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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
PERLA HAYDEE DA SILVA
Efeitos identitários do trabalho com o livro didático:
“Links - English for teens"
Propostas de abordagens e práticas no contexto público
mato-grossense
CUIABÁ-MT 2012
ii
PERLA HAYDEE DA SILVA
Efeitos identitários do trabalho com o livro didático:
“Links - English for teens"
Propostas de abordagens e práticas no contexto público
mato-grossense
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de Concentração: Paradigmas do Ensino de Línguas Orientador: Prof. Dr. Sérgio Flores Pedroso Instituto de Linguagens
CUIABÁ-MT 2012
FICHA CATALOGRÁFICA
S586e Silva, Perla Haydee da.
Efeitos identitários do trabalho com o livro didático: Links – English for teens – propostas de
abordagens práticas no contexto público mato-grossense / Perla Haydee da Silva. – 2012.
ix, 117 f. : il. color.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Flores Pedroso. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-
Graduação em Estudos de Linguagem, Área de Concentração: Paradigmas do Ensino de Línguas,
2012.
Bibliografia: f. 104-109. Inclui anexos.
1. Língua inglesa – Estudo e ensino. 2. Língua inglesa – Prática pedagógica. 3. Livro didático – Língua inglesa. 4. Língua inglesa – Escolas públicas – Mato Grosso. I. Título.
CDU – 371.3:811.111
Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931
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DEDICATÓRIA
”Saudade” Recordação nostálgica e suave de pessoas ou
coisas distantes, ou de coisas passadas. Fonte: www.michaelis.uol.com.br É com muita saudade que dedico este trabalho a meu querido pai, Edson da Silva (in memorian), a quem tanto devo e cuja ausência será sempre carinhosamente lembrada.
v
AGRADECIMENTOS
À minha amada família, minha mãe Haydee e minhas irmãs Andréa e Suzy, pelo
exemplo, cuidado, apoio e amor que fizeram de mim a pessoa que sou hoje.
Ao professor Dr. Sérgio Flores Pedroso, meu orientador, que diligentemente me
guiou no percurso desta pesquisa e contribuiu sobremaneira para meu
amadurecimento acadêmico.
Aos professores do MEeL, bem como às professoras Solange Ibarra Papa e Ana
Antônia de Assis Peterson, por partilharem seus conhecimentos e por suas
inestimáveis contribuições para este trabalho.
Aos amigos que fiz durante o mestrado, Ana Regina Bresolin, Anderson Simão, Ana
Raquel Diamante, Graziani França, Carmem Zirr, Delvânia Góes e Fernando Zolin.
A todos os meus queridos amigos e amigas, com quem tenho compartilhado bons e
maus momentos e a quem amo como irmãos.
vi
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.”
Luís de Camões
vii
RESUMO
SILVA, P. H. Efeitos identitários do trabalho com o livro didático: “Links - English for teens" - Propostas de abordagens e práticas no contexto público mato-grossense. Dissertação de Mestrado. Cuiabá IL/UFMT – MeEL, 2012, 110 p.
Todo e qualquer trabalho com a linguagem, seja ele em língua materna ou
estrangeira, é ideológico, imprimindo nos sujeitos mudanças identitárias Sendo
assim, o presente trabalho objetiva investigar como a prática pedagógica de
professores de inglês como língua estrangeira, num contexto de escolas públicas de
Mato Grosso, com a utilização do livro didático “ Links - English for teens" sugerido
pelo MEC através do PNLD 2011 para o ensino de língua inglesa no Ensino
Fundamental para a disciplina de língua estrangeira, contribui para a proposta de um
fazer didático que contemple o aspecto ideológico do uso da linguagem e de
instaurar nos aprendizes uma postura crítica. Fundamentada na vertente francesa
da Análise do Discurso, serão analisadas atividades selecionadas do livro didático,
bem como respostas a um questionário preenchido por 5 professoras de inglês
como LE no Ensino Fundamental. Com base na análise dos dados obtidos, objetiva-
se apresentar propostas de abordagem e práticas para cursos de formação de
professores, de modo a contribuir para que a prática docente fomente nos
estudantes uma postura crítica, de relativização e de desnaturalização de sentidos,
que propicie a formação de sujeitos capazes de interagir em sociedade com uma
atitude de aceitação e respeito ao outro, sem que para tal, depreciem sua própria
cultura, língua, valores, referências e comportamentos que configuram a sua
identidade.
Palavras-chave: ensino/aprendizagem de inglês como LE, livro didático, identidade.
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ABSTRACT
SILVA, P. H. Effects of identity of the work with the textbook: “Links - English for teens" – Proposals of approaches and practices in the context of public schools in Mato Grosso. Dissertação de Mestrado. Cuiabá IL/UFMT – MeEL, 2012, 110 p.
Any work with language whether as native or foreign language is ideological,
imprinting changes on the subjects’ identity. Thus, this study aims to investigate how
the pedagogical practice of teachers of English as a foreign language in a context of
public schools in the estate of Mato Grosso, through the use of the textbook "Links -
English for teens" recommended by the Ministry of Education (MEC) in the 2011
PNLD program for the teaching of English in basic education, contributes to a
pedagogical practice that addresses the ideological aspect of language use and to
establish in learners a critical attitude. Grounded on French Discourse Analysis,
selected activities of the textbook will be analyzed as well as answers to a
questionnaire completed by five teachers of English as a foreign language in basic
education. Based on the data analysis, the objective is to present some suggestions
for teacher education courses in order to contribute to a pedagogical practice that
fosters in students a critical attitude, which leads to the formation of individuals
capable of interacting in society with an attitude of acceptance and respect for others,
without necessarily, depreciating their own culture, language, values, references and
behaviors that shape their identity.
Keywords: teaching/learning English as foreign language, textbook, identity.
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1
REFERÊNCIAS TEÓRICAS E CONCEITOS ............................................................ 18
1.1 A análise do discurso francesa ........................................................................ 18
1.2 Discurso ........................................................................................................... 20
1.3 Formação discursiva ........................................................................................ 22
1.4 Ideologia .......................................................................................................... 23
1.5 Sujeito .............................................................................................................. 24
CAPÍTULO 2
O ENSINO DE LE NO CONTEXTO DE ESCOLA PÚBLICA NO BRASIL ............... 27
2.1 O ensino de LE no Brasil ................................................................................. 27
2.2 O ensino de LE e a identidade ......................................................................... 33
2.3 O ensino de LE e os documentos oficiais ........................................................ 37
CAPÍTULO 3
O LIVRO DIDÁTICO DE LE NA ESCOLA PÚBLICA ............................................... 41
3.1 O LD em sala de aula de LE ............................................................................ 41
3.2 O LD e a identidade ......................................................................................... 46
3.3 O LD de LE para o Ensino Fundamental ......................................................... 50
CAPÍTULO 4
METODOLOGIA DA PESQUISA .............................................................................. 53
4.1 A escolha da metodologia ................................................................................ 53
4.2 Justificativa da escolha e descrição do corpus ................................................ 57
x
CAPÍTULO 5
ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS ..................................................................... 61
5.1 “Links – English for teens” ............................................................................... 61
5.2 Análise dos questionários ................................................................................ 84
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 104
ANEXOS ................................................................................................................. 110
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INTRODUÇÃO
É do buscar e não do achar que nasce o que eu não conhecia. - Clarice Lispector A paixão segundo G.H. 1990, p.180.
Em minha trajetória de professora de Inglês como Língua Estrangeira
ministrei aulas em cursos de idiomas, cursos superiores, turmas de Ensino Médio,
além de, no meu processo de formação profissional, ter a oportunidade de concluir o
curso de Letras na UFMT e uma especialização em Docência do Ensino Superior.
Durante este percurso profissional e acadêmico, sempre me acompanhou a
percepção de que ensinar um idioma estrangeiro é mais do que apenas transmitir
aos estudantes estruturas gramaticais e listas de vocabulário.
Eu reconhecia a importância da influência que as interações em sala de aula
e com o idioma e cultura estrangeiros exerciam no modo como um indivíduo
chegava a considerar a linguagem, a língua estrangeira, os seus falantes nativos, a
si próprio, e que, consequentemente, tal influência vinha a refletir-se no seu
comportamento. Dava-me conta, portanto, das implicações e influências que as
relações em sala de aula podiam exercer nas pessoas envolvidas no processo de
ensino/aprendizagem (alunos e professores) e me perguntava até que ponto eu,
enquanto professora, contribuía de maneira significativa neste processo.
No entanto, faltavam-me, nesta época, as ferramentas para compreender e
abordar tais inquietações. As disciplinas cursadas durante o primeiro ano do
Mestrado me forneceram os recursos necessários para começar a refletir acerca
destes questionamentos. Através do contato com as teorias da Análise do Discurso
(AD) de linha Francesa, teoria que fundamenta a presente análise, foi possível
compreender o que me incomodava; era o fato de observar que, em geral, a
concepção acerca de ensino de língua, presente nos livros didáticos (LDs) e
subjacente à prática docente de muitos professores de língua estrangeira (LE), é a
de mera transmissão de conhecimentos linguísticos, dando mais atenção à forma do
que ao conteúdo. Este procedimento, em geral, não levava em conta aspectos
históricos, sociais e ideológicos do trabalho com a linguagem, deixando de
proporcionar aos alunos a oportunidade de se pronunciarem, de se (re)significarem,
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de construírem sentidos na língua-alvo. Isto, sem levar em conta o papel que as
relações em sala de aula desempenham na formação destes alunos, no seu modo
de ser, de comportar-se, de enxergar a si, ao outro e ao mundo que os rodeia.
Coracini (2003), autora inscrita no arcabouço teórico da AD de linha francesa,
afirma que o sujeito jamais está pronto, acabado, completo, mas sua identidade está
em constante movimento. Acerca da constituição da subjetividade do indivíduo, a
autora explica que “a criança é formada por e no olhar do outro que começa a
constituí-la, nela incrustando sistemas simbólicos bem como sentimentos
contraditórios não-resolvidos, inscritos em seu inconsciente para toda a vida” (idem,
p. 198).
De fato, no entendimento que proporciona a análise do discurso, o sujeito é
constantemente influenciado pelo contato com o outro, não tendo, portanto, uma
identidade una, indivisa, mas fragmentada, instável, em constante processo de
formação e construída no contato com o outro e com o mundo. Assim, entende-se o
papel protagonista que a escola desempenha na questão identitária, pois lá estamos
em contato com o outro e somos influenciados por ele e pelas condições em que se
produz tal contato.
Ao tomar conhecimento de como a AD aborda tais aspectos, descobri meu
interesse por questões de cunho identitário no ensino de LE. Consoante com este
entendimento, as Orientações Curriculares para a Educação Básica do Estado de
Mato Grosso -OCMT, ao definir o que é ensinar uma LE, afirmam que:
Ensinar uma língua estrangeira na contemporaneidade, sob a perspectiva sociocultural e crítica, significa engendrar um processo de ruptura com a crença na inquestionável naturalidade das coisas e da linguagem, que é instaurar a noção do relacional (da postura de relativização que questiona pretensas verdades absolutas) nos estudantes logo após o seu processo de amadurecimento na linguagem. O contato com outros modos de dizer, com as diferenças, com recortes de outra realidade instaura a auto-observação, reforça a consciência da própria identidade em todos os seus aspectos. (MATO GROSSO, 2010, p. 105)
Observa-se, portanto, que o contato com o Outro, o estrangeiro, que propicia
o ensino de LE em escolas públicas, na pós-modernidade, em vista das diferentes
realidades vivenciadas na sociedade, deve se dar de maneira que contribua para a
formação de estudantes críticos, cidadãos capazes de interagir na sociedade
contemporânea. Para tanto, faz-se necessário que os objetivos do ensino sejam
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reformulados e mudanças sejam implementadas, de forma a atender as novas
demandas da sociedade, o que envolve uma postura crítica também da parte dos
professores, de modo que seu fazer pedagógico contribua para instaurar, nos
aprendizes, uma postura de relativização.
Meu interesse em realizar esta pesquisa surgiu, além das leituras e reflexões
durante meus estudos de Mestrado, também do reconhecimento da contribuição
vital do fazer pedagógico para um ensino crítico; que estimule os aprendizes a uma
postura de relativização e de desnaturalização de sentidos, que propicie a formação
de estudantes cidadãos, capazes de interagir no mundo social, com uma atitude de
respeito e aceitação do outro, da diversidade, sem que para tal, depreciem sua
própria cultura, língua e valores.
A escolha do objeto de pesquisa
Considerando as necessidades apresentadas pela sociedade atual com
relação à disciplina de Língua Estrangeira Moderna, dentre elas a necessidade de
que a disciplina contribua para a formação de aprendizes/cidadãos críticos, o
Ministério da Educação, através do PNLD 2011, analisou diversos livros didáticos de
língua inglesa e selecionou duas coleções para serem adotadas pelas escolas para
os anos finais do Ensino Fundamental. Com base em estudos na área de ensino e
aprendizagem de línguas estrangeiras, foram observados critérios tais como:
respeito à legislação, diretrizes e normas relativas ao Ensino Fundamental,
coerência entre abordagem e objetivos propostos, o trabalho com as ditas quatro
habilidades do arcabouço teórico comunicativo (leitura, escrita, fala e audição), entre
outros.
Um aspecto que ainda recebeu atenção na referida avaliação foi a questão
identitária. Segundo o Guia que orientou o trabalho de avaliação (BRASIL, 2010), o
livro didático deve reconhecer a diversidade dos alunos brasileiros, bem como a
diversidade de contextos em que se dá o ensino e a aprendizagem. Reconhecendo
a importância do livro didático na construção social da identidade, o referido Guia
afirma que:
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[...] é fundamental que os livros contribuam para a desnaturalização das desigualdades e promovam o respeito às diferenças. Em síntese, o livro precisa contribuir para a formação de cidadãos críticos e reflexivos, desprovidos de preconceitos, capazes de respeitar a si mesmos e a outros, a sua própria cultura e a dos outros, partindo de experiências críticas e reflexivas com a língua estrangeira. (BRASIL, 2010, p. 12)
Uma das obras selecionadas, o livro “Links – English for teens”, tem como
objetivo:
[...] estabelecer ligações, apresentar conexões entre a língua inglesa e os temas que fazem parte do mundo do estudante de Ensino Fundamental II. Através dessas ligações, o estudante vai aprender a ler, ouvir, falar e escrever em inglês para poder comunicar-se sobre assuntos relevantes e que têm tudo a ver com ele, num processo de construção do conhecimento e de formação da cidadania que é ao mesmo tempo sério, eficiente e dinâmico. (SANTOS, D.; MARQUES, A., 2009, Disponível em: < http://www.atica.com.br/SitePages/Obra.aspx?cdObra=1539&Exec=1>. Acesso em: 20 set. 2011.)
A escolha de um LD que fosse sensível a tais questões justifica-se levando
em conta o papel importante que este desempenha na constituição de identidades
(CORACINI, 2003). Soma-se a isso o fato de que a maioria dos LDs de língua
inglesa disponíveis no mercado apresenta, conforme observou Grigoletto (2003),
uma imagem estereotipada do brasileiro, em que a diversidade é minimizada, a
língua e a cultura estrangeiras são idealizadas e apresentadas como superiores,
sugerindo que o indivíduo que se expresse nessa língua com fluência teria acesso a
conhecimentos importantes e deveria fazê-lo, apagando traços de sua própria
cultura e língua materna.
Estes aspectos levam a autora a sugerir que o livro didático de língua
estrangeira deixe de representar as identidades como fixas, estáticas, levando “o
aluno a se “encaixar” na realidade de outra cultura” (GRIGOLETTO, 2003, p. 360),
mas que entenda a constituição da identidade como um processo contínuo,
processo este que acontece na interação, nas práticas sociais.
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A pesquisa
Esta pesquisa parte do pressuposto de que o ensino de língua estrangeira,
por ser um trabalho com a linguagem, deve levar em conta o caráter ideológico e o
papel que a língua e as interações em sala de aula desempenham no processo de
formação da identidade. O livro didático (LD) selecionado pelo MEC como sugestão
para o trabalho com línguas estrangeiras propõe um fazer didático crítico, mas é vital
que o professor tenha uma postura crítica em sua prática pedagógica de modo a
propiciar o trabalho com aspectos identitários ressaltados pelo LD. Tal fator merece
séria consideração e análise, quando levamos em conta que os professores que
atuam em escolas públicas do Estado são fruto de uma formação tradicional do
ensino de LE, pautada pela transmissão de conteúdos linguísticos
descontextualizados, LDs que veiculam um discurso homogeneizador e
estereotipado, levando-os então a refletir essa formação em sua prática e em seu
discurso.
Portanto, este referido trabalho acadêmico será conduzido, tendo como base
os seguintes aspectos na sua organização:
Perguntas de pesquisa
Como o trabalho com o LD se aproxima de uma abordagem discursiva
no trabalho com a linguagem?
Qual concepção de ensino norteia a prática de professores de LE em
escolas públicas de Mato Grosso?
O que fazer para reverter efeitos pouco desejados e propiciar
resultados afinados com as expectativas atuais?
Objetivos:
Identificar a abordagem de trabalho com a linguagem que embasa as
atividades propostas pelo LD analisado.
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Identificar a que discursos remete a enunciação de professores de Língua
Inglesa do Ensino Fundamental, de forma a evidenciar a concepção de
ensino que subjaz à sua prática.
Apresentar sugestões para o trabalho pedagógico, visando incentivar
posturas críticas em professores e alunos.
De forma a analisar o fazer pedagógico destes professores, com o propósito
de formular sugestões práticas para o trabalho crítico com o livro didático no
contexto mato-grossense, serão aplicados questionários a 5 professores de língua
inglesa, em escolas públicas das cidades de Cuiabá e Várzea grande, nos anos
finais do Ensino Fundamental.
Organização da dissertação
O presente trabalho está dividido em 5 capítulos.
O primeiro capítulo trata do embasamento teórico, em que são explicitados
alguns conceitos da Análise de Discurso Francesa relevantes para a análise. Dentre
eles, recorre-se aos conceitos da AD sobre o sujeito inconsciente, de acordo com a
teoria de Lacan (1987), que é cindido e cuja identidade é assumida pela AD como
continuamente reconfigurada pelas relações sociais. Também são abordados os
conceitos de discurso, ideologia e formações discursivas, por estarem diretamente
ligados ao uso da linguagem e à produção de sentidos. Apesar de serem muitas as
ferramentas das quais dispõe a AD, escolheu-se lançar mão destes conceitos, pois
parecem mais adequados para a análise a que se propõe este trabalho.
O segundo capítulo traz um apanhado acerca do percurso do ensino de
língua estrangeira em escolas públicas no Brasil, mostrando como esta disciplina
tem sofrido adequações em decorrência do período histórico em que se encontra a
sociedade. Tais adequações envolvem os idiomas ensinados e os objetivos
propostos para a disciplina. Este capítulo aborda ainda as influências do ensino de
LE na constituição dos traços identitários dos aprendizes, bem como faz um
apanhado do que os documentos oficiais têm postulado para a disciplina de LE, em
escolas públicas no Brasil.
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O terceiro capítulo é dedicado ao livro didático como ferramenta no processo
de ensino/aprendizagem de LE. Faz-se referência a trabalhos da área de linguística
aplicada, dedicados à análise de LD de LE, assim como seu papel no ensino e na
constituição identitária de professores e aprendizes.
No quarto capítulo, acerca da Metodologia da pesquisa, encontram-se a
explicitação do objeto da pesquisa, as razões que nortearam a escolha do LD
analisado, assim como a descrição dos professores que participaram da presente
pesquisa, além dos objetivos e perguntas referentes à mesma.
No quinto capítulo é feita a análise do LD sugerido pelo MEC através do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), à luz das teorias da AD, de forma a
identificar a visão de ensino subjacente ao trabalho com a linguagem proposto pelos
autores e, ainda, a análise dos dados coletados nos questionários respondidos pelos
professores. Saliento então a importância do conhecimento da abordagem
discursiva por parte do professor, e que ele esteja apto a utilizá-la em sua prática.
Considero apropriado utilizar o termo abordagem, pois segundo Leffa, este é um
“termo mais abrangente e engloba os pressupostos teóricos acerca da língua e da
aprendizagem. As abordagens variam na medida em que variam esses
pressupostos” (LEFFA, 1988, p. 212)
Nas considerações finais são apresentadas sugestões para o trabalho
pedagógico, visando contribuir de maneira prática com o processo de
ensino/aprendizagem de língua estrangeira no contexto mato-grossense.
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CAPÍTULO 1 REFERÊNCIAS TEÓRICAS E CONCEITOS
Toda teoria é provisória, acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites, seu inacabado, sua parcialidade, formulando conceitos que clarificam os dados – organizando-os, explicitando suas relações, desenvolvendo implicações – mas que, em seguida, são revistos, reformulados, substituídos [...] - Roberto Machado Microfísica do Poder,Foucault, 2004, p.11.
Neste capítulo apresento, de modo sucinto, alguns conceitos com os quais
trabalha a Análise do Discurso francesa (AD), corrente teórica que embasa a
presente pesquisa, conceitos estes a partir dos quais será abordado o objeto em
estudo, a saber: os conceitos de sujeito e identidade, ideologia, discurso, e formação
discursiva.
1.1 A Análise do Discurso francesa
A análise do discurso (AD) como disciplina teve início na França, na década
de 1960, no momento em que a Linguística encontrava-se em desenvolvimento
como ciência com base no Estruturalismo. A Linguística buscava estudar a língua
atribuindo a ela regularidades, sem levar em conta aspectos externos, afirmando
estes não fazerem parte da sua estrutura. Fundada por Saussure, tal ciência
concebia a língua como um sistema de valores formado por diferenças puras
desvinculadas da sua constituição como produto social. Atentava-se ao estudo da
forma, abstendo-se de observar o uso da língua, pois, sob a concepção vigente na
época, fazer ciência implicava “objetividade”, regularidade, e consequentemente,
distanciar o objeto de estudo – a língua — dos efeitos da ação humana.
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A AD tem como um de seus criadores e principal referência o filósofo francês
Michel Pêcheux, que propõe uma ruptura com a Linguística baseada no corte
dicotômico saussuriano. A disciplina surge da tentativa de retomar as teses
estruturalistas de Freud e de Marx, procurando explicar a relação entre sujeito e
história. Foucault e Pêcheux, ao problematizar o corte saussuriano língua/fala,
introduzem o sujeito (da psicanálise) e a história – na concepção reformulada
através do materialismo histórico— que a definição do objeto da linguística não
contemplou.
O objeto “discurso” nasce da articulação dos conceitos de sujeito, História e
língua de Saussure, Marx e Freud, que desconstroem as verdades científicas do
funcionalismo positivista. Sendo assim, as releituras do estruturalismo de Saussure,
do poder do inconsciente de Freud (relido por Lacan) e da infraestrutura econômica
de Marx (relida por Althusser) constituíram os fundamentos da análise do discurso.
Portanto, diferentemente da Linguística, que se ocupava do estudo da língua
concebida como conjunto de regras e estruturas formais, abstendo-se da
observação de seu uso, a AD concentra-se no estudo da linguagem como prática,
levando em conta seus aspectos sociais, históricos e ideológicos. Orlandi sustenta
que,
A análise do discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o de que há um real da história de tal forma que o homem faz história, mas esta também não lhe é transparente. Daí, conjugando a língua com a história na produção de sentidos, esses estudos do discurso trabalham o que vai se chamar a forma material (não abstrata como a da linguística) que é a forma encarnada na história para produzir sentidos: esta forma é, portanto linguístico-histórica. (ORLANDI, 2005, p. 19).
De fato, segundo a autora, não é possível dar conta de explicar o
funcionamento da linguagem somente valendo-se da linguística imanente. É
reconhecida a relação entre língua e sociedade e, portanto, a importância de se
levar em conta aspectos sociais, da interação, ao tentar explicar a linguagem. Daí a
aplicação que a AD faz do materialismo histórico na compreensão do sujeito,
explicando as relações sociais sob uma ótica econômica, através da observação da
ação do homem ao produzir melhores condições materiais de existência.
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Após essa breve consideração a respeito da AD e suas origens, bem como de
seu caráter histórico-social no estudo da linguagem, apresento alguns conceitos-
chave sobre os quais se apoiará o presente trabalho, dentre eles, os conceitos de
sujeito e identidade, ideologia, discurso, e formação discursiva.
1.2 Discurso
Como já mencionado, a AD considera a língua no seu uso, como forma de
interação; preocupa-se com o sentido, muito mais do que apenas com a forma.
Sendo assim, para a AD, o discurso não pode ser considerado um sinônimo de
texto, como se contivesse um sentido único a ser detectado, nem como uma mera
transmissão de informações, mas antes, como “efeito de sentido entre
interlocutores” conforme afirma Pêcheux (1995, p.82). Orlandi (2005, p.21) adere a
tal entendimento, ao defender que “as relações de linguagens são relações de
sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados”.
Para Pêcheux, a significação depende das posições ocupadas pelos sujeitos
que enunciam e das condições de produção do discurso, condições sociais,
históricas e ideológicas que possibilitaram que o discurso fosse produzido e criasse
certos efeitos de sentido e não outros, e as representações que o sujeito faz de si
mesmo, do seu interlocutor e do seu discurso. De fato, o contexto histórico-social da
enunciação, para a AD, é fundamental para a significação, fazendo ele próprio parte
do sentido do discurso. Por isso pode-se afirmar que para a AD os sentidos não
estão anteriormente fixados nas palavras, mas são historicamente construídos e
determinados, permitindo, portanto, múltiplas interpretações.
Ao abordar a relação entre sentido e história, Orlandi afirma que:
Essa relação com a exterioridade, a historicidade, tem um lugar importante, eu diria mesmo definidor, na Análise de Discurso. De tal modo que, ao pensar a relação entre linguagem e sociedade, ela não sugere meramente uma correlação entre elas. Mais do que isso, o discurso é definido como processo social cuja especificidade está em que sua materialidade é linguística. Há, pois, construção conjunta entre o social e o linguístico. (ORLANDI, 1994a, p. 56)
21
Tal concepção de discurso é relevante para a presente análise, visto ser o
discurso um processo no qual os sujeitos significam e também se significam. Neste
processo relacional ocorrem também os processos de subjetivação. É no contato
com o outro, mediante o discurso, que construímos uma imagem de nós mesmos,
nos re-significamos, produzimos novas identificações – novas marcas ou referências
que remetem a nós mesmos através dos nossos fazer e dizer – num processo
jamais acabado, mas que continua ao longo da vida (CORACINI, 2003). Sendo
assim, é fundamental analisar o discurso e as interações em sala de aula de língua
estrangeira de modo a compreender os traços identitários dos sujeitos envolvidos no
processo de ensino/aprendizagem (professores e alunos).
É frequente perceber, na fala de alunos, professores e no discurso veiculado
por livros didáticos de língua estrangeira, a atribuição de certa superioridade à língua
e à cultura estrangeiras (que sempre acontecerá, afetando a concepção que o
próprio aprendiz tem da sua língua e cultura maternas). Na produção deste efeito de
sobrevalorização da outra língua/cultura, funciona a crença de que possuir fluência
em um idioma estrangeiro seria uma ferramenta de ascensão social e econômica,
assim como o desejo de expressar-se na língua-alvo com a mesma fluência de um
falante nativo, minimizando, ao máximo, traços da língua materna do aprendiz. Estes
são alguns dos aspectos que evidenciam o chamado “discurso colonizador”
(GRIGOLETTO, 2003), discurso este que já não é pertinente dado o momento
histórico-social e as transformações na sociedade acarretadas pela globalização na
pós-modernidade.
Com o fim de desconstruir este discurso, que por tanto tempo tem sido
veiculado por livros didáticos de língua estrangeira, e assim contribuir para uma
prática pedagógica crítica e uma postura de relativização, por parte de professores e
alunos, a AD é posta em prática na presente pesquisa. A análise do discurso de
professores de inglês como LE nos permite evidenciar traços deste discurso colonial,
uma vez que a enunciação destes indivíduos nos torna possível identificar a que
formações discursivas (FDs) se remete o seu discurso. A seguir, trato brevemente
do conceito de formação discursiva.
22
1.3 Formação discursiva
O conceito de formação discursiva, inicialmente formulado por Foucault em
1969 e posteriormente adaptado por Pêcheux para a Análise do Discurso, passa a
ser definido como:
Aquilo que, numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.). (PÊCHEUX, 1995, p. 160).
Ao conceber a formação discursiva (FD), Foucault (2005) se preocupa em
determinar as “regras de formação” dos discursos; como os elementos do discurso,
que a princípio não têm conexão entre si, se articulam e passam da dispersão à
regularidade. Ao trazer o conceito de formação discursiva para a AD, Pêcheux o faz
à luz do pensamento althusseriano, associando ao conceito as questões de
ideologia e luta de classes.
Tal conceito é central para a AD, pois, nos leva a entender que, partindo do
pressuposto de que os sentidos não pré-existem às palavras, mas são histórica e
socialmente construídos, diferentes palavras podem ter diferentes sentidos e
interpretações, dependendo da FD em que são produzidas. Conforme observa
Orlandi,
O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro. Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem. (ORLANDI, 2005, p.43).
Pode-se entender que tanto Foucault quanto Pêcheux consideravam as
formações discursivas como lugares fechados que determinavam ‘o que pode e
deve ser dito’ (idem), assim como aquilo que não pode ou não deve ser dito. No
entanto, não cabe considerar as FDs como lugares do dizível e do não-dizível,
regiões fechadas e inflexíveis, pois como afirma Serrani-Infanti (1997, p.69) as FDs
antes devem ser consideradas como “condensações de regularidades enunciativas
23
no processo constitutivamente heterogêneo e contraditório da produção de sentidos
no e pelo discurso em diferentes domínios do saber”. Ainda como afirma Orlandi,
As formações estão em contínuo movimento, em constante processo de reconfiguração. Delimitam-se por aproximações e afastamentos. Mas em cada gesto de significação (de interpretação) elas estabelecem e determinam as relações de sentido, mesmo que momentaneamente. (ORLANDI, 1994b, p.11)
Dessa forma, levar em conta o conceito de FD ao realizar a análise do
discurso de professores de língua inglesa como LE nos permite compreender a que
FD se remete o discurso do professor, de que lugar ele enuncia e como, lentamente,
as interações vão imprimindo marcas indeléveis na constituição identitária dos
aprendizes.
1.4 Ideologia
Um dos conceitos de maior relevância para a AD é o conceito de ideologia.
Ao longo dos séculos, diversos sentidos têm sido atribuídos ao termo, sendo este
utilizado por diversas correntes filosóficas.
A palavra ideologia, cunhada pelo francês Destutt de Tracy no século XVIII,
se referia a uma ciência universal das ideias humanas. Napoleão, em uma manobra
política, imprime ao termo uma conotação negativa, diminuindo seu valor inicial
dentro da ciência e atribuindo-lhe a culpa pelos problemas enfrentados pelo país.
Posteriormente, Marx também atribui uma conotação negativa ao termo, associando
o conceito de ideologia com alienação, instrumento utilizado pela classe dominante
para garantir a sujeição da classe trabalhadora às suas ideias.
Dentre os autores que contribuíram para o arcabouço teórico da AD, Louis
Althusser, filosofo marxista, propôs e empreendeu o estudo das ideologias, não no
campo das ideias, mas como “um conjunto de práticas materiais que reproduzem as
relações de produção” (MUSSALIN, 2001, p. 103). Althusser, portanto, baseia sua
teoria no estruturalismo e no materialismo histórico de Marx, que defende a
24
observação da história humana através da análise da história do homem na busca
de melhores condições materiais de vida, da análise das estruturas e
superestruturas relacionadas a um modo de produção.
Para Althusser (1974), os aparelhos ideológicos do Estado garantem a
reprodução dos meios de produção, através da disseminação da ideologia da classe
dominante. A ideologia, para ele, é uma “representação da relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência” (idem, p. 77). A linguagem é,
portanto, de interesse para Althusser, pois é na linguagem que se materializa a
ideologia.
Fundamentada no materialismo histórico, a AD considera o discurso como
uma materialização da ideologia na forma de organização dos modos de produção
social, enquanto crenças, valores e práticas constrangendo (interpelando) as
pessoas a agir e dizer segundo as referências existentes desses “agir” e “dizer” num
momento histórico dado, que as moldam segundo as representações em circulação
para diversos tipos de pessoas. Essas referências as constituem modelarmente
como sujeitos sociais. Conforme Orlandi:
É no discurso que se pode apreender a relação entre linguagem e ideologia, tendo a noção de sujeito como mediadora: não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. O efeito ideológico elementar é o que institui o sujeito (sempre já-lá). (ORLANDI, 1994a, p. 54)
Tal interpelação em sujeito ocorre de forma inconsciente, já que o sujeito não
é origem do seu discurso, práticas e valores, mas é assujeitado (constrangido); ao
nascer, tem como opção única inscrever-se em um conjunto de valores, crenças e
condutas sociais.
1.5 Sujeito
O sujeito com que trabalha a AD francesa é descrito como clivado, cindido,
jamais acabado, estático, em constante processo de produção, construindo-se no
contato com o Outro.
25
Coracini (2003, p. 150), afirma não ser possível “acreditar na possibilidade de
uma identidade acabada, descritível; só podemos postular momentos de
“identificação” em movimento constante e em constante modificação”. Portanto, o
contato com outro é fundamental na compreensão da identidade. Neste contato, que
se dá através do discurso, se produzem constantes alterações em nossa identidade.
Existe sempre em nós a presença do outro e das condições que se tornaram
significativas no constante processo de nos refazermos que se condensa como a
nossa identidade. Esses ‘pedaços’ do outro em nós, essa variedade de contribuições
que o contato com outro deixa em nós é que contribui para a formação do sujeito.
Fundamental também dentro do arcabouço teórico da AD é o trabalho
fundador do psicanalista Jacques Lacan, que elabora uma teoria do inconsciente a
partir de Freud, sustentando que o funcionamento do inconsciente é semelhante ao
da linguagem e afirmando – em uma coincidência epistemológica com a teoria
bakhtiniana – que o discurso é sempre atravessado pelo discurso do Outro. Para
Lacan (1987),
[...] o inconsciente é o lugar do desconhecido, do estranho, de onde emana o discurso do pai, da família, da lei, enfim, do Outro e em relação ao qual o sujeito se define, ganha identidade. Assim, o sujeito é visto como uma representação – como ele se representa a partir do discurso do pai, da família etc -, sendo, portanto da ordem da linguagem”. (MUSSALIM, 2001, p. 107)
Semelhante aos critérios que Saussurre (1974) usa para definir o sistema
linguístico (critério diferencial, relacional, posicional), o sujeito do inconsciente de
Lacan é definido em relação ao Outro. É o inconsciente (lugar onde reside o Outro –
discurso do pai, da família) que imprime identidade ao sujeito. O Outro, segundo
Lacan (1987), “ocupa uma posição de domínio em relação ao sujeito, é uma ordem
anterior e exterior a ele, em relação à qual o sujeito se define, ganha identidade”
(MUSSALIM, 2001, p. 109).
Dessa forma, o sujeito lacaniano é atravessado pelo inconsciente, enuncia de
um determinado lugar social, estando inserido num processo histórico que lhe
permite produzir certos enunciados e não outros, dependendo do lugar que ocupa
na formação social, mas não detecta/pensa (n)isso no momento da produção
enunciativa.
26
Tal concepção de sujeito leva-nos a entender quão fundamental é o papel que
o ensino/aprendizagem de língua estrangeira e as interações que ocorrem em sala
de aula desempenham nos processos de subjetivação dos aprendizes. Todo e
qualquer trabalho com a linguagem, seja ele em língua materna ou estrangeira, é
ideológico, interpelando o indivíduo em sujeito e propiciando-lhe mudanças
interpretativas, que são ideológicas e atitudinais, que respondem ao funcionamento
da ideologia que se torna visível através do comportamento.
Como observa Pêcheux (1995, p. 155) ao analisar o conceito de ideologia, “é
a coletividade, como entidade pré-existente, que impõe sua marca ideológica em
cada sujeito, sob a forma de uma ‘socialização’ do individuo em ‘relações sociais’
concebidas como relações intersubjetivas”.
Com base nos conceitos acima explicitados – discurso, formação discursiva,
ideologia e sujeito, serão realizadas as análises dos dados coletados nas entrevistas
com os professores. Serão também propostas sugestões para um trabalho crítico e
em consonância com a proposta de ensino enunciativo-discursiva. Outros conceitos
ocasionalmente operacionais, em momentos determinados do processo analítico e
explicativo, serão explicitados quando operacionalizados.
27
CAPÍTULO 2
O ensino de LE no contexto de escola pública no Brasil
O saber deve ser como um rio, cujas águas doces, grossas, copiosas, transbordem do indivíduo, e se espraiem, estancando a sede dos outros. Sem um fim social, o saber será a maior das futilidades. - Gilberto Freire Adeus ao collegio, 1917.
No presente capítulo exponho, em linhas gerais, o percurso do ensino de LE
em escolas públicas no Brasil, analisando como a disciplina vem passando por
adaptações em razão do período histórico em que se encontra a sociedade. Este
capítulo trata ainda das influências do ensino de LE no processo identitário dos
aprendizes e do que os documentos oficiais têm proposto para a disciplina de LE em
escolas públicas no Brasil.
2.1 O ensino de LE no Brasil
As transformações sociais ocorridas ao longo da história, graças aos esforços
do homem em produzir suas condições de subsistência, criam novas realidades
sociais. Cabe à escola imprimir constantes mudanças e adaptações ao seu currículo
e conteúdos, de forma a transmitir aos indivíduos os conhecimentos, saberes,
valores e crenças necessários para a vida em sociedade, em diferentes momentos
da história (ALTHUSSER, 1998), num constante processo de adequação.
Pedroso, ao analisar o ensino de língua espanhola como LE no Estado de
Mato Grosso sob a ótica que preside esta pesquisa, afirma que:
O pressuposto teórico desta abordagem estabelece que as condições em que se produz o acontecimento pedagógico determinam o mesmo. Isto envolve que os objetivos que justificam o processo de ensino/aprendizagem encontrem relevância apenas nas necessidades decorrentes da prática social nacional e local. Ou seja,
28
de como vai sendo considerado o processo de ensino pelas condições econômicas e sociais fazendo as políticas públicas detectarem prioridades e necessidades de mudanças. (PEDROSO, 2010b, p.7)
Partindo de tal pressuposto, é possível compreender o caminho trilhado pelo
ensino de línguas estrangeiras em escolas públicas no Brasil e as transformações
sofridas pela disciplina ao longo dos anos. Determinadas línguas estrangeiras
gozam de maior ou menor prestígio e destaque em decorrência do momento
histórico e de fatores sociais e políticos. Lemos nos PCNs para o Ensino
Fundamental, sobre os fatores considerados para a inclusão de uma LE no currículo
que:
Os fatores históricos estão relacionados ao papel que uma língua específica representa em certos momentos da história da humanidade, fazendo com que sua aprendizagem adquira maior relevância. A relevância é frequentemente determinada pelo papel hegemônico dessa língua nas trocas internacionais, gerando implicações para as trocas interacionais nos campos da cultura, da educação, da ciência, do trabalho etc. (BRASIL, 1998, p. 22)
Fogaça e Gimenez (2007), em seu artigo falando a respeito das tendências
político-filosóficas que têm regido a educação no contexto brasileiro, traçam um
percurso histórico da disciplina de LE no Brasil e assinalam que no Brasil colonial, as
línguas clássicas, como latim e grego, eram ensinadas pelo método de tradução e
com ênfase na gramática, sendo outras disciplinas como História e Geografia
ensinadas nestes idiomas. Segundo os autores, a partir de 1808 e da chegada da
família real, as LE modernas, como o francês, o alemão, o inglês e o italiano passam
a fazer parte do currículo. Em 1915 o grego é excluído do currículo e o tempo
dedicado ao ensino do latim é significativamente reduzido.
A educação, durante este período, era destinada apenas a um público
restrito, voltada para a emergente burguesia. No entanto, ao longo dos anos, cada
vez mais camadas populares passam a ganhar acesso à escola. Esta, portanto, não
mais tem como público-alvo apenas a minoria dominante, mas passa a ter como
público também representantes de grupos sociais antes excluídos, com o objetivo de
formar mão-de-obra trabalhadora (KUENZER, 1991). Em vista desta nova realidade,
29
aos poucos, as línguas clássicas foram perdendo espaço para o ensino das línguas
chamadas modernas, como o francês e o inglês.
Por volta dos anos 30, com a era Vargas, o país experimenta um período de
considerável desenvolvimento econômico e, consequentemente, a educação
começa a passar por um processo de adaptações. A carga horária do latim é
reduzida e mais horas são dedicadas ao ensino das LE modernas. A Reforma
Capanema, implementada em 1942, aumenta a relevância do ensino de LE. São
ensinados o inglês, o francês, o latim e o espanhol. Ela enfatiza a aplicação do
“método direto”: o ensino da LE através da própria língua em suas diferentes
modalidades (leitura, escrita, oralidade e audição), com menos ênfase em tradução
e em explicitação de regras gramaticais (FOGAÇA E GIMENEZ, 2007; LEFFA,
1999).
As décadas de 60 e 70 presenciam o surgimento da pedagogia tecnicista1, e o
ensino passa a focar ainda mais a profissionalização, a formação de trabalhadores
aptos a operar máquinas e atuar em processos de produção. A carga horária
destinada à LE é reduzida e em muitos casos a disciplina é removida (FOGAÇA E
GIMENEZ, 2007). Nos casos em que a LE era mantida, dava-se maior ênfase ao
ensino da língua inglesa, refletindo o momento de desenvolvimento econômico e
industrial pelo qual passava o país e a relevância dos EUA no cenário mundial do
pós-guerra.
Lacoste afirma a respeito da influência americana no Brasil e no mundo:
É especialmente depois do fim da Segunda Guerra Mundial que a influência política e cultural dos Estados Unidos se propagou, inicialmente na Europa Ocidental. Isso se traduziu, com mais ou menos defasagem, na difusão do inglês. O plano Marshall forneceu diversos aparelhos mecânicos que ainda não eram conhecidos na Europa, cujo nome permaneceu americano, como por exemplo “bulldozer”*, e foi necessário um mínimo de familiaridade com o inglês para ler as instruções de manutenção e de manuseio de peças de reposição. Depois as empresas americanas abriram fábricas na Europa (e de fato elas constituíram a segunda indústria mundial), e os quadros europeus tiveram de “aprender inglês”. No campo da aviação, todos os pilotos do mundo falam mais ou menos inglês para conversar com as torres de controle de diferentes países, assim como o pessoal das companhias aéreas, para falar com passageiros vindos de outros países. O formidável desenvolvimento do turismo
1 Segundo Fogaça (2007, p. 166) a pedagogia tecnicista surgiu no século XX e baseava-se nos
pressupostos de racionalidade e neutralidade científica, buscando “tornar o processo educativo “objetivo” e operacional de modo semelhante ao trabalho fabril.”
30
(doravante, a mais importante atividade mundial, pela cifra de negócios que atinge) tornou-se um dos grandes motores de difusão mundial do inglês. (LACOSTE, 2005, p.10)
Em 1996, é aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal n°
9.394) que tornava obrigatório o ensino de uma LE a partir da 5ª série do Ensino
Fundamental, sendo a segunda LE opcional para o Ensino Médio. A LE adotada
pelas escolas públicas era primariamente a língua inglesa, refletindo ainda a forte
influência exercida pela economia americana na economia mundial.
Em 2005, a lei n° 11.161 determina a obrigatoriedade da oferta do ensino da
língua espanhola em escolas públicas no Ensino Médio, sendo sua inserção
facultativa no Ensino Fundamental. Cabe ressaltar que a inserção da língua
espanhola no currículo do ensino público se deveu principalmente a uma
intensificação das relações comerciais entre países da América do Sul, com a
criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul), em 1991, através do Tratado de
Assunção, entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Em anos recentes, passaram
a participar como membros-associados Bolívia, Chile, Colômbia, Peru e Equador
(MATO GROSSO, 2010).
Observa-se, portanto, que o ensino de LE em escolas públicas no Brasil ao
longo da história sempre esteve intimamente atrelado a fatores históricos,
econômicos e sociais e que a inclusão de determinada LE no currículo escolar se
justifica pela sua aplicabilidade e a função social que o seu conhecimento
desempenha.
Conforme afirmam os PCNs:
A inclusão de uma área no currículo deve ser determinada, entre outros fatores, pela função que desempenha na sociedade. Em relação a uma língua estrangeira, isso requer uma reflexão sobre o seu uso efetivo pela população. (BRASIL, 1998; p. 20)
E adicionam:
[...] há de considerar as necessidades linguísticas da sociedade e suas prioridades econômicas, quanto a opções de línguas de significado econômico e geopolítico em um determinado momento
31
histórico. Isso reflete a atual posição do inglês e do espanhol no Brasil. (BRASIL, 1998, p. 40)
A ênfase dada ao ensino da leitura, em detrimento da oralidade, também é
justificada pela existência de poucas oportunidades para a interação oral e escrita
em LE no país (apenas a minoria da população tinha contato com estrangeiros) e as
possibilidades de viagens ao exterior eram restritas às camadas da sociedade com
maior poder aquisitivo. Em geral, os que utilizavam uma LE profissionalmente o
faziam na leitura de livros, textos acadêmicos, manuais técnicos. A preparação dos
alunos para o exame vestibular também justificava a primazia da habilidade de
leitura na educação formal.
Atualmente o ensino de LI ainda goza de considerável destaque em
instituições privadas e institutos de idiomas ao redor do país, além de ser a LE
ensinada em inúmeras escolas públicas. A LI é considerada pela sociedade em
geral como língua do progresso, como conhecimento imprescindível para a obtenção
de um bom emprego nos dias atuais. No senso comum, a fluência em LI está
atrelada à ideia de ascensão social e sucesso financeiro.
Tal pensamento pode ser explicado pelo fato de a LI ser considerada como a
língua da globalização. Kumaravadivelu (2006) discute que o processo de
globalização pelo qual está passando o mundo atual tem diminuído a distância
espacial e temporal entre as pessoas, dissolvido fronteiras e tem, como traço
distintivo de comunicação, a internet, fazendo do inglês a língua da comunicação
mundial. E isto se dá principalmente em virtude da influência econômica exercida no
cenário mundial pelos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra mundial até os
nossos dias. No âmbito cultural, argumenta-se que os impactos causados pela
globalização implicam que o mundo esteja passando por uma homogeneização
cultural, sendo a cultura norte-americana de consumo o centro dominante, bem
como a língua inglesa (idem, p.132).
Contudo, o avanço da língua inglesa e o status de relevância que esta
alcançou mundialmente têm outras implicações que merecem ser seriamente
consideradas. Vários linguistas, tais como Pennycook (1994) e Phillipson (1992),
autores não inscritos no arcabouço teórico da AD de linha francesa, têm se dedicado
a analisar questões ideológicas, políticas, culturais e identitárias relacionadas ao
32
avanço do inglês no mundo e têm defendido que o ensino de inglês como LE não se
dá de maneira apolítica ou ideologicamente neutra. Tais autores afirmam que o
ensino de língua inglesa ao redor do mundo não está atrelado somente à
globalização e ao seu uso na internet, mas envolve questões como capitalismo,
colonialismo britânico, imperialismo linguístico e dominação cultural.
Estes assuntos merecem consideração ao se discutir o ensino/aprendizagem
de LE. No texto das OCMT, notamos que dentre os objetivos do ensino público
estão:
a construção de conhecimentos, a formação cidadã mediante a interação ativa, crítica e reflexiva com o meio físico e sociocultural, de modo que os educandos desenvolvam a autonomia para o tratamento da informação e para expressar-se socialmente utilizando as múltiplas formas de linguagens e recursos tecnológicos. (MATO GROSSO, 2010, p. 2)
O fazer pedagógico só se dará de forma crítica, reflexiva e relativizadora se o
professor possuir, ele mesmo, uma postura reflexiva, sensível a tais questões de
cunho identitário, político e ideológico. Como observa Pedroso (2007, p. 121), “as
OCMT objetivam que o ensino estimule nos alunos uma postura crítica”; portanto,
espera-se que tal postura seja observada antes nos professores.
A sala de aula de LE é o lugar ideal para fomentar discussões e levar o aluno
a questionar, a não aceitar a língua inglesa como uma imposição, mas ser capaz de
compreender as questões envolvidas em sua disseminação. Que o aprendiz de LE
não seja levado a encarar a fluência do nativo (assim como sua cultura, crenças,
valores, modos de ver o mundo) como a única ideal, mas que o contato com o
estrangeiro o leve a uma maior valorização de sua própria cultura e língua maternas.
Conforme afirma Rajagopalan acerca do ensino de inglês como LE,
[...] Em outras palavras, a língua inglesa precisa passar a ser ensinada com o intuito de formar cidadãos do mundo e não aqueles capazes de interagir com turistas estrangeiros, de trabalhar como intérpretes, etc. (...) O importante é, contudo, não esquecer que, em última análise, os nossos alunos precisam adquirir domínio da língua estrangeira para o seu próprio bem e para se tornarem mais aptos a enfrentar os novos desafios que o mundo coloca no seu caminho. São eles que têm que aprender a dominar a língua inglesa, jamais deixando que a língua inglesa comece a dominá-los. (RAJAGOPALAN, 2005, p. 45)
33
Como observado através deste breve percurso histórico do ensino de LE no
Brasil, a inclusão desta ou daquela língua estrangeira no currículo escolar, bem
como os objetivos propostos para a disciplina, obedecem a fatores históricos, sociais
e econômicos. Tomar consciência deste pressuposto é fundamental para
compreender o papel de ensino de LE na contemporaneidade e para a reflexão e
implementação de uma prática pedagógica em consonância com as demandas do
momento histórico em que o ensino se dá.
2.2 O ensino de LE e a identidade
Como já explicitado no capítulo anterior, a corrente teórica na qual se embasa
o presente trabalho, a AD, refuta a noção de uma identidade fixa, acabada,
constante e imutável.
Conforme ressalta Coracini (2003, p. 148) a noção de sujeito adotada pela
AD, apoiada na psicanálise, é de um sujeito “cindido, clivado, heterogêneo,
perpassado pelo inconsciente, que, por sua vez, é habitado pelos mais recônditos
desejos que, recalcados sob a ação do social, responsável pelos interditos, só
irrompe via simbólico”.
Esta noção nos leva ao entendimento da diferença entre a LM e a LE na
constituição do sujeito. Aquela, a primeira língua aprendida, silencia tais desejos
inconscientes, desejos de completude, gerando no indivíduo a ilusão de ser
completo, indiviso, de ser a origem do seu dizer, capaz de controlar o que enuncia e
os sentidos que serão produzidos a partir do que enuncia. Tais ilusões são
abordadas por Fuchs e Pêcheux (1997, p. 169-171), fazendo a discussão das
mesmas ferramentas básicas da teoria discursiva sob o nome de teoria dos
esquecimentos.
Esses autores denominam esquecimento número 1 a ilusão inconsciente de
que o sujeito é a origem, a fonte, o dono de seu dizer. O esquecimento número 2,
por outro lado, consiste na ilusão de que o sujeito é capaz de controlar os sentidos
presentes naquilo que ele enuncia, o que pressupõe a existência de uma relação
direta entre as palavras e as coisas.
34
Por outro lado, a LE representa para o indivíduo o lugar onde os desejos
inconscientes e interditos podem vir à tona, onde não há cerceamentos, onde
praticamente tudo pode ser dito (CORACINI, 2003). Neste fato reside a explicação
de porque algumas expressões são mais facilmente enunciadas em língua
estrangeira (aquelas geralmente cerceadas pelas convenções da língua materna) e
outras mais plenamente expressas através da língua materna (em geral emoções, já
que a LE é a língua do Outro).
Ainda relacionada ao desejo inconsciente de completude, a LE significa o
Outro, o estranho, portanto, o seu aprendizado pode tanto gerar no aprendiz uma
forte atração, como se este Outro fosse capaz de completá-lo, quanto pode gerar
medo, ansiedade e obstáculos ao aprendizado (idem, p.149).
Também facilitam a compreensão da noção de sujeito, adotada pela AD, as
contribuições feitas pelo arcabouço psicanalítico enriquecido por Lacan (1987). De
acordo com a psicanálise, o processo de subjetivação se dá nas interações, e é em
relação ao outro que o sujeito é definido. Existe sempre em nós a presença do outro
e das condições que se tornaram significativas no constante processo de nos
refazermos, que se condensa como a nossa identidade. Esses ‘pedaços’ do outro
em nós, a que Bakhtin (1929/1978) atribui o nome de polifonia, porque afloram na
produção enunciativa, essa variedade de contribuições que o contato com o outro
deixa em nós, contribui para a formação do sujeito, sendo por isso que a AD o
concebe como efeito do inconsciente. “A análise do discurso reconhece, portanto, no
sujeito seu caráter contraditório, que, marcado pela incompletude anseia pela
completude, pelo desejo de querer ser inteiro” (BERTOLDO, 2003, p. 96).
Essa pluralidade de vozes, fruto da contribuição das relações sociais na
constituição da identidade, é perceptível, segundo Authier-Revuz (1990) na
heterogeneidade observada nas enunciações dos indivíduos. Conforme a autora,
Sempre, sob nossas palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso, através da qual a análise pode tentar recuperar os indícios da “pontuação do inconsciente”. (AUTHIER-REVUZ , 1990, p. 28)
35
A análise de tais aspectos demonstra a complexidade do processo de
ensino/aprendizagem de LE e o papel que este desempenha nos processos de
subjetivação dos aprendizes.
Para Orlandi (2005, p. 20), “O sujeito de linguagem é descentrado, pois é
afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle
sobre o modo como eles o afetam”. Torna-se possível entender, assim, que o sujeito
é continuamente constituído pelas/nas interações sociais. É, por isso, heterogêneo,
cindido, assujeitado, interpelado pela ideologia.
O sujeito, ao contrário do que ele próprio acredita, não é fonte do seu dizer.
Isso porque os possíveis sentidos depreendidos de suas enunciações já são
histórica e socialmente determinados. Conforme Foucault (2005, p. 139), “não
importa quem fala, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar”. Este processo
contínuo, que se dá no e pelo discurso é o que a AD concebe como processo de
subjetivação.
As interações em sala de aula de LE, portanto, fornecem contribuições vitais e
afetam indelevelmente a constituição da identidade de todos os sujeitos envolvidos
no processo de ensino/aprendizagem, a saber, professores e alunos.
É fundamental considerar que o ensino/aprendizagem de LE está intimamente
ligado com a relação do sujeito com seu inconsciente, sua língua materna, seu
desejo de completude, seus medos, ansiedades e anseios. O trabalho com LE é
ideológico, influenciando exponencialmente a imagem que o sujeito faz de si
mesmo, de sua língua materna, de sua cultura. Provoca conflitos, estranhamentos,
rejeições, à medida que o aprendiz entra em contato com o Outro, o estranho, o
estrangeiro.
Os aspectos referidos acima são inerentes ao processo de aprendizagem de
LE e devem ser levados em conta. Se abordados de forma adequada, podem levar o
aprendiz a experimentar “uma operação salutar de renovação e de relativização da
língua materna, ou como a descoberta embriagadora de um espaço de liberdade [...]
Aprender uma língua é sempre um pouco tornar-se um outro” (REVUZ, 1998, p.
224).
No entanto, o que se percebe é que pouca relevância é atribuída ao ensino de
LE em escolas públicas do país. O histórico de más condições de ensino, número
inadequado de alunos em sala, falta de material didático apropriado, salas de aula
em condições precárias, professores mal preparados e carga horária insuficiente
36
levaram a um quadro de descrença no ensino/aprendizagem de LE em escolas
públicas.
Pedroso (2009, p. 220), ao referir-se à situação do ensino de LE em escolas
públicas, afirma que “não existem minimamente condições materiais – físicas e
financeiras – que possam propiciar um modo de ensino que corresponda às
expectativas da dinâmica atual da sociedade brasileira e mundial.” Nas aulas, o
ensino em geral não apresenta coerência entre atividades e objetivos, o método de
ensino se centra na explicitação de vocabulários e estruturas gramaticais
descontextualizados.
A forma como a LE é ensinada em muito se assemelha ao trabalho com a
língua materna; aprender uma LE não prevê que o estudante aprenda a expressar-
se nesta língua, mas a falar sobre ela, “saber descrevê-la como um objeto que se
estuda e analisa” (CORACINI, 2003, p. 144). Enfatiza-se a forma e não o conteúdo.
O aluno é considerado como um receptáculo vazio a ser preenchido com o
conhecimento linguístico apresentado pelo professor. Na maioria das vezes, sua
subjetividade e seus conhecimentos prévios são desconsiderados, assim como
também o contexto em que este aluno se insere, sua realidade e anseios.
A proposta da aplicação da teoria discursiva ao processo de
ensino/aprendizagem de LE visa contribuir para que o ensinar LE se faça de uma
maneira que não silencie o aprendiz, que não desconsidere seus conhecimentos,
experiências e valores. Segundo a proposta da AD, o ensino de LE deve levar em
conta a subjetividade do aprendiz, propiciando-lhe a possibilidade de (re)significar-
se, inscrever-se na língua estrangeira. Coracini (2003) define ‘inscrever-se’ numa LE
como
Provocar confrontos, portadores de conflitos, entre as formações discursivas fundamentais, melhor dizendo, entre os modos de significação introjetados no sujeito, próprios à primeira língua, impregnados, naturalmente, por maneiras próprias de pensar e ver o mundo (aspectos ideológicos), e as formações discursivas ou modos de significação da segunda língua. É, pois, dessa relação contraditória e da capacidade de cada um em articular as diferenças que decorre o grau de sucesso e o modo de acontecimento do processo de aquisição de uma segunda língua. (CORACINI, 2003, p. 154)
37
Assim, para que o aprendizado se dê de maneira significativa –
contextualizando, subjetivando-- , o ensino deve se dar de forma a levar o aprendiz a
produzir sentido na LE, e não através da mera repetição de vocabulário e estruturas
gramaticais descontextualizados e desprovidos de sentido. É por isso que Pedroso
(2007, p. 120) afirma que “en el proceso de constante ir y venir de uma lengua a
outra, de lo que se trata es de volver ideológicamente válido lo que se enuncia em
outra lengua a partir de nuestra experiencia de trabajo con el lenguage.”
Deve-se primar por uma prática docente que, através do confronto com o
Outro, o estrangeiro, incite o aprendiz a uma postura de relativização, de reflexão,
que o faça perceber que conhecer e valorizar o estrangeiro necessariamente não
implica desvalorizar o que é próprio da sua região, o local. Conforme Pedroso (2007,
p.186) “a relativização instaurada pela língua estrangeira tem reflexos identitários
significativos. Seus efeitos reforçam o conhecimento do próprio que, neste caso, é a
LM”.
2.3 O ensino de LE e os documentos oficiais
A relevância e a contribuição do ensino de LE para a constituição da
identidade dos aprendizes e para a formação de cidadãos críticos têm sido
constantemente reconhecidas em documentos oficiais, que norteiam o ensino de LE,
em escolas públicas do país.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), documento oficial
elaborado pelo Ministério da Educação em 1998, com a finalidade de fomentar a
reflexão acerca da prática educacional no país, dentre os objetivos atribuídos ao
Ensino Fundamental, já estava o de levar o aprendiz a:
[...] compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito. (BRASIL, 1998, p. 7)
38
Atribui-se à educação a função de formar cidadãos aptos a viver em
sociedade, abordando, portanto, temas tais como diversidades regionais, cultura,
ética, costumes, crenças e valores de determinado grupo social. Ela tem também a
função de formar os estudantes, transmitindo conhecimentos necessários que os
capacitem para desempenhar determinadas funções profissionais, propiciando neles
o exercício de um raciocínio lógico e um pensamento crítico. Tais atribuições
demonstram a necessidade de que a escola, enquanto instituição do Estado,
acompanhe sempre as transformações pelas quais passa a sociedade, assim como
a necessidade de constante adaptação de currículos e abordagens de ensino às
demandas sociais.
O ensino de LE no Ensino Fundamental visa contribuir para a obtenção
destes objetivos, pois não somente contribui para a capacitação profissional do
aprendiz, como também cria oportunidades para o desenvolvimento do pensamento
crítico, para o questionamento de valores, crenças e costumes através da percepção
do Outro, do estrangeiro, da diversidade, assim como para o desenvolvimento de
uma postura de relativização. Conforme Pedroso,
Ensinar uma LE na contemporaneidade, por isso, responde a saber que, como Revuz (1998) conseguiu explicar, vamos iniciar um processo de ruptura com a crença na inquestionável naturalidade das coisas e da linguagem e fazer da relativização um recurso discursivo imprescindível. A LE, ensinada em consonância com os valores a partir dos quais a escola pública se reorganiza ideológica e, por isso, curricularmente (Silva, 2005) representa um subsídio da maior importância na instauração desse mecanismo. (PEDROSO, 2010b, p. 3)
Dada a influência que o ensino/aprendizagem de uma LE exerce na
constituição da identidade do aprendiz, é fundamental que as aulas de LE forneçam
a possibilidade de expressar-se de maneira significativa na língua-alvo. A este
respeito, os PCNs de LE estrangeira (BRASIL, 1998, p. 29) afirmam que o
aprendizado de LE deveria “possibilitar que o aluno, ao se envolver nos processos
de construir significados nessa língua, se constitua em um ser discursivo no uso de
uma língua estrangeira.” Para tanto, entre outros aspectos, sempre se reconheceu a
necessidade de articular o ensino ao conhecimento de mundo do aluno,
aproximando à sua realidade os temas discutidos em sala de aula de LE.
39
O Estado do Mato Grosso, visando aproximar o ensino às necessidades e
realidades dos alunos de escolas públicas, em 2011 lança, através da Secretaria de
Educação, o documento Orientações Curriculares para a Educação Básica do
Estado (OCMT). Baseado em pesquisas e estudos acerca das especificidades e
demandas do contexto mato-grossense, o documento serve de apoio para
discussões acerca do processo de ensino/aprendizagem e objetiva fomentar
reflexões sobre a prática pedagógica, além de orientar a (re)elaboração do currículo
escolar.
Acerca do ensino de LE, o documento reconhece que a prática social imprime
demandas para a disciplina que já não são mais as mesmas de anos atrás, em que
a possibilidade de comunicação oral em LE era uma realidade distante da maioria
dos aprendizes. Fatores tais como a globalização, intensificadas relações
econômicas entre países, maior facilidade de deslocamento de pessoas, maior
acesso à informação, a internet propiciando a comunicação entre pessoas de
diferentes partes do mundo, dentre outros fatores, fazem com que, cada vez mais, o
domínio de uma LE se torne uma necessidade do cotidiano de muitos e uma
ferramenta para a inserção social.
Esse documento oficial frisa, por isso, que: “Hoje, não se pode ignorar a
imprescindibilidade de aprender inglês como ampliação de oportunidades sociais e
econômicas, de inserção no mundo do trabalho globalizado” (MATO GROSSO,
2010, p. 112).
Em vista disso, faz-se necessário que a escola se adapte, realize as
mudanças necessárias de modo a fornecer um ensino contextualizado, significativo,
que reflita a realidade dos aprendizes. O documento propõe mudanças tais como
reformulação dos objetivos do ensino de LE, visando habilitar o aluno a utilizá-la
para interação oral e escrita, de maneira crítica, com uma postura relativizadora.
Neste aspecto, um modelo de ensino de LE que se paute na ênfase à forma e
não ao conteúdo da linguagem, na correção gramatical e não na adequação
enunciativa, ao ensino de vocabulário e estruturas gramaticais descontextualizados
e desprovidos de sentido não contribui para a obtenção dos objetivos propostos para
o ensino de LE. Conforme lemos nas OCMT:
[...] a linguagem em geral é mais substância (conteúdo ideológico, argumentativo) do que forma (substantivos, verbos, preposições etc.
40
e suas combinações). Quer dizer, a formulação (as formas) só existe em função da argumentação (do sentido). Confundir essa ordem natural das coisas, em se tratando da linguagem, é uma fonte produtiva de inadequações pedagógicas, políticas e enunciativas ... (MATO GROSSO, 2010, p. 103)
O documento propõe ainda que, para a obtenção destes objetivos, seria ideal
um aumento da carga horária reservada à disciplina, constante qualificação dos
professores, utilização de recursos tecnológicos (som, datashow, computador) em
sala e utilização de material didático adequado.
Por ser uma ferramenta fundamental no processo de ensino/aprendizagem de
LE, o livro de LE, como material didático, também contribui significativamente no
processo de subjetivação dos aprendizes, tendo implicações identitárias, históricas,
sociais, políticas e ideológicas. Discutirei este tema a seguir.
41
CAPÍTULO 3
O livro didático de LE na escola pública
[...] o livro didático de LE não é um inimigo a ser combatido, mas um companheiro a ser avaliado criticamente à luz das necessidades e características de cada contexto específico. - Sávio Siqueira O papel do professor na desconstrução do ‘mundo plástico’ do livro didático de língua estrangeira, in: Formação crítica de professores de línguas: desejos e possibilidades, 2010, p. 225
Neste capítulo apresento algumas considerações acerca do livro didático (LD)
como recurso nas aulas de LE. Discuto o que alguns linguistas aplicados têm
publicado acerca do tema, bem como seu papel no ensino de LE de acordo com os
objetivos propostos pelos documentos oficiais e sua implicação na constituição
identitária de todos os envolvidos no processo de ensino/aprendizagem, ou seja,
professores e alunos.
3.1 O LD em sala de aula de LE
Em se tratando de material didático, Tomlinson (1998, p.2) usa o termo para
definir “tudo que é usado por professores ou alunos para facilitar o aprendizado de
uma língua”, referindo-se a uma ampla gama de ferramentas, como livros, textos,
folhas com exercícios, fitas, Cds, Dvds, pôsteres, mapas, dentre outras. Já Almeida
Filho define material didático como:
[...] conjunto de conteúdos (mediados pela língua e por imagens) e de processos previstos (codificados como numa partitura) que apoiam a (re)criação de experiências com e na língua-alvo conforme a postura de uma dada abordagem e alinhadas com um dado planejamento. O objetivo maior do material didático é o de criar condições para que se desenvolva entre os alunos a competência
42
linguístico-comunicativa. São os recursos que deveriam servir apenas de apoio, mas muitas vezes servem mais do que isto. Servem de ‘bengala’, e chegam a dominar a aula do professor, talvez devido à formação precária dos professores de LE. (ALMEIDA FILHO, 2004, p. 05)
Vários trabalhos de diversas filiações teóricas já foram dedicados ao estudo e
produção de materiais didáticos utilizados em aulas de língua estrangeira, tais como
Tomlinson (1998), Bohn (1998), Almeida Filho (1994), Almeida Filho e Consolo
(1990), Leffa (2008), Pessoa (2006), Sheldon (1998), Cunningsworth (1995),
Kramsch (1988), Tilio (2008), entre outros.
Dentre a variedade de ferramentas que compõem o conjunto de materiais
didáticos, uma das mais utilizadas, ou talvez se possa afirmar, a de maior destaque
no processo de ensino/aprendizagem tanto de LM, quanto de LE, é o livro didático
(LD). Coracini (1999b, p. 17), falando a respeito da influência do LD no ensino,
salienta o fato de que, em muitos casos, o LD representa “a única fonte de consulta
e leitura dos professores e dos alunos”. O Guia de Livros Didáticos (PNLD 2012)
confirma essa ideia ao afirmar que “o LD, em qualquer disciplina, é um instrumento
fundamental (às vezes praticamente único) do acesso dos alunos à leitura e à
cultura letrada” (BRASIL, 2011, p. 18). Tais afirmações se demonstram muito
pertinentes, quando consideramos a definição que Tomlinson faz de LD, como
sendo:
[...] um livro texto que fornece materiais nucleares para um curso. Ele objetiva prover ao máximo em um só volume, elaborado de tal modo que sirva como único livro que os alunos necessariamente usem durante o curso. Esse livro geralmente inclui trabalho com gramática, vocabulário, pronúncia, funções e habilidades de leitura, escrita, compreensão auditiva e produção oral. (TOMLINSON, 1998, p. 9)
Observamos que o LD, em geral, já é produzido com o intuito de centralizar
nele o aprendizado, abarcando a maior quantidade possível de conteúdos,
exercícios e atividades e assim, direcionando o ensino. Devido a essa configuração
do LD, o professor é levado a depositar nele sua total confiança e a posicionar-se
em segundo plano na dinâmica de sala de aula, como um mero executor do que dita
o LD. Em salas de aula de LE onde o LD não é utilizado, sua falta é sentida pelos
professores, como observa Siqueira,
43
Mesmo em realidade como as nossas escolas públicas, em que o material didático de LE é precário, ou muitas vezes inexistente, ouvimos o tempo inteiro relatos de professores, dando seus testemunhos sofridos, atestando que, se tivessem pelo menos o livro didático, as coisas na sua sala de aula poderiam ser bem diferentes. (SIQUEIRA, 2010, p. 225)
Tal é a influência do LD no fazer pedagógico que Coracini (1999b) nota que,
mesmo em casos de aulas de LE em que os professores optam por preparar o seu
próprio material didático, o que se observa é que o LD já está neles “internalizado”,
fazendo com que a maneira como direcionam as aulas e o tratamento dado ao texto
e ao material elaborado, assemelhem-se muito ao LD, sua organização, seus
princípios e a imagem do aluno que veicula. Em aulas de produção escrita, observa-
se uma ênfase na forma e não no conteúdo, tentativas de controle e pouca atenção
à produção de sentidos, características, segundo a autora, observadas também no
LD.
Sendo assim, é inegável o protagonismo do LD no processo de
ensino/aprendizagem e, com respeito a este fato, apresentam-se posicionamentos
diversos.
De fato, é reconhecida a importância do LD como ferramenta de apoio ao
professor de LE. Richards (2001, p. 1) reconhece que o LD possui limitações e que
seu uso apresenta vantagens e desvantagens, mas defende que “grande parte do
ensino de idiomas que acontece ao redor do mundo hoje não poderia acontecer sem
o uso extensivo de livros didáticos comerciais”2 e que a utilização do LD ajuda a
conferir estrutura, padronização e qualidade ao ensino de LE.
Autores como Richards (1998; 2001), Alonso (1994), Coracini (1999),
Cerrolaza (1999), Allwright (1981) e Pessoa (2006) defendem que dentre os
benefícios da utilização do LD pode-se mencionar que este permite que alunos
consolidem conteúdos, estimulam sua autonomia, fornecem sequência e estrutura
ao ensino, variedade de propostas, sistematização de vocabulário. Ainda
consideram que os LDs são visualmente atraentes, economizam tempo do professor
em preparação de materiais, ajudam/treinam professores sem muita experiência a
2 Em inglês: “Much of the language teaching that occurs throughout the world today could not
take place without the extensive use of commercial textbooks.”
44
desenvolver e planejar suas aulas e, em alguns casos, tomam decisões quanto ao
ensino que os professores possivelmente não estejam aptos a tomar, já que o LD foi
elaborado por um autor que possui conhecimentos que talvez o professor não
possua.
Como ressalta Allwright,
Para alguns, tal concepção parece reduzir o papel do professor a mero gerente de sala de aula. Para outros, ela ‘liberta’ o professor para desenvolver o conhecimento necessário para lidar com questões práticas fundamentais relacionadas ao processo de aprendizagem de línguas no ambiente de sala de aula. (ALLWRIGHT, 1981, p. 6)
As OCMT (MATO GROSSO, 2010, p. 108) acrescentam ainda que, como em
geral este profissional não é um falante nativo da língua que ensina, o professor
encontra no LD uma “referência de correção”. O livro didático de LE, segundo o
documento, funciona para professores e aprendizes como uma “referência
considerada como uso real da língua”, corroborando assim a ideia de que o LD
fornece segurança a alunos e professores, servindo de modelo e parâmetro quanto
à utilização da língua-alvo.
Por estas razões, as OCMT apontam a necessidade de que se disponibilize
material didático adequado para a disciplina de LE, o que possibilitaria uma
sequência no ensino, permitiria a professores e escolas maior autonomia na
determinação de conteúdos relevantes ao contexto dos alunos, servindo de
ferramenta de apoio ao processo de ensino/aprendizagem e contribuindo para a
obtenção dos objetivos propostos para o ensino público.
No entanto, há quem manifeste a preocupação de que, ao invés de
ferramenta de apoio ao ensino, o LD muitas vezes acaba se tornando central no
processo, sendo ele quem define, e não o professor, os conteúdos a serem
ensinados. Assim, uma desvantagem da utilização do LD seria a de que o LD
“usurpa em muitos casos o papel protagônico do professor no planejamento e
adequação dos conteúdos” (idem, p. 108).
Dentre os efeitos negativos ou limitações do LD, Richards (2001, p. 2) ainda
afirma que, quando usado como única fonte de ensino, o LD passa a tomar todas as
decisões, reduzindo o professor a um mero “técnico cuja função principal é
apresentar material preparado por outros”.
45
Pessoa ainda adiciona que o LD
[...] pode não só limitar as possibilidades de ação do professor, como também comprometer as próprias perspectivas de análise e compreensão do ensino, de suas finalidades educativas e de sua função social. (PESSOA, 2006, p. 110)
Richards (1998; 2001), Alonso (1994), Coracini (1999), Cerrolaza (1999),
Allwright (1981), Pessoa (2006), anteriormente mencionados, também afirmam que
o LD muitas vezes tende a apresentar a LE de maneira fragmentada, priorizando a
forma e não o conteúdo da linguagem e, ainda, precisa de constante atualização de
tópicos e conteúdos. Pode ser caro, nem sempre fomenta um ensino centrado no
aluno e, por ser produzido para um grande público, tende à homogeneização e deixa
de atender à realidade e especificidades do contexto dos alunos.
Frequentemente o LD exalta uma variedade da língua ensinada (no caso da
língua inglesa), em detrimento das demais variedades, reforça a ideia de que é
preciso expressar-se como um falante nativo idealizado e se configura de tal
maneira que é tido muitas vezes pelos professores como ‘inquestionável’.
Muitos acabam por posicionar-se radicalmente contra a utilização do LD em
sala de aula de LD, defendendo a abolição do seu uso, por considerá-lo, como notou
Coracini (1999b, p. 34), “um material fabricado artificialmente, pouco ou nada
comunicativo, que escraviza o professor, limitando-o e até impedindo a sua
criatividade”.
Levando em consideração, portanto, as diferentes asserções acerca das
vantagens e desvantagens da utilização do LD em aulas de LE, me parece razoável
afirmar que não seria o caso de fazer com que o ensino gire única e exclusivamente
ao redor do LD, nem tampouco de se rejeitar por completo o seu uso, mas de se
evitar extremos que decorrem de níveis de proficiência incompatíveis com a função
do professor, de posturas que desconsideram certas características da educação
como um todo e ou de capacidades didáticas não totalmente desenvolvidas nos
cursos de formação nas universidades.
Concordo com a afirmação de Bohn (1988, p. 293) de que “os materiais não
devem ser considerados como uma panacéia que vai substituir os maus ou mal
treinados professores ou que os professores bons não precisam de materiais”, além
46
de considera que não existe LD “perfeito”. Antes, tais considerações assinalam a
importância de que o professor seja capaz de adotar uma postura crítica e
relativizadora frente ao LD, atribuindo a este o papel que realmente lhe cabe, que é
o de ferramenta de apoio para o ensino. É preciso também que o professor esteja
preparado para exercer um julgamento com respeito à relevância e aplicabilidade
dos conteúdos, valores e ideologias veiculados pelo LD e esteja apto a realizar as
necessárias adequações e adaptações, personalizando e aproximando o ensino à
realidade de seus alunos.
3.2 O LD e a identidade
Segundo o entendimento baseado no arcabouço teórico com que trabalha a
AD, o processo de subjetivação é relacional; no contato com a alteridade, mediante
o discurso, vão-se imprimindo alterações indeléveis na constituição identitária do
indivíduo (CORACINI, 2003; LAKAN, 1987; MUSSALIM, 2001). Sendo assim, todos
os elementos que fazem parte do contexto escolar – alunos, professores, material
didático – exercem significativa influência no processo de subjetivação do indivíduo-
aluno.
É possível afirmar, portanto, que o LD é uma peça fundamental no processo
de ensino/aprendizagem e tem um papel importante na constituição de identidades
em sala de aula de LE (CORACINI, 2003). Este processo implica a modificação de
referências com que o estudante comparece à escola. Estas referências que são
sobre si próprio e sobre os outros, mais próximos ou a coletividade em que está
incluído e, no aspecto abordado aqui, em relação à língua estrangeira e aos países
dos seus falantes, refletem-se no comportamento do aprendiz.
Devido à relevância do LD como elemento integrante do processo de
ensino/aprendizagem, autores como Dendrinos (1992), Richards (1998, 2001),
Siqueira (2010) e outros, têm se dedicado a analisar os aspectos ideológicos,
políticos e sociais que norteiam a seleção, feita por editoras, de conteúdos e temas a
serem incluídos em livros didáticos de língua inglesa, criando o que Siqueira (idem)
refere como “o mundo plástico do livro didático”.
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Observa-se uma tendência a evitar abordar certos temas tidos como
polêmicos ou controversos, como pobreza, violência, marginalidade,
homossexualismo, exclusão. Contudo, percebe-se a prevalência da utilização de
temas ‘neutros’ ou ‘inofensivos’, como comidas, roupas, viagens, além de uma
constante preocupação com a estética, a exaltação do belo, do harmônico, do ideal,
de uma sociedade imaginária, desprovida de conflitos e distante da realidade dos
alunos.
Tal aspecto do LD deve ser analisado em profundidade, pois como observa
Siqueira,
[...] não raramente, nos deparamos com atividades e exercícios em materiais didáticos de LE de comprovada qualidade, publicados por editoras multinacionais, escritos por autores de renome na área de ensino e aprendizagem de línguas, que cometem deslizes inimagináveis, reforçando, dentre outras coisas, crenças e valores ultrapassados, incongruentes e altamente discriminatórios. (SIQUEIRA, 2010, p. 231)
O aspecto comentado acima não necessariamente obedece a uma postura
política consciente pautada pelo colonial, mas pelo efeito do inconsciente que evita
mostrar ao outro, dentro do jogo dialógico de imagens, “uma cara feia” do país que
todos preferimos discutir/comentar entre pessoas de uma mesma nacionalidade.
Uma prova disso está em nós mesmos. Se nos fosse encomendado planejar um LD
de português para estrangeiros, quais imagens sociais e urbanas do Brasil
prevaleceriam?
Apesar de provavelmente inconsciente, essa escolha de temas tidos como
‘neutros’ ou ‘inofensivos’ e esse esforço por apresentar uma ‘cara bonita’ do país
onde a língua-alvo é falada como primeira língua, além da apresentação de uma
sociedade idealizada, livre de conflitos e contrastes, em geral culmina por reforçar
valores, crenças, ideologias e representações muito aquém da realidade dos
aprendizes. Em análise dos temas abordados por LDs de língua inglesa, bem como
das imagens e valores sociais e culturais por eles veiculados, Dendrinos (1992, p.
152) salienta que o que, em geral, pode ocorrer, é a “aculturação linguística dos
aprendizes e, consequentemente, sua subjugação a convenções sociais e à
ideologia dominante em que a língua está imersa.”
48
O lado politicamente relevante a que atualmente se atenta, para evitar efeitos
ideológicos pouco desejados com consequências identitárias, é de responsabilidade
do professor e das pessoas assujeitadas por práticas sociais diferentes que lhes
possibilitam detectar o que permanece oculto: o ideológico. Como explicado acima,
sem possibilidades de contraste, tudo se naturaliza. É a isso que também atentamos
através da abordagem desta pesquisa. E o fazemos em função de remeter o ensino
e os meios de que nos utilizamos à vivência dos estudantes e às práticas do seu
contexto social, porque só assim atribuirão relevância aos conteúdos e serão
minimizados efeitos negativos.
Somado ao distanciamento da realidade e cultura dos alunos, a análise
criteriosa de livros didáticos de língua estrangeira revela ainda outro aspecto que
merece atenção.
Em considerações realizadas por autores como Souza (1999), Carmagnani
(1999), Coracini (1999), dando atenção ao LD de LE e a questão identitária,
demonstrou-se que os LDs, em geral, apresentam uma imagem distorcida e
estereotipada da cultura e sociedade estrangeiras como sendo homogêneas,
harmoniosas, superiores e ideais, o que constitui a assinatura ainda em
funcionamento do pensamento da modernidade atravessado pelo colonial. Como o
discurso veiculado em sala de aula (pelo professor e, também, pelo LD) exerce
influência no processo de subjetivação dos alunos, já que, através do contato com o
outro, o sujeito vai construindo uma identidade, uma imagem acerca de si mesmo
em relação ao novo e diferente, as imagens veiculadas pelo LD de LE podem fazer
com que o aluno conceba a língua e cultura estrangeiras como superiores.
Analisando livros didáticos de língua inglesa, Grigoletto (2003) observa que
nessas obras, a imagem apresentada do brasileiro é estereotipada, ressaltando a
pretensa cordialidade, a beleza natural do país e das mulheres brasileiras. A
diversidade é minimizada, contribuindo para a ideia de igualdade; daí a não criação
de um lugar para o estudante brasileiro. A autora assinala que, ‘ao negar as
diferenças e reforçar a igualdade entre povos e culturas, o livro didático afirma a
superioridade do outro. O estrangeiro e sua cultura são superiores e, portanto,
devem ser imitados’ (idem, p. 358).
A língua estrangeira nestas obras tende, ainda, a ser apresentada como
ideológica e politicamente neutra, a língua da união, acima das diferenças de
prevalência étnica, classe social e cultura. O indivíduo, de posse dessa língua, pode
49
ter acesso a conhecimentos importantes e deve procurar expressar-se de forma
homogênea, apagando traços de sua “estrangeiridade”.
Esses fatores, segundo a autora, evidenciam que o discurso didático-
pedagógico é atravessado pelo discurso colonial, veiculando a superioridade da
língua inglesa. O discurso homogeneizador e redutor serve-se também da
construção de representações, que Grigoletto (idem, p. 354) define como “sistemas
de significação que não só veiculam como também atribuem sentido às coisas, num
processo de construção do “real”. Ela afirma que estas reproduções estereotipadas
buscam naturalizar e fixar imagens das culturas representadas, criando a impressão
de que estas identidades são imutáveis, fazem parte da pretensa “essência” de um
determinado povo.
Estas asserções a respeito do discurso do LD assumem relevância quando se
considera que o LD em sala de aula de LE pode ser assumido como um instrumento
de poder, à medida que direciona o fazer pedagógico, determinando os conteúdos a
serem ensinados e deixando uma marca indelével no processo de subjetivação dos
alunos.
Aplicando as considerações de Foucault (2005) acerca das relações de poder
na sociedade ao ambiente escolar, Grigoletto (1999, p. 68) afirma que o discurso do
LD configura-se em um discurso de verdade, pois este se constitui como “um texto
fechado, no qual os sentidos já estão estabelecidos (pelo autor), para apenas ser
reconhecido e consumido pelos seus usuários (professor e aluno)”. Ela aponta
aspectos como o caráter homogeneizador que este exerce nos alunos, a repetição
de estruturas e exercícios, e a maneira “natural” com que as formas e os conteúdos
são apresentados, produzindo o efeito de que o seu discurso é inquestionável.
Essa autora observa ainda que o LD supõe o professor como um mero
‘usuário’ e dessa forma muitos professores se posicionam quanto ao LD em sala de
aula de LE, como meros reprodutores dos conhecimentos veiculados pelo LD, já
que, como nota Coracini (1999, p. 23): “a verdade está aí contida; o saber sobre a
língua e sobre o assunto a ser aprendido ali se encontra”.
O caráter de autoridade do LD encontra sua legitimidade na crença de que ele é depositário de um saber a ser decifrado, pois supõe-se que o LD contenha uma verdade sacramentada a ser transmitida e compartilhada. Verdade já dada que, o professor legitimado e
50
institucionalmente autorizado a manejar o LD, deve apenas reproduzir, cabendo ao aluno assimilá-la. A autoridade do LD estende-se à visão do livro enquanto forma de critério do saber, criando paradigmas norteadores da transmissão de conhecimento em contexto escolar. O LD parece ter como função primordial dar certa forma de conhecimento; “forma” no sentido de seleção e hierarquização do chamado “saber”. (SOUZA D. M, 1999a, p. 27-28)
Considero muito pertinente o argumento de Grigoletto (2003) ao propor a
produção de um LD nacional de LE que não mais represente as identidades como
pretensamente fixas, estáticas, idealizadas e estereotipadas, mas que leve em conta
que a constituição da identidade é processual, fortemente influenciada pelo discurso
veiculado pelo LD e construída nas práticas sociais que se dão também em sala de
aula de LE.
Se afirmamos que é de se esperar que, ao produzir um LD, se procure
veicular uma imagem positiva dos países onde a língua-alvo é falada como LM, além
de valores, crenças, explicações e representações próprios do país onde a língua-
alvo é falada como LM, também podemos afirmar que é possível produzir um LD
que trabalhe a LE com conteúdos e temas que instiguem os alunos à
problematização, ao questionamento, à relativização, à discussão de tais valores,
crenças, explicações e representações. Um LD que não exerça o efeito indesejável
de generalizar, estereotipar e, ao mesmo tempo, homogeneizar a cultura dos
aprendizes e que não os leve a depreciar suas próprias crenças e valores, mas que
esteja mais próximo à realidade dos aprendizes.
3.3 O LD de LE para o Ensino Fundamental
Tendo em vista os aspectos já discutidos neste capítulo, acerca do papel
desempenhado pelo LD no processo de ensino/aprendizagem e da importância da
sua utilização de maneira apropriada como ferramenta de ensino pelo professor, o
Ministério da Educação, através do PNLD 2011, analisou e selecionou duas
coleções de LDs de Língua Inglesa para serem adotados pelas escolas para os anos
finais do Ensino Fundamental.
51
Além de aspectos como respeito à legislação, diretrizes e normas relativas ao
Ensino Fundamental, coerência entre abordagem e objetivos propostos, o trabalho
com as ditas quatro habilidades do arcabouço teórico comunicativo (leitura, escrita,
fala e audição), entre outros, levou-se em conta na escolha das coleções, que o
material reconhecesse a diversidade dos alunos brasileiros, bem como a diversidade
de contextos em que se dá o ensino e a aprendizagem.
Dessa forma, o LD adotado pela escola, dentre os sugeridos pelo PNLD 2011,
pode contribuir de maneira significativa para que o ensino aconteça de maneira
crítica, fomentando nos alunos uma postura de relativização. O professor é peça
fundamental para que isto se dê, ao desempenhar sua prática pedagógica de
maneira crítica, buscando estimular nos alunos uma postura de relativização, de
questionamentos, de discussão, de desnaturalização de sentidos, de aceitação das
diferenças e de valorização da própria cultura.
Conforme aponta McKay, acerca do ensino de inglês:
[...] o objetivo do ensino desse idioma na contemporaneidade não deve ser aquele de levar o aprendiz a internalizar e/ou aceitar os padrões da(s) cultura(s) alvo; ao contrário, os alunos devem ser encorajados a refletir sobre sua própria cultura em relação a outras culturas... (MCKAY, 2002 apud SIQUEIRA, 2010, p. 240)
Tal questão merece consideração, pois conforme analisado anteriormente,
muitos LDs de Língua Inglesa apresentam um discurso colonial e uma visão
estereotipada de cultura e após extenso trabalho com tais materiais, os professores
de LE têm como que ‘internalizados’ neles estes discursos, tornando-se
‘reprodutores’ destes. Isso acontece por que, no contexto de sala de aula, o LD se
configura como o detentor da verdade, um manual do que e como ensinar, um guia
para ser seguido à risca, um referencial de correção tanto no sentido metodológico,
quanto do uso da língua. É muito compreensível, portanto, que o professor, que se
considera um mero transmissor dos saberes contidos no LD, culmine por fazer do
discurso do LD o seu discurso, da visão de sociedade e cultura, valores e ideologias
veiculados por este, os seus próprios.
Como observa Souza,
52
[...] é responsabilidade do professor de língua estrangeira criar condições que favoreçam o processo de desenvolvimento da habilidade crítica do aluno. Entretanto, isso não será possível se não houver iniciativa e disposição do professor para questionar e tentar transformar, na medida do possível, o círculo vicioso texto-perguntas sobre o texto-respostas no texto-via professor via livro didático. (SOUZA, 1999b, p. 102).
Portanto, para que o ensino se dê de forma a instaurar nos aprendizes uma
postura de relativização, motivando-os à desnaturalização de sentidos, formando
cidadãos dotados de uma atitude de respeito e aceitação do outro e da diversidade,
sem deixar de respeitar sua própria cultura, língua e valores, é imprescindível que o
professor tenha seu olhar voltado para estas questões em sala de aula, se afastando
das suas práticas atuais.
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CAPÍTULO 4 METODOLOGIA DE PESQUISA
Caminhante, não há caminho,se faz caminho ao andar. - Antônio Machado Antologia Poética, 1999.
No presente capítulo procedo à apresentação da metodologia adotada para a
pesquisa, descrição e justificativa da escolha do LD analisado, breve descrição dos
professores participantes e do seu contexto, descrição do questionário utilizado
como instrumentos de coleta e, posteriormente, a análise dos dados obtidos.
4.1 A escolha da metodologia
A presente pesquisa se organiza em torno de dois momentos ou eixos
principais; em um primeiro momento realizamos a análise de dados obtidos através
da seleção de atividades do LD de LE “Links – English for teens”, e em um segundo
momento, a análise de questionários respondidos por professoras de inglês como
LE em escolas públicas das cidades de Cuiabá e Várzea Grande.
O que se objetiva com tal pesquisa é identificar a abordagem de trabalho com
a linguagem que norteou a formulação das atividades propostas pelo LD analisado,
bem como identificar os discursos aos quais remetem as enunciações de
professoras de LI como LE no Ensino Fundamental, evidenciando a concepção de
ensino que subjaz à sua prática. Conforme se caracterizam pesquisas no campo da
Linguística Aplicada, o presente trabalho tem como objetivo final apresentar
sugestões práticas de forma a contribuir para o aprimoramento do trabalho didático,
incentivando posturas críticas em professores e alunos e um fazer pedagógico em
consonância com uma abordagem discursiva de trabalho com a linguagem.
Tais objetivos foram traçados no intuito de responder às perguntas:
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Como o trabalho com o LD se aproxima de uma abordagem discursiva
no trabalho com a linguagem?
Qual concepção de ensino norteia a prática de professores de LE em
escolas públicas de Mato Grosso?
O que fazer para reverter efeitos pouco desejados e propiciar
resultados afinados com as expectativas atuais?
Sendo assim, o corpus da pesquisa foi constituído, como é próprio de
pesquisas na área da Análise do Discurso, por duas vias, a via experimental e de
arquivo (Pêcheux, 1997). Para a obtenção de dados pela via experimental, o
pesquisador/analista elabora perguntas, estrategicamente formuladas de acordo
com os objetivos de sua pesquisa e as enunciações produzidas a partir de tal
situação (as respostas dadas pelos participantes) passam a fazer parte do corpus,
servindo de material para análise do pesquisador. Na presente pesquisa, as
professoras participantes responderam a um questionário composto pelas seguintes
perguntas:
Qual a sua formação e há quanto tempo ministra aulas de língua
inglesa?
Em sua opinião, qual a importância do ensino de língua inglesa? E por
que ela se tornou tão importante na atualidade?
Você considera importante trabalhar questões relacionadas aos
valores, costumes e temas relacionados ao cotidiano dos alunos em
suas aulas? Por quê?
Como você avalia o trabalho do livro didático com respeito a
gramática, vocabulário, leitura e oralidade? Acha que algum desses
aspectos é trabalhado de maneira insuficiente? Em caso afirmativo,
como você supre essa necessidade?
Na via de arquivo, o corpus é constituído de documentos ou enunciações
acerca de determinado tema, produzidos em situações discursivas reais, com fins
outros que não o de serem analisados. Conforme observa Revel (2005, p. 19) “o
arquivo representa, portanto, o conjunto dos diversos discursos efetivamente
pronunciados numa época e que continuam a existir através da história”. É decisão
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posterior do pesquisador/analista selecionar os documentos ou enunciações para
fazer parte de seu corpus de pesquisa. No presente trabalho, tal explicitação se
refere a atividades selecionadas do LD “Links – English for teens”. Conforme
Possenti (2006, p. 96) ao selecionar seu corpus, o analista “necessariamente
privilegiará determinados aspectos, o que dependerá de seu projeto de análise”.
Sendo assim, foram escolhidas atividades de diferentes unidades, ao longo dos 4
volumes da série, que servem de pano de fundo para discussões que podem
oferecer ao aprendiz oportunidades de significar-se na LE. Ao mesmo tempo, estas
atividades fomentam uma postura de criticidade e relativização, estando em
consonância com uma proposta de trabalho de viés discursivo.
Aplicando à totalidade de nossa pesquisa as considerações que Gregolin
(2004) faz de Foucault acerca de arquivo, afirmamos que nesta análise objetivamos
aceder à “positividade” do corpus, pois
Quando se conseguir enxergar, analiticamente, na dispersão de enunciados, regularidades de acontecimentos discursivos, estaremos segundo Foucault, diante da sua positividade, que caracteriza sua unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos. Se a positividade não revela quem estava com a verdade, pode mostrar como os enunciados “falavam a mesma coisa”, colocando-se no ‘mesmo nível’, no ‘mesmo campo de batalha’. Toda a massa de textos que pertencem a uma mesma formação discursiva comunica-se pela forma de positividade de seus discursos, pois ela desenvolve um campo em que podem ser estabelecidas identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos, jogos polêmicos. (GREGOLIN, 2004, p. 91)
A análise do corpus (questionários e atividades do LD) busca identificar os
sentidos que podem ser produzidos da interpretação da materialidade linguística,
através da articulação entre o linguístico, o social e o histórico (MELO, 2005). A
materialidade linguística, portanto, não é apenas forma ou texto, mas é concebida
como materialização da ideologia, manifestação do inconsciente, possibilitando ao
analista identificar a filiação do sujeito a determinado discurso.
[...] o texto é a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. [...] por isso, no procedimento de análise, devemos procurar remeter os textos ao discurso e esclarecer as relações deste com as formações discursivas pensando, por sua vez, as relações destas
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com a ideologia. Este é o percurso que constitui as diferentes etapas da análise, passando-se da superfície linguística ao processo discursivo. (ORLANDI, 2005, p.71)
Assim, o analista, ao selecionar e determinar o que fará parte do corpus de
sua pesquisa, já está realizando sua análise (ORLANDI, 1988). Ao delimitar o
recorte de sua análise, já está pondo em operação a teoria. Tomamos nossos
dados, a materialidade linguística, portanto, como ponto de partida, de onde
possamos observar enunciados, identificar os discursos a que estes se remetem,
suas formações discursivas e consequentemente, ideológicas. Visto ser o objetivo
da presente análise remeter os enunciados às FDs, compreender as vozes que se
fazem presentes nos discursos analisados, vale ressaltar que, ao descrever e
interpretar os dados, não procuro fazê-lo de maneira exaustiva (ORLANDI, 2005) ou
“completa”. A constituição do corpus não se deu tendo em mente uma significativa
quantidade de dados, mas sim em sua representatividade para a análise. Foram
feitos recortes que tornassem possível evidenciar a relação entre os enunciados e
os discursos, entre os enunciados e os sentidos que a eles podem ser atribuídos.
Descrevendo o percurso metodológico que um pesquisador baseado na AD
deve percorrer, Orlandi (2005) descreve 3 etapas. Este deve partir de uma
dessuperficialização do corpus, da materialidade ou superfície linguística,
procurando evidenciar as formações discursivas (FDs) a que estes discursos
remetem, transformando-o em objeto discursivo e daí então em processo discursivo,
relacionando as FDs à formação ideológica (FI) que as rege.
Passemos agora a uma descrição do LD analisado, bem como uma descrição
das professoras envolvidas na pesquisa.
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4.2 Justificativa da escolha e descrição do corpus
O LD
Em 2010, pela primeira vez, o Ministério da Educação, através do Programa
Nacional do Livro Didático – PNLD (programa em existência há mais de 10 anos),
analisa e seleciona LDs para a disciplina de Língua Estrangeira Moderna (LEM):
Espanhol e Inglês para as séries do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental em
escolas públicas do país. Tal fato por si só já demonstra a relevância com que a
disciplina de LE passa a ser encarada e acena para sensíveis melhoras na
qualidade do ensino.
Das 26 coleções de LD de LI que foram submetidas à criteriosa análise, duas
foram selecionadas e sugeridas pelo Guia de Livros Didáticos (BRASIL, 2010); a
obra “Keep in Mind” de autoria de Elizabeth Young Chin e Maria Lúcia Fernandes
Abreu Zaorob, Editora Scipione e a obra “Links – English for teens” dos autores
Amadeu Onofre da Cunha Coutinho Marques e Denise Machado dos Santos, pela
Editora Ática.
Os critérios que nortearam a seleção das obras são descritos pelo Guia
(idem) como sendo, dentre outros, linguagem contextualizada, situações autênticas,
trabalho com as 4 habilidades (leitura, escrita, compreensão auditiva e oralidade),
incentivo à autonomia do aprendiz, objetivando a instauração de uma postura
reflexiva. Como explicita o documento, uma das características ideais do LD
[...] deveria ser a de reconhecer as marcas identitárias dos diversos alunos brasileiros, tais como gênero, raça e classe social, entre outras, além da diversidade de contextos de ensino e aprendizagem do Brasil, prevendo a diversidade do público alvo ao qual ele se destina. [...] é fundamental que os livros contribuam para a desnaturalização das desigualdades e promovam o respeito às diferenças. Em síntese, o livro precisa contribuir para a formação de cidadãos críticos e reflexivos, desprovidos de preconceitos, capazes de respeitar a si mesmos e a outros, a sua própria cultura e as dos outros, partindo de experiências críticas e reflexivas com a língua estrangeira.
(BRASIL, 2010, p.12)
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Diante de tais critérios, optou-se por escolher para a análise uma das obras
que preencheu os requisitos satisfatoriamente, sendo também sugerida pelo Guia
PNLD para a disciplina de LEM. Trata-se da coleção “Links – English for teens”, São
Paulo, Editora Ática, 2009. De acordo com a descrição da obra, a coleção tem como
objetivo:
[...] estabelecer ligações, apresentar conexões entre a língua inglesa e os temas que fazem parte do mundo do estudante de Ensino Fundamental II. Através dessas ligações, o estudante vai aprender a ler, ouvir, falar e escrever em inglês para poder comunicar-se sobre assuntos relevantes e que têm tudo a ver com ele, num processo de construção do conhecimento e de formação da cidadania que é ao mesmo tempo sério, eficiente e dinâmico. (SANTOS, D.; MARQUES, A., 2009, Disponível em: < http://www.atica.com.br/SitePages/Obra.aspx?cdObra=1539&Exec=1>. Acesso em: 20 set. 2011. )
Através da análise de atividades,assim como de imagens e personagens do
LD, procurou-se observar quais são os prováveis efeitos identitários decorrentes do
trabalho com o LD e como este trabalho contribui para a formação de aprendizes
dotados de uma postura de reflexão e desnaturalização de sentidos.
As professoras
A pesquisa com as professoras decorre de que a proposta dos documentos
oficiais é uma abordagem de ensino de LE de viés discursivo. Esse parece ser o
embasamento dos autores do LD, já que não parece haver ruptura de coerência
entre os documentos oficiais e o que objetivam os dois professores: instaurar nos
aprendizes uma atitude crítica e de relativização. Para que tal objetivo seja
alcançado, considero de suma importância que o fazer pedagógico dos próprios
professores se aproxime da referida abordagem.
Portanto, foram aplicados questionários a professoras de escolas públicas de
Cuiabá e Várzea Grande que optaram pela adoção do LD “Links – English for teens”,
no intuito de investigar quais efeitos de sentido podem se refletir no seu discurso,
quais as formações discursivas em que se inscrevem e as formações ideológicas a
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que estes discursos remetem, o que indica a concepção de ensino subjacente à sua
prática e até que ponto esta se aproxima de uma abordagem de viés discursivo.
Participaram da pesquisa 5 professoras: Liana, Débora, Patrícia, Bárbara e Joana.
(nomes fictícios)
A primeira professora a responder o questionário, Débora, é formada em
Letras, com habilitação em Inglês e Português, e ministra aulas de LI há 2 anos e 6
meses.
A segunda professora a responder o questionário, Liana, é formada em
Letras, com habilitação em Inglês, Português e Espanhol, e ministra aulas de LI há
09 anos.
A terceira professora a responder o questionário, Patrícia, é formada em
Letras, com habilitação em Inglês e Português, e ministra aulas de LI há 04 anos.
Também responderam ao questionário: Bárbara, uma aluna do curso de
Letras, habilitação em Inglês e Português, que está cursando o último semestre e
está ministrando aulas de LI há 01 semana na escola como estagiária, e uma
professora substituta, Joana, formada em Letras, com habilitação em Português e
Literatura, há 04 anos.
Tanto as três professoras efetivas referidas acima quanto a professora
substituta e a estagiária se desempenham em escolas estaduais.
As professoras foram contatadas nas escolas, durante o período letivo e
responderam os questionários. O número reduzido de professoras entrevistadas se
justifica porque o que se objetiva na presente pesquisa é uma pequena mostra do
que se observa em geral e eu, enquanto professora, tenho podido constatar que
profissionais de ensino advindos de cursos de formação de professores de inscrição
sócio-interacionista e construtivista, não contemplam o lado discursivo do trabalho
com a linguagem.
Também se justifica a análise de questionários respondidos por uma
professora substituta e uma aluna em estágio de conclusão de curso, pois tais
respostas podem fornecer dados relevantes acerca do perfil de profissionais
formados por cursos de Letras, atuando como professores de LI, em escolas
públicas do Estado.
Após a coleta dos questionários, as respostas das professoras foram
dessuperficializadas e transformadas em objeto discursivo, podendo assim ser
analisadas à luz dos pressupostos da AD.
60
A análise do LD e dos questionários das professoras tem como objetivo
apresentar sugestões de forma a contribuir com o ensino de LI como LE em escolas
públicas mato-grossenses, no intuito de formar aprendizes e cidadão críticos nos
moldes de uma abordagem de ensino discursiva.
61
CAPÍTULO 5
ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS
[...] toda vez que falamos, ao tomar a palavra, produzimos uma mexida na rede de filiações dos sentidos, no entanto, falamos com palavras já ditas. - Eni Orlandi Análise de discurso: Princípios e procedimentos, 2005, p. 36.
Neste capítulo, realizo a análise e discussão de excertos do LD “Links –
English for teens” de forma a colocar em evidencia os prováveis efeitos identitários,
que podem ocorrer nos aprendizes, decorrentes do trabalho com o LD e como este
se aproxima de uma abordagem discursiva de trabalho com a linguagem. Procuro,
também, relacionar tais excertos com a proposta delineada por documentos oficiais
para o ensino/aprendizagem de LE em escolas públicas, com o objetivo de
demonstrar de que maneira o trabalho com o LD propicia o fazer pedagógico
postulado por tais documentos.
5.1 “Links – English for teens”
Com base no que foi exposto até agora, inicio a análise de excertos do LD,
focalizando suas personagens, as atividades e temas abordados nas propostas de
discussões. Através da análise, procuro observar qual a concepção de
aprendizagem de LE subjaz à elaboração do LD e que efeitos identitários se
apresentam como os mais prováveis em decorrência do trabalho com o LD de língua
inglesa “Links – English for teens” nos estudantes, bem como observar qual é a
contribuição do trabalho com o LD para a formação de um aluno crítico e ainda, de
que maneira a abordagem do LD está afinada com a abordagem postulada por
documentos oficiais para o ensino de LE, em escolas públicas no contexto atual.
62
A coleção “Links-English for teens” é produzida nacionalmente, tendo como
público - alvo alunos brasileiros. É composta por 4 volumes, que vão do 6º ao 9º ano
do Ensino Fundamental. Cada volume é dividido em 10 unidades.
O livro do aluno traz as atividades propostas para o trabalho em sala de aula,
com exercícios de sistematização de gramática e vocabulário ao final do livro.
Também no final, é possível encontrar uma lista com sugestões de leituras para os
alunos, muitas em português. Os textos apresentados são, em geral, ‘não-
autênticos’, artificialmente produzidos para o ensino de LE. Os temas discutidos nas
unidades abrangem temas transversais como pluralidade cultural, cidadania, ética,
saúde, linguagem, meio-ambiente, diversidade, consumismo, em conformidade com
as orientações dos PCNs.
A coleção conta ainda com um CD de áudio, ao final do livro do aluno, e o
manual do professor com informações acerca da metodologia que embasa a obra,
sua organização, informações culturais e sugestão de estratégias.
A apresentação do LD
O LD traz na sua introdução, o seguinte trecho de apresentação:
Bem-vindo ao mundo da Língua Inglesa! Pensando bem, há muito tempo esse exciting world não é novidade para você. Ouvir música (e cantar junto!) em inglês, vestir aquela t-shirt com sua frase preferida (in English!), ir ao cinema e ver aquele filme que acabou de ganhar vários oscars, tudo isso mostra que a Língua Inglesa está à nossa volta. Hey, não podemos nos esquecer de comprar um milkshake e um pacote de popcorn, companheiros indispensáveis para um filme mais gostoso. O inglês está vivamente presente no nosso dia a dia, nos CDs que escutamos, na internet, nos e-mails, nos vídeos, nos blogs, nos chat rooms, nos sites e nos links! A língua inglesa já faz parte do seu mundo, este seu livro de inglês vai fazer exactly esse trabalho, estabelecendo ligações, apresentando conexões entre a língua inglesa e os temas que fazem parte desse seu mundo. Através dessas ligações você vai aprender a ler, ouvir, falar e escrever em inglês para poder comunicar-se (in English, of course!) sobre assuntos relevantes e que têm tudo a ver com você, num processo de construção do conhecimento e de formação da cidadania que é ao mesmo tempo sério, eficiente e dinâmico. Então... Let’s get to work! (p.3)
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Nessa apresentação, os autores do LD, ao se dirigirem aos alunos, através do
uso de um estilo de linguagem mais informal e mais próximo ao estilo de linguagem
dos indivíduos dessa faixa etária (“sua frase preferida”, “aquele filme que acabou de
ganhar vários oscars”, um filme mais gostoso”), indicam que o objetivo da obra é o
ensino da língua inglesa, relacionando-a a temas que concernem à sua realidade.
No texto, o uso do recurso gráfico em itálico, nas palavras advindas da língua
inglesa, busca ressaltar que a língua inglesa já faz parte do cotidiano dos estudantes
– de tal forma que, muitas vezes, o próprio aluno nem se dá conta – e que, portanto,
não é algo alheio ao seu interesse.
Assegurar o aprendiz de que a LE é relevante para ele e faz parte de um
conhecimento de mundo que, em parte ele já possui, é de vital importância para que
o aprendizado aconteça de forma eficaz, pois como observado pelas OCMT “a
própria língua estrangeira mina essa segurança desde os primeiros contatos do
estudante com ela” (MATO GROSSO, 2010, p.46).
O trabalho do LD será de propiciar ao aprendiz condições para que este
possa produzir enunciações e sentidos na língua-alvo, e que o processo de
ensino/aprendizagem no qual está prestes a se engajar afetará a constituição de sua
subjetividade, enquanto cidadão brasileiro.
Tais afirmações já acenam na direção de demonstrar que a proposta do LD
está em consonância com o que é postulado por uma abordagem discursiva no
trabalho com a LE, que considera o sujeito (nesse caso o sujeito-aprendiz) como
inscrito em uma formação discursiva (FD), localizada no interior de uma formação
ideológica (FI), a partir da qual enuncia. A produção enunciativa desse sujeito ganha
coerência apenas do interior de uma FD. Estes fatores devem ser levados em conta
quando se considera a produção de linguagem e sentidos.
Nessa abordagem, o discurso não é considerado como mera troca de
informações, mas como efeitos de sentidos entre os interlocutores (PÊCHEUX,
1969), como um acontecimento social e, portanto, ideológico.
Sendo assim, uma aprendizagem bem-sucedida de uma LE, do ponto de vista
discursivo, envolve produzir sentidos, significar-se, inscrever-se nessa língua, o que
contrasta com uma abordagem de ensino pautada pela mera repetição de estruturas
gramaticais e vocabulário vazios de sentido. É preciso levar em conta que o
aprender uma LE colocará o aprendiz em contato com novas vozes,
64
questionamentos e ideologia que influenciarão sua subjetividade e obrigatoriamente
produzirão re-significações (CORACINI, 2003).
Atividades como a que será introduzida a seguir, extraída da segunda
unidade no volume para o 9º ano do Ensino Fundamental, indicam a necessidade de
considerar o que se sustenta no parágrafo acima. Nessa atividade, se oferece aos
alunos uma oportunidade de tentar se inscrever na LE, ao produzir uma frase que
eles gostariam de ver estampada em uma camiseta. Com esse exercício, não
trabalham vocabulários e expressões descontextualizados, mas produzem sentidos
ligados à sua subjetividade, temas que os concernem e que fazem parte de seu
mundo.
65
Com base nesses pressupostos da abordagem discursiva, defende-se aqui
que um ensino de LE que propicie a formação de alunos críticos e dotados de
postura de relativização e que seja apropriado para as especificidades da sociedade
no contexto atual. Não deve considerar o trabalho com a linguagem como neutro,
como inocente transmissor de conhecimentos, considerando os aprendizes como
receptáculos vazios a serem preenchidos de informações linguísticas, estruturas
gramaticais e listas de vocabulário desprovidos de conteúdo.
66
O ensino de LE, antes, deve levar em conta a dimensão social, histórica e
ideológica do trabalho com a linguagem, além de buscar levar os aprendizes a
engajarem-se discursivamente, assim significando e atribuindo sentido ao que
enunciam. Acerca da importância do engajamento discursivo dos aprendizes no
processo de ensino\aprendizagem de LE, lemos nos PCNs que:
A aprendizagem de uma língua estrangeira deve garantir ao aluno seu engajamento discursivo, ou seja, a capacidade de se envolver e envolver outros no discurso. Isso pode ser viabilizado em sala de aula por meio de atividades pedagógicas centradas na constituição do aluno como ser discursivo, ou seja, sua construção como sujeito do discurso via Língua Estrangeira. Essa construção passa pelo envolvimento do aluno com os processos sociais de criar significados por intermédio da utilização de uma língua estrangeira. (BRASIL, 1998, p.19)
Essa concepção teórica fica evidente em várias atividades propostas ao longo
das unidades nos 4 volumes da coleção. Analisemos, a partir de agora, como são
divididas as unidades, qual o enfoque dado, em geral, ao trabalho com a LE em
seus diferentes aspectos e como se evidencia a subjacente concepção teórica de
linguagem e ensino.
As unidades
Cada volume da coleção é composto de 10 unidades, nas quais as atividades
são divididas em seções que seguem a mesma ordem, ao longo dos 4 volumes.
A seção intitulada “Let’s read!” inicia cada unidade e é dedicada ao trabalho
com a leitura. Logo em seguida, a seção “Let’s listen” promove a compreensão
auditiva e a seção “Let’s speak” aborda a prática oral da LE.
As estruturas gramaticais e o vocabulário relevantes de cada lição são
praticados, não de forma estanque e descontextualizada, mas em função da
enunciação, nas seções “Grammar in action”, “ Grammar notes” e “Words in
action”.
67
Na seção “Let’s write” o aluno é levado a praticar a LE na modalidade escrita.
A seção “Let’s play” traz sugestões de jogos e atividades para a prática da LE de
maneira lúdica. E a unidade se encerra com a seção “Let’s stop and think” em que
os aprendizes são encorajados à reflexão e à discussão acerca de um tema
relacionado ao da unidade, ao cotidiano dos alunos ou de importância para a vida
em sociedade.
“Let’s read!’
Os textos apresentados ao longo da coleção são, em geral, não-autênticos,
artificiais, ou seja, produzidos para o ensino de LE, e cobrem um número limitado
de gêneros. O texto literário não recebe significativa atenção na obra. As
atividades, em especial no primeiro volume, limitam-se a que o aluno identifique o
tipo de texto, sua organização, palavras-chave e ideias principais. Também se
praticam estratégias de leitura, como a inferência do vocabulário pelo contexto e
previsão da informação. Acredito que, talvez mesmo por se tratar do primeiro
volume, nas atividades de leitura, em sua maioria, a forma como os textos são
trabalhados e como o aprendiz é levado a posicionar-se frente ao texto,
apresentam baixo nível de complexidade e profundidade, do ponto de vista
discursivo.
Aspectos de uma unidade: representações e enunciação
Observemos a reprodução abaixo de uma atividade de leitura, encontrada na
9ª unidade do volume para o 6º ano do Ensino Fundamental:
69
Na primeira figura, as atividades propostas para o texto sugerem que os
alunos identifiquem o tipo de texto e sua organização. O texto é uma mensagem de
e-maiI em que uma das personagens descreve o Brasil, suas maiores cidades,
número de habitantes, importância econômica e industrial, praias, atrações
turísticas e belezas naturais. O povo é descrito como gentil e amigável e “mesmo
quando a vida é difícil, ele tem um sorriso no rosto e um sorriso para você.”3
Considero que nesta atividade, o tema poderia ter sido explorado de maneira
mais relevante no que tange às representações, pois apresenta a mesma visão
3 As traduções apresentadas ao longo do trabalho são de responsabilidade da autora.
70
estereotipada do povo brasileiro comum a LDs de língua inglesa que, conforme
apontado por Grigoletto (2003), tendem a veicular uma imagem estereotipada e
distorcida do Brasil e do povo brasileiro, exaltando as belezas naturais do país e a
suposta cordialidade dos seus habitantes.
A partir do segundo volume da coleção, destinado ao 7° ano do Ensino
Fundamental, ocorre um aprofundamento na maneira como as atividades de leitura
são exploradas, do ponto de vista discursivo. Nos demais volumes da coleção, na
seção “Let’s read!” são abordados temas que tratam da cultura de países onde a LI
é falada como LM, problemas enfrentados por adolescentes, esportes, alimentação
saudável, classificação indicativa de jogos eletrônicos, segurança na internet,
mudanças climáticas e poluição, além do trabalho com tipologia textual, estratégias
de leitura e vocabulário. Em muitas das atividades, o aluno é levado a não apenas
decodificar o texto como se o sentido já estivesse dado, mas a produzir sentidos,
posicionar-se frente ao texto, refletir acerca do tema tratado.
Digna de nota é a atividade de leitura acerca de violência doméstica, proposta
no último volume da coleção, para o 9º ano do Ensino Fundamental, na unidade 9,
que trata de relacionamentos. Neste texto, o leitor encontra conselhos dados a uma
adolescente que diz temer que seu namorado reaja de maneira violenta, caso ela
termine o relacionamento. Ao final da atividade, os estudantes discutem em grupo
se consideram ser uma boa ideia buscar ajuda em uma situação como essa e
como encaram a atitude de terminar um relacionamento através de mensagens de
e-mail.
Menciono a discussão deste tema no LD porque vai de encontro com a
tendência, observada por alguns estudos dedicados à análise de LDs de língua
inglesa como LE, de se realizar um ‘saneamento’ nos temas discutidos nessas
obras, optando-se por abordar temas mais inofensivos e menos polêmicos
(SIQUEIRA, 2010). Tal tendência, no entanto, não contribui para a formação de um
sujeito-aprendiz crítico, nem muito menos, traz para a sala de aula temas de
relevância e que fazem parte do contexto dos alunos, mas criam o que Siqueira
(idem) chama de “um mundo plástico”, imaginário e irreal.
72
“Let’s stop and think”
A seção “Let’s stop and think” encerra cada unidade, convidando o aluno a
discutir e refletir acerca do tema trabalhado na unidade. São discutidos temas
transversais como ética, cidadania, meio ambiente, diversidade, linguagem, entre
outros.
Considero que esta é uma das seções do livro que mais contribui para a
formação de um aprendiz crítico, pois muitas das discussões, propostas ao longo
da coleção, incitam o aluno à desconstrução de conceitos e a uma postura de
relativização. As discussões propostas, devido ao nível de complexidade dos
temas, geralmente devem ser conduzidas usando a língua materna dos
aprendizes, o que está em consonância com a proposta das OCMT, que afirmam
que:
À medida que vão se apropriando da oralidade, os aprendizes são instigados a comparar ideias, desenvolver argumentos, pontos de vista e fazer escolhas adequadas ao contexto em que está inserido. Isto envolve um percurso espontâneo, de idas e vindas entre as línguas portuguesa e estrangeira para tornar significativo o que querem dizer/escrever e o que escutam ou lêem. Essa dinâmica tem por efeito a apropriação da sua inscrição enunciativa na língua estrangeira. (MATO GROSSO, 2010, p. 45)
Essa proposta se justifica, pois se considera que a primeira inscrição que o
sujeito faz na linguagem se dá em sua língua materna, e é por meio dela que ele
tem acesso ao estrangeiro, a outra maneira de enunciar e de enxergar o mundo. É
através dela que o indivíduo pode ser capaz de interpretar, de produzir sentidos.
Logo, como defende Pedroso,
Los valores y nociones [...] sólo se vuelven ideologicamente significativos a través de la lengua materna porque ella es el modelo para el contraste y sólo mediante el trabajo contrastivo, comparativo, formal y argumentativo, hacemos significativa la enunciación del otro. (PEDROSO, 2007, p. 119)
73
Interessante é o trabalho das seções com respeito às representações acerca
do povo brasileiro. Conforme definido por Grigoletto (2003, p. 354), as
representações atuam como “sistemas de significação que não só veiculam como
também atribuem sentido às coisas, num processo de construção do “real”. Como
observado pela autora, em LDs de LI como LE, as representações veiculadas do
povo brasileiro são homogeneizadoras e reforçam a impressão de que
determinadas características são inerentes ao povo, imutáveis, fazem parte de sua
“essência”. Neste sentido, exercícios como os analisados a seguir, levam o
estudante a questionar os estereótipos associados à forma como o Brasil e o povo
brasileiro são representados.
No exercício abaixo, as personagens se questionam acerca da forma como o
Brasil é representado em um parque de diversões nos Estados Unidos.
74
Na atividade a seguir, essas representações do povo brasileiro são postas em
questionamento, na seção “Let’s stop and think”, em que o aluno se depara com um
pôster com os dizeres “Brazil is wonderful” (O Brasil é maravilhoso) acompanhado
de figuras que geralmente são usadas para representar o país – carnaval, futebol,
75
animais silvestres e café. Uma das personagens do livro observa o pôster, com uma
expressão aparentemente incomodada, e diz “Brazil is much more than that!” (O
Brasil é muito mais do que isso!). Acima da figura, a pergunta: “What is Brazil for
you?” (O que é o Brasil pra você?).
Podemos ressaltar nessa atividade, e em outras semelhantes ao longo dos 4
volumes da série, que se observa a tentativa de se construir um lugar discursivo
para o aluno brasileiro, ele não é levado a apenas “encaixar-se” na cultura
estrangeira. Ele é levado a refletir sobre semelhanças e diferenças entre língua,
cultura, costumes e valores estrangeiros e os seus próprios, levando-o a
problematizar o processo social no qual a identidade e a diferença são produzidas e
instaurando uma atitude de relativização e criticidade no processo de aprendizagem
(SILVA, 2000; GRIGOLETTO, 2003).
O uso de perguntas abertas, neste caso “O que você pensa a respeito dessa
representação do Brasil?”, “O que é o Brasil para você?”, denota uma tentativa de
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quebra dos paradigmas do discurso pedagógico (DP) presente na escola e em
LDs, em que geralmente figura o discurso autoritário.
A respeito do discurso pedagógico, Orlandi (1987) afirma que é um tipo de
discurso que se propõe neutro, científico, cujo objetivo é única e exclusivamente a
transmissão de informações. O aluno, no discurso autoritário, é concebido como
aquele que não sabe e está na escola para aprender e tem os seus conhecimentos
de mundo desconsiderados, abafados. Este tipo de discurso se apresenta
arbitrariamente, pois “fixa o ouvinte na posição de ouvinte e o locutor na posição de
locutor” (idem, p. 33), dando ao aluno pouco espaço para expressar-se ou
discordar. Como define a autora,
O DP é um discurso autoritário: sua reversibilidade tende a zero (não se dá a palavra), há um agente único (aquele que tem o poder de dizer), a polissemia é contida (se coloca o sentido único), o dizer recobre o ser (o referente está obscurecido). (ORLANDI, 1987, p. 85)
No caso da atividade analisada, a voz do LD não se configura como
autoridade, não apresenta sua opinião como irrefutável, dando ao aluno pouca
chance de diálogo, não procura exercer controle sobre a resposta do aprendiz, não
evoca a noção de erro; antes, dá voz ao aluno, sugere uma polissemia, ou
multiplicidade de sentidos e respostas possíveis, não há certo e errado em sua
resposta.
Essa aproximação a uma postura discursiva no trabalho com a linguagem
denota a concepção de que, segundo Orlandi (1996, p. 30), “Há uma injunção à
interpretação. Diante de qualquer objeto simbólico, somos instados a interpretar”.
Portanto, o exercício não exige arbitrariamente que o aluno encontre a resposta
correta, nem o priva do direito de realizar uma interpretação, silenciando-o. Mas
demonstra conceber o aluno como sujeito discursivo, capaz de interpretar, capaz
de produzir sentidos que transcendem as fronteiras do LD.
O mesmo se pode observar no exercício a seguir, encontrado na 9ª unidade
do segundo volume da coleção, para alunos do 7º ano do Ensino Fundamental,
que suscita uma discussão a respeito de zoológicos.
77
O exercício simula uma situação em que os alunos, após visitarem um
zoológico, realizam uma discussão ética: é justificável manter animais em cativeiro?
O exercício apresenta dois pontos de vista divergentes acerca da utilidade dos
zoológicos; por um lado promovem a educação ambiental e conservação de
78
espécies e por outro lado, configuram-se como crueldade contra os animais. Os
aprendizes são convidados a refletir e expressar a sua opinião. O discurso afasta-se
dos moldes do discurso autoritário, com que, em geral, trabalham a escola e o LD, e
caminha em direção a um discurso mais polêmico, em que há mais espaço para
polissemia (ORLANDI, 1987). No caso do exercício proposto, não há verdadeiro ou
falso, certo ou errado, apenas perspectivas distintas de se encarar a mesma
questão.
O LD e a homogeneização
O discurso pedagógico da escola e do LD funcionam com a homogeneização
dos estudantes, dos conteúdos, dos conhecimentos (ORLANDI,1987;
GRIGOLETTO, 2003), que podem ter como efeito indesejável “o abafamento da
heterogeneidade, das diferenças, promovendo uns ao lugar de centro e relegando
outros às margens” (CORACINI, 2003, p. 152). As identidades nacionais e a
sociedade, com seus hábitos, crenças, valores e costumes, também tendem a ser
apresentadas de forma homogeneizada, idealizada, estereotipada, como se fossem
fixas, estáveis. Isso é comum em LDs de LI, onde tanto a sociedade estrangeira,
quanto a sociedade brasileira são retratadas como homogêneas, estanques, sem
diferenças, imperfeições, conflitos, nem diversidade, construindo uma espécie de
‘realidade’ que só existe nas páginas do LD.
Em uma abordagem discursiva de trabalho com a LE, essa atitude
homogeneizadora não se justifica, pois não contribui para a formação de aprendizes
críticos, que problematizem as diferenças (SILVA, 2000). Observa-se, contudo, em
várias atividades na obra analisada, uma tentativa de levar o sujeito-aprendiz a
considerar a diversidade que compõe a nação brasileira, a questionar as
representações e os estereótipos, a aceitar as diferenças. Esse processo contribui
para que o estudante aprenda a respeito do Outro, da cultura e língua estrangeiras,
ao mesmo tempo em que valoriza o próprio, o local onde vive.
Abaixo observamos uma atividade de discussão proposta para alunos do 6°
ano do Ensino Fundamental, encontrada logo ao final da primeira unidade. A
atividade apresenta um mapa do Brasil, com a divisão dos Estados e fotos de
79
diferentes pessoas, de diferentes cores e etnias em cada Estado. Acima do mapa, a
palavra “Brasileiros” e as perguntas “Essas pessoas são similares ou diferentes? O
que elas têm em comum?”
As imagens usadas na atividade indicam que o povo brasileiro não é
homogêneo, mas heterogêneo, constituído por uma mescla de pessoas de
diferentes etnias. As perguntas visam levar o aluno a essa reflexão e à compreensão
dessa diversidade. Essa visão está em harmonia com os pressupostos delineados
pelas OCMT para o trabalho com a LE, pois o documento afirma que:
[...] as línguas estrangeiras podem ser vistas como a presença viva da diferença cultural na escola, outras formas de compreender e nomear o mundo, e não um estudo de vocabulário e sintaxe
80
mecânico, repetitivo e desconectado de sua historicidade e mesmo do sentido histórico de sua presença na matriz curricular. (MATO GROSSO, 2010, p. 73)
Também é interessante notar que o LD não contribui para a exaltação da
cultura norte-americana ou anglo-saxã, tão frequente em LDs de língua inglesa. Ao
longo dos volumes da coleção observa-se a exploração de elementos culturais de
diversos países e culturas, como celebrações espanholas (encontradas na unidade
5 do volume para o 7º ano), informações a respeito de Angola (encontrados na
unidade 8 do volume para o 6° ano), lanches típicos em diversos países (nessa
atividade, encontrada na unidade 5 do volume para o 8° ano, os alunos comparam o
que é típico nos EUA, Ucrânia e França). Nas atividades mencionadas, os
aprendizes são incentivados a comparar costumes e práticas de outros países com
os seus próprios, não exaltando um ou outro, apenas apresentando-os como
diversos.
As personagens que figuram nos 4 volumes da coleção também contribuem
para incitar o aprendiz a questionar o conceito de diversidade. Geralmente, em LDs
de LI observa-se a apresentação de um mesmo tipo de pessoas, de uma mesma
etnia, com as mesmas características consideradas ‘normais’ ou ‘ideais’, em geral
“uma família loira, branca, heterossexual, com um casal de filhos (mostrando
claramente que todos visitam o dentista regularmente)” (PENNYCOOK, 2000, p.
100). Pode-se ainda perceber a tendência de evitar um certo grupo de pessoas e
temas em LDs de LI; temas como pobreza, deficiências ou anomalias físicas
diversas, terceira-idade, entre outros.
Diferente dessa postura, o LD analisado apresenta personagens de diversos
países (dentre eles Brasil, Estados Unidos, Argentina, Angola, Inglaterra), etnias,
culturas, idades e níveis sócio-econômicos. É digno de nota que uma das
personagens de destaque na coleção é Simone, uma adolescente cadeirante cujos
desenhos e histórias ilustram as seções “Grammar in Action” ao longo dos 4
volumes da coleção. Ela é retratada em diversas situações, interagindo com as
outras personagens, e na primeira unidade do volume para o 9° ano, lemos acerca
da personagem:
Eu não posso andar e algumas pessoas pensam que eu não posso fazer nada porque estou em uma cadeira de rodas, mas elas estão
81
tão enganadas! Eu posso fazer muitas coisas e tenho muitas estórias para contar. (p. 12)4
Grigoletto (2003, p. 357) também defende que, uma das estratégias de
homogeneização observada em LDs de LI, é a neutralização da língua, a
representação da LI “como objeto neutro de comunicação e transmissão de
informações”, apresentando-a como apolítica, não ideológica. Numa proposta de
ensino que se aproxime da abordagem discursiva de trabalho com a LE, no entanto,
leva-se em conta a natureza social e ideológica do discurso e que “as palavras
mudam de sentido ao passar de uma FD para outra. Assim, não são somente as
intenções que determinam o dizer. Há uma articulação entre intenção e convenções
sociais” (ORLANDI, 1987, p. 27).
Estes pressupostos se fazem evidentes na atividade demonstrada abaixo
(encontrada na unidade 8 no volume para o 8º ano), em que duas personagens do
LD, ao estudar para um exame de História, chegam à conclusão que não seria
correto afirmar que Cristóvão Colombo descobriu a América em 1492, mas sim que
ele chegou à América nessa data, pois essa região já era habitada por indígenas
antes de sua chegada. Ao final da atividade, o aprendiz se depara com a seguinte
indagação “É importante escolher nossas palavras corretamente. Correto ou
incorreto?”
4 Em inglês: “I can’t walk and some people think I can’t do anything because I’m in a wheelchair, but
they are so-ooo wrong! I can do lots of things, and I have many stories to tell!”
82
Uma discussão semelhante é encontrada na unidade 6 do volume para o 6º
ano, em que os alunos são levados a refletir sobre os sentidos que podem ser
atribuídos ao termo exótico.
De acordo com o que foi analisado até aqui, é possível concluir que as
atividades propostas pelo LD, em especial as de reflexão e discussão, demonstram
significativa aproximação ao que é postulado por uma abordagem discursiva no
trabalho com a LE, levando em conta o caráter social, histórico e ideológico da
linguagem. Além disso, estas atividades revelam levar em conta o papel do
aprendizado de uma LE, na constituição da identidade dos indivíduos, já que o
processo de subjetivação é relacional. Sendo assim, as atividades demonstram levar
o aluno a não meramente assimilar conteúdos linguísticos descontextualizados, mas
a inscrever-se na LE, fazendo uso, para isso, da LM, num processo comparativo e
contrastivo.
83
E tal postura está em consonância com o viés teórico que embasa o que é
postulado pelas OCMT (MATO GROSSO, 2010) para o trabalho com a linguagem,
sustentando que aprender uma LE implica entrar em contato com diferentes
maneiras de ver o mundo e envolve a enunciação, a argumentação, o ideológico.
Contudo, apesar de observarmos, através da análise do LD, que este
demonstra, em muitas das atividades, coerência com uma abordagem enunciativo-
discursiva no trabalho com a linguagem, pode-se notar que os autores deixam de se
referir, nos textos e atividades ao longo da coleção, à heterogeneidade e à
sociedade de países onde a LI é falada como LM.
Considero que o que pode embasar tal postura por parte dos autores seria a
concepção de inglês como língua internacional, usada para comunicação ao redor
do globo, que, portanto não pertenceria mais a esse ou àquele país, mas ao mundo
globalizado. Sob essa ótica, a LI é concebida como neutra, não veicula mais essa ou
aquela cultura, podendo qualquer cultura ou sociedade dela fazer uso, tornando-se,
assim, híbrida (LEFFA, 2006).
É preciso reconhecer que, de fato, a LI é amplamente ensinada ao redor do
mundo, sendo falada por um número de indivíduos não-nativos que em muito supera
o número de falantes nativos, e que esta vem sofrendo a influência de tais falantes,
imprimindo-lhe mudanças com o passar dos anos.
No entanto, além de discutir a diversidade étnica, bem como de valores,
costumes, crenças e representações da sociedade brasileira, o mesmo poderia ser
feito a respeito de países como Estados Unidos, Inglaterra, tidos como “centrais”,
além de países africanos, caribenhos e asiáticos, entre outros, onde a LI é a língua
nativa. Tais discussões contribuiriam para instaurar nos alunos uma atitude de
relativização e questionamento de representações também a respeito de tais
sociedades, em especial as sociedades americana e britânica, que em geral são
retratadas pelo discurso veiculado em LDs e pela mídia como harmônicas, ideais,
livres de conflitos, problemas sociais e desigualdades. Tal postura estaria mais em
harmonia com uma abordagem enunciativo-discursiva.
Passemos agora à análise dos questionários dos professores, de forma a
identificar até que ponto o fazer pedagógico está em harmonia com os pressupostos
vistos aqui.
84
5.2 Análise dos questionários
A partir daqui, dou início à análise dos questionários submetidos a
professoras da disciplina de língua inglesa como LE, em escolas públicas do Estado
de Mato Grosso.
No intuito de comprovar ou não a hipótese que norteou a presente pesquisa,
os dados obtidos serão analisados sob a ótica discursiva. O objetivo é evidenciar a
que FDs remetem os enunciados das professoras, qual concepção teórica acerca do
ensino de LE subjaz à sua prática pedagógica e em que medida seu fazer
pedagógico, afinado com uma abordagem enunciativo-discursiva de trabalho com a
linguagem, conforme sugerido pelas OCMT (MATO GROSSO, 2010), contribui para
a formação de sujeitos/aprendizes críticos.
Participaram da pesquisa 5 professoras de LI como LE, em escolas públicas
de Cuiabá e Várzea Grande que estão utilizando o LD “Links – English for teens”.
A importância do ensino de LI
Ao falar a respeito da importância do ensino de LI e dos fatores que levaram o
idioma a atingir o grau de relevância que possui na sociedade atual, as professoras
se expressaram da seguinte maneira:
Exemplo 1:
Débora – Para o bom desenvolvimento profissional, independente da área que você exerça. Devido ser uma língua universal e imprescindível no mercado de negócios. Vale lembrar que o inglês está presente a todo momento, pois encontramos inúmeros vocabulários “LI” que já fazem parte do nosso cotidiano.
Exemplo 2:
85
Liana – É de aprender uma 2ª língua, e de conhecer uma nova cultura. Hoje se tornou uma exigência no mercado de trabalho, e também pelas relações internacionais entre as empresas.
Exemplo 3:
Joana – No mundo globalizado ter uma segunda língua é muito importante porque até mesmo os comandos do computador estão na sua maioria em inglês.
Exemplo 4:
Patrícia – O ensino de língua inglesa é importante porque é mais uma ferramenta para a formação geral do aluno, não visando apenas a gramática, mas preparando-o para o uso que a língua inglesa, de certa forma nos impõe a conhecê-la. Na atualidade a língua inglesa tornou-se ainda mais importante devido à globalização e o valor que o sistema capitalista e a política neo-liberal exercem sobre o mundo.
Exemplo 5:
Bárbara – A língua inglesa além de ser mundialmente utilizada, ajuda a trabalhar na formação plena do aluno como cidadão do mundo. Hoje é importante para a formação profissional também.
Observa-se, na fala dessas professoras, a presença de elementos, como
“desenvolvimento profissional”, “negócios”, “mercado de trabalho”, “relações
internacionais entre as empresas”, “mundo globalizado”, “comandos do computador”,
“globalização”, “formação profissional”, indicando que sua enunciação reproduz um
discurso que circula na sociedade que considera o inglês como fundamental para
inclusão profissional, em um mundo onde a LI está “presente a todo momento” e já
faz “parte do nosso cotidiano”. Este discurso é amplamente difundido pela mídia e
pelo marketing de escolas de idiomas. A LI é vista de forma idealizada, como uma
língua neutra, língua de cooperação, propiciando comunicação global, contribuindo
na “formação plena” do aprendiz e fazendo com que este se torne “cidadão do
mundo”. Portanto, o domínio do idioma é visto como fundamental para melhores
oportunidades de trabalho e consequente ascensão social.
86
Levando em conta que, conforme observado por Gregolin (2006, p. 30), “o
discurso é sempre produzido por sujeitos socio-historicamente determinados e, por
isso, condicionados a regras (linguageiras e históricas) que regulam as práticas
discursivas”, consideramos que a fala dos professores se ajusta a essa explicação.
Tal discurso utiliza-se do fenômeno da globalização para justificar a importância do
domínio da LI na atualidade, dada sua exigência no mercado de trabalho, no uso de
computadores e da internet. Tais enunciados também trazem em seu bojo outros
sentidos, evidenciando com o “dito”, o “não-dito” (ORLANDI, 2005) de que os que
não possuírem o tão almejado “domínio” da LI permanecerão à margem, excluídos
do mercado de trabalho e do mundo globalizado.
No entanto, a AD também leva em conta que, conforme Fernandes,
[...] ao considerarmos um sujeito discursivo, acerca de um mesmo tema, encontramos em sua voz diferentes vozes, oriundas de diferentes discursos. A presença dessas diferentes vozes integrantes da voz de um sujeito, na Análise do Discurso, denomina-se polifonia. (FERNANDES, 2007, p. 36)
A polifonia se faz evidente na fala dessas professoras quando observamos
que, ao mesmo tempo em que consideram a necessidade de dominar a LI para uma
desejada inclusão profissional, a escolha de termos para adjetivar a LI como “língua
universal”, “imprescindível”, ou “uma exigência”, “preparando-o (o aluno) para o uso
que a língua inglesa, de certa forma nos impõe a conhecê-la”, manifestam certo
sentimento de conflito. Seu discurso demonstra considerarem que esta necessidade
lhes é imposta, forçada. Não há como resistir, cabendo aos sujeitos apenas ceder à
pressão que “o sistema capitalista e a política neo-liberal exercem sobre o mundo”,
adaptar-se ao sistema e resignar-se a aprender a LI.
Entende-se, pelas respostas dadas, que os enunciados das professoras
demonstram que estas reproduzem um discurso de uma formação discursiva que
encara o domínio da LI de grande importância em vista da globalização. Como é
próprio do discurso, o discurso destas professoras está inscrito em uma FD, sendo
que no viés teórico da análise do discurso francesa, consideram-se FDs como
“condensações de regularidades enunciativas no processo constitutivamente
heterogêneo e contraditório da produção de sentidos no e pelo discurso em
diferentes domínios do saber” (SERRANI, 1997, p. 69).
87
Tais afirmações acerca da importância da LI na atualidade são válidas, pois
reconhecemos, conforme Pedroso (2010b), que “a dinâmica social é outra e as
possibilidades e necessidades de interação direta ou mediada pelas novas
tecnologias — a informática e a telefonia móvel — são exponencialmente maiores.”
No entanto, é interessante notar que, com exceção da professora que
menciona “o valor que o sistema capitalista e a política neo-liberal exercem sobre o
mundo”, o discurso das outras professoras indica a não problematização da
hegemonia da LI no cenário mundial, a não preocupação com questões relativas a
essa hegemonia - o imperialismo linguístico (PHILIPSON, 1992) nem os interesses
colonialistas que promoveram a expansão da LI ao redor do mundo. As professoras
tampouco demonstram considerar as questões ideológicas, culturais, políticas e
éticas, relacionadas ao ensino de LI como LE. Algumas delas, apesar de sentirem a
imposição da LI, não questionam nem problematizam tal imposição.
Tal observação é relevante, pois segundo as OCMT,
Ensinar uma língua estrangeira na contemporaneidade, sob a perspectiva sociocultural e crítica, significa engendrar um processo de ruptura com a crença na inquestionável naturalidade das coisas e da linguagem, que é instaurar a noção do relacional (da postura de relativização que questiona pretensas verdades absolutas) nos estudantes logo após o seu processo de amadurecimento na linguagem. (MATO GROSSO, 2010, p. 105)
Para que este objetivo, proposto para o ensino de LE, em escolas públicas,
seja atingido, é preciso que o professor evidencie em seu próprio discurso uma
postura de relativização. É preciso que ele demonstre questionar os motivos que
fazem com que a língua inglesa tenha atingido o status que ocupa na sociedade
atual; que ele desconstrua, e não apenas reproduza o discurso de inglês como
língua franca. E que leve em conta que o ensino de LI envolve também a
disseminação de ideologias, lembrando que a ideologia, segundo Rodrigues (2005,
p. 75) “numa noção mais ampla pode ser definida como uma visão de mundo,
valores de uma determinada comunidade social.”
Tendo em vista a observação de que o discurso do professor não acena em
direção a uma postura de desconstrução e relativização, proponho que a discussão
destes aspectos esteja presente no processo de formação de professores, para que
88
possam contribuir na formação de aprendizes críticos. Não se trata, afinal, de rejeitar
a língua inglesa, mas de evitar que a substância enunciativa que, através dela é
veiculada, continue a produzir efeitos que abalem a autoestima e diminuam a
valorização da cultura materna.
Os efeitos identitários do trabalho com a LE
Quando indagadas acerca da importância de se trabalhar com questões
relacionadas a valores, costumes e temas do cotidiano dos aprendizes, as
professoras expressaram as opiniões descritas a seguir.
Exemplo 6:
Débora – Sim, para que aconteça a construção de conhecimento de cada aprendizado é importante trabalhar essas questões acima mencionadas.
Exemplo 7:
Liana – Sim, porque nos dias de hoje vivemos um índice muito alto de indisciplina em sala. E discutindo esses assuntos, a indisciplina tende a diminuir.
Exemplo 8:
Joana – Sim. Porque os pais estão cada vez mais distantes dos filhos e os mais próximos depois dos pais somos nós professores que convivemos com os alunos até mais que muitos pais.
O trabalho com a linguagem, nos moldes de uma abordagem enunciativa,
reconhece que, para a aprendizagem bem sucedida de uma LE, é fundamental
propiciar ao aprendiz a possibilidade de significar-se, inscrever-se na língua-alvo
através da discussão de temas de relevância, voltados à sua realidade e de seu
89
interesse. Além disso, leva-se em conta o fato de que as identidades não são fixas,
estáveis, mas têm caráter processual, são constituídas na interação, no e pelo
discurso. Sendo assim, todo trabalho com a linguagem, seja ele em língua materna
ou estrangeira, provoca alterações no processo de subjetivação dos aprendizes.
Retomando Christine Revuz,
[...] toda tentativa para aprender uma outra língua vem perturbar, questionar, modificar aquilo que está inscrito em nós com as palavras dessa primeira língua. Muito antes de ser objeto de conhecimento, a língua é o material fundador de nosso psiquismo e de nossa vida relacional. [...] É justamente por que a língua não é, em princípio, e nunca só um instrumento, que o encontro com uma outra língua é tão problemático, e que ela suscita reações tão vivas, diversificadas e enigmáticas”. (REVUZ,1998, p. 217)
Acerca dessas afirmações, lemos nas OCMT:
A linguagem constitui o sujeito, imprimindo nele marcas identitárias que, em se tratando da língua materna, podem sofrer mudanças, já que a identidade está em constante processo de reconfiguração a partir de aspectos básicos em que o sujeito se ancora para lidar com o exterior a ele, com o heterogêneo. (MATO GROSSO, 2010, p. 78)
Nas respostas das professoras, mencionadas anteriormente, podemos
observar que, dada a inscrição teórica que prevaleceu na sua formação na
graduação, desconhecem as implicações identitárias e ideológicas relacionadas ao
trabalho enunciativo-discursivo com a linguagem. Ao tentarem se referir à
importância do trabalho com questões relacionadas a valores, costumes e temas do
cotidiano dos aprendizes, o fazem de maneira vaga, como observamos no caso da
professora que afirma que “para que aconteça a construção de conhecimento de
cada aprendizado é importante trabalhar essas questões acima mencionadas”, ou
consideram que o trabalho com tais aspectos pode contribuir para diminuir os
índices de “indisciplina” o que se justifica, segundo a opinião expressa na resposta
da professora Joana, pelo fato de que os professores passam mais tempo com os
aprendizes do que seus pais.
No entanto, do que se trata, no trabalho com uma LE, ao serem discutidos
temas relacionados a valores, crenças, referências e justificação do comportamento,
90
tanto dos aprendizes quanto de outros países e culturas, é de contribuir para que se
instaure uma postura de relativização no aprendiz, para que o contato com outras
culturas e outros modos de explicar o mundo não se dê em detrimento de sua
própria cultura, valores e costumes locais, nem tampouco de sua língua materna.
Isso porque, de acordo com Pedroso (2010a), “a relativização que a língua
estrangeira instaura tem reflexos identitários significativos. Seus efeitos reforçam o
conhecimento do próprio que, neste caso, é a LM [Língua Materna]”.
Conforme observado por autores como Philipson (1992), ao entrar em contato
com a LI, o que muitas vezes pode ocorrer é que os aprendizes se ‘deslumbrem’
com a cultura, língua e identidade do Outro, do estrangeiro. Isso, por sua vez, pode
contribuir para a idealização da cultura estrangeira, a supervalorização do falante
nativo e o desejo de se tornar o Outro, desvalorizando a cultura, a língua e a
identidade local. Nesse sentido, um fazer pedagógico crítico vai contribuir para que
os alunos se inscrevam em uma LE, sem que para isso tenham que desvalorizar a
própria língua, o local onde vivem. De acordo com as OCMT,
O contato com outros modos de dizer, com as diferenças, com recortes de outra realidade, instaura a auto-observação, reforça a consciência da própria identidade em todos os seus aspectos, o mais visível dos quais é a própria língua materna e a própria cultura, a realidade em que se vive. Esse contato torna a relativização uma ferramenta de uso constante e imprescindível em que a língua estrangeira é mais um recurso para acessar e produzir conhecimento e novas tecnologias. (MATO GROSSO, 2010, p. 106)
Ainda mais, tal tipo de abordagem enunciativo-discursiva, no ensino de LE,
contribui para que o aluno se insira de forma bem sucedida na linguagem,
compreendendo que ela é ideológica e política – o que lhe dá sentido é a ideologia e
o que produz os efeitos de sentido, evidenciando-os, é a política. Os sentidos não
são dados, mas são constituídos sócio-historicamente, em função da formação
discursiva a que pertencem os falantes e das condições de produção. Este fazer
pedagógico contribui para um menor índice de equívocos e problemas na
enunciação, pois, conforme lemos nas OCMT para o ensino de língua espanhola,
que também podem ser aplicadas para o ensino de língua inglesa,
91
Estamos falando de uma abordagem da linguagem em que prestamos atenção àquilo que justifica que os enunciados sejam ditos de uma maneira e não de outra numa língua estrangeira. Essa abordagem exige conhecimentos mínimos de conceitos, valores, noções e comportamentos de que se vale o enunciador nativo no processo de elaboração do que quer dizer. Essa parte é a substância à qual se fez referência na introdução às línguas estrangeiras neste documento e sem as quais um enunciador estrangeiro estaria remetendo o que diz em língua espanhola às referências próprias – neste caso, brasileiras, propiciando assim equívocos vários. (MATO GROSSO, 2010, p. 121)
Ainda acerca da importância de se trabalhar temas relativos a valores,
costumes e questões relacionadas ao cotidiano dos aprendizes, duas professoras
afirmaram:
Exemplo 9:
Patrícia – Sim, mais do que transmissores de conteúdos, temos o compromisso de formar cidadãos compromissados com transformação do mundo.
Exemplo 10:
Bárbara – Sim, Porque o aluno aprende a lidar com as diversas situações de comunicação e entender a importância de cada cultura p/ que possa respeitar o próximo.
Os enunciados expressos nos exemplos acima revelam que as professoras
consideram que o trabalho com as questões indicadas na pergunta é relevante.
Segundo as respostas, conforme indicado pelo uso da palavra “compromisso”, é
obrigação do professor de LI não apenas transmitir “conteúdos” linguísticos, mas
contribuir para a formação de aprendizes-cidadãos que tenham a capacidade de
atuar para a “transformação do mundo” e instaurar no aprendiz uma atitude de
respeito para com o outro.
Uma das professoras, Bárbara, conforme observamos no exemplo 10,
evidencia um desejo de controle, de completude de sentidos, pois considera que a
discussão de tais temas contribui para que o aluno aprenda “a lidar com as diversas
92
situações de comunicação”, quando sabemos que de fato, mesmo em língua
materna, este tipo de controle total dos sentidos possíveis no discurso nunca é
possível. Partimos do pressuposto de que a AD trabalha, considerando o
funcionamento do inconsciente.
Ambos os enunciados denotam que o discurso das professoras rejeita uma
abordagem conteudista no trabalho com a linguagem e defende a transformação, a
aceitação e o respeito à diversidade.
O contato com o Outro, com a língua e cultura estrangeiras contribui para
uma atitude de respeito à diversidade, mas consideramos que um fazer pedagógico
crítico e em conformidade com uma abordagem enunciativo-discursiva vai além
porque supera a mera aceitação sem problematização, que não resolve na
profundidade os conflitos que levam a discriminação e a exclusão, mas preserva o
seu funcionamento, por trás da aparente solução.
Para que o fazer pedagógico esteja de fato em harmonia com a abordagem
discursiva da linguagem, é preciso também reconhecer que a relativização
problematizadora é a via expressa para a aceleração dos processos identitários que
dão conta dos atuais objetivos educacionais.
A abordagem de ensino
A seguir, analisaremos as respostas das professoras quando questionadas
acerca do LD “Links-English for teens”. Foi pedido a elas que avaliassem o trabalho
do LD com respeito ao trabalho com a gramática, vocabulário, leitura e oralidade e,
no caso de considerarem que um desses aspectos seja trabalhado de maneira
insuficiente pelo LD, como buscam suprir tal suposta necessidade.
Para a análise dos enunciados, retomamos Coracini (2001, p. 187) que afirma
que o sujeito (neste caso o sujeito-professor) é constituído por “vozes que vão
tecendo a sua subjetividade a cada momento, tomado por identificações que, longe
de fixarem o sujeito, estabilizando suas características, o transformam num sujeito
em processo, em constante transformação.”
93
Exemplo 11:
Liana – Muito bom, porém acho o vocabulário muito além do que os alunos conhecem e também há alguns fatores distantes da realidade do aluno, onde tenho que às vezes voltar a conteúdos anteriores para suprir essa necessidade e também a outros materiais como exemplo: outros livros, vídeos e dicionário.
É possível identificar na fala desta professora que, mesmo apesar da
existência de documentos oficiais (OCMT, 2010) e da adoção do LD “Links-English
for teens” que preconizam um trabalho enunciativo-discursivo com a linguagem, seu
discurso ainda remete a uma abordagem de trabalho com a linguagem que concebe
o ensino como transmissão de “conteúdos” linguísticos, expressões gramaticais
desprovidas de sentido e vocabulário apresentado de forma descontextualizada,
mais centrada na forma do que no conteúdo da linguagem. Constato também que tal
concepção é subjacente ao fazer pedagógico de muitos professores com os quais
tenho contato no exercício da profissão. A resposta a seguir, confirma essa
afirmação.
Exemplo 12:
Joana – Sim, Vejo que muitos professores se preocupam com quantidade em vez de qualidade, estão mais preocupados em terminar o livro do que ver se o aluno aprendeu.
Essa professora, ao descrever a prática de “muitos professores” deixa
implícita uma crítica a um grupo em que ela não se inclui. Seus componentes estão
mais preocupados com a forma, com a “quantidade” de conteúdos transmitidos, de
páginas estudadas, como se ensinar uma LE fosse apenas “terminar o livro” didático
e aprender uma LE se limitasse a apenas conhecer o máximo número de tempos
verbais, estruturas gramaticais e conteúdos lexicais possíveis.
Ainda em conformidade com essa concepção conteudista de ensino de LE, na
opinião expressa por Liana, no exemplo 11, a escolha que a professora faz do termo
“conteúdos”, deixando implícita a referência à gramática e ao vocabulário, indica que
a professora considera o trabalho proposto pelo LD como inviável, pois está muito
94
aquém do que conhece/sabe o aprendiz, obrigando-a a recorrer a outros materiais,
incluindo outros LDs.
Podemos depreender dessa resposta que a professora, apesar de agora
contar com um LD para a disciplina de LE, cujo objetivo é fornecer uma sequencia
ao ensino de LE, nos moldes de um fazer enunciativo no trabalho com a linguagem,
continua trazendo para a sala de aula outros materiais, retirados de outros LDs. Tal
constatação é comprovada pelas respostas seguintes, que afirmam:
Exemplo 13:
Débora – Sim, a leitura e oralidade são insuficientes. São abordados pequenos textos / diálogos. Trabalho com outros livros didáticos não apenas o livro didático adotado pela escola.
Exemplo 14:
Bárbara – Em virtude do conteúdo que estamos trabalhando, o livro não está sendo utilizado. Porém, ao fazer análise do mesmo foi possível verificar que os termos e atividades não trabalham o cotidiano dos alunos.
Essas afirmações não nos causam surpresa, uma vez que a tradição escolar
sempre se pautou pela formalização, e uma visão “conteudista” da linguagem, de
que o ensino de LE deveria ser realizado por meio da memorização de normas
gramaticais e listas de vocabulário descontextualizadas e, por isso, desprovidas de
sentido. Tal concepção de ensino até hoje perdura em cursos de formação de
professores, na confecção de LDs e, consequentemente, no fazer pedagógico.
No entanto, este fato contradiz a proposta das OCMT que frisam que a
linguagem é muito mais “substância” e menos “forma”, ou seja, um ensino que dê
prioridade ao ensino da forma, com estruturas e listas de vocabulários
descontextualizados, e não dê ao aprendiz oportunidade de engajar-se
discursivamente na LE, estará produzindo “inadequações pedagógicas” (MATO
GROSSO, 2010, p. 103).
Ainda outra consideração a fazer acerca dos LD de LI é que, além de
apresentarem uma imagem estereotipada e idealizada da cultura de países onde a
95
LI é falada como língua materna, tais livros têm caráter homogeneizador, não
apresentam um lugar para o aluno brasileiro, produzindo efeitos identitários
indesejáveis nos estudantes e dando poucas oportunidades para participação e
reflexão por parte dos aprendizes (GRIGOLETTO, 2003; CORACINI, 1999).
Com isso, não se pretende endossar a utilização do LD como única e
exclusiva fonte de ensino, permitindo que ele direcione as aulas. Mas é preciso que
a prática pedagógica dê voz ao aprendiz, que o estimule a se expressar, enfatizando
a adequação da linguagem e não sua rigorosa correção gramatical, através da
discussão de temas de caráter social, histórico, político e ideológico, respeitando a
cultura e traços identitários do contexto em que está inserido o sujeito-aprendiz.
Conforme afirma Silva,
Nessa mesma perspectiva, acredito que enfocar somente a escrita, a gramática e a tradução são situações que não propiciam a interação entre aluno e aluno e aluno e professor. Esta maneira tradicional de ensinar apresenta-se muito distante do que exige a nova dinâmica social. (SILVA, 2010, p. 82)
Portanto, considero ser fundamental que o professor compreenda que, para
as especificidades da sociedade atual, o ensino de LE deve propiciar ao estudante
que se engaje discursivamente na LE, não através do ensino da norma, e sim
através da produção de sentidos que estão intimamente ligados ao contexto em que
as enunciações são produzidas. Segundo Orlandi:
O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não em outra para ter sentido e não outro. Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que elas se inscrevem. (ORLANDI, 2005, p. 43)
Esta visão de ensino é possível através de um fazer pedagógico norteado por
uma abordagem que aqui está sendo proposta. De acordo com as OCMT:
A abordagem do lado enunciativo da linguagem com a complexidade de funcionamento que apresenta é próprio do tempo em que vivemos, daí a necessidade de assumirmos nosso trabalho visando
96
suprir essa nova cobrança da sociedade ao trabalho do professor de língua estrangeira. (MATO GROSSO, 2010, p121)
Constata-se com esta análise, que o discurso das professoras é pautado por
uma FD que encara a LI como fundamental para inserção social e profissional, mas
que ao mesmo tempo não problematiza, nem questiona tal hegemonia. As
enunciações das professoras indicam que seu fazer pedagógico não sinaliza em
direção a contemplar o caráter ideológico do trabalho com a linguagem, estando,
portanto, distante da abordagem proposta pelas OCMT.
Tal postura por parte dos professores se deve, em geral a serem estes frutos
de uma formação de inscrição socio-interacionista e construtivista, que não privilegia
o lado discursivo do trabalho com a linguagem, e que não estimula que os indivíduos
problematizem ou desconstruam discursos. Estas correntes teóricas, apesar de seu
reconhecido valor, já não atendem às expectativas e às necessidades da sociedade
na pós-modernidade, sendo, portanto, fundamental cursos de formação de
professores que fomentem a construção de uma postura crítica.
Tanto ou mais do que somente treinar os professores a utilizar ferramentas
tecnológicas, materiais didáticos e métodos de ensino, proponho que os cursos de
formação de professores fomentem discussões mais abrangentes, que os levem a
problematizar estereótipos, a questionar representações, a desconstruir discursos, a
compreender as questões ideológicas, sociais e políticas envolvidas no trabalho com
a LE, bem como seus prováveis efeitos no processo de subjetivação dos aprendizes.
Em outras palavras, os cursos de formação de professores devem contemplar
as teorias relacionadas ao fazer enunciativo-discursivo no trabalho com a linguagem.
Somente dessa forma os professores poderão incorporar tais teorias à sua prática,
teorias essas que são mais eficazes e relevantes na contemporaneidade porque
inscritas nela e porque possuem o apelo a uma face da experiência existencial do
público que permaneceria oculta e inoperante.
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se depender de mim, nunca ficarei plenamente maduro nem nas ideias nem no estilo, mas sempre verde, incompleto, experimental. - Gilberto Freyre Tempo morto e outros tempos, anotação de 1926.
Concluo a presente pesquisa com a sensação de haver tão somente
arranhado a superfície de um iceberg. Já muito foi e com certeza ainda será
produzido acerca da importância de um ensino crítico de LE. Espero que as
sugestões apresentadas ao final deste trabalho contribuam de forma positiva para
uma prática docente em conformidade com o que se espera da disciplina de LI como
LE na sociedade atual.
Em um primeiro momento, no presente trabalho, foram explicitados conceitos
da Análise de Discurso Francesa que seriam operacionalizados na análise, dentre
eles, os conceitos de discurso, ideologia, sujeito e formações discursivas.
Foi apresentada uma breve retomada do percurso histórico do ensino de LE
em escolas públicas no Brasil e as transformações pelas quais passou a disciplina,
além de terem sido apresentadas, também, algumas considerações acerca do que
postulam os documentos oficiais OCMT (Orientações Curriculares para o Estado de
Mato Grosso) e os PCNs para a disciplina de LE. Tudo isso no intuito de demonstrar
como a opção de LE a ser ensinada nas escolas públicas do país sempre esteve
intimamente ligada a fatores econômicos, políticos e históricos e que seu ensino tem
fortes implicações na constituição identitária dos aprendizes.
Em seguida, foram discutidos alguns aspectos relacionados ao uso do LD
como ferramenta de ensino de LE. Conforme defendido por trabalhos na área de
linguística aplicada, observamos que LDs de LE por vezes apresentam um discurso
colonial, naturalizador, exaltando a cultura e a língua-alvo. Como se configura na
sala de aula como um instrumento de poder, sendo utilizado pelo professor como
autoridade, manual de correção, o discurso de LD acaba por exercer,
consequentemente, forte influência no processo de subjetivação de ambos,
professores e aprendizes.
98
Com o objetivo de responder às perguntas delineadas para a presente
pesquisa, optou-se por proceder à análise de um corpus formado por excertos do LD
“Links – English for teens”, bem como de questionários respondidos por 5
professoras de inglês como LE atuando em salas de aula de Ensino Fundamental
em escolas públicas de Cuiabá e Várzea Grande. As atividades do LD selecionadas
para análise objetivavam demonstrar a abordagem de trabalho com a linguagem que
embasa a proposta do LD. No que tange ao questionário respondido pelas
professoras, as perguntas elaboradas pretendiam evidenciar a concepção de ensino
que subjaz à prática docente das professoras participantes da pesquisa.
Referente às duas primeiras perguntas de pesquisa “Como o trabalho com o
LD se aproxima de uma abordagem discursiva no trabalho com a linguagem?” e
“Qual concepção de ensino norteia a prática de professores de LE em escolas
públicas de Mato Grosso?”, pude observar primeiramente através da análise das
atividades selecionadas do LD “Links – English for teens” que a abordagem do LD
está em consonância com a abordagem, de viés discursivo, postulada pelos
documentos oficiais PCNs e OCMT.
As atividades propostas pelos autores do LD em geral fornecem aos
aprendizes oportunidades de engajar-se discursivamente. Acerca de engajamento
discursivo, documentos oficiais como os PCNs defendem que o ensino de LE deva
fomentar no aprendiz “a capacidade de se envolver e envolver outros no discurso”
(BRASIL, 1998, p. 19). Tal engajamento pode ser produzido através das discussões
sugeridas pelos autores do LD, que levam os aprendizes a posicionar-se, a refletir e
produzir sentidos na LE, através da discussão de temas pertinentes a sua realidade
e de seu interesse. Esta consideração é de vital importância, pois do ponto de vista
discursivo, não se pode conceber o trabalho com a linguagem, seja ela materna ou
estrangeira, como simples troca de informações linguísticas, transmissão de
estruturas gramaticais e listas de vocabulário descontextualizados, mas como efeitos
de sentidos (PÊCHEUX, 1969). Sendo assim, o LD analisado não se configura como
um discurso de autoridade, fixando um lugar para o aprendiz e controlando sua
resposta, mas faz uso de perguntas abertas, dá voz ao aluno e o leva a se
expressar.
O trabalho com o LD ainda demonstra estar em harmonia com o postulado
por documentos oficiais no que tange à formação de aprendizes\cidadãos críticos.
As discussões propostas demonstram levar os aprendizes a relativizar, desconstruir
99
conceitos, questionar estereótipos, problematizar diferenças. Os temas abordados
nas discussões, bem como as personagens, ainda tratam de violência, inclusão
social, representações acerca do povo brasileiro, demonstrando assim relevante
diferença do observado em LDs de LE, que em geral evitam a discussão de temas
polêmicos, e criam uma realidade imaginária, um “mundo plástico” que só existe nas
páginas do LD (SIQUEIRA, 2010).
Em seguida, com as respostas das professoras de LI como LE aos
questionários, através da análise de suas enunciações, pude observar o não-dito, as
FDs às quais se remetiam seu discurso, bem como as posições ideológicas
evidenciadas pelas suas falas. Isso foi possível, pois, conforme afirma Bakhtin:
O objeto do discurso do falante, seja esse objeto qual for, não se torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, e um dado falante não é o primeiro a falar sobre ele. (...) O falante não é um Adão bíblico, só relacionando com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela primeira vez. (BAKHTIN, 2003, p. 300)
Cabe ainda ressaltar que o objetivo, ao analisar as respostas das professoras
em questão, não foi o de expor seu fazer pedagógico de forma negativa, mas foi o
de tão somente evidenciar o que está implícito em suas falas e que,
consequentemente, é observável na fala de professores de LI como LE em geral,
com o fim de contribuir positivamente para sua prática.
Foi possível perceber, nesta análise, que as professoras de LI como LE,
atuantes em escolas públicas do Estado de Mato Grosso, no Ensino Fundamental,
ao expressar-se acerca da importância do ensino do idioma e dos fatores que
contribuíram para que atingisse tal grau de relevância na sociedade atual, não
evidenciam em seu discurso a problematização da hegemonia da língua inglesa na
atualidade. As professoras apenas reproduzem um discurso amplamente difundido
na contemporaneidade que considera a LI como meio de ascensão social, inclusão
no mercado de trabalho, requisito para o sucesso profissional; a língua da
globalização. Considero esta forma idealizada de conceber a LI por parte de
professores de LE como problemática, pois não demonstra contribuir para fomentar
nos aprendizes uma atitude de desconstrução, mas de reprodução de discursos e
estereótipos acerca da LE propagados na sociedade.
100
Além disso, ao comentar acerca da importância de se trabalhar questões
relacionadas aos valores, costumes e temas do cotidiano dos alunos em aulas de
LE, o discurso das professoras não demonstra contemplar que o ensino de uma LE
envolve questões ideológicas, políticas, históricas, bem como a transmissão de
valores e costumes, afetando assim o processo de subjetivação dos aprendizes, a
forma como estes encaram o Outro, o estrangeiro, assim como a forma com a qual
encaram a si mesmos, o local onde vivem, sua própria cultura, valores e costumes.
Este entendimento é evidente em uma abordagem de trabalho com a
linguagem de viés discursivo, conforme postulado pelos documentos oficiais para a
disciplina de LE, pois defendem que o contato com o Outro, com o diferente, com
outras realidades faz com que o aprendiz volte seu olhar para si próprio, sua cultura,
sua língua, seus valores, sua realidade (MATO GROSSO, 2010). Nesta perspectiva,
incluir a discussão de tais temas no trabalho com a LE contribuiria para instaurar nos
estudantes uma postura de relativização, respeito e aceitação do Outro e de
valorização de sua própria identidade. Isso é o que se espera que o ensino na
atualidade propicie. Conforme lemos no documento OCMT:
O reconhecimento do outro por meio de um modo de dizer diferente, via relativização, contribui para o desenvolvimento cognitivo dos estudantes, para construir e ampliar o conhecimento da língua e da cultura própria, valorizando-as e reforçando a aprendizagem ao abordar temas incluídos em outras disciplinas das diversas Áreas. (MATO GROSSO, 2010, p.10)
Percebo que o fazer didático destas professoras ainda é pautado num molde
de trabalho com a linguagem “conteudista”, baseado no ensino de estruturas
gramaticais, tempos verbais, listas de vocabulário descontextualizados e
desprovidos de sentido. Tal observação justifica-se, pois este foi o modelo em que
se pautou o trabalho com a LE até o presente momento. Seus atuais professores
são fruto de uma formação sócio-interacionista e construtivista, que não contempla o
lado enunciativo-discursivo no trabalho com a linguagem e, portanto, reproduzem
este modelo em sua prática docente.
Conforme notado nas respostas das professoras, muitos ainda centram o
ensino de LE na forma e não na substância da língua, dando indevida ênfase à
correção gramatical e não à adequação da linguagem, deixando de lado o trabalho
101
com o LD adotado e trazendo para a sala de aula atividades retiradas de outros LDs
que consideram mais adequados. Considero tal fato preocupante, pois ao fazer isso,
o professor de LE promove um trabalho que pode levar a equívocos linguísticos,
além de deixar de fomentar relevantes discussões em sala de aula. Dessa forma, se
torna mais difícil propiciar ao aprendiz oportunidade de significar-se, de produzir
sentidos na língua-alvo, distanciando seu fazer pedagógico do modelo enunciativo-
discursivo proposto pelo LD e postulado pelos documentos oficiais, que afirmam
que:
[...] as línguas estrangeiras podem ser vistas como a presença viva da diferença cultural na escola, outras formas de compreender e nomear o mundo, e não um estudo de vocabulário e sintaxe mecânico, repetitivo e desconectado de sua historicidade e mesmo do sentido histórico de sua presença na matriz curricular. (MATO GROSSO, 2010, p. 73)
Um dos objetivos estabelecidos para a presente pesquisa foi o de intervir na
dinâmica de ensino\aprendizagem de maneira significativa, apresentando propostas
de trabalho didático, visando incentivar posturas críticas em professores e alunos.
Isso nos leva, portanto, à pergunta “O que fazer para reverter efeitos pouco
desejados e propiciar resultados afinados com as expectativas atuais?”
Como resultado da presente pesquisa, advogo que é preciso que os
professores não apenas reproduzam discursos que circulam no senso comum, que
não pensem seu fazer pedagógico como apenas ensinar uma língua neutra,
apolítica, mas que concebam o ensino de uma LI como um trabalho com implicações
ideológicas, que veicula culturas, valores, crenças e afeta a constituição identitária
dos envolvidos no processo. Que questionem e contribuam para a formação de
aprendizes críticos, questionadores. Desta forma, se faz necessário que os
professores aprendam a “compartilhar seu poder e dar voz ao aluno de modo que
este possa se constituir como sujeito do discurso e, portanto, da aprendizagem”
(BRASIL, 1998 p. 15).
Saliento a importância de que o professor tenha conhecimento da relevância
da abordagem discursiva no trabalho com a linguagem e esteja apto a reverter este
conhecimento em prática. Como discutido anteriormente, a formação de inscrição
construtivista que esteve em voga até o presente momento, apesar de reconhecido
102
valor, não mais atende às necessidades impostas à disciplina de LE na
contemporaneidade.
Por este motivo, proponho, com a presente pesquisa, que se ofereçam cursos
de formação continuada a professores atuando em escolas da rede pública do
Estado, fomentando discussões acerca de um fazer enunciativo-discursivo no
trabalho com a linguagem, despertando os docentes para a importância de levar o
aluno a inscrever-se na LE, da influência que o ensino de LE exerce nos processos
de subjetivação do aprendiz e na forma como este encara a si mesmo e ao outro, da
necessidade de fomentar nos aprendizes uma postura de relativização, de
desconstrução de discursos, de se formar aprendizes\cidadãos críticos.
Com a devida formação, os docentes compreenderão que ensinar LE não é
apenas ensinar palavras e tempos verbais neutros, mas que a aula de LE é o
momento ideal para discussões, questionamentos, problematizações, pois propicia o
contato com o diferente, o estrangeiro. Assim é possível levar os professores a
perceber que se pode instaurar o desenvolvimento de uma postura crítica nos
aprendizes através da discussão e problematização de estereótipos (como por
exemplo, acerca de determinado povo, sexo, classe social) presentes em piadas,
músicas, programas de televisão e discursos ecoados pela sociedade. O ensino
deve ir além da artificialidade encontrada nos LDs e trazer para a sala de aula
questões e conflitos reais e que em geral são ‘saneados’ em suas páginas, tais
como desigualdade social, violência, diversidade, levando o aluno não somente a
reconhecer sua existência, mas a problematizar sobre elas. É preciso também levar
os aprendizes a desconstruir o discurso de “certo” versus “errado”, principalmente no
que diz respeito ao trabalho com a linguagem, mas que adotem uma postura de
relativização, compreendendo as noções de “adequado” versus “inadequado”.
Compreendo que são transformações significativas e que impõem ao
professor uma pesada responsabilidade. Conforme observado durante a pesquisa e
em conversas com diversos professores, muitos têm se sentido à deriva, sem saber
exatamente como proceder frente às novas realidades impostas à disciplina de LE
na atualidade, como utilizar adequadamente o novo instrumento que possuem, o LD
adotado para a disciplina, nem como transpor o abismo que observam entre a
realidade de seus alunos e o que é proposto pelo LD.
103
Sugiro que se forneçam cursos para professores, atuantes na rede pública, a
fim de prepará-los para uma adequada utilização do LD (ferramenta de ensino),
levando-os a compreender a abordagem que embasa a formulação das atividades
propostas. Os professores devem ser auxiliados de maneira prática a avaliar as
necessidades de seus alunos em diferentes contextos, podendo valer-se também de
ferramentas, sempre fazendo do aprendiz não somente um conhecedor de
estruturas gramaticais, como era feito num molde tradicional de ensino, mas um
sujeito discursivamente engajado na LE.
104
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