Post on 12-Jun-2020
Universidade Federal do Rio de Janeiro
POÉTICA DO CORPO NA POESIA DE FERREIRA GULLAR
Priscila Nogueira Branco
Rio de Janeiro
2019
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POÉTICA DO CORPO NA POESIA DE FERREIRA GULLAR
Priscila Nogueira Branco
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
Orientador: Prof.ª Drª. Anélia Montechiari
Pietrani
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2019
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POÉTICA DO CORPO NA POESIA DE FERREIRA GULLAR
Priscila Nogueira Branco
Orientador: Anélia Montechiari Pietrani
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
________________________________________________
Presidente, Profª. Doutora Maria Lúcia Guimarães de Faria
________________________________________________
Prof. Doutor Gilberto Araújo de Vasconcelos Júnior – UFRJ
________________________________________________
Profª. Doutora Eleonora Ziller Camenietzki – UFRJ
________________________________________________
Prof. Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ, Suplente
________________________________________________
Profª. Doutora Stefania Rota Chiarelli – UFF, Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2019
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RESUMO
Ferreira Gullar foi um poeta de muitos corpos. Começou sua estrada poética
seguindo a forma clássica da poesia, pois não havia outro referencial de escrita
ao seu alcance. Ao entrar em contato com os modernistas, descobre que é
possível um outro modo de escrever. Poeta do espanto que era, na década de
50 entra em choque com a própria linguagem, e a partir desse processo nasce
seu primeiro corpo: uma mutação, em Crime na flora, em que o poema-corpo é
deformado, inquieto, assassinado, trocado de gênero, experimentação pura. Nas
décadas de 60 e 70, envolvido profundamente com questões de cunho social,
sua poesia se transforma em um corpo político, através de Dentro da noite veloz
e Poema sujo. No fim de sua vida, voltado para questionamentos internos, o
corpo de sua poesia se torna quase filosófico, questionador, mais uma vez
guiado pelo espanto, e é quando nasce Em alguma parte alguma. Nesses três
momentos distintos, o fazer poético gira em torno do corpóreo: primeiro, quando
à luz dos questionamentos sobre a linguagem pura, um corpo se torce e se
transforma; segundo, quando uma poesia política, um corpo coletivo se forma,
inseparável do ser humano e necessário à compreensão da realidade; por último,
um corpo voltado para dentro, gerando um estranhamento e separação entre
ontologia e estado físico no mundo. É a partir dessas três leituras que buscamos
apresentar a poética do corpo na poesia de Ferreira Gullar.
Palavras-Chave: Ferreira Gullar; Corpo; Poesia; Política; Estranhamento.
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ABSTRACT
Ferreira Gullar was a poet of many bodies. He has started his poetic road
following the classic form of poetry, because there was no other writing reference
at his fingertips. By getting in touch with the modernists, he realizes that another
way of writing is possible. As he was a poet of astonishment, in the 50’s he
conflitcs with the language itself, and from this process his first body is born: a
mutation, in Crime na flora, where the body-poem is deformed, restless,
murdered, gender-fluid, pure experimentation. In the 60’s and 70’s, deeply
involved with social matters, his poetry becomes a political body, through Dentro
da noite veloz and Poema sujo. At the end of his life, focusing on internal
questions, the body of his poetry gets almost philosophical, once more guided by
astonishment, and that is when Em alguma parte alguma is born. During these
three different moments, the poetry is about the corporeal: first, when questioning
about pure language, a body bends and transforms itself; second, when a political
poetry, a collective body appears, inseparable from the human being and
necessary to comprehension of reality; at last, a body aiming the inside, making
a strangeness and division between ontology and physical state in the world. It is
through these three ways of reading that we hope to present the corporeal poetry
of Ferreira Gullar.
Keywords: Ferreira Gullar; Body; Poetry; Politics; Strangeness.
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AGRADECIMENTOS
Se há uma coisa que tenho a fazer neste momento, essa coisa é agradecer.
Recuo alguns bons passos na memória para relembrar do livro que minha avó
Irene me presenteou quando eu ainda era um pequeno ser humano descobrindo
a vida. A memória me faz chorar, chorar muito enquanto escrevo. Quantas vezes
não li e reli aquele livro do Ziraldo que tanto me levava pra outro mundo. Foi ali
que a paixão pela literatura começou. Vó, eu não estaria aqui se não fosse por
você. Como eu gostaria que você pudesse ter visto sua neta se formar na
faculdade e fazer mestrado. Muito obrigada por tudo.
Mãe, obrigada por ter me ensinado a ler tão cedo. Eu lembro até hoje com muita
clareza, quando eu tinha por volta de quatro anos de idade, você me dizendo:
“agora é sua vez de ler pra mim!”. Aquilo me assustou e me encantou de uma
forma que você nem imagina. Mãe: eu acho essa palavra tão bonita. E é bonita
porque sei que tudo que sou é graças a você. Não tenho nem palavras pra
agradecer todo amor, confiança e força nas horas em que mais precisei. Pai,
muito obrigada também por torcer pela minha felicidade e estar sempre do meu
lado.
Rogério, você é a outra base de formação da minha vida, do meu caráter e, com
certeza, da minha paixão por literatura. Obrigada por ser meu irmão e um dos
melhores amigos que a vida poderia ter me dado. Todo apoio, presença,
conversas foram fundamentais e me ajudaram a chegar até aqui.
Ao meu irmão Robson, pelo carinho e cuidado em pensar na minha educação e
no meu futuro, contribuindo para minha formação escolar e enquanto ser
humano.
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À Anélia, a melhor orientadora do mundo, preciso agradecer um milhão de vezes.
Foram muitas conversas até no meio da madrugada. Aprendi em dois anos com
você coisas que poderia ter aprendido numa vida inteira. Obrigada por todo
incentivo, empurrões, conhecimento e atenção.
Paula, nem preciso dizer aqui porque você com certeza sabe o quão importante
foi sua presença na minha vida nessa trilha que decidimos seguir juntas. Eu
chorei tanto com você, perturbei por mensagens, tomamos porres, e aqui
estamos. Obrigada demais! Eu não sei onde eu estaria agora se você não tivesse
tomado o caminho junto comigo.
Raom, meu amor, companheiro e amigo, muito obrigada pela paciência e por
aguentar minhas loucuras interpretativas.
Preciso agradecer imensamente aos meus amigos queridos que foram me
assistir falando de literatura, me escutaram sobre minha pesquisa ou
simplesmente só me deram um abraço apertado de carinho: Lygia, Dandara,
Augusto, Thiago Tempo. Eu certamente teria surtado sem o apoio de vocês.
Agradecimento especial ao meus amigos poetas e loucos, que foram
fundamentais para meu processo criativo e me deram suporte emocional e
alcoólico ao longo do mestrado: Felipe, Fernando, Higor e Paula.
João Guilherme, obrigada pelos conselhos, ajuda e apoio antes de eu realizar a
prova para ingressar nessa caminhada. Prometo que devolvo seu livro, que já
está comigo há dois anos!
Obrigada aos professores Gilberto, Flávia, Eucanaã, Sérgio e Vera pelas aulas
incríveis em 2017. Aprendi muito e certamente minha pesquisa está repleta das
aulas que tive com vocês.
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E como não poderia deixar de agradecer jamais: ao Ferreira Gullar, poeta cuja
escrita será certamente lembrada por séculos, quiçá para sempre enquanto o
ser humano existir neste mundo. Escrever sobre sua poesia foi algo que partiu
de um espanto, com certeza.
Muito obrigada. Esta pesquisa foi concluída através do carinho e apoio que pude
contar de muitas pessoas queridas e maravilhosas na minha vida. Estou sentindo
uma plenitude esquisita ao terminar esta dissertação. Sigamos! Amo todos
vocês! Obrigada, obrigada, obrigada!
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Escrever o corpo.
Nem a pele, nem os músculos, nem
os ossos, nem os nervos, mas sim o
resto: um «isso» grosseiro, fibroso,
desfiado, separado, o casacão de um
palhaço.
(Roland Barthes)
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SUMÁRIO
1. Introdução .............................................................................................12
2. Crime na flora: um corpo em mutação ..............................................16
2.1. Crise poética de Gullar e (in)definição do poema em prosa........16
2.2. A metamorfose do corpo-escrita................................................. 23
3. O corpo social e coletivo: um grito da poesia ................................. 43
3.1 – Dentro da noite veloz: sujeira, resistência e agora ...................... 47
3.2 – Poema sujo: memória corporal ..................................................... 61
4. Corpo despróprio e intruso ............................................................... 72
4.1 – Em alguma parte alguma: corpo próprio corpo ........................... 77
5. Conclusão ............................................................................................ 98
6. Referências Bibliográficas ............................................................... 103
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1. Introdução
O que significa uma “poética do corpo”? Esse título foi escolhido pela
quantidade gigantesca de indícios do corpo na vasta obra de Ferreira Gullar e
também pelo fato de o próprio poeta afirmar que a escrita e sua técnica são uma
sabedoria corporal (2015, p. 30). Ou seja, não há apenas muitos elementos,
referências ao corpo em seus poemas, mas o próprio ato de fazer um poema já
parte da carne, da pele, do toque.
Compreende-se, então, a escolha desse título tanto como um estudo das
imagens poéticas corporais quanto também como um amplo esforço para
encontrar o que há de corpo na forma, nos temas, na estética, que é algo dentro
de uma plausível interpretação, ainda que mais sutil. Pensar o corpo e a poesia
será sempre uma forma de abrir portas para múltiplas possibilidades. Os dois
juntos trazem uma força motriz que conecta, ao mesmo tempo que diferencia, a
escrita do mundo, das coisas palpáveis.
Gullar foi um poeta do agora. O tempo aqui apresentado está diretamente
ligado às coisas materiais, ao que experienciamos diretamente do real, e isso só
é possível de ser feito em uma relação viva e direta com o corpo. Foi um escritor
engajado tanto com a vida literária quanto com a política, e esse engajamento
também se reflete na escrita de seus poemas. É difícil sintetizar, devido à grande
variedade de obras e de sua sempre tentativa de experimentação e superação
em face à escrita, sua poética com uma estética que se mantenha sempre
constante.
Começou sua vida de poeta seguindo a tradição clássica da lírica,
subverteu e questionou a métrica e a linguagem, seguiu por caminhos tortuosos
de criações inovadoras, envolveu-se na vida política, trazendo isso para dentro
de sua poética, e terminou a vida com poemas filosóficos e reflexivos. Sem
contar seu envolvimento com as artes plásticas, crítica literária e produção de
crônicas. Uma metamorfose. Dentro dessas constantes mudanças, busca-se
observar em algumas de suas obras o que há de corporal e como se dão as
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diferentes formas de enxergar e abordar o corpo a partir do momento de escrita
do poeta em que estão inseridas essas obras e poemas escolhidos.
Esta dissertação não tem como objetivo fazer uma leitura temporal da
poética de Ferreira Gullar. Apesar disso, foi possível traçar comparativos de
mudanças na forma de enxergar o corpo nas quatro obras escolhidas para
análise: Crime na flora, Dentro da noite veloz, Poema sujo e Em alguma parte
alguma. Essas mudanças, que se refletiram na temática corporal e na estética,
têm relação com o momento biográfico que o poeta estava vivenciando, assim
como seus respectivos engajamentos e modos de compreender o mundo à sua
volta.
Os capítulos de análise serão divididos em três, contendo em cada um
uma interpretação de diferente abordagem acerca da poética do corpo. O título
desta dissertação encontra-se no singular, pois, apesar das mudanças em sua
compreensão corporal em cada obra, o corpo permeia sua escrita e está sempre
presente, não gerando “poéticas” distintas, mas uma convergência corporal que
está sempre se ressignificando.
Existe uma teia de conexão entre os livros escolhidos: as múltiplas formas
de se escrever o corpo. O próprio texto, corporificação que é, se altera como um
organismo em movimento. Os elementos corporais apresentam-se vivos e
presentes também nos seus livros que não foram objetos de estudo desta
dissertação, estando em aberto o aprofundamento da análise de uma poética
corporal que permeie o conjunto de toda sua produção escrita de poesia. Não foi
o objetivo deste trabalho apresentar um estudo de toda a antologia do poeta,
mas recolher os elementos do corpo nos livros escolhidos, relacionando-os e
diferenciando-os.
O primeiro capítulo, intitulado “Crime na flora: um corpo em mutação”, gira
em torno de Crime na flora. Antes de entrar na análise do livro, será necessário
abrir uma discussão sobre sua forma. Sendo uma obra extremamente
experimental, são feitos apontamentos teóricos acerca do poema em prosa,
gênero bastante polêmico e de difícil definição. A bibliografia teórica levantada
no início desse capítulo deriva de críticos como Paul Valéry, Suzanne Bernard e
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Fernando Paixão, que pensaram a relação entre poema e prosa e teorizaram
acerca de uma possível localização desse gênero literário.
É importante refletir que nesse primeiro momento, Ferreira Gullar
encontrava-se em profundo questionamento sobre a linguagem e sobre o
significado de fazer poesia. O corpo, neste capítulo, adquire uma forma de
mutação e transformação, tanto em relação ao tema (o corpo presente no livro é
metamorfoseado de diversas formas) quanto à estética, que traz consigo toda a
confusão fragmentária e difusa do poema em prosa.
Como a bibliografia crítica anterior de análise desse livro é escassa,
busca-se trazer o pensamento de Michael Hamburguer e Octavio Paz no que
concerne à compreensão da linguagem e do fazer poético, uma vez que Gullar
se questiona o tempo inteiro sobre a possibilidade de uma escrita que seja neutra
em relação ao real, que seja ela mesma, sem nenhum tipo de infecção externa,
sua própria feitora.
O segundo capítulo, intitulado “O corpo social e coletivo: um grito da
poesia”, analisa dois livros: Dentro da noite veloz e Poema sujo. Já dentro da
fase de envolvimento político do poeta, apresenta-se, diferente do capítulo
anterior, o corpo se colocando como um ser conectado aos outros, revelando um
caráter de resistência e de coletividade. Ferreira Gullar estava envolvido, no
momento de escrita desses livros, com a luta de viés comunista e no exílio de
uma ditadura militar no Brasil.
Pensamentos de teóricos do campo da sociologia e da filosofia são
apresentados para ajudar a compreender os aspectos do corpo levantados
nesse capítulo, como David Le Breton, Marx, Engels e Trotsky. Além disso, usa-
se do estudo realizado pela pesquisadora Eleonora Ziller Camenietzki sobre a
trajetória política de Ferreira Gullar e a possível comparação entre poesia e
política para aprofundar a forma de ver o corpo relacionado à luta social no Brasil
travada pelo poeta.
No terceiro capítulo, intitulado “Corpo despróprio e intruso”, o livro
estudado é sua última obra enquanto vivo: Em alguma parte alguma. O corpo,
nesse livro, é visto como um outro em relação ao poeta. Apresenta-se como um
estrangeiro, separado de sua consciência. Além do estranhamento, estuda-se a
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formação de duplos do poeta a partir do processo de separação entre sujeito e
corpo.
Já afastado da vida política, o poeta volta-se para questionamentos
internos e filosóficos, o que mais uma vez transforma sua relação de ver e
escrever o corpo. Também já idoso, sua forma de estar no mundo se aproxima
da morte, fazendo com que o corpo, a pele e os ossos sejam sempre motivos de
espanto e de profundas perguntas e desdobramentos.
Para aprofundar a discussão do estranhamento do corpo, traz-se o estudo
de Freud acerca dessa questão, apresentando um apanhado psicológico sobre
o ato de estranhar-se com algo que antes era familiar e natural: um estado de
espanto e perplexidade. O filósofo e crítico Jean-Luc Nancy, estudioso da
questão do corpo, é fundamental para compreender o corpo como exteriorização
e alteridade em relação à consciência, e principalmente como uma forma de
escrita. Também são explorados alguns aspectos relacionados ao corpo e à
paisagem, recorrendo ao crítico Michel Collot, quando pensamos o ambiente que
envolve o corpóreo e sua possibilidade de expansão: uma conexão com o mundo
à sua volta.
O significado do corpo na poesia de Gullar se altera de acordo com as
situações de vida, seu pensamento em relação ao fazer poético e suas
experiências pessoais. Este não é um trabalho de cunho biográfico, o foco é
principalmente na interpretação dos poemas e no recolhimento dos elementos
corporais. Mas é fundamental compreender a História e os tempos em que
estamos inseridos para analisar qualquer obra poética.
Por fim, este trabalho tem como intuito apresentar uma leitura que
perpassa quatro livros de Ferreira Gullar, com o propósito de mostrar que os
elementos relacionados ao corpo são cruciais na compreensão de sua escrita,
de sua forma de pensar a poesia. Não aparecem de forma esparsa, como se
observará na interpretação dos poemas levantados, mas são parte intrínseca de
sua poética.
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2. Crime na flora: um corpo em mutação
2.1. Crise poética de Gullar e (in)definição do poema em prosa
Ferreira Gullar começou a escrever muito novo. Com apenas 19 anos,
publica seu primeiro livro de poemas, Um pouco acima do chão, em 1949.
Extremamente influenciado pelo Parnasianismo, escrevia, nessa idade, poemas
metrificados, ao ponto de até mesmo falar em versos decassílabos. Para ele,
distante do centro de produção poética modernista no Brasil, era isso e somente
isso que poderia ser a poesia.1
Um dia, depara-se com as poéticas de Carlos Drummond de Andrade,
Manuel Bandeira e Murilo Mendes e leva um susto, pois descobre que um poema
pode ser outra coisa para além dos versos metrificados e sublimes que conhecia
até então. Isso gera no jovem poeta Gullar um forte questionamento, e ele cria
quase que uma obsessão com escrever uma poesia completamente nova, livre
das âncoras do passado e que representasse a linguagem na sua forma mais
pura:
Não queria nada do passado, nada pré-estabelecido e queria que a própria linguagem nascesse com cada poema, o que é absolutamente impossível, mas me propus a isso. A Luta Corporal foi uma tentativa progressiva de realizar isso, até que, chegando a um determinado momento, percebi que não tinha caminhado um passo na direção de realizar esse ideal. Decidi que somente escreveria o poema que representasse um passo adiante no sentido de realizar o ideal da linguagem nascer junto com ele. E depois disso, praticamente, não consegui escrever mais. (GULLAR, 2006, p. 19-20)
É verdade que quase não conseguiu escrever mais por um longo período
após esse choque filosófico com a escrita. Mas é justamente nesse momento de
1 Informação retirada da entrevista direcionada a Ferreira Gullar, na Aula Magna ocorrida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2006. O livro com a Aula Magna e a entrevista foi produzido pela Divisão de Mídias Impressas/Serviço de Publicações Institucionais da Coordenadoria de Comunicação da UFRJ, em setembro de 2006.
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crise que nasceu seu livro Crime na flora, extremamente experimental e
seguindo os passos de Luta corporal. Esses dois livros foram tentativas
conscientes do autor de romper com o passado que o perseguiu, repleto da
poesia clássica.
Devido ao seu grau intenso de experimentalismo, nem o próprio Gullar
conseguiu definir que tipo de texto é esse que escreveu: “Não era um poema,
era outra coisa. Seria um conto, uma novela? Não me fiz essas perguntas: era
um texto de desenvolvimento imprevisível, que permitia explorar uma dimensão
fascinante da linguagem” (GULLAR, 1986, p. VII)2. Justamente sua dificuldade
de definição de seu texto é também a problemática que temos na discussão
sobre o poema em prosa. Encontramos, nesse livro, além do poema em prosa,
poemas em verso, poemas concretos, diálogos e também alguma narratividade,
dependendo da parte que observamos. A leitura de Crime na flora será feita
neste capítulo, portanto, trazendo à tona o que está ali presente de poema em
prosa. Antes de partirmos para a leitura minuciosa de seu texto, faz-se
necessário tecer algumas considerações teóricas sobre este gênero tão
ambíguo.
O que é um poema em prosa? É uma típica pergunta, como muitas outras
na vida, do ser inerente às coisas, e que fazemos quando nos deparamos com
algo desconhecido ou estranho. Muitas vezes, não obtemos a resposta
necessária para uma pergunta desse tipo, ou acabamos gerando outras
perguntas através dela. Definir o poema em prosa é uma tarefa que talvez beire
o impossível e com certeza absoluta nos gera mais questionamentos em vez de
soluções. Isso está longe de ser um problema, pelo contrário, abre-nos, como
críticos de literatura, muitas possibilidades de caminhos e interpretações. E, é
claro, de novas descobertas.
Primeiramente, peguemos o caminho da discussão da forma. Um poema
em versos se distingue de um texto em prosa justamente por um conter versos
e o outro não, os dois gêneros com a produção estética compreendida em suas
formas diferentes de escrita. Paul Valéry, em seu ensaio “Poesia e Pensamento
Abstrato”, diferencia o poema e a prosa do seguinte modo: a poesia é comparada
2 A paginação nessa parte do livro Crime na flora está em algarismos romanos.
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à dança, uma vez que seus movimentos se dão apenas neles mesmos, não
buscando alcançar um fim; a prosa, por outro lado, é comparada ao caminhar,
pois tem um propósito de chegada. A poesia, então, é o apreciar do próprio
movimento, sua construção de imagens que se apoiam em outras imagens,
enquanto a prosa usa das pernas para ir a algum lugar.
Caminhando ou dançando, é o mesmo corpo que faz esses movimentos
e os controla, mas com relações completamente distintas. O poema em prosa
está na tensão entre caminho e dança, pois é um corpo que levanta uma perna
para caminhar, porém a dança o toma de forma incontrolável. A visão desse
corpo, portanto, é a de uma contorção, um dançar que não é completamente só
isso, pois o movimento do caminho também está presente.
E a prosa poética? Este outro gênero, se ainda nos detivermos na
metáfora de Valéry, é um ser que caminha, com a música da dança ao fundo. O
corpo deste gênero permanece andando, como uma prosa não poética, mas a
música que gera a dança da poesia está tocando e sendo escutada. A música
tateia a prosa poética, mas não a movimenta, é como um gesto de presença em
sua escrita. O poema em prosa, por outro lado, é tomado pela música e dança
como o poema em versos, só que o gesto de caminhar não apenas o toca, como
tensiona seu próprio corpo, sua forma, nessa caminhada-dança.
O poema em prosa é, portanto, um gênero em tensão. É e não é poesia,
é e não é prosa: ele está no intervalo dessa compreensão dialética do que é e
também do que não é. Além disso, cada poema em prosa é muito distinto um do
outro: há os que são mais breves, há os que possuem muitas páginas, há os que
são mais filosóficos e próximos do ensaio, há os que se aproximam de cartas ou
diário. Além de um gênero em tensão entre poesia e prosa, é um gênero em
mutação na sua relação consigo mesmo.
Mas por que criar, em frases, imagens poéticas que poderiam se encaixar
perfeitamente na estética de um poema em versos? Essa é, talvez, uma
pergunta sem sentido, pois poderíamos nos perguntar também para que fazer
arte ou literatura, uma vez que não têm função óbvia ou prática. Porém, essa
pergunta só pode ser feita dentro do contexto da modernidade em que estamos
inseridos. É com o questionamento da necessidade da métrica como verdade
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universal para se escrever um poema que surge tanto o verso livre quanto o
poema em prosa:
A gênese do poema em prosa na França – à qual ficaremos restritos na apresentação deste livro – remonta ao início do século XVIII, quando começou o questionamento do modelo clássico de composição poética. Àquele momento, a poesia ainda se encontrava subordinada a regras determinantes da harmonia métrica, mas o modelo começava a ser contestado por alguns autores, deflagradores de um movimento de crise do verso, insatisfeitos com o automatismo da rima e outras obrigações formais. (PAIXÃO, 2004, p. 39)
Mallarmé, em seu texto3 Crise de verso, diz que o verso é a própria
literatura. Podemos comparar a essa afirmação a noção linguística de sistema e
possibilidades. Dentro de uma língua, possuímos muitas formas de comunicação
presentes e previstas pelo sistema. A literatura é como se fosse um sistema que
englobasse todas as possibilidades: verso livre, verso metrificado, poema em
prosa, prosa poética, prosa, romance etc. Escrever de uma forma ou outra é
fazer literatura, dentro de suas múltiplas formas. A crise que ocorre, então, é
dentro do texto, da literatura mesmo, não apenas do verso metrificado.
A crise instaurada é em relação a se compreender apenas como poesia o
que estivesse dentro de um padrão de métrica e rimas. Para Mallarmé, o verso
(como literatura) existe se houver dicção, ritmo e estilo. Logo, a poesia pode se
distender em várias formas distintas, que continuará sendo poesia. Não à toa, o
poema em prosa não surge como um desdobramento do verso livre, mas ao
mesmo tempo em que ele. É uma forma de expansão das possibilidades.
Voltemos à pergunta feita alguns parágrafos acima: Mas por que criar em frases
imagens poéticas que poderiam se encaixar perfeitamente na estética de um
poema em versos? Não há resposta para essa pergunta, talvez só a noção de
que é possível criar ou expressar-se de outra forma seja razão suficiente para
experimentar o novo. Como disse Fernando Paixão no fim de seu ensaio sobre
o poema em prosa, “Muitas vezes nem ao próprio escritor é dado saber por que
(e como) os poemas nascem em corpo de prosa” (PAIXÃO, 2013, p. 150).
3 Usa-se a palavra texto pois é difícil classificar esse escrito de Mallarmé. Poderia ser um poema em prosa, um ensaio, fragmentos filosóficos. São muitas as possibilidades de interpretação quanto ao gênero.
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Novamente, tentar definir o poema em prosa pode beirar o impossível. É,
de fato, um gênero que se define por sua indefinição. Porém, alguns críticos,
principalmente os pioneiros, fizeram florescer o terreno vazio e baldio em que se
encontrava esse gênero perante os estudos literários, tentando dar algum tipo
de definição a ele. A crítica Suzanne Bernard, uma das mais relevantes autoras
que escreveu sobre o poema em prosa, tenta apresentar um tripé de definição
desse gênero, em seu livro Le poème en prose de Baudelaire jusqu'à nos jours:
unidade orgânica, gratuidade e brevidade.
A unidade orgânica seria essa relação de, mesmo curto e fragmentário,
cada poema em prosa representar um corpo inteiro. Se pegarmos um livro de
poemas em prosa, por exemplo, conseguiremos entender um dizer completo em
cada um deles que convergirá para um significado conectado entre eles. Além
disso, possui ritmo e imagens poéticas que dariam forma a essa unidade. O
problema é que podemos observar que cada poema em prosa se diferencia
muito um do outro, mesmo se estivermos falando de um mesmo autor. É um
gênero extremamente experimental, então cada poema vai se moldando de
forma muito distinta, e não há essa unidade orgânica se fizermos um estudo
comparativo.
Por outro lado, o poema em prosa se conecta, sim, com a ideia de
fragmento. Mesmo quando longos, como em Crime na flora, não há uma
narrativa concreta, portanto as imagens que lemos parecem estar flutuando no
tempo, e sequer somos avisados de que o poema chegou ao fim. O livro
Canções sem metro, de Raul Pompeia, por exemplo, conecta cada poema com
outro poema, e o livro é uma espécie de conjunto de fragmentos que, lidos
sequencialmente, apresentam mesmos gestos de significação. Então, talvez a
unidade orgânica que podemos encontrar no poema em prosa seja a de estar
sempre fragmentado.
A gratuidade do poema em prosa é uma das mais importantes e
significativas descobertas sobre o estudo desse gênero ao compará-lo com a
prosa poética. Voltemos para o ensaio do Valéry: a dança é gratuita. Ela não tem
a noção de marcação de caminho, começo e chegada. Não há, no poema em
prosa, essa ideia de narrativa temporal, pelo menos não de forma tão
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desenvolvida ao ponto de ser uma prosa poética. Porém, também há no poema
em verso a presença da gratuidade e do fragmento. Essa perna do tripé não se
resume apenas a esse gênero, mas é importante quando direcionamos o olhar
para prosa e para poesia, tentando compreender suas diferenças.
A brevidade do poema em prosa é extremamente questionável, uma vez
que temos poemas em prosa que são bem longos. Se pensarmos, é claro, a
questão da síntese e da ideia do fragmento, até podemos compreender essa
brevidade não como simplesmente número de parágrafos, mas como imagens
que são jogadas no poema e rapidamente se desfazem, já seguindo outra
imagem logo após. A ideia de gratuidade, de não apresentar uma narrativa e
nem uma conclusão que atenda às expectativas do leitor, se apresenta mais
sólida do que pensar o poema em prosa como breve e sintético. Fragmentário,
sim; breve, não necessariamente.
Esse tripé de Suzanne Bernard, como pioneirismo nos estudos do poema
em prosa, é necessário, e foi a partir dele que podemos, hoje, fazer diversos
questionamentos e levantar mais e mais dúvidas sobre esse gênero. Porém, ele
é falho nos aspectos aqui levantados e precisamos aceitar que não
encontraremos uma fórmula para compreender o poema em prosa. É um gênero
que está localizado no “entre” – não é nem poema nem prosa, mas seu
nascimento, sua força vem da poesia. Definir um poema em versos é também
difícil, é claro, mas diferenciá-lo de um conto, por exemplo, é bem simples: um
conto não tem versos. Estar no espaço do “entre” é estar sempre gerando
dúvidas sobre as oscilações, é ser um fruto esquisito nascendo na normalidade.
Partindo desta ideia de o poema em prosa ser um gênero cuja essência
é sua falta de definição, ou seja, um gênero extremamente dialético, que carrega
consigo uma dualidade sempre em tensão, vejamos uma parte do ensaio
“Poema em prosa: Problemática (in)definição”, de Fernando Paixão, escritor e
professor de literatura, onde o autor desde o início de seu texto já parte da
dificuldade de definir o gênero, apresentando uma visão em busca da identidade
do mesmo que aceita sua própria dificuldade de definição:
De maneira sintomática, os três autores aqui citados recorrem ao princípio da dualidade para explicar o mecanismo obscuro de que se
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alimenta a dinâmica do poema em prosa. Unidade anárquica (S. Bernard), recusa da representação (Todorov) ou da narração (D. Combe), em todos os argumentos predomina o eixo da ambiguidade. Explicações que revisitam o dualismo como princípio central do gênero. Uma alternativa para sair do impasse teórico seria justamente o de tomar essa característica como fator mesmo de identidade do poema em prosa – contradição expressa desde o nome. Ao promover a convivência de duas dimensões distintas da linguagem e com infinitas possibilidades de mistura, não haverá, afinal de contas, como antever os caminhos do imaginário. (PAIXÃO, 2013, p. 148)
Nesse ensaio, o autor lista alguns críticos e suas tentativas de descrever
o poema em prosa, comparando e questionando os pontos levantados por cada
um. A conclusão a que chega é a mesma do título de seu ensaio: a definição do
poema em prosa é sua própria indefinição. Ao termos um gênero que perpassa
na forma do que se é outros gêneros, encontramos uma gama de possibilidades
a serem levantadas. Junto com isso, abrem-se as portas para o grau de
experimentação que o poema em prosa tem.
Essa experimentação só é possível com a modernidade. O verso livre
também surge a partir do rompimento com a métrica clássica, e tem seu grau de
experimentalismo, mas ainda se detém nos versos. O poema em prosa carrega
consigo uma tensão que está sempre à beira de explodir, portanto seu próprio
nascimento é já um conflito. Compreendê-lo passa por não compreendê-lo, e
começar a fazer a crítica a partir da dúvida:
O ensaio é, aliás, com o fragmento e essa forma muito particular de poesia que é a do poema em prosa, um dos três gêneros que a certa altura – pelo menos desde Baudelaire – parecem configurar grande parte da escrita da modernidade. (BARRENTO, 2010, p. 90)
Falar do poema em prosa como fruto da modernidade, assim como o
ensaio, é pensar em algo que estranhamos. E de fato é um ser estranho, uma
quimera, é o nascimento de um corpo em crise, que se debate e busca nascer
em um mundo também deformado. Sua falta de definição é também a falta de
definição que temos em nossa busca pelo estar no mundo, tão (des)conectado
e fragmentado como é hoje. Ele é, com toda certeza, parte do processo de
tensão do momento em que vivemos.
23
2.2 – A metamorfose do corpo-escrita
Ferreira Gullar, em seu livro autobiográfico, refere-se à sua tentativa de
escrever de forma pura e sem amarras como uma “poesia essencial” (GULLAR,
2015, p.15). Em Luta corporal, tentou dar início a esse processo de escrita e, em
Crime na flora, é como se tivesse alcançado seu apogeu. Clarice Lispector, em
seu livro Água viva, também faz essa busca pela linguagem “neutra”:
E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última. (LISPECTOR, 1998, p.11)
Pode soar estranho citar um trecho de Clarice Lispector para traçar uma
linha comparativa com Crime na flora. A maior parte das pessoas ainda tem a
visão de Gullar como um poeta que privilegiava mais o conteúdo político do que
questionamentos no âmbito da criação poética. Neste caso, não somente Crime
na flora se compara ao livro Água viva no eixo temático como também por serem
ambos livros experimentais, fragmentários e que perpassam a discussão sobre
poema e prosa e seus limites enquanto gênero.
Diferente de Clarice, que faz questão de que coloquem em seu livro a
marca de ficção, Gullar escritor afirma, discute e teoriza sobre a tentativa de fazer
uma escrita fluida, sem interferências e anterior ao próprio pensamento. Diz isso
não só em entrevistas, como também apresenta essa questão na seção
introdutória de Crime na flora nomeado de “Algumas Informações”. Obviamente
que quando sua teoria se transforma em poesia já se torna outra coisa que não
somente uma ideia biográfica.
Poderíamos usar diversos trechos do livro de Clarice para epigrafar esse
começo interpretativo, mas apresentamos um justamente que trata da questão
corporal. Em sua busca pela linguagem do “it”, ou seja, por uma linguagem
instintiva, animalesca, que preceda o raciocínio humano, o sujeito poético afirma
que só poderia expressar-se através do corpo. Ele é a forma de aproximação
24
mais pura possível com essa comunicação que se busca (se é que podemos
falar em comunicação). Trava-se uma luta nesse processo e, como o título do
livro de Gullar que o transforma também em iniciado nessa jornada, é uma luta
corporal.
Para aprofundar e finalizar essa comparação com Clarice, antes de
entrarmos na interpretação minuciosa de Crime na flora, vejamos um trecho de
Gullar em sua autobiografia acerca dessa linguagem tão desejada:
De um lado, surgira da rejeição minha de usar a técnica poética como algo exterior a mim, o que me parecia um procedimento acadêmico: o poema deixaria de ser determinado pelo que o poeta buscava exprimir para tornar-se o resultado de soluções já sabidas. Trata-se não de subestimar a técnica, o domínio da expressão poética, e sim de torná-la uma sabedoria do corpo. (GULLAR, 2015, p.30)
Atentemo-nos para o termo “sabedoria do corpo”. Assim como a citação
que Clarice escreveu, Gullar vai pelo exato mesmo caminho: essa escritura que
buscam só é possível de ser traçada através de uma linguagem que venha do
corpo. Quer dizer que ela vem do âmbito do desconhecido, do estrangeiro a nós.
Como veremos no próximo capítulo desta dissertação, dar-se conta de nosso
próprio corpo é, na verdade, perceber que não há nada de próprio nele.
Gullar é um poeta do espanto, da dúvida, do questionamento. Perceber a
linguagem pura como uma luta corpórea, ou seja, a luta de um Gullar com um
corpo estranho é compreender que essa escrita tem de vir desse corpo, uma
turista sem identidade, visitante e inquieta. Essa ideia fixa reverberou também
na forma como foi escrito Crime na flora, extremamente experimental e
fragmentário:
Foi então que me ocorreu o seguinte: comecei a escrever uma história absurda com tinta vermelha, deixando entre as linhas espaço suficiente para outro texto. Terminada essa primeira história, passei a escrever outra, com tinta verde, nas entrelinhas da anterior e, depois, datilografei tudo junto, como se fosse um texto só. Disso resultou, naturalmente, um texto incongruente, já que as frases de uma linha se juntavam à da linha seguinte, que pertencia à outra narrativa. (GULLAR, 2015, p. 28-29) Um texto de prosa desvairada, sem sentido e sem objetivo. De qualquer maneira, era a minha volta à escrita. (GULLAR, 2015, p. 37)
25
A narrativa que existe dentro do livro é bastante confusa e completamente
intemporal. Se pensarmos a questão da gratuidade do poema em prosa
levantada por Suzanne Bernard, podemos encontrá-la em basicamente todo o
poema. Não sabemos o momento que começa e termina cada situação nem
onde estão se passando os acontecimentos. Há alguns personagens, mas esses
não determinam nenhum tipo de foco narrativo ali dentro, pelo contrário, são
completamente arbitrários, a começar pelo nome deles mesmo, com até alguma
dificuldade de pronunciá-los: Oerz, Firsteta, Zarn.
Quando nomeamos alguma coisa, reconhecemo-nos enquanto humanos.
Um nome próprio é fruto de uma consciência que sabe que existe, que respira,
produz e faz uso da linguagem. Não reconhecer um nome, ter dificuldade de
pronunciá-lo é não dominar essa linguagem, é encontrar-se em um estado
anterior ao da nomeação e uso da língua para fins de enciclopédia. Portanto,
apresentar-nos nomes estranhos para chamar alguns personagens é uma forma
de dizer que esses personagens são também a linguagem pura, animalesca que
se busca e não uma criação pensada pelo poeta. Observemos a citação de um
ensaio de Daniel Gomes acerca dos nomes próprios:
Nesta relação entre espaço e fala, entre a paisagem natural e a instituição dos nomes, vale ressaltar que os nomes próprios dos entes no mundo não são uma mera expressão ou um reflexo do pensamento, mas antes existem por ordem das condições determinadas de pensamento em cada espaço cultural próprio, que condiz a um espaço linguístico. (GOMES, 2013, p. 137) [...] chega-se à conclusão, que podemos chamar de etnográfica, de que os nomes são sistemas linguísticos, desenvolvidos histórica e culturalmente no contexto prático e relacional de interpretação, que definem e criam o nosso modo de ver o mundo tal qual se nos apresenta. (GOMES, 2013, p. 152)
Esses nomes escolhidos por Gullar geram uma não-identificação no leitor.
Eles não pertencem a outra língua, não advêm de qualquer tipo de reflexo
cultural. Eles são parte da fluência mesma da escrita anterior ao pensamento.
Logo, os personagens desse livro surgem a partir do que se escreve, dos
fragmentos que se formam e não fruto da criação de um enredo.
26
Na capa do livro, o título que se lê é apenas Crime na flora. Ao abri-lo,
temos uma seção chamada “Algumas informações”, assinada por Gullar, como
se fosse necessário explicar a loucura de sua obra. Segue-se, então, novamente
pelo título, mas dessa vez modificado: Crime na flora ou Ordem e progresso. Se
conseguíssemos captar qualquer tipo de fio narrativo dentro do livro, este seria
em torno de um crime, o assassinato de um corpo. Mas não é em qualquer lugar
que este crime ocorre. É na flora, e por flora podemos compreender o que há de
natural-vegetal, não-cultural, inumano. O título não é “crime na natureza”, uma
vez que a natureza engloba também o ser humano. Falamos aqui de algo cuja
existência não pensa, não racionaliza, não sente fome, assim como a linguagem
que Gullar busca. O corpo assassinado não necessariamente pertence a ela,
mas está dentro desse espaço neutro que é a flora.
E o que seria essa outra possibilidade de título, Ordem e progresso?
Primeiramente, precisamos lembrar que esse é o sintagma pertencente à
bandeira do Brasil, portanto a questão da nacionalidade está presente aqui,
possível referência às tentativas modernistas de dar um uso político para a
linguagem ou até mesmo uma crítica aos poetas brasileiros. O uso da conjunção
“ou” dá a entender que o crime ocorrido na flora pode ser sinônimo de ordem e
progresso, ou seja, há uma intervenção nesse mundo das plantas por parte do
ser humano.
Há uma busca e uma frustração de Gullar por essa linguagem neutra,
animalesca, anterior à razão. A intervenção de formas classificatórias da poesia,
suas escolas literárias, suas regras, pensar a poesia como um “fazer” e não um
“ser feito”, tudo isso é uma forma de interferência na linguagem pura. É um crime,
o assassinato do corpo-poesia, a intrusão da ordem e do progresso do homem
na neutralidade da escritura. Essa frustração talvez fique clara através desse
crime que é cometido, a intrusão do criador na obra poética, o pensar e
transformar a linguagem, encostar o dedo real nesse corpo que não poderia
jamais ser intocado. Octavio Paz, em seu livro O arco e a lira, afirma que:
[...] As palavras não vivem fora de nós. Nós somos o mundo delas e elas, o nosso. Para capturar a linguagem não temos outra saída senão empregá-la. (PAZ, 2012, p. 39)
27
[...] A palavra não é idêntica à realidade que nomeia porque entre o homem e as coisas – e, mais profundamente, entre o homem e seu ser – se interpõe a consciência de si. A palavra é uma ponte mediante a qual o homem tenta superar a distância que o separa da realidade exterior. Mas essa distância faz parte da natureza humana. Para dissolvê-la, o homem tem de renunciar a sua humanidade, seja regressando ao mundo natural, seja transcendendo as limitações que sua condição lhe impõe. (PAZ, 2012, 43-44)
Ferreira Gullar compreende justamente a teoria levantada por Octavio Paz
acerca da linguagem. Ele não quer a representação, quer a palavra ela mesma,
sem a interferência de sua consciência humana. Assim como Clarice, busca
justamente esse regresso ao mundo natural. Ela, através do animalesco; ele,
através da flora. Ao mesmo tempo que faz essa busca, por outro lado,
compreende sua impossibilidade, assim como Octavio Paz continua:
A impossibilidade de confiar a criação poética ao puro dinamismo da linguagem se confirma quando constatamos que não existe um único poema sem a intervenção de uma vontade criadora. Sim, a linguagem é poesia e cada palavra esconde certa carga metafórica disposta a explodir no momento em que se toque na mola secreta, mas a força criadora da palavra reside no homem que a pronuncia. O homem põe a linguagem em marcha. A noção de um criador, antecedente necessário do poema, parece se contrapor à ideia da poesia como algo que foge ao controle da vontade. (PAZ, 2012, p. 45)
A linguagem não é uma forma mágica que surge sozinha. Mesmo quando
animalesca, vem de uma necessidade instintiva de comunicação. Ela diz algo. O
grito de um animal pode chamar um outro animal. No caso da poesia, a
linguagem tem uma autoria. Talvez seja exatamente isso que Ferreira Gullar
chama de crime: a existência do poeta como um ser que manipula a linguagem,
que mata, transmuta ou viola esse corpo que aparece de repente.
Não podemos dizer que há um começo e um fim neste livro. A linguagem
como ser vivo e independente de nosso pensamento dá uma ideia de infinitude
e fluidez constante, a busca por alcançar esse desejo se expressa até no branco
da folha antes de aparecerem as palavras. Há um espaçamento maior do que o
comum. O texto começa quase no meio da página e com uma letra minúscula, o
que podemos compreender como uma continuidade e um recorte.
28
Não à toa, há um “eu”, única palavra do primeiro verso4, em cima de um
muro. Um muro é sempre uma divisão, muitas vezes entre o que nos é íntimo e
uma paisagem ou um ponto de diferenciação. Há uma isomorfia do espaço da
página formar um muro entre o silêncio e as palavras, ou podemos dizer entre o
pensamento e a linguagem, e chamar de muro o local onde o “eu” se encontra.
Se pensarmos o lado biográfico do poeta, esse muro também pode ser a
representação de uma dúvida: o passado de uma escrita pensada, organizada
esteticamente, banhada na tradição, e a vontade por ruptura, a busca por uma
escrita livre até mesmo das amarras do “eu”. Ou este “eu” como o próprio muro
que divide a escrita pensada, que está em silêncio uma vez que é controlada, e
a escrita não pensada que é por onde se desenrola esse livro.
Nancy, em seu livro Corpus, afirma que “Corpo é a certeza siderada,
estilhaçada. Nada de mais próprio, nada de mais estranho ao nosso velho
mundo” (NANCY, 2010, p. 7). Já na primeira página de Crime na flora é onde
aparece uma relação de metalinguagem fortíssima, comparando o texto a um
corpo. Citamos Nancy pois, para ele, o corpo é fragmento, dito próprio, mas ao
mesmo tempo estranho, e é também assim a relação vista da linguagem e da
escritura por Ferreira Gullar. Observemos:
eu
sobre o muro castigado, a doença solar nas engre-
nagens da terra,
eu que,
em silêncio, falo por tua boca, onde trabalhas, verboso,
falas em meus lábios na podridão apodrecidos, no bri-
lho do sossego da dentadura que o mito firma de detrás
da garganta na poeira cintilante; cabelos de metal, lúzi-
dos, o focinho da ascendência noturno, pelas folhas do
amor; [...] (GULLAR, 1986, p. 3)5
4 Chama-se esta única palavra de verso, pois o livro é uma mescla de gêneros distintos: fragmento, diálogo, poema em prosa (em sua maior parte), versos e concretismo. Não encontrou-se outra forma melhor de chamar este dêitico flutuante no começo do texto. 5 Transcreve-se com o mesmo espaçamento e respeita-se a diagramação do livro original.
29
O sujeito poético se desdobra através de um corpo que é o próprio texto.
É o texto que trabalha as palavras, que detém o verbo. Os lábios do poeta estão
apodrecidos visto que, ao escrever da linguagem, ao se fazer a escritura, o
pensamento que se poderia dizer já está passado, velho, deteriorado. O texto
tem uma boca. Ele é um corpo.
Se pensarmos, como na citação de Nancy, o corpo como um estilhaço e
pedaço de estranheza, também não é assim o poema em prosa misturado com
esse texto experimental de Gullar? Retomemos novamente a imagem do muro,
pois abre um leque grandioso de interpretações e possibilidades: o sujeito
poético está em cima de um muro, está em um espaço entre, nem lá nem aqui,
assim como o poema em prosa é o gênero da dúvida e da dualidade.
Há um questionamento a ser levantado após visualizarmos esse trecho:
já há um certo tipo de frustração por parte de Gullar com essa busca pela escrita
neutra. Há um “eu”, mesmo que em cima do muro, mesmo que seja o muro ele
mesmo, ele está ali presente. Ele é apresentado como uma “doença solar”. Solar
pode aqui adquirir o significado espacial de castelo, de grande moradia. É uma
ocupação do homem, uma doença em cima do que deveria ser natural, “nas
engrenagens da terra”. Mas existe. A autoria, mesmo que considerada de forma
negativa no fazer poético para Gullar, está presente. Michael Hamburguer chega
a essa conclusão, mas não de forma negativa:
A própria linguagem garante que nenhuma poesia seja totalmente “desumanizada”, sem a necessidade de o poeta tentar projetar a pura interioridade exteriormente – como Rilke fez algumas vezes – ou de perder-se e achar-se nos animais, nas plantas e nas coisas inanimadas. O equilíbrio exato entre a expressão do sentimento e a penetração do mundo exterior talvez seja um problema para os poetas quando não estão escrevendo poesia, bem como para aqueles críticos cujos interesses são psicológicos e filológicos. Quando o poema é bem-sucedido, o problema se acha resolvido nele: em seus limites, uma correspondência mágica, de fato, predomina. Algo dessa intercambialidade parece ligar-se até mesmo às experiências mais recentes num tipo de poesia que nem expressa nem registra coisa alguma, mas torna as palavras e suas relações recíprocas seu único material; por significativo que pareça, esse tipo de poesia foi descrito como poesia “abstrata” e “Concreta”. (HAMBURGUER, 2007, p. 48)
Logo em seguida, há um trecho em itálico, que pode sugerir a existência
de outra voz, diferente do “eu” que abre o texto. Diz o seguinte: “Há um nome,
30
debaixo da pedra, na flora. As asas fundindo-se à terra, um anjo que nosso
esquecimento derrubou, é carregado pelo exército de formigas. Sobre o muro
descansa o homem” (GULLAR, 1986, p.4). Seguindo pelo viés da citação de
Hamburguer, pensemos o que significa este nome embaixo da pedra. Há, por
trás de toda linguagem, um ser que se nomeia. Mesmo que escondido, ele está
presente. Pode ser o rastro da autoria. O autor, seu pensamento, seu processo
de criação poética, por trás do texto. Falar que há um nome significa que há o
dedo da referenciação, é a linguagem interpretada e não neutra.
Dando um salto para a última página do livro, percebemos um movimento
circular: volta para o cenário do muro, há uma referência novamente a este nome
sob a pedra, mas o “eu” que estava em cima do muro (não necessariamente o
mesmo, mas como marca referencial) está agora de um dos lados entrando pelo
terreno e o avistando. Não há um fim determinado neste livro, a última frase não
tem ponto final, e novamente há metade do espaço da página em branco. Há
exatamente o mesmo número de linhas da primeira página: vinte e um, o que
pode ser uma forma de expressar que o fim e o começo, mesmo que diferentes
(pois um está na parte de baixo e outro na parte de cima da página) se conectam
de forma simétrica, dando um continuidade ao outro.
Em qualquer interpretação literária, falar que o texto é sobre tal coisa, ou
narrar os acontecimentos dele, é uma forma de empobrecê-lo e também a
própria análise que é feita. Mesmo que se quisesse achar o ponto de explicação
narrativa desse poema, seria quase que impossível, mas podemos dizer que há
uma situação, ao longo de todo o texto e se repetindo de diversas formas: um
corpo é supostamente assassinado e vai se transformando a cada nova
descrição do que ele é, assim como a busca poética de Ferreira Gullar por uma
poesia completamente livre, próxima ao real, ser o real ela mesma. Mas é uma
poesia que se transforma ou que é assassinada? Esse é um crime de morte ou
de uma ação que se confunde com a morte, mas na verdade é outra coisa?
O poema é longo, tem por volta de setenta páginas, então a noção de
brevidade levantada pela teórica Suzanne Bernard anteriormente não está
presente, mas a de fragmento, sim. Os personagens que aparecem no livro vão
escrevendo um personagem que escreve outro personagem. Existe um “eu”
31
inicial que escreve outro e assim por diante. Passamos a ter um fragmento dentro
de outro fragmento, como um livro dentro de um livro, e tudo gira em volta do
corpo encontrado, que ora se torna um dos personagens ora já não é mais ele e
não se sabe mais o que é.
Como Gullar mesmo havia dito em sua autobiografia e citada aqui
anteriormente, ele foi fazendo colagens de textos e os conectando de alguma
forma em um tipo de unidade. Seria possível fazer uma leitura de Crime na flora
conectando os fragmentos que possivelmente foram escritos juntos, mas
separados na composição desse livro com outros fragmentos interpostos. Ou
seja, fazer leituras de apenas alguns fragmentos, separadamente. Mais uma vez
trazendo Clarice Lispector para esta dissertação, podemos observar que ela
também experimentou um processo criativo parecido:
Aproximando-se de algo como a escrita de um diário ou de uma carta, no qual anotações sobre acontecimentos do cotidiano ou reflexões sobre literatura são feitas, incluindo a técnica de montagem e colagem de textos anteriormente publicados e que reaparecerão ainda nas crônicas do Jornal do Brasil, este método se baseia na colagem de textos de diferentes estilos e material heterogêneo: crônicas, diário, poesia, narrativa de caráter fragmentário, sem definição de tema ou forma, apenas em justaposição paratática. Com isso, produz-se uma escrita na qual o objetivo é escrever o que vem à mão, concedendo-lhe caráter fragmentário e a-literário, com efeito de improvisação sem, contudo, deixar de praticar a reflexão sobre a escrita. (GUIMARÃES, 2007, p.7-8)6
Crime na flora, apesar de ser publicado em 1986, foi escrito trinta anos
antes. Essa citação sobre Clarice se refere ao seu manuscrito Objeto gritante,
escrito por volta da década de 70, que mais adiante deu origem ao livro Água
viva. O processo de colagem de textos fragmentários e o questionamento
temático sobre a linguagem apareceram, então, na poesia de Gullar antes da
escrita dos textos de Clarice. Essa informação é importante pois Ferreira Gullar
tende a ser observado apenas como um poeta político, sem apreço pela estética
e pela filosofia. Clarice, por outro lado, é reconhecida por uma escrita filosófica
e metapoética.
6 O artigo referido está sem paginação. A contagem foi realizada de forma manual.
32
Schlegel afirma que “Também na poesia cada todo bem pode ser metade,
e cada metade pode no entanto ser propriamente todo” (SCHLEGEL, 1997,
p.22). Se pensarmos a ideia do poema em prosa justamente como a ideia desse
fragmento escrito por Schlegel, em sua unidade orgânica, podemos entender
Crime na flora como uma construção espelhada em que cada fragmento olha
para o outro e se vê, adicionando, ao mesmo tempo, algo novo ao que já existe.
Os desdobramentos dos fragmentos acontecem repentinamente no livro.
Começa com o texto na primeira pessoa. Depois aparece em itálico a visão de
um narrador em terceira. Volta para a primeira pessoa. Reaparece o narrador na
terceira. Isso ainda sobre o mesmo personagem (se é que podemos chamar
dessa forma). Provavelmente, essa passagem é a criação de um duplo do sujeito
poético, que se transforma também em objeto. Então aparece em um fragmento
a figura de uma personagem mulher.
Aparentemente, essa personagem está em um outro plano narrativo. Há
sinais de choque entre a criação de uma narrativa e a busca pela linguagem
pura: “em que teu santo nome se esfacela”; “radiante e verbal”; “sorridente
solidão gramatical” (GULLAR, 1986, p. 4). Esse é o modo que se refere a essa
personagem, é como se ela não tivesse um nome próprio, logo se
desumanizasse, e fosse uma referência ao próprio texto. Ela é a linguagem, por
isso verbal, clara, gramatical.
Antes de continuar essa narração, há uma interrupção e a entrada de um
novo fragmento retomando a questão da busca pela linguagem pura e neutra:
“começa contigo, flubas, flânis, nalt, que começas aqui, a rua, a areia, o mundo
matinal, onde, sem a sexual energia que acende, onde surges,”(p.4) Essa ida e
vinda de fragmentos, descontinuação e retomada, acontece durante a escrita de
todo o livro. A estética e o conteúdo se combinam, nessa ideia inconstante e
incontrolada de costura textual.
Voltemos para a figura do corpo: o livro gira em torno dessa imagem que
aparece e reaparece, mudando de sexo, físico e localização, podendo ser
comparada com a forma do poema em prosa (ou do texto experimental a que
Ferreira Gullar está submetido). Pelo fato de ser um corpo em completa
experimentação, em mutação, em transformação constante, ele não tem uma
33
forma fixa, podendo até mesmo ser considerado nulo. Cada personagem no livro
é uma invenção de texto sobre texto, de mutação:
A chuva em pingos some na aura
branca da veste, detrás da qual, no centro dela, não há
corpo, oh Firsteta, não; chegarás molhada; no portão
retirarás o chapéu de fitas, pingando, os fios grudados
castanhos no teu riso. Caminhas na varanda, um sol
novo, sol jovem como um braço, trespassa as rótulas. (p.5)
Firsteta é um nome inexistente em nossa língua. Ela é uma personagem
nascida da origem da linguagem, por isso não foi alguém que a nomeou, mas a
linguagem mesma. Ela é uma parte do texto, há uma voz que narra exatamente
o que ela irá fazer. Ela não tem corpo, mas a paisagem que a envolve tem e a
toca. Michel Collot afirma que: “A experiência da percepção revela que o corpo
é, ao mesmo tempo, vidente e visível, tocante e tocado, sujeito e objeto; abre-
nos um mundo do qual ele mesmo faz parte” (COLLOT, 2013, p.37-38). Ou seja,
a paisagem criada é o que dará corpo à personagem, uma vez que tudo ali
representado é texto e está dentro dele.
Na mesma página, ainda, Gullar anuncia o rompimento com o passado:
“a humilde linguagem, esquecida, esfarelou-se pelas fendas do sentido sossego.
[...] as ruínas continuam a morrer” (p.5). A tentativa de trazer o novo, uma
linguagem independente, está presente a todo momento em Crime na flora, mas
nesse trecho é, de fato, anunciada. Fazer com que a poesia não seja um
discurso, mas a própria realidade, é algo impossível. Porém, sua tentativa, ao
fazer com que os personagens do livro sejam também autores de si mesmos, é
um passo de aproximação dessa sua vontade. Os personagens se tornam o
próprio texto. O que acontece, na verdade, é que o poeta cria duplos dentro de
duplos, e cada um se torna parte de um fragmento.
Ainda nesse trecho, há uma referência à transformação da memória em
poesia. Tudo que é lembrado é preciso estar esquecido. Por isso: “enrijecendo
as corbelhas fúnebres sobre cujas corolas de mofo uma tarde desabrochará seu
alarma” (p.5). Apesar da busca pelo novo e da ruptura levantada no parágrafo
34
anterior, há uma permanência ou, melhor dizendo, uma ressignificação desse
passado através da paisagem, que faz o papel de abrir a flor e o grito. Bachelard
afirma que:
A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta. (BACHELARD, 2008, p.2)
A imagem que Gullar usa é justamente a de uma explosão realizada
pela paisagem da tarde. A memória ressoa, as ruínas não morrem de uma vez,
mas continuam a morrer, pois são ressignificadas. Não há um desprendimento
total com a linguagem anterior, visto que toda ruptura carrega consigo um rastro
do que se intenciona a ser rompido. A criação dos personagens criando outros
personagens, sua tentativa de duplos, cada fragmento deixa no próximo
fragmento um pedaço de si.
Se Firsteta não tem corpo ou “és a sombra dum corpo” (não há referência
ao nome da personagem, mas há a marcação no feminino quando diz “sentada”
logo após a frase citada), Zarn não tem osso, é um ser invertebrado, mas tem
pele: “a pele era real, a pele que o recobria, e as formas de expressão[...] as
suas mãos não tinham osso, todo ele como uma orelha, invertebrado feito uma
flor que desabrocha” (p.6-7). Esse trecho está junto ao aparecimento de Oerz,
como se ele estivesse narrando a criação do personagem Zarn. Há, em Zarn,
um corpo que se solta, que é desossado, é uma tentativa de buscar o que existe
para além da forma comum de corpo: pele, carne, osso e o que há dentro de nós
(nosso eu, separado do corpo):
O desprendimento tendencial da pele responde ao seu ser essencial, que não é simplesmente o de envolver mas de desenvolver o que ela envolve: de expô-lo, de colocá-lo para fora e para o mundo. [...] O corpo floresce, desabrocha na sua pele, a pele é sua eclosão. [...] A flor anuncia o fruto, que é a resposta para seu apelo, o inchamento de uma carne nova sob uma pele nova, uma outra intensidade cromática (chrôma designa primeiro a tez da pele) e a iminência de um sabor e de um suco, licor saído da carne. (NANCY, 2015, p. 57-58)
35
Zarn não tem um corpo completo para os padrões, mas ele desabrocha.
Sua pele e sua carne é o que o segura e, como na citação acima, o que o coloca
no mundo. Estar à flor da pele é aqui uma forma de colocar-se para além da
forma-corpo, é ter uma essência mesmo sem ossos. E o que seriam os ossos
dentro de um texto? Uma forma sem osso é uma forma vazia ou uma forma
contorcida, mole, fácil de moldar, como a pele ou a carne. Uma personagem tem
um corpo nulo ou a sombra de um corpo, e o outro um corpo que pode se
contorcer. Como o texto mesmo de Gullar: disforme, tensionado, desdobrável, e
como a definição do poema em prosa: uma forma indefinida.
Os fragmentos que apareceram até agora foram: o eu em cima do muro,
um narrador em terceira pessoa, Oerz como criador de Zarn, e este como criador
de Firsteta. Observemos este trecho:
onde Zarn a criou com seus dedos moles e alvos tecen-
do. Fui eu, diz Zarn, o olhar fincado nas peras, eu que
a fiz, a teci [...]
[...] Mas teceste tudo? “Tudo.” Quem teceu o ouro
Que te deu o ouro da saliva? quem te deu o fio que te
deu os fios que te deram os dedos que dariam as ma-
lhas? [...] (p. 7-8)
Zarn cria Firsteta, ou seja, um fragmento da escrita dando origem a outro.
Essa criação se dá através de um contato corporal. Tal ato é apresentado como
uma costura, Zarn detém agulhas para esse processo. Escrever é como costurar
um corpo. Já havíamos visto anteriormente que Oerz aparece como um narrador
do nascimento de Zarn, e, no trecho acima, o diálogo se dá entre os dois, como
se criador e criação discutissem a respeito de sua ontologia. Apesar dos
fragmentos existentes no livro, eles se conectam e invadem o espaço do outro.
Oerz também se questiona sobre o processo de criação: “Oerz coça o
pescoço, mira as mãos. Para quem recordo?” (p.8) Novamente a criação poética
através da memória, mas dessa vez a noção de que provavelmente ele não é
dono de seus próprios pensamentos. O homem em cima do muro, o “eu”, ou o
narrador criam este personagem, e ele tem noção disso. E quem cria o criador?
36
A própria linguagem? A interferência da criação em sua própria narrativa é o
crime que ocorre nesse livro?
A cor azul aparece muitas vezes ao longo da obra: “os dois olhos de
escurazul sem pupila” (p.7); “rompendo a luz azul” (p.31); “rosa azul apodrecido
na luz” (p. 32); “com meu capote de lã azul” (p.33); “Na rua era noite, azul e ferida
também” (p. 34); “Em sua farda azul-preto” (p.36); ”dois ponteiros azuis brotam-
lhe do cálice” (p.45); “no chão de poeira azul” (p. 70) entre outros trechos. Criar
um clima cromático em que a cor azul é o centro, quando pensamos sobre um
corpo, é dar a ideia de um corpo que morre, que está sufocando. Quando não
recebemos oxigênio suficiente, nossa pele começa a ficar com uma coloração
azulada. Pensar isso dentro da forma é gerar um entorno poético em que a
forma-corpo do poema sufoca. É necessário trocar de pele, matar o corpo ou
transformá-lo já em outro.
Pensando sobre a tentativa de Gullar de fazer a linguagem uma realidade,
ele tenta fazer, então, com que a linguagem não diga nada. Ela não pode dizer,
para ele, pois dizer já é representar. Ela precisa ser ela mesma a realidade.
Fazer isso é tentar matar sua forma ou deixá-la o mais maleável possível. Um
corpo morto não diz, portanto não representa. Mas e o que fica, para além do
corpo, não fala? Talvez seja o outro (no caso cada fragmento e o leitor mesmo)
que fale com esse corpo:
O nome “cadáver” não dura. O corpo cai ainda mais embaixo: ele não tem mais nome, torna-se carne pútrida mais terra, poeira, cinza, resolução em partículas. O nome não dura e com ele nem mesmo toda a linguagem. Não se pode mais falar. [...] Um corpo morto, é nada a dizer. Nada a dizer. Não obstante se fala com ele. Se diz: salve, adeus, toca-se e abraça-se essa pele dura e fria que não é mais uma pele mas um simulacro gelado. (NANCY, 2015, p. 54)
Apesar da coloração azul, e de terem achado um corpo, ele é um corpo
que está sempre em comunicação com o outro. Todos que o encontram o tocam,
o transformam em objeto e até mesmo realizam atos sexuais. É um corpo que
sufoca, mas que não chega completamente a morrer. Tenta não dizer a
linguagem, mas ser ele mesmo uma forma de linguagem, uma transformação
37
constante. Até mesmo o gênero (que aqui se confunde com o sexo) do corpo é
questionável:
[...] Juntei o cadáver, dobrei-o so-
bre o ombro e carreguei-o para fora. Ao atravessar a
cozinha, sabia que carregava o corpo dela e não o dele. (p.18 e 19)
[...] Desci-lhe mais a calça e observei que o sexo era de
uma moça, e belo demais para estar morto. Sem des-
pir-me, apenas arregaçando a perna do calção, debru-
cei-me sobre o seu corpo e, abrindo-lhe as pernas, fiz
penetrar meu sexo no seu. (p.29-30)
Este corpo indefinido, transformado e manuseado de formas distintas é
como o poema em prosa, que está sempre numa tensão entre prosa e poesia,
que se mistura e se experimenta com filosofia, ensaio, carta, poema em verso,
conto, a depender de quem o escreve, do livro em que está inserido ou em qual
geração surge. O poema em prosa não é uma poesia que morre, mas que sufoca
e extrapola o limite dos versos, da quebra, flui como um rio sem rumo, como um
corpo sem ossos, como uma sombra do corpo.
Esse processo de assassinato e de transformação do poema-corpo se dá
através do nascimento dos duplos de Gullar. Não só os personagens são seus
duplos, mas o próprio ato de desconstruir a linguagem, de largar para trás o jeito
de escrever antigo e experimentar o novo é uma forma de nascer e renascer do
poeta. Por isso o “eu” em cima do muro no início do livro, ele é um “eu”
intermediário, que consegue ver seus “eus” que morrem e se transformam.
Florencia Garramuño, em seu ensaio Frutos estranhos, diz que
“claramente o poema em prosa, concebido como o outro do poema em verso,
teria sido um dos lugares privilegiados da literatura onde a poesia exibia sua
vontade de crise” (2014, p.53). Não só Gullar cria um poema em prosa que é o
outro de sua escrita anterior, ligada à métrica e às rimas, como também gera
outros “eus” a partir desse rompimento. Não só o corpo é uma metáfora para o
poema, como também o é para os desdobramentos do próprio poeta:
38
movo-me
desligado do que penso; outro eu, parado, rumina. Ia e
o corredor aumentava, polido. Como se descesse por
um prisma. Lá fora, decerto, as folhagens cortavam as
laranjas e a aurora nova e mínima dos salutos astros.
Fui e no chão via meu corpo e do chão me via, contra
minha altura, indo. O corredor cruzava-se com outros,
que eu olhava de relance, indo. Por eles, por cada um,
ia sempre alguém, só, que passava por outros cruza-
mentos e olhava de relance, indo. E via, nesses, al-
guém, só, que passava por outros cruzamentos de cor-
redores e via, de relance, alguém indo, só, que passava
por outros cruzamentos de corredores. Ia para o quarto
onde o cadáver me aguardava, exangue. Lá fora, a cei-
fação vesperal. E eu ia, e passava por novos cruzamen-
tos de corredores que se perdiam, longe, e por onde ia
alguém, o mesmo sempre, e que era eu. Cumprimen-
tamo-nos. Depois reparei que a cada passo, na parede
do corredor, havia um azulejo deslocado. (p.10)
O trecho acima é uma representação da ideia fragmentária de Crime na
flora, como no livro Poliedro, de Murilo Mendes, que já pelo título parte da ideia
de um conjunto de fragmentos que formam um sólido. Só que este, diferente do
livro de Gullar, usa dos estilhaços para desconectar o padrão do próprio poliedro.
Os poemas em prosa apresentam-se estilhaçados, confusos, desconexos. Há
infinitas possibilidades de quebras. No caso de Gullar, um “prisma” é um poliedro
limitado, pois é envolto de paralelogramas, não há referência ao estilhaço. O que
acontece é que os duplos vão se colocando em fila labiríntica, entrando em
contato um com o outro, até formar paralelos espelhados. Porém, não são
idênticos. Cada corredor paralelo tem seu próprio azulejo deslocado. As duas
formas de apresentar a ideia do poema em prosa como um gênero fragmentário
confirma mais uma vez a indefinição de forma para a representação dele.
Estilhaçado ou não, o poema em prosa se faz presente na escrita desses dois
autores.
39
A vontade de Ferreira Gullar de matar a poesia presente em seu passado,
romper completamente com ela e trazer à tona uma escrita que não fosse a
representação do real, mas ele mesmo, talvez estivesse em crise não só através
da questão filosófica do contato com algo que é impossível de ser realizado como
também através de sua própria escrita. Apesar de haver um corpo em Crime na
flora, e já pelo título um corpo fruto de um crime, portanto provavelmente
assassinado, esse corpo não morre por completo. Ele é um ser mutante. Talvez
tenha sido essa a conclusão filosófica a que chegou e que se refletiu dentro de
sua escrita. A flora detém absolutamente tudo, como ele mesmo deixa claro em
uma sequência que dura mais de cinco páginas:
o elmo
na flora
a louça
na flora
a moça
na flora
a flor
na flora
a fome
na flora (p. 52)
Está tudo dentro das possibilidades da linguagem, pensada e
transformada em literatura. Podemos recordar então Mallarmé quando diz que
não é no verso que está a crise, mas na literatura, que é dicção, ritmo e estilo.
Abolir o verso não é matá-lo. O corpo não está morto, está se metamorfoseando
em outros, e nenhum gênero melhor para fazê-lo senão o poema em prosa, que
já em sua essência abarca a mutação e a indefinição:
[...] Abri a porta e entrei, para apanhar o
corpo, cujo rosto crivado de agulhas de aço era o mais
belo objeto feito pelo homem. Certamente, pensava,
ela não queria de fato matá-lo e sim, tão-somente, criar
com o seu rosto e as agulhas um objeto novo. Tanto
40
que não havia sangue, e os estiletes se alojavam na
carne do homem com extrema madureza. (p.18-19)
A personagem que, teoricamente, tentou matar Zarn, não realmente
queria fazê-lo. Através das agulhas, que nos dá a ideia de uma tentativa de
costura no tecido que é a pele, queria transformá-lo, exatamente como a vontade
de Gullar não era a de assassinar a poesia, mas fazê-la ser algo novo. Depois,
ela se transforma ainda na própria pessoa que o tentou matar, sujeito e objeto
de um crime se tornam um. O que passa a ser assassinado, então, é a vontade
de assassinar. O corpo, por outro lado, continua presente, se transformando. E
quem o carrega sabia desde sempre que o que estava sendo morto era outra
coisa que não um corpo.
O poeta faz referência ao seu próprio livro e a poetas que também
romperam com o verso tradicional, como Lautréamont, Crevel, Artaud e
Rimbaud. Isso representa que, mesmo Crime na flora sendo extremamente
experimental, e mesmo que os autores citados tenham escrito poemas em prosa,
essas escritas estão previstas dentro da literatura. O crime, portanto, de romper
com a poesia tradicional, de assassinar o que Gullar conhecia como poesia, na
verdade ainda está dentro dos limites do que chama de flora:
PLATÃO NA FLORA
ALFAIATE NA FLORA
Enterro e flora
Lautréamont Crevel
Artaud Rimbaud
na flora (p. 62)
Rimbaud, em sua carta a Izambard, afirma que “Eu é um outro” e “É falso
dizer-se: eu penso. Deveria dizer-se: sou pensado.” Crime na flora pode ser lido
à luz dessas duas afirmações, e com certeza essa é uma das razões desse
escritor ser citado no texto. Gullar se desdobra em vários, em espiral labiríntica,
e isso se reflete na forma como o livro é escrito e na criação dos personagens e
suas relações entre si. Não à toa o livro começa com um “eu” em cima do muro
que textualmente se transforma em outro. Sobre o pensamento, fica clara essa
41
busca por uma linguagem que é dona do poeta, e não o contrário: “E entrepensei:
movo-me desligado do que penso; outro eu, parado, rumina” (p.10).
Através dessa reflexão em versos de cachoeira, ele chega à conclusão de
que a poesia não está morta. Está transformada. Para matar a poesia, só
parando de escrever, não dizendo mais nada. Mas continua dizendo, o processo
do livro é dizer alguma coisa, é falar de si mesmo, da mutação e do encontro
com o poema em prosa. Um pouco mais à frente, já no fim do livro, eis o que
acontece com o corpo:
[...] Foi aí que ela começou a morrer.
Esperei-a de noite, para matá-la, como de fato a matei,
com as minhas duzentas agulhas de aço, longas de dois
palmos, fiz de seu rosto um objeto novo, de carne e aço.
[...] e já ela
nascia metamorfoseada o corpo morto retirado onde
havia um jardim. (p.69)
A única morte presente de fato é a morte para o renascimento. Se a escrita
continua é porque há vida, há transformação. Gullar mostrou sua crise com a
poesia tradicional escrevendo um livro que rompeu com essa forma. Sua vontade
talvez fosse a de matar completamente a poesia. O que aconteceu, por outro
lado, foi dar a possibilidade do corpo-poema virar um monte de coisas,
atravessar seus duplos, suas dúvidas e labirintos. O corpo se dobra, é
desossado, costurado, enterrado, mas há nele a poesia, venha ela em forma de
versos ou em forma de prosa: “ajoelhei-me para observar e vi que eram letras e
algarismos, e que não havia uma parte de seu corpo sem eles, e que não eram
desenhados nem tatuados, mas próprios da epiderme, como as impressões
digitais” (p.29). Para que buscar uma poesia tão-só real, se temos a partir da
flora infinitas possibilidades para inventar?
Interpretar um poema não é fácil. É necessário um mergulho profundo e
uma quantidade de leitura e releituras múltiplas. Parte da interpretação de
qualquer obra de arte vem de organização de pensamentos, mas a outra parte
42
é uma grande amálgama do inconsciente casado com a memória e com
associações de outras obras ou experiências de vida. Interpretar Crime na flora
é uma tarefa ainda mais difícil, pois, além de ser um livro inovador, com
características de experimentação únicas e esquecido pela crítica, trouxe junto
consigo a necessidade da teoria sobre o poema em prosa.
Falar sobre esse gênero é andar na corda bamba. Classificá-lo ou amarrá-
lo não deve ser o caminho a ser trilhado. Entender o que há de poema e o que
há de prosa, o que há de outros gêneros junto dele, é por vezes confuso e
labiríntico. Captar a tensão desse gênero é também tensionar-se. Ele gera no
leitor sua confusão, sua indefinição, e acaba sendo um gênero que transpõe
muito o limite de um só eu. Também o leitor está presente e participa do crime.
Durante o processo de leitura e de escrita deste capítulo, perguntamo-nos
diversas vezes: mas será que esse livro pode ser considerado um poema em
prosa? Com certeza absoluta, fazemo-nos essa pergunta sobre vários outros
textos. Esse é de fato o gênero da dúvida e do questionamento. Independente
do que Gullar disse sobre seu livro, sobre não saber exatamente o que era e
onde se encaixava, trouxemos elementos que, de certa forma e na medida do
possível, se direcionassem para o poema em prosa, pois há essa possibilidade
em aberto em seu texto.
Um livro que gera fragmentos dentro de fragmentos, que metamorfoseia
a escrita, abrindo para ela múltiplos caminhos, que tenta narrar mas se perde no
tempo, que gera imagens poéticas em exaustão... o que seria? Além de algumas
partes em versos ou diálogos e de trechos de poemas concretos, podemos dizer
que é uma poesia em forma de prosa. É uma dança que se distorce pelo ímpeto
da caminhada, mas continua a dançar.
Talvez Ferreira Gullar tenha trazido a melhor (in)definição para o poema
em prosa: um corpo metamorfoseado, que, a cada novo fragmento ou a cada
nova leitura, muda de sexo, de forma, desaparece, reaparece. Um corpo em
mutação.
43
3 – O corpo social e coletivo: um grito da poesia
David Le Breton, em seu livro A sociologia do corpo, afirma que “antes de
qualquer coisa, a existência é corporal” (BRETON, 2012, p.7). Isso significa que
o corpo ou a relação que tecemos com ele não é desligada do meio sociocultural
a que estamos submetidos. Pensar o corpo individualmente, sem considerar os
aspectos do mundo em que estamos inseridos seria adentrar apenas no fator
biológico como algum tipo de verdade. Isso seria um erro, uma vez que
desconsideraríamos a característica mais marcante que nos faz sermos o que
somos: a interferência na natureza, a construção de uma vida em sociedade, o
pensamento e a capacidade de nos refazermos e de nos reconstruirmos
diariamente enquanto seres humanos que se conectam.
É a partir dessa compreensão que Breton nos traz que podemos pensar
a poesia de Ferreira Gullar nas décadas de 60 e 70 no Brasil sob o viés da
corporeidade. A entrada do poeta de forma participativa na vida política e cultural
do país reflete também uma mudança em seu fazer poético. Antes disso, estava
profundamente envolvido junto de Lygia Clark e Hélio Oiticica na fundação do
movimento neoconcreto, que o levava por um caminho de criação artística que
priorizasse a estética (apesar de Lygia e Hélio seguirem por um viés de
entendimento de que o corpo poderia servir como uma ponte sensorial para a
descoberta artística, independente de uma noção racional, enquanto Gullar
achava que isso ultrapassava a possibilidade de uma arte humana, pois
negavam a produção estética consciente7).
Pouco tempo depois, já na década de 60, acontece uma ruptura de Gullar
com o movimento neoconcreto, visto que a mudança da realidade e o começo
de sua militância política influenciam diretamente em sua poesia:
Muitos acreditavam estar a caminho um inevitável enfrentamento revolucionário. Esse sentimento trará uma modificação profunda na perspectiva crítica, teórica e artística de Ferreira Gullar, que, em 1960, encontrava-se em Brasília como diretor da Fundação Cultural do
7 Retirou-se essa ideia da autobiografia poética de Gullar, portanto é uma opinião do poeta em relação aos seus companheiros do Movimento Neoconcreto.
44
Distrito Federal. [...] Mais do que alterações no estilo de sua poesia, mais do que a ruptura com um determinado projeto estético, a sua mudança significou a “conversão” de um dos principais formuladores do projeto “esteticista” para o grupo dos “engajados”. Ferreira Gullar, que é ao mesmo tempo criador e criatura do Neoconcretismo, rompe com o grupo que ele próprio criou e por quem fora criado. (CAMENIETZKI, 2006b, p. 61-63)
Marx já apontava no livro A ideologia alemã que o pensamento e as ideias
de um indivíduo têm uma relação direta ao meio em que está inserido e à
produção em sociedade (MARX e ENGELS, 2005, p.51). Ferreira Gullar, ao
entrar em contato com as ideias comunistas e tomar parte ativa no processo de
construção cultural dentro do ambiente de luta política, transforma sua forma de
ver o mundo e, por consequência, sua forma de fazer poesia. Essa mudança se
dá não só em seus escritos mas, como apresentado na citação acima, também
no âmbito da vida social, uma vez que deixa para trás o movimento estético em
que era profundamente engajado.
Gullar afirmou diversas vezes em vida que seus poemas nascem do
espanto, por isso passou por períodos de longa pausa na atividade literária. O
espanto, dentro do contexto que estamos discutindo, surge a partir de um jogo
face a face com a dura realidade a que o Brasil estava (e ainda está) submetido.
O social afetou o poeta, e isso se refletiu em sua relação com o corpo e sua
produção. Poema sujo começa com “uma espécie de vômito do vivido”
(GULLAR, 2015, p. 58), é uma forma de o corpo mesmo reagir ao ambiente à
sua volta e produzir uma poesia que toca intimamente o real.
A poesia produzida pelo poeta nessa época é, então, diretamente ligada
à relação corporal dele no mundo, uma vez que a existência parte disso e, com
a descoberta e estudo dos ideais marxistas, passa a compreender as dores
corporais que a luta de classes inflige à maior parte da população brasileira de
origem mais humilde. Sua poética segue por esse caminho vivido e apresenta o
corpo de uma forma completamente diferente do que vimos no capítulo anterior.
O corpo, agora, é um sustentáculo, uma amálgama coletiva e dolorosa que
carrega consigo todas as mazelas sofridas dentro de uma sociedade capitalista
selvagem. É sujo, cheio de dejetos, mas é também uma muralha.
45
Sobre sua poesia nessa fase política, Gullar afirma que pouco pensou na
estética, no trabalho artístico do poema. Isso de certa forma foi uma frustração
para o poeta, que, em sua opinião, não conseguiu transformar as lutas sociais
ou suas vivências no âmbito da política e do marxismo em trabalhos artísticos
de qualidade, referindo-se aos poemas escritos entre 1962 e 1975. Porém,
refletindo sobre essa questão da poesia política e a construção estética do
poema, em 1975, já pensa a escrita de Poema sujo de uma forma distinta,
tentando combinar a vivência social com um fazer poético pensado e trabalhado
mais profundamente.
Trotsky teorizou sobre a poesia surgida pelos proletários envolvidos nos
processos de luta na época da União Soviética e, assim, como Gullar, também
questionou a qualidade da escrita produzida ligada diretamente às questões
sociais:
A arte dos poetas das fábricas está incontestavelmente muito mais ligada, e de maneira orgânica, à vida, às preocupações cotidianas e aos interesses da massa trabalhadora. Mas não representa uma literatura proletária. Trata-se somente da expressão escrita do processo molecular de elevação cultural do proletariado. [...] Sem dúvida: mesmo fracos, incolores e cheios de erros, os versos podem marcar o caminho do progresso político de um poeta e de uma classe, possuindo imensurável significação como sintoma cultural. Os poemas fracos — e mais ainda aqueles que revelam a ignorância do poeta — não constituem poesia proletária simplesmente porque não constituem poesia. (TROTSKY, 2007, p. 147)
Essa questão de poesia política versus poesia com valor estético talvez
esteja um pouco defasada ou superada no meio da geração de poetas e críticos
contemporâneos. Há os que afirmam que todo poema já é político. Mas, se assim
for, qualquer ato que realizamos em nossa vida já seria político, então nada
necessariamente teria esse viés. O que é pensar esteticamente um poema? Ir
por esse caminho de discussão voltaria necessariamente à pergunta de o que é
um poema e, mais ainda, o que é boa poesia. Por que, ao abordar sem desvios
o cotidiano e as preocupações do povo e suas vivências, um poema não seria
um poema? Talvez tanto Trotsky quanto Ferreira Gullar (apesar de este ter
afirmado em 2015 que “mais tarde me dei conta de que fazer má poesia não
servia pra nada” (GULLAR, 2015, p. 57), em seu livro autobiográfico) estivessem
46
ainda com um tipo de preconceito em relação à poesia que não se eleva, à
poesia que também pode nascer da rua e do povo.
De qualquer forma, pensar a política pelo lado do povo explorado e
transformá-la em poema é um fazer corporal, uma vez que a condição miserável
dos trabalhadores recai fisicamente sobre eles, através da fome, da pobreza e
da animalização. O corpo surge nos poemas de Gullar nessa fase como um
elemento não separado do homem, mas diretamente ligado à sua existência e à
vontade por mudanças sociais. Voltando para a afirmação de David Le Breton
citada no início deste capítulo, percebemos uma mudança que parte do campo
ideológico diretamente para o campo artístico do poeta, acerca do que significa
o corpo (como veremos mais à frente na interpretação dos poemas):
Para Villermé, Marx ou Engels, é mais importante revelar a condição da classe trabalhadora no contexto da Revolução Industrial. A corporeidade não é objeto de estudo à parte, ela é subsumida nos indicadores ligados aos problemas de saúde pública ou de relações específicas ao trabalho. A relação física do operário com o mundo que o cerca, sua aparência, saúde, alimentação, moradia, sexualidade, sua procura pelo álcool, a educação das crianças, são alternadamente consideradas para fazer um levantamento sem compaixão das condições de existência das camadas trabalhadoras. A constatação implícita do caráter social da corporeidade resulta no apelo às reformas e, mais radicalmente, no engajamento revolucionário. (BRETON, 2012, p. 16)
Logo, não só a poesia de Gullar se torna política, mas sua poética do
corpo, diferentemente do que vimos em Crime na flora, não é mais um ser em
mutação, buscando a experimentação, se deslocando, trocando de sexo. O
corpo aparece, nos livros Dentro da noite veloz e Poema sujo, como sustentáculo
e muralha do poema, uma vez que os males dos trabalhadores vêm daí, a partir
da condição material dentro de um mundo injusto e faminto. Neste capítulo,
interpretaremos essa mudança de compreensão do corpo, partindo de sua
conexão com as lutas políticas e com a resistência que o povo precisa alcançar
para sobreviver diariamente. O corpo, aqui, não é um duplo. É ele mesmo o ser
que sofre, passa fome, protesta e escreve.
47
3.1 – Um corpo sujo, resistente e presente.
Pensar o corpo é antes de tudo pensar seu processo de sobrevivência.
Há uma naturalidade nele que funciona sozinha e independente de nossas
vontades ou racionalidade. Sentimos fome: comemos (quando possível);
sentimos sono: dormimos; e é preciso falar também que ejetamos sujeira de
dentro do organismo. A respeito da imundície do corpo, palavra que evitamos,
Jean-Luc Nancy diz o seguinte:
Um corpo é para si mesmo, também, a sua devoração, a sua degradação, e até ao pus fedorento, ou até a paralisia. A existência não comporta apenas o excremento (como tal, elemento cíclico): mas um corpo é e faz também a sua própria excreção. Um corpo espaça-se, um corpo expele-se, de igual modo. Excreve-se como corpo: espaçado, é um corpo morto, expelido, é um corpo imundo. O corpo morto delimita o imundo e retorna para o mundo. Mas o corpo que se expele insere o imundo em pleno mundo. E o nosso mundo faz as duas coisas: dupla suspensão do sentido. (NANCY, 2010, p. 101)
É justamente isso que Ferreira Gullar faz em seu poema “A bomba suja”:
“excreve” com o corpo, ao usar da palavra “diarreia” em um poema. Não só faz
a escolha desse vocábulo, como o “introduz” dentro da escrita. Ou seja, expele
o dejeto do corpo diretamente no mundo, traz, como Jean-Luc Nancy afirmou na
citação acima, a imundície. A poesia política não é bela, não a poesia corporal
que vem da experiência com o real e sua sujeira: ela traz palavras pesadas,
como diarreia, que geram em nós, leitores, nojo e um encontro direto com a parte
de nós mesmos que evitamos.
Uma bomba serve para matar ou para criar algum tipo de ato, seja ele
terrorista, de medo ou até mesmo político. Ao dar ao seu poema o título de “A
bomba suja” e começar a primeira estrofe com “Introduzo na poesia/ a palavra
diarreia. / Não pela palavra fria/ mas pelo que ela semeia” (GULLAR, 1991a, p.
153), o poeta está ameaçando a poesia com uma possível explosão. Foi
introduzida, ou seja, propositalmente colocada no poema essa palavra que, além
de sua simples significação, carrega uma história, um peso no real que na escrita
cumpre o papel de perigo, de destruição.
48
O poema é um corpo que recebe, nesse momento, a imundície da palavra
diarreia. Expelir e excrever a diarreia: trazer para o poema-mundo a sujeira. Além
da palavra, sua semeadura: “Mais que palavra, diarreia / é arma que fere e mata”
(p. 153). Ou seja, em sua ação de bomba, o ato na realidade é que a diarreia
mata milhares de homens e crianças pobres no Nordeste do Brasil, mais até
mesmo do que uma arma ou uma bomba. É o próprio corpo se espaçando e
levando à morte.
Há, portanto, dois movimentos corporais da bomba dentro desse poema:
o primeiro se dá na relação entre palavra e poesia, ao introduzir “diarreia” como
um vocábulo que pode explodir, semente que é, a tradição de uma escrita que
nega a imundície; o segundo é o papel dentro da realidade que essa palavra
carrega, sendo extremamente corpórea e trazendo consigo fatos de doença e
aniquilação do ser humano em condições de pobreza.
A bomba também é relacionada ao tempo que o trabalhador gasta em seu
processo de produção. E o tempo de trabalho é o que vai ativando ao longo da
vida o funcionamento desta bomba-relógio. Há uma apresentação da exploração
e da mais-valia e de um autor que liga essa bomba no corpo do homem. A
respeito da relação do corpo com o trabalho na sociedade capitalista, Nancy diz
o seguinte:
Onde estão os corpos, antes de tudo? Os corpos estão antes de tudo no trabalho. Os corpos estão antes de tudo a penar no trabalho. Os corpos estão antes de tudo em deslocação para o trabalho, no retorno do trabalho, à espera do descanso, a pegá-lo e a rapidamente despegá-lo, e estão a trabalhar, a incorporar-se na mercadoria, eles próprios uma mercadoria, força de trabalho, capital não-acumulável, vendável, esgotável no mercado do capital acumulável, acumulador. (NANCY, 2010, p.107)
Ao trabalhar, vendemos nosso tempo. Além de uma bomba suja, temos
em nós todo tipo de bomba relacionada ao processo de exploração: miséria,
fome, estresse, depressão, injustiça social. O corpo e o trabalho, em uma
sociedade dividida em classes sociais, são sinônimos de degradação, marcada
pelo relógio. No poema, a bomba está plantada em nós historicamente, anterior
mesmo ao nosso nascimento físico:
49
Bomba colocada nele
muito antes dele nascer;
que quando a vida desperta
nele, começa a bater.
Bomba colocada nele
pelos séculos de fome
e que explode em diarreia
no corpo de quem não come. (GULLAR, 1980, p. 154)
Existe alguém que ativa essa bomba no corpo. Ela é, de certa forma, um
intruso dentro de nós. Assim como foi introduzida a palavra “diarreia” no poema,
também foi introduzida essa bomba em nosso coração. Esse processo de
questionamento se dá ao longo de algumas estrofes do poema, com construção
de perguntas retóricas, e afastando a responsabilidade de ativador da bomba
real das mãos do trabalhador. No poema, por outro lado, o ativador é o próprio
poeta, ao escrever usando esse vocábulo sujo.
Ao fim do poema, é apresentada a possibilidade de desarmamento da
bomba. Esse processo também se dá de forma corporal: através de nossas
próprias mãos. Não só a força de trabalho é representada aqui pela figura das
mãos, mas também o próprio ato de escrever esse poema. Introduzir a palavra
“diarreia” é então não um ato de armar a bomba, mas, pelo contrário, de tentar
desarmá-la fora do poema.
Este é o segundo poema de Dentro da noite veloz. O poema “Meu povo,
meu poema” que inicia o livro, dá a tônica da construção dessa obra. Ferreira
Gullar torna-se um operário, um canavieiro das palavras. Ele usa de sua força
de trabalho para criar poemas que se aproximem da bomba-relógio e sirvam
para detoná-la dentro da poesia e desarmá-la no mundo real. Os poemas são
como plantações a serem colhidos pelo leitor, carregando consigo toda a
imundície de um corpo que pena.
No poema “Homem comum”, podemos observar como a forma de
entender o corpo se dá a partir de uma interação direta com um coletivo social.
A começar pelo título, o poeta se apresenta como qualquer outro homem, uma
representação de um estereótipo do que é um sujeito brasileiro trabalhador
50
inserido no tempo em que foi escrito o poema. A relação entre “carne” e
“memória”, “osso” e “esquecimento” não surge a partir de um estranhamento,
mas de um reconhecimento. A memória existe no momento em que há vida, em
que há corpo, é uma forma de vivência corporal; o esquecimento vai ao fundo de
nós, nossos ossos, mostrando que até mesmo na morte, onde há ausência de
memória, é também nosso corpo, nossos restos que permanecem.
Na segunda estrofe, há uma tentativa de gerar empatia no leitor, ao
começar com o verso “sou como você”. Como no poema que abre essa obra
“Meu povo, meu poema”, Gullar quer falar diretamente com o povo, quer devolver
a poesia para o lugar de onde ela surgiu. Em “A bomba suja”, há um trabalho
direto com a palavra, de introduzir no poema algo que não lhe era comum e de
expor a sujeira e a miséria; em “Homem comum”, há uma proposta de
identificação e de chamado, quase como um panfleto empático acerca da
vivência e construção da personalidade do povo brasileiro.
Ao direcionar o poema a um outro que o lê, o corpo é colocado fora do
limite do individual para ocupar um espaço de endereçamento e de
espelhamento. A compreensão da existência de um homem coletivo surge
justamente de uma identificação corporal: compartilham os rostos, as mãos, a
carne e o osso (através da memória e do esquecimento), “tudo misturado”:
O que limita quem eu sou é o limite do corpo, mas o limite do corpo nunca pertence plenamente a mim. [...] Evidentemente, o fato de o corpo de uma pessoa nunca pertencer completamente a ela, de não ser delimitado e autorreferencial, é a condição do encontro apaixonado, do desejo, do anseio e dos modos de se endereçar e de endereçamento dos quais depende o sentimento de estar vivo. (BUTLER, 2017, p, 87)
Apesar de esta citação de Judith Butler estar inserida dentro de um
contexto de guerra, tortura e violência contra o corpo, podemos usá-la como
forma de ler esse poema de Gullar, quando nos atentamos ao diálogo que existe
dentro dele com um outro, a partir da corporeidade. É justamente por esse corpo
ser o de um “homem comum”, ou seja, ser um corpo social, coletivo, um símbolo
de um povo, que existe essa possibilidade de tocar o outro, de endereçar-se. Ao
51
mesmo tempo que fala para fora, também fala consigo mesmo: “Quero, por isso,
falar com você/ apoiar-me em você/ oferecer-lhe o meu braço” (p. 162).
Essa ideia de “falar com você” abre também espaço para uma poesia que
sai do pedestal. Assim como em “A bomba suja”, onde introduz uma palavra que
choca e que incomoda, nesse poema há um certo tipo de diálogo informal, como
se de fato estivesse conversando com alguém, explicando características de sua
vida e, além disso, tentando convencer o outro sobre um certo tipo de saída
estratégica (apesar de abstrata), ou seja, em ambos os poemas há uma busca
por uma desconstrução do que conhecemos como poesia clássica. Existe um
tipo de propaganda política embutida dentro deste poema, e o próprio poeta
deixa isso claro em “Homem comum”:
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
Nem move o pau-de-arara. (GULLAR, 1991a, p. 162)
O próprio poeta não se considera poeta em sua atual forma de escrever
poesia. Chega à conclusão de que o poema não pode mudar a realidade nem
alterar o destino do corpo no mundo. O poema não interfere na vida real, não
pode parar a tortura da época da ditadura militar. O que seria então esse texto,
esse livro que estudamos aqui? Um panfleto? De fato, um poema não muda o
mundo, mas quebra o silêncio. Em tempos de perseguições políticas, escrever
poesia, ainda mais de forma engajada, é dar um grito antes silenciado. A poesia
pode não comover ou mover o pau-de-arara, mas ela pode transformar essa dor
física em linguagem:
52
Al-Haj8 afirma que foi torturado e pergunta como pode combinar palavras e fazer poesia depois dessa humilhação. E são os próprios versos que em que questiona sua habilidade de fazer poesia que constituem sua poesia. O verso, portanto, representa aquilo que al-Haj não consegue entender. Ele escreve o poema e, no entanto, o poema nada mais pode fazer senão indagar abertamente a condição de sua possibilidade. [...] Suas palavras passam da condição de tortura, uma condição de coerção, ao discurso. Será que o corpo que sofre torturas é o mesmo que escreve aquelas palavras? (BUTLER, 2017, p. 89)
Gullar também questiona sua capacidade de escrever poesia a partir do
momento em que está profundamente engajado em uma luta política. A pergunta
é a mesma que Al-Haj se faz: como escrever poesia em um mundo decadente,
em que a dor física é imperiosa? “Lutar por um mundo melhor” é o único sentido
que vê no momento em que escreve esses versos. Porém, assim como na
citação, a poesia se dá justamente onde se acha que não é possível a presença
da poesia: nesse questionamento sobre o corpo, sobre a dor, sobre a realidade
pungente. Ela nasce justamente dessa tensão entre a vida e a arte.
Assim como no final do poema “A bomba suja”, “Homem comum” traz uma
estratégia corporal para superar os problemas sociais apresentados. É
necessário que esses milhares de corpos de homens comuns se juntem e
formem uma muralha. Essa muralha é apresentada tanto de forma física, de fato
há corpos lado a lado, como também ideológica: “e podemos formar uma
muralha/ com nossos corpos de sonho e margaridas.” A saída para a luta de
classes é a união dos indivíduos em um ser coletivo, forte e resistente. Essa
visão de um corpo coletivo é muito comum em sociedades de origem
comunitária, não à toa Ferreira Gullar passa a enxergar a corporeidade dessa
forma quando traz consigo uma ideologia de luta contra um sistema individualista
e explorador:
Nas sociedades tradicionais, de dominante comunitária, na qual o estatuto da pessoa subordina-se ao coletivo, misturando-a ao grupo e negando a dimensão individual que é própria das nossas sociedades, o corpo é raramente objeto de cisão. O homem e o corpo são indissociáveis e, nas representações coletivas, os componentes da carne são misturados ao cosmo, à natureza, aos outros. A imagem do corpo é aqui a imagem em si, alimentada pelas matérias simbólicas que mantém sua existência em outros lugares e que cruzam o homem
8 Sami Al-Haj foi preso e torturado nas prisões mantidas pelos Estados Unidos, Bagram e Kandahar, e depois transferido para Guantánamo.
53
através de uma fina trama de correspondências. [...] Em sociedades que permanecem relativamente tradicionais e comunitárias, o “corpo” é o elemento de ligação de energia coletiva e, através dele, cada homem é incluído no seio do grupo. (BRETON, 2012, p. 30)
Tendemos a relacionar a memória a algum tipo de lugar ou paisagem. Os
acontecimentos passados vêm à mente sempre recheados de pilastras, árvores,
salas vazias. Quando, porém, os acontecimentos se dão a partir de uma
compreensão do corpo no mundo, seja através da tortura, do trabalho ou do uso
exploratório profundo de nossos membros, não é a memória que retorna através
de imagens ou sensações, é o presente se colocando sempre em primeiro plano.
Se, como afirma Michel Collot, o “pensamento-paisagem é a obra de um
cogito corporal, pré-reflexivo e ancorado nos movimentos que anima o corpo e a
paisagem” (2013, p.41), ou seja, se há uma relação direta entre corpo e natureza
(ambientação) na formação da memória e dos sentidos à nossa volta, na poesia
de Ferreira Gullar a relação se dá entre o corpo e o local de trabalho, entre o
corpo e a prisão, entre o corpo e a rua. Esse contato do corpo com paisagens
(mesmo que não naturais) ligadas diretamente à exploração e objetificação do
ser humano gera poemas que retornam sempre ao presente, a partir de uma
compreensão corporal.
A âncora de um corpo que resiste só pode ser o agora. Não há
possibilidade de trazer a memória para o poema se ela se desmantela no ar
diante da situação do país e dos trabalhadores da época. Sim, é preciso
aprender historicamente com o passado para se construir um presente político,
mas a forma como Gullar transforma a luta política em poesia se dá guiada por
um corpo vivo, coletivo e resiliente no momento em que se escreve. Observemos
dois trechos do poema “Maio 1964”:
Na leiteria a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.
[...]
Estou aqui. O espelho
não guardará a marca deste rosto,
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se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.
Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma. (GULLAR, 1991a, p. 163-164)
Não é por acaso que se escolhe para começar a primeira estrofe uma
leiteria: é possível reconhecer uma referência ao poema de Carlos Drummond
de Andrade, “A morte do leiteiro” (1945, p.108). Neste poema, a relação entre
“leite” e “sangue” se dá a partir de dois processos de violência: a do trabalho do
leiteiro e a de seu assassinato. Ambas as situações se conectam e se misturam
ao fim do poema porque, obviamente, a relação que tecemos com a exploração
é um certo tipo de deterioração invisível. Leite e sangue no poema de Gullar
também vão por um caminho parecido, mas metaforizados de formas distintas:
o trabalho (a leiteria) reparte o tempo, mas o sangue, representado pelo corpo
ao olhar o espelho, não se reparte.
Como já vimos anteriormente, o corpo nessa fase do poeta não é abertura
para duplos. Nem mesmo o olhar para o espelho gera a duplicidade do eu: não,
é apenas seu rosto que se visualiza no tempo presente. O tempo também não
se duplica em memória: ele é repartido em um processo de produção do
trabalho: iogurtes, coalhadas, copos. Corpo e tempo estão profundamente
ancorados às quatro horas de uma tarde de maio de 1964.
O presente é tão latente que a morte cumpre o papel de afirmá-lo. O corpo
está vivo e resistindo no momento em que se luta e se escreve o poema. Quando
a morte vier e varrer o corpo, de nada adiantará o reflexo no espelho. Este
mesmo eu que olha de volta só é possível a partir da presença corporal do poeta.
A morte, portanto, dá a essência fundamental, o nascimento desse “aqui” e
desse “agora”. É uma compreensão dialética e marxista sobre o tempo:
É o tempo, o passar do tempo que não é hora, que não tem medida e que é apenas o processo da vida e da morte, indiferente aos fatos e ao sujeito. [...] Em seus primeiros livros de poesia, a morte a deterioração das coisas, do corpo e da linguagem eram inerentes à passagem do tempo. A morte, agora, é ponto de partida. (CAMENIETZKI, 2006a, p. 106-107)
55
O fim do poema de Drummond traz uma junção entre sangue e leite
derramados, conectados e formando uma outra coisa: uma aurora. Isso
representa o começo de algo. A morte do leiteiro gerará revolta? Trará
resistência? O nascimento da aurora aponta para uma continuação. Aurora traz
esperança. O poema de Gullar termina da seguinte forma:
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
E me bate no peito
Como o coice de uma lembrança. (GULLAR, 1991a, p. 164)
O olhar para o espelho e o futuro não importam. Não importam sua
individualidade nem pensamento em outro momento senão o agora. A
coletividade e a luta fazem seu corpo pulsar – é de fato um corpo tomado pela
política, pelo social. Seu sangue está acendido como a aurora no poema de
Drummond. E não é a memória que faz isso: mas seu coice. Ou seja, o que fica
do passado no presente: uma dor trilhada, construída. O que a lembrança larga
no corpo do Gullar nada mais é do que a compreensão de que o corpo está vivo,
e está vivo nesse momento. Nada mais fácil de nos trazer de encontro à vida do
que um coice no peito.
Essa construção e fixação da poesia em um tempo presente ancorado,
através de um corpo vivo, são novamente explicitadas no poema “No corpo”. Já
pelo título percebemos que algo está contido dentro de nossa corporeidade. O
corpo substitui o lugar da memória. Não falamos aqui de uma arte sensorial,
como criticou Gullar as ideias criativas de Lygia Clark e Helio Oiticica. Mas de
uma poesia que vem do mundo, do material. Em vez de memória, o corpo
carrega a simbologia do estar no mundo:
O corpo é também uma construção simbólica. [...] O corpo é aqui o lugar e o tempo no qual o mundo se torna homem, imerso na singularidade de sua história pessoal, numa espécie de húmus social e cultural de onde retira a simbólica da relação com os outros e com o mundo. (BRETON, 2012, p. 33-34)
56
O corpo é uma ocupação local e temporal, substituindo lembranças e
colocando-se dentro do local de trabalho e de luta política. Não traz, através de
sua comprovação, cheiros, dores, emoções. Ele já é isso tudo por si só: uma
muralha estática que resiste e está. Observemos o poema:
No Corpo
De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares
O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.
A poesia é o presente. (GULLAR, 1991a, p. 204-205)
Assim como no poema anterior, em que o que resta das lembranças em
sua poesia é apenas um coice, ou seja, uma presença da ausência, na primeira
estrofe de “No corpo”, fica ainda mais claro o abandono de uma poética que
nasce de uma memória. As notícias passadas tampouco interessam, o que
ocorre agora é diretamente no corpo.
O sonho, o incêndio e o apelo, três palavras profundamente conectadas
à luta política e que, se realizadas em atos, passam a tornar-se acontecimentos
históricos, logo memória, neste poema são uma contração ou um clarão dentro
de uma parte do corpo. Tanto “contração” e “clarão” seriam sintomas de
assombro e estranhamento com o corpo em sua fase de escrita que veremos no
capítulo seguinte, mas não em sua poética do corpo envolvido com o social e a
política.
Contração é algo involuntário, independente de nossas vontades, assim
como um clarão, que nem sabemos de onde vem. Nesse poema, em vez de
espanto, há a comprovação natural de que “a poesia é o presente”. O que resta
57
para o poeta está inteiramente ligado ao corpo e sua existência no mundo no
momento exato da escrita.
Pensando a biografia do poeta, podemos levantar a questão de que talvez
esse abandono da memória e fixação pelo agora seja uma forma de Gullar
romper também com a forma que escrevia anteriormente. Não há uma retomada
de suas inquietações acerca da linguagem, da construção de um poema e de
suas formas possíveis. Sua escritura, nessa fase, é voltada completamente para
os problemas da realidade, e a realidade é extremamente imediatista.
O corpo-político, o corpo-coletivo, o corpo-muralha passam a ser a fonte
de sua criação poética. Em vez de memória, o agora; e o agora só pode ser lido
como um respirar corporal. O corpo não lembra, ele vive, o corpo não vê o local
de trabalho, ele é intrinsicamente esse lugar. A paisagem não é olhada, ela é
construída junto aos braços, bocas, mãos.
Esse abandono da memória também pode estar relacionado ao encontro
de Gullar com os ideais marxistas. A compreensão de que é o material que nos
define e define também nossa memória acompanha a ideia de que o corpo
substitui as lembranças e é ele que leva o poeta a escrever uma poesia que
pretende ser do povo:
A produção de ideias, de representações e da consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade material e o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo. São os homens os produtores de suas representações, de suas ideias, etc., mas os homens reais e atuantes, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações a eles correspondentes, até chegar às suas mais amplas formações. A consciência nunca pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. [...] Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, nem do que são nas palavras, no pensamento, imaginação e representação dos outros para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se, sim, dos homens em sua atividade real, e, a partir de seu processo na vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo vital. (MARX e ENGELS, 2005, p. 51-52)
58
Logo, ao depararmo-nos com os poemas “Maio de 1964” e “No corpo”,
vemos como a atividade laborial e corporal ocupam esse local de falar o homem
e gerar a consciência a partir desse processo que ocorre na realidade. A
memória não está presente como fazer poético, mas ela é construída no
momento em que se escreve um poema. O que lemos, sim, é memória, mas não
o que se escreve. No primeiro poema, a leiteria; no segundo poema, o ranger do
maxilar. Ambos terminam com o nascimento do agora: o primeiro, através de um
coice e da luta incendiária; o segundo, trazendo a afirmação urgente de que a
poesia é o presente. Ambos partem do cotidiano, do corpo, do estar vivo para
construírem um pensamento corporal envolvido com o mundo. A simbologia da
poesia nasce desse contato direto com o que respira e nos toca.
No poema “Madrugada”, partimos de um local extremamente individual (o
próprio quarto) mesclado também à propriedade de um corpo para a percepção
sensitiva de um coletivo dolorido. O título já nos remete à solidão e ao silêncio e
diretamente ao verbo “madrugar”, de onde vem sua etimologia. Esse verbo é
comumente usado quando nos referimos ao ato de acordar muito cedo e ir
trabalhar. Está presente nesse título, portanto, uma mescla de individual
(pensando nas reflexões que o vazio de uma noite quase dia pode nos trazer)
com o trabalho coletivo (principalmente se a leitura desse poema estiver ligada
ao conteúdo dos outros poemas da obra em que está incluso):
Madrugada
Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite
a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes (GULLAR, 1991a, p. 206)
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O uso repetido de “do fundo” nos leva a um forte contato com o que é da
terra, com o que é material e está enraizado de alguma forma em algum lugar.
Esse lugar, no caso, é o quarto e o corpo. O primeiro demonstra que sua
paisagem neste momento está restrita a um espaço de uso individual; o segundo
nos leva novamente à construção entre corpo e momento-agora, um presente
latente que nasce junto de uma construção corporal. Está, portanto,
profundamente só e refletindo seus pensamentos que surgem na madrugada.
Ao continuar a estrofe com o verso “clandestino”, que pode tanto estar se
referindo ao quarto quanto ao corpo, traz à poesia uma percepção de seu
período de exílio fora do Brasil. Há poemas nesse livro que foram escritos ainda
em seu país e outros já fora dele, quando perseguido político. Diferente de
“Homem Comum”, que é um poema que fala diretamente com o outro, partindo
de situações e condições empáticas, “Madrugada” apresenta uma imagem nova
se o compararmos com os demais poemas de Dentro da noite veloz
interpretados neste capítulo. Esse poema reflete o que significa estar exilado,
estar sozinho, preso a um chão que não é seu.
Mesmo se sentindo clandestino tanto em espaço quanto em
materialidade, não há, como já dito anteriormente, estranhamento com o corpo
ou formação de um duplo. Pelo contrário, é a partir dessa clandestinidade que é
possível o contato com o mundo exterior, ou seja, a volta para o que é coletivo.
Afirma que “não vê”, pois está ainda dentro de seu quarto longe de seu país,
onde temos uma gigantesca luta política em meio a uma ditadura militar. O Brasil
no momento em que escreve esse poema está inalcançável para sua visão. Essa
relação entre ouvir e não ver nos lembra o poema de Francisco Alvim, em seu
livro Elefante:
Quer ver?
Escuta (ALVIM, 2000, p. 76)
Com epígrafe de Murilo Mendes (“Nasci nu”) e com um poema abrindo o
livro que questiona “qual o real da poesia?”, Chico Alvim escreve uma obra que
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se tensiona o tempo inteiro com o real, despindo-se do foco na linguagem para
um encontro com o cotidiano. Diferente de Gullar, que apresenta um viés político
militante em seus poemas, esse poeta disseca as situações do povo brasileiro
pela tangente. É necessário escutar o poema profundamente para enxergar as
imagens ali presentes, o que dificilmente fazemos quando nos deparamos com
o cotidiano do povo brasileiro. No poema de Gullar, ver está inalcançável,
primeiro pela questão de estar em outro país, segundo porque, assim como
Chico Alvim, traz a necessidade da escuta da poesia, ambos de forma corporal.
Esse chamado à compreensão do leitor (em Alvim) e à escrita do poeta (em
Gullar) se dá através de um ato de abertura do corpo.
Partindo do ato de ouvir, Gullar sai de dentro de seu quarto para o mundo
e de dentro do seu corpo para o corpo da noite. O lado de fora também se localiza
e se encorpora, uma vez que o sujeito se espaça, nessa busca por sair de seu
isolamento-clandestino ao encontro do ser político-coletivo:
Neste ponto de indistinção entre a consciência e o mundo, não se sabe mais onde se situa o sujeito. [...] Pode-se, portanto, falar de um verdadeiro espaçamento do sujeito. Em geral, a palavra espaçamento apresenta, sobretudo, uma conotação negativa: ela designa uma interrupção na continuidade espacial ou temporal, que dá lugar a intervalos cada vez mais longos, que podemos assimilar ao vazio. O espaçamento do sujeito designaria, pois, em um primeiro tempo, uma perda ou um desperdício de sua substância, uma fissura em sua suposta unidade, em sua coerência ou coesão: seria sinônimo de dispersão, quiçá de dissipação. Mas essa disseminação pode aparecer também como uma expansão. O espaçamento do sujeito reveste-se, então, de um valor positivo. Se ele o faz escapar do estatuto de uma substância sempre idêntica a si mesma, revela dele uma dimensão absolutamente outra: a do jato ou do projeto, que o faz ek-sistere fora de si. O espaçamento designaria, então, sua projeção no espaço como a própria condição de sua existência. Ao contrário de toda uma tradição filosófica, que vê nesse “ser-lançado” o risco de uma decadência, vejo nele também a chance que oferece ao sujeito de se cumprir paradoxalmente, a partir do momento em que se recusa a permanecer em si mesmo. (COLLOT, 2013, p. 29-31)
É justamente isso que acontece no poema de Gullar: um sair de si mesmo,
de seu corpo e de seu quarto, ocorrendo uma mescla com o corpo-noite. A noite-
outra que cresce no espaço-noite é a que cai em cima dos trabalhadores
madrugando para ir trabalhar. Está “obscenamente” acesa, pois é irônico que já
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tão cedo acorde o povo trabalhador e também porque é uma paisagem que
cotidianamente se repete indiferente à dor do mundo.
Termina seu poema, que começa com um corpo isolado e exilado,
alcançando a coletividade de seu país, o Brasil, dividido em classes sociais. A
luta política e o ser coletivo são aqui retomados. Essa transição do individual
para o geral se dá no poema a partir do encontro com a paisagem e com a escuta
da poesia pelo seu corpo. Junto com os outros poemas do livro, novamente é
explicitada a corporeidade coletiva, sem a duplicação e o estranhamento com
seu “eu”. Na verdade, o “eu” em Dentro da noite veloz surge junto com um corpo
que passa por todas as mazelas que todos os corpos suportam, dentro de uma
sociedade injusta e exploratória.
3.2 – Poema Sujo: memória coletiva
Em um vídeo no youtube Ferreira Gullar afirma o seguinte: "E o Poema
sujo nasceu assim: como a última coisa que eu poderia escrever"9. Esse livro foi
escrito durante seu exílio do Brasil em Buenos Aires, sem saber muito bem como
se sucederia o processo político em andamento na Argentina e quando poderia
retornar à sua terra natal. Estava incerto sobre seu destino de poeta político,
poderia amanhecer morto ou preso, então esse poema nasce em um momento
de profunda incerteza sobre que fim levaria sua vida daquele momento em
diante. Falamos aqui, portanto, de um corpo completamente clandestino, mas
ligado aos processos históricos que ocorriam na América Latina.
Se havia certo tipo de lamentação por parte do poeta em relação aos
poemas políticos de Dentro da noite veloz, por não haver uma preocupação
voltada ao tratamento da linguagem, como se isso se opusesse ao seu
engajamento social, em Poema sujo, Gullar parece finalmente encontrar a
9 O vídeo foi gravado e produzido pela Companhia das Letras em 25 de outubro de 2016, com o título de “Ferreira Gullar conta como escreveu Poema sujo". Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=atJKqa_sNOk
62
síntese e o equilíbrio entre as duas coisas. Em sua Autobiografia poética fala a
respeito da produção desse poema:
Isso me levou a elaborar melhor os poemas dessa fase e mesmo a tentar criar uma linguagem poética de qualidade a partir do vocabulário que o tema político-social inevitavelmente implica. Iniciei, então, uma nova trilha poética, que desembocou, em 1975, no Poema Sujo. De algum modo, procurei realizar uma espécie de alquimia vocabular entre palavras naturalmente poéticas e outras antipoéticas, ou não poéticas, como nomes de empresas internacionais que simbolizavam o capitalismo. (GULLAR, 2015, p. 58)
Poema sujo é, em sua maior parte, um poema em versos. Mas há toda
uma preocupação, assim como vimos em Crime na flora, sobre o uso de espaços
vazios na página e, além disso, momentos em que o texto se torna um poema
em prosa, incluindo diálogos, imitação de sons e alguns traços do
neoconcretismo. Apesar disso, não é o experimentalismo que dita o tom deste
livro, mas uma busca em relação ao processo vivido, com forte presença da
memória própria e da memória em relação ao outro, e um amadurecimento
acerca de seu fazer poético, juntando todas as fases da produção do poeta até
agora e formando um novo ser constituído de retalhos.
Diferente de Dentro da noite veloz, em que o tema da memória e seu
resgate é deixado de lado, pois há um contato direto com um corpo que vive o
agora como compreensão da realidade à sua volta, Poema sujo traz, a todo
tempo, as impressões que Gullar teve ao longo de sua vida no Maranhão. O que
resta para um poeta que está longe de seu povo e de sua história é convocar o
passado como tentativa de existir no momento atual. O resgate da memória,
ainda assim, se dá através de um processo corporal. Escreve-se com o corpo,
muito além das palavras:
tua gengiva igual a tua bucetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma
entrada para (GULLAR, 1991b, p. 219)
63
A boca que fala o texto é o corpo inteiro. Os fragmentos relembrados ao
longo do livro, histórias de pessoas trabalhadoras e suas dores, contadas a partir
dos rastros das lembranças do poeta sempre surgem do material: a exploração,
a pobreza, o trabalho cotidiano, e também acerca da relação com a paisagem à
sua volta, que se diferencia do apenas “ser” da natureza. A memória é, portanto,
a possibilidade que tem, nesse momento, de permitir o corpo dizer. A poesia
deixa de ser o agora e se torna um retorno. É a forma que o poeta encontra de
tentar se aproximar da dura realidade que enfrenta, apesar de que toda memória
é, por si só, já uma invenção e um distanciamento daquilo que somos no
momento em que tentamos revivê-la:
O Poema sujo é escrito após uma sucessão de derrotas e perdas. Visto por esse ângulo, ou seja, como uma resposta necessária a uma experiência dramática, composta de tantos episódios emocionantes, o poema é o retorno à infância e à juventude de São Luís, uma viagem de volta à vida, com os amigos à beira da praia e o céu imensamente azul. [...] Um presente que não oferece nenhuma perspectiva de futuro o lançaria numa volta ao passado. [...] A memória recupera momentos, reconstrói destinos, mas não reproduz a realidade. O sujeito, ao lembrar, recolhe fragmentos. [...] Recordar é reconstruir o passado pelas experiências do presente, reescrevê-lo a partir da consciência adquirida no presente. Reconstruir os fatos tal como ocorreram é uma impossibilidade para o sujeito que lembra, assim como o é para o historiador. (CAMENIETZKI, 2006a, p. 127-128)
Memória é corpo e lugar. Gullar faz o retorno ao passado trazendo suas
percepções visuais, olfativas, de toque e até mesmo auditivas (há um trecho em
que fala diretamente com o leitor para acompanhar o poema escutando uma
música de Villa-Lobos). No poema “No corpo”, que interpretamos anteriormente,
Gullar mostra o que resta da memória no presente: uma contração do maxilar
dentro do rosto. No trecho citado acima de “Poema Sujo”, vimos como a boca
ocupa esse lugar de fala, não através das palavras, mas sendo o corpo nossa
possibilidade no mundo de expressão. “No corpo” traz também a mesma parte
do corpo para representar o que resta da memória. Apesar de afirmar que “a
poesia é o presente”, existe uma contração, um movimento que fica ali guardado.
Tendo a possibilidade de se vivenciar o agora, nasceram os poemas de
Dentro da noite veloz. Mesmo em “Madrugada”, já exilado, ainda há essa busca
por ouvir o tempo no momento em que se escreve, mas já se apresenta um
64
pouco do ritual memorialístico que evidenciamos em Poema sujo: o que se
escreve vem do fundo – do quarto e do corpo. Escrito dentro de seu apartamento
em Buenos Aires, é um poema que nasce das profundezas, vem das imagens e
percepções abandonadas. Retomá-las só pode se dar através de processos
forçados, como bem afirmou Gullar na citação no início deste capítulo, como um
vômito.
O título de Poema sujo carrega consigo um significado tanto em relação
à realidade quanto à linguagem. Pensar em sujeira nos remete às péssimas
condições de vida a que o povo brasileiro é submetido, principalmente no
Nordeste. Além disso, todo corpo apodrece, e sendo uma poesia corporal
carrega consigo esse possível apodrecimento. É sujo também quando
pensamos pelo viés do poema “A bomba suja”, introduzindo a palavra diarreia.
A linguagem é suja pelo real, o poema carrega consigo a sujeira das memórias
do poeta. É como se o poema tivesse sido mergulhado em um balde de água
contaminada e depois arrancado dali e colocado no sol para secar:
O poema é antes de tudo impuro e sujo de todas as marcas que a vida traz, seja nas reminiscências do poeta ou na luta política do militante. E, do ponto de vista ético, filosófico, estético, é a síntese do que representam as longas buscas do poeta: sujo de antipoesia, sujo pelas contradições políticas que encerra, sujo pelos debates filosóficos que expressa, sujo porque toda pretensão à pureza é antes de tudo ilusória e mistificadora. (CAMENIETZKI, 2006a, p.135)
Pensando a ideia de um poema sujo porque o corpo apodrece, há
diversas menções, assim como em Crime na flora, à cor azul. Como vimos no
capítulo anterior, usar dessa cor para definir um corpo é ter um corpo que morre
e sufoca. No caso de Poema sujo, um corpo que apodrece. Observemos dois
trechos do poema em que a cor azul está presente:
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
65
o cavalo
azul
teu cu (GULLAR, 1991b, p. 218)
um rio não apodrece do mesmo modo que uma perna
- ainda que ambos fiquem
com a pele um tanto azulada –
nem do mesmo modo que um jardim
(pelo menos em nossa cidade
Sob o demorado relâmpago do verão) (GULLAR, 1991b, p. 246)
Ao longo do poema, existe um questionamento acerca da relação que a
natureza/animais exerce com a paisagem, diferenciando a relação da mesma
paisagem com o ser humano, ser social. No primeiro trecho apresentado, os
animais eram azuis, mas também uma parte do corpo do homem é associado
com essa cor, através do direcionamento com o outro: “teu”. “Cu” é uma palavra
que choca, e é introduzida logo no início de Poema sujo. Pode ser lido tanto
quanto uma parte que ejeta o que resta dos alimentos, que não são utilizados,
associado a algo sujo como também a uma porta para a realização do prazer. O
corpo dos animais também se deteriora, mas eles não têm a noção que temos
sobre isso. Sabemos que iremos apodrecer, reconhecemos o azul.
No segundo trecho, Gullar deixa mais explícita essa questão sobre serem
diferentes as formas de deterioração da natureza e de nós mesmos enquanto
seres sociais. O uso de rio e não de outra representação de um elemento da
natureza nos remete diretamente à ideia de passagem do tempo, de algo que
flui e que irá, algum dia, chegar necessariamente às portas da morte:
O destino das imagens da água segue com muita exatidão o destino do devaneio principal que é o devaneio da morte. [...] Toda água viva é uma água cujo destino é entorpecer-se, tornar-se pesada. Toda água viva é uma água que está a ponto de morrer. (BACHELARD, 2013, p. 49)
A forma de apodrecer de um corpo é necessariamente percebida pelo
corpo que apodrece. Por isso um rio ou um jardim se deterioram diferente de
uma perna. Além disso, “a cidade não está no homem/ do mesmo modo que em
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suas/ quitandas praças e ruas” (GULLAR, 1991b, p. 274), ou seja, a paisagem,
seja ela natural ou construída, não sofre o peso do tempo da mesma forma como
nosso corpo. A cor azul pode estar presente em tudo, mas é no homem que
encontra significado, através da criação mesma do poema. Mais uma vez o peso
da memória aparece, pois só é possível o questionamento sobre o passar do
tempo através de uma perspectiva do que já passou. Retomar o passado é
sempre uma forma de constatar a morte.
Essa aproximação com a morte se dá justamente no momento de tensão
em que se encontra o poeta ao escrever Poema sujo. É um corpo clandestino
que se aproxima da incerteza da vida e isso acaba se refletindo também em seu
fazer poético, diferente de Dentro da noite veloz, onde a proximidade da morte
não encontrava espaço dentro do contato direto com a luta social e política.
No começo do poema, refere-se a “uma menina” que não sabe nomear:
“te chamo aurora/ te chamo água” (GULLAR, 1991b, p. 221). Se pensarmos
novamente o poema de Drummond, “A morte do leiteiro”, em que aurora
representa um novo dia, uma possível resistência, no poema de Gullar podemos
ter uma leitura que se aproxima: aurora e água – a primeira, a possibilidade do
novo; a segunda, a aproximação da morte, mas também um tempo que flui.
Essa “inominável” menina acompanha o poeta e “perdeu-se na confusão
de tanta noite e tanto dia/ perdeu-se na profusão das coisas acontecidas”
(GULLAR, 1991b, p. 219). Também “mudou de cara e cabelos mudou de olhos
e risos mudou de casa/ e de tempo: mas está comigo está” (p. 219). Essa menina
são duas: a poesia e a luta política, que, para Gullar, são uma coisa só. Ela está
perdida, sim, nesse seu novo fazer poético, principalmente pela retomada da
memória e, por isso, está diferente e transformada – agora é aurora e água,
quando antes era o presente, o momento agora. Apesar disso tudo, ela ainda
está caminhando junto do poeta.
Podemos observar uma conexão com o poema “Madrugada”, que
aprofunda o sentimento de exílio do poeta e afirma mais claramente a
interpretação apresentada aqui logo antes sobre essa menina inominável ser a
escrita e sua luta política, a quem ele se refere diretamente, como em uma
conversa:
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E também rastejais comigo
pelos túneis das noites clandestinas
sob o céu constelado do país
entre fulgor e lepra
debaixo dos lençóis de lama e de terror
vos esgueirais comigo, mesas velhas,
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,
dobrais comigo as esquinas do susto
e esperais esperais
que o dia venha (GULLAR, 1991b, p. 221)
Ao contrário de “Madrugada”, em que o corpo do poeta se expande
através do ato de ouvir, podendo se amplificar até a luta de classes de seu país,
nesse trecho de Poema sujo, o corpo está enclausurado, portanto assim também
está sua poesia. Os verbos “rastejar” e “esgueirar” dão essa sensação de
enclausuramento. Ele não está mais “no fundo de seu quarto”, lugar, mesmo que
em exílio, de familiaridade. Está em túneis e embaixo de lençóis sujos e que o
levam a ter medo. Mesmo em sua cama, a sensação de incerteza é gigantesca.
Não há lugar familiar.
O ato de “esgueirar”, porém, apesar de ser uma resposta a esconder-se
do corpo, é uma possível solução para fugir de alguma coisa ou para passar
despercebido. É o que resta a Gullar nesse momento: acessar a memória
mesmo em túneis e sob lençóis sujos. Referencia-se à memória através de
objetos que representam o passar do tempo e que, apesar de obsoletos, são o
seu acesso direto à sobrevivência enquanto espera que o dia venha. Não há
informações se Gullar teve acesso à música de Chico Buarque, “Apesar de
você”, de 1978, durante a escrita desse poema, mas essa espera pelo dia diante
do céu estrelado remete-nos diretamente aos versos da canção: “Apesar de
você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Você vai ter que ver /A manhã renascer/ E
esbanjar poesia.”
Assim como em “Homem comum”, em que o corpo aparece como uma
muralha e que se inicia com os versos “Sou um homem comum/ de carne e de
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memória/ de osso e esquecimento” (GULLAR, 1991a, p. 161), em Poema sujo o
corpo é também um símbolo de resistência:
Do corpo. Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas,
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras (GULLAR, 1991b, p. 223)
O corpo representa o sustentáculo do poeta no mundo. É o que o faz
permanecer em pé, é de onde vem a força para continuar vivo e lutando. É
também de onde emana sua poesia. Ao se questionar sobre o que é isso que é
o corpo, não se assusta ou se espanta com uma possível separação entre
consciência e carne, pelo contrário, o corpo funciona como parte fundamental do
todo que é o poeta: carne, osso, sangue, pensamento, palavras, mentiras.
Novamente a influência marxista aparece na poesia do Gullar: é através do
material que definimos nossa consciência, e não o contrário.
É a partir da sensação corporal que sua luta política, sua memória e sua
escrita encontram lugares possíveis de manifestação. De fato, tudo que nos resta
quando não temos mais nada somos nós mesmos, e esse “mesmo”, essa noção
tão viva de existirmos vem de nossa visão, de nosso tato, de nossa escuta e,
quando possível, de nossa fala. Apesar de isolado e fugitivo, o poeta ainda pode
falar, ainda tem um corpo que se expande.
Devido ao seu exílio na Argentina, país latino-americano fomentador de
lutas na época e ainda hoje, ao retornar às suas memórias nordestinas e à luta
política e social em que estava envolvido, o corpo de Gullar também tomou uma
face identitária. Coletivo que é, sente-se parte de um todo. O contato com o
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outro, seus iguais, latino-americanos, trabalhadores, nordestinos, militantes, leva
a essa compreensão de um corpo que grita e que compõe uma muralha junto
com outros corpos. Observemos alguns trechos:
Mas sobretudo meu
corpo
nordestino
mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
[...]
combatente clandestino aliado da classe operária
meu coração de menino. (GULLAR, 1991b, p.
226)
[...]
um às minhas costas com o outro
diante dos olhos
vazando um no outro
através de meu corpo
dias que se vazam agora em pleno coração
de Buenos Aires (p. 235)
[...]
das trevas que já não sei
se são tuas se são minhas
mas nalgum ponto do corpo (do teu? do meu
corpo?) (p. 259)
A alteridade cumpre um papel fundamental nesse corpo que aparece em
Poema sujo, não no sentido de duplicar a noção do eu em outro, mas
compreendendo que esse corpo que fala é formado pela experiência com outros
70
corpos. Por isso a identidade de Gullar no primeiro trecho vai se moldando e se
expandido a partir de um processo de cachoeira: parte do indivíduo e da noção
de corpo próprio até chegar a uma noção de pertencimento a um lugar e a um
grupo. Logo depois, deixa mais clara ainda sua ideia de pertencimento: escolheu
o lado em que está inserido na luta de classes – e é o lado do operariado, do
trabalhador.
No segundo trecho, o verbo “vazar” nos remete novamente à noção de
água, do tempo a que um corpo está preso, sua compreensão de passar do
tempo e aproximação da morte. O local Buenos Aires nos traz de volta ao
momento em que o poema foi escrito, conectando a memória com o presente do
poeta. O corpo, nesse trecho, conecta o Gullar lembrado e já encontrado
identitariamente com o Gullar do tempo presente, exilado.
No último trecho, a noção de sujeito se dispersa, uma vez que as “trevas”
são coletivas. Ou seja, a dor que sente, sua resistência, seu isolamento, suas
memórias, nada disso é só seu. São muitos corpos existentes e resistentes que
geram a escrita de Poema sujo:
Dessa forma, a relação do corpo ultrapassa o campo do visível. A reversibilidade dessa carne que vê e toca ultrapassa, alarga-se no campo do visível, pois a corporeidade não é toda a carne, nem todo o corpo. O corpo, que já não me pertence mais, faz parte do mundo já falado. Por isso o sentiente está diante de um mundo sensível, ligado à outra visão, porque o que a experiência pode nos ensinar já está no mundo dos fenômenos, em uma profundidade inesgotável. Os fenômenos tornam possível uma abertura a outras visões, além da minha visão. Por isso o corpo é essa porosidade aberta ao mundo falado, aberta ao sentiente e ao sensível. Aberta aos fenômenos. [...] É como extrair do corpo tudo aquilo que ele mesmo nos ensina. Uma espécie de êxtase da experiência perceptiva. O corpo – meu corpo – visto como um dos objetos do mundo. A história – minha história – como resultado de um lugar objetivo de onde engendra uma projeção para a fala falante. Em atividade, viva, falante, a fala falante possibilita a operacionalidade do corpo como objeto atravessado pela alienação das relações sociais; possibilita ter seu desejo e sua maneira de pensar moldado pelo outro. Uma identificação como modelo. (BIANCHI, 2013, p.196-199)
É, portanto, um corpo que não pertence só a si mesmo. Através de seu
contato com o outro, com a coletividade, torna-se parte integrante do mundo.
Isso faz todo sentido quando retomamos a ideia de Breton aqui apresentada
sobre a representação do corpo em sociedades mais comunitárias. O corpo-
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sujeito é corpo-coletivo, a noção de identidade se dá através da alteridade. No
caso de Gullar, da luta política, da classe trabalhadora, do Nordeste, do Brasil,
dos países latino-americanos.
Essa noção corporal coletiva gera uma poesia que conversa com o leitor,
que, partindo das experiências vividas dentro de situações já conhecidas por
muitos, gera em nós também um processo identitário. Emocionar-se, ao ler
Poema sujo, faz também parte de uma construção de nosso corpo enquanto
parte desse poema. Impossível não pensar na atual situação política do Brasil
ao interpretar esse livro e relacionar nossa vida cotidiana às memórias do poeta.
Esse poema, como colocado na citação de Márcia Bianchi, é uma forma de pegar
nossa história e dar-lhe voz. É necessário sujar a poesia muitas vezes para que
o invisível ganhe forma e a luta continue.
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4. Corpo despróprio e intruso
Há dois versos de um poema de Mário Quintana que dizem o seguinte:
“Olho minhas mãos: elas só não são estranhas/ Porque são minhas. Mas é tão
esquisito distendê-las” (1994, p. 142). Somos familiares a nosso corpo, esse
punhado de carne, células vivas e ossos onde habitamos (ou fazemos parte da
própria habitação, da própria construção da casa, podemos nos reconhecer
como um ou como outro, quem sabe vários), mas o que é essa distensão que
nos leva ao estranhamento, que transforma a familiaridade em um momento de
encontro com o que é esquisito?
Acordamos com fome. Ou o corpo está faminto, e atendemos suas
necessidades básicas. Somos nós que temos fome, ou é algo que grita dentro
de nós? Algo que, conforme o passar do tempo e o ciclo sempre igual dos dias,
pede comida, cuja mastigação e ingestão é feita por dentes, saliva, processo de
engolir, e depois uma digestão já automatizada pelo estômago.
O último livro de Ferreira Gullar, Em alguma parte alguma, lançado em
2010, diferente do que foi visto no capítulo anterior, traz uma poesia em que o
corpo é apresentado como um estranho ao que chamamos de “eu” no sentido
de consciência e estar no mundo. Como nos versos de Mário Quintana, há uma
esquisitice percebida no processo de distensão desse corpo. Nos poemas de
Gullar que serão analisados neste capítulo, o espanto corporal é a fonte do
nascimento de sua escrita e também do surgimento de duplos.
Esse livro tem seu foco na filosofia e na metapoesia. Não há rastros do
poeta político que Ferreira Gullar havia sido outrora. Há cachoeiras de
questionamentos sobre a vida, a existência, a arte, o universo. Isso acaba se
refletindo em sua forma de enxergar o corpo. Antes, era um corpo coletivo e que
resistia; agora, um corpo estranho, que gera desdobramentos e espantos.
Pensar o processo político que o mundo vivenciava após a queda da
União Soviética é importante para compreender a mudança de visão de Ferreira
Gullar enquanto pessoa e poeta. Na década de 90, o socialismo/comunismo foi
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dado como vencido na história. As classes dominantes, através das mídias e das
instituições, fizeram uma grandiosa campanha de que o capitalismo havia
vencido e o comunismo era uma ideia superada. Isso influenciou não só
pessoas, mas diversos partidos políticos, uniões sindicais e formas de se
enxergar a luta política. Hoje em dia, a maior parte dos jovens carrega a visão
de que a única possibilidade de mudança é por dentro do sistema capitalista,
transformando-o em mais humanitário.
É a partir dessa década que as saídas individuais ganham uma grande
força, em contraponto a todos os anos de luta coletiva anteriores e sonhos por
uma sociedade diferente. Uma mudança tão radical em relação a como se
enxergaria a realidade e como funcionaríamos no mundo obviamente se refletiria
também em nossa forma de lidar com o corpo, de entendê-lo. Apesar de, para a
sociologia, o modo de enxergar o corpo como um outro, um estrangeiro, seja
muito mais antigo à queda da União Soviética, é inegável que a força ideológica
comunista tenha feito com que gerações enxergassem suas relações e as
vivenciassem de forma coletiva, como vimos nos poemas de Gullar em sua fase
política. Porém, sem uma âncora ideológica que se encaminhasse para um corpo
comunitário, o individualismo toma conta e abraça nossa concepção corporal:
Uma nova sensibilidade individualista nascente foi necessária para que o corpo fosse visto como algo separado do mundo que o acolhe e dá significação e separado também do homem ao qual dá forma. Na maior parte das investigações, a concepção moderna do corpo é a que serviu de marco inicial para a sociologia, nascida na passagem do século XVI para o século XVII. Essa concepção implica que o homem esteja separado do cosmo (não é mais o macrocosmo que explica a carne, mas uma anatomia e uma fisiologia que só existe no corpo), separado dos outros (passagem do tipo de sociedade comunitária para a sociedade de tipo individualista onde o corpo encontra-se na fronteira da pessoa) e, finalmente, separado de si mesmo (o corpo é entendido como diferente do homem). (BRETON, 2017, p. 27)
Além da mudança em sua vida política, outro ponto importante a ser
destacado é que esse livro foi escrito por um Ferreira Gullar já idoso. Com cerca
de 80 anos e depois de um hiato de escrita, o poeta retoma sua atividade poética.
Vivemos um uma sociedade que valoriza a juventude e um corpo com “boa
aparência”. As mulheres são as que mais sofrem com a pressão para se
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manterem sempre jovens e dentro do padrão de beleza, mas o peso dos anos
recai sobre todos os seres humanos. O corpo, dentro de uma sociedade
individualista, é nosso limite com o outro, mas, além disso, pode tornar-se, em
vez de uma muralha resistente, um peso e uma armadilha para nós mesmos
devido à força do passar do tempo.
Por essa razão, a estranheza, dada tanto por uma limitação física quanto
por uma proximidade da morte, pode gerar essa cisão entre consciência e
corporeidade. No poema de Adélia Prado, “Humano,” escrito pela poeta com
seus quase 80 anos, observamos também esse desdobramento do eu em dois
a partir do que podemos ler como uma certa fadiga corporal: “A alma se
desespera/ mas o corpo é humilde; ainda que demore, /mesmo que não coma,
/dorme” (2013, p. 19). Essa humildade do corpo é admitir que ele é deteriorável,
cansável, tem prazo. Por outro lado, a alma, nossa consciência, não adormece
nunca, está sempre em estado de produção:
Pensamos o corpo em oposição à mente, o velho em oposição ao novo, o idoso ao jovem, o gordo ao magro, a cultura se contrapondo à natureza, e o corpo conhecido em oposição ao corpo vivido. A mentalidade dualista penetrou tanto no ensino católico como protestante, com isto justifica-se que tenha se evidenciado durante séculos e que permaneça até os dias de hoje. A freqüente alusão à mente jovem e corpo velho é a comprovação da dissociação entre ambos, o que inviabiliza a compreensão da unidade do ser humano. Inclusive eqüivale a pensar o corpo como objeto, como algo fora de si. Se por um lado essa mentalidade dualista permite justificar que a pessoa não se sinta velha mentalmente, espiritualmente, apesar de reconhecer que o corpo está velho, por outro, pode revelar uma forma preconceituosa de conceber a velhice. (BLESSMANN, 2014, p. 24)
Essa quebra da unidade do ser humano relacionada à velhice também é
levantada por Otto Rank, em seu livro O duplo, quando analisa a obra de Oscar
Wilde, O Retrato de Dorian Gray (1980, p. 278)10. O personagem Dorian não
envelhece, ao passo que sua pintura vai ganhando o peso da idade e de seus
comportamentos imorais. O duplo se materializa em uma obra de arte. O quadro
carrega consigo também o passado e as memórias de Dorian. No caso desse
personagem, conviver com isso foi insuportável ao ponto de destruir seu duplo
10 A versão aqui utilizada é de um livro em formato de e-book, acessado pelo Kindle, então a paginação se dá pelo modelo de “posição”.
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fisicamente. Gullar, por outro lado, apresenta o desdobramento como uma
espécie de reflexão, como podemos observar no poema “O duplo”:
Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu
que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu
e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto
pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto
mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco (GULLAR, 2010, p.38)
Nesse poema, assim como o que ocorre com Dorian Gray, o duplo angaria
as memórias e os feitos passados. A diferença é que este outro não detém para
si o envelhecimento, como acontece na pintura. Comparando com o poema de
Adélia Prado, o corpo de Ferreira Gullar tem um peso, ao passo que no poema
da escritora o corpo dorme. O outro, o duplo, tem o poder de guardar os feitos
da consciência. Ao contrário do corpo pesado, flutua pelas ruas.
Se pensarmos no poema “Traduzir-se” (1991c, p. 309), que Ferreira Gullar
escreveu muitos anos antes, podemos observar uma grande diferença em
relação a esse poema de seu último livro. Ambos carregam consigo a marca da
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duplicação do eu, visto que essa questão sempre perpassou a obra do poeta.
“Traduzir-se” não trata do limiar com a morte, o duplo que ali surge é entre o
mundo material, ainda conectado ao passado político do escritor, e suas
reflexões acerca do fazer poético e da estética: “Uma parte de mim/ é multidão:/
outra parte estranheza/ e solidão. [...] Traduzir uma parte / na outra parte/ - que
é uma questão/ de vida ou morte - / será arte?”
Em “O duplo”, por outro lado, a relação com o corpo é fundamental para
a duplicação do poeta: a corporeidade cumpre um papel de algo pesado, que
limita as possibilidades. Pensando a citação de Blessmann, podemos
compreender como a velhice exerce também em nós uma forma diferente de
enxergar o corpo. Ao passo que em “Traduzir-se” não há referência a um corpo
limitador, neste poema o corpo é o “pouco” que resta de Gullar, aquilo que está
com ele todos os dias em oposição ao outro que é “mais Gullar” do que ele
próprio.
Em seu livro, Em alguma parte alguma, a questão dos possíveis
desdobramentos e traduções do “eu”, o olhar para o próprio corpo como um outro
e a súbita aparição do que é estranho a nós e antes passava despercebido e
natural são temas que se reconhecem e reaparecem se complementando. Este
choque que é olhar para o corpo dito próprio, e perceber que talvez nós é que
sejamos próprios a ele (ou que não haja pertencimento algum em absoluto).
Apresentaremos aqui reflexões sobre essa forma de duplicação em
Ferreira Gullar, a partir da corporeidade, mas, como já vimos nos capítulos
anteriores, esse poeta apresenta uma grandiosidade de possibilidades de
enxergar tanto o corpo quanto o contato com o outro, seja ele duplicado de si
mesmo ou ligado à linguagem ou ao coletivo:
E poesia, sempre, em busca do outro, ou melhor, de muitos outros: o outro que habita o eu, ou seja, a porção desconhecida e indomada de cada um de nós mesmos; o outro como protagonista do poema, no discurso solidário que se abre transitivamente para a aceitação do “ele” no universo anti-solipsista do “eu”; e o outro como leitor/interlocutor, na medida em que, para Gullar qualidade e comunicabilidade não são fatores excludentes. (SECHIN, 2003, p. 206)
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4.1 – Em alguma parte alguma: corpo próprio corpo
Se no capítulo anterior observamos o corpo como uma forma de
reconhecimento, resistência e luta, e a leitura do eu se dá conectada com a carne
e os ossos (“Sou um homem comum/ de carne e de memória / de osso e
esquecimento” (1991a, p.161), no livro Em alguma parte alguma a percepção de
uma parte do corpo como o osso é razão de susto e estranhamento, formando
uma cachoeira de perguntas e reflexões acerca de um corpo próprio.
Observemos o poema “Reflexão sobre o osso da minha perna”:
A parte mais durável de mim
são os ossos
e a mais dura também
como, por exemplo, este osso
da perna
que apalpo
sob a macia cobertura
ativa
de carne e pele
que o veste e inteiro
me reveste
dos pés à cabeça
esta vestimenta
fugaz e viva
sim, este osso
a mais dura parte de mim
dura mais do que tudo o que ouço
e penso
mais do que tudo o que invento
e minto
este osso
dito perônio
é, sim,
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a parte mais mineral
e obscura
de mim
já que à pele
e à carne
irrigam-nas o sonho e a loucura
têm, creio eu,
algo de transparente
e dócil
tendem a solver-se
a esvanecer-se
para deixar no pó da terra
o osso
o fóssil
futura
peça de museu
o osso
este osso
(a parte de mim
mais dura
e a que mais dura)
é a que menos sou eu? (2010, p. 31)
O estranhamento com o osso acontece no momento em que o poeta
percebe que um dia morrerá, mas seus ossos permanecerão. É sua parte mais
“durável”. Dura mais que tudo, até mesmo que esse eu que se questiona agora
sobre os ossos. Como podem os ossos serem nossos, serem próprios, se,
mesmo após o apagamento de nós mesmos enunciantes e também enunciados,
eles permanecerão? Neste poema, também os ossos duram mais do que tudo
que ouve e pensa e até mesmo mais do que a própria arte que produz: “mais do
que tudo que invento/ e minto".
O osso dura, mas não a carne, a pele: “fugaz e viva”; tampouco a
consciência. Ele é a parte que representa a aproximação com a morte e o que
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restará após alcançá-la. Além da dicotomia que vimos em Blessmann, entre
corpo e mente, há aqui um terceiro elemento que é o osso. O corpo se deteriora;
a consciência é a parte que surge e desaparece, sempre viva, sempre jovem, se
renovando sempre sem o peso do tempo; e o osso é não só a parte que
permanecerá se desconectando da carne e do eu, mas também a que traz a
certeza de que haverá a morte.
O título do poema é uma reflexão. É a busca pelo sentido da pergunta
feita por Nancy no início de seu livro Corpus: “O que é isto que é o corpo?” No
caso de Ferreira Gullar, o que é isto que é o osso? De tão distante de si, nem
afirma que lhe pertence, mas pertence à sua perna. Como tentar explicar esse
estranhamento com osso, que permanecerá independente de o eu estar vivo ou
não? A escritura, a poesia podem cumprir esse papel de busca. Mas talvez seja
apenas uma forma de confessar o que já sabe, e permanecer sempre nessa
dúvida:
Escrita não quer dizer mostrar, ou demonstrar uma significação. Mas indica um gesto para tocar no sentido.[...] O seu próprio toque - que é deveras o seu - é-lhe por princípio retirado, espaçado, apartado. E é isso a escrita: que o contacto estranho advenha, e que o estranho permaneça estranho no contacto.[...] Escrever endereça-se assim. Escrever é o pensamento endereçado, enviado ao corpo – àquilo que o aparta, àquilo que o estranha.[...] Já que é a partir do meu corpo que eu estou endereçado ao meu corpo[...] É a partir do meu corpo que tenho o meu corpo como algo que me é estrangeiro, expropriado. (NANCY, 2010, p. 18-19)
O poeta “apalpa” a perna. Ou seja, tenta reconhecer através do tato, da
escrita, este corpo, este osso que se diferencia tanto de quem ele é. Mas esse
toque é espaçado, como disse Nancy na citação, e o osso torna-se estrangeiro
a partir desse próprio endereçamento.
Por outro lado, reflexão também pode ser o reflexo do eu enunciante
quando olha o osso. O reconhecimento de si, nele. Reflexo, porém, é outra coisa
que não mais nós mesmos. Até o tempo em que nos olhamos no espelho difere
do eu que olha para o eu que é olhado – a luz demora um tanto de tempo para
ser transportada e recriar uma imagem.
Um osso é tão distante de nós que o associamos sempre à morte. Ao
contrário da veia, que transporta a vida dentro do corpo, o osso é o que resta,
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mesmo quando o corpo apodrece. O osso é o “fóssil”, o que há de mais primitivo,
que ultrapassa a própria consciência. Ele também é, na verdade, o que supera
a morte. É o que de nós ainda fica no mundo. “Este osso/ dito perônio/ é, sim,/ a
parte mais mineral/ e obscura/de mim” - como explicar um osso? Tem vida
própria quando existe sem nós?
O poema termina com a pergunta: “o osso/ este osso/ (a parte de mim/
mais dura/ e a que mais dura)/é a que menos sou eu?” Há um espanto a partir
de algo que lhe é familiar. No poema, esse susto só é possível a partir da própria
reflexão, da consciência, da escrita. É esse processo de consciência, talvez
superefêmero, sobre um eu que enuncia e uma parte de si que é outra – o osso.
O desdobramento de um duplo, justamente ao caminho da morte: o osso irá
durar, será peça de museu, enquanto o eu que enuncia já não mais existirá.
O osso é o que permanece após a morte do eu enunciante, e não é a
poesia também isso que permanece? Ao escrevermos um poema, já não
encontramos mais em nós o que transportamos para ali, é uma duplicação, uma
tentativa de alcançar o sentido. No fazer poético, apalpamos a poesia, mas há
essa carne e essa pele entre nós e ela. Há um eu que fica e um eu que vai. Ao
escrever, a poesia é o que menos somos?
A PROPÓSITO DO NADA
sou
para o outro
este corpo esta
voz
sou o que digo
e faço
enquanto passo
mas
para mim
só sou
se penso que sou
enfim
se sou
81
a consciência
de mim
e quando
vinda a morte
ela se apague
serei o que alguém acaso
salve
do olvido
já que
para mim
(lume apagado)
nunca terei existido (2010, p.69)
Em seu poema “A propósito do nada”, Gullar tece a relação entre corpo e
alteridade e corpo e desdobramento. Alteridade no momento em que delimita,
como Breton já sugere na Sociologia do corpo, o contato com o outro, seja no
plano físico como no do fazer poético, através do limite do próprio corpo:
o corpo é o elemento que interrompe, o elemento que marca os limites da pessoa, isto é, lá onde começa e acaba a presença do indivíduo. O corpo funciona como se fosse uma fronteira viva para delimitar, em relação aos outros, a soberania da pessoa. (BRETON, 2017, p. 30)
Essa delimitação, no poema de Gullar, se dá através de seu corpo e
também do corpo de seu poema. Ele é para o outro um corpo e uma voz. A voz
poética só pode ser compreendida por um interlocutor que lê, e há também uma
limitação entre o poeta que pensa e esse outro que escuta. Ao usar do verbo
“olvido”, refere-se não só à memória que permanecerá após sua morte nos vivos
que ficarão, mas também, através de um jogo fonético com o verbo “ouvir”, à voz
do poeta no poema, restando ao leitor o ato de escutar. É, portanto, através do
outro que se dá a permanência da poesia, mesmo depois que o corpo já não
está mais vivo.
82
Além da delimitação do corpo com um outro, há também essa mesma
delimitação com o próprio enunciante. Se por um lado é-se para o outro através
da corporeidade e do fazer poético, só há a possibilidade de ser parar si mesmo
através da reflexão. Pensar, então, separa-se da compreensão corporal. Seu
corpo não é imediatamente quem se é, já é outro uma vez que só há identificação
com si mesmo através da consciência.
Novamente, como vimos nos poemas “O duplo” e “Reflexão sobre o osso
da minha perna”, existe a aproximação da morte. Neste poema, em vez de um
osso durável como resquício (mesmo que estranho) de seu ser no mundo, o que
de estranho ficará é a sua voz, sua poesia. Como perguntamos no fim da
intepretação do poema anterior, há um duplo de estrangeiridade no fazer poético.
Escrever poesia é o susto com o ranger do osso, ao passo que é o que nos dá
permanência.
Por outro lado, se Gullar se duplica, no momento em que enxerga o corpo
como um estranho, e a única forma de ser é através da consciência, como se
daria a percepção da realidade apenas corporal? Excluindo a consciência do
processo de duplicação, o que restaria do poeta ao perceber-se apenas corpo?
Observemos o poema “Repouso”:
pouso o rosto
na mesa
que
alívio
ser apenas
tato
só este
macio
contato
o corpo –
corpo
defeso
dos esplendores
83
da vida (2010, p 62)
A começar pelo título do poema, “repouso” pode adquirir dois significados:
a possibilidade de descansar, representando uma pausa. Se há pausa para
descanso, quer dizer que há, em outro momento, cansaço devido a um ritmo
acelerado. Podemos compreender o cansaço relacionado ao ato de reflexão, de
pensar, a consciência do poeta que se apresenta no poema anterior como única
forma de encontrar seu ser; também pode ser uma repetição do ato de pousar.
Pousar é um verbo diretamente ligado aos pássaros. Ora, diferente do ser
humano, os animais não encontram abertura para o ser no mundo, uma vez que
eles não refletem, não raciocinam. Gullar começa esse poema, então, trazendo
no primeiro verso uma aproximação com um agir animalesco. Logo, é um
repouso do ser, um esvaziamento da consciência e o agir apenas com o sentido
corporal tão presente nos animais.
Esse descanso da consciência é um “alívio”, é “macio”, não há
preocupação em relação à reflexão. Outra observação importante é que este
pouso se dá na mesa e com seu rosto. O rosto é a forma mais fácil de
identificação de um indivíduo pelo outro e por nós mesmos ao espelho, é a
definição clara de um ser humano, e é justamente o rosto que descansa:
As qualidades do homem são deduzidas da feição do rosto ou das formas do corpo. Ele é percebido como a evidente emanação moral da aparência física. O corpo torna-se descrição da pessoa, testemunha de defesa usual daquele que encarna. O homem não tem poder de ação contra essa “natureza que o revela; sua subjetividade só pode acrescentar pormenores sem reflexos sobre o conjunto. (BRETON, p.17, 2017)
Gullar, portanto, coloca para descansar aquilo que o faz identificar-se
enquanto ser humano: o rosto, a representação de sua consciência. Além disso,
a mesa pode ser um lugar que nos colocamos a escrever, mas neste momento
é um local de descanso. Há uma pausa, então, ao descasar a consciência,
também em seu fazer poético.
84
Ao repetir a palavra “corpo”, enfatiza que ali está presente apenas o corpo,
e não há presença de um eu. Esse momento de repouso possibilita que o corpo,
descansando tranquilamente, seja apenas isto: um animal que pousa, sem
preocupar-se com o mundo, com filosofia ou com a escrita. Assim como no
poema de Adélia Prado, o corpo é humilde: dorme (ou repousa).
No momento em que se dá essa pausa, o corpo perde contato com o ser,
não se duplica, pois adormecido ou pacificado. Portanto, está completamente
distante das coisas do mundo, pensadas e percebidas pela razão do homem.
Está “defeso” a isso tudo. Defeso pode significar tanto que está isento a alguma
coisa quanto que está proibido de acessar. Devido à calmaria do poema,
poderíamos ler esse verbo como liberdade, uma vez que o corpo está em
repouso. Por outro lado, ele se afasta dos “esplendores”, o que não é positivo,
pois deixa de ter contato real com os prazeres mundanos, com a compreensão
da vida, para ter apenas um contato macio com a superfície em que pousa.
O duplo deste poema é implícito e está no próprio enunciador. O ato de
escrever sobre esse momento de pacificação do corpo já traz consigo a reflexão
de que a exploração apenas dos sentidos é somente uma pausa, uma quebra
na agitação do pensar. Porém, a consciência está produzindo esse poema, e
alcança o esplendor a que o corpo está defeso.
ACIDENTE NA SALA
movo a perna esquerda
de mau jeito
e a cabeça do fêmur
atrita
com o osso da bacia
sofro um tranco
e me ouço
perguntar
aconteceu comigo
ou com meu osso?
85
e outra pergunta:
eu sou meu osso?
ou sou somente a mente
que a ele não se junta?
e outra:
se osso não pergunta,
quem pergunta?
alguém que não é osso
(nem carne)
em mim habita?
alguém que nunca ouço
a não ser quando
em meu corpo
um osso com outro osso atrita? (2010, p. 39)
Em seu poema “Acidente na sala”, podemos nos deter por um momento
no título. Um acidente é algo que pode causar horror, sofrimento ou acontecer
de forma inesperada. Nunca prevemos um acidente, justamente por isso ele é o
que é – uma coisa que vem sem aviso, no susto, e pode muitas vezes nos levar
a um estado de choque tanto físico quanto psicológico. Contrastando com esse
acontecimento, temos um lugar de cotidiano, que gera aproximação e um
ambiente familiar: na sala. Logo, um absurdo que surge dentro do simples, do
ordinário da vida.
Freud, em seu artigo O estranho, se questiona sobre o que nos leva à
estranheza de alguma coisa ou alguma situação, fazendo estudo da amplitude
significativa do vocábulo “Heimlich”, que pode significar tanto algo que nos é
íntimo como algo que nos é desconhecido, secreto. Logo, em um determinado
momento, o que é dito como familiar pode tornar-se quase seu oposto, o que nos
é absurdo:
O que mais nos interessa nesse longo excerto é descobrir que entre os seus diferentes matizes de significado a palavra ‘heimlich‘ exibe um que é idêntico ao seu oposto, ‘unheimlich‘. Assim, o que é heimlich vem a ser unheimlich. (Cf. a citação de Gutzkow: ‘Nós os chamamos ‘unheimlich”; vocês o chamam “heimlich”.’) Em geral, somos lembrados de que a palavra ‘heimlich‘ não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de idéias que, sem serem contraditórias, ainda assim
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são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista. ‘Unheimlich’ é habitualmente usado, conforme aprendemos, apenas como o contrário do primeiro significado de ‘heimlich‘, e não do segundo. (FREUD, 1925, p. 5-6)
Ora, no título do poema visualiza-se justamente a questão do
extraordinário (um acidente) sendo transportado para dentro de um ambiente
extremamente familiar, intimista, que é uma sala. Este acidente pode causar o
estranhamento em nossa própria casa. Um ambiente que, à primeira vista, é
seguro, pode tornar-se palco do que normalmente acontece na rua, lugar de
ninguém, e nos assusta, quebrando a faixa de normalidade dada ao cotidiano da
vida. As escolhas dessas palavras no título parecem divergir, mas, como no
vocábulo apresentado por Freud, vão com seus diferentes significados uma de
encontro à outra, não para colidirem, e sim para se complementarem.
O poema começa com o maior osso do corpo, o fêmur esquerdo (que é
inclusive ligeiramente maior que o direito na anatomia humana) atritando com o
osso da bacia. A escolha de um osso longo pode ser lida como a representação
de uma parte do corpo que tem vida própria, que se destaca no espaço e na
noção do eu, já que é o contato desse osso com outro osso que passa a ser o
motivo de um conjunto de questionamentos do poeta sobre o que ou quem ele é
ao longo do poema.
Ele não roça, mas atrita, o que, na Física, ocorre quando dois corpos
entram em choque para dar origem a um movimento. Movimento tal que leva ao
susto do poeta e a um monte de perguntas que seguem como em uma cachoeira.
Ou seja, seu pensamento está em turbilhão. O osso não está mais estático, e
tampouco o pensamento em relação à existência desse osso.
As perguntas, ao mesmo tempo que são feitas, são também ouvidas.
Como se um perguntasse, fosse o agente da dúvida e do assombro, e o outro
(que ainda não é o corpo, mas o desdobramento do poeta) ouvisse. Há a
separação entre esses dois “eus” (um agente e outro paciente) e também entre
o osso. O atrito aconteceu com ele ou com seu osso? E então a separação entre
mente e corpo, como se nosso pensamento fosse parte separada de nossa
constituição física. De acordo com Freud, “provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o
87
primeiro ‘duplo’ do corpo” (1925, p. 12), ou seja, aqui também se duplica, a partir
do estranhamento com o corpo, um outro, que “sofre um tranco”.
Assim como no poema anterior, há uma fragmentação do corpo: o osso
cumpre o papel de ser um elemento separado, quase com vida própria, e
causador de espanto. O processo de consciência, gerado a partir do susto
corporal, é algo efêmero em ambos os poemas, comparado à duração do osso.
Um osso dura mais que um corpo e que um pensar o corpo, é a única
possibilidade de permanência, representando a ideia de morte:
A constante presença do corpo fragmentado é uma metáfora da perda de totalidade que caracteriza a modernidade. O homem é apenas efêmero, um fragmento do mundo contingente e errante. A essência humana desprovida de sua origem divina, apresenta-se como finitude e transitoriedade. [...] Diante da falta de sentido de qualquer valor absoluto, a atenção voltava-se para o detalhe, para o momentâneo. (MATESCO, 2009, p. 335)11
Essa fragmentação do corpo dentro do corpo (porque, além do corpo se
duplicar em relação ao eu enunciante, ele se desdobra, diferenciando-se, entre
carne e osso) é completamente oposta ao corpo que vimos na poesia de Gullar
em sua fase política. No capítulo anterior, o corpo era íntegro e parte de um todo,
carne e osso eram o sujeito e não um duplo. Antes, se havia um espelho, esse
espelho era o mundo; agora o espelho está despedaçado até mesmo em sua
moldura.
Na última estrofe, há o deslocamento do sentido das perguntas sobre o
osso para sobre quem está perguntando. Já que ele ouve perguntar, e está em
choque com seu osso de forma independente criando atrito, quem é esse outro
que pergunta? Este outro, que é o próprio estranhamento, só surge e se faz ouvir
com o osso atritando com outro osso, gerando também um atrito entre o eu que
escuta e um outro que pergunta. Atrito entre duas coisas é o que leva ao
movimento, que sai da estática. Logo, fruto de reflexões.
Há um jogo de palavras quando o poeta usa “osso” e “ouço” e o uso de
osso com “outro” osso. O sentimento esquisito surgiu somente quando seu
fêmur, até então parte de si mesmo e constituição do corpo que é seu, encosta
11 Também retirado de um e-book do Kindle, a paginação se refere ao “posicionamento”.
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em outro osso, já diferenciando ambos (os ossos). Há um tríplice jogo no poema
– o primeiro é o osso; o segundo, o outro que pergunta; e o terceiro, quem ouve.
Por isso o uso duas vezes de “e outra” e “e outra”: uma pergunta em relação ao
eu que escuta e o osso; e a outra em relação ao eu que escuta e a esse eu que
pergunta.
Ao terminar a leitura do poema, podemos chegar à conclusão de que esse
acidente dito no título pode ter dois significados: à primeira vista, o atrito dos dois
ossos, que levou a todos os questionamentos e sensação de estranheza por
parte do poeta; ou a geração desse outro eu que pergunta, que questiona. E que
nasceu graças ao estranhamento do eu que escuta tanto as perguntas como
também o barulho de um osso atritando com outro osso.
Em ambas as possibilidades, o poeta ainda está em sua sala que, como
dito anteriormente, é um ambiente familiar e cotidiano. Poderia ser considerada
como o seu “Heimlich” que se transfigura em suas próprias possibilidades
significativas de um sentimento de conforto para um sentimento de
desconhecido. Se pensarmos a paisagem da sala como essa abertura do que é
simples e natural até alcançar o estranhamento, e esse estranhamento como
causa do desdobramento em outros, podemos relembrar, como vimos no
capítulo anterior, o espaçamento do sujeito a que Michel Collot se refere (2013,
p. 31). Anteriormente, o espaçamento se deu através de um processo do
individual para o corpo da noite até encontrar-se com a lembrança da luta de
classes. Neste poema, se dá o espaçamento do familiar para o estranho.
O sujeito se expande a partir do acidente, uma exterioridade que invade
sua casa, seu pequeno ambiente confortável que é a sala. O acidente é a
abertura, o fora que invade a morada, que arranca o eu fechado dentro de si
mesmo, em sua sala. Ele se desdobra em algo que antes era indesdobrável,
comum e enclausurado em si mesmo – seu osso, que já é outro. E a partir desse
desdobramento gera outro desdobramento que é o eu que pergunta. O espaço
que invadiu o ambiente familiar permitiu essa abertura, e não à toa através de
questionamentos, de perguntas, como Collot mesmo chega à conclusão: “O
espaço é uma dimensão essencial dessa abertura, em que uma das
modalidades não é outra senão o pensamento”. (2013, p. 31)
89
RELVA VERDE RELVA
Dentro de mim – mas onde?
no céu
da boca? debaixo
da pele? –
fulge de repente um largo verde esquecido
dentro de mim
ou fora
(em algum lugar nenhum)
de mim
um largo como se fosse um lago
e quase a transbordar de verde
ouvia a miúda algazarra da relva
rente ao chão
ah aquela inesperada toalha verde viva
em meio à cidade em ruínas!
(o relâmpago me atinge agora numa cozinha da rua Duvivier)
De tais espantos somos feitos. (2010, p.40)
A partir de nenhuma causa específica, uma relva verde, em forma de
memória, retorna. Porém, de onde surge essa lembrança? Onde ela se
encontrava para de repente surgir brilhando? As perguntas já na primeira estrofe
mostram o estranhamento do poeta em relação ao pensamento, a redescoberta
de uma paisagem, ter origem em seu corpo. É dentro dele que se encontra esta
relva, mas que parte de seu corpo a trouxe de volta?
O corpo, representado por boca e pele, é o que traz de volta toda a
paisagem formada ao longo do poema, um retorno do que havia sido esquecido.
É no céu, céu da boca, debaixo da pele, lugares possíveis ao renascimento da
memória paisagística. Segundo Collot (2013, p. 40), a troca realizada na
90
paisagem entre homem e mundo é feita através de metáforas corporais, como
se a noção de “carne no mundo” fosse levada ao pé da letra. No poema de Gullar,
a relação entre homem e memória é realizada através dessas metáforas, do
corpo tomado como parte do que faz ressurgir a paisagem antes esquecida.
Essa entrada no corpo leva novamente, como no poema “Acidente na
sala”, a um desdobramento do eu e um estranhamento com o corpo que, à
primeira vista, faz parte desse eu, ou pelo menos pertence a ele. O atrito dos
ossos fez surgir perguntas sobre quem é o eu que fala e o eu que escuta e ainda
o que é esse osso que atrita em outro osso. Em “Relva verde relva” é a memória
que causa o atrito, pois o poeta se questiona de onde é que ela vem, já que seu
surgimento é repentino, como um acidente, não há como prever.
A memória, nesse poema, surge a partir de uma noção corporal. Se
pensarmos memória como paisagem, e esse lugar como morada ocupacional de
nós mesmos, só é possível relembrarmos com nosso corpo. Qualquer reflexão,
lembrança, pensamento se torna um ato corporal, assim como transformar isso
tudo em poesia:
Ora, o que sucede, no acto da escrita, é que a consciência se torna consciência do corpo. Pensamento e corpo são um só, physispsyché, e qualquer movimento físico é igualmente movimento mental do pensamento. Quando se escreve que alguém se senta e também nos encontramos sentados, o nosso pensamento senta-se conosco e com aquele(a) que foi escrito(a), quando lemos o mergulho de Moby Dick, o nosso pensamento mergulha com a baleia branca, à semelhança dos traços dinâmicos apontados por Deleuze e Guattari. O corpo presentifica-se no pensamento. (SILVA, 2007, p.48.)
Porém, essa noção de que a memória parte do corpo, e este sendo um
estranho, gera então no poeta um espanto fruto dessas perguntas acerca do
surgimento da memória. Pois, se o corpo é um outro nesta fase de Gullar,
diferente da citação acima, a memória é também estrangeira ao eu enunciante
do poema, pois o corpo já está deslocado do eu.
Essa relva está dentro dele ou está fora? Se o dentro é o corpo que já não
é um só com o poeta, como pode sua memória surgir de um local exato? E se
fora é onde está esse eu que se desloca pelo próprio estranhamento com o corpo
causado pela memória, como pode ela surgir fora se esse próprio
91
questionamento vem com seu retorno e diferenciação do eu com o dentro de si?
Talvez esteja em algum lugar nenhum, expresso pela isomorfia dos parênteses.
Mas ainda assim essa alguma parte alguma “de mim”:
Ele (o corpo) é eu mesmo, sim, ego extraneus. Eu mesmo de fora, eu mesmo fora, enquanto fora de mim, eu-mesmo enquanto divisão de um dentro e um fora, o dentro em si mesmo obscurecido ao ponto de uma concentração obscura, opaca e abissal em que o espírito se dilacera entre um “eu” abstrato [...] e um “eu” proferido [...] Sim, eu-fora. Não “fora de mim” pois, na verdade, dentro não há “eu” mas a lacuna onde todo meu corpo se recolhe e pressiona para fazer voz e declarar-“se”, se reclamar e chamar, se desejar desejando o eco que talvez outros corpos emitirão em torno dele. Estranho estrangeiro para si mesmo em seu apelo de si mesmo; senão, ele não poderia chamar-se, ele não poderia exprimir em toda sua extensão o pedido de encontrar esse estranho estrangeiro. (NANCY, 2015, p. 47)
O estranhamento com o corpo neste poema é apresentado com uma
diferenciação espacial: o dentro e o fora. O corpo deixa de ser um corpo próprio
do poeta e passa a ser ele mesmo (o corpo) o seu próprio. Como disse Nancy
na citação, ele é “eu mesmo” e não eu, só que é o eu que vê de fora, que está
fora, olhando para dentro. A relva, no poema, está nesse intermédio entre o
dentro e o fora: em alguma parte alguma.
E ela vai tomando forma, é confundida, transfigurada, pois é lembrança,
em largo e lago. A memória normalmente é relacionada a uma paisagem e
sempre retorna através dos sentidos do corpo. Pode ser um cheiro, um som,
uma textura. No poema, é uma cor. Esse verde que é mato, mas também poderia
ser água de lago, só é possível de ser redescoberto pois um dia houve o contato
com os olhos. Ao mesmo tempo, toma forma de toalha, o pano que, justamente
depois de molhados, usamos para nos secar. Se nosso corpo relembra a relva
também como água de lago, é ela mesma que toma outra forma e nos envolve
nos secando.
Os sentidos do corpo exploram a memória: o verde, através da visão; a
algazarra, através da audição; e a toalha, através do tato. A relva é representada
de várias formas, e é necessária a presença do corpo em todas elas para fazê-
la fulgir. Ao mesmo tempo, toda a cidade onde se encontra esta relva está em
ruínas. É o resto que não é possível ser relembrado, é o que permanece apenas
92
como vestígio. O corpo não conseguiu trazer tudo completamente de volta a
partir de suas experiências sensoriais.
Por fim, há um relâmpago, dentro de parênteses, o que traz novamente a
ideia de falta de pertencimento a um lugar, um entre, atinge o poeta na cozinha
de sua casa. Mais uma vez, a ideia de um acidente, de algo que vem de fora do
ambiente familiar. Essa representação do relâmpago é também o acidente que
ocorre na sala do outro poema. A cozinha de sua casa é invadida por algo
externo, que leva o poeta ao estranhamento. Voltemos ao início do poema, em
que o poeta começa a se questionar de onde vem a memória da relva – é onde
precisamente vê seu corpo como outro, se desdobra para além de sua pele e
sua boca.
O último verso está na voz passiva e na primeira pessoa do plural. Nós
somos feitos de tais espantos. Esse “nós” pode tanto se referir ao ser humano,
o relâmpago pode atingir qualquer pessoa em qualquer ambiente familiar,
podemos ser tomados do estranhamento repentinamente. Ou ainda fazer
referência ao eu do poeta que está “fora” e a seu corpo que está “dentro” – os
dois juntos formam esse “nós” oculto no verbo.
O estranhamento com o corpo aqui é acendido pelo retorno da memória:
“fulge de repente um largo verde esquecido”:
Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto. (FREUD, 1925, p. 16)
No poema, esse algo que retorna, que fora esquecido outrora, ressurge
não como algo que é assustador ou estranho. Não é a relva que nos causa
estranheza, mas é o próprio ato de relembrar a relva e a dúvida sobre o seu
processo de acontecimento que geram, no poeta, o desdobramento de
espacialidade e a distensão com seu próprio corpo. E novamente é algo que vem
93
de fora, um acidente, um relâmpago, que toma a representação de invasão do
ambiente familiar: uma sala, uma cozinha.
PERPLEXIDADES
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado (2010, p.40)
O título “Perplexidades” nos remete mais uma vez à ideia de espanto. Se
em “Acidente na sala”, foi o atrito do osso que causou o estranhamento, e em
“Relva verde relva” a memória trazida de volta através do corpo, neste, o
causador do susto, do estado de perplexidade é a consciência da existência, do
ser no mundo. Ora, a nossa noção de ser em algum lugar, no espaço à nossa
volta, só pode ser dada através da relação de nosso corpo com essa paisagem:
94
Uma filosofia da encarnação como a de Merleau-Ponty considera que a própria consciência tem lugar no espaço, e este lugar é o corpo. O corpo apresenta uma topologia análoga á fita de Moebius, cujas faces internas e externas são indiscerníveis; assim, ele desempenha o papel de uma interface entre a consciência e o mundo: “O próprio corpo está no mundo, como o coração no organismo [...], forma com ele um sistema. [...] A coisa e o mundo me são dados com as partes de meu corpo [...] numa conexão viva comparável; ou melhor, idêntica àquela que existe entre as partes de meu próprio corpo”. (COLLOT, 2013, p. 38)
Aqui, é o corpo em contato com o mundo que leva ao estranhamento do
sujeito. E há novamente, como no poema “Acidente na sala”, o desdobramento
do eu em três partes: a consciência, que é sua parte mais efêmera, logo é algo
que se transforma, que muda a todo tempo; o eu que passa a saber o espanto
quando adquire essa consciência; e o corpo, que é o mediador e é mais durável
que essa consciência que surge.
Se compararmos os dois poemas, percebe-se que o eu que pergunta
naquele é também uma consciência de percepção neste. E o eu que ouve passa
agora a ser o eu que sabe. O osso que atrita, e é a causa do acidente, do espanto
dentro de uma sala, aqui é o corpo em atrito com o mundo, gerando também um
acidente, um relâmpago: a reflexão que surge, a partir do movimento gerado pela
própria força de atrito.
A estranheza se dá de três formas: a partir do surgimento da consciência;
perceber-se outro além da consciência, o eu que a sabe; e a diferenciação da
consciência e desse eu com o fio de cabelo, com seu corpo. No poema “Relva
verde relva”, é a memória reconstituída através dos sentidos do corpo que gera
a estranheza, visto que seu corpo se desprende do eu que sabe, do eu que ouve
ou do eu que está fora; neste poema, o desprendimento entre corpo e esse eu é
feito através do surgimento, também repentino, da consciência, só possível
também a partir de um corpo que se separa do eu e se coloca no mundo.
Mais estranho ainda que o surgimento da consciência e sua diferença com
o eu que sabe e o corpo que permanece, é ainda o contato, somente possível
na duração dessa consciência, desse eu, através do corpo, com outros corpos.
Como no poema “Acidente na sala”, o sujeito se expande. O acidente é o que
traz a rua para dentro de casa, e aqui é a consciência que traz o universo para
95
perto dos olhos do sujeito poético. O universo lhe é dado, ele passa a olhar para
além do próprio mundo:
Os corpos são estranhos uns aos outros pela estranhice do espírito que os anima. Essa estraneidade constitui também a sua estranheza: os corpos são não apenas estranhos. Só dificilmente é que se reconhecem e se aproximam, obrigando-se a superar uma desconfiança, por vezes um temor ou mesmo uma repulsa. Um corpo não toca facilmente outro corpo por saber que essa proximidade ameaça a ambos com a possibilidade de explodirem juntos numa nova chama do desejo do espírito. [...] Um corpo não é somente estranho para os outros. Ele só o é sendo igualmente estranho para si mesmo. (NANCY, 2015, p. 45 e 46)
Essa última estranheza é dada então não na percepção de um corpo e de
um eu que se separam somente, mas também no corpo de um ente com outros
corpos, as estrelas. Esse estranhamento só surge na duração da consciência,
um “enquanto”, que se contrasta, por ser efêmera, primeiramente com o eu que
sabe e o fio de cabelo, e agora com o universo que é infinito. A expansão do
sujeito é tão grande que alcança as constelações.
Apesar da expansão e do encontro com outros corpos, não é possível
alcançar o todo do universo. Através da visão, há o contato com as estrelas,
porém só algumas, e mesmo essas só são vistas pelo passado, não o do sujeito,
que está no presente durável de sua consciência, mas no delas próprias. Como
no poema “Relva verde relva”, a memória surge “fulgindo”. A relva fulge de
repente, e aqui são as estrelas que estão fulgindo. O que vemos no céu já são
estrelas mortas, e o que alcança nossos olhos são o seu passado. A distância
entre uma estrela e nossa visão é tão imensurável, que, quando a luz de sua
imagem chega a nosso contato, as estrelas já não existem mais.
O interessante do uso desse verbo em ambos os poemas é justamente a
morte, a inexistência do que antes havia sido. O que fica é a percepção sensorial
por parte de nossos corpos. No outro poema, o corpo que traz a luz de volta, e
nesse é a luz que nos alcança sendo já uma memória.
Explorar o espanto através do corpo e com o próprio corpo é desapropriar-
se das certezas, é expandir o eu a inúmeras possibilidades e desdobramentos.
O corpo pode gerar estranhamento entre o sujeito e ele mesmo, e também ser o
intermediário para outros assombros. O repentino cumpre um papel fundamental
96
e sem explicação. De repente, olhamos para nossas mãos e já não as
reconhecemos como nossas. Existe maior susto do que deparar-se com partes
estrangeiras de si mesmo?
O corpo tem um funcionamento independente de nossa consciência. Até
quando há morte cerebral, e há a impossibilidade de um eu que ali habita voltar
a ser, o corpo continua trabalhando, com suas sinapses, seu processo
respiratório e cada pequena célula que nasce e recria. É como uma morada:
podemos limpar a casa, mas a poeira se acumula quer queiramos ou não, e há
portas e janelas que rangem de madrugada sem explicação.
Os últimos três poemas de Ferreira Gullar escolhidos tratam, cada um
com seus questionamentos, do corpo de formas distintas, mas que se
complementam. “Acidente na sala” traz o assombro direto com o osso, quando
esse atrita com outro osso. É o desdobramento dos eus a partir desse choque
de escutar e sentir algo dentro de si rangendo. “Relva verde relva” é a memória
sendo renascida pelos sentidos do corpo, e, através desse processo de
redescoberta de algo esquecido, o estranhamento sobre o corpo ser o contato
que possibilitou vivê-la e trazê-la de volta. “Perplexidades” mostra o ser no
mundo, a consciência de existirmos, como algo que causa perplexidade. Só nos
localizamos no mundo através do corpo, ele é nosso intermédio, e por ser
intermediário entre nossa consciência e nós mesmos já há o deslocamento entre
esse corpo e o eu.
Nos três poemas, não é só o corpo que sofre uma desfamiliarização, mas
também a paisagem. Um acidente que ocorre na sala, quebrando a sensação de
proteção e bem-estar de nossa casa. Um relâmpago que atinge o sujeito poético
dentro da cozinha, transportando uma catástrofe também para dentro de casa,
exteriorizando um pouco o mundo familiar. E no último poema, a expansão do
eu que sai do mundo à sua volta e passa a observar o infinito universo, levando
inclusive ao estranhamento do corpo com outros corpos.
Escrever o espanto talvez seja a melhor forma de tentar compreendê-lo.
Ou talvez seja uma tentativa inútil, pois o estranhamento com o corpo e através
dele tende a expandir-se e aprofundar os desdobramentos do eu em outros
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desdobramentos, não chegamos provavelmente a lugar nenhum, mas em
alguma parte alguma:
Um homem coloca sua mão sobre uma parede de rocha e sopra ao seu redor um pó colorido; ele retira sua mão e contempla a impressão clara e definida pelo pó de ocre ou de carvão. Ou então ele levanta um pé e bate no chão de modo a conferir ao seu corpo não o pulso da marcha mas o impulso de um suspenso para além do solo, de modo que uma linha envolta e desenvolta por si mesma aparece como nuvem ou cipó. Essa dança e essa imagem carregam a estranheza de um corpo que se sabe – ou que se surpreende – estranho estrangeiro para si mesmo. Com isso a “arte” não doma ou reduz a estranheza desse corpo. Bem ao contrário: ela a expõe e escava, a acentua e exagera segundo a necessidade, exasperando-a e capturando-a somente para melhor deixá-la escapar. Para dizer tudo, ela lhe abre o espaço de uma expansão ilimitada. (NANCY, 2015, p 51)
A poesia de Ferreira Gullar, ao tentar capturar o assombro com o próprio
corpo, causa em nós, leitores, um estranhamento ainda maior com ele. É como
se ao lermos seus poemas lembrássemos que respiramos, e a partir dessa
lembrança não conseguíssemos mais respirar sem pensar no ato de fazê-lo.
Como no poema “Perplexidades”, essa consciência é passageira, logo
esquecemos e voltamos a respirar normalmente. Mas, ah, durante esses
momentos de consciência, quantas estrelas e relvas não vemos fulgir!
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Conclusão
A conclusão desta pesquisa está longe de fechar as possibilidades de
estudo do corpo na poesia de Ferreira Gullar, tanto pela quantidade de
elementos dentro das obras escolhidas como objeto de interpretação quanto
pelas obras deixadas de fora desse estudo. Como poeta das coisas palpáveis,
vivas e materiais, o corpo cumpre um papel de ponte entre o mundo e a poesia
escrita por Gullar. É a corporeidade que gera a conexão necessária para a
criação do poema – sua poética corporal.
Cada capítulo nos levou por um caminho distinto acerca da manifestação
do corpo em seus livros, ao longo das mudanças que passou em sua vida e na
forma de compreender e pensar o processo de criação artística. A escrita
também se transforma ao passo que nossa vida transcorre, assim como nosso
corpo sofre alterações, amadurece e percebe o mundo de outras formas. Se o
corpo é essa ligação, na poesia de Gullar, entre a percepção da realidade e a
possibilidade de transformá-la em poema, obviamente que com o passar do
tempo essa ponte perde pedaços, se reconstrói, muda de cor, vivencia
temporais, e isso gera também uma mudança na partida e na chegada do poeta.
Por isso, no começo desta dissertação, logo em sua introdução, falou-se
sobre “indícios” do corpo. São sinais corporais encontrados em suas obras, dos
menos óbvios aos mais claros e perceptíveis, fragmentos do corpo que são
lançados e reencaixados a cada nova leitura, e, como sinais, abrem
possibilidades para a descoberta de sua origem e de sua história. A poética do
corpo é uma poética da movência, do crescimento, da oxigenação da vida. Cada
indício do corpo não fecha um caminho, mas abre inúmeras possibilidades de
interpretação:
Por que indícios? Porque não há totalidade do corpo, não há unidade sintética. Há peças, zonas, fragmentos. Há uma ponta depois da outra, um estômago, uma sobrancelha, uma unha do polegar, um ombro, um seio, um nariz, um intestino delgado, um canal colédoco, um pâncreas: a anatomia é interminável, antes de acabar na enumeração exaustiva das células. Tampouco essa última forma uma totalidade. É preciso bem ao contrário recomeçar toda a nomenclatura para encontrar, se
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possível, o vestígio da alma impressa em cada pedaço. Mas os pedaços, as células vão se modificando enquanto essa conta continua enumerando em vão. (NANCY, 2015, p. 96)
Esses indícios, observando a citação de Nancy, são apresentados de
formas fragmentárias. São muitos ossos, cabelos, mãos que aparecem e
desaparecem na poesia de Ferreira Gullar. Assim como não há totalidade do
corpo, tampouco há totalidade da vida ou da poesia. Esses três elementos (vida
– corpo – escrita) estão o tempo inteiro se ressignificando, e é o corpo o
intermediário responsável por essa ressignificação, sendo ele mesmo parte
desse processo de transformação.
O corpo se descobre ao mesmo tempo em que se escreve. Ele é uma
experiência que traz para a escrita a possibilidade de abertura sensível ao
mundo, e vice-versa. É através do corpo que os poemas nascem, uma vez que
Gullar mesmo afirma que sua poética vem daí, do “vômito do vivido” ou da
corporeidade. Os indícios são formas de mostrar caminhos, de sugerir
descobertas. Juntando-os, abrimos a porta para a leitura feita da poesia de Gullar
nesta dissertação.
O livro Crime na flora foi a tentativa de Ferreira Gullar de transformar o
corpo, que é a ponte e o caminho, na própria escrita. A sua vontade de fazer da
linguagem algo vivo e independente do pensamento é a busca por uma escrita
animalesca, sensorial e, certamente, corporal. Como dito no início desta
conclusão, o corpo cumpre um papel de ponte. Escrever o corpo e com o corpo
deve partir de uma compreensão de que ele se expande e se transforma em
outra coisa quando posto em um poema, quando feito literatura. Um poema é,
certamente, um corpo, mas um corpo poético.
Esses questionamentos acerca da linguagem se refletem na forma que
esse livro toma: completamente experimental, de difícil definição. Não à toa, os
indícios do corpo presentes em Crime na flora são como mutações. Todos os
aspectos possíveis de um corpo são explorados: dejetos, sexo, putrefação,
estranhamento, nascimento, morte, violência. Sua falta de certeza sobre a
poesia, sobre a linguagem, se reflete em uma falta de certeza sobre o corpo.
Devido ao seu forte caráter experimental no que concerne à forma e a sua
própria feitura ter sido realizada com colagens de fragmentos, como o próprio
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Gullar afirmou, focamos bastante nas mudanças súbitas e espantosas na
estética da escrita ao longo dessa obra. Sendo o corpo a linguagem pura que
Gullar tenta alcançar, é compreensível observar como ele vai criando um livro
fragmentário sem um tempo cronológico. Não sabemos muito bem o que é esse
corpo, assim como nos perdemos na leitura.
Dentro da noite veloz e Poema sujo já trazem outro momento distinto do
corpo na poesia de Ferreira Gullar. Toda nossa vida, nossas decisões, nosso
existir no mundo estão envoltos de política. Escrever poesia, certamente, tem
um caráter de resistência perante a derrocada da arte e a vitória do produto e do
capitalismo. Tudo é dinheiro e utilidade na sociedade atual, então em que lugar
estaria salva a poesia? Escrever, portanto, é resistir. Mas a resistência dos
poemas de Gullar dentro dessas duas obras é também um sinônimo de ação, de
ato político. Existe uma movência em torno do fazer poético, e ela se dá de forma
combativa, propagandista e chamando todos à esperança.
O corpo, então, é resistência, muralha e muitos homens comuns. É um
corpo representativo, coletivo, de caráter militante. É justamente a pergunta que
Judith Butler faz a respeito da poesia que surge depois de Al-Haj ser torturado:
“Será que o corpo que sofre torturas é o mesmo que escreve aquelas palavras?”
(2017, p. 89). Será que o corpo militante de Gullar é o mesmo que escrever seus
poemas políticos? Pensando novamente o corpo como uma ponte entre mundo
e poesia, pode-se dizer que sim. E essa ponte carrega consigo buracos, rastros,
que moldam o caminho e a dificuldade ou facilidade da passagem.
Poema sujo ainda apresenta a capacidade de retomada da memória
através das percepções sensoriais corporais, sejam do próprio poeta consigo
mesmo quanto de sua relação com o outro. O corpo nos traz à tona, em Gullar,
uma poesia do agora, das coisas tocáveis e materiais. Mas perante um
isolamento forçado de sua vida, entregue ao exílio, a memória é retomada a
partir do corpo presente no momento em que se escreve.
Ao contrário desses dois livros, Em alguma parte alguma nos traz um
corpo que é um estranho para o poeta. Existe uma clara diferenciação entre o
“eu”, a consciência, e seu corpo, e isso se dá a partir de um profundo
estranhamento, gerando questionamentos, espantos e duplos. Último livro
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escrito por Gullar, explora outros aspectos relacionados ao corpo que não
haviam sido claros em sua fase anterior, como a aproximação da morte e o
distanciamento com o corpóreo.
Ao comparar a fase política de Gullar com esse último momento de escrita
de sua vida, observa-se como o corpo se apresentou de formas completamente
distintas. A contribuição do teórico David Le Breton, com seu livro A Sociologia
do corpo, foi fundamental para compreender melhor essa distinção: em
sociedades de cunho comunitário, o corpo era visto como um só com a
consciência, enquanto que, nas sociedades modernas ocidentais, ele é visto
como um outro, separado do “eu”.
Gullar não mudou de sociedade, mas se envolveu com o marxismo, que
prega a luta por um mundo igualitário e comunitário, o que podemos relacionar
com o corpo coletivo que aparece em sua fase política. O corpo estranho surge
após não ter mais envolvimento com os ideais marxistas, além de esse último
livro apresentar uma poesia mais voltada para questionamentos filosóficos,
estéticos e de cunho individual.
O corpo de Gullar se apresenta de diversas formas, pois são inúmeras as
formas imagéticas de se escrever poesia. Uma poética do corpo se dá no
momento em que os indícios abrem a possibilidade para uma conexão entre eles
mesmos e se repetem, gerando ressignificações ao longo do percurso. Esta
dissertação procurou reunir esses indícios ao longo de quatro obras do poeta,
mostrando que o corpo é parte fundamental de sua poética.
Seja um corpo que se transforma e reflete isso na forma do poema,
gerando confusões ao longo da leitura; um corpo que é resistência, que luta e
chama o outro para uma profunda identificação corporal, formando uma muralha
de corpos; seja um corpo que é um estranho para nós mesmos, que se atrita e
gera espantos. As formas distintas de manifestações do corpo na obra de
Ferreira Gullar só demonstram a capacidade gigantesca desse poeta de sempre
se reinventar, ainda que partindo do mesmo corpo que sempre esteve ali.
Enquanto houver corpo, há poesia. E quando não houver mais o corpo que
escreveu o poema, restam seus rastros ali presentes no poema-corpo e a
certeza de que outros corpos estarão sempre em contato com essas palavras,
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transformando-se, resistindo e estranhando-se. Que a poesia seja sempre um
osso e que preservemos sempre nossa história em museus vivos e moventes,
abertos ao mundo, que resistem até mesmo ao poder de um incêndio.
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