Post on 09-Dec-2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
GUSTTAVO GUTH
ROCHA POMBO: IMAGINÁRIO REPUBLICANO EM PETRUCELLO NA VIRADA DO
SÉCULO XIX PARA O XX
CURITIBA
2019
GUSTTAVO GUTH
ROCHA POMBO: IMAGINÁRIO REPUBLICANO EM PETRUCELLO NA VIRADA DO
SÉCULO XIX PARA O XX
Artigo apresentado como requisito parcial à
conclusão do curso de Direito, Setor de
Ciências Jurídicas, Universidade Federal do
Paraná.
Orientador Professor: Prof. Dr. Luís Fernando
Lopes Pereira.
CURITIBA
2019
3
Rocha Pombo: imaginário republicano em Petrucello na virada do século XIX para o
XX
Gusttavo Guth
RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo examinar o enredo de Petrucello, romance publicado
em 1892 pelo escritor paranaense José Francisco de Rocha Pombo (1857-1933), com vistas a
verificar possíveis relações entre o contexto social e político da proclamação da República,
época em que o autor escrevia o romance, e as suas próprias impressões, presentes no livro, a
respeito de certos aspectos deste processo histórico, como o militarismo, o liberalismo e o
capitalismo. Da mesma forma, planeja-se estudar as relações entre alguns ideais utópicos
desenvolvidos na narrativa e a posterior aproximação que Rocha Pombo teve com o
movimento anarquista no país, o qual começava a se estruturar como uma reação ao domínio
excludente que as elites exerciam sobre as camadas populares. Como conclusão, demonstra-se
que o romance, ainda que possua caráter fictício, auxilia na compreensão do que foi o
surgimento do regime republicano brasileiro: uma mudança política oligárquica e demofóbica.
Palavras-chave: Rocha Pombo. Paraná. República. Anarquismo.
ABSTRACT
This paper aims to examine Petrucello, a novel published in 1892 by José Francisco de Rocha
Pombo (1857-1933), in order to verify the possible relations between the social and political
context of the proclamation of Republic, when the author wrote the novel, and his own
impressions about some aspects of this historical process, such as militarism, liberalism and
capitalism. Following, it is planned to study the links between some utopian ideals developed
in the narrative and the later approach that Rocha Pombo had with anarchism, a movement
that was structured as a reaction to the exclusionary domain exercised by the elites over the
popular classes. In conclusion, it is demonstrated that the novel, although it has a fictional
character, contributes to the understanding of what was the emergence of the Brazilian
republican regime: an oligarchic and demophobic political change.
Keywords: Rocha Pombo. Paraná. Republic. Anarchism.
4
Foi tecida de crepe a vida de Rocha Pombo. Ela é rôxa, tem qualquer coisa de
túmulo. Sempre foi assim. A dôr o buscara como seu efeito, e desdobrar-se-ia na
gama completa dos suplícios: viera, êle, para expiações tremendas.1
Valfrido Piloto
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa divide-se em três partes. Na primeira, a ideia é situar Rocha
Pombo no momento histórico em que viveu, resgatar alguns dados biográficos e relacioná-lo
com Petrucello e o período de sua redação.
Em seguida, na segunda parte, avalia-se o modo pelo qual se deu a instauração do
regime republicano brasileiro, com caráter inicialmente militar, e os reflexos na opinião
política do romancista, a partir de seu protagonista. Da mesma forma, são examinados o
imaginário brasileiro na virada do século XIX para o século XX, quando os valores
capitalistas, sob o signo da modernidade, espalhavam-se pelo país, e os efeitos deste contexto
na escrita da narrativa.
Na terceira parte, por fim, são estudadas as relações entre a trajetória biográfica do
paranaense e o movimento anarquista que à época se estruturava no país para, assim,
compreender a utopia Cidade dos Homens imaginada no livro.
As fontes utilizadas nesta pesquisa são variadas, vão desde as obras de época, em
particular biográficas, para embasar a pesquisa a respeito da trajetória de Rocha Pombo, como
Piloto (1947, 1953 e 1983), Cardim (1958), Victor (1969) e Muricy (1973), até uma
bibliografia sobre história regional, com Valente (1992), Queluz (1994), Pereira (1998),
Corrêa (2006), Bega (2013) e Oliveira (2015), sem desprezar o clássico de Romário Martins,
História do Paraná, publicado em 1899. Para o paralelo com o momento republicano
nacional recorreu-se a José Murilo de Carvalho (2009 e 2013). No demais, o foco foi o
romance Petrucello.
Para a análise dos periódicos locais, utilizados para examinar as opiniões políticas de
Rocha Pombo e as discussões literárias na virada do século XIX para o XX, foram
consultados o acervo físico da Biblioteca Pública do Paraná, na divisão de documentação
paranaense, e o acervo digital de jornais e revistas organizado pela Biblioteca Nacional.2
_______________ 1 PILOTO, Valfrido. Rocha Pombo. Curitiba: Gráfica Mundial Ltda., 1953, p. 7.
2 Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 01 dez. 2019.
5
1. UM REPUBLICANO POPULAR E OS SINAIS DE SUA DESILUSÃO: A ESCRITA
DE PETRUCELLO
José Francisco de Rocha Pombo nasceu na cidade de Morretes, no litoral do Paraná,
em 4 de dezembro de 1857, filho de um professor primário, Manuel Francisco Pombo, e de
sua esposa, Angélica Rocha Pombo.
Em 1875, com 18 anos, substituiu o pai no exercício do magistério ensinando o “a b c”
às crianças de Anhaia, simples lugarejo nos subúrbios da cidade. Aos 22 anos, sendo
autodidata, passou a se dedicar à vida pública com a fundação de seu primeiro jornal, O Povo:
orgão dedicado a cauza popular, no ano de 1879, a partir do qual iniciou a propaganda
republicana no Paraná.3 Rocha Pombo defendia, sobretudo, a liberdade da população:
Mas nos queremos garantia plena de nossos direitos sociaes, queremos liberdade de
consciencia, liberdade de cultos, liberdade de animo, secularisaçao de cemiterios,
casamento civil, emfim libertar-nos do poder clerical, queremos tomar parte,
preponderar na governaçao do paiz, ou antes governar-nos a nos mesmos: queremos
tudo isso, e mais do que isso, mas o rei não quer... (...) O que fazer pois? O povo
soffre a oppressao, sem achar, sem poder lançar mao de remedio algum... perante o
rei nao ha vontade, nao ha poder...4
Dez anos antes da proclamação da República, assim, foi o precursor das críticas na
imprensa paranaense ao sistema político imperial e à escravidão, além da defesa de ideais
republicanos.5 Obstinado por “justiça social”, acreditava que o jornalismo seria um meio
possível para promovê-la.6
Em 1880, decidiu mudar-se para Curitiba, quando também começou a escrever
trabalhos literários. No ano seguinte, publicou o seu primeiro livro, A Honra do Barão,
impresso por ele próprio e considerado por Valfrido Piloto um “romance de francas
_______________ 3 VICTOR, Nestor. Obra crítica de Nestor Vitor. Vol. III. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura;
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969, p. 62-63.
4 POMBO, José Francisco de Rocha. O Povo: orgao dedicado a cauza popular. Morretes, p. 1. 06 jul. 1879. 5 Segundo Maria Tarcisa Silva Bega, Rocha Pombo foi, nos primeiros 20 anos de trabalhos na imprensa, “um
dos jornalistas de maior expressão, quer como fundador do primeiro jornal abolicionista em Morretes em
1879, quer pela direção de outros, ao longo da década de 1880, em Curitiba. Sua atuação foi sempre a de
produzir um jornalismo político de militância republicana e abolicionista (...)” (BEGA, Maria Tarcisa Silva.
Letras e política no Paraná: simbolistas e anticlericais na República Velha. Curitiba: Editora UFPR, 2013, p.
79).
6 VICTOR, op. cit., p. 60.
6
tendências democráticas”.7 Em seguida, publicou o romance Dadá ou a boa filha (1882) e os
ensaios A Supremacia do Ideal (1882) e A Religião do Belo (1883).
Para o seu amigo, o crítico literário Nestor Victor, naquele momento, “nenhum
paranaense subira intelectualmente tão alto perante a opinião de seu meio, nenhum fizera
carreira tão vertiginosa na imprensa e nas letras”.8
Em 1883, Rocha Pombo passou a morar em Castro, no centro do Paraná, onde se
casou com Carmelita Madureira Azambuja, filha de fazendeiros da região. No mesmo ano,
fundou na cidade o semanário Echo dos Campos, em cuja primeira edição destacou os seus
propósitos com o novo projeto:
A nossa missão é a que cabe à imprensa em todo o mundo. Espalhar ideas, luctar
pela victoria dos bons principios; defender os interesses geraes da industria, da
lavoura, do commercio; pôr-se ao lado da justiça e da liberdade; contribuir
finalmente para o progresso de todas as instituições sociaes... eis ahi: é essa a tarefa
sublimada da imprensa moderna. Não pode deixar de ser também a nossa.9
Mais tarde, retornou à Curitiba e continuou a atividade jornalística por meio da
redação da Gazeta Paranaense (1886) e do Diário Popular (1887).10
No ano de 1889, contudo, foi proclamada a República no Brasil, fato que marcou a
trajetória biográfica do paranaense. Segundo ele, os acontecimentos de 15 de novembro
“produziram surprêsa geral no país; e as primeiras impressões em tôda parte foram de susto e
incredulidade”.11 A mudança de regime político, sustentada a partir da supressão da liberdade
de imprensa,12 dava início a uma “ditadura, armada de poderes excepcionais,” que se
distanciava dos limites das leis.13
Assim, a administração da nascente República se estruturou não por meio da
legitimação popular, mas a partir da nomeação de militares aos cargos políticos de comando.
No Paraná, conforme assinalou Romário Martins, ainda no dia 15 de novembro daquele ano, a
oficialidade da Brigada de Curitiba telegrafou sua adesão ao movimento militar que irrompera
no Rio de Janeiro14 e, apenas dois dias mais tarde, foi realizada oficialmente a transformação
_______________ 7 PILOTO, op. cit., p. 15.
8 VICTOR, op. cit., p. 63. 9 POMBO, José Francisco de Rocha. Echo dos Campos. Castro, p. 1. 17 mar. 1883.
10 MURICY, José Cândido de Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 2 ed. Vol. I. Brasília:
Conselho Federal de Cultura e Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 139.
11 POMBO, José Francisco de Rocha. História do Brasil. 12 ed. São Paulo: Melhoramentos, [20--], p. 471.
12 Ibidem, p. 467.
13 Ibidem, p. 473. 14 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 429.
7
do regime nas terras paranaenses com a nomeação do Coronel Francisco José Cardoso Júnior
para o cargo de governador geral do Estado.15
Diante deste cenário de mudanças repentinas, em 1891, Rocha Pombo decidiu
escrever o romance Petrucello, publicado no ano seguinte pela Tipografia da Companhia
Impressora Paranaense.16
Ambientado nas décadas finais do século XIX, o livro relata a história de Antonio
Petrucello, um comerciante florentino que, sentindo-se desolado em sua sociedade e com
vontade de viver grandes emoções, decide subitamente abandonar a esposa, Marietta, e seu
pequeno filho, Carlo, para conhecer outros países e viajar rumo ao Oriente.
Conforme será visto, Petrucello apresenta-se como um reflexo do ambiente de
desilusão republicana em que passou a viver Rocha Pombo.
2 AS DECEPÇÕES DE ROCHA POMBO COM A MODERNIDADE
2.1 REPÚBLICA MILITAR E A POLÍTICA COMO O “GRANDE MAL DA AMÉRICA”
Quando Antonio Petrucello chegou ao Rio de Janeiro, pela primeira vez, “teve um
desanimo de morte”. Ainda sem conseguir se comunicar com as pessoas que moravam
naquelas terras estranhas, “onde lhe haviam dito que se operava um bem pronunciado
movimento de renascença litteraria e artistica”, enxergou a realidade do país logo na primeira
passagem pela rua do Ouvidor: de um lado, os poucos que possuíam dinheiro e eram
prósperos o encaravam com desdém; de outro, os vários sujeitos que se encontravam em
_______________ 15 Ibidem, p. 404.
16 Com vistas a apurar a recepção e o impacto da publicação de Petrucello perante o público, foi realizada
pesquisa nas revistas simbolistas curitibanas fundadas entre 1890 e 1910, tendo em vista que o romance foi
publicado em Curitiba no final do século XIX e Rocha Pombo é considerado, pela crítica literária da época,
como integrante da corrente simbolista, especialmente em razão de outro romance por ele publicado, em 1905,
chamado No Hospício (MURICY, 1973, vol. I, p. 139). Com base na lista de revistas simbolistas curitibanas
elaborada por Andrade Muricy (MURICY, 1973, vol. II, p. 1208-1211), foram analisadas as seguintes: Club Curytibano (1890-1896; 1903), Revista Azul (1893), O Cenaculo (1895-1897), A Penna (1897), O Sapo (1898-
1900), Jerusalem (1898-1902), Esphynge (1899-1906), Pallivm (1898; 1900), Breviario (1900), Turris
Eburnea (1900), Azul (1900), Stellario (1905-1906) e Victrix (1902-1903); as revistas O Artista (1892),
Galaxia (1897) e Acacia (1901) não foram encontradas nos acervos consultados. Como resultado, foram
constatadas uma menção à obra Petrucello na edição nº 5 de O Cenaculo, datada em agosto de 1895, ocasião
em que Silveira Netto, discorrendo sobre a trajetória biográfica de Rocha Pombo, apenas assinala a publicação
do romance (p. 124), e outra menção na edição nº 17 de O Sapo, datada em maio de 1900, em que Petrucello é
referido como uma das obras, dentre várias outras, do escritor paranaense (p. 2). Portanto, observam-se
indícios de que o romance de Rocha Pombo pode não ter causado impacto perante o público da época, visto
que, pelo recorte específico da pesquisa, não figurava nos debates literários daquele momento.
8
completa miséria, “submissos a todas as provações da dignidade e da vergonha”, entristeciam-
no.17
A aflição aumentou quando se deu conta de que as pessoas que viviam diariamente “à
espera de quem lhes trouxesse lama nas botas para ganhar o seu vintem” vinham todas, como
ele, da Itália. Encontrou portugueses, franceses, alemães e espanhóis em difíceis condições de
trabalho, mas empregados em serviço “que nunca deshonra nem avilta”. Pelo contrário,
percebeu que “só italianos lustram botas e disfarçam esmolas às portas dos hoteis...”.18
Porém, o contexto social da cidade brasileira no final do século XIX, embora
angustiante, não surpreendia o protagonista. Levando consigo anotações sobre as viagens que
fazia, ele já havia refletido sobre ideias gerais a respeito das sociedades modernas de seu
tempo, em uma obra que pretendia concluir e chamar de Problemas.
A partir dela, em um capítulo denominado Questões sociaes, escreveu por exemplo
que “muitos males julgados irremediaveis nas sociedades actuaes são oriundos das vastas e
compactas aglomerações de população”, em que toda a produção das classes trabalhadoras é
absorvida pelas classes especuladoras.19
De fato, quando o romance foi escrito no início da década de 1890, o Rio de Janeiro
enfrentava graves problemas sociais. A abolição da escravidão em 1888 havia transferido a
mão de obra escrava para o mercado de trabalho livre, o que aumentou o número de pessoas
subempregadas e desempregadas. Ao mesmo tempo, houve um aumento na imigração
estrangeira. Segundo o Anuario Estatistico do Brazil (1908-1912), em 1890, 28,7% da
população residente na cidade era nascida no exterior e cerca de 100 mil pessoas trabalhavam
em serviços mal remunerados ou não possuíam ocupação fixa.20
Nesse contexto, o governo imperial – e mais tarde o governo provisório republicano –
passou a permitir a emissão de dinheiro sem nenhum lastro pelos bancos, visto que os
cafeicultores, principalmente do estado do Rio de Janeiro, precisavam de moeda para o
pagamento dos novos salários. Contudo, em razão disso, a cidade afundou-se em uma intensa
febre especulativa. Para José Murilo de Carvalho,
_______________ 17 POMBO, José Francisco de Rocha. Petrucello. Curityba: Typ. da Companhia Impressora Paranaense, 1892,
p. 48.
18 POMBO, loc. cit.
19 Ibidem, p. 26. 20 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013, p. 16-17.
9
Os anos de 1890 e 1891 foram de loucura, segundo a expressão de um observador
estrangeiro, o qual acrescenta ter havido corretores que obtinham lucros diários de
50 a 100 contos e que uma oscilação do câmbio fazia e desfazia milionários. Por
dois anos, o novo regime pareceu uma autêntica república de banqueiros, onde a lei
era enriquecer a todo custo com dinheiro de especulação.”21
Assim, o movimento político republicano acabou se fortalecendo no Brasil, com a
proclamação da República em 1889, em face de uma sociedade extremamente desigual e
hierarquizada, em um período de intensa especulação financeira, de modo que, ao invés de
nascer dos anseios populares, a mudança de regime surgiu da agitação dos especuladores.22
Os militares, que lideraram este movimento, receberam pela primeira vez o apoio das
elites regionais, visto que os partidos conservador e liberal do Império já estavam desgastados
pelos problemas sociais e econômicos anteriores à proclamação.23 Na época, via-se a política
imperial como arcaica24 e a República surgia como um símbolo de progresso e de uma nova
sociedade, cujas bases seriam a indústria e o desenvolvimento tecnológico.25
Ocorre que este grupo de militares, liderado por Deodoro da Fonseca, não possuía uma
visão elaborada de República, de modo que o que mais os interessava era simplesmente a
posição de prestígio e poder que poderiam alcançar no comando político do país. Nesse
sentido, tinham como fim a “eliminação de um regime que, segundo eles, era dominado por
uma elite bacharelesca infensa aos interesses castrenses, desrespeitosa dos brios militares” e,
portanto, este movimento político surgia como um assunto exclusivamente militar e alheio à
população civil.26
Assim, a República no Brasil nasceu a partir da movimentação de militares
organizados em posições de hierarquia, que concebiam o poder político como uma
possibilidade de satisfação de benefícios privados, de sorte que no Rio de Janeiro, em 1889,
_______________ 21 Ibidem, p. 20.
22 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 29-30.
23 PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Paranismo: o Paraná inventado; cultura e imaginário no Paraná da I
República. 2 ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998, p. 29.
24 Conforme destaca Caio Prado Júnior, “A evolução política progressista do Império corresponde assim, no
terreno econômico, à integração sucessiva do país numa forma produtiva superior: a forma capitalista. As
instituições primitivas como a escravidão, herdadas da antiga colônia, são varridas pelas novas forças
produtivas que se vão formando e desenvolvendo no correr do século passado.” (PRADO JÚNIOR, Caio.
Evolução política do Brasil; Colônia e Império. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 99).
25 PEREIRA, op. cit., p. 25-26. 26 CARVALHO, 2009, p. 38-39.
10
uma “simples passeata militar”,27 que foi como a população compreendeu este ato político já
que estava dele excluída, foi capaz de desestruturar o Império.
A partir disso, instaurado o novo regime, em meio à crise social e econômica da
cidade, os militares, insertos em uma lógica autoritária, passaram a reprimir camadas da
população consideradas rebeldes ou que de algum modo prejudicavam os interesses da
República; vale dizer: “julgaram-se donos e salvadores da República, com o direito de intervir
assim que lhes parecesse conveniente”28.
Desse modo, por exemplo, foram empreendidas perseguições contra os capoeiras e os
bicheiros, a população negra e pobre foi cada vez mais marginalizada e até o mais famoso
cortiço da região, a Cabeça de Porco, foi completamente destruído em 1892 pelo prefeito
florianista Barata Ribeiro.29
Rocha Pombo havia percebido o autoritarismo da nascente República militar30 e, por
meio da literatura, parece ter denunciado este cenário. Em Petrucello, o protagonista, depois
de refletir sobre alguns aspectos da sociedade moderna, a partir de um capítulo chamado
Escravidão militar, defendeu a “necessidade da abolição da guerra e das instituições
militares” já que o exército seria “hoje uma força desperdiçada, um fardo inutil com que
luctam os povos – e isto quando não é ainda o espantalho da liberdade e da paz”.31
Em outra passagem do romance, quando Antonio Petrucello é forçado a fugir do Chile
em razão de uma revolução que irrompeu no país e deu origem a uma violenta ditadura, sendo
obrigado a “escapar a Balmaceda, a ganhar terra argentina pelas Cordilheiras, em viagem
_______________ 27 PRADO JÚNIOR, op. cit., p. 102.
28 CARVALHO, 2013, p. 22.
29 Ibidem, p. 30-31.
30 A título exemplificativo, já em 1888, o paranaense dava indícios de sua postura antimilitarista, posicionando-
se contrário ao exército, em um episódio específico relacionado a certo comandante da brigada local. É o que
se deduz das críticas que recebeu na edição nº 201 do jornal Gazeta Paranaense, de 12 de setembro de 1888, em que foi publicado que “pela segunda vez o ‘mal das vinhas’, o Sr. Rocha Pombo intromette-se na
administração militar d’esta província (...) Poder haver mais pretensão, maior atrevimento, mais falta de
educação na linguagem e tão pouco critério no exercício da tão difficil profissão de jornalista? (...) Rocha
Pombo um eira sem beira, um quase analfabeto que quer dizer uma coisa e diz outra, um pescador de águas
turvas arvorado em jornalista e é por esse imbecil, desacatado e injuriado sem o menor fundamento,
levianamente em um pasquim (...) É um parasita da imprensa, um illustre desconhecido...” (CORRÊA, Amélia
Siegel. Imprensa e política no Paraná: Prosopografia dos redatores e pensamento republicano no final do
século XIX. 2006. Dissertação (Mestrado) - Curso de Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006, p. 81).
31 POMBO, op. cit., p. 26.
11
penosissima e cheia de perigos”, encontrou no Rio de Janeiro, em novembro de 1889, uma
“sociedade em barafunda”.32
Assim, o escritor parecia sentir-se descrente em relação à forma como o grupo militar
implantou o regime republicano no país, visto que apresentou o Exército como uma
instituição desnecessária, que por seu autoritarismo e violência manteve a sociedade
fluminense em decadência. Nesse contexto, diante da completa mudança operada na cidade,
“Petrucello ia cumprindo o seu triste e improbo fadario de meditações”.33
Além disso, pode-se notar no romance a imagem intransigente que os militares
transmitiam à população. Assim que o protagonista retornou à cidade, em meio à alteração do
regime, encontrou seus antigos conhecidos com uma postura diferente: postos em cargos
superiores e cheios de orgulho, não mais o cumprimentavam e tampouco o conheciam, afinal
Petrucello não pertencia ao restrito grupo dos novos membros do governo. Nesse sentido, é
marcante a sua visão a respeito do general Camarão:
Muitos dos antigos conhecidos, collegas de imprensa, filantes de almoços no
Londres... nem mais se dignavam de sauda-lo, elevados á novas posições. Um major
Camarão... sempre tão amigo de todos os rapazes da imprensa, homem de sangue na
guelra e de estomago e toutiço para todas as pandegas... antigamente amigo intimo e
admirador enthusiasta do digno compatriota do Dante, como lhe haviam ensinado a
dizer... esse major era agora o bravo general Camarão e passava junto de Petrucello
muito empertigado, impante de orgulho, e carregando os sobr’olhos como quem diz
– Tudo isto sou eu...34
Surpreendido por este contexto, a Petrucello restava apenas estudá-lo e dele obter
ensinamentos, visto que se deparava com uma “sociedade nova, onde as tradicções nada teem
erigido de firme”.35
Nessa época de intensas mudanças e agitações, os militares, além de exercerem uma
política essencialmente autoritária, também procuraram fortalecer os vínculos com as
oligarquias dos estados para que o federalismo36 da nascente República não levasse à
desintegração da nova nação que se pretendia construir. Dessa forma, abriu-se espaço para a
_______________ 32 Ibidem, p. 80-81.
33 POMBO, loc. cit.
34 POMBO, loc. cit.
35 POMBO, loc. cit.
36 Inspirada na Constituição estadunidense, a Constituição brasileira de 1891 consagrou o federalismo e a
República liberal, “tendo como chave a autonomia dos Estados sob os moldes que desejavam paulistas e
mineiros e contrário ao ultrafederalismo defendido pelos positivistas gaúchos.” (PEREIRA, op. cit., p. 41).
12
construção de regionalismos, a partir dos quais as elites exerciam seu domínio local e, ao
mesmo tempo, tinham participação no poder nacional.37
Contudo, os chefes políticos dos estados acabavam por manipular, com frequência, os
resultados das eleições, sendo eleitos os candidatos que eram favorecidos por seu prestígio.38
Assim, sem ter de prestar contas a um eleitorado autêntico, a política tornou-se espaço “para
os arranjos particularistas, para as barganhas pessoais, para o tribofe, para a corrupção”, ou
seja, os militares procuravam limitar a participação democrática da população sob o signo da
ordem social, com violência e autoridade, mas desse modo levaram à própria política a
concentração de poder e a desordem.39
Mesmo com a abolição da escravidão, a sociedade brasileira permanecia marcada por
desigualdades profundas. A ideologia liberal, vencedora no processo de transição do Império
para a República, trouxe a legitimação necessária para se estabelecer um regime que
consagrasse a pobreza e a miséria da população com o fundamento de “sanção da lei do mais
forte”.40
Diante deste panorama, Rocha Pombo mostrou-se desencantado com a política
republicana. Valfrido Piloto, discorrendo sobre a crônica Para a História, escrita por aquele
no início da década de 1890 e à época ainda inédita aos olhos do público, revelou a sua
posição a respeito deste regime:
Nos registos daquele observador atilado, vamos encontrar estas revelações: ‘Para
quantos não são republicanos só para as posições e os proveitos pessoais, a República, que nascera errada, mais errada ficou ainda com as consequências do
golpe de Estado que deu em terra com o marechal Deodoro. E portanto, esses
esperavam que a revolução viesse corrigir os erros e as iniquidades que tanto
comprometiam as instituições, e alienavam daquela política inteiramente divorciada
do ideal democrático, da lei e da justiça, as simpatias populares.41
Da mesma forma, a frustração política do escritor é perceptível em Petrucello. Quando
o protagonista desembarca no Rio de Janeiro e se depara com a realidade da cidade, onde
grande parte da população sofria abatida os males do novo regime, observa que “cada vez é
_______________ 37 PEREIRA, op. cit., p. 52-53.
38 CARDIM, Elmano. Rocha Pombo, o Escritor e o Historiador. Rio de Janeiro: Gráfica Editôra Jornal do
Comércio S. A., 1958, p. 53-54.
39 CARVALHO, 2013, p. 37-38. 40 CARVALHO, 2009, p. 25.
41 PILOTO, Vafrido. Rocha Pombo, testemunha ocular da História. In: Profanações. Curitiba: Gráfica Condor,
1947, p. 144.
13
mais difficil encontrar uma forma de governo que se coadune com os interesses e com a
extraordinaria vitalidade dos povos”.42
Nesse sentido, se por um lado a República parece se vincular à falta de vitalidade da
população, que não tem condições de exercer suas próprias aptidões, por outro lado tem como
fim legitimar um clima geral de competitividade entre as pessoas, a partir do qual a luta por
riqueza e prestígio se torna a mais importante regra social.
Com essas palavras, Petrucello reflete indignado:
E’ um absurdo suppôr que a facilidade com que nas republicas os homens de todas
as classes podem exercer a sua ambição constitua uma prova da excellencia das
instituições republicanas. E’ mau um governo ou uma forma de governo que affasta
das applicações uteis e fecundas as melhores aptidões. Hoje, em todo o mundo, e
especialmente nas republicas agitadas da America Latina, a politica é um vicio peior
do que outros muitos vicios que se combate… O melhor governo seria aquelle que
conseguisse neutralisar mais a ambição dos homens...43
Rocha Pombo, assim, ressalta o efeito prejudicial da transição do regime político, que
influenciou o imaginário social a partir do estímulo à aferição de lucros em detrimento dos
interesses coletivos.
É o que se nota também no enredo do romance, quando o italiano, depois de uma
viagem por outros países, mais tarde retorna ao Rio de Janeiro e constata que na cidade “as
cousas não estavam boas, pois o novo regimen politico (de cuja installação, em novembro de
89, Petrucello tivera noticia no Chile) deslocára uns e fizera emergir outros homens,
accendendo ambições e luctas e anarchisando tudo”.44
Na sequência, relata-se que ele alugou um quarto de hotel na Tijuca e, de forma
reclusa, por mais de cinco meses, trabalhou na conclusão de sua obra America, a partir da qual
pretendia registrar todas as impressões que teve sobre os povos e os lugares que visitou
durante uma viagem “pelas terras do Novo-Mundo”, ocasião em que conheceu os Estados
Unidos, o México, o Equador, o Peru, o Chile e a Argentina.45
Nesta obra, registrou que enquanto em alguns países ainda se discutia a forma de
governo, em outros o regime republicano instituído era “deturpado pelos máus costumes
_______________ 42 POMBO, op. cit., p. 26.
43 Ibidem, p. 27.
44 Ibidem, p. 80.
45 Vale ressaltar que, mais tarde, em 1900, Rocha Pombo publicaria o livro intitulado História da América, em
que se propôs a examinar as relações entre a Europa e a América no início da colonização, com vistas a “fazer
despertar no coração e na inteligência da juventude a admiração e o amor pelo continente para o
fortalecimento de um espírito americano” (CARDIM, op. cit., p. 29-30).
14
publicos e pelos desregramentos dos partidos politicos”. Assim, após anos de viagens e
anotações de suas reflexões, Petrucello enfim conclui que “a politica especialmente é o grande
mal da America” e que somente no século futuro as nações deste continente poderiam
condensar “todas as vitalidades da civilisação occidental”.46
O escritor paranaense, portanto, em meio à crise econômica e social que enfrentava o
país, desiludido com o autoritarismo dos militares e a política republicana, no final do século
XIX, passa a imaginar-se nas ideias e olhares de Antonio Petrucello.
2.2 VALORES BURGUESES E O SENTIMENTO DE EXÍLIO
Com o início da República, novos valores surgiram no seio da sociedade brasileira. A
abolição da escravidão, os altos índices de desemprego, as disputas políticas das oligarquias e
a grave febre especulativa que atingiu o país, especialmente no Rio de Janeiro, agitaram a
população de tal modo a se criar uma busca geral por enriquecimento:
O espírito de especulação, de enriquecimento pessoal a todo custo, denunciado
amplamente na imprensa, na tribuna, nos romances, dava ao novo regime uma
marca incompatível com a virtude republicana. Em tais circunstâncias, não se podia
nem mesmo falar na definição utilitarista do interesse público como a soma dos
interesses individuais. Simplesmente não havia preocupação com o público.
Predominava a mentalidade predatória, o espírito do capitalismo sem a ética
protestante.47
Em razão da instabilidade da moeda e do novo regime político que tentava se
consolidar, procurava-se constantemente oportunidades de auferir renda, tanto as camadas
populares que não encontravam serviços bem remunerados quanto parte das elites que se
concentravam em atividades de especulação da moeda. Desse modo, gradativamente, surge no
país um “espírito aquisitivo solto de qualquer peia de valores éticos, ou menos de cálculo
racional que garantisse a sustentação do lucro a médio prazo”, sendo considerados na época
os “heróis do dia” grandes especuladores da bolsa.48
Este espírito, assim, acaba por refletir o imaginário do período na medida em que se
passa a confiar mais na sorte e no enriquecimento sem esforço do que na obtenção de renda
por meio do trabalho honesto.49 Segundo Nestor Victor, tratava-se de um momento “agudo de
_______________ 46 Ibidem, p. 81-82.
47 CARVALHO, 2009, p. 30.
48 CARVALHO, 2013, p. 27. 49 Ibidem, p. 28.
15
obnubilação moral”, em que “tudo eram empreendimentos e negócios, empreendimentos para
os mais ou menos ingênuos, os mais ou menos puros, negócios para os mais ou menos argutos
e rapaces”.50
Nesse sentido, a ideologia liberal51 dos republicanos que estavam no poder, cuja
influência vinha do modelo político estadunidense, fazia-se sentir no Brasil: o pacto social se
efetivaria sob uma perspectiva individualista, a partir da qual o Estado existe para a defesa de
interesses particulares.52
A população urbana, então, é neutralizada pelas condutas autoritárias dos militares
com vistas a evitar mobilizações políticas, ao mesmo tempo em que a República tenta “fazer
da cidade-capital o exemplo de seu poder e de sua pompa, o símbolo, perante a Europa, de
seus foros de civilização e progresso”.53 O novo regime, assim, procurou construir um ideal
de nação que consagrasse a propriedade privada sob os signos da modernidade54, isto é, pela
construção de uma sociedade cosmopolita em que os avanços tecnológicos e a paisagem
urbana seriam reflexos de um novo modo de vida: o capitalista.
No terreno cultural, aliás, o país encheu-se do “espírito francês da belle époque”, visto
que recebia continuadamente influências dos costumes, da arquitetura, da pintura e da música
que advinham da França,55 de sorte que, mais do que nunca, “o mundo literário voltou-se para
Paris, os poetas sonhavam viver em Paris e, sobretudo, morrer em Paris”.56
Porém, a sociedade brasileira, ainda que cultivasse os mais diversos símbolos
europeus, encontrava-se repleta de miséria e desigualdade; o regime republicano, portanto, à
luz de tais contradições, procurava construir uma realidade fictícia em que a imagem do real
pudesse se tornar mais forte do que o próprio real.57 Nas palavras de Nestor Victor:
Foi depois, na República, com a infecção yankee e germânica, a do mundo industrial
e capitalista, enfim, que a megalomania e com ela a corrupção, o rebaixamento do nosso nível moral, acabaram por se pronunciar claramente. Entramos na
_______________ 50 VICTOR, op. cit., p. 69. 51 Há vasto debate sobre a recepção das ideias liberais no Brasil, desde aqueles que acreditam que elas não
possuíam um terreno e um lugar no Brasil, conforme sustenta Roberto Schwarz, até os que defendem a
importação destas ideias de forma transplantada e automática para o país. A respeito deste debate, ver:
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 47-64.
52 CARVALHO, 2009, p. 24.
53 CARVALHO, 2013, p. 162. 54 PEREIRA, op. cit., p. 53.
55 BEGA, op. cit., p. 93.
56 CARVALHO, 2013, p. 39. 57 PEREIRA, op. cit., p. 62.
16
adolescência sob um signo maldito, numa hora em que o mundo inteiro só nos
proporciona sugestões maléficas e na idade em que estas são as mais sedutoras.58
A partir desta perspectiva, Rocha Pombo também preocupava-se com a transformação
dos valores da sociedade brasileira, no final do século XIX, por conta da rápida propagação
dos ideais capitalistas. Em Petrucello, na medida em que o escritor estabelece os traços da
personalidade do protagonista, que se sentia deslocado e em crise de identidade na sociedade
florentina, acaba refletindo sobre tais questões.
Durante a narrativa, para justificar a sua viagem de duração indeterminada por
diferentes países, o italiano explica a sua esposa, Marietta, que precisava fazer fortuna em
outro lugar, porque “hoje, era necessario encarar tudo por outro prisma... Já tinham o seu
filho; já lhes pesava a responsabilidade de uma familia, o grande dever de pais...”. Assim,
para empreender a viagem, encontra razão nos próprios valores aceitos na época, isto é, a
garantia de que ganharia muito dinheiro para cumprir todos os deveres que lhe foram
impostos pela sociedade, em decorrência da formação de uma família. Nesse sentido, ele
explica:
A vida, filha – disse ainda Petrucello – é cousa grave e solemne demais... O homem
precisa de mover-se no mundo... aproveitar seus dias até o fim... O socego,
emquanto sente-se em torno a vertigem – seria uma culpa enorme... E’ preciso que
os nossos deveres sejam cumpridos... os deveres que Deus nos impoz concedendo-
nos a vida... E demais: vê como entre os homens, uns vivem na abastança,
prosperam, illustram-se; ao passo que outros tantos ficam eternamente na penuria...
sem bem estar, sem honra para si nem para os seus...59
Contudo, Marietta não parece ajustada a estes valores. Acima da riqueza, ela desejava
que seu marido nunca se separasse dela, “dizia-lhe sempre que tinha nascido pobre e que de
bom grado morreria pobre...”.60 Ainda assim, sem outros argumentos, não pôde evitar a
separação, momento em que para ela começariam longos anos de tristeza e solidão no interior
de sua própria sociedade.61
_______________ 58 VICTOR, op. cit., p. 62.
59 POMBO, op. cit., p. 4. 60 Ibidem, p. 3. 61 A escolha do nome Marietta para esta personagem demonstra uma possível conexão entre o romance e a vida
pessoal do autor, visto que uma de suas filhas se chamava Marieta (BEGA, op. cit., p. 81). Conforme os relatos
de Nestor Victor, esta filha teria falecido quando ainda era criança, o que causou uma imensa tristeza no
escritor. Segundo Victor, na década de 1890, “Rocha deu-me a ler umas novas páginas, que imprimira sob o
título Marieta, e que contavam a história de mais um golpe por ele sofrido com a morte de outra filhinha ao
findar essa convulsão geral que ele testemunhara. Eram um tal grito de dor essas laudas, que só se podiam bem
explicar como reflexo inconsciente de todos os sofrimentos próprios e circunstantes, para os quais a última
adversidade sua fazia-lhe achar ocasionalmente expressão.” (VICTOR, op. cit., 71). Aliás, importa notar que
no romance em análise uma filha muito nova de Petrucello também havia falecido, o que o deixou “com o
coração contrangido horrivelmente” (POMBO, op. cit., p. 47).
17
Na sequência do enredo, porém, o autor revela que Petrucello, na verdade, não tinha
como ambição ganhar dinheiro, mas desejava viajar para escapar ao tédio que sentia em sua
cidade, para vivenciar grandes emoções e, dessa forma, edificar a sua alma com diferentes
experiências.62 Porém, para que isto fosse possível, utilizou-se do discurso materialista
dominante na sociedade para não causar estranheza em seus familiares e conhecidos.
Ocorre que a repercussão de sua viagem foi extremamente negativa. A notícia
percorreu o bairro em que morava e todos comentavam a sua decisão. Uma tia de Marietta,
por exemplo, chegou a exclamar que se tratava de um escândalo, pois somente um
“desnaturado” abandonaria a esposa e o filho pequeno, Carlo; ela se espanta: “aquelle homem
não é certo... Aquillo não é gente...”.63
Os seus próprios parentes, desde o início, também o consideravam um “typo todo
exquisito, mettido nos seus mysterios, incomprehensivel” e que, com esta decisão, mostrava-
se o que sempre foi: um “doido”, um “refinadissimo vagabundo que sabia illudir”.64
Da mesma forma, D. Catharina, mãe de Marietta, em face de todo o tumulto causado
pelo genro, “tinha uns ares de quem rumina vinganças...”. Já convencida de que a viagem
seria definitiva, encarando-o “com uns olhos de hyenna”, pensava: “pai miseravel...
hypocrita... esposo sem alma... homem ruim... sem Deus, sem nada...”. Porém, assim que
lembrava dos 30.000 francos que Petrucello deixaria à esposa para sua sobrevivência,
“durante algum tempo abstrahia-se em calculos consoladores...”.65
O protagonista, assim, destituído até mesmo de humanidade por seus conterrâneos,
tinha como sonho viajar ao Oriente, visto como um lugar místico e totalmente diferente dos
padrões ocidentais; ele, durante toda a narrativa, experimentava um “phenomeno extranho: a
sensação de quem já está deslocado d’aqui...”. E dessa forma não se importava com o
acúmulo de capitais ou bens materiais: se ganhasse dinheiro em sua viagem pela América iria
ao Oriente, mas se não ganhasse “ficaria satisfeito levando uma boa carga de elementos para a
composição de algumas obras planeadas”, afinal “só a viagem... a separação... a despedida...
lhe fariam um bem immenso”.66
_______________ 62 POMBO, op. cit., p. 6. 63 Ibidem, p. 12. 64 Ibidem, p. 14. 65 Ibidem, p. 12-13. 66 Ibidem, p. 9-10.
18
Petrucello, sentindo-se desolado porque não encontrava ninguém que pensasse como
ele, havia sacrificado o convívio com Marietta e Carlo a fim de sentir novas emoções em
lugares diferentes que pudessem o acolher. A sociedade ocidental e capitalista já não servia
mais para seus sonhos, pois sentia enorme frustração em uma vida resumida a construir
vínculos de prestígio e ao enriquecimento a qualquer custo.
Ele procurava expandir os horizontes de sua mente, queria conhecer todos os mistérios
do universo, as suas leis e o funcionamento da natureza. Não desejava passar pela vida sem
construir algo edificante e que melhorasse a vida das pessoas. Mas, diante deste cenário
individualista, em que as pessoas se preocupavam com o luxo e as riquezas, o italiano se via
em completo abandono, de modo que “o seu espirito, a principio, adquiriu uma tal aversão ao
mundo, uma tão fina e insaciavel melancolia e uma excentricidade tal, que elle proprio se
incommodava de não comprehender-se a si mesmo...”.67
Dessa forma, percebia entre os modernos um “estado de completa desorientação”, em
que vigoravam a “depravação na ordem moral” e, ao mesmo, o “deslumbramento produzido
pelos progressos da sciencia e da industria”. Não pretendia, por isso, ceder a este meio
“impregnado de ouro, de amores, de aventuras mundanas, de ambições torpes, de perfidias e
tartufarias...”, afinal seu sonho era, por meio de suas obras, edificar as almas.68
O desencanto sentido por Petrucello parece se assimilar às frustrações que Rocha
Pombo sentiu durante a sua vida. Segundo Elmano Cardim, o paranaense marcou-se pela
“gravidade do seu caráter e o seu amor ao sonho, pelo estoicismo da sua vida e pela abstração
do seu idealismo”.69 Desiludido, portanto, com o modo pelo qual a República foi proclamada
e com a atuação autoritária dos militares, Rocha Pombo, por meio do romance, criticou os
valores capitalistas em voga naquela época.
Quando ilustra personagens que buscam a riqueza em detrimento de aspectos morais,
por exemplo a partir da figura de Mr. Tissot,70 denuncia os traços que o novo regime, liberal e
_______________ 67 Ibidem, p. 20. 68 Ibidem, p. 44. 69 CARDIM, op. cit., p. 7. 70 Petrucello encontra Mr. Tissot em sua passagem pelo Rio de Janeiro, momento em que os dois decidem
montar um escritório de agências. O empreendimento, em razão dos bons vínculos que Mr. Tissot possuía com
a elite brasileira, apresenta resultados muito positivos, o que permite que este esbanja toda a sua riqueza em
sociedade: “A’ tarde jantaram juntos no Londres, e Mr. Tissot ostentou toda a sua habilidade em pedir iguarias
boas e vinhos finos. Para impressionar o amigo, o jornalista cumprimentava, o mais familiarmente que lhe éra
permitido, a todas as pessoas que entravam ou sahiam, dando indicações pomposas: ...este é o senador
Fulano... este é o ministro da França... aquelle é o visconde tal... Petrucello estava quasi assombrado.”
19
oligárquico, passava a impor na sociedade brasileira. Estranho em sua própria sociedade,
Petrucello reflete um cenário degradante em que as elites, influenciadas pelo luxuoso modo de
vida capitalista e europeu, controlavam a política e, com isso, manipulavam o imaginário
social: embora poucos efetivamente alcançassem a riqueza, todos tinham-na como o primeiro
e maior objetivo de vida.
Era também este o contexto em que vivia Rocha Pombo. Isolado das elites locais e
decepcionado com os valores que existiam na sociedade, acabou por adotar uma postura
reclusa em sua produção literária. Para Nestor Victor, “Petrucello representava uma criação
em que transparece flagrantemente a individualidade do romancista”.71
Vale lembrar que o escritor havia sido eleito pelo Partido Conservador em 1886 como
deputado provincial de Castro para o período de 1886 a 1887. Contudo, as suas propostas
foram vistas como idealistas e incompatíveis com os interesses das elites regionais, por isso as
mudanças que imaginava para a região não puderam se concretizar.
Nestor Victor relata, por exemplo, que em uma sessão da Assembleia Provincial
Rocha Pombo apresentou-se “cheio de projetos” sobre “questões que ele tinha como ‘vitais’
para o nosso progresso”, que foram considerados, porém, “simples ‘ideologias’ aos olhos do
Presidente da Província e dos diretores da política regional”.72 Romário Martins, historiador
paranaense, também assinalou que sua posição idealista e abolicionista “desagradou o
conservantismo e irritou o carrantismo da época”.73
Portanto, com uma postura independente dos interesses das elites locais, sem sujeitar-
se à disciplina partidária, Rocha Pombo passou brevemente pelo mundo da política, trazendo
dela um desencanto marcante.74 Nesse sentido, considerado “criatura sui generis”, o
paranaense parecia sentir-se deslocado na nova sociedade em formação e, tal como Petrucello,
pretendia conhecer lugares em que a lógica materialista e oligárquica não prevalecesse:
(...) sonhava ardentemente com uma viagem em que, chegando ao Egito, fosse à
velha Mênfis, passasse para a Palestina, visitasse a Mesopotâmia, conhecesse com
seus olhos onde fora Persépolis, seguisse até a Bactriana de outrora e se entranhasse
por fim na Índia.75
(POMBO, op. cit., p. 52). Porém, mais tarde, o protagonista descobre que Mr. Tissot decide abandonar a sua
família e viajar para a Europa com uma atriz: uma verdadeira “conducta deshumana” (Ibidem, p. 84). 71 VICTOR, op. cit., p. 70. 72 Ibidem, p. 66.
73 PILOTO, 1953, p. 15-16.
74 CARDIM, op. cit., p. 53-54.
75 VICTOR, op. cit., p. 67.
20
No romance, da mesma forma, o protagonista destaca as paragens celebradas de
Jerusalém, o grande e sonhador povo palestino, as maravilhas imóveis do mundo egípcio,
tudo o que conheceria na Pérsia e na China, as solidões misteriosas da África e, por fim, “na
sua eterna somnolencia de pachiderme pesado e lento” a insondável Ásia.76 Petrucello nada
mais desejava do que escapar ao mundo moderno.
A decepção de Rocha Pombo reflete-se também no final trágico da obra. Quando o
protagonista retorna à Florença, após nove anos de viagens, encontra um cenário
surpreendente: D. Catharina era a rica proprietária de um famosa loja de modas, chamada
Toilette à la parisienne, enquanto Marietta estava casada com Benedetto Ferrucci,
personagem descrito como um “boi” bruto que “fôra feito para ruminar os seus calculos”, em
razão de sua habilidade extraordinária para as atividades comerciais.77
Completamente desolado, Petrucello descobre que D. Catharina havia falsificado um
atestado de óbito e, com isso, acabou iludindo e convencendo Marietta a se casar com
Benedetto, já que seu antigo marido estaria morto. Da mesma forma, vendo que seu pequeno
filho, Carlo, estava grande e não reconhecia mais o pai, decide, muito angustiado, seguir a sua
viagem para o Oriente, primeiro chegando à Grécia. Simultaneamente, Marietta, descobrindo
que Petrucello ainda estava vivo, reacende tanto o amor que sempre sentiu por ele quanto o
sentimento de desilusão diante de sua família e daquela sociedade.78
Porém, em um ataque de fúria e ciúmes, Benedetto assassina Marietta. Petrucello,
quando soube da notícia, caído em um abatimento mortal, acaba falecendo em Atenas, logo
após dizer as suas últimas palavras: “Mas o Oriente... está tão longe...”.79
Rocha Pombo percebeu, então, o resultado do embate entre os valores burgueses,
representados em D. Catharina e Benedetto, e o sentimento profundo de exílio, visto em
Petrucello e Marietta. A modernidade não deixava espaços para quem se sentisse deslocado.
3. MOVIMENTO ANARQUISTA E A CIDADE DOS HOMENS
Depois de publicado Petrucello em 1892, Rocha Pombo, desiludido com os militares,
a República e os valores burgueses, decide mudar-se para o Rio de Janeiro no ano de 1897. A
_______________ 76 POMBO, op. cit., p. 92.
77 Ibidem, p. 56-57. 78 Ibidem, p. 100. 79 Ibidem, p. 104-105.
21
partir deste momento retoma a carreira profissional com o jornalismo e o magistério,80 ao
mesmo tempo em que passa a se dedicar à produção de manuais sobre a história do Brasil.81
Em razão da rede de amizades que possuía com os escritores paranaenses e do
reencontro com Nestor Victor, seu antigo amigo, insere-se no movimento literário do Rio de
Janeiro82 e, a partir de então, começa a entrar em contato com as ideias anarquistas, por
exemplo, por meio de um grupo de literatos composto, dentre outros, por Elísio de Carvalho,
Gustavo Santiago, Maximino Maciel e Hemetério dos Santos.83
Porém, o movimento anarquista no Brasil, com o início da República, sofria graves
repressões. José Murilo de Carvalho assinala que, durante o governo de Floriano Peixoto,
foram expulsos 76 estrangeiros que chegaram no país, dentre os quais, 36 por crimes políticos
e 19 sob acusação expressa de anarquismo. No período, para que as deportações se
concretizassem, bastavam a solicitação do chefe de polícia e um simples decreto
presidencial.84
Por conseguinte, o regime republicano excluía sistematicamente a participação
popular, sendo que o Rio de Janeiro, por exemplo, marcava-se pelo aumento da segmentação
social, o que era perceptível pela próprio distanciamento espacial entre os setores da
população na cidade.85
Nesse contexto, o movimento anarquista, composto por intelectuais de classe média e
líderes operários,86 ganhava forças na medida em que repudiava qualquer tipo de autoridade e
defendia um conceito amplo de cidadania.87 Assim, ainda que os militares agissem de modo
autoritário no país, havia espaços de resistência.
_______________ 80 BEGA, op. cit., p. 93. 81 A título exemplificativo, entre os anos de 1905 e 1917, Rocha Pombo publicou a obra História do Brasil em
dez volumes, sendo que esta alcançou grande circulação no período, com diversas reedições até o início da
década de 1970 (OLIVEIRA, R. E. O Brasil imaginado em José Francisco da Rocha Pombo. Goiânia, 2015.
Dissertação (Mestrado) – Curso de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015, p. 39). 82 Ibidem, p. 92. 83 Nestor Victor constata a pluralidade de ideias deste grupo a partir da descrição de seus principais integrantes:
“(...) um nitzscheniano e, não obstante, ao mesmo tempo, socialista, que é Elísio de Carvalho; (...) um
simbolista nefelibata de há pouco tempo, que é Gustavo Santiago (ora um tanto propenso a estudos
geográficos e históricos, desde que entrou para a Sociedade de Geografia); um filólogo e gramático liberal, que
é Maximino Maciel; outro também gramático, pedagogista e polemista, que é Hemérito dos Santos (...).”
(VICTOR, Nestor. Obra crítica de Nestor Vitor. Vol. I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura;
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969, p. 401).
84 CARVALHO, 2013, p. 23-24. 85 Ibidem, p. 41. 86 Ibidem, p. 25. 87 Ibidem, p. 58.
22
Por exemplo, no interior do Paraná, na cidade de Palmeira, em abril de 1890 criou-se a
Colônia Cecília, experiência anarquista liderada por Giovanni Rossi – militante italiano – que,
já no ano seguinte, possuía uma população de aproximadamente 250 pessoas.88 Nela,
implantou-se a propriedade comum da produção, em que tudo era repartido de acordo com as
necessidades de cada um, sem que fosse necessária a criação de regras.89
Entretanto, devido à perseguição política e ao preconceito que sofriam os moradores,
assim como em razão dos efeitos negativos da Revolução Federalista (1893-1895), a Colônia
Cecília, em 1894, teve seu fim.90
Rocha Pombo, no ano de publicação de Petrucello, em 1892, defendeu no jornal
Diário do Commercio, na edição de 22 de dezembro, o líder desta experiência quando
afirmou que “acha-se à frente de seus confrades o digno Dr. Giovani Rossi, home ilustrado,
prudente e incapaz de concitar os colonos a qualquer distúrbio”.91 Assim, trata-se de indício
que demonstra que, já no início da década de 1890, enquanto ainda morava em Curitiba, o
escritor se aproximava dos militantes anarquistas.
Também preocupado com a instrução da população, este movimento político
procurava construir espaços de saber onde as classes trabalhadoras pudessem adquirir
conhecimento para conquistar a liberdade e empreender uma verdadeira revolução social.92
Nesse sentido, envolvido com o magistério e após bacharelar-se em 1912, Rocha
Pombo passou a lecionar História Geral na Universidade Popular do Ensino Livre, projeto de
cunho socialista idealizado por Elísio de Carvalho, no Rio de Janeiro, em 1904, que contava
com outros participantes, como Curvelo de Mendonça, Felisbello Freire, Fábio Luz e Pedro
do Coutto, que, por sua vez, também frequentavam os grupos literários da cidade com os
quais o paranaense entrou em contato assim que nela passou a morar.93
_______________ 88 VALENTE, Silza Maria Pazello. A presença rebelde na cidade sorriso: contribuição ao estudo do
Anarquismo em Curitiba, 1890-1920. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992, p. 84.
89 Ibidem, p. 85. 90 Ibidem, p. 86-87. 91 AMÉLIA, op. cit., p. 204. 92 VALENTE, op. cit., p. 21. 93 Francisco Hardman assinala que este grupo representava a união de intelectuais “dissidentes no interior da
pequena burguesia do Rio de Janeiro”, que se caracterizavam por uma formação eclética, já que liam “Comte,
Spencer, Darwin, Zola, Carlyle, Ruskin, Gorki, Kropotkin, Tolstói, Proudhon, Stirner, Nietzsche, Mirbeau,
Bakunin, Reclus etc.”; posicionavam-se, assim, à favor de “um individualismo que se desdobrava desde uma
visão materialista até um certo espiritualismo místico”. (HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem
Patrão! (vida operária e cultura anarquista no Brasil). 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 123-124).
Nesse sentido, estes intelectuais são considerados como “anarquizantes”, visto que, “se por um lado, não estão
23
Contudo, o movimento enfrentava a repressão republicana que acabava por silenciá-lo
diante de grande parcela da população. O discurso oficial do Estado, dominado pelas elites,
não abria espaços às perspectivas de contestação, consideradas frequentemente rebeldes e
perigosas. A título exemplificativo, segundo a pesquisa realizada por Silza Valente nos Anais
da Câmara de Curitiba e da Assembleia Estadual, no período compreendido entre 1890 e
1920, não houve qualquer debate a respeito da atuação do movimento anarquista no Paraná,
inclusive em relação à expressiva experiência da Colônia Cecília.94
Diante deste contexto excludente, Rocha Pombo se aproximava aos poucos dos
anarquistas, seja em Curitiba pelo contato com os ocupantes da Colônia Cecília, seja mais
tarde no Rio de Janeiro em suas aulas na Universidade Popular.95 Maria Tarcisa Silva Bega,
nesse sentido, relata que Nestor Victor reconhecia no paranaense um “ficcionista de tons
anarquistas, resultado da imbricação de suas convicções político-filosóficas primeiro com as
lideranças anarquistas da extinta Colônia Cecília e mais tarde no convívio com os socialistas
do Rio”.96
Dessa forma, em 1891, enquanto escrevia Petrucello, o autor já demonstrava indícios
de suas perspectivas políticas que, no futuro, iriam se vincular mais diretamente às
concepções anarquistas.
No romance, enquanto morava no Rio de Janeiro, o protagonista decide criar mais
uma obra, denominada Cidade dos Homens. A partir dela, imaginou uma nação moderna
dirigida por homens sábios que, tomados pelo “espirito do seculo”, haviam abolido a figura de
Deus por se tratar de um “absurdo affrontoso á dignidade humana e inutil aos interesses
sociaes”. Assim, confiantes de que a sociedade estaria bem organizada apenas com a
confecção de leis sábias e baseadas nos princípios científicos, desejavam que todas as relações
humanas se baseassem na ordem e no progresso.97
enraizados de forma plena no movimento operário e nas lideranças ali produzidas, constituem, entretanto,
porta-vozes mediatos dos ideais anarquistas e elementos dissidentes e radicais na sua recusa dos discursos dominantes” (Ibidem, p. 116).
94 VALENTE, op. cit., p. 7. 95 Para Francisco Hardman, a ligação de Rocha Pombo com o grupo de intelectuais anarquistas do Rio de
Janeiro se confirma também, por exemplo, pela identificação de “simpatias difusas pelos libertários nas suas
crônicas jornalísticas reunidas em Contos e Pontos (1911): ali, misturam-se artigos contra a ‘tirania russa’
(czarismo) e favoráveis ao ‘povo russo’, a propósito da Revolução de 1905; um artigo contrário à lei de
expulsão de estrangeiros; e um texto endereçado ‘A um operário’, onde reaparece um pedagogismo autoritário
em torno da velha tecla da ‘falta de consciência das massas” (HARDMAN, op. cit., p. 132).
96 VICTOR, op. cit., p. 433.
97 POMBO, op. cit., p. 63.
24
Porém, percebeu-se que as leis não eram cumpridas. O poder competente, então,
estabeleceu um decreto que previa que “todo o cidadão era obrigado a respeitar e cumprir as
leis”, aplicando penas para os que deixassem de cumpri-las. Da mesma forma, às autoridades
que aplicavam as leis também foram previstas graves penas.98
Em seguida, foi criado um “Grande Concelho ou Tribunal Supremo” para julgar as
autoridades incumbidas de aplicar a lei penal, mas, após algum tempo, este órgão sofreu duras
críticas das autoridades que eram julgadas, as quais o acusavam de violências e injustiças.
Surge, então, um “demagogo terrível” que propôs instituir como “poder soberano,
irrevogavel, um grande comicio em que tomariam parte todos os cidadãos que se mostrassem
aptos, segundo certas normas”.99
Ocorre que os incumbidos de formar este grande comício permitiam o ingresso
somente dos cidadãos que lhes pareciam mais dignos, excluindo grande parte da população.
Nesse contexto, alguns dos homens sábios, “consultando o seu patriotismo e obdecendo aos
altos interesses da patria”, decidiram implantar uma ditadura em prol do bem de todos e em
nome da ciência.100
Contudo, ainda havia instabilidade social e “ninguem mais importava-se com as leis;
não havia mais confiança em cousa alguma, e lavrava desenfreada a mais repugnante das
corrupções”. Outros grupos de homens sábios, assim, conquistaram à força o poder e a nação
se afundava em um estado de calamidade.
Eis que surge, de repente, um estrangeiro que diz a todos:
Vós nunca chegareis a realisar o que desejais si não voltardes d’esse caminho errado
que tomastes. Cuidais muito da lei e fallais muito em liberdade, quando a unica
cousa que vos falta é Deus. Aprendei a crer com verdadeira fé e sereis homens sãos.
Sêde homens sãos e sereis afinal povo feliz e livre, porque a liberdade que faz livre e
feliz não é a que está consagrada na Lei, mas a que existe na consciencia de todos os
cidadãos.101
O estrangeiro sugere que as pessoas amem o bem, a verdade e a justiça, que
representariam a forma de se alcançar Deus em sociedade, e a partir de então o povo passou a
melhorar e o governo tornou-se mais fácil. Não havia necessidade da lei penal, porque a
_______________ 98 POMBO, loc. cit. 99 Ibidem, p. 64.
100 POMBO, loc. cit.
101 Ibidem, p. 65.
25
própria consciência de cada pessoa passava a conter os abusos de força e as opressões, afinal
“é preciso que o homem seja bom para que boa se torne uma sociedade”.102
Petrucello, assim, sustenta uma sociedade consciente de seu destino e sobre a qual
Deus imperaria, visto que percebeu que, nas sociedades modernas, o homem era cego pelas
disputas de poder, pelos gozos e pelas honrarias, o que levava a “dissenções horrorosas e
crimes inauditos”. Ele afirma:
Quando Paulo tiver fortuna, Pedro, que é pobre, ha de odial-o. Quando Pedro fôr
governo, Paulo conspirará: e ficai bem certos de que no momento em que Paulo
passar a exercer o poder, serà Pedro o conspirador. O mundo está reduzido a isto. Os homens perderam o Oriente e divertem-se no caminho...103
Nesse sentido, a utopia Cidade dos Homens traz indícios de que Rocha Pombo, ainda
no final do século XIX, já começava a simpatizar com os ideais anarquistas no país. Embora
se vinculasse a perspectivas religiosas,104 como se nota por meio da posição central que Deus
assume no êxito da sociedade fictícia, o paranaense reforça a desnecessidade do Estado e da
lei penal para a constituição das relações humanas.
Em outro momento do romance, ele escreve:
(...) da crise em que se acha o espirito humano neste fim de seculo ha de nascer por
força, como mais racional e mais logica, a tendencia, que já se constata mesmo em
alguns pensadores, para attenuar o mais possivel a influencia do Estado, si não fôr
cousa que se possa conseguir a eliminação d’essa influencia.105
Este Estado, portanto, intimamente atrelado às relações de poder e prestígio,
governado por elites que perseguem o lucro a todo custo e que estão dispostas em rígidas
classes sociais, torna-se dispensável em uma sociedade que, efetivamente, exista em prol dos
interesses coletivos.
Sendo assim, a utopia criada pelo protagonista traz semelhanças com o contexto
republicano do período. Antes da chegada do estrangeiro, que propõe uma sociedade baseada
na liberdade de consciência de cada cidadão, existia um governo que, fundado no bem-estar
social e no patriotismo, acabou estabelecendo uma ditadura autoritária que, por sua vez,
causava ainda mais instabilidade social.
_______________ 102 POMBO, loc. cit. 103 Ibidem, p. 66.
104 Nestor Victor, em 1906, quando relatou a proximidade entre Rocha Pombo e os anarquistas do Rio de
Janeiro, considerou-o um “espiritualista, cristão e algo espírita” (VICTOR, op. cit., p. 401).
105 POMBO, op. cit., p. 27.
26
Rocha Pombo nada mais fez do que utilizar a ironia para tratar deste regime, já que
decide chamar os seus governantes de homens sábios e filósofos, quando, na verdade,
oprimiam a população sob os signos da ciência, da ordem e do progresso. Portanto, ao tratar
da Cidade dos Homens, inserido no autoritário contexto da República, encontra na literatura
um refúgio para o nascente posicionamento político que passaria a adotar anos mais tarde, no
Rio de Janeiro, já no século XX.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a presente pesquisa, pretende-se demonstrar que um romance, ainda que possua
caráter fictício, pode dar importantes contribuições à historiografia, visto que, quando um
romancista inventa suas personagens, traz da realidade o combustível para a sua imaginação;
esta invenção, por isso, “mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a
realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca”.106
Nesse sentido, com base no método apresentado por Barbara Tuchman para se estudar
uma narrativa, ou seja, se um detalhe nela exposto “se harmoniza com o que sabemos da
época, do lugar, das circunstâncias e das pessoas, é aceitável; se não se ajusta, não é”,107
acredita-se que Petrucello traz luz à compreensão do processo histórico que envolveu a
consolidação do regime republicano no Brasil.
Quando Rocha Pombo escreveu o romance em 1891, vivia tempos difíceis: isolado
politicamente e afastado das elites locais, sentia-se decepcionado com a instauração de um
regime político que, embora tivesse defendido na imprensa inicialmente, havia se perdido na
ambição de poucos militares que passaram a comandar o país. As frustrações advinham, por
isso, de sua realidade individual e do mundo que o cercava.
Na reclusão literária, refletiu a respeito da exclusão sofrida pelas camadas populares
com o advento da República e, com ela, dos militares e do exército, assim como sobre os
valores capitalistas em ascensão que criaram uma atmosfera de verdadeira competição
predatória em busca do lucro. Por fim, talvez como um sonho distante, imaginou uma
sociedade igualitária, sem Estado e sem classes sociais.
_______________ 106 CANDIDO, Antonio. A Personagem do Romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A Personagem de
Ficção. 2. ed. São Paulo: Editôra Perspectiva, 1970, p. 69. 107 TUCHMAN, Barbara. A prática da história. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 34.
27
Com o uso recorrente de reticências ao longo do livro, o escritor parece fazer um
convite à reflexão, como se dissesse que aquele contexto histórico em que vivia ainda não
estava plenamente assimilado, que demandaria tempo e paciência para a sua compreensão. A
pesquisa, aceitando este convite, por meio da literatura buscou o estudo dos mundos
periféricos que, apesar da nascente República, tentavam sobreviver.
REFERÊNCIAS
BEGA, Maria Tarcisa Silva. Letras e política no Paraná: simbolistas e anticlericais na
República Velha. Curitiba: Editora UFPR, 2013.
CANDIDO, Antonio. A Personagem do Romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A
Personagem de Ficção. 2. ed. São Paulo: Editôra Perspectiva, 1970.
CARDIM, Elmano. Rocha Pombo, o Escritor e o Historiador. Rio de Janeiro: Gráfica
Editôra Jornal do Comércio S. A., 1958.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
______. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia
das Letras, 2013.
CORRÊA, Amélia Siegel. Imprensa e política no Paraná: Prosopografia dos redatores e
pensamento republicano no final do século XIX. 2006. Dissertação (Mestrado) - Curso de
Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2006.
HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem Patrão! (vida operária e cultura
anarquista no Brasil). 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995.
MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira: o simbolismo (1893-1902). Vol. IV. São Paulo:
Cultrix, [20--].
MURICY, José Cândido de Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 2 ed.
Vol. I. Brasília: Conselho Federal de Cultura e Instituto Nacional do Livro, 1973.
______. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 2 ed. Vol. II. Brasília: Conselho
Federal de Cultura e Instituto Nacional do Livro, 1973.
OLIVEIRA, R. E. O Brasil imaginado em José Francisco da Rocha Pombo. Goiânia,
2015. Dissertação (Mestrado) – Curso de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2015.
28
PILOTO, Valfrido. Morretes e Rocha Pombo. Morretes: S. Cavagnolli & Cia. Ltda., 1983.
______. Valfrido. Rocha Pombo. Curitiba: Gráfica Mundial Ltda., 1953.
______. Valfrido. Rocha Pombo, testemunha ocular da História. In: Profanações. Curitiba:
Gráfica Condor, 1947.
PILOTTO, Osvaldo. Cem anos de imprensa no Paraná (1854-1954). Curitiba: Instituto
Histórico Geográfico e Etnográfico Paranaense, 1976.
PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Paranismo: o Paraná inventado; cultura e imaginário no
Paraná da I República. 2 ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998, p. 29.
POMBO, José Francisco de Rocha. História do Brasil. 12 ed. São Paulo: Melhoramentos,
[20--].
______. Petrucello. Curityba: Typ. da Companhia Impressora Paranaense, 1892.
______. Para a história. Curitiba: Fundação Cultural, 1980.
PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil; Colônia e Império. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
QUELUZ, Gilson Leandro. Rocha Pombo: Romantismo e Utopias (1880-1905). 1994.
Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1994.
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
TUCHMAN, Barbara. A prática da história. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
VALENTE, Silza Maria Pazello. A presença rebelde na cidade sorriso: contribuição ao
estudo do Anarquismo em Curitiba, 1890-1920. 1992. Dissertação (Mestrado) - Curso de
Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992.
VICTOR, Nestor. Obra crítica de Nestor Vitor. Vol. I. Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Cultura; Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969.
______. Obra crítica de Nestor Vitor. Vol. III. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura; Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969.