Post on 26-Nov-2018
Relações de poder formadas pela linguagem: uma análise de comentários de plataforma
digital sob o olhar da Sociolinguística
Alice Stenzel (UNIOESTE)
Orientadora: Jéssica Paula Vescovi (UNIOESTE)
Resumo: A variação linguística é característica indissociável de todas as línguas naturais.
Quando falantes de variáveis diferentes entram em contato, há a tendência de haver um estigma
social dos grupos, orientado pelas relações de poder formadas pela linguagem e,
consequentemente, pelas ideologias que os permeiam. Diante disso, e partindo da ideia de que
a internet é uma amplo espaço para manifestações dos internautas, este trabalho utilizou
comentários postados em vídeos da plataforma digital YouTube que tratam de variáveis
linguísticas diferentes para verificar quais estereótipos, opiniões e senso comum são
manifestados acerca da variação linguística em cada um deles, a partir dos conceitos de variante
padrão ou de prestígio e variante não-padrão ou estigmatizada. A fundamentação teórica do
estudo baseia-se em Calvet (2002) e Tarallo (1990 [2005]).
Palavras-chave: Sociolinguística; variação linguística; identidade linguística.
Abstract: Language variation is an indissociable characteristic of all natural languages. When
speakers of different varieties interact, there is a tendency to occur a social stigma of the groups,
regulated by the power dynamic established by the language and, consequently, by the
ideologies that permeate the groups. That said, and based on the idea the internet is a wide
space for users to express themselves, this study uses comments posted on videos of the digital
platform YouTube, which talk about different language varieties, to verify what stereotypes,
opinions and common sense about the linguistic variation are found in each of videos, from the
concepts of standard or high-prestige variety and non-standard or low-prestige variety. The
theoretical framework of this study is based on Calvet (2002) and Tarallo (1990 [2005]).
Key words: Sociolinguistics; language variation; language identity.
Introdução
Considerar a linguagem enquanto um fenômeno natural e em constante movimento é
escopo recente. Ao outorgar a linguagem enquanto ciência – a linguística-, Saussure propunha
a existência de uma dicotomia essencial: língua e fala. Para o mestre genebriano, a língua
constitui-se como “um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas”, sendo
ela um objeto de natureza homogênea, compreendida como um ato social. É o conjunto do qual
“permite a uma pessoa compreender e fazer-se compreender” (SAUSSURE, 2012, p. 92). A
fala, por sua vez, é apresentada pelo autor como multifacetada e heterogênea, sendo um ato
individual do falante, não sendo considerada em seus estudos. Como ele próprio afirma “a
língua é para nós a linguagem menos a fala” (SAUSSURE, 2012, p. 92). Desta forma, para
Saussure, a língua(gem) seria essencialmente arbitrária e homogênea.
Na intenção de reformular a dicotomia saussuriana de língua e fala, Coseriu propõe a
noção de norma, visto que, nas concepções do estudioso romeno, segundo Pietroforte (2012,
p. 92), diferentes sotaques, o uso de vocabulários próprios de alguns grupos sociais, o que, de
certa forma, caracterizariam “modos de realização linguística que não são próprios nem de um
só individuo nem de todos os falantes de uma língua, mas caracterizam variantes linguísticas
de uma mesma língua” (PIETROFORTE, 2012, p. 92, grifos nossos).
Assim, segundo Pietroforte (2012),
Para descrever essas variantes, Coseriu propõe que a dicotomia língua e fala
seja redefinida para sistema versus norma versus fala, de modo que as
variantes linguísticas sejam descritas nos domínios da norma [...] Assim, o
conceito de língua, para Coseriu, abrange o sistema, que é do domínio de
todos os falantes de uma mesma língua, e as normas, que, como variantes
desse sistema, são do domínio de grupos sociais, regionais, etc.
(PIETROFORTE, 2012, p. 92).
Deste modo, tem-se, a partir da proposta de norma linguística por Coseriu, uma
consideração ao social, a qual pode estar diretamente ligada à sociolinguística, visto que as
línguas naturais mudam constantemente, todos os dias. Mas, além dessa mudança diacrônica,
que ocorre ao longo do tempo, há a mudança chamada sincrônica, que é “a coexistência de
formas diferentes de um mesmo significado” (CALVET, 2002, p. 79). Essa mudança pode
ocorrer devido a um fator geográfico ou social. Ao conjunto formado pelas diferentes formas
de se realizar o mesmo fonema ou signo dá-se o nome de variável, enquanto que cada uma
dessas formas é chamada variante (CALVET, 2002).
Na ideia de que, com a publicação dos estudos de Labov, em 1966, teve início a
Sociolinguística, que busca investigar a estrutura e a evolução da língua em seu contexto social,
este trabalho objetiva comparar os conceitos adotados pelos pesquisadores da Sociolinguística
com os utilizados pela população leiga. Para atingir esse objetivo, serão verificados quais
estereótipos, opiniões e senso comum são manifestados acerca da variação linguística em
comentários postados em vídeos do TAG “Meu sotaque”, da plataforma digital YouTube. Dessa
forma, o presente trabalho divide-se da seguinte maneira: em um primeiro momento, são
apresentados conceitos da sociolinguística; na sequência, tecem-se comentários sobre os
procedimentos metodológicos adotados para escolha e análise dos dados; e, por fim, são
trazidas análises do corpus em questão.
Um breve panorama teórico
Quando no tocante à língua, tem-se a clareza de que, por sua mutabilidade, distintas e
infinitas são as formas de se comunicar, o que dependerá, sempre, daqueles que estão utilizando
da linguagem para tal, ou seja, dos falantes. Assim, para Labov (1972),
A comunidade de fala não se define por nenhum acordo marcado
quanto ao uso dos elementos da língua, mas sobretudo pela
participação num conjunto de normas compartilhadas; tais normas
podem ser observadas em tipos de comportamento avaliativo explícitos
e pela uniformidade de padrões abstratos de variação que são
invariantes em relação a níveis particulares de uso (LABOV, 1972,
p.120-121).
Com isso em vista, temos que a existência de diferentes comunidades de fala, bem como
o compartilhamento de normas por determinados grupos, contribui para que haja, então, os
marcadores, os estereótipos, e os indicadores, que, na visão laboviana, mencionados por
Gorski e Coelho (2009, p. 81), são:
a) Estereótipos: é comum, por exemplo, que termos como pobrema (ao
invés de problema), nós fumo (ao invés de nós fomos) e ponharam (ao
invés de puseram) suscitem idéias preconcebidas a respeito da (falta
de) escolaridade de quem os pronunciou. Normalmente são alvos de
comentários jocosos e de rejeição explícita pelos membros da
comunidade de fala (seja escolarizada ou não).
b) Marcadores: casos como a variação dos pronomes pessoais de segunda
pessoa, tu e você, e dos pronomes possessivos de segunda pessoa, teu e
seu, usados em certas regiões do sul do Brasil, podem ilustrar esse tipo
de forma linguística [...]
c) Indicadores: apresentam escassa força avaliativa. São traços que não
identificam uma diversidade social e, geralmente, apresentam uma
distribuição regular nos diferentes estratos sociais [...] (GORSKI;
COELHO, 2009, p. 81, grifos nossos).
Interessa, neste trabalho, portanto, perceber como a noção de estereótipo está presente
nos mais variados discursos das mais variadas comunidades de fala, o que será apresentado na
análise dos comentários.
Procedimentos metodológicos
O critério adotado para a seleção dos vídeos a partir dos quais seria feita a coleta dos
comentários foi o de que os vídeos deveriam seguir um roteiro de perguntas padrão, que é
conhecido no ambiente virtual como TAG “Meu sotaque”. Esse roteiro foi utilizado pela
primeira vez em outubro de 2015 por um usuário da plataforma de vídeos, que adaptou uma
TAG já existente na língua inglesa para as particularidades do português. A TAG escrita por
ele se divide em três partes principais, como mostra o roteiro transcrito abaixo:
a) Leia as seguintes palavras do jeito que você as pronuncia no seu dia a dia:
Nascer, gostar, arroz, cozinhar, teatro, óleo, banana, tomate, barba, bola de
gude, camaleão, erva, porta, canela, estourar, perfume, homem, tímido,
estrada, ele, menina, sotaque, tostar, elefante, belo horizonte, mais, mas,
computador, editar.
b) Agora responda as seguintes perguntas:
1. Como você chama o doce que mistura queijo com goiabada?
2. Como você chama o seu pai e sua mãe?
3. Na padaria como você fala o nome do pão que não é doce?
4. Como é chamada a brincadeira que quando era criança você tinha que
encontrar um amigo que se escondia?
5. Como é o nome do suco ou vitamina que é colocada em uma sacola plástica
e posto no freezer para congelar e depois você chupar?
6. O que seria uma mesa cheia de pequenos jogadores de futebol de metal ou
plástico que você usa umas bolinhas brancas para simular um jogo de
brincadeira?
7. Uma gíria da sua região para aos adjetivos: mentiroso, fofoqueiro e ladrão.
8. Como você cumprimenta um grupo de pessoas?
c) Agora indique pelo menos uma pessoa que você gostaria que respondesse esta
TAG [Adaptado de YouTube (2017f)].
Primeiramente, o youtuber lê uma lista de 32 palavras conforme ele as pronuncia no
seu dia a dia, ou seja, com a pronúncia do seu sotaque. Essa parte da TAG foca na variação
fonética da língua, que são as diferentes formas de se pronunciar um mesmo grafema.
Posteriormente, há oito perguntas sobre as palavras que a pessoa utiliza para denominar
determinada coisa ou pessoa. Aqui, a variação lexical é que recebe destaque, pois são elencadas
palavras diferentes do léxico utilizadas pelos falantes para se referir a um mesmo significado.
Por exemplo, conforme as informações coletadas nos vídeos, para se referir ao “pão que não é
doce”, alguns falantes utilizam a expressão “pão francês” e outros “pão de sal”.
Apesar de os conceitos “variação fonética” e “variação lexical” terem sido utilizados
para descrever as etapas da TAG, é importante que destacar que esses termos não foram
encontrados em nenhum dos vídeos ou comentários selecionados. Neles, os internautas se
referiam à variação fonética como “sotaque”. Em um dos comentários houve a menção do
termo “variação” e no vídeo do autor da TAG foi utilizada a expressão “sofrer diferença” para
se referir à variação fonética.
Na terceira e última parte da TAG, o roteiro instrui para que outra pessoa seja convidada
a gravar um vídeo respondendo a essas mesmas perguntas. Essa estratégia é utilizada para
divulgar a TAG, o que possibilidade que mais pessoas façam parte do projeto.
Foram selecionados seis vídeos ao total, que participaram da TAG “Meu sotaque” entre
outubro de 2015 e agosto de 2016. Conforme informação divulgada pelos respondentes em
seus respectivos vídeos, os participantes são originários de Itapemirim – ES (autor da TAG),
Guarulhos – SP, São Paulo – SP, Rio de Janeiro – RJ, João Pessoa – PB, e Ceará (cidade não
informada). Os vídeos listados acima serão mencionados ao longo deste trabalho,
respectivamente, como: vídeo ES, vídeo SPa, vídeo SPb, vídeo RJ, vídeo PB e vídeo CE.
Ao longo do trabalho, serão apresentadas considerações acerca da amostra de treze
comentários coletada a partir dos vídeos selecionados. Para a análise, além dos comentários,
são destacados ao longo deste trabalho alguns trechos de enunciados dos youtubers, transcritos
a partir dos vídeos.
Análise dos comentários
A partir da exploração da seção de comentários dos vídeos, dois conceitos que foram
mobilizados logo a princípio são o de variante padrão e o de variante não padrão. Eles
perpassam a análise ao longo de todo o estudo, pois demarcam a opinião dos usuários
manifestada nos comentários e nos vídeos.
De acordo com Tarallo (2005, p. 12), “a variante considerada padrão é, ao mesmo
tempo, conservadora e aquela que goza do prestígio sociolinguístico na comunidade”. Por outro
lado, a variante não padrão é inovadora e estigmatizada pelos membros da comunidade
(TARALLO, 2005). É através dessa estigmatização que se revelam os estereótipos destacados
por Gorski e Coelho (2009).
Uma das constatações no tocante à percepção linguística dos falantes é a de que a
variante padrão ou de prestígio tende a ser considerada “sem sotaque”. Ou seja, ela não é uma
das variantes da língua, mas o padrão a ser seguido. Essa noção é descrita por Bagno (2003)
como
o preconceito de que existe uma única maneira “certa” de falar a língua, e que
seria aquele conjunto de regras e preceitos que aparece estampado nos livros
chamados gramáticas. [...] É esse modelo que recebe, tradicionalmente, o
conceito de norma culta (BAGNO, 2003, p. 43).
Os comentários que expressam esse preconceito são exemplificados abaixo pelas
figuras 1 a 3.
Figura 1 – Comentário retirado do vídeo SPa
Fonte: YouTube (2017c)
Figura 2 – Comentário retirado do vídeo SPa
Fonte: YouTube (2017c)
Figura 3 – Comentário retirado do vídeo SPa
Fonte: YouTube (2017c)
Os três comentários reiteram o prestígio da variante paulista, tida como padrão da
língua. No terceiro, mesmo que a pessoa pareça descontente com o fato de não ter sotaque, este
é novamente negado. O mesmo ocorre no comentário a seguir, que valoriza a variante carioca.
Figura 4 – Comentário retirado do vídeo RJ
Fonte: YouTube (2017d)
A autora do vídeo RJ também expressa uma opinião semelhante a do comentário acima,
ao afirmar que “vocês vivem falando que eu tenho sotaque. Eu, para mim, não tenho sotaque”
(YOUTUBE, 2017d).
Enquanto os falantes das variantes de prestígio consideram que não têm sotaque, os
falantes das variantes não-padrão ou estigmatizadas demonstram ter consciência de que falam
de modo diferente. Isso fica explicito na fala da autora do vídeo PB: “Nada melhor do que a
pessoa para responder essa TAG, já que eu recebo tantos comentários: ‘De onde você é?’,
‘Você é da Bahia?’, ‘Você é do Ceará?’” (YOUTUBE, 2017b). Ou seja, a respondente afirma
que é pertinente que ela responda a TAG, já que todos percebem o sotaque dela.
O entendimento da própria variante como diferente da padrão também é verificado no
comentário da figura 5.
Figura 5 – Comentário retirado do vídeo RJ
Fonte: YouTube (2017d)
Nesse caso, apesar de a pessoa afirmar não ter sotaque, ela tem consciência de que os
outros classificam o seu sotaque como “baiano”, termo que carrega todos os estereótipos
associados ao estado e, como consequência, à variante baiana. Os estereótipos, definidos na
teoria laboviana e retomados por Gorski e Coelho (2009), são discutidos por Bagno (2003) do
ponto de vista da cultura brasileira.
De todos os conjuntos de superstições infundadas que compõem a cultura
brasileira, nenhum é tão resistente, parece, quanto o das ideias preconcebidas
que impregnam nosso imaginário a respeito de línguas em geral e, mais
especificamente, da língua que falamos (BAGNO, 2003, p. 15).
A partir dessa discussão, Bagno (2003) afirma que não existe preconceito linguístico;
para o autor, o preconceito é social. Ele estabelece essa tese baseado no argumento de que o
preconceito não recai sobre o fonema ou item lexical utilizado, mas sobre o falante que o utiliza.
A diferença entre a percepção linguística dos falantes de regiões distintas é uma amostra
das relações de poder formadas pela linguagem, já que a variante baiana tem menos prestígio
na sociedade.
Frente à variação, os falantes podem assumir atitudes positivas ou negativas. Calvet
(2002) define que “em face da variação, temos atitudes de rejeição ou de aceitação que não
têm, necessariamente, influência sobre o modo de expressão dos falantes, mas que certamente
têm influência sobre o modo com que percebem o discurso dos outros” (CALVET, 2002, p.
65).
Regulado pela atitude que o falante possui em relação à determinada variante, ele julga
positiva ou negativamente a pessoa que reproduziu o fonema, léxico ou sintaxe pertencente a
essa variante. A “possibilidade de julgar pessoas pela voz” foi comprovada por Lambert, em
1960, com suas investigações sobre o bilinguismo franco-inglês em Montreal (CALVET,
2002).
Quanto à atitude dos falantes no que tange as variações, há alguns comentários que
demonstram uma atitude negativa, exemplificados através das figuras 6 a 9.
Figura 6 – Comentário retirado do vídeo SPa
Fonte: YouTube (2017c)
Mesmo se desconsiderados os adjetivos “horrível”, “horroroso” e “podre”, utilizados
no comentário acima para desqualificar as variantes mencionadas, os termos “sotaque de
periferia” e “caipira” carregam, por si só, o estigma negativo que esses grupos possuem na
sociedade. O comentário abaixo também manifesta uma distinção entre as variantes de um
mesmo estado.
Figura 7 – Comentário retirado do vídeo SPb
Fonte: YouTube (2017a)
Nesse caso, o preconceito social associado aos falantes da “capital” e do “interior” é
explicitado, respectivamente, pelas expressões “soa agradavel” e “nao gosto”. Calvet (2002, p.
59) afirma que esses estereótipos referentes às variações geográficas da língua são
“frequentemente classificados pelo senso comum ao longo de uma escala de valores”. Esse
comportamento é percebido, por exemplo, através do preconceito que os falantes brasileiros do
interior e do Nordeste sofrem.
A escala de valores que orienta a classificação do falar alheio é resultado da relação de
poder formada entre as classes sociais. Essa hierarquia social é transferida e aplicada na
variante utilizada por cada grupo.
Além dos comentários que expressam juízo de valor sobre as variantes de forma
explícita, há outros que revelam novamente o preconceito associado ao conceito de normal
culta descrito por Bagno (2003) e já comentado anteriormente neste trabalho. O entendimento
de que há “uma única maneira ‘certa’ de falar a língua” é comum na sociedade e se manifesta
em comentários exemplificados pelas figuras 8 e 9:
Figura 8 – Comentário retirado do vídeo RJ
Fonte: YouTube (2017d)
Figura 9 – Comentário retirado do vídeo RJ
Fonte: YouTube (2017d)
Os comentários das figuras 8 e 9 são exemplos de situações em que os usuários se
manifestaram na intenção de corrigir o “erro” observado no falante que gravou o vídeo. O
segundo (figura 9) menciona a escola. Ele revela uma prática na aula de língua materna
vivenciada pela internauta: a classificação da variação linguística como um “erro” cometido
pelos falantes, algo a ser corrigido. Esse é um padrão de comportamento criticado por Bortoni-
Ricardo (2004), que indica o papel da escola é possibilitar que o aluno saiba identificar as
diferenças e conscientizá-lo sobre o uso das variantes. Ela defende “uma pedagogia que é
culturalmente sensível aos saberes dos educandos”, que “está atenta às diferenças entre a
cultura que eles representam e a da escola” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 38).
Na prática, contudo, como demonstra o comentário (figura 9), a postura que considera
a diferença entre a variantes padrão e a não-padrão como erro ainda não foi completamente
abandonada. O ambiente escolar, por vezes, ainda trata algumas variantes com um olhar
discriminatório, sendo um reflexo do que ocorre também fora dos muros escolares.
Há outros comentários que diferem dos comentários 6 a 9 e valorizam a variação da
língua.
Figura 10 – Comentário retirado do vídeo RJ
Fonte: YouTube (2017d)
Figura 11 – Comentário retirado do vídeo SPb
Fonte: YouTube (2017a)
Na figura 11, além do trecho que explicita a opinião da falante sobre a variação (“Que
legal essa variação de palavras hehe”), o segundo comentário apresenta uma amostra de uma
prática comum dos usuários: a comparação da própria variante com a do autor do vídeo. Esse
tipo de comentário não costuma vir acompanhado de opiniões desfavoráveis à variação. Isso é
resultado da disponibilidade dos usuários de compartilharem suas próprias experiências
linguísticas, nesses casos, por meio dos comentários, que é o que os youtubers fazem em seus
vídeos ao responderem a TAG “Meu sotaque”. A respondente do vídeo PB também expressa
uma atitude positiva frente às variações, ao concluir que “cada lugar tem seu jeito de falar”
(YOUTUBE, 2017b).
Um aspecto verificado tanto nos comentários como nos vídeos foi o de que os falantes
se dão conta do seu “sotaque” apenas quando entram em contato com falantes de variantes
diferentes da sua, conforme exemplificam as figuras 12 e 13 e o trecho de um dos vídeos
transcrito abaixo.
Figura 12 – Comentário retirado do vídeo RJ
Fonte: YouTube (2017d)
Figura 13 – Comentário retirado do vídeo SPb
Fonte: YouTube (2017a)
A respondente do vídeo SPb relata que
Por muitos anos da minha vida eu achei que eu não tinha sotaque nenhum. Eu
só fui descobrir quando eu viajei para o Rio de Janeiro e as pessoas de lá, as
meninas com quem eu conversava, elas riam de mim, falando que o meu
sotaque era engraçado, que eu parecia uma caipira falando (YOUTUBE,
2017a).
Os dois comentários e o relato da youtuber apresentam situações semelhantes nas quais
houve a superação da noção de ausência de sotaque. A variante de uma determinada
comunidade de fala é a norma linguística daquele grupo, pois as variações são também
“tentativas de regularização, de normatização” (TARALLO, 1990, p. 58).
Entretanto, o relato feito pela autora do vídeo SPb se difere dos comentários 12 e 13
por revelar uma situação na qual se percebe, na prática, a estereotipação que ocorre quando
dois falantes de variantes distintas interagem.
É apenas no vídeo ES, feito pelo autor da TAG, que há a afirmação direta da existência
de sotaques. Ele menciona, inclusive, a dificuldade que as pessoas têm de perceber a própria
variante como apenas uma das possibilidades da língua, ao declarar que “ninguém acha que
tem sotaque. [...] Mas, na verdade, todo mundo tem sotaque” (YOUTUBE, 2017f). Foi essa
consciência linguística que o motivou a escrever o roteiro de perguntas.
Considerações finais
A análise dos comentários selecionados possibilitou a visualização das relações de
poder formadas pela linguagem. Uma das constatações foi a de que as variantes de maior
prestígio eram consideradas “sem sotaque”, ou seja, o padrão linguístico a ser seguido. Por
outro lado, as variantes utilizadas por falantes de estados socioeconomicamente menos
valorizados eram estigmatizadas, trazendo a tona vários estereótipos da cultura brasileira.
Alguns comentários revelaram uma postura negativa dos internautas frente às variações
linguísticas. Isso é resultado dos estereótipos sociais associados a grupos estigmatizados, que
recaem sobre a variante utilizada por eles.
Além disso, alguns comentários traziam um relato semelhante: os falantes identificaram
as diferenças da língua quando entraram em contato com falantes que faziam uso de uma
variante diferente da sua. Em um dos comentários, foi descrita uma situação em que se
percebeu como os estereótipos fazem parte do imaginário social.
A hierarquia existente entre as classes sociais é transposta para a linguagem. Sendo a
língua um importante instrumento de controle e coerção social, essas são conclusões que
demonstram as relações, por vezes conturbada, que se dão quando falantes de variantes
linguísticas distintas interagem.
A dificuldade de interação sem a estigmatização do falante traz a tona um problema
sociolinguístico brasileiro: a percepção da língua como um sistema pronto e acabado e a
refutação das variações. Isso reitera a necessidade de tornar acessível ao público leigo as
discussões acerca das variações linguísticas feitas na academia para que os falantes sejam
conscientizados e o preconceito diminua.
Referências
BAGNO, Marcos. A norma culta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola
Editorial, 2003.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala
de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola Editorial,
2002.
GORSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl. Variação Linguística e Ensino de
Gramática. Florianópolis, 2009.
LABOV, William. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: Univ. of Pennsylvania Press, 1972.
PIETROFORTE, Antonio Vicente. A língua como objeto da linguística. In: FIORIN, José Luiz
(org). Introdução à linguística: objetos teóricos. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2012.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ed. Ática S.A., 1990.
YOUTUBE. Tag | Meu sotaque. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=82c5_zK7pUY&feature=youtu.be>. Acesso em: 19 nov.
2017a.
YOUTUBE. Meu sotaque!! #VEDA25. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=nYJW4JlyTvU>. Acesso em: 19 nov. 2017b.
YOUTUBE. Sotaque paulista! Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Xb2RDtuGk-E>. Acesso em: 19 nov. 2017c.
YOUTUBE. Carioca tem sotaque? – Tag Meu Sotaque. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=mtS-uvlK4MI>. Acesso em: 19 nov. 2017d.
YOUTUBE. TAG – Meu sotaque (Ceará)! YouTube, 28 mar. 2016. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=IkAHzsCrxsg>. Acesso em: 19 nov. 2017e.
YOUTUBE. Tag – sotaque (Estado do Espírito Santo). Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=ZwKSWtDfpfU>. Acesso em: 19 nov. 2017f.