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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Déborah Luíza Moreira
Território, luta e educação: dimensões pulsantes nos enfrentamentos dos
conflitos socioambientais mapeados no Quilombo de Mata Cavalo
CUIABÁ – MT
2017
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Déborah Luíza Moreira
Território, luta e educação: dimensões pulsantes nos enfrentamentos dos
conflitos socioambientais mapeados no Quilombo de Mata Cavalo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª Drª. Michelle Jaber Coorientadora: Profª Drª. Michèle Sato
CUIABÁ – MT
2017
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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.
M838t Moreira Santana Santos, Déborah Luíza.
Território, luta e educação : dimensões pulsantes nos
enfrentamentos dos conflitos socioambientais mapeados no
Quilombo de Mata Cavalo / Déborah Luíza Moreira Santana Santos.
-- 2017
159 f. : il. color. ; 30 cm.
Orientadora: Michelle Tatiane Jaber Silva.
Co-orientadora: Michèle Tomoko Sato.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,
Cuiabá, 2017.
Inclui bibliografia.
1. Educação ambiental popular. 2. Quilombo. 3. Conflitos
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Dedico esta pesquisa à comunidade quilombola de Mata Cavalo, que não sucumbiu mesmo diante de tantas injustiças, ao contrário,
R-EXISTEM e mantém acesa a chama da esperança.
Ao GPEA pelo aprendizado e educação libertadora,
que na convivência e partilha diária me ajudou a compreender a importância da
luta coletiva por um mundo mais justo,
experiências que contribuíram para me tornar um ser humano mais humanizado.
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AGRADECIMENTOS
Somos seres construídos historicamente. No processo cotidiano de construção em que
me faço e refaço a partir da convivência com o outro, agradeço às inúmeras pessoas com
quem convivi e que contribuíram para me tornar uma sonhadora esperançosa, com
profunda fé no ser humano, que acredita na utopia e na LUTA como única possibilidade
para transformação das situações de injustiça social e ambiental. Foram tantas as
companheiras e companheiros que contribuíram nesta trajetória que aqui se torna difícil
citar todas e todos.
Agradeço imensamente a minha querida orientadora e amiga Michelle Jaber pelos
diálogos, orientações, paciência, cuidado e carinho. Michelle, com sua generosidade e
enorme competência acadêmica me ajudou a ser uma educadora e pesquisadora mais
humanizada. Seu companheirismo fez essa caminhada acadêmica leve e prazerosa. A
você meu sincero agradecimento e minha profunda admiração.
À Michèle Sato pelas orientações, amizade, diálogos, risadas e parcerias para além da
academia. Michèle nos ensina pela práxis! Exímia pesquisadora, militante incansável, sua
existência me ensina e inspira na luta por um mundo mais justo.
À comunidade quilombola de Mata Cavalo que me acolheu com generosidade e ajudou a
realizar esta pesquisa. Em especial a Adryanne, Dona Preta, Dona Branca, Estivina,
Natalino e Gaúcho.
A todos/as os/as estudantes, professoras/es e funcionárias da Escola Estadual Professora
Tereza Conceição de Arruda. Meu agradecimento especial a Adryanne Abreu, Eliane
Arruda, Arlete Leite, Júnia Trevisan, Matheus Henrique, Letícia, Alex, Maria Cristina,
Ivone, Sônia e Claudicéia.
À querida professora Dra. Regina Silva, pela amizade, pelo cuidado com todas e todos do
GPEA e pelas valiosas orientações.
Ao companheiro Celso Sánchez, por aceitar avaliar este trabalho, pelas importantes
sugestões de leitura e por me presentear com coisas do seu mundo, cheio de chão latino
americano.
Ao professor Dr. Luiz Augusto Passos, pelo aceite em avaliar este trabalho e pelas
contribuições.
À Cristiane Almeida, minha eterna gratidão pela imprescindível ajuda na produção dos
mapas dos conflitos socioambientais do Quilombo de Mata Cavalo.
À Giseli Nora, que generosamente compartilhou relatos dos seus entrevistados que
enriqueceram o mapeamento dos conflitos socioambientais.
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À Dra. Debora Pedrotti pelos diálogos sobre componente curricular e matriz quilombola.
À família gpeana pelo acolhimento carinhoso e por me mostrar outro universo
acadêmico. Na convivência diária com o Grupo Pesquisador aprendi que é possível fazer
pesquisa com rigor científico, com paixão e com amor. Meu profundo agradecimento a
todas e todos desta família. Em especial ao grande amigo, Herman Hudson de Oliveira,
pelos preciosos diálogos que muito me auxiliaram na escrita da dissertação.
Ao Herman, Priscilla, Amanda, Cristiane, Eronaldo, Juciele, Rona, Nicolas e Raquel,
amigas/os com quem tive a oportunidade de partilhar sonhos, angústias e boas risadas.
Ao Júlio, Giselly, Edilaine, Elizete, Regina, Michelle, Priscilla, Nicolas, Raquel, Caio, Marcus,
Giovana, Rodrigo, Juliana, Aleth e Herman, que participaram e contribuíram com
processo formativo em Escolas Sustentáveis e no encontro de mapeamento participativo
dos conflitos socioambientais.
Ao Instituto Caracol, pela parceria e apoio financeiro, fundamental para realização do
projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo.
Ao Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFMT) pela oportunidade. Em
especial à Luisa sempre atenciosa e prestativa.
Aos professores Drª Elizabeth Sá, Drª Candida Soares e Dr. Edson Caetano pelas aulas e
reflexões que contribuíram para meu crescimento acadêmico.
À turma de mestrado, em especial a Priscilla, Cleverson e Sandra.
À Fundação de Amparo à Pesquisa de Mato Grosso (FAPEMAT) pela bolsa de estudos
concedida.
À minha família que sempre esteve ao meu lado, em especial a minha querida mãe e
amiga Maria Moreira, que mesmo distante fisicamente se faz presente diariamente em
minha vida.
Agradeço especialmente à minha doce companheira e amiga de todas as horas, Maryelen
Lopes, pelo carinho, cuidado e paciência.
Ao querido Allan K. Borges, pela amizade e pela leitura atenta.
Às queridas amigas Maristela Guimarães e Jakeline Fachin, pela amizade e incentivo.
Aos companheiros/as do Fórum de Direitos Humanos e da Terra (FDHT), pela convivência
e partilha nos encontros desta rede, que foram extremamente educativos e
transformadores.
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RESUMO Esta pesquisa apresenta um olhar sobre o território, a luta e a educação em uma comunidade quilombola que ao longo de 126 anos vem resistindo as diversas violações de direitos para viver no local onde seus antepassados viveram. Essa população vem forjando táticas de resistências aonde a luta por educação escolarizada tem sido fundamental para r-existência do grupo. Pressupondo natureza e cultura como dimensões inseparáveis, os acúmulos da educação ambiental não neutra e as experiências de educação popular foram terreno fértil para o diálogo entre educação ambiental popular, conflitos socioambientais, justiça ambiental, direitos humanos e da Terra. A educação enquanto ato radical tem o potencial de questionar a ordem injusta que naturaliza a desigualdade e por meio da pesquisa e da produção do conhecimento pode aumentar a visibilidade das lutas de grupos marginalizados pelo sistema econômico e pela conformação da colonialidade. Este ato educativo radical, é um passo importante para o fortalecimento destes grupos e para construção de sociedades justas e democráticas. Destarte, esta pesquisa se propõe a mapear com os/as quilombolas de Mata Cavalo (Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso) os conflitos socioambientais vivenciados pela população e compreender de que maneira a escola local tem contribuído para o fortalecimento da luta e da resistência. O complexo quilombola de Mata Cavalo é formado por seis comunidades: Aguassu, Estiva/Ourinhos, Mata Cavalo de Cima, Mata Cavalo de Baixo, Mutuca e Capim Verde. Está localizado no município de Nossa Senhora do Livramento, distante aproximadamente 55 quilômetros da Capital do estado. Situado em área de transição entre os Biomas Cerrado e Pantanal, o quilombo possui exuberante paisagem que tem sido alterada principalmente em função da expropriação do território por fazendeiros, grileiros e garimpeiros. A práxis pesquisante, ou metodologia, foi direcionada pela Cartografia do Imaginário e pelo Mapa Social. Para obtenção das informações que compõem esta viagem investigativa realizamos entrevistas, encontro de mapeamento participativo dos conflitos socioambientais e oficina de mapa social. Participaram destas atividades moradoras/es da comunidade, estudantes e professoras da Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda. Em todas as etapas da pesquisa foram denunciadas situações de injustiça ambiental e violações de Direitos Humanos e da Terra. Os conflitos socioambientais se dão entre quilombolas e o Estado; quilombolas e fazendeiros; quilombolas e sem terras (não ligados ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra-MST); e entre quilombolas e quilombolas. Oito são as causas propulsoras dos conflitos: disputa por terra, especulação Imobiliária, desmatamento, pecuária, queimadas, garimpagem de ouro, disputa por água e uso de agrotóxicos. Nesta trama de disputa territorial e conflitos socioambientais a educação escolarizada tem se constituído em forte tática de luta e resistência, que por meio das disciplinas curriculares, dos projetos escolares e do cultivo de vínculos fecundos entre escola e comunidade vem
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tateando caminhos possíveis para fortalecer a luta pelo território e por uma vida digna. Palavras-chave: Educação ambiental popular. Quilombo. Conflitos Socioambientais. Resistência.
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ABSTRACT This research grants an overview of the territory, the struggle and the education in a Quilombo’s community that for 126 years has been resisting against various violations of rights, trying to live in the place where their ancestors lived. This population has been forging resistance tactics where the struggle for schooling has been crucial to the group's existence. Assuming nature and culture as inseparable dimensions, the patrimony of non-neutral environmental education and the experiences of popular education were fertile ground for the dialogue between popular environmental education, socio-environmental conflicts, environmental justice, human and Earth´s rights. Education as a radical act has the potential to inquiry the unfair order that naturalizes inequality, and through research and the production of knowledge, we can increase the visibility of the struggles of groups marginalized by the economic system and by the colonisation´s phenomena. This radical educational act is an important step towards strengthening these groups and for building fair and democratic societies. Thus, this research proposes to map the Quilombo of Mata Cavalo (Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso), together with their people, the Quilombolas, the socioenvironmental conflicts experienced by the population and to understand how the local school has contributed to the strengthening of the struggle and the resistance. The quilombola complex of Mata Cavalo is formed by six communities: Aguassu, Estiva / Ourinhos, Mata Cavalo de Cima, Mata Cavalo de Baixo, Mutuca and Capim Verde. It is in the municipality of Nossa Senhora do Livramento, distant approximately 55 kilometres from the State Capital. Located in a transition area between the Cerrado (Brazilian’s savanna) and Pantanal Biomes, the quilombo has an exuberant landscape that has been altered mainly due to the expropriation of the territory by farmers, land invaders and miners. The research praxis, or methodology, was directed by the Cartography of the Imaginary and by the Social Mapping. To obtain the information that compose this investigative research, we conducted interviews, a participatory workshop about mapping of socio-environmental conflicts. The participants in these activities were residents of the community, students and teachers of the Tereza Conceição de Arruda State School. In all stages of the research, situations of environmental injustice and violations of Human and Earth Rights were denounced. The socio-environmental conflicts occur between Quilombolas and the state; Quilombolas and farmers; Quilombolas and without lands (they are not related to the Landless Workers Movement - MST); and between Quilombolas and Quilombolas. Eight are the root causes of conflicts: land dispute, real estate speculation, deforestation, cattle ranching, burning, gold mining, water dispute and pesticide use. In this plot of territorial dispute and socioenvironmental conflicts school education has become a strong tactic of struggle and resistance, which through curricular disciplines, school projects and the cultivation of fruitful bonds between school and community has been trying possible ways to strengthen the struggle for the territory and for a dignified life.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 – Mapa das Comunidades Quilombolas do estado de Mato Grosso, 2011 ............. 29 Quadro de figuras 02 – Casas da Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, 2015 ................................................................................................................................ 34 Figura 03 – Dimensões da proposta de Escola Sustentável.................................................... 39 Figura 04 – Mapa temático dos conflitos socioambientais do estado de Mato Grosso, 2012 ............................................................................................................................................. 50 Quadro de figuras 05 – Reunião das/os pesquisadoras/es GPEA com a comunidade de Mata Cavalo, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015 ............................................................ 55 Figura 06 – Temas dialogados com a comunidade aprendente nos encontros formativos, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, 2015. Pintura: Hundertwasser ... 58 Quadro de figuras 07 – Encontro formativo, oficina de Mapa Social, Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo, Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, 2015 ......................................................... 60 Quadro de figuras 08 – Estudantes, professoras e moradores da comunidade socializando a proposta do PAEC escolhida pelo coletivo, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015 ....................................................... 62 Quadro de figuras 09 – Execução do PAEC, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mao Grosso, 2015 ......................................................... 64 Quadro de figuras 10 – Construção do telhado de grama, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015 ...... 65 Figura 11 – Localização do Quilombo de Mata Cavalo, Nossa Senhora do Livramento, MT . 69 Figura 12 – Mapa do Quilombo de Mata Cavalo, Nossa Senhora do Livramento – MT......... 69
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Quadro de figuras 13 – Mapeamento participativo realizado com os sujeitos entrevistados, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, Mato Grosso, 2016 ................................................................. 70 Quadro de figuras 14 – Processo Formativo em Escolas Sustentáveis no Quilombo, Encontro/oficina: Mapa Social, Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015 ............................. 71 Figuras 15 – Momentos imprescindíveis para realização desta pesquisa. Pintura: Hundertwasser .......................................................................................................................... 71 Figura 16 – Símbolo da luta da comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo ......................................................................................................................................... 72 Quadro de figuras 17 – Mapas preenchidos pelos/as quilombolas na oficina de Mapa Social, realizando durante o processo formativo em Escolas Sustentáveis no Quilombo. Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda. Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2016 ........................................................................ 78 Quadro de figuras 18 – Casas da comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 2015 ................................................................................................................................ 81 Quadro de figuras 19 – Poço de água comunitário que abastece parte da população da Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 2015 ................................... 82 Figura 20 – Ruínas da fornalha onde os/as escravos/as trabalhavam, Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 20 ........................................................................... 84 Figura 21 – Gados bravos, soltos em local sem cerca, à beira da estrada por onde diariamente muitos/as quilombolas passam, comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 2016 .................................................................................................... 95 Quadro de figuras 22 – Impactos ambientais relacionados as atividades dos expropriadores, Quilombo Mata Cavalo, 2016 ........................................................................ 96 Quadro de figuras 23 – Impactos do garimpo, Comunidade Estiva/Ourinhos, Quilombo Mata Cavalo, 2016 ...................................................................................................................... 98 Quadro de figuras 24 – Moradores buscando água no poço comunitário, Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 2016 ............................................................. 100 Quadro 25 – Causas propulsoras de conflitos, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017 ............................................................................................................................................ 102 Quadro de Figuras 26 – Ícones das causas propulsoras dos conflitos socioambientais. Desenhos: Cristiane Almeida ................................................................................................... 103
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Figura 27 – Mapa temático dos conflitos socioambientais relacionados com o elemento terra, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017 ............................................................. 109 Figura 28 – Mapa temático dos conflitos socioambientais relacionado com o elemento água, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017 .............................................................. 110 Figura 29 – Mapa temático dos conflitos socioambientais relacionado com o elemento fogo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017 .............................................................. 111 Figura 30 – Mapa temático dos conflitos socioambientais relacionado com o elemento ar, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017 ........................................................................ 112 Figura 31 – Mapa temático dos conflitos socioambientais do Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017- .................................................................................................................... 113 Figura 32 – Mapa dos marcos históricos do Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017 115 Quadro de figuras 33 – Grupo de Dança Hop Quilombola se apresentando na IV Feira de Artes, Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, Quilombo Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015 ............................................................................................................................................ 132
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CGEA - Coordenação-Geral de Educação Ambiental
CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
EA – Educação Ambiental
FAPEMAT – Fundação de Amparo à Pesquisa
GPEA – Grupo Pesquisador em Educação Ambiental Comunicação e Arte
HA – Hectares
IC – Instituto Caracol
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
KM – Quilômetros
SEDUC – Secretária Estadual de Educação
SEMA – Secretária Estadual de Meio Ambiente
MEC – Ministério da Educação
MMA – Ministério de Meio Ambiente
MT – Mato Grosso
MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
PAEC – Projeto Ambiental Escolar Comunitário
PAQ – Práticas Agrícolas Quilombola
PCAQ – Práticas de Cultura e Artesanato Quilombola
PPGE – Programa de Pós-graduação em Educação
RBJA – Rede Brasileira de Justiça Ambiental
WWF – World Wide Found for Nature
TS – Tecnologia Social
UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto
UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................... 15
Breve contexto da pesquisa ................................................................................................. 16
CAPÍTULO 1 – TERRA DE RESISTÊNCIAS: A LUTA POR TERRITÓRIOS .............................. 20
1.1 Quilombo Mata Cavalo: Terra de Luta ............................................................................ 30 CAPÍTULO 2 – TERRA E HÚMUS: SUBSTRATOS QUE ALIMENTAM A PESQUISA ............ 35
2.1 Nas esteiras da educação ambiental .............................................................................. 40
2.2 “Outra é a nossa terra”: Conflitos Socioambientais e Justiça Ambiental ................... 43
CAPÍTULO 3 – BARRO PARA EDIFICAÇÃO DOS SONHOS: OPÇÕES METODOLÓGICAS .. 48
3.1 Comunidade aprendente: diálogos para construção de escolas sustentáveis ........... 55
3.2 Caminhos da viagem científica ....................................................................................... 66
CAPÍTULO 4 – O TERRITÓRIO SOB OLHAR DOS/AS QUILOMBOLAS ............................... 74
4.1 Violações de direitos humanos no quilombo ................................................................ 80
4.2 Conflitos socioambientais e causas propulsoras .......................................................... 93
4.2.1 Conflitos socioambientais relacionados ao elemento Terra ..................................... 103
4.2.2 Conflito socioambiental relacionado ao elemento Água ......................................... 106
4.2.3 Conflito socioambiental relacionado ao elemento Fogo .......................................... 107
4.2.4 Conflito socioambiental relacionado ao elemento Ar .............................................. 108
CAPÍTULO 5 – CHÃO DA ESCOLA: EDUCAÇÃO COMO TÁTICA DE RESISTÊNCIA ............. 118
5.1 O chão da Escola.............................................................................................................. 120
5.2 Currículo da vida: uma tática para fortalecer a cultura quilombola............................. 128
5.3 Os projetos educativos que fortalecem a cultura e reforçam a luta e a resistência .. 130
5.4 Os vínculos fecundos entre a escola e a comunidade .................................................. 134
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ............................................................................................... 139
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 143
APÊNDICE .............................................................................................................................. 155 ANEXOS ................................................................................................................................. 157
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APRESENTAÇÃO
Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente [...]
Mercedes Sosa
O trabalho que aqui apresento é a concretização de um desejo antigo de pesquisar
conflitos socioambientais em comunidades vulnerabilizadas pelo sistema capitalista que
financeiriza objetos, biodiversidade, bens naturais, gentes e transforma alguns seres
humanos em coisas. Este desejo nasceu da vontade de contribuir academicamente, por
meios da produção de conhecimento sobre as injustiças ambientais vivenciadas por estes
grupos, na esperança aumentar sua visibilidade por meio da legitimidade que a Academia,
em alguma medida, oferece.
Por ser encantada pela biodiversidade de vidas e de ecossistemas, escolhi fazer
graduação em Ciências Biológicas, na Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT).
Desde a infância, por influência de minha avó materna, tive grande admiração pelo
conhecimento popular e no curso de graduação me dediquei a estudar etnobotânica.
Com o desejo de aprofundar os estudos nesta temática, em 2006 iniciei o mestrado em
Ecologia e Conservação da Biodiversidade, na linha de pesquisa de etnoecologia e
etnobotânica, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Nesta ocasião,
desenvolvi pesquisa em uma comunidade rural no município de Rosário Oeste, Mato
Grosso, que versava sobre o conhecimento popular e as formas de uso das espécies
vegetais do Cerrado.
Em 2013 conheci dois trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Pesquisador em
Educação Ambiental Comunicação e Arte (GPEA): Do Invisível ao Visível – o mapeamento
dos grupos sociais do estado de Mato Grosso (SILVA, 2011) e O Mapeamento dos Conflitos
Socioambientais de Mato Grosso – denunciando injustiças ambientais e anunciando táticas
de resistência (JABER-SILVA, 2012). A perspectiva política da Educação Ambiental me
encantou e desde então passei a sonhar com a possibilidade de fazer parte deste grupo e
estudar conflitos socioambientais.
Em 2014 fiz a seleção do mestrado em Educação, na linha de pesquisa Movimentos
Sociais, Política e Educação Popular, para o GPEA, e fui aprovada. A participação neste
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Grupo Pesquisador tem sido uma experiência transformadora em minha vida. A
convivência formativa com o GPEA me tornou uma pessoa mais humanizada. Além disso,
oportunizou com que participasse de espaços da sociedade civil organizada, sendo este
fato determinante para me tornar militante apaixonada pela Educação Ambiental e pelos
direitos humanos e da terra.
Assim, estar no GPEA foi fundamental para realizar esta pesquisa com o olhar que
aqui apresento. O grupo assume a “[...] diferença entre um ‘grupo de pesquisa’ e um
‘grupo pesquisador’, que busca transcender o isolamento do pesquisador, valorizando
diálogos [...]” entre as diferentes pesquisadoras/es (SATO; SENRA, 2009, p.140).
Embasado na “[...] pedagogia de Paulo Freire, o diálogo de saberes perpassa a relação
pedagógica e é pressuposto epistemo-praxiológico para o processo de investigação
científica” (SATO; SENRA, 2009, p.140). Esclareço que na escrita da dissertação às vezes
utilizo a 1ª pessoa do singular e outras vezes utilizo o nós, em função do forte caráter
dialógico e de coletividade que a vivenciei no GPEA durante a construção da pesquisa.
Breve contexto da pesquisa
Quando olhamos a história do Brasil a partir da invasão colonizadora (RIBEIRO,
2008) até os dias atuais, percebemos o quão desigual é a sociedade brasileira. Essa
desigualdade construída historicamente é resultado do modelo assentado na
colonialidade, que naturaliza a exploração/escravidão da força de trabalho de sujeitos
inferiorizados/as e na degradação dos ecossistemas, produtos de uma sociedade
monocultural, meritocrata e escravocata.
Diante da injustiça deste sistema, ressaltamos que este trabalho é fruto de opção
política e sonha ser uma pequena contribuição para aumentar a audiência de uma
comunidade quilombola que há mais de um século grita forte por justiça socioambiental,
e que, no entanto, têm suas vozes abafadas pelo Estado, que por sua vez representa a
condensação das relações presentes na sociedade. Refiro-me a Estado em sentido
ampliado, formado pela sociedade civil e sociedade política em permanente interação
(MENDONÇA, 2012).
Quando utilizo a expressão “estado burocrático” me refiro ao conjunto de
aparelhos e agências do Poder Público. Englobo os seus gestores, suas instituições e suas
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políticas, a estrutura não includente, mesmo no processo de construção democrática.
Historicamente, as políticas paternalistas do estado brasileiro contribuíram para a
manutenção e ainda hoje reforçam os processos de inferiorização e dominação de grupos
sociais como quilombolas, indígenas, camponeses, favelados, etc. (ARROYO, 2012).
Pesquisamos uma comunidade que tem sua história marcada pela opressão,
racismo, expropriação do território e destruição material e simbólica de seu viver. Para
Arroyo (2012, p.72) “ao destruir e afetar a produção da vida dos coletivos, são afetadas na
raiz as capacidades humanas, os saberes colados a essas formas de produção, sendo esta
a pedagogia mais eficaz no processo de destruição dos saberes”.
No entanto, apesar da brutal violência do processo diaspórico, os/as quilombolas
se articularam e (re) ocuparam a área expropriada, o ato de resistir à violência do
opressor e a morosidade do estado burocrático para implementar a política de
regularização fundiária, sem sucumbir a falta de renda, à moradia inadequada e até a
fome, demonstra a força e a resistência deste grupo.
Dedicamos nossos esforços ao longo de quase dois anos para construir esta
dissertação que oferece nosso olhar sobre o território, a luta e a educação na
Comunidade Quilombola de Mata Cavalo. Além disso, tecemos considerações sobre a
importância da Educação Ambiental (EA) como aliada nas lutas por justiça social e
proteção ecológica.
Com intuito de conhecer melhor este território de resistências e evidenciar suas
lutas, temos como objetivo principal promover um mapeamento participativo dos
conflitos socioambientais vivenciado pelos/as quilombolas de Mata Cavalo. Além disso,
almejamos denunciar os dilemas resultantes dos conflitos socioambientais e
compreender o papel da Escola nas lutas para o enfrentamento dos conflitos e
fortalecimento da resistência.
Ancorada nos princípios dos Projetos Ambientais Escolares Comunitários (PAEC),
buscamos compreender o universo pedagógico íntimo e associado com o Quilombo de
Mata Cavalo. Reconhecemos que a escola não é uma ilha isolada do sistema em crise
(SENRA, SATO, OLIVEIRA, 2009) e que há necessidade que o currículo da comunidade seja
significativo ao currículo escolar e vice-versa.
Nesta comunidade, a escola sempre foi o centro das articulações das lutas. A partir
deste fato é que surgiu nosso interesse em compreender como essa escola mobiliza seus
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saberes e fazeres para continuar contribuindo com a práxis (ação e reflexão) dos/as
quilombolas que por ali transitam.
Para facilitar a compreensão do tema e apresentar os frutos dessa pesquisa,
organizamos a dissertação em cinco capítulos. No capítulo 1, intitulado TERRA DE
RESISTÊNCIAS: A LUTA POR TERRITÓRIOS, abordamos, brevemente, o significado da
colonização europeia e as consequências deste processo para populações indígenas e
para os/as negros/as que para cá foram trazidos e escravizados/as. Ainda, apresentamos a
história de formação e de luta da Comunidade Quilombola de Mata Cavalo,
contextualização imprescindível para compreender os conflitos socioambientais
vivenciados atualmente por esta população e também porque “quem luta sente a
necessidade de olhar para trás [...]” (GENNARI, 2011).
No capítulo 2, TERRA E HÚMUS: SUBSTRATOS QUE ALIMENTAM A PESQUISA,
apresentamos o Grupo Pesquisador em Educação Ambiental Comunicação e Arte (GPEA)
da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), lugar de onde falamos, e os conceitos
centrais que sustentam essa pesquisa. Este capítulo é importante para situar o leitor/a e
auxilia na compreensão de nossas escolhas epistemológicas.
No terceiro capítulo, BARRO PARA EDIFICAÇÃO DOS SONHOS: OPÇÕES
METODOLÓGICAS, elucidamos nossas escolhas metodológicas centradas na Cartografia
do Imaginário (SATO, 2011) e no Mapa Social (SILVA, 2011). Além disso, tratamos sobre as
etapas da pesquisa e os procedimentos utilizados para alcançar os objetivos que
compõem esta dissertação. Tecemos também, neste capítulo, nossa percepção sobre o
processo formativo em Escolas Sustentáveis, realizado em 2015 pelo GPEA, em parceria
com a escola e a comunidade. Ressaltamos que este processo foi essencial para a
aproximação com a comunidade e para o estreitamento dos vínculos de amizade e
parceria, imprescindíveis para o desenvolvimento desta dissertação.
No capítulo 4, O TERRITÓRIO SOB OLHAR DOS/AS QUILOMBOLAS, destacamos ao
mapeamento participativo dos conflitos socioambientais feito COM e PELOS/AS
quilombolas, destacamos as forças motrizes destes conflitos e denunciamos as violações
de direitos individuais e coletivos.
No quinto capítulo, CHÃO DA ESCOLA: EDUCAÇÃO COMO TÁTICA DE
RESISTÊNCIA, registramos a luta da comunidade para ter uma escola no território e
destacamos a importância da Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda para
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articulação da luta. Discutimos como esta unidade de partilha da vida, por meio da
educação formal e do cultivo de vínculos com a comunidade tem contribuído para
formação das juventudes e para o fortalecimento da resistência.
Ressaltamos que, longe de estar pronta e acabada, esta pesquisa oferece um
retrato temporário dos conflitos socioambientais, da luta pelo território e da educação
escolarizada no Quilombo de Mata Cavalo; os resultados aqui apresentados ajudam a
compreender as dificuldades enfrentadas para permanecer no território e a força que
agrega o grupo, conhecimentos importantes para pensarmos as ações e projetos futuros
a fim de fortalecer a comunidade na luta por justiça socioambiental.
23
Neste primeiro capítulo abordaremos, brevemente, a história da colonização do
Brasil e de Mato Grosso pelo viés da ocupação das terras a formação do latifúndio, bem
como o tenso processo de dominação/subordinação de povos indígenas que aqui viviam e
dos negros que para cá foram trazidos, ambos marcados por violência física e simbólica.
O desumanizante processo de ocultamento da diversidade social ocorreu
concomitantemente à expropriação de terras e degradação dos componentes naturais. A
colonização que marcou o latifúndio de terras no país, simultaneamente iniciou a
formação do latifúndio do saber. Conhecer estes fatos históricos é imprescindível para
entender as desigualdades sociais brasileiras e os conflitos socioambientais atuais que
assolam os grupos sociais vulneráveis aos quais nos dedicamos pesquisar, pois a
colonialidade persiste.
A colonialidade possui pelo menos quatro eixos que a estruturam: a colonialidade
do poder “refere-se ao estabelecimento de um sistema de classificação social baseada na
hierarquia racial e sexual, [...]” (WALSH, 2008, p.135); a colonialidade do saber, referente
ao “[...] posicionamento de eurocentrismo como a perspectiva única de conhecimento,
[...]” (WALSH, 2008, p.137); a colonialidade do ser, “exercida através da inferiorização,
subalternização e desumanização [...]” de negros e indígenas (WALSH, 2008, p.138); a
colonialidade da natureza, que “[...] encontra a sua base na divisão binária
natureza/sociedade, descartando o mágico-espiritual-social, a relação milenar entre
mundos biofísicos, humanos e espirituais, [...]” (WALSH, 2008, p.138). Estes quatro eixos
sustentam a colonialidade e contribuem para naturalização das desigualdades sociais e
injustiças ambientais em nosso país.
Adiante enfatizaremos a história de resistência de uma comunidade negra,
localizada no município de Nossa Senhora do Livramento/Mato Grosso, que teve origem
ainda no século XVIII, durante o ciclo de exploração do ouro. Esta comunidade, lócus da
pesquisa, é conhecida como Quilombo de Mata Cavalo e seus/suas moradores/as resistem
e lutam até os dias atuais para serem reconhecidos como sujeitos de direitos e de
garantias fundamentais pelo Estado burocrático brasileiro.
Quando os portugueses aqui chegaram, viviam nestes territórios inúmeros povos
indígenas, com diferentes epistemologias de ricos saberes, mas que a partir de 1500
foram subjugados e tratados como incultos. Destacamos que o conceito de território
utilizado nesta dissertação inclui o espaço natural nos quais as relações sociais são
24
produzidas, o espaço político e de poder, e o espaço de identidade e de identificação, ou
seja, é o “lugar da mediação entre os seres humanos e sua cultura” (MEDEIROS, 2009,
p.217).
A chegada dos colonizadores europeus ao Brasil veio acompanhada de
subalternização dos povos originários e expulsão dos seus territórios. Esta passagem
histórica foi extremamente violenta e custou a vida de inúmeros gentis que lutaram
bravamente contra dominação estrangeira (RIBEIRO, 2008; PÁDUA, 2002).
Desde então iniciaram os ciclos de degradação ambiental e social. Pádua (2002,
p.72), por meio do estudo de cerca de 158 documentos históricos, escritos a época do
Brasil Colônia, destaca que para os colonizadores a “[...] exploração direta da natureza
seria o principal eixo de busca por riquezas nessa parte da América. A vontade de explorá-
la da maneira mais agressiva que fosse possível marcou o nascimento do Brasil.” Ao lado
da devastação ambiental, sustentada pela mão de obra escrava, foi estabelecida a
colonialidade e a desumanização de indígenas e negros, que passaram a ser tratados
como objetos, provavelmente tem se aí a gênese da naturalização das desigualdades
sociais que resultou no “pensamento abissal”. Segundo os autores:
Este pensamento opera pela definição unilateral de linhas que dividem as experiências, os saberes e os atores sociais entre os que são úteis, inteligíveis e visíveis (os que ficam do lado de cá da linha) e os que são inúteis ou perigosos, ininteligíveis, objetos de supressão ou esquecimento (SANTOS; MENEZES, 2009, p. 11).
O Brasil Colonial, assentado sobre o pensamento abissal que separou o mundo em
dois, de um lado nós, os “humanos”, “brancos”, “civilizados” e “cultos”, na outra
extremidade os outros, subumanos, incivilizados, incultos e inexistentes (ARROYO, 2012),
teve seu desenvolvimento pautado na lógica da super exploração que ocasionou
inúmeros danos ambientais, dizimou indígenas e chacinou milhões de negros. Darcy
Ribeiro (2008, p.89) destaca que os povos indígenas foram incorporados como escravos
pela sociedade colonial “[...] para serem desgastados até a morte, servindo como bestas
de carga a quem deles se apropriavam.”
Com igual crueldade milhões de africanas/os foram violentamente capturados/as
em seus territórios e trazidos para o Brasil como escravos. As
primeirasestimativasrelativas à quantidadede negros introduzidos no Brasil “[...] vão
25
desde números como13,5 milhões (CALÓGERAS, 1927) ou 15 milhões (ROCHA POMBO,
1905), até cálculos muito exíguos, como 4,6 milhões (TAUNAY, 1941) e 3,3 milhões
para Simonsen (1937)” (RIBEIRO, 2008, p. 146).
Castro Alves (1868, p.5) poeticamente escreve sobre a dolorosa viagem
enfrentada por elas/es na travessia do Atlântico:
Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos, Sem luz, sem ar, sem razão. [...] Ontem a Serra Leoa, [...] Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar... [...] Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus?!...
O tráfico negreiro foi negócio altamente lucrativo. Em terras brasileiras os/as
negros/as eram vendidos/as como coisas, sendo obrigados/as a realizar todos os tipos de
trabalhos, com exaustivas jornadas e péssimas condições de vida, construíram grandes
riquezas para os seus senhores/opressores sem nada receber.
Arroyo (2012, p. 73) destaca que “a empreitada colonizadora foi um laboratório de
produção e ensaio das pedagogias de subalternização mais “eficazes” porque mais
brutais”. A tentativa de desenraizamento cultural e a submissão eram algumas das
estratégias para invisibilizar indígenas e negros/as e decretar a sua inexistência,
[...] ao destruir a vida cotidiana e impor um modo único, homogêneo de sua produção as outras formas de vida são submetidas ou destruídas [...] Homogeneizando o modo de viver, tentam homogeneizar toda forma de pensar, de produção de conhecimento, culturas e identidades (ARROYO, 2012, p. 74).
A brutal pedagogia da inferiorização, com violentos mecanismos de controle e
punição dos/das escravos/as, somada a terra farta, levou a degradação socioambiental
26
tornando a destruição um “[...] elemento constitutivo da própria lógica de ocupação
colonial do Brasil” (PÁDUA, 2002, p.79).
Quando os europeus aqui aportaram e encontraram a bela paisagem tropical,
imediatamente deu-se início ao plano de usurpação do território recém descoberto. A
privatização das terras brasileiras começou no reinado de Dom João III. Por meio da
concessão de extensas faixas aos “fidalgos e homens de distinção” (ROCHA; CELESTINO,
2010, p. 2) que podiam conceder para outrem parte para cultivo (regime de sesmarias),
originou-se o latifúndio, “[...] entra em vigor o espírito latifundiário, com homens de
posse (futuros senhores de engenho e fazendas) de que iria se formar a aristocracia
econômica da sociedade colonial.” (ROCHA; CELESTINO, 2010, p. 2). Esse modelo de
ocupação de terras perdurou de 1534 a 1822.
Em 1850, passados mais de vinte anos do fim do regime de sesmarias, 14 dias após
entrar em vigor a Lei nº 581, que estabeleceu medidas para repressão do tráfico de
africanos no Império, também entrou em vigor a Lei nº 601, conhecida como Lei de
Terras, que instituiu a compra como única maneira de aquisição de terras, autorizando os
estados a venderem terras devolutas (terras que não pertenciam à particulares e não
eram utilizadas pelo Poder Público) (DI PIETRO, 1997).
Filho e Fontes (2009, p.60) consideram essa Lei “[...] uma espécie de divisor de
águas em relação à territorialização do Brasil, com legitimação da propriedade privada e
do latifúndio”. Tanto o sistema de sesmarias quanto a Lei nº 601 dificultou o acesso das
camadas populares a terra, pois a capitalização configura mais uma maneira de garantir
os privilégios dos senhores/opressores que se viam prejudicados pela ameaça de fim da
escravidão. Tais fatos revelam o lugar que a elite estava guardando para os povos
originários e para os/as negros/as: sem direito às riquezas que ajudaram a construir, sem
direito à terra que por 300 anos cultivaram para seus malfeitores, foram obrigados a
ocupar os morros e a vender sua força de trabalho por míseros salários.
Em meados do século XX, após anos de omissão quanto à elaboração de políticas
de regularização fundiária, preterição que legitimou ainda mais o latifúndio, o governo
militar, com o intuito de conter as classes populares no “[...] movimento em prol de maior
justiça social no campo e da reforma agrária [...]” (ROCHA; CELESTINO, 2010, p. 5),
instituiu, em 1964, a Lei nº4045, primeira proposta de reforma agrária que nunca se
concretizou, ao contrário, esse projeto “[...] foi deixado de lado e o latifúndio continuou
27
se espalhando no regime de ocupação do país, amparado por incentivos agrícolas a
grandes produtores” (ROCHA; CELESTINO, 2010, p. 5). Importa salientar que “[...] na raiz
desse fracasso dasmaiorias está o êxito das minorias, que aindaestão aí, mandantes.
Emseus desígnios de resguardar velhos privilégios por meio da perpetuação do
monopólio daterra, [...]” (RIBEIRO, 2008, p.226).
A degradação ambiental, iniciada no país com a colonização europeia, perpassou
os períodos: Colonial, Imperial e República, estando fortemente relacionada com o “[...]
desenvolvimento econômico, no contexto da colonialidade e do capitalismo, que se
sustenta na exploração da natureza e da força de trabalho empregada por determinados
segmentos da sociedade [...]” (BARROZO; SÁNCHEZ, 2015, p.4), sistema que acarreta
cada vez mais desigualdades raciais e conflitos socioambientais. Agrava este contexto o
alarmante número de conservadores ligados ao agronegócio que atualmente ocupam
cadeiras no Congresso Nacional (ACCIOLY; SÁNCHEZ, 2011).
Castilho (2012) esclarece que no Brasil existe um sistema político ruralista. Em
levantamento realizado em 2010 sobre os políticos eleitos neste mesmo ano, o autor
revelou que do total de deputados e senadores eleitos, 266 compunham a bancada
ruralista, ou melhor, o sistema político ruralista. Esse estudo nos ajuda a compreender
porque em pleno século XXI a sociedade brasileira ainda não conseguiu superar essa
lógica destrutiva e violenta de ocupação dos espaços, muito embora a resistência dos
povos e populações do campo venha obrigando o governo brasileiro a reconhecê-los.
A partir dessa perspectiva, mesmo que apresentada de maneira sintética,
podemos compreender com facilidade a raiz de muitas desigualdades sociais. Ao olhar a
história do país pelo viés da ocupação territorial percebe-se a manutenção da lógica
colonial com a preservação do latifúndio, pautado no desmatamento, nos monocultivos,
na pecuária, na mineração, na negação de direitos e na tentativa de extermínio de grupos
sociais que não tenham suas relações regidas pela lógica capitalista.
Jaber-Silva, ao mapear conflitos socioambientais de MT observa que
dirigidos pela concepção hegemônica de desenvolvimento sob a égide do modo de produção capitalista o sistema produção-consumo ainda segue o modus operandi do praticado no Brasil colônia, em que apenas uma minoria controla a economia e dita as regras do mercado, em detrimento de uma grande maioria. Com isso, foram assentando-se as oligarquias garantindo a permanência e praticamente uma perpetuação
28
de latifundiários (JABER-SILVA, 2012, p.28).
A estrutura fundiária brasileira, caracterizada pela grande concentração individual
e empresarial de terras, é um problema que perdura desde 1500, situação agravada pela
inação do Estado burocrático brasileiro. Apesar de ser um país democrático, no Brasil, a
cidadania e a democracia não se efetivam para todos/as, visto que alguns coletivos são
privados desses direitos, citamos como exemplo: quilombolas, indígenas, ribeirinhos,
pantaneiros e camponeses/as (SILVA, 2011). A ineficiência também é verificada na
investigação e punição de crimes por conflitos agrários, omissão que se soma a diversas
estratégias de opressão/dominação/inferiorização de “outros sujeitos” (ARROYO, 2012).
Essa lógica é responsável pelo violento cenário agrário brasileiro – tingido com o
sangue dos que lutam/lutaram contra a ideologia do latifúndio e do agronegócio – que,
conforme demonstra o relatório da Organização Não Governamental (ONG) Global
Witness (2015), coloca o Brasil pelo quarto ano consecutivo como líder na lista de países
que mais tiveram ativistas ambientais e agrários assassinados. Outro dado trazido pela
ONG mostra a complexidade da situação: esses crimes raramente são investigados e
punidos, “só foram julgados, condenados e punidos dez pessoas entre 2002 e 2013, cerca
de 1% da incidência geral dos assassinatos conhecidos” (Relatório da ONG Global Witness,
2015, p.5).
Com o olhar voltado para o que Arroyo denominou de “outros sujeitos”, Silva
(2011, p.46), no Mapeamento Social de Mato Grosso, alerta para a “herança dos processos
de colonialismo que persiste na contemporaneidade. [...] expressa na forma como a
ocupação dos territórios se estabelece, negando o Outro e invisibilizando-o”. Em
trajetória contrária à colonialidade, a autora dá visibilidade ao Outro negado por meio do
mapeamento das identidades e dos territórios de Mato Grosso, revelando um mosaico
social com 99 identidades. Mesmo com toda essa diversidade, Mato Grosso é o primeiro
estado da região Centro-Oeste em número de assassinatos por conflitos no campo
(PORTO; PACHECO; LEROY, 2013).
É nessa realidade que o GPEA faz pesquisa, valorizando os diversos seres e saberes
sem hierarquizá-los, aliando a militância por um mundo justo, a favor dos Direitos
Humanos e da Terra. Segundo os críticos literários, há diversas frases atribuídas ao
escritor Miguel de Cervantes que não são fidedignas. Uma das mais famosas é: “Cambiar
29
el mundo, amigo Sancho, no es locura ni utopía, sino justicia.” O significado da frase é tão
bonito que toma vida própria, destrói as autorias. A popularização de um fato, fenômeno
ou frase, detém uma força extraordinária que contagia todos/as aqueles/as que buscam a
justiça no mundo. Este é também o sentido procurado pelo GPEA, que teima em
ressignificar as palavras para que o mundo vivido seja eloquentemente belo, justo,
potente e que cuide da cultura e natureza.
É neste chão que esta dissertação foi concebida, na busca por aumentar a
visibilidade de uma comunidade quilombola que historicamente teve seus direitos
violados e negados. Por meio do mapeamento participativo dos conflitos socioambientais
vivenciados pela comunidade quilombola de Mata Cavalo, localizada em área rural no
município de Nossa Senhora do Livramento/Mato Grosso, almejamos dar audiência aos
quilombolas, DENUNCIAR como estão vivendo e ANUNCIAR como gostariam de viver
(FREIRE, 2000, p.54; JABER-SILVA, 2012). Para entender os conflitos faz-se necessário
olhar a história e os reflexos desse processo na trajetória da comunidade a ser
pesquisada.
A herança colonial de negar o OUTRO, persistente em Mato Grosso, iniciou-se
provavelmente no século XVIII com as expedições de bandeirantes paulistas. Estas
caçavam indígenas para torná-los escravos e buscavam todos os tipos de bens naturais
que pudessem gerar-lhes riquezas, tendo encontrado por volta do ano 1718, na região de
Cuiabá, as lavras de ouro (Brasil, 2014) o que contribuiu para aumentar o número de
pessoas escravizadas e em situações degradantes.
Como em outros municípios de Mato Grosso e da Baixada Cuiabana1, Nossa
Senhora do Livramento formou-se a partir da exploração do ouro e da força do trabalho
de negros/as escravizados/as, que sob condições insalubres pagavam com a vida pelo
enriquecimento dos senhores/malfeitores. A região da Baixada teve e ainda tem intensa
atividade garimpeira e não por acaso também é a região do estado com maior
concentração de comunidades remanescentes de quilombo, conforme demonstrado no
Mapeamento Social (Figura 01) (SILVA, 2011, p.93).
É notável que a colonização de Mato Grosso ocorreu acompanhada de maus tratos
1 A região da Baixada Cuiabana foi colonizada no séc. XVIII com a descoberta do ouro em Cuiabá. É formado por 13 municípios: Acorizal, Rosário Oeste, Cuiabá, Jangada, Nobre, Nossa Senhora do Livramento, Nova Brasilândia, Chapada dos Guimarães, Santo Antônio de Leverger, Planalto da Serra, Várzea Grande, Poconé e Barão de Melgaço (GARBIN., 2006).
30
e de mortes de negros/as e indígenas, e ainda hoje o estado preserva forte as
características dos ciclos de exploração do Brasil colonial, expoente do agronegócio,
persiste em invisibilizar inúmeros grupos sociais (SILVA, 2011) e consequentemente gera
um complexo quadro de conflitos socioambientais (JABER-SILVA, 2012).
31
Figura 1: Mapa das Comunidades Quilombolas do estado de Mato Grosso, 2011. Fonte: R. SILVA; M. SATO (2011).
32
Dentre as comunidades quilombolas de Mato Grosso, a que nos dedicamos a
pesquisar, têm vivenciado desde 1889 conflitos em função da expropriação de suas
terras, da omissão e ineficiência do estado burocrático. O GPEA, grupo do qual somos
parte desde 2006, tem acompanhado a história de luta destes/as quilombolas, e nestes
anos de parceria tem realizado projetos de pesquisa e extensão, com posicionamento
político, comprometido com as causas deste grupo.
Ressaltamos que em Mato Grosso nenhuma comunidade quilombola recebeu o
título definitivo da terra, e Mata Cavalo é a comunidade que está com o processo mais
adiantado (BRASIL, 2015). Destarte, pesquisar este território e produzir conhecimento
sobre o atual cenário dos conflitos socioambientais e táticas de luta, além de contribuir
para a visibilidade da comunidade, também poderá auxiliar na organização da luta pelo
território.
1.1 Quilombo Mata Cavalo: Terra de Luta
Em 1751, José Paes Falcão, bandeirante paulista, recebeu de Antônio Rolim de
Moura, capitão da capitania de Mato Grosso, a concessão de uma área de mata banhada
pelos córregos: Mutuca, Estiva e Mata Cavalo. Denominada Sesmaria Boa Vida Mata
Cavalo, formada a partir da descoberta de ouro e com uso de mão de obra escrava, essa
região era muito valorizada (MURARO-SILVA, 2003; SIMIONE, 2008; CAMPOS, 2010).
Em 1772 a sesmaria foi vendida para Antônio Roiz de Siqueira, que a deixou de
herança para seu filho Antônio Xavier de Siqueira, que por meio de testamento dividiu a
sesmaria em duas, Sesmaria Rondon e Sesmaria Mata Cavalo, usando como limite o
Córrego de Mata Cavalo (SIMIONE, 2008).
Posteriormente a Sesmaria Mata Cavalo pertenceu a Dona Custódia de Arruda e
Silva, indo para leilão público em 1850 em função de dívida que seu esposo havia
contraído. Nessa ocasião, Ricardo José Alves Bastos arrematou a terra (SIMIONE, 2008).
Em 1875, Ricardo Bastos registrou um testamento declarando: “deixo todos os meus
escravos para servirem a minha mulher durante a sua vida e por seu falecimento gozarem
de plena liberdade como se de ventre livre2 nascesse” (Testamento Ricardo José Alves
2 Em setembro de 1871, entrou em vigor no Brasil a Lei do Ventre Livre, que considerava livre todos/as os/as
filhos/as de escravos/as nascidos a partir daquela data.
33
Bastos fls.17 e 17 v. 1875) (MANFRINATE, 2011, p.51, 52).
Após a morte de Ricardo Bastos os/as escravos/as continuaram morando na
sesmaria e servindo a Dona Ana da Silva (esposa de Ricardo Bastos), que por meio de
testamento doou para eles/elas parte das terras de Mata Cavalo. Os/as negros/as
libertos/as e seus descendentes cultivavam a terra e produziam praticamente tudo o que
era necessário para o sustento. O cultivo das roças, a criação de pequenos animais, a
biodiversidade de espécies e de ecossistemas possibilitavam que os/as ex-escravizados/as
e os/as seus/suas descendentes obtivessem quase todos os elementos necessários para
sua existência (BARROS, 2007, p.98).
Após a morte de Dona Ana da Silva Tavares (1989), os/as moradores/as foram
vítimas de vários grupos, que, sob a lógica capitalista, interessados no lucro que poderiam
obter com a exploração dessa terra, desrespeitaram, ameaçaram e expulsaram inúmeros
negros/as da Sesmaria. Desde então houve um forte e constante processo de
expropriação, com a participação de fazendeiros, garimpeiros e grileiros, legitimados por
políticas desenvolvimentistas.
A violência sofrida pelos/as ex-escravizados/as e seus/suas descendentes perpassa
um período de 125 anos, com três momentos marcados por “[...] violência extrema: a
década de 40 com Getúlio Vargas, a década de 70 com revalorização da terra e expansão
da fronteira agrícola, e a década de 90, quando eles reivindicam os direitos [...]”
(BARROS, 2007, p139), este último momento de violência extrema perdurou até 2011,
período marcado por constantes despejos, violências físicas e ameaças de morte. A partir
de 2011, em função da liminar judicial que resguarda aos quilombolas o direito de viver em
parte do território enquanto aguardam o final do processo de desapropriação dos
fazendeiros, os conflitos entre os/as moradores de Mata Cavalo e os expropriadores de
suas terras tornaram-se menos tensos com diminuição da violência física. Atualmente, as
maiores violências vivenciadas por este grupo acontecem em função da morosidade e
ineficiência do Poder Público, assunto que será desenvolvido no Capítulo 4.
O governo de Getúlio Vargas manteve a lógica colonial e imperial de ocupar os
ditos “espaços vazios”. Com a compreensão rasa do território brasileiro como espaço
homogêneo e de governança, Vargas contribuiu ainda mais para o ocultamento da
diversidade de identidades e de territórios da região central do Brasil. Incentivou a
arrancada do agronegócio no Centro Oeste e usou todos os métodos, inclusive o de
34
extermínio de povos indígenas, quilombolas e tantos outros, que ocupavam o que eles
chamavam de “vazio demográfico”. O seu projeto de integração nacional evidenciou sua
ideologia desenvolvimentista, que por sua vez muito contribuiu para aumentar a grilagem
e expropriação de terras em Mato Grosso; segundo ele
[...] o verdadeiro sentido de brasilidade é a marcha para oeste. No século XVIII, de lá jorrou a caudal de ouro que transbordou na Europa e fez da América o continente das cobiças e tentativas aventurosas. E lá teremos de ir buscar: os vales férteis e vastos, o produto das culturas variadas e fartas; das estradas de terra, o metal com que forjara os instrumentos da nossa defesa e de nosso progresso industrial (VARGAS, 1840, p. 3).
Para fortalecer o projeto de colonização, Getúlio aprovou, em 1941, as “Colônias
Agrícolas Nacionais”3 para incentivar colonos a ocupar os ditos “espaços vazios” e
praticar agricultura. A partir dessa época várias empresas colonizadoras (como, por
exemplo: SINOP, INDECO, COTRIGUAÇU, FELIZ, JURUENA) passaram a vender terras em
Mato Grosso, e o estado recebeu imigrantes principalmente de São Paulo, Rio Grande do
Sul e Paraná (GALVÃO, 2013).
Os custos sociais dessa expansão iniciada por Vargas agravaram-se na década de
70. Durante o governo militar, em função de vários programas4 e políticas de subsídios
agrícolas que intensificaram ainda mais a expropriação, os conflitos e a violência no
campo aumentaram. Neste período perdurava a ideia de que as terras de Mato Grosso
eram “[...] ‘espaços vazios’ sendo necessário abrir a fronteira [...] O discurso nacionalista
‘integrar para não entregar’ e a promessa de ‘terra sem homens para homens sem terra’
[...]” prevaleceu nesse período (JABER-SILVA, 2012, p.32).
Vítimas da política desenvolvimentista e de violentos processos de expropriação,
muitos/as moradores/as da Sesmaria Boa Vida Mata Cavalo foram expulsos/as, sendo
obrigados/as a migrar para outras áreas rurais, principalmente para as periferias das
cidades de Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Cáceres, Várzea Grande e Cuiabá.
Nestas últimas, através de projetos de assentamentos do governo interventor de Júlio
3 Decreto-Lei nº 3.059, de 14 de fevereiro de 1941. Dispõe sobre a criação de Colônias Agrícolas Nacionais. 4 Merecem destaque o Poloamazônia, que influenciou parte dos estados de Goiás, Tocantins e Mato Grosso; o Programa Especial de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso; o Prodregran; o Programa de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Araguaia–Tocantins (Prodiat), e o Polocentro. Todos esses programas tiveram forte influência local e regional, sobretudo na alocação de recursos e na instalação de infraestrutura fundamental para a consolidação da ocupação produtiva em terras de cerrado (PIRES, 2000, p.117).
35
Muller, muitos/as foram morar nos bairros Capão do Negro (que deu origem ao Cristo
Rei) e Ribeirão do Lipa (BARROS, 2007; CASTILHOS, 2011).
O ano 1996 é um marco histórico para comunidade, foi o início da “[...] mobilização
política em favor dos direitos de trabalhadores/as negros/as rurais do complexo Mata
Cavalo em relação ao acesso à terra” (SATO, 2010, p.14), e o retorno de vários/as
negros/as em comboio para Sesmaria (MANFRINATE, 2011; SATO et al., 2010; BARROS,
2007).
É nesse período que se consolida a identidade quilombola como forma de
fortalecer a luta. Mata Cavalo é um exemplo de quilombo contemporâneo em que os/as
negros/as passaram da condição de escravos para camponeses donos da terra, portanto,
não cabe a definição do Conselho Ultramarino de 1740, que define quilombo como local
de negros/as fugidos/as. Ao contrário, os/as negros/as da Sesmaria receberam a terra
como herança, e mesmo sendo os/as legítimos/as donos/as, foram expulsos sobre o uso
de diversas formas de violência e ainda hoje lutam para conseguir o título definitivo de
um território que para além de herança é TERRA DE LUTA.
Em 2000, depois de muitos despejos, contínuas violações e muitas lutas os/as
quilombolas de Mata Cavalo tiveram seus direitos territoriais “reconhecidos”
simbolicamente pelo Estado burocrático, que, por meio da Fundação Cultural Palmares,
concedeu o certificado de comunidade remanescente de quilombo. Contudo, a
certificação é apenas um primeiro passo; resistentes, aguardam a desapropriação e
regularização fundiária para que possam ter legalmente o direito de uso do território. A
terra requerida é de aproximadamente 14.700 hectares (ha), localizada em área de
transição entre o Cerrado e o Pantanal, com paisagem típica de Cerrado.
As condições de vida desta população são precarizadas pela morosidade na
regularização fundiária e não cumprimento de políticas públicas. As casas de muitos/as
quilombolas são precárias e grande parte da população ainda mora em casas
improvisadas (Quadro de figuras 02). A demora do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) em conceder o título definitivo contribui significativamente
para a precariedade habitacional.
Mesmo com limitadas condições de existência, a vida no quilombo é permeada de
saberes populares que educam por meio da prática, das lutas cotidianas, da memória e da
oralidade. Há um rico processo educacional no existir no quilombo. Nesta dissertação,
36
tentaremos trazer um pouco da boniteza que há na aliança entre a escola local e a
comunidade que tem fortalecido a resistência.
No próximo capítulo nos dedicaremos a apresentar alguns conceitos importantes
que sustentam epistemologicamente essa pesquisa. São conceitos, princípios, valores
que nos orientam a caminhada e adubam a terra.
A - Moradia improvisada, vista frontal. B- Moradia improvisada, vista lateral.
c - Moradia improvisada, vista frontal. D - Moradora fazendo doce no fogão improvisado. Quadro de figuras 02: Casas da Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, 2015. Fonte: Arquivo pessoal de Marcus Vinicius; Déborah Moreira; Nicolas Lyra, 2015.
38
Neste capítulo faremos uma breve apresentação do GPEA e do projeto em que
esta pesquisa está inscrita, e, posteriormente, abordaremos alguns conceitos
imprescindíveis para a compreensão da dissertação.
Reiteramos que essa pesquisa foi desenvolvida por nós enquanto componentes
do GPEA-UFMT e foi facilitada pelo Projeto de Extensão: Escolas Sustentáveis no
Quilombo de Mata Cavalo, iniciado em 2015. Optamos por escrever esta dissertação na
primeira pessoa do plural, por se tratar de uma pesquisa realizada com um coletivo
(GPEA), contando com a colaboração de várias pessoas, e por meio de muito diálogo
entre a mestranda e suas orientadoras.
O GPEA foi criado em 1996 pela artista, educadora e pesquisadora Michèle Sato,
com a proposta de transcender o isolamento comum que há nos grupos de pesquisa,
onde cada indivíduo realiza o seu estudo de maneira isolada. Ao contrário deste, o grupo
pesquisador é ser-coletivo, é promover o diálogo de saberes com envolvimento de
pesquisadoras/es de diferentes áreas em um mesmo projeto, é pesquisar juntas/os, é ir
para o campo em grupo, e é também compreender a importância e a necessidade dos
momentos solitários de leitura e de redação de artigo, dissertação ou tese (SATO, 2011).
Para o Grupo, diálogo “[...] além da dimensão pedagógica, é pressuposto
epistemo-praxiológico [...]” (SATO; SENRA, 2009, p.140), característica agregadora que
enriquece as atividades desenvolvidas pelos integrantes de diversas áreas do
conhecimento (história, geografia, biologia, pedagogia, psicologia, publicidade, música,
arte, jornalismo), sendo fundamental para a existência de um coletivo que valoriza outras
aprendizagens e conhecimentos além daqueles construídos pela academia.
A educação ambiental assumida pelo Grupo não é neutra, pressupõe o mundo em
plena construção e longe da hierarquização do conhecimento apregoada pela
modernidade e sua ciência neutra que, muitas vezes, oprime e deslegitima outras
racionalidades, entende os diferentes saberes como rizomáticos (SATO; SENRA, 2009,
p.143; DELEUZE; GUATTARI5, 1995, p.10), a pesquisa está alicerçada, essencialmente, na
Fenomenologia6e na Sociopoética, primando por uma relação de horizontalidade entre
5 Para Deleuze e Guattari (1995), seis princípios regem o rizoma: princípio de conexão; princípio de heterogeneidade; princípio de multiplicidade; princípio de ruptura a-significante; princípio de cartografia; princípio de decalcomania. 6 Sato recomenda o filme japonês Rashomon (1950), escrito e dirigido por Akira Kurosawa para ajudar na reflexão sobre a fenomenologia, “Rashomon, consiste no assassinato de um samurai que traz a rede de
39
o/a pesquisador/a e os sujeitos da pesquisa.
Em outras palavras, visa a formação de um grupo pesquisador que não privilegie somente a racionalidade, mas que acolha os sentimentos, a subjetividade e a afetividade na construção e produção do saber. No tecer CONceitos com aFETOS, os CONFETOS ousam conjugar o verbo amar entre ciências e arte, sem temer as possíveis críticas que daí possam advir (SATO; SENRA, 2009, p.140).
Muitos integrantes do GPEA possuem a preocupação de aliar produção acadêmica
(episteme) e militância (práxis) para a construção de uma proposta de sociedade menos
desigual, mais justa, e por uma ética que considere as diferentes formas de vida sem
hierarquias (axiologia), sendo que o mais importante não é simplesmente o resultado,
mas as aprendizagens que a caminhada encerra (SATO, 2011):
Conjugando sabedoria com táticas de luta, o controle social é um exercício cidadão na pedagogia participativa do GPEA. Uma mobilização social é uma ecologia de resistência contra o produto instituído a favor da pequena elite que mantém o status quo. É um processo instituinte da educação emergente contra as boaventurianas “sociologias das ausências” e que demarca o perfil de uma educação ambiental política e não-neutra (SATO; SENRA, 2009, p.143).
Com pesquisas realizadas nos três biomas de Mato Grosso: Cerrado, Pantanal e
Amazônia, “[...] a cultura é a esteira que alicerça a Educação Ambiental [...]” na qual o
Grupo se inscreve (SATO; SENRA, 2009, p.140), articulando nos projetos: formação,
extensão e pesquisa.
Nos trabalhos com as populações rurais, as escolas locais têm sido um importante
espaço de atuação do Grupo, pois em muitos locais estas se caracterizam como espaços
de mobilização e articulação dos grupos sociais. Em conjunto com a comunidade e por
meio da educação ambiental e educação popular, o GPEA tem construído experiências
pedagógicas sustentáveis com enorme potencial educativo, rompendo com a tradição
educacional de não valorizar o conhecimento popular. Exemplo disso foi o projeto
realizado em 2012/2013, no Pantanal, em São Pedro de Joselândia, distrito de Barão de
intrigas, suspense e 5 visões diferentes do homicídio do samurai: de sua mulher, de um bandido, de um outro samurai, do lenhador e do próprio morto que se comunica espiritualmente. São 5 janelas que testemunham a morte de modos próprios, nas experimentações fenomenológicas das existências de cada qual, sem o estabelecimento de uma síntese ou de uma única verdade. [...]” (SATO, 2016. p.22).
40
Melgaço, que culminou com a elaboração de quatro projetos educativos7que agregaram
saber local, conhecimento científico e sustentabilidade. Outro exemplo é o projeto que
vem sendo desenvolvido na Comunidade Quilombola de Mata Cavalo, que será abordado
adiante com mais detalhes.
Esclarecemos que estes dois projetos têm raízes no Processo Formativo Escolas
Sustentáveis, que pensa a unidade escolar como espaço educador sustentável8 por meio
de três dimensões conectadas: espaço, currículo e gestão (TRAJBER; SATO, 2010, p.72). A
proposta é pensar o espaço da escola em “[...] articulação com o currículo, de acordo
com as premissas da sustentabilidade socioambiental [...]” (TRAJBER; SATO, 2010, p.72),
envolvendo em uma mesma ciranda estudantes, professores/as, funcionários/as da
escola, gestores/as e comunidade do entorno.
Nesta concepção a escola é tida como “[...] uma espiral de possibilidades e
descobertas, com proposta de aprendizagem circular, que não se fecha e permanece
inacabada na incompletude de avançar e recuar; de ensinar e aprender [...]” (TRAJBER;
SATO, 2010, p.72). A conexão das dimensões Currículo, Espaço e Gestão são
imprescindíveis para que a proposta de Escolas Sustentáveis se concretize, da mesma
maneira que o envolvimento da comunidade do entorno vem agregar significado aos
projetos desenvolvidos no âmbito desta proposta, por meio da valorização da história
local e do conhecimento popular, de forma que promova aprendizagem significativa
através de um currículo fenomenológico, com conteúdo social e não individualista, que é
tão comum na tradição escolar (Figura 03).
7 Link para o vídeo sobre o projeto desenvolvido pelo GPEA junto com a comunidade de São Pedro de Joselândia na E. E. Prof.ª Maria Silvina Peixoto de Moura. Vídeo completo: <https://www.youtube.com/watch?v=Lo2oUWBBItE>. Versão curta: <https://www.youtube.com/watch?v=balhE8NmMm8>. 8 Espaços educadores sustentáveis são aqueles que têm a intencionalidade pedagógica de se constituir em referências concretas de sustentabilidade socioambiental. Isto é, são espaços que mantêm uma relação equilibrada com o meio ambiente; compensam seus impactos com o desenvolvimento de tecnologias apropriadas, permitindo assim, qualidade de vida para as gerações presentes e futuras (TRAJBER; SATO, 2010, p.71).
41
Figura 03: Dimensões da proposta de Escola Sustentável. Fonte: CGEA/MEC9
As Escolas Sustentáveis, ao contrário de outras propostas governamentais, não é
um produto pronto e imposto de maneira hierárquica, ela representa um caminho
possível para construção de uma nova escola, partindo da realidade local e por meio do
diálogo entre conhecimento escolarizado e não escolarizado, para que o aprendizado
tenha sentido e significado.
A instituição de ensino é pensada como “incubadora de mudanças” e a transição
de uma escola comum para a sustentável é possível por meio da implementação de
Projetos Ambientais Escolares e Comunitários (PAEC)10 construídos a partir das três
dimensões (gestão, espaço e currículo) conectadas. Sendo assim, é uma provocação ao
isolamento das escolas, que, fechadas em um saber descontextualizado do cotidiano
promovem uma educação bancária. Com a intencionalidade de contribuir para o
entrelaçamento dos saberes por meio do diálogo e da comunhão entre escola e
9 Imagem retirada do blog do GPEA, disponível em: <http://gpeaufmt.blogspot.com.br/p/escolas-
sustentaveis.html>. Acesso em: 13 out. 2016. 10 A construção de Projeto Ambiental Escolar Comunitário é uma proposta que nasce no bojo do Projeto de
Educação Ambiental (PrEA), em 2004. O PrEA é parte do Plano Estadual de Educação, da Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (SEDUC), elaborado com a consultoria de Michèle Sato e “concebido nos princípios da inclusão social, justiça ambiental, respeito ao ensino público e ao bem comum” (MATO GROSSO, 2004, p.9).
42
comunidade, o PAEC também é uma forma de valorizar e unir os conhecimentos
populares e acadêmicos (MANSILLA; SATO, 2009).
A construção de PAEC tem o grande potencial de integrar Escola e Comunidade,
visto que essa proposta nasce do reconhecimento de que há também ricos processos
educativos fora das instituições de ensino. Promover a aliança dos diferentes saberes
possibilita a construção de um currículo da vida, que é uma das formas de tornar a
aprendizagem significativa (MANSILLA; SATO, 2009; TRAJBER; SATO, 2010). Nesse
sentido, para que o PAEC tenha significado para a comunidade é imprescindível que ele
“guarde” os saberes do povo e que represente o desejo coletivo, pois
[...] não basta criar um novo conhecimento, é preciso que se reconheça nele. De nada valerá inventar alternativas de realização pessoal e coletiva, se elas não são apropriáveis por aqueles a quem se destinam (SANTOS, 1994).
Assim, inspirados/as na concepção e nos princípios de Escolas Sustentáveis
(TRAJBER; SATO, 2010), pesquisadoras/es do GPEA desenvolvem, desde agosto de 2015,
com a comunidade quilombola o projeto: Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata
Cavalo11. A participação da mestranda neste projeto foi muito importante para o
desenvolvimento da presente pesquisa, dada essa relevância, no capítulo 3 daremos
destaque ao percurso metodológico, abordando alguns aspectos do projeto.
Nas páginas iniciais deste capítulo apresentamos um pouco do GPEA e da
concepção de Escolas Sustentáveis na qual o grupo tem se inspirado para desenvolver os
projetos nas escolas das comunidades rurais. Agora, em função da multiplicidade de
correntes e concepções que compõem o campo da EA (SAUVÉ, 2005), apresentaremos a
perspectiva na qual nos inserimos.
2.1 Nas esteiras da educação ambiental
No atual sistema econômico, os componentes abióticos e bióticos foram
monetizados, transformados em recursos, e sobre essa lógica exploratória avolumam-se
11 O projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo contou com a parceria do Instituto Caracol e Financiamento da WWF. Link para assistir ao vídeo sobre o projeto: <https://www.youtube.com/watch?v=lYmUbnn_LSQ&t=10s>.
43
os dilemas ambientais que, por sua vez, possuem forte ligação com exclusão social,
sendo urgente relacionar essas injustiças com as questões de direitos humanos
(COSENZA; KASSIADOU; SÁNCHEZ, 2015). As demandas por bens naturais e serviços
ambientais são pensadas apenas do ponto de vista do capital, que tende a esvaziar o
debate político das questões, excluindo das pautas os grupos humanos que vivem nestes
ambientes e colocando seus interesses como subjacentes aos da elite econômica. Os
entusiastas deste modelo buscam o desenvolvimento sustentável sem alterar os padrões
de produção/consumo (SATO, 2008).
Ao contrário dos que endossam o desenvolvimento sustentável e a concepção
tradicional da EA, coadunamos com Sato no entendimento de que
[...] a sustentabilidade jamais poderá ser representada por um conceito hegemônico, porque as realidades não são iguais. O corpo instituído pela educação ambiental não é uma patologia do capitalismo e visa a construir um ser sensível, que se adensa na polissemia de sentidos, ainda que esta seja uma tarefa de Sísifo e que, mesmo empurrando a pedra com tanta expectativa, sucumbamos à ação gravitacional na inevitável metáfora dos poderes globais. Apesar disso, um fio de esperança surge aos que ainda acreditam na construção de sociedades sustentáveis em vez de
crer no desenvolvimento sustentável (SATO, 2008, p.5).
E com este fio de esperança, sem acreditar em modelos de sociedade e receitas
prontas, a EA (SATO, 2001; SATO, 2008; SATO; PASSOS, 2011; SATO, 2013; SATO, 2016) é
uma possibilidade dos seres humanos (EU), enquanto seres inconclusos re-aprenderem a
se colocar no mundo, de maneira que aprendam a respeitar as diferentes formas de vida,
as diversas identidades e modos de viver dos grupos em seus territórios (KAWAHARA,
2015), que na lógica capitalista de exploração dos “recursos” são invisibilizados (OUTRO)
(SILVA, 2011), estabelecendo, deste modo, outra relação com o ambiente (MUNDO). É
preciso que as dimensões Indivíduo, Sociedade e Natureza sejam re-conectadas.
A EA, inspirada na Fenomenologia, nos ajuda a compreender que para além de
uma mudança de atitude centrada no Eu é necessário desenvolver o espírito de
comunidade e respeito ao Outro, com a preocupação e o cuidado com os diversos
componentes que formam o Mundo (SATO, 2001; SATO; PASSOS, 2002; PASSOS; SATO,
2002; SENRA; SATO, 2007; SATO; PASSOS, 2009; SILVA; JABER-SILVA; SATO, 2010; SATO,
2011). E neste caso a pedagogia não pode ser conservadora ou tradicional, mas a da
44
esperança e da amorosidade, capaz de promover a reconciliação dos seres humanos
entre si e com as coisas; mas também a pedagogia do oprimido tendo a educação como
prática de liberdade (FREIRE, 1987) para fortalecer nos excluídos pelo sistema econômico
a resistência contra esse modelo homogeneizante, que desrespeita toda lógica que não
seja a da financeirização da terra e dos componentes naturais, responsável pela
degradação social e ambiental.
Entre tantas vertentes relevantes sustentadas por arcabouços conceituais e
práticas consistentes, damos relevo ao caráter político da educação ambiental e nos
posicionamos contra o desenvolvimento hegemônico, antropocêntrico e meritocrata,
que polui ecossistemas, devasta paisagens naturais, e expulsam pessoas do campo,
formando nas periferias das cidades verdadeiras zonas de sacrifício humano.
As pesquisadoras compreendem que natureza e cultura são dimensões
inseparáveis, e nas lutas ambientalistas incluem-se também a luta contra as injustiças do
sistema econômico desigual, que recai principalmente sobre as populações negras, os
povos indígenas e os pobres; à medida que optamos pela vida e pelos “esfarrapados do
mundo” a educação popular vem agregar significados às experiências de pesquisa e
militância em EA. Por isso, propomos a pensar e sustentar a educação ambiental popular.
A educação popular é entendida aqui como:
O esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica. [...] esse esforço não se esquece, que é preciso poder, é preciso transformar essa organização de poder burguês que está aí, para que se possa fazer uma escola de outro jeito. [...] Há uma estreita relação entre escola e vida política (FREIRE; NOGUEIRA, 1993, p. 19).
Cientes de que as resistências ocorrem nos territórios onde os grupos
vulnerabilizados resistem e afirmam os seus modos de vida, é nesses espaços que nós,
educadoras ambientais apropriadas dos sentidos da educação popular de Paulo Freire,
vamos dialogar e nos educarmos coletivamente, com entendimento de que “ninguém
liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens [e as mulheres] se libertam em
comunhão” e mediatizados pelo mundo (FREIRE, 1987, p.29). Brandão colabora com esta
perspectiva afirmando que
[...] ninguém ensina ninguém, porque o aprender é sempre um processo e
45
é uma aventura interior e pessoal. Mas é verdade também que ninguém se educa sozinho, pois o que eu aprendo ao ler ou ao ouvir, provém de saberes e sentidos de outras pessoas. Chega a mim através de trocas, de reciprocidades, de interações com outras pessoas (BRANDÃO, 2005, p. 86,87).
Daí decorre a relevância de promover diálogos e processos educativos em EA
junto aos grupos sociais que fazem as resistências. Essas ações potencializam a EA por
meio da partilha de saberes socioambientais que revelam muito das desigualdades e
injustiças ambientais, a reflexão sobre o cotidiano é base para elaboração de novos
saberes (CARDOSO, 2012, p. 116). Com a participação da escola e da comunidade, a
reflexão crítica sobre a realidade e os processos de opressão pode oferecer caminhos
para organizar ações coletivas que fortaleçam as causas comunitárias destes grupos.
Nessa linha, nossa pesquisa está alicerçada nos princípios da educação ambiental e
da educação popular, ou seja, nos princípios da Educação Ambiental Popular, que
valoriza a identidade social do grupo, não se apega a verdades absolutas e reconhece os
diferentes saberes sem hierarquias, unindo política e educação progressista no diálogo
sobre cultura e ambiente na busca por justiça ambiental.
2.2 “Outra é a nossa terra”: Conflitos socioambientais e justiça ambiental
Não podemos admitir que seja natural e justa a concentração de terras nas mãos
da elite latifundiária que tem promovido violações de Direitos Humanos e da Terra, e
agravado a situação de vulnerabilidade dos grupos socialmente menos favorecidos, como
escreveu Dom Pedro Casaldáliga: “Outra é a nossa terra”.
Historicamente, os grupos sociais cujo modo de vida tem profunda relação com o
ambiente circundante vivem em situação de tensão em função de um sistema que
transforma tudo em mercadoria: terra, água e biodiversidade. Essa lógica moderna
monoculturalista intensifica as situações de injustiça ambiental, ameaça culturas e
existências de diversos grupos, colocando em situação de vulnerabilidade socioambiental
grande quantidade de pessoas que na disputa por seus territórios lutam para poder
existir (STORTTI; MENEZES; SÁNCHEZ, 2014).
46
A colonização da América, acompanhada da colonialidade do saber,12 trouxe
consequências extremamente perversas na medida em que o sistema capitalista encontra
na lógica moderna o substrato para o sucesso, tem-se aí a naturalização da dominação
europeia e subjugação das “raças” não brancas. A partir de então, a população de todo
mundo foi classificada em identidades raciais, a “[...] cor da pele foi definida como marca
‘racial’ diferencial mais significativa [...]” (QUIJANO, 2005, p.107).
Além da divisão do mundo em superiores/europeu e inferiores/não-europeu, “[...]
os territórios e as organizações políticas de base territorial também foram classificados
segundo o lugar que das raças e suas respectivas cores [...]”, isso facilitou a naturalização
do controle dos territórios, dos recursos e dos povos, deste modo, a classificação social
do mundo capitalista iniciou na América e foi mundialmente imposta (QUIJANO, 2010,
p.108).
Esse sistema capitalista “[...] assentado na exploração da força de trabalho e no
desrespeito aos diferentes modos de produção de vida, é a força motriz dos conflitos
socioambientais [...]” (JABER-SILVA, 2012, p.111), acompanhado da degradação humana,
sobre sua lógica desenvolvimentista, degrada-se também toda biosfera, as plantas e os
animais são domesticados e modificados geneticamente, os ecossistemas transformados;
as florestas, derrubadas; as terras, aradas; os rios, represados; as paisagens, destruídas
para plantar desertos verdes; e os climas, modificados, atividade humanas que degradam
e poluem terra, água e ar (HARVEY, 2011, p.152).
Em consequência desse desenvolvimento iníquo que leva à “[...] expropriação,
exploração e acumulação privada vampiresca do suor e sangue de todo outro [...]”
(PASSOS, 2015, p.3), ocorre o movimento forçado dos grupos vulneráveis. Haesbaert
(2009) entende como próprio da reprodução do capital, alimentar constantemente o
movimento, seja pelos “[...] processos de acumulação, com a aceleração do ciclo
produtivo [...], seja pela dinâmica de exclusão que joga uma massa enorme de pessoas
em circuito de mobilidade compulsória na luta pela sobrevivência cotidiana.”
12 “Para além do legado de desigualdade e injustiça sociais profundos do colonialismo e do imperialismo, o colonialismo do saber é um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias. Como nos disse Walter Mignolo, o fato de os gregos terem inventado o pensamento filosófico, não quer dizer que tenham inventado o Pensamento. O pensamento está em todos os lugares onde os diferentes povos e suas culturas se desenvolveram e, assim, são múltiplas as epistemes com seus muitos mundos de vida. É, assim, uma diversidade epistêmica que comporta todo o patrimônio da humanidade acerca da vida, das águas, da terra, do fogo, do ar,” e do ser humano (PORTO-GONÇALVES, 2005, p.3).
47
(HAESBAERT, 2009, p.22).
A busca por aumentar o capital13 somada à herança da colonialidade, marcada pela
dominação étnica e racial, gera disputas e agrava os conflitos, colocando em condições
desumanas os grupos historicamente marginalizados (OLIVEIRA; SÁNCHEZ, 2016).
Destarte, entendemos que os conflitos socioambientais, longe de serem meros
problemas de ordem econômica, são problemas políticos e de poder. Os conflitos
envolvem diferentes grupos sociais em disputas material e/ou simbólica, ocorrendo em
função dos diferentes modos de “[...] apropriação, uso e significação do território, tendo
origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de
apropriação do meio que desenvolvem ameaçadas por impactos indesejáveis”
(ACSERALD, 2004, p.26).
Nas situações de conflitos em que impera o “[...] des-envolvimento capitalista, a
noção de progresso deixa de envolver a sociedade e o ambiente, focando apenas na
economia [...]” (SATO, 2013, p.11); fato evidenciado no Mapa dos conflitos
socioambientais de Mato Grosso (JABER-SILVA, 2012), onde a autora identificou 194
pontos de ocorrência de conflitos, com mais de 300 causas propulsoras, além de locais
em que existem ameaças de morte e trabalho escravo. As narrativas expressas nesse
mapeamento apontam a compreensão de que os conflitos são expressões do modelo de
des-envolvimento (SATO, 2013) que levam a destruição dos ecossistemas e ao
aniquilamento de formas singulares de vidas. Esse modelo hegemônico impõe os danos e
riscos resultantes de suas atividades econômicas aos grupos historicamente
inferiorizados como negros e indígenas (PACHECO; FAUSTINO, 2013, p.101).
Para Carneiro (2011, s/p.) “[...] se algumas pessoas são consolidadas no
imaginário social como portadoras de humanidade incompleta, torna-se natural que não
participem, igualmente, do gozo pleno de direitos humanos.” Destarte para pensar os
conflitos socioambientais e injustiças é necessário considerar o processo histórico de
colonização que deu origem a essa sociedade eurocêntrica e racista. Assim sendo,
entendemos o racismo como:
13 “O capital é o sangue que flui através do corpo político de todas as sociedades que chamamos de
capitalistas, espalhando-se, às vezes como um filete e outras vezes como uma inundação [...]” (HARVEY, 2011, p.7)
48
Ideologia e prática social baseada na hierarquização dos indivíduos e grupos sociais mediante sua racialização, que resulta em discriminação das raças consideradas inferiores. No processo histórico, especialmente de dominação dos povos pelos europeus desde o século XV, os indivíduos e grupos ditos de raça branca foram considerados e tratados como superiores. E os modelos de desenvolvimento geradores de conflitos e das injustiças não se eximem desses processos históricos. (PACHECO; FAUSTINO, 2013, p. 82).
Neste ponto, relembramos que os sujeitos da presente pesquisa são descendentes
de negras/negros escravizadas/os e lutam até os dias atuais pelas terras que pertenciam
aos seus ancestrais. Mesmo com dispositivos legais que lhes assegurem o direito ao
território, suas terras ainda estão sob a posse de fazendeiros que para expropriá-los e
expulsá-los do território praticaram diversas ações violentas14. Violência semelhante tem
sido vivenciada pela população Afrocolombiana do Pacífico Sul, que na luta pelo
território, tem enfrentado conflitos gerados principalmente em função da política
capitalista neoliberal, vivenciando um “etnocidio-genocida” abandonadas pelo Estado
que tenta invisibilizá-los e mascarar o alarmante número de pessoas “desterradas” em
função desta política (ARBOLEDA, 2015).
No Caso de Mata Cavalo, ousamos afirmar que as violações de direitos que as/os
quilombolas vivenciam desde 1890, como descrito no Capítulo I, configura um complexo
quadro de racismo, onde somam-se o RACISMO pela cor da pele, o RACISMO
AMBIENTAL por serem negros e terem baixo poder econômico e o RACISMO
INSTITUCIONAL que acontece com a omissão e conivência do município de Nossa
Senhora do Livramento, do estado de Mato de Grosso, e do Estado brasileiro, como
discutiremos no capítulo IV.
Esse grupo étnico-racial, cuja lutaç está fortemente relacionada com a questão
territorial, sofre com a ineficiência do governo brasileiro em regularizar a situação
fundiária e com os impactos ambientais resultantes principalmente das atividades de
fazendeiros e garimpeiros que degradaram e ainda degradam os ecossistemas. Por
entendermos que as injustiças sociais e ambientais recaem de forma desproporcional 14 Ameaça de morte, envenenamento dos córregos e rios que abastecia as/os negras/os de Mata Cavalo,
destruição das casas e roçados, destruição dos sítios com reminiscências quilombola; destruição do cemitério antigo com uso de trator, cerceamento do direito de ir e vir, são algumas das violências e violações vivenciadas pelas/pelos quilombolas para permanecer no território que pertencia aos seus antepassados (BARROS, 2007; CASTILHO; 2011; MANFRINATE, 2011; JABER-SILVA, 2012).
49
sobre os quilombolas de Mata Cavalo – por se tratar de uma população majoritariamente
negra e pobre e tendo em vista que a negação do racismo conduz à perpetuação da
situação de injustiça – adotaremos no trabalho o conceito de RACISMO AMBIENTAL na
perspectiva de Pacheco (2008) devido a sua dimensão política, que alia a luta contra a
desigualdade social à ambientalista pela construção de uma sociedade equânime.
O conceito de racismo ambiental surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 70. A
partir da realização de pesquisas que demonstraram a presença de populações negras em
“[...] áreas que seriam escolhidas para o estabelecimento de indústrias químicas
altamente poluentes ou para implantação de depósitos de rejeitos e de lixo
contaminado” (PORTO; PACHECO; LEROY, 2013, p.14) e tendo em vista a realidade
vivenciada pela população pobre e dos diferentes grupos étnicos, no final dos anos 80,
este termo passa a abarcar, além do componente racial, o étnico e de classe. Neste
contexto nasce o conceito de justiça ambiental, que se refere “[...] ao tratamento justo e
ao envolvimento pleno de todos os grupos sociais, independente de sua origem ou renda,
nas decisões sobre o acesso, ocupação e uso dos bens naturais em seus territórios”
(Ibidem, p.19).
A Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) foi lançada oficialmente em 2002 no II
Fórum Social Mundial em Porto Alegre, sendo resultado do Colóquio Internacional sobre
Justiça ambiental, Trabalho e Cidadania, realizado em Niterói (2001) pela Universidade
Federal Fluminense. A Rede constitui-se como “[...] fórum de discussões, denúncias,
mobilizações estratégicas e articulações políticas que tem como objetivo formular
alternativas e potencializar ações de resistência desenvolvidas por seus membros”
(PORTO; PACHECO; LEROY, 2013, p.19). Atualmente 98 entidades partilham de seus
princípios e assinam seu manifesto, dentre elas está o GPEA.
Apresentados alguns princípios e conceitos que direcionam esta pesquisa,
dissertaremos no próximo capítulo sobre os caminhos metodológicos que percorremos
para mapear os conflitos socioambientais vivenciados pelos/as quilombolas de Mata
Cavalo e para compreendermos o papel da escola na luta pelo território.
51
Num mundo desigual, no qual a violência contra os grupos sociais vulneráveis é
constante e naturalizada, fiz a opção por pesquisar os conflitos socioambientais
vivenciados por uma comunidade negra que sofre com a negação de diversos direitos e
garantias fundamentais. Importa dizer que não tenho a inocência de acreditar que um
trabalho científico transforma situações de opressão, mas creio na aliança entre pesquisa
e militância como um diálogo potencializador de transformações em um mundo que está
sendo (FREIRE, 2000, p.36) e que, portanto, pode ser mudado e inventado de outra
maneira.
Neste sentido, a boniteza de combinar amor e racionalidade na produção de vida e
de conhecimento, do qual nos fala Fals Borda em “Una sociologia sentipensante” (2009)
agregada à proposta do GPEA de tecer “Confetos” (SATO; SENRA, 2009) adubou o chão
para germinação esta dissertação.
Observamos que o sistema capitalista tenta esvaziar e despolitizar o debate
ambiental tratando os conflitos como transações econômicas. Mas, na verdade, estes se
configuram como um problema relacionado ao poder, já que surge em função dos
diferentes modos de apropriação dos bens naturais e significados que os seres humanos
atribuem a eles (ACSERALD, 2004; ACSERALD, 2013). Num país em que a lógica de
ocupação territorial busca homogeneizar as diferenças existentes entre os grupos sociais
e monetizar a terra e a biodiversidade, os territórios são arenas de múltiplos conflitos. O
estado de Mato Grosso é exemplo disto, visto que, desde o século XVIII tem sido palco de
sangrentas batalhas e de luta desigual entre a elite latifundiária e os povos que vêem a
terra como fonte de vida (SILVA, 2011; JABER, 2012).
A ideia de pesquisar a história de um grupo invisibilizado, pela perspectiva dos
conflitos socioambientais, nasceu com a leitura da tese: O Mapeamento dos Conflitos
Socioambientais de Mato Grosso: Denunciando Injustiças Ambientais e Anunciando Táticas
de Resistência, onde Jaber-Silva (2012) com “olhar de passarinho” nos oferece o retrato
do macrocosmo mato-grossense (Figura 04).
Diante deste cenário conflitante nos propomos olhar o microcosmo de uma das
seis comunidades que formam o Complexo Quilombola de Mata Cavalo. Escolhemos
pesquisar em Mata Cavalo de Baixo, por ser a comunidade onde se localiza a escola do
quilombo.
52
Figura 04: Mapa temático dos conflitos socioambientais do estado de Mato Grosso, 2012. Fonte: Jaber-Silva, 2012.
O complexo quilombola de Mata Cavalo, localizado na Zona Rural de Nossa
Senhora do Livramento, está distante aproximadamente 60 Km da capital. Situado em
área de transição entre o Cerrado e Pantanal, com rica biodiversidade e jazidas auríferas,
o território quilombola foi alvo da ganância de fazendeiros, grileiros e garimpeiros,
como descrito no Capítulo 1.
A história dos moradores do quilombo tem aspectos bonitos, como o da luta e da
resistência, mas é – sobretudo – marcada pela opressão e violação de diversos direitos.
Violências que o Estado burocrático incentivou por meio de políticas de ocupação dos
ditos “espaços vazios” e continua a legitimar com a morosidade em regularizar a situação
fundiária da terra quilombola.
Desejamos olhar em Mata Cavalo o feio da opressão, o caos dos impactos
socioambientais, e o belo da organização popular para resistir ao poder opressor;
53
queremos trazer o oculto dos conflitos socioambientais, dar visibilidade ao que tem sido
invisibilisado. Reiteramos que essa pesquisa não é neutra, escolhemos o que queremos
olhar e reconhecemos o valor da subjetividade e da intersubjetividade para a construção
deste trabalho, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema. Destarte, a Cartografia do
Imaginário (SATO, 2011) e o Mapa social (SILVA, 2011), ambas metodologias ancoradas na
fenomenologia, na sociopoética, e com forte influência Freiriana, SULearam e deram
suporte à nossa viagem investigativa.
A cartografia do imaginário (SATO, 2011) nos leva a perceber o quanto é excludente
a lógica cientificista que valoriza uma única racionalidade. Provoca-nos e dá licença para
fazer a pesquisa com amorosidade, paixão e arte, além de abrir o horizonte para o valor
da multirrefencialidade, tão importante para quem faz trabalhos em comunidades como
a quilombola. Todo o texto é um convite para unir objetividade e subjetividade no
trabalho acadêmico, pesquisa e militância, e para sonhar com o OUTRO. Foi com
inspiração na Cartografia do imaginário que esta pesquisa se constituiu para mestranda
uma “[...] viagem científica de aprendizagens singulares e infinitas [...]” (p. 4), com total
clareza do “[...] por que, contra quem e para quem fazemos essa viagem” (SATO, 2011,
p.5).
Nossa axiologia está alicerçada nos valores da Cartografia do Imaginário, onde a
autora nos convida a assumir a responsabilidade de cuidar de nosso jardim doméstico, e
por meio do diálogo com a teoria das 5 “peles” de Hundertwasser15 adota a metáfora do
“direito de janela e o dever de árvore, essencial [...]” para nós (SATO, 2011, p.6). Nas
palavras da autora:
Uma janela traz o mundo externo para o nosso interior, e dialeticamente, ela nos projeta ao exterior cintilando nossos sonhos. [...] Enxergamos a floresta de nossas janelas, distante em seu conjunto de paisagem externa. É o nosso direito do pensamento poético [...]. A árvore tem sentido imanente e transcendente: das raízes profundas ergue-se um tronco que se verticaliza pela terra, com fúria rebelde contra a lei da gravidade, [...]. Saímos da pele que envolve a casa com janelas para ingressar numa pele social de inquietação de um “mundo sendo” (FREIRE, 1992) e por isso, não mais meramente contemplativo. [...] errático em tentativas e descobertas, mas no coletivo de um mundo que possui várias janelas, [...] nossa capacidade de abrir as cortinas que nos
15 Artista, arquiteto e ecologista austríaco Friedensreich Hundertwasser (1928-2000), criador da teoria das cinco, disponível em:<https://peleswww.hundertwasser.com/skin>. Acesso em: 20 nov. 2015
54
envolvem para ouvir a voz de sangue oriundo de um mundo injusto que exige a nossa presença, que envolve o tecido solitário, porque tem como sonho íntimo a coragem de explodir em lutas coletivas (SATO, 2011, p.6 e 7).
Com esta provocação metafórica a autora nos instigou a ir além da produção de
conhecimento com rigor científico, despertou a importância do engajamento e da
militância por um mundo justo. Compreendemos que a pesquisa científica com grupos
sociais vulnerabilizados, para além da produção acadêmica, nos dá a possibilidade de
mudar e nos tornarmos pessoas mais humanizadas. Assim encontramos na cartografia do
imaginário o substrato do ato de pesquisar, e, para além de orientação, é uma
provocação para re-pensarmos a relação EU-OUTRO-MUNDO.
Por meio de linguagem poética, Sato (2011) se utiliza dos quatro elementos da
natureza com que Bachelard considerava sobre a aprendizagem, e amplia o nosso
horizonte sobre as possibilidades e os processos da pesquisa:
ÁGUA [formação] – a nossa constituição original, a gênese do desejo que dará as possibilidades de uma viagem científica; TERRA [deformação] – vencer os obstáculos epistemológicos, mesclando cenários, um “reaprender a aprender”, ainda que o processo seja dolorido; FOGO [transformação] – na combustão da chama, a mudança desejada, o processo de busca, de envolvimento e de engajamento; AR [reformação] – é o tempo do repouso para que um novo ciclo reinicie, a consideração geral da viagem, a memória, o encantamento e o reencantamento da pesquisa (SATO, 2011, p.6).
Dos quatro elementos da natureza, entendemos que o elemento TERRA é o que
melhor representa a comunidade pesquisada, elemento mote dos conflitos
socioambientais no complexo quilombola, nos inspirou na escolha dos nomes dos
capítulos desta dissertação.
Na práxis investigativa, a metodologia privilegiada para mapear os conflitos
socioambientais foi o Mapa Social (SILVA, 2011). Dentre as diversas metodologias usadas
na cartografia social esta “[...] não enfatiza tanto a geografia local, mas os aspectos
socioambientais por identidades autodenominadas [...]” (SILVA, 2011, p.45). Além da
autodefinição das identidades, o Mapa Social (SILVA, 2011), permite a participação de
diferentes grupos em um mesmo processo de mapeamento, podendo ser realizado por
55
meio de oficinas ou entrevistas. Essa metodologia, centrada nas autonarrativas dos
sujeitos, oferece um leque de possibilidades, servindo ao mapeamento de identidades,
dos conflitos socioambientais e das táticas de resistência (SILVA, 2011). O MAPA SOCIAL
(SILVA, 2011) possui um forte caráter político e nasceu do desejo de dar visibilidade ao
outro negado, de modo que “[...] tornou-se uma plataforma de luta na inclusão de
identidades em seus territórios [...]” (JABER-SILVA; SATO, 2012, p.11).
Silva (2011, p.48) destaca que por ser fruto de uma escolha, o mapeamento não
pode ser neutro, requer comprometimento com os grupos sociais vulneráveis,
posicionamento político e postura crítica das pesquisadoras para ouvir os grupos sociais
invisibilizados, dar audiência aos conflitos e compreender as identidades de resistência.
Aqui as identidades de resistência que, se fazem, coletivas são postas na concepção do filósofo Martin Buber da existência do Outro. Para Buber (2001) as identidades são delineadas nesse encontro com o Outro e, a alteridade essencial se instaura somente na relação Eu-Tu, para além da relação Eu-Isso (SILVA, 2011, p.46).
O Mapa Social possibilita que os sujeitos registrem seus modos de vida, suas lutas
e formas de organização, fortalecendo assim a identidade, “[...] narrar-se é também um
processo de construção identitária que revisita o pretérito ajustando a existência
presente [...]” (SILVA, 2011, p.46). Revisitar a memória por meio das narrativas é
fundamental para compreensão de como os impactos ambientais afetam o modo de vida
e geram conflitos. Assim sendo, essa metodologia busca ouvir os sujeitos locais e propõe
pensar a cartografia a partir das identidades coletivas, dando destaque à dimensão
cultural e aos aspectos socioambientais na busca por compreender as dimensões
dialógicas habitantes-hábitos-habitats (SILVA, 2011, p47).
As características desta metodologia, os valores ideológicos que alicerçaram a
proposta e o nosso desejo de valorizar as histórias, as narrativas, a cultura e a luta
quilombola pelo território justificam nossa escolha metodológica. O Mapa Social vem ao
encontro de nosso anseio de produzir um mapeamento com destaque para os aspectos
históricos e sócio-político, que possam auxiliar na compreensão da importância e
urgência da regularização fundiária: “À medida em que direitos são reivindicados em
termos espaciais, não estar no mapa tende a significar não ter provas da existência
territorial, de condições de posse de terras e acesso aos seus componentes naturais”
56
(CÁCERES, 2012, p.123). O mapeamento também oferecerá a toda comunidade e as
juventudes uma sistematização de aspectos sociais, político e ambientais reconhecidos
por eles.
Ao olharmos a história de ocupação das terras no Brasil percebemos claramente o
forte vínculo entre mapas e poder, “[...] os mapas, enquanto forma manipulada do saber
[...]” (HARLEY, 2009, p.2) contribuem desde a colonização para legitimar o latifúndio. A
comunidade quilombola de Mata Cavalo é exemplo de como os poderosos legitimados
pelo modelo latifundiário de ocupação da terra usaram o poder dos mapas para
“legalizar” o roubo das terras quilombola. Deste modo, o mapeamento do quilombo
feito COM e PELOS/AS os/as quilombolas é uma forma de fortalecer a territorialização e a
cultura.
O mapeamento participativo, em uma comunidade que desde 1889 luta pelo
território, como é o caso de Mata de Cavalo, vem fortalecer a resistência por meio do
debate político sobre a apropriação material e simbólica do território.
É imprescindível esclarecer que para usar a metodologia do Mapa Social contamos
com apoio, comprometimento e envolvimento de muitas pessoas, ressaltamos a
importância do GPEA, alicerçado na sociopoética, que tem como princípios a
transcendência do isolamento do/a pesquisador/a, valorizando o fazer pesquisa
coletivamente, onde contamos com o apoio e solidariedade do grupo também para ir a
campo. Este princípio foi fundamental para fazer o mapeamento participativo dos
conflitos socioambientais em Mata Cavalo.
O GPEA tem pesquisado em Mata Cavalo desde 2006, originando dissertações e
teses sobre o quilombo, tanto pelo viés da educação escolarizada quanto da educação
não escolarizada. Reiteramos que a realização do mapeamento participativo com os/as
quilombolas foi facilitado pela existência do projeto de extensão Escolas Sustentáveis no
Quilombo de Mata Cavalo, descrito a seguir.
57
3.1 Comunidade aprendente: diálogos para construção de escolas sustentáveis
Não é possível sonhar e realizar o sonho se não se comunga este sonho com as outras pessoas.
Paulo Freire
Em 2015, o GPEA, por meio de parceria com a organização não governamental
(ONG) Instituto Caracol (IC), obteve financiamento da ONG World Wide Found For Nature
(WWF) para realização do projeto: Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo. O
projeto tinha como objetivo conhecer a realidade escolar e debater a construção de um
espaço educador sustentável com a escola e a comunidade, culminando na construção de
Projetos Ambientais Escolares Comunitários (PAEC).
Em março deste mesmo ano, as/os pesquisadoras/es do Grupo reuniram-se com a
comunidade escolar e com moradoras/es do quilombo para apresentar e dialogar sobre a
proposta. A ideia era agregar em uma mesma ciranda escola e comunidade num processo
formativo sobre Educação Ambiental e Escolas Sustentáveis, baseado em diálogo e
contextualizado com a realidade; todas/os aceitaram com muito entusiasmo (Quadro de
figura 05).
Quadro de figuras 05: Reunião das/os pesquisadoras/es GPEA com a comunidade de Mata Cavalo, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015. Fonte: Arquivo do GPEA, 2015.
58
Embora o processo formativo em escolas sustentáveis não seja objeto deste
trabalho, minha participação e convivência com a comunidade durante a trajetória
formativa foi muito importante para estabelecer com a comunidade uma relação de
confiança, o que facilitou o desenvolvimento desta pesquisa. Portanto, apresentamos
neste tópico o nosso olhar sobre este projeto de extensão e como os necessários
diálogos sobre os conflitos socioambientais permearam o processo formativo.
Concretizado na Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, o projeto Escolas
Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, agrega as dimensões: ensino, pesquisa e
extensão, e tem sido uma bonita caminhada aprendente, com participação de
estudantes, educadoras/es, gestoras, funcionárias/os da escola, moradoras/es da
comunidade e integrantes do GPEA (professoras da UFMT, estudantes de graduação,
estudantes de mestrado e doutorado).
Com o objetivo de valorizar os processos educativos que ocorrem dentro e fora da
escola e promover o caráter político da educação, o projeto foi iniciado com o processo
formativo e teve como pressuposto o diálogo entre os saberes, com problematização da
realidade e a valorização da cultura local. Todo processo foi certificado com 90h, embora
a ciranda de encontros formativos tenha se dado muito além das horas certificadas.
Durante este período fomos para as atividades de campo sempre em grupo, o que
contribuiu de maneira significativa para a riqueza do processo.
Com a participação das comunidades escolar e do entorno, em um rico processo
de diálogo, de partilha, de trocas e de construção de saberes, formamos com o coletivo
uma grande comunidade aprendente (BRANDÃO, 2005). Por meio do conceito de
comunidade aprendente, Brandão ressalta que em todas as unidades de partilha da vida
vivemos situações pedagógicas, “em cada uma delas e da interação entre todas elas é
que ao longo de nossas vidas nós nos vemos às voltas com trocas de significados, de
saberes, de valores, de ideias e de técnicas” (2005, p.87, grifo nosso).
Ancorados nos pressupostos de Sato; Passos (2002; 2006) compreendemos que a
ciranda para a sustentabilidade decorre da compreensão da tríade fenomenológica EU-
OUTRO-MUNDO e CURRÍCULO-GESTÃO-ESPAÇO, como propõe a educação ambiental
que luta pela construção de sociedades sustentáveis e a proposta de Escolas
Sustentáveis.
Kassiadou; Sánchez (2013) nos convidam a refletir sobre a possibilidade de
59
aproximarem-se as discussões sobre escolas sustentáveis com o movimento por Justiça
Ambiental; cremos que essa aproximação é necessária para que os projetos
desenvolvidos na escola tenham significado, e ousamos dizer que vivenciamos isto com a
comunidade aprendente que se formou durante o processo formativo em Mata Cavalo.
Neste processo foram abordados os diferentes modos de vida dos seres humanos
e seus impactos sobre o ambiente, as relações que os indivíduos têm mantido com os
ecossistemas, bem como a importância do engajamento para resistir à opressão do
sistema capitalista, e a necessidade de um currículo que considere os saberes e fazeres da
população (EU-CURRÍCULO), com a problematização das questões socioambientais por
meio da cartografia local (OUTRO-ESPAÇO), partindo da história da comunidade para a
semeadura de esperanças que germine na forma de alternativas possíveis para
transformação (MUNDO-GESTÃO).
A comunidade aprendente formada COM e PELOS/AS estudantes (Ensino
Fundamental II, Ensino Médio e EJA), professoras/es, gestoras, funcionários/as da escola,
moradoras/es do quilombo e pesquisadoras/es do GPEA, partilharam momentos de ricos
diálogos, múltiplas aprendizagens e formação política; os encontros aconteceram de
agosto a novembro de 2015, com uma parte conceitual (com reuniões semanais de
agosto a outubro) e outra parte de aplicação de conceitos e execução do PAEC (com
encontros diários de segunda a sexta).
Os encontros foram animados por pesquisadoras/es do GPEA, com o cuidado de
trazer a perspectiva da construção histórica e social da realidade, conferindo um caráter
político ao processo, com entrelaçamento dos saberes da comunidade e da escola. As
temáticas dos encontros foram: Sustentabilidade Planetária e Educação Ambiental;
Mapeamento Social: Grupos Sociais e Conflitos Socioambientais; Projeto Político
Pedagógico (PPP) e Educação Ambiental; Protagonismo Juvenil; Com-vida e experiências
de Escolas Sustentáveis e Projetos Ambientais Escolar Comunitário (PAEC) (Figura 06).
60
Figura 06: Temas dialogados com a comunidade aprendente nos encontros formativos, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, 2015. Fonte: Pintura de Hundertwasser.
No primeiro encontro do processo formativo, duas pesquisadoras do Grupo
animaram o diálogo com o tema de Sustentabilidade Planetária e Escolas Sustentáveis,
estimulando os participantes a se enxergarem no mundo e refletirem sobre seus hábitos
(EU-CURRÍCULO). Ainda, perceber as relações que os seres humanos têm mantido com a
natureza, bem como, os impactos dos diferentes modos de vida sobre os ecossistemas.
No segundo encontro foram apresentados os resultados do Mapa Social (SILVA,
2011) e do Mapa dos Conflitos (JABER-SILVA, 2012) de Mato Grosso, atividade que
possibilitou aos quilombolas a visão do macrocosmo de um estado opressor que, muitas
vezes, tem lhes negado a efetivação de diversos direitos.
Neste encontro, os participantes formaram cinco grupos de trabalho (GT), e em
cada um desses GT refletiram sobre o processo histórico de Mata Cavalo e mapearam os
marcos da comunidade e os conflitos que têm vivenciado (OUTRO-ESPAÇO) (Anexo 1).
Com o entendimento de que os mapas são “[...] meio de imaginar, articular e estruturar o
mundo [...] e nunca imagens isentas de juízo de valor [...]” (HARLEY, 2009, p.2), buscamos
também, por meio desta atividade, junto com a comunidade aprendente, compreender a
61
força política dos mapas e a necessidade de incorporá-los enquanto instrumento de
poder na luta pelo território. Posteriormente os resultados foram socializados, atividade
que enriqueceu o diálogo e a reflexão sobre a cartografia do microcosmo (Quadro de
figuras 07).
A participação destas pesquisadoras no encontro de mapeamento contribuiu com
nossa reflexão sobre os conflitos socioambientais vivenciados em Mata Cavalo e nos
forneceu elementos importantes para “desenharmos” os procedimentos metodológicos
da pesquisa; e enquanto parte desta comunidade aprendente, nos sentimos à vontade
para incorporar os resultados deste mapeamento no capítulo 4 desta dissertação, uma
vez que, baseados nos princípios de grupo pesquisador, a pesquisa é construída
coletivamente e as informações podem ser partilhadas e ressignificadas pelo olhar dos/as
pesquisadores/as.
No terceiro encontro os participantes foram divididos em dois grupos, um com
educadoras/es, gestoras, funcionárias/os da escola e moradoras/es, e outro grupo, com
as/os estudantes. Com o primeiro grupo discutimos a importância de inserir a Educação
Ambiental no Projeto Político Pedagógico (PPP), refletindo sobre o caráter político da EA
e o seu potencial na valorização dos povos e dos territórios (MUNDO-GESTÃO).
62
A - Apresentação do Mapeamento Social de Mato Grosso. B - Estudantes, Professores/as e moradores/as da comunidade.
C. Grupo de trabalho fazendo o mapeamento local. D. Apresentação dos resultados do mapeamento local. Quadro de figuras 07: Encontro formativo, oficina de Mapa Social, Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo, Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, 2015. Fonte: Arquivo GPEA, 2015.
Nessa formação partimos da perspectiva de que o PPP é um importante “espaço”
da gestão democrática, pois traz orientações política e pedagógica para a prática
educacional (SANTIAGO, 1995), e se constitui o “[...] nicho privilegiado para discutir os
conceitos e as práticas pedagógicas [...]” (SENRA, SATO, OLIVEIRA, 2009, p.51), sendo um
valioso instrumento para que ação educativa não seja descolada da realidade local.
Considerando a especificidade da Comunidade Quilombola de Mata Cavalo, em
que cultura e natureza são dimensões inseparáveis, um PPP que traga a educação
ambiental como diretriz pedagógica tem o potencial de fortalecer a cultura e a luta
quilombola. Entendemos a educação ambiental na escola pode ser uma “[...] forma de
luta e de mudança nos espaços da escola, capaz de propiciar transformação e resistência”
(SENRA; SATO; OLIVEIRA, 2009, p.52).
No grupo formado pelas/os estudantes, o diálogo versou sobre a importância da
formação política e engajamento juvenil para fortalecer a luta e a resistência. Foi então
63
que as juventudes do quilombo denunciaram diversas situações em que têm sido vítimas
de racismo, principalmente quando saem do quilombo e quando recebem escolas de
outras localidades; neste momento também anunciaram como gostariam de viver e
socializaram os sonhos que tinham para as juventudes da escola e do quilombo. A
formação das juventudes é essencial para o fortalecimento da comunidade e para
continuidade da luta quilombola.
No quarto encontro foram compartilhadas as experiências desenvolvidas por duas
escolas estaduais da zona rural de MT, que vem construindo projetos educativos para a
sociedade sustentável: uma está localizada no Assentamento Nova Esperança, Município
de Cáceres, outra, na comunidade pantaneira de São Pedro de Joselândia, município de
Barão de Melgaço (MUNDO-GESTÃO). Esse encontro teve o intuito de auxiliar na
compreensão de que “[...] uma escola sustentável considera que o território é o espaço
que constrói as identidades [...]” sendo imprescindível trabalhar “[...] um currículo
cultural do sujeito, da comunidade escolar e também da sociedade brasileira [...]”
(TRAJBER; SATO, 2010, p.72) e também despertar para a necessidade de instituir a Com-
vida16, bem como, evidenciar a importância desta comissão para que o projeto de
sustentabilidade ultrapasse os muros da escola (EU-OUTRO).
Dando continuidade à ciranda aprendente, no quinto encontro foram socializadas
experiências de projetos ambientais sustentáveis, com intuito de auxiliar o grupo a
vislumbrar qual PAEC gostariam de construir. Esse momento também teve o objetivo de
estimular e entusiasmar os participantes para a construção de um sonho coletivo, visto
que a “[...] intencionalidade dos PAEC é a de oportunizar espaços de participação
democrática na busca da tessitura da construção coletiva, de forma a ampliar a relação
dialética escola-sociedade” (PEDROTTI-MANSILLA; SATO, 2009, p. 314).
Durante o período de duas semanas, a comunidade de aprendizagem que se
constituiu durante o processo formativo conversou e amadureceu a ideia do sonho
coletivo. Após esse período reuniram-se com as/os pesquisadoras/es do GPEA e
16 A “Com-Vida é um espaço de diálogos que ajuda a escola a projetar e a implementar ações que envolvem toda a comunidade escolar, visando a um futuro sustentável. Isso tem reflexos na diminuição do desperdício de água, energia, materiais e alimentos, nas compras conscientes, na destinação adequada de resíduos, entre outras práticas voltadas ao bem-estar pessoal, coletivo e ambiental, é uma nova forma de organização na escola e uma das ações estruturantes para cuidar do Brasil. Sua proposta é consolidar, na comunidade escolar, um espaço permanente para realizar ações voltadas à melhoria do meio ambiente e da qualidade de vida” (BRASIL, 2012, p.12).
64
apresentaram o PAEC que representava para eles/as o sonho coletivo: a construção de
uma Casa de Cultura, cuja arquitetura guardaria as marcas dos saberes quilombola, com a
inovação de um telhado de grama que possibilitaria maior conforto térmico,
principalmente por se tratar de uma região bastante quente, onde a população tem
sofrido com o aumento da temperatura, agravado pelos desmatamentos (Quadro de
figuras 08).
Quadro de figuras 08: Estudantes, professoras e moradores da comunidade socializando a proposta do PAEC escolhida pelo coletivo, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015. Fonte: Arquivo GPEA, 2015.
O PAEC escolhido possibilitou o entrelaçamento de saberes (MANSILLA; SATO,
2009) e o re-conhecimento de aspectos da cultura dos antepassados. Em função da falta
de regulação fundiária e dos violentos despejos com a destruição de moradias, grande
parte das/os quilombolas atualmente vivem em casas de palha ou de madeira, o que faz
com que muitos jovens desconheçam as técnicas de construção usadas pelos seus
ancestrais.
O aprendizado sobre a construção iniciou com a escolha, retirada das madeiras e
do barro. Para erguer as paredes, as madeiras foram amarradas uma a outra, em seguida
foram colocado pedaços de bambu entre os espaços para impedir que o barro escorresse
na hora do barreamento. O chão foi feito como nos tempos antigos, com o cupinzeiro,
65
pois a saliva do cupim forma um conglomerado resistente que não levanta poeira
(Quadro de figuras 09).
Quadro de figuras 09: Execução do PAEC, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mao Grosso, 2015. Fonte: Arquivo pessoal de Marcus Vinicius, Déborah Moreira, Raquel Ramos, 2015.
Para fazer o telhado verde, colocamos sobre as madeiras quatro camadas de lona,
na caída do telhado foi colocado um cano de PVC furado, envolvido por uma fina camada
de brita para ajudar a drenar a água. Esse cano foi conectado a um caixa no solo para
armazenar e reaproveitar a água. Posteriormente colocou-se a terra e a grama (Quadro
de figuras 10).
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A - Cano PVC sendo furado para drenagem B - Preparação do telhado C - Cobertura de lona para o telhado
D - Cobrindo o telhado com terra E - Adicionando terra adubada para plantar F - Plantio de grama no telhado
Quadro de figuras 10: Construção do telhado de grama, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, projeto Escolas Sustentáveis no Quilombo de Mata Cavalo, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015. Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira, 2015.
A bonita escolha do Projeto Ambiental Escolar Comunitário, a construção coletiva
da Casa da Cultura quilombola, possibilitou momentos de grande comunhão, de
valorização dos saberes que correm no seio do povo quilombola, com envolvimento
solidário e união de crianças, jovens, homens e mulheres em muxirum,17 pela
materialização de um sonho coletivo. Foram dias que encheram a comunidade
aprendente com brisas de esperança, de que é possível sonhar coletivamente e realizar
um processo educativo sem hierarquização de saberes e com união das comunidades
escolar e do entorno.
O sonho [...] de uma educação popular que amplie muitas vezes, em abrangência e poder, essas poucas, mas tão esperançosamente crescentes, experiências de trabalho pedagógico a serviço das práticas políticas populares. A Educação que sonha ser outra, em um outro tempo, dentro de um mundo solidário, libertado da opressão e da desigualdade, aprende com o dia-a-dia de seu próprio existir que, primeiro, ela precisa ser a educação da construção deste tempo vindouro, que é o horizonte da esperança do educador popular. (BRANDÃO, 2008, p.61).
17 Expressão usada pelos/pelas quilombolas para caracterizar trabalho coletivo, com mesmo significado de mutirão.
67
Em todo o processo formativo vivemos esse sonho de educação. Com diálogos
intensos e um processo educativo que valorizou os saberes e fazeres quilombolas e
fortaleceu a solidariedade, o companheirismo e a resistência. Foram 15 dias de diálogo
sobre a realidade local. Período que oportunizou conhecer um pouco das soluções
populares para os problemas da vida social, e perceber a “[...] estreita relação entre
‘saber, conhecer e lutar pela vida” (FREIRE; NOGUEIRA, 1993, p.10).
A experiência vivida com a comunidade de aprendizagem que se formou ao longo
do processo formativo, contribuiu de maneira significativa para compreensão de
aspectos que não são possíveis somente por meio de entrevistas. O mergulho no
cotidiano da escola e a partilha diária aproximaram esta mestranda da comunidade e
ajudou a desenvolver a relação de confiança tão necessária quando se pesquisa um tema
delicado como conflitos socioambientais e a injustiça ambiental.
3.2 Caminhos da viagem científica
Para obter as informações que compõem os resultados desta pesquisa, quatro
momentos foram necessários: o primeiro momento, descrito anteriormente, ocorreu
durante o processo formativo que possibilitou aproximação e vivência do cotidiano
escolar, contribuindo com a nossa compreensão sobre os conflitos socioambientais
vivenciados no quilombo. Após esse importante momento coletivo da “viagem
científica”, partimos para outras etapas, que serão relatadas adiante.
No segundo momento, mais introspectivo, os sujeitos de nossa pesquisa,
individualmente revisitaram suas memórias por meio de narrativas, expondo suas
percepções sobre os conflitos, a escola e as lutas. Esse período foi de dezembro/2015 a
maio/2016.
Utilizamos a entrevista para dialogar com os sujeitos da pesquisa, o que permitiu
que os/as entrevistados/as expressarem sua subjetividade num diálogo orientado, além
de proporcionar narrativas com maior riqueza de detalhes. O critério usado para escolha
dos parceiros da pesquisa foi terem participado do processo formativo em Escolas
Sustentáveis. Com consentimento prévio, as entrevistas foram gravadas em áudio e
vídeo. Ressaltamos que os/as participantes de nossa pesquisa, são parceiros/as com
quem estabelecemos uma relação de horizontalidade, quebrando a lógica hierárquica da
68
ciência moderna de sujeito (pesquisador/a) e objeto (pesquisado).
Nas entrevistas, seguimos algumas das orientações de Bourdieu (1997) para
estabelecer uma relação não violenta, primeiro através do que ele denomina de
“Reflexividade reflexa”, fazendo uso reflexivo dos conhecimentos adquiridos da ciência
social para controlar os efeitos da própria pesquisa, “por meio do ‘exercício espiritual’,
tomando cuidado com o conteúdo da pergunta, com o tom que usa, além de “se colocar
em seu lugar (do entrevistado) em pensamento” (p. 699).
Para compreender o complexo cenário dos conflitos socioambientais e como a
escola tem contribuído com a luta quilombola, entrevistamos estudantes, professoras e
moradoras/es da comunidade.
O roteiro abaixo foi usado com as/os estudantes e professoras.
1. Você é quilombola? 2. Há quanto tempo mora na comunidade? O que faz você permanecer no quilombo? 3. Você observa impactos/problemas ambientais no Quilombo de Mata Cavalo? Quais? 4. Esses impactos/problemas geram conflitos? Quais grupos estão envolvidos? 5. Como você percebe a relação entre a escola e a comunidade de Mata Cavalo? 6. Você acredita que a escola é importante para a luta? A escola tem contribuído com a luta em Mata Cavalo? De que maneira? 7. Quais são as ações/projetos da escola? 8. Os problemas ambientais que a comunidade vivência são debatidos com a comunidade escolar? 9. Acredita que essas questões (conflitos socioambientais e resistência) devam fazer do currículo da Escola?
Como desejamos entender os conflitos que a comunidade vivencia, bem como a
importância da escola para o seu enfrentamento, e como é a vida no quilombo, utilizamos
o roteiro18 abaixo para entrevistar as/os moradoras/es da comunidade:
1. Como é a vida no quilombo? Há quanto tempo mora na comunidade? 2. O que faz você permanecer no quilombo? 3. Você observa impactos/problemas ambientais no Quilombo de Mata Cavalo? 4. Esses impactos/problemas geram conflitos? Quais grupos estão envolvidos? 5. Há violência declarada? Quais tipos de violência? Tem ameaça de morte? 6. Como a comunidade tem enfrentado esses conflitos? 7. Qual é a maior força da sua comunidade para enfrentar os conflitos socioambientais? E qual a maior dificuldade? 8. Com quem vocês podem contar na luta? 9. A escola da Comunidade ajuda? De que maneira?
18 Roteiro adaptado de Jaber-Silva (2012).
69
Entrevistamos 12 (doze) pessoas, das quais, quatro são estudantes do Ensino
Médio, quatro professoras e quatro moradores/as da comunidade. Após essa etapa mais
introspectiva, realizamos mapeamentos locais participativos com os nossos parceiros de
pesquisa utilizando a metodologia Mapa Social (SILVA, 2011).
Durante o mapeamento os/as participantes foram divididos em três grupos. Cada
grupo teve representantes da comunidade, dos/as estudantes, das professoras e um/a
pesquisador/a do GPEA facilitou a discussão utilizando o roteiro19 abaixo.
1. Sinalize no mapa do Quilombo de Mata Cavalo as comunidades/associações/grupos sociais existentes no quilombo. 2. Quais são os locais de referência da comunidade (exemplo: escola, associação, igreja, acesso a água, garimpo, cemitério, construções da época dos escravos…). 3. No Quilombo de Mata Cavalo existem impactos/conflitos socioambientais? Sinalize no mapa. 4. Tem sido feito alguma ação para combater e evitar os desmatamentos e queimadas? 5. Quais grupos estão envolvidos nos conflitos? 6. Há violência declarada? Quais tipos de violência? 7. Como a comunidade e a escola enfrentam esses conflitos? 8. Qual a principal força para enfrentar esses conflitos? E qual a maior dificuldade?
Nesse terceiro momento, além do roteiro acima, utilizamos imagens de satélite da
área do quilombo e mapas da terra quilombola para que os/as participantes registrassem
nos mapas os marcos da comunidade, os conflitos socioambientais e impactos ambientais
(Figuras 11 e 12).
19 Roteiro adaptado de SILVA, 2011; JABER-SILVA, 2012.
70
Figura 11: Localização do Quilombo de Mata Cavalo, Nossa Senhora do Livramento, MT. Fonte: Silva, R.; Jaber-Silva, M.; Sato, M., 2011.
Figura 12: Mapa do Quilombo de Mata Cavalo, Nossa Senhora do Livramento - MT. Fonte: Silva, R.; Jaber, M.; Sato, M., 2011.
71
Reunidos em grupos, os/as participantes sinalizaram nos mapas os marcos da
comunidade, os conflitos socioambientais vivenciados e os locais impactos ambientais
(Quadro de figuras 13).
A - Grupo de trabalho (GT) sinalizando no mapa os conflitos. B - GT: professora, estudante e moradoras da comunidade.
C - GT: professora, estudante, moradoras da comunidade, pesquisador do GPEA. Quadro de figuras 13: Mapeamento participativo realizado com os sujeitos entrevistados, Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, Mato Grosso, 2016. Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira, 2016.
Também compõem os resultados desta pesquisa as informações produzidas no
processo formativo em Escolas Sustentáveis durante o encontro no qual dialogamos
sobre o Mapa Social de MT (2011) e o Mapa dos Conflitos (2012). Neste encontro
participaram 64 pessoas, sendo elas: moradores/as, estudantes e funcionários da escola.
Divididos em grupos de trabalho, os/as participantes sinalizaram nos mapas os locais de
referência da comunidade, a localização das comunidades que compõem o complexo
quilombola Mata Cavalo, os impactos ambientais, conflitos socioambientais e as táticas
de luta (Quadro de figuras 14).
72
A - GT formado por Estudantes, Professora, Moradoras B - Integrantes do GT sinalizando no mapa as informações do Território Quadro de figuras 14: Processo Formativo em Escolas Sustentáveis no Quilombo, Encontro/oficina: Mapa Social, Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015. Fonte: Arquivo GPEA, 2015.
Após obter as informações que compõem o mapeamento, visitamos alguns
marcos da comunidade e algumas áreas em que foram sinalizados impactos ambientais.
Nestes pontos medimos as coordenadas geográficas e fizemos o registro fotográfico
para inserir no mapa da comunidade. Para realizarmos essa etapa contamos com a ajuda
de um dos parceiros da pesquisa, morador do quilombo, que conhece bem a área.
Figura 15: Momentos imprescindíveis para realização desta pesquisa. Fonte: Pintura de Hundertwasser.
73
Com inspiração na Cartografia do Imaginário (SATO, 2011) separamos os conflitos
mapeados de acordo com os elementos da natureza que mais os caracterizam: Terra,
Fogo, Água e Ar.
Com o mapeamento participativo queremos que o mapa produzido pelo coletivo,
possa ser um instrumento político da comunidade. Que seja um contra-mapa, na medida
em que o “[...] mapa esteve sempre a serviço do poder, ocultado realidades e reduzindo
nas representações os complexos processos sócio-territoriais [...]” (CÁCERES, 2012,
p.125).
Depois de explicar e expor as opções metodológicas, apresentaremos no
capítulo 4 e no capítulo 5 os resultados de nossa viagem investigativa. Para destacar no
texto as narrativas dos/as parceiros/as desta pesquisa utilizamos o símbolo que
representa a luta da comunidade de Mata Cavalo de Baixo (Figura 16):
Figura 16: Símbolo da luta da comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo. Fonte: Associação da Comunidade de Mata Cavalo de Baixo.
Para resguardar a identidade das/os entrevistadas/os, atribuímos outros nomes a
elas/eles, os nomes usados são de personagens da resistência negra e de militantes das
causas étnico-raciais, são elas/es: Anastacia, escrava conhecida por sua bravura,
resistência e por não ceder aos caprichos de seus senhores, motivo que a levou a ser
condenada a usar máscara de ferro por toda a vida. Dandara, guerreira do Quilombo dos
Palmares em Alagoas, que lutou contra o sistema escravocrata no Brasil Colonial. Teresa
de Benguela, rainha do Quilombo de Quariterê em Mato Grosso. Antonieta Barros,
professora, escritora, jornalista e militante, dedicou sua luta contra discriminação racial.
Leila Gonzalez, antropóloga, educadora e militante, lutou contra a opressão da mulher
negra na sociedade brasileira. Sueli Carneiro, intelectual contemporânea, educadora e
militante, tem se dedicado ao combate do racismo e discriminação racial. Mirian Makeba,
cantora sul-africana, ativista contra o apartheid e pelos direitos humanos. Mary McLeod,
74
educadora e militante norte-america, engajada na luta por justiça racial e por
oportunidade educacionais para população negra. Rosa Negra, militante norte-
americana, lutou contra as políticas de discriminação racial estadunidense. Zumbi, um dos
personagens mais famosos da resistência negra, foi líder do maior quilombo do período
colonial, Palmares. Cruz e Souza, filho de ex-escravo, se tornou escritor e lutou contra o
preconceito racial, tornando-se em 1881, diretor do jornal abolicionista Tribuna Popular.
Castro Alves, escritor, teve sua obra marcada pelo combate à escravidão, autor do
famoso poema “Navio Negreiro”.
Ressaltamos que esta pesquisa foi submetida à Plataforma Brasil e autorizada pelo
Comitê de Ética da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) (Anexo, 01). O uso das
fotos e trechos das entrevistas foi autorizado pelos participantes por meio do Termo de
Consentimento Livre Esclarecido (Apêndice, 01).
No próximo capítulo apresentaremos o complexo cenário dos conflitos
socioambientais vivenciados em Mata Cavalo, e suas causas propulsoras, com destaque
para ação do Estado burocrático brasileiro, força motriz que está intrinsecamente
relacionada com as tramas conflitivas no quilombo.
76
No primeiro capítulo apresentamos a história de luta da Comunidade Quilombola
de Mata Cavalo para permanecer no território. Conhecer esse histórico é fundamental
para compreender as tramas dos conflitos socioambientais vivenciados no quilombo,
posto que “não é possível separar a sociedade e seu ambiente, pois trata-se de pensar um
mundo material socializado e dotado de significados” (ACSERALD, 2004, p.7). Aqui
apresentarei os resultados do mapeamento destes conflitos que foi realizado COM e
PELAS/OS quilombolas.
O grande problema enfrentado atualmente pela população do quilombo é a falta
de regularização fundiária. Essa ausência influencia e acarreta diversos transtornos e
agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade. De acordo com a Coordenação Nacional
de Articulação das Comunidades Negras Rurais (CONAQ) o “[...] elemento que causa
maior impacto para as comunidades é titulação dos seus territórios. É a principal
reivindicação do movimento quilombola [...]” (2010, p.279).
No caso de Mata Cavalo, são 126 anos de resistência e luta por um território que,
embora lhes tenha sido doado por Ana Tavares em 1886, foi expropriado por fazendeiros,
grileiros e garimpeiros, com a conivência do Estado, após a morte da doadora. Essa
morosidade é compreendida sem dificuldades se considerarmos o fato de que a “[...]
justiça não foi produzida nem pela peble, nem pelo campesinato, nem pelo proletário,
mas pura e simplesmente pela burguesia, como um instrumento estratégico importante
no jogo de divisões que ela queria introduzir” (FOUCAULT, 1979, p.32).
Se por um lado a justiça foi gestada pela burguesia, por outro o poder circula e está
em toda parte, de forma ininterrupta, sem que alguém seja o seu titular. Sendo assim,
não nos referimos ao poder como repressão, posto que vem de “[...] uma concepção
puramente jurídica deste mesmo poder [...]” (FOUCAULT,1979, p.8). Referimo-nos a
poder como correlação de força, admitindo neste caso que “[...] poder é guerra, guerra
prolongada por outros meios” (FOUCAULT, 1979, p.98). O poder se exerce e neste
sentido o Quilombo de Mata Cavalo é um local permeado de poder e de resistência,
contudo sabemos qual é o lado mais fraco nessa “guerra” (Quilombolas x
Expropriadores; Quilombolas x Estado burocrático brasileiro).
A partir 1889, os embates entre os/as quilombolas e os expropriadores se
acirraram. Na disputa pelo território, vários conflitos emergiram e perduram até os dias
atuais. A população enfrenta situações degradantes para poder viver num espaço
77
constituído historicamente, cheio de histórias, permeado de cheiros, sabores, sons,
imagens, memórias e com valor imaterial imensurável. Referimo-nos ao território
quilombola como espaço concreto em que as relações cotidianas acontecem, como lugar
de identidade, do vivido, do pertencimento, do imaginário e do sonho (MEDEIROS, 2009).
Na década 90, os/as negros/as que resistiram às pressões e violências sem sair das
terras, articularam-se com ex-moradores/as que haviam sido expulsos/as e iniciaram um
movimento para retomada do território expropriado. Cesário Sarat da Silva, descendente
dos/as ex-escravizados/as, embasado no artigo 68 das Disposições Transitórias, da
Constituição Federal de 1988 e no artigo 33 das Disposições Transitórias, e da
Constituição Estadual de Mato Grosso de 1989, requereu, junto a Procuradoria Geral do
estado, um levantamento técnico para reconhecimento das famílias negras
remanescentes (CAMPOS, 2010, p.10).
Em razão desta ação, os conflitos entre os expropriadores e os quilombolas se
intensificaram ainda mais, pois diferentes concepções/razões/percepções sobre o
ambiente estão em disputa. De um lado estão os expropriadores com uma “[...] razão
utilitária, onde o meio ambiente é uno e composto estritamente de recursos materiais,
sem conteúdos socioculturais específicos e diferenciados [...]” (ACSERALD, 2010, p.107), e
de outro lado estão os/as quilombolas com “[...] uma razão cultural, em que o meio
ambiente é múltiplo em qualidades socioculturais [...]” (ACSERALD, 2010, p.108).
O mapa de conflitos do Brasil revela o quanto os moradores do meio rural têm
sofrido com as consequências do modelo de “des-envolvimento” (SATO, 2013) desigual
assentado na concepção utilitarista do ambiente. Essas populações são as mais atingidas
(60,9%) por conflitos, embora apenas 15,6% da população brasileira se encontre nessa
áreas (PORTO; PACHECO; LEROY, 2013). Para Pacheco e Faustino (2013, p.99) essa
disparidade ocorre porque são nas gigantescas “[...] terras exigidas pelo hidro e
agronegócio [...]” que vivem os povos indígenas, as populações quilombolas e
comunidades camponesas; nesse jogo de disputa e poder, essas populações lutam para
continuar garantindo sua existência e sofrem com os impactos do modelo
desenvolvimentista, o maior impacto é sobre os povos indígenas (18%), seguido dos
agricultores familiares (17%), e os quilombolas (12%) (PORTO; PACHECO; LEROY, 2013).
Um exemplo de população que sofre e luta pelo território são os/as moradores/as
de Mata Cavalo. “A ocupação das terras brasileiras pelo poder colonial data de mais de
78
cinco séculos. Após a abolição formal da escravidão (Lei Áurea nº 3.353, de 13 de maio de
1888), levou-se cem anos para que fossem reconhecidos os direitos às terras [...]” aos
descendentes dos antigos moradores dos quilombos (CONAQ, 2010, p.268). No entanto,
passados 128 anos da abolição no Brasil, e mais de um século de luta pela terra ancestral,
destacamos diversos conflitos socioambientais mapeados e vivenciados pelos/as
quilombolas, 16 anos após terem recebido da Fundação Cultural Palmares (FCP), o título
de comunidade quilombola. A população luta até os dias atuais pela regularização
fundiária, pois, quando o assunto é reconhecimento de direitos da população negra a
morosidade tem sido a regra.
Com a realização dos encontros de mapeamentos, das entrevistas, e com a
vivência na comunidade, percebemos que o reconhecimento da FCP não amenizou
significativamente os conflitos socioambientais vivenciados e também não contribuiu
para melhoria na qualidade de vida, ao contrário, os resultados mostram a verdadeira
face controladora e repressiva do estado com suas políticas simbólicas e “[...] instituições
do direito e da lei [...]” (ARROYO, 2012, p.283). Em nossa compreensão, a morosidade da
Justiça para reconhecer os direitos dos/as quilombolas revela o que o Estado burocrático
tenta ocultar suas reais intenções sob o véu da benevolência e do paternalismo.
Perante a lei, a defesa da propriedade e da ordem prevalecem, consequentemente se aprofunda a velha justificativa: não merecem ser reconhecido o seu direito a ter direitos, porque ao lutarem por territórios e identidades se mostram contra ordem. Logo, mostram não serem sujeitos de direitos porque ainda primitivos, bárbaros, violentos, ameaçadores da ordem. Sobretudo irracionais e improdutivos (ARROYO, 2012, p.283).
Uma vez compreendidos como inferiores, preguiçosos e fora da lei, também não
gozam de completo acesso às políticas públicas que contribuem para realizar a cidadania.
Este fato que ficou evidente nas denúncias apresentadas nos encontros em que os
participantes sinalizaram no mapa os conflitos e impactos socioambientais vivenciados
pelo grupo (Quadro de figura 17).
79
Quadro de figuras 17: Mapas preenchidos pelos/as quilombolas na oficina de Mapa Social, realizando durante o processo formativo em Escolas Sustentáveis no Quilombo. Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda. Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2016. Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira.
A mescla de discriminação, exclusão e preconceito vivenciado pelos quilombolas
evidencia a forte relação entre classe social/poder econômico e preconceito/racismo, de
modo que se torna impossível falar em realização integral da cidadania e plenitude da
democracia em um sistema capitalista assentado na meritocracia, na desigualdade e na
exclusão. Compreendermos que essa população sofre as consequências sociais e
ambientais deste sistema econômico desigual por serem negros, por serem quilombolas
e por serem pobres, portanto, afirmamos que são vítimas de RACISMO AMBIENTAL.
Na perspectiva de Pacheco (2008), o conceito de racismo ambiental transcende a
cor e abarca as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre
povos e populações vulnerabilizadas pelo capital, tenham elas ou não a intenção
explicitamente racista.
Os conflitos socioambientais surgem quando os territórios apropriados por “[...]
grupos que apresentam modos diferenciados de viver e de se relacionar com o ambiente,
chocam-se com grupos que são impulsionados a ocupar o território visando benefícios
80
econômicos [...]” (JABER-SILVA; SATO, 2012, p.19), podendo ser de ordem material ou/e
simbólica. Por esta ótica os conflitos vivenciados no quilombo ocorrem entre:
● quilombolas e fazendeiros que ocupam a área desde o final do século XIX;
● quilombolas e garimpeiros que extraem ouro de maneira ilegal;
● quilombolas e sem terras que estão na comunidade desde 1996;
● quilombolas e estado, que contribui para precariedade da vida em Mata Cavalo, por
meio de sua omissão e ineficiência, tradução da promiscuidade entre Estado e Capital.
● quilombolas e quilombolas, conflito que ocorre em função de divergências de
interesses no uso da terra e tem sido agravado pela morosidade na regularização
fundiária. Entre os quilombolas é possível o diálogo. Justamente por essa razão os
conflitos ocorrem em outra esfera, se comparado com os demais, que se configuram
pelo antagonismo. Coadunamos com entendimento de que “[...] o diálogo se dá entre
iguais e diferentes, nunca entre antagônicos. Entre esses, no máximo pode haver um
pacto. Entre esses há é o conflito, de natureza contrária ao conflito existente entre
iguais e diferentes” (GADOTTI; FREIRE, GUIMARÃES, 1995, p.7).
As diversas experiências de mapeamento dos conflitos socioambientais realizadas
no Brasil denunciam as injustiças sofridas por povos e populações, e anunciam algumas
táticas de resistências destes grupos para permanecerem em seus territórios (ZHOURI;
ZUCARELLI, 2008; JABER-SILVA; SATO, 2012; PORTO; PACHECO; LEROY, 2013). Estes
trabalhos também demonstram o esforço por parte de latifundiários e grandes
corporações para varrer do mapa as identidades que não entoam o culto ao deus-
dinheiro.
Em Mata Cavalo não é diferente. Acrescentamos que embora não haja disputa
material entre os/as quilombolas e o estado, entendemos que os conflitos vivenciados
por esta população são potencializados e perduram pela omissão, ineficiência e falta de
vontade do estado burocrático brasileiro, sendo esta a principal força motriz responsável
pelo complexo cenário de conflitos socioambientais.
Para compreendermos um pouco da história deste quilombo faz se necessário
recorrer a “[...] genealogia das relações de força, de desenvolvimento estratégicos e de
táticas. Aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos
signos, mas sim da guerra e da batalha” (FOUCAULT, 1979, p.6). Traremos alguns
81
acontecimentos e os seus significados/consequências para os/as quilombolas de Mata
Cavalo, pois os fatos são como fios que se ligam e formam a rede que desvenda o lugar
reservado para os/as negros/quilombolas/pobres na trama histórica.
Nesta primeira parte do capítulo, daremos destaque ao racismo ambiental e às
violações cotidianas denunciadas por nossos parceiros durante os encontros de
mapeamentos e nas entrevistas.
4.1 Violações de direitos humanos no quilombo
De acordo com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária, vivem no quilombo
418 famílias (BRASIL, 2015), distribuídas em seis comunidades: Aguassú, Estiva/Ourinhos,
Mata Cavalo de Cima, Mata Cavalo de Baixo, Mutuca e Capim Verde. No entanto, de
acordo com a presidente da Associação dos Produtores Rurais de Mata Cavalo de Baixo,
somente na comunidade da qual faz parte vivem 380 famílias. Essa informação, obtida
durante a entrevista, nos permite concluir que os dados do INCRA estão desatualizados.
As condições de vida em Mata Cavalo são bastante precárias. Assim como em
outras comunidades quilombolas do Brasil esta situação está relacionada ao “[...] conflito
sobre a posse das terras e também à precariedade do acesso à infra-estrutura básica,
necessária para a efetivação de condições de vida dignas” (CONAQ, 2010, 278). Agrava a
situação de vulnerabilidade e insegurança, a dificuldade de acesso às políticas públicas
específicas para a população (LEITE, 2010; OLIVEIRA, 2010; OLIVEIRA; SILVA;
DIAMANTINO, 2010; MARIN; SILVA; TRINDADE; QUEIROZ, 2010; SILVA, 2010; ARRUTI,
2010). Tanto as situações de precariedade habitacional quanto à dificuldade de acesso às
políticas públicas corroboram nossa hipótese de que esta população é vítima de racismo
ambiental.
Grande parte das casas do quilombo são de palhas de babaçu e madeira e
precisam ser refeitas de tempos em tempos, o que se torna mais difícil a cada dia, devido
à escassez de matéria prima em função dos desmatamentos causados principalmente
pelos expropriadores (Quadro de figuras 18). Por meio da associação comunitária de
Mata Cavalo de Baixo, a população tem tentado acessar o programa do Governo Federal
Minha Casa, Minha Vida, mas esbarram na burocracia e na falta de apoio técnico,
conforme denuncia a entrevistada:
82
O nosso projeto está parado na Caixa Econômica, a funcionária disse que tem erro e que precisamos da ajuda de um assistente social pra arrumar, mas onde nós vamos conseguir? No ano passado pedimos para o governo de Mato Grosso doação de madeira apreendida pelo IBAMA para construirmos 30 casas, eles mandaram 30 metros, o que não dá para construir nem uma casa (Antonieta Barros, 2016, Mata Cavalo).
Quadro de figuras 18: Casas da comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo em 2015. Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira; Nicolas Lyra, 2015.
Situação semelhante também é verificada no quilombo de Marambaia, Rio de
Janeiro, “[...] o primeiro e mais fundamental dispositivo de precarização da vida na ilha
incide, sobre o direito à moradia [...]” (ARRUTI, 2010), assim como no quilombo Rio dos
Macacos/Bahia (HENGSTL, 2013) e em tantos outros do Brasil.
Coadunamos com Barrozo e Sánchez (2015, p.2), no entendimento de que as
“bases do racismo, na perspectiva da modernidade, da colonialidade e do capitalismo
convergem com as origens da degradação ambiental e das desigualdades sociais que
recaem sobre as populações de matriz africana no Brasil”. Alier (2007) observa que essas
populações têm dificuldades para defender seus interesses no campo econômico.
No caso das/os moradoras/es do quilombo, a população tenta ter acesso a meios
materiais que proporcionem uma vida com qualidade, mas padecem com a falta de apoio
e burocracia do Estado brasileiro. Vítimas de injustiça e racismo ambiental são
obrigados/as a suportar uma carga desproporcional dos problemas socioambientais em
função da expropriação de suas terras.
Apesar do programa do Governo Federal Luz para Todos, com intuito promover o
acesso a energia elétrica para populações do campo, os/as moradores/as de Mata Cavalo
ainda sofrem com a falta de acesso a este benefício, pois muitas casas não possuem
energia elétrica. Pouquíssimas residências têm água encanada. Além disso, a comunidade
83
também não dispõe de nenhum serviço de saneamento básico. No caso da comunidade
de Mata Cavalo de Baixo, os/as moradores/as que não possuem água encanada, buscam
água no poço comunitário (Quadro de figuras 19).
Quadro de figuras 19: Poço de água comunitário que abastece parte da população da Comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 2015. Fonte: Arquivo GPEA, 2015.
As precárias condições habitacionais e de saneamento vivenciadas por esta
população configuram a realidade de grande parte das populações quilombolas no Brasil
(ALMEIDA, 2010). Vivemos no século XXI, mas a maioria dessa população vive como no
século XVI. Apesar de ser um dos esteios que estruturam essa precariedade, o Governo
Federal divulgou, em 2013, um relatório sobre as condições de vida das populações
quilombolas do Brasil e apresentou as seguintes informações sobre saneamento básico:
Com relação ao acesso à infraestrutura de água e esgoto, mais de 60% das lideranças apontaram que não ocorreram alterações positivas após a titulação do território. Somente em 5% das comunidades pesquisadas encontrava-se esgotamento sanitário, nas quais, 75% das lideranças entrevistadas o consideraram insuficiente. O acesso à água encanada era mais frequente nas comunidades do que o acesso ao esgotamento sanitário. No entanto, também estava distante de ser universal: em quase 48% das comunidades não havia abastecimento de água. Já nas comunidades em que havia abastecimento, 73,8% das lideranças consideram o serviço insuficiente (BRASIL, 201320, p.5).
Acreditamos que a situação concreta seja bem mais precária do que a revelada,
posto que o método privilegiado para obtenção das informações foi o quantitativo, e
somente foram “[...] pesquisadas 169 comunidades quilombolas que obtiveram título de
20 Relatório foi produzido durante o governo do Partido dos Trabalhadores.
84
posse coletiva da terra, emitido entre 1995 e 2009 pelo INCRA” (BRASIL, 2013, p.2). No
entanto, esse dado nos dá pistas sobre a degradante vida da população quilombola do
Brasil.
“Os conflitos territoriais, a falta de saneamento básico e de acesso a outras
políticas públicas, são elementos que incidem para a situação de insegurança alimentar
em muitas das comunidades, [...]” (CONAQ, 2010, 279). Em Mata Cavalo, somam-se as
precariedades estruturais de moradia a falta de soberania alimentar. Arruti (2010, p.,
p.112), destaca que no quilombo de Marambaia/Rio de Janeiro, “[...] o segundo
dispositivo de precarização da vida incide sobre o direito à subsistência”.
No caso de Mata Cavalo, devido à ausência de regularização fundiária, os
fazendeiros estão dentro do território, exercendo normalmente as atividades econômicas
e degradando o ambiente, enquanto a população quilombola vive em espaços reduzidos,
às margens da BR 060, e das estradas vicinais, sendo obrigados/as a cultivarem pequenos
roçados. Passaram de camponeses/as que produziam praticamente tudo o que era
necessário para o sustento à situação de fome, cerceados/as em seu próprio território
(BARROS 2007; CASTILHO, 2011). A Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais mostra que
[...] a proporção de crianças quilombolas de até cinco anos desnutridas é 76,1% maior do que na população brasileira [...]. A incidência de crianças com déficit de peso para a idade nessas comunidades é de 8,1%, maior do que entre as crianças do Semi-árido brasileiro (2010, p.279).
A regularização fundiária seria “[...] uma medida de reparação histórica em relação
à opressão sofrida desde o tempo da escravidão, de um grupo que continuou ser alvo de
violência e preconceitos muito tempo depois da Lei Áurea” (CAVIGNAC, 2010).
As entrevistas evidenciaram que apesar das violações de direitos fundamentais e
da exclusão sócio-econômica, a população resiste e aguarda que o Estado burocrático
brasileiro indenize os ocupantes (expropriados) para que retornem ao espaço de cada
família. Para que construam suas casas, cultivem a terra e concretizem o sonho de uma
vida sem tantas injustiças. O sentimento de pertencimento ao território ocupado pelos
ancestrais e o desejo de continuar nele sobressai diante das dificuldades vivenciadas
diariamente, conforme narrado:
85
[...] meu pai que lutou aqui, ele morreu aqui, ele pediu pra mim: minha filha, eu lutei com o fazendeiro, como você gosta daqui a terra é sua; então eu não tenho vontade de sair daqui, eu como o pão que o diabo amassou, mas eu não saio, não saio daqui (Anastacia, 2015, Mata Cavalo).
O território é fundamental para a manutenção da identidade do grupo. Em Mata
Cavalo, a vivência no território fortalece o sentido de pertencimento a este local que é
permeado de significados, com paisagens e histórias de um povo, que desde meados de
1700, sofre e resiste ao modelo explorador escravocrata (Figura 20). A identidade e a
resistência também são fortalecidas pelo trabalho desenvolvido na Escola Estadual
Tereza Conceição de Arruda, tema que será abordado no capítulo 5.
Figura 20: Ruínas da fornalha onde os/as escravos/as trabalhavam, Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 2016. Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira, 2016.
Na comunidade pesquisada, os direitos e garantias fundamentais, assegurados
pela Constituição Federal de 1988, são violados diariamente. Destacamos alguns: o direito
à moradia, ao saneamento básico, o direito de ir e vir no território, direito à soberania
alimentar, direito à saúde, dentre outros; a moradora entrevistada narra as dificuldades
enfrentadas para permanecer no quilombo:
86
Aqui é uma vida sufoco, se nós não tivermos coragem nós não vivemos aqui; isso eu vou falar para você, se nós não dermos duro, aqui nós não vivemos, porque aqui a gente não tem um trator para trabalhar, nós não temos um carro para conduzir as coisas que nós plantamos, não temos ninguém (Anastacia, 2015, Mata Cavalo).
Considerando o contexto de resistência da população quilombola de Mata Cavalo
e sua luta por justiça social, é nesse universo de tensões, conflitos e múltiplas
problemáticas em função do sistema mundo-capitalista, assentado na colonialidade do
poder, do saber, do ser e da natureza, que a interculturalidade crítica pode se constituir
em uma ação pedagógica capaz de auxiliar na construção de outras sociedades.
Na perspectiva de Walsh (2010, p. 4) a interculturalidade crítica é um projeto
político, social, ético e epistêmico que afirma a necessidade de mudar além das relações,
as estruturas, as condições e os dispositivos de poder que mantém a desigualdade, a
inferiorização, a discriminação e a racialização. É importante destacar que essa vertente
da interculturalidade tem suas raízes nas discussões políticas protagonizadas pelos
movimentos sociais, o que ressalta sua orientação com relação ao problema estrutural-
colonial-capitalista e o seu caráter contra-hegemônico (WALSH, 2010).
A colonialidade do poder que classifica negros e indígenas como inferiores,
naturaliza a expropriação da terra vivenciada por essas populações e povos. A retirada do
território ocasionou diversos problemas e dificuldades na vida dos/as quilombolas, um
deles é o econômico, a baixa renda das famílias incomoda e aflige a população que
aguarda a titulação do território com esperança de melhoria na qualidade de vida:
Como a gente nasceu e criou aqui nesse lugar, a gente tem amor nele, [...]. Você vê, como eu, aqui nós não temos quase renda de nada, tem uma roça, uma lavoura que a gente faz, mas é pequena [...] mas só que agora diz que só tá faltando os ocupantes (fazendeiros) receberem, acho que aí as coisas vão melhorar [...] (Zumbi, 2015, MATA CAVALO).
No entanto, pesquisas divulgadas pelo Ministério do Desenvolvimento Social
(MDS), sobre a situação das comunidades quilombolas tituladas, revelam que a melhoria
nas condições econômicas foram extremamente sutis e as dificuldades para acessar os
serviços de assistência técnica e programas governamentais permanecem muito
87
semelhantes ao que se tinha antes da titulação (BRASIL, 2013; BRASIL, 2014).
Essas informações mostram que apesar dos avanços no campo legal, com o
reconhecimento de alguns direitos dessas populações, isto não tem se materializado no
campo do vivido. Candau e Russo (2010, p.158) afirmam que “a situação dos afro-
descendentes na maior parte do continente Latino Americano tem sido configurada por
processos de violência e exclusão física, social e simbólica”. Neste contexto, apenas a
demarcação “não é suficiente para assegurar a sustentabilidade ecológica e social desses
espaços [...]” (JABER-SILVA; SATO, 2012, p.25), é preciso caminhar rumo à construção de
outra sociedade.
A população de Mata Cavalo, reconhecida pela Fundação Cultural Palmares em
2000, sonha com a regularização fundiária para melhorar a qualidade de vida. Atualmente
padecem com a falta de renda, agravada pelos pequenos espaços que lhes são
destinados para cultivo. Enquanto esta situação perdura, cada família recebe cesta básica,
no entanto, uma das entrevistadas denuncia a falta de regularidade no fornecimento
deste auxílio:
Está uma bagunça esse negócio da cesta, agora fazem três mês que não vem, o pessoal da associação disse que esse mês vai vir, mas cada um terá que ajudar com R$ 10 reais, que é para pagar o carro que vai buscar em Nossa Senhora do Livramento (Tereza de Benguela, 2015, Mata Cavalo).
A narrativa evidencia a vulnerabilidade da população, além da morosidade na
regularização fundiária, que limita a atividade agrícola. Também não contam com
regularidade no fornecimento da cesta básica, o mínimo necessário para se alimentarem.
Como obter justiça social e redistribuição numa sociedade estruturada na colonialidade e
no racismo?
Observamos que as políticas paliativas do Governo Federal, criadas durante a
gestão do Partido dos Trabalhadores, não se efetivaram nesse território, ou não
atenderam a toda a população, ou não tem regularidade quando se trata da população
quilombola de Mata Cavalo. Como exemplo citamos: o “Projeto de Habitação”, o “Luz
para Todos” e o “Fome Zero”. Esta situação nos faz concluir que além de serem vítimas
de racismo ambiental, os quilombolas sofrem com o racismo institucional das instituições
governamentais, que impedem que esta população acesse as políticas destinadas a ela.
88
Conhecendo a história escravocrata do Brasil, percebemos que o pano de fundo
desta omissão tem relação com a questão racial. Não acreditamos que outro
ordenamento social seja possível numa sociedade em que a colonialidade está
fortemente presente, é urgente discutirmos com os grupos em situação de
vulnerabilidade projetos de educação intercultural e de sociedades para re-existência e
bem viver (WALSH, 2009; ROJAS MARTINEZ, 2004).
Urgência que fica ainda mais evidente quando consideramos que os/as
moradores/as que já estão nos espaços definitivos, ou seja, que eram ocupados por
seus/suas ancestrais, padecem com outro problema: falta de apoio e estrutura para
plantar e comercializar os produtos excedentes, conforme relata uma das entrevistadas:
Porque que nós plantamos pouco? Teve um ano aqui, o ano passado, que eu plantei e eu perdi. Eu pedi o carro de uma pessoa daqui, se podia arrumar para nos levar na cidade, e ele disse que não podia, [...] nós tínhamos abóbora, quiabo, maxixe, melancia, tudo para levar para lá [Nossa Senhora do Livramento]. [...] então eu fui na prefeitura, aí me disseram que não tinham carro para nós trazermos as coisas para vender [...]. Semana passada eu fui em Livramento [na secretaria de agricultura] ver se tinha trator, disseram que não têm. Tem o trator que fica na associação da mutuca, mas é R$140,00 a hora. [...] aqui tá uma dificuldade [...] (Anastacia, 2015, Mata Cavalo).
O trecho expõe as dificuldades e a falta de perspectiva de melhoria da situação
econômica e expõe ainda outras duas questões que serão abordadas adiante: a falta de
apoio e a discriminação por parte do poder municipal com a população do quilombo, e o
conflito interno entre algumas comunidades/associações.
Em Mata Cavalo, a população padece com a falta de apoio do governo, o que
contribui ainda mais para queda na qualidade de vida. Em nosso entendimento esse
descaso é fruto do racismo institucionalizado e da naturalização das situações de
violências vivenciadas por estas populações.
Racismo institucional é a extensão institucional de crenças racistas individuais em primeiro lugar; em segundo é o subproduto de algumas práticas institucionais devidamente constituídas que atuam de forma a limitar, a partir de bases raciais, as escolhas, os direitos, a mobilidade e o acesso de grupos de indivíduos a outras posições. Pode ser definido como as práticas, as leis e os costumes algumas práticas que sistematicamente refletem e provocam desigualdades raciais numa
89
sociedade (JONES, 1972 apud SILVA, 2010, p.222).
Os poucos empregos que existem na comunidade são oriundos dos contratos da
Escola Estadual Professora Tereza Conceição de Arruda, no entanto, o número é bastante
reduzido, dos 28 funcionários da unidade escolar, apenas 12 são quilombolas. Uma das
entrevistadas narra as dificuldades em função da falta de renda e a melhoria de sua vida
após ser contratada para trabalhar na escola:
[...] no começo pra mim era muito difícil, sem emprego, com os filhos, muito difícil [...] aí eu tive a oportunidade de dar aula nas séries iniciais, no terceiro e quarto ano, isso me incentivou a ser professora, então eu fiz faculdade de pedagogia, especialização em educação do campo, e assim minha vida melhorou bastante (Antonieta Barros, 2016, MATA CAVALO).
Todavia, essa não é a realidade da grande maioria, apenas 12 famílias têm alguém
trabalhando na escola, ousamos dizer que mais de 95% das famílias que vivem no
quilombo padecem com a falta de renda, agravada pela morosidade da justiça brasileira e
ineficiência/omissão do estado. A narrativa abaixo dá mostra da violência e violações
sofrida por essa população:
Aqui já teve uma vida muita boa, uma vida boa, aqui para quem viu, para quem nasceu e criou aqui no quilombo do Mata Cavalo, para ver hoje em dia não acredita, [...]. Antigamente não tinha justiça pra pobre, era só quem tinha [dinheiro] e era bem de vida que ganhava questão, os pobres que tinha a suas terra como pai, meu pai tinha 410 hectares de terra, mas acabou de tanto fazendeiro grilar um pedaço, [...] outro chega e grila, outro chega e grila, [...] não tinha justiça, fazer o que? Era ficar corrido, um pra cá, outro pra lá, outro ia embora, desistia [...] (Zumbi, 2015, Mata Cavalo).
Sem poder plantar em sua própria terra, posto que estão confinados/as a espaços
reduzidos, aguardando a regularização fundiária, sem regularidade no fornecimento de
cesta básica, sem emprego, sem meios para aumentar a renda, sem apoio dos poderes
Federal, Estadual e Municipal, ainda assim resistem e re-existem. Alguns quilombolas são
aposentados e recebem um salário mínimo, mas a maioria da população padece sem
renda.
90
Toda omissão do Estado burocrático brasileiro, que para nós é também uma
estratégia para desarticular a comunidade, contribui para o aumento da criminalidade no
quilombo, como narrado:
Outro problema é roubo, assalto, alguns são por quilombolas, outros é de fora. Assaltaram uma casa aqui há pouco tempo, levaram várias coisas, amarraram todo mundo [...], outro dia roubaram um carro, na semana passada teve outro roubo, esse nosso problema é também com pessoas que estão vindo de fora, e vem esconder no Mata Cavalo [...] É tráfico de droga que rola dentro da comunidade[...] Antigamente era tranquilo, hoje você não pode mais sair e deixar sua casa que você acha só o buraco, tá desse jeito, antigamente se tinha paz no quilombo, hoje essa violência tá chegando (Antonieta Barros, 2016, Mata Cavalo).
A entrevistada reclama da dificuldade para conseguir apoio do Poder Público para
aumentar a segurança no quilombo:
Eu fui na delegacia, conversei, pedi, queria que fizesse algumas rondas, dando umas voltas no quilombo, só pra intimidar mesmo, eles disseram que iriam vir, foi alguns dias, mas parou [...] enquanto não se melhorar as políticas públicas para população quilombola, não vai melhorar a vida no quilombo, e agora com a saída de Dilma que não vai melhorar, principalmente o pobre, esses vão penar (Antonieta Barros, 2016, Mata Cavalo).
O quilombo não é uma ilha isolada. A sociedade em crise reflete dentro e fora do
quilombo. Mesmo distante apenas 10km da cidade de Nossa Senhora do Livramento, a
população não consegue o apoio do Estado burocrático para resolver ou amenizar os
problemas cotidianos.
Diante de tantas dificuldades, é na luta comunitária pelo território que o ânimo se
renova. Esta agrega, fortalece a identidade coletiva, mantém e revitaliza a força
necessária para permanecer em Mata Cavalo. A experiência coletiva da luta é
extremamente importante para sua continuidade, conforme narra uma das entrevistadas:
O que me faz permanecer em Mata Cavalo é a luta, [...], a luta pelo quilombo, ser quilombola, hoje eu luto por ela” (Antonieta Barros, 2016, Mata Cavalo).
91
A Constituição de 1988 inaugurou um novo momento para as populações
descendentes de escravos por meio do reconhecimento de seus direitos territoriais.
Contudo, tais avanços pouquíssimo têm influenciado na qualidade de vida dessas
populações. Para Silva (2010) “[...] as comunidades quilombolas estão sendo vítimas de
uma grande onda de racismo institucional [...] as vítimas sempre são os que “nunca”
tiveram apoio do estado brasileiro; destaco aqui os índios, as comunidades quilombolas,
‘os sempre excluídos’.” O Estado burocrático brasileiro ineficiente e omisso é o
responsável pela vulnerabilidade e pela situação de injustiça a que estão expostos esses
grupos.
O abandono desses grupos por parte do Poder Municipal, denunciado nas
entrevistas, agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade. Os serviços de saúde
oferecidos a esta população são praticamente inexistentes, como pode ser observado
nas narrativas:
Esse ano [mês de maio] ainda não foi contratado nenhum agente de saúde para atender Mata Cavalo, não tivemos nenhuma visita, e a comunidade também não consta na lista de comunidades rurais do município para receber visita de médico. Tudo é difícil quando você fala que é do Mata Cavalo, tudo é mais demorado (Antonieta Barros, 2016).
Aqui a gente não pode ficar doente, se ficar tem que ir para Livramento, e tem que pagar alguém que tem carro pra levar, senão não vai. Para você vê a dificuldade, eu estou sem tomar o remédio da pressão tem dois meses, já fui duas vezes na farmácia da prefeitura para buscar e dizem que não tem, não chegou (Tereza de Benguela, 2015, Mata Cavalo).
Outras comunidades quilombolas também sofrem com problemas semelhantes
aos denunciados pelos sujeitos desta pesquisa (ALMEIDA, 2010). Ser quilombola no Brasil,
“[...] para além dos elementos culturais, históricos e de um protagonismo, é ser portador
um ônus social e político que se prolonga há décadas ou quiçá séculos” (RATTS;
FURTADO, 2010, p.240).
Entendemos os descasos relatados pelas/os moradoras/es, que é também
vivenciado por comunidades quilombolas do Brasil, como RACISMO. A sociedade
brasileira
92
insistentemente tem negado a existência do racismo e do preconceito racial. Entretanto, as pesquisas têm mostrado aquilo que cotidianamente é retificado e reforçado, e que a lei áurea não foi capaz de romper: a imensa exclusão da população negra [...] (CONAQ, 2010).
Outra denúncia, desta vez sobre falta de coleta de lixo, corrobora a afirmação
acima. A prefeitura municipal colocou lixeiras e recolhe os resíduos de diversas
propriedades e comunidades rurais, localizadas à beira da BR 060 que, também passa no
meio do quilombo, contudo nenhuma lixeira foi colocada em Mata Cavalo. O último
ponto de coleta é no assentamento Santana, a menos de 150 metros do início do
território quilombola. Ainda foram citados casos de pessoas de fora do quilombo que
jogam lixos e entulhos no território:
Muitas vezes a gente sai aí na estrada para Livramento e acha um monte de lixo, caminhão vem despejar aqui. Esses dias mesmo, bem na porta da casa de um dos quilombolas jogaram um monte de lixo, aí ele reclamou, mas depois tirou (Anastacia, 2016, Mata Cavalo).
O problema com a destinação do lixo é realidade na maioria das comunidades
quilombolas do Brasil, sendo que, em mais de 90% das comunidades tituladas não há
coleta dos resíduos (BRASIL, 2013, p.5).
Denúncias também foram feitas com relação à precariedade do transporte escolar.
Os/as quilombolas se queixaram da insegurança do ônibus que transporta crianças e
adolescentes para a escola, o veículo é extremamente velho e quebra com muita
frequência, interferindo diretamente no rendimento escolar, além de colocar em risco a
segurança dos/as usuários deste serviço.
Olha, nós já reclamamos diversas vezes na prefeitura, que é responsável pelo transporte, mas não adianta. O ônibus que vem pra nós é muito velho, quebra muito, atrapalha, as crianças chegam tarde à escola, chegam tarde a casa, passam da hora de comer. Para você vê: o ônibus que estava carregando nossas crianças não fecha a porta, imagina carregar várias crianças com a porta aberta, um perigo [...] (Lelia Gonzalez, 2016, Mata Cavalo).
Todas estas denúncias fortalecem nosso entendimento de que a população
93
quilombola de Mata Cavalo é vítima de RACISMO AMBIENTAL. Este racismo “não se
configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente,
através de ações que tenham impacto “racial”, não obstante a intenção que lhes tenha
dado origem” (PACHECO, 2008, p.723).
Até aqui apresentamos as denúncias feitas durante as entrevistas e os encontros
de mapeamento. Estas demonstram situações de injustiça ambiental que têm recaído de
modo implacável sobre a população de Mata Cavalo. Diversas pesquisas demonstram que
situações semelhantes também são vivenciadas por outras comunidades quilombolas do
Brasil (LEITE, 2010; OLIVEIRA, 2010; OLIVEIRA; SILVA; DIAMANTINO, 2010; MARIN; SILVA;
TRINDADE; QUEIROZ, 2010; SILVA, 2010; ARRUTI, 2010).
Embora haja programas e políticas dedicadas a tornar mais humanizada as
condições de vida nas comunidades quilombolas do Brasil, a população de Mata Cavalo
não tem acesso a elas e sofre com a falta de: regularização fundiária, moradia adequada,
saneamento básico, acesso à água potável, soberania alimentar, atendimento médico e
baixo acesso aos serviços de saúde. Ainda, ineficiência do serviço de assistência técnica
rural, falta de renda, ineficiência na segurança pública, aumento da criminalidade, falta de
transporte escolar seguro, ausência de coleta de lixo, carência de energia elétrica e
péssimas condições das estradas que dão acesso às comunidades quilombolas que
compõem o complexo de Mata Cavalo.
Para Foucault (1979, p.6) “a história deve ser analisada segundo a inteligibilidade
das lutas, das estratégias, das táticas [...]”. Coadunamos com este autor e trazemos a
história do quilombo por esse viés. Diante de tantas faltas, a população – vítima de
racismo ambiental – tem desenvolvido táticas de resistência, como, por exemplo, a
territorialização da escola; formação política popular (reunião da associação), onde
discutem os problemas da vida cotidiana e os caminhos para enfrentá-los; parcerias com
grupos de pesquisa das Universidades que realizam trabalhos acadêmicos e ajudam a dar
publicidade às situações vivenciadas no quilombo; promoção de articulações com
organizações não governamentais (ONG) com a Defensoria Pública e Ministério Público;
e, participações em mobilização, audiências públicas e atos políticos.
As violações, negações de direitos e de garantias fundamentais demonstram a
omissão, a ineficiência e o racismo institucionalizado no Estado brasileiro. Este caótico
cenário, somado às atividades econômicas empreendidas pelos expropriadores do
94
território quilombola, gerou conflitos socioambientais que são agravados pela demora na
regularização fundiária. Barrozo e Sánchez (2015, p.4) destacam que a ocorrência do
“racismo ambiental no Brasil é evidente, sobretudo entre as comunidades quilombolas.
Causas relacionadas ao desenvolvimento econômico, como o agronegócio têm
promovido degradação ambiental, cultural e social, abarcando comunidades inteiras.
Degradação que, como veremos no próximo tópico, destrói ecossistemas, lesa a
biodiversidade, os modos de vida e a cultura, se constituindo em crime contra toda a
humanidade.
4.2 Conflitos socioambientais e causas propulsoras
“Conflitos são as ações de resistência, envolvendo a luta pela terra, água, direitos
e pelos meios de trabalho ou produção” (CPT, 2015, p.13). Em Mata Cavalo os conflitos
acontecem de modo mais acirrado entre quilombolas e fazendeiros em função da
omissão do Estado burocrático brasileiro, de sua relação promíscua com o capital, do
racismo institucionalizado e da má gestão de políticas públicas.
Após o processo diaspórico, iniciado em 1889, narrado nas páginas antecedentes,
a luta pelo território foi rearticulada a partir da década de 1990, quando muitos/as ex-
moradores/as que haviam sido expulsos em décadas passadas retornaram em comboio
para o quilombo (JABER-SILVA, 2012; MANFRINATE, 2011; BARROS, 2007).
Na mesma época, segundo narram alguns moradores, um grupo de sem terras
também vieram para o território. Inúmeros conflitos surgiram em função destas pessoas
não serem descendentes dos/as negros/as que haviam sido escravizados em Mata Cavalo.
Muitos foram embora, mas alguns permanecem no local até hoje; o conflito continua e
está mais acirrado entre os sem-terra e os moradores da comunidade Mutuca, como
relata um dos sujeitos de nossa pesquisa:
Eu sou quilombola, tenho 16 anos e moro aqui desde que nasci. Meu pai veio para cá em 1996 convidado pelo Germano [quilombola descendente de escravizados], agora que nós lutamos junto com a comunidade, sofremos junto, agora que tá melhor, que temos nossa casa, nossa roça, nossa vida aqui, eles querem que nós vamos embora, isto não é justo. A presidente da associação da Mutuca entrou com um
95
pedido pra tirar nós daqui. Ela quer nossa terra, a terra é boa, tem uma mata bonita, tem água [...] Mas eu não saio daqui, eu sou quilombola [...] (Castro Alves, 2015, Mata Cavalo).
O conflito narrado pelo entrevistado que se identifica como quilombola, mas é
filho de sem-terra, está mais acirrado com a comunidade da Mutuca que é a mais próxima
dos lotes ocupados pelo grupo de sem-terra. As lideranças de Mata Cavalo de Baixo não
apoiam a Associação da Mutuca. Por problemas relacionados à disputa de poder entre
as associações de Mata Cavalo de Baixo e da Mutuca, essas duas comunidades não se
unem na luta pelo território e pelas causas comuns, cisão que somada a outros conflitos
internos enfraquece a luta coletiva.
São anos de conflitos e disputas entre os/as quilombolas e os fazendeiros
expropriadores, marcado por violência física e simbólica. Somente no século XXI, depois
de muita luta, resistência, e com o reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares
(FCP), que o estado interviu por meio de liminar judicial e amenizou as constantes
violências física sofridas pela população. Uma das entrevistadas relata que:
O conflito com os fazendeiros hoje praticamente acabou, o que ainda está mexendo que não quer aceitar o pessoal entrar é o Titi [Carlos Maciel], ele é o dono do cartório do 5º ofício de Várzea Grande [...], a fazenda dele é em frente à escola, do outro lado da BR 060, é a fazenda São Carlos, ele não aceita, ele não está contente de colocar o pessoal [quilombola] lá no fundo (Anastacia, 2015, Mata Cavalo).
Apesar da liminar judicial, este fazendeiro continua adotando medidas violentas
contra os/as moradores do quilombo. A população relata que o fazendeiro deixa os
gados, que são muito bravos, em área sem cerca justamente ao lado da estrada por onde
os moradores precisam passar diariamente, e há inúmeros casos de pessoas que foram
atacadas pelos gados (Figura 21). Entendemos que essa ação violenta contra os/as
quilombolas é fruto do preconceito racial, que inferioriza os/as negros/as, tratando-os
como preguiçosos e sub-humanos (ARROYO, 2012).
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Figura 21: Gados bravos, soltos em local sem cerca, à beira da estrada por onde diariamente muitos/as quilombolas passam, comunidade de Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 2016. Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira, 2016.
“O paradigma liberal de propriedade privada incluem práticas de uso e acesso à
terra diversas daquelas estabelecidas por muitos grupos sociais autodenominados, que
tem sua segurança fundiária garantida por políticas de ordenamento fundiário [...]”
devido às formas específicas de apropriação dos bens naturais (MALERBA, 2015, p.81).
No quilombo, essa segurança não se efetiva devido à omissão da burocracia
estatal. Além deste fazendeiro, há outros que impedem os moradores de visitar sítios
históricos: os/as quilombolas reclamam que são proibidos/as de visitar o cemitério mais
antigo do território e também a senzala onde os seus/suas antepassados foram
torturados/as, estes lugares ficam dentro de uma fazenda que está trancada com
cadeados para impedir o acesso da população.
Por que a justiça brasileira não interfere nestas situações de violência contra a
população negra? Utilizamos as palavras de Foucault para responder a esta indagação,
“[...] o tribunal não é expressão da justiça, mas, pelo contrário, tem por função histórica
reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características
do aparelho do Estado” (1979, p.23). Estado não é neutro quando está assentado na
colonialidade.
Os moradores denunciam que as atividades realizadas pelos expropriadores têm
degradado o Cerrado e levado a perda significativa de espécies do bioma. Para
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Camenietzki (2013, p.4), “os conflitos instaurados pelas disputas dos elementos naturais e
territórios também configuram um contexto devastador para as populações que
possuem práticas tradicionais [...]” de uso dos bens naturais. Uma das entrevistadas
narra:
A maioria das plantas que nós usamos está na terra de fazendeiros e eles desmata e acaba com tudo, antigamente tinha tanto pequi aqui, agora quase não tem mais, você foi comigo procurar pequi, quanto nós achamos? Nem uma dúzia [...], as plantas medicinais também, tem muitas que não achamos mais [...] (Tereza de Benguela, 2015, Mata Cavalo).
As principais atividades econômicas desenvolvidas pelos expropriadores no
território quilombola foram a pecuária e garimpagem de ouro, estas, por sua vez,
geraram alteração da paisagem e impactos ambientais, que, como dito anteriormente,
lesam a natureza e a humanidade.
Para desenvolver a pecuária, os fazendeiros desmataram extensas áreas e
plantaram capim braquiaria, ocasionando perda nas interações ecológicas e queda na
biodiversidade (Quadro de figuras 22).
A – Área desmatada para criação de gado, Mata Cavalo de Baixo. B – Área com predomínio de braquiara, Comunidade Aguassú.
C – Área devastada pelo garimpo, Comunidade Estiva. D – Área devastada pelo garimpo, Comunidade Estiva.
Quadro de figuras 22: Impactos ambientais relacionados às atividades dos expropriadores, Quilombo Mata Cavalo, 2016. Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira, 2016.
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Os sujeitos desta pesquisa percebem os impactos ambientais e identificam queda
na qualidade e na disponibilidade de diversos bens e produtos naturais. A queda na
quantidade de peixes foi associada ao desmatamento de matas de galerias e à
contaminação por mercúrio, decorrente do garimpo.
Aqui tinha mais peixe, mais mata, digo que tinha no tempo que os mais velhos tava aqui, não deixavam desmatar, quando entrou aqui o grileiro, o fazendeiro, eles entravam com o trator derrubando, desmatando, acabando com peixe, também tinha esse negócio do garimpo, o garimpo aqui, descia água no córrego acabando com os peixe [...] (Anastacia, 2015, MATA CAVALO).
O garimpo de ouro deixou sérias consequências ambientais em Mata Cavalo. Além
da perda da biodiversidade e das interações ecológicas, os grandes buracos representam
um perigo para a fauna local, que quando caem nessas crateras e não conseguem sair.
Essa atividade inutilizou extensas áreas, modificou a paisagem e danificou o solo (Quadro
de figuras 23).
Atualmente, como a terra quilombola está sob litígio, a garimpagem de ouro não é
permitida, contudo, durante a realização das entrevistas, na oficina de mapa social e no
encontro de mapeamento participativo, diversos sujeitos denunciaram o funcionamento
de garimpos ilegais.
Em uma das idas ao quilombo, estivemos num local com garimpo ativo. A atividade
estava sendo realizada com a utilização de mercúrio e próximo a um córrego. A água
contaminada era lançada em uma represa, mas parte dela escorria para o córrego. O
responsável pelo garimpo não era quilombola.
Outro impacto ambiental que tem afetado os/as quilombolas e contribuído para
degradação ambiental é a queimada ilegal, que ocorre principalmente nos meses de
agosto a novembro, no período de estiagem. As queimadas, além do empobrecimento do
solo, afeta a fauna local e traz graves problemas de saúde à população.
Os/as moradores/as relataram que muitos impactos ambientais têm sido
praticados também por quilombolas. Uma das entrevistadas relatou que os problemas
ambientais mais frequentes são:
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derrubada de madeira, assoreamento de beira de rio, desmatamento de beira de córrego, e garimpo clandestino. [...] agora nós estamos com a luta com um que não é quilombola, ele começou a derrubar, derrubou todas as árvores de lei, nós denunciamos ele, aí ele tem amizade com o fiscal, e por isso conseguiu fazer só um ato de inspeção, nós não concordamos com isso, então denunciamos em Cuiabá, aí conseguimos que isso fosse passado para um ato de infração, nós provamos que ele tava derrubando (Antonieta Barros, 2016, Mata Cavalo).
Quadro de figuras 23 – Impactos do garimpo, Comunidade Estiva/Ourinhos, Quilombo Mata Cavalo, 2016. Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira, 2016.
100
Esta narrativa expõe um caso recente de conflito entre os/as quilombolas e um
não quilombolas que “comprou” a terra. Embora a terra de quilombo seja um bem
coletivo e a venda proibida, as/os entrevistadas/os relataram que têm ocorrido vendas de
lotes no quilombo e segundo os mesmos, o ministério Público Federal já está
investigando essas denúncias.
A morosidade na regularização fundiária, o descaso do estado de Mato Grosso, e o
abandono pelo Poder Municipal se traduzem em precarização das condições de vida no
quilombo. Inações que somadas às ações dos fazendeiros e garimpeiros contribuíram
para gerar e agravar situação de insegurança e instabilidade, afetando a qualidade de
vida, agravando os conflitos internos e fragilizando laços de solidariedade tão
importantes para vida em comunidade.
A vida no quilombo pra nós é boa, é boa assim: porque a gente fica tranquilo, agora não tem despejo como antes, agora a gente tá tranquilo, dorme tranquilo. [...] aqui eu plantava maxixe, banana, melão, abóbora, mandioca, aqui já deu muito, mas agora a gente quase não planta, porque os vizinhos criam porco solto; agora mesmo, os porco do vizinho acabou com toda mandioca e milho que eu tinha plantado. A gente vai reclamar, mas não adianta (Tereza de Benguela, 2015, Mata Cavalo).
Com a narrativa percebemos que a comunidade tem passado por um período de
fragilidade nas relações de solidariedade, o que é evidenciado com a diminuição das
atividades coletivas como o muxirum, muito frequente no passado. Provavelmente pela
influência da cultura capitalista que é individualista e transforma tudo em recurso, alguns
quilombolas têm praticado ações que degradam o ambiente e que geram conflitos
internos. Uma das entrevistadas relata:
O outro vizinho entra aqui, quando a gente escuta é só o barulho da motosserra derrubando pau, eu uma vez fui falar com ele, ele me xingou tudo, falei com o pessoal da associação, mas não adiantou nada, continua cortando, olha para ali: quase não tem mais babaçu, ele quer pegar as palha e não sabe só tirar a palha, tem que derrubar o pé todo (Tereza de Benguela, 2015, Mata Cavalo).
O conflito entre os/as quilombolas se dá em função dos diferentes modos de
apropriação dos bens naturais. A disputa ocorre entre os que desejam a manutenção de
101
um modo de vida onde há relação de sacralidade com a natureza e outro grupo que a
percebe como recurso, como evidenciado na narrativa:
Tem quilombola desmatando e cercando beira de córrego, eu vou lá converso, falo que tem que preservar, a gente tem problema com remanescente também [...] (Antonieta Barros, 2016, Mata Cavalo).
Causado principalmente pelos expropriadores, mas também por quilombolas, os
desmatamentos geram conflitos porque alteram as paisagens, degradam o solo, causam
perdas de biodiversidade, contribuem para assoreamentos dos corpos d’água, alteram o
regime de chuvas e comprometem os ecossistemas, contribuindo para aumentar
vulnerabilidade desta população.
[...] desmatamento gera conflito, porque seca a água, aí o lugar que não tem água o povo passa sede, aí vem pegar água ali na caixa, de charrete, gera conflito entre os quilombolas mesmo. (Anastacia, 2015, Mata Cavalo).
Quadro de figuras 24: Moradores buscando água no poço comunitário, Comunidade Mata Cavalo de Baixo, Quilombo Mata Cavalo, 2016. Fonte: Arquivo pessoal de Marcus Vinícius, 2015; Déborah Moreira, 2016.
Os conflitos internos estão relacionados às diferentes práticas socioespaciais
inscritas no território, com alguns quilombolas influenciados pelo sistema capitalista que
tem como “base fundante a expropriação da natureza através da valoração e da
transformação de seus elementos em recursos a serem explorados até à exaustão”
(STORTTI; MENEZES; SÁNCHEZ, 2014, p.18), sendo que os desmatamentos e as vendas de
lotes passaram a ser praticados entre alguns indivíduos da comunidade. Um dos sujeitos
entrevistados narra que
102
[...] tem conflito por causa da cerca, [...] antigamente ninguém aqui tinha cerca, [...] todo o pessoal de antigamente criava tudo junto, cada um sabia qual que era o seu [...] mas no mais não existia cerca, aqui no quilombo não tinha cerca (Zumbi, 2015, Mata Cavalo).
Retrato da modernidade, a cultura individualista tem dificultado a luta coletiva dos
moradores de Mata Cavalo. Sete sujeitos desta pesquisa afirmam que a união da
comunidade está bastante fragilizada, no entanto, reconhecem que a tática da
comunidade para resistir à opressão e às situações de conflito entre antagônicos
(externos) seja a união:
A união é a maior força da comunidade, se não tiver união eu sozinha não consigo fazer nada [...] e hoje a nossa dificuldade são as políticas públicas e a falta de regularização fundiária (Antonieta Barros, 2016, Mata Cavalo).
Por outro lado, essa liderança afirma que quando surgem problemas na
comunidade, elas/es procuram a justiça para resolver, embora essa justiça até os dias
atuais não tenha resolvido o impasse do território quilombola. Nas narrativas, ficou
evidente a falta de apoio e o descaso do Poder Público com os/as moradores/as de Mata
Cavalo, assim como, a fragilidade da articulação entre eles/elas.
Todas as negações de direitos e negligências vivenciadas pelos/as moradores/as de
Mata Cavalo, denunciadas neste texto, geram disputas e tensões nas quais se destacam
as figuras dos expropriadores das terras e do Estado burocrático brasileiro, pela
morosidade, ineficiência e omissão. Esses agentes externos estão diretamente
envolvidos nas tramas dos conflitos socioambientais, contribuindo de maneira
significativa para gerar os conflitos internos.
A promiscuidade entre o Estado e o capital naturaliza a violência no campo e a
torna “elemento estruturante do processo de formação territorial do Brasil” (CABRAL,
2015, p.144). Deste modo, a agricultura industrial capitalista que marca o agronegócio
acentua ainda mais “o cheiro de sangue na terra” (CABRAL, 2015, p.144). Em 2015, a
“violência sectária realizada pelo agronegócio em face de lideranças indígenas,
quilombolas, ambientalistas, sem terra, trabalhadores rurais, [...] foi responsável pelo
número mais elevado de assassinatos no campo desde 2004 [...] (CABRAL, 2015, p.144).
103
Ainda em 2015, o relatório da CPT de conflitos no campo registrou 1.217
ocorrências de conflitos no Brasil, “os conflitos por terra no ano de 2015 representaram
998 ocorrências, sendo que resultaram em 47 assassinatos. Os conflitos pela água,
também aumentaram significativamente, foram registradas 135 ocorrências [...]”
(BENCKE, 2015, p.129).
Acreditamos que o cenário dos conflitos socioambientais é ainda mais grave do
que demonstra o Relatório da CPT. Dada a extensão territorial do Brasil, muitos povos e
populações que vivenciam conflitos não foram contempladas no relatório, citamos
como exemplo, a população quilombola de Mata Cavalo.
No mapeamento participativo que realizamos com os quilombolas, foram
registradas sete causas propulsoras de conflitos socioambientais, uma oitava causa foi
citada em apenas uma das entrevistas que realizei, e também foi registrada por outra
pesquisadora do GPEA21 durante entrevista com outros quilombolas.
Com inspiração na Cartografia do Imaginário (SATO, 2011) agrupamos essas causas
aos quatro elementos: Terra, Água, Fogo e Ar; no agrupamento utilizamos o critério de
maior semelhança, contudo ressaltamos que essas causas se tocam e abrangem mais de
um elemento (Figura 25).
Figura 25: Causas propulsoras de conflitos, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017.
Fonte: Arquivo pessoal de Déborah Moreira, 2017.
21 A concepção de grupo pesquisador, que faz pesquisa de modo coletivo, nos permite utilizar informações
obtidas por outros integrantes do grupo.
104
4.2.1 Conflitos socioambientais relacionados ao elemento Terra
Para identificar as causas propulsoras dos conflitos socioambientais utilizamos
imagens representativas de cada causa (Quadro de figuras 26) e elaboramos mapas
temáticos relacionados aos elementos: Terra, Água, Fogo e AR, onde identificamos
quais as comunidades que vivenciam estes conflitos.
Quadro de Figuras 26: Ícones das causas propulsoras dos conflitos socioambientais. Fonte: Desenhos de Cristiane Almeida.
Disputa por terra
A disputa por terra iniciada em 1889, entre quilombolas e fazendeiros, e entre
quilombolas e garimpeiros, é a principal força motriz dos conflitos em Mata Cavalo
(Figura 27). Caso perdure a morosidade para regularizar a situação fundiária do território
quilombola, esse conflito tende a se agravar nos próximos anos em função da expansão
do agronegócio e dos monocultivos de soja que tem se disseminado na região.
Os presentes conflitos de terras que envolvem as comunidades quilombolas não as distinguem por localidade [...]. Os principais fatores dessa situação se relacionam à sobreposição dos interesses territoriais das comunidades com os do agronegócio, do mercado de terras e das elites políticas e civis regionais e nacionais. Outro elemento que complexifica essa situação de conflito é a baixa efetivação do procedimento de titulação das terras das comunidades quilombolas por parte dos órgãos governamentais responsáveis pela sua implementação (CONAQ, 2010, p.279).
105
A situação de Mata Cavalo não é um caso isolado, conforme foi demonstrado por
Jaber-Silva (2012) no mapeamento dos conflitos socioambientais de MT. A disputa por
terra é histórica neste estado, sendo “[...] prevalecente, e configura-se como a principal
causa propulsora de conflitos, na soma de um total de 79 focos, o que corresponde a 22%
do universo das causas apontadas”. A autora compreende sua tese como um retrato
temporário da realidade e acredita que esse cenário deve ser ainda mais grave do que foi
revelado.
Desmatamentos
Os desmatamentos em Mata Cavalo são promovidos principalmente por
fazendeiros que praticam a pecuária e por garimpeiros que de criminosamente realizam
a extração de ouro (Figura 27). Essa atividade gera impactos socioambientais e agrava
os conflitos entre os/as quilombolas e os sujeitos que as promovem.
O desflorestamento leva à degradação ambiental e ocasiona alterações climáticas,
assoreamento dos corpos d’água, alterações no ciclo hidrológico, diminuição da
disponibilidade de água, além de perdas nas interações ecológicas com consequente
perda de espécies, populações, comunidades e ecossistemas.
A expansão do cultivo de soja que se aproxima do território quilombola é uma
atividade que potencialmente pode aumentar os desmatamentos no quilombo, caso os
fazendeiros/expropriadores que estão na área decidam iniciar o cultivo desta espécie.
Até 2009 a região de transição entre Cerrado e Pantanal era considerada inóspita para o
seu plantio (DOMINGUES; BERMANN, 2012), contudo, o cultivo desta cultura vem se
expandido também para essa região.
Em Poconé, município que faz divisa com Nossa Senhora do Livramento, o cultivo
de soja vem se consolidando e avança em direção ao quilombo. Também verificamos que
uma fazenda localizada em Nossa Senhora do Livramento, que faz divisa com território
quilombola, cultivou uma pequena área em 2016.
106
Pecuária
A pecuária é a principal atividade econômica desenvolvida pelos
fazendeiros/expropriadores que estão no território quilombola, sendo necessárias
extensas áreas para a criação de gado, o que leva a perda da biodiversidade em função
do desmatamento, além da degradação do solo e prejuízo de seu banco de sementes
por meio do pisoteio; todas essas características da pecuária contribuem para gerar
conflitos entre os quilombolas e os expropriadores (Figura 27).
O estado de Mato Grosso detém o maior rebanho bovino do Brasil, com 40% do
território ocupado pela pecuária, é também um dos campeões de desmatamento
(BRASIL, 2016; BRASIL, 2015). Os grandes criadores de gado contribuem para
manutenção do latifúndio, precarização da vida no campo e para o aumento da violência
e dos conflitos.
Garimpagem de ouro
A região onde está localizado o Quilombo de Mata Cavalo é conhecida desde
meados de 1700 pela abundante presença de ouro. Muitos garimpeiros já exploraram
essa região deixando para trás o rastro de degradação oriundo do garimpo (Figura 27).
Além de desmatamento, a garimpagem realizada com o uso de mercúrio promove
a contaminação do solo, do ar, das águas superficiais, dos seres aquáticos, além da
geração de pilhas de cascalho contaminado e de enormes crateras no chão, acabando
com a capacidade de regeneração natural do ecossistema, tornando inviável a produção
de vida nestes locais.
“Dentre os metais pesados o mercúrio é considerado o mais tóxico. [...] do ponto
de vista toxicológico, a ingestão de alimentos organomecuriais, [...] e a inalação de
vapores de mercúrio metálico em áreas de garimpo, representam risco de intoxicação.”
(SILVA, CÂMARA, NASCIMENTO, 2000, p.1). Para cada quilo de ouro produzido são
lançados até 1,3 kg de mercúrio (SILVA, CÂMARA, NASCIMENTO, 2000, p.1).
Atualmente o território quilombola encontra-se sob litígio e a garimpagem de ouro
107
está proibida, no entanto, a exploração acontece de forma clandestina, sem a licença do
órgão competente e com a utilização de mercúrio.
Especulação Imobiliária
Após a primeira década do ano 2000, quando diminuiu a violência física por
parte dos expropriadores contra a população quilombola, inúmeras pessoas começaram
a ocupar áreas em Mata Cavalo, apresentando documento da compra de lotes (Figura
27). Contudo, a área não pode ser vendida pelos fazendeiros, pois está sob litígio, nem
por quilombolas, a terra de quilombo é bem de uso e posse coletiva, sendo proibida a
venda.
Sobre a especulação imobiliária em território quilombola, Boaventura de Souza
Santos (2010, p.310) se manifestou por meio de abaixo-assinado enviado ao STF,
reafirmando que a posse coletiva foi uma “forma de defesa da comunidade contra a
especulação imobiliária e os interesses econômicos, as terras são de propriedade coletiva
(como sempre o tinham sido, historicamente) e inalienáveis”. E é justamente esta
“condição de ‘terras fora de comércio’, aliada ao grau de preservação ambiental, que
explica, em parte, a cobiça de mineradoras, empresas [...]” (SANTOS, 2010, p.310) e
fazendeiros.
Os moradores de Mata Cavalo têm sofrido muito como o processo de especulação
imobiliária. Durante as entrevistas e no encontro de mapeamento por diversas vezes nos
foram narradas cenas deste processo de invasão. Quanto mais o Estado burocrático
brasileiro demorar para regularizar a situação fundiária pior tende a ficar este conflito.
4. 2.2 Conflito socioambiental relacionado ao elemento Água
Disputa por Água
No mundo, 70% da água potável vão para o agronegócio e apenas 4% para o consumo
humano. Estima-se que mais de 1 bilhão de pessoas estão privadas do direito à água potável [...]
Em outubro de 2013, a ONU já advertia que em 2030 pelo menos 40% da humanidade sofrerá
108
escassez de água (FERNANDES, 2015, p.112).
A população de Mata Cavalo também enfrenta dificuldades para acesso à água potável, e
embora o território seja rico em corpos d’água o acesso a água não é fácil, a população
padece sem rede de distribuição. Além disso, os desmatamentos promovidos
principalmente em função da pecuária e da garimpagem levaram à degradação ambiental
e consequente diminuição na disponibilidade deste componente natural. Os
assoreamentos das nascentes, córregos e rios, a poluição pelo uso de mercúrio (garimpo)
e a dominação particular dos locais de acesso à água, têm agravado os conflitos por
disputa por água (Figura 28).
Se considerarmos que Mato Grosso, estado promissor para o agronegócio, possui o
maior rebanho bovino do país, é o maior produtor de soja, milho e algodão, além de ser o
maior consumidor de agrotóxicos no Brasil (CARNEIRO, 2015), perceberemos que os
conflitos em função das disputas por água tendem a se agravar em todo o estado,
principalmente em função da expansão do hidronegócio (empreendimentos energéticos
e hidrovias). As mudanças climáticas e as alterações no ciclo hidrológico devem contribuir
ainda mais para o agravamento.
Neste cenário caótico, são os povos indígenas, as populações quilombolas,
camponesas e as chamadas minorias, que mais sofrerão e ficarão expostas aos riscos e
impactos deste modelo de desenvolvimento desigual.
4.2.3Conflito socioambiental relacionado ao elemento Fogo
Queimadas
Em Mata Cavalo há predomínio da vegetação de Cerrado e nos meses de agosto a
outubro a população sofre com o aumento das queimadas, prática comum usada para
“renovar” o pasto (Figura 29).
Esta atividade compromete e afeta as diversas formas de vida, contribuindo para a
degradação do solo, perda da biodiversidade, além de contribuir para o agravamento do
calor, alterações climáticas e ocasionar queda na qualidade de vida.
As queimadas ilegais geram conflitos principalmente por serem realizadas sem o
devido controle e atingir vários lotes, queimando os roçados e afetando também a
109
saúde dos/as moradores/as.
4.2.4 Conflito socioambiental relacionado ao elemento Ar
Uso de agrotóxico
O Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo e Mato Grosso, estado
promissor do agronegócio, é o campeão brasileiro, consumindo 18,9% do total utilizado
no país. Em seguida vem São Paulo (14,5%), Paraná (14,3%), Rio Grande do Sul (10,8%),
Goiás (8,8%), Minas Gerais (9,0%), Bahia (6,5%), Mato Grosso do Sul (4,7%), Santa Catarina
(2,1%) e 10,4% pelos demais estados (PIGNATI; OLIVEIRA; SILVA, 2014).
Em 2010, Mato Grosso (MT) cultivou 9,6 milhões de hectares de soja, milho,
algodão e cana-de-açúcar e pulverizou 110 milhões de litros de veneno. Por ser o maior
produtor de milho, algodão e soja, e o grande consumidor de agrotóxico, diversas
empresas produtoras destes venenos começaram a trazer sedes para o estado. A
facilidade para adquirir estes produtos, a falta de incentivo aos pequenos produtores e as
dificuldades enfrentadas pelos/as camponeses/as, como no caso dos quilombolas de
Mata Cavalo, têm levado ao consumo destes produtos (Figura 30).
O uso de agrotóxico ainda instalou conflitos em Mata Cavalo, no entanto,
considerando que os usos destes produtos ocasionam a contaminação do solo, do ar, do
lençol freático, dos rios e dos seres vivos, esta pode vir a ser uma causa propulsora, dado
que essas consequências ambientais podem interferir na relação entre cultura e natureza.
Neste cenário triste e caótico, no qual a preocupação com o capital está acima da
preocupação com a vida, o uso indiscriminado destes venenos vem crescendo de maneira
alarmante, comprometendo a qualidade ambiental, promovendo a poluição dos
componentes naturais e colocando em risco a saúde e o bem-estar de todas as formas de
vida (CARNEIRO; RIGOTTO; AUGUSTO, 2015).
110
Figura 27: Mapa temático dos conflitos socioambientais relacionados com o elemento terra, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017. Fonte: Arte: Cristiane Almeida; Organização: Cristiane Almeida e Déborah Moreira, 2017.
111
Figura 28: Mapa temático dos conflitos socioambientais relacionado com o elemento água, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017. Fonte: Arte: Cristiane Almeida; Organização: Cristiane Almeida e Déborah Moreira, 2017.
112
Figura 29: Mapa temático dos conflitos socioambientais relacionado com o elemento fogo, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017. Fonte: Arte: Cristiane Almeida; Organização: Cristiane Almeida e Déborah Moreira, 2017.
113
Figura 30: Mapa temático dos conflitos socioambientais relacionado com o elemento ar, Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017. Fonte: Arte: Cristiane Almeida; Organização: Cristiane Almeida e Déborah Moreira, 2017.
114
Figura 31: Mapa temático dos conflitos socioambientais do Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017. Fonte: Arte: Cristiane Almeida; Organização: Cristiane Almeida e Déborah Moreira, 2017.
115
Nos mapas apresentados, a área das seis comunidades que formam o complexo
quilombola de Mata Cavalo foi delineada por aproximação. Em todas elas há
quilombolas convivendo com fazendeiros e fazendo a resistência (Figura 32).
As seis comunidades que compõem o quilombo foram formadas a partir de
troncos, com as famílias distribuídas conforme os laços de parentesco e afinidade
(BARROS, 2007).
O termo tronco é utilizado pelos quilombolas para se referir à seus ancestrais escravizados, a partir dos quais se arquiteta uma engenharia social tecida ao longo de sua história secular, servindo de esteio às identidades internas que se vinculam à direitos territoriais. Todo Negro de Mata Cavalo é referido a uma das comunidades e a um “tronco” [...] (BARROS, 2007, p.4).
Essa lógica de distribuição que persiste ainda hoje no quilombo, revela que há
“outras matrizes de racionalidade subalternizadas resistindo, r-existindo, desde que a
dominação colonial se estabeleceu” (PORTO-GONÇALVEZ, 2006, p.135). Nessa linha,
adotamos o termo r-existência na perspectiva de PORTO-GONÇALVEZ (2006). Para além
da resistência, ação reflexa e reação reflexiva à uma ação anterior, compreendemos que
os grupos subalternizados, pelo modelo moderno-colonial, como os quilombolas, existem
e agem entre duas lógicas, com “uma determinada matriz de racionalidade que age nas
circunstâncias, inclusive reage, a partir de um topoi, enfim, de um lugar próprio, tanto
geográfico como epistêmico” (PORTO-GONÇALVEZ, 2006, p.135). A R-existência no
quilombo se faz cotidianamente.
A herança escravocrata consolidou no imaginário da elite latifundiária a ideia
dos/as negros/as como coisas ou no máximo seres inferiores; não se admite esta
população como sujeitos de direitos. A expropriação do território é uma das bases da
inferiorização dos/as quilombolas, pois, sem lugar são decretados como inexistentes,
invisíveis e, portanto, sem direitos. O estado burocrático brasileiro foi e é um braço forte
nesse processo de inferiorização, e com sua política simbólica de reconhecimento,
oferece um título de comunidade quilombola que não se traduz em melhoria das
condições de vida, sendo uma solução parcial que aprofunda e reforça as linhas abissais
(SOUZA; MENEZES, 2009; ARROYO, 2012).
116
Figura 32: Mapa dos marcos históricos do Quilombo de Mata Cavalo, Mato Grosso, 2017. Fonte: Arte: Cristiane Almeida; Organização: Cristiane Almeida e Déborah Moreira, 2017.
117
Os fazendeiros/expropriadores continuam a viver e praticar atividades econômicas
na terra, mesmo com laudo antropológico (BARROS, 2007) comprovando que o território
pertence aos antepassados dos quilombolas. Concretamente os quilombolas estão na
terra sem título legal e, portanto, podem ser decretados como sem território, ou
inexistentes. “Nessa lógica de produção dos outros e dos espaços, territórios se
pressupõem uma impossibilidade de copresença entre territórios, espaços de existência,
legais e da inexistência, ilegais” (ARROYO, 2012, p. 202). Inexistentes, porque sem
documento de posse efetiva da terra, sofrem com conflitos socioambientais agravados
em função da disputa por terra e da omissão do Estado burocrático brasileiro.
As denúncias de negações de direitos dão pistas do caráter deformador da
expropriação, que é também uma tentativa de desenraizamento cultural. Neste contexto
de violações, as ações táticas encontradas nas brechas são centrais para ações de
resistência, é também, no nosso entendimento, uma forma de romper com a
inferiorização racial que ainda povoa o imaginário de alguns indivíduos.
Os/as quilombolas, desumanizados pelo processo diaspórico vivenciado a partir da
expropriação de suas terras, buscam recuperar sua humanidade quando se rearticulam
para retomar o território e o ocupam, cobrando do estado outras políticas,
reconhecendo-se como sujeitos políticos e de políticas, iniciando também um processo de
humanização dos seus opressores. Freire (1987, p. 30), na Pedagogia do Oprimido
compreende que esta é “a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se
a si e aos seus opressores.”
Compreendendo a força da legalidade neste processo, todas as seis comunidades
que formam o complexo do Quilombo de Mata Cavalo estão organizadas em associação
de produtores rurais, uma tentativa de mostrar sua existência, “lutam por lugares de
pertencimento político e cidadão. Contra segregação espaço-político-racial e lutam contra
o colonialismo interno que continua na República e na democracia” (ARROYO, 2012,
p.205).
Os/as quilombolas de Mata Cavalo lutam contra o racismo da sociedade, contra o
racismo institucional e corrosivo das instituições públicas e contra o racismo ambiental. A
população tem sido obrigada a suportar uma carga desproporcional dos danos e
prejuízos ambientais oriundos da ação dos expropriadores que geram os conflitos
socioambientais. As ações de fazendeiros e garimpeiros degradam o ambiente e
118
ameaçam diretamente os seus modos de vida e sua cultura, que está intimamente
relacionado com a natura e a conservação dos bens naturais; sofrem com as injustiças
ambientais que são potencializadas pela omissão e ineficiência do estado burocratizado.
O racismo institucionalizado em algumas instituições do estado tem protelado a
regularização fundiária e dificultado o acesso às políticas destinadas à população
quilombola.
Os/as moradores do quilombo, por meio de formação política popular vivenciada
na união tática entre escola e comunidade, nos encontros mensais das associações
quilombolas, e através da reinvenção da educação na escola do quilombo, repolitizam a
luta por território e por educação, pressionam o estado com suas tímidas políticas de
reconhecimento de direitos e, de certo modo, contribuem para deslocar as linhas abissais
em que foram pensados como inferiores.
No próximo capítulo abordaremos a importância da escola do quilombo para a luta
quilombola pelo território.
120
“Ninguém escapa da educação” (BRANDÃO, 1981, p.3), pois em todos os espaços
onde há seres humanos há processos educativos, têm-se então educações e saberes
diversos. No entanto, a partir do século XVII o saber científico transformou-se em única
forma de conhecimento válido (SANTOS; MENESES; NUNES, 2004), contribuindo para o
que Santos denominou de epistemicídio22 (2010).
Neste contexto, a escola regida pela lógica moderna com o ensino baseado na
ciência branca e europeia, assentada no “pensamento abissal”, se transformou no espaço
“legítimo” da educação. Meritocrata e excludente, a educação escolar tradicional utiliza
diversos mecanismos homogeneizantes. Esta educação que Paulo Freire denominou de
bancária, se utiliza da pedagogia do suplício, utilizada desde a Idade Média e descrita por
Foucault em Vigiar e punir (1999), empregando o castigo e a pena para conter os que não
se encaixam nas normas escolares.
A instituição de ensino tradicional dociliza por meio da disciplina e produz corpos
submissos e exercitados, o poder disciplinar adestra corpos e mentes, a disciplina toma
os indivíduos como objeto e instrumento para o seu exercício, “é um poder modesto,
desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente.”
(FOUCAULT, 1999, p.143). Todos os que não se encaixam nas normas da escola
homogeneizadora são punidos com advertências, suspensões, reprovação e expulsão.
Este modelo educacional moderno permite e reforça o domínio de uns sobre
outros, funciona como um “sistema de classificação social, política, econômica e cultural,
inseparável de uma classificação étnica, sexual e racial” (ARROYO, 2012, p.151), mesmo
com o fim do colonialismo, a colonialidade23 permanece, mantém e naturaliza com sua
pedagogia abissal a desigualdade social.
Contudo, essa história de dominação e subordinação nunca ocorreu separada das
histórias de lutas. Diversos grupos sociais marginalizados por esse sistema têm feito
resistências e taticamente vêm buscando romper com a colonialidade. Na busca por 22 Epistemicídio é o termo usado por Santos (2010) para designar a morte de um conhecimento local perpetrada por uma ciência alienígena. 23 “O conceito de Colonialidade é diferente de Colonialismo. Este último refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e de trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial. Mas nem sempre, nem necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, enquanto a colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoura que o colonialismo. Mas foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e, mais ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjetividade do mundo tão enraizado e prolongado” (QUIJANO, 2005).
121
reafirmar outras pedagogias, como as pedagogias dos movimentos indígenas, do
movimento negro e do movimento quilombola, os outros sujeitos lutam pela reparação
histórica, por políticas afirmativas, por melhores escolas e condições dignas de vivência
para produção de vida (ARROYO, 2012).
Reinventar uma educação escolarizada à maneira desses grupos é uma tática de
resistência viável no combate à colonialidade do poder que subalterniza grupos étnicos e
raciais, a “educação sobrevive aos sistemas e, se em um ela serve à reprodução da
desigualdade e à difusão de ideias que legitimam a opressão, em outro pode servir à
criação da equidade” (BRANDÃO, 1981, p.45).
Neste sentido, defendemos a tese de que a Escola Estadual Tereza Conceição de
Arruda do Quilombo de Mata Cavalo vem se constituindo em um lócus de resistência. A
escola, juntamente com a comunidade têm unido forças para enfrentar a ordem injusta, e
vêm encontrando no cotidiano caminhos para projetos e ações que contribuem para
superar as pedagogias de dominação.
5.1 O chão da Escola
A luta pela educação escolarizada no quilombo é tão antiga quanto a luta pela
terra. O senhor Antônio Mulato, morador mais velho de Mata Cavalo, hoje (2016) com 111
anos, narra que em 1925 recorreu ao prefeito de Nossa Senhora do Livramento e pediu
que fosse disponibilizada uma professora para ensinar às crianças da comunidade, na
época ele e outros companheiros/as reuniram 60 crianças do quilombo e do entorno
(CASTILHO, 2008; SENRA, 2009).
O prefeito, provavelmente por ter interesse na terra quilombola, atendeu ao
pedido e enviou a professora para ensinar as crianças, contudo, após alguns dias, 40
crianças foram mandadas de volta para casa. A professora havia escolhido 20 crianças
para estudar, "só os filhos dos brancos, porque ela falou que filho de negro não podia
estudar lá” (Sr. Antônio Mulato, entrevista concedida à SENRA, 2009).
Este é mais um caso de racismo vivenciado pela população, “a escola para as
crianças de Mata Cavalo era apenas um sonho distante que o preconceito transformado
em política não permitira que se tornasse realidade (MANFRINATE, 2011, p.117). Por meio
de Freire compreendemos que a negação da educação aos negros/as do quilombo foi um
122
ato de violência simbólica usado para garantir a continuidade da dominação, “toda
relação de exploração, de opressão já é, em si, violenta. [...]. É, a um tempo, desamor e
óbice ao amor. Óbice ao amor na medida em que dominador e dominado,
desumanizando-se o primeiro, por excesso, o segundo, por falta de poder, se fazem
coisas” (FREIRE, 1987, p.56).
No entanto, a comunidade não desistiu do sonho de ensinar as crianças sobre o
mundo das letras, e na década de 1950, a filha do senhor Antônio Mulato, Tereza
Conceição de Arruda, que estudou em Poconé no internato das freiras até a 4ª série,
começou a dar aulas no quintal de sua casa para as crianças tornando-se a primeira
professora quilombola da comunidade. A insistência da população do quilombo para ler o
mundo das letras e o interesse pelo conhecimento letrado, entendido na perspectiva
freiriana, é uma atitude revolucionária, “ato criador e ao mesmo tempo político” (FREIRE,
1978, p.13).
Em entrevista concedida à Manfrinate (2011), dona Tereza conta que teve épocas
em que contava 40 crianças estudando com ela. A professora conseguiu ter sua atividade
remunerada pela prefeitura, contudo, o estado não reconheceu a sua sala de aula, talvez
porque mesmo sem escola construída, sem merenda e com baixíssimo salário “o ato de
ensinar a ler e a escrever, representavam uma transgressão à ordem vigente”
(MANFRINATE, 2011, p.122). Por falta de reconhecimento do estado, Tereza foi obrigada a
lecionar na escola da cidade, e mais uma vez o projeto de educação escolarizada no
quilombo foi desarticulado pelo estado de Mato Grosso, provavelmente por
compreenderem a natureza política do processo educativo e o potencial de
conscientização por meio da vivência coletiva e da comunhão (FREIRE, 1987; FREIRE,
1987).
Somente em 1996, a comunidade de Mata Cavalo, apoiada pelo movimento
quilombola de luta pela terra, conseguiu rearticular a escola no quilombo. Erguida na
comunidade de Mata Cavalo de Baixo, pelos/as próprios/as moradores/as com madeiras e
palhas, a Escola Municipal São Benedito, funcionava com duas professoras, filha e neta de
Tereza Conceição de Arruda. Inicialmente foi oferecida a educação infantil e os anos
iniciais do ensino fundamental. Em 2006, depois de muita luta, a comunidade conseguiu
implantar a Educação de Jovens e Adultos (EJA) (SATO, 2010; CASTILHO, 2008). A luta por
educação no quilombo é, em certa medida, uma luta contra a “história política de
123
dominação cultural” (ARROYO, 2012, p.112).
No entanto, em 2007, após denúncias de precariedades na estrutura física da
Escola, o Ministério Público Estadual de Mato Grosso24 decretou a interdição da Escola
São Benedito. Mais uma vez a população de Mata Cavalo foi penalizada em função da
ineficiência do próprio estado. Nesta época, a Secretaria de Educação do Estado de Mato
Grosso (SEDUC) assumiu o compromisso de construir uma escola de alvenaria em Mata
Cavalo de Baixo. Até que esta ficasse pronta os/as estudantes da unidade interditada
estudariam na Escola Rosa Domingos, localizada na comunidade Mutuca, construída em
2002 por meio de financiamento de uma ONG internacional.
Cinco anos depois, já em 2012, o estado cumpre com a obrigação e entrega para
população a nova escola, que recebeu o nome da primeira professora do quilombo
(falecida em 2011). A inauguração da Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda foi
comemorada com muita alegria. Em 2016, a unidade Escolar atendeu 210 estudantes, com
Educação Infantil e Ensino Fundamental I no período matutino, e Ensino Fundamental II,
Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) no período vespertino.
Além da vivência no cotidiano escolar, para escrever este capítulo entrevistamos
estudantes e professoras. Das quatro professoras entrevistadas, uma delas está
atualmente na gestão da unidade e as outras lecionam no Ensino Fundamental II e no
Ensino Médio. Deste universo, uma mora no quilombo, na comunidade conhecida como
Estiva/Ourinhos e as outras três residem no município de Nossa Senhora do Livramento,
sendo que duas têm ancestralidade quilombola. Os quatro estudantes entrevistados
estão cursando o Ensino Médio e moram no quilombo, sendo um na comunidade Mutuca
e três em Mata Cavalo de Baixo.
Chamou-nos a atenção o fato de todas/os as/os entrevistadas/os se identificarem
como quilombolas, inclusive a professora que não tem ancestralidade no quilombo, esse
resultado pode ter sido em função da pergunta: você é quilombola? O que de certa
maneira pode ter induzido a essa resposta; ou por outro lado, também pode ser
entendida como forte identificação e afinidade com os/as quilombolas e com a sua luta, já
24 “O Ministério Público do Estado requereu por meio da promotora de Justiça, Silvana Correa Viana, e a Prefeitura do município de Nossa Senhora do Livramento decretou a interdição imediata das atuais instalações da Escola Municipal São Benedito, até que se providencie a construção de um prédio em condições de abrigar a escola”. Disponível em: <https://mpmt.mp.br/conteudo.php?sid=58&cid=41453>. Acesso em: 24 ago. 2016.
124
que há alguns anos essa pessoa é professora no quilombo, antes mesmo desta escola ter
sido inaugurada.
O tempo de moradia das/os entrevistadas/os no quilombo varia de 6 a 59 anos.
Devido ao processo de expropriação, grande parte dos/as descendentes de negros/as
escravizados/as começaram a retornar a partir de 1996, após terem os direitos territoriais
garantidos constitucionalmente. As cinco pessoas entrevistadas que residem no
quilombo, demonstraram por meio de suas falas forte ligação com o território, reforçada
pela memória ancestral e pela história de luta da comunidade, como se percebe abaixo:
O que me faz permanecer no quilombo é o costume, a família, aqui é o lugar onde cresci, onde meus antepassados viveram, não me vejo morando em outro lugar, estudei e arrumei um emprego aqui para não precisar sair da comunidade [...] também o querer ajudar a comunidade, porque no passado nós sofremos muito: despejos, humilhações, as pessoas chamavam a gente de sem terra, ladrão de terra, aí dava vontade de ir embora, mas quando a gente toma consciência, tem orgulho de ser quilombola e quer ficar para ajudar a comunidade. (Dandara, 2015, Mata Cavalo).
Na perspectiva de Medeiros o “território é um espaço de identidade, o sentimento
é a sua base [...]”. O local demarca a existência do território, que por sua vez é a condição
para que o espaço se humanize (2009, p. 217). Compreendemos que os processos
educativos ocorrem em todas as unidades de partilha da vida, sendo também o território
um lugar educativo relacionado com a cultura e a história de um povo.
Aqui queremos ressaltar a importância da socialização e do trabalho pedagógico
realizado na Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda para a tomada de consciência de
que nos fala Dandara, para o desenvolvimento da pertença, do orgulho de ser negro e
quilombola e, sobremaneira, para o fortalecimento da resistência. Neste local são
trabalhadas as histórias de luta vividas pelos/as ancestrais, de modo que nas atividades há
uma intencionalidade político-pedagógica a fim de provocar reflexão sobre a condição de
opressão vivenciada pelo grupo.
Esse processo educativo é semelhante ao que vem sendo realizado em alguns
países da América Latina, como Colômbia e Equador, com o nome de “etnoeducação”. O
termo demarca uma educação voltada para as culturas dos/as afrodescendente e para o
sentimento pertencimento dos/as negros (ARBOLEDA, 2015; CANDAU; RUSSO, 2010).
125
A relevância deste trabalho fica evidente quando compreendemos por Arroyo
(2012, p.113) o “caráter deformador da longa história de desenraizamentos culturais e
identitários” que os grupos indígenas e negros foram alvo desde o processo de
colonização da América. A professora quilombola nos narra o preconceito, a
discriminação e a exclusão que vivenciou durante a infância e adolescência quando teve
que ir para Nossa senhora do Livramento cursar o Ensino Fundamental II e o Ensino
Médio:
[...] eu assumo, eu tinha vergonha de falar que eu era quilombola, eu não falava que era quilombola. As pessoas perguntavam onde você mora? Eu falava: - moro ali pra frente, pro lado de Poconé. - Ah, mora em Mata Cavalo? Se eu dissesse que era em Mata Cavalo as pessoas ficavam tirando sarro, falando que eu era sem terra; quando voltava do intervalo tinha bilhetinho no caderno chamando de ladrão de terra. Então não era muito bom ser quilombola, a gente ficava meio assim, né! Não tinha aquele orgulho. Agora não […] A escola [do quilombo] ensinou muito que não precisa ter vergonha, que nossa história é uma história de luta, não é assim, veio e tomou terra de alguém, tem todo um contexto histórico antes (Dandara, 2015, Mata Cavalo).
A experiência brutal e abissal vivenciada durante a infância demonstra como foi
negativa a convivência na escola “estrangeira”. A narrativa demonstra a falta de
competência da escola do município para lidar com as diferenças; em locais como este a
diversidade só será positiva se não estiver ligada a dimensão econômica, política e social
(LARROSA, 2002).
A interculturalidade nestes espaços tradicionais é do tipo funcional (TUBINO,
2005), ou seja, uma estratégia voltada para o multiculturalismo neoliberal que não
questiona as causas das assimetrias socioculturais (WALSH, 2009). Candau; Russo (2010)
argumentam que no Brasil e em diversos países da América Latina a escola exerceu um
papel fundamental no processo de homogeneização cultural, difundindo e consolidando
uma cultura comum de base ocidental eurocêntrica, abafando vozes, saberes, silenciando
cores e crenças.
Esta socialização é uma das maneiras de manter a subalternização dos grupos que
historicamente foram excluídos, transformando-os em coisas ruins, ou, como narrado, em
ladrões. A convivência em uma instituição de ensino tradicional exerce força
conformadora de naturalização das supostas inferioridades/superioridades (ARROYO,
126
2012). Diversas pesquisas realizadas em Mato Grosso sobre relações étnico-raciais
denunciam as relações desiguais entre estudantes brancos/as e negros/as, onde os
primeiros de forma violenta estabelecem relação de subalternização com os segundos
(JESUS, 2005; SANTOS, 2005; MÜLLER, 2006).
Com a pedagogia do oprimido, compreendemos por Freire, que, como no caso dos
quilombolas de Mata Cavalo, quando os oprimidos legitimamente se levantam contra os
opressores (expropriadores), em quem identificam a opressão, é a eles/elas que se
chamam de violentos/as e de bárbaros/as. “É que, entre os incontáveis direitos que se
admite a si a consciência dominadora tem mais estes: o de definir a violência” (FREIRE,
1987, p. 57).
O depoimento da professora nos dá a dimensão do valor da escola dentro do
território. Em sua entrevista, Dandara evidenciou a importância do trabalho político desta
instituição que tem auxiliado a romper principalmente com a colonialidade do ser. Sendo
assim, esta unidade educacional tem profunda relação com a comunidade, o seu chão é o
mesmo chão de luta dos quilombolas, em comunhão todas e todos são educados/as para
valorizar a cultura e os modos de vida deste povo.
Enquanto esta escola tem contribuído para valorização da cultura negra e para o
enfrentamento do racismo, a escola do município foi para essa professora um espaço
extremamente cruel e opressor, deixando marcas indeléveis, ela narra que:
“Devido às dificuldades para chegar até a escola e os atrasos em função do transporte, eu tinha uma professora que queria me reprovar, sofri muito com o racismo de toda escola” (Dandara, 2015, Mata Cavalo).
Essa pedagogia moderna da qual a entrevistada foi vítima, se construiu atrelada ao
sistema de classificação social e contribuiu para reforçá-lo, “as teorias pedagógicas são
concebidas em função da malha de relações de poder e do lugar de cada coletivo racial,
étnico, de gênero nas relações racistas de dominação/subordinação” (ARROYO, 2012,
p.153, 154).
Essa educação usada para legitimar a exclusão e o adestramento, pune
principalmente aquelas/es que não são tão passivas/os e/ou que por outros motivos não
obedecem aos padrões do modelo eurocentrado; preocupa-se apenas em transmitir
conhecimentos e conteúdos descolados da realidade e descontextualizados; não se
127
interessa pela vida e história das/os educandas/os, e serve apenas para legitimar a
desigualdade e manter o que Paulo Freire chama de comportamento de prescrição e
aderência ao opressor, “refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da cultura do
silêncio a educação bancária mantém e estimula a contradição” (FREIRE, 1987, p.34).
Nesse sistema o papel do educador/a e do educando/a são opostos “[...] o
educador é quem sabe, pensa, disciplina, opta e prescreve sua opção e os educandos os
que não sabem, os pensados, os disciplinados, os que seguem a prescrição [...] (FREIRE,
1987, p.34).
A colonialidade do poder, do saber, do ser e a ideologia racista que permeia os
diversos espaços e fortemente a escola tradicional, impossibilitam a concretização da
democracia para alguns coletivos. Desse modo, compreendemos que as desigualdades
que um grupo sofre em função de sua raça é problema de toda sociedade.
Mesmo após a abolição, e apesar da pressão do movimento negro e dos
movimentos sociais para o reconhecimento da importância dos/as negros/as na
construção deste país, os/as descendentes dos/as escravizados/as ainda sofrem com o
preconceito em um sistema educacional que é monocultural, eurocêntrico e excludente
(MUNANGA, 2010, p.50).
Apesar da discriminação racial e do preconceito serem “recorrentemente negados
como elementos estruturantes das relações sociais brasileira” (FILICE, 2010, p.9), diversas
pesquisas demonstram que o preconceito e racismo sofridos por Dandara na
adolescência ainda estão fortemente presentes nas escolas brasileiras e na sociedade
(JESUS, 2005; SANTOS, 2005; MÜLLER, 2006). De acordo com BACKES
é na vida cotidiana que os sujeitos se veem diante do dilema da reprodução cultural e da transgressão cultural, articulando a sua identidade no encontro com as diferenças. Assim, quando a vida cotidiana adquire novos contornos, mudam também os processos de
construção da identidade cultural (2006, p.430).
Neste sentido, o trabalho na escola do quilombo auxiliou Dandara a compreender
o valor da história de seu povo e a desenvolver o orgulho por ser quilombola. A existência
de escolas como esta é uma tática de resistência ao modelo educacional eurocêntrico e
uma forma de luta contra a colonialidade e a violência monocultural que as juventudes
quilombolas eram vítimas no sistema educacional municipal. Em trajetória contrária à
128
vivenciada pela professora durante sua adolescência na unidade educacional que
inferiorizava o seu povo, a escola do quilombo se diferencia por ter inserido no currículo a
cultura de seus antepassados.
A prática multicultural desenvolvida na escola não é orientada a silenciar a
diversidade cultural e a inibir os conflitos, mas a provocar o reconhecimento do valor de
outras culturas que foram inferiorizadas com a conformação do eurocentrismo. Nesse
caso o multiculturalismo é uma tática capaz de auxiliar na construção de sociedades não
racializada. Segundo Munanga,
O multiculturalismo está relacionado com a política das diferenças e com o surgimento das lutas sociais contra as sociedades racistas, sexistas e classistas. Por isso, a discussão sobre o multiculturalismo deve levar em conta os temas da identidade racial e da diversidade cultural para a formação da cidadania como pedagogia antirracista (MUNANGA, 2010, p.52).
“Frente aos argumentos de igualdade, de oportunidades e do mérito individual, o
multiculturalismo traz a defesa da diversidade cultural como uma alternativa política e
como um valor a ser perseguido e incentivado” (VIEIRA; MEDEIROS, 2009, p.14). Embora
o multiculturalismo tenha sido apropriado pelo capitalismo global, destacamos que nesta
vertente as dicotomias do sistema não são questionadas, mas neutralizadas, sendo o
reconhecimento da diversidade cultural mais uma estratégia de dominação (WALSH,
2009; WALSH, 2009).
Na Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda o multiculturalismo praticado não
é o mesmo que foi apropriado pelo capitalismo global. Um dos estudantes entrevistados
mostra que o trabalho educativo desenvolvido em Mata Cavalo tem contribuído com a
valorização da identidade e fortalecimento da resistência,
Eu tenho orgulho de ser quilombola, porque permanecer no quilombo é como se fosse permanecer numa guerra, eu sou quilombola e não vou esconder essa característica (Cruz e Souza, 2015, Mata Cavalo).
A narrativa evidencia o quanto a unidade de ensino tem contribuído para o
fortalecimento da cultura e da luta dos/as quilombolas de Mata Cavalo. Em nossa
compreensão este processo tem se dado por três vieses: disciplinas curriculares, projetos
129
educativos, e cultivando o vínculo entre escola e comunidade. Abordaremos a seguir cada
um deles.
5.2 Currículo da vida: uma tática para fortalecer a cultura quilombola
Diversas educadoras/es e pesquisadoras/es progressista têm reiterado a
necessidade das escolas construírem currículos significativos que contemplem os
conhecimentos gerais e globais, mas que igualmente deem atenção aos contextos locais,
e valorizem os saberes e os fazeres dos/as educandos/as e da comunidade na qual a
escola está inserida (BRANDÃO, 1991; SATO, 2001; PASSOS; SATO, 2002; AMERVAL; SILVA,
2016).
A escola de Mata Cavalo tem procurado caminhar valorizando os saberes e a
cultura do seu povo, construindo e re-construindo ano após ano um currículo
significativo. Além das disciplinas comuns que compõem o currículo da educação básica,
nesta unidade também são ministras outras três disciplinas voltadas para a realidade do
quilombo, o ensino destes componentes curriculares está previsto na matriz curricular
quilombola. São elas: Tecnologia Social (TS), que tem por objetivo valorizar e desenvolver
técnicas de baixo custo, voltadas para resolução de problemas sociais. Práticas Culturais e
Artesanato quilombola (PCAQ), busca a valorização do artesanato quilombola; nas aulas
as juventudes aprendem a fazer diversos artesanatos. Práticas Agrícolas Quilombola
(PAQ), pensada para valorizar a agricultura quilombola, visa ensinar os/as estudantes
sobre o cultivo das espécies botânicas importantes para a soberania alimentar e
incentivar as juventudes a cultivar a terra.
Essas disciplinas ganham ainda mais importância quando consideramos que,
grande número de famílias vive em pequenos espaços de terra, impossibilitados de
cultivarem grandes roçados para garantiriam a soberania alimentar da comunidade, de
modo que muitos/as jovens não têm aprendido com os pais sobre as práticas agrícolas,
situação que contribui para perdas culturais, e para aumentar os problemas sociais da
comunidade.
A escola do quilombo vem na contramão da cultura escolar tradicional que se
“configurou a partir da ênfase na questão da igualdade, o que significou na prática, à
130
afirmação da hegemonia da cultura ocidental europeia e a ausência no currículo de outras
vozes, particularmente das culturas originárias do continente e da cultura negra, [...]”
(CANDAU, 2013, p.15).
De acordo com os/as estudantes entrevistados, as disciplinas de Tecnologia Social,
Práticas Culturais e Artesanato Quilombola, Práticas Agrícolas Quilombola, história,
geografia e biologia são as que mais discutem os problemas ambientais do quilombo.
Embora a comunidade escolar já esteja discutindo problemas como: desmatamentos,
assoreamento dos corpos d’água e queimadas, todas as professoras e estudantes
entrevistados/as compreendem que isso ainda é pouco e que há necessidade de discutir e
problematizar mais a temática socioambiental com as comunidades escolar e do entorno.
Percebemos que as educadoras da escola têm trabalhado a história no sentido de
valorizar a cultura quilombola, no entanto, a dimensão ambiental e sua relação com a
cultura, bem como a necessidade da conservação para a manutenção do modo de vida,
necessita ser ainda mais trabalhada. Fortalecer os diálogos com a comunidade escolar e
do entorno sobre EA, justiça ambiental em interface com direitos humanos e da terra é
uma maneira de potencializar o trabalho de fortalecimento da resistência que é realizado
nesta unidade.
Durante o processo formativo em Escolas Sustentáveis no Quilombo e com a
realização das entrevistas, percebemos que a Educação Ambiental (EA) é trabalhada de
forma muito sutil e pouco politizada. A entrevistada narra que os diálogos sobre muitos
conflitos e impactos socioambientais ainda são incipientes:
Não, não é uma preocupação que se leva, às vezes eu que sou professora de biologia eu abordo um pouquinho, aí falo sobre desmatamentos, queimadas, [...] então eu falo: olha como era antes, puxo um pouco isso, mas não é um tema debatido. A questão do lixo é outro problema que nós temos, não há coleta, e falta um pouco de interesse dentro da comunidade para ver como que nós podemos trabalhar isso para diminuir o impacto (Dandara, 2015, Mata Cavalo).
Quando indagados sobre o ensino transversal da educação ambiental, houve
unanimidade no reconhecimento de que este assunto ainda está pouco presente no
cotidiano escolar. Considerando o contexto histórico de Mata Cavalo, é urgente
fortalecer a Educação Ambiental Popular, pois ela abre um leque de possibilidades para
131
trabalhar as dimensões habitantes-hábitos-habitats, as desigualdades sociais e as relações
com a injustiça ambiental.
Eu acho importante trabalhar nossa história e os conflitos socioambientais, porque é a nossa realidade, às vezes eu paro o meu conteúdo pra falar com o aluno, porque às vezes ele não está bem [...] só quem passa por um despejo sabe o quanto isso é difícil, o quanto atrapalha a questão da convivência, às vezes o aluno não está bem, e não é que ele é rebelde, muitas vezes está com problema em casa, seja porque não tem uma moradia interessante, ou porque está sofrendo com a questão da falta d'água e ele tem que fazer todo processo, levantar cedo, pra ir pegar água [...], então às vezes o aluno já vem estressado, já vem cansado, e muitas vezes o professor não tem essa sensibilidade de perceber quando o aluno está com problemas em casa (Dandara, 2015, Mata Cavalo).
É necessário utilizar-se da dimensão educativa dos conflitos socioambientais,
discutindo suas relações com a omissão do estado. Os diálogos com o coletivo
oportunizam a busca coletiva de soluções para problemas da vida cotidiana, bem como a
invenção de novas táticas de resistência (FREIRE; NOGUEIRA, 1993; COSENZA;
KASSIADOU; SÁNCHEZ, 2015). Apesar de este tema ser pouco explorado nas disciplinas,
os projetos educativos envolvendo a comunidade do entorno são caminhos viáveis para
preencher essa lacuna.
As questões socioambientais da comunidade precisam estar presentes nas
discussões da escola para que as juventudes compreendam as suas relações com a
concretização da cidadania. Na compreensão de Candau (2013, p.15), a reinvenção da
cidadania “perpassa os diferentes âmbitos da vida, articulação cotidiana, o conjectural e o
estrutural, assim como local e o global, numa progressiva ampliação do horizonte,
sempre na perspectiva de um projeto diferente de sociedade e humanidade”.
5.3 Os projetos educativos que fortalecem a cultura e reforçam a luta e a resistência
Os projetos desenvolvidos têm contribuído com a formação dos/as jovens, a
medida em são voltados para a valorização da cultura e combate ao racismo. As
juventudes que estudam na escola do quilombo participam de um bonito trabalho
educativo e têm a oportunidade de conhecer outra história do povo negro que não a
132
eurocêntrica, contribuindo para decolonialidade25 por meio de projetos como: Leitura de
Contos e Histórias sobre Negros/as, Hop Quilombola, Mulheres Negras Guerreiras, Feira de
Artes e Casa da Cultura (WALSH, 2009).
O projeto Leitura de Contos e Histórias sobre Negros/as foi importante por ajudar a
romper com a inferiorização tão presente nos livros didáticos (COSTA, 2010). A professora
destaca:
[...] um projeto muito bom foi o de leitura, em que trabalhamos a história dos negros, os contos negros, a questão do cabelo, a autoestima [...] (Mary McLeod, 2015, Mata Cavalo).
Diante da perversa colonialidade do ser, da desvalorização da estética negra e da
ideologia do branqueamento que conduzem essa população a comportamentos de auto-
rejeição, torna-se emergencial desenvolver projetos que buscam desconstruir o valor
negativo atribuído ao negro/a (SILVA, 2005; MUNANGA, 2005; SCHUCMAN, 2012). Os
padrões de beleza são construídos socialmente de acordo com os valores da sociedade,
dessa forma, conhecer outra história do povo negro e valorizar a estética negra são
instrumentos de empoderamento e resistência (SILVA; SANTOS, 2014).
Com este projeto os/as estudantes passaram a ler em sala de aula livros onde a
população negra não é subalternizada; apesar de importante, ele foi desenvolvido
somente em 2015, mas há intenção de ser retomado em 2017.
Outra importante contribuição para auxiliar no combate ao racismo tem sido o
projeto Hop Quilombola, que trabalha através da dança o pertencimento e o orgulho de
ser negro. As apresentações trazem referências culturais ligadas à ancestralidade e se
constitui em uma forma de luta contra a discriminação e o preconceito. Por meio deste
projeto os/as estudantes levam para fora do quilombo à história de luta da comunidade.
Com a dança eu senti orgulho de ser quilombola, senti a escola e a comunidade como minha, esse projeto me fez querer continuar morando
25 Utilizamos o termo decolonial pelos mesmos motivos que Catherine Walsh, ela retira o “s” para evidenciar a diferença de (des)colonizar, ela não pretende desfazer ou reverter o colonial, sua intenção é provocar posicionamento - uma postura e atitude e contínua - para transgredir, intervir, insurgir. Decolonial denota, um caminho de luta contínua em que podemos identificar, visibilizar e incentivar "lugares" a construções alternativas (WALSH, 2009, p.14-15).
133
no quilombo, se eu sair daqui vai ser só pra estudar, mas eu quero morar aqui (Rosa Negra, 2015, Mata Cavalo).
Outro participante do Hop Quilombola fala da relação entre escola e comunidade e
de sua percepção sobre o grupo:
A escola contribui para luta, o que nós mostramos aqui é o que nós já sofremos e é também o que nós queremos viver, como a dança, o projeto da dança vem mostrar que o povo quilombola ainda tá na guerra para conquistar as suas terras, seu lugar onde plantar, onde viver; igual a apresentação que nós mostramos na feira de arte: uma simples corrente pode arrebentar com a força da comunidade e da escola. A comunidade ajuda muito a escola, toda vez que chama a comunidade eles vêm, larga seus afazeres em casa e vem [...] (Cruz e Souza, 2015, Mata Cavalo)
O Hop Quilombola tem ajudado a formar politicamente os/as jovens participantes
para combater o racismo, despertando-os para a importância de fortalecer a luta e a
resistência da comunidade, além de desenvolver a autoestima e a pertença (Quadro de
figuras 33).
Quadro de figuras 33: Grupo de Dança Hop Quilombola se apresentando na IV Feira de Artes, Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, Quilombo Mata Cavalo, Mato Grosso, 2015.
134
Fonte: Regina Silva, 2015.
Em outro projeto, denominado Mulheres Negras Guerreiras, as juventudes foram
incentivadas a conhecerem a história de vida das mulheres quilombolas. Com o intuito de
compreender a importância feminina no contexto da luta pelo território, os/as jovens
entrevistaram diversas lideranças e produziram materiais pedagógicos com os resultados
da pesquisa. Esta foi a temática escolhida para Feira de Artes em 2015.
O projeto ganha ainda mais relevância quando consideramos que apesar de
diversos estudos discutirem a importância das mulheres no contexto da luta pelo
território, a sociedade ainda está distante de acabar com as desigualdades de gênero, e
quando se trata de mulheres negras, essa desigualdade se torna ainda maior. Embora
escrita há mais de 20 anos, a frase da militante e pesquisadora Sueli Carneiro é
extremamente atual: “as mulheres negras são socialmente desvalorizadas em todos os
níveis [...]” (CARNEIRO, 1995, p. 547).
A Feira de artes é outro projeto da escola que acontece todos os anos e tem seu
ápice em novembro, mês que marca a morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares.
Sempre com temática relacionada à questão racial, a feira que tem o objetivo de valorizar
a cultura negra e quilombola. A comunidade escolar desenvolve este projeto durante
todo o ano com aulas, estudos e pesquisas sobre a temática escolhida.
O projeto envolve a comunidade escolar e do entorno, os/as moradores ajudam
com a arrumação da escola e utilizam este espaço para vender artesanatos e comidas
típicas durante a feira. Os artesanatos quilombolas vendidos são confeccionados por
estudantes e pelos/as moradores da comunidade.
O mais recentemente projeto da escola foi a Escola Sustentável no Quilombo,
desenvolvido em parceria com o GPEA e a comunidade escolar e do entorno, culminou
com a construção do projeto ambiental escolar comunitário (PAEC) descrito com
detalhes no capítulo 3. O PAEC construído foi uma casa tradicional quilombola que
recebeu o nome de Casa da Cultura por abrigar em seu interior artesanatos e um acervo
de objetos que guardam histórias da comunidade.
O PAEC, construído durante o processo formativo em Escolas Sustentáveis,
oferece inúmeras possibilidades para trabalhar a educação ambiental popular. Ele
representa a “criação de práticas educativas e de produção de conhecimento a partir da
135
perspectiva da educação não formal, e, concretamente, da educação popular” e
educação ambiental (CANDAU, 2013, p.12).
A Casa da Cultura, além de valorizar os saberes quilombola, oferece possibilidades
pedagógicas para a problematização da realidade e dos conflitos socioambientais em
diálogo com a justiça ambiental e os direitos humanos (COSENZA; KASSIADOU; SÁNCHEZ,
2015).
Todos os projetos desenvolvidos na Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda
auxiliam no processo de decolonialidade na medida em que valorizam a história do povo
negro, a cultura quilombola e contestam a história eurocêntrica, possibilitando aos
educandos/as perceberem a hierarquização do conhecimento que coloca como superior a
cultura do branco europeu, seres civilizados e com valores elevados, em detrimento das
características dos povos negros que têm suas culturas e modos de vida inferiorizados.
A continuidade destes projetos e o desenvolvimento de outros que objetivem
combater a colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza são fundamentais para
que a escola do quilombo se diferencie cada vez mais das escolas tradicionais,
principalmente quando consideramos que a educação escolar é uma das dimensões
usadas para conformação da ideologia racista e da colonialidade.
Este povo tem reinventado a educação usando os mesmos mecanismos
(disciplinas curriculares e projetos) que as escolas tradicionais utilizam, mas com outra
intencionalidade, que não é a mesma “ ‘do colonizador’ da metrópole, ou a ‘do opressor’
do poder [...]” (BRANDÃO, 2008, p.51). Ao contrário, no quilombo a educação tem
auxiliado a comunidade por meio da formação das juventudes e do desenvolvimento do
pertencimento: “Um trabalho político que antes estava escondido sob o véu da “missão
pedagógica do civilizador” e que, agora, aparece desvelado, como a missão política de
participar do trabalho de libertação também através do ensino, da educação”
(BRANDÃO, 2008, p.51).
Acreditamos que a Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, que cultiva um
forte vínculo com a comunidade do entorno, é também um espaço fundamental no
combate ao racismo epistemológico “associado à produção de conhecimento e que está
em conexão com todas as outras formas de práticas e teorias racistas que chegaram a
partir do início do colonialismo europeu” (CRUZ e SÁ, 2009, p.53).
136
5.4 Os vínculos fecundos entre a escola e a comunidade
A formação dos/as jovens quilombolas têm sido enriquecida por meio do vínculo
fecundo entre escola e comunidade. Essa proximidade contribui para a politização das
juventudes, tornando-os parceiros nas lutas e fortalece a resistência. Uma das
entrevistadas fala sobre a relação escola-comunidade.
Essa escola é muito importante para luta, ela é um marco para nossa luta, através da escola nós conseguimos avançar em muitos requisitos que estava empatando a comunidade, hoje a comunidade está dentro da escola, a comunidade escolar juntamente com a comunidade quilombola andam juntas e tem que andar junto, porque nós precisamos uma da outra (Lelia Gonzalez, 2016, Mata Cavalo).
A territorialização da escola foi fundamental para aumentar a força da luta pelo
território. Coadunamos com Senra (2009, p.82) no entendimento de que “uma escola, no
quilombo, não é só uma escola [...]” não é mais uma instituição de ensino tradicional que
repassa conhecimento, é um local político comprometido com a emancipação de Mata
Cavalo. Por meio da estreita relação com a população do entorno e da valorização da
educação não formal, eles recriam outras possibilidades de aprendizado. Conforme já
explicitado no trecho da entrevista, essas duas comunidades taticamente e de maneira
não perene formam uma única comunidade na superação da opressão e da negação de
direitos.
O sistema educacional tradicional é um elemento importante na manutenção das
relações de dominação e exploração (FREIRE, 1987). Todavia, a Escola Estadual Tereza
Conceição de Arruda constitui-se em um espaço de poder onde ações significativas para a
superação desta lógica vêm sendo desenvolvidas, abrindo brechas e possibilidades para
ações educativas por meio da prática pedagógica contextualizada com a história deste
povo e da forte parceria com a comunidade quilombola.
Neste contexto destacamos a necessidade das lutas e enfrentamentos para que a
escola funcione com Educação Infantil, Educação Básica e Educação de Jovens e Adultos,
já que o reconhecimento por parte do estado da necessidade de uma escola no campo
para atender as especificidades desta população demandou muitos anos.
A luta dos/as quilombolas de Mata Cavalo tem uma perspectiva freireana à medida
137
que acarreta e conclama a dupla tarefa do oprimido de libertar a si e aos opressores.
Mesmo com o reconhecimento pela Constituição Brasileira de 1988, esse grupo ainda
sofre com a negação de sua condição de sujeitos de direitos sociais e coletivos. Costa
ressalta que
o racismo, orientando práticas e políticas sociais, se materializa em déficits para os negros nos mais diversos setores, como, saúde, educação, lazer, seguridade social, trabalho e renda, dentre outros. Essa realidade foi construída e continua sendo sustentada por um processo educativo escolar [...] (COSTA, 2010, p.13)
Neste jogo de opressão, os/as quilombolas resistem cotidianamente e cobram que
os direitos ao território, à educação, à saúde, à moradia digna e ao saneamento básico
sejam efetivados, ao lutarem por direitos e por políticas públicas obrigam o Estado a
reconhecê-los.
Lutam também diariamente para que Escola seja um local que possibilite o
aprendizado da cultura e dos saberes quilombolas. Neste sentido, a educação
escolarizada no quilombo é um ato de radicalidade importantíssimo para superação da
situação de opressão vivenciada pela população, “se a educação sozinha não transforma
a sociedade, sem ela tão pouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p.31).
As/os moradoras/es lutam também para se qualificar e se tornarem
professoras/es, pois entendem que ocupar este espaço de saber e poder é mais uma
forma de fortalecer a comunidade. Ressaltamos que em 2016 menos de 50% do total de
funcionários eram quilombolas, “ocupar os espaços, como escolas, é uma pedagogia
formadora e se contrapõe à histórica exclusão desses espaços” (ARROYO, 2012, p. 211).
Com a realização das entrevistas e com a vivência desta mestranda na
comunidade, ficou evidente que a escola é um espaço agregador em Mata Cavalo. Uma
das entrevistadas ressalta que:
A escola é muito importante para a nossa comunidade, ela nos ajuda com os cursos oferecidos para moradores, trazendo a comunidade para dentro da escola e ajuda também com a formação de estudantes [...] (Sueli Carneiro, 2016, Mata Cavalo).
A escola tem múltiplos significados para população. Nela acontecem os cursos de
formação oferecidos à comunidade, é o local onde as pessoas se encontram, dialogam
138
sobre o cotidiano e discutem os problemas que afetam a vida, é também onde são
realizadas as reuniões da associação para a articulação política. Em Mata Cavalo, não há
“muros” que separam Escola e Comunidade, pois, de acordo com as/os entrevistadas/os
sempre que as/os moradoras/es são chamadas/os para atividades da escola, há grande
participação:
Todas as atividades que a escola faz e envolve a comunidade, há uma participação bastante favorável. Quando eu vim para trabalhar nesta unidade escolar eu já percebi a boa relação entre escola e comunidade. A maior problemática da gestão na atualidade é a inserção dos pais e da comunidade dentro da unidade escolar, isso é uma problemática principalmente nos grandes centros, mas aqui não, sempre a comunidade vem na escola, e na verdade a comunidade precisa estar na escola. É dentro da unidade escolar que ocorre tudo, que ocorre, por exemplo, uma vacina, que ocorre a reunião da associação, então a comunidade tem que caminhar junto com a escola e a escola também acaba caminhando junto com a comunidade, e isso é bom (Mirian Makeba, 2016, Mata Cavalo).
Por meio da educação escolarizada e da união tática entre escola e comunidade,
os/as quilombolas encontraram uma brecha para valorizar a cultura, combater o racismo
e fortalecer a resistência. Este povo têm exigido do Estado o reconhecimento de que a
colonização do Brasil, assim como a história vivida por esta comunidade, produziu um
desumanizante processo de ocultamento da diversidade social que ocorreu concomitante
à expropriação de terras e à degradação dos componentes naturais.
“Para destravar a chave do racismo é necessário não somente a permanência nas
terras de seus antepassados, mas também garantir o seu ingresso no mundo letrado.
Talvez isto explique porque territorialidade e escolaridade são centrais” nas lutas deste
grupo (LEITE, 2010, p.3). A presença da escola no quilombo fortalece a cultura, afirma a
população como sujeitos de direitos, e se constitui num marco na luta dos/as quilombolas
de Mata Cavalo, que tem fortalecido, por meio da práxis educativa, o pertencimento ao
território e a resistência.
Neste contexto, entendemos que a educação ambiental popular (EAP) entrelaçada
com a interculturalidade crítica (IC) são possibilidades para enriquecer o trabalho
educativo e auxiliar a comunidade na construção de outras sociedades. O conceito de
interculturalidade crítica é central para (re)construção do pensamento crítico-outro, por
139
pelo menos três razões: (1) precisamente porque esse conceito foi vivido e pensado
desde a experiência da colonialidade, (2) de modo que reflete um pensamento não
baseado nos legados eurocêntricos ou da modernidade e (3) porque tem sua origem no
sul (WALSH, 2005, apud CANDAU; RUSSO, 2010, p.164). Deste modo os diálogos entre
EAP e IC, articulando justiça social, ambiental e colinialidade, favorecem processos de
decolonialida e viabiliza a construção de outras sociedades.
140
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A possibilidade de realizar a pesquisa com o corpo inteiro, valorizando a
racionalidade exigida pela ciência, mas também molhada com a utopia e o desejo de um
dia conseguirmos, coletivamente, transformar a situação de opressão a que estamos
expostos é uma das bonitezas que experimentei nesta caminhada aprendente. A partilha
com as/os quilombolas me despertou para necessidade de estar no território com os
grupos oprimidos que fazem a resistência para junto com elas/eles lutarmos pelas
sociedades que queremos.
Esta pesquisa “sentipensante” revela alguns aspectos dos conflitos
socioambientais e das injustiças em um território onde a Escola, por meio da articulação
entre contexto sociocultural e processos educativos, tem tido papel central na formação
das juventudes e na constituição da resistência. No entanto, percebo que dimensão
pedagógica dos conflitos pode ser mais trabalhada e problematizada, assim como a
relação entre cultura e ambiente.
No cenário dos conflitos mapeados no quilombo, destaca-se o papel do Estado
burocrático brasileiro como principal agente promotor desta situação criminosa. A
morosidade em efetivar a regularização fundiária contribuiu significativamente para a
precariedade na qualidade de vida da população. A disputa por terra e a especulação
imobiliária estão entre as causas propulsoras de conflitos que são agravadas por essa
morosidade.
Embora haja diversos conflitos entre os quilombolas, a minha opção foi por dar
centralidade aos conflitos externos, que têm como principais agentes o estado, os
fazendeiros e os garimpeiros, estes dois últimos vêm promovendo no território
quilombola significativa degradação ambiental, com desmatamentos, queimadas
criminosas, criação de gado e garimpagem de ouro.
Nesta viagem ao universo de conflitos e injustiças socioambientais, a vivência no
141
quilombo e o fortalecimento do vínculo com os sujeitos que sofrem com a opressão e as
violações de direitos humanos e da terra foram fundamentais para a concretização desta
pesquisa, que exigiu dedicação, cuidado e sensibilidade. Contudo, as dificuldades foram
superadas pelo desejo de oferecer o “olhar de passarinho” sobre o território, os conflitos
socioambientais e a educação.
Além do belo trabalho desenvolvido na Escola Estadual Tereza Conceição de
Arruda, onde a cultura está no centro das ações pedagógicas, nos salta aos olhos o
racismo corrosivo que há mais de cem anos violenta todas as gerações desta
comunidade, somado ao racismo institucional e ao racismo ambiental que pune
triplamente a população de Mata Cavalo. Mesmo assim, esse povo luta contra a
colonialidade e por justiça social e ambiental.
Os resultados apresentados me permitem arriscar alguns caminhos possíveis para
fortalecer a educação, a luta e a resistência no quilombo. Neste processo é indispensável
lançar mão de ideologias decoloniais, insurgentes e que contestam a perpetuação da
colonialidade fundada na racialização, subordinação, exclusão e dominação, as
pedagogias produzidas em contextos de luta e resistência, podem viabilizar outras
maneiras de ser e de existir, diferentes das impostas pelo padrão eurocêntrico.
Em certa medida a escola do quilombo em parceria com a comunidade já vem
tateando e realizando ações educativas de caráter decolonial, mas sem dúvida essas
ações podem ser potencializadas e expandidas. Aqui a interculturalidade crítica,
compreendida como projeto político, social, epistêmico e ético, vem agregar significado a
luta por outros mundos (WALSH, 2009).
Neste contexto acreditamos que a Educação Ambiental Popular (EAP), fundada na
práxis política, na dialogicidade, no reconhecimento dos diferentes saberes, no respeito a
todas as formas de vida e no desejo de forjar táticas para construir outras sociedades,
poderá ser um dos caminhos importantes para fomentar diálogos sobre racismo, justiça
ambiental, e suas relações com direitos humanos e da terra.
Creio que seja por meio de diálogo e de processos formativos realizados no chão
da comunidade que encontraremos os caminhos para agir, pois, entendemos que é o
cotidiano que nos oferecerá as possíveis ações capazes de recuperar a humanidade
roubada pelos opressores e a vocação para o “ser mais” de que nos fala Paulo Freire na
Pedagogia do Oprimido (1987).
142
A experiência em Mata Cavalo reafirmou a urgência de termos uma universidade
mais participativa e a necessidade de unir esforços com as comunidades, promovendo
círculos de cultura e ação educativa junto aos grupos vulnerabilizados pelo sistema
econômico. BRANDÃO (2006, p.6) ressalta a primazia do diálogo, nos dizendo que: “[...]
se é com palavras que são escritas as regras que oprimem e consagram a opressão, com
elas também os homens entre si podem falar e escrever frases e modos de saber que,
pronunciados e exercidos, poderão um dia libertar o homem e os seus mundos”.
Dar visibilidade à luta deste povo se torna ainda mais importante no contexto de
incerteza, de crise política e de ofensiva aos direitos conquistados. O governo impopular
parece pactuar com o Poder Legislativo para apressar a aprovação de diversos projetos
de lei (PL) e de emenda constitucional que na prática representam o retrocesso de anos e
anos de lutas das classes populares, das populações quilombolas, de povos indígenas e
dos movimentos sociais.
Os cortes no Programa “Bolsa Família” e “Minha Casa, Minha vida”, a aprovação
do projeto de Emenda Constitucional que “congela” os recursos públicos destinados à
educação e saúde por 20 anos, somados à criminalização dos movimentos, são algumas
das medidas severas utilizadas pelo Executivo e Legislativo que aumentarão ainda mais a
situação de vulnerabilidade das populações que mais sofrem com sistema opressor e
desigual.
Certamente por reconhecerem o papel da educação para a transformação das
pessoas, essa mesma elite política aprovou a reforma do Ensino Médio e a busca viabilizar
o projeto “Escola Sem Partido”. Todas essas medidas austeras vêm acompanhadas de
forte tentativa de criminalização dos movimentos sociais.
Deste modo, um dos desafios que se coloca agora é articular, em parceria com a
comunidade e com a escola, processos formativos que questionem a colonialidade do
poder, do saber, do ser e da natureza, para desconstruirmos as raízes desta sociedade
racializada e repleta de injustiças socioambientais para que juntos possamos construir
sociedades democráticas e sustentáveis.
Possivelmente não tenho todas as respostas, o que me motiva a continuar a
travessia por mundos mais justos. As discussões sobre justiça ambiental e decolonialidade
coadunam com os princípios da educação popular. E, por esta via, eu e muitos membros
do GPEA vamos tateando entre os limites e potencialidades da educação ambiental. Não
143
há receitas de educação quilombola, senão um engajamento que transcende as ciências à
construção de cuidados.
No tecido dos conflitos socioambientais a água parece ser um conforto aos
dilemas da secura, calor e queimadas. A tarde arde, buscando a justiça que parece se
evaporar na vagarosa e cansativa burocracia dos latifúndios, fazendeiros e agronegócio.
Contudo, é no pulsar da vida que temos nossa maior aliada e parceira de lutas: a
esperança!
144
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APÊNDICE:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
Você está sendo convidada (o) à participar, como voluntário, da pesquisa: Mapeamento
participativo dos conflitos socioambientais da Comunidade Quilombola de Mata Cavalo, a ser
desenvolvida por Déborah Luíza Moreira Santana Santos, pesquisadora no Grupo Pesquisador em
Educação Ambiental, Comunicação e Arte (GPEA)do Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGE) do Instituto de Educação (IE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), sob a
orientação da Profª. Drª. Michelle Jaber Silva. A pesquisa tem a finalidade de obter informações
para desenvolvimento da dissertação de Mestrado.
Após ser esclarecida (o) sobre as informações a seguir, no caso de aceitar fazer parte do
estudo, assine ao final deste documento, que está em duas vias, uma delas é sua e a outra é da
pesquisadora responsável. Os objetivos deste estudo é Mapear com a escola<=>26comunidade os
conflitos socioambientais vivenciados no Quilombo de Mata Cavalo, suas causas propulsoras, e as
táticas de resistência. Sua participação nesta pesquisa consistirá em conceder entrevista a
pesquisadora, por meio de um roteiro de semi-estruturada, com tópicos a serem abordados pela
pesquisadora, estes facilitarão o diálogo que será gravado, fotografado e filmado.
Os riscos relacionados à sua participação na pesquisa são possíveis desconfortos devido
aos constrangimentos decorrentes das entrevistas, porém caso as perguntas causem algum
constrangimento, asseguro que as mesmas serão interrompidas. Os benefícios dessa pesquisa
para sua comunidade é que ela tem o potencial de valorizar a cultura/identidade e o
território/ambiente da comunidade quilombola, além de aumentar a visibilidade deste grupo e de
suas lutas cotidianas. O mapeamento dos conflitos poderá auxiliar a comunidade na adoção e
escolha de táticas para enfrentamento dos dilemas, fortalecendo a identidade de luta.
Seus direitos enquanto participante da pesquisa serão preservados: garantia de
esclarecimentos a qualquer momento sobre esta pesquisa e sobre sua participação, liberdade
para retirar-se sem penalização, ou seja, você pode desistir de participar da pesquisa em qualquer
momento, mesmo que já tenha assinado este termo. Ressaltamos ainda que os seus dados de
26Ao utilizar esse símbolo desejamos evidenciar que a relação entre escola e comunidade é dialógica e interativa. Ora os habitantes do quilombo são representantes da Escola ora são da comunidade. A intenção é demonstrar que não existe uma separação entre esses espaços sociais.
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identificação serão mantidos em sigilo.
Depois de conhecer e entender os objetivos, riscos e benefícios da pesquisa, bem como
de estar ciente da necessidade do uso de minha imagem e/ou depoimento, especificados no
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), AUTORIZO, através do presente termo, as
pesquisadoras: Déborah Luíza Moreira Santana Santos, estudante do Instituto de Educação-
UFMT, Cuiabá-MT, com telefone de contato(66) 96894286 e e-mail: demoreiranx@yahoo.com.br,
e sua orientara professora Drª. Michelle Jaber Silva, da UFMT/Cuiabá, e-mail:
michellejaber@gmail.com, do projeto de pesquisa intitulado Mapeamento participativo dos
conflitos socioambientais da Comunidade Quilombola de Mata Cavalo a realizar as fotos que se
façam necessárias e/ou a colher meu depoimento sem quaisquer ônus financeiros a nenhuma das
partes.
Este termo contém o nome, telefone, local de estudo e o email da pesquisadora
responsável, para que você possa localizá-la a qualquer momento.Em caso de dúvida você pode
procurar também o Comitê de Ética em Pesquisa Humanidades- UFMT- pelo telefone (65)
36158935, sob a coordenação de Dra. Rosangela Kátia Sanches Mazzorana Ribeiro, email:
cephumanas@ufmt.br
Considerando as informações acima, CONFIRMO estar sendo informado por escrito e
verbalmente do objetivo desta pesquisa e em caso de divulgação AUTORIZA a publicação.
Eu __________________________________________________, Idade:__________,
Sexo:_______________, Natural de:________________________, RG __________________
declaro que sinto-me suficiente e devidamente esclarecida(o) e entendi os objetivos da pesquisa,
bem como os riscos e benefícios de minha participação na mesma, como está escrito neste termo
declaro que consinto em participar da pesquisa por livre vontade, não tendo sofrido nenhuma
forma de pressão ou influência indevida.
___________________________________ Assinatura do participante
____________________________________ Assinatura da pesquisadora responsável Déborah Luíza Moreira Santana Santos
_______________________, _______ de _____________________ de 20______