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8/22/2019 Vicente Franz Cecim ENTREVISTAS REUNIDAS por Jesus Lazo Sombra
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TUDO O QUE VOC SEMPRE QUIS
SABER SOBRE ANDARA
E NO SABIA A QUEM PERGUNTAR
JESUS LAZO SOMBRA
ANTOLOGIA DE ENTREVISTASVIAGEM A ANDARA Oo LIVRO INVISVEL
VICENTE FRANZ CECIMFALA SOBRE
IA inveno de Andara
&seus autores preferidos
IIA fortuna crtica de Andara
&o Natural e o Sobrenatural
IIIAndara e a Amaznia
&O Manifesto Curau
&A Infncia
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ENTREVISTA
I
VICENTE FRANZ CECIMFALA SOBRE
A INVENO DE ANDARA
&
SEUS AUTORES PREFERIDOS
VICENTE FRANZ CECIM: HomemAve de Andara
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ser de espanto:
o que Andara?
O homem coisa que vive para dentro e para fora de Si Para fora, ele o Ente: o
Espanto domado pela Civilizao. Para dentro, ele o Ser: o Puro Espanto de Ser,intocvel. A Viagem a Andara caminha assim: desperta para essa vida em Ente ecombatendo a Civilizao como alienao de sermos, e se sonhando em miragens desermos que nos libertem para Sermos plenamente, o que j somos, mas estamos
encarcerados, vivendo como os Humilhados & Ofendidos de Dostoievski. E quer levarpara alm desse homem submetido - que se deixa submeter ou submetido fora e porpromessas polticas ilusrias das Foras Sociais Malignas, malinas como dizem asCrianas. Em Andara se d a Alquimia Verbal da transformao do Humano emUmanoh, lanando para trs da palavra esse H intil, vazio, aspirado para liberar o Um, o
Uno: a abertura para o Ser. Mas aqueles que impelidos pelas Astcias das Foras SociaisMalinas a viverem somente para fora a vida como Ente continuaro avanando na nicadireo que conhecem e lhes consentida no Ocidente, onde se l da esquerda para adireta: do calcanhar para a ponta dos dedos e reencontraro o H no fim da palavra.Que pena. Isso me entristece. Porque caminhar atravs da irRealidade, despertante, de
Andara me mostrou que a direo oposta nos torna levar ao nosso Centro Real. E essecentro se atinge indo na direo inversa: da ponta dos dedos para o calcanhar, em
demanda de um Real Total que nos transfigure. Pois o homem , essencialmente, coisaque caminha Por Dentro. Se quiserem: Da direita para a esquerda. Liberando o Um deTudo em si
Vicente Franz Cecim
O que Andara?
O que Andara? Posso responder como Flaubert respondeu: MadameBovary cest moi. Andara sou eu, me vivendo em sonhos de Escritura
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de mim mesmo.
Isso Andara em relao a voc. E o que Andara em relao
Literatura?Em relao Literatura, Andara no mais Literatura, Escritura e
desvio onto-introspectivo, em relao Literatura.
E o que isso? Apresentando Biografia de uma rvore de Fabrcio
Carpinejar, voc falou em a Literatura praticada como ontologia, a
Palavra praticada como vida. isso que tenta em Andara?
Sim. Andara? Andara Coisa que viaja por dentro e no sentido
inverso: quer retornar dos dedos dos ps ao calcanhar de Aquiles do
homem, ali onde ele mais sensvel Hiptese Onrica e Ldica e
Naturalmente Sagrada da vida. Andara quer a Origem, o Antes do
ponto em que tudo comeou a se perder do Todo, o ponto oculto de
ns, homens, que s se consente a ns em Relances, Vislumbres.
E esses vislumbres em Andara permitem ver o que?
O Onde e o Quando o natural e o sobrenatural ainda no haviam sido
deformados como oposies que se excluem mutuamente.
Esse ponto seria aquele que Breton mencionou no Manifesto
Surrealista,ponto em que cessam todas as contradies?
Mas, antes, Plotino j havia falado isso. Est l, na sua famosa
Circunferncia que Infinita porque seu centro est em toda parte. E
no s Plotino. uma ancestral percepo inicitica.
Andara ento se inscreve nessa Tradio?
Digamos que Andara se ope Matriz dos dualismos. De todos osdualismos. Ela Demanda do Um atravs do Vrios.
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Mas se vale de opostos. A ave, a serpente. Est nos seus livros de
Andara.
Sim. Mas se se vale do permanente embate entre as Luzes e as Trevas,
entre a Asa e a Serpente, desde o primeiro livro visvel escrito atravs
de mim em 1979, justamente chamado A asa e a serpente, at o mais
recente livro de Andara, o ainda indito O escuro da semente, que
est terminando de se escrever, agora em 2001, atravs de mim, s
para negar, no o Imanente pelo Transcendente, nem o contrrio, mas
as deformaes maniquestas que a Civilizao foi nos legando e
impondo a ns. Andara um ir sem ir, em demanda do Ponto Vlicoonde Visvel e Invisvel se engendram mutuamente. Aquele Ponto
Vlico do qual uma vez Victor Hugo disse que, numa embarcao, o
lugar de convergncia, ponto de interseco misterioso at para o
construtor da embarcao, onde se somam as foras dispersas em
todo o velame desfraldado.
Andara ento busca esse ponto de convergncia misterioso. Misteriosoat para voc, o construtor do barco de Andara?
Sim. Misterioso sobretudo para mim, que sou o que menos sei de
Andara. Mero Instrumento que ela usa para se fazer existir, como o
Castelo de Kubla Khan usou Kubla Khan em sonhos para tentar uma
primeira vez existir, mas ficou reduzido a runas, e depois tentou
existir uma segunda vez sob a forma de um poema do Castelo de
Kubla Khan usando Coleridge, mas o poema ficou inacabado, runaverbal, porque Coleridge interrompeu a transcrio para o papel do
poema do Castelo sonhado no em pedras, mas desta vez em
Palavras, para ir atender seu alfaiate que batia na porta e quando
voltou, havia esquecido todo o resto do poema. no que d suspender
por um instante a Viglia Onrica e permitir que penetre a Viglia
Prosaica dos cotidianos. Borges, que gostava de contar essa histria
exemplar, com humor metafsico perguntava: Qual ser a terceira
forma que isso que tenta existir assumir? Talvez essa terceira formaseja Andara. Pelo menos isso eu sei de Andara: que ela me usa para
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se existir.
Mas voc tambm no est buscando, atravs da inveno de Andara,
respostas para as eternas indagaes humanas? onde busca, onde
Andara busca em voc, onde voc busca em Andara?
Andara busca Ali, L, Aqui, seja onde for. E vai me levando com ela.
Andara quer atingir aquele lugar do qual Eckhart diz: Ali onde os
anjos supremos, a mosca e a alma so semelhantes. Est l,
transcrito em Osanimais da terra, o segundo livro visvel de Andara,
de 1980. uma busca antiga, como se v. Um vo bem antigo em
mim, atravs de mim.
Mas em Andara voc a certa altura diz: Embora a ave mais bela seja
aquela que se recusa a voar. Cad o vo, para onde voou?
Para isso, para se dar a essa Busca, Andara tinha que ser, e nisso se
tornou, Lugar de Nenhum Lugar, o que equivalesse a dizer Lugar de
Todos os Lugares.
Voc filho nativo da Amaznia, que voc costuma chamar de A
Floresta Sagrada. Um dia at enviou um e-mail dizendo que a
Amaznia era para voc o que a Floresta Negra foi para Heidegger,
lembra?
Andara Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Fsica da
Amaznia, que, por ser Lugar de Natureza, Lugar do Sagrado emepifania. Se no existisse a Amaznia e no se desse a circunstncia
fatal de eu ter nascido l, talvez no houvesse Andara. Certamente,
no: no haveria Andara. Ento, Andara comeou se nutrindo da
Amaznia. Da Realidade da Amaznia. Mas da Realidade Onrica da
Amaznia. A Amaznia um tecido infindvel de lendas, fbulas. L,
aqui, parece no haver fronteiras muito ntidas demarcando onde
termina a Realidade e comea o Sonho, e vice-versa. Em Andara
tambm assim. Mas no falo da Amaznia que aparece, mimetizada,na Literatura de Cultura, a erudita, a que se faz escrevendo palavras:
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falo da literatura Oral da regio. Dessas razes que foi nascendo a
no-rvore de Andara. rvore que se iniciou como rvore de Palavras,
mas aos poucos foi buscando se tornar o que hoje : uma no-rvore
de Palavras. rvore Invisvel. Esse tipo de rvore, ningum pode
incendiar e reduzir a cinzas com fazem com as rvores da Amaznia.
Voc diz, ento, que em relao sua Amaznia, Andara regio
verbal. Uma outra regio.
Na Inveno de Andara, se retoma o sentido do Verbo como Sopro
criador. Novamente o Demiurgo se faz presente. Mas o Demiurgo,
neste caso, s um homem: eu: coisa enquanto Imanente, efmera. Oque no impede que haja um m em mim, pulsando pelo
Transcendente. No posso soprar o barro e criar vida, mas posso
soprar as Palavras de dentro de mim e criar um Mundo Verbal. Nesse
sopro, no digo: Faa-se a Luz. Apenas oro por ela. Nesse mundo, de
Andara, no sopro: Desfaam-se as Trevas. Apenas rogo a elas, como
Caminho de segredos por algum motivo necessrio, que, se
desvelando, vo me deixando passar. Comigo vai todo o Cortejo de
Neblinas de Andara.
Em um dos seus livros visveis voc diz: Personagem, coisa que, alis,
no existe e aqui est a noo de fantasma no lugar de personagem.
Quem lhe acompanha ento nesse cortejo de Andara?
Pois em Andara j no h personagens, coisas, acontecimentos: h
seres Neblinas, coisas Neblinas, sombras de acontecimentos imersosem rarefeitas Neblinas.
Andara vem do verbo andar?
Vm? Ser? Eu mesmo s vezes me pergunto isso: Andara vem do
verbo Andar? No sei, s sei que tambm quanto a isso nada sei. So
sempre obscuras e encerradas em si as coisas de Andara. Vida amaocultar-se, dizia Herclito. Eu, como um outro Obscuro, um obscuro
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mais selvagem, tambm me surpreendo freqentemente me dizendo, a
cada novo livro visvel que estou escrevendo de Andara: Andara ama
ocultar-se. E rio comigo mesmo, mas s vezes me intimida, me d
medo. uma convivncia, essa minha com Andara, com muitas
Alegrias que eu no encontraria em nenhum outro lugar, mas tambmmuito cheia de espessuras e sbitas fendas de entrevistas revelaes.
Na obscuridade o ouro reluz, dizia Pound. E Maupassant, to belo e
hoje to injustamente esquecido, falava da presena insidiosa e
temvel de um Outro, oculto, por trs dele quando escrevia. Mas
jovem, eu muitas vezes tambm percebi esse Outro', lendo por trs
dos meus ombros o que eu escrevia. Se era noite, sozinho na
madrugada, eu parava de escrever e ia dormir abraado mulher
quem fosse na ocasio, assustado. Foram os primrdios de uma pr-Andara, pequeno contos que eu escrevia, ensaiando o Passo para
penetrar em Andara e nela me perder, me fundir para sempre, como
hoje estou.
Mas voc ainda no respondeu. Andara vem do verbo andar? Ou ela'
tambm lhe probe de dizer isso? um segredo entre vocs dois:
criador e criatura?
Pois . Mas quem o Criador, quem a Criatura? Essa uma outra
das raras coisas que eu sei de Andara: Ela o Criador, eu sou a
Criatura. Em nosso caso, toda a histria da Literatura se inverte. No
livro Silencioso como o Paraso, que tem duas entradas, duas capas,
duas frentes, dois incios e dois fins, mas nenhuma sada, eu
sussurrei isso para o leitor, quase pelas costas de Andara. Numa das
Entradas do livro, coloquei uma frase de ngelus Silesius: A criatura o seu gosto de brincar. E na outra Entrada outra frase de ngelus
Silesius: divindade agrada o jogo de criar. Fiz como Dante, que ps
aquele aviso terrvel na porta do Inferno: vs que entrais, deixai
toda a Esperana. Mas em Andara no h nada a temer: exceto o
Temor e o Tremor, citando o ttulo do livro de Kierkgaard, de nos
vermos a ns mesmos e Vida que, em seu Pudor, porque a Vida
uma coisa feminina e casta e cheia de Pudor, sob as Aparncias, sob
sua Epiderme dissimulada, se oculta de ns.
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Sim, sim. Mas voc ainda no disse se o nome Andara vem do verbo
andar. Voc est proibido, por Andara, tambm de comer do Fruto
Proibido?
Ah, me lembrou O Eterno Ado. Vocs conhecem? Uma novela
pstuma espantosa de um outro e oculto Jlio Verne, que ficou velada
pelo xito das 20 mil lguas submarinas, uma obra prima
extraordinria.A famlia, depois da morte dele, escondeu do mundo.
Mas O Eterno Ado uma outra coisa, mais secreta, como aquele O
Castelo dos Crpatos, que ele ainda publicou em vida. Atroz poesia,
como o Nosferatus de Murnau.
Bem, voc no pode responder. Ns entendemos isso. Andara o
Criador e voc apenas a Criatura, e o Criador lhe probe de responder.
Mudemos de assunto, ento. Tudo bem assim?
Pois . Se Andara vem de Andar, do verbo andar. Posso tentar
responder isso. Vejamos, por onde comear? Pelo menos no pensei
nisso quando emergiu em mim sua Geografia Verbal e foi tomando
corpo. Mas agora, de tanto me perguntarem, passei eu mesmo a mefazer a pergunta: Andara provm do verbo Andar? Possa ser, acho que
sim. Afinal, Viagem, no ?: a Viagem a Andara. Peregrinao,
Lugar de peregrinaes atravs dos livros visveis que escrevo de
Andara. Mas tambm sendo o no-livro, o Livro Invisvel que no
escrevo, que vai se formando como Livro Neblina a partir dos livros
escritos e que s pode ser lido pelo leitor em Imaginao. No comeo
de Viagem a Andara, o livro invisvel eu disse: Situao dos livros de
Andara: condenados visibilidade para que Andara, a viagem elamesma, possa existir como pura iluso. Ento, disso nasce uma
delicada Teia de Espelhos e quase insuportvel Tenso: Tenso que s
pudesse ser manifestada se Andara se desse em um outro
tempoespao, espaotempo que no mais o da Literatura instalada ora
no Presente, ora no Passado, ora no Futuro, mesmo quando ela, a
Literatura, mescla todos esses modos de tempo numa s Espessura de
Tempo. Espessuras comunicantes. Para Andara, nada disso resolvia
mais: a sua exigncia extrema, a exigncia que me fazia e continuafazendo, desde seu incio at hoje, e l se vo j 25 anos, era a de uma
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Abolio de qualquer Espessura. Sob essa presso, aonde ela me
conduziu aos meus limites, junto com os deslimites dela, os deslimites
em que queria se instaurar, explodi para fora e para dentro de mim
num Tempo Verbal que fosse o nico em que Andara pudesse se dar,
no se dando, e falar no se falando, entre o Invisvel e o Visvel: oTempo da Hiptese.
Hiptese no sentido de uma abertura total a todas as possibilidades?
Mesmo as que paream mais improvveis?
Sim, isso. Essa Abertura Total. Andar leva a ando, andei, andarei.
Andara nunca quis nada disso, desses andares apaziguadores das
palavras. Andara quer o Sonho Verbal dos sendo, fosse, estaria,haveria de, houvesse, enfim, do: Andara. Eu Andara, tu Andaras, ele
Andara. Por onde andaramos, andssemos todos quando andamos
em Andara, atravs de Andara, atravs dos livros visveis de Andara?
E andando atravs de ns, sempre, o Livro Invisvel de Andara?
Atravs de Andara, vivo repetindo, no se ir a parte alguma. Pois o
sentido da Viagem a Andara a Viagem em si mesma. A si mesma.
Atravs de Andara vamos, de alguma forma vamos. Sim. Ou no
vamos? Nunca fomos, nunca iremos? Tambm parece que Sim. Masvamos num ir sem ir, num ir ficando, e permanecemos num ficar
indo, a meta esteja atrs, ora adiante. Ora meta alguma, ora todas as
metas. Quais? Mas quais? A meta sem meta com meta, por isso,
Andara a Viagem ela mesma, em si. Em Andara, estejamos indo,
sempre, inapelavelmente, no h remdio, atravs de Luzes, atravs
de Sombras. Neblinas humanas atravs de Neblina de Mundo.
Andara? Para tentar diz-la de uma s vez e mais uma vez, claro que
inutilmente, pois ela nunca se entrega inteiramente, Andara , enfim:Demanda de Penumbra: Demanda do Graal dessa luz crepuscular e
ao mesmo tempo dessa luz de Aurora, dessa entreluz onde j nenhum
Sol exterior brilha mais ocultando a Luz ao mesmo tempo Natural e
Sobrenatural que todas coisas, tudo, emite de Si, e disso j falava
Paracelso, e um Saber dos Alquimistas, se dando a perceber, se
dando a conhecer em suas Identidades Veladas. Em Andara, estamos
cegos para ver. Ou, talvez, fiquemos cegos por tanto ver Clares na
Noite em que tudo Chama Oculta. Por isso eu disse no comeo danossa Entrevista: Andara j no mais o que um dia foi a Literatura,
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como uma certa Tradio, se espessando em ns, nos acostumou a
aceitar. Teve que ser um outro tecido mais fino de Escritura para
poder se fazer desvio ontolgico, introspectivo, em relao ao homem e
em relao vida inteira, a Manifesta e a Oculta. Em relao
Literatura, como prtica da palavra designativa, palavra nefasta quecada vez mais se instala entre ns, Andara s sabe falar a Voz das
Perguntas, muita perguntas. Mas de um certo jeito que quase abole a
necessidade de respostas. As respostas j estando contidas nas
perguntas, ao serem formuladas.
Andara ento, todos os livros de Andara, so uma imensa pergunta?
Sim. Andara toda ela Escritura de Pergunta, mas que se inventa
mundo, mundo verbal, no s aps ter recebido as respostas, e sim no
prprio ato de perguntar. De se perguntar suas respostas Vida. A
Surda que nos Ouve. L no comeo, com Flaubert, eu disse que
Andara sou eu. Ah, e o que sou eu?
Sim, ns tambm gostaramos de saber. Quem, ou o que, voc?
Eu? Eu sou um ser de espanto, um ser despanto, um serdespanto. J
disse isso antes. Serdespanto, o ttulo do penltimo livro visvel
de Andara editado em 2001 em Portugal, mas ainda indito no Brasil.
Eu sou aquele Serdespanto. Coisa area entre Cu e Terra, imerso em
Perplexidades, as nossas Perplexidades de Existirmos em Homem.
Haja, tambm, as Perplexidades das coisas em se existirem em
Montanhas, Peixe, Centopias, Estrelas, Galxias e das Sombras emse existirem Sombras. Pois eu sou Serdespanto. Como tudo . E sou
tambm Os animais da terra, todos os animais da terra. Assim pelo
menos me fui tambm desde esse segundo livro escrito de Andara,
publicado em 1981. Tambm sou a Asa e sou a Serpente. Em Andara,
sou, somos, sempre Queda e Ascenso, Ascenses e Quedas.
Qual a mais abrangente e a mais clara definio de Andara, se issolhe permitido dizer? Com todo o respeito pela sua misteriosa
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Andara? Podemos responder a isso e encerrar por aqui.
Queria terminar, depois de Flaubert, com Cervantes. Cervantes disse
melhor do que eu prprio, por mais que sempre tente, posso dizer, o
que Andara, o que fosse, o seja Andara. E o que , num sentidovertiginoso, de Queda para o Alto, essencialmente a Literatura. Mas
para isso ela, a Literatura, teve que vir se ultrapassando em Escritura.
E, no Livro Invisvel de Andara, eu prprio me descubro usado por
essas incessantes ultrapassagens, como porta-voz de um outro
Advento, este, um Advento Infinito, infinitamente alm, ou aqum, at
mesmo da Escritura, a Escritura sendo esse espaotempo verbal to
arduamente conquistado, aos poucos, e que se d em plena liberdade
de Inveno das Palavras e das Coisas, para ficar s nos escritoresque mantiveram e mantm contato com o ato de contar', como o
meu caso, em Andara, porque eu continuo contando histrias, embora
sejam as histrias j quase no-histrias de Andara e contadas da
maneira oscilante entre o se dizer e o no-se dizer de Andara, isto : o
texto se tornando o Espetculo, a atrao da Noite que a Penumbra
Andara encena, e a histria ou ainda quase-histria contada, se
invertendo os plos, a sua Conscincia.
Ento, apesar de toda a inovao que Andara traz para a Literatura,
voc ainda conta histrias?
Sim. No h nada de negativo em contar histrias, o homem ainda
est no estgio de ouvir histrias, de se contar histrias, a Amaznia e
as histrias fantsticas que a minha me Yara Cecim, tambm
escritora, me contava para fazer dormir, me ensinaram isso: a amar erespeitar isso, as histrias dos seres, dos homens, da vida. Eu ia
adormecendo e mergulhava nessas histrias da Infncia, me tornava
tambm personagem delas. Se apagava a fronteira entre a Viglia
Diurna e o Sonhar Noturno. Isso tambm nutriu, certamente nutriu
muito Andara, quando eu ainda nem suspeitava que ela me viesse um
dia, como acabou vindo. A prpria Vida talvez no seja mais do que
uma Histria que vivemos como personagens de um Autor
desconhecido. No necessariamente aquela histria cheia de Som eFria, contada por um idiota, e que no significa nada, como disse
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Shakespeare. Isso, no. No devemos fazer definies definitivas sobre
nada. Mas no sentido em que o mesmo Shakespeare disse que somos
feito do mesmo estofo de que so feitos os sonhos, uma percepo
muito medieval. Andara, alis, e isso eu posso dizer: uma coisa
muito medieval. Eu sou um homem medieval, de uma certa maneira.A Idade Mdia, sem que eu saiba porque, sempre me atraiu.
Voc ainda disse se Andara vem de andar, mas pode dizer quais os
seus autores preferidas?
Ento, esses autores, precursores e consolidadores de uma Literatura
de Escritura, antecipadores e consolidadores de uma compreensosempre mais e mais libertria da Literatura como Simulacro da Viva
Vivida, s vezes revelador, s vezes mais velador da vida ainda, esses
escritores que foram grandes encenadores de Alegorias, Fbulas,
Parbolas, mestres da Metfora viva mais viva que a Vida Vivida,
agentes iniciatrios na conscientizao do Sermos o Sonho de Sermos,
rompedores dos grilhes da Mimtica, superadores do homo faber no
fazer literrio pelo homo sapiens, superadores do homo sapiens no
saber literrio pelo homo ludens, povoadores do Onrico, transeuntesdo humano ao que j chamo de o Umanoh, gente, para ficarmos s
no denso Ocidente, ah, to pouco sabemos do sutil Oriente, e no
Ocidente mais recente, como: o Chrtien de Troyes do ciclo da
Demanda do Graal, o Baltazar Gracin do "El Criticn", John Bunyan,
Rabelais, Cervantes, Swift, o intolerado Sade, Lawrence Stern, Kleist,
tambm os narradores Novalis de "Sas" e Hoelderlin de "Hiperin",
Lewis Carroll, os alegricos Melville e Hawthorne, o Horace Walpolle
de "O Castelo de Otranto", o Lautramont no limite do narrativo de
"Maldoror" ,Dostoivski, claro, por suas espreitas Alma encerrada no
Corpo, e o a todos superior: o milagre Kafka, Bruno Schulz,
encantador, Gyula Krdy, to encantador quanto ele, Proust, Cline,
Musil, o difano taoista Hermann Hesse, Jean Giono, Witold
Gombrowicz, Julien Grac, Broch, sobretudo o de "A morte de Virglio",
Malcolm Lowry, o infinito rarefeito Beckett, e o zen Salinger,
estranhador de cotidianos, o humilde desconhecido maravilhoso Amos
Tutuola, que s aprendeu a escrever depois de adulto, autor do
perturbador O bebedor do vinho de palmeira, na Nigria, e aqui
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tambm queria lembrar um escritor considerado de segunda categoria
que eu, nem um pouco preocupado com os critrios de qualidade
literria, porque o que busco mais do que o mero talento, amo muito
e muito me nutriu para Andara, no exatamente por sua Escritura,
mas como abertura para todos os Imaginrios, Stephan Wull, que fezvulgares livros delirantes de fico cientfica como La Mort Vivant/
A Cadeia das 7: metfora juvenil em mim antecipadora da Metfora
Central de Andara: a convergncia, para o Um, do Vrios em que se
dispersou. Quem j leu Andara e por acaso Wull saber por que falo
isso. E j que chegamos a esse considerado gnero menor, mas na
verdade um dos mais libertrios territrios entreabertos pela
Literatura como sonda cega que se atira frente de si mesma, e o
futuro me confirmar, a fico cientfica: tambm cito o senhorHerbert Georges Wells, sobretudo o daquele perodo fecundo que
durou uns dez anos, na transio do sculo XIX para o XX, quando
escreveu "O homem invisvel", "A mquina infernal do tempo", "Uma
histria dos tempos futuros, miragens espantosas do que pudesse ser
a vida, em seus des-dobramentos, assim mesmo, de desdobrar suas
Dobras. E Rulfo, no Mxico, Guimares Rosa, no Brasil. Esses dois
ltimos, imensos Xams. Vocs notaram que eu no citei o mais
esperado: Joyce. No me explico porque, mas ento cito: Joyce. Enfim,todos esses que foram gradualmente pegando o Desvio da Literatura
para a Escritura, fosse atravs da progressiva ampliao do
Imaginrio em demanda de seus Deslimites, fosse atravs da
progressiva desmontagem das cristalizaes das palavras em frases
mortas na Mesa de Dissecao de Lautramont, fosse pela
contaminao que introduziram com a insero do hemisfrio oriental
na Literatura ocidental. Com esses contaminadores, ganhamos em
Ausncias, ou em Presenas apenas Pressentidas. E a est EdmondJabs lendo, no Livro, o Livro enquanto Vida, no ? Esses, ou quase
todos eles, so precursores, consolidadores, e j ultrapassadores da
prpria Escritura. Mas eu falava de Andara ter estranhamente me
eleito seu porta-voz de um Advento Infinito, infinitamente alm, ou
aqum, at mesmo da Escritura. Ser que posso contar?
Conta, conta.
Pois bem. Andara, o que ela parece mais querer, o Advento de uma
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Literatura Fantasma. Fantasma como so os seres de Neblina que a
percorrem. Mas ainda mais sutil que eles. Andara, os livros escritos,
os livros visveis de Andara, ainda pudessem ser lidos por quem assim
quiser, ou no puder mais que isso, como Literatura Fantstica. Mas
o Livro Invisvel de Andara, aquele que no- escrito, aquele que j no-livro, esse: Isso, j Literatura Fantasma. Literatura de Ausncia.
Est para a Literatura como os nmeros trans-finitos de Georg
Cantor, talvez eu pudesse comparar, que se iniciam ali, seja Onde isso
for, onde os nmeros finitos se acabam. Literatura Fantasma
Literatura de Ausncia de Literatura. De Ausncia at mesmo da
Presena Rarefeita da Escritura, por mais rarefeita que ela seja. Est
num alm em ns. Nietzsche perguntando pela voz de Zaratustra: O
homem coisa ultrapassvel, o que fizeste para ultrapassar o homem,o que fizeste para atingir o Alm do Homem? Pois ele nunca falou em
Super-Homem, isso foi manipulao do Nazismo: ber mensh, ele
disse, e isso dizer: Alm do Homem. Mas essa uma viso ocidental,
a viso ocidental de Nietzsche. Andara se desampara no Tao. Andara
quisesse fosse as Outras trs partes do discurso que se mantm
secretas, no so postas em movimento, mencionadas pelo Hino do
Rig Veda, que diz que s conhecemos a quarta, que a lngua dos
homens. Andara no busca nada assim, como neste trecho deNietzsche, com um sentido nico de Ida: Andara busca, no homem,
tanto o umanoh quanto o umano, tanto o alm quanto o aqum do
homem. Mas eu queria terminar com Cervantes, depois de termos
iniciarmos com Flaubert. Andara sou eu. De uma certa forma, sim.
Mas h uma definio melhor de Andara por Cervantes. Est l, na
abertura daquele seu belo, sobrenaturalmente Belo, Os trabalhos de
Persiles e Sigismunda, obra que comovidamente ele terminou em seu
leito de morte, morrendo, embora em vez de Morte ou prefira a palavraMetamorfose, e escrevendo a ltima pgina e se despedindo do Leitor
e informando que estava terminando naquele ponto o livro porque o
Livro da sua vida estava, naquele exato momento, tambm fechando
as suas pginas visveis. Aquela Voz Andara.
Qual voz?
Os trabalhos de Persiles e Sigismunda comeam com uma voz
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gritando do fundo da terra, se lanando para superfcie da terra e para
o alto e para a luz, l encima, l fora da Escurido em que se encontra
aquele que depois viremos a saber que era Persiles encerrado numa
Masmorra no subsolo. Mas no incio, s o que sabemos que uma
Voz e, depois, ficamos sabendo que voz humana. A Literatura essaVoz que se lana do Escuro. Essa Voz que busca ascender da
Escurido a Literatura buscando ascender para o claro-escuro da
Escritura. a Voz da Escritura querendo ascender para o Alm do
claro-escuro da Escritura. tambm a vozinha dbil dos livros visveis
de Escritura de Andara j querendo o AlmAqum da Escritura, no
Livro Invisvel de Andara. Essa Voz a Voz No-Voz do Livro Invisvel
de Andara. Essa no-Voz, ela que a Voz no-voz essencial de
Andara. E parece que a nica que lhe interessa. Trans-silncio. Aspginas antes cobertas pelos Signos da Palavra buscando o em-
branco da Ausncia de Palavras.
Ento, Andara isso. Essa no-Voz. Voz-Silncio.
Sim. Mas estou tentando, ainda, salvar as Palavras da extino total
em Andara, pela Iconescritura. Superao talvez possvel da Escritura,sem que seja necessrio o extermnio das Palavras. o que estou
tentando agora no livro, ainda mais um livro visvel, O escuro da
semente. Devolver as Palavras sua mais inocente Origem de
Imagens. Quem sabe se possa ter nisso alguma Esperana? Enquanto
isso, Andara? Andara continua sendo travessia de Penumbras.
Escrita, Dilogo com Sombras, j no-escrita despedida das
Sombras, que cada vez mais se ausentam, das Palavras.
Paramos por aqui. Esperamos que voc no tenha falado demais e dito
coisas que no devia.
Eu tambm. Andara, ah.
8/22/2019 Vicente Franz Cecim ENTREVISTAS REUNIDAS por Jesus Lazo Sombra
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ENTREVISTA
II
VICENTE FRANZ CECIMFALA SOBRE
A FORTUNA CRTICA DE ANDARA
&
O NATURAL E O SOBRENATURAL
VICENTE FRANZ CECIM:Homemrvore de Andara
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Serdespanto:O natural sobrenatural?
Tudo vem como sombra do Um e para o Um volta como sombra. Aqui,
na breve Residncia, a vida, imersos nesta luz cheia de penumbras em
que somos e no-somos, pois permanecemos sendo l no Um enquanto
aqui at parece que somos, as sombras esto no Vrios, e se tornam
coisas
Vicente Franz Cecim/
K: O escuro da semente*
* Lanado em Portugal em 2005, pela Ver o Verso,
aps a primeira edio desta entrevista
permanece indito no Brasil, onde Cecim,
de 1994, ano de Silencioso como o Paraso, Iluminuras,
a 2012, editou somente um novo livro de Andara:
o: Desnutrir a pedra, Tessituras, 2008.
Vicente Franz Cecim um sucesso de crtica, no Brasil, apesar da
resistncia conservadora dos editores nacionais s rebeldias de sualinguagem, e em Portugal, onde h quase duas dcadasembora nem
tanto de pblico, mas parece no dar a menor importncia para esse
fato de diz:
- No escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida
pequena para a Vida.
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Os especialistas atribuem isso s caractersticas inovadoras da sua
literatura. Segundo j foi dito, no caldeiro de uma escrita em absoluta
liberdade, a literatura como alquimia, em sua obra o autor abole as
fronteiras entre a prosa e a poesia, funde o natural e o sobrenatural e
incorpora o profano ao sagrado, para se lanar numa intensa buscametafsica do sentido do ser e da vida. Cecim, por sua vez, diz que os
livros visveis de Andara, que escreve em livros, ainda podem ser lidos
como literatura fantstica. Mas ao irem se reunindo em Viagem a
Andara, o livro invisvel - que o ttulo geral de toda a sua obra - o no-
livro que o autor no escreve e que vai se formando medida que os
livros individuais de Andara vo sendo escritos, o resultado final,
segundo ele, j literatura fantasma. Nesta entrevista, Cecim fala do
seu novo livro recm-lanado em Portugal, Serdespanto (manEdies, Lisboa, 2001), que a crtica portuguesa apontou como o
segundo melhor livro do ano, em consulta feita pelo jornal Pblico, da
Amaznia transfigurada em Andara, dos limites da literatura e do
advento de uma literatura fantasma.
J no fao literatura, fao Escritura, ele diz. E afirma:
- O natural sobrenatural.
O que o livro Serdespanto, ou talvez fosse mais apropriado
perguntar: o que um ser de espanto?
Serdespanto sou eu, s tu, quem est lendo esta entrevista. Seres de
espanto somos todos ns. No difcil ser um serdespanto, para isso
basta nascer, surgir na vida como ser humano. Um trecho do livro nos
diz assim: Em Andara, quando os homens esperam um anoitecer mais
calmo que vm as noites da vida nos lanar pedras de sombras e asas
de areia vm nos aoitar. Sendo assim em Andara: ser de espanto,
ser despanto, serdespanto. Passando, pois, aquele homem a se
chamar assim. Serdespanto. Pois esse o nome que lhe deram quando
ele nasceu, diz-se disso, a me, essa que denomina uma parte de si que
sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro
espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignaes,
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suspiros. Isso de nascer Em Andara, pois. Mais um tendo vindo. De
rastros, humano.
Vamos falar um pouco mais a respeito de Serdespanto: ser de
espanto. A expresso , por si s, j demonstra sentimento de espanto.
O livro Serdespanto j acabou de se falar, por si prprio, nesta
entrevista. E um livro no sabe falar outra linguagem alm daquela em
que foi escrito, prefervel no falarmos mais por ele.
E Andara, o que Andara?
Andara uma regio imaginria, toda ela onrica, que eu criei, ou que
quis se criar atravs de mim, de qualquer maneira: que eu sonhei, mas
sua matria prima a Amaznia, a Floresta Sagrada onde eu nasci,
com suas guas, seus peixes, suas aves, seus insetos, seus animais,
suas rvores. S que em Andara tudo pode acontecer e ainda mais do
que acontece na Amaznica, que em si j uma regio naturalmente
encantada: rvores podem falar com os homens, aves que caem do cuse transformam instantaneamente em terra, retornando ao p, o vento
vem nos contar histrias, tu podes te deparar com uma mulher alada
como Camin, do segundo livro visvel de Andara, Os animais da terra,
h muitos outros seres alados em Andara, talvez anjos ou sejam
demnios, que descem do cu com suas asas negras, com suas asas
brancas para conviver com os seres humanos. Tambm grande a
presena de serpentes em Andara. Pois o que est no Alto como o que
est Embaixo, como disse Hermes Trimegisto. Andara lugar de
sonhar, em Andara tudo possvel, Andara a imaginao em
liberdade, Andara quer abolir a razo do ato de escrever. Andara
quase um manifesto prtico contra a literatura regionalista, mimtica,
que geralmente se limitava a copiar, e copiar mal, a realidade
amaznica. Mas a realidade oculta em si mesmo: se disfara em sua
epiderme. Fazer literatura assim ampliar o ilusrio. Herclito, que
entendia dessa Obscuridade, j ns advertiu h quase 25 sculos atrs:
- Vida ama ocultar-se. Andara quis romper, desde o primeiro livro, A
asa e a serpente, de 1979, com essa tradio que quer nos reduzir a
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criadores de uma literatura superficial, anedtica, suprflua, com raras
e parciais excees. Quais? S cito nomes quando chegar o Dia do Juzo
Final, ento os bons sero separados dos maus, segundo as Escrituras.
Por enquanto, digo apenas isso. Escrever, sonhar os livros de Andara foi
uma opo muito solitria, e do que havia sido escrito aqui naAmaznia, pelos escritores cultos, chamemos assim, eu no me nutri de
quase nada. Meu nico alimento foi a literatura oral, as lendas, os
mitos, que aprendi desde criana a admirar atravs da minha me, Yara
Cecim, hoje tambm escritora, que nos contava, no os contos dos
irmos Grimm, de Perrault, que tem coisas geniais, de Andersen, que
todo ele um gnio, mas umas histrias delirantes da regio, para nos
fazer dormir, a mim e aos meus irmos. O sono vinha, mas como um
portal de acesso a todo esse mundo ferico. No sabamos mais o queera natural e o que era sobrenatural.
Serdespanto faz parte de um longo projeto literrio, que Viagem a
Andara, o livro invisvel. Livro que contm outros livros, que so
histrias imaginrias fisgadas de uma memria guardada da infncia,
vivida na Amaznia. Andara uma histria infinita?
No se pode dizer que essa Andara que se criou atravs de mim a
Amaznia, no a verdade. E dizer que a Amaznia Andara, tambm
no a verdade. No h uma verdade nica nesse caso. Onde est a
verdade, ento? Se tu olhares com olhos de alquimista, que so os
nicos que interessam, vais perceber que o que se d uma
transmutao: a Amaznia a matria prima, Andara o resultado. O
que sobra, fica de fora: o que os alquimistas chamavam resdua. Atransmutao da Amaznia em Andara deixou muita resdua, material
imprestvel para literatura. E como em toda a Alquimia, e a alquimia da
criao literria no diferente, para entender o que acontece preciso
compreender estas palavras de Raimundo Llio: Deves saber, meu filho,
que o curso da natureza transformado, para que tu (...) possas ver,
sem grande agitao, os espritos que se evolam (...) condensados no ar,
sob a forma de diversas criaturas ou seres monstruosos que vagueiam
de um lado para o outro como nuvens. So palavras misteriosas, masno h outras melhores para se iniciar na transfigurao da vida pela
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arte. por isso que, como eu disse: Andara lugar de sonhar. E eu
digo: A viagem a Andara no tem fim. Porque depois de mim, outros,
que vierem, podero dar continuidade viagem a Andara e habitar seu
territrio, com outros livros, outros sonhos, outros seres de espanto.
Os crticos tm sido generosos em elogios aos livros de Andara. Leo
Gilson Ribeiro, em entrevista a O Estado de So Paulo, aps o
lanamento de Viagem a Andara, o livro invisvel (Iluminuras, 1988) que
lhe valeu o Grande Prmio da Crtica da APCA, disse: "Quem escreve
como Vicente Cecim hoje em dia na Frana, naInglaterra. Ele tem um
talento desmesurado." E por ocasio do lanamento de Silencioso comoo Paraso (Iluminuras, 1994), completou: "A fulminante trajetria
literria de Cecim, que se iniciara com o belo, potico e enigmtico
poema em prosa Viagem a Andara, o livro invisvel, prossegue com um
livro, se possvel, mais rico e fascinante ainda: Silencioso como o
Paraso. Um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos ltimos dez
anos, imbudo de poesia, encanto e o que Guimares Rosa chamava de
peregrinao lmica (da alma)." No foi a primeira vez que os crticos
evocaram Guimares Rosa ao falarem da sua obra.
Muito me alegra a sua companhia, mas evidente que se h ecos dele
em Andara, so desprezveis. Guimares Rosa infinitamente superior
a tudo o que foi escrito em fico na lngua portuguesa, incluindo
Clarice Lispector, a enfeitiadora de palavras, e o Machado de Assis
daquele inacreditvel, lunar, Memorial de Aires, escrito, j no fim da
vida, com uma serenidade encantatria assombrosa, como se diz que o
arqui-anjo Bach compunha as suas ltimas obras.
E ao que voc atribui essas aproximaes que fazem da sua obra com
Guimares Rosa? E isso em vrios pontos do pas. Por exemplo, o
crtico gacho Antnio Hohlfeldt, no Correio do Povo, escreveu: "Depois
de Guimares Rosa, o paraense Vicente Cecim o responsvel por um
dos mergulhos mais fantsticos e essenciais que a literatura brasileira
j realizou sobre o sentido do homem." E Oscar DAmbrosio, no Jornal
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de Tarde, de So Paulo, no deixou por menos: "Ler Viagem a Andara
penetrar em narrativas poticas subversivas e mticas que trazem
tona, sempre renovado, o aforismo roseano: Viver perigoso."
Talvez seja porque so literaturas de inveno de linguagem, ou
porque minha escritura tem a mesma m inteno da de Guimares
Rosa: abolir as fronteiras artificialmente demarcadas entre a prosa e a
poesia. Mas, talvez, principalmente, porque Rosa fez com o Serto a
mesma coisa que eu estou tentando fazer com a Amaznia: transmudar,
ele, o Serto, eu, a Amaznia, no que eu chamo de regies metforas da
vida.
Voc j anunciava esse seu projeto em Flagrados em delito contra a
noite, o Manifesto Curau que lanou em 1983. Nele, voc dizia: Aqui,
procuro um nome numa regio similarmente deprimida e asfixiada
como a Amaznia. Um nome exemplar. E uma regio real e inventada
igualmente exemplar. Falo do Serto de Joo Guimares Rosa. (...) Em
sua geografia, como nenhum outro, Guimares Rosa soube fazer o
encontro revelador do seu destino individual com o destino da suaregio, mais ainda, soube transformar esta regio numa metfora de
toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-
rituais de iniciao na existncia, falam mitologias pessoais. E falam
tambm as mitologias da sua regio.
Logo o Flagrados em delito contra a noite/Manifesto Curau vai
completar 20 anos de lanado (1983-2003), mas a sua Palavra
principal, aquela que faz uma auto-acusao grave, pois nos acusa de
sonharmos pouco ainda que vivamos numa regio em si mesma
naturalmente onrica, pouco foi ouvida. Praticamente quase nada
mudou desde ento, nesse sentido. Assim como a literatura de Andara,
que logo chegar aos seus 25 anos de inveno (1979-2004), semeou
muito pouco do que pretendia com sua Presena, mas aqui
provavelmente a culpa minha: eu apenas consigo fazer um esboo do
que poderia ser a inveno de Andara. Por isso, aguardo pelos que
viro, que sejam melhores dotados. Poeticamente, politicamente, insisto
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no que foi dito no Manifesto Curau: - Nossa Histria s ter realidade
quando o nosso imaginrio a refizer, a nosso favor.
Voc se empenha nisso em sua literatura, pelo que se v nos seus
livros.
Mas no s na literatura, tambm na vida, que mesmo oculta em si
mesma sempre nos permite entrever que sempre mais secreta e mais
bela que a literatura: a Literatura quer a amplido, a ampliao e
provoca estranhos milagres nas fronteiras das impossibilidades da Vida,
mas precisamente nela, vida, vivendo, nos vivendo em ns, ecertamente tambm escrevendo, que se corre o risco de obter a
Revelao essencial: a de que o natural sobrenatural e sua verso
refletida num espelho: a de que o sobrenatural natural. Essa
conscincia o alimento, o nico, que devesse nos nutrir enquanto
seres e enquanto criadores, e o que d sentido literatura.
A crtica parece perceber bem isso nos seus livros. E j h algum tempo.
Mais uma vez aqui citado, Leo Gilson Ribeiro, por exemplo, escreveu
uma pgina no Jornal da Tarde de So Paulo aps o lanamento das
suas primeiras obras, intitulada O universo de Vicente Cecim criado por
inspiradas metforas e alegorias, em que dizia: "H um real submerso
no homem que a literatura linear, de mera denncia da disparidade
social, no alcana e quase como o grande visionrio, o poeta Novalis,
Vicente Cecim tambm confirmaria que je poetischer, umso wahrer:
quanto mais potico, mais verdadeiro."
Essa comparao com Novalis, um poeta sublime, me deixou atordoado
por algum tempo, sem conseguir escrever nada. Foi um exagero do Leo
Gilson Ribeiro. Mas enquanto declarao de princpios, sim: isso
mesmo o que busco e no que creio.
Mas no s ele. A revista Vogue tambm disse: "O lrico, o
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fantstico, a imaginao em sua total liberdade: a linguagem de Cecim
potica e nica." E Benedito Nunes, escrevendo sobre o seu livro Os
animais da terra, disse: "Uma inveno potica. Que melhor
denominao para este texto libertrio, insurrecto?"
Sim, mas o preo de ter feito essa opo por uma linguagem que admite
o potico e transgride e dilacera a camisa de fora da prosa na fico
bem grande.
E a alegria no deve ser menor. Por exemplo, o que voc sente quando
l coisas como a que escreveu sobre a sua obra Carlos Emlio Correa
Lima no Jornal do Brasil? Ele afirma: " provvel que seja a melhor
literatura fluindo no Brasil." E h comparaes entre voc e autores que
so verdadeiros clssicos modernos de vrias lnguas, como Nietzsche e
Lutreamont, que deixariam qualquer escritor feliz, como a que faz
Moacir Amncio em O Estado de So Paulo: "Lembra Zaratustra e
Maldoror e se esses livros so poesia, a prosa de Cecim no seria outra
coisa. O fascnio sobre o leitor permanente."
O que no impede que curiosos desastres aconteam. Por exemplo, o
livro Serdespanto, editado pela man, de Portugal, havia sido
oferecido antes ao Samuel Leon, da Iluminuras, de So Paulo, que j
havia editado as minhas duas reunies de livros de Andara anteriores:
Viagem a Andara, o livro invisvel e Silencioso como o Paraso. Samuel
um editor criterioso, que l o que edita, eu sei. Mas s vezes no basta a
vontade do editor: existe uma economia, umas leis de mercado editorial,
uns vcios e umas estruturas mortas arqueolgicas que se erguem entre
o livro e o leitor. Samuel me falou algo assim, tentando me explicar o
fenmeno: Ests escrevendo cada vez melhor, Vicente, mas ns temos
um problema: os leitores brasileiros tm preferncias muito rgidas, ou
gostam de prosa ou gostam de poesia, e como nos teus livros ests cada
vez mais abolindo essas distines, eles no sabem do que se trata,
acham estranho. Creio que Samuel estava certo, afinal, pelos anos de
convivncia, desde 88, j havamos nos torna bons amigos. Entendi a
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mensagem. Foi como se ele estivesse me dizendo que os meus leitores
ainda esto por nascer e me pedisse pacincia. A pacincia de ser
pstumo. O livro finalmente saiu, mas saiu em outras circunstncias
culturais: Portugal no o Brasil, que grande e l pequeno, Portugal
pequeno mas l grande: l esse abismo obscuro cintilante que Fernando Pessoa, l o poeta complexo que Herberto Helder, l as
arriscadas aventuras de linguagem de Maria Gabriela Llansol e j a
Europa, aquela Europa a quem foi oferecida a libertao da Razo
Manaca pelo Dad, pelo Surrealismo, onde a fico que se l Kafka,
Beckett, Proust, Joyce, o Musil incalculvel de O homem sem
qualidades, o Hermann Broch sonmbulo de A morte de Virglio, esse
outro sonmbulo que o Bruno Schulz de Sanatrio sob o signo da
clepsidra e de As lojas de canela, o Julien Gracq supremo do alegricoO litoral das Sirtes, belo como um Kafka paralelo a Kafka, o
Incomparvel, o Dino Buzati tambm kafkiano a seu modo de O deserto
do trtaros, o iconoclasta maravilhoso que Withold Gombrowicz, o
autor de Trans-Atlntico e de Bakakai, o Breton de Nadja, romance,
poema, invocao xamnica e nada disso porque se trata da prpria
vida como realidade e sonho, juntos, captados para dentro das pginas
de um livro, e sobre tudo isso seguem pairando as asas que jamais
pousam para um instante sequer de repouso de Lautramont, agitandoaqueles ares com seu Os cantos de Maldoror - para citar s alguns dos
mais recentes, dos mais prximos de ns. Porque se fssemos mais
longe, at Jonathan Swift, at Rabelais, at Sade, at John Bunyan, at
Dante, onde iramos parar?
Essas dificuldades levaram edio do livro em Portugal e no no
Brasil?
As dificuldades aumentam na medida em que no s os livros de
Andara, mas tambm os de outros autores brasileiros que no pactuam
com as concesses do mercado editorial aumentam suas dificuldades
para o leitor que no se doa suficientemente literatura, talvez porque
no ame suficientemente a literatura, talvez porque no ame
suficientemente a si prprio, talvez porque no ame suficientemente avida, no sei. No s viver que muito perigoso, como disse
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Guimares Rosa: escrever tambm muito perigoso. Mas aqui, repara,
temos um paradoxo: preciso no esquecer que os livros de Andara
foram publicados primeiro no Brasil, pela Iluminuras, com expressiva
receptividade da crtica, e s depois que saram em Portugal. Como se
explica isso? Teria a literatura de Andara andado rpido demais,deixando os leitores brasileiros para trs?
Emparelhou o passo com os leitores portugueses? Leitores mais
qualificados: editores mais qualificados: escritores mais qualificados:
essa a seqncia em que as coisas devessem se dar. Podendo ser
tambm na ordem inversa. Sem terra para construir uma casa, sem
casa para morar nela, onde colocar uma estante de livros? Ns
precisamos sentir uma Grande Fome de tudo, fazermos jejum at no
suportarmos mais a nossa fome de uma revoluo que d s pessoas
acesso ao feijo e ao sonho, palavras que fazem lembrar o ttulo de um
livro hoje quase esquecido de Orgenes Lessa.
Bem, e aconteceu que Andara, com o lanamento l do seu
Serdespanto, acabou por ter, tambm, uma entusiasmada acolhida da
parte dos crticos de Portugal.
Foi, aconteceu.
O mais surpreendente ler de um crtico to bem informado, como o
filsofo Eduardo Prado Coelho, esta declarao: "Aluno de Histria da
Cultura Medieval, cheguei prova oral sem saber quem era Raimundo
Llio. Nas semanas seguintes, este nome aparecia-me em todo o lado -
uma verdadeira perseguio. E pode ser que suceda o mesmo com
Vicente Franz Cecim. Conheo razoavelmente bem a literatura
brasileira, tenho muitos amigos brasileiros que me mantm informado,
mas nunca me lembro de ter visto mencionado, ou lido uma linha, de
(ou sobre) Vicente Franz Cecim. At que Antnio Cabrita resolve editar
um livro intitulado "O Serdespanto". E o espantado sou eu. Uma
extraordinria revelao! Leo Gilson Ribeiro fala-nos, referindo um
Guimares Rosa que obviamente est presente nestes textos, em
"peregrinao lmica" (da palavra "alma"), e a expresso est certa para
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nos dizer a estranheza, a perturbao, os momentos de arrebatamento
que nos podem vir destes textos inclassificveis, que oscilam entre uma
espcie de deliberada monotonia do ser e o sentido golpeante das
cintilaes verbais."A citao foi um pouco longa, mas necessria para
situar os leitores no impacto da reao do crtico.
Isso s prova a enorme distncia cultural que mantemos de Portugal.
S superada pela que mantemos em relao aos outros pases da
Amrica Latina. Sabemos quem foi Borges, o argentino, pelo menos,
mas observa a expresso remota, buscando longe um saber
desconhecido, que aparece no rosto de um leitor brasileiro quando se
pergunta a ele: quem foi Csar Vallejo? E Vallejo simplesmente o
maior poeta deste nosso subcontinente, em todos os tempos. Mas,
peruano, coitado. E onde fica o Peru? Algum sabe?
O problema, ento, no est localizado unicamente na Escritura que
voc pratica nos livros de Andara, nem no prprio universo inusitado
que seus livros visveis de Andara esto criando. Existem graves
barreiras culturais.
Sim, muito graves. O surgimento de Andara, como territrio verbal
onrico que escava o solo da realidade, para dela emergir, j que falamos
de Borges, como aquela hiptese que ele prope sobre o Castelo de
Kubla Kan: algo que est tentando nascer, existir na vida, e j fez
suas primeiras tentativas. A primeira, quando Kubla Kan sonhou o
castelo em pedras e iniciou sua construo, mas foi impedido de
concluir a construo e do castelo s restaram runas. A segunda,
quando Coleridge sonhou o castelo de Kubla Kan em palavras, mas ao
despertar, interrompeu o poema sobre o castelo para atender seu
alfaiate, e foi punido, por isso, com o esquecendo do restante do poema,
que tambm ficou inconcluso. Borges ento se pergunta, nos pergunta:
qual ser a prxima forma que assumir isso que se apresenta como o
Castelo de Kubla Kan quando tentar mais uma vez irromper na vida?
Talvez por ser tambm uma hiptese extraviada, um Lugar de Todos os
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Lugares, ou de Lugar Algum, Andara atravesse as guas do Atlntico
sem naufragar.
Sim, mas as ondas que faz so bastante agitadas, quando chegam na
praia. A crtica Regina Louro, que citou serdespanto como o melhor
lanamento do ano, em Portugal, escreveu no jornal Pblico: um livro
total, na sua fuso de poesia, prosa, viagem utpica, divagao onrica,
pensamento filosfico, reinveno da palavra e reinveno do mundo.
Uma obra assim pode transformar a vida de quem a l, se quem a ler
estiver disposto a deixar-se transformar; mas, mesmo sem correr o risco
dessa entrega, impossvel permanecer indiferente ao poder mgico dapalavra de Cecim, palavra livre e vagabunda que cria uma cosmogonia
prpria, a um tempo estranha e familiar, reconhecvel. Chamar-lhe
inclassificvel , talvez, cobardia. H um nome para esta espcie - rara -
de acontecimentos, mas um nome ousado e, nestes tempos de
suspeita, pronto a ser banido: estamos perante um livro sagrado. No
importa quem o escreveu: foi escrito por um visionrio.
Foi uma leitura vertiginosamente generosa.
E o que voc diria do que escreveu o crtico, tambm portugus, Manoel
de Freitas, no jornal Expresso? Cito alguns trechos mais expressivos:
"H livros assim, que dispensariam - num mundo ideal - o lgubre
ofcio da crtica. Livros que comeam por dizer que algum vive, algum
escreve// Esse o ponto de partida, o ponto de chegada. Alarmada, a
nossa competncia literria pode, quando muito, balbuciar o nome de
Mallarm e o seu maisculo projecto: O Livro a vida? No, o Livro no
a vida. a outra vida (pg. 9). Mas permaneceremos incapazes de
verbalizar o inconfundvel fulgor desta obra de Vicente Franz Cecim. (...)
Houve j quem falasse em Amaznias, transfiguraes natais de um
paraense, quando uma voz destas excede qualquer regionalismo bsico.
Tambm Herberto no a ilha em forma de co sentado ou Pessoa a
Rua dos Douradores. O cosmos, esse, fica-lhes demasiado bem. (...) So
raros os livros que, como " Serdespanto", elidem perguntas e
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respostas, abrindo-se desmesura e estranheza: Benvindo ao
estranho mundo (pg. 129). Poderamos, no entanto, esboar (e no
mais do que isso) a genealogia em que este livro entronca. Nesse caso,
teramos de evocar essa espcie de comunidade de que fazem parte os
nomes de Michaux, Herberto Helder ou Maria Gabriela Llansol.Contudo, a escrita de V. F. Cecim no se confunde, prossegue
amanhedescendo e torna subitamente mais verdadeira a certeza de
que no h nada a dizer de um poema, pois ele mesmo o dizer
supremo (Eduardo Loureno)."
E com isso voltamos ao incio desta nossa conversa. Tu me disseste:
Vamos falar um pouco mais a respeito de Serdespanto. E eu te disse:
um livro no sabe falar outra linguagem alm daquela em que foi
escrito. O respeito de um crtico pela integridade essencial de certos
livros, o que dele mais esperam certos escritores que se propem a
desafiar os dentes da Engrenagem triturante do mercado de consumo
editorial. Escritores fantasmas: Literatura fantasma.
Voc insiste em afirmar que o natural sobrenatural. E novamente dizque o que faz literatura fantasma. Voc est fazendo s literatura, ou
propondo algo mais: algo iniciatrio? Voc quer mudar a vida com os
seus livros? Pelo menos o crtico Oscar DAmbrosio, aqui no Brasil,
muito antes da crtica portuguesa Regina Louro, achou que sim, e que
voc consegue isso. No artigo Os divinos autores da dcada que
escreveu no Jornal da Tarde de So Paulo, ele garante: "Os textos de
Cecim fundem profano e sagrado. Aps ler Vicente Cecim a
transformao interna do leitor inevitvel."
Eu projeto minha frente uma Utopia libertria. Eu sonho com uma
literatura alm da literatura, como Nietzsche sonhava com um homem
alm do homem. Por isso prenuncio o advento de uma Literatura
Fantasma. Mas, antes, ainda teremos que deixar para trs a Literatura
como hoje a maioria de ns, escritores, ainda a praticamos, e como a
quase totalidade dos leitores ainda a lem, e atravessar a ponte
oscilante da Escritura. Ento, depois, muitos passos ou no-passos
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adiante, ou atrspois tudo pode muito bem consistir em um mero se
desfazer dos nossos lastros culturais - teramos livros, ou j no-livros,
como quer ser o Livro Invisvel de Andara, algo que foi literatura, mas se
libertou de si mesmo e se tornou capaz de revelar minuciosamente o
homem e seu mistrio ao mistrio do homem: digo isso assim: Aliteratura praticada como ontologia, a palavra praticada como vida.
Sonho com que esse algo que ter poderes mgicos, imensos poderes,
capazes de transpassar as Aparncias do Real. Nas desorientaes em
que me guio, e das quais me nutro, com outras bocas, menos e mais
humanas, lembro do que disse Novalis: S a insuficincia dos nossos
sentidos nos impede de perceber que vivemos num mundo ferico. Para
mim, e no s os artistas, os criadores, tambm todas as pessoas, no
devemos nos contentar com menos. Isso me faz lembrar John Coltrane,que queria fazer milagres com o seu sax atravs do jazz. Ele disse uma
vez, pouco antes de morrer, que eu prefiro chamar de fenecer assim
como prefiro dizer florescer em vez de nascer, que queria fazer uma
msicaque, tambm, estaria certamente alm da msica - que
quando um amigo estivesse desempregado, ele tocasse e o amigo teria
emprego, que quando algum estivesse doente, ele tocasse e a pessoa
ficaria curada, que quando estivesse chovendo, ele tocasse e fizesse sol.
Assim, o Serdespanto no sentiria tanto o espanto de nascer.
Assim, finalmente, nos pudssemos ser Seres de Alegria. E contaminar
a Vida no mais tanto com as nossas lgrimas, mas com essa Alegria.
Voc est terminando de escrever um novo livro visvel de Andara: K: O
escuro da semente. Todo desenrolar literrio, que faz parte de um s
projeto, tem l seus nveis, seus estgios. Em que estgio est esta nova
obra, se que devamos classificar assim, ou mesmo classificar?
Para que classificar, o que se ganha com isso? J classificamos os
insetos, as pedras preciosas, os sentimentos, os gneros literrios. E oque ganhamos com isso? S dividimos mais o mundo, a vida, cada vez
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mais a extramos do Um e a lanamos ainda mais fragmentada no
Vrios. Este livro, agora, prossegue as buscas de Andara, que j vinham
sendo feitas, seguindo rastros apagados, esquecidos pela espcie
humana, muito inconsciente desde o primeiro livro, A asa e a serpente,
de 1979, o que agora me parece se fazer cada vez mais claramente, peloque eu chamo de O Um Vrios: ponto de fuso de todas as dualidades.
Onde todas as aparncias cedam profundamente a uma Unidade, sem
exigir que o real abra mo de sua Diversidade. Dobras dentro de
dobras, ora se desdobrando, ora se redobrando. Isso a Viagem a
Andara, isso o livro invisvel convivendo com os livros visveis de
Andara. Enfim: uma Harmonia Assimtrica, uma Nudez Vestida, em
todas as coisas. Rel aquele trecho, que ficou como epgrafe desta
entrevista, de K: O escuro da semente, este novo livro escrito de Andaraque eu estou sonhando, escrevendo, sonhando, ele em mim se
sonhando, emergindo, no sei de onde, nunca se sabe exatamente de
Ondecomo o castelo de Kubla Kan, na hiptese de Borges. Ento,
estou jorrando esse livro para fora de mim, para tentar tornar mais
claro isso, para mim e para os outros, isto: Ns nos tornamos seres
viciados em ver as diferenas nas semelhanas. Est errado, essa a
viso mais superficial da vida: tente ver a Semelhana nas diferenas,
s assim que consegussemos ver nas profundidades mais escuras docorao da condio humana, de outra forma s iremos nos tornando
seres cada vez mais cegos, homens-toupeiras, no aqum do homem, e
nem a Toca de Kafka nos servir de abrigo. Ento, no classificando,
mas arborizando passo a passo a escritura de um livro, deixando que
ele se amplie ou se retraia, espontaneamente, porque se trata de uma
semeadura de palavras sem garantias de que teremos boa safra, o que
fao observar as metamorfoses por que vai passando a obra, que como
bom filho da Floresta Sagrado chamo de verses: semente, arbusto,rvore, floresta. Poderia ir tambm da lagarta borboleta, seria a
mesma coisa. So metamorfoses que esto a, ao nosso redor, no
mundo natural, e no entanto sobrenatural, isso nada tem a ver com as
classificaes do mundo conceitual. Nesse outro mundo, observa. O que
vs? Imensas aves do mal se voltando contra o prprio Mal que as criou
em conseqncia do egosmo perverso, perversor, pervertido do mundo
civilizado, esse mundo oco, que escava cada mais fundo as fronteiras
entre ricos e pobres. Para dar um s exemplo abrangente. Osacontecimentos que agora eu vejo, me dizem que ainda estamos muito
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atrasados. Que estamos ainda na verso arbusto do que a vida poderia
ser, mas que, tendo perdido a semente original, no chegaremos
verso arvore e muito menos verso floresta. Nossas metamorfoses
modernas parecem querer nos afastar cada vez mais de ns prprios,
quando deveria ser exatamente o contrrio. Se impe reverter essecaminho, se impe desviar pelo saber, como, citando algum que no
lembro, disse numa entrevista talvez o mais sbio dos diretores de
cinema, Robert Bresson. Eu proporia ainda mais: desviar de todo o
saber, por um outro saber. Que saber seria esse? Esse no-saber?
isso que Andara busca. O que, quem sabe, o Zen j achou, quando nos
recomenda Ouvir com os olhos, ver com os ouvidos. Suspeito que pelos
velhos caminhos tantas vezes navegados, s acabaremos chegando
Terra Devastada do Rei Pescador da Demanda do Santo Graal, a WasteLand de Eliot, Terra Gasta.
Se todos ns somos seres de espanto, o que voc acha que mais nos
espanta? O que lhe espanta? A vida um espanto? No um milagre?
Os milagres no so coisas separadas da vida, toda ela um milagre, O Milagre. Tudo epifania, quer dizer: toda essa irrupo do sagrado na
Natureza. No se pode entender nada se no se entender primeiro isso.
E tendo entendido isso, o que mais pode nos espantar? Tudo est
contido no prprio espanto de ser, de ser-se. O que me espanta que
ns, as pessoas, demoremos tanto tempo para nos dar conta desta
evidncia: que todos somos seres de espanto. Todos somos O Vazio que
transborda e enche a Vida de formas. Sabes exatamente onde ns
estamos, agora? Num Lugar Sem Lugar que ao mesmo tempo o Lugarde Todos os Lugares. Mestre Eckhart disse um dia: Ali onde os anjos
supremos, a mosca e a alma so semelhantes. Eu j citei essa frase de
Eckhart num dos livros de Andara, foi em Os animais da terra, de 1981.
Acho que escrevi esse livro s para levar essa frase a um nmero maior
de pessoas. Os benefcios da compreenso do seu sentido profundo
podem ser imensos.
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Como seu impulso literrio? Vem de inspirao, sonhos, lembranas?
O que move voc a escrever um novo livro?
Eu no escrevo o Livro, eu apenas pareo estar escrevendo o livro, mas
isso mera aparncia: o livro que se escreve atravs de mim. Sou
apenas um Instrumento. Um outro Kubla Kan. Um escritor vaidoso da
sua obra um perfeito ignorante, e uma contradio nos termos.
O que voc prefere ler, quando no est empenhado nos seus prprios
projetos?
Tudo. O rosto de uma pessoa que passa, uma lembrana que volta, as
pedras, uma marca de passo num caminho, uma ave cada no cho,
suas asas j virando terra, outra ave ainda no cu, a chuva, as
lgrimas, a gua correndo na calada depois da chuva, a noite
estrelada, que aprendi a ver melhor com Van Gogh, sonhos, finjo ler
mos, leio as antigas iluses perdidas, que ensinam muito quando
relidas, leio formiguinhas carregando folhas fazendo de contas estou s
olhando, a lua numa gota de orvalho, como o mestre zen Dgen, e o
pensamento do prprio Dgen, e s vezes at os livros que ele escreveu,
e os de Beckett, Kafka, que prefiro ler cintilando no escuro
transformado em homem vaga-lume, Schopenhauer, leio ao mesmo
tempo Plotino falando do Uno e Nagarjuna falando da Originao
Dependente e entendo que no foi mera coincidncia eles terem vivido
ao mesmo tempo no sculo III DC, cada um num hemisfrio do crebro
da Terra, tento ler os sentimentos das pessoas quando esto tristes
para saber como posso ajudar, tento ler os sentimentos das pessoas
quando esto alegres, uma leitura mais fcil, para saber como posso
no estragar, gosto de reler os meus filhos, gosto de reler os meus
livros, estou sempre fazendo isso porque se comecei a escrever foi para
poder ler os livros que eu gostaria de ler e no achava na vida porque
ainda no haviam sido escritos, leio tambm as notas da msica de
Bach como palavras de uma frase misteriosa nos falando a Frase mais
misteriosa que j foi lanada no ar por um homem. Enfim, leio todo o
visvel enquanto posso, antes que, invisvel, comece a ser lido, como
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dizia So Paulo: Agora vejo atravs de um cristal escuro, mas amanh
verei como sou visto. Olha aqui, o importante entender que os livros,
esses que se escreve, no devem ser a nossa leitura favorita, que a
nossa leitura favorita deve ser diretamente, mas sem dvida sempre de
surpresa, de soslaio, o Livro, a vida. S lendo primeiro este que sepode ler aqueles, como conseqncias. Ainda que seja verdade,
tambm, que A vida imita a arte, como queria Oscar Wilde.
A crtica literria no lhe interessa (- No escrevo para agradar, escrevo
para libertar o homem, a vida.). Por que? Ao confessar isso, voc mesmo
no se torna uma espcie de crtico?
Grande parte da crtica ainda no aprendeu a ler o Livro, a vida, como
poderia ler essas coisas to pequenas, os livros que os homens
escrevem? Eu espero uma literatura que seja cada vez mais capaz de
fazer, enquanto se faz, a sua prpria crtica, como o Dom Quixote de
Cervantes, e autores como Kafka, que enquanto escrevia sua obra que
no nos cabe julgar, porque devemos apenas agradecer por ela existir,
como disse Alexandre Vialatte, mantinha um Dirio rigoroso, minuciosodo que significava para ele estar vivendo, ser um Serdespanto. Mas no
tenho nada contra os crticos, nenhuma averso. At gosto deles,
mesmo que finjam serem outra coisa, percebo que so homens como
eu. S no me submeto. Na verdade, quando disse que no escrevia
para agradar estava me referindo mais ao leitor. Eu no gosto de ser
lido. estranho, no ? Acho que porque acho um desperdcio as
pessoas estarem lendo livros em vez de estarem lendo,
instantaneamente, a prpria vida, que mais emocionante, muito maissecreta e mais bela do que qualquer livro que se possa escrever.
Para terminar: o que para voc a leitura?
Ler nutrir. S devemos ler o que nos nutre. No somos obrigados a ler,
como um papel a desempenhar na vida. Mas que sirvam primeiro ofeijo a quem tem fome, depois viro naturalmente os sonhos. No se
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pode exigir que as pessoas leiam enquanto correm pelas ruas em busca
de alimento, virando lixo. Aqui devemos inverter urgentemente Oscar
Wilde, quando dizia: Dem-me o suprfluo e eu dispenso o essencial.
O que voc quer dizer com o natural sobrenatural e vice-versa?
Cecim: Eu no quero dizer nada e estou dizendo isso. Foi mais ou
menos o que disse um vez John Cage, que fazia msica de silncio. Mas
por que tu ests me perguntando isso sobre o natural ser sobrenatural
e o sobrenatural ser natural, como se j no soubesses? claro que as
coisas so assim. A tua pergunta me espanta.
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III
VICENTE FRANZ CECIMFALA SOBRE
ANDARA E A AMAZNIA
&
O MANIFESTO CURAU
&
A INFNCIA
VICENTE FRANZ CECIM:Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim
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ser de espanto:
a favor e contra o que semanifesta o pssaro Curau?
O VO DO CURAUENTREVISTA A KARINA JUC
Vicente Franz Cecim fala da transfigurao da Amaznia emAndara e do Manifesto Curau em defesa da regio
- Andara Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Fsica da Amaznia,que, por ser Lugar de Natureza, Lugar do Sagrado em epifania. Se no existisse aAmaznia e no se desse a circunstncia fatal de eu ter nascido l, talvez nohouvesse Andara. Certamente, no: no haveria Andara. Ento, Andara comeou senutrindo da Amaznia. Da Realidade da Amaznia. Mas da Realidade Onrica da
Amaznia.
Realidade Verbal/VFC
EnquantoFlagrados em delito contra a Noite/Manifesto Curau, oManifesto I, de1983, foi uma Palavra para Todos, o que falou aps ele vinte anos depois:No
Corao da Luz/Segundo Manifesto Curau, ou no uma Voz que se dirige, commenos ingenuidade, objetivamente ctico-estico-Sneca apenas s GeraesFuturas. Nesse sentido, houve, em relao ao que o anterior propunha, uma reduode expectativas ou um des-iludir-se como libertao das falsas esperanas: - Comocreio que as Mutaes das Conscincias se daro lenta e impura mente mescladasaos vcios mentais acumulados nas geraes passadas, tendi a inclinar minhaesperana para um Dom da Vida: aFugacidade dos Homens e das Coisas. E louvarque nada, em baixo, se mantenha o Mesmo - sim, Herclito - embora tudo, noalto, permanea o Uno - sim, Parmnides. Pois parece um Bem e uma Graa que oshomens, enquanto Entes da Vida Visvel, a manifesta, sejam Efmeros e as coisasmutveis, e que os frutos antigos desmoronem e se desfaam, mas semeando
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Sementes. Eis, esto : - Se essas Sementes vierem contaminadas porAquilo,oculto, que levou o Fruto decadncia, esto estaremos perdidos. Sonho estaUtopia, noforadentro da VidAndara: - Sonho que, Se, florescerem duas geraesinteiramente inter-rompidas com o passado, nascidas - que Milagre, ser deespanto -sem antecedentes - isso limparia, lavando e queimando, a Vida humana deseus Vcios pblicos e privados. E assim entendo que metforas comoDilvio &
Apocalipse so, especificamente, essa Fugacidade que possa vir nos libertar dascadeias. No duplo sentido, de elos e prises.
Dom Fugaz/VFC
Belm, junho de 2009
Como surgiu oManifesto Curau?
Cecim: A criana das cigarras de que vai se falar mais adiante neste
inventrio arqueolgico, mas no rigorosamente cronolgico, dos passos dados ao
longo da viagem a Andara havia se tornado um homem jovem que oscilava entre a
Contemplao e a Ao diante das coisas que testemunhava e vivia. E vivamos em uma
Ditadura. Milhares de pessoas haviam vindo para Belm e iam realizar o congresso da
SBPC no corao da Amaznia. E eu sentia a suspeita de que aquilo fosse uma farsa
coletiva, sem conseqncias fundamentais para a regio. Ento escrevi, jorrei com
denncias e exigncias potico-polticas o Manifesto. E na cerimnia de abertura do
congresso no Teatro da Paz, com as autoridades civis, militares e eclesisticaspresentes como que emergidas de um filme de Buuel, invadi o palco no meio do
discurso do Governador do Estado, interrompi e entreguei o Flagrados em delito contra
a noite/Manifesto Curau a ele. Grande silncio. Disse algumas palavras. Grande
silncio, constrangido. Mas eu ria, contente, consciente de que estava fazendo o que
devia ser feito. Foi assim. Anos depois, o Manifesto saiu em pginas inteiras de dois
jornais grandes, A Provncia do Par, em Belm, e A Crtica, em Manaus, e em livro
editado pela Funarte sobre o congresso Um Olhar Amaznico, feito em Manaus.
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Voc nasceu e vive na Amaznia. E aps ter iniciado os livros visveis de
Viagem a Andara oO livro invisvel disse em uma entrevista que a Amaznia para
voc o que a Floresta Negra deve ter sido para Heidegger. Ainda sente o mesmo?
Cecim: Sim e no. Porque medida que a Amaznia, de regio natural, foi setransformando na regio verbal de Andara, Andara cresceu tanto que hoje como que
contm todo o Universo, certamente parte do Visvel nos livros que escrevo, mas todo o
Invisvel no livro que no escrevo. E hoje eu diria que Andara para mim o que o Uno
foi para Plotino. Ou o Tao para Lao-ts e Chuang-ts. Lembremos nesta escavao de
declaraes passadas algo que eu tambm disse: - Andara Geografia Verbal,
dialogando com a Geografia Fsica da Amaznia, que, por ser Lugar de Natureza,
Lugar do Sagrado em epifania. Se no existisse a Amaznia e no se desse acircunstncia fatal de eu ter nascido l, talvez no houvesse Andara. Certamente, no:
no haveria Andara. Ento, Andara comeou se nutrindo da Amaznia. Da Realidade
da Amaznia. Mas da Realidade Onrica da Amaznia. A Amaznia um tecido
infindvel de lendas, fbulas. L, aqui, parece no haver fronteiras muito ntidas
demarcando onde termina a Realidade e comea o Sonho, e vice-versa. Em Andara
tambm assim. Mas no falo da Amaznia que aparece, mimetizada, na Literatura de
Cultura, a erudita, a que se faz escrevendo palavras: falo da literatura Oral da regio.Dessas razes que foi nascendo a no-rvore de Andara. rvore que se iniciou como
rvore de Palavras, mas aos poucos foi buscando se tornar o que hoje : uma no-
rvore de Palavras. rvore Invisvel. Esse tipo de rvore, ningum pode incendiar e
reduzir a cinzas com fazem com as rvores da Amaznia.
Fale mais de como se deu essa transformao da Amaznia em Andara. vlido
perguntar: Andara a Vida ou apenas Literatura?
Cecim: As duas coisas, numa s. Tambm j falei longamente sobre isso.
Andara uma regio imaginria, toda ela onrica, que eu criei, ou que quis se criar
atravs de mim, de qualquer maneira: que eu sonhei, mas sua matria prima essa
Amaznia, a Floresta Sagrada onde eu nasci, com suas guas, seus peixes, suas aves,
seus insetos, seus animais, suas rvores. S que em Andara pode acontecer ainda mais
acontecimentos e seres trans-reais do que acontece na Amaznica, que em si j uma
regio naturalmente encantada: em Andara, rvores podem falar com os homens, aves
que caem do cu se transformam instantaneamente em terra, retornando ao p, o vento
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vem nos contar histrias, tu podes te deparar com uma mulher alada como Camin, do
segundo livro visvel de Andara, Os animais da terra, h muitos outros seres alados em
Andara, talvez anjos ou sejam demnios, que descem do cu com suas asas negras, com
suas asas brancas para conviver com os seres humanos. Tambm grande a presena
de serpentes em Andara. Pois o que est no Alto como o que est Embaixo, como
disse Hermes Trimegisto. Andara lugar de sonhar, em Andara tudo possvel, Andara
a imaginao em liberdade, Andara quer abolir a razo do ato de escrever. Andara
quase um manifesto prtico contra a literatura regionalista, mimtica, que geralmente
se limitava a copiar, e copiar mal, a realidade amaznica. Mas a realidade oculta em
si mesmo: se disfara em sua epiderme. Fazer literatura assim ampliar o ilusrio.
Herclito, que entendia dessa Obscuridade, j ns advertiu h quase 25 sculos atrs: -
Vida ama se ocultar. Andara quis romper, desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de
1979, com essa tradio que quer nos reduzir a criadores de uma literatura superficial,
anedtica, suprflua, com raras e parciais excees. Quais? S cito nomes quando
chegar o Dia do Juzo Final, ento os bons sero separados dos maus, segundo as
Escrituras. Por enquanto, digo apenas isso. Escrever, sonhar os livros de Andara foi
uma opo muito solitria, e do que havia sido escrito aqui na Amaznia, pelos
escritores cultos, chamemos assim, eu no me nutri de quase nada. Meu nico alimento
foi a literatura oral, as lendas, os mitos, que aprendi desde criana a admirar atravs
da minha me, Yara Cecim, hoje tambm escritora, que nos contava, no os contos dos
irmos Grimm, de Perrault, que tem coisas encantadoras, no sentido de Encantamento,
de Andersen, que faz Magia e todo ele um escritor deslumbrante, mas umas histrias
delirantes da regio, para nos fazer dormir, a mim e aos meus irmos. O sono vinha,
mas como um portal de acesso a todo esse mundo ferico. No sabamos mais o que era
natural e o que era sobrenatural.
Foi essa ento a genealogia de Andara. H nela muito da sua infncia na
Amaznia?
Cecim: Mas eu devo repetir, ainda uma vez, aqui, que no se pode dizer que
essa Andara que se criou atravs de mim a Amaznia, no a verdade. E dizer que a
Amaznia Andara, tambm no a verdade. No h uma verdade nica nesse caso.
Onde est a verdade, ento? Se se olhar com olhos de alquimista, que so os nicos
que interessam, vai se perceber que o que se d uma transmutao: a Amaznia amatria prima, Andara o resultado. O que sobra, fica de fora: o que os alquimistas
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chamavam resdua. A transmutao da Amaznia em Andara deixou muita resdua,
material imprestvel para literatura. E como em toda a Alquimia, e a alquimia da
criao literria no diferente, para entender o que acontece preciso compreender
estas palavras de Raimundo Llio: - Deves saber, meu filho, que o curso da natureza
transformado, para que tu (...) possas ver, sem grande agitao, os espritos que se
evolam (...) condensados no ar, sob a forma de diversas criaturas ou seres monstruosos
que vagueiam de um lado para o outro como nuvens. Essas so palavras misteriosas,
mas no h outras melhores para se iniciar na transfigurao da vida pela arte. por
isso que, como eu disse: Andara lugar de sonhar. E eu digo: A viagem a Andara no
tem fim. E depois de mim, outros, que vierem, podero dar continuidade viagem a
Andara e habitar seu territrio, com outros livros, outros sonhos, outros seres de
espanto. Ou a nossa imensurvel libertao - no digo libertao do Homem, no
isso, mas a libertao do Humano, atravs do que, em Andara, eu chamo de o umanoH.
assim mesmo - esse H, que nem aspirado , se deslocando nos livros de Andara para
o fim da palavra, ou sua vanguarda, no sentido do avano da escrita ocidental - des-
obstruindo o nosso possvel U de sermos j sem fragmentaes: no Uno. Nem sub nem
sobre - mas atravs. Essa , ela sim, uma Aspirao muito elevada. Se situar num ponto
de vista em que todos os tempos, todo tempo, so tempos atuais. O que seria o mesmo
que dizer: imemoriais. esse o Senso - no exatamente o sentido - da literatura Visvel
& Invisvel de Andara.
Os Manifestos mostram voc ativo, interferindo na realidade e na Histria. Mas
quando se trata de Andara voc diz queLivro Invisvel uma forma do autor se ausentar
e deixar que unicamente a vida escreva, sem mediao.
Cecim:Mas na Literatura a Ao essa Inao. Wu Wei, diz o Budismo. Uma
ao no ativa. sempre a vida que nos escreve, ns no escrevemos nada, o Nadaque nos escreve escrevendo a vida, as paisagens, os homens, as chuvas, o vento, as
vozes das coisas, seus cantos tambm, atravs de ns: somos o Lpis que Escreve o
Livro que escrevemos vivendo. Os livros escritos so tambm apenas cpias mal feitas
desse Livro, e nossos lpis tm pontas rombudas. Mas um dia escreveremos como
passarinho canta: de repente canta, e canta porque canta, sem saber por que. Na
verdade, no canta: ela: Ela: quem atravs dele canta, a Vida real oculta em ns, em
tudo. Mas l encima j falei errado de novo, preciso corrigir isso: eu no quis dizerNada, essa palavra eu deixo deriva no Ocidente, eu quis dizer Vazio. Eu quis dizer: -
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O Vazio que transborda. ele que nos escreve escrevendo a vida. Eu fui sabendo disso
medida ento que ia escrevendo os livros visveis de Andara e Viagem a Andara oO
livro invisvel, esse no-livro, ia se formando: nutrindo esses livros para que eles
existissem e deles ia se desnutrindo para existir em sua no existncia. Andara me
escreve, por isso escrevo Andara. Se eu fizesse literatura apenas - o que no serve para
nada, ou para muito pouco - e no deixasse a Literatura de lado para me dedicar,
dedicar toda a minha vida, a praticar essa Alquimia de me tornar cada vez mais um ser
de Escritura e cada vez menos um homem escritor, Andara no existiria. Andara, sabe
o que Andara: um Serdespanto geogrfico. J a Amaznia - poderia dizer: s,
para deixar bem claro - uma geografia espantosa. Mas a Amaznia, a Natureza
Sagrada, que torna possvel essa impossvel Andara. a parceria do Real que nos
Sonha com os nossos Sonhos do Real.
Leo Gilson Ribeiros, Antonio Hohfeldt e outros crticos, inclusive o
portugus Eduardo Prado Coelho, quando seu livro Serdespantofoi lanado em
Portugal, evocaram Guimares Rosa escrevendo sobre voc. H uma relao entre
Andara e o Grande Serto, entre a sua literatura e a dele?
Cecim: O que eles vem talvez seja que so literaturas de inveno de
linguagem, ou porque minha escritura tem a mesma m inteno da de Guimares
Rosa: abolir as fronteiras artificialmente demarcadas entre a prosa e a poesia. Mas,
talvez, principalmente, porque Rosa fez com o Serto - e o prprio Manifesto Curau j
falava sobre isso - a mesma coisa que eu tento fazer com a Amaznia: transmudar, ele,
o Serto, eu, a Amaznia, no que eu chamo de regies metforas da vida. No Manifesto
de 1983 eu digo: - Aqui, procuro um nome numa regio similarmente deprimida e
asfixiada como a Amaznia. Um nome exemplar. E uma regio real e inventada
igualmente exemplar. Falo do Serto de Joo Guimares Rosa. (...) Em sua geografia,como nenhum outro, Guimares Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino
individual com o destino da sua regio, mais ainda, soube transformar esta regio
numa metfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos,
livros-rituais de iniciao na existncia, falam mitologias pessoais. E falam tambm as
mitologias da sua regio.
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De fora da Amaznia se poder entender Andara? E ter plena conscincia das
exigncias dos dois manifestos Curau, considerando tambm o Segundo que voc
apenas como que esboou, atualizando o primeiro?
Cecim:Para isso elas tero que penetrar muito profundamente no apenas naAmaznia, ou viajar atravs de Andara. O que puderem vir a compreender vir das
perguntas que fizerem s suas prprias vidas. Perguntar, peregrinar, pelo mundo, por
si mesmo, pelo Visvel e pelo Invisvel. Atravs do tempoespao. a mesma coisa. E
Andara parece vir disso, de Andar, do verbo andar.Nossa Tribo Peregrina por Todos
os Recantos do Real e dos Sonhos, lembro que uma vez eu disse isso sobre Andara.
Andara provm do verbo Andar? Afinal, Viagem, no ? a Viagem a Andara.
Peregrinao, Lugar de Peregrinaes atravs dos livros visveis que escrevo e doLivro Invisvel que no escrevo e vai se formando como Livro Neblina a partir dos
livros escritos e s pode ser lido em Imaginao. Eu falei sobre isso bem no comeo da
Viagem, abrindo os livros de Andara. L est escrito: - Situao dos livros de Andara:
condenados visibilidade para que Andara, a viagem ela mesma, possa existir como
pura iluso. Ento, disso nasce uma delicada Teia de Espelhos e quase insuportvel
Tenso: Tenso que s pudesse ser manifestada se Andara se desse em um outro
espaotempo que no mais o da Literatura instalada ora no Presente, ora no Passado,ora no Futuro, mesmo quando ela, a Literatura, mescla todos esses modos de tempo
numa s Espessura de Tempo. Espessuras comunicantes. Para Andara, nada disso
resolvia mais: a sua exigncia extrema, a exigncia que me fazia e continua fazendo,
desde seu incio at hoje, a de uma Abolio de qualquer Espessura. Sob essa
presso, aonde ela me conduziu aos meus limites, junto com os sem-limites dela, os
sem-limites em que queria se instaurar, explodi para fora e para dentro de mim num
Tempo Verbal que fosse o nico em que Andara pudesse se dar, no se dando, e falar
no se falando, entre o Invisvel e o Visvel: o Tempo da Hiptese. Sem habitar o
Tempo da Hiptese, na Vida como na Arte, no se entende nada.
Abolies, hipteses, peregrinaes sem limites. Uma abertura para tudo. I