Post on 11-Jun-2015
Meu primeiro beijoMeu primeiro beijoMeu primeiro beijoMeu primeiro beijo WWaallccyyrr CCaarrrraassccoo
WALCYR CARRASCO
MMMMMMMMeeeeeeeeuuuuuuuu pppppppprrrrrrrriiiiiiiimmmmmmmmeeeeeeeeiiiiiiiirrrrrrrroooooooo
bbbbbbbbeeeeeeeeiiiiiiiijjjjjjjjoooooooo
Ilustrações de Olavo Cavalcante
Copyright © Walcyr Carrasco, 1997
Todos os direitos de edição reservados à
QUINTETO EDITORIAL LTDA.
Editora
Maria Esther Nejm
Editor de arte
Alberto Lunares
Ilustrações
Olavo Cavalcanti
Diagramação
Wilde Velasques Kern
Editoração eletrônica
Finalização
Vânia Aparecida Maia de Oliveira
Coordenação
Carlos Rizzi
Reginaldo Soares Damasceno
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Carrasco, Walcyr.
Meu primeiro beijo / Walcyr Carrasco;
ilustrador: Olavo Cavalcante — São Paulo: Quinteto Editorial, 1997.
ISBN 85-305-0117-9
1. Literatura infanto-juvenil. I. Cavalcante, Olavo, li. Título.
97-0321 CDD-028.5
índices para catálogo sistemático:
1. Literatura infanto-juvenil 028.5
2. Literatura juvenil 028.5
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1 - AA bbeelleezzaa ddee mmaammããee
É difícil ser filha da minha mãe. Ela é linda, tão linda que todo
mundo diz:
— Ela tem um rosto de anjo! E eu, que rosto tenho? De capeta?
Odeio sair com minha mãe na rua. Os homens assobiam, fazem
o maior estardalhaço. Até meus amigos na escola comentam:
— A mãe da Clara, hem? Eu queria ter uma mãe assim.
Sei que você pode achar que estou exagerando. Quando a gente
escreve uma história, tem liberdade total. Eu posso usar as palavras
que quiser, inventar que minha mãe é alta ou baixa, gorda ou magra.
Ou dizer que tem asas. Escrever é bom por isso. A cabeça da gente voa.
Uma delícia.
Mas, se eu disser que minha mãe tem asas e me carrega pra
escola voando, você saberá que é invenção pura. Porque o dia que
surgir uma mãe com asas, vai aparecer na televisão. Ou ela vai
esconder as asas, pra ninguém ficar falando.
Por isso vou me restringir aos fatos que mudaram
completamente minha vida.
E para falar deles, é preciso falar da beleza da minha mãe.
Quando mocinha, ela vivia numa pequena cidade do interior de
São Paulo. Ganhou todos os concursos de beleza locais.
Três rapazes se apaixonaram perdidamente por ela. Meu avô não
quis permitir o namoro. Naqueles tempos, os namoros eram levados
muito a sério, segundo ela conta. Diz que a primeira vez em que beijou
alguém no portão de casa estava com um medo danado de ser pega pela
minha avó, e já era bem adulta.
Ah, os tempos mudaram! Na minha classe, existem três meninas
que já beijaram alguém. Duas fazem o maior ar de mistério e não
querem contar como foi, de jeito nenhum. Mas a Selma, que é muito
amiga minha, diz que beijo tem gosto de chiclete. Eu perguntei se não é
porque ela foi beijar um menino que estava mascando chiclete, mas ela
garante que não. Já consultou várias pessoas, e todas garantem que
beijo e chiclete têm o mesmo sabor. A Selma, pra dizer a verdade, só
beijou um garoto da escola uma única vez. Agora, quando eles se
encontram, ele fica vermelho e foge de medo dela. Eu nunca tive chance
de beijar alguém. Por enquanto, treino com meu ursinho. Assim, mais
tarde, ninguém vai sair dizendo que sou inexperiente. (Apesar de que,
nesse tipo de assunto, as opiniões variam muito. A tia de minha mãe
nunca se casou, nunca teve namorado, nunca beijou ninguém e fala
disso com o maior orgulho.)
Voltando à minha mãe e aos três rapazes que se apaixonaram
por ela.
Minha avó contou que um deles era magro, alto, tinha costeletas
pretas e usava um par de calças vermelhas. Devia ser muito lindo,
porque todas as moças da cidade eram loucas por ele. Tinha um carro
conversível e todas as sextas e sábados atravessava as ruas com os
pneus chiando, o motor roncando, o rádio bem alto e sempre uma nova
namorada do lado. Era muito rico, pois seu pai tinha imensas fazendas
de gado leiteiro. Quando viu minha mãe pela primeira vez, ela estava
parada de manhã muito cedo no ponto de ônibus. Naquela época,
embora ainda estivesse na escola, estudando pra ser professora, minha
mãe dava aulas numa escola num sítio, a duas horas de distância de
ônibus. Era uma vida dura.
Em compensação, a vida do rapaz era mole! Naquele dia, ele só
estava acordado tão cedo porque tinha passado a noite toda numa
festa. Vinha todo alegre, ao volante, quando viu minha mãe. Brecou,
fazendo barulho com os pneus, e ofereceu uma carona. Mamãe olhou
para ele, viu que tinha os olhos vermelhos por falta de sono e deu uma
gargalhada.
— Vai dormir, que é melhor! — disse ela.
Desde aquele dia, o rapaz ficou perdidamente apaixonado.
Deixou de ter namoradas, deixou de ir a festas.
Ia esperar minha mãe na porta da escola. De noite, estacionava
em frente à casa de meus avós. Quando mamãe foi a seu primeiro baile,
com um vestido lindo que minha avó demorou dois meses para bordar,
o rapaz comprou uma mesa de pista e conseguiu dançar com ela. Disse
que estava apaixonado, mas mamãe riu e explicou que não pensava no
assunto.
Mesmo assim, o rapaz continuou insistindo. Até na igreja ele
começou a ir, só para ver mamãe. Foi assim até o dia em que ela se
casou.
O nome desse rapaz era Braz.
O segundo apaixonado era colega de escola, vizinho de meus
avós. Ele e mamãe eram amigos desde crianças, e toda a vizinhança
comentava que um dia iriam se casar. Quando ficaram mocinhos, ele
convidou mamãe para ir ao cinema, e ela aceitou, porque sempre
tinham sido muito amigos. No cinema, ele ofereceu uma bala. Quando
ela foi pegar a bala, seus dedos se tocaram, e ele agarrou a mão dela
inteira. Mamãe deixou que ele pegasse na mão dela, pensando que nada
tinha de mais. Ele acreditou que isso queria dizer:
— Sim, eu quero namorar você!
Foi aproximando os lábios. Mamãe levou um susto tão grande
que engoliu a bala e quase sufocou. Gemeu que estava sem ar, e o
rapaz teve que abaná-la. Na volta do cinema, ele puxou assunto. Falou
do namoro. Ela respondeu que era muito nova, não pensava nessas
coisas, e deviam continuar amigos.
Desde então, toda vez que a via, ele olhava para ela com um ar
de peixe morto que dava até pena.
O nome desse rapaz era Amarildo.
O terceiro era um rapaz que tinha vindo da Bahia. Trabalhava
numa fábrica de sabão. Passava o dia no meio da soda e do cheiro forte
dos produtos químicos. Por isso tinha um cheiro diferente. Se estava a
um quarteirão, minha avó já sentia o cheiro.
Foi a sorte ele ter um cheiro tão forte.
De tão apaixonado, ele quis raptar minha mãe.
Arrumou um caminhãozinho e, quando ela vinha voltando da
escola, ficou escondido numa esquina. Quando minha mãe virou a rua,
ele botou um lenço com um produto químico muito forte no nariz dela.
Ela desmaiou, e ele a levou pro caminhãozinho. Amarrou seus pulsos e
botou um lenço na sua boca.
Mamãe acordou no campo, já de noitinha, toda amarrada.
Ele explicou que ela não precisava ter medo, porque só tinha
feito aquilo pra ter a chance de dizer que a amava e que daria sua vida
por ela.
Em seguida, tirou o lenço de sua boca e pediu que não gritasse,
pois queria conversar com ela.
Conversar coisa nenhuma! Fez um biquinho com os lábios e foi
se aproximando de mamãe. Quando sentiu os fios do bigode dele bem
próximos, ela gritou que nem louca.
O delegado já estava na trilha, devido ao cheiro de sabão que o
rapaz tinha no corpo. Com os gritos, correu.
O rapaz foi preso. Meus avós não quiseram processá-lo, pois
nada acontecera a mamãe. Foi solto, com a condição de ir embora da
cidade. Nunca mais se ouviu falar dele, por isso nem vale a pena dizer o
nome. Cada vez que minha avó sentia cheiro de sabão forte, corria atrás
de mamãe, pra ver se estava tudo bem.
E natural que você pense: se a mãe dela não quis saber de
nenhum de seus apaixonados, como é que ela nasceu e agora está
escrevendo este livro?
Simples: mamãe casou com papai, que nem pensava em casar
com ela.
Acontece que ela sempre teve suas próprias idéias, e estava
apaixonada por ele há mais de um ano. Era um professor do colégio,
quinze anos mais velho do que ela. Ninguém podia imaginar que ele
pudesse ser alvo de tão grande paixão.
Solteirão, sem muito dinheiro, o professor Adalberto tinha vindo
de São Paulo. Diziam que era muito inteligente e que estava prestando
concurso para ser professor numa universidade paulista. Também
escrevia romances, tinha um livro publicado. Era um homem sério,
sempre calado, e jamais pensaria em namorar uma aluna. Mesmo
porque tinha um grande segredo, que não revelava a ninguém.
Mamãe sonhava com ele dia e noite, e não tinha olhos para
nenhum de seus apaixonados.
Quando terminou a escola, mamãe teve a maior decepção. O
professor Adalberto estava mudando de cidade. Conseguira, afinal, a
vaga de professor na universidade. Mamãe, que era linda e tinha
qualquer homem a seus pés, não sabia o que fazer. Por isso, não fez
nada, e passou noites e noites chorando no travesseiro.
Mais tarde, mamãe veio para São Paulo prestar o vestibular.
Dias depois, estava andando na rua quando um homem a viu de longe e
correu até ela. Trabalhava para uma agência de modelos e convidou
mamãe para fazer fotografias. Ela aceitou, porque pagavam muitíssimo
bem. Até hoje guardo uma fotografia de mamãe anunciando um creme
para a pele.
Mamãe fez sucesso como modelo. E também no coração dos
homens. Todas as semanas, recebia flores, bombons e propostas de
casamento. Nem queria saber. Ainda pensava naquele professor,
embora nem soubesse onde ele estava.
Até que um dia, aconteceu.
Ela foi convidada para um trabalho muito importante: as fotos
da nova coleção de diamantes de uma das principais joalherias do país.
Foi para o shopping, onde vestiu uma roupa lindíssima. Botou colares e
pulseiras de diamantes que a faziam brilhar como o sol. Enquanto
posava para as fotos, uma multidão se juntou. Todo mundo comentava:
— Como é linda!
No intervalo entre uma foto e outra, ela viu uma figura
conhecida.
Era a única pessoa que não dava importância para as fotos. O
professor Adalberto, que observava os lançamentos na vitrina de uma
livraria. Mamãe fez "Ah!". Pediu licença e correu atrás dele, com todos
os diamantes na mão. Os seguranças foram atrás apavorados, porque
era um risco se misturar com a multidão cheia de jóias como ela estava.
Ela gritou:
— Professor Adalberto! Ele se virou, surpreso. Não reconheceu
naquela mulher deslumbrante a aluna de dois anos atrás. Ela se
apresentou:
— Sou Cristina. Estudei com você.
Ele se lembrou, de boca aberta.
Nunca podia imaginar que a aluna fosse se transformar numa
mulher tão linda.
Menos ainda que ela se lembrasse dele, depois de ter ficado tão
famosa.
— Ainda tenho o livro que você escreveu — ela disse.
Ele agradeceu e começou a se despedir.
Então, ela agarrou as mãos dele e disse, de uma vez só:
— Não vá embora nunca mais. Sempre fui apaixonada por você.
Com os olhos arregalados, Adalberto observava aquela mulher
deslumbrante, muito acima dos sonhos de qualquer homem, dizendo
que o amava desde sempre. Abriu a boca ainda mais, e foi abrindo,
abrindo, até cair desmaiado no chão. A multidão, entusiasmada,
começou a aplaudir, pensando que fosse uma cena da filmagem.
Mais tarde, eles conversaram muito tempo.
Ele ficou apaixonado por ela, mas não queria casar.
— Vou estragar sua vida — ele dizia.
Finalmente, revelou seu segredo. Tinha uma doença muito grave
no coração. Era um problema com o qual tinha nascido. Enfim, era um
homem que, a qualquer momento...
— Não posso oferecer nenhuma segurança a você.
Mas mamãe o amava de verdade. Até hoje diz que o reencontro
foi o momento mais bonito de sua vida.
Com o que ganhava como modelo, ela comprou o apartamento
onde vivemos. E bom. Mas, como a carreira de modelo é curta, ela
voltou a estudar. Fez faculdade, e hoje trabalha como relações-públicas
numa grande companhia de aviação. Graças a esse emprego é que
vivemos com algum conforto. (E é por isso que já fui uma vez a Miami e
outra à França. Mamãe ganhou as passagens de graça!)
Papai morreu alguns anos depois, poucos meses após meu
nascimento.
Mamãe sempre diz que nunca deixou de amá-lo.
Eu só o conheci por fotografias, pelo que minha mãe e minha
avó contam, e pelo livro que ele escreveu. Sempre que posso, leio um
pedacinho e imagino que estou conversando com ele.
Sinto falta de ter conhecido meu pai. Todo mundo diz que puxei
a ele.
Não herdei a beleza de mamãe, mas o nariz em forma de cabo de
guarda-chuva de papai. Nunca fui uma menina linda como mamãe.
Para piorar as coisas, nos últimos meses, comecei a usar óculos. A
molecada na escola me chama de quatro-olhos, e eu fico louca da vida!
Acho que nunca ninguém se atirará a meus pés, ou dirá que larga tudo
por mim. Tenho medo de nunca receber flores, bombons e de jamais
ouvir palavras de paixão.
É duro ter uma mãe tão bonita.
Mas também sou obrigada a reconhecer: herdei de meu pai o
gosto por escrever, e isso me faz muito bem. Mamãe sempre lembra
uma frase que ele dizia:
— Quem tem um livro nunca está sozinho.
Porque meu pai era assim: lia enquanto viajava, lia antes de
dormir. Lia sempre que podia. Eu queria muito ter conhecido meu pai.
Pelo que mamãe conta, nós teríamos sido grandes amigos.
Diz mamãe que beleza não é tudo. Concordo. Porque, embora
seja tão linda, nunca mais se apaixonou, desde que papai morreu. Vovó
reclamava, dizia que ela não podia passar a vida toda sozinha. Mamãe
sorria, "triste:
— Como o Adalberto, não vou encontrar ninguém.
Mas um dia desses eu cheguei em casa, da rua, e entrei no
quarto sem que mamãe me visse. Ela estava deitada, apoiada no
travesseiro, vendo televisão. (Em nosso apartamento, a televisão fica no
quarto dela.) Notei que era um filme de amor que sempre passa na
televisão. Só que não estava vendo coisa nenhuma.
Ela chorava. As lágrimas rolavam em seu rosto.
Eu voltei para a sala. Fiquei sem jeito. O que é que se pode dizer
pra uma mãe que está chorando?
Foi nesse dia que eu percebi como minha mãe era triste.
Por isso resolvi fazer várias coisas. É disso que vou falar.
Como comecei a usar óculos, como fiz mamãe ficar feliz, e como
dei — ufa! — meu primeiro beijo de verdade!
2 -- AA bbeezzeerrrraa ddee óóccuullooss
Tudo começou quando senti meus olhos arderem. Reclamei pra
mamãe, ela pingou colírio.
Não adiantou.
Além disso, eu sentia uma dorzinha de cabeça que não parava.
Falei com ela de novo. No trabalho, comentou com uma amiga,
que aconselhou:
— O melhor é levar ao médico.
O problema de mamãe era justamente esse. Hoje em dia os
médicos são todos especializados, e ela não sabia por onde começar.
Ligou para meus avós, que vieram do interior, pois mamãe não
podia faltar muito no emprego. Freqüentemente, meus avós passavam
longas temporadas conosco. Nós não temos empregada, apenas uma
faxineira que vem lavar e passar roupa duas vezes por semana, e a
presença de meus avós ajudava muito. Principalmente porque vovó sabe
fazer comida do jeito que eu gosto: feijão, arroz, bife bem temperadinho,
com cebolas, e salada de alface com tomate.
Quando soube da dor de cabeça, vovó aconselhou:
— Leve logo ao médico. Pode ser apendicite.
Mamãe e vovô caíram na gargalhada. O maior medo de vovó é de
apendicite, pois ela operou quando criança, e quase morreu no hospital.
— Apendicite não dá dor nos olhos, minha velha — divertiu-se
vovô.
Mamãe marcou consulta com um oftalmologista. Foi uma tarde
decisiva.
Fui até lá com meus avós. Era um médico muito simpático.
Entrei numa sala cheia de aparelhos enormes.
— Não vai doer nada — ele garantiu.
Doer, não doeu. Mas era uma sensação muito esquisita.
Eu tinha que ficar sentada, olhando uma luzinha vermelha lá no
fundo. Enquanto isso, ele observava dentro dos meus olhos.
Depois, sentei numa cadeira e ele colocou um aparelho apoiado
no meu nariz. Cada vez que ele mexia no aparelho, algumas lentes se
moviam e minha visão se modificava. Na minha frente, ele projetou
várias séries de letras. Algumas tão pequenininhas que eu não
conseguia enxergar. Outras pareciam borradas, mas, quando ele
mudava as lentes, melhoravam. Eu fiz o maior esforço para acertar.
Quando eu dizia, ele apenas me olhava com um sorriso e botava nova
série de letras. No final, vovó perguntou:
— E grave, doutor?
— Que grave coisa nenhuma! E só miopia! — ele declarou.
E deu a sentença:
— Você vai ter que usar óculos.
Estremeci.
Tive vontade que acontecesse um terremoto, só para que o chão
abrisse e eu entrasse dentro da terra!
Óculos?
De óculos, eu nunca seria tão bonita quanto a mamãe!
Comecei a chorar dizendo que nunca usaria óculos. Vovó me
consolou, explicando que não era feio, que existem óculos lindos.
No dia seguinte, fui com mamãe a uma ótica. Exigi que ela fosse,
porque sempre teve muito bom gosto para se vestir e poderia me ajudar.
Não foi fácil! Logo descobri que meu gosto não combinava nem um
pouco com o dela!
A armação que mais me interessou era incrível!
Era um par de óculos com dois cisnes em cima. Seus bicos se
tocavam bem na parte que fica em cima do nariz. Um charme. Com uns
óculos daqueles, eu até que ficaria bem. Mas minha mãe explicou que
eram muito pesados para serem usados todos os dias e que a armação
era muito grande para meu rosto de menina.
— Além disso, logo você vai se cansar desses cisnes!
Como eu poderia me cansar de uns cisnes tão lindos?
Mas vocês sabem muito bem que, quando a mãe da gente decide
uma coisa, é inútil bater boca, principalmente quando se trata de
óculos, sapatos e biquínis.
Aí eu vi uns óculos mais incríveis ainda. Era uma armação
preta, bem grossa, com um morcego no alto. Os olhinhos do morcego
eram vermelhos e brilhantes. As lentes, escuras! Pensei que, se eu
usasse uns óculos daqueles, iam achar que eu era uma cantora ou uma
guitarrista da pesada.
A vendedora da loja riu de mim, e fiquei furiosa. Mamãe me
explicou, delicada como sempre:
— Esses óculos de morcego até que são bem originais, Clara. Por
isso só servem para ser usados em ocasiões especiais. Além disso, as
lentes escuras prejudicariam sua visão se fossem usados dentro de
casa. Ou para ler e estudar. Óculos escuros só servem para o sol.
Agora, vamos comprar óculos para o uso diário.
Eu me conformei.
Não porque seja conformada de verdade. Resolvi ficar quieta,
mas, pensando bem, nunca vejo ninguém com óculos de cisnes ou
morcegos na rua.
Deixei que mamãe me fizesse escolher uns óculos absolutamente
normais, de plástico rajado de marrom e ocre. Segundo mamãe, imitam
tartaruga. São pequenos, de contornos suaves. Ideais para o meu rosto,
segundo garantiram. Pois eu não achei nada disso. Olhando no espelho,
tenho a impressão de que penduraram dois fundos de garrafa no meu
nariz.
Quando os óculos ficaram prontos, fui buscá-los com mamãe.
Pus no rosto. O médico havia avisado, mas mesmo assim
estranhei. Quando a gente coloca óculos pela primeira vez, perde um
pouco o senso de equilíbrio. Eu andava e tinha a impressão de que ia
pisar num buraco que não existia. Mais tarde, é claro, eu me acostumei.
Foi apenas a primeira impressão.
Em casa, quando fiquei sozinha, corri até o quarto de minha
mãe e peguei o álbum de fotografias que ela tem guardado na primeira
gaveta do armário.
Exatamente como eu me lembrava.
Lá estava a foto de papai, olhando diretamente pra mim, com
um par de óculos cravados no nariz. Até nisso me pareço com ele!
Talvez eu não precisasse ficar tão chateada. Afinal, se com
aqueles óculos ele conquistou uma lindeza como a mamãe, quem sabe
eu tivesse a mesma sorte e fizesse estremecer o coração de um príncipe
encantado!
Eu estava olhando a foto de papai quando mamãe entrou e se
sentou a meu lado. Parece que adivinhou meus pensamentos.
— Sim, você se parece muito com ele. E eu gosto muito de você,
como gostava dele. Cada vez que olho pra você, eu sinto muito, muito
amor! Sabe que ficou linda de óculos?
Eu até que me conformei.
Nem tudo foi tão cor-de-rosa, porém. Quando cheguei na escola,
no dia seguinte, ouvi vários comentários.
— Olha só, de óculos!
— Quatro-olhos!
Quem me insultou a primeira vez foi o Rosendo. E um menino
moreno e gordinho, um ano mais velho do que eu. Está atrasado na
classe, porque seus pais são mexicanos e moram há dois anos no
Brasil. Ele demorou um ano para aprender português e, mesmo assim,
fala de um jeito diferente, como se suas palavras tivessem outro ritmo.
Também vive confundindo certas palavras, porque continua falando
espanhol em casa e volta e meia diz chica em vez de menina, ou mira,
no lugar de olhe.
Parece que tem prazer em me deixar furiosa. Quando começou a
me chamar de quatro-olhos, fingi que não ouvi. Ele insistiu. Durante o
recreio, ficou numa roda de garotos e mexeu tanto comigo que, de
repente, vi tudo vermelho. Saí correndo em direção a ele, com os braços
para frente, para derrubá-lo no chão. Sou boa de briga e, sempre que
enfrento um menino mais forte, faço isso. Vou correndo e, com a força
da corrida, dou um empurrão, e ele, pimba! Rola no chão!
Quando eu estava bem perto, ele se desviou, pegou um lenço de
bolso, abriu e agitou como se fosse um toureiro. Não pude parar, passei
pelo lenço, tropecei! Quem caiu no chão fui eu!
— Que venga el toro! — ele gritou, agitando o lenço de novo.
Todo mundo, até minhas amigas, deu risada.
Meus óculos tinham voado para longe; a lente estava trincada.
Comecei a chorar.
O safado fez cara de quem estava morrendo de dó de mim, e
fiquei mais brava ainda, porque odeio quando alguém tem dó. Aí, ele
mudou de atitude, não sei por quê. Pegou os óculos, que estavam no
chão, e levou para mim.
— Acalmate, nina, no es nada — disse em seu português
estropiado.
Peguei os óculos e coloquei. O mundo estava todo rajado, devido
à lente partida. A professora vinha vindo, querendo saber o que
acontecera. Todos se dispersaram, e eu fiquei com cara de boba,
esfolada e olhando o mundo através do vidro partido.
Minha mãe ficou louca da vida e levou os óculos para consertar
no dia seguinte.
Quando os coloquei de volta, já sabia que devia tomar cuidado
com eles. Voltei para a escola de queixo erguido e avisei:
— Se alguém me chamar de quatro-olhos, vai ver!
Mas é claro que ninguém chamou.
Tinham arrumado apelido muito melhor: bezerra!
Tudo por causa do Rosendo ter bancado o toureiro comigo.
Fiquei semanas ouvindo aquele apelido, sempre murmurado nas
minhas costas, ou de longe, porque ninguém queria brigar comigo. Uma
amiga, a Cláudia, até comentou:
— Você tem sorte, porque o apelido podia ser vaca, o que é muito
pior!
Sorte? Acho que não é sorte nenhuma ser chamada de bezerra, e
eu passava o tempo todo de orelhas em pé, pra ver se alguém tinha
coragem de dizer na minha frente.
Coragem, ninguém teve não.
Mas um dia eu estava entrando no pátio da escola e, de longe, o
Rosendo tirou um lenço e agitou, como se fosse a capa de um toureiro.
Fiquei tão brava que peguei uma banana do meu lanche e atirei em
cima dele. Não acertei, e todo mundo ficou dando risada!
Depois de alguns dias, deixaram de me chamar de bezerra.
O Rosendo inventou um novo apelido.
Começou a me chamar de Clara de ovos, de omelete, de uma
porção de absurdos!
Desses apelidos eu não podia fugir, porque meu nome é Clara,
como você sabe.
Um nome lindo, e achei péssimo confundirem com clara de ovo.
Sempre tive o maior orgulho do meu nome, que era o de minha avó por
parte de pai, e o Rosendo avacalhou.
Francamente, não sei o que tem contra mim!
Mas eu ainda pego esse safado!
3 –– PPaaiixxããoo
Sinto falta do meu pai. Não conheci meu pai, realmente, como já
disse, mas sinto falta de ter um pai. Também acho que mamãe sente
falta de ter alguém a seu lado. Um companheiro. Às vezes leio histórias
de fadas que falam de madrastas ruins, que torturam as crianças, e
penso:
— Se mamãe casasse de novo, e eu tivesse um padrasto, ele
seria ruim pra mim?
Nem dá pra imaginar.
Como já contei, mamãe nunca se interessou por ninguém. Só
saía de vez em quando, com as amigas do trabalho. Um dia ouvi mamãe
conversando com uma delas. A amiga falava sobre um rapaz, gerente na
companhia, que era apaixonado por mamãe.
— Tenho pena dele, porque é uma paixão inútil.
— Por que você pelo menos não aceita um convite pra jantar?
Quem sabe...
— Não sinto atração. Portanto, acho que nem deveria me
preocupar em ter um padrasto ruim. Pelo jeito, não teria nenhum,
nunca!
Talvez por isso eu tenha me apegado tanto a meu tio Álvaro.
Ele era bem mais novo que papai. Acabou a faculdade faz dois
anos, e tocava violão em um conjunto musical. Vivia com meus avós, no
sítio.
A família de meu pai morava toda em um sítio com uma casa
enorme, velha, mas muito bonita, embora precise de uma boa pintura.
As paredes vivem descascando. Minha avó, Maria Clara, é uma
mulher calada, que vive mergulhada no piano. Gostaria muito de
aprender música, mas ela mora longe, e não dá para estudar com ela.
Mamãe já prometeu me botar no curso de piano no ano que vem. Quem
sabe?
Soube que, certa época, minha família foi dona de todas as
terras da região. Tinham uma enorme fazenda. Mas o meu bisavô
gostava de jogar e foi perdendo pedacinho por pedacinho nas cartas. Só
ficou com o sítio e a enorme casa da fazenda.
Meu avô é vivo, e ainda gosta de ajudar no trabalho do campo.
Foi com ele que vi, pela primeira vez, uma jabuticabeira cheia de
frutas. Sempre comi jabuticaba comprada na feira. Fiquei surpresa ao
descobrir que ela cresce coladinha no tronco e nos galhos da árvore.
Uma jabuticabeira fica tão carregada que a gente pode comer, comer,
comer até cansar, e os galhos ficam repletos. Meu avô me mostrou
árvore por árvore no pomar. Meu tio mais velho também fez questão de
me explicar como é a criação de galinhas. São elas que sustentam a
família, na verdade. Ele construiu um imenso galpão, onde os frangos
são criados em ninhos que parecem engradados. Mexem-se o mínimo
possível, para engordar depressa. E comem uma ração especial para a
carne ficar macia. Mas, lá no sítio, eles criam também galinhas no
quintal, soltas, e a carne é bem mais saborosa. Chamam de galinhas
caipiras.
Vamos pouco ao sítio. Cada vez menos.
Mamãe é muito ligada a seus próprios pais. Sei que acha triste
visitar a família de meu pai. Acho que ela tem razão, é mesmo uma
família muito triste. Vovó Clara, sempre tocando aquelas músicas
melancólicas, vovô Antenor mergulhado no jardim.
— Eu faço questão de visitar seus avós porque é o que seu pai
gostaria que eu fizesse — dizia mamãe.
Eu sabia que, no fundo, aquelas viagens eram dolorosas para
ela, devido às recordações.
Tinha, até o começo desta história, duas tias solteiras, Amarílis e
Alba, que viviam também no sítio. Ficava muito preocupada quando
olhava para elas, solteiras, e mais velhas que mamãe! Todo mundo na
família de papai casou tarde, e morro de medo de acontecer o mesmo
comigo. Cheguei a pensar que poderia ser culpa do nariz de guarda-
chuva, que caracteriza todos nós. Todos, não. Minha tia Alba tem o
nariz pequeno e delicado, cabelos castanhos e cacheados. Poderia ser
confundida com um anjo, desses das gravuras. Dizem que teve muitos
pretendentes (embora, é claro, nunca tenha sido tão linda quanto
mamãe), mas jamais quis saber de algum. Tia Alba queria ser freira,
mas vovô foi contra. Olhando para minhas tias, eu me preocupo muito,
porque às vezes acho que estou ficando velha e nunca namorei
ninguém.
O fato é que, visitando a antiga casa do meu pai, tento pensar
como ela era. Uma vez minha tia Amarílis me deu uma coisa tão linda
que até hoje, quando pego, tenho vontade de chorar.
Abriu uma mala velha, que estava cheia de roupas, e explicou
que algumas eram de meu pai, quando mocinho. Ninguém tivera
coragem de jogar. O sítio é assim, cheio de móveis velhos, com roupas
antigas, malas fechadas, móveis quebrados, tudo guardado em quartos
que ninguém mais usa.
Tia Amarílis achou um paletó, apalpou e, dentro, encontrou um
lenço. Deu para mim e disse:
— Quando ele ia aos bailes, usava esse lenço perfumado no
bolso do paletó.
Eu botei o lenço no nariz e senti um perfume bem no fundo. Um
perfume forte, gostoso. Respirei fundo, para o cheiro entrar bem no meu
nariz.
Minha tia me deu o lenço, que está bem guardado numa caixa
fechada, para não perder o perfume de vez. Assim, quando tenho muita,
muita vontade de lembrar do meu pai, pego o lenço e cheiro. É um jeito
de ficar perto dele, pode acreditar, e sempre me faz muito bem.
Em compensação, tenho raiva dos meus primos. Das outras
vezes, quando eu ia lá, o menorzinho tinha mania de vir correndo,
levantar minha saia e fugir antes que eu desse um tabefe no seu nariz.
Toda molecada ficava rindo e comentando a cor da minha calcinha. Fico
furiosa, ainda mais porque, pra mim, mamãe adora escolher calcinhas
bem bonitas, com rendinha. Da última vez, fiz uma exigência:
— Só vou de calças compridas.
Mamãe riu quando expliquei por que, mas topou. Só que, aí,
meus primos começaram a caçoar dos meus óculos.
— "Zóio" de vidro!
— Caipiras! — eu respondia. E mostrei a língua pra eles!
Mas nem devia ligar, porque todos são bem mais novos do que
eu. Não passam de umas criancinhas!
De todos, do que eu mais gostava era o meu tio Álvaro. As vezes,
de noite, ele me abraçava e ficava sentado comigo nos degraus da
varanda, me mostrando as estrelas. Fazia cafuné nos meus cabelos e
dizia que eu era linda.
— Não sou não, porque uso óculos e tenho nariz de guarda-
chuva! — eu dizia.
— Engano seu. Seus cabelos são muito bonitos, e os óculos
ficaram muito bem em você. Dão charme! — ele respondia.
Eu não acreditava, mas ficava feliz. Acho que é isso que ele
queria, me deixar feliz.
Foi graças a uma dessas viagens ao sítio que eu me apaixonei
perdidamente, como só acontece nos romances. Só que não foi por tio
Álvaro, não!
Mamãe não gosta de dirigir muito em estrada, porque seu carro
é velho e vive tendo problemas. Fomos de ônibus (meu tio Álvaro
sempre ia pegar a gente na cidade). O ônibus parou num restaurante no
meio da estrada, como faz todas as vezes. Eu estava tomando
refrigerante e comendo coxinha (adoro coxinha de bar) quando ouvi
uma voz:
— Nina, é você?
Era um homem moreno, um pouquinho barrigudo, mas com
ombros largos, falando com minha mãe. Ela olhou, surpresa, e sorriu.
(O sorriso de mamãe é lindo como os anúncios de pasta de dente.)
— Braz!
Notei que ele tinha costeletas. Ela me apresentou:
— E minha filha, Clara.
Ele passou a mão pela minha cabeça e disse:
— E linda. Parece com você. Imediatamente, percebi que se
tratava de um falso, porque não pareço com minha mãe de jeito
nenhum. Fiquei irritada e dei uma mordida forte na coxinha. Ele olhou
para minha mãe com um jeito esquisito, parecia um garoto querendo
um pedaço do lanche da gente na escola.
— E seu marido?
— Fiquei viúva. E você?
— Casei, mas não deu certo. Separei.
Mamãe sorriu, de novo aquele sorriso lindo.
Vi que ele suspirou. Perguntou pra mim:
— Quer ver meu caminhão? Fiquei entusiasmadíssima.
Tenho a maior vontade de dirigir caminhão e fiquei louca para
conhecer um por dentro. Ele me pegou pela mão, fomos até o pátio.
— Minha família perdeu tudo, não sei se você soube.
— Ouvi alguma coisa a respeito.
— Foi com uma das crises na agricultura. Meu pai tinha
investido muito nas fazendas. Veio a geada... tínhamos feito muitos
empréstimos nos bancos... foi terrível, mas, de certa forma, também foi
uma experiência e tanto! Eu, que nunca tinha trabalhado, juntei-o
pouco que sobrou e comprei um caminhão. Hoje tenho uma pequena
transportadora. Não é sempre que pego a estrada.
Foi sorte nos encontrarmos — explicou à minha mãe.
Ela apenas sorriu de novo, e eu notei outra vez o jeito esquisito
com que ele a olhava.
Ele abriu a portinhola do caminhão, me ajudou a subir.
Entrei. Dentro havia um cheiro de couro, e o banco era tão.alto
que, para alcançar o breque, eu precisaria de pernas de pau. Peguei no
volante, que era enorme. Estiquei meus braços até o máximo, e nem
assim consegui abraçá-lo. Pela janelinha, vi o homem dando um cartão
à minha mãe.
Nesse instante, chamaram os passageiros do ônibus. Ele abriu a
portinhola, me pegou pela cintura, me ergueu no alto e me pôs no chão.
Nossa, como era forte! Mamãe se despediu depressa, porque o ônibus ia
partir. Ele perguntou:
— Posso dar um beijo nessa moça linda?
Ele me ergueu com as mãos fortes e deu um beijão na minha
testa.
Até fiquei zonza, pela rapidez com que me agarrou. Tinha um
cheiro de perfume bem forte e a barba por fazer, que me arranhou um
pouco. Quando me pôs no chão, eu estava com as pernas bambas.
Percebi que estava totalmente apaixonada!
Quando sentamos no ônibus, perguntei:
— Quem era, mamãe, quem era?
— Um velho conhecido. Claro que não fiquei contente com a
resposta. Fiquei pensando: se eu crescesse depressa, ainda poderia me
casar com ele.
Quem sabe?
Tinha dito que me achava bonita. Já era um passo.
Em casa, vi que mamãe pegou o cartão e pôs dentro de uma
gaveta, como se não tivesse importância. Depois, fui olhar. Lá estava
tudo o que eu precisava saber: o nome, o telefone. Braz. Onde foi que eu
tinha ouvido aquele nome?
Só precisava de mais algumas informações. Na primeira vez que
vovó, mãe de mamãe, veio nos visitar, puxei o assunto:
— Sabe que mamãe encontrou um velho amigo no restaurante
da estrada?
— Quem?
— Era um homem de costeletas. Chamava Braz.
Foi aí que eu soube que Braz era justamente o rapaz filho de
fazendeiro (que perdeu tudo), apaixonado por mamãe, quando ela
morava no interior com os pais. Eu sei que disse o nome dele no começo
da história, mas foi só nessa conversa com vovó que fiquei sabendo de
tudo.
— Esse rapaz foi apaixonado por sua mãe. Ele tinha aliança no
dedo?
— Ouvi dizer que é separado.
— Como foi a reação da sua mãe? Será que ele gosta dela ainda?
Senti o coração se partir em pedaços.
Como eu poderia concorrer com mamãe?
Em seguida, vovó puxou o assunto com mamãe, toda contente:
— Quer dizer que você e o Braz se reencontraram?
Mamãe ficou furiosa:
— Maria Clara, nesta idade e já fofoqueira? Tão pequena e com a
língua tão grande!
Fiquei furiosa também. Sou quase uma mocinha.
A professora, que conhece muito bem a história da antiguidade,
explicou que na época dos impérios egípcios, há cinco mil anos mais ou
menos, as meninas se casavam com seis anos de idade. Gritei:
— Se eu fosse uma rainha egípcia, já deveria estar casada e
estaria governando o país! Sou grande!
Mamãe caiu na gargalhada:
— Mas você não é uma rainha egípcia, nem vive num palácio,
nem está construindo uma pirâmide. Nem devia ficar atiçando sua avó,
que só pensa em me ver casada de novo.
— Penso para seu próprio bem — resmungou vovó.
— Acha que eu deixaria minha filha ser criada por um estranho?
Só aí eu percebi que uma das razões por que mamãe não se
casava era eu! Justamente eu, que vivia pensando em como seria bom
ter um pai. (Embora às vezes sentisse uma ponta de remorso, pensando
se meu pai não ficaria triste por eu querer tanto ter outro pai.) Vovó
perguntava:
— Trocaram telefone?
Mamãe reagia:
— Ficou louca?
Eu devia ter respondido a mamãe que seria bom ter um pai.
Fiquei calada. Porque, na minha cabeça, havia um redemoinho de
idéias.
É claro que mamãe podia se casar de novo. Mas não seria
melhor se eu ajudasse a escolher meu padrasto? Assim, teria certeza de
que não poderia ser ninguém ruim, nem chato comigo. Também, é
claro, não podia ser o tal de Braz. Eu estava apaixonada por ele, e
mamãe não. Mamãe, porém, era tão bonita que não devia ser difícil
achar um padrasto.
Decidi que, a partir daquele dia, eu começaria a procurar
alguém.
E também daria um jeito de me encontrar com o Braz. Quem
sabe ele se apaixonava por mim, e dizia:
— Eu espero você crescer! Meus planos, porém, tiveram que ser
adiados.
Um dia, quando terminou a aula e eu estava indo pegar a perua
para voltar pra casa, dona Zilma, orientadora do colégio, pediu:
— Espere um pouco. Hoje você vai com a dona Conchita.
Vi uma mulher morena, de pele chocolate e cabelos pretos vindo
na minha direção. Era um tom de cor morena que eu nunca tinha visto.
Seu rosto era quadrado e de traços finos. Veio até mim com um
jeito dramático, e me abraçou forte. Fiquei preocupada só de receber o
abraço.
Alguma coisa ruim devia estar acontecendo.
A orientadora explicou:
— Sua mãe ligou, explicando que não vai estar em casa,
aconteceu uma emergência. Como eu tenho outro período de trabalho,
pedi para a dona Conchita levar você para a casa dela. Sua mãe está de
acordo, e já está com o telefone dela, para buscar você depois.
— Venga, hijita! — disse dona Conchita, me abraçando de novo.
Nesse instante, vi ao longe, nos esperando, o Rosendo! Pelo jeito
de falar, percebi que era a mãe dele!
— Eu não vou pra casa de ninguém! Quero ir pra minha casa!
— Você precisa ir — disse a orientadora. — É só por algumas
horas, até sua avó chegar do interior, para ficar com você.
Então meu coração foi ficando apertadinho! Senti um nó na
garganta. Só podia ter acontecido alguma coisa horrível.
— Só vou se contarem o que aconteceu!
Vi que a orientadora trocava um olhar com dona Conchita.
— Seu tio Álvaro sofreu um acidente, e sua mãe foi para o
hospital. Ele está muito, muito mal!
Olhei para elas, e de repente tudo foi ficando escuro em volta de
mim.
Caí no chão, desmaiada.
4 -- TToorrttiillllaass ccoomm gguuaaccaammoollee
Depois que passaram álcool nos meus pulsos e me puseram um
lenço molhado na testa, acordei e fui pra casa do Rosendo. Eu estava
muito, muito nervosa. Ninguém sabia detalhes sobre o acidente.
Somente que o tio Álvaro tinha batido o carro, na estrada, já perto da
cidade, e que estava no hospital.
— Quando su abuella venga, todo se aclarará — disse dona
Conchita em seu português espanholado.
O pior de tudo é que eu seria obrigada a passar horas e horas na
casa do Rosendo! No carro, porém, ele estava muito quieto. Quando
chegamos em casa, ele me contou que no jantar haveria comida
mexicana, e fiquei com medo de não gostar. É chato quando a gente não
gosta do que servem na casa dos outros. Segundo mamãe, é horrível
dizer que a comida está péssima.
(Eu também acho muito feio. Afinal, a pessoa cozinhou horas e
horas, e o mínimo que eu gosto de fazer é agradecer com um sorriso.) O
problema é que meu prato preferido é hambúrguer salada, e não gosto
de comida muito enjoada.
A casa era o máximo! Muito diferente da minha. Quer dizer, eu e
mamãe vivemos num apartamento, e eles moravam numa casa de
verdade. Tinha duas salas enormes e uma mesa de madeira escura com
oito cadeiras, para jantar. (Desde aquele dia, eu decidi. Quando crescer,
também vou querer uma sala de jantar!) Tinha muitos objetos
espalhados pela casa toda, todos bem coloridos, e várias estátuas de
bois, porque os mexicanos gostam .muito da figura do boi. Não é à toa
que o Rosendo queria bancar o toureiro comigo! Dona Conchita
arrumou os pratos, e notei que o Rosendo ajudava a mãe muito mais do
que eu na minha casa. Pegava os talheres e guardanapos. O pai de
Rosendo chegou. Era um homem alto e magro, com a pele um pouco
mais clara que a da mãe, mas os cabelos pretos eram iguais. Sentamos
à mesa, e ela serviu várias comidas estranhas.
A principal chamava-se tortilla. É uma espécie de panqueca, mas
sem ovos. É feita de farinha de milho (depois fiquei sabendo que
também existem as de trigo), e quase todos os pratos mexicanos são à
base de tortillas. (A gente fala tortilha, ou, dependendo do tipo de
castelhano, tortija, como me ensinaram mais tarde. Acontece que o
castelhano é falado com sotaques diferentes nos diversos países da
América Latina.) Aquele dia comemos tacos. Nada mais são do que as
tortillas enroladas em forma de canudo com alguma coisa dentro. Os
tacos de carne têm molho de carne moída dentro. Os de queijo, queijo
derretido. E assim por diante. Só que, quando pus o primeiro na boca,
quase chamei os bombeiros. Minha língua estava pegando fogo! Haja
pimenta! Bebi um gole de água tão depressa que quase engoli o copo.
Dona Conchita pediu mil desculpas, porque tinha esquecido de me
oferecer o molho separado, sem pimenta. Mexicanos comem muita
pimenta, e, prevendo minha reação, ela havia feito um molho só pra
mim.
Outro prato estranho era o guacamole. E uma espécie de patê de
abacate salgado. A gente come com comida normal. Eu sempre comi
abacate com açúcar e estranhei o gosto dele com sal. Quando comentei
que podia fazer mal, todos riram. Rosendo disse que no México eles
achavam que abacate com açúcar faz mal. Eu experimentei o guacamole
de novo e até acabei gostando um pouquinho.
A conversa também era engraçada. Algumas palavras em
espanhol são parecidas com o português, mas têm significados
diferentes. Eu disse:
— E uma comida esquisita. Dona Conchita ficou vermelha de
felicidade e me agradeceu o elogio. Logo vi que tinha confusão no meio,
porque eu não estava elogiando coisa nenhuma. Fiquei quieta, porque
percebi que esquisito em espanhol queria dizer saboroso, ou alguma
coisa parecida.
Depois, eu e o Rosendo fomos ao quarto dele jogar video game.
— Por que você está calado desse jeito? — eu perguntei.
— Porque tu tio bateu el carro, foi para o hospital e mi madre me
disse que se yo não te tratar muy bien serei castigado. Mas tu es una
bezerra de quatro ojos.
Ah, que raiva! Eu quase parti pra cima dele, mas preferi ficar
quieta, porque afinal de contas estava na casa dele. Só respondi:
— Você pensa que é um grande toureiro, mas gorducho desse
jeito parece um porquinho. Pior ainda, um porquinho que não sabe
falar nem espanhol nem português, só essa língua misturada que é
horrível!
— Y tu, un vidro de pimienta!
— E você, uma tortilla! Vi que ele estava ficando vermelho,
vermelho. Fiquei de pé, com os punhos preparados. Ele que viesse, pra
ver o que era bom. De repente, ele caiu na gargalhada.
— Tu estas tan tonta, parada com las manos cerradas!
Falou em espanhol, mas entendi que estava rindo da minha
posição de boxe. Olhei pra mim mesma e comecei a rir também. Parecia
um galo de briga, em pé daquele jeito. Daí, aconteceu uma coisa
engraçada. Eu ria, ria, ria tanto que não podia parar, e ele ria de me ver
rindo. Mas aí o riso foi se fechando na garganta e, sem perceber,
comecei a chorar.
— Por que estas llorando?
— Estou com medo por meu tio! Então Rosendo se aproximou e
me abraçou, e chorei no ombro dele, chorei tanto que até molhei sua
camisa. Chorei no ombro do chato! Fui parando aos poucos, mas nem
consegui dizer coisa alguma. Tocou a campainha. Ficamos parados,
esperando. Logo, a voz de vovó:
— Clara!
Tinha vindo me buscar! Antes de descer, corri ao banheiro e
lavei o rosto.
Desci correndo, porque estava morrendo de vergonha de ter
chorado na frente dele!
Vovó me abraçou. Vovô estava lá fora, esperando no carro.
— Muito obrigada, dona Conchita! Muito obrigada, seu Juan! —
eu disse, ao me despedir.
Fomos para o hospital.
Tio Álvaro estava na UTI. Voltamos para o apartamento,
desanimados.
Ele ficou alguns dias entre a vida e a morte. Tia Alba, tia
Amarílis, vovó Clara, quase toda a família se refugiou em nosso
apartamento, pois era impossível dormir no hospital. Mamãe encheu a
sala de colchonetes, e dormíamos como se estivéssemos em uma tenda
cigana. Eu notei que nem sempre tia Alba ia para o hospital. Mas,
quando chegava da escola, à tarde, freqüentemente ela não estava em
casa.
Onde é que poderia estar indo se, pelo que eu sabia, não
conhecia ninguém na cidade?
Depois que tio Álvaro saiu da UTI, foi para um quarto, todo
engessado. Mais tarde, veio para nosso apartamento. Ficou na minha
cama, e passei a dormir com mamãe. Já estava bem, embora tivesse
muitas dores, devido à imobilidade forçada. Soube mais tarde que
colocaram três pinos em sua perna direita, e que ele só não morreu por
um triz.
Apesar disso, quando eu me aproximava, ele sempre fazia
esforço para dar um sorriso.
Para minha surpresa, quem começou a conversar comigo no
pátio foi o Rosendo. Acho que, depois de eu ter chorado na frente dele,
quis ser mais amigo que antes. Primeiro, veio perguntar como meu tio
estava — era dona Conchita que queria saber. No dia seguinte, trouxe
um pedaço de bolo de milho. Era a mãe que tinha mandado.
Eu não dava muita bola, mas ele ficava parado do meu lado,
puxando conversa. O que eu podia fazer? Um dia, ele disse:
— Yo prometo nunca mais te chamar de bezerra de óculos.
— Então não chamo você de porquinho — prometi, porque sou
uma menina de paz.
Continuamos parados, nos olhando. Mais tarde, a Cláudia
comentou:
— Todo mundo diz que vocês estão namorando!
— Quem?
— Você e o Rosendo.
— Eu?
Caí na gargalhada. Expliquei:
— Estou apaixonada pelo dono de uma transportadora, que tem
costeletas imensas!
— Verdade? Você está namorando um adulto?
Fantasiei um pouquinho. Não queria ficar por baixo.
— Assim, assim. Ele disse que vai me esperar, e já me mostrou a
cabine do caminhão!
— Oh! — disse a Cláudia, de olhos arregalados.
Não tocamos mais no assunto. Eu nem podia imaginar a
confusão que isso ia dar.
Daqui a pouco falo da fofoca toda que a Cláudia aprontou.
Porque, é claro, ela começou a contar a história pra todo mundo,
exagerando em detalhes que inventou por si própria!
Enquanto a fofoca corria nas minhas costas, lá em casa
acontecia um terremoto.
O caso é que o acidente do tio Álvaro causou uma revolução!
Quando ele começou a melhorar, já instalado em casa, minha
avó paterna, Clara, disse que era melhor Alba e Amarílis irem embora,
de volta para o sítio, para não sobrecarregar mamãe. Imediatamente, vi
um brilho nos olhos de tia Amarílis.
— Eu não volto!
— Como assim? — espantou-se vovó Clara.
— Estou cheia de ser uma inútil. Cheia de passar os dias no
sítio, olhando o tempo passar. Afinal, pra que tirei um diploma?
Só aí eu soube que tia Amarílis tinha um diploma de enfermeira.
Nunca exercera a profissão. Ocorre que os hospitais têm falta de boas
enfermeiras diplomadas. Enquanto ajudava a cuidar de meu tio, titia
arrumara um emprego!
— Vou ficar aqui, morando com a Nina!
Olhei para mamãe, que fez um gesto com a cabeça. Vovó Clara
espantou-se mais ainda:
— Vocês combinaram tudo?
— De jeito nenhum. Só fiquei sabendo dos planos da Amarílis a
semana passada — explicou mamãe.
— Mas eu não podia recusar minha casa a Amarílis. Pode
perfeitamente ficar no quarto com a Clarinha. Só não disse nada porque
achei que o correto seria que ela contasse seus planos pessoalmente.
Fiquei supercontente! O apartamento às vezes era tão vazio.
— Você vai incomodar a Nina
— insistiu vovó.
— Não vai não. Será até bom pra mim — explicou mamãe. —
Fico muito preocupada, porque a Clara chega da escola antes de mim e
passa horas sozinha no apartamento.
— Como meu trabalho é por turnos, posso fazer companhia à
minha sobrinha — disse titia. — E é só por algum tempo. Mais tarde,
alugo um apartamento pra mim.
Vovó olhou em torno, chateada. Percebi que ela gostava de ter as
filhas embaixo das asas, como uma pata choca. Perguntou em voz
baixa:
— E você, Alba, também vai ficar aqui no apartamento?
Tia Alba sorriu:
— Não, eu não tenho um diploma como a Amarílis.
— Então, o melhor é voltar para o sítio amanhã.
— Também não vou voltar para o sítio.
Todos olharam para ela, surpresos.
— Ficou louca? — perguntou tia Amarílis.
Notei que nem tia Amarílis, nem mamãe, sabiam dos planos de
Alba.
— Apenas procurei meu caminho — explicou tia Alba. — Fui ao
convento de Santa Teresinha. Já me aceitaram.
— Você não pode fazer isso! — disse vovó.
— Posso sim, mãe. Quando eu era mais nova e quis ir para o
convento, você e papai insistiram para que eu não fosse. Disseram que
era melhor esperar, para ter certeza. Pois bem: esperei sete anos,
mamãe. Sete anos. Nunca me interessei por nenhum rapaz, nunca quis
outra coisa na vida. Durante todo esse tempo, me correspondi com o
convento. As freiras me deram apoio. Estou pronta.
— Quer dizer que vim pra cidade com duas filhas e volto sem
nenhuma?
Tia Alba e tia Amarílis abraçaram vovó.
— Não, mamãe, a gente nunca vai se separar de você, no fundo
do coração — garantiu tia Alba.
— Vou visitar vocês sempre. Apenas é preciso seguir o próprio
caminho — continuou Amarílis.
Vovó suspirou. No dia seguinte, ela é quem resolveu fazer as
malas. Afinal, meu tio estava fora de perigo. Tia Amarílis poderia muito
bem cuidar dele, ajudada por mamãe e por mim. Partiu um pouco
entristecida. (Dali a alguns meses, porém, falava das filhas com o maior
orgulho, como se ela própria tivesse tido a idéia de deixá-las na cidade.)
Outra conseqüência do acidente de titio foi que mamãe
reencontrou outro antigo admirador: Amarildo, seu amigo de infância.
Agora ele tinha se tornado médico do hospital. Não tivera nada a
ver com o tratamento de tio Álvaro, porque era obstetra. Mas viu mamãe
no hospital e foi falar com ela. Lembraram de muitas coisas do passado
e, quando ele a convidou para jantar, ela aceitou.
Tia Amarílis ficou superentusiasmada. Falava pelos cotovelos:
— Ele é tão charmoso! Mamãe ria:
— E apenas um amigo de infância, Amarílis.
Eu estava louca para conhecer o charmoso. Fiquei escondida na
porta do prédio quando ele veio buscar mamãe.
Chegou num carro imenso, todo cheio de truques: pára-choques
coloridos, pintura cintilante.
Desceu.
Era um homem enorme! Devia pesar uns cem quilos!
Pensei: "Mamãe nunca quis sair com ninguém, e agora sai com
um que vale por dois".
Mamãe desceu, animada:
— Vamos, Amarildo!
Ele abriu a porta do carro para ela. Depois, entrou do lado dele.
Não sei como conseguiu se espremer atrás do volante. Partiram. Subi,
decepcionada. Tia Amarílis esperava no quarto, ao lado da cama do tio
Álvaro.
— Que tal?
— É do tipo que parece que engoliu um colchão — respondi.
Meus tios caíram na gargalhada, embora eu não tivesse idéia do
que havia dito de tão engraçado. Ficamos vendo televisão e
conversando.
Mamãe voltou quatro horas depois. Eu devia estar dormindo,
mas ouvi quando chegou e sentou-se no sofá, exausta.
— Que tal, Nina? — perguntou titia.
— Comemos, comemos e comemos. Quando era pequeno, o
Amarildo já era meio guloso, mas agora virou um glutão. Estou exausta
de tanto comer, porque ele é do tipo que faz questão de que a gente não
fique de prato vazio. Fomos num rodízio, e acho que devorei um boi
inteiro.
— E... e o resto? — perguntou titia.
— O resto, como?
— Vocês não marcaram de se reencontrar... sei lá?
Ouvi um longo suspiro de mamãe.
— Amarílis... depois de cinco minutos, a conversa dele já não
tinha graça nenhuma. Ele falava e falava da vida de obstetra, e eu
pensava nas conversas que tinha com o Adalberto. Eram tão
interessantes...
— Mas meu irmão morreu há tanto tempo.
— Eu não posso continuar saindo com o Amarildo, porque não
tenho o menor interesse por ele. E um bom sujeito, gosta de falar... é
uma pessoa agradável. Mas... sempre foi um amigo, desde criança.
Nunca tive a menor atração.
— Você é tão bonita, Nina! E triste vê-la sozinha, dando duro
para criar sua filha.
— Você também é bonita, Amarílis. No entanto...
— Eu podia estar casada. E que me enfurnei naquele sítio,
esperando não sei o quê. Agora minha vida vai mudar.
— Se você achou o Amarildo tão simpático, por que não o
convida pra jantar?
Titia deu uma gargalhada:
— Do jeito que ele come, se eu convidar e pagar a conta, vou à
falência.
As duas riram. Eu, porém, tive uma idéia brilhante.
Já sabia com quem casaria mamãe. Não sei como ninguém
tivera essa idéia! Só havia um homem no mundo por quem ela poderia
se interessar! Tio Álvaro!.
No dia seguinte, esperei um momento em que as duas tinham
saído de casa. (Tia Alba já se fora e estava feliz no convento. Eu e
mamãe tínhamos ido visitá-la duas vezes, e ela parecia um passarinho
cantando, de tão alegre. Era outra.)
Quando tive certeza de que estava sozinha com tio Álvaro, fui
falar com ele. Com a perna e o tronco engessados, ele parecia uma
espécie de tartaruga dentro do casco. Dormia. Eu me aproximei
devagarzinho e assoprei o nariz dele. Ele fungou e abriu os olhos.
Sorriu.
— E aí, bonitona?
— Tio Álvaro, eu queria pedir uma coisa pra você.
— Diga.
— Casa com mamãe.
Ele ficou branco que nem papel. Abriu a boca duas vezes, de tão
surpreso.
— De onde você tirou essa idéia?
— Da minha própria cabeça. Eu olho pra você na cama e olho
pra mamãe. Vocês dariam um casal superlegal.
Ele me olhou, pensativo. Depois falou com voz bem baixa:
— Quer dizer que sua mãe não fez nenhum comentário?
— Que comentário?
— Ainda bem.
Ficou quieto um tempão. Finalmente, decidiu:
— Uma menina esperta como você merece saber a verdade. Eu
não posso casar com sua mãe.
— Por que não pode? Pode sim!
— Porque ela não quer, Clara. Tio Álvaro desabafou:
— Depois que meu irmão, seu pai, morreu, eu fiz tudo para
ajudar sua mãe. Você era muito pequena. Vinha sempre pra cidade,
trazia frutas, legumes. Chegamos a convidá-la para morar no sítio, mas
ela nunca aceitou. Sempre foi muito independente. Quanto mais eu me
aproximava dela, mais eu a admirava. Além de linda, sua mãe é uma
mulher de muita personalidade.
— Então, tio, casa com ela!
— Eu passei a gostar de sua mãe como se ela fosse uma das
heroínas de novelas. E um dia me declarei. Faz anos. Ela foi muito
simpática e explicou que não pensava em se casar de novo.
— Mas e se agora ela mudar de opinião?
— Clara, eu e sua mãe nos tornamos grandes amigos.
Confidentes. Como se fôssemos irmãos. Hoje, eu já não estou
apaixonado por ela. Amo outra pessoa.
— Você, titio? Mas nunca vi você namorando ninguém!
— Eu conheci a Pietra quando estava viajando com meu
conjunto, faz alguns meses. Vá até a cômoda, abra a primeira gaveta e
pegue minha carteira.
Obedeci. Abri a carteira e peguei uma foto que estava onde ele
indicou. Era a foto de uma mulher linda, tão linda que parecia um
sonho.
Estava de maio azul, numa praia cheia de pedras. O sol batia em
seus cabelos, provocando lindos reflexos dourados. Seu olhar era vago,
calmo, sossegado, como se estivesse vendo a gente.
— Pietra é modelo e trabalha na Itália. Embora seja de família
brasileira, conseguiu o passaporte italiano por causa de seus avós
sicilianos.
— Ela é linda, tio Álvaro. Foi por causa dela que você desistiu de
mamãe?
— Não, querida, não. Eu e sua mãe havíamos chegado à
conclusão de que nunca haveria um romance entre nós, faz tempo. Foi
por isso que estranhei sua idéia. Quando você falou, pensei que sua
mãe pudesse ter contado alguma história do passado. Somos muito
amigos, só isso. Fui apaixonado por sua mãe, confesso. Mas nada
aconteceu. Por sorte, encontrei a Pietra. Vamos nos casar o ano que
vem. E por isso que estava vindo para a cidade quando o acidente
aconteceu. Vim renovar meu passaporte. Vou para a Itália. Meu coração
bateu forte.
— Não, tio Álvaro, você não pode ir embora daqui! Eu gosto tanto
de você!
— Eu também gosto de você, Clara. Mas preciso me encontrar
com a Pietra. Ela tem amigos lá em Milão, eles são donos de um bar e
restaurante de comida brasileira. Fui convidado a ir para lá, tocar
violão, cantar... vai dar muito certo.
— Mas eu nunca mais vou ver você?
— Eu prometo que venho visitar o Brasil.
Quase comecei a chorar.
De repente, era como se ele tivesse morrido no acidente, porque
ia partir para longe, e nunca mais a gente ia se ver como agora. Ia partir
para encontrar aquela moça linda, tão linda como eu jamais poderia
ser. Pietra, com seus olhos de modelo de revista! Enquanto eu, aqui, de
óculos, me sentia a menina mais feia do mundo!
Logo depois fui para o quarto de mamãe, deitei na cama de casal
e chorei com a cabeça no travesseiro.
Tio Álvaro ficou dois meses em casa, se recuperando e fazendo o
tratamento de fisioterapia. Depois daquela noite, nunca mais tocou no
assunto dele e de mamãe. Em compensação, não parava de falar de
Pietra. Fiquei sabendo de tudo sobre ela, até a cor do batom que
preferia. Pra ser franca, eu já não agüentava mais tanta Pietra, Pietra!
Tia Amarílis começou a sair com o doutor Amarildo depois que mamãe
os apresentou. Logo começou a engordar, porque eles jantavam fora
toda noite. Vivia alargando as costuras dos vestidos.
Quando estava em condições de viajar, tio Álvaro foi para o sítio,
passou mais uma semana com os pais e partiu para a Itália. Fomos
levá-lo ao aeroporto e, quando o avião levantou vôo, me deu um nó na
garganta.
Era mais alguém que ia embora.
Eu pensei:
— Não é justo! Papai morreu, mamãe não casou com mais
ninguém e agora tio Álvaro partiu! Será que vou viver sempre tão
sozinha?
Porque, naquela época, o Rosendo não contava, embora
continuasse com a mania de puxar papo, me trazer pedaços de bolo e
falar do México. Eu odiava e fazia o máximo para ficar longe dele, pois
não queria que continuasse essa fofoca do namoro entre nós. Não
adiantava, porque ele vivia atrás de mim, um inferno!
Foi nessa época que estourou a fofoca.
Acontece que um dia eu fiquei tão triste, tão triste com a partida
do tio Álvaro, que finalmente tomei coragem. Abri a gaveta onde estava
o cartão, peguei o telefone e disquei. Atendeu uma voz de mulher. Era a
secretária.
— Quero falar com o Braz.
— Quem deseja?
— Diz que é Clara, filha da Nina.
Logo ouvi a voz, tão bonita quanto eu me lembrava!
— Clara! E o Braz! Tremi de emoção!
— Achei você muito legal e resolvi telefonar — eu disse.
Houve um silêncio do outro lado da linha. Não é que eu seja
muito atirada com os rapazes, mas achei que, depois de tanto tempo, eu
devia dar alguma dica.
— Verdade, Clara? — ele perguntou.
— E... — eu disse, para ajudar a conversa.
— Sabe, Clara, penso muito em você... e na sua mãe.
Boba que eu sou! Imaginei que ele também estava me dando
uma dica. Respondi:
— Sabe que tenho o seu cartão guardado até hoje?
— Sua mãe guardou o meu cartão? Então por que nunca me
ligou?
Contei do acidente do meu tio, da minha tia morando com a
gente, da outra que foi para o convento. Falei da escola, dos óculos. Bati
o maior papo. Contei também que vovó se lembrou dele, e que tinha dito
que mamãe devia encontrá-lo. Ele riu:
— Sua avó disse isso? Ela mudou bastante, porque, no passado,
nem podia ouvir meu nome!
Depois ele disse que precisava desligar, mas perguntou a que
horas mamãe estaria em casa. Eu sabia que naquela noite ela
trabalharia até mais tarde. Braz ficou chateado. Contou que ia viajar
para Minas, e que só voltaria na semana seguinte. Eu disse que adorava
doce de leite mineiro, e ele prometeu me trazer um vidro. Disse que,
quando voltasse, procuraria pela gente. Aí, eu tomei coragem e disse:
— Sabe, Braz, eu às vezes me sinto muito sozinha! Todo mundo
de quem eu gosto foi embora. Meu pai, meu tio...
Novamente o silêncio. Depois a voz dele voltou, emocionada:
— Eu não vou embora, Clara. Sou seu amigo, pode ter certeza.
Na semana seguinte, surpresa!
Lá estava ele, na saída da escola. Eu nem lembrava de ter dito o
endereço da escola, o meu horário de saída. Mas lá estava Braz, me
esperando. Eu o reconheci de longe, pelas costeletas, e pelo caminhão
parado mais adiante. Corri até ele e gritei:
— Braz!
— Clara!
Ele me abraçou e beijou com sua pele áspera. Entregou um
pacotinho:
— Doce de leite pra você e sua mãe!
Agradeci e disse pra ele telefonar. Ficou sem jeito.
— Naquele dia, nem tive coragem de dizer. Mas... pede pra sua
mãe me ligar, se ela tiver vontade. Se gostar do doce.
Não entendi muito bem o que ele queria dizer com isso. Nem tive
tempo. Pois, mal partiu, vi os olhos de Cláudia, apertadinhos, olhando
na minha direção.
— Quer dizer que é verdade? — ela perguntou.
— O quê?
— Você tem mesmo um namorado!
— Tenho sim, e daí? Ele vai me esperar crescer pra casar
comigo!
Cláudia tapou a boca, chocada. Vi Rosendo olhando de longe,
com um ar muito esquisito. Não dei a mínima para nenhum dos dois.
Entrei na perua que levava minha turma para casa.
Dois dias depois, estourou o maior escândalo.
5 -- AA ffuuggaa
Mamãe voltou para casa arrasada. Ao seu lado, tia Amarílis,
preocupadíssima.
— Clara! Precisamos falar com você.
— Diga, mamãe.
Eu nunca podia imaginar tanta confusão! Resumindo: a
orientadora do colégio chamou mamãe. Constava que eu estava
namorando um adulto. Um homem maduro, que vinha me buscar na
porta do colégio.
Segundo a orientadora, tudo começara com uma fofoca, mas ela
não dera importância. Há alguns dias, porém, eu fora vista na porta da
escola com o tal senhor.
— Foi fofoca da Cláudia! — gritei.
— Não, não é uma fofoca — disse mamãe. — Você ainda é uma
criança, Clara. Quem pode ser esse homem?
— Ele é só uns vinte anos mais velho do que eu! Outro dia vi
numa revista uma atriz de vinte que casou com um homem de
quarenta! Por que eu não posso?
Mamãe suspirou e tentou explicar:
— Clara, é óbvio que aos vinte anos você terá mais condições de
decidir por si própria o que é melhor para você. Sabe, eu acho que
muitas vezes, nessa fase da vida em que você está entrando, a pessoa
tem vontade de queimar etapas. Você já quer se considerar uma adulta,
já quer ter liberdade total, já quer namorar alguém mais velho. Tudo
isso é muito legal. Você merece a liberdade, merece crescer, já pode
gostar de alguém. Mas o bom dessa fase da vida não é correr em direção
à vida adulta e sim aproveitar cada experiência. E agora que você vai
descobrir caminhos para toda a vida. Será muito mais legal que,
quando você namore, seja com alguém da sua idade, que descubra a
vida junto com você. Alguém que divida as experiências. Não com
alguém mais velho, que, ao olhar para você, verá apenas uma criança.
Quais podem ser as intenções desse homem, Clara?
— Ele gosta de mim! Não acha que eu seja uma criança!
— Então é sério, Clara! Você percebe o risco que está correndo!?
— Ele me trouxe doce de leite! Tia Amarílis fez um ar
escandalizado. Replicou, furiosa:
— Se ele não achasse que você é uma criança, ia trazer doce de
leite?!
Mamãe correu à geladeira: lá estava o pacotinho.
— Pensei que você tinha comprado o doce, Amarílis!
As duas me olharam preocupadíssimas. Fiz o maior charme
possível.
— Pensam que só porque uso óculos ninguém olha pra mim? Ele
vai se casar comigo!
— Isso é o que você pensa! Decretaram guerra! Queriam que eu
dissesse quem era, mas nunca! Fiz o maior segredo!
Daquele dia em diante, uma delas ia sempre me esperar na
porta da escola. Chegava em casa e ficava presa. Só podia sair em
companhia de uma das duas! Isso só foi possível porque, como
enfermeira, tia Amarílis pegava o turno da noite. Para completar, vovó e
vovô vieram para a cidade ajudar na vigilância. Eu me sentia uma
prisioneira.
Na escola, todo mundo só falava de mim. As meninas queriam
saber:
— Como é namorar um adulto! ? Eu fazia ar de mistério.
— Você já beijou? Como é beijar alguém de bigode?
De novo, eu fazia ar de mistério.
Os meninos me olhavam curiosos. Só uma coisa estranhei:
Rosendo parou de me trazer pedaços de bolo. E de ficar a meu lado,
puxando conversa. Olhava de longe, como se estivesse magoado.
Fiquei chateada. Já estava acostumada a conversar com
Rosendo. Nem acreditava, mas sentia falta dos papos. Um dia me
aproximei, ele disfarçou, foi para o canto, emburrado. Não entendi por
quê.
A história pegou fogo por causa do bailinho.
Ia haver um bailinho na escola.
Todo mundo estava se preparando para a festa. A turma só
falava nisso: ia ter um conjunto ao vivo! Eu nunca tinha ido em festa
com conjunto! As meninas estavam fazendo vestidos novos, e eu
passava horas diante do espelho pondo o cabelo pra cima, pra baixo,
pro lado, pra saber como usar. Dois dias antes, porém, mamãe
anunciou:
— Você não vai!
— Por quê?
— Ninguém pode ir com você. Tenho um coquetel da companhia
de aviação e devo estar presente. Sua tia tem turno no hospital e seus
avós não se sentem bem em festinhas.
— Mas eu posso ir com minhas amigas!
— Nem pensar!
Eu sabia que era por causa do meu namorado secreto! Ah, que
raiva! Chorei, bati o pé, fiz barulho. Nada. Mamãe foi irredutível.
No dia da festinha, eu nem conseguia falar com minhas amigas.
Elas cochichavam:
— Soube que a Clara foi proibida de ir porque a mãe tem medo
de que ela se encontre com o namorado mais velho.
Briguei com a Cláudia:
— Você é uma fofoqueira!
— E você, uma maluca! Pela primeira vez, depois de
semanas, o Rosendo veio falar comigo:
— Es pena que tu não vengas ao baile.
— O que você tem com isso? — respondi, furiosa.
— Tonta!
Ele foi embora, furioso.
De noite, sozinha com vovó e vovô, eu não consegui nem assistir
televisão. Só pensava no baile, nas pessoas dançando... ah, como eu
gostaria de estar nos braços de Braz, dançando... mas será que ele
dançaria comigo, no meio de um bailinho de escola?
Comecei a pensar no Braz. Ele nunca tinha ligado. Também, eu
não dera o recado dele a mamãe. Fiquei sem jeito, depois do barulho.
Mas será que ele gostava mesmo de mim?
Nos filmes e nas novelas, quando alguém gosta de alguém,
telefona sem parar.
Ou talvez ele tivesse medo, porque sou muito nova.
Eu nunca teria chance de casar com ele se continuasse presa
naquele apartamento. Resolvi matar dois coelhos com uma cajadada só.
Podia me declarar ao Braz. E fugir pra sempre! Quem sabe, quando
soubesse de tudo, ele resolvesse casar comigo imediatamente. Quem
sabe eu pudesse ficar morando em Minas Gerais, na fazenda que fazia
doce de leite, cheia de gente que gostasse de mim. Quem sabe, morando
na fazenda, eu até deixasse de usar óculos.
Resolvi fugir imediatamente.
Corri até a escrivaninha, peguei o cartão do Braz e marquei o
endereço num papel. Em seguida, fui ao quarto e botei várias roupas na
minha mochila de escola. Também peguei um dinheirinho que tinha
guardado na gaveta. Vovó e vovô estavam vendo televisão no quarto.
Joguei a mochila pela janela. Tomara que ninguém roubasse enquanto
eu executava meu plano! Fui até o quarto e perguntei a vovó:
— Posso fazer uma vitamina?
— Claro! — ela disse, com os olhos pregados na novela.
Fui até a cozinha, botei água no liquidificador e liguei.
O barulho ajudou a esconder o ruído da fechadura abrindo.
Tranquei a porta por fora. (Mais tarde, quando já estivesse casada,
explicaria a meus avós que não foi safadeza, mas que era necessário
para que não me perseguissem.)
Saí correndo pelas escadas, abri a porta de fora (nosso prédio
não tem porteiro), peguei a mochila do chão e corri até o ponto de
ônibus. Entrei no primeiro que passava.
Depois de algumas quadras, desci e tomei o ônibus certo.
Eu sabia que não podia chegar para o Braz e me declarar,
simplesmente. Primeiro, eu devia estar longe da cidade. Resolvi me
esconder no caminhão. Mais tarde, no meio da viagem, eu falaria com
ele.
Tive sorte!
Em frente à transportadora, havia um caminhão parado, já
carregado. Era o mesmo em que vira Braz nas duas vezes! Vi que duas
pessoas conversavam no escritório em frente. Um homem mais velho e
ele próprio, Braz! Não tive dúvidas. Fui pelo outro lado e entrei na
cabine. Era imensa, como eu já sabia. E tinha, na parte de cima, uma
cama. Os grandes caminhões são assim: possuem uma cama no alto da
cabine para o motorista descansar. Na cama havia travesseiros e um
cobertor. Eu me escondi atrás deles. Como sou bem pequena, não foi
difícil. Fiquei esperando.
Esperando, adormeci.
Acordei com o sol batendo na cabine e os solavancos do
caminhão. Já estávamos na estrada. Vi os ombros largos do motorista,
vestido com um casaco de couro. Imaginei como ele ficaria surpreso ao
me ver descer e sentar ao seu lado. Aí, eu diria:
— Quero me casar com você!
De repente, gelei! Olhei o espelhinho.
Não era o Braz que estava no volante!
Era um desconhecido! Só então me lembrei: Braz contara à
mamãe que nem sempre fazia as viagens. O que eu podia fazer? Resolvi
que, quando ele parasse no primeiro posto, eu desceria, escondida. Que
vergonha!
Só que não deu pra esperar. Fiquei com uma enorme vontade de
fazer xixi.
Cada vez que o caminhão dava um solavanco, eu quase me
molhava toda. Contava os minutos, torcendo para que ele parasse. Uma
agonia!
Mas como podia me apresentar a ele, dizer que estava fugindo
em seu caminhão por engano e que queria fazer xixi?
Minha cabeça estava fervendo com tantas indas e vindas,
quando ouvi uma sirene de polícia, e me arrepiei toda.
De início, o motorista pareceu que nem ligava. Logo o caminhão
recebeu ordem de parar. Ele estacionou no acostamento, sem entender.
Foi cercado pela polícia, que desceu dos carros, armada.
De outro carro, particular, desceram Braz e... mamãe!
O motorista saiu para fora, apavorado.
Vi quando os policiais discutiam com ele, que abanava a cabeça,
negando. Eu me apertei ainda mais atrás dos travesseiros. Ah, se não
fosse aquela horrível vontade de fazer xixi!
Dois policiais entraram na cabine. Olharam. Pensei que não iam
me encontrar, porque eu estava bem encolhidinha, no fundo. De fora, o
motorista gritou:
— Podem verificar à vontade. Não tem ninguém.
Um dos policiais acendeu uma lanterna e aproximou-a da cama
onde eu estava. Parou exatamente no meu rosto. As lentes dos óculos
refletiram a luz.
— Aqui está!
O outro me puxou pelo braço. Não sei o que deu em mim, mas
comecei a gritar:
— Socorro, me soltem!
Eles me puxaram, por mais que eu me debatesse. Fui tirada do
caminhão. Quando me viu, Braz ficou escandalizado. Atirou-se em cima
do motorista, tentando bater nele.
— Tarado!
Foi seguro por mamãe e pelos policiais. Braz gritava:
— Como você pôde raptar uma garotinha?
O motorista olhava para mim, espantado:
— Mas eu nem sei quem ela é!
— Mentiroso!
Um dos guardas algemou o motorista. Eu queria dizer alguma
coisa, mas só conseguia pensar em fazer xixi. Mamãe me abraçou:
— Clara, você está bem? Ah, filha, fiquei tão preocupada!
De repente, minha cabeça deu uma volta!
Vi que estava fazendo tudo errado!
Pois eu ficava tão triste porque as pessoas de quem eu gostava
iam embora, como papai e tio Álvaro.
Mas eu estava abandonando a pessoa que mais gostava de mim:
mamãe!
E o Braz, será que ele gostava mesmo de mim?
Resolvi abrir a boca! Eu não podia deixar o motorista ser preso,
algemado como um bicho. Gritei:
— Ele não tem nada a ver com isso!
— Como não!? — disse mamãe. — Ontem, quando você fugiu,
corremos para o bailinho da escola. Pensei que você estivesse lá. Aí, sua
amiga Cláudia contou que um homem com um caminhão veio vê-la na
porta da escola. Eu já tinha encontrado o cartão da transportadora em
cima da escrivaninha quando examinei a casa. Foi fácil juntar as pistas.
Avisei a polícia. Não, Clara, não tente nos enganar. E esse homem que
você pensa que namora! Mas agora tudo acabou. Ele vai para a cadeia
e, se depender de mim, nunca mais sai de lá.
— Eu nem conheço essa menina! — gritou o motorista.
— Quieto! — rugiu o policial.
— Mas não é ele que é meu namorado! — gritei.
— Quem é, então? — quis saber o policial.
— Ele! — eu gritei, apontando para o Braz.
— Eu? — perguntou Braz.
— Agora eu quero fazer xixi! — gritei.
Mamãe se afastou de Braz, como se fosse um sapo.
— Mãe, se eu não fizer xixi agora mesmo, vou fazer na roupa!
— Leve essa menina para fazer xixi — disse o policial. — Parece
que o caso é muito mais complicado do que parecia. O senhor vai ter
que prestar declarações — avisou a Braz.
— Eu? Eu? Eu? — dizia Braz. Fui com mamãe para trás de uma
árvore. Humilhante, fazer xixi na beira da estrada, com policiais por
perto, e aquela confusão toda. Enquanto eu me arrumava, logo depois
— ah, que alívio —, mamãe perguntou:
— Que história é essa de você namorar o Braz?
— Estou apaixonada por ele! Mas ele não sabe.
Expliquei toda a história a mamãe: como eu telefonei a primeira
vez, como ele foi me levar doce de leite na escola, e como fugi, para me
declarar durante a viagem. Mamãe abanou a cabeça:
— Quer dizer que esse era seu namorado misterioso?
Depois me pegou pela mão e quase me arrastou em direção aos
policiais. Foi rápida:
— Tirem as algemas desse homem — disse, indicando o
motorista. — O Braz também não precisa prestar declarações. Já sei
tudo o que aconteceu.
— Mas é um caso muito grave
— disse o policial.
— Minha filha é uma doida. Foi isso que aconteceu — explicou
mamãe.
— Eu não sou doida! — gritei.
— Quieta, Clara! — ela disse, áspera como eu nunca ouvira
antes.
— Eu mesmo vou à delegacia prestar declarações, se for
necessário. Tudo não passou de fantasia de criança.
— Não sou criança! Todos os policiais caíram na gargalhada.
Soltaram o motorista, que me olhou furioso:
— Se fosse minha filha, ia ver só!
Até me arrepiei. Ainda bem que não era filha dele, porque era
capaz de ganhar umas cintadas!
Os policiais partiram. O motorista também. Eu, Braz e mamãe
ficamos nos olhando no acostamento. Mamãe me encarava com
surpresa e mágoa.
— O que eu faço com você, Clara?
Então, Braz se aproximou dela, abrindo os braços largos:
— É difícil ser sozinha, Nina. Ela desabou no peito dele.
Ficaram abraçados um tempão. Quando se soltaram, notei que
alguma coisa havia mudado entre eles. Braz veio até mim. Eu estava
sentada, emburrada em um canto. Afinal, havia me declarado e ele não
dera a mínima importância.
— Clara, eu achei muito legal você gostar de mim.
— Verdade? — ainda tive esperança.
— É, legal, mas vamos falar francamente. O negócio é o
seguinte: eu gosto muito de você, mas como amiga. Você é a melhor
amiga do mundo. E vou torcer pra que você encontre um namorado
bem legal, mais tarde. E tem mais uma coisa: em vez de ser seu
namorado, eu quero ser superamigo seu. Sabe por quê?
Eu vou casar com sua mãe.
— O quê? — gritou mamãe, surpresa.
— Vou casar com você, Nina. Agora, depois desse abraço, tenho
certeza de que você gosta de mim. Ninguém consegue ser sozinho neste
mundo, Nina. Eu sei que você gostava do Adalberto. Mas ele já foi. Todo
mundo merece uma segunda chance. Você também. E eu, eu também
mereço.
Mamãe ficou muda. Eu também.
Tudo estava mudando tanto! De uma hora pra outra, meu
namorado ia virar meu pai! E, por incrível que pareça, eu nem me
sentia decepcionada. Pelo contrário! Estava torcendo para que mamãe
dissesse que aceitava. Percebi que meus sentimentos eram muito
complicados.
Braz se aproximou de mamãe e disse:
— Eu te amo, Nina!
Aí, os dois se abraçaram de novo e deram o
maior beijo!
Pensei, quando os policiais me acharam,
que ia voltar para o apartamento como uma
derrotada.
Voltei vitoriosa!
Tentei encontrar um noivo pra mim e acabei achando um
namorado para mamãe. Ou, pelo menos, facilitando as coisas. Porque
do jeito que mamãe era, se não fosse aquela situação dramática, era
capaz de jamais se decidir. Apesar de que, hoje em dia, quando penso
em tudo, percebo que na época não reparei em muita coisa. Talvez
mamãe já estivesse interessada em Braz há algum tempo. Talvez só
estivesse esperando uma chance. Senão, por que teria caído nos braços
dele e decidido se casar tão depressa? Pois quando mamãe, eu e Braz
chegamos em casa, tudo começou a acontecer com rapidez.
Pedimos uma pizza, e já na mesa faziam planos.
O casamento foi marcado para dali a um mês.
Depois de esperar tanto tempo, ele estava com pressa!
1
1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
6 -- OO ggoossttoo ddoo bbeeiijjoo
Foi uma correria.
Braz tinha um apartamento vazio, que fora dos seus pais. Era
bem grande, embora bastante velho. Contratou pintores para dar um
jeito. Quando vi o apartamento, nem acreditei. Percebi então que,
quando Braz dissera que a família perdeu tudo, fora modo de dizer.
Sobraram vários apartamentos e casas na cidade. O apartamento, por
exemplo, era mantido vazio porque seus pais costumavam ficar nele
quando vinham do interior. A partir de agora, usariam o antigo
apartamento de Braz, que era bem menor.
Mamãe comprou alguns móveis novos. Tia Amarílis aproveitou a
oportunidade para conversar com Amarildo. Com a mudança de
mamãe, ela também precisaria de um lugar para ficar. Não seria melhor
se...
Foi. Ele se decidiu, e titia também marcou a data do casamento.
Mas não casaram no mesmo dia, não.
Titia fez questão de um vestido de noiva enorme, de festa com
bolo e noivinhos em cima. Por isso resolveu fazer a festa no sítio.
Mamãe quis uma cerimônia mais discreta. Somente um bolo
com champanhe e refrigerante, com poucos convidados. Um vestido
simples, rosa-claro. Mas mamãe precisava de vestido complicado? Era
linda em qualquer roupa!
Uma semana antes do casamento, Braz deu a ela um anel de
brilhantes que tinha sido de sua mãe. Eu só vira anéis assim em
revistas. Cada vez que via os dois juntos, eu ficava orgulhosa. Afinal, de
certa maneira eu era responsável por tudo aquilo!
Quando foi organizar a festa, mamãe perguntou se eu queria
convidar alguém da minha escola. De início, eu disse que não. Nem
podia mais suportar a fofoqueira da Cláudia, que havia feito a minha
caveira na escola. Depois eu pensei:
— Vou convidar o Rosendo. É que, depois da minha fuga, todo
mundo vivia fazendo a maior piada.
— Ela quis fugir com o namorado da mãe! — diziam as amigas
maldosas.
Só ele não me encheu a paciência. Justo o Rosendo, que antes
só me chamava de quatro-olhos! Um dia até me perguntou:
— Entonces, não era tu novio? Novio quer dizer namorado, não
noivo, como fiquei sabendo depois. Contei tudo o que aconteceu. Falei
que estava feliz por ter um padrasto que gostava de mim.
— Tu sentes mucha falta de tu pai, non sentes?
Conversamos bastante, aquele dia. No outro, ele me trouxe de
novo um pedaço de bolo de milho, que eu gostava tanto.
Assim, mamãe convidou dona Conchita, seu Juan e o Rosendo
para a festa. Sorriu:
— Eles vão gostar. Não devem ter muitos amigos no Brasil,
ainda.
A grande surpresa, porém, foi a chegada de tio Álvaro.
Mamãe fez questão que ele viesse ser padrinho! Tio Álvaro
respondeu que sim e prometeu trazer a madrinha: Pietra.
Sim, a famosa Pietra da foto na praia, linda, com os cabelos
brilhando ao sol.
Pietra, que era modelo na Itália e aparecia nas revistas mais
famosas do mundo.
Senti meu coração ficar pequenininho!
O que seria de mim, diante de uma mãe tão linda e de uma tia
mais linda ainda?
— Vão pensar que sou um espantalho de óculos!
Mamãe me convidou para ser dama de honra, eu nem queria!
— Vou fazer feio na frente das duas!
Mas, é claro, terminei aceitando.
Tio Álvaro e Pietra chegaram um dia antes do casamento.
Amarílis e Amarildo foram buscá-los no aeroporto. Fiquei no
apartamento, nervosa. Peguei os óculos, pus na gaveta. Quem sabe,
sem eles, Pietra me acharia mais bonita?
Só que enxergava tudo com borrões. Botei os óculos de volta.
Seria pior se eu tropeçasse na frente dela.
Ouvi quando subiram as escadas, todos falando em voz alta.
Apesar de brasileira, notei que a voz de Pietra tinha algum sotaque, pois
vivia há muito tempo na Itália. Quando a porta se abriu, não olhei para
mais ninguém: atirei-me nos braços de tio Álvaro. Ah, que saudade! Ele
me deu um abraço bem forte. Um abraço de amigo. E disse:
— Quero que você conheça a Pietra.
De pé, no chão, eu olhei para aquela mulher alta. Magra e alta
como um bambu. E lá, ancorado no seu rosto, havia... um par de
óculos! Um par de óculos sobre um imenso nariz!
Pietra usava óculos e tinha nariz grande como o meu!
Ela me abraçou, feliz:
— Álvaro fala muito de você. Fiquei quieta e sorri como uma boa
menina. Mais tarde, fui correndo observar a foto de Pietra na revista
que eu tinha guardada. Lá estava ela, linda, e o nariz, que de perto
parecia tão grande, ficava charmoso na fotografia.
Esperei quando ela estava sozinha na sala com tio Álvaro e tia
Amarílis. Tomei coragem:
— Como você virou modelo com um nariz desse tamanho e,
ainda por cima, usando óculos?
Tio Álvaro caiu na gargalhada. Tia Amarílis rugiu:
— Deixa de ser mal-educada, Clara!
Pietra abanou a cabeça:
— Pode falar, eu sei exatamente por que você está me
perguntando isso. E porque você usa óculos e acha que tem nariz
grande.
— E isso mesmo.
— Pois bem, vou contar minha história.
Pietra disse que, na infância, era supercomplexada. Todo mundo
dizia que ela tinha um nariz maior do que uma abóbora. Quando
passou a usar óculos, vivia trancada em casa, porque todo mundo a
chamava de quatro-olhos, como eu. Quando ficou alta, então, foi pior.
Nenhum garoto tinha coragem de namorar com ela, porque todos
ficavam baixinhos a seu lado. Mas, à medida que foi ficando adulta,
descobriu uma coisa: tudo aquilo que parecia defeito era qualidade.
— Descobri que a beleza é muito relativa — disse Pietra. —
Algumas pessoas têm traços perfeitos e, no entanto, não são
consideradas bonitas porque falta alguma coisa. Outras, como eu, têm
nariz grande, usam óculos e todo mundo acha que são lindas.
— Qual é o segredo? — perguntei.
— O segredo está em você mesma. Se considerar os óculos um
defeito, eles ficarão horrorosos. Mas, se quiser, pode transformá-los
num charme. Isso vale para qualquer coisa que você tenha: nada é
realmente defeito, nada é realmente qualidade. Depende de você.
— O segredo é a beleza interior — disse tio Álvaro.
— Com o tempo, você vai descobrir sua forma de ser bonita —
garantiu Pietra.
Fiquei tão feliz que abracei Pietra!
De uma vez só, ela acabou com meu medo de ser feia! Meu medo
de nunca ser amada, de nunca ter alguém apaixonado por mim! Ela me
fez descobrir que cada pessoa é uma pessoa, cada pessoa tem seu tipo
de charme!
Por isso, no dia do casamento, eu me senti superbem como
dama de honra!
Eu me senti linda!
Porque mamãe era uma, Pietra era outra, e eu era outra
também!
Braz me abraçou e disse:
— Estou contente porque vou ter uma filha linda!
Fiquei nervosa um instante. Seria certo ele ser meu pai, se eu já
tinha um pai? Aí, eu achei que sim.
Pensei que meu pai estaria, feliz, onde estivesse, porque minha
vida estava legal. Ele nunca sairia do meu coração, como nunca
deixaria o coração de mamãe! Mas agora, dentro de nós, havia também
um lugar para Braz.
Respondi:
— Estou feliz também, Braz. Feliz porque você agora também é
meu pai!
Depois veio a festa, com muito pouca gente, como mamãe
queria. Houve um bolo grande, e eu logo peguei um pedaço. Quando
estava com o pratinho na mão, olhei em torno, feliz com todas aquelas
luzes, as mulheres perfumadas e os homens de terno. Aí, vi Rosendo
pela primeira vez naquela noite. (Eu estive o tempo todo tão nervosa
com essa história de ser dama de honra que nem tinha falado com
ninguém.) Ele estava num canto, enfiado num terno apertado, com uma
gravata colorida e um lencinho no bolso. Uma roupa muito exagerada
para aquela noite de calor. Mas notei que o pai dele, seu Juan, e dona
Conchita também estavam muito formais. Acho que os mexicanos são
assim, se vestem de maneira mais formal que os brasileiros. Rosendo
me olhou de longe e sorriu. Notei que estava sem jeito.
Peguei outro pratinho de bolo e levei até ele.
— Todo dia você me traz bolo na escola. Agora é minha vez.
— Gracias.
O guloso atacou o bolo e o devorou em duas garfadas. Aí, me
convidou:
— Bamos hasta el terraço? É que no salão onde estava sendo a
festa havia um terraço mais distante, separado, onde não tinha
ninguém.
— Pra quê?
— Quiero te decir uma coisa.
Achei engraçado o jeito dele.
Parecia nervoso.
Fomos andando, eu com o pratinho de bolo na mão. Quando
estávamos longe de todo mundo, ele disse:
— Tu estas muy hermosa, hoje. Entendi e fiquei vermelha de
felicidade! Eu estava me achando linda, mesmo, com o vestido rodado
de seda, e gostei de ouvir o elogio.
Em seguida, Rosendo pegou na minha mão e disse:
— Yo te quiero mucho. Fiquei um instante sem entender. Olhei
pra ele e sorri. Ele sorriu de volta.
Então, aconteceu.
Quando sorrimos, nossos rostos estavam tão perto que eu me
aproximei quase sem querer. Ele também.
Nossos lábios se tocaram de repente. Senti um gosto de glacê. E
de pele úmida, suave. Meu coração disparou.
Em seguida, ele saiu correndo, envergonhado. Fiquei que nem
boba, parada com o pratinho de bolo ainda na mão.
Voltei para a festa. Rosendo me olhou de longe. Como se tivesse
medo da minha reação. Será que pensou que eu ia ficar brava?
Meu coração ainda estava batendo mais rápido. Eu nunca tinha
sentido tanta emoção.
Só aí eu percebi.
Era ele, o tempo todo!
Era dele que eu gostava!
Por isso ficava tão brava quando me provocava!
Adorava quando me trazia bolo.
E sentia falta quando não vinha conversar comigo!
Era dele que eu gostava, era dele!
Resolvi tomar uma atitude. Peguei uma lembrancinha do
casamento e caminhei em sua direção.
— Pra você.
— Gracias, Clara. Quando ele pegou, apertou minha mão de leve.
Apertei de volta. Senti um olhar em minha direção. Virei a cabeça.
Mamãe, abraçada com Braz, me olhava enquanto dançava.
Quando viu que eu a olhava também, piscou em minha direção. Eu
sorri e olhei novamente para Rosendo.
Vi que ele estava feliz. Apertei sua mão de novo e convidei:
— Vem dançar comigo.
Fomos para o meio do salão. Foi uma delícia, e a gente dançou a
festa toda.
Sofri tanto com os óculos, me chateei por causa de mamãe, mas
ainda bem que tudo passou. Desde aquela noite, descobri que a vida
pode ser uma delícia!
É só a gente querer.
.•.•´‾`•.•. FIM .•.•´‾`•.•.
Walcyr Carrasco
Oi! Sou Walcyr Carrasco, e antes que você
pergunte se meu nome é esse mesmo, eu respondo:
é sim! Passei a minha vida toda ouvindo as pessoas
perguntarem se sou carrasco mesmo.
Meu Primeiro Beijo não é o meu primeiro
livro. Já escrevi muitos outros, e você talvez até
tenha lido algum deles. Comecei a escrever aos doze anos, mas só
publiquei Quando Meu Irmãozinho Nasceu, o primeiro, aos vinte e
tantos. Desde então, não parei mais. Escrevo para teatro, televisão e, é
claro, para você. Descobri que escrever é como fazer uma grande
viagem, conhecendo pessoas e lugares que vão surgindo dentro da
minha cabeça. Nasci em 1951 e faz tempo que sou considerado um
adulto, e sou chamado de senhor Walcyr. Mas, quando escrevo um livro
como Meu Primeiro Beijo, eu volto a viver as emoções de muito tempo
atrás, quando um beijo era um mistério. E quando o amor era algo que
eu estava começando a conhecer.
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Olavo T. Cavalcante
Desenhar personagens de gibis — e,
melhor, criar os personagens —, é algo que
cresce como uma bola de neve que vai em
direção ao pico da montanha. São coisas tão
inexplicáveis como o fato do computador ser um
novo amigo que, apesar de não trazer todas as respostas, te ajuda a
fazer belos "gols". E por aí que a gente caminha, cada livro uma história
com novas imagens que esperam ser tratadas como "personalidades"
diferentes.
E, depois de tudo prontinho, vem a incrível sensação de ver a
imagem impressa e saber que muitas pessoas lerão aquele livro.
Contra Capa
Meu primeiro beijo
Walcyr Carrasco
Amor faz cada coisa...
Ainda mais com uma garota como Clara, que tem uma porção de
problemas para resolver. A mãe de Clara, Nina, é tão bonita que dizem
que tem rosto de anjo. "E eu, que rosto tenho? De capeta?"... Para
complicar, Clara começou a usar óculos e um garoto na escola caiu na
gozação.
Era só o que faltava!
Tem mais...A mãe de Clara, moça ainda, é viúva. E a garota
sente muita vontade de ter um pai em casa. Quer dizer, vai fazer de
tudo para arranjar um marido para a mãe. Até fugir de casa e se meter
num rolo danado, enquanto sonha, com óculos e tudo, como vai ser seu
primeiro beijo.
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2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
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