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UNIVERSIDADE LUSÓFONA DE HUMANIDADES E TECNOLOGIAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
ÁREA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR PARA OS PRIMEIROS ANOS DA
EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL E EM PORTUGAL
Uma análise contextual sobre as reformas educativas da década de 90
JOSIANE DOMINGAS BERTOJA PARIZ
LISBOA - PORTUGAL
(2004)
UNIVERSIDADE LUSÓFONA DE HUMANIDADES E TECNOLOGIAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
ÁREA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
JOSIANE DOMINGAS BERTOJA PARIZ
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR PARA OS PRIMEIROS ANOS DA
EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL E EM PORTUGAL
Uma análise contextual sobre as reformas educativas da década de 90
Dissertação apresentada na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias para obtenção do grau de Mestre em Ciências da Educação.
Orientadora Científica
Professora Doutora Zita Ana Lago Rodrigues
Co-orientador Científico
Professor Doutor António Teodoro
LISBOA - PORTUGAL
(2004)
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram
para que eu pudesse chegar até aqui...
i
AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela vida e pelos meus dois tesouros, meus filhos Vinícius e Larissa.
Agradeço ao meu marido Carlos, aos meus filhos, à minha querida sogra “vó
Domingas” e a toda minha família pelo apoio e compreensão.
Agradeço aos meus amigos, pelo afeto e carinho nas horas necessárias.
Agradeço aos meus orientadores, professora Zita e professor Teodoro, pela sempre
pronta e preciosa contribuição, feita com esmero e carinho.
ii
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA.............................................................................................................i
AGRADECIMENTOS..................................................................................................ii
ÍNDICE DE FIGURAS.................................................................................................v
LISTA DE SIGLAS ............................................................................................vi
RESUMO....................................................................................................................viii
ABSTRACT..................................................................................................................ix
INTRODUÇÃO...........................................................................................................01
CAPÍTULO I
A EDUCAÇÃO COMPARADA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES...........15
1.1 A educação e o método comparativo......................................................................16
1.2 Visões e conceitos históricos da Educação Comparada..........................................18
1.3 O método da Educação Comparada........................................................................29
1.4 Considerações práticas acerca da Educação Comparada........................................37
1.5 Globalização e mundialização: contexto atual........................................................39
1.6 A formação do professor sob o viés da Educação Comparada...............................43
CAPÍTULO II
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DAS SÉRIES INICIAIS NO
BRASIL........................................................................................................................48
2.1 Contextualização.....................................................................................................49
2.2 O sistema de ensino brasileiro.................................................................................52
2.3 O lugar das séries iniciais do Ensino Fundamental.................................................57
2.4 A formação inicial do professor das series iniciais do Ensino Fundamental..........60
2.5 Referenciais para a formação de professores..........................................................67
2.6 A prática pedagógica nos cursos de formação inicial do professor das séries iniciais
do Ensino Fundamental.................................................................................................70
iii
CAPÍTULO III
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DO 1º CICLO EM PORTUGAL..74
3.1 Breve histórico.........................................................................................................75
3.2 A formação inicial do professor do 1º ciclo a partir da LBSE 48/86......................78
3.3 Os perfis de desempenho profissional.....................................................................84
3.4 A prática pedagógica nos cursos de formação inicial do professor do 1º ciclo.......86
CAPÍTULO IV
A REALIDADE DA FORMAÇÃO INICIAL NO BRASIL E EM PORTUGAL –
ENCONTROS E DESENCONTROS........................................................................89
4.1 O discurso legal das reformas..................................................................................91
4.2 Os pressupostos das reformas educacionais do Brasil e de Portugal da década de
90...................................................................................................................................94
4.3 Lócus de formação: diferença entre Escolas e Institutos Superiores de
Educação........................................................................................................................97
4.4 As reformas da formação inicial no contexto atual.................................................99
4.5 Reflexões acerca da formação inicial no Brasil e em Portugal.............................101
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................103
FONTES E REFERÊNCIAS....................................................................................108
APÊNDICES..............................................................................................................119
APÊNDICE 1 – Questionário semi-estruturado enviado a profissionais da
educação do Brasil.....................................................................................................120
APÊNDICE 2 – Questionário semi-estruturado enviado a profissionais da
educação de Portugal................................................................................................121
ANEXOS....................................................................................................................122
iv
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 – mapa das grandes navegações
Figura 2 – imagens da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Figura 3 – foto do Colégio Estadual Sagrada Família – Campo Largo
Figura 4 – foto da Escola Superior de Educação - Viseu
Figura 5 – foto da Universidade Federal do Paraná
Figura 6 – foto de crianças com estagiária do curso Normal Superior
Figura 7 – foto de crianças com estagiária do curso Normal Superior
Figura 8 – foto do Instituo Educação do Paraná – Curitiba
Figura 9 – foto do planeta Terra vista por satélite
v
LISTA DE SIGLAS
ALCA – Área de Livre Comércio das Américas
ANFOPE – Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação
CE – Conselho da Europa
CEB – Câmara de Educação Básica
CEE – Comunidade Econômica Européia
CEFAM – Centros de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério
CES – Câmara de Ensino Superior
CFE – Conselho Federal de Educação
CNE – Conselho Nacional de Educação
DCN – Diretrizes Curriculares Nacionais
EaD – Ensino à Distância
EB – Educação Básica
EFA – Education for All (Educação para Todos)
EJA – Educação de Jovens e Adultos
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério
INAFOP – Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
LBSE – Lei de Bases do Sistema Educativo
LDB – Lei de Diretrizes e Bases
LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC – Ministério da Educação
MERCOSUL – Mercado Comum da América do Sul
OCDE – Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico
PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais
PDE – Plano Decenal de Educação para Todos
PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alunos
vi
PNE – Plano Nacional de Educação
PP – Prática Pedagógica
RFP – Referenciais para Formação de Professores
SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica
SEF – Secretaria de Educação Fundamental
TIC – Tecnologias da Informação e da Comunicação
UE – União Européia
vii
RESUMO A presente pesquisa teve por objetivo investigar os aspectos referentes à formação inicial do professor para os anos iniciais da educação básica no Brasil e em Portugal, tentando detectar os aspectos comuns e/ou divergentes e as possíveis semelhanças conceituais e práticas que possam existir no que diz respeito às políticas educativas dos países em tela. Sendo a questão da formação docente apontada como uma das principais causas dos problemas que os sistemas educacionais vêm apresentando na atualidade e por ser a formação docente o caminho profissional por nós transcorrido, foi grande a motivação para levar a cabo esta pesquisa. Em quase todo o mundo, os sistemas educativos passaram ou estão passando por reformas nas últimas décadas, para que possam se ajustar às exigências de um mundo globalizado. A implantação das reformas em Portugal (LBSE) e no Brasil (LDB 9394/96) trouxe em seu bojo mudanças significativas no que se refere à formação do professor dos anos iniciais da educação básica. Assim sendo, para poder explicitar uma parte destas mudanças em duas realidades diferentes, realizamos uma investigação de cunho comparativo, com base na análise bibliográfica, documental e de conteúdo, através do levantamento histórico, legal e contextual da formação inicial do professor, conforme a delimitação proposta para a investigação. Para melhor explicitar a realidade da formação, utilizamos, além de material teórico, de referencial empírico. O material recolhido e analisado permitiu traçar a realidade da formação inicial nos dois países, por meio da explicitação de algumas das variáveis preponderantes nesta formação e alguns dos pontos de encontro e de desencontro nas respectivas políticas educativas referentes ao tema. Vislumbramos semelhanças nos pressupostos das reformas, o que indica que as mesmas fazem parte de uma política social global, com influências nas políticas sociais e, em especial, nas políticas educativas de ambos os países. Um ponto de desencontro percebido diz respeito aos textos das leis em estudo e às conseqüências que a clareza ou a falta dela num texto legal traz à efetivação das políticas dele decorrentes. A despeito da semelhança existente em relação ao nível e ao lócus de formação inicial dos professores dos anos iniciais, assim como nas discussões acadêmicas em relação a este tema, encontramos diferenças no que diz respeito ao avanço destas discussões e às práticas dessa formação. Enquanto no Brasil ainda se discute a formação inicial, em Portugal a preocupação é com a profissionalização. Sabemos, porém, que há ainda muito a avançar em relação a este tema, tendo em vista o papel nuclear do professor nas sociedades que buscam uma educação de efetiva qualidade e que atenda às especificidades de cada realidade nacional. Palavras-chave: formação docente – políticas educativas – análise comparativa
viii
ABSTRACT The present research has the purpose of investigating the aspects related to the formation of the teacher who works with basic education in the initial years in Brazil and in Portugal, trying to detect the common and or divergent aspects and their possible concept similarities and practices that might exist in regard to the educational policies of the proposed countries. Since the topic in question is the formation of the teaching body, appointed as one of the main causes of the problems that the educational systems have presented nowadays, and since the professional path trot by us, was the great motivation to bring this research to completion. In nearly all the world, the educational systems have passed or are passing through reforms in the last decades, so that there might be an adjustment to the demands of the globalized world. The implementations of the reforms in Portugal (LBSE) and in Brazil (LDB/96) has brought in its essence significant changes as to what refers to the formation of the teacher of the basic education of the initial years. Therefore, to be able to explicit a part of these changes in two different realities, a comparative investigation was done, with basis on the bibliographical and documental analysis and on content, through the historical, legal and contextual survey of the initial formation of the teacher, according to the delimitation proposed for the investigation. To better explicit the reality of the formation, we use, beyond the theoretical material of the empirical reference. The material gathered and analyzed has permitted us to trace the reality of the initial formation of both the countries, through the explicit of a few preponderant variables in this formation and some key points of meeting and not meeting in the respective educational policies that refer to the theme. We can catch a glimpse of the presupposed reforms, which indicates that they are part of a social global policy, which influences the social policies and in special educational policies of the countries. A clash was noticed in relation to the law text in study and to the consequences that the clarity or lack there of in a legal text bring to the effectiveness of the policies that have been elapsed. As to the similarities existent in relation to the level and to the loculus’s of initial formation of the teachers in the beginning years, as well and in the academic discussions related to this theme, we have found differences in regard to the advance of these discussions and the practice of the formation. Where as in Brazil there is still a discussion as to the formation, in Portugal the worry is with the creation of the professional statute. We know however that much is needed to advance in relation to this theme, having in mind the nuclear role of the teacher in societies that seek an education of effective quality. Keyboards: formation of the teaching–educational policies–comparative investigation
ix
INTRODUÇÃO
Figura 1 - mapa das grandes navegações
Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram. Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa
2
A questão da formação do professor vem sendo apontada como um dos
principais problemas que os sistemas educacionais têm apresentado na atualidade
(NÓVOA, 1995). Nesse sentido, a história educacional recente do Brasil e de Portugal
apresenta pontos de aproximação, com grandes períodos de governos ditatoriais
seguidos de uma fase de difícil adaptação às aberturas políticas, apresentando reformas
no campo político, social, econômico e educacional.
As reformas educacionais levadas a cabo nos referidos países vieram com o
intuito de tentar colocá-los no caminho da contemporaneidade, tentando adaptar seus
sistemas educativos à nova ordem econômica mundial, progressivamente
hegemonizada por políticas neoliberais (LIMA, 2000). A última reforma da educação
em Portugal se dá a partir da implantação da Lei de Bases do Sistema Educativo
(LBSE)1 - Lei nº 46/86 de 14/10/86 e, no Brasil, com a implantação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)2 - Lei nº 9394/96 de 22/12/96.
Estas legislações trouxeram significativas mudanças na educação, e, em
especial, no que diz respeito à formação do professor para a educação básica3. Apesar
de em Portugal a reforma estar mais consolidada, uma vez que já se passaram quase
dezoito anos desde a sua implantação, sabe-se que ainda há um longo caminho a ser
trilhado. Muitos ajustes complementares foram e estão sendo feitos à legislação nestes
anos. No Brasil, mesmo decorridos quase oito anos da edição da LDB/96, muitas
regulamentações ainda precisam ser feitas, com vistas a consolidar o que foi proposto
por esta legislação, de modo especial para a educação superior, no tocante à formação
do professor. O Ministério da Educação (MEC) e o Conselho Nacional de Educação
(CNE), através de suas respectivas Câmaras4, vêm encaminhando estas
regulamentações, as quais são adotadas pelas Instituições de Ensino Superior (IES) e
Universidades na medida em que são aprovadas, nem sempre com a devida clareza.
1 Neste trabalho, sempre que nos referirmos à Lei nº 46/86, utilizaremos a designação LBSE. 2 Pelo motivo de que existem diversas designações à Lei nº 9394/96, neste trabalho utilizaremos somente a sigla LDB/96. 3 A educação básica no Brasil, pela LDB/96, é formada pela educação infantil (0 a 6 anos), ensino fundamental (1ª a 8ª séries) e ensino médio (duração mínima de 3 anos). Em Portugal, conforme o estabelecido em seu art. 6º, a educação básica é considerada a escolaridade que vai do 1º ao 9º ano, obrigatória dos 6 aos 15 anos. 4 O CNE é composto de duas Câmaras: a Câmara da Educação Básica (CEB) e a Câmara de Ensino Superior (CES).
3
Neste percurso têm ocorrido muitas idas e vindas na questão da formação do professor
para a Educação Básica, o que leva a crer que nem o organismo macro-regulador da
mesma (o MEC) tem clara a direção a seguir, a partir do que se propõe nas legislações
emitidas sobre o tema em tela.
Isto demonstra ser urgente e necessário um estudo aprofundado em relação às
mudanças ocorridas em função das últimas reformas educativas. Na tentativa de uma
clarificação para a questão da formação do professor nos dois países, desenvolveu-se,
por meio desta pesquisa, um estudo comparado sobre a última reforma ocorrida nos
dois países, e sobre o caminho já percorrido até aqui na consolidação das mudanças
propostas, na tentativa de encontrar pontos em comum e pontos de divergência. O
objeto de pesquisa foi, portanto, a questão da formação do professor da Educação
Básica no Brasil e em Portugal, através de uma análise contextual, histórica e legal
sobre suas últimas reformas educativas e no que as mesmas têm afetado o
desenvolvimento da educação.
A busca por pesquisar a formação do professor foi motivada pela nossa própria
formação e pela experiência profissional no magistério superior, através das quais a
preocupação com a questão aflorou. Nossa formação deu-se no curso de Magistério
em nível médio, que, à época, era a formação exigida para o trabalho com Educação
Infantil e com as séries iniciais do Ensino Fundamental (1ª a 4ª séries do então ensino
primário). No curso superior, nos licenciamos em Pedagogia com especialização em
Orientação Educacional. Devido à demanda por professores no período, de modo
especial nos municípios interioranos, começamos a trabalhar em sala de aula (2ª série
do Ensino Fundamental), já no início do 2º ano do curso de Magistério. O trabalho
com o ensino de 1ª a 4ª séries deu-se por 03 anos em sala de aula, passando então a
exercer funções pedagógicas5 pelo fato de estar cursando na graduação um curso
compatível (Pedagogia). Em seguida atuamos na Supervisão das escolas rurais do
município de Campo Largo, no Estado do Paraná, Brasil, função exercida durante dois
anos. Assumimos, em seguida, a direção de uma escola de 1ª a 4ª séries da zona rural
5 De acordo com o art. 64 da LDB/96 (ainda não regulamentado), o exercício das funções pedagógicas de administração, supervisão e orientação educacional, exige como formação a graduação no curso de Pedagogia, ou a pós-graduação em nível de especialização para essas funções.
4
do município. Depois de um período de afastamento, o retorno ao exercício do
magistério foi como professora das disciplinas pedagógicas do curso de Magistério
(nível médio) no Colégio Estadual Sagrada Família, no mesmo município. Este
trabalho foi exercido durante cinco anos, de 1988 a 1992, período em que também
atuávamos como Orientadora Educacional no Colégio Estadual Macedo Soares, do
mesmo município. Depois de curta atuação como coordenadora pedagógica em uma
escola privada, assumimos a direção da escola de 1ª a 8ª séries do Ensino
Fundamental, no Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC) de
Campo Largo, durante 04 anos (1997 a 2000). Atualmente, trabalhamos como docente
no Ensino Superior no Curso Normal Superior, e também na coordenação pedagógica
de cursos de pós-graduação lato-sensu, em nível de Especialização, na área da
Educação, em diversos municípios dos Estados do Paraná, Santa Catarina, São Paulo e
Mato Grosso do Sul, junto a uma IES privada situada em Curitiba, capital do Estado
do Paraná.
Durante nosso percurso profissional no Brasil, nos deparamos com questões
ligadas tanto à formação quanto à prática do professor, constatando as deficiências
existentes em ambos os aspectos. Tal constatação sempre nos acompanhou e, junto a
ela, surgia a angústia e o desejo por um aprofundamento maior sobre a problemática,
para buscar alternativas que pudessem levar a uma melhor atuação sobre a mesma. Ao
iniciarmos o Programa de Mestrado na Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias (ULHT), vislumbramos a possibilidade de aprofundar estudos e elucidar
as possíveis causas dessas deficiências, despertando-nos a curiosidade em saber se em
outras realidades (no caso, em Portugal) o quadro seria semelhante. Isto nos motivou a
propor o desenvolvimento de uma investigação em torno da temática da formação do
professor, comparando a realidade da formação no Brasil e em Portugal, por este país
apresentar-se com algumas semelhanças organizacionais e políticas, e ao qual nos
vinculamos como aluna de um programa de Pós-graduação stricto sensu.
Vale ressaltar, porém, que tanto no Brasil quanto em Portugal, a formação
inicial do professor para a Educação Básica se dá de forma diferenciada para cada um
dos níveis que a compõe. Sendo assim, delimitamos a área da pesquisa à questão da
5
formação inicial do professor dos primeiros anos da escolaridade (séries iniciais do
ensino fundamental – Brasil e 1º ciclo da educação básica - Portugal)6, apontando
como problema de investigação tal questão dentro do contexto das últimas reformas
educativas nos países em tela, tentando detectar a existência de pontos em comum e/ou
divergentes e as possíveis deficiências ou lacunas existentes no processo, buscando
uma análise em profundidade, como contributo recíproco para esta questão. Assim, o
problema que move a investigação é referente à questão da formação inicial do
professor dos anos iniciais da educação básica no Brasil e em Portugal, visando
detectar pontos de aproximação ou de divergência, a partir da análise documental e de
levantamentos empíricos junto a experts de ambos os países no tocante ao tema.
A partir da delimitação do problema, elaborou-se a pergunta central deste
estudo:
- Existem pontos comuns referentes à formação inicial do professor dos anos
iniciais da Educação Básica no Brasil e em Portugal, cuja análise possa servir como
um contributo recíproco aos seus sistemas educativos?
Numa perspectiva de comparação e análise, como objetivo geral buscou-se
investigar os aspectos referentes à formação inicial do professor para os anos iniciais
da educação básica no Brasil e em Portugal, a partir da implantação da LDB/96 e da
LBSE/86, respectivamente, analisando se estes aspectos podem trazer contribuições
recíprocas para os processos educacionais dos dois países em tela. Assim,
contemplaram-se os seguintes objetivos específicos:
- Analisar as reformas educativas implementadas no Brasil e em Portugal, a partir
da promulgação da LDB/96 e da LBSE, respectivamente, no tocante à formação
inicial do professor dos anos iniciais da educação básica.
- Identificar os pressupostos das reformas da formação inicial do professor dos
anos iniciais da educação básica, efetivadas no Brasil e em Portugal a partir da
implantação das suas respectivas leis.
6 Pela dificuldade em utilizar em todo o trabalho os dois termos (séries iniciais do ensino fundamental no Brasil e 1º ciclo da educação básica em Portugal), utilizaremos as expressões anos iniciais ou primeiros anos da educação básica.
6
- Identificar os aspectos comuns e/ou divergentes das reformas educativas
brasileira e portuguesa, referentes à formação inicial do professor dos anos
iniciais da educação básica.
- Indicar possíveis contribuições entre ambos os países na questão da formação
inicial do professor dos anos iniciais da educação básica, para a análise e
melhoria dos serviços educacionais nesse nível de ensino.
Sabendo-se da dificuldade de procederem-se a análises comparativas entre uma
realidade, que é a vivenciada no cotidiano, e outra que se conhece pelas diferentes
leituras sobre sua realidade mais distante, apresenta-se este como um primeiro fator de
limitação deste estudo. Além deste, outro fator que pode ser considerado uma
limitação, é a diferença existente na formação de professores para os diversos níveis da
educação básica, assim como a amplitude do tema, o que faz com que se necessite
limitar o estudo à formação de professores para os anos iniciais da educação básica e
somente a alguns aspectos, o que talvez não permita a contemplação do problema em
toda a sua complexidade.
Entende-se que hoje há uma busca incessante para se compreender qual é a
tarefa do professor, levando-se em conta a trajetória histórica da sua formação e as
exigências postas pela sociedade atual. Existem inúmeros fatores determinantes na
profissão do professor, entre os quais se pode destacar: o estabelecimento das
finalidades da educação, o papel que ela ocupa nas políticas governamentais, as
posturas das categorias docentes, as concepções dos sujeitos que exercem influência na
elaboração das políticas e as práticas efetivas de formação de professores, entre outros.
Além destes fatores determinantes, as profundas transformações pelas quais o
mundo passou nas últimas décadas, levaram a um repensar sobre a escola e suas
finalidades. Em quase todo o mundo, os sistemas educativos passaram ou estão
passando por reformas para que estes se ajustem às novas exigências de um mundo
globalizado. Pode-se perceber isto na afirmação de Oliveira (apud CATANI &
OLIVEIRA, 2000, p. 77): “... As questões em debate nas reformas educacionais
empreendidas ao longo dos anos 90 são muito semelhantes. A agenda está
7
mundializada. Procura-se incorporar, em nome da eficiência, os valores e
procedimentos do mercado para o interior do sistema educativo”.
Pode-se corroborar a afirmativa de Oliveira, com base em Saviani (2000, p. 3)
que, em sua análise sobre a proposta do Plano Nacional de Educação (PNE),
formulada pelo Governo Brasileiro através do Ministério da Educação (MEC), afirma
que são:
... claros os efeitos da determinação estrutural própria da forma social capitalista sobre a política educacional como modalidade da política social que é tratada separadamente da política econômica e a esta subordinada. Com isso a política social acaba sendo considerada invariável e reiteradamente como um paliativo aos efeitos anti-sociais da economia, padecendo das mesmas limitações e carências que aqueles efeitos provocam na sociedade como um todo.
Os documentos sobre política educativa apresentam padrões de significado e
estruturas simbólicas delimitadas pelo contexto, ou seja, as políticas não têm um
significado autêntico e autorizado, mas são textos ideológicos construídos dentro de
um contexto histórico e político particular.
Em uma análise sobre o papel da escola numa época de grandes mudanças
mundiais como tem sido a contemporânea e sobre a relação ente a reforma educativa e
a reforma social, Enguita (apud VEIGA, 1998, p. 18) afirma que “a escola deu passos
de gigante em sua universalização, falando em termos quantitativos, chegando a
incluir todos os grupos sociais, sem exceção, ainda que não totalmente sem distinção.
Sem dúvida, essa universalização não aconteceu também num sentido qualitativo”.
Em Portugal, a última reforma educativa iniciada em 1986 com a aprovação da
LBSE, demandou muitas discussões em torno da mesma, discussões estas que
ocorreram ao longo da década compreendida entre 1986 e 1995, ou seja, no momento
em que Portugal aderiu à atual União Européia (UE). Esta reforma, no entender de
Lima (apud CATANI & OLIVEIRA, 2000, p. 41):
Embora nunca formalmente dada por concluída (...) conheceu uma primeira fase de aprovação das suas bases legislativas e de apresentação ao Governo de propostas reformadoras (1986-1988), uma segunda fase de acção governativa e de produção normativa e regulamentadora bastante activa até 1992, e uma última fase de progressivo esbatimento do ciclo reformista, o
8
qual viria a ser definitivamente encerrado com a mudança de governo, após a vitória eleitoral do Partido Socialista, em finais de 1995.
Lima (apud CATANI & OLIVEIRA, 2000, p. 42) afirma, ainda, que o
programa do governo socialista português “... deixava implícitas diversas críticas ao
processo reformador da educação e, sobretudo, evidenciava uma orientação política
alternativa quanto ao próprio processo de mudança do sistema educativo e das
escolas”. Entende o autor ter havido um esgotamento da idéia de reforma tanto pela
sua associação a um ciclo político anterior, quanto pelas críticas e pela rejeição de
certas mudanças, ou pelas mudanças alternativas apresentadas por uma parte da
oposição, como também pela sucessiva desvitalização e pela perda de força
motivadora e legitimadora de uma política educativa concebida e até executada pela
categoria docente, globalizadora, integradora, conhecida e ensaiada durante dez anos.
As reformas educativas no Brasil, que se dão a partir da implantação da
LDB/96, no entender de Oliveira (apud CATANI & OLIVEIRA, 2000, p. 77):
... buscaram redimensionar a polaridade centralização/ descentralização, vale dizer, ao mesmo tempo em que se descentraliza a gestão e o financiamento, centraliza-se o processo de avaliação e controle do sistema. Este redimensionamento se dá em um contexto de acentuada expansão das oportunidades de escolarização da população em todos os níveis.
Não se pode negar que as reformas educativas levadas a cabo para adequar seus
sistemas educativos a uma nova realidade, no Brasil e em Portugal, trouxeram várias
mudanças em seus sistemas educativos. Entre estas mudanças, as que se referem à
profissionalização do magistério foram e estão sendo significativas, sendo este um dos
temas mais discutidos e estudados dado o seu grau de importância e repercussão. No
entender de Rodrigues e Esteves (1993), a busca pela qualidade e pela eficiência na
formação docente é um imperativo de todos os sistemas educativos há algumas
décadas, por ser considerado um dos seus pontos críticos. Os efeitos produzidos pelo
trabalho do professor, em longo prazo, no futuro da sociedade, justificam uma atenção
cuidadosa em relação à sua formação. Reforça-se essa premissa com a afirmação de
Nóvoa (1991, p. 24), quando diz que “... a formação de professores é, provavelmente,
9
a área mais sensível das mudanças em curso no setor educativo: aqui não se formam
apenas profissionais; aqui produz-se uma profissão”.
A despeito da importância da formação docente, as referidas reformas causaram
e ainda causam muita polêmica. A título de ilustração, apresentaremos uma das
polêmicas de cada reforma nos respectivos países. No Brasil, Veiga (1998) considera
que a última reforma educacional brasileira apresenta algumas mudanças que podem
ser consideradas avanços, como é o caso da formação contínua e outras que podem ser
consideradas equívocos, como é o caso da criação dos Institutos Superiores de
Educação (ISEs)7, fato que ainda causa muita polêmica e sobre o qual discorreremos
no Capitulo II deste estudo. Em Portugal, uma das polêmicas da última reforma refere-
se à criação da Agência Nacional de Acreditação8, instituição criada com a finalidade
de cuidar da qualidade da formação do professor. Ao falar da Agência Nacional de
Acreditação, Afonso (apud CATANI & OLIVEIRA, 2000, p. 34) afirma que “...
parece estar a encaminhar-se no sentido de regular um campo profissional à custa da
interferência na autonomia universitária e à custa da desvalorização das componentes
das ciências da educação”.
Em sua análise sobre a criação dos ISEs, Silva (1999, p. 01) assinala que:
... de forma extremamente breve ou minimalista (...) a LDB 9394/96 simplesmente criou um novo estabelecimento de ensino no âmbito do aparelho escolar brasileiro e, mais precisamente, uma nova agência formadora de professores, que funcionará paralelamente àquelas que já existem, ou seja, a Universidade e, vale lembrar, a ainda popularmente chamada Escola Normal.
Referindo-se aos ISEs, Veiga (apud VEIGA, 1998, p. 87) alerta que “... a
legislação, ao criar uma nova instância de formação de profissionais da educação,
estabelece uma estrutura paralela, fora da ambiência universitária, mas no plano da
educação superior”. Esta estrutura paralela, fora da universidade, pode levar a uma
7 Os Institutos Superiores de Educação constituiram-se, a partir da LDB/96, nos órgãos responsáveis pela formação de profissionais para a educação básica, pelos programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior e pelos programas de educação continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis, e podem atuar dentro das Universidades ou fora delas. (Arts. 62 e 63) 8 A Agência Nacional de Acreditação, criada a partir da última reforma educativa, é o órgão do Ministério da Educação responsável pela autorização e reconhecimento da formação inicial e da formação contínua ofertada pelos centros de formação das associações de escolas e pelos centros de formação de associações de professores.
10
formação deficitária do professor, sendo deixada de lado a formação orientada para a
pesquisa, trazendo algumas conseqüências como as apontadas por Santos (apud
VEIGA, 1998, p. 135), de que “o investimento no conhecimento prático, em
detrimento do saber teórico, certamente levará à formação de um profissional capaz de
seguir diretrizes curriculares, desenvolver propostas que lhe são apresentadas, mas
com menos possibilidade de criar projetos, tomar decisões e criticar políticas
educacionais”.
No entender de Silva (1999), a formação universitária do professor o capacitará
para uma nova relação com o conhecimento acumulado, fazendo com que assuma a
postura de construtor e desconstrutor de saberes, pela sua relação com os alunos e com
os outros profissionais da escola, sendo tomado como produtor de conhecimento
pedagógico, como pesquisador, ou, enfim, como intelectual, o que certamente
demandará maior qualificação em sua ação docente na escola.
A questão da formação e da profissionalização do professor é fundamental e
necessita ser colocada em lugar de destaque, podendo-se perceber na afirmação de
Nóvoa (1995, p. 23-24) que “a formação de professores pode desempenhar um papel
importante na configuração de uma ´nova´ profissionalidade docente, estimulando a
emergência de uma cultura profissional no seio do professorado e de uma cultura
organizacional no seio das escolas”.
Sendo assim, tem-se a nítida sensação de que as últimas reformas educativas no
Brasil e em Portugal trouxeram mudanças que carecem, ainda, de muita explicitação, e
também de muita luta, para que as aberturas possibilitadas possam concretizar os
sonhos pelos quais muitos profissionais lutam até hoje, no que se refere à sua
formação e à sua profissionalização.
Nesse sentido, para uma reflexão mais aprofundada acerca do tema para a
investigação proposta, desenvolveu-se um estudo de cunho comparativo no que se
refere à formação inicial dos professores dos primeiros anos da Educação Básica no
Brasil e em Portugal, a partir das Leis nº 9.394/96 e 46/86, respectivamente.
O estudo comparativo deu-se sob o ponto de vista descritivo, e seguiu as
seguintes fases, apontadas por Ferreira (2001):
11
1. Fase pré-descritiva:
- Identificação e justaposição do problema
- Emissão da(s) primeira(s) hipótese(s)
- Delimitação da investigação:
- Delimitação do objeto
- Delimitação dos conceitos
- Delimitação da área de estudo
- Delimitação do método:
- Métodos e técnicas auxiliares
2. Fase descritiva:
- Recolha e apresentação dos dados
- Interpretação dos dados e conclusões analíticas
3. Fase comparativa:
- Formulação das hipóteses comparativas
- Justaposição de dados e de conclusões analíticas
- Comparação
Na fase pré-descritiva procedeu-se um levantamento histórico, legal e
contextual sobre a realidade educacional atual no Brasil e em Portugal, no que diz
respeito à formação inicial do professor dos anos iniciais da educação básica,
conforme a delimitação proposta para a investigação, no que concerne ao problema e
aos objetivos propostos, assim como à metodologia definida para o processo
investigativo.
Na fase descritiva procedeu-se à recolha, apresentação e interpretação dos
aspectos legais, históricos e contextuais sobre a formação inicial do professor dos anos
iniciais da educação básica apontada na última reforma educativa dos dois países em
tela. Para isso, utilizaram-se documentos oficiais e não oficiais, estudos de
pesquisadores e especialistas sobre o assunto e o auxílio de dados fornecidos por
colaboradores entrevistados por meio de questionários enviados via e-mail a
profissionais da educação dos dois países (professores universitários, estudiosos do
tema da formação e ocupantes de cargos administrativos superiores em órgãos afins
12
com a educação). Ressalta-se aqui a dificuldade encontrada no retorno dos
questionários respondidos. Muitos foram os contatos realizados, porém por motivos
que não foi possível detectar, poucas pessoas responderam, o que levou a uma amostra
de certa forma reduzida, mas não por isso menos significativa à pesquisa. Além disso,
a pesquisadora participou de inúmeros eventos científicos sobre o tema, como
Congressos e Seminários, e realizou visita a uma escola de formação e uma escola de
educação básica em Portugal, buscando reforçar os dados do referencial empírico,
visando o estudo comparativo.
E, na terceira e última fase, desenvolveu-se a comparação propriamente dita,
com a formulação das hipóteses comparativas e justaposição dos dados e das
conclusões analíticas sobre a questão da formação inicial do professor dos anos iniciais
da educação básica em Portugal e no Brasil, a partir da implantação da LBSE e da
LDB/96, respectivamente.
Para proceder às três fases do trabalho detalhadas acima, os instrumentos de
coleta utilizados foram o levantamento e a análise documental sobre a legislação
referente à última reforma educativa dos países em tela, nos aspectos que se referem à
formação inicial do professor para as séries iniciais da educação básica. Referindo-se
ao levantamento documental, Laville e Dionne (1999, p. 168) afirmam que
“documentos não são arquivos ultrapassados, mas veículos vivos de informação”.
Desse modo, ao mesmo tempo em que se procedeu a análise da legislação atual
dos dois países, ocorreu a sua interpretação, sua análise e o paralelo comparativo entre
suas similaridades, aproximações e diferenças. Desta forma, pode-se afirmar que o
tratamento dos dados foi qualitativo, o que, na visão de Triviños (1987, p. 170) “não
estabelece separações marcadas entre a coleta de informações e a interpretação das
mesmas”. A fase de levantamento de dados foi complementada com a análise dos
dados através de uma aproximação da técnica de Análise de Conteúdo (BARDIN,
1977) e da Análise Documental, seguindo orientação de Ferreira (2001, p. 28) quando
afirma que “a necessidade de se recorrer a fontes de natureza discursiva e de proceder
à sua análise de forma mais objetiva tem levado a que a análise de conteúdo tenha sido
utilizada cada vez mais freqüentemente em Educação Comparada”.
13
Nesse sentido, as três fases nas quais se desenvolveu a pesquisa aconteceram da
seguinte forma:
- na 1ª fase foi procedido ao levantamento documental e à revisão de literatura
para a contextualização do campo de investigação nos dois países;
- na 2ª fase procedeu-se ao levantamento em profundidade e à análise dos dados
documentais e das fontes empíricas referentes ao objeto da pesquisa, bem como
ao estudo comparado propriamente dito;
- e, na 3ª e última fase, foram elaboradas as conclusões e considerações finais
sobre a pesquisa e as indicações para novos e mais aprofundados estudos sobre
a problemática em questão.
Para a apresentação do relatório dissertativo, estruturamo-lo da seguinte forma:
- na Introdução, apresentam-se as motivações para a pesquisa, contextualizando
o problema, determinando os objetivos, a pertinência e as limitações do estudo, bem
como a estrutura da dissertação;
- no Capítulo I, são tecidas as considerações históricas, metodológicas e práticas
da Educação Comparada, situando a mesma no contexto histórico atual e falando da
importância desta metodologia nos estudos sobre a formação e o trabalho do professor,
nas suas múltiplas dimensões;
- no Capítulo II, apresenta-se a questão da formação inicial do professor dos
anos iniciais da educação básica no Brasil, apresentando o sistema de ensino brasileiro,
o lugar das séries iniciais nesta realidade, como se dá a formação do professor, as
habilidades e competências a serem desenvolvidas durante sua formação e a questão
da prática pedagógica nos cursos de formação inicial, retratando a realidade brasileira;
- no Capítulo III, apresentam-se as questões referentes à formação inicial do
professor dos anos iniciais da educação básica em Portugal, discorrendo sobre o
sistema de ensino português, como se dá a formação do professor, os perfis de
desempenho atribuídos à profissão, a prática profissional nos cursos de formação
inicial, enfim, é traçado um panorama da realidade em Portugal;
14
- no Capítulo IV, procede-se a uma análise, que pode ser considerada como uma
aproximação da análise de conteúdo, sobre as falas apresentadas nos questionários e
mais alguns dados textuais sobre as reformas educativas do Brasil e de Portugal, tendo
por base o levantamento dos dados realizado, apresentando os pontos de encontro e de
desencontro entre as mesmas;
- no Capítulo V, apresentam-se as reflexões finais, tendo como fundamento as
várias interpretações realizadas a partir dos dados recolhidos, as respostas encontradas
e as dúvidas que foram surgindo ao longo da investigação, e que podem traduzir-se em
limitações, ou aspectos fulcrais que permitem levantar continuidade de pesquisas sobre
o tema em tela.
As fontes e referências utilizadas para pesquisar teórica e historicamente a
formação de professores, enquanto parte constitutiva desta dissertação, correspondem
a todo um conjunto de livros, artigos científicos, pareceres, legislações, documentos
oficiais e não oficiais e outros registros necessários ao processo investigativo.
Em apêndice a este relatório monográfico, encontram-se os guiões dos
questionários enviados via e-mail aos legisladores e estudiosos entrevistados nos dois
países.
Nos anexos, encontram-se os teores das respostas dadas aos questionários
realizados com os experts dos dois países, bem como sua identificação.
CAPÍTULO I
A EDUCAÇÃO COMPARADA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Figura 2 - imagens da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
“... mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um
‘não-eu’ se reconhece como ‘si própria’. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que
sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe”. Paulo Freire (1996, p. 85)
16
1.1 A educação e o método comparativo
Para uma reflexão mais aprofundada acerca da investigação proposta, a
abordagem metodológica utilizada foi a do estudo comparado. Fazer analogias e
comparar são ações inerentes à consciência e à vida humana, e a busca por conhecer as
diferentes soluções que outros povos encontraram para seus problemas sempre foi um
meio de desenvolvimento e de enriquecimento. Com todas as transformações ocorridas
no mundo nas últimas décadas, as questões do outro e das relações interculturais
passam a ter um lugar central nas ciências sociais, nos projetos de solidariedade e de
cooperação. Podemos dizer, então, que a comparação é o processo de perceber
diferenças e semelhanças, para perceber o outro e a partir dele, se reconhecer
(FRANCO, 2000). Nesse sentido, a metodologia comparativa vem ganhando corpo e
importância, num mundo que se vê cada dia mais envolvido em um processo
irreversível de globalização econômica e cultural.
Entende-se, como Nóvoa e Popkewitz (1992), que a utilização dos estudos
comparados em uma pesquisa científica pode se tornar um risco se não houver
preocupação e cuidado para que os mesmos não se tornem meramente descritivos,
havendo necessidade de uma elaboração conceitual que dê sentido à inter-relação e à
comparação de diferentes realidades. Para podermos dar corpo a estes conceitos, as
bases teóricas vêm de Ferreira (2001), considerando que a Educação Comparada vem
apresentando, nas últimas décadas, maior reconhecimento tanto por parte de
importantes organizações internacionais, quanto da comunidade acadêmica das mais
prestigiadas universidades. Apesar disso, há ainda muita divergência em relação à sua
definição e ao seu alcance, pelo fato de que a mesma não apresenta uniformidade nas
técnicas metodológicas. Isto, porém, ao invés de apresentar-se como fragilidade, pode
ser considerada como uma situação adequada a um “momento histórico em que se
admitiu a incapacidade da ciência em explicar a complexidade do mundo”
(FERREIRA, 1999, p.123).
Em uma análise de suas várias definições, afirma o autor que o aspecto mais
constante e aparentemente mais consensual diz respeito à aceitação de um método
17
próprio e que, para além de uma metodologia própria, deverá contar com um objeto
específico de estudo. Parece-nos que a definição de Daele (1993) seria a que mais
completamente traduz o que se pode conceituar como Educação Comparada:
Educação Comparada é: a) a componente pluridisciplinar das Ciências da Educação; b) que estuda os fenômenos e os fatos educativos; c) nas suas relações com o contexto social, político, econômico, cultural, etc.; d) comparando suas semelhanças e suas diferenças em duas ou mais regiões, países, continentes, ou a nível mundial; e) a fim de melhor compreender o caráter único de cada fenômeno no seu próprio sistema educativo e de encontrar generalizações válidas ou desejáveis; f) com a finalidade de melhorar a educação. (DAELE apud FERREIRA, 2001, p. 8)
Ao considerar-se como uma das finalidades fundamentais da Educação
Comparada, a de contribuir para um melhor entendimento dos sistemas escolares,
deve-se cuidar para não cair no risco apontado por Garrido (1986, p. 105 apud
FERREIRA, 2001, p. 12), de se oferecer modelos para serem imitados ou recusados,
uma vez que esta não é a sua finalidade, e sim, a de compreender os povos e aprender
com suas experiências educacionais e culturais. A comparação leva a uma
identificação de semelhanças e diferenças e à sua interpretação a partir dos contextos a
que pertencem, o que leva a uma melhor compreensão do fenômeno educativo. A
importância da contribuição da Educação Comparada hoje, para que a análise do
fenômeno educativo possa ser feita a partir de um ponto de vista global, se sustenta em
Teodoro (1999, p. 117), considerando que:
Num tempo histórico relativamente curto, a educação, de um obscuro domínio da política
doméstica, tem vindo a tornar-se, progressivamente, um tema central nos debates políticos, a nível nacional e internacional. Esta passagem da educação do domínio doméstico para o domínio público, com a centralidade que lhe é atribuída presentemente nos processos de desenvolvimento humano, coloca problemas complexos ao estudo das políticas educativas. (...) Trabalhos recentes (...) estão a apontar uma outra perspectiva para este campo da análise das políticas educativas, que se situam no que se pode designar de educação comparada e que pretendem abarcar no seu objeto de estudo tanto o local como o global.
Desta forma, por se ter como universo desta pesquisa as últimas reformas
educativas ocorridas em Portugal (1986) e no Brasil (1996), especificamente no que
concerne sobre a formação inicial do professor para os primeiros anos da Educação
Básica, entendendo-se que a análise comparativa dos seus aspectos legais, históricos e
18
contextuais seria a abordagem metodológica mais adequada para que se pudesse
atingir os objetivos propostos.
Assim, para que se pudesse ter maior clareza sobre como utilizar a metodologia
do estudo comparado, procedeu-se a um percurso sobre os aspectos teóricos,
históricos, metodológicos e práticos, com base nos estudos de Ferreira (1999 e 2001) e
de Ferreira e Gugliano (2000). Como no Brasil há dificuldade na disponibilidade
bibliográfica de estudos aprofundados acerca da metodologia do estudo comparado, o
percurso teórico teve as bases, quase que na totalidade em Ferreira, fazendo uso de
suas obras de 1999 e 2001, por entender-se que o autor procede a uma espécie de
“estado da arte” sobre a questão da Educação Comparada.
1.2 Visões e conceitos históricos da Educação Comparada
Ao tentar descrever o breve percurso histórico da Educação Comparada,
Ferreira (1999) aponta que há certa dificuldade, pois se apresentam controvérsias com
relação à periodização da mesma. Definir seus períodos de evolução significa buscar
estabelecer qual o significado da mesma no caminho que percorreu até aqui.
Sintetizam-se aqui as seguintes periodizações apresentadas por Ferreira (1999, p. 123-
155), segundo os vários autores consultados sobre a Educação Comparada:
1) Friedrich Schneider, que divide em dois períodos: o da pedagogia do
estrangeiro, que é caracterizado pelo produto das viagens de estudo ao estrangeiro
realizadas por pedagogos e políticos, que observavam a organização educativa dos
países vizinhos e eventualmente a comparavam com a do próprio país, e o da
pedagogia comparada propriamente dita, que se desenvolve ao longo do século XX e
que busca a explicação dos fatos pedagógicos, ou seja, suas forças determinantes ou
fatores configurativos.
2) George Bereday, estabeleceu três períodos: o primeiro denominou de
empréstimo, que cobre o século XIX, onde se buscava a apresentação de dados
descritivos que deviam fazer a comparação com o objetivo de avaliar as melhores
práticas educativas para as transpor para outros países. O segundo, que denominou de
19
predição, ocupou a primeira metade do século XX, e iniciou com Michael Sadler que
introduziu a idéia de que o sistema educativo não é parte separável da sociedade que
lhe serve de base. Os seus continuadores (Friedrich Schneider, Franz Hilker, Isaac
Kandel, etc) passaram a dar especial atenção aos alicerces da educação. Assim, já se
poderia predizer o provável sucesso de um sistema educativo num país com base em
experiências similares de outros países. No terceiro período, que denominou de
análise, a ênfase é colocada na classificação dos fatos educativos e nos sociais que lhe
estão associados. Assim, havia uma preocupação em desenvolver teorias e métodos e
estabelecer uma clara formulação das etapas, dos processos e dos mecanismos
comparativos para que se fizesse uma análise menos baseada em valores ético-
emocionais.
3) Alexandre Vexliard indica quatro períodos: a etapa estrutural, representada
pela obra Esquisse, de Marc-Antoine Jullien de Paris, publicada em 1817, considerada
o marco inicial da Educação Comparada, onde se encontram os princípios
“arquiteturais” e os princípios metodológicos dos estudos comparados em educação. O
segundo período, denominado dos “inquiridores”, vai aproximadamente de 1830 a
1914, quando os governos mandavam os inquiridores percorrerem a Europa e os
Estados Unidos para estudar os sistemas de ensino em vigor nesses países. O terceiro
período, denominado das sistematizações teóricas, ocorre por volta de 1920-1940, que
é marcado pelos trabalhos de Kandel, Schneider, Hans, entre outros. Este período foi
dominado por preocupações históricas. O quarto período, denominado prospectivo,
ocorre após a segunda guerra mundial e, sobretudo depois de 1955, quando os estudos
comparados em educação passaram a estar voltados para o futuro.
4) Noah e Eckstein apresentam cinco períodos: o primeiro, período dos
viajantes, é caracterizado por trabalhos assistemáticos, motivados pela curiosidade e
marcados por interpretações subjetivas, não havendo planejamento para os relatos, que
se baseavam em fatos que se destacavam pelo pitoresco ou pela diferença em relação
ao que se passava no país do observador. O segundo período, dos inquiridores, durou
boa parte do século XIX, e é aquele no qual os observadores se deslocavam a países
estrangeiros com o fim de recolher dados que pudessem servir para melhorar o sistema
20
educativo do seu país. No terceiro período, de colaboração internacional, o
intercâmbio cultural entre os povos é estimulado e a educação é vista como um
instrumento de harmonia e entendimento entre nações. Os estudos realizados no quarto
período, denominado de “forças e fatores”, e que acontece entre as duas grandes
guerras, realçam a dinâmica das relações entre a educação e a cultura e procuram
explicações para a variedade de fenômenos educativos observados em cada país,
buscando a compreensão das relações escola-sociedade através da análise histórico-
culturalista, que procurava explicar o presente a partir das dinâmicas legadas pelo
passado. No quinto e último período, busca-se a explicação pelas ciências sociais, e os
trabalhos recorrem fundamentalmente aos métodos empírico-quantitativos, na busca
de esclarecer cientificamente as relações entre a educação e a sociedade, num plano
mundial.
5) Ferran Ferrer propôs as seguintes etapas: Jullien de Paris, etapa descritiva,
etapa interpretativa e etapa comparativa. Esta foi a classificação escolhida por Ferreira
(1999) para a sua descrição sobre a evolução da Educação Comparada, da qual
também nos servimos, por entender ser a mais elucidativa nesta descrição:
a) Marc-Antoine Jullien de Paris
Autor de várias obras na área educacional, pode ser considerado o pai da
Educação Comparada, por ter, em sua obra intitulada Esquisse et vues préliminaires
d’un ouvrage sur l’éducation comparée, entrepris d’abord pour les vingt-deux cantons
de la Suisse, et pour quelques parties de l’Allemagne et de l’Italie, et qui doit
comprendre successivement, d’aprés le méme plan, tous les Etats de l’Europe9,
publicada em 1817, introduzido a comparação na abordagem da educação. O objetivo
desta publicação não era o de criar uma ciência nova, mas de lançar um projeto que
consistia em recolher informações para a elaboração de um quadro comparativo dos
principais estabelecimentos de educação existentes nos diversos países europeus, bem
como de seu funcionamento e seus métodos, com o qual se pretendia obter a 9 Esboço e visões exploratórias do trabalho de uma educação comparada, uma primeira abordagem entre os vinte e dois cantões da Suíça, e em seguida para qualquer parte da Alemanha e Itália, e isso se deve muito para compreender sucessivamente os planos de ensino de todos os Estados de Europa (tradução livre da autora).
21
colaboração de pessoas influentes e dos poderes públicos, para que se pudesse
proceder da melhor forma à desejada reforma da educação.
O livro é composto de duas partes: na primeira são apresentados a justificativa
do projeto, seus objetivos e noções gerais; na segunda, é apresentado um instrumento
para que a recolha de dados se desse com maior eficácia, constituído por duas grandes
séries de questões. Ferreira (1999, p. 134) considera que
Julien dava muita importância aos questionários, considerando-os verdadeiros instrumentos de trabalho para a análise educativa. Na sua perspectiva, através deles poder-se-iam obter “colecções de factos e de observações, agrupadas em quadros analíticos que permitiam relacioná-las e compará-las, para delas deduzir princípios certos” e deste modo, transformar-se a educação numa “ciência mais ou menos positiva”. Ou seja, ele o diz expressamente, as investigações sobre educação comparada deviam servir para fornecer meios novos para aperfeiçoar a ciência da educação.
Esta obra de Julien teve uma tradução polonesa em 1822 e uma parcial em
inglês em 1826; porém permaneceu praticamente esquecida até a segunda guerra
mundial, não tendo qualquer influência nos viajantes e comparatistas que estudaram os
sistemas educativos estrangeiros nesse espaço de tempo. Ganhou a projeção que
merecia através de Pedro Rosselló, a partir de 1943, e em 1967 ganhou uma tradução
portuguesa, intitulada Esboço de uma obra sobre a Pedagogia Comparada, de
Joaquim Ferreira Gomes.
Segundo Ferran Ferrer (1990 apud FERREIRA, 1999, p. 135), Julien contribuiu
para a Educação Comparada especialmente por destacar os seguintes aspectos:
- importância que tem o manejar uma metodologia empírica e científica;
- necessidade de elaborar instrumentos que servem tal finalidade;
- importância de fatores externos sobre a educação;
- as vantagens que tem o conhecimento da educação noutros países;
- a contribuição da Educação Comparada no progresso da educação no
mundo.
b) Etapa descritiva
Por ser muito ambicioso para a época, o projeto de Julien não foi
compreendido, tendo sido ignorado pelos governos e por pessoas que rejeitavam a
22
idéia da criação de uma ciência da educação. O objetivo, neste período, era o de
conhecer como se organizava o ensino em países tidos como desenvolvidos, para
importar os aspectos que poderiam trazer melhorias aos próprios sistemas escolares.
Muitas das obras publicadas neste período tratavam-se de meras descrições dos
sistemas educativos estrangeiros. Alguns estudiosos, porém, passaram a ressaltar a
importância de uma análise um pouco mais ampla sobre a realidade dos países
estrangeiros. F. W. Thiersch publicou em 1838 uma obra onde analisa as experiências
educativas na Alemanha, na França, na Holanda e na Bélgica. Aí argumenta sobre a
utilidade das viagens ao estrangeiro, mas especialmente considera que devem ser
tomadas algumas precauções quando se realizam descrições deste gênero. Mathew
Arnold publicou vários trabalhos ente 1861 e 1882, onde revelava um profundo
conhecimento sobre a situação da educação na França e na Alemanha, e, apesar de ter
procurado recolher idéias e experiências úteis para o seu país, advertiu sobre o perigo
da imitação de aspectos isolados, sem se levar em conta os contextos que os tornam
possíveis. Ferreira (1999) endossa esta afirmação: “De facto, um dos contributos mais
importantes consistiu na delimitação de factores determinantes para a configuração dos
sistemas educativos nacionais, entre os quais destacou as tradições históricas, o
carácter e as diferenças nacionais, as condições geográficas, a economia e a
configuração da sociedade” (FERREIRA, 1999, p. 137).
Mesmo neste período já há indícios de que a mera descrição dos sistemas
nacionais de outros países ou de alguns de seus aspectos educativos era insuficiente
para a compreensão do fenômeno da educação. Essa constatação leva Michael Sadler a
“protagonizar uma alteração na forma de abordar a Educação Comparada”, sendo
considerado, segundo Ferreira (1999), como o precursor do período seguinte.
c) Etapa interpretativa
O ano de 1900 é considerado como o início desta etapa, porque os
comparatistas entendem que nele acontecimentos significativos deram a arrancada da
Educação Comparada. Um deles, foi a organização de um curso universitário de
Educação Comparada na Universidade de Columbia, confiado a James E. Russel; o
23
outro foi a publicação de um texto de Michael Sadler no qual ele se pronunciava sobre
a utilidade da Educação Comparada para a compreensão do sistema educativo
nacional. Estes dois acontecimentos levaram à sistematização de conhecimentos e
deram uma espécie de autodeterminação à Educação Comparada.
Michael Sadler é considerado por alguns comparatistas como o iniciador de
uma concepção teórica em Educação Comparada. Com a publicação de um texto
intitulado How far can we learn anything of practical value from the study of
foreignsystems of education?10, apresenta algumas das suas principais idéias sobre a
forma de abordar os estudos comparativos e a sua utilidade. Ele afirma que as coisas
que estão fora da escola, são mais importantes que aquelas que se encontram dentro
dela. Acredita na utilidade da Educação Comparada como forma de contribuir para a
melhoria do sistema educativo do seu próprio país, mas se preocupa com a
compreensão e a melhoria do próprio sistema educativo através dos fatores e das
forças que determinam e condicionam os sistemas educativos em geral. Em síntese, as
contribuições mais importantes que deu à Educação Comparada foram as seguintes:
realçou a importância de se compreender o espírito e a tradição dos sistemas
educativos; salientou a conveniência de se estudar os sistemas educativos estrangeiros
para uma melhor compreensão do seu próprio; perspectivou uma dimensão
sociológica, ao buscar entender os aspectos educativos num contexto social e cultural
mais amplo; advertiu para o inconveniente de a educação Comparada se tornar refém
da estatística, uma vez que esta tende a identificar a educação com a escola (cf.
FERREIRA, 1999).
Neste período os comparatistas se preocuparam não só em descrever a educação
dos outros países, mas também em indagar as causas e tentar interpretá-las, utilizando
uma das seguintes abordagens ou tendências: interpretativo-histórica, interpretativo-
antropológica e interpretativo-filosófica (A. D. MARQUEZ, 1972, apud FERREIRA,
1999, p. 140).
10 Até aonde podemos apreender algo prático dos estudos de sistemas educacionais estrangeiros? (tradução livre da autora).
24
Na abordagem interpretativo-histórica, destacam-se Isaac L. Kandel e Nicholas
Hans. Kandel interessou-se pelos fatos, mas, sobretudo pelas causas que os
possibilitam, dando especial atenção aos fatores históricos. Ele acredita que a história
dos povos permite descobrir as particularidades nacionais dos sistemas educativos,
levando-se em conta as forças políticas, sociais, culturais e o caráter nacional. As
maiores contribuições de Kandel para a Educação Comparada são as seguintes:
insistência na recolha de dados fiáveis, na necessidade de analisar o contexto histórico
de cada sistema educativo e na necessidade da explicação (FERREIRA, 1999).
Hans, por sua vez, utiliza-se tanto da História quanto da Sociologia na
interpretação dos dados. Para ele, os fatores determinantes dos sistemas educativos
dividem-se em três grupos: fatores naturais (raça, língua, meio ambiente), fatores
religiosos (Catolicismo, Anglicanismo, Puritanismo) e fatores seculares (Humanismo,
Socialismo, Nacionalismo, Democracia). Afirma que a compreensão do caráter
nacional é absolutamente fundamental para interpretar os sistemas nacionais de
educação. No seu entender há cinco fatores que definem uma nação ideal: unidade de
raça, unidade de religião, unidade de língua, unidade de território e soberania política.
Como nenhum desses fatores era tido como suficientemente poderoso para criar
sozinho a unidade cultural e social que chamamos de nação, eram necessários vários
atuando conjuntamente (no seu entender, era necessário que atuassem conjuntamente
pelo menos quatro desses fatores). Assim, o caráter nacional era entendido como “um
resultado complexo de misturas raciais, de adaptações lingüísticas, de movimentos
religiosos e de situações históricas e geográficas em geral” (HANS, 1971, p. 14, apud
FERREIRA, 1999, p.141).
Na abordagem interpretativo-antropológica, Ferreira aponta duas posições
como sendo as mais importantes: a de Schneider e a de Moehlman. Friedrich
Schneider considerava que o estudo comparativo só tinha sentido se fossem analisados
os diversos fatores que configuravam um sistema educativo: o caráter nacional, o
espaço geográfico, a cultura, a ciência e a filosofia, a estrutura social e política, a
economia, a religião, a história, as influências estrangeiras e as influências decorrentes
da evolução da pedagogia. O mais original de seu pensamento, no entanto, é a
25
importância dada ao fator endógeno (imanente, interno ou potencial) na estruturação
dos sistemas educativos nacionais, sugerindo ainda que, ao se encontrar concordância
na educação de distintos povos, se pergunte sobre a possibilidade de se atribuirem tais
concordâncias às coincidências existentes entre as respectivas culturas.
No entender de Arthur H. Moehlman, a Educação Comparada necessita de um
princípio de classificação válido para uma determinada época, que derivando do
passado abriria perspectivas de futuro. Considera, assim, a necessidade de um modelo
teórico que permita examinar a educação na sua estrutura cultural, não só como um
sistema vigente, mas também como uma unidade histórica. Em sua opinião, o perfil da
educação de cada sociedade é determinado pelo complexo jogo de interferências e
interações entre catorze fatores que apresenta em seu modelo teórico, os quais agrupa
por afinidades: 1) população, espaço, tempo; 2) linguagem, arte, filosofia, religião; 3)
estrutura social, governo, economia; 4) tecnologia, ciência, saúde, educação.
Na abordagem interpretativo-filosófica, destacam-se J. A. Lauweris e Sergius
Hessen. A importância de Hessen deve-se à sua busca das bases teórico-ideológicas
dos sistemas educativos. Lauweris afirmava que a Educação Comparada deveria
atender a estilos nacionais de filosofia, pois, apesar de a filosofia ter um alcance
universal, os diversos povos apresentam uma inclinação por um determinado tipo de
pensamento filosófico. Não excluía as outras abordagens (histórica, sociológica,
antropológica, etc.), as quais considerava pertinentes, desde que confiassem a síntese
crítica à abordagem filosófica.
d) Etapa comparativa
O período entre guerras se caracterizou por um acumular de observações e pelo
recurso a explicações vagas, como por exemplo, caráter nacional, raça, humanismo,
forças imanentes, que denotam atraso na utilização da estatística e da análise
sociológica. Os anos seguintes resultaram em abordagens bastante diversificadas, na
tentativa de renovação da Educação Comparada, das quais se apresentam as sínteses
mais referidas da abordagem positivista, da abordagem de resolução de problemas, da
abordagem crítica e da abordagem sócio-histórica (FERREIRA, 1999):
26
- Abordagem positivista: do final da Grande Guerra até cerca do final dos anos
sessenta, era o funcionalismo que orientava as análises sociológicas. Por ser
claramente descritiva, não tendo uma dimensão histórica nem explicativa, este tipo de
abordagem pode ser operatória e, assim, apresentar-se como científica. No entanto,
fica parecendo artificial a descrição e a verificação de partes de um todo, sem que se
aborde o sentido da organização, seu desenvolvimento, sua história. A partir da década
de sessenta, surge a perspectiva estrutural-funcionalista, a qual busca estabelecer um
relacionamento entre a estrutura e a (s) função (s) das instituições educacionais, e entre
elas e as outras instituições sociais.
Nesta perspectiva destacam-se A. M. Kazamias e C. A. Anderson. Kazamias
afirmava que a Educação Comparada precisava adotar uma base científica: seus
estudos deveriam ter objetividade utilizando o método funcionalista e a técnica das
covariações. O seu objetivo deveria ser o de descobrir as funções que as escolas, como
estruturas sociais, desempenham em cada país. Anderson sugere ainda que a
investigação comparativa deve atender a duas dimensões: à situação educativa em si e
à relação dos aspectos educativos com o seu contexto. Para a primeira é necessária
uma análise intra-educativa, para que se estabeleçam as relações entre os distintos
aspectos dos sistemas educativos; para a segunda, deve ser feita uma análise social-
educativa, para se estabelecer as inter-relações entre as características educativas e as
variáveis sociais, políticas, econômicas, culturais que condicionam uma vasta e
complexa realidade.
O maior objetivo com a utilização desta abordagem foi o de “fornecer um
quadro interpretativo mais fiável, ao não dissociar a estrutura da função, ao trabalhar
aspectos mais manejáveis da realidade e ao formular generalizações passíveis de
convalidação empírica” (KAZAMIAS, 1972, apud FERREIRA, 1999, p. 146). Os
autores que se situam nesta perspectiva estão preocupados com o rigor do método
comparativo e com a possibilidade de alcançar conclusões que pudessem servir,
inclusive, para decisões políticas. Assim, Ferreira afirma: “Como já acentuou Nóvoa
(1988, p. 71), a retórica da ‘cientificidade’ é a melhor maneira de dissimular as
27
dimensões ideológicas deste enquadramento teórico que nega os conflitos sociais no
seio da educação” (FERREIRA, 1999, p. 146).
Uma análise científica, com objetivo de formular e comprovar hipóteses e
quantificar e controlar a investigação, para alcançar um nível explicativo rigoroso,
estabelecendo relações causais entre fenômenos educativos e sociais, é um modelo
empírico-quantitativo, designado de científico por Noah e Eckstein, e tinha como
objetivos: 1) generalizar os dados obtidos, além dos limites de uma só sociedade; 2)
oferecer um campo de investigação suficientemente amplo para testar proposições
somente passíveis de prova em um contexto internacional; 3) prestar-se à colaboração
interdisciplinar; 4) como disciplina instrumental, transformar a Educação Comparada
em área de conhecimento fértil para conduzir reflexões e orientar decisões de política
educacional (FERREIRA, 1999, p. 146-147).
- Abordagem de resolução de problemas: desde meados dos anos sessenta, a
partir da publicação de seu livro intitulado Problems in Education: a Comparative
Approach11, Brian Holmes se tornou o comparatista mais conhecido desta abordagem.
Ele afirma que é preciso partir dos problemas específicos que existem nas diversas
sociedades e procurar encontrar as soluções mais convenientes. Assim, a unidade de
comparação deixa de ser definida em termos de espaço, e busca-se a identificação de
problemas pertinentes e a sua submissão a estruturas racionais que possam levar à sua
solução. Holmes coloca que as principais fases desta abordagem pela resolução de
problemas são as seguintes: análise dos problemas, formulação da hipótese,
especificação das condições iniciais nas quais o problema foi localizado, predição
lógica dos resultados prováveis a partir das hipóteses adotadas, comparação dos
resultados logicamente preditos com os acontecimentos verdadeiros (HOLMES, 1986
apud FERREIRA, 1999, p. 147).
- Abordagem crítica: nos anos setenta, a instituição escolar passa a ser vista
como um dos mais importantes aparelhos ideológicos do Estado, considerada como
11 Problemas na educação: uma aproximação comparada (tradução livre da autora).
28
um instrumento de dominação e reprodução da ideologia dominante. Começam a
aparecer discursos críticos, principalmente sobre a ação das organizações
internacionais e as políticas que diziam respeito ao Terceiro Mundo, os quais rejeitam
por completo as abordagens relacionadas ao funcionalismo estrutural, porque seriam
responsáveis pela legitimação de uma ordem social injusta.
Um dos pioneiros desta abordagem foi Martin Carnoy (1974), que, “apoiando-
se numa série de estudos de caso, procurou explicitar ‘as bases estruturais da
desigualdade educacional’, através da análise da expansão diferenciada da educação
escolar, que atenderia, internamente, aos interesses da classe dominante e, à escala
mundial, aos do imperialismo” (FERREIRA, 1999, p. 148).
A partir das abordagens críticas assiste-se a uma renovação do objeto da
comparação. As críticas dos anos setenta deram origem a uma literatura que se debruça
não somente sobre os que vão à escola mas também sobre a diferença de
oportunidades, de experiências, os resultados das mulheres, das minorias étnicas e
raciais e dos diferentes estratos sociais. Ferreira afirma que “não se trata, muitas vezes,
de investigações que impliquem uma comparação entre países: trata-se de comparar a
experiência das mulheres, das minorias e dos diferentes estratos sociais nas suas
relações com a educação” (FERREIRA, 1999, p. 148).
- Abordagem sócio-histórica: ao longo da última década do século XX
acentuou-se a idéia de que a complexidade da realidade não poderia ser tratada com
abordagens que buscavam uma explicação única, objetiva e neutra. Ferreira nos mostra
que, “a abordagem sócio-histórica como nos sintetiza Nóvoa procura reformular o
projecto de comparação passando da análise dos factos à análise do sentido histórico
dos factos” (FERREIRA, 1999, p. 149). Assim, torna-se necessário compreender a
natureza subjetiva da realidade e o sentido que lhe é atribuído pelos diferentes atores, e
a investigação comparativa deve partir para a compreensão interpretando, indagando e
construindo os fatos e não somente descrevendo-os. Com isso percebe-se, como nos
mostra Ferreira (1999, p. 149):
29
... uma mudança paradigmática que se caracteriza por uma maior atenção à história e à teoria em detrimento da pura descrição e interpretação, aos conteúdos da educação e não somente aos resultados, aos métodos qualitativos e etnográficos em vez do uso exclusivo da estatística (PEREIRA, 1993; NÓVOA, 1995). A análise tende a prender-se em contextos definidos pela invisibilidade de práticas discursivas, tendo os autores procurado temáticas como a consolidação das formas ‘legítimas’ do conhecimento escolar, a construção do currículo, a formação das disciplinas escolares (SCHRIEWER & PEDRO, 1993; POPKEWITZ, 1993 apud FERREIRA, 1999, p. 149).
1.3 O método da Educação Comparada
A Educação Comparada, como já indica em seu nome, tem a comparação como
método principal de acesso ao saber, não necessitando, assim, de uma metodologia
própria. Ferreira afirma que “... ao longo da história da Educação Comparada, o que se
tem visto, como já o dissemos anteriormente, é uma constante procura de
aperfeiçoamento da metodologia e de recursos metodológicos que se vão mostrando
adequados a uma comparação mais eficaz” (FERREIRA, 2001, p. 20).
A inexistência de uma só metodologia de base demonstra o esforço de
adaptação do pensamento à natureza do objeto de estudo. Assim, os estudiosos foram
levados a procurar métodos cada vez mais adequados à diversificação dos objetos, o
que fez com que cada ciência desenvolvesse a metodologia de base mais adequada ou
a buscar uma metodologia que trouxesse ajuda na resolução dos seus problemas.
Atualmente, quase todas as ciências utilizam vários métodos ou técnicas em
consonância com a metodologia de base.
Os comparatistas ainda não chegaram a um consenso sobre o método
comparativo no que diz respeito às suas fases. Ferreira (2001) afirma que o método
comparativo proposto por Bereday é o de maior peso na história da Educação
Comparada, o qual aponta quatro fases fundamentais: descrição, interpretação,
justaposição e comparação. A partir da utilização dele, muitos especialistas
introduziram algumas alterações neste método, com o objetivo de melhorá-lo. Dois
discípulos de Bereday, Noah e Eckstein, preocupados com o rigor e a objetividade do
método, definiram sete fases fundamentais na investigação comparativa: identificação
do problema, formulação das hipóteses, definição de conceitos e indicadores, seleção
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dos casos ou sistemas educativos a estudar, recolha dos dados, tratamento dos dados e
interpretação dos resultados.
Outro comparatista de prestígio, Lê Thành Khôi, apresenta cinco fases para uma
investigação completa, em sua obra Éducation Comparée: identificação do problema;
formulação das hipóteses ou das questões; reunião, tratamento e análise dos dados
(observação dos fatos); verificação das hipóteses e generalização. Já Garcia Garrido
apresenta preocupações didáticas na sua proposta de fases. Ferreira afirma que “... a
sua intenção é a de que ela recolha o que de mais importante e substancial se disse
acerca do assunto de forma a que sirva de ajuda a quem está a dar os primeiros passos
em educação comparada, em conformidade, aliás, com o ‘carácter didáctico e
propedêutico’ da obra em que se inserem” (FERREIRA, 2001, p. 22). São as seguintes
as fases indicadas por ele: identificação do problema e emissão de uma ou várias pré-
hipóteses; delimitação da investigação; estudo descritivo (fase analítica): compilação e
análise dos dados, conclusões analíticas; formulação de ou das hipóteses comparativas;
estudo comparativo (fase sintética): seleção de dados e de conclusões analíticas,
justaposição de conclusões e dados selecionados, comparação valorativa e ou
prospectiva, conclusões comparativas; investigação comparativa interdisciplinar;
redação do trabalho de investigação comparativa.
Ferreira (2001, p. 22) adota as fases que descreveremos abaixo, embasado em
grande parte na proposta de Garrido, com alterações que “... resultam, sobretudo de
reflexões decorrentes da prática docente e da necessidade de fazer uma explanação
concisa, mas suficientemente explícita a quem ainda não tem idéia da complexidade da
investigação científica e do mundo da educação”. São três as fases propostas, com suas
subdivisões: fase pré-descritiva, fase descritiva e fase comparativa.
1. Fase pré-descritiva
Uma investigação exige preparação, ou seja, o estabelecimento do quê fazer e
do como fazer. Esta fase pode ser subdividida em três etapas: identificação do
problema, emissão da ou das primeiras hipóteses e delimitação da investigação:
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a) Identificação e justificação do problema: a escolha de um problema ajuda a
melhor concretizar uma idéia de investigação. Feita a escolha, é importante que se faça
uma primeira aproximação do mesmo, para que se tome conhecimento das relações
que se estabelecem entre os diferentes fatores implicados e para saber se é necessário
que se estude o mesmo em profundidade e no âmbito da Educação Comparada. Aqui, é
importante que se busque objetivar as primeiras hipóteses, para facilitar a delimitação
da investigação e a recolha e seleção dos dados. A delimitação tem como objetivo
definir exatamente o que se quer comparar, onde, como e com que instrumentos, ou
seja, “a delimitação deve incidir tanto sobre o objeto como sobre a metodologia”
(FERREIRA, 2001, p. 23).
b) Emissão da(s) hipótese(s): após a identificação do problema, deve ser
elaborada a hipótese, ou hipóteses, que delinearão a investigação;
c) Delimitação da investigação: devem ser delimitados o objeto, os conceitos, a
área de estudo e o método. O objeto, para que, em conjunto com as pré-hipóteses, sirva
de linha orientadora para a recolha de dados. Os conceitos, para saber se os termos
empregados nas fontes correspondem à realidade a que os associa o investigador ou se
para as mesmas realidades não existem termos