al trabajoem turnos y nocturno: uma cuestión multidimensional” (Moreno;Fischer; Rotenberg, 2002: 253-267).

1. Fonte: Censo Demográfico 2000, Fundação IBGE.

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FRIDA MARINA FISCHER: Bióloga, Professora do Departamento deSaúde Ambiental, Faculdade de Saúde Pública da USP ([email protected])

LÚCIA ROTENBERG: Bióloga, Pesquisadora do Departamento de Biolo-gia do Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz-RJ ([email protected]).

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SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

O

SAÚDE DO TRABALHADOR NOÂMBITO MUNICIPAL

Resumo: O novo padrão mundial de produção e comércio tem produzido mudanças no mundo do trabalho, nosdeterminantes da saúde-doença e na organização das práticas de saúde e de segurança no trabalho. No Brasil,transformações importantes vêm ocorrendo com o processo de descentralização das ações e dos serviços desaúde. A Pesquisa Municipal Unificada, da Fundação SEADE, identificou que, em 1999, 26% das prefeituraspaulistas realizavam ações de saúde do trabalhador, mais freqüentemente em municípios maiores e em GestãoPlena do Sistema.Palavras-chave: saúde do trabalhador; descentralização; informações municipais.

Abstract: The new worldwide standard of production and commerce has produced changes in the workplacewith regard to sickness/health and in the organization of occupational safety and health practices. In Brazil,important transformations are occurring as a result of the decentralization of activity and health care services.The Unified Municipal Study, by the SEADE Foundation, revealed that in 1999, 26% of municipal governmentsin the State of São Paulo carried out health care-related activities aimed at workers, most frequently in largercities and through large coordinated efforts.Key words: employee health; decentralization; municipal information.

ZILDA PEREIRA DA SILVA

IRINEU FRANCISCO BARRETO JUNIOR

MARIA DO CARMO SANT’ANA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 47-57, 2003

padrão mundial de produção e comércio, carac-terizado pelo processo de globalização da eco-nomia, de reestruturação produtiva e de recon-

O Relatório da Organização Internacional do Traba-lho – OIT, apresentado na XIV Reunião Regional Ameri-cana, realizada em Lima, em agosto de 1999, com o temaTrabalho Decente e Proteção para Todos como Priori-dade das Américas, afirma que a globalização dos mer-cados de capital e a ausência de mecanismos de regulaçãofinanceira incrementaram a dependência de economiascom relação à dívida externa de curto prazo e os emprés-timos de alto risco, o que pressiona países a adotarempolíticas de ajuste recessivo, afetando significativamenteo mercado de trabalho. Ainda que, durante os anos 90, aseconomias da América Latina tivessem crescido e redu-zido a inflação, isto não significou melhora no campo dotrabalho, na situação do emprego e do salário. Este pe-ríodo caracteriza-se por moderada recuperação do cres-cimento econômico, pela expansão da força de trabalho,pelo aumento do desemprego e à insuficiente geração depostos de trabalho, combinados com a desaceleração doritmo de crescimento do PIB, a não-recuperação do salá-rio mínimo em termos reais e a evolução do ingresso dostrabalhadores no emprego informal. Nesse quadro eco-nômico, os trabalhadores ligados a indústrias de pequenoporte, os autônomos/temporários ou os do setor informal

versão profissional, tem introduzido mudanças radicais navida e nas relações entre países e pessoas, provocandotransformações socioeconômicas/culturais no mundo dotrabalho, nos determinantes da saúde-doença, no quadroda morbimortalidade relacionada ao trabalho e na organi-zação das práticas de saúde e de segurança no trabalho.

O processo saúde-doença dos trabalhadores – como eporquê adoecem e morrem – e como são organizadas eatendidas suas necessidades de saúde podem ser conside-rados uma construção social diferenciada no tempo, lugare dependente da organização das sociedades (Dias, 2000).Os agravos à saúde dos trabalhadores englobam, além dosacidentes de trabalho, as doenças profissionais – aquelasque apresentam relação nítida com o trabalho, sendo ine-rentes aos indíviduos que desenvolvem alguma atividadeprodutiva, que é a causa inequívoca da doença –, e asdoenças relacionadas ao trabalho – aquelas em que nãoexiste pressuposto da inerência, sendo o trabalho assumi-do como co-fator na etiologia da doença (Wünch Filho,1995).

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2002

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tiveram menos garantia de emprego. O relatório apontaainda outro fenômeno importante: o aumento da tercei-rização remete a tarefas insalubres, monótonas e perigo-sas, cuja pulverização das atividades em diversas unida-des dificulta as ações do setor saúde, o que constitui umdesafio à proposta de promoção de saúde (OIT, 1999).

A dinâmica social do trabalho está intrinsecamente re-lacionada ao processo saúde-doença das sociedades huma-nas. No mundo contemporâneo, a automação e a renova-ção dos equipamentos – microeletrônica, informatização,robotização, modernização das plantas industriais –, aredefinição organizacional da empresa – novas técnicas degestão –, o trabalho informal e o desemprego repercutemsobre os acidentes, as doenças do trabalho e os estilos devida da população e evidenciam novas relações entre apolítica econômica e a saúde (Wünch Filho, 1995).

Essas transformações trazem à tona novas questões paraos que atuam na área de saúde. O perfil epidemiológicodos trabalhadores caracteriza-se pela mistura de padrõesheterogêneos de adoecimento e morte, em que os novosproblemas de saúde-doença superpõem-se aos antigos e amorbidade dita ocupacional mescla-se com a não-ocupacional, resultando num tipo de mosaico. É cada vezmais difícil falar de um mundo do trabalho – que pertenceà esfera da fábrica ou da produção – e de um mundo forado trabalho, bem como definir com clareza quem são ostrabalhadores (Dias, 2000).

No Brasil, na segunda metade do século XX, a popula-ção perdeu suas características rurais e adquiriu um perfilpredominantemente urbano. Em 1950, pouco mais de 1/3dos brasileiros vivia em domicílios urbanos, passando paramais da metade, em 1970, e para mais de 3/4, em 1991. OCenso Demográfico revelou que, em 2000, 81% dos bra-sileiros residiam nas cidades. Na Região Sudeste, o graude urbanização chegou a 91% e, no Estado de São Paulo,a 93%.

A mudança de um perfil essencialmente rural da socie-dade brasileira para um predominantemente urbano temorigem na industrialização do país e no conseqüente de-senvolvimento acelerado de pólos industriais, com a ins-talação da indústria automobilística, a partir da segundametade da década de 50 e no transcorrer dos anos 60. Nadécada de 70, intensificaram-se a instalação da indústriade bens de capital e os investimentos em infra-estrutura detransporte, comunicação e energia e foram implantadas asindústrias de alta tecnologia, como a bélica, a aeronáutica,a de informática e a nuclear. O ritmo do crescimento in-dustrial e os investimentos deixaram de se expandir nos

anos 80, privilegiando projetos de modernização tecno-lógica e gerencial. Na década de 90, a indústria nacionalapresentou queda no volume produzido e o seu nível mé-dio de produção industrial ficou praticamente igual ao dosanos 80. O acréscimo pontual na produtividade aconteceuem virtude da automação e do aperfeiçoamento das técni-cas de gerenciamento, predominantemente nos setores deponta da indústria, em grande parte vinculados ao capitalmultinacional (Wünch Filho, 1995).

A População Economicamente Ativa – PEA, nos anos70 e 80, também sofreu profunda transformação: o setorprimário retraiu-se, a classe operária urbana triplicou e osetor terciário tornou-se dominante. Em 1970, 44% da PEAocupada estava no setor primário, 18% no secundário e38% no terciário, enquanto em 1990 essa distribuiçãocorrespondia a 23%, 23% e 55%, respectivamente. Em2001, confirma-se tendência decrescente, com a partici-pação de 21% do setor primário da economia.

As transformações das relações de trabalho no campo,mais intensas no Sudeste e no Centro-Oeste do que noNordeste, incrementaram a produtividade com menor usode mão-de-obra, quando as relações capitalistas de pro-dução atingiram a atividade rural por meio da mecaniza-ção e do uso dos agrotóxicos.

O grupo de empregados com carteira assinada em ati-vidade agrícola, entre 1999 e 2001, sofreu redução de, emmédia, 5,5% ao ano, enquanto o de sem carteira de traba-lho assinada registrou uma média anual de queda de 1,7%.O crescimento do número de ocupados em atividades não-agrícolas, (média de 3,8% ao ano), ainda que importante,não foi suficiente para elevar o nível de ocupação total,havendo, nesses dois anos, crescente participação dos ocu-pados sem registro em carteira (uma média de 6,5% ao ano).

A PEA feminina brasileira tem-se ampliado continua-mente: 31%, em 1980, 36%, em 1991, e 44%, em 2000.No Estado de São Paulo, a taxa de participação das mu-lheres no mercado de trabalho cresceu de 47% para 51%,entre 1994 e 1998. Em geral, esse contingente em condi-ções mais precárias que o de homens, pois grande parcelaestá inserida em empregos domésticos, em tarefas de apoioe de execução. Dados da Pesquisa de Emprego e Desem-prego – PED, na Região Metropolitana de São Paulo,mostram que, entre 2000 e 2001, houve redução de 6%no contingente de mulheres exercendo atividades de dire-ção e planejamento. A mão-de-obra feminina continuarecebendo rendimento inferior ao dos homens, mesmoquando desempenha função equivalente. Em 1998, as mu-lheres ocupadas recebiam, em média, R$ 712, valor 28%

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SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

superior ao de 1994. Apesar do aumento, o rendimentomédio feminino equivalia a 64% do masculino. As mu-lheres mantinham, em 1998, taxa de desemprego maior(20%) que a dos homens (14%). Além disso, as trabalha-doras ainda encontram-se expostas aos velhos e, princi-palmente, aos novos riscos ocupacionais, como as ativi-dades repetitivas e a dupla jornada/carga de trabalho, oque acarreta maiores riscos para sua saúde.

As repercussões sociais advindas dessas transformaçõestraduziram-se, desde os anos 60, nas migrações internas,nas alterações no processo de produção com a incorpora-ção sistemática da tecnologia, na mudança das caracterís-ticas do estilo de vida e nos perfis de saúde da população.Na perspectiva da saúde, os trabalhadores informais e osdesempregados constituem população à margem das es-tatísticas de Saúde do Trabalhador. Não há registros dosacidentes e doenças do trabalho que atingem esse segmen-to, tornando obscura sua morbimortalidade ocupacional.

A OIT, na Reunião de Lima, em 1999, discutiu e secomprometeu com a necessidade de encontrar respostascontemporâneas ao marco teórico-prático da economiaglobal e à demanda histórica, posta a nossas sociedades,que sejam capazes de gerar empregos de qualidade, querespeitem os direitos dos trabalhadores e desenvolvam for-mas modernas e efetivas de proteção social, habitação,alimentação, educação e ocupação adequada do tempolivre, tudo isso sintetizado na noção de trabalho decente.

A combinação das inovações tecnológicas com os no-vos métodos gerenciais gerou uma intensificação do tra-balho, decorrente do aumento do ritmo, das responsabili-dades e da complexidade das tarefas, que se traduziramnuma série de agravos à saúde: envelhecimento prematu-ro, aumento do adoecimento e morte por doenças car-diovasculares e outras doenças crônico-degenerativas,especialmente as osteomusculares (Dort) relacionadas aotrabalho – conhecidas também como lesões por esforçosrepetitivos (LER) –, além de um conjunto de sintomas naesfera psíquica (Dias, 2000).

Os acidentes de trabalho, por outro lado, não estão maisassociados apenas às atividades restritas ao ambiente dasempresas/do local do trabalho, assim como os acidentespredominantes não correspondem mais àqueles relacio-nados diretamente com os processos intrínsecos ao traba-lho. Os riscos mais gerais aos quais está submetida toda apopulação, principalmente as diversas formas de violên-cia crescentes nas áreas urbanas, atingem de formaindiscriminada os trabalhadores que tiveram seu local detrabalho ampliado para o espaço público, acrescentando

esses riscos àqueles inerentes aos processos produtivos(Waldvogel, 2002).

Do exposto, pode-se pensar que uma proposta de pro-moção de saúde do trabalhador tem que se fundamentarna complexidade de uma ordem sistêmica. Os fatoressistêmicos que envolvem os acidentes de trabalho com-preendem múltiplas variáveis, tais como: técnicas de pro-dução e de organização social do trabalho; dificuldadesde adaptação cultural, como, por exemplo, do migrantequanto à mudança brusca de atividade e ao entendimentodo novo espaço de trabalho, do percurso ou da moradia edas tecnologias desconhecidas; trânsito como gerador deacidentes; mudanças de ritmo na atividade desenvolvidae modificações na rotina – escala por turno/interrupçõespara treinamento/fadiga (horas extras/longa distância en-tre trabalho e residência/excesso de ruído); alimentaçãoinadequada; falta de opção de lazer e de atividades paraocupação do tempo livre; poluição ambiental; violênciaurbana. Esse amplo conjunto de fatores deve levar a quese evite o senso comum de remeter ao trabalhador a culpapelo acidente (Wünch Filho, 1995).

A agenda da OIT (1999), para a primeira década doséculo XXI, pode ser sintetizada por quatro objetivos/es-tratégias: promoção e aplicação dos princípios e direitosfundamentais no trabalho; promoção de políticas e pro-gramas destinados a gerar mais e melhores empregos;ampliação da cobertura e efetividade de proteção socialpara todos; e fortalecimento do tripartismo e do diálogosocial.

Para se entender e intervir, portanto, sobre a saúde dotrabalhador torna-se necessário combinar distintosenfoques, como a reestruturação produtiva na globalizaçãoda economia, as transformações urbanas, as mudançasorganizacionais no trabalho, os fatores de risco industriaise ambientais e os aspectos da saúde psicofísica do traba-lhador (Franco apud Dias, 2000). Nesse contexto, os ris-cos e os desafios a serem enfrentados pelos trabalhadorese suas representações – sindicatos, centrais e federações– e pela sociedade têm suscitado preocupação também en-tre produtores de estatísticas, pesquisadores, estudiosos eimplementadores de políticas públicas, destacando-se,porém, que os problemas de saúde do trabalhador dificil-mente poderão ser resolvidos por ações exclusivas do se-tor saúde.

A grandiosidade numérica dos potencialmente envol-vidos na questão da promoção de saúde do trabalhadorpor si só justificaria investimentos em pesquisas e análi-ses. Segundo o Censo de 2000, mais de 76 milhões de bra-

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sileiros, a partir dos dez anos de idade, constituíam a PEA(56% da população de dez anos e mais), que engloba as-salariados com registro em carteira, autônomos, trabalha-dores informais e desempregados procurando emprego.

Dias (2000) argumenta que é preciso compreender queos trabalhadores vivem, adoecem e morrem de forma com-partilhada com a população de um determinado tempo,lugar e classe social, mas também de forma diferenciada,decorrente de sua inserção particular no processo produ-tivo, especificidade que deve ser contemplada em suasnecessidades de saúde.

A compreensão dessas especificidades deve estarsubjacente na elaboração de políticas e programas de saú-de do trabalhador, desde o nível nacional até o local, ob-servadas as novas bases de relação entre os entes federados,em que à União compete estabelecer as normas gerais, quepodem ser suplementadas por Estados e municípios, no quecouber, e a estes compete a execução de ações de preven-ção, promoção e recuperação da saúde dos trabalhadores.

A DESCENTRALIZAÇÃO DAS AÇÕES E DOSSERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR

O Brasil vive um processo de descentralização de açõese serviços de saúde que já passou por vários estágios, desdeos anos 80. A descentralização, de modo geral, pode serdefinida como a transferência de poder do nível nacionalpara instâncias subnacionais e de competências para pla-nejar, gerir, executar e tomar decisões. No âmbito daspolíticas públicas, este processo implica reestruturação noaparelho de Estado, que perpassa várias esferas de gover-no, envolvendo aspectos políticos, administrativos, téc-nicos e financeiros.

A transferência de recursos e de competências para asdiferentes instâncias do sistema de saúde causa um im-pacto positivo na gestão e nas diversas modalidades deatenção, permitindo a geração e o desenho de novos mo-delos de atenção, papéis e funções, modalidades decapacitação, sistema de remuneração e novas formas departicipação das instituições. A descentralização é condi-ção necessária para melhorar o acesso, a participação, aqualidade, a sustentação e a eqüidade na saúde (Hortaleet al. apud Dias, 2000).

A efetivação de transferências de ações e serviços paraos municípios não está desonerada de dificuldades, mui-tas dessas originárias das próprias características dosmunicípios brasileiros. Para Mendes (1998), dado o mo-delo de federalismo brasileiro, no qual os municípios são

entes federativos com autonomia política, administrativae financeira e com competências constitucionais einfraconstitucionais bem estabelecidas, era natural que adescentralização do sistema de saúde reservasse, para eles,papel de protagonista. No entanto, o autor indica a com-plexidade que a questão assume quando se observam osaltíssimos diferenciais de tamanho, população e desigual-dades socioeconômicas entre os milhares de municípiosbrasileiros. Esses diferenciais, evidentemente, vão se re-fletir em distintos graus de competências administrativa egerencial, bem como de capacidade instalada de serviçosde saúde e de respostas às demandas de atenção à saúdeda população.

No Brasil, o movimento pela descentralização come-çou a ganhar corpo em meados da década de 70, princi-palmente quando a oposição ao governo assumiu a admi-nistração de algumas prefeituras de médios e grandesmunicípios. Nos anos 80, foram implantadas duas estra-tégias que previam a transferência de ações de saúde paraos municípios: o Programa de Ações Integradas de Saúde– AIS, em 1983, e o Sistema Unificado Descentralizadode Saúde – Suds, em 1987. Componente do ideário daReforma Sanitária, a proposta de descentralização, comdireção clara para a municipalização, vitalizou-se na dé-cada de 80, sendo inscrita na Constituição Federal de 1988.

As atribuições e competências de âmbito local foramdadas pela legislação infraconstitucional – as Leis Orgâ-nicas da Saúde no 8.080 e 8.142/90 – e a aplicação dospreceitos estabelecidos foi e está sendo normatizada peloMinistério da Saúde, por meio de diversas portarias, quedão a conformação da relação entre as três esferas de go-verno e, em particular, da gestão municipal.

O processo de descentralização orienta-se pelas Nor-mas Operacionais Básicas (NOBs), editadas pelo Minis-tério da Saúde. A norma atualmente em vigor, a NOB/96,estabelece duas condições para os municípios em substi-tuição às três que antecederam a Gestão Plena da Aten-ção Básica e a Gestão Plena do Sistema (Ministério daSaúde, 1996). As atribuições e responsabilidades defini-das levam em conta a realidade do poder público, nos di-versos municípios, caracterizada por diferentes modelosde organização, de diversificação de atividades, de dis-ponibilidade de recursos e de capacitação técnico-gerencial.

Os dados da Secretaria de Estado da Saúde indicamque 95% dos municípios de São Paulo, até outubro de1999, haviam aderido aos novos modelos de gestão mu-nicipal de saúde, preconizados pela NOB/96, sendo que

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71% optaram pela Gestão Plena da Atenção Básica e 24%pela Gestão Plena do Sistema.

A Constituição Federal de 1988 é referência para a saú-de do trabalhador e a partir dos seus preceitos, segundo Dias(2000), são elaborados os instrumentos legais e definidasas políticas de saúde e segurança no trabalho. As responsa-bilidades pela atenção à saúde do trabalhador são comparti-lhadas de forma diferenciada por empregadores, trabalha-dores (através de suas representações) e Estado (no seu papelde mediador e condensador das forças sociais). Na esferado Estado, atuam nessa questão os Ministérios do Traba-lho, da Previdência Social, da Saúde e do Meio Ambiente, aJustiça do Trabalho e a Promotoria Pública. Dias (2000)elaborou, ainda, um apanhado das atribuições dos diferen-tes órgãos, descritos, de forma resumida, a seguir.

O Grupo Executivo Interinstitucional de Saúde do Tra-balhador – Geisat, constituído por representantes dosMinistérios envolvidos com a questão, procura articular eracionalizar a atuação dos diferentes setores governamen-tais, evitar duplicação de ações e desperdício de recur-sos, compatibilizar e integrar as políticas e práticas deintervenção desenvolvidas pelo Estado.

A Constituição de 1988 atribuiu ao Ministério do Tra-balho e Emprego a inspeção do trabalho em nível nacio-nal, fundamentada nos dispositivos da Consolidação dasLeis do Trabalho – CLT, nas Convenções Internacionaisratificadas pelo Brasil e nas cláusulas dos Contratos Co-letivos de Trabalho. Conta com o apoio técnico daFundacentro que, entre outras atividades, realiza estudose pesquisas e desenvolve programas educacionais sobrediferentes assuntos que envolvem o trabalhador e respec-tivas condições do trabalho.

À Previdência Social cabe, por meio do Instituto Na-cional do Seguro Social – INSS, a responsabilidade pelopagamento dos benefícios, enquanto perdure a incapaci-dade decorrente de acidente do trabalho. Entre outras atri-buições do INSS, estão os procedimentos de reabilitaçãoprofissional, de preparo e capacitação para acidentadosou incapacitados para a reinserção no mercado e a coleta,a consolidação e a divulgação de dados sobre ocorrênciade acidentes de trabalho.

A Justiça do Trabalho integra o Poder Judiciário e con-grega as Juntas de Conciliação e Julgamento, o TribunalRegional do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho.

O Ministério Público presta assistência jurídica às ví-timas de acidentes e doenças do trabalho e/ou a seus de-pendentes, fiscaliza e acompanha denúncias de descum-primentos das Normas de Segurança e Medicina do

Trabalho, impetra ações de reparação de dano, interpretae elabora pareceres técnicos que respaldem a atenção àsaúde dos trabalhadores.

O Sistema Único de Saúde – SUS, alvo deste estudo,mantém Programas ou Centros de Referência à Saúde doTrabalhador, nos serviços próprios ou conveniados da redepública.

Reppulo Jr. (2002) e Dias (2000) relatam que, antesmesmo de ser incluída na Constituição a atribuição ao SUSde executar ações de saúde do trabalhador, diversos pro-gramas municipais já haviam sido implantados, especial-mente nos anos 80, com a criação de Programas e Centrosde Referência em Saúde do Trabalhador, com influênciado Modelo Operário Italiano e dos trabalhos da MedicinaSocial Latino-Americana, referências teórico-conceituaisdas ações de saúde do trabalhador nos serviços públicos.

O movimento da Reforma Sanitária desempenhou pa-pel importante no resgate do poder de intervenção nosambientes de trabalho pelo Ministério da Saúde, confor-me apontam Vilela et al. (2001). Até 1988, as ações pú-blicas em saúde do trabalhador eram centralizadas e sereduziam a inspeções tradicionais efetuadas por agentesdo Ministério do Trabalho.

A Constituição estabelece que ao Sistema Único deSaúde compete, além de outras atribuições, executar asações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem comoas de saúde do trabalhador (art. 200, II). A Lei Orgânicada Saúde regulamentou os preceitos constitucionais e de-finiu a participação do município na execução, controle eavaliação das ações referentes às condições e aos ambien-tes de trabalho, bem como a execução dos serviços desaúde do trabalhador. Neste dispositivo legal, entende-sepor saúde do trabalhador o conjunto de atividades que sedestinam, por intermédio de ações de vigilância epi-demiológica e vigilância sanitária, à promoção, à prote-ção, à recuperação e à reabilitação da saúde dos trabalha-dores que se submetem a riscos e agravos advindos dascondições do trabalho, abrangendo:- assistência ao trabalhador vítima do acidente do traba-lho ou portador de doença profissional e do trabalho;- participação, no âmbito da competência do SUS, em es-tudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos,potenciais à saúde, existentes no processo do trabalho;- participação, no âmbito da competência do SUS, danormatização, fiscalização e controle das condições de pro-dução, extração, armanezamento, transporte, distribuição emanuseio de substâncias, de produtos, de máquinas e de equi-pamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador;

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- avaliação do impacto que as tecnologias provocam àsaúde;- informação ao trabalhador e à sua respectiva entidadesindical e às empresas sobre os riscos de acidente do tra-balho, doença profissional e do trabalho e sobre os resul-tados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames desaúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeita-dos os preceitos da ética profissional;- participação na normatização, fiscalização e controle dosserviços de saúde do trabalhador nas instituições e em-presas públicas e privadas;- revisão periódica da listagem oficial de doenças origi-nadas no processo de trabalho, tendo na sua elaboração acolaboração das entidades sindicais;- garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer aoórgão competente a interdição de máquina, de setor de ser-viço ou de todo o ambiente de trabalho, quando houverexposição a risco iminente para a vida ou a saúde dos tra-balhadores.

A instrumentalização dessas diretrizes consolidou-sepela Norma Operacional Básica de Saúde do Trabalhador– Nost/SUS, em 1998, que definiu as responsabilidadesdos municípios em cada uma das duas condições de ges-tão (Plena de Atenção Básica e Plena do Sistema) defini-das pela NOB 01/96. Os pressupostos básicos da Nost/SUSpodem ser sintetizados em: universalidade das ações, in-dependentemente de vínculos empregatícios formais nomercado de trabalho; integralidade das ações, compreen-dendo assistência, recuperação de agravos e prevenção pormeio de intervenções nos processos de trabalho; direito àinformação e controle social, com a incorporação dos tra-balhadores e seus representantes, em todas as etapas davigilância à saúde; e regionalização e hierarquização, atra-vés da execução das ações de saúde do trabalhador em todosos níveis da rede de serviços, organizados num sistema dereferência e contra-referência, local e regional.

Vilela et al. (2001) destacam algumas atribuições queos municípios em processo de gestão plena devem assu-mir: ações de vigilância nos ambientes e processos de tra-balho; aplicação de procedimentos administrativos e in-vestigação epidemiológica; emissão de laudos sobreincapacidade do trabalhador seqüelado; implantação deserviços especializados de referência com a capacidadepara estabelecimento de nexo causal dos agravos e paratratamento, recuperação e reabilitação do trabalhador; einstituição e manutenção de cadastro de empresas com aindicação dos fatores de risco.

O Estado de São Paulo aprimorou a legislação perti-nente à saúde do trabalhador com edição de duas leis, nasegunda metade dos anos 90. A Lei no 9.505/97 disciplinaas ações e os serviços de saúde do trabalhador no SUS,constituindo-se em grande avanço nas definições legaisdas ações de assistência ao trabalhador e de vigilância dosambientes de trabalho (Repullo Jr., 2002). O Código Sa-nitário de 1998 amplia as ações de vigilância à saúde so-bre o meio ambiente, nele incluídas as atividades produti-vas, e aprofunda a intervenção sobre as relações detrabalho, produtos e substâncias de interesse à saúde(Gouveia, 2000).

As ações de atenção à saúde do trabalhador devem serorganizadas para que seja prestada assistência multi-profissional às vítimas de doenças ocupacionais, de doen-ças relacionadas ao trabalho e de acidentes de trabalho,incluindo ações de diagnóstico, identificação de nexo cau-sal, tratamento, recuperação e reabilitação, bem como avigilância de ambientes de trabalho e prevenção de ris-cos. As ações de vigilância têm como objetivo identificarsituações de riscos de acidentes e agravos a saúde e pro-mover melhorias nas condições de segurança e saúde notrabalho, através de visitas às empresas e notificação so-bre mudanças a serem realizadas. A assistência ao traba-lhador vítima de acidente ou doenças do trabalho podeser feita na rede básica ou em serviços especializados.

Repullo Jr. (2002) retrata duas correntes de organiza-ção dessas ações em seu estudo sobre cinco municípiospaulistas. Em uma delas, as ações são implantadas de for-ma descentralizada na rede básica de saúde, cabendo aosmédicos clínicos o atendimento aos trabalhadores. Essesclínicos contam com uma referência em Medicina do Tra-balho num Centro de Especialidades para os atendimen-tos tecnologicamente mais complexos. A outra correntepreconiza a criação de Centros de Referência em Saúdedo Trabalhador – CRST, que vêm sendo implantados noBrasil, principalmente em São Paulo, desde o final dosanos 80. Ainda segundo o autor, contraditoriamente, osCRSTs têm-se configurado como a porta de entrada dosistema, não se constituindo em serviços de referênciasecundária. Estes Centros, com equipes multiprofissionaisespecializadas, voltam-se única e exclusivamente paraassistência, promoção de saúde do trabalhador e manejoprevidenciário dos agravos.

Os princípios do SUS – planejamento a partir do mu-nicípio, responsabilidade partilhada entre as três esferasde governo, envolvimento e participação da comunidadena definição das políticas públicas – têm como eixo e es-

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tratégia transformações sociais que garantam a saúde in-tegral do cidadão e não apenas a prevenção e o combate adoenças. Acompanhar o contínuo processo de descen-tralização das ações e serviços de saúde é um estímulo àrealização de pesquisas como a Pesquisa MunicipalUnificada – PMU, da Fundação Seade, que contribui paraa construção de banco de dados municipais e para a siste-matização do uso da informação enquanto instrumento degerenciamento e de direito de cidadania.

O processo da reestruturação produtiva em curso, como crescimento do desemprego e da precarização do traba-lho, aumenta as responsabilidades do SUS – única alter-nativa para cuidados com a saúde de expressivo contin-gente de trabalhadores – e traz ao sistema de saúde odesafio de compreender e lidar com a complexa situaçãoem que as doenças profissionais entrelaçam-se às doen-ças comuns agravadas pelo trabalho (Dias, 2000).

Apesar das críticas dirigidas à atenção diferenciada eespecializada, considerada verticalizada e de alcance res-trito enquanto estratégia de atuação em saúde pública, aautora afirma, que a implementação dos Programas deSaúde do Trabalhador e dos Centros de Referência temfacilitado o desenvolvimento de ações que cumprem aprescrição legal de competência do SUS e que contribuemcom a transformação das condições adoecedoras existen-tes no processo de trabalho.

Os programas e ações em favor da saúde do trabalha-dor devem ser entendidos, então, como um dos componen-tes da estratégia geral para o alcance da saúde para todos.A nova percepção do conceito de promoção de saúde dotrabalhador transcende a perspectiva da prevenção dos aci-dentes de trabalho e das doenças profissionais e remete ànecessidade de se conquistar a integralidade, favorecendoo desenvolvimento de diferentes estilos de vida em comu-nidades saudáveis (Ministério da Saúde, 1999).

Este trabalho procura dar visibilidade às ações de saú-de do trabalhador, atendo-se ao estudo do assunto sob aótica da política pública municipal, por meio de análisedos dados e informações da PMU, realizada pela Funda-ção Seade, em todos os municípios paulistas, em 1995,1997 e 1999.

ANÁLISE DOS RESULTADOS DA PESQUISAMUNICIPAL UNIFICADA

A PMU é um dos projetos tradicionais da FundaçãoSEADE, que investiga a capacidade organizacional, ad-ministrativa e financeira das prefeituras, além da realida-

de socioeconômica, cultural e urbana municipal, permi-tindo acesso a uma radiografia dos 645 municípios doEstado de São Paulo. Trata-se de uma das únicas pesqui-sas em que as prefeituras municipais são fontes primáriasde dados, cobrindo o universo dos municípios e um ex-tenso rol de aspectos da administração pública, com acom-panhamento bianual.

Dos aspectos abordados no tema Saúde – política eorganização administrativa, recursos humanos, programase ações de saúde –, selecionaram-se, para este estudo, asvariáveis que possibilitam conhecer, em âmbito munici-pal, a atuação do SUS, no que a ele compete, sobre a saú-de do trabalhador e elaborar uma análise de suas ações,em 1995, 1997 e 1999.

A PMU permite identificar as ações das prefeituras noque se refere a vistoria e fiscalização de ambientes de tra-balho, intervenção preventiva em ambientes com riscosde acidentes ou doenças profissionais, oferta de atendi-mento especializado em saúde do trabalhador, oferta deserviços de reabilitação física aos acidentados de traba-lho e realização de campanhas e/ou ações educativas deprevenção aos riscos de acidentes e doenças do trabalho.

A pesquisa, nas três aplicações referidas, identificouum conjunto de ações que, não necessariamente, foramfeitas de forma programática, ou seja, como resultado daexecução de um Progama de Saúde do Trabalhador. Dianteda heterogeneidade do conjunto dos 645 municípiospaulistas, a configuração dos sistemas municipais de saú-de também deve ser marcada por uma diferenciação nacapacidade e na disponibilidade política das prefeituras edas comunidades em assumirem novas atribuições. Nessetexto procurou-se identificar aspectos que diferenciemessas políticas e atuação.

A criação de 20 novos municípios no Estado de São Pau-lo, entre 1995 e 1997, e a falta de informações em algumdos três anos analisados, devido à recusa de parcela dasprefeituras em responder à pesquisa ou por inconsistênciasverificadas nas respostas, levaram à elaboração de um pai-nel fixo de 520 municípios, entre os 645 do Estado, o quepermite a comparação entre os anos pesquisados e a análi-se da evolução do fenômeno investigado.

Tendo em vista as diversidades locais – porte popu-lacional e dinâmica econômica, social e urbana –, os mu-nicípios foram classificados em três estratos populacionais:até 50 mil habitantes; entre 50 e 200 mil; e acima de 200mil habitantes.1

Além da classificação por estrato populacional, osmunicípios foram analisados segundo sua adesão às con-

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dições de gestão municipal da saúde: Gestão Plena daAtenção Básica e Gestão Plena do Sistema de Saúde, queestipulam diferentes graus de responsabilidade e atribui-ções na área de saúde.

Os resultados apontam que, em 1999, pouco mais de¼ dos municípios paulistas desenvolvia ações de saúdedo trabalhador. Essa proporção diminuiu no período ana-lisado, independentemente do porte populacional, passan-do de 30,2%, em 1995, para 26,5%, em 1997, e 26,2%em 1999. Ressalve-se que, no grupo dos municípios commais de 200 mil habitantes, houve uma retomada do cres-cimento entre 1997 e 1999, que pode ser atribuída às nor-mas implantadas no período – a NOB/96 e a Nost/98.

O levantamento revelou, também, que o tamanho dapopulação é uma variável que interfere diretamente na rea-lização, ou não, de ações de saúde do trabalhador pelasprefeituras. Enquanto, em 1999, apenas 21,4% dos muni-cípios com até 50 mil habitantes, desenvolveram esse tipode ações, no grupo daqueles com mais de 200 mil habitan-tes esse percentual correspondeu a 63,6% (Tabela 1).

Uma hipótese para esse fenômeno é a de que as cida-des maiores, mais ricas no que se refere à arrecadação deimpostos e à participação nas transferências constitucio-nais de recursos financeiros, também possuem socieda-des mais complexas em termos de estrutura produtiva, am-biente favorável e potencialmente gerador de eventos queexigem a existência e a manutenção de sistemas de prote-ção à saúde de seus trabalhadores. São também cidadescom tradição em tratar da questão, uma vez que nelas foiimplantada a maioria dos Centros de Referência de Saúdedo Trabalhador, na década de 80.

Se a abordagem, porém, privilegiar a realização dessasações, de acordo com a condição de gestão do município,verifica-se que houve redução na oferta desses serviços em

municípios que aderiram à gestão Plena da Atenção Básica(de 28,3%, em 1995, para 20,1%, em 1999), enquanto, emsentido oposto, a oferta cresceu naqueles em gestão Plenado Sistema (de 35,2% para 42,1%, respectivamente).

Essa informação não constitui exatamente uma surpre-sa, pois esperava-se que os municípios, nesse segundomodelo de gestão, tivessem maior capacidade instalada eoferecessem um rol mais amplo de ações e serviços emfavor da saúde de suas populações. Além disso, essas ci-dades possuem maior autonomia na gestão do sistema lo-cal e recebem aportes de recursos mais significativos doMinistério da Saúde, inclusive para realizar pagamentospela prestação de serviços realizados por prestadores pri-vados e filantrópicos.

A análise dos dados revela, também, que a ação de saúdedo trabalhador mais comum nos municípios paulistas, em1995, foi a de vistoria e fiscalização de ambientes de tra-balho (54,1%), enquanto a menos desenvolvida refere-seà oferta de serviços de atendimento especializado em saúdedo trabalhador (31,2%). Verificou-se a mesma situaçãoem 1999, provavelmente porque a segunda ação requer aexistência de um serviço com instalações específicas eprofissionais especializados para esse fim, o que exige re-cursos e estrutura dos municípios para implementá-la.

Tanto nos municípios com até 50 mil habitantes quan-to naqueles entre 50 e 200 mil, a ação mais comum foivistoria e fiscalização de ambientes de trabalho (64,4% e59,4%, respectivamente), conforme indica a Tabela 4. Essetipo de ação permite a identificação de riscos potenciais àsaúde do trabalhador – decorrentes de agentes físicos,químicos ou biológicos, que podem levar a acidentes edoenças – e a conseqüente notificação às empresas paraque procedam as modificações necessárias nos processose/ou nos ambientes de trabalho.

TABELA 1

Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador,segundo Estratos PopulacionaisEstado de São Paulo – 1995-1999

Em porcentagem

Estratos Populacionais 1995 1997 1999

Total 30,2 26,5 26,2Até 50.000 Habitantes 25,3 22,4 21,4De 50.001 a 200.000 Habitantes 43,0 41,8 40,5Acima de 200.000 Habitantes 77,3 54,5 63,6

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.Nota: Refere-se aos 520 municípios que responderam a PMU nos três períodos considerados.

TABELA 2

Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador,segundo Condições de Gestão (1)Estado de São Paulo – 1995-1999

Em porcentagem

Condições de Gestão (1) 1995 1997 1999

Total 30,2 26,5 26,2

Gestão Plena de Atenção Básica 28,3 21,4 20,1

Gestão Plena do Sistema 35,2 40,0 42,1

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.(1) Estabelecida pela Norma Operacional do Ministério da Saúde NOB-SUS 1996.Nota: Refere-se aos 520 municípios que responderam a PMU nos três períodos considerados.

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SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

jam realizados na rede básica, sendo os casos mais com-plexos referenciados para outros municípios.

Quanto às cidades com população superior a 200 mil ha-bitantes, a ação mais citada refere-se a campanhas e/ou açõeseducativas de prevenção aos riscos de acidentes de trabalho(92,9%). Curiosamente, essa ação não foi referida com amesma freqüência em cidades menores, talvez porque a es-tratégia de promoção da saúde tradicionalmente seja maiscomum em grandes cidades, com sistemas mais complexose maiores riscos de agravos. As campanhas educativas sãodeterminantes para a proteção do trabalhador e para a redu-ção de acidentes, doenças, invalidez e mortes.

A totalidade das ações investigadas foi referenciada por,pelo menos, 78,6% dos municípios com mais de 200 milhabitantes, evidenciando que, na organização do sistemade saúde dos maiores municípios, pelas suas característi-cas, foi possível estruturar de maneira mais adequada essetipo de ações e serviços.

Numa análise final, o cruzamento entre a condição degestão e as ações desenvolvidas revelou que, independente-mente do tipo de atividade que realizam, os municípios emgestão Plena do Sistema oferecem com maior freqüênciaações de saúde do trabalhador do que aqueles em gestão Plenada Atenção Básica, especialmente quando se trata da ofertade serviços especializados. Nota-se que, na organização dossistemas locais, 55,7% das cidades do primeiro grupo pos-suíam serviço de atendimento especializado em saúde do tra-balhador, fenômeno registrado apenas em 29,3% daquelesdo segundo grupo. Pode-se supor, então, que a atenção à saúdedo trabalhador, nos municípios em gestão básica, ocorre semque, necessariamente, possuam um serviço especializado paraesse fim, sendo o atendimento realizado na rede de atençãobásica ou, nos casos mais graves, referenciados para servi-ços em outros municípios.

TABELA 3

Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador,segundo Tipos de Ação

Estado de São Paulo – 1995-1999Em porcentagem

Tipos de Ação 1995 1997 1999

Vistoria e Fiscalização de Ambientes de Trabalho 54,1 60,1 64,7

Intervenção Preventiva em Ambientes de Trabalhocom Riscos de Acidentes ou Doenças Profissionais 35,7 47,8 52,9

Oferta de Serviços de Atendimento Especializadoem Saúde do Trabalhador 31,2 38,4 41,2

Oferta de Serviços de Reabilitação Física aosAcidentados do Trabalho 43,3 58,7 60,3

Campanha e/ou Ações Educativas de Prevençãoaos Riscos de Acidentes e Doenças do Trabalho 43,9 44,2 44,9

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.Nota: Percentuais calculados sobre os municípios que afirmaram realizar ações de saúde dotrabalhador em cada ano considerado: 157 municípios em 1995; 138 municípios em 1997; e136 municípios em 1999.

TABELA 4

Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador, por Estrato Populacional, segundo Tipos de AçãoEstado de São Paulo – 1999

Em porcentagem

Tipos de AçãoAté 50.000 De 50.001 a 200.000 Acima de 200.000Habitantes Habitantes Habitantes

Vistoria e Fiscalização de Ambientes de Trabalho 64,4 59,4 78,6Intervenção Preventiva em Ambientes de Trabalho com Riscos de Acidentes ou Doenças Profissionais 48,9 53,1 78,6Oferta de Serviços de Atendimento Especializado em Saúde do Trabalhador 31,1 50,0 85,7Oferta de Serviços de Reabilitação Física aos Acidentados do Trabalho 60,0 53,1 78,6Campanha e/ou Ações Educativas de Prevenção aos Riscos de Acidentes e Doenças do Trabalho 41,1 34,4 92,9

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.Nota: Percentuais calculados sobre os municípios que afirmaram realizar ações de saúde do trabalhador em cada estrato considerado: 90 municípios com até 50.000 habitantes; 32 municípiosentre 50.001 e 200.000 habitantes; e 14 municípios acima de 200.000 habitantes.

Também foram mencionadas com freqüência, nessesmunicípios, a oferta de serviços de reabilitação física aosacidentados de trabalho (60% e 53,1%, respectivamente)e a intervenção preventiva em ambientes com riscos deacidentes e doenças profissionais (48,9% e 53,1%).

É possível afirmar que o conjunto dos municípios comaté 200 mil habitantes organizou suas ações de saúde dotrabalhador de maneira semelhante, priorizando a preven-ção (vistoria em ambientes de trabalho e intervenção na-queles que apresentam riscos de agravo à saúde do traba-lhador) e a reabilitação física de acidentados do trabalho.Menos freqüente foi a oferta de serviços de atendimentoespecializado em saúde do trabalhador (apenas 31,1% dosmunicípios com menos de 50 mil habitantes e metade da-queles entre 50 e 200 mil habitantes). É provável que osatendimentos de questões específicas do trabalhador se-

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Tanto nos municípios em gestão Plena do Sistema comonaqueles em gestão Plena da Atenção Básica, as ações maiscomuns foram a vistoria e fiscalização de ambientes detrabalho (70,5% e 60%, respectivamente) e a oferta deserviços de reabilitação física aos acidentados de traba-lho (65,6% e 56%), que, em diversas cidades do Estado,especialmente nas pequenas e médias, consiste em servi-ço de fisioterapia realizado em ambulatórios de especia-lidades, unidades mistas ou mesmo em centros de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O SUS constitui um espaço público privilegiado quedispõe de atendimento universalizado (atinge o maiornúmero de trabalhadores possível, com ou sem carteiraassinada), recursos físicos, humanos, tecnologia e técni-cas acumuladas e, portanto, é uma conquista social capazde construir uma prática diferenciada sim, porém, inova-dora e transformadora, sustentada no novo perfil epide-miológico da força de trabalho e no referencial da Pro-moção da Saúde.

A saúde do trabalhador envolve um marco teórico-prá-tico complexo que não pode ser visualizado por um únicoviés. Seu conhecimento e compreensão exigem visão am-pla e profunda do contexto histórico ao qual a sociedadedo trabalho está inserida e dos nexos causais trabalho/saú-de/doença.

Nesse cenário adquirem centralidade a implementaçãoda produção de estatísticas, os indicadores e análises deinformações sobre acidentes de trabalho, doenças profis-sionais e doenças relacionadas ao trabalho, a implantaçãoe implementação de serviços que compreendam equipesmultiprofissionais para execução de ações de diagnósticoe tratamento, as ações intersetoriais de promoção e prote-ção à saúde, de sensibilização e capacitação de recursoshumanos, o desenvolvimento de parcerias e ações conjun-tas entre entidades de trabalhadores e organizações go-vernamentais e não-governamentais que investigam o as-sunto (Universidades, Fundações, Centros de Estudos,entre outras) e as realizações de eventos/campanhaseducativos (seminários, debates, conferências e congê-neres) para trabalhadores em geral, cipeiros, empregado-res, sindicatos, centrais sindicais, gestores de políticaspúblicas e interessados.

Embora se reconheça como legítima a necessidade, apon-tada pelos estudiosos, de uma mudança de eixo nas açõesde saúde do trabalhador – que transcendam a simples assis-tência ao dano do acidentado, à doença profissional e/ouàquela relacionada ao trabalho para a busca da integraçãodos enfoques saúde, segurança dos trabalhadores e meioambiente –, o objetivo da PMU, no período investigado, foio de caracterizar o panorama geral da implantação dadescentralização, no caso das ações essenciais de atendimen-to aos agravos decorrentes do mundo do trabalho (aciden-tes e doenças) e respectivas ações de vigilância (fiscaliza-ção, controle e intervenção) e de prevenção (campanhas eações educativas), previstas em lei. Isto se reveste de im-portância diante do processo recente que tem gerado expe-riências diversas e multiformes, de acordo com as realida-des locais e regionais. A complexidade da questão colocauma série de novas demandas de investigação, como o acom-panhamento da implantação das novas diretrizes estabe-lecidas em particular pela Nost, a estruturação e a capacitaçãode equipes e o financiamento dessas ações.

NOTA

1. Exclui o Município de São Paulo que não respondeu à PMU 1995.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TABELA 5

Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador,por Condição de Gestão (1), segundo Tipos de Ação

Estado de São Paulo – 1999Em porcentagem

Tipos de AçãoPlena da Plena do

Atenção Básica Sistema

Vistoria e Fiscalização de Ambientes de Trabalho 60,0 70,5

Intervenção Preventiva em Ambientes de Trabalhocom Riscos de Acidentes ou Doenças Profissionais 44,0 63,9

Oferta de Serviços de Atendimento Especializadoem Saúde do Trabalhador 29,3 55,7

Oferta de Serviços de Reabilitação Física aosAcidentados do Trabalho 56,0 65,6

Campanha e/ou Ações Educativas de Prevençãoaos Riscos de Acidentes e Doenças do Trabalho 42,7 47,5Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.(1) Estabelecida pela Norma Operacional do Ministério da Saúde NOB-SUS 1996.Nota: Percentuais calculados sobre os municípios que afirmaram realizar ações de saúde dotrabalhador em cada condição de gestão considerada: 75 municípios em Gestão Plena daAtenção Básica e 61 municípios em Gestão Plena do Sistema.

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SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

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ZILDA PEREIRA DA SILVA: Socióloga , Analista da Fundação SEADE.

IRINEU FRANCISCO BARRETO JUNIOR: Sociólogo, Analista da FundaçãoSEADE.

MARIA DO CARMO SANT’ANA: Historiadora, especialista em Promoção deSaúde pela Faculdade de Saúde Pública da USP, Analista da FundaçãoSEADE.

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A

POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

Resumo: O artigo analisa a inclusão da questão da eqüidade na área da saúde, sobretudo nas políticas de saú-de. Apresenta informações recentes quanto à alocação de recursos financeiros, oferta e utilização de serviçosem saúde no Brasil, em um universo particular de municípios, e conclui que ocorreram alguns avanços posi-tivos do ponto de vista da eqüidade, desde a implantação do SUS, notadamente quando do processo dedescentralização da política de saúde.Palavras-chave: política de saúde; eqüidade e oferta; utilização de serviços de saúde.

Abstract: This article analyses the issue of equity in the area of health, particularly with regard to health carepolicy. It presents recent information on the allocation of financial resources and the supply and utilization ofhealth care services throughout a selected group of municipalities in Brazil, and concludes that progress hasbeen made in terms of equity since the establishment of SUS, particularly as reflected in the decentralizationof health care policy.Key words: health care policy; equity and supply; equity and supply; utilization of heath care services.

ANA LUIZA D’ÁVILA VIANA

MÁRCIA CRISTINA RODRIGUES FAUSTO

LUCIANA DIAS DE LIMA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 58-68, 2003

s reformas da política de saúde são conduzidas,não só no Brasil, mas em boa parte do mundo,para responder a duas questões centrais: como

postas às críticas dirigidas ao sistema de saúde vigenteàquela época, cujo formato deixava à margem do sistemagrande parte da população brasileira: os mais pobres, osque se encontravam em condições de desvantagem sociale, por isso, os que talvez mais precisassem de atenção àsaúde.

Assinale-se que as investigações em saúde demonstramque os piores índices de saúde encontram-se entre os gru-pos populacionais mais vulneráveis localizados na baseda pirâmide social. Essas disparidades podem ser veri-ficadas nas condições de vida e saúde entre diferentes gru-pos sociais e entre distintas áreas geográficas do mesmopaís. Tradicionalmente, a epidemiologia ocupa-se dessatemática, e inúmeros estudos apontam para as desigual-dades de adoecer e morrer na sociedade, assinalando asdiferenças em relação ao lugar, tempo, idade e sexo, bemcomo entre grupos, etnias, gênero e classes sociais.

DIMENSÕES DA DESIGUALDADE EM SAÚDE

De acordo com Mackenbach e Kunst (1997), as desigual-dades em saúde definem-se pela prevalência ou incidênciados problemas de saúde entre os indivíduos do mais alto e

otimizar os escassos recursos destinados ao setor e comoorganizar um sistema de saúde eficaz e com envergadurasuficiente para atender às necessidades de saúde da popu-lação.

Em fins dos anos 70 e início dos 80, diversos países,inclusive o Brasil, questionavam as saídas para o setorpúblico decorrentes de severa crise econômica que atin-gia as nações e que exigiam um redimensionamento dopapel do Estado.

No Brasil, essas questões foram debatidas ao longo dosanos 80 e 90, e em relação à política de saúde, optou-sepela ampliação da participação democrática e da garantiados direitos de cidadania, mediante conformação de umsistema de saúde com características universalizantes, decunho igualitarista, sustentado pela idéia de justiça social.

A reforma implementada no sistema de saúde brasilei-ro no final dos anos 80 trouxe como questão de fundo nãosó a garantia do direito à saúde, mas, em essência, a no-ção de eqüidade quanto à distribuição mais ampla dosrecursos da saúde. Essas duas questões buscavam dar res-

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POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

mais baixo status socioeconômico. Destacam, os autores, queas desigualdades interligam-se ao status socioeconômico dogrupo ao qual pertencem os indivíduos.

As dimensões da desigualdade em saúde são atribuí-das a diferentes determinantes que podem corresponder aum conjunto de fatores interligados às condições de saú-de e adoecimento, que definem o padrão de morbi-mortalidade dos diferentes grupos sociais, e/ou as dife-renças na distribuição, organização e utilização dosrecursos em saúde.

A existência e a persistência das desigualdades no aces-so e uso de serviços de saúde, mais recentemente, são umdos principais pontos de atenção dos policy makers, dasinvestigações acadêmicas e dos próprios administradoresdos serviços de saúde.

O tema desigualdades em saúde passou a ser tratadopara além das diferenças entre os grupos, incorporandonas análises conceituais a dimensão da justiça social. Esseenfoque, além de caracterizar os diferentes tipos de desi-gualdade, remete a análise para o campo político, com in-corporação de valores éticos e morais explícitos nas ba-ses contratuais de determinada sociedade.

Nesse sentido, as desigualdades em saúde são percebi-das e têm-se tornado objeto de atenção nos mais diferen-tes modelos de sistemas de saúde, nos países mais desen-volvidos e nos mais pobres e em regimes políticos e sociaisvariados. É bem verdade que o grau de desigualdade, seusdeterminantes e efeitos diferem entre as sociedades e in-ternamente nos próprios países. O que se quer enfatizar,no entanto, é o caráter contemporâneo e universal dessedebate e suas implicações na formulação e condução depolíticas que podem ou não interferir nos diferenciais dedesigualdades resultantes de processos sociais, políticose econômicos.

O tema eqüidade passa a receber maior atenção na dé-cada de 80. Um dos marcos dessa discussão no campo dasaúde é a estratégia formulada pela OMS – “Saúde ParaTodos no Ano 2000”, que visa a promoção de ações desaúde baseadas na noção de necessidade, destinadas a atin-gir a todos, independente de raça, gênero, condições so-ciais, entre outras diferenças que possam ser definidassocioeconômico e culturalmente.1

Apesar de existir um problema terminológico na varie-dade conceitual de eqüidade e, em alguns casos, proble-mas também com o significado da expressão quando uti-lizado no sentido das desigualdades, percebe-se, de modogeral, que há consenso ou aceitação ampla na literaturada definição formulada por Whitehead (1991), ou seja,

eqüidade em saúde, para a autora, remete à noção de que,de acordo com os ideais, todos os indivíduos de uma so-ciedade devem ter justa oportunidade para desenvolver seupleno potencial de saúde e, no aspecto prático, ninguémdeve estar em desvantagem para alcançá-lo. Conseqüen-temente, eqüidade em saúde refere-se à redução das dife-renças consideradas desnecessárias, evitáveis, além deserem consideradas injustas.

Partindo desse princípio, a questão central a ser trata-da pelas políticas que almejam eqüidade em saúde, é aredução ou a eliminação das diferenças que advém de fa-tores considerados evitáveis e injustos, criando, dessemodo, igual oportunidade em saúde e reduzindo as dife-renças injustas tanto quanto possível.

Em que pese as diferenças conceituais e terminológicas,o ponto central da contribuição de Whitehead é o enten-dimento das desigualdades em saúde na perspectiva dajustiça social. Assinale-se que o conceito apresentado pelaautora implica uma discussão política e de juízo de valor,quando incorpora a idéia de justiça no processo de redu-ção das desigualdades evitáveis e desnecessárias. Isso sig-nifica dizer que existe mobilidade no conceito de eqüida-de, em que o entendimento que se tem sobre políticaequânime depende da sociedade à qual se aplica o con-ceito e do momento ou tempo em que se está pensando aquestão. O que se considera injusto ou o que se pretendefazer para reduzir as disparidades sociais pode ter dimen-sões e valores diferentes para espaços sociais distintos emdiferentes momentos.

A mesma autora distingue alguns critérios que classi-ficam as desigualdades em saúde, diferenciando as injus-tas, das que não expressam injustiças, porque não depen-dem de intervenção ou não apresentam relação causal comas diferenças de classe. Entre os critérios mencionados pelaautora, são destacados os que ela considera mais consen-suais na literatura:a) o que não define as desigualdades como injustas:- variações biológicas naturais;- comportamentos perigosos que são escolhas dos indi-víduos;- vantagens temporárias de um grupo, como saúde, as quaispodem ser incorporadas rapidamente por outros grupos;b) o que define as desigualdades como injustas:- comportamentos perigosos nos quais os indivíduos têmpouca escolha em relação ao modo de vida;- condições de vida definidas por fatores socioeco-nômicos;

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- condições de trabalho – exposição a fatores de risco;- inadequado acesso aos serviços de saúde ou outros ser-viços públicos essenciais.

Starfield (2001:53), mais recentemente, discute o con-ceito indicado por Whitehead e propõe a seguinte defini-ção, por ela considerada alternativa, para eqüidade emsaúde: “Eqüidade em saúde é a ausência de diferenças sis-temáticas em um ou mais aspectos do status de saúde nosgrupos ou subgrupos populacionais definidos socialmen-te, demograficamente ou geograficamente. Eqüidade nosserviços de saúde implica em que não existam diferençasnos serviços onde as necessidades são iguais (eqüidadehorizontal), ou que os serviços de saúde estejam onde es-tão presentes as maiores necessidades (eqüidade vertical).”

Em suma, para a autora, a eqüidade no cuidado à saú-de define-se enquanto igualdade de acesso para iguaisnecessidades, uso igual dos serviços para necessidadesiguais e igual qualidade de atenção para todos.

Nessa mesma linha, a International Society for Equityin Health (ISEqH), presidida por Barbara Starfield, temapresentado uma definição de eqüidade numa linha técni-co-operacional, que textualmente exclui do conceito anoção de desigualdades injustas e aborda as diferençascomo sistemáticas e potencialmente remediáveis: “eqüi-dade é a ausência de diferenças sistemáticas e potencial-mente remediáveis em um ou mais aspectos de saúde nosgrupos ou subgrupos populacionais definidos socialmen-te, economicamente, demograficamente ou geograficamen-te” (Macinko; Starfield, 2001:1). Tradução dos autores.

Os debates e as definições conceituais mais recentessobre desigualdades e eqüidade em saúde são essencial-mente sustentados pela teoria da justiça formulada por doisimportantes autores contemporâneos, Raws (2000) e Sen(2001), cujas análises têm influenciado o debate sobre otema, ainda que justiça e eqüidade sejam abordadas combase em perspectivas diferentes, pois a idéia de justiça car-rega um sentido distributivo, que implica na igualdade deoportunidades, tendo em vista as diferentes necessidadesdos cidadãos.

O ganho obtido com a inclusão do debate da justiça so-cial na conformação de políticas mais equânimes é imen-surável, uma vez que pressupõe tratamento desigual para osque estão em condições de desvantagem, abrindo espaço parao que se considera como um tipo de “discriminação positi-va”, e, conseqüentemente, assumindo os dilemas políticosinerentes ao enfrentamento das largas desigualdadesverificadas entre os diferentes grupos populacionais.

Essas análises adquirem força no mundo contemporâ-neo porque as fragmentações e as diversidades de proces-sos sociais verificados no mundo globalizado restringemo espaço das versões homogêneas de vida social. Dessaforma, a noção de igualdade só se completa se compartidaà noção de eqüidade. Não basta um padrão universal seele não comportar o direito à diferença. Não se trata maisde um padrão homogêneo, mas de um padrão equânime.

Essa é a essência do debate da eqüidade em saúde queé aplicado ao problema dos recursos limitados e a formamais equânime de distribuí-los. A idéia de que a ausênciade saúde pode afetar as oportunidades dos indivíduos defazer ou ser algo, evidencia a importância da reflexão so-bre a idéia de justiça social para o caso da saúde e, nessesentido, é fundamental considerar as diferenças para apli-cação de políticas e programas mais efetivos, que dêemrespostas a problemas específicos e, conseqüentemente,atuem para redução das desigualdades injustas.

Ao longo dos anos 90, a Organização Mundial da Saú-de, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desen-volvimento, entre outros organismos internacionais,classificaram a eqüidade como eixo central do debate eco-nômico e da reforma do Estado. Entretanto, o ques-tionamento que circunscreve os rearranjos da relação Es-tado/Sociedade está longe de ser um consenso. Diferentesperspectivas e interesses estão presentes na arena políticae temas como papel do Estado, descentralização, gastopúblico e distribuição dos recursos são apresentados emdiferentes proposições.

A eqüidade tem recebido diferentes definições e ênfa-ses nos estudos teóricos e empíricos concernentes ao aces-so e uso dos serviços de saúde. Os enfoques conceituaisdestinam-se a análise do tema de forma global no campoda saúde, no acesso e nas barreiras para o acesso aos ser-viços de saúde (na atenção básica e demais níveis de aten-ção), na qualidade dos serviços, nos fatores determinantesdas condições de vida e saúde e nos fatores de ordem po-lítica que podem promover ou dificultar a eqüidade.

Travassos (1997) considera importante distinguir eqüi-dade em saúde de eqüidade no uso ou consumo de servi-ços de saúde. Essa distinção, para a autora, é importanteuma vez que os determinantes das desigualdades no adoe-cer e no morrer diferem dos das desigualdades no consu-mo de serviços de saúde.

As desigualdades em saúde refletem, dominantemen-te, as desigualdades sociais, e, em função da relativaefetividade das ações de saúde, a igualdade no uso de ser-viços é condição importante, porém não suficiente, para

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POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

diminuir as desigualdades relativas a adoecer e morrer,existentes entre os grupos sociais.

A implementação de políticas equânimes, ou seja, quereconhecem as diferenças (justas ou injustas) atinentes àsnecessidades, implica, portanto, na definição de campos es-pecíficos de sua aplicação. Pode-se perceber, pelo menos,três importantes campos na saúde: distribuição de recursos;oportunidades de acesso e utilização dos serviços.

Embora se considere que a inclusão do princípio deeqüidade na formulação de políticas de saúde não garan-te, de imediato, a implementação de políticas que resul-tem em melhores níveis de eqüidade (na prestação de ser-viços), esse debate vem alcançando relevância no setor,promovendo importante redefinição nos rumos das polí-ticas de saúde.

No primeiro momento, pode-se dizer que a inclusão daeqüidade ocorreu no plano da formulação das políticas eprogramas, na garantia do acesso universal aos serviçosde saúde. Posteriormente, em sua fase de execução, a eqüi-dade passou a ser um dos princípios norteadores da polí-tica, seja no aspecto do acesso e utilização do sistema,seja na alocação dos recursos financeiros.

Com todas as limitações e as dificuldades verificadasno campo da saúde quanto à redução das desigualdades eda identificação dos determinantes específicos desse se-tor, é possível dizer que a eqüidade na alocação e no con-sumo de serviços de saúde é uma dimensão própria daspolíticas, uma vez que se trata de responsabilidade espe-cífica do sistema de saúde.

Nota-se como esses conceitos podem ser operacio-nalizados para o caso da política de saúde no país, quetem como elemento balizador o atual desenho da imple-mentação do SUS.

IMPACTOS QUANTO À EQÜIDADE NAALOCAÇÃO DE RECURSOS FINANCEIROS,OFERTA E UTILIZAÇÃO DE SERVIÇOS

Durante a década de 90, o Brasil vivenciou um proces-so de transferência gradativa de competências e recursosdo nível federal para estados e, sobretudo, para os muni-cípios. A descentralização da política de saúde foi marcada,nos últimos dez anos, pela edição de diversas NormasOperacionais pelo Ministério da Saúde – portarias minis-teriais – que culminaram por se tornar os principais ins-trumentos de regulação nacional desse processo.2

As normas da descentralização foram alteradas e su-cessivamente substituídas, apresentando diferenças impor-

tantes entre si. De forma geral, pode-se afirmar que asúltimas normas publicadas nos anos 90 definem:- as diferentes atribuições gestoras do nível federal, esta-dual e municipal sobre o planejamento e a programaçãoda assistência à saúde, pagamento, execução, controle,avaliação e auditoria de ações e serviços prestados pelasunidades públicas e privadas credenciadas ao SUS;- as responsabilidades e respectivas prerrogativas finan-ceiras (modalidades de transferência de recursos federaise de remuneração de serviços) associadas a diferentescondições de gestão3 de estados e municípios;- os requisitos específicos utilizados como base para ava-liação da capacidade gestora das secretarias municipais eestaduais de saúde que pleiteiam a habilitação nas condi-ções de gestão previstas, respectivamente, pelas Comis-sões Intergestores Bipartite (CIB) e Comissão IntergestoresTripartite (CIT).4

As características do processo de descentralização dapolítica de saúde no Brasil – forte indução do nível cen-tral por meio de normas e estímulos financeiros; adesãobaseada em critérios nacionais e condicionada à avalia-ção e decisão das instâncias de pactuação intergestores –têm sido altamente questionadas. Entre as críticas apon-tadas destacam-se:- as que ressaltam o caráter fortemente tutelado dadescentralização pelo nível federal, que paulatinamenteaumenta a vinculação dos recursos transferidos a deter-minadas políticas ou programas e diminui a autonomia degestores estaduais e municipais de saúde na formulaçãode políticas próprias mais adequadas a sua realidade;- as que discutem o efeito fragmentador desse processo,que ao privilegiar a descentralização para os municípiossem considerar adequadamente o papel das secretariasestaduais de saúde e as dificuldades para a montagem deum sistema integral na maioria dos municípios brasilei-ros,5 pouco contribuiu para a integração das redes muni-cipais e garantia da assistência à saúde em todos os níveisde complexidade do sistema;- as que se referem à inconstitucionalidade da regulamen-tação feita mediante portarias ministeriais que, por diver-sas vezes, colidem com os princípios previstos nas Leisda Saúde para alocação dos recursos federais e extrapolamo conteúdo normativo da alçada do poder executivo;- as que enfatizam que o processo de transferência deresponsabilidades e recursos do nível federal para os de-mais níveis de governo não garante per se o fortalecimen-to do caráter democrático do processo decisório na for-

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mulação de políticas, nem, necessariamente, possibilita asolidez das capacidades administrativas e institucionaisdos governos locais, regionais e central. O fortalecimentoinstitucional dos três níveis de governo dependem de al-terações mais amplas do Estado – reformas tributárias edo próprio sistema político-administrativo – que transcen-dem o espaço da política setorial. Portanto, a concretizaçãodo SUS não está relacionada apenas à descentralização,mas também a outros aspectos relevantes para a consoli-dação do sistema.

Sem desconsiderar a importância desse debate, a se-gunda parte deste artigo pretende discutir os efeitos con-cretos do processo de descentralização da política de saúdeno Brasil, particularmente, daqueles obtidos ao final dadécada de 90 e mais diretamente relacionados à implanta-ção da NOB 01/96, sobre a redução das iniqüidades regio-nais nos campos da distribuição de recursos financeiros,nas oportunidades de acesso e na utilização de serviços.Parte-se do princípio de que, embora a descentralizaçãono Brasil esteja associada à estratégia de democratizaçãoe incorporação de novos atores sociais, bem como à pers-pectiva de construção de sistema, seus benefícios só po-derão ser percebidos à medida que contribuírem para areversão do alto grau de exclusão, heterogeneidade e in-justiça social da sociedade brasileira.

Para tanto, serão utilizadas algumas informações pro-duzidas pela pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sis-tema Municipal,6 que compreende uma análise da gestãodescentralizada do SUS a partir de 1998, com ênfase nos523 municípios habilitados na Gestão Plena do SistemaMunicipal (GPSM) na NOB 01/96 até o final de 2000.Primeiramente, serão apresentadas algumas característi-cas gerais dos municípios estudados. Em seguida, seráanalisada a distribuição de alguns indicadores de alocaçãodos recursos federais, oferta e cobertura, conforme as di-ferentes regiões e porte populacional no universo dos mu-nicípios habilitados em GPSM.

Características Gerais dos MunicípiosHabilitados em GPSM

Os municípios habilitados em GPSM até dezembro de2000, embora formalmente iguais perante a NOB 01/96,do ponto de vista de suas responsabilidades e atribuições,são bastante desiguais quanto a suas condições so-cioeconômicas e demográficas, a suas capacidades fiscais,a sua trajetória no SUS e a suas disponibilidades de re-cursos de saúde (incluindo recursos financeiros, capaci-

dade instalada e capacidade de produção de ações e ser-viços). Além disso, a gestão municipal plena dos recursosfederais para custeio da assistência à saúde está condicio-nada pelos acertos e negociações definidos em nível esta-dual pelas respectivas instâncias intergestoras (CIB).

Feitas essas considerações, em síntese, os municípiosem GPSM representam a condição de gestão mais avança-da no sistema prevista pelas regras da descentralização naNOB 01/96. Representam apenas 9,5 do total de municí-pios brasileiros e são aqueles, portanto, com maiores res-ponsabilidades gestoras e com prerrogativa de recebimen-to da totalidade dos recursos federais de custeio transferidosdiretamente do Fundo Nacional de Saúde para os FundosMunicipais. Esses municípios têm autonomia administra-tiva e financeira dos recursos federais – para a programa-ção, controle, avaliação e pagamento de prestadores deserviços públicos e privados localizados em seu território– que respondem, em média, no ano 2000, por cerca de54% do total de gastos públicos em saúde realizados.

O processo de adesão desses municípios à habilitaçãoem GPSM ocorreu, principalmente, em 1998 (86% dashabilitações) e, ao final de 2000, a maioria desses muni-cípios localizava-se na região Sudeste (51%), seguida daregião Nordeste (25%) e Norte do país (11%).

Em relação ao tamanho, sua população, majoritariamen-te, gira em torno de 10 mil a 100 mil hab. (70,2%), e osmunicípios podem ser considerados de pequeno e médioporte. Ressalta-se que os municípios com esse portepopulacional albergam, atualmente, cerca de 40% da po-pulação brasileira.

Redução das Iniqüidades naAlocação dos Recursos Financeiros

No que se refere à alocação dos recursos financeirosfederais para custeio da assistência à saúde, observa-se,no período de 1998 a 2000, crescimento significativo domontante de recursos destinados a esses municípios: deR$ 50,50 para R$ 70,50 per capita (Gráfico 1).

Embora os recursos sejam menores e permaneçam abai-xo da média nacional na região Norte do país – muito emfunção dos critérios utilizados para definição do montan-te de recursos a serem transferidos, que privilegiam a ca-pacidade de oferta e produção na média e alta complexi-dade –, observa-se maior incremento de recursos noperíodo nesta região. Vale a pena destacar que os recur-sos transferidos para a região Nordeste superam os trans-feridos para a região Sudeste.

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POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

GRÁFICO 1

Despesas Federais Totais com Assistência à Saúde, segundo RegiãoBrasil – 1998-2000

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.Nota: Municípios habilitados em GPSM até dez. de 2000.

GRÁFICO 2

Despesas Federais Totais com Assistência à Saúde, segundo Porte Populacional dos MunicípiosBrasil – 1998-2000

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.Nota: Municípios habilitados em GPSM até dez. de 2000.

1998 34.931,91 49.208,18 51.793,70 52.527,09 66.321,02 50.541,382000 61.331,01 73.463,56 68.882,57 73.210,21 82.740,34 70.536,18Diferença 26.399,10 24.255,38 17.088,87 20.683,12 16.419,31 19.994,80

1998 27.728,77 40.945,93 40.779,64 54.652,20 63.722,41 72.032,66 55.285,98 101.230,862000 48.722,37 61.786,48 59.368,71 73.666,28 87.683,56 91.925,20 71.258,39 131.265,24Diferença 20.993,61 20.840,56 18.589,07 19.014,09 23.961,15 19.892,54 15.972,42 30.034,39

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GRÁFICO 3

Participação de Unidades Laboratoriais Públicas no Total de Unidades Ambulatoriais Cadastradas no SUS, segundo RegiãoBrasil – 1998-2000

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.Nota: Municípios habilitados em GPSM na NOB 01/96 até dez. de 2000.

GRÁFICO 4

Número de Leitos, segundo RegiãoBrasil – 1998-2000

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.Nota: Municípios habilitados em GPSM na NOB 01/96 até dez. de 2000.

1998 88,2 71,9 82,7 66,8 58,3 77,92000 88,7 76,4 84,0 69,2 60,5 80,0Diferença 0,58 4,45 1,27 2,39 2,27 2,12

1998 2,05 3,78 3,38 5,54 3,41 3,432000 2,29 3,89 3,46 5,62 3,44 3,54Diferença 0,24 0,11 0,08 0,08 0,03 0,11

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POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

GRÁFICO 5

Número de Consultas Médicas Totais, segundo RegiãoBrasil – 1998-2000

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.Nota: Municípios habilitados em GPSM na NOB 01/96 até dez. de 2000.

GRÁFICO 6

Número de Exames Laboratoriais Totais, segundo RegiãoBrasil – 1998-2000

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.Nota: Municípios habilitados em GPSM até dez. de 2000.

1998 1,0 1,6 2,6 2,0 2,2 2,12000 1,2 1,7 2,6 1,7 2,1 2,1Diferença 0,2 0,1 -0,1 -0,3 -0,2 0,0

1998 71,1 52,2 43,2 49,3 57,4 49,92000 98,8 72,2 58,6 74,6 80,6 68,9Diferença 27,8 20,0 15,4 25,3 23,2 19,0

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Se se considerar, no entanto, a distribuição de recursospara os municípios em GPSM segundo porte populacional,pode-se perceber que as capitais e os municípios com 100mil a 500 mil hab. foram privilegiados na alocação de recur-sos (Gráfico 2). É verdade que os pequenos municípios re-cebem importante incremento de recursos entre 1998 e 2000,porém, são eles os mais dependentes dos recursos federais.Em 2000, as transferências para o SUS representam 36% dogasto público total em saúde no grupo de municípios compopulação menor que 10 mil hab.

Resta salientar que o volume de recursos transferidosé ainda irrisório se se considerar o alto grau de dependên-cia da fonte federal no gasto público total em saúde nes-ses municípios. Eles já alocam, em média, 15% de sua re-ceita própria em saúde cumprindo com o dispositivo daEmenda Constitucional 29, publicada em 2000. Mesmoassim, a dependência permanece, e é menor nas regiõesSudeste e Centro-Oeste do país.

Redução das Iniqüidades na Oferta

Pela oferta ou pela oportunidade de acesso, pode-severificar um aumento insignificante no percentual de uni-

dades ambulatoriais públicas no total de unidades cadas-tradas no SUS nos municípios em GPSM (Gráfico 3). Essasunidades, no entanto, já representam 80% do total de uni-dades cadastradas em 2000, e sua participação é maiornas regiões Norte (88,7%) e Sudeste (84%) do país. Apreponderância da oferta pública na área ambulatorial éobservada em todas as regiões do país, com destaque paraos pequenos municípios – 94,5% nos municípios com até10 mil hab. e 86,8% nos municípios com população entre10 mil e 20 mil hab.

A área hospitalar, por sua vez, apresenta padrão in-ferior ao preconizado pelo MS (4 leitos por mil hab.),se se considerar a média nacional (3,54 leitos por milhab.) desses municípios (Gráfico 4). Esse padrão va-ria, significativamente, entre as regiões, apresentandoos valores mais baixos no Norte (2,29 leitos por milhab.) e mais elevados no Centro-Oeste (5,62 leitos pormil hab.).

O incremento verificado no período privilegiou a re-gião Norte (região mais carente da oferta de leitos) e Nor-deste (segunda região com maior oferta de leitos) e osmunicípios com menos de 10 mil hab. Os municípios compopulação maior do que 500 mil hab. que não são capi-

GRÁFICO 7

Número de Internações, segundo RegiãoBrasil – 1998-2000

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.Nota: Municípios habilitados em GPSM na NOB 01/96 até dez. de 2000.

1998 65,7 63,8 59,7 67,7 71,4 62,72000 58,0 58,2 56,7 66,6 66,4 58,5Diferença -7,75 -5,62 -3,00 -1,07 -5,01 -4,24

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POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

tais, permanecem com um padrão bem inferior à médianacional (1,57 leitos por mil hab.) e que apresentaram de-créscimo de leitos no período.

Destaca-se que a política nacional de investimentos (ba-sicamente recursos originários do Banco Mundial no proje-to Reforsus) não acompanhou as regras e as tendências dapolítica de descentralização, isto é, os critérios utilizados paraalocação dos recursos de investimentos obedeceram a regrasdiferentes das previstas na NOB 01/96 para a descentralizaçãode competências gestoras. Esse descolamento representa umlimite para expansão da alocação dos recursos de custeio nasregiões mais carentes.

Redução nas Iniqüidades na Utilização de Serviços

Em relação à utilização de serviços, a análise da distri-buição de consultas médicas totais (básicas, especializadase de urgência/emergência) por habitante/ano segundo regiões(Gráfico 5) e porte populacional dos municípios em GPSMaponta para a manutenção das diferenças regionais, reduçãodo número de consultas nas capitais e manutenção de baixosvalores de cobertura entre 1998 e 2000, se se levar em con-sideração a média nacional (2,1 consultas por hab./ano).Ressalta-se que as regiões Sudestes e Sul mantêm os maio-res coeficientes de cobertura (respectivamente, 2,6 e 2,1 con-sultas por hab./ano), assim como os municípios com menosde 10 mil hab. (2,8 consultas por hab./ano).

O padrão de cobertura é mantido graças ao significati-vo incremento da cobertura de consultas básicas no período(de 0,28 para 1,4 consultas por hab./ano), já que se obser-va, de outra parte, uma diminuição das consultas es-pecializadas (de 0,63 para 0,3 consultas por hab./ano). Essareversão – incremento de consultas básicas e decréscimode consultas especializadas – pode ter ocorrido graças amudanças no modelo de atenção à saúde com a implanta-ção do Programa de Saúde da Família (PSF) nesses muni-cípios. O número elevado de consultas básicas nos peque-nos municípios e baixo nos municípios maiores, em que oPSF permanece residual, favorece tal hipótese.

Ainda no que diz respeito à cobertura de serviçosambulatoriais, destaca-se o expressivo aumento do númerode exames por consulta que ultrapassa o parâmetro de 30%a 50% das consultas preconizado pelo MS (Gráfico 6).Esse aumento que é bastante expressivo no Norte e nosmunicípios com mais de 500 mil hab. e capitais, pode tam-bém significar a ausência de rotinas e protocolos na orga-nização da assistência médica, bem como a de controle eavaliação dos serviços realizados.

No que se refere a cobertura hospitalar, verifica-se umaregressão no número de internações por hab./ano no perío-do (Gráfico 7). A média nacional nos municípios em GPSM(0,05 internações por hab./ano) permanece abaixo dosparâmetros recomendados pelo MS (0,08 a 0,09 inter-nações por hab./ano) em todas as regiões. Embora compadrão semelhante entre as regiões, as coberturas maisbaixas encontram-se nas regiões Sudeste e Nordeste, en-quanto o maior decréscimo pode ser observado no Norte.Em relação ao porte, destacam-se as maiores coberturashospitalares nas capitais (0,07 internações por hab./ano)e nos municípios médios com 20 mil a 100 mil hab. (0,06internações por hab./ano).

CONCLUSÃO

Cabe assinalar que os efeitos sobre eqüidade foramanalisados para um universo particular de municípios bra-sileiros, por uma razão bem simples: só se pode compararmunicípios com o mesmo tipo de inserção na política desaúde, isto é, com o mesmo status, quando se quer exami-nar a redução nos padrões anteriores de desigualdade notocante à distribuição dos recursos e das oportunidadesde acesso e utilização.

Municípios com status diversos na política de saúde –proporcionado pelas diferentes modalidades de habilita-ções –, possivelmente apresentam diversidades provocadaspor essa mesma diferenciação inicial: isto é bastante cla-ro no tocante a distribuição e utilização dos recursos pe-las instâncias municipais.

Os dados referentes aos anos de 1998 e 2000 evidenciamque houve alguns avanços quanto à eqüidade, sobretudo emrelação à distribuição de recursos, o que é explicável: as re-duções das desigualdades no acesso e na utilização são pos-teriores no tempo, isto é, dependem, em um primeiro mo-mento, da melhor distribuição de recursos, que permite maisà frente investimentos novos e faculta, portanto, a maior uti-lização dos equipamentos e serviços de saúde.

Todavia, é notável como os indicadores nacionais,mesmo para esse grupo seleto de municípios, são bastan-te inferiores aos padrões de oferta e uso recomendadospelos organismos internacionais.

As reduções das iniqüidades quanto à alocação de re-cursos financeiros, oferta e utilização de serviços aindanecessitam de políticas pontuais que privilegiem determi-nados tipos de investimentos que melhor relacionem ofertaàs necessidades de saúde, diferentes condições deadoecimento e agravo e, ao mesmo tempo, melhorem o

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acesso e a utilização. As políticas recentes minoraram asgraves distorções regionais na oferta, porém não contem-plaram ainda questões mais complexas como o perfilepidemiológico das populações, condições sociais, dife-rentes inserções no mundo do trabalho, gênero e raça. Oprocesso de implementação do SUS, no país, deve aindapercorrer um longo caminho para diminuição das iniqüi-dades na saúde, e possibilitar, desse modo, a diminuiçãodas desigualdades sociais. Para isso, deve, cada vez mais,diversificar políticas e ações segundo grupos específicosde indivíduos.

NOTAS

1. “ ... Para o ano 2000, as atuais diferenças nas condições de saúdeentre países e entre grupos dentro de países, seriam reduzidas, em pelomenos 25%, melhorando tanto o nível de saúde das nações, quanto osgrupos em desvantagem”. (Tradução dos autores). Targets for healthfor all. Copenhagen, WHO Regional Office for Europe, 1985.2. Nos anos 90, foram publicadas quatro dessas normas: as NormasOperacionais Básicas (NOB) de 1991, 1992 (similar à anterior), 1993e 1996. Mais recentemente, foi publicada a Norma Operacional daAssistência à Saúde (Noas) nas versões 2001 e 2002.3. As diversas condições de gestão do SUS foram primeiramenteestabelecidas pela NOB 01/1993 e referem-se a diferentes capacida-des de gestão das secretarias municipais e estaduais de saúde, que en-volvem determinado conjunto de exigências e prerrogativas financei-ras. Em última instância, como as normas definem os mecanismos eos critérios de transferência dos recursos federais para custeio da as-sistência, as condições de gestão estão relacionadas a diferentes grausde autonomia de gestão apenas desses recursos financeiros, utilizadospara remuneração das ações e dos serviços prestados no campo de açãodo SUS.4. O modelo institucional proposto no SUS prevê a criação de instân-cias de negociação e decisão intergestores: as CIB, atuantes no nívelestadual desde 1993, de composição paritária, formadas por represen-tantes das secretarias estaduais de saúde e das secretarias municipaisde saúde indicados pelo Conselho dos Secretários Municipais de Saú-de no estado (Cosems); a CIT, atuante no nível nacional desde 1991,também paritária, formada por representantes do Ministério da Saúde,das secretarias estaduais de saúde indicados pelo Conselho Nacionaldos Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e das secretarias munici-pais de saúde indicados pelo Conselho Nacional dos Secretários Mu-nicipais de Saúde (Conasem).

5. Destaca-se que, embora 51% da população brasileira atualmenteresida em municípios com mais de 100 mil hab., a maior parte dosmunicípios são pequenos. Destes, 48% possuem população até 10 milhab. e 30% população entre 10 mil e 25 mil hab., segundo dados doúltimo censo realizado pela Fundação IBGE.

6. A pesquisa, financiada pelo Banco Mundial, no âmbito do projetoReforsus, foi realizada por um grupo de pesquisadores vinculados a dife-rentes instituições de ensino e pesquisa. Os dados da pesquisa estão dis-poníveis em CD-ROM e foram recentemente publicados por Negri e Viana(2003).

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SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

A

SERVIÇOS DE SAÚDEo dilema do SUS na nova década

Resumo: A ausência de mecanismos eficazes de regulação e ordenamento da oferta, buscando viabilizar oacesso e a melhor utilização dos serviços do SUS por parte dos usuários, nos níveis macro e microorganizacionais,contribui de forma decisiva para a persistência de problemas relacionados à baixa eficácia do sistema de saú-de brasileiro. Este artigo, nos âmbitos, avalia se as reformas introduzidas no setor saúde, no que se refere acobertura, financiamento, regionalização e gestão, têm contribuído para melhorar o acesso e ampliar a utiliza-ção dos serviços de saúde essenciais.Palavras-chave: reforma do Estado; políticas públicas; política social em saúde.

Abstract: The lack of effective mechanisms for regulating SUS services and ensuring their availability at themacro and micro-organizational levels contributes decisively to the persistent ineffectiveness of the Brazilianhealth care system. This article assesses the degree to which the reforms in the areas of coverage, financing,regionalization and management have contributed to improving access and expanding the utilization of essentialhealth services.Key words: State reform; public policies; social health policy.

PEDRO LUIZ BARROS SILVA

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 69-85, 2003

reforma do setor saúde esteve muito em moda,no plano internacional,1 na década de 90. A par-tir de distintos pontos de partida, consolidou-se

- problemas generalizados nas condições de escolha dospacientes determinados pela característica comum dosprovedores de serviço em se mostrarem pouco sensíveisaos direitos dos pacientes usuários e consumidores de ser-viços.

Na base desses fatos comuns aos países ocidentais, tantona Europa Ocidental quanto nas Américas, evidenciam-se três questões de ordem estrutural, presentes com dis-tinta intensidade em cada situação nacional.

A primeira delas envolve as mudanças demográficas,especialmente aquelas decorrentes do envelhecimento dapopulação e do declínio imediato ou futuro da populaçãoeconomicamente ativa, o que determinaria um aumentoda demanda por serviços de maior complexidade e custoe tenderia a tornar cada vez mais problemática a capaci-dade de resposta dos serviços (Eurostat, 2000). Note-seque mesmo em países onde essa transição não impõe umperfil “envelhecido” da população de forma imediata, osimples fato de passar a existir uma população que tendea ser predominantemente adulta pode e vem atuando namesma direção. Isso ocorre porque também os cuidadosmédicos tendem a ser mais onerosos quando um grupopopulacional adulto está submetido a condições de traba-

um conjunto de pressões sobre os governos nacionais paraalterar o perfil das políticas públicas setoriais. Entre es-sas pressões, é possível destacar:- aumento do nível real de gasto setorial, com forte cres-cimento do gasto público, exigindo formas mais eficazesde controle governamental;- convicção entre os gestores públicos e privados de queo tipo de gasto realizado não otimizava o uso dos recur-sos existentes e disponíveis para o setor;- possibilidade de expansão do volume de gasto setorialreal muito limitada diante tanto das pressões e dificulda-des decorrentes dos distintos ajustes nas economias na-cionais, quanto do volume já expressivo do gasto setorialem relação ao PIB;- aumento expressivo da complexidade das condições deoferta e demanda dos serviços;- problemas, mais ou menos agudos, nas condições deeqüidade no acesso aos serviços por parte dos usuários,especialmente os de menor renda, dependendo da situa-ção nacional em exame;

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lho e obtenção de rendimentos cada vez mais depaupe-radoras de suas condições físicas e mentais: transforma-ções das condições de trabalho que tendem a se tornarqualitativamente piores dada a maior flexibilidade e ins-tabilidade dos postos oferecidos; aumento de desempre-go aberto, etc. Esse é, sem dúvida, o caso de vários paíseslatino-americanos, com destaque para o Brasil.

A segunda decorre das dificuldades de equacionamentodo financiamento e gasto públicos nos quadros de ajustesfinanceiros macroeconômicos que vêm determinando ocorte e a redução da capacidade de intervenção estatal,sem que se tenha delineado com clareza novas e consoli-dadas formas, comprovadamente eficazes e efetivas, deparceria entre o setor público e o privado, entre os níveisnacionais e subnacionais de governo (no caso de unida-des federativas), e entre os níveis central, regional e localde governo (no caso de Estados unitários). Essa questãotorna-se mais grave nas situações nacionais localizadasna periferia do sistema financeiro e econômico-produti-vo, submetidas a um passado inflacionário desastroso que,a despeito de terem obtido condições de estabilidade damoeda, o fizeram através de estratégias macroeconômicasantagônicas à viabilização de etapas posteriores de desen-volvimento econômico sustentado, dificultando as condi-ções de ajuste do setor público e com custos sociais ele-vados.

A terceira questão decorre das significativas alteraçõesnas tecnologias disponíveis na área de cuidados médicos(processos, equipamentos e fármacos), alterando o perfilde provisão dos serviços (oferta) com impactos fortes nacriação de novas demandas e novas necessidades de fi-nanciamento. Nesse sentido, as expectativas dos usuárioscrescem, convergindo para a exigência de novos padrõesde atendimento. De forma diferenciada para cada situa-ção nacional, essas novas exigências parecem refletir ummix envolvendo simultaneamente a oferta de novos servi-ços, possibilidades de ampliação de acesso a serviços, atéentão disponíveis para segmentos diferenciados economi-camente, e maiores níveis de informação e educação deparcelas da população usuária que passam a exigir trata-mentos mais complexos e sofisticados.

Todo esse contexto, aqui delineado de forma bastantegenérica, aponta uma tendência convergente de orienta-ção nas modificações das políticas públicas e privadas parao setor. De um lado, países que centravam, de forma qua-se exclusiva, a organização de serviços nas regras de mer-cado passam a utilizar instrumentos de planejamento e deregulação, mais visíveis até então nas práticas adminis-

trativas do setor público. De outro lado, países com fortetradição de organização estatal dos serviços – ênfase emmecanismos de planejamento, avaliação e controle cen-tralizados – passam a utilizar cada vez mais os instrumen-tos administrativos e gerenciais, que permitem a introdu-ção de formas administradas de competição no interior dosistema de atenção à saúde, e mecanismos de regulaçãoque diminuem as formas diretas de intervenção do setorpúblico na operação dos serviços.

Com base na literatura disponível para um conjuntosignificativo de países europeus e americanos, é possívelidentificar duas importantes lições para o caso brasileiro.Em primeiro lugar, não existe ainda uma tendência con-solidada de financiamento e gestão dos sistemas de saúdeque permita demonstrar a superioridade de modelos ba-seados exclusivamente nas regras de mercado ou ao con-trário, na intervenção estatal plena. Esse ponto, aparente-mente óbvio, deixa de ser no final dos anos 90 uma questãoideológica: a evidência empírica mostra que ainda se bus-cam intensamente novos instrumentos de política que su-perem a dicotomia Estado x Mercado e consigam integraras capacidades públicas (estatais e não-estatais) e priva-das de forma sinérgica, o que ainda não foi obtido compleno sucesso por nenhuma experiência nacional.

Em segundo lugar, que o “coração das reformas” estáligado, no plano geral, a modificações, tanto no nível macroquanto no nível micro, das formas de financiamento dossistemas e das suas formas de organização, gestão eregulação, o que inclui modificações importantes em cer-tos pressupostos do modelo assistencial adotado. A maiorprobabilidade de sucesso na empreitada está ligada tantoà escolha das modificações em cada campo – financia-mento e gestão – quanto às possibilidades de combinarsinergicamente seus resultados, criando bases políticas,institucionais e societais de sustentabilidade das transfor-mações introduzidas.

CARACTERÍSTICAS COMUNS DOS PROCESSOSDE REFORMA NOS PAÍSES EUROPEUS ENORTE-AMERICANOS

A partir da segunda metade dos anos 80, combinaram-se e foram estimuladas políticas diferenciadas de inter-venção procurando alterar condições de operação dos sis-temas nacionais, nos planos macro e microorganizacionais.

No que diz respeito ao macrofuncionamento dos siste-mas de saúde, foram adotadas predominantemente fórmu-las para obter a contenção de custos e para definir uma

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política de transferências do nível central de governo parainstâncias descentralizadas ou subnacionais, conformecada caso, que favorecesse tal processo. Esse tipo de de-cisão decorre do exame do funcionamento e desempenhodas três formas básicas para as quais convergem os dis-tintos mecanismos de financiamento dos sistemas de aten-ção à saúde: financiamento público baseado em impos-tos; financiamento público baseado em contribuiçõescompulsórias da previdência social; finalmente, o finan-ciamento privado baseado em seguros específicos para aatenção à saúde (Maxwell, 1988). Nesse sentido, a expe-riência internacional tem demonstrado maiores deficiên-cias no desempenho dos sistemas de financiamento debases voluntárias controlados por regras tipicamente demercado (incerteza e risco desse tipo de seguro; existên-cia de “risco moral” afetando tanto o comportamento deusuários e provedores de serviço – sobreutilização asso-ciada ao uso impróprio de equipamentos e terapias; in-centivos à seleção adversa de pacientes; maiores dificul-dades para obter coberturas universalizadas e acessoequânime; altos custos administrativos). De outro lado,sistemas financiados por impostos ou por contribuiçõescompulsórias, embora relativamente bem-sucedidos noprocesso de contenção de custos – através da utilizaçãode orçamentos globais com base prospectiva para hospi-tais; controles centrais para a construção de instalações eaquisição de equipamentos; limitações nas remuneraçõesdas equipes médicas e sua padronização; tabelas padroni-zadas de remuneração de procedimentos; restrições noprocesso de formação de profissionais, etc. –, enfrenta-ram problemas no campo da qualidade dos serviços, naprodutividade obtida e na excessiva burocratização e cen-tralização de procedimentos e controles, acarretando cus-tos administrativos também bastante elevados.

Esse processo de “aprendizado institucional” dos dife-rentes sistemas determinou uma alteração estrutural demodelos privatizados e públicos (estes últimos tambémconhecidos como modelos integrados de financiamento eprovisão de serviços) para modelos contratuais integra-dos, a partir de bases de mercado (caso americano) oubases públicas (caso europeu de forma geral).

Com isso, alteram-se de forma ainda mais significati-va as condições microorganizacionais de funcionamentodos sistemas de atenção em que se procurou combinar:iniciativas para aumento da eficiência e melhora daresolutividade da rede de serviços, através da separaçãode provedores e financiadores como mecanismo de intro-dução de competição administrada (ou quase mercados)

no interior desse novo modelo contratual; reforço emelhoria das condições internas de gestão das unidadesprestadoras de serviço em todos os níveis de atendimen-to, buscando-se minimizar variações de desempenho eintroduzir uma nova cultura organizacional na qual sepossa ampliar o poder de escolha dos pacientes, melhoraras condições de acesso, reduzir os tempos de espera naslistas de cuidados eletivos, aumentar a qualidade da pres-tação de serviços.

As modificações dos níveis macro e micro quando com-binadas envolveram:- intenso investimento e melhoria dos sistemas de infor-mação voltados à decisão gerencial, possibilitando umfluxo ágil e efetivo de dados acerca das principais transa-ções realizadas pelo sistema e por suas unidades;- programas de capacitação em gestão para médicos, en-fermeiros e outros profissionais da equipe de saúde;- aumento dos graus de responsabilidade e autonomiadecisória dos gestores do sistema nos níveis regionais eperiféricos, nas unidades prestadoras de todos os tipos eno interior dessas mesmas unidades;- terceirização de todas as atividades em que, compro-vadamente, o setor privado possua maior competência;- contratação de gestores profissionais para atividades degerenciamento dos sistemas ou de suas unidades hospita-lares, ambulatoriais ou de atenção primária;- adoção de “pacotes” de incentivos, incluindo incenti-vos salariais, visando a obtenção de resultados mais efi-cazes e efetivos, seja no plano macro seja no planomicroorganizacional;- utilização de mecanismos e incentivos orçamentários efinanceiros como meio de aumentar o desempenho dossistemas e adequar a oferta dos serviços às necessidadesda população-alvo.

ANTECEDENTES DA POLÍTICA DEATENÇÃO À SAÚDE NO BRASIL

Como já é conhecido, o Sistema Único de Saúde (SUS),estabelecido pela Constituição Federal de 1998, ao indu-zir o processo de descentralização da atenção sanitária,buscou implantar um modelo assistencial que revertesseo perfil de intervenção governamental nesse setor. Ao fi-nal dos anos 80 a política de atenção à saúde era marcadapela ineficiência da gestão pública e pela baixa efetividadedas ações no atendimento das necessidades da população.

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A partir de 1988, foi consolidada e formalizada na CartaConstitucional uma tendência de reconhecimento da aten-ção à saúde como um direito social, processo que se ini-cia no princípio dos anos 80. A Constituição buscou, ex-plicitamente, assegurar o acesso universal e igualitário –sem restrições e discriminações derivadas de posiçõesdiferenciadas na heterogênea e complexa estrutura socialbrasileira – às ações (políticas e programas) e serviços depromoção, proteção e prevenção da saúde.2

Tal definição constitucional, para que fosse viabilizadade fato, envolvia a definição e implantação de uma estru-tura de atenção que abrangesse todos os brasileiros e ope-rasse dentro dos princípios de máxima eqüidade, alteran-do, conseqüentemente, as principais características doperfil de política de atenção à saúde, forjado durante asituação autoritária que vigorou no país por três décadase prevaleceu no Brasil até meados dos anos 80.3 Dentreessas características merecem destaque neste trabalho:- a forte centralização na esfera federal de governo e,dentro dela, no Instituto Nacional de Assistência Médicada Previdência Social – Inamps, autarquia vinculada aoSistema Nacional de Previdência e Assistência Social –Sinpas – que ao comandar o processo do gasto públicosetorial viabilizou por décadas ações e serviços de assis-tência médica de base hospitalar, bastante dissociados deações integradas de promoção, prevenção e proteção dasaúde;- a fragmentação organizacional, o que impossibilitava aimplementação de uma política setorial integrada ao pro-mover, principalmente, a dicotomia entre as ações noâmbito do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduaisde Saúde e, finalmente, das Secretarias Municipais, de umlado; e do Inamps e dos prestadores de serviços de assis-tência médica – ambulatorial ou hospitalar – privados oupúblicos não-governamentais (entidades filantrópicas)contratados ou conveniados com essa autarquia, de outro.Configurou-se, assim, uma estrutura de prestação de ser-viços constituída de seis segmentos: o segmento previ-denciário, envolvendo estabelecimentos próprios doInamps (postos de assistência médica e hospitais de mé-dio e grande portes) e estabelecimentos privados; o seg-mento médico sanitário vinculado ao Ministério da Saúdeque, para implementar diversos programas de abrangêncianacional, mantinha uma rede própria de unidades ambu-latoriais e hospitalares para combate ao câncer, atendi-mento psiquiátrico, dermatologia sanitária, tuberculose,atenção materno-infantil, etc., além da rede da FundaçãoServiço Especial de Saúde Pública – Sesp encarregada da

prestação de serviços de assistência médica e de sanea-mento básico nas regiões mais distantes e pobres do país;o segmento de hospitais universitários, vinculado ao Mi-nistério da Educação, que fazem, ainda hoje, parte das Uni-versidades Federais existentes em cada Estado da Fede-ração Brasileira, mantendo, além de suas atividades deensino e pesquisa, serviços de magnitude e complexidadediferenciados de atenção médica à população em regimeuniversal, na maior parte em convênio com o Inamps; osegmento das Forças Armadas e do funcionalismo públi-co (nos diferentes níveis de governo) que também man-tém uma rede própria de hospitais e ambulatórios; o seg-mento estadual e municipal de atenção médico-hospitalare de saúde pública, composto de unidades básicas de saúde(centros e postos de saúde) e de unidades de emergêncianos Estados e municípios de maior porte e condição eco-nômica; finalmente, um segmento privado autônomo vol-tado às camadas da população com alto poder aquisitivo4

ou articulado a partir da necessidade das empresas de maiorporte e complexidade (medicinas de grupo, cooperativasmédicas, seguradoras do ramo saúde, serviços de auto-gestão médica das empresas), que cresce dinamicamenteno vácuo possibilitado pelas deficiências da política deassistência médica previdenciária e de atenção médico-sanitária proporcionada pelos Estados e municípios;- a ausência de mecanismos de controle público e social,tanto no que diz respeito ao processo mais geral de defi-nição de formas de financiamento, prioridades alocativase distribuição geográfica dos serviços, quanto no que serefere ao controle social da qualidade e do tipo de serviçoprestado aos usuários;- a forte concentração do atendimento nas unidades hos-pitalares ou no atendimento ambulatorial de nível secun-dário, o que é explicável pela, já citada, predominânciada política de assistência médica previdenciária e de seusrecursos financeiros, infinitamente superiores em capaci-dade de atendimento e de gasto às estruturas de saúdevoltadas à promoção e prevenção da doença. Isso impli-cou a estruturação de uma rede de atendimento atuandosem hierarquia, implantada sem que fossem consideradosos critérios de regionalização, sistemas de referência emecanismos de integração, complementaridade e coorde-nação do atendimento.

Esse perfil de intervenção viabilizou uma política deatenção à saúde com inegável tendência de expansão dacobertura e do gasto – ainda que em níveis inferiores aosobservados, naquele momento, em países da América

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Latina com graus semelhantes de desenvolvimento – apoia-da, como já foi apontado, em uma rede de prestação deserviços desordenada e desarticulada, dada a inexistênciade mecanismos de planejamento e gestão que viabilizassemo seu funcionamento de forma regionalizada, hierarquizadae resolutiva.

A estruturação de um sistema único de saúde procurouampliar os níveis de responsabilidade da gestão local eregional para solucionar, simultaneamente, questões re-ferentes à melhora da eficácia do gasto público e à amplia-ção do acesso aos serviços. Como aponta, corretamente,Médici (1999), a implantação do SUS teve como princi-pal justificativa a necessidade de melhorar a oferta de ser-viços, os indicadores de saúde e as condições de acesso,contribuindo para elevar a qualidade de vida da popula-ção brasileira. Mais de dez anos após o início desse pro-cesso e a despeito de avanços inequívocos tanto dos indi-cadores de saúde quanto da eficiência do atendimento emdiversos Estados e municípios brasileiros, verifica-se queo Brasil ainda apresenta padrões de morbidade e mortali-dade precários. A realidade sanitária brasileira revela pa-drões que mesclam distintas etapas do processo de transi-ção epidemiológica, combinando a presença de doençasverificadas em sociedades pré-industriais, industriais e pós-industriais. Em parte, essa realidade é resultante da per-manência de problemas de cobertura assistencial, finan-ciamento setorial, resolutividade sistêmica e eqüidade noacesso e na utilização dos serviços.

ANOS 80: A SITUAÇÃO PRÉ-SUS

A política de atenção à saúde no Brasil foi financiadabasicamente com recursos do Fundo de Previdência eAssistência Social (FPAS) até 1990. A análise da evolu-ção dos gastos com atenção à saúde nas três esferas degoverno entre 1980 e 1990 mostra que a participação daUnião nunca é inferior a 71% (1986), tendo alcançado opatamar de 87% aproximadamente em 1988.

Analisando-se a seguir a evolução do gasto federal porfonte de financiamento, verifica-se que a participação dosrecursos previdenciários na manutenção da política deatenção à saúde através do FPAS foi, no mesmo período,sempre superior a 76% (1986), alcançando seu maior pa-tamar de participação no início da década de 80.

A despeito de crescerem 9,5% entre 1980 e 1990, osdispêndios per capita em atenção à saúde ainda se si-tuavam em um patamar baixo, configurando uma situa-ção que já virou “palavra de ordem” entre os militantes

do setor: o segmento público da saúde no Brasil gas-tou pouco.

Considerando-se esse gasto em relação ao PIB, apre-sentado na Tabela 1, e comparando essas informações comos dados apresentados pelo relatório do Banco Mundialde 1993, dedicado ao setor saúde, nota-se que essa parti-cipação é bastante inferior à participação média setorialnos países das economias capitalistas centrais (OCDE),que se situavam em torno de 5,6% do PIB médio.

Mas se for considerado o gasto total em saúde, estima-do por Médici (1999) para o ano de 1989, a situação setransforma um pouco. Em tal estimativa, o gasto total –público nas três esferas de governo e privado autônomo(famílias seguradas mais gastos familiares diretos e gastodas empresas com seguros-saúde e assemelhados para seusempregados) – em relação ao PIB chega a 4,66%.

Ou seja, bastante próximo dos 5,6% dos países do cen-tro capitalista, onde o gasto privado é muito menor, e sig-nificativamente maior do que a média dos países da Amé-rica Latina, excetuando-se o Chile, dentre os países ondea comparação possa fazer sentido para a argumentação aquidesenvolvida. Os países da OCDE e a maioria dos paíseslatino-americanos apresentam, entretanto, indicadores desaúde superiores aos brasileiros. Como apontam Barros,Piola e Vianna (1996:13), “tem sido fartamente documen-tada a situação paradoxal do Brasil de apresentar indica-dores econômicos em níveis incompatíveis com os dosindicadores sociais, incluindo-se os de saúde”. Mesmo

TABELA 1

Evolução dos Gastos com Saúde em Relação ao PIBBrasil – 1980-90

Em porcentagem

Anos Total União Estados Municípios

1980 2,34 1,75 0,42 0,17

1981 2,36 1,74 0,44 0,18

1982 2,37 1,75 0,41 0,20

1983 2,14 1,55 0,41 0,18

1984 2,15 1,60 0,39 0,16

1985 2,23 1,60 0,42 0,21

1986 2,27 1,56 0,47 0,24

1987 2,81 2,33 0,25 0,23

1988 2,69 2,31 0,00 0,38

1989 3,26 2,52 0,38 0,36

1990 3,19 2,32 0,49 0,38

Fonte: Ipea (1992); Médici (1993).

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levando-se em conta que na década de 80 ocorreu umamelhora de vários indicadores, a velocidade dessa melhoranão foi suficiente para eliminar a desigualdade entre oBrasil e outros países da América Latina.

Isso coloca ao analista uma questão mais complexa: oproblema estratégico do SUS, tanto quanto elevar o pata-mar do gasto, foi e continua sendo imprimir a esse gastomaior efetividade. Isso só se consegue com o planejamentoda oferta de serviços induzindo a direção das ações paraas necessidades prioritárias da população, simultaneamenteao ordenamento do acesso e da utilização dos serviçosatravés de uma rede corretamente regionalizada, hierar-quizada e resolutiva.

Parte significativa da explicação da baixa efetividadedo gasto em saúde diz respeito, portanto, à ênfase da po-lítica de atenção à saúde até o início dos anos 90. Comojá foi apontado, essa ênfase recaiu sobre as ações curati-vas, baseadas na atenção hospitalar com custos crescen-do de forma exponencial, no interior de uma rede de ser-viços desarticulada e mal hierarquizada, sem mecanismosresolutivos de ordenamento tanto da oferta quanto da de-manda de serviços, sem priorizar os serviços de promo-ção da saúde e prevenção da doença (Médici, 1999; Bar-ros et al., 1996; Banco Mundial, 1993; Silva, 1984 ,1992,entre outros).

Mais do que isso, há fortes diferenciais de acesso porníveis de renda da população, evidenciando que as famí-lias de menor renda são penalizadas tendo menor possibi-lidade de utilizar a rede de serviços. Problemas de distân-cia dos equipamentos de atenção à saúde; falta de recursospara custear as despesas de transporte; exigências de pa-gamento de consultas e de medicamentos (o conhecidopagamento “por fora”) – ainda que formalmente já vigo-rasse, desde 1983, o princípio da gratuidade e da univer-salidade; ausência de acesso a informações que permitis-sem às famílias mais pobres entender a necessidade deutilizar os equipamentos de saúde disponíveis a partir daocorrência de determinados sintomas de enfermidade;foram as causas mais relevantes identificadas a partir depesquisa nacional sobre a temática (PNAD, 1986 – suple-mento saúde). É bem verdade que, desde meados dos anos80, começam a se estruturar iniciativas que procurammodificar esse perfil de intervenção. As tentativas demudança concretizadas através do Programa de Interio-rização das Ações de Saúde e Saneamento (Piass), dasAções Integradas de Saúde (AIS) e mais decisivamenteatravés da implantação do Sistema Unificado e Descen-tralizado de Saúde (Suds), refletem claramente a evolu-

ção desse processo (Silva, 1992; Levcovitz, 1997; Médici,1999). Entretanto, não foram suficientes para alterar odramático perfil de iniqüidades que a política de atençãoà saúde apresenta nesse período.

Utilizando a informação disponível de abrangêncianacional, para a década de 80, acerca das taxas de utiliza-ção dos serviços de saúde por nível de renda mensal fa-miliar per capita, Médici (1999) aponta que as famíliascom renda superior a dois salários mínimos utilizam osserviços de saúde numa proporção 60% maior do que asfamílias com renda per capita até ¼ de salário mínimo(Tabela 2). Indica ainda que as más condições de acessoe a falta ou pouco apropriada percepção do processo desaúde – enfermidade, decorrente das falhas nas ações depromoção da saúde e prevenção da doença entre os estra-tos de mais baixa renda – são determinantes fundamen-tais dessa situação.

Mais significativo é o fato identificado, ao final dos anos80, de que as famílias de renda mais baixa gastaram propor-cionalmente mais com serviços de saúde do que as com ren-da mais alta. Isso ocorria por duas razões fundamentais: osserviços disponíveis, ainda que formalmente gratuitos desde1983, como apontado acima, não o eram para 16% das famí-lias com renda per capita até ¼ de salário mínimo que de-clararam pagar pelo atendimento recebido,5 as famílias debaixa renda têm um gasto com saúde proporcionalmente maisalto porque, a despeito de utilizar menos os serviços dadasas piores condições de acesso, quando o fazem necessitamde cuidados relacionados com ocorrências de maior gravi-dade e risco, portanto mais caras.

TABELA 2

Taxas de Utilização dos Serviços de Saúde, segundo Classesde Renda Mensal Familiar per Capita

Brasil – 1986Em porcentagem

Classes de RendaDistribuição da Taxa de Utilização dosFamiliar per Capita

População Serviços de Saúde (1)(em salários mínimos)

Total (2) 100,0 11,0

Até ¼ (3) 14,2 8,6

De ¼ a ½ 19,4 9,3

De ½ a 1 25,0 10,7

De 1 a 2 21,5 11,6

Mais de 2 15,9 13,8

Fonte: PNAD 1986. In: Médici (1999).(1) Definida como a relação entre a população que utilizou serviços de saúde e a populaçãototal em cada classe de renda considerada no mês da pesquisa (setembro de 1986).(2) Exclui as famílias sem declaração de rendimentos.(3) Incluiu 1% de pessoas pertencentes a famílias sem rendimento.

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SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

A Tabela 3 apresenta os motivos que levam as famí-lias, estratificadas por nível de renda, a procurar os servi-ços de atenção à saúde identificados pela PNAD de 1986.

Nota-se também que as famílias de renda maior do que2 salários mínimos gastam mais em prevenção, demons-trando uma percepção sanitária mais adequada e melho-res condições de acesso decorrentes de sua melhor condi-ção socioeconômica. Esses fatores são decisivos para quese observem, nesse período, diferenciais significativos delongevidade, decorrentes em última instância de hábitosde vida que demonstram o exercício mais completo decondições de cidadania e que não são disponíveis para asfamílias de renda mais baixa. Para essas se concretizou o“pior dos mundos”: menor acesso aos serviços e à infor-mação e educação sanitária, associado a piores condiçõesde vida. Isso se reflete com clareza no perfil de morbidadee mortalidade que assola essa parcela da população – si-multânea incidência de doenças infecto-contagiosas e dedoenças crônico-degenerativas acompanhadas, no iníciodos anos 90, das chamadas doenças da sociedade pós-moderna como a Aids.

Partindo de informações constantes da amostra da Pes-quisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN) também rea-lizada pela Fundação IBGE, em 1989, Travassos, Fernan-des e Pérez (1989) chegam a conclusões semelhantes:“Esses resultados mostram grande seletividade social noconsumo dos serviços de saúde, com os grupos sociaistendo acesso diferenciado aos vários subsistemas (ou comochamamos neste trabalho segmentos – PLBS) que opera-vam com padrões de qualidade e eficiência marcadamentedistintos: aos mais pobres, menor oferta de serviços, po-

larizada entre o atendimento básico e o pronto-socorro/hospital; aos mais ricos, maior oferta de serviços, maisdiferenciada em complexidade tecnológica, com ênfase noatendimento preventivo e ambulatorial”.

Esse estudo explicita, ainda, um outro aspecto extrema-mente importante para a nossa argumentação: observou-seque a composição do consumo de serviços de saúde entre osgrupos de renda distinta está marcada pela utilização efetivado consultório particular ou privado na medida em que au-menta a renda. Como apontam os autores, é o consultórioparticular que marca a passagem do mercado de serviços depobres para o dos ricos. Em outras palavras, os ricos têmacesso a cuidados de promoção, prevenção e cura de formamais hierarquizada e resolutiva, porque o consultório parti-cular funciona adequadamente como porta de entrada do sis-tema e unidade de referenciamento para cuidados mais com-plexos, no setor público ou no setor privado, quandonecessário. Esse mecanismo depende de disponibilidade derecursos financeiros ou emprego formal em organizações queproporcionem alguma forma de cobertura em atenção à saú-de para seus empregados. Aos pobres, excluídos dessa reali-dade, resta o pronto-atendimento hospitalar público, com for-tes restrições de acesso a partir daí, e a farmácia.6

Note-se, entretanto, que quando se conseguiam rom-per as barreiras de acesso aos ambulatórios e hospitais pú-blicos, nesse momento majoritariamente ligados à Previ-dência Social ou Hospitais Universitários, o grau desatisfação dos usuários, especialmente os de menor ren-da, aumentava significativamente. Pesquisa realizada peloInstituto Vox Populi em julho de 1987, entre usuários efe-tivos dos serviços do Inamps, mostrou que, à medida quese aprofundava a relação do usuário com o serviço, asavaliações iam ficando consistentemente positivas. Segun-do essa pesquisa: “[...] para 46,6% de aprovação com oprimeiro médico da triagem, passamos para 64,8% dasconsultas com especialistas e saltamos para uma aprova-ção de 75,3% nas internações. Quando chegamos às pes-soas que passaram por eles, que são as que percorreram ocaminho inteiro de sua relação com os serviços de assis-tência médica da previdência social, alcançamos os maisaltos índices de aprovação do atendimento, além do pata-mar dos três quartos” (Vox Populi, 1987).

Ainda que, em saúde, a percepção dos usuários não sejasempre um indicativo da resolutividade e eficácia do ser-viço, o que chama a atenção e reforça a argumentação éque, para o usuário, ter a possibilidade de utilizar o servi-ço ao longo de toda a rede de atendimento é um ganhoreal. E nesse caso valorizando o serviço público.

TABELA 3

Taxas de Utilização dos Serviços de Saúde, por Nível de Renda MensalFamiliar per Capita, segundo Motivos de Procura pelo Serviço

Brasil – 1986

Motivos de Procura Até ¼ de Mais de 2pelo Serviço de Saúde Salário Mínimo Salários Mínimos

Total 100,0 100,0

Doença 85,6 64,5

Acidente ou Lesão 5,1 5,1

Problema Odontológico 2,5 7,3

Controle ou Prevenção 4,6 18,9

Outros Motivos (1) 2,1 4,1

Sem Declaração 0,1 0,1

Fonte: PNAD 1986. In: Médici (1999).(1) Incluem obtenção de carteira de saúde, tratamento de reabilitação, psicanálise, etc.

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DEZ ANOS DE IMPLEMENTAÇÃO DO SUS:MECANISMOS DE ORDENAMENTO ECONDIÇÕES DE ACESSO AO FINAL DOS ANOS 90

Mais de dez anos após o início do processo de imple-mentação de um sistema único de saúde no Brasil, nota-seque a atenção à saúde continua sendo operacionalizada atra-vés de um sistema segmentado e desarticulado.

A rede operada através do SUS, comandada pelo setorpúblico através de um conjunto de normas operacionaisem que se definem formas de financiamento e atribuiçõese competências de cada nível de governo, utilizando-sede prestadores públicos e privados de serviço e destina-dos a proporcionar, de forma gratuita e universal, cober-tura a toda a população brasileira. Estimativas indicam queo SUS teoricamente estaria atendendo, atualmente, deforma exclusiva, 114,6 milhões de pessoas.7

Um segmento de medicina supletiva ao SUS (SMS) temcobertura estimada de 45 milhões de pessoas, operandoatravés de planos de saúde contratados pelos indivíduosou por empresas, em organizações de medicina de grupo,cooperativas médicas, seguradoras do ramo saúde e pla-nos auto-administrados, nos quais se incluem os empre-gados das empresas estatais e privadas de grande porte.

Um segmento de prestadores de serviço que é remune-rado através do desembolso direto de seus usuários (SDU)e abrange, teoricamente, a população com mais alto po-der aquisitivo.

A despeito dessa multiplicidade de formas de atendi-mento, estima-se que uma parte ponderável da população,em torno de 10% das pessoas, esteja à margem até do aten-dimento prestado pelo SUS. Isso significa que cerca de16 milhões de pessoas estejam sem acesso a nenhum ser-viço, podendo-se concluir que, de forma exclusiva, o SUSdeve cobrir cerca de 99 milhões de brasileiros.

Como é conhecido pelos estudiosos do setor, é difícilapontar com exatidão a magnitude da clientela de cadaum desses segmentos, pois não existem barreiras que coí-bam a utilização dos serviços do SUS pelos indivíduosinseridos no SMS ou que podem ser classificados comodo SDU, dadas a gratuidade e universalidade que regem aoperação deste último. Note-se que a situação inversa nãoé verdadeira pois a condição socioeconômica continuasendo uma barreira intransponível para aqueles que, es-tando no SUS, queiram utilizar os serviços dos outros seg-mentos. Mais do que isso, como para determinados pro-cedimentos os prestadores de serviço realizam atendimentopara o SUS e para o SMS, estratégias de utilização

indiscriminada de pessoas e de empresas dos serviços doSUS acontecem cotidianamente. Não é possível aferir suanecessidade ou promover a compensação ao SUS, de co-bertura ampla e irrestrita teoricamente, dos custos ocorri-dos para o atendimento de pessoas que se utilizam e pa-gam preferencialmente os outros segmentos.

Pesquisa do Ibope,8 realizada em 1998 por encomendado Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde– Conass e da Fundação Nacional de Saúde – FNS doMinistério da Saúde, mostra que a cobertura real do SUSpode ser ainda menor do que os estimados 99 milhões debrasileiros. Essa pesquisa mostra que:- 38% da população afirmou utilizar de forma exclusivaos serviços públicos ou com ele conveniados;- 20% declarou utilizar o SUS de forma freqüente (maioriadas vezes), mas não exclusiva;- 22% declarou utilizar serviços particulares na maioriadas vezes, utilizando tanto os serviços públicos (eventuais)como os do segmento supletivo;- 15% da população declarou não ser usuária do SUS,seja por pertencer ao segmento que utiliza exclusivamen-te serviços particulares (via seguro-saúde de qualquer es-pécie ou via desembolso direto) ou por nunca utilizar ser-viço médico de qualquer espécie.

Já existem indicações bastante significativas para mos-trar que os segmentos populacionais de menor nível derenda, menor escolaridade, situados em regiões que con-centram grupos de grande vulnerabilidade social, como,por exemplo, periferias de áreas metropolitanas, municí-pios médios com atividade industrial decadente ou muni-cípios pequenos de vocação agrícola fora da dinâmicacompetitiva dos mercados agroindustriais) não se utilizamdo SUS por falta de condições de acesso determinadas pormotivos diversos (Médici, 2001).

Verifica-se também que quanto mais aumentam a es-colaridade e a renda, menor é o grau de utilização intensi-va do SUS, confirmando que o acesso para as camadasmais pobres é essencial e estratégico.

Mas o mais interessante é a evidência de uma tendên-cia de utilização dos serviços do SUS por camadas comalta escolaridade e maior poder aquisitivo: mais de 50%daqueles que têm escolaridade superior e mais de 60%das que recebem rendimentos superiores a 10 salários mí-nimos.

Isso pode indicar duas situações. Na primeira, em de-corrência de uma estrutura de atenção segmentada, não-hierarquizada, com má-distribuição regional e pouco

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SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

resolutiva, ocorreria que uma parte significativa das pes-soas com maior poder aquisitivo, maior escolaridade e,portanto, maiores chances de pertencer ao mercado for-mal de trabalho em postos de qualidade, tenha acesso aesquemas de seguro-saúde e simultaneamente se utilizedo sistema SUS. Isso caracterizaria uma ação oportunistapor parte dos usuários, legal é verdade, dadas as brechaspermitidas pelo sistema que beneficiariam os segmentosmais protegidos por sua melhor condição socioeconômicae buscariam no SUS o cuidado de mais alto custo e maiorcomplexidade. Em decorrência, estariam consumindo partedos recursos que poderiam estar sendo mais bem utiliza-dos se o sistema fosse corretamente regulado e ordenadodo ponto de vista do acesso, para minimizar esse compor-tamento oportunista verificado.

Os dados acerca da evolução da clientela e do fatu-ramento do segmento de medicina supletiva no Brasil, nosdez anos de existência do SUS, mostram uma dinâmica eum volume de recursos envolvidos impressionantes, quepodem ser vistos na Tabela 4.

Na segunda situação, em decorrência da desestru-turação do mercado de trabalho e do desemprego, seg-mentos de maior renda estariam utilizando mais o SUSem decorrência da perda do poder aquisitivo e da pos-sibilidade que o acesso universal e gratuito dá a essessegmentos de obter ou um rebaixamento de seus custosprivados com atenção à saúde ou não mais realizá-los.Note-se que a mesma pesquisa Ibope mostra que quan-do perguntado sobre os três maiores problemas que oentrevistado e sua família vinham enfrentando, 48%indicou o desemprego, 37%, o nível salarial e 37%, asaúde (respostas múltiplas).

Em qualquer dos casos, fica evidente que há um des-perdício de recursos, acompanhado por barreiras concre-tas de acesso, que permitem a utilização de estratégiasoportunistas ou “desesperadas” por parte da população edecorrem do que se pode chamar uma segmentação per-missiva e incestuosa das redes de atendimento determi-nada pela falta de ordenamento, multiplicidade de cober-turas, baixa resolutividade e falta de planejamento,coordenação e regulação da atenção à saúde no Brasil.

Daí resultam várias distorções no campo do financia-mento, do gasto público e privado e, finalmente, na utili-zação dos serviços, que serão examinadas nas seções se-guintes deste trabalho.

FINANCIAMENTO E GASTO DO SUS

A implantação do SUS enfrenta, nesse campo, obstá-culos complexos, o que vem determinando a polarizaçãode posições no debate político institucional em torno daquestão da suficiência ou insuficiência de recursos parasustentar uma política eficaz de intervenção.

A primeira observação importante a ser feita é que fo-ram significativamente modificadas as fontes de financia-mento. A despeito das flutuações e da turbulência finan-ceira que o setor atravessa, como mostra o Gráfico 1 queretrata 18 anos de evolução do gasto federal com saúde ea sua expressão per capita, nota-se a partir de 1993 umatendência de crescimento contínuo.9

TABELA 4

Clientela e Faturamento do Setor de Medicina SupletivaBrasil – 1989-1998

AnosNúmero de Usuários Faturamento Gastos per Capita

(em milhões) (em US$ bilhões) (em US$)

1989 31,1 2,4 77,70

1991 28,5 4,1 146,30

1993 34,4 6,4 187,80

1995 37,5 9,9 264,00

1996 39,2 12,3 313,57

1997 41,0 15,3 373,50

1998 45,0 16,0 357,77

Fonte: Mendes (1998).

GRÁFICO 1

Evolução do Gasto Federal com Saúde e do Gasto per Capita com SaúdeBrasil – 1980-98

Fonte: Médici, 1999.

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Em 1995, contabilizando-se o gasto realizado nas trêsesferas de governo, chega-se a um gasto total de quase 25bilhões de dólares, um aumento significativo quando com-parado aos cerca de 14 bilhões de dólares alcançados em1989.

Estudo detalhado realizado por Biasoto et al. (1998)sobre o gasto público em saúde no Brasil em 1995 chegaàs seguintes conclusões: “Nos últimos anos, as discussõesem torno das questões do gasto público em saúde no Bra-sil têm se concentrado no financiamento. O cenário de in-certeza, quanto às fontes de recursos, que se repete a cadaano, vem impedindo um exame mais detalhado da quali-dade das ações de governo, contribuindo para o empo-brecimento do debate. A análise, em caráter preliminar,das características do financiamento e do dispêndio go-vernamental com a função, no Brasil, permite reunir asseguintes conclusões:- O patamar do gasto no Brasil já é bastante elevado, daordem de 3,5% do PIB. O gasto por habitante/ano, deR$ 146 em 1995, já alcança o volume considerado pa-drão por especialistas do setor.- Gasto de Estados e municípios já supera o da União. Aaplicação de recursos próprios/não vinculados aos repassesdo Ministério da Saúde, da ordem de R$ 10,4 bilhões anuais,é uma demonstração inequívoca do comprometimento de pre-feitos e governadores com as ações de saúde.- As aplicações são tipicamente de custeio. As despesas de“Pessoal”, adicionadas a “Outras Correntes” concentramcerca de 82% do orçamento nacional, ou R$ 21 bilhões. Osgastos em investimento são, ao contrário, muito baixos. Dovalor total investido em 1995, de R$ 446 milhões, cerca de72% se concentra nos municípios, que vêm ampliando suaresponsabilidade com a gestão da função saúde.- Quanto aos programas de trabalho, destaca-se a rubrica“Assistência Médica e Sanitária”, na qual se registram osgastos na operação do sistema, com R$ 18,3 bilhões ou74% do total. Estados e municípios praticamente não par-ticipam das ações de prevenção, concentradas na União.- Do valor total transferido pelo SUS em 1995, destaca-se aparticipação dos prestadores privados conveniados, que jáequivale ao somatório dos repasses às unidades próprias deEstados e municípios. A rede privada predomina em quasetodo o país, salvo em alguns Estados da Região Norte, ondea baixa renda e a densidade populacional ainda não garan-tem retorno para a atividade privada.- As transferências do SUS têm um caráter regressivo,função dos critérios de repasse baseados na produção de

serviços. As unidades mais pobres do Norte e do Nordes-te recebem menos recursos por habitante do que o Sul/Sudeste, onde a base econômica garante maior capacida-de de geração de recursos fiscais próprios.- As aplicações de Estados e municípios atingem cercade 15% de sua receita disponível, mas em termos per capitaexiste uma profunda disparidade entre regiões pobres ericas. O gasto subnacional por habitante é de R$ 106 noSul/Sudeste contra apenas R$ 60 no Norte/Nordeste.- É indiscutível o avanço da municipalização no país.Entretanto, ela vem ocorrendo de forma desigual, graçasàs disparidades de renda entre os municípios e tambémao esquema de transferências do SUS, que não apresentaqualquer função de redistribuir recursos às unidades maispobres. Cerca de 79% do gasto municipal em saúde e sa-neamento se concentra no Sul/Sudeste, onde reside 57%da população.- Em termos médios, os municípios das regiões mais de-senvolvidas respondem por quase dois terços dos gastossubnacionais em saúde e saneamento, contra apenas 40%no Norte/Nordeste/Centro-Oeste. Destaca-se o avanço damunicipalização nos Estados do Rio de Janeiro, São Pau-lo, Paraná e Rio Grande do Sul.- Quanto ao gasto estadual, há grande variância até mes-mo entre Estados da mesma região. Os governos estaduaisfinanciam a maior parte dos gastos nos Estados do Acre,Roraima, Amapá, Tocantins, Piauí, Sergipe e Bahia.- A divisão das despesas por categoria econômica e pro-grama de trabalho, pelos governos estaduais das várias uni-dades da federação, tende a concentrar-se no custeio em gerale na assistência médica, respectivamente. Entretanto, osdados apontaram algumas distorções nas aplicações admi-nistrativas, especialmente nas unidades do Norte, Centro-Oeste e no Rio de Janeiro. Os investimentos apresentarampatamar bastante baixo, como era de se esperar, diante dacrise dos Estados e do avanço da municipalização”.

O Ipea, na sua avaliação dos “Gastos Sociais das três es-feras de governo, 1995” (Fernandes et al., 1998), tambémchegou a resultados bastante similares ainda que com umametodologia distinta de consolidação das informações.10

DISTRIBUIÇÃO REGIONAL DO GASTO PÚBLICOPER CAPITA COM ATENÇÃO À SAÚDE

A falta de eqüidade na alocação do gasto público, jácitada, fica ainda mais evidente quando se compara o dis-pêndio setorial per capita em saúde de cada uma das três

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SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

instâncias de governo nas regiões brasileiras. Sabe-se queo gasto público é muito desigual entre as diferentes re-giões e Estados, mas não é tão evidente, e as desigualda-des se devem mais às diferenças nos aportes dos Estadose municípios: o dispêndio público total per capita variaentre R$ 153,10 no Sudeste e R$ 85,90 no Nordeste, ouseja, uma diferença de R$ 67,20, enquanto a variação doaporte federal para estas regiões é de apenas R$ 21,60.Tal informação, ao demonstrar que a maior parte da desi-gualdade é explicada pelas diferenças nos aportes de re-cursos próprios de Estados e municípios (Tabela 5), acen-tua ainda mais o papel estratégico que a União terá deassumir para introduzir mecanismos de incentivo ao cor-reto ordenamento da oferta de serviços para melhorar ascondições de acesso.

Isso porque, por maior que seja o esforço redistributivoisolado da União, será mantido um certo grau de desigual-dade na alocação de recursos públicos para a saúde, parteem decorrência das diferentes capacidades de arrecada-ção dos Estados e municípios das diferentes regiões bra-sileiras, e parte pela falta de incentivos para que as esfe-ras subnacionais, autonomamente, alterem suas prioridadesde inversão.

A necessidade desse papel de coordenação e de induçãodo MS fica mais clara quando se tomam as estimativas dogasto total no setor. As estimativas disponíveis, incluin-do-se o gasto privado no segmento supletivo e no de de-sembolso direto, indicam cifras expressivas. Utilizando-se a estimativa apresentada por Médici (1999) a partir deestudo de Mendes (1998) para o gasto privado, que con-tém informações relativamente compatíveis com as ante-

riores, chega-se a 7% do PIB com atenção à saúde e a umgasto per capita de US$ 321,5 aproximadamente. Conse-qüentemente, trata-se de um esforço de inversão bastantesignificativo, ainda que mal direcionado, no que diz res-peito ao mix público/privado e gerenciado a partir de pro-cessos de hierarquização, regionalização e ordenamentoda oferta de serviços com muitas brechas e falhas, pro-porcionando um esforço pouco efetivo. A correlação des-se gasto com indicadores de resultado em saúde mostraque nossa situação sanitária e assistencial não é compatí-vel com o esforço realizado na alocação de recursos.

DESIGUALDADES NO ACESSO AOS SERVIÇOS

As informações disponíveis permitem apontar algunsprogressos no campo do acesso, ainda que continuem sen-do verificadas, no Brasil, fortes disparidades na utiliza-ção de serviços, tanto entre regiões quanto entre segmen-tos sociais. Tomando-se um novo estudo de Travassos etal. (1998) verifica-se que:11 houve uma diminuição nosdiferenciais de utilização entre as Regiões Nordeste eSudeste e, na primeira, as melhorias relativas foram maisacentuadas. Os dados da PNSN mostraram uma maior taxade utilização de serviços de saúde para os habitantes daRegião Sudeste (19,49 por 100 habitantes) e menor paraos habitantes da Região Nordeste (13,01 por 100 habitan-tes). A PPV, quase uma década depois, mostrou que asdiferenças nas taxas de utilização entre Sudeste e Nordestedeixam de ser estatisticamente significativas, passando de15,29 por 100 habitantes no Sudeste para 14,06 por 100habitantes no Nordeste.

As taxas de utilização recalculadas para os grupos come sem morbidade, de forma separada, mostraram diferen-ças significativas e desfavoráveis ao Nordeste. Em 1989,a taxa de utilização para a população com restrição deatividades foi de 46,39 por 100 habitantes no Nordeste ede 66,02 por 100 habitantes no Sudeste. Já em 1996/97essas taxas passaram a ser de 59,57 por 100 habitantes ede 69,54 por 100 habitantes, respectivamente, para o Nor-deste e para o Sudeste. Comparando a razão entre as ta-xas de utilização para a população com restrição, verifi-cou-se uma diminuição de 17,6% (1,42 em 1989 para 1,17em 1996/97), o que mostra uma diminuição na desigual-dade de acesso aos serviços de saúde entre as duas regiões.Dentro de cada região, analisando-se a taxa de utilizaçãoda população com restrição, verifica-se que a melhoria foiproporcionalmente maior na Região Nordeste (aumentode 28%), do que na Sudeste (aumento de 5,3%).

TABELA 5

Gasto Público per Capita em Saúde, por Instânciade Governo, segundo Região

Brasil – 1995Em R$1,00 corrente

Região União Estados Municípios Total

Total 87,9 28,8 22,9 139,6

Norte 61,0 29,7 4,7 95,5

Nordeste 56,2 17,5 12,3 85,9

Sudeste 78,8 39,0 35,3 153,1

Sul 77,4 10,7 24,2 112,3

Centro-Oeste 80,8 52,6 4,8 138,1

Fonte: Fundação IBGE/DECNA. Elaboração: Ipea/Dipos. In: NEPP (1999).Nota: A média nacional é mais alta que as médias regionais por conter recursos nãoregionalizáveis.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

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QUADRO 1

Principais Desafios, Problemas, Soluções e Estratégias de Implementação Utilizadas na Reforma de SaúdeBrasil, a partir de 1996

Desafio Problema SoluçãoMedidas Medidas emImplementadas Implementação

Cobertura 10% da população brasileira Priorizar a atenção básica à saúde Plano de Assistência Básica Estudos específicos para(os mais pobres). de acordo com o perfil (PAB); Farmácia Básica do SUS melhorar os critérios de

epidemiológico dos mais pobres. (PAF); Programa de Combate às focalização, distribuição dosOs grupos mais ricos, que têm Carências Nutricionais (PCCN); recursos e definição de açõesplanos de saúde, utilizam os Iniciar experiências de Programa Ampliado de prioritárias nestes programas.serviços do SUS sem recuperar ressarcimento dos usuários do Imunizações (PAI) e Programacustos. SUS e cobranças dos que têm de Atenção à Saúde da Mulher Iniciar a experiência de

recursos para pagar. (PAISM). Aprovação pelo recuperação de custos eConselho Nacional de Medicina estendê-la a outras atividades.Supletiva (Consu) de resolução para recuperar custos dosserviços do SUS utilizados porbeneficiários de planos privadosde saúde.

Financiamento Instabilidade das fontes de Definir fontes exclusivas de Aprovação da CPMF como fonte Estudos que permitam definir financiamento. recursos para o setor, bem como o exclusiva de recursos para o um novo modelo de financia-

comprometimento de maiores setor. mento do sistema. Estudos queIneficiência no uso dos recursos. parcelas dos orçamentos dos permitam definir os itens que

Estados e municípios. Priorizar a Aprovação do PAB. deverão compor o PAB, deatenção básica de acordo com o acordo com as prioridadesperfil epidemiológico. dadas pela carga de enfermida-

de. Implantação do“Cartão SUS”.

Eqüidade Assimetria de informação entre Incentivar o uso de estratégias que Implementação progressiva dosusuários ricos e pobres. busquem ativamente a proteção programas de Agentes

dos usuários mais pobres. Comunitários de Saúde (PACS)Deseconomias de aglomeração, Priorizar a oferta pública para os e Saúde da Família (PSF).beneficiando os mais ricos. mais pobres nos bairros mais Ampliação da Oferta de Serviços

distantes. nas regiões mais carentes –implantação do PACS e do PSF.

Seleção adversa, segundo o valor Incentivar melhor remuneração Implantação do PAB. Definição do valor dosdo procedimento, beneficiando a para os serviços de maior custo procedimentos incentivadosalta complexidade. efetivo. pelo PAB, no nível dos Estados

e municípios.Sistemas regidos pela oferta Estabelecer sistemas debeneficiam os que têm mais capacitação com subsídios de Recuperação dos custosinformação. demanda diferenciados por para o SUS dos usuários dos

capacidade de pagamento. planos privados de saúde.

Descentralização Transferências negociadas Usar transferências automáticas, Implantação do PAB, Transferências automáticas debeneficiam os municípios com em bases per capita. PAF e PCCN. recursos para o PAF e o PCCN.melhor capacidade de oferta deserviços. Flexibilizar o uso de diferentes Implantação dos mecanismos deRigidez do modelo impede mecanismos de gestão e torná-los controle e avaliação da gestãosoluções mais adequadas no independentes dos recursos municipal do PAB. nível local. transferidos.

(Continua)

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SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

QUADRO 1

Principais Desafios, Problemas, Soluções e Estratégias de Implementação Utilizadas na Reforma de SaúdeBrasil, a partir de 1996

Desafio Problema SoluçãoMedidas Medidas emImplementadas Implementação

Gestão Estabelecimentos de saúde Implementar um processo de Existem algumas experiênciasprestam serviços de baixa acreditação e licenciamento dos estaduais que vêm sendoqualidade. estabelecimentos de saúde. observadas pelo Ministério da

Saúde, como as do Rio GrandeInsuficiente capacidade técnica Implantação de processos de do Sul, São Paulo e Riodos Recursos Humanos. certificação e recertificação de Janeiro.

periódica de profissionais deFraudes propiciam forte nível superior.desperdício dos recursos gastosem assistência médica. Capacitação de profissionais de O PACS e o PCF têm programas O programa de formação do

nível médio nos hospitais e postos especiais de capacitação de auxiliar de enfermagemFalta de autonomia de gestão das de saúde. Fim do Sistema de AIH profissionais de saúde nos (Profae) vai desenvolverunidades de saúde. no âmbito federal. Estados e municípios. programas específicos.

Criação de mecanismos de O PAB inicia o processo.controle e avaliação nos Estadose municípios. Existem algumas experiências

de contratos de gestão eTornar independente a gestão dos organizações sociais emestabelecimentos públicos de estabelecimentos públicossaúde. de saúde.

Falta de regulamentação do setor. Estabelecimento de regras para a No início de 1998 foi aprovada a O Ministério da Saúde estáregulação dos planos privados de Lei de Regulamentação dos preparando, através dosaúde. Planos provados de saúde, Departamento de Medicina

criando o Conselho de Medicina Supletiva, a legislaçãoRegulação dos processos de Supletiva (Consu). complementar para agestão do SUS nos Estados e implementação das medidasmunicípios. O PAB inicia o processo. de regulação dos planos

privados de saúde.Fonte: Médici, 1999. (Conclusão)

A taxa de utilização das pessoas sem restrição de ativi-dades também mostra diferenças desfavoráveis ao Nor-deste, embora menos significativas. A análise dos dadosda PNSN, ao final dos 80, mostra uma taxa de utilizaçãode 10,23 por 100 habitantes no Nordeste e de 14,55 por100 habitantes no Sudeste. Já as informações da PPV,quase dez anos depois, indicam que as taxas baixaram para9,04 por 100 habitantes no Nordeste e para 11,32 por 100habitantes no Sudeste. A razão de utilização entre Sudes-te e Nordeste, por sua vez, baixou de 1,42 para 1,25 noperíodo 1989-1996/97. Isso implicou uma queda de qua-se 12%, ainda que nas duas regiões as taxas de utilizaçãopara as pessoas sem restrição de atividades tenham dimi-nuído em algum período.

As oportunidades de acesso aos serviços para os indi-víduos mais pobres diminuem nas duas regiões. Utilizan-do-se a renda como proxy das condições sociais, verifi-cam-se as piores oportunidades de utilização de serviçospor parte de indivíduos pertencentes ao primeiro tercil derenda em relação aos indivíduos situados no terceiro tercil.No Nordeste, em 1989, a oportunidade de acesso era 52%menor para o primeiro tercil. Oito anos mais tarde essediferencial baixou para 37%. No Sudeste, as oportunida-des do primeiro tercil na utilização de serviços de saúdeeram 40% e 35% menores do que dos indivíduos do ter-ceiro tercil, respectivamente, em 1989 e 1996/97. Note-se que no Nordeste, ainda assim, houve uma melhoria noacesso da população de menor renda.

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No que diz respeito à utilização de serviços, propria-mente dita, o estudo mostra que:- há maior participação relativa da utilização de postose centros de saúde no Nordeste, em relação à maior par-ticipação de clínicas e consultórios privados na RegiãoSudeste;- há aumento expressivo de hospitais como locus de con-sumo de serviços de saúde nas duas regiões, particular-mente no Nordeste;- as pessoas de maior renda utilizam mais consultóriosparticulares e clínicas, enquanto as de menor renda, prin-cipalmente postos e centros de saúde;- em ambas as regiões, os indivíduos de renda mais altautilizam proporcionalmente mais serviços ambulatoriais,enquanto os serviços hospitalares tendem a aumentar coma diminuição da renda.

Estudo de Campino et al. (1998), também analisado porPiola em NEPP (1999), utilizando os dados da PPV, for-nece outras informações importantes sobre a utilização ea demanda por serviços, segundo pessoas em diferentesestratos de renda.

Com relação à percepção do estado de saúde, cerca de81% da população avalia seu estado de saúde como exce-lente, muito bom ou bom. A percepção positiva é maisforte quanto maior o nível de renda, pois no primeiro quintil76,2% dos indivíduos possuem essa auto-avaliação, en-quanto no último ela atinge 87,5%.

Curiosamente, a existência de problemas crônicos desaúde (15,4% no total da população) não apresenta gran-de variação entre os estratos de renda: 12,30% no primei-ro e 15,4% no último quintil.

As diferenças começam a se tornar mais evidentes quan-do a pesquisa verifica a utilização de acompanhamentomédico: enquanto 54,7% dos indivíduos mais pobres têmacompanhamento médico em decorrência de problemacrônico de saúde, no estrato mais alto 82,9% dos indiví-duos declaram ter acesso a esse tipo de serviço.

Nota-se, entretanto, que o local onde é realizado esseacompanhamento é predominantemente a rede pública,para todos os estratos de renda, com exceção do último.

Os mais ricos também fazem exames periódicos commaior freqüência: a realização de exames periódicos emdecorrência do problema crônico de saúde é progressiva-mente maior, conforme o estrato de renda: 60,9% dos in-divíduos do primeiro quintil e 82,5% do último.

A procura por atendimento médico nos últimos 30 diastambém é progressivamente maior à medida que a renda

cresce: 47,2% dos indivíduos no estrato de mais baixarenda buscaram algum tipo de atendimento médico, per-centual que se eleva para 68,9% entre os indivíduos doúltimo quintil de renda.

A procura por atendimento derivada de outro motivo,12

exceto doença crônica, também é maior entre os indiví-duos mais ricos: 13,5% dos indivíduos de maior rendaprocuraram atendimento, enquanto entre os mais pobreso percentual encontrado foi de 7%. É relevante notar queentre os motivos da procura, a realização de check-up,portanto uma atividade típica de prevenção, correspondea 28,5% entre os mais ricos e a apenas 13,9% entre osmais pobres.

MEDIDAS GOVERNAMENTAIS RECENTES:UMA VISÃO SINTÉTICA

As questões indicadas nos itens anteriores, que exami-nam diferentes aspectos da realidade do atendimento àsaúde no Brasil após uma década de implantação do SUS,mostram que é preciso avançar na implementação de alte-rações estruturais nas formas de organização, gestão,regulação, controle e avaliação da oferta de serviços. Al-gumas medidas já estão sendo tomadas e vários desafiossendo enfrentados, sem que entretanto possa se visualizaruma agenda completa e consistente de intervenção do Po-der Público. As medidas governamentais recentes foramsintetizadas em Médici (1999) e são reproduzidas no qua-dro a seguir. Note-se que as medidas em estágios diferen-ciados de implementação e com resultados ainda poucoavaliados, dado o caráter recente da maioria delas, apro-ximam-se dos dois eixos principais de mudança já identi-ficados na análise da literatura internacional realizada naprimeira seção deste trabalho. Em outras palavras, no planomais geral, a reforma brasileira busca focalizar as ques-tões do financiamento no nível macro e da gestão tantono nível macro quanto microorganizacional.

Alguns problemas estruturais persistem. Dentre eles sedestacam:- ausência de um sistema de planejamento e controle daoferta de serviços eficaz e que proporcione informaçõesestratégicas de apoio à decisão alocativa no nível central,regional e inter-regional;- falta de mecanismos institucionais eficazes para a cria-ção e sustentação de bases consensuais mínimas para im-pulsionar um processo renovado de contratualização en-tre provedores, financiadores e reguladores (inexistênciade relações de confiança);

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SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

- forte tendência de veto à contratualização por parte dosatores sociais que devem ser protagonistas das mudanças;- dificuldades para o estabelecimento de um “pagadorúnico” e de formas de participação mais eqüitativas nofinanciamento do sistema (universalidade versus gratui-dade);- problemas nas relações entre níveis de governo:indefinição do papel da esfera estadual; dificuldades nasrelações horizontais no nível municipal.

DILEMAS E PERSPECTIVAS DO SUS

A despeito da complexidade dos problemas de ordena-mento e acesso, tal como demonstrado anteriormente nesteartigo, é possível identificar elementos propulsores àimplementação de alterações para superar os obstáculosidentificados. Entre outros, cabe lembrar: o perfil do pro-cesso de descentralização, em curso, é favorável em grandeparte de seus aspectos; existem recursos para investimen-to que, se utilizados como vetores de reorientação da ofertavia Reforsus, auxiliaram na obtenção de maior eficáciada rede de serviços; formas de organização da adminis-tração pública brasileira, principalmente pós-Plano Dire-tor da Reforma Administrativa e no âmbito de um novogoverno com perfil desenvolvimentista, podem garantir aflexibilidade e autonomia necessárias para o funcionamen-to das redes prestadoras de serviço, permitindo maior con-trole da oferta; formato dos mecanismos de financiamen-to setorial pode tornar-se proativo, por exemplo, atravésda adoção de vinculações institucionais associadas aoestabelecimento de pisos básicos em todos os níveis deatendimento, auxiliando uma sistemática de contra-tualização que efetivamente seja aderente às necessida-des e prioridades diferenciadas de atendimento, hierar-quizadas por ações de planejamento, avaliação e controle;reestruturação, em curso, da Atenção Primária abre boaspossibilidades para o estabelecimento de uma porta deentrada mais resolutiva e eficaz; já existem várias inova-ções organizacionais e gerenciais em andamento e coe-rentes com uma mecânica de contratualização que viseaumentar os níveis de acesso, cobertura e ordenamentodas ações e serviços.

NOTAS

1. Para uma competente e sintética revisão das lições internacionaisacerca dos experimentos nacionais de reforma setorial, em curso des-

de meados dos anos 80 vide Ham (1998). Esta introdução baseia-senuma livre interpretação de várias idéias contidas nesse livro.

2. Artigo 196, constante do Capítulo da Saúde da Constituição Fede-ral da República Federativa do Brasil.

3. Sobre as características da política de atenção à saúde no Brasil, atéos anos 80, vide entre outros Braga e Góes de Paula (1981), Oliveira eFleury (1985), Silva (1984) e Médici (1999).

4. Trata-se aqui das clínicas e hospitais privados, muitas vezes vol-tados, originalmente, ao atendimento de determinados grupos étni-cos – judeus, sírio-libaneses, alemães, espanhóis, etc. –, mas queconstituem hoje a rede hospitalar privada mais complexa (os hos-pitais de cinco estrelas) atendendo outros clientes privados (pessoasfísicas ou jurídicas) e seguros médicos de mais alto padrão, dada asua excelência e mantendo na maioria das vezes um atendimentogratuito, como parte da manutenção de sua condição jurídica deentidades filantrópicas. Isso possibilita vantagens fiscais e tributá-rias significativas, entre outras.

5. Médici (1999) analisando os dados da PNAD 1986, comenta que opagamento também se verificou nas famílias de maior renda, emborapor razões diametralmente opostas: neste caso as razões declaradasforam a baixa qualidade dos serviços públicos e conseqüentemente umamaior preferência pelos serviços oferecidos pelo segmento privado au-tônomo.

6. No caso da farmácia, os autores alertam que os dados indicam seresse um padrão comum a todas as classes de renda, indicando que aautomedicação ou a medicação realizada pelo balconista do estabele-cimento era corrente e disseminada no Brasil. Para fins da argumenta-ção deste artigo, sugere-se que para os segmentos mais pobres essa erae continua sendo muitas vezes a única alternativa e por isso a alterna-tiva preferencial, o que não é verdade para os segmentos de renda maisalta.

7. Este número foi obtido subtraindo-se do total da população brasi-leira as pessoas atendidas pelo setor de medicina supletiva.

8. A pesquisa foi de caráter nacional, realizada no período de 12 a 17de fevereiro de 1998, tendo como universo a população de idade igualou superior a 16 anos. Foram realizadas 2 mil entrevistas pessoais do-miciliares, selecionadas a partir de amostra elaborada por cotas pro-porcionais: sexo, idade, atividade e localização geográfica. Essa amostrarepresenta cerca de 106 milhões de habitantes adultos e 40 milhões dedomicílios.

9. Não cabe, no âmbito deste trabalho, analisar as modificações noprocesso de financiamento setorial e que determinaram as flutuaçõese a turbulência acima apontadas, especialmente quando a diversifica-ção prevista em 1988 não foi suficiente para, dada a crise financeirada Previdência Social, evitar o desfinanciamento quase completo dapolítica, corrigida de forma provisória posteriormente. Esse fato de-terminou uma forte deterioração das relações entre prestadores efinanciadores e a alteração do perfil e da forma de funcionamento dosetor privado e do próprio setor público na área hospitalar. Maioresdetalhes em Médici (1999), Barros, Piola e Vianna (1996), entre ou-tros.

10. Para uma discussão detalhada acerca das diferenças metodológicasentre esses dois estudos vide o trabalho de Sérgio Piola em NEPP(1999).

11. Esse trabalho analisa as desigualdades geográficas e sociais na utili-zação dos serviços de saúde no Brasil com base nos dados da PesquisaNacional de Saúde e Nutrição (PNSN), realizada em 1989 e da Pesquisasobre Padrões de Vida (PPV), de 1996/97, ambas realizadas pela Funda-ção Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As duas pes-quisas têm abrangência desigual: a PNSN incorporou as cinco regiõesgeográficas do país enquanto a PPV cobriu somente as Regiões Nordestee Sudeste. A comparação, a despeito das limitações decorrentes dessasdiferenças, é relevante para os propósitos deste trabalho. Nesse estudo, osautores analisam as variações nas taxas de utilização dos serviços de saú-

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de, padronizadas por idade e sexo, calculando-se as taxas gerais e para osgrupos com e sem morbidade. Considerou-se grupo sem morbidade aque-le em que não existe referência a qualquer restrição de atividades em de-corrência dessa particular situação.

12. Foram pesquisados os seguintes motivos, nessa categoria: aciden-te ou lesão, problema odontológico, check-up, parto, obtenção de ates-tado, tratamento de reabilitação, pré-natal, vacinação e outros.

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SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

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A

REDE DE SAÚDE DO TRABALHADORPARA O ESTADO DE SÃO PAULO

Atenção Primária à Saúde (APS) constitui-sena forma de organização de serviços de saúdeque vem obtendo consenso mundial como a

Resumo: O artigo reúne documentos do Ministério da Saúde e contribuições dos membros da Comissão Intra-Setorial de Saúde do Trabalhador, criada para integrar e harmonizar o trabalho dos diversos setores da Secre-taria de Estado da Saúde de São Paulo que lidam com a questão saúde e trabalho. Esta comissão elaborou oPlano de Ações de Saúde do Trabalhador para o Estado de São Paulo (triênio 2002-2003-2004) que estabele-ceu, como principal prioridade, a concepção de um modelo para a área de saúde do trabalhador sob a perspec-tiva de rede de referências técnicas em assistência, vigilância e formação/capacitação.Palavras-chave: saúde e trabalho; saúde e setor público; ações de saúde.

Abstract: This article considers various Ministry of Health documents and contributions by members of theIntra-Sectorial Commission on Workers’ Health, created to integrate and harmonize the work of various sectorsof the São Paulo State Secretariat of Workers’ Health to address the issue of health and labor. This commissiondeveloped the Action Plan for Workers’ Health for the State of São Paulo (for the years 2002-2003-2004),which set as its top priority the creation of a model for workers’ health that envisioned a network of technicalreferences for treatment, prevention, and training.Key words: health and labor; health and the public sector; health initiatives.

KOSHIRO OTANI

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 86-97, 2003

solução para os diferentes problemas de saúde de dife-rentes países.

Na década de 80, a Organização Mundial da Saúde sobo lema de “Saúde para Todos no Ano 2000” insistia nanecessidade de uma organização de serviços primários emtodos os países, e no Brasil várias propostas tomaram for-ma desde o Prev-Saúde e mais recentemente a do Progra-ma de Saúde da Família (PSF).

Naqueles idos, o campo da APS permanecia indefini-do, com atribuições e limites imprecisos, estando claroapenas que devia preocupar-se com os “principais proble-mas de saúde da comunidade”, prestando serviços de “pro-moção, prevenção, tratamento e reabilitação, necessáriospara resolver estes problemas” (Declaração de Alma-Ata,aprovada pela 32a Assembléia Mundial de Saúde e 34a

Assembléia das Nações Unidas).De lá pra cá, a definição do campo da APS no Brasil

passou por um período de reflexão importante em que sediscutiu a ordem de prioridade dos diferentes problemasde saúde do país, bem como o volume de recursos possí-

veis e disponíveis. A APS deve ser consoante às condi-ções socioeconômicas e culturais de cada Estado, de cadaregião e de cada centro urbano, e deve ter grau de com-plexidade compatível com o grau de desenvolvimentoeconômico e efetiva demanda social.

Nesse processo, a saúde do trabalhador no SistemaÚnico de Saúde (SUS) que, embora amparada por abun-dante jurisprudência, continua ineficiente, diante da inca-pacidade operacional dos setores que o compõem em ra-zão de problemas de ordem estrutural e conjuntural naconstrução da área de saúde do trabalhador no SUS1 como:- ausência de uma cultura institucional sanitária em facedos problemas decorrentes da relação saúde e trabalho;- a face intensamente ideologizada da área, que implicaresistências de caráter político-partidário nos diversosníveis de gestão;- a dificuldade implicada na visualização da inserçãoinstitucional da área;- caráter inovador da área confrontado à própria aborda-gem do setor saúde, em relação a estruturas cristalizadascomo Vigilância Epidemiológica, Vigilância Sanitária esetores assistenciais;

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REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

- a alta complexidade da abordagem, tanto no aspectonormativo quanto operacional;- a deficiência quantitativa e a baixa qualificação dosquadros generalistas do SUS.

SITUAÇÃO ECONÔMICA-SOCIAL NOESTADO DE SÃO PAULO

A evolução da população economicamente ativa (PEA)no Estado de São Paulo encontra-se nas Tabelas 1 e 2,nas quais se constata, nas duas últimas décadas, um cres-

cimento predominantemente no setor terciário, o de pres-tação de serviços. Observa-se, também, na Tabela 3 umcrescimento de trabalhadores não-contribuintes. Eles re-presentam quase 40% da PEA.

A Tabela 4 exibe a ocupação das pessoas de 10 anos oumais de idade, segundo os ramos de atividades e condiçãode contribuintes, e a Tabela 5 apresenta o baixo rendimentofamiliar ou mesmo sem rendimento, cuja assistência à saúdedepende exclusivamente do SUS.

O PAPEL DA SECRETARIA DE ESTADODA SAÚDE

A Coordenação dos Institutos de Pesquisa (CIP), con-siderando a necessidade de implementar as políticas eações de saúde do trabalhador no estado de São Paulo,resolveu publicar a portaria que instituiu a Comissão Intra-Setorial de Saúde do Trabalhador (São Paulo, 2001).

A comissão tem a finalidade de propor medidas comvista na articulação às políticas e coordenar as ações desaúde do trabalhador na Secretaria de Estado da Saúde,na área da Saúde do Trabalhador, com integração dos se-tores internos que atuam ou possam influenciar nessa áreaem suas competências e atribuições, com o objetivo demaior eficácia dessas políticas e ações.

O Secretário de Estado da Saúde referendou a comis-são (São Paulo, 2002), sem prejuízo das atribuições dossetores que a compõe, com as seguintes atribuições de:I – propor estratégias e táticas para implantar a NormaOperacional de Saúde do Trabalhador – Nost-SUS (Brasil,1998);2

II – implantar o plano de ações de saúde do trabalhadorpara o Estado de São Paulo, triênio 2001/2003;

TABELA 1

População Economicamente Ativa, segundo Setores de Atividade EconômicaEstado de São Paulo – 1980-1999

Setores de Atividade 1980 1989 1999

TOTAL 10.236.019 14.379.365 15.412.014PrimárioAgrícola 1.175.002 1.038.360 1.151.325SecundárioIndústria de Transformação 3.068.936 4.062.989 2.780.628Indústria da Construção 795.313 914.237 1.112.013Outras Atividades Industriais 134.193 143.370 131.438TerciárioComércio 1.102.525 1.877.242 2.345.048Prestação de Serviços 1.946.814 2.590.197 3.469.528Serviços Auxiliares de Atividade Econômica - 648.026 960.114Transporte e Comunicações 486.319 637.747 743.730Social 727.267 1.315.867 1.637.498Administração Pública 360.868 555.498 641.959Outras Atividades 438.782 595.832 438.733

Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1980, 1989, 1999. Anuário Estatístico – Brasil.

TABELA 2

População Economicamente Ativa (PEA) e Taxas de CrescimentoRelativas e Absolutas, segundo Setores de Atividade

Estado de São Paulo – 1980-1999

População Economicamente Ativa Taxas de Crescimento (%)

Setores 1980 1989 1999 1980 - 1989 1989 - 1999

Nos Absolutos % Nos Absolutos % Nos Absolutos % Absoluta Relativa Absoluta Relativa

Total 9.636.019 100,00 15.479.373 100,00 15.412.014 100,00Primário 1.175.002 12,19 1.038.368 6,70 1.151.325 7,47 -11,63 -43,89 10,88 11,49

Secundário 3.398.442 35,27 5.920.596 38,25 4.024.079 26,11 74,22 10,58 -30,34 -31,74

Terciário 5.062.575 52,54 8.520.409 55,05 10.236.610 66,42 68,30 3,08 20,14 20,65

Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1980, 1989, 1999.

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TABELA 3

Pessoas de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Semana de Referência, por Contribuiçãopara Instituto de Previdência no Trabalho Principal, segundo Grupos de Idades

Estado de São Paulo – 1999

Contribuição para Instituto de Previdência no Trabalho Principal

Grupos de Idade Total Contribuintes Não-Contribuintes

Nos Absolutos % Nos Absolutos % Nos Absolutos %

Total 15.412.014 100,00 9.436.856 61,23 5.975.158 38,87

10 a 14 Anos 154.173 100,00 9.267 6,01 144.906 93,98

15 a 19 Anos 1.297.295 100,00 547.522 42,23 749.773 57,77

20 a 24 Anos 2.146.341 100,00 1.392.370 64,87 753.971 35,13

25 a 29 Anos 1.980.321 100,00 1.344.337 67,88 635.984 32,12

30 a 39 Anos 4.129.249 100,00 2.780.617 67,34 1.348.632 32,66

40 a 49 Anos 3.255.742 100,00 2.091.594 64,25 1.164.148 35,75

50 a 59 Anos 1.665.404 100,00 972.926 58,42 692.478 41,58

60 Anos ou mais 778.437 100,00 295.698 37,98 482.739 62,02

Idade Ignorada 5.052 100,00 2.525 49,98 2.527 50,02

Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1999.

TABELA 4

Pessoas de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Semana de Referência, por Contribuiçãopara Instituto de Previdência, no Trabalho Principal, segundo Ramos de Atividade

Estado de São Paulo – 1999

Contribuição para Instituto de Previdência no Trabalho Principal

Setores de Atividade Total Contribuintes Não-Contribuintes

Nos Absolutos % Nos Absolutos % Nos Absolutos %

TOTAL 15.412.014 100,00 9.436.856 61,23 5.975.158 38,77PrimárioAgrícola 1.151.325 100,00 434.939 37,78 716.386 62,22SecundárioIndústria de Transformação 2.780.628 100,00 2.205.284 79,30 575.344 20,69Indústria da Construção 1.112.013 100,00 358.019 32,19 753.994 67,81Outras Atividades Industriais 131.438 100,00 116.271 88,46 15.167 11,54TerciárioComércio 2.345.048 100,00 1.357.029 57,86 988.019 42,14Prestação de Serviços 3.469.528 100,00 1.527.095 44,02 1.942.433 55,98Serviços Auxiliares de Atividade Econômica 960.114 100,00 623.204 64,90 336.910 35,10Transporte e Comunicações 743.730 100,00 514.620 69,19 229.110 30,81Social 1.637.498 100,00 1.378.072 84,16 259.426 15,84Administração Pública 641.959 100,00 568.658 88,58 73.301 11,42Outras Atividades 438.733 100,00 353.665 80,61 85.068 19,39

Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1999.

III – colaborar na elaboração e atualização de normas técni-cas relativas à área de saúde e trabalho bem como no estudoe formulação de propostas relativas à saúde ambiental;

IV – coordenar programas, cursos e projetos de capacitação,treinamento, aperfeiçoamento e educação na área de saúdee trabalho, tanto para trabalhadores dos diferentes ramos deatividades como para técnicos da área;

V – propor convênios com instituições para fins de apri-moramento de suas atividades;

VI – atuar de forma articulada e integrada com as demaisunidades pertencentes ao SUS ou não;

VII – promover e participar de investigações e pesquisas cien-tíficas em seu campo de abrangência e criar mecanismos paraa divulgação de sua produção técnico-científica.

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REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

Os setores internos da SES-SP, participantes da coorde-nação, são: Coordenação dos Institutos de Pesquisa (CIP);Divisão de Vigilância em Saúde do Trabalhador do Cen-tro de Vigilância Sanitária (DVST/CVS); Divisão de Doen-ças Ocasionadas pelo Meio Ambiente do Centro de Vigi-lância Epidemiológica (Doma/CVE); Instituto Adolfo Lutz(IAL); Centro de Referência em Saúde do Trabalhador(Cerest); Coordenadoria de Planejamento em Saúde (CPS);Coordenadoria de Saúde do Interior (CSI); Coordenadoriade Saúde Regional da Grande São Paulo (CSRGSP);Coordenadoria de Recursos Humanos (CRH); Instituiçãoconvidada: Conselhos dos Secretários Municipais de Saúde(Cosems).

ATRIBUIÇÕES DA COMISSÃOINTRA-SETORIAL ESTADUAL

No campo das ações técnicas, a Comissão Intra-setorialEstadual atua como referência na formulação, informação,articulação, capacitação de recursos humanos, desenvol-vimento de estudos e pesquisas e acompanhamento deprojetos e programas em saúde do trabalhador.

Nas ações administrativas, supervisiona, controla eavalia qualidade de resultados e grau em que as políticasalcançam seu propósito.

A articulação política com os municípios será feita emconjunto com as Direções Regionais de Saúde (DIR) e

Cosems. As DIRs deverão organizar-se para consolidar-se como referência regional nos campos da informação ecapacitação, propiciando a articulação e integração entreos municípios na construção de redes de referência e con-tra-referência nas ações de assistência e vigilânciaepidemiológica e sanitária.

A coordenação promoverá a articulação necessária comoutras entidades e órgãos públicos federais, estaduais emunicipais, instituições universitárias, com representaçõesde trabalhadores, de empresários, e pode criar comissõesou grupos de trabalho, permanentes ou provisórios.

PRESSUPOSTOS BÁSICOS

A saúde do trabalhador no SUS configura-se como umcampo do saber que se preocupa com as relações entre otrabalho e o processo saúde e doença, desde a atençãobásica até o nível terciário.

Considerando que a atuação da saúde do trabalhadorno SUS perpassa em ações de vigilância, informação eassistência, a coordenação, para elaborar seu plano deações, adotou os pressupostos básicos constantes na Nor-ma Operacional de Saúde do Trabalhador:- universalidade e eqüidade de acesso a todos os níveisde atenção à saúde;- integralidade das ações individuais/curativas e coleti-vas de vigilância em saúde;

TABELA 5

Famílias Residentes em Domicílios Particulares e Valor do Rendimento Médio Mensal,segundo as Classes de Rendimento Mensal Familiar

Estado de São Paulo – 1999

Classes de Rendimento Famílias Residentes Valor do Rendimento Médio Mensal (em R$)

Mensal Familiar (1) Total Urbana Rural Total Urbana Rural

Total 10.697.950 10.015.260 682.690 1.231 1.262 788Até 1 Salário Mínimo 425.436 386.664 38.772 124 123 126Mais de 1 a 2 Salários Mínimos 826.451 716.041 110.410 221 222 213Mais de 2 a 3 Salários Mínimos 1.306.564 1.179.292 127.272 343 344 339Mais de 3 a 5 Salários Mínimos 1.973.756 1.816.151 157.605 538 538 535Mais de 5 a 10 Salários Mínimos 2.827.836 2.698.880 128.956 961 962 936Mais de 10 a 20 Salários Mínimos 1.677.898 1.610.475 67.423 1.891 1.892 1.875Mais de 20 Salários Mínimos 1.021.678 1.001.451 20.227 5.051 5.027 6.266Sem rendimento (2) 336.044 314.134 21.910 - - -Sem declaração (3) 302.287 292.172 10.115 - - -Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1999.(1) Exclusive os rendimentos das pessoas cuja condição na família era pensionista, empregado doméstico e parente de empregado doméstico.(2) Inclusive as famílias cujos componentes receberam somente em benefícios.(3) Exclusive as famílias sem declaração do valor do rendimento.Nota: Valor do salário mínimo em maio de 1999: R$ 136,00.

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- direito a informação;- participação e controle da sociedade;- regionalização e hierarquização;- critério epidemiológico no estabelecimento de priori-dades.

O Plano de ações de saúde do trabalhador, a que se refereo item II da resolução da SES, estabeleceu as seguintes prio-ridades para o triênio 2002-2003-2004 (Quadro 1).

REGIONALIZAÇÃO DAS AÇÕESDE SAÚDE DO TRABALHADOR

A complexidade do processo saúde-doença-trabalhoexige para o sucesso de uma medida sanitária umareorientação de valores socialmente definidos bem comouma infraestrutura sólida que a viabilize. Isso significa umapolítica de saúde, um conjunto de medidas orientadas ideo-logicamente e que permeiem as instituições sociais públi-cas e privadas, o que coloca o bem-estar dos trabalhado-res como objetivo central.

Nessa análise, uma rede estadual de saúde do trabalha-dor deve servir à hierarquização dos diferentes serviços aserem oferecidos à clientela, com garantia de acesso aosrecursos mais sofisticados, mas com racionalização de suautilização de forma que se evite as distorções que se ob-servam na ausência de uma rede quando esse acesso ficaà sorte do trabalhador.

Em busca da consolidação da área de Saúde do Traba-lhador no SUS/SP, um dos desafios que se apresenta é acriação de um modelo regionalizado de ações que possi-bilite melhor compreensão das realidades locais.

Considerando-se os dispositivos emanados pelo Minis-tério da Saúde na Norma Operacional de Saúde do Traba-lhador (Nost/SUS) e na Norma de Assistência à Saúde(Noas), (Brasil, 2002b), as instâncias da SUS devem-seadaptar às novas exigências para a construção de modelode saúde do trabalhador para o Estado de São Paulo.

O papel a ser exercido pela comissão intra-setorial emnível central e as Direções Regionais (DIR), em nível re-gional, é o de estabelecer as políticas e as diretrizes emsaúde do trabalhador, disseminando-as aos diversos ní-veis de complexidade do SUS.

As atribuições dessa instância central e regionais se-riam as de normalizações técnicas, as relações intra e inter-setoriais, o macroplanejamento, a capacitação de recur-sos humanos e a consolidação de macroindicadores, bemcomo o estabelecimento de mecanismos de avaliação, deauditoria e de gestão político-estratégica, segundo o pre-conizado pela Nost.

Já os municípios ou os consórcios municipais teriampapéis e estrutura hierarquizada definida pela Nost/98,conforme o esquema, a seguir, preparado pela comissãointra-setorial de saúde do trabalhador da SES-SP, comações de atenção básica, secundária e terciária preconiza-dos pelo Ministério da Saúde.

QUADRO 1

Plano de Ações de Saúde do TrabalhadorEstado de São Paulo – 2002-2004

Prioridades Responsáveis

Conceber um modelo para a área de saúde do trabalhador sob a perspectiva de uma rede Comissão

Pactuar a implantação de um sistema de informação em saúde do trabalhador CVE/CVS/Cerest

Implantar a Nost nos municípios do Estado de São Paulo Cosems/CIP/CSI/CSRGSP/CCSS

Constituir a comissão interinstitucional em saúde do trabalhador no âmbito dos Conselhos Municipais de Saúde Cosems/CSI/CSRGSP

Implantar a Rede de Cuidados Integrais LER/DORT nos municípios no Estado de São Paulo Cerest/CSI/CSRGSP

Reduzir o número de acidentes do trabalho, acidente típico mais acidente de trajeto no mercado formal Comissão

Reduzir o número de casos de doenças ocupacionais no mercado formal Comissão

Reduzir a mortalidade por acidentes do trabalho em motoristas e na construção civil no Estado de São Paulo Comissão

Reduzir a exposição ao fator risco químico, com ênfase ao benzeno, mercúrio e agrotóxico IAL/CPS/CVS/CVE/Cerest

Banir o amianto Comissão

Fonte: SES.

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REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

Gestão Plena da Atenção Básica – Garantir atendimentode acidente do trabalho e ao suspeito/portador de DP/DT:- realizar ações de vigilância nos ambientes e processosde trabalho;- notificar os agravos à saúde e dos riscos relacionadoscom o trabalho;- sistematizar/analisar dados gerados no atendimento aosagravos à saúde relacionados ao trabalho, de modo que sepossa orientar intervenções de vigilância/organização dosserviços;- alimentar sistemas de informação de órgãos/serviços devigilância e bases de dados de interesse nacional;- manter unidade especializada de referência em ST.

Gestão Plena do Sistema Municipal – Emitir laudos/re-latórios sobre agravos relacionados com o trabalho ou li-mitações deles resultantes:- instituir/operacionalizar sistema de referência para aten-dimento ao AT e ao suspeito/portador de DP/DT, dandosuporte técnico para o estabelecimento da relação do nexocom o trabalho, confirmação diagnóstica, tratamento, re-cuperação e reabilitação da saúde;- realizar ações de vigilância nos ambientes e processosde trabalho contemplando levantamento/análise de infor-mações, inspeção sanitária, identificação/avaliação das

situações de risco, elaboração de relatórios, aplicação deprocedimentos administrativos, investigação epidemio-lógica;- instituir/manter cadastro atualização das empresas comidentificação dos fatores de risco que possam ser geradospara o contingente populacional, direta/indiretamente aeles expostos;- manter unidade especializada de referência em ST.2

Normas de Assistência à Saúde/Norma Operacionalde Saúde do Trabalhador

Gestão Avançada e Plena do Sistema Estadual – Res-peitadas as responsabilidades/ prerrogativas dos Municí-pios habilitados:- controlar a qualidade das ações de ST desenvolvidaspelos Municípios conforme mecanismos de avaliação de-finidos em conjunto com as SMSs;- definir, com Municípios, mecanismos de referência/con-tra-referência e outras medidas necessárias para o pleno de-senvolvimento das ações de assistência e vigilância em ST;- capacitar recursos humanos para a realização das açõesde ST em seu âmbito de atuação;- estabelecer rotina de sistematização/processamento/análise de dados sobre ST gerados nos Municípios e em

QUADRO 2

Ações de Saúde do Trabalhador

Responsabilidades Atividades

Atenção Básica

Controle dos Acidentes e Doenças Relacionadas ao Trabalho • Identificação das situações de risco no território (cadastro de empresas, ambientes de trabalho,

número de trabalhadores, números de crianças expostas ao trabalho infantil e tipos de agravos).

• Detecção de suspeitos dos agravos relacionados ao trabalho (acidente e doenças

relacionadas ao trabalho).

• Registro ou notificação dos casos de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.

• Encaminhamento para Assistência Especializada.

• Ações educativas junto aos trabalhadores e empresas.

Atenção Secundária e Terciária

Controle dos Acidentes e Doenças Relacionadas ao Trabalho • Confirmação diagnóstica e registro/notificação.

• Acompanhamento dos casos confirmados.

• Vigilância em Ambientes de Trabalho.

• Ações educativas junto aos trabalhadores e empresas.

Fonte: Comissão de Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde.Nota: Esquema aprovado em Reunião no Conselho Nacional de Saúde, 2001.

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seu próprio campo de atuação mais rotina de alimentaçãoregular das bases de dados estaduais e municipais;- elaborar perfil epidemiológico da ST no Estado para sub-sidiar programação/avaliação das ações de atenção à ST;- prestar cooperação técnica aos Municípios para o de-senvolvimento de ações de ST;- instituir/manter cadastro atualização das empresas comidentificação dos fatores de risco que possam ser geradospara o contingente populacional, direta/indiretamente aeles expostos;- manter unidade especializada de referência em ST.2

Delineada as diretrizes para a regionalização e defini-das as ações, a estratégia seguinte é criar uma grande malhacom as seguintes características:

CARACTERÍSTICAS DE UMA REDE DESAÚDE DO TRABALHADOR

A organização de uma rede primária de assistência àsaúde do trabalhador surge como resposta à preocupaçãode universalização do acesso aos serviços de saúde, de-terminada jurídica e legalmente pela Constituição e pelaLei Orgânica da Saúde, e obedece a idéia de racionaliza-ção da utilização dos recursos tecnológicos, de vigilânciaem saúde, de diagnóstico e de tratamento para alcançareste fim.

Consoante aos princípios e diretrizes do SUS, o obje-tivo primordial dessa rede é perpassar as ações de saúdedo trabalhador desde a APS até o nível terciário. Suascaracterísticas redefinem-se para cada região e para cadacomunidade, considerando os recursos disponíveis e osproblemas que deve resolver.

Articulação Intra e Inter-setorial

Um modelo de saúde do trabalhador sob a concepçãode uma rede prevê sua integração no Sistema Nacionalde Saúde, em que a rede primária seja porta de entradaúnica e de que ela seja capaz de articular inter-setorial-mente.

No Estado de São Paulo, existem várias ordens de es-truturas de serviços que atuam nas questões saúde e tra-balho:- a fiscalização das normas regulamentadoras, praticadapela Delegacia Regional de trabalho e emprego e Secre-taria de Estado de Relações de Trabalho e Emprego;

- os serviços de segurança e medicina do trabalho(SESMT) de empresas e de planos de saúde;- os serviços médicos hospitalares e privados;- os serviços da Fundacentro;- as empresas particulares de assessorias e consultorias;- rede do SUS.

A concepção sistêmica de rede deve perseguir a idéiade articulação intra e inter-setorial nos diversos níveis doSUS de forma que se estabeleça mecanismos de comuni-cação entre os setores próprios, entidades e instituiçõesque atuam na questão saúde e trabalho, permitindo-lhesmelhor definição de papéis, melhor compreensão das rea-lidades locais atuação conjunta na capacitação, na disse-minação de conhecimentos e informações.

Estruturas da Secretaria de Estado da Saúde

O organograma central dos serviços de saúde do traba-lhador na Secretaria de Estado da Saúde (SES) reconhe-ce, formalmente, duas ordens de estruturas de serviços paradar conta das vigilâncias sanitária e epidemiológica, alémde um setor do IAL que cuida das questões laboratoriais.

Enquanto a atuação da vigilância sanitária privilegia aformação, a capacitação e a informação a epidemiológicatem se empenhado nas questões dos poluentes ambientais,a assistência aos adoecidos pelo trabalho, a articulaçãointer-institucional e a formação profissional têm sido exe-cutadas pelo Cerest, setor ainda não incluído na estruturaformal da SES.

No âmbito das direções regionais de saúde da SES evi-dencia-se inadequação dos serviços do Estado para atuarna prevenção e assistência dos acidentes e doenças do tra-balho. A estrutura de serviços atual da Secretaria na áreada saúde e trabalho, composta pelas vigilâncias, não con-segue dar conta dessa demanda, tanto pelos parcos recur-sos humanos, como pela sua vocação histórica. Associara vigilância com a assistência, apoiada pelo movimentosindical, é o grande mote que se esboça na idealização darede estadual de saúde do trabalhador, com práticasintervencionistas nas empresas sob nova fundamentaçãosanitária.

Participação da Classe Trabalhadora

Diante da atual inadequação na relação serviços/deman-da em saúde do trabalhador e considerando a perspectivade implantação de uma rede estadual de saúde do traba-

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REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

lhador reconhece-se que para além dos planos técnicos arede deve priorizar a participação das representações sin-dicais, procurando divulgar o mais amplamente possívela situação atual e os planos elaborados como alternativaviável.

É a própria classe trabalhadora o setor mais legitima-mente interessado na superação desses problemas e semdúvida a que pode levar a luta em sua defesa de formamais conseqüente. É pela participação e convivência quea instituição absorve valores que contribuirão em suaredefinição.

A participação da classe trabalhadora pode propiciar umexercício reflexivo que crie em seu seio o dimensionamentoreal de seus problemas e um engajamento efetivo em suasolução, delineando uma vontade coletiva que dê represen-tação política a essa demanda técnica, contribuindo dessaforma para a definição de uma política de saúde direcionadapara a valorização do trabalhador.

A participação da classe trabalhadora deve ser enten-dida como elemento capaz de catalisar uma mudança, porsua expressão política, e também como elemento capazde contribuir na definição do novo, diante da legitimida-de de seus interesses.

Em essência, uma rede em saúde do trabalhador por pre-tender a socialização dos recursos do SUS é impulsionadaa recuperar valores sociais e coletivos para a prática ade-quada, o que busca mediante participação trabalhadora.

Recursos Humanos e Materiais

Diante da diversidade de fatores que influenciam a saú-de, é hoje iniludível a necessidade do caráter multi-disciplinar da equipe de saúde. A viabilização de uma redeprimária está diretamente relacionada ao preparo profis-sional da equipe de saúde e nesse sentido será necessáriauma capacitação adequada de seus recursos humanos.

E, a rede ainda, se pretende eficaz, de grande poderresolutivo, pressupõe a presença de profissionais versá-teis capazes de responder a variada gama de problemasque constituam o seu alvo.

A definição de alçada e de recursos, a participação dostécnicos das prefeituras municipais e a característica daequipe de saúde constituem os três vértices de uma pedraangular, cujo brilho fica na dependência da luz que a ilu-mine: a política de saúde.

A definição de recursos deve considerar a população-alvo em seu universo e garantir acesso aos recursos maissofisticados a toda população trabalhadora, servindo a rede

apenas para racionalizar esse acesso e nunca como formade negação desse direito, criando as diferenças de um tra-tamento de pobre e outro de rico.

Descentralização das Ações

A participação dos municípios deve objetivar apermeabilização da instituição aos interesses da clientelaa fim de garantir conseqüência à proposta.

Para que essa rede não seja um simples aparelho dereprodução ideológica, é necessário que essa participa-ção encontre meios para expressar sua criatividade e re-cuperar seus valores.

A participação dos municípios deve ser um elementoativo em todos os níveis, planejamento, administração,prestação de serviços e não se restringir ao papel de sim-ples executor.

É estratégica a entrada da Saúde do Trabalhador naSaúde da Família/ Atenção Básica, estabelecendo-se pro-tocolos integrais para o conjunto de agravos, tendo-secomo perspectiva o trabalho em rede, sem hierarquia e atolerância às diferenças.

O modelo estrutural de atenção proposto à Saúde doTrabalhador respeita as áreas de abrangências das Dire-ções Regionais de Saúde (DIR), as microrregião ou mu-nicípio para intervenção.

Os critérios de elegibilidade serão os seguintes: o ter-ritório, considerando as características demográficas, so-ciais, econômicas e políticas da população local; a exis-tência de situações de risco e sua expressão sob a formade agravos relacionados com o trabalho; os recursostecnológicos disponíveis no setor saúde e nos demais per-tinentes à situação.

As estratégias de operacionalização para implemen-tação dessa rede são: pactuação intra e extra-setorial, ade-quação da infra-estrutura da rede de serviços, capacitaçãodos profissionais da rede de serviços, equipamento, apoiodiagnóstico e insumos, comunicação e marketing social,mecanismos de financiamento.

Capacitação – A proposta de capacitação em Saúde doTrabalhador será organizada para ser utilizada como umdos instrumentos para a qualificação dos profissionais denível superior que atuam com intuito da reestruturação dosserviços de saúde.

O pressuposto para a realização do curso baseia-se noprocesso de mudança das práticas sanitárias voltadas paraa efetivação do Sistema Único de Saúde, coerente com o

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processo de criação e desenvolvimento de Distritos Sani-tários, cuja estruturação tem hoje como estratégia o Pro-grama de Saúde da Família, constituindo-se, portanto, emclientela preferencial os profissionais que atuam nesseprograma.

Vigilância em Saúde – A visão de uma vigilância em saú-de, que envolve as questões ambientais, remete para umdebate vital para uma nova conformação estrutural da área.As estruturas da Secretaria em níveis central e regionais,de executoras, passariam a atuar na normalização de pro-cedimentos operacionais, nas relações inter-setoriais, nacapacitação de recursos humanos, na disseminação deconhecimentos e de ações para os municípios em seus di-versos níveis de complexidade e de forma de gestão, comoos recentes consórcios entre os municípios.

Outro aspecto que deve ser abordado é a sistematiza-ção, o processamento e a análise dos dados sobre saúdedo trabalhador. Já existem sistemas consolidados como oSivisa, e outros em andamento como projetos, que devemser implementados para a melhoria das informações (Fi-gura 1).

PLANO DE EXPANSÃO DA REDE DESAÚDE DO TRABALHADOR

Com base na portaria do Ministério de Saúde que pre-vê a estruturação de uma Rede Nacional de Atenção Inte-gral a Saúde do Trabalhador, a ser publicada, serãodimensionados os serviços para cada DIR, considerandoa necessidade de articular, no campo de ação do SUS, açõesde prevenção, promoção e recuperação da saúde dos tra-balhadores urbanos e rurais, independentemente do vín-culo empregatício e tipo de inserção no mercado de tra-balho e considerando o processo de regionalização comoestratégia de hierarquização de serviços de saúde e debusca de maior eqüidade, conforme o disposto na NormaOperacional de Assistência à Saúde.

A atenção integral à saúde do trabalhador, com suasespecificidades, deve ser objeto de todos os serviços desaúde, consoante com os princípios do SUS, da eqüidade,integralidade e universalidade e considerando a necessi-dade da criação de mecanismos para o fortalecimento dacapacidade de gestão do SUS e a atualização dos critériosde habilitação de estados e municípios.

Hierarquização das Ações Preconizadas pelo Ministé-rio da Saúde e Adaptadas para o Estado de São Paulo:- Ações na rede de atenção básica e no âmbito do Pro-grama de Saúde da Família (PSF).- Referências assistenciais nos serviços de média e altacomplexidade do SUS.- Centros de Referência em Saúde do Trabalhador(CRST).

As equipes da atenção básica e do Programa de Saúdeda Família serão capacitados para a execução de açõesem saúde do trabalhador.

No interior dos serviços existentes de alta e média com-plexidade, no âmbito de cada Módulo Assistencial, deve-rão ser organizadas ações especializadas em saúde do tra-balhador, cujas atribuições serão estabelecidas em atoespecífico da comissão intra-setorial.

As direções regionais de saúde (DIR) terão CRST Re-gional, definidos por ordem crescente de complexidade edistinção de atribuições descritas a seguir.

Os CRSTs Estaduais e Regionais deverão integrar-seentre si e com as referências em saúde do trabalhador de-senvolvidas na rede de média e alta complexidade,compatibilizando um Sistema de Informação desenvolvi-do no âmbito da assistência terciária de média e alta com-plexidade, a execução de Projetos de Capacitação comuns,

FIGURA 1

Proposta de Organização da Saúde do Trabalhador no SUS-SP

COMISSÃO INTRA-SETORIAL DESAÚDE DO TRABALHADOR

Formula, planeja, informa, articula,capacita, desenvolve estudos e pesquisa,

elabora projetos estratégicos

DIREÇÕES REGIONAIS DE SAÚDE – DIR – PÓLOSFormula, planeja, informa, articula, capacita,

desenvolve estudos e pesquisa

MUNICÍPIOS – PÓLOSInforma, articula, capacita, estudo e pesquisa

REDE DO SUSInforma, executa

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REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

a elaboração de material institucional e comunicação per-manente, de modo que se constitua um sistema em redenacional.

O controle social da Rede Estadual de Saúde do Tra-balhador – mediante participação das organizações de tra-balhadores urbanos e rurais –, dar-se-á em todos os níveis– nacional, estadual, regional e municipal, obedecendo aosprincípios estabelecidos na legislação vigente.

Serão implantados Centros de Referência Estadual,localizado na capital dos Estados e Centros de Referên-cia Regionais, localizados nas regiões metropolitanas enas regiões com maior concentração de trabalhadores, comas seguintes atribuições.

CRST Estadual

- Desenvolver estudos e pesquisas na área de saúde dotrabalhador e do meio ambiente, atuando em conjunto comoutras unidades e instituições, públicas ou privadas, deensino e pesquisa ou que atuem em áreas afins à saúde eao trabalho.- Promover programas de formação, especialização equalificação de recursos humanos na área de saúde do tra-balhador.- Dar suporte técnico para o aperfeiçoamento de práticasassistenciais interdisciplinares em saúde do trabalhador,organizada na forma de projetos de intervenção.- Propor normas relativas a diagnóstico, tratamento e rea-bilitação de pacientes portadores de agravos à saúde de-correntes do trabalho; promoção de eventos técnicos, ela-boração de protocolos clínicos e manuais.- Atuar em articulação com os Centros de Vigilância Sa-nitária e Epidemiológica e com unidades e órgãos afins,nas atividades de normalização relativas à prevenção deagravos à saúde decorrentes do trabalho e de vigilânciasanitária e epidemiológica em saúde do trabalhador.- Promover, em conjunto com os órgãos competentes dosmunicípios, a definição de critérios de: avaliação paracontrole da qualidade das ações de saúde do trabalhadordesenvolvidas no âmbito municipal; referência e contra-referência e outras medidas que assegurem o pleno de-senvolvimento das ações de assistência e vigilância emsaúde do trabalhador e do meio ambiente; cooperação téc-nica para o desenvolvimento das ações e pesquisas emsaúde do trabalhador e do meio ambiente.- Produzir informações para subsidiar proposições depolíticas na área de saúde do trabalhador.

- Desenvolver programas de educação em saúde sobrequestões da relação saúde-trabalho para a população emgeral.- Promover o intercâmbio técnico-científico com institui-ções nacionais, internacionais e estrangeiras.- Em conjunto com os gestores estaduais, coordenar oprocesso de preparação, organização e operacionalizaçãodo Programa Estadual de Qualificação Pessoal em Saúdedo Trabalhador, estabelecido nessa portaria.- Em conjunto com os gestores estaduais, coordenar oPrograma de Acompanhamento e Avaliação da implanta-ção da Renast.- Em conjunto com os gestores estaduais, participar doprocesso de elaboração, implantação e operacionalizaçãodo Plano Estadual de Atenção Integral à Saúde do Traba-lhador nos municípios, nas diversas regiões do Estado.- Prestar suporte técnico para os municípios executarema pactuação regional, a fim de garantir, em toda a área doestado, o atendimento aos casos de doenças relacionadasao trabalho.- Participar, no âmbito de cada estado, do treinamento ecapacitação de profissionais relacionados com o desen-volvimento de ações no campo da saúde do trabalhador,em todos os níveis de atenção: Vigilância em Saúde, PSF,Unidades Básicas, Ambulatórios, Pronto-Socorros, Hos-pitais Gerais e Especializados.

CRSTs Regionais

- Suporte técnico especializado para a rede de serviçosdo SUS efetuar o atendimento, de forma integral ehierarquizada, aos casos suspeitos de Doenças Relacio-nadas ao Trabalho, para estabelecer a relação causal en-tre o quadro clínico e o trabalho.- Suporte técnico especializado para a rede de serviçosdo SUS efetuar o diagnóstico e o tratamento das DoençasRelacionadas ao Trabalho, o que inclui a realização deexames complementares, e que pode incluir vistorias sa-nitárias aos locais de trabalho.- Suporte técnico especializado para a rede de serviçosdo SUS efetuar o registro, notificação e relatórios sobreos casos atendidos e o encaminhamento dessas informa-ções aos órgãos competentes visando ações de vigilânciae proteção à saúde.- Suporte técnico às ações de vigilância, de média e altacomplexidade, a ambientes de trabalho, de forma integra-

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da às equipes e serviços de vigilância municipal e/ou es-tadual.

- Retaguarda técnica aos serviços de vigilância epidemio-lógica para o processamento e análise de indicadores deagravos à saúde relacionados com o trabalho, em sua áreade abrangência.

- Ações de promoção à Saúde do Trabalhador, incluindoações integradas com outros setores e instituições, comoMinistério do Trabalho, Previdência Social, MinistérioPúblico, entre outros.

- Participar, no âmbito de seu território de abrangência,do treinamento e capacitação de profissionais relaciona-dos com o desenvolvimento de ações no campo da saúdedo trabalhador, em todos os níveis de atenção: PSF, Uni-dades Básicas, Ambulatórios, Pronto-Socorros, HospitaisGerais e Especializados.

Os recursos humanos dispostos em cada equipe dos CRSTsdeverão ser dimensionados e pactuados na bipartite, comparâmetros mínimos de composição e capacitados para oexercício das ações de saúde do trabalhador.

A proposta de um modelo sob a concepção de rede emsaúde do trabalhador, se de um lado tem sido recebidocom entusiasmo pelos que militam na área, invariavelmen-te, de outro, há as reservas do ceticismo em relação àsinstituições oficiais das quais as pessoas sempre têm umrosário de experiências negativas. Ao lado do ceticismohá também a visão paternalista da instituição a dificultara organização da participação da classe trabalhadora, oque muitas vezes deixa um ranço servil a essa participa-ção. Enquanto o ceticismo deriva da postura centralizadorae autoritária das instituições oficiais nos últimos anos, oservilismo é reminiscência do período populista de apa-relhamento político das instituições e que hoje anda sen-do alimentado por setores que se intitulam reformadores.

Ambos os desvios só poderão ser superados pela de-mocratização da instituição. Tem-se claro que esse mo-delo, ora proposto, embora fundamentado teoricamente,apóia-se muito mais em vontade de transformar. Por issomesmo, espera-se que ele se constitua em mais uma con-tribuição a acelerar o início de uma nova era para a saúdedo trabalhador no SUS-SP a que por ora apenas esboçaseus contornos.

Finalmente, julga-se pertinente a inclusão neste artigoda Carta de São Paulo pela efetiva implantação das açõesde saúde do trabalhador no SUS deliberada no II Encon-tro Estadual para Implantação da Nost/Noas, realizado em22 de abril de 2002, em São Paulo:

“No bojo da Reforma Sanitária Brasileira, a Saúde doTrabalhador surgiu como uma nova forma de apreender eintervir na relação trabalho-saúde e introduziu na SaúdePública, a atenção a uma parcela da população estimadaem mais de 108 milhões de pessoas inseridas na multi-plicidade e diversidade dos ambientes e processos de tra-balho desenvolvidos no país.

Instrumentos legais e operacionais vêm conformando,desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, oarcabouço que fundamenta o campo da Saúde do Traba-lhador, ressaltando-se a Lei no 8.080/90 (Lei Orgânica daSaúde), as Normas Operacionais Básicas 01/93 e 01/96, aNorma Operacional de Saúde do Trabalhador (Nost) e aInstrução Normativa de Vigilância em Saúde do Traba-lhador no SUS, editadas pelo Ministério da Saúde, e emSão Paulo, a Constituição Estadual, as Leis no 9.505/97(que disciplina as ações e serviços de Saúde do Trabalha-dor no SUS) e no 10.083/98 (que aprova o Código Sanitá-rio do Estado).

Em 24 de março de 2000, realizou-se o I Encontro Es-tadual para Aplicação da Nost-SUS. Desde então, algu-mas ações vêm sendo desenvolvidas pelos responsáveispela implantação das ações de Saúde do Trabalhador noâmbito das esferas estadual e municipal do SUS, porémnão logrando efetivar a operacionalização das ações eserviços que a relevância da área requer.

As Normas Operacionais da Assistência à Saúde(NOAS-SUS 01/01 e 01/02), editadas pelo Ministério daSaúde, ampliam as responsabilidades dos municípios naAtenção Básica e atualizam os critérios de habilitação dosEstados e municípios. No entanto, na medida em que apre-sentam diretrizes para o prosseguimento do processo dedescentralização, baseadas na estratégia da regionalização,não contemplam as ações de Saúde do Trabalhador entreas responsabilidades assumidas pelos gestores estaduaise municipais, como também não as incluem nos elencosde procedimentos a serem acrescentados à Atenção Bási-ca e ao componente mínimo da média complexidadeambulatorial.

Os gestores e gerentes das esferas estadual e munici-pal do SUS, os profissionais do campo da Saúde do Tra-balhador e os representantes dos demais segmentos dasociedade presentes ao II Encontro Estadual para a Im-plantação da NOST/NOAS, realizado no dia 22 de abrilde 2002 no Centro de Convenções Rebouças, em São Pau-lo, preocupados com a insatisfatória cobertura e organi-zação das ações e serviços de Saúde do Trabalhador noEstado e com o objetivo de criar condições para que a

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REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

implantação do preconizado na NOST-SUS ocorra demaneira efetiva, aprovam as seguintes propostas a seremencaminhadas aos órgãos de deliberação e execução doSUS:- Inclusão das ações contidas na NOST-SUS entre as res-ponsabilidades dos Estados e municípios que assumirem asformas de gestão indicadas na NOAS-SUS 01/01 e 01/02.

- Inclusão da comprovação de capacidade para o desen-volvimento das ações contidas na NOST-SUS como re-quisito para a habilitação dos Estados e municípios nasformas de gestão indicadas na NOAS-SUS 01/01.

- Aprovação pela Comissão Intergestores Tripartite doscritérios que comporão o Índice de Valorização de Resul-tados em Saúde do Trabalhador, referido na NOST-SUS,a ser repassado fundo a fundo, aos Estados e municípios.Neste caso, para os municípios, deverá ser utilizado comoparâmetro a “Matriz do Modelo de Organização da Aten-ção à Saúde do Trabalhador para o SUS Municipal”, con-tida na Recomendação no 5, de 14 de setembro de 2001,do Conselho Nacional de Saúde.

- Liberação de recursos do FAEC (Fundo de Ações Estraté-gicas do Ministério da Saúde) para a implantação e imple-mentação das redes estaduais de Saúde do Trabalhador.

- Implantação de um componente em Saúde do Trabalha-dor nos sistemas de informação em saúde de âmbito nacio-nal, que permitam conhecer a realidade de saúde da po-pulação trabalhadora, intervir nos fatores determinantesde agravos à saúde nos locais de trabalho, visando eliminá-los ou, na sua impossibilidade, atenuá-los e controlá-los;avaliar o impacto das medidas adotadas para a elimina-ção, atenuação e controle dos fatores determinantes deagravos à saúde e subsidiar a tomada de decisões dos ór-gãos competentes, nas três esferas de governo.

- Instituição da Comissão Intersetorial de Saúde do Tra-balhador, com a participação de entidades que tenham

interface com a área, subordinada ao Conselho Estadualde Saúde, com a finalidade de assessorá-lo na definiçãode políticas, no estabelecimento de prioridades e no acom-panhamento e avaliação das ações. Os municípios deve-rão criar comissões equivalentes no seu âmbito”.

NOTAS

Agradecimentos especiais pela colaboração dos membros da comissãona preparação deste artigo: Aparecida Vieira de Melo; Clelia O SPedrosa; David Braga Jr.; Elba Pinheiro de Almeida Custódio; ElmirS. Cardim Filho; João Aquino Filho; José Carlos do Carmo; José Ge-raldo Conceição; Lúcia Toledo; Maria Luiza Rebouças Stucchi; Ma-ria Maeno; Marlene Castanho; Nivaldo D. Teixeira; Paula Pozzi; Pau-lo Tiglea; Rodolpho Repullo Jr.; Telma de Cássia.

1. Texto para debate – Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos – assessorda Coordenação de Saúde do Trabalhador (Cosat) do Ministério daSaúde.

2. Esquema preparado pela Comissão intra-setorial de saúde do traba-lhador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Portaria do MS n.3.908/98, Diário Oficial [da] RepúblicaFederativa do Brasil, Brasília, DF, 10 nov. 1998, n.215-E, Seção1, p.17.

SÃO PAULO (Estado). Portaria CIP n.12. Diário Oficial do Estado,31 out. 2001.

SÃO PAULO (Estado). Resolução SS-51 de 19 de abril de 2002. Diá-rio Oficial do Estado, 20 abr. 2002.

SÃO PAULO (Estado). NOAS-SUS fev. 2002, aprovada pela PortariaGM-MS n.373, de 27 de fevereiro de 2002. Diário Oficial de Es-tado, fev. 2002.

KOSHIRO OTANI: Médico do Trabalho, Coordenador da Comissão Intra-setorial de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado da Saúde([email protected])

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A

SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADORa co-gestão em universidade pública

tualmente, o setor de saúde sofre conseqüências daglobalização devidas, sobretudo, à adoção da polí-tica neoliberal. Essa, à medida que é implantada,

Resumo: Existe incompreensão no meio acadêmico e nos serviços de saúde pública sobre semelhanças e jus-taposições dos serviços de saúde do trabalhador e dos serviços de saúde suplementares ao Sistema Único deSaúde (SUS) quando contratados por trabalhadores. A co-gestão é apresentada neste artigo como proposta dediferenciar, humanizar, qualificar e compatibilizar a gestão de ambos os serviços.Palavras-chave: política de saúde; serviços de saúde ocupacional e setor privado; saúde dos trabalhadores.

Abstract: In both academia and the public health sector, misunderstanding exists with regard to the similaritiesand juxtapositions of workers’ health care services and the health care services that supplement the SUS (UnifiedHealth System) when the latter is contracted for by workers. Co-management is presented in this article as anattempt to improve, humanize, and enhance assess to services, while making them more compatible with oneanother.Key words: health care policy; occupation health services and the private sector; workers’ health.

GILSON GEHRING-JÚNIOR

STUART ENES SOARES

HELENO RODRIGUES CORRÊA-FILHO

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 98-110, 2003

pune o sistema público de saúde, forçando-o a adaptar-se aorçamentos cada vez mais restritos. Como revela Laurell(1995), os países latino-americanos passam por um proces-so de implantação da política social neoliberal que, entre ou-tras estratégias, envolve o corte de gastos sociais públicos ea privatização. Decisões políticas como essas ocasionamimpacto direto na saúde da população (Raphael et al., 2000).

Em conseqüência ao desfinanciamento, ocorre deteriora-ção e aumento do desprestígio das instituições públicas desaúde, ajudando “a criar a demanda ao setor privado e a tor-nar o processo de privatização socialmente aceitável”(Laurell, 1995). O Brasil torna-se exemplo disso pois, “àmedida que o SUS passou a ser desacreditado, ocorreu oprivilégio do atendimento na rede privada conveniada e aampliação da procura, por parte da população, pelos convê-nios de seguro médico privado” (Faria; Jatene, 1995).

Desse modo, é evidente a utilização do setor privadopelos que ostentam maior renda e do ramo público pelosmenos favorecidos financeiramente. Quando esses quepossuem pouca capacidade de pagamento e alto risco de

adoecer procuram o setor privado correm o risco de nãoserem atendidos, enquanto o setor público é obrigado aaceitar todos (Laurell, 1995; Faleiros, 1997).

Conforme Oliveira e Vasconcelos (1992), as políticasde Saúde do Trabalhador estão submetidas ao movimentode forças sociais que influenciam na relação entre Estadoe Sociedade Civil. Dessa forma, há necessidade de adap-tar o modelo de atenção à Saúde do Trabalhador para “queas medidas capazes de enfrentar e reverter os perfisepidemiológicos de morbimortalidade dos trabalhadoressejam compatíveis com as rápidas transformações sociaise com as mudanças na correlação de forças na dinâmicada relação entre o Estado e a Sociedade Civil”.

Apesar das dificuldades, a busca de eficiência na atençãoà Saúde do Trabalhador não deve ser utópica, e do ponto devista da saúde pública e da administração dos fundos públi-cos é dever prioritário. Profissionais do setor saúde devempriorizar a produção de serviços que atendam às necessida-des reais dos trabalhadores (Dussault, 1995; Faria; Jatene,1995). Para o planejamento das ações e políticas a seremadotadas, é preciso conhecer antes o padrão de utilização dosserviços pelos indivíduos em relação ao perfil de necessida-des dos diversos grupos sociais que os demandam. Sabe-se

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SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

que é a necessidade que leva ao uso. No entanto, a necessi-dade é determinada por fatores que expressam dimensõesbiológicas e sociais dos indivíduos.

De acordo com Pinheiro e Travassos (1999), sexo, ida-de, raça e condição social interferem na utilização. Asmulheres, os indivíduos em extremos da cadeia etária (pelamaior ocorrência de doenças e maior necessidade de pre-venção) e pessoas com boa condição social, estariam maissujeitas a usar os serviços de saúde. Existiriam ainda “fa-tores capacitantes associados à oferta”, são eles: a dispo-nibilidade de recursos humanos e físicos, facilidade deacesso, a forma de financiamento e a forma de pagamentoao prestador.

Na Unicamp, é interessante ressaltar que a sensação dedificuldade em utilizar os serviços pelos trabalhadores éacentuada pelo convívio com centros de excelência noatendimento médico do SUS, como o HC e toda a área dasaúde, sempre sobrecarregados. Aqui, cerca de doze milservidores realizam tarefas para manter em funcionamen-to a produção de mão-de-obra, informação e serviços quese constitui finalidade da Universidade Pública. Essaspessoas, direta e indiretamente, estão expostas a fatoresque podem causar perturbação à saúde, seja no ambientede trabalho, seja fora dele.

Justifica-se portanto a necessidade de construção de ummodelo assistencial eficiente e específico para essa popu-lação. Um modelo alternativo que: seja capaz de interagircom os servidores de forma benéfica para todas as cate-gorias; seja capaz de atender aos anseios dos servidores ede seus empregadores; adote ações preventivas (abrangen-do medidas de segurança no ambiente de trabalho e vigi-lância à saúde); envolva a participação ativa dos usuáriosno processo decisório; estimule a criação de vínculo en-tre profissional de saúde e usuário; possua sistema de re-ferência e contra-referência hierarquizado. Um modelo queseja capaz de ajustar a real necessidade do trabalhador ede seus dependentes aos serviços prestados; no qual hajaequivalência entre o serviço utilizado (se utilizado) e ovalor pago por ele.

CONFIGURAÇÃO DO SISTEMADE ATENÇÃO À SAÚDE ATÉ 2002

Após os anos 80, o sistema de atenção à saúde no Bra-sil adquiriu nova conformação. Esse sistema, conforme adescrição de Giovanella e Fleury (1996), teria forma pi-ramidal e seria composto de três subsistemas com lógicade estruturação, clientelas, complexidade tecnológica e

modos de financiamento diversos: o subsistema de altatecnologia, o subsistema privado autônomo ou de assis-tência médica supletiva e o subsistema público.

No topo da pirâmide estaria o subsistema de altatecnologia e alto custo. Embora haja entidades públicas eprivadas e também o “mix público-privado” comoprestadores, o que se observa é que os grupos sociais maisricos conseguem acesso privilegiado a esse tipo de servi-ço. Isso caracteriza esse setor como clientelista e altamenteseletivo. Nesse subsistema, de 2% a 3% da populaçãocertamente consumiriam mais de 30% dos recursos do SUS(Santos, 1990).

No meio da pirâmide estaria o subsistema privado. Essesubsistema que fornece a seus segurados uma assistênciamédica supletiva, e responsável por ofertar principalmentemaior número de consultas médicas e fornecer atendimentohospitalar, ainda estaria em franca expansão. Entretanto,o próprio contexto social brasileiro impõe limite para ocrescimento. Por ser um serviço voltado para a classemédia, trabalhadores do mercado formal, grandes e mé-dias empresas e considerar-se que o mercado informal ésignificante no Brasil, acredita-se que esse setor, em al-gumas regiões, já possa estar estagnando-se e procurandomecanismos para manter-se.

Na base da pirâmide estaria o subsistema público – re-presentado, também, pelos serviços privados contratados efilantrópicos. Esse setor seria responsável por atender a ca-mada da população de menor poder aquisitivo, de mais bai-xa renda, com mão-de-obra de menor qualificação e o mer-cado informal da economia. Além de fornecer atendimentopredominantemente ambulatorial e assistência de alta com-plexidade, o setor público seria responsável ainda por aten-der também aos casos de urgência e emergência. Enquadram-se nessa situação os acidentes de trabalho, os acidentes detrânsito, infartos, lesões decorrentes de tentativa de suicídio.Entretanto, a despeito da justeza dos princípios do SUS, arealidade assistencial expressa mais um desejo que uma rea-lidade (Cecílio, 1997).

CO-GESTÃO

Um modelo que pode ajustar-se às transformações so-ciais, por envolver a participação de mais de um elemen-to, é o de co-gestão, no qual as decisões são democráticas.

A palavra co-gestão significa “gestão em comum; ad-ministração ou gerência em sociedade” (Ferreira, 1999).Como também demonstra Silva (1991), o “prefixo co, queentra na formação da palavra co-gestão, designa exata-

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mente que se trata de decisão que não se toma isolada-mente, mas com a participação de outra vontade”.

Embora mostre a co-gestão no âmbito do estabeleci-mento e da empresa, Silva (1991) diz que esse princípioestá vinculado à participação e não envolve somente osinteresses do empregado e do empregador, mas transcen-de essa relação ganhando presença “em todas as comuni-dades organizadas de prestígio e representatividade dasociedade”.

Muito além das definições e classificações que possamsurgir aplicadas a diferentes áreas do conhecimento hu-mano, a palavra co-gestão assume neste artigo o sentidode qualificação de um modelo assistencial que procurameios para instalar-se plenamente. Considerando os as-pectos e as possibilidades materiais e intelectuais que aUniversidade Pública dispõe, a co-gestão representa a idéiade se organizar os serviços de atenção à saúde no câmpuscom a participação, no processo decisório e nas ações emsaúde, do leque ampliado de atores sociais envolvidos:Universidade Pública, SUS, profissionais de saúde (pro-vedores dos serviços), e os trabalhadores. Este modeloalternativo, local, co-gerido, longe de ser perfeito, podeser uma forma de reduzir, na prática, o hiato existente entrea universidade, no conjunto de suas potencialidades, e arealidade das necessidades da comunidade universitáriano tocante à saúde.

Destaca-se que os profissionais de saúde no SUS jádispõem de representação no modelo gestor, dividindo comos gestores cerca de 25% da representatividade dos con-selhos. No entanto, na assistência supletiva privada, osprofissionais que ministram atendimento não dispõemdessa oportunidade e isso é ressaltado na co-gestão pri-vada como novidade.

Evidências de que a co-gestão na área da saúde funcionasão encontradas na administração do Município de SãoPaulo entre 1989 e 1992, que inovou ao delegar poder dedecisão às Comissões de Gestão, transformando a demo-cracia participativa em democracia direta. Isso ocorreugraças à descentralização do poder que estava nas mãosdo Estado e passou para as mãos das Comissões de Ges-tão. Essas eram compostas por representantes dos usuá-rios, representantes dos profissionais da saúde e represen-tantes da administração pública. Assim, usuários eprofissionais da saúde passaram a ser co-responsáveis pelagestão pública da saúde. Nos quatro anos do funcionamen-to desse modelo, os recursos orçamentários destinados àsaúde aumentaram de 10,6% para 15,4%, e 48% dessesrecursos eram destinados à área social (Cohn, 1996). No

entanto, a falta de continuidade dessa política, quando nãoforam articuladas gestões de nível local com níveis supe-riores – estado e federação, comprometeu o setor saúdenos anos seguintes. Em lugar da política de serviços pú-blicos foi adotada a política de privatização por meio desupostas cooperativas autônomas de prestadores de ser-viços, denominada “PAS” (Plano de Atendimento à Saú-de). Essa, além de retroceder a iniciativa anterior, retiroumecanismos sociais de controle previstos no SUS e, se-gundo Carvalho (2002), possibilitou comprovada corrup-ção e desperdício de recursos públicos.

A implicação das premissas de universalidade, hie-rarquia e eqüidade do SUS brasileiro fez com que ser-viços privados sejam contratados pelo Sistema Públicode Saúde para atendimento complementar, ou seja,credenciado pago e submetido à auditoria pelo poderpúblico. No entanto, os trabalhadores ainda contratam,adicionalmente, atendimento e cobertura para serviçosde saúde externos ao SUS, sendo chamados então deServiços Suplementares.

Esses serviços são regulados, no Brasil, pela AgênciaNacional de Saúde Suplementar (ANS), embora subordi-nada ao Ministério da Saúde, não faz pagamentos ou au-ditoria e atua apenas como agência reguladora. Faz-seportanto necessário, que a contratação desses serviçospelos trabalhadores seja aproximada dos padrões de de-mocracia, governabilidade e transparência que servem demodelo para os serviços de saúde do SUS. Para isso, aestratégia escolhida é a da co-gestão.

OBJETIVO E FONTES DE INFORMAÇÃO

O presente artigo visa discutir e adaptar um modelo deco-gestão para o provimento de serviços públicos e pri-vados suplementares de saúde em universidade estatal aseus próprios servidores de acordo com as normas legais.Decorre de inquérito realizado em 1998 por Corrêa-Filhoet al. (2001) para avaliar a demanda e a utilização dosserviços de saúde pelos servidores da Unicamp. Com oobjetivo de ajustar a oferta desses serviços às necessida-des dos usuários utilizou-se questionários semi-estru-turados, auto-respondidos, que foram enviados aos 12.005trabalhadores ativos e aposentados com os comprovantesde pagamento. À época, foram devolvidos 3.615 questio-nários que compuseram o banco de dados da pesquisa.Essas informações foram então disponibilizadas para tra-balho subseqüente pela equipe de investigadores do La-boratório de Aplicação em Epidemiologia (Lape).

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SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

Assim, foram agregados dados de literatura Medline eLilacs sobre: serviços de saúde, políticas de saúde, traba-lhadores e saúde pública, e formulou-se, em conseqüên-cia, uma proposta de co-gestão dos serviços de saúde pú-blicos e privados para trabalhadores em Universidadeestatal, detalhando atores sociais envolvidos, represen-tatividade e poder de decisão.

ASSISTÊNCIA PÚBLICA À SAÚDE DOTRABALHADOR DA UNICAMP

Os principais prestadores de serviço à assistência mé-dica do trabalhador da Unicamp são: os Centros de As-sistência Médica Ambulatorial (Ceama) vinculados aoInstituto de Assistência Médica ao Servidor Público Es-tadual (Iamspe); outras clínicas ou hospitais do Siste-ma Único de Saúde (SUS); o Centro de Saúde da Co-munidade (Cecom), o Hospital de Clínicas (HC) e oCentro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM)da Unicamp.

Dos servidores públicos estaduais são descontados 2%de seus rendimentos brutos que, destinados ao Institutode Assistência Médica ao Servidor Público Estadual(Iamspe), tornam essa entidade responsável pela assistên-cia médica e hospitalar aos contribuintes e seus benefi-ciários. Essa contribuição compulsória desses servidores“tem representado a fatia maior da receita do instituto,chegando a corresponder a mais de 80% de toda a recei-ta” (Lima; Carvalho, 1998). Entretanto, a inexistência deserviços credenciados próximos representa uma realida-de com a qual a maioria dos servidores da Unicamp nãopode contar. Na capital, o atendimento é feito no Hospi-tal do Servidor Estadual (HSE) e no interior, nos Centrosde Assistência Médica-Ambulatorial (Ceama) (Lima; Car-valho, 1998). Segundo Melhem (1998), diante da buscade reformulação do Iamspe, parlamentares estaduais re-conhecem a escassez de Ceamas no interior.

Fora do câmpus universitário, os trabalhadores quenecessitam de atendimento no SUS buscam Centros deSaúde (CSs) e serviços de Pronto-Atendimento para re-solução de seu problema de saúde, e são encaminhadospara níveis superiores da hierarquia do SUS quando ne-cessário. Como o SUS é um sistema público, o servidornão paga as consultas que recebe, pois isso já é feito indi-retamente quando paga impostos. Já o oposto é observa-do nos serviços particulares, nos quais o servidor procurauma clínica ou um hospital pertencente a esses serviços epaga pelo atendimento prestado a ele.

O Centro de Saúde da Comunidade (Cecom) é o servi-ço responsável por prestar atendimento médico e odon-tológico gratuito a todo o câmpus. Possui estrutura cen-tralizada, subordinada à reitoria da Universidade, nãopermite a participação do trabalhador e detém-se ao cará-ter curativo da assistência à saúde. Nele são atendidos osservidores, os universitários, estagiários, professores vi-sitantes, trabalhadores terceirizados e adolescentes esta-giários denominados “guardinhas”. Esse é prestador deserviços de nível primário e de alguns do secundário e,por não ser uma policlínica especializada, algumas vezeshá necessidade de referenciar-se ao Hospital das Clínicas(HC) ou ao Centro de Assistência Integral à Saúde daMulher (CAISM) nas especialidades não disponíveis noCecom. Além de atenderem aos encaminhamentos, o HCe o CAISM da Unicamp atendem, em seus serviços de pron-to-atendimento, às emergências e urgências dos servidores.

Apesar de o caráter supostamente primário do Cecom,não existe referência estruturada para o nível secundário.Logo, é comum o próprio servidor demandar diretamentea especialidade que julga adequada.

Como revelam Corrêa-Filho et al. (2001), o Cecom foio serviço mais procurado entre os trabalhadores que ne-cessitaram de atendimento clínico geral nos 15 dias queantecederam o inquérito (Gráfico 1).

De acordo com a Tabela 1, o último serviço mais pro-curado pelos trabalhadores para atendimentos de saúdegeral nos 15 dias que antecederam o inquérito foi o Cecom.Já o HC da Unicamp foi o último serviço utilizado por4,6% dos trabalhadores, enquanto a participação dosCeamas foi inexpressiva.

Quando há necessidade de encaminhamentos para saúdedo trabalhador, são feitos sem distinção para as institui-ções que atendem aos serviços gerais de saúde. Dessa for-ma, além de enfrentarem a grande demanda do SUS, ostrabalhadores correm o risco de não terem a assistênciaespecífica para saúde do trabalhador.

Corrêa-Filho et al. (2001) demonstram que, no tocanteaos afastamentos do trabalho, dos 16% que referiram terse afastado nos últimos 12 meses, 99,6% estavam vincu-lados diretamente a doenças. Ainda, 66,7% dos que tive-ram acidente de trabalho com lesões não conhecem o tra-balho do representante da Comissão Interna de Prevençãode Acidentes (Cipa).

Cerca de 7,8% dos servidores sofreram lesão em aci-dentes no trabalho nos 12 meses anteriores ao inquérito e5,3% lembraram ter feito a comunicação de acidente detrabalho (CAT).

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O estudo realizado por Gentil e Corrêa-Filho (2001)apresenta os afastamentos sofridos pelos trabalhadores daUnicamp, confirmando “a necessidade de dedicar-se aten-ção especial às condições de trabalho desses funcionários”.Os autores alertam para a necessidade de realização deum programa de vigilância em saúde do trabalhador.

Constatou-se que o Cecom, no período 1998-2002, tor-nou-se uma estrutura centralizada, que não permitiu a parti-cipação do usuário e deteve-se no caráter curativo da assis-tência à saúde, não abrigando o Serviço de Segurança eMedicina do Trabalho (SESMT). O SESMT, que esteve in-tegrado a essa estrutura, foi repassado para o DepartamentoGeral de Recursos Humanos (DGRH) e tornou-se desvin-culado da estrutura prestadora de serviços.

NOVA ESTRUTURA

Pela necessidade de incorporar o princípio de integra-lidade do SUS, o modelo proposto não deveria ancorar-se somente nas ações de assistência clínica mas engloba-ria as ações de prevenção de doenças, de promoção dasaúde e de vigilância à saúde do trabalhador. Assim, deve-se buscar a implantação de uma política integrada de pro-moção da saúde e vigilância em saúde do trabalhador, istoé, a articulação contínua de ações de prevenção e cura.

É necessário distinguir o Serviço de Assessoria Patro-nal de Medicina do Trabalho – hoje denominado Serviçode Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) do quese propõe neste artigo, ou seja, como um Serviço de Pre-venção e Assistência para a Saúde dos Trabalhadores emCo-Gestão.

O primeiro, assemelha-se ao já disposto em PortariasMinisteriais brasileiras. Na presente proposta este servi-ço manteria suas funções de assessoria patronal mas tor-nar-se-ia impossibilitado de sujeitar ao exame clínico osfuncionários. Por obrigação ética decorrente da lógica darelação médico-paciente, não pode haver um terceiro – oempregador – dominando o contrato de serviço e confiançaexistente entre um funcionário e um assessor patronal.Como médico-assessor pode ler prontuários mas não exa-minar pessoas.

O segundo serviço, proposto no presente estudo, por serco-gerido, teria características de multiprofissionalidade pre-ventiva e assistencial. O mandato do contrato de trabalhoestaria governado pelo conselho gestor e teria reavaliaçãoperiódica com duração maior que os mandatos dos gover-nantes, no caso dos serviços públicos. A intenção seria im-pedir demissões e contratações eleitoreiras, conferindo esta-bilidade relativa aos profissionais.

O trabalhador, em seu papel de cliente do serviço co-gerido, pode aceitar ou não ser examinado pelos profissio-nais de saúde do mesmo. Em caso de não aceitar obriga-se a trazer atestados de serviços externos com relatóriosde acompanhamento e tratamento caso necessário. Se nãodesejar nenhum serviço de saúde teria que abrir mão deseus direitos assinando uma desistência, cujo valor jurí-dico seria questionável.

No caso de um profissional de serviço de saúde do tra-balhador receber do cliente exigências ou imposições quenão possa aceitar, pode recusar-se a atendê-lo e enviar aoutro colega, com a devida justificativa.

A nova estrutura (aqui denominada Centro) ofereceriaatendimentos de nível primário e secundário, ilustrados

TABELA 1

Distribuição de Docentes e Funcionários da Unicamp, segundo o ÚltimoServiço de Saúde Procurado para Atendimento a Necessidades

Clínicas nos 15 Dias que Antecederam o InquéritoCampinas – 1998

Serviço de Saúde Procurado Números Absolutos %

Total 3.615 100,0Não Necessitou Atendimento 1.998 55,3Cecom 483 13,4HC-Unicamp 165 4,6CAISM 7 0,2Ceama 1 0,0Outros Serviços 222 6,1Ignorado 739 20,4Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

GRÁFICO 1

Distribuição de Docentes e Funcionários da Unicamp, segundo Problemasde Saúde e Atendimento Clínico nos 15 Dias que Antecederam o Inquérito

Campinas – 1998

Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

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SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

na Figura 1. Nesse Centro seriam atendidos servidores daUnicamp, trabalhadores terceirizados, professores visitan-tes e estudantes da Unicamp. Nesse trabalho, os estudan-tes são considerados trabalhadores por passarem boa par-te de seu tempo estudando em órgão público, financiadopela população, com o objetivo de aprimorar conhecimen-tos e, ao exercerem a futura profissão, reverter o investi-mento à sociedade. Portanto, os universitários fazem par-te da comunidade beneficiária.

A estrutura proposta contaria com uma porta de entra-da no nível primário, comum a servidores e estudantes,que seria responsável pelo atendimento básico e, em ca-sos de necessidade de outra especialidade, direcionamentodo cliente para o serviço de referência competente. Nocaso dos estudantes, o Centro ofereceria somente o aten-dimento básico, e se houvesse necessidade de outra espe-cialidade seria feito encaminhamento ao nível secundáriodo SUS, que se encarregaria de seguir as devidas referên-cias. Dessa forma, o Centro atenderia os estudantes ape-nas no nível primário (Figura 1).

Na questão de procedimentos e serviços de nível secun-dário, há dúvida de quais deveriam ser disponibilizados peloCentro, mas a necessidade de uma policlínica especializada(nível secundário) é indiscutível ao serviço. Ela deve ater-seprincipalmente à manutenção da saúde dos trabalhadores, queao necessitar de atendimento de nível secundário, não dis-ponível na policlínica, ou nível terciário deveria ser encami-nhado ao SUS ou a serviços suplementares. Esses últimosresponderiam pelo atendimento de complicações, dificulda-des de diagnóstico, doenças crônicas e degenerativas, neces-sidade de internação e terapêutica especializada.

MODELO PRIVADO SUPLEMENTAR PRESENTEE A NOVA PROPOSTA

Nos casos em que essas situações ocorrem, o trabalhode Corrêa-Filho et al. (2001) analisa a grande capacidadede contratação de serviços de assistência médica suple-mentar por parte dos servidores (Gráfico 2). Nesses casoso trabalhador assegura assistência pelo pagamento de pla-nos de saúde ou de seguros de saúde. Nos dois modelos otrabalhador participa pelo pagamento de uma taxa mensale utiliza os serviços inclusos no contrato. A diferença estáno fato de que, quando utiliza um serviço particular, ocliente do seguro-saúde necessita desembolsar o valor doatendimento prestado, e é reembolsado pela seguradoraao apresentar comprovante de utilização e pagamento. Jáno plano de saúde o cliente não precisa pagar pelos servi-ços constantes no contrato quando utiliza serviço particu-lar. Em ambos, é necessário que o serviço de prestação deassistência médica seja credenciado como prestador deserviços do plano ou do seguro. O Gráfico 3 revela quequase 80% deles têm acesso a sistemas privados. Entre osservidores da Unicamp, no que se refere à cobertura porplanos de saúde, 64,2% possuem a Unimed como planode saúde; 13,6% possuem outro plano de saúde; 3,5%possuem seguro-saúde; 1,5% possuem seguro-saúde eUnimed. O trabalho revelou ainda que apenas 16,9% uti-lizam somente o SUS.

Esses dados revelam quão diferenciada é essa popula-ção, já que de acordo com Pesquisa Nacional por Amos-tra de Domicílios – PNAD/IBGE (Brasil, 1998) 75,5%da população não é coberta por planos de saúde.

FIGURA 1

Esquema dos Níveis de Atendimento à Saúde do Trabalhador da Unicamp edos Estudantes, Sugeridos para a Nova Estrutura

Campinas –1998

Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

GRÁFICO 2

Acesso dos Servidores a Serviços Suplementares de SaúdeCampinas – 1998

Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

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O Gráfico 3 confirma a maior procura dos trabalhado-res por atendimento de saúde especializado nos sistemasprivados quando comparada aos serviços públicos. Reve-la também que, exceto para o atendimento odontológico,os servidores possuem a Unimed como principal prove-dor de consultas médicas especializadas. Mesmo os ser-vidores possuindo o Cecom, na Unicamp, como provedorde serviço odontológico gratuito, a maioria dos usuáriosprocura atendimento particular, provavelmente em razãoda grande demanda e sobrecarga desse serviço.

Os Gráficos 3 e 4 exibem a procura por serviços desaúde especializados pelos servidores e seus dependentese internações entre SUS e Unicamp – essa separação foifeita apenas para fins de análise: a categoria SUS repre-senta utilização de serviços públicos fora da Unicamp, quetambém é do SUS.

Quando se observa o percentual de internação de ser-vidores por serviço de saúde nos últimos 12 meses (Grá-fico 4) no trabalho de Corrêa-Filho et al. (2001), consta-ta-se mais uma vez a importância dos provedores privados,sobretudo a Unimed.

O percentual de internação foi igual a 17,5% nos 12meses que antecederam o inquérito, com nível de confiançade 95% e sem diferenças significativas entre as diversascategorias profissionais e com relação ao grau de escola-ridade.

Na tentativa de elaborar um sistema de co-gestão al-ternativo para os servidores que utilizam os sistemas pri-

vados suplementares, o presente trabalho recorre a diver-sos autores para fundamentar a proposta.

De acordo com Silva et al. (1997): “o papel do setorprivado no financiamento e produção dos serviços de saú-de, bem como sua articulação com o setor público, consti-tuem-se hoje em uma etapa central do debate sobre asalternativas mais eficazes e menos custosas para a orga-nização setorial em diversos países do mundo”.

A Suécia, como muitos outros países, está submeten-do-se a uma rápida mudança no sistema de atenção à saú-de. Dentro da estrutura de financiamento público, os con-selhos locais têm começado a experimentar novos modelosde serviços que incorporem alguns elementos de marketingorientados ao sistema, tais como a competição pública eprivada e empreendimentos cooperativos.

Como mostra o estudo comparativo de Hansay et al.(1993), em janeiro de 1988, um centro de cuidados desaúde gerenciado pelo setor privado, entretanto publica-mente financiado (study centre), foi estabelecido em umaárea do subúrbio de Estocolmo. O contrato entre o em-preendedor privado e o conselho local de Estocolmo re-queria que os cuidados de saúde fossem fornecidos a umapopulação geograficamente definida e que o primeiro ado-tasse os mesmos princípios dos serviços públicos de ou-tras áreas. O cuidado deveria ser baseado então nas prin-cipais diretrizes do sistema primário de atenção à saúdesueco, mas o empreendedor deveria decidir como organi-zar o trabalho. Isso incluía empregar pessoas, custos por

GRÁFICO 3

Distribuição da Procura por Serviços de Saúde Especializadospelos Servidores e seus Dependentes nos Últimos 15 Dias

de Acordo com o AtendimentoCampinas – 1998

GRÁFICO 4

Distribuição de Internações, por Serviço de Saúde nos Últimos 12 MesesCampinas – 1998

Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001. Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

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SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

aluguel, equipamentos. No entanto, a marca do modelo éo afastamento do estado de sua obrigação de prover a as-sistência. Como resultado básico, observou-se que a re-dução de gastos esteve associada à restrição de ações pre-ventivas e informativas aos pacientes. Ao tentar substituiro sistema público como provedor de cuidados primários,implantando o sistema privado de cuidado gerenciado(mannaged care), inspirado no modelo americano, a Sué-cia excluiu a possibilidade de controle social e vinculouperversamente, mais uma vez, a saúde à perspectiva delucro. Por fim, o modelo sueco teve como base a merasubstituição das obrigações dos serviços públicos por pri-vados – levando ao controle de custos sem garantias deque os gastos implicariam qualidade e falhando porquenão foi incluída alguma forma de controle social externo.

Existem atualmente, segundo Duarte (2001), quatromodalidades assistenciais principais de medicina supleti-va: medicina de grupo, cooperativas médicas, os planospróprios das empresas e o seguro-saúde; cada uma comformas de estruturação, gerenciamento, financiamento eclientelas próprias. Entretanto, nenhuma dessas modali-dades, tanto no sistema de pré como no pós-pagamento,envolve formas de representação e participação dos usuá-rios na gestão.

A mescla dessa iminente necessidade dos usuários daassistência médica supletiva com iniciativa reformadorado Estado, que cada vez está mais pronunciada, e os inte-resses dos profissionais de saúde pode criar uma soluçãoviável para ser aplicada em nível local a uma populaçãoadscrita à grande empresa pública.

Um caso de implantação de assistência privada em am-biente universitário, no período 1998-2000, que pode serparcialmente analisado é o da Universidade EstadualPaulista; “a Unesp, preocupada em instituir um programade saúde voltado a sua comunidade, abrangendo seus ser-vidores docentes e técnico-administrativos, seus dependen-tes e o corpo discente, em 1989, instituiu uma Comissãopara estudar a implantação do Plano de Assistência Médi-ca e Odontológica na Unesp” (Mais Unesp, 2002). Combase nisso, várias experiências foram realizadas e aprimo-radas, incluindo tentativas de contratação de uma empresaespecializada para prestação de serviços de assistênciamédica, hospitalar, cirúrgica, ambulatorial e serviços au-xiliares, complementares de diagnóstico e terapia, e a Uni-versidade arcaria com parte do custo escalonado de acor-do com os salários dos servidores (Mais Unesp, 2002).

Com base em estudo realizado em 1995 na Unesp, ve-rificou-se que aproximadamente 60% de seus servidores

tinham algum Plano de Saúde, quase 80% desses por in-termédio de alguma associação profissional, e, por causada inviabilidade – a curto e médio prazo – de incorporaruma despesa dessa magnitude no orçamento da Unesp,julgou-se que a costura de um Plano de Saúde próprio eranecessária; para tanto, passaria por amplo acordo entre asassociações envolvidas, os servidores interessados, asentidades prestadoras de serviços e a própria Reitoria.

Assim, em junho de 1998, foi realizada uma reuniãoentre a Pró-Reitoria de Administração (Prad), o Sintunesp,a Adunesp e os representantes das Associações de Servi-dores, na qual, entre outras coisas, decidiu-se por consti-tuir uma Comissão para estudar um Plano de Saúde viávelpara as características e as necessidades da comunidade.Desse trabalho surgiu o Mais Unesp – Manutenção e As-sistência Integral à Saúde dos Servidores da Unesp (MaisUnesp, 2002).

Considerando as semelhanças entre o trabalho realiza-do na Unesp e o trabalho realizado na Unicamp por Corrêa-Filho et al. (2001), acredita-se que esse seja um momentooportuno para início dos debates sobre um modelocampineiro de assistência à saúde suplementar para os tra-balhadores da Unicamp.

Embora seja diferente do modelo de autogestão adota-do na Unesp, quanto às formas de representação adminis-trativa, o sistema de co-gestão aqui proposto apresentacomo características em comum: não ter finalidade lucra-tiva, ou seja, o que seria lucro é revertido em benefíciospara os usuários; o plano de saúde ser gerado de acordocom as características e necessidades dos usuários; pre-tender agregar outros tratamentos; pretender alcançar onível de atenção integral à saúde; propor assistência aosdependentes dos servidores; pretender adotar custos finaisbem inferiores aos planos de saúde equivalentes em ou-tras modalidades do mercado; possibilitar o desenvolvi-mento de programas de prevenção à saúde e de incentivoà qualidade de vida (Mais Unesp, 2002).

No modelo co-gerido, cada um dos quatro grupos en-volvidos elegeria periodicamente seus representantes, for-mando uma comissão tetrapartite responsável pela gestãodos serviços de saúde no câmpus (Gráfico 5). Por permi-tir a participação ativa e constante de todos, esse modelofacilitaria a disseminação das informações e promoveriamaior interesse, principalmente dos trabalhadores, nasdiscussões relativas à saúde.

Acredita-se hoje que uma das limitações fundamentaisdo sistema privado é justamente o fato de que o consumi-dor não conta com a informação e a autonomia de decisão

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necessárias para eleger o tipo de serviço que necessita,assim como desconhece a prestação mais adequada pararesolver seus problemas com menor custo e melhor quali-dade. Assim, o prestador controla e influi decisivamentena demanda de prestações com o propósito de aumentarseu lucro e dessa forma maximizar sua ganância (Navarreteet al., 1992).

Diferentemente do serviço privado tradicional, o usuá-rio do modelo aqui proposto deverá ser constantementeinformado acerca do funcionamento e da quantidade derecursos que dispõe (equipamentos, exames, especialis-tas e outros). Além de compreender melhor as atividadesdesenvolvidas, a co-gestão permite aos usuários compar-tilhar a decisão de como e onde seus recursos financeirosserão alocados.

Bahia (2001) acredita que “a divisão entre o sistemapúblico e privado segue baseada na idéia de clientespagantes e não-pagantes”. Esse modelo pode possuir umcaráter de sistema privado por ser uma forma de assistên-cia à saúde suplementar ao SUS, alternativa aos demaissistemas de atenção médica supletiva, ser destinado a umgrupo específico e envolver a participação financeira deseus associados. Entretanto, como não haverá uma em-presa responsável pela produção dos serviços com o ob-jetivo de lucro, e por este modelo propor a incorporaçãoe participação de diversos setores da comunidade univer-sitária na gestão, essa modalidade de atenção assume maisum caráter de articulação dos interesses públicos com osinteresses de seus servidores. E, neste caso, os interessesnão são exclusivamente privados, principalmente se con-

siderarmos que a saúde do trabalhador é um fator que ocapacita ao trabalho e que a Universidade Pública é oempregador.

O trabalho de Corrêa-Filho et al. (2001), no item prio-ridades espontâneas, revelou que há um desejo evidenteda comunidade universitária de melhoria do sistema deatenção à saúde no câmpus. A inexistência de um serviçode saúde local que atenda de forma rápida às demandaspor atendimento de saúde mental, problemas cardiovas-culares, nutrição e outros, dos servidores e principalmen-te de seus dependentes, é uma das razões que os levam àcontratação de planos suplementares. Os Gráficos 3 e 4mostraram que tanto os serviços do Iamspe quanto do SUSsão pouco utilizados pelos servidores.

Analisando o setor privado, julga-se, aqui, que a con-tratação de planos de saúde pelos servidores não é a me-lhor alternativa para eles, assim como não o é para a uni-versidade pelos seguintes motivos: as modalidades atuaisde assistência médica suplementar impedem mecanismosde controle social; não há uma atenção especial às neces-sidades de toda essa população; e a maioria delas envolvea perspectiva de lucro. Dessa forma, a falta de veículosque permitam a participação dos servidores na gestão des-ses planos, a atenção à saúde de forma fragmentada e anão potencialização dos recursos concorrem negativamentepara configuração de eficientes sistemas de saúde.

Sempre haverá situações e serviços que acabarão de-sembocando na grande porta, quase sempre sobrecar-regada, em que o SUS se constitui. O sistema de saúdeprivado aqui proposto, co-gerido, local, suplementar aoSUS e alternativo às demais modalidades de assistênciamédica, pretende, dentro de suas limitações estruturais,minimizar essa porta de saída oferecendo serviços de acor-do com o perfil de necessidade dessa população. Não sedeseja e não se pretende de forma alguma substituir a aten-ção terciária fornecida pelo SUS em níveis mais comple-xos. Pretende-se, apenas, que esse modelo represente umaopção mais eficiente e mais resolutiva para os servidores,podendo ressarcir ao SUS as despesas realizadas com seususuários e dependentes.

Implantar uma rede de serviços hierárquica que impe-ça, por exemplo, a consulta direta a médico especialistasem antes passar por generalista; que possibilite a organi-zação de equipes de saúde responsáveis por determinadogrupo de servidores e seus dependentes; que promova pro-gramas constantes de educação e promoção à saúde; quepriorize a atenção preventiva em detrimento da curativa, éfator que pode diferenciar esse modelo privado dos demais.

GRÁFICO 5

Participação da Universidade, do SUS, dos Profissionais de Saúdee dos Trabalhadores na Gestão dos Serviços de Saúde

em Câmpus de Universidade PúblicaCampinas – 1998

Fonte: Corrêa – Filho et al., 2001.

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SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

MODELO GERAL DE CO-GESTÃOPARA A UNIVERSIDADE

O modelo proposto para a nova estrutura é o de co-gestão tanto para o serviço público de saúde do trabalha-dor, quanto para o serviço privado suplementar. Propõe-se a formação de comissões de co-gestão constituídas porrepresentantes do Poder Público, da Unicamp e dos tra-balhadores.

O Poder Público é entendido como SUS e PrevidênciaSocial. De acordo com a Lei no 8.080 de 1990, a execu-ção de ações de saúde do trabalhador está no campo deatuação do SUS, justificando a atuação desse órgão nomodelo (Brasil, 1990a).

A primeira Norma Regulamentadora de saúde do tra-balhador apresenta o empregador como responsável peloque acontece à saúde do trabalhador no âmbito do traba-lho, e justificada a participação da Unicamp como em-pregadora (Brasil, 2002).

Já a participação do servidor é embasada no que foiestabelecido pela Norma Operacional de Saúde do Tra-balhador, afirmando: “o direito de participação dos tra-balhadores e suas entidades representativas em todas asetapas do processo de atenção à saúde, desde o planeja-mento e estabelecimento de prioridades, o controle per-manente da aplicação dos recursos, a participação nas ati-vidades de vigilância em saúde, até a avaliação das açõesrealizadas” (Brasil, 1998).

Copiando a representação dos usuários nos conselhosde saúde, a representação dos trabalhadores no modelode co-gestão será paritária em relação ao conjunto dosdemais segmentos, isto é, 50% de representantes de tra-balhadores usuários e 50% dos demais representantes(Brasil, 1990b).

Como há necessidade de disponibilização de recursostanto para a implantação como para manutenção do novomodelo, o investimento deverá ser feito pelo Poder Pú-blico e pela Universidade em virtude dos trabalhadoresserem contribuintes da União, já participando desse in-vestimento para a constituição do SUS. A parcela de par-ticipação financeira desses dois co-atores não é discutidaaqui, deixando à comissão de gestão a decisão de qual seráa parcela que cada um deva empenhar.

No caso da co-gestão privada dos serviços, a formaprovável de gestão poderia ser a de modelo cooperativode usuários de serviços de saúde, com finalidades não lu-crativas, podendo ou não receber subsídios de manuten-ção do poder público. A discussão sobre esse subsídio seria

dependente da decisão sobre os descontos para assistên-cia médica que o Estado faz hoje do pagamento dos fun-cionários. A estipulação de valores é uma tarefa queextrapola as possibilidades desse trabalho. Mesmo assim,acredita-se que o deslocamento da contribuição dos ser-vidores da Unicamp, do Iamspe para um serviço de saúdepróprio, já se constitui, de início, fonte provável de divi-sas. Oliveira e Vasconcellos (1992) já afirmavam que aexecução de uma política eficiente de Saúde do Traba-lhador deve, além de transpor a formação de quadros tec-nicamente competentes e o compromisso com a questãoideológica que envolve a área, atrair a participação dopoder público, dos empregadores e dos trabalhadores.

É evidente a presença de conflitos de interesses nessemodelo pois, essencialmente, os trabalhadores desejamatenção adequada à saúde, e a administração da Universi-dade e o Poder Público buscam constantemente o cortede gastos. Apesar desses conflitos, o modelo de co-ges-tão (Figura 2), não deve defender interesses de um grupo,mas gerenciar com compromisso social.

Ao serem tomados como compromisso social, saúde ebem-estar social precisam ser buscados pela comissão deco-gestão por meio da instituição e desenvolvimento dasações que a Norma Operacional de Saúde do Trabalhadorapresenta, englobando a prevenção de danos à saúde dotrabalhador e o atendimento aos possíveis agravos quepossa apresentar (Brasil, 1998).

Conforme Oliveira e Vasconcelos (1992), o compro-misso de mudança na atual situação de assistência à saú-de do trabalhador “deve conter o paradigma do direito à

FIGURA 2

Conflitos de Interesses e o Objetivo Comum, Compromisso Social,no Modelo de Co-gestão

Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

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vida”. Infelizmente, se esse argumento for utilizado comojustificativa para a implantação desse modelo, é incertoque o Poder Público e a Universidade reconheçam seuspapéis. Então, é preciso recorrer a Riedel et al. (2001),que revelam que o aumento da produtividade é resultadoda redução de faltas ao trabalho pela prevenção de doen-ças e a promoção da saúde, e com a melhoria do desem-penho, da criatividade e da motivação causada pela admi-nistração de doenças crônicas e agudas. Também apontamque a redução de gastos com saúde é proveniente de in-tervenções que proporcionem segurança e saúde ambiental,e que possibilitem a incorporação de uma cultura saudá-vel. Contudo, os maiores desafios do sucesso de um pro-grama de prevenção de doenças ou promoção da saúdesão conseguir altas taxas de participação e manter a alte-ração do comportamento com o passar do tempo.

Por vezes, o corporativismo expresso por interessesegoístas imediatos de categorias profissionais impediu odesenvolvimento do trabalho em saúde. A ampliação doconceito de saúde com a formação de uma equipemultiprofissional, responsável por prover os serviços, rom-pe com o conceito de cooperativa fundado no exercíciocorporativo das profissões. Em que pese o surgimento denovos fatores sociais que impõem o reconhecimento da im-portância de condições múltiplas para o estado de “bem-estar social”, as corporações, entre elas a corporação mé-dica, têm tentado adaptar-se aos novos tempos e novaspolíticas surgidas com a redemocratização do país e o SUS.Esse movimento é denominado de “neocorporativo” (Ri-beiro, 1993). No entanto, a corporação médica não conse-guiu ultrapassar a barreira “intra-corporativa”, pois se des-conhecem referências a cooperativas multiprofissionais deserviços de saúde.

Nesse sentido, propõe-se, para os serviços suplemen-tares privados, a formalização de uma cooperativa não demédicos mas de usuários de serviços de saúde, na qual osprofissionais de saúde seriam contratados – médicos, en-fermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos,terapeutas ocupacionais e outros – e teriam assento às de-cisões de gestão em proporção compartilhada com a dogestor público – o “patrão” estatal e SUS. No caso dasUniversidades, o representante patronal estará na depen-dência de designação pelas reitorias. O SUS já tem suasdefinições de representação regional estatal definidas emleis e portarias. Esses atores deveriam ter no máximo 50%do poder de voto, restando aos usuários os outros 50%.

Para Cohn (1996), o poder local pode ser um espaçoprivilegiado para constituição de uma nova relação da

sociedade com o Estado e de construção de novas identi-dades de sujeitos sociais. A universidade pública podeinteragir com esse modelo propondo estudos periódicossobre prevalência de doenças e afastamentos do trabalhoentre servidores do câmpus, realizados por alunos de ini-ciação científica, especialização ou mestrado, favorecen-do o estabelecimento de prioridades. O espaço públicoprecisa ser reconhecido como um ambiente de trabalhoque requer intervenções típicas em saúde. A Unicamp, alémadministrar esse espaço, é o patrão público de grande nú-mero de funcionários que contribuem para geração de re-cursos humanos para a sociedade. Articular-se com osservidores para a construção de um forte sistema de aten-ção à saúde local torna-se, portanto, um dever.

CONCLUSÃO

O modelo aqui discutido propõe estabelecer serviço desaúde público e outro privado para trabalhadores da grandeempresa pública – a Universidade – com gestão paritária(50% trabalhadores; 50% universidade e poder público),seguindo as diretrizes constitucionais e legais do SUS. Noserviço privado suplementar propõe-se que os 50% dopoder público e da universidade sejam também comparti-lhados com representantes dos profissionais de saúde queatendem ao serviço suplementar, ficando portanto cadasegmento com 16% dos votos (Universidade, SUS e pro-fissionais de saúde).

A criação de um Serviço de Saúde do Trabalhador efi-ciente e de uma Cooperativa Suplementar Privadaofertaria serviços multiprofissionais de saúde capazes deajustarem-se a novas realidades e sobreviver em momen-tos críticos. A manutenção deste modelo de saúde do tra-balhador requer condições favoráveis e um ambiente so-cial em contínua evolução.

A adoção do sistema de co-gestão representa avançohistórico na mudança de comportamento da Universidadeem relação a seus trabalhadores. A existência de meca-nismos de controle social sobre a provisão de serviços éuma experiência bem-sucedida que já existe no SUS háanos. Adotar essa prática significa abandonar a posiçãorelutante e omissa que a universidade pública vem man-tendo.

O fato de propor-se este modelo não esgota a discus-são e pesquisa sobre decorrências sociais, assistenciais epolíticas, já que a Saúde do Trabalhador, em espaços sub-metidos à gerência pública, não tem experiências anterio-res no país.

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SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

NOTAS

PBIC-CNPq/Unicamp 2001-2002. Correspondência para: UnicampFCM/DMPS – 13.081-970.

Agradecemos à Dra. Joana D’Arc Vieira Neto, diretora do Serviço deSegurança e Saúde do Trabalho, e ao grupo de pesquisa Epidemiologiae Saúde do Trabalhador da Unicamp cujas sugestões feitas foram im-portantes para a conclusão deste trabalho.

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PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: UM BALANÇO DA REFORMA

O

PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRAum balanço da reforma

Resumo: Este texto faz uma análise exploratória do impacto da reforma na previdência social brasileira. Ape-sar de recente, esperava-se retração na demanda de benefícios, especialmente a de aposentadoria. Contudo, aevolução dos benefícios aponta para resultados não conclusivos, pois ainda se faz sentir a incerteza do períodoanterior. O artigo resgata, ainda, o significado da seguridade social na Constituição de 1988 e explora o con-texto internacional e da América Latina.Palavras-chave: reforma previdenciária; financiamento da previdência social; seguridade social.

Abstract: This text carries out an exploratory analysis of the impact of reform on the Brazilian social welfaresystem. Though attempts at reform are recent, an expectation was created for a decline in benefit demand,especially with regard to retirement benefits. However, results are inconclusive, due to uncertainties inheritedfrom the past. This article goes on to examine the significance of social welfare in the 1988 Constitution andto explore the international and Latin American contexts.Key words: welfare reform; financing of social welfare system; social welfare system.

ROSA MARIA MARQUES

MARIANA BATICH

ÁQUILAS MENDES

SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 111-121, 2003

debate sobre a necessidade de alteração dasregras de acesso à previdência social brasilei-ra, bem como sua forma de financiamento, teve

início quase que simultaneamente à votação da Consti-tuição de 1988. Na época, o próprio governo, que ha-via criado o Grupo de Trabalho para embasar a refle-xão e as propostas a serem discutidas na Constituinte,manifestava-se contrário à introdução do piso de umsalário mínimo para os benefícios. Seu argumento eraque a ampliação dos direitos no campo da proteçãosocial e a concessão do piso de um salário mínimo atodos trabalhadores, inclusive aos rurais que até entãonão contribuíam, não tinham sido garantidas por umvolume suficiente de recursos. Segundo sua avaliação,em um prazo muito curto, a previdência estaria imersaem problemática crise financeira.

Apesar das resistências governamentais, os constituin-tes, influenciados pelo ambiente político-social da aber-tura e com um discurso de que era preciso resgatar a enor-me dívida social brasileira herdada do regime militar,aprovaram uma Constituição que procura garantir os di-reitos básicos e universais de cidadania, estabelecendo odireito à saúde, à assistência social, ao seguro-desempre-

go e à previdência em um capítulo específico – daSeguridade Social.

O tratamento concedido ao campo da proteção socialna Constituição de 1988 foi resultado da defesa realizadapelos setores progressistas que demandavam, na época, aconstrução de um sistema voltado a: ampliação da cober-tura para segmentos até então desprotegidos; eliminaçãodas diferenças entre trabalhadores rurais e urbanos refe-rentes aos tipos e valores de benefícios concedidos;implementação da gestão descentralizada nas políticas desaúde e assistência; participação dos setores interessadosno processo decisório e no controle da execução das polí-ticas; definição de mecanismos de financiamento maisseguros e estáveis; e garantia de um volume suficiente derecursos para a implementação das políticas contempla-das pela proteção social, entre outros objetivos.

Na realidade, alguns avanços visando a universalização,da ampliação da cobertura e a diminuição das desigual-dades antecederam a Constituição de 1988. No que dizrespeito à previdência, especificamente entre 1985 e 1987,o valor dos pisos dos benefícios urbanos foi aumentado,o prazo de carência, diminuído, e alguns tipos de benefí-cios foram estendidos para a clientela rural. Pode-se di-

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zer, contudo, que o amparo social definido pela Consti-tuição significou a consolidação de um processo de dis-cussão que vinha sendo realizado pela sociedade desde ofinal dos anos 70, no bojo da luta democrática.

O AVANÇO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988E SEUS PRINCÍPIOS

O conjunto de proposições, que garantiu a instituiçãodo campo da seguridade social na Constituição, substi-tuía o caráter meritocrático – o qual, até então, havia sus-tentado a proteção social, particularmente na área da pre-vidência e na da saúde – pelo princípio da cidadania. Esseprincípio, cabe lembrar, foi o mesmo que orientou auniversalização da proteção social dos países capitalistasdesenvolvidos, após a Segunda Guerra Mundial e mesmodurante os anos 70 e 80. Ainda que as economias dessespaíses começassem a apresentar problemas ao final dadécada de 70, principalmente devido à retração do cres-cimento econômico, à elevação das taxas de desemprego,ao surgimento de déficits fiscais e ao aumento do nível depreços, os sistemas de proteção social ampliaram seu cam-po de ação, incorporando novos segmentos em sua cober-tura. Os exemplos mais característicos dessa fase são: ofato de passar a ser reconhecido como desempregado otrabalhador sem emprego que nunca trabalhou e osurgimento de programas de renda mínima, animados peloprincípio da cidadania e não entendidos como uma meraação assistencial.

Para garantir os direitos do cidadão no campo daseguridade social, os constituintes estabeleceram um es-quema de financiamento com recursos provenientes dosorçamentos das áreas federal, estadual e municipal, e decontribuições sociais, calculadas sobre o salário, ofaturamento e o lucro líquido (art. 195 da ConstituiçãoFederal).

Saliente-se que os constituintes também defendiam queas fontes de financiamento da seguridade social não se-riam distintas de seu conceito. Em outras palavras, consi-deravam, ao ser eleita a cidadania e não o mérito como areferência para o direito à proteção social, estabelecidoque a sociedade deveria, a cada ano, discutir e definir deque forma seria realizada a partilha do conjunto de recei-tas previstas para a seguridade social. Isso significa dizerque os constituintes se colocaram contra o estabelecimentode vinculação de receitas no interior da seguridade social.A única exceção ficou por conta do PIS/Pasep, que pas-sou a ter uso exclusivo do programa seguro-desemprego

e do pagamento do abono PIS/Pasep, sendo 40% de suaarrecadação destinada a empréstimos realizados peloBNDES às empresas.

O AMBIENTE INTERNACIONAL E DAAMÉRICA LATINA

O debate acerca da reforma da previdência social, nosanos 90, insere-se na discussão realizada internacional-mente sobre o futuro da proteção social. Entre os cons-trangimentos que justificavam essa preocupação, desta-cava-se a manutenção de altas taxas de desemprego nospaíses capitalistas avançados, o que comprometia a arre-cadação das receitas de contribuição de empregados eempregadores e o aumento da despesa com o seguro-de-semprego e programas de renda mínima. Além disso,muitos regimes de previdência começaram a apresentarproblemas na relação contribuintes/beneficiários, não sócomo reflexo da nova situação do mercado de trabalho,como também pela tendência ao envelhecimento da po-pulação que já se manifestava mesmo antes da crise sur-gir. Para complicar ainda mais a situação financeira dossistemas de proteção social e, por decorrência, da previ-dência, outra tendência observada desde os anos 60 con-tinuava a preocupar: o aumento crescente dos gastos comsaúde.

Num primeiro momento, para manter o equilíbrio fi-nanceiro, os países avançados criaram, durante os anos80, vários procedimentos: a) aumento das contribuiçõessociais; b) maior participação dos usuários nas despe-sas com assistência médica; c) incentivo à comple-mentação da aposentadoria através de entidadesprivadas; d) estreitamento da variação do valor da apo-sentadoria, reajustando aquelas com valores mais bai-xos em detrimento daquelas de níveis mais elevados(Marques e Médici, 1994). Ao mesmo tempo, tiverama preocupação de implementar políticas que garantis-sem mínimos de renda e aumentaram a participação doEstado no financiamento da proteção social. A garan-tia de mínimos fica evidente quando se acompanhamas reformulações efetuadas no seguro-desemprego, prin-cipalmente na França. Nesse país, inicialmente foi in-troduzido um benefício de baixo valor para os desem-pregados de longa-duração – que tinham esgotado otempo de permanência no seguro-desemprego “nor-mal”– e para os desempregados que sequer chegaram aentrar no mercado de trabalho. Depois, foi criada a Ren-da Mínima de Inserção – RMI, programa que preten-

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PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: UM BALANÇO DA REFORMA

dia, mediante concessão de renda mínima, criar as con-dições do trabalhador voltar ao (ou ingressar no) mer-cado de trabalho. A permanência do trabalhador noprograma, pensada inicialmente como temporária, de-monstrou-se, contudo, permanente devido à continui-dade das altas taxas de desemprego.

Nos anos seguintes, apesar da adoção de novas medi-das, tais como o aumento da idade para a concessão daaposentadoria e tratamento igual para os gêneros em al-guns países, pode-se dizer que, nos anos 90, nos paíseseuropeus de forte tradição sindical, a proteção social pú-blica, universal e sob regime de repartição continuou sen-do o principal sistema de apoio existente.1 Cabe assinalarque o benefício-base concedido por esses sistemas é social-mente reconhecido como suficiente para responder às ne-cessidades dos segurados e a diversidade de benefícios ébastante reduzida quando se tem presente a variação en-tre um e dez salários mínimos que havia no sistema brasi-leiro. Por outro lado, nesses países, os sistemas comple-mentares de caráter facultativo sempre foram signi-ficativos, tornando-se mais fortes nos últimos anos, prin-cipalmente em função da alta rentabilidade de suas apli-cações no setor financeiro.

Na América Latina, no entanto, onde a proteção socialem geral sempre foi precária, não atingindo o conjunto dapopulação e, muitas vezes, não constituindo um sistemaunificado e sim formado de diversos regimes de basecorporativa, a história da reforma foi diferente. Váriospaíses, reféns da dívida externa e constrangidos pelo fra-co crescimento econômico, seguiram os ditames e as me-tas do Fundo Monetário Internacional, promovendo refor-mas ao gosto neoliberal em seus sistemas de proteçãosocial. Desnecessário dizer que essas reformas, defendi-das em geral pelos representantes do Banco Mundial, doFMI e agências internacionais, nunca foram colocadas emprática nos países avançados. Para se ter uma idéia, de-pois que o Chile, em 1982, privatizou a previdência so-cial, outros sete países do continente – Bolívia, El Salva-dor, México, Peru, Colômbia, Argentina e Uruguai –introduziram reformas no sentido da privatização e dacapitalização, ainda que seguindo modelos gerais diver-sos e com importantes diferenças na sua implantação. Essespaíses seguiram as recomendações do Banco Mundial,expressas em especial no documento “Envelhecer semcrise” (Dieese, 2001).

É nesse contexto – internacional e da América Latina– que se insere a discussão da reforma da previdência so-cial brasileira.

O QUESTIONAMENTO DA CONSTITUIÇÃO EOS ARGUMENTOS DA REFORMA

A partir dos anos 90, a crescente crise fiscal-financei-ra do Estado, o fraco desempenho da economia e o cres-cimento da taxa de desemprego e do trabalho informalpropiciaram o fortalecimento do discurso sobre a neces-sidade de reformar a previdência social. Entre os váriosargumentos, um dos que se destacavam defendia que osdireitos introduzidos pela Constituição de 1988 teriamprovocado fortes desequilíbrios no sistema previdenciário.Vários especialistas – ainda que não concordassem comesse argumento – exigiam mudanças levando em conta apersistência de tratamento desigual entre diferentes cate-gorias de trabalhadores ou os impactos provocados pelasalterações no perfil demográfico e na transformação darelação entre capital e trabalho, decorrente da adoção dasnovas tecnologias e formas de gestão no sistema produti-vo brasileiro.

Em meados dos anos 90, as mais de 20 propostas emdiscussão sobre a reformulação da seguridade social e daprevidência já podiam ser reunidas em duas grandes ver-tentes: as que consideravam a proteção social como tare-fa do Estado e as que a compreendiam como responsabi-lidade individual do cidadão. Essa última, situadaclaramente no campo neoliberal, justificava que somenteadotando um sistema privado e de capitalização as pes-soas teriam estímulo para melhorar seu rendimento e, porconseqüência, aumentarem sua capacidade de poupança,criando as bases necessárias para a sustentação financei-ra do desenvolvimento do país. Coerentes com essa vi-são, defendiam que o financiamento deveria ser unicamentesustentado pelo trabalhador/indivíduo. Dessa forma, se-ria eliminado – no entender dessa perspectiva – odesestímulo à contratação no mercado de trabalho, poisos encargos sociais seriam ou eliminados de todo ou sen-sivelmente diminuídos, o que permitiria aumentar acompetitividade dos produtos brasileiros no mercado in-ternacional, aumentando as exportações. Além disso, comoreconhecem que o mercado não é totalmente perfeito, deforma que alguns indivíduos são submetidos a situaçõesde carência, admite a ação assistencial do Estado, finan-ciada através da receita de impostos.

Entre as propostas que defendiam a manutenção doEstado como responsável pela organização e gestão daproteção social, vale destacar as do deputado EduardoJorge, a da Comissão Especial para o Estudo do SistemaPrevidenciário – cujo relator foi Antônio Brito (depois

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Ministro da Previdência Social) – e a proposta de ReinholdStephanes. Essas e todas as outras propostas que preser-vavam o papel-chave do Estado na previdência social,embora fossem unânimes em sugerir que o financiamentocontinuasse a ser realizado através de contribuições de em-pregadores e empregados, defendiam a diversificação dasfontes. Isso porque tinham como objetivo compensar ofraco desempenho das contribuições sobre a folha de sa-lários, e até mesmo reduzir a carga contributiva das em-presas, visando estimular a contratação de trabalhadoresno mercado formal. De maneira diferenciada, as propos-tas defendiam vários tetos para os benefícios concedidospelo setor público e algumas chegavam a propor a adesãocompulsória a um regime complementar. Era consenso,contudo, a extinção da aposentadoria por tempo de servi-ço e da aposentadoria especial.

Ainda entre aqueles que defendiam a manutenção daprevidência pública, havia o debate sobre a pertinênciaou não da criação de um sistema previdenciário único,integrando os funcionários públicos federais – bem comoos do Judiciário, Forças Armadas, entre outros – e os de-mais trabalhadores. Essa proposta sofreu forte repúdio porparte dos funcionários públicos, dos sindicatos e da Cen-tral Única dos Trabalhadores.

BASES DOS PRINCIPAIS ARGUMENTOS DAREFORMA PREVIDENCIÁRIA

No início da discussão sobre a necessidade de refor-ma, ficou quase chavão dizer que seus problemas deriva-vam de problemas de caráter estrutural, conjuntural egerencial, e que havia uma estreita relação entre eles.

Entre os problemas apontados como estruturais, desta-cava-se a baixa relação contribuintes/segurados.2 De fato,todos os regimes de repartição passam pela seguinte tra-jetória: inicialmente apresentam uma relação positiva ex-tremamente alta, pois é crescente a entrada de contribuin-tes no sistema e o pagamento de benefícios se restringe àaposentadoria por invalidez e à pensão por morte. Namaturidade, no entanto, quando parcela significativa deseus contribuintes alcança a idade mínima para requereraposentadoria ou cumpre a carência de contribuição, essarelação decresce de forma significativa.

A queda dessa relação é ainda mais acentuada quandoconcorrem dois outros fatores, tal como acontece no Bra-sil: o aumento crescente da expectativa de sobrevida daspessoas que se aposentam e a redução do número de tra-balhadores ativos devido à crise econômica prolongada

e/ou à mudança da relação entre capital e trabalho em fun-ção do uso de novas tecnologias e novas formas de gestão.No caso brasileiro, ainda, a baixa capacidade fiscalizatóriado Estado – em parte decorrente da crise fiscal e financei-ra dos anos 90 – favoreceu a ampliação do mercado in-formal de trabalho, com evidente perda de arrecadaçãode contribuições sociais.

Dentre os fatores “conjunturais”, eram destacados obaixo crescimento das contribuições previdenciárias e oaumento das despesas com benefícios, explicados pelofraco desempenho da economia e pelo crescimento dademanda de caráter assistencial. Em relação aos aspectos“gerenciais”, o argumento geralmente atribuía à gestãopública adjetivos como precária, burocratizada e inefi-ciente, o que resultava em altos custos operacionais e noelevado número de fraudes e de sonegação.

A REFORMA NO GOVERNO FHC

Em março de 1995, o governo FHC apresentou ao Po-der Legislativo proposta de alterações do sistema pre-videnciário brasileiro, abrangendo o setor privado e opúblico, compreendendo os funcionários públicos civis,militares e a magistratura. Essa proposta baseava-se emsua compreensão da situação e da evolução do comporta-mento das contas públicas, da economia e da demografia,e de seus efeitos sobre o sistema previdenciário do país.Os fatores que constrangiam as contas da previdência so-cial são resumidamente apresentados nos parágrafos se-guintes.

Na década de 90, as fontes tradicionais de suprimentodos gastos públicos – o aumento de impostos e o endivi-damento do Estado – não tinham como continuar a serutilizadas para propiciarem aumento de receitas. A con-juntura econômica interna em favor da estabilidade damoeda e as pressões externas, especialmente do FMI, paraa contenção do déficit público constituíam um poderosofreio à utilização desses meios.

Além dos problemas de ajuste do orçamento estatal, asociedade brasileira passou a conviver com altas taxas dedesemprego, causadas pela deterioração econômica, ini-ciada na década de 80, e aprofundada com a abertura domercado brasileiro à importação de produtos estrangei-ros, com a política de juros elevada e com a âncora cam-bial que acompanhou a entrada do real; e pela introduçãode inovações tecnológicas. O aumento do desemprego foiacompanhado da diminuição do número de trabalhadorescom carteira assinada e do aumento da quantidade dos que

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se dirigiram para a informalidade. Como somente aquelessão obrigados a contribuir para a previdência, garantindoos recursos necessários para fazer frente às despesas comos benefícios previdenciários, a diminuição de trabalha-dores registrados no mercado de trabalho provocou que-da dos rendimentos do caixa da previdência pública ouum desempenho bastante medíocre, não só incompatívelcom a evolução das décadas anteriores, como insuficien-te para fazer frente às despesas.

O equilíbrio das contas previdenciárias também pas-sou a ser prejudicado pelas transformações em curso daestrutura demográfica do Brasil, argumento que já era uti-lizado na defesa da reforma da previdência social no pe-ríodo imediatamente anterior ao governo FHC. Uma dastransformações refere-se ao aumento da expectativa devida da população, reflexo do avanço técnico-científicoque atinge a todos os povos, independentemente do seugrau de desenvolvimento, permitindo o prolongamento,cada vez maior, do número de anos de vida da populaçãoadulta. A outra se refere à queda da taxa de crescimentoda população devido à diminuição da taxa de fecundidade,causada pelas transformações econômicas e sociais domundo moderno e o avanço de métodos contraceptivos.

Como dito anteriormente, o sistema previdenciário bra-sileiro está baseado na repartição simples, isto é, são osatuais membros da população em idade ativa, através desuas contribuições previdenciárias, que garantem os re-cursos para pagamento dos benefícios, esperando que asgerações futuras, com suas contribuições, façam o mes-mo. Diante do comportamento demográfico brasileiroapontado acima e explorado mais adiante, alterou-se a taxade dependência da população aposentada em relação àpopulação ativa, o que poderia colocar em risco o sistemapúblico de previdência.

Algumas propostas governamentais, para serem apro-vadas, deveriam ser antecedidas por mudanças nas dispo-sições da Constituição de 1988, enquanto outras não fe-riam princípios da Carta Magna. Por esse motivo, entre1994 e 1996, foram extintos alguns tipos de benefíciosdestinados aos trabalhadores do setor privado, como oabono, o pecúlio, os auxílios natalidade e funeral,3 e limi-tada a concessão das aposentadorias especiais.4

Embora o Poder Executivo tivesse colocado em dis-cussão a reforma da previdência já no princípio dos anos90 – mal tinham sido decretadas as Leis no 8.212 e no 8.213,que regulamentavam respectivamente o custeio e os be-nefícios previdenciários, segundo as determinações daConstituição de 1988 –, somente em 1995 tomou as pro-

vidências para mudar os dispositivos constitucionais quepermitiriam as mudanças que considerava necessárias.Assim, em março de 1995, apresentou ao Congresso Na-cional a proposta de emenda constitucional conhecidacomo PEC 33. As discussões a respeito ficaram em pautaaté julho de 1996. Devido às repercussões negativas quesuscitou em relação a alguns aspectos da proposta, sofreureformulações, sendo reapresentada em 1997. No dia 15de dezembro de 1998, finalmente foi aprovada a EmendaConstitucional no 20.

Uma das alterações do sistema previdenciário que exi-giam mudança na Constituição referia-se à imposição deum limite de idade para obtenção da aposentadoria portempo de serviço, a fim de impedir a crescente participa-ção de pessoas com idade inferior a 50 anos no sistema debenefícios, embora apresentassem todas as condições decontinuar sua vida ativa. Essa proposta, entre todas enca-minhadas pelo governo, foi a que mais causou polêmica edivulgação pela mídia no período de discussão da refor-ma, uma vez que sua alteração iria atingir tanto os traba-lhadores do setor privado como do setor público.

Em relação ao sistema previdenciário dos trabalhado-res do setor privado, foco desse estudo,5 os dispositivosda Constituição de 1988 levados à revisão e aprovadospela Emenda Constitucional no 20 foram: a eliminação doteto de dez salários mínimos para o pagamento dos bene-fícios das aposentadorias por tempo de serviço e das re-gras de cálculo desse benefício (média aritmética dos úl-timos 36 meses); e a criação de condições para que osistema público de previdência siga regras que propor-cionem o equilíbrio financeiro e atuarial.

Com a aprovação da EC no 20, a Constituição passaa determinar que o segurado, para ter direito à aposen-tadoria, contribua no mínimo durante 35 anos, se ho-mem, ou 30, se mulher. No caso da aposentadoria poridade, o homem necessita ter 65 anos e a mulher, 60.Permaneceu a redução de 5 anos para os rurais de am-bos os sexos e para o professor que “comprove exclu-sivamente tempo de efetivo exercício das funções demagistério na educação infantil e no ensino fundamen-tal e médio” (art.201, parágrafos 7o, inciso l e II, e 8o ).Graças aos novos dispositivos constitucionais, a partirde dezembro de 1998 o governo pôde então elaborarleis ordinárias permitindo mudanças no sistema pre-videnciário e normas para a transição das antigas de-terminações legais para as novas.

A Lei no 9.876/99, apresentada ao Congresso Nacionale que vai de fato regulamentar as disposições constitucio-

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nais e provocar a reforma da previdência para os traba-lhadores do setor privado, apresentava medidas visando:- à ampliação do período de cálculo do benefício;

- à introdução de uma fórmula de cálculo deste benefícioque considera a idade de quem requisita a aposentadoriae a expectativa de vida segundo cálculos do IBGE;

- à eliminação gradativa da escala de salários-base doscontribuintes individuais; e

- à homogeneização do valor de contribuição das empre-sas ao tratar das diversas categorias de segurados obriga-tórios. Introduz, ainda, no campo gerencial, a diferencia-ção entre o contribuinte inadimplente e o sonegador; aredução dos juros de mora para 0,5% ao mês, mais capi-talização anual, para a indenização do tempo de serviçopassado; e a generalização do pagamento direto, por par-te do INSS, de todo salário-maternidade, o que em parteanteriormente era realizado pelo empregador, mediantereembolso. A proposta do governo foi aprovada pelo Con-gresso Nacional em 26 de novembro de 1999.

Uma das alterações mais significativas introduzidas pelareforma foi a do valor do benefício de aposentadoria. Nocaso das aposentadorias por tempo de contribuição, nolugar desse valor ser estabelecido pela média aritméticados últimos 36 (trinta e seis) meses de contribuição, pas-sou a considerar a média aritmética simples dos maioressalários de contribuição correspondentes no mínimo a 80%de todo o período contributivo do segurado, corrigidosmonetariamente. Sobre esse cálculo é aplicado um fatorredutor que varia de acordo com a idade do segurado, ouseja, o quanto de vida ele terá depois de aposentado, se-gundo estimativas da Fundação IBGE. Esse fator foi de-nominado Fator Previdenciário.6

Apesar da nova lei determinar o cumprimento do tem-po de contribuição (35 para homem e 30 anos para mu-lher), quem estava inscrito na Previdência Social até 15/12/1998 (véspera da publicação da Emenda Constitucio-nal no 20, de 1998) “também pode se aposentar aos 25 e30 anos de contribuição, respectivamente, se do sexo fe-minino ou masculino, desde que tenha 48 ou 53 anos deidade. Nesse caso o valor do benefício será de 70% dosalário de benefício acrescido de 5% por cada grupo de12 contribuições adicionais, até o limite de 100%”(MPAS,1999:13).

Em relação ao fator, vale a pena destacar a seguinteinterpretação: “Sem ter incorporado a proposta de limitemínimo de idade para a aposentadoria dos já inscritos nosistema (60 anos para mulheres e 65 anos para os homens),

previsto originalmente pelo executivo quando do envio daPEC no 20 [...] a nova legislação previdenciária optou peloincentivo à permanência em atividade do trabalhador,mediante uma modalidade de cálculo em que o benefícioé diminuído caso ele seja jovem ou tenha pouco tempo decontribuição, mas que aumenta à medida que a concessãoda aposentadoria é adiada” (Dieese, 2001:252).

De acordo com Solange Paiva Vieira, mentora da fórmu-la de cálculo do fator previdenciário, assessora especial doMPAS, em entrevista à revista Conjuntura Econômica: “Fizentão a conta de trás para frente, com variáveis como a ex-pectativa de vida, fluxo de caixa, tempo de contribuição e ataxa de juros implícita. Eu peguei tempo de contribuição porexpectativa de sobrevida e multipliquei o tempo de contri-buição pela alíquota contributiva.[...] A gente fez uma cap-tação virtual. [...] É uma capitalização [...] tem uma capitali-zação com uma taxa de juros que varia entre 2,5% e 4,5%.Taxa real, dependendo da idade em que a pessoa se aposen-ta. Está lá, é o que a pessoa contribui, corrigido por essa taxade juros ao ano” (FGV, 2001:58).

Para o segurado que até 28 de novembro de 1999 te-nha cumprido as condições para solicitar a concessão daaposentadoria, será considerada somente a média aritmé-tica simples das maiores contribuições, correspondentesa, no mínimo, 80% de todo o período contributivo decor-rido desde a competência julho de 1994.

Segundo o governo, essas alterações permitiriam queo caixa da previdência se equilibrasse por alguns anos,embora não descartasse a adoção de novas modificações,caso fosse necessário.

A SITUAÇÃO FINANCEIRA PÓS-REFORMA

A Persistência do Déficit

Segundo o Ministério da Previdência e AssistênciaSocial – MPAS, a previdência social fechou o primeiroano pós-reforma com um déficit de R$ 10,07 bilhões, equi-valente a 0,9% do Produto Interno Bruto – PIB.7 Esse re-sultado foi considerado bastante satisfatório, pois estavasendo a primeira vez que o déficit, enquanto proporçãodo PIB, registrava queda em cinco anos. Contudo, em2001, o déficit novamente aumentou (R$ 12,8 bilhões),representando 1,08% do PIB.

Antes de serem analisados os fatores que contribuírampara os resultados dos anos 2000 e 2001, bem como oimpacto das mudanças promovidas no campo dos benefí-cios e das contribuições pela reforma promovida pelo

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governo Fernando Henrique Cardoso, merece um poucomais de atenção o conceito de déficit utilizado pelo MPAS.

Para isso é preciso lembrar que a previdência social éparte integrante da seguridade social, rede de proteçãoidealizada por aqueles que participaram da elaboração evotação da Constituição cidadã, como a chamou UlissesGuimarães, quando da sua aprovação pelo CongressoNacional. Essa rede, através da Previdência Social, da Saú-de, da Assistência Social e do Programa de Seguro-De-semprego, garante a concessão de benefícios em situaçãode aposentadoria, de desemprego, de perda de capacida-de laboral ou doença e de necessidade de complementaçãode renda; e a realização de ações e serviços preventivos ecurativos relacionados ao risco doença.

Para garantir os recursos necessários, os constituintesreservaram o uso exclusivo do resultado da arrecadaçãodas contribuições incidentes sobre a folha de salários,faturamento, lucro, concursos e prognósticos, além depreverem a participação do governo federal, dos Estadose dos municípios. Vale lembrar, ainda, que a Constitui-ção de 1988 não estabelecia vinculação no interior daseguridade social, com exceção dos recursos do PIS-Pasepque sempre foram destinados ao financiamento do Fundode Amparo do Trabalhador – FAT, responsável pela con-cessão do seguro-desemprego. Com o passar do tempo, veiose somar a essas fontes de recursos a contribuição sobremovimentação financeira e foi definida a participação dastrês esferas de governo no financiamento da saúde.

Considerando esse conceito de proteção social, não seriaapropriado calcular isoladamente as contas da previdênciasocial, tal como previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.8

Como será argumentado mais adiante, seu resultado negati-vo é reflexo, antes de tudo, do desempenho da economiabrasileira que, se voltasse a crescer e a gerar emprego nomercado formal de trabalho, superaria rapidamente sua situa-ção de déficit. Essa argumentação não desconsidera, entre-tanto, que, em termos contábeis, seja apurado o resultado daprevidência social. O que se estranha é o fato de o governofederal nunca se preocupar em contabilizar e divulgar paratoda a sociedade o resultado do conjunto da seguridade so-cial. Em 1999, por exemplo, ano em que a reforma foi apro-vada e a previdência registrava um déficit equivalente a 1%do PIB, a seguridade social apresentava um superávit deR$ 16, 3 bilhões, correspondendo a 1,7% do PIB. Em 2001,adotando-se o mesmo critério, o superávit da seguridade socialaumentou para R$ 32,1 bilhões, cerca de 2,6% do PIB. ATabela 1 apresenta o resultado da seguridade social no anode 2001.

O Comportamento da Despesa e oFator Previdenciário

O gasto com benefícios caiu no primeiro ano pós-re-forma (-1,04%) em relação ao ano anterior, voltando asubir em 2001 (2,84%). A queda observada em 2000 ha-via sido comemorada, pois era a segunda vez consecutivaque isso ocorria: em 1999, portanto antes da reforma seraprovada, a despesa com benefícios havia diminuído em1,63%, o que constitui forte indício de que o decréscimo

TABELA 1

Receitas(1), Despesas e Saldo da Seguridade SocialBrasil – 2001

Em bilhões de reais

Especificações Valor (R$)

TOTAL DAS RECEITAS 137,52Receita Previdenciária Líquida (2) 62,491Outras Receitas do INSS (3) 0,618Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – Cofins 46,704Contribuição Social sobre o Lucro Líquido 9,067Concursos e Prognósticos 0,521Receita Própria do Ministério da Saúde 0,962Outras Contribuições Sociais (4) -Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF 17,157

TOTAL DAS DESPESAS 105,413Benefícios 78,697a) Previdenciários (5) 73,692

- Urbanos 59,383- Rurais (6) 14,309

b) Assistenciais 4,323- Rendas Mensais Vitalícias – RMVs 1,636- Lei Orgânica de Assistência Social – Loas 2,687

c) Encargos Públicos da União – EPU (7) 0,682Saúde (8) 21,111Assistência Social 1,875Custeio e Pessoal do Ministério da Previdência eAssistência Social – MPAS (9) 3,497Ações do Fundo de Combate à Pobreza 0,233

SALDO (Receitas Menos Despesas) 32,107Fonte: Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Sistema Integrado de Admi-nistração Financeira do Governo Federal – Siafi, 2000 e 2001(dados preliminares); Ministérioda Previdência e Assistência Social – MPAS. Fluxo de Caixa do INSS; Associação Nacionaldos Auditores Fiscais da Previdência – Anfip.(1) Conforme preceitua o artigo 195 da C.F.(2) Inclui: arrecadação bancária, o Simples e depósitos judiciais.(3) Segundo o fluxo de caixa do INSS, incluem rendimentos financeiros e antecipações dereceitas e outros.(4) Dado não disponível que incluiria: o Depósito Obrigatório de Veículos Auto-Motores – DPVAT;a renda bruta de prêmios prescritos; e bens apreendidos.(5) Difere do Fluxo de Caixa do INSS (que somou R$ 75,378 bilhões) devido à separação dasRMVs em item próprio.(6) Dados sujeitos a alteração.(7) Encargos previdenciários da União devido à concessão de benefícios através de leis espe-ciais, pagos pelo INSS com recursos da Seguridade, e repassados pelo Tesouro.(8) Inclui despesas de saneamento, de custeio e ações de saúde do Sistema Único de Saúde– SUS do Ministério da Saúde.(9) Pagamentos realizados a ativos, inativos e pensionistas do INSS, bem como despesasoperacionais consignadas.

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ocorrido no primeiro ano depois da reforma deve-se tam-bém a outros fatores, que não aqueles diretamente relacio-nados com as novas regras.

É sabido que a nova lei não tem nenhum impactosobre aqueles que já recebem benefícios, o que no jar-gão da previdência social é chamado de estoque de be-nefícios. As novas regras são aplicadas integralmenteàqueles que, depois de sua edição, ingressarem no mer-cado de trabalho, e as de transição, para aqueles que jáparticipavam do mercado formal de trabalho e, portan-to, contribuíam para a previdência sob as regras anterio-res. Nesse sentido, no curto prazo, já seria esperado queo impacto da reforma sobre o volume do gasto fossepequeno, mas que atuasse diminuindo a taxa de ingres-so de novos segurados no sistema, particularmente deaposentados.

Contudo, a evolução dos benefícios concedidos em pe-ríodo recente, que traduz a demanda efetivamente reali-zada de novos segurados, apresenta comportamento quenão se pode, a princípio, dizer que está refletindo o im-pacto das novas regras. O ingresso de novas aposentado-rias – de todos os tipos – já vinha caindo desde antes mes-mo da reforma. Entre 1997 (846.168) e 2001 (560.212),segundo dados do MPAS, o número de concessões decres-ceram 33,8%. Destaque-se que o número do último ano,foi o mais baixo da década excluindo-se o de 1991(455.533), quando a demanda encontrava-se represada, es-perando a regulamentação dos novos direitos previden-ciários aprovados pela Constituição de 1988.

Fica difícil dizer se o desempenho observado em 2001(redução de 16,5%) já é reflexo das novas regras ou mes-mo se expressa o crescimento vegetativo da demanda debenefícios de aposentadoria da previdência social. Issoporque, desde 1986, os dados anuais relativos à aposen-tadoria e aos demais benefícios programáveis refletemfortemente as mudanças de expectativas, sejam elas posi-tivas sejam negativas, de alteração das regras de acessoao benefício. Dito de outra forma, trata-se de informaçõesatípicas, em que a demanda foi contida ou antecipada, de-pendendo do debate em curso na época. Além disso, a gre-ve dos servidores do Instituto Nacional da SeguridadeSocial – INSS, realizada no período de agosto a novem-bro, certamente contribuiu para a redução da quantidadede benefícios concedidos no ano de 2001. Novamente, umfator conjuntural – agora de caráter político-sindical e naprópria instituição responsável por conceder os benefícios– prejudica sua interpretação, como integrante de uma sériehistórica.

O Desempenho das Contribuições

Além da questão da despesa, a previdência social apre-senta um grave problema no plano de sua arrecadação.Nos dois anos pós-reforma, isto é, em 2000 e 2001, a re-ceita líquida, isto é, a arrecadação bancária das contribui-ções de empregados e empregadores, acrescida da receitado Simples, dos depósitos judiciais, e deduzidas as resti-tuições de arrecadação e transferências a terceiros, foi3,19% e 3,23% inferior ao nível de 1986, quando o PIBbrasileiro era significativamente inferior ao atual, e asalíquotas eram inferiores às atuais. Por outro lado, chamaa atenção que o ritmo da queda da arrecadação está dimi-nuindo: em relação ao ano anterior, em 1999 a retraçãofoi de 6,67%; em 2000, de 2,26%; e, em 2001, de 0,05%,o que talvez indique que ela esteja se estabilizando.

O desempenho da arrecadação da previdência social élargamente determinado pelo crescimento econômico dopaís e pelo comportamento do mercado de trabalho. Porisso, qualquer análise sobre a situação das contasprevidenciárias, do ponto de vista da receita, precisa sereportar às mudanças nas formas de ocupação, à evolu-ção do salário, entre outros aspectos. Da ótica da despe-sa, a questão demográfica aparece como fator deter-minante. A parte seguinte deste artigo é dedicada à análisedo mercado de trabalho e do impacto da demografia naprevidência social.

A Questão Demográfica e o Mercado de Trabalho

Desde a divulgação dos resultados do censo de 1991,quando pela primeira vez ficou evidente que a populaçãobrasileira crescia mais lentamente e estava ficando maisvelha, as autoridades e pesquisadores da área pre-videnciária preocupam-se com os reflexos sobre a situa-ção financeira do sistema público. A partir desse censo,ficava evidente para todos que o Brasil havia completadosua transição demográfica. Em 1991, a taxa de fe-cundidade, que era de 4,3 em 1980, havia caído para 2,4.Nove anos depois, quando novo censo é realizado, essa taxacai para 2,2 – extremamente perto da taxa de reposição dapopulação.

Essa nova realidade demográfica pode ser vista de vá-rias maneiras. De um lado, já não podemos dizer, tal comona década de 70, que “somos um país jovem”, quando 53%da população tinha menos de 20 anos de idade. Em 2000,esse contingente já havia caído para 40,1% da população.Nos mesmos anos, as pessoas com mais de 65 anos repre-

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sentavam, respectivamente, 3,1% e 4,8%. Em termos deesperança de vida ao nascer, o brasileiro aumentou 8,52anos de 1970 a 2000.

Para a previdência social, contudo, o aspecto mais im-portante da nova realidade demográfica brasileira refere-se à ampliação da sobrevida, a cada faixa de idade. As-sim, uma mulher com 45 anos que se aposentasse – talcomo era permitido pelas regras anteriores – teria a pro-babilidade de permanecer no sistema por 32,04 anos; sehomem, com a mesma idade, permaneceria por 27,18 anos.O tempo de permanência no sistema, em qualquer um doscasos, seria um pouco menor do que o tempo de contri-buição, na hipótese de eles terem se iniciado no mercadode trabalho aos 18 anos e terem contribuído para a previ-dência durante toda sua vida ativa. Esse é um dos motivosque embasou a proposta do governo em introduzir, nocálculo do fator, a expectativa de sobrevida do seguradona data da aposentadoria, de substituir a aposentadoria portempo de serviço pela de contribuição e de incluir, tam-bém, o critério de idade como condição de acesso à apo-sentadoria daqueles que ingressarem no mercado de tra-balho depois da aprovação da lei.

Dessa forma, o Brasil iguala-se à maioria dos paísescom relação aos critérios de acesso à aposentadoria. O quemuitas vezes não é lembrado é que o Brasil contemplamúltiplas realidades em que é possível se encontrarem tra-balhadores que exercem atividade no mercado formal detrabalho desde tenra idade e que serão penalizados pornecessitar, não só do tempo de contribuição, mas de cum-prir o critério de idade.

Além disso, é preciso destacar que, embora a popula-ção brasileira não possa ser mais chamada de “jovem” talcomo na década de 70, ainda não é “velha” como as damaioria dos países europeus. No Brasil, em 2000, 64,6%de sua população tinha idade entre 15 e 64 anos, isto é,tinha idade para trabalhar. Essa realidade seria extrema-mente positiva para as contas previdenciárias, mesmo serebaixássemos o limite superior da idade de trabalho para,por exemplo, 55 anos. Ainda assim estaríamos falando de58,7% da população.

O problema é que essa realidade só se reverte a favorda previdência social se a economia estiver gerando em-prego formal, resultando em maior volume de contribui-ções para seu caixa. Não é essa, contudo, a nossa realida-de. Além da persistência de elevadas taxas de desempregodesde o início da década de 90, aumentou significativa-mente a participação dos assalariados sem carteira assi-nada e de outros ocupados sem vínculo com a previdên-

cia social. De acordo com o IBGE, o desemprego abertochegou a atingir o pico de 8,06% em março de 2000.Embora tenha recuado nos meses subseqüentes, encerrouo ano 2001 em 6,2%, quase dois pontos percentuais aci-ma da média de 1991. Já para o Dieese e para a FundaçãoSeade, o desemprego aberto na Região Metropolitana deSão Paulo foi de 11% em 2000, atingindo 11,3% em 2001.A taxa de desemprego aberto, neste último ano, foi de17,6%.

A estrutura do mercado de trabalho brasileiro sofreudiretamente com o avanço do desemprego. Entre janeirode 1991 e dezembro de 2001, a participação do trabalha-dor assalariado sem carteira assinada no total dos ocupa-dos aumentou mais de seis pontos percentuais (passou de20,8% para 27,1%), segundo a Pesquisa Mensal de Em-prego realizada pelo IBGE. No mesmo período, houveampliação dos chamados conta-própria (de 20,1% passa-ram para 23,1%) em três pontos percentuais, enquanto aparticipação da categoria empregador (de 4,4% passoupara 3,9%) diminuiu meio ponto percentual.

Esses dados indicam que está diminuindo o tamanho re-lativo do mercado formal de trabalho, isto é, aquele regula-mentado pelas leis trabalhistas e integrado à previdência so-cial. Não é de estranhar, portanto, que a arrecadação de 2001,referente às contribuições de empregados e empregadores,esteja 3,2% abaixo da receita de 15 anos atrás.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nova realidade demográfica do Brasil, evidenciadano censo de 1991 e confirmada no de 2000, indicando avelocidade com que o país está envelhecendo, foi um dosprincipais argumentos na defesa da reforma previdenciáriaencaminhada pelo governo FHC. De maneira menos en-fática, mas por muitos considerado como um dos aspec-tos que mais necessitavam de reforma, era defendida aextinção da diferença de critérios de acesso à aposenta-doria entre os homens e as mulheres. Isso porque não sóas mulheres, ao longo de toda sua vida, apresentavamsobrevida maior do que a dos homens, como porque essediferencial tem crescido nas últimas décadas. É interes-sante mencionar que o prolongamento da vida mais acen-tuado entre as mulheres também é um dos determinantesda despesa com a pensão por morte, pois as mulheres cons-tituem, de longe, a maioria que recebe esse tipo de bene-fício.

Apesar da intensa campanha realizada pelo governo, aproposta de utilizar o critério de idade como complemen-

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tar ao tempo de contribuição (que já havia substituído odo tempo de serviço) recebeu forte resistência dos seto-res mais organizados da população brasileira. Mesmo as-sim, pode-se dizer que o critério de idade acabou sendoincorporado na determinação da aposentadoria. No lugarde uma idade fixa para todos os homens e outra para asmulheres, adotou-se fórmula sofisticada que considera osanos de sobrevida no momento em que o segurado se apo-senta. Por essa sistemática, quanto mais jovem o traba-lhador se aposentar menor será o valor de seu benefício;quanto mais velho, maior o valor. Tendo em vista que oprocesso de envelhecimento da população brasileira estáapenas em seu início, será cada vez mais difícil alguém seaposentar “precocemente”.

Segundo o governo, essa mudança de regra, bem comovárias outras medidas adotadas que antecederam ou acom-panharam a reforma, deverá diminuir o volume da despesacom benefícios previdenciários. No caso específico da apo-sentadoria, o governo esperava, no curto prazo, queda acen-tuada do fluxo de novos beneficiários. À medida que o tem-po passasse e que o estoque de aposentados do períodoanterior à Lei 9.876/99 fosse diminuindo, o gasto total combenefícios, isto é, das aposentadorias concedidas (novosingressantes) e das em manutenção, também teria caído.

Contudo, a análise realizada neste artigo do número deaposentadorias concedidas pós-reforma não chegou a resul-tados conclusivos. Isso porque a demanda já vinha caindoantes mesmo das regras serem alteradas. Além disso, não hácomo se utilizar a série histórica para inferir o que seria ocrescimento vegetativo da demanda – antes da Lei – para seestabelecer alguma comparação e se analisarem os resulta-dos. Desde 1987 pelo menos, a demanda por aposentadoriaou foi deliberadamente reprimida por seus interessados, ouantecipada. Uma e outra atitude, realizadas em massa pelostrabalhadores, refletiam diferentes momentos de expectati-va vivenciados pela sociedade brasileira quando da Consti-tuição de 1988 e quando começaram as discussões sobre anecessidade de dificultar o acesso à aposentadoria e sobre aredução do tempo de permanência do trabalhador no siste-ma, depois de aposentado.

Se do lado da despesa a análise foi dificultada pelos mo-tivos expostos acima, da ótica da receita o mesmo não ocor-reu. Ficou bastante claro que o nível da arrecadação – infe-rior ao de 1986 – deve-se ao fraco desempenho da economiabrasileira e, principalmente, à precarização do mercado detrabalho, onde as taxas de desemprego elevadas tornaram-seuma constante e a ocupação no mercado informal amplia-sea expensas do trabalho com carteira assinada e/ou vinculado

ao sistema previdenciário. No curto prazo, portanto, a criseestrutural da previdência social poderia estar sendo resolvi-da se os trabalhadores em idade de trabalhar (maioria dapopulação brasileira) estivessem em atividade, em empre-gos que garantissem todos os direitos trabalhistas, inclusivede contribuir para a previdência social.

NOTAS

1. Para uma análise das reformas da previdência efetuadas nos paíseseuropeus, que não descaracterizaram os fundamentos da proteçãoconstruída no pós-guerra, chamada por muitos de Welfare State, verMarques e Mendes (2001).

2. De acordo com estudo do Ministério da Previdência Social, na “dé-cada de 50, oito contribuintes financiavam um aposentado. Em 1970,essa relação era de 4,2 para um. Nos anos 1990, são 2,3 trabalhandopara um aposentado. No ano 2020, se as atuais regras forem mantidas,a proporção será de um para um” (Presidência da República,1997).

3. Os auxílios natalidade e funeral transformaram-se em benefíciosassistenciais, isto é, são concedidos apenas às famílias com rendamensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo.

4. As aposentadorias especiais permitem entrar para a inatividade comtempo de serviço menor do que o exigido para os demais trabalhado-res. Era concedida para todos aqueles que trabalhavam em empresascujas atividades são nocivas à saúde, como também para certas cate-gorias de trabalhadores como jornalistas e aeronautas. A aposentado-ria especial foi mantida exclusivamente para os trabalhadores quecomprovadamente exercem atividade insalubre e/ou de risco.

5. Para se ter uma idéia , em 1996 havia no país 16,6 milhões de apo-sentados e pensionistas da iniciativa privada, enquanto no setor públi-co federal eram 873 mil inativos e pensionistas (Presidência da Repú-blica, 1997).

6. A fórmula de cálculo do valor da aposentadoria por tempo de con-tribuição é a seguinte: FPR=[(TC x a)/Es} x [ 1+ (Id + Tc x a) /100],onde “TC“ é o tempo de contribuição; “a” é a alíquota de contribuiçãodo segurado (incluindo a do empregado e do empregador); “Es” é aexpectativa de sobrevida do segurado na data da aposentadoria; e “Id”é a idade do segurado na data da aposentadoria (Dieese, 2001:252).

7. O déficit dos vários sistemas previdenciários em relação ao PIB em2000 era de 4,7%, assim distribuídos: 2,0% dos servidores públicosfederais; 1,5% dos regimes dos servidores públicos estaduais; 0,3%dos regimes dos servidores públicos dos municípios; e 0,9% dos tra-balhadores do sistema privado, ligados ao Regime Geral da Previdên-cia Social (Brant, 2001).

8. Art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 (Lei deResponsabilidade Fiscal), que instituiu o Fundo do Regime Geral dePrevidência Social – FRGPS, regulamenta o artigo 250 da Constitui-ção Federal. Esse fundo é formado por bens e direitos de qualquer na-tureza, por aplicações financeiras e pela receita proveniente da folhade salários. As demais fontes da seguridade social, previstas no art.195 da Constituição, não integram o fundo. Nos últimos anos, essasfontes têm sido amplamente utilizadas para cobrir o déficit da previ-dência (Marques; Mendes, 2001).

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ROSA MARIA MARQUES: Professora do Departamento de Economia da

PUC-SP e Consultora da Fundação SEADE.

MARIANA BATICH: Socióloga, Analista da Fundação SEADE.

ÁQUILAS MENDES: Professor da Faculdade de Economia da FAAP e

Técnico do Cepam.