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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ALEXSANDRO DA SILVA MARQUES
EDUCAÇÃO E CORPO EM NIETZSCHE: DO CAMINHO DO CRIADOR
Salvador
2015
ALEXSANDRO DA SILVA MARQUES
EDUCAÇÃO E CORPO EM NIETZSCHE: DO CAMINHO DO CRIADOR
Dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientador: Prof. Dr. Emanoel Luiz Roque Soares
Salvador
2015
SIBI/UFBA/Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira
Marques, Alexsandro da Silva. Educação e corpo em Nietzsche : do caminho do criador /
Alexsandro da Silva Marques. - 2015. 107 f. : il.
Orientador: Prof. Dr. Emanoel Luiz Roque Soares. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Educação, Salvador, 2015.
1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm - 1844-1900. 2. Educação - Filosofia. 3. Corpo humano na educação. 4. Valores. I. Soares, Emanoel Luiz Roque. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título.
CDD 370.1 - 23. ed.
ALEXSANDRO DA SILVA MARQUES
EDUCAÇÃO E CORPO EM NIETZSCHE: DO CAMINHO DO CRIADOR
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em
Educação, Faculdade de Educação, da Universidade Federal da Bahia.
Aprovada em 01 de setembro de 2015
BANCA EXAMINADORA
Emanoel Luís Roque Soares (Orientador) _________________________________
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Gilfranco Lucena dos Santos __________________________________________
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco
Universidade Federal da Paraíba
Dante Augusto Galeffi________________________________________________
Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal da Bahia
AGRADECIMENTOS
Este é o momento de agradecer às forças que permitiram a realização deste
trabalho. Às forças que estimulam a acreditar na arte de lançar-se ao mundo. Lançar,
projetar e criar, estes são verbos que exigem carne, corpo e vida, por isto agradeço
aos caminhos, as escolhas, livros, leituras, amizades, amores e experiências que me
constituem e dão forma ao meu caminhar.
Agradeço a minha família em especial meus pais Dejanira Santos e Roque
Silva por sempre sorrirem a me ver chegando em casa depois de tantas ausências,
mesmo sem entender o mundo da academia me apoiam incessantemente. É vocês
minha inspiração de vida.
Ao professor, Dr. Emanoel Luís Roque Soares, pela generosidade e confiança
que sempre manteve pelos seus orientandos.
Aos membros da banca, Prof. Dr. Dante Galeffi e o prof. Dr. Gil Franco Lucena,
agradeço por aceitarem com prontidão e gentileza o convite para participar desse
processo, pelas considerações feitas na qualificação que contribuíram enormemente
para o enriquecimento desta pesquisa.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA pela acolhida e
atenção.
Aos professores do programa, que tive a honra de conhecer, de cursar as
disciplinas, também de enriquecer o projeto de pesquisa.
Aos amigos e amigas do Grupo de Pesquisa HCEL, pelos momentos de
reflexão, as trocas de experiências, os encontros e os risos que vão construindo
espaços afetivos e leves nesta caminhada da academia.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),
pelo auxílio financeiro concedido para a realização do mestrado.
Aos amigos de caminhada e de vida, Suelândia Franco, Saul Neto, Maiara
Damasceno, e Sergio Costa, pelo apoio, compreensão, trocas de experiências e
atenção nos momentos que mais precisei de críticas e abraços.
A todos, o meu afeto e minha gratidão!
A última coisa que eu prometeria seria ‘melhorar a humanidade. Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa
ter pés de barro. (Nietzsche, Ecce homo)
MARQUES, Alexsandro da Silva. Educação e Corpo em Nietzsche: do caminho do criador. 107 f. il. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
RESUMO
O presente trabalho de pesquisa faz parte do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Faculdade de Educação, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na linha temática Educação, Cultura Corporal e Lazer. Nossa pesquisa é um estudo sobre o pensamento pedagógico do filósofo alemão Friedrich Nietzsche que visa analisar a aproximação entre educação e corpo em sua filosofia na elaboração de uma educação da criação de si. Para realização deste trabalho, foi realizada uma pesquisa teórica analisando a literatura nietzschiana publicada em sua vida e as contribuições de alguns pesquisadores e estudiosos das suas obras. Esta dissertação está dividida em duas partes. Na primeira, apresentamos e discutimos as críticas lançadas por Nietzsche nos escritos Schopenhauer como Educador e as Conferências sobre os estabelecimentos de ensino e o Nascimento da Tragédia ao que se refere à concepção de educação e cultura ministradas nas instituições de ensino da Alemanha do século XIX. A exemplaridade dos gregos, para Nietzsche, surge não apenas como modelo estético, mas no seu modo de viver diante dos sofrimentos e das dores que não os fizeram pessimistas. Na segunda parte, apontamos os caminhos pelos quais Nietzsche supera as críticas iniciais, a partir de suas obras Aurora, Gaia Ciência, Genealogia da Moral e Assim Falou Zaratustra propondo a afirmação da existência, a crítica à noção de conhecimento e aos valores morais. Busca-se uma educação da experimentação como justificativa ao aparecimento de novas formas de compreender a cultura, bem como os estabelecimentos de novas balizas conceituais, o que será responsável pela criação de uma nova imagem do homem, do conhecimento e do processo formativo. Neste sentido Nietzsche se empenha em reabilitar o corpo como campo de experimentação e crítica aos valores e interpretações que imperam como verdades. Ao final discutimos a concepção de educação nietzschiana caracterizada como caminho singular e individual, um projeto que se dá pelo cultivo de si, o caminho do criador de valores que a partir do corpo como fio condutor elabora sua singularidade de modo afirmativo. Palavras-chave: Educação, corpo, formação, criação de valores.
MARQUES, Alexsandro da Silva. Education and Body in Nietzsche: not the creator's way. 107 f. il. Thesis (Master) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
ABSTRACT
This research work is part of the Post-Graduate Education (PPGE), Faculty of
Education, Federal University of Bahia (UFBA), the thematic line Education, Body
Culture and Leisure. Our research is a study of the pedagogical thought of German
philosopher Friedrich Nietzsche that analyzes the rapprochement between education
and body in his philosophy in the development of an education setting himself. This
thesis is divided into two parts. In the first one, we present and discuss the critical
launched by Nietzsche in the writings Schopenhauer as Educator, conferences on
educational institutions and The Birth of Tragedy which refers to the conception of
education and culture taught in educational institutions of Germany of the nineteenth
century. Thus the exemplary of the Greeks for Nietzsche, comes not only as an esthetic
model, but in their way of living against the suffering and pains that didn’t make them
pessimistic. In the second part, we aim paths in which Nietzsche exceeds the initial
criticism, from his works The Dawn, Gay Science, On the Genealogy Morality and Thus
Spoke Zarathustra proposing the statement of existence, the criticism to the notion of
knowledge and moral values. We search for an education of experimentation as a
justification to the emergence of new forms of understanding culture and
establishments of new conceptual beacons, what will be responsible for the creation
of a new image of man, knowledge and formative process. In this sense, Nietzsche
strives to rehabilitate the body as an experimentation field and critical values and
interpretation that prevail as truths. At the end we discuss the design of Nietzsche’s
education characterized as unique and individual way, a project that takes place by the
cultivation of the self, the way of the creator of values that from the body as a guide,
elaborates its uniqueness in an affirmative way.
Keywords: Education, body, training, creation of values
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura
1 A criação de Adão (recorte da obra). Obra de Michelangelo Buonarotti (1511)
23
Figura
2 Abaporu. Obra de Tarsila do Amaral (1928) 69
NOTA DE ESCLARECIMENTO
No uso das obras do filósofo Nietzsche, optamos por fazer as citações no corpo
do texto pelas siglas dos títulos, seguidas de um algarismo arábico que indicará o
aforismo da obra, e em seguida a página onde se encontra tal passagem.
A - Aurora (1881)
AFZ - Assim falava Zaratustra (1883-1885)
ABM - Para além de bem e mal (1886)
CI - Crepúsculo dos ídolos (1888 – 1889)
EE - Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino (1872)
EH - Ecce homo (1888)
GC - A gaia ciência (1882- 1886)
GM - Genealogia da Moral (1887)
NT - O nascimento da tragédia (1872)
SE - Schopenhauer como educador (1874)
VM - Sobre Verdade e Mentira no sentido extra-moral (1873)
Em relação a obra Genealogia da Moral, os números em romano indicarão as
partes do livro. Já na obra Ecce Homo, cujas partes não estão divididas em números,
a sigla será seguida do nome da parte em questão. Na obra Assim Falou Zaratustra a
referência está na sequência: obra, parte, nome da seção, página. A regra vale
também quando citações complementares da obra publicada de Nietzsche forem
colocadas em nota de rodapé. Os demais autores são citados na forma autor-data
como é indicado pela ABNT.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO
CAMINHOS DA PESQUISA
11
2 PARTE I - NIETZSCHE E O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO 23
2.1 UMA CRÍTICA À EDUCAÇÃO DA ALEMANHA DO SÉCULO XIX 24
2.2 A NOÇÃO DE CULTURA EM NIETZSCHE 28
2.3 FORÇAS ATUANTES: APOLO E DIONÍSO 33
2.4 RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA 39
2.4.1 A educação como prática de tratar o vivo como vivo 41
2.4.2 A ampliação e redução: máxima da cultura 44
2.4.3 A cultura utilitária dos egoístas 50
2.5 A EDUCAÇÃO COMO DESENVOLVIMENTO DE UMA FORÇA
CENTRAL
54
2.6 O FILÓSOFO E O PROFESSOR DE FILOSOFIA: O EXEMPLO
SCHOPENHAUER
56
2.7 TRÊS TIPOS FORMATIVOS: O HOMEM DA NATUREZA DE
ROUSSEAU, GOETHE E SCHOPENHAUER
60
3
PARTE II – COMO EDUCAR A SI MESMO OU TORNAR-SE
CRIADOR DE SI
69
3.1 CRÍTICA AO INSTINTO DE CONHECIMENTO: PENSAMENTO É
CORPO
70
3.2 O CORPO COMO FIO CONDUTOR: A NECESSIDADE DE
APROPRIAÇÃO DAS FORÇAS CRIADORAS
76
3.2.1 A vida como vontade de potência 79
3.3 O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE SI: DO CAMINHO DO CRIADOR 88
3.3.1 Do caminho do criador: tornar-se o que se é 92
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
100
REFERÊNCIAS 105
11
1. INTRODUÇÃO
CAMINHOS DA PESQUISA
A nossa proposta é compreender o pensamento pedagógico do filósofo alemão
Friedrich Nietzsche, nas aproximações entre corpo e educação em sua filosofia,
visando a elaboração de uma educação do cultivo de si. Qual noção de corpo pode
surgir destas tramas? Como seu pensamento pode nos auxiliar a pensar a nossa
educação e constituirmos o corpo como potência de mover e ser movido?
Estas e outras questões que apareceram durante nossa pesquisa se
entrelaçam com as cicatrizes de nossas vivências escolares transmutadas a cada
momento e em cada instante do processo educacional. Carregamos sobre nosso
corpo as incertezas e imersões de um tipo de ensino e de educação. Vivemos cobertos
em véus de diversas espessuras, arraigadas em tábuas de valoração e
apequenamento do corpo como potência de criar a todo momento negado. O caminho
da autoformação, do processo de criação de si é excluído dos processos
educacionais. As singularidades, a capacidade de potência são marcas esquecidas
ou mutiladas para um processo pragmático e reprodutor em muitas instituições de
ensino. Essas são algumas reflexões lançadas por Nietzsche e que resultou no projeto
da presente dissertação.
A incapacidade de agir diante de uma formação que anula a imanência em prol
da atividade do intelecto, que estimula a sermos competentes racionalmente, eruditos
e especialistas, é fruto de uma moral que investe um modelo a seguir e nos obriga a
obediência que à potência, a reprodução que à criação. Despir-se durante todo o
processo de formação é a necessidade vital para nos apropriar de nossas forças
inventivas, é condição vital também para colocar em questão os processos formativos
que nos separa da potência do corpo e da potência de pensar.
Ler Nietzsche em seu estilo é sermos balançados em cada leitura a darmos
saltos e reviravoltas em nossos hábitos e estruturas mentais. Como afirmara Deleuze
12
(1976), há uma pretensão de tirar o leitor de seu solo confortável, mover territórios
para que compreenda a si mesmo sempre de diferentes modos. É necessário
conectarmos o texto à força exterior que por ele vaza ou produzir novas e diferentes
intensidade, assim o autor desaparece no texto.
Em um aforismo de Crepúsculo dos Ídolos (1888), Nietzsche ressalta a
importância de aprender a pensar experimentando todo o corpo. É preciso que
aprendamos a dançar não apenas com os pés, mas com as palavras, as ideias, os
conceitos, em um ritmo que a vida e o escrito ganhem carne, movimento e calor.
Talvez escrever com sangue, encontrando auroras ainda a brilhar. Buscando a
expressão de força, o riso, a dor, o ar de uma paisagem, o vai e vêm das ondas do
mar, a alegria mais intensa e o afeto mais envolvente como os textos de Nietzsche
permeados de paisagens e sons que atravessam seus leitores. É no ominoso do corpo
que se abre os campos das mais diversas experiências. O pensamento no sentido
nietzschiano é definido como uma relação estabelecida entre os impulsos corporais.
Não é a razão que perpassa os textos de Nietzsche, mas a dissonância, a
multiplicidade, o conflito das diferentes interpretações. Ao escrever, Nietzsche
expressa o vir-a-ser, o fluxo contínuo da vida que é a vontade de potência e a dinâmica
das forças.
Assim, como tantos outros pensadores, Nietzsche tornar-se instrumento de
trabalho que auxilia expandir os nossos horizontes no que diz respeito aos processos
de formação, a nossa relação com a imanência e como nos apropriamos de nossa
existência fazendo-a obra de arte e desejá-la como experimento e caminho de criação
incessante.
A educação na interpretação nietzschiana busca promover uma ideia de cultura
que prolongue a natureza a realizar sempre a sua obra: o nascimento de grandes
personalidades que saibam lidar com a vida e o pensamento de forma intensiva. O
papel de uma tarefa educativa que busca o cultivo de si (criação de si) consiste em
cultivar e assim desenvolver potencialidades que estimule a melhor forma de vida,
tanto física como intelectual. Pois, estando o homem inserido na vida pelo corpo a
autoafirmação de nossa existência traz em si a valorização da singularidade e de todo
13
sentido criador1. O pensamento então surge de um modo vital no próprio corpo, pois
este é pensador. Os nossos sentimentos, as nossas emoções sempre nos dizem
alguma coisa e sempre estão em uma luta para continuarem manifestando e se
sobrepondo aos demais sentimentos. Todo pensamento é um sintoma de vida. E
sobre a vida há sempre juízos de valor “bom” e “mau” que implicariam na afirmação
da própria vida ou a sua negação2.
A crítica Nietzschiana à tradição filosófica, principalmente à um tipo de
pensamento que despreza o corpo em detrimento de um impulso racional ou a
“pequena razão”. O corpo, na tradição do pensamento antigo, é visto em relação à
alma como parte inferior. Haveria uma oposição entre corpo-alma, falsidade-verdade,
esquecimento-memória, pensamento/sentidos destacando-se apenas um dos
atributos: alma, memória, pensamento. Nesta perspectiva o corpo é significação de
tudo que expressa o estranho, errôneo e que poderá ser corrigível a partir da
hierarquia e aprimoramento dos seus atributos considerados superiores, estes, por
sua vez, desvalorizam e coisifica a corporeidade em prol de interesses religiosos e
morais. Segundo Nietzsche, há uma anulação das forças constituintes da vontade de
vida da própria natureza. “Vontade de vida” entendida aqui, como vontade de
potência, e não como “vontade de existir”.
Todo discurso sobre o corpo e toda produção histórica sobre sua realidade no
fundo não passam de interpretações e perspectivas – o que Nietzsche caracteriza de
má compreensão. Não há como falarmos de um conhecimento sobre a realidade, pois
o corpo carrega em si a multiplicidade da sua vivência, por isso, a consciência em
Nietzsche é relacionada às metáforas gástricas e aos processos fisiológicos de
digestão e nutrição. Essa mudança de perspectiva não se reduz a uma explicação
fisiológica sobres os processos cognitivos, mas uma simbologia que deve ser
entendida como ferramenta metodológica contrária as interpretações dualistas da
história do pensamento filosófico. Segundo Barrenechea (2011, p. 131), os
pensamentos são comparados “às funções gástricas porque incorporam, através da
1Cf. DIAS. 2001, p. 51 2Cf. NIETZSCHE, GM, § Prólogo 3, p. 9.
14
atividade interpretativa, o que é alheio, digerem o que é diverso – a multidão de forças
inconscientes – através de signos unívocos”.
Segundo Rabelo (2013) a vontade em Nietzsche, não é algo “puro” ou “em si”,
ela é uma forma básica, ou seja, vontade de alguma coisa, pois não existem “seres”,
apenas relações3. Para Deleuze (1976) “toda relação de forças constitui um corpo:
químico, biológico, social, político”4. Esta relação é estabelecida entre forças
dominantes e forças dominadas, ou seja, duas forças quaisquer, sendo desiguais,
constitui um corpo desde que entrem em relação.
A filosofia tradicional, para Nietzsche, está vinculada por um viés que para
aceder ao caminho do conhecimento e da verdade dissocia razão e sensibilidade,
movimento observado pelo filósofo nas instituições de ensino da Alemanha do século
XIX. Estes movimentos são perceptivos não só no contexto explicitado pelo filósofo
na Alemanha, mas ao olharmos atentamente a nossa realidade, sem perder de vista
as especificidades inerentes à nossa cultura, percebemos essa lógica operando em
todo o ocidente e na própria educação brasileira. Os processos educacionais muitas
vezes ao invés de valorizar a potência criadora de cada estudante os relacionam como
massas, grupos de corpos padronizados e não como indivíduos, os quais devem
“adquirir de modo passivo e disciplinado, um corpo preestabelecido de
conhecimentos”5.
Nesta pesquisa, buscamos compreender a concepção de educação da
experimentação como justificativa ao aparecimento de novas formas de compreender
a cultura, bem como os estabelecimentos de novas balizas conceituais, o que será
responsável pela criação de uma nova imagem do homem, do conhecimento e do
processo formativo. Neste sentido, Nietzsche se empenha em reabilitar o corpo como
3Segundo o mesmo autor, “só há vontade onde há diferença, onde há oposição; do mesmo modo, oposição é sempre oposição entre impulsos, entre forças, entre vontades” (RABELO, 2013, p. 92). É preciso destacar que a vontade jamais poderá ser identificada como expressão de uma “vontade de viver”, pois, o próprio querer implica uma primeira condição que é estar vivo, “existir concretamente” (a corporeidade como princípio básico). Sobre estes aspectos ver a página 73. 4Seguindo a argumentação deleuziana, a força sempre é plural e nunca no singular, visto que ela está sempre numa relação essencial com outra força. Neste sentido, todo objeto (fenômeno) é uma expressão do aparecimento de uma força. “Uma força é dominação, mas também o objeto sobre o qual uma dominação se exerce” (DELEUZE, 1976, p. 6) 5Cf. MOSÉ. 2011, p, 105.
15
campo de experimentação e crítica aos valores e interpretações que imperam como
verdades, por isto, buscou-se subsídios teóricos no pensamento nietzschiano que
pudesse problematizar a noção de ser humano e subjetividades que as instituições de
ensino têm se proposto a cultivar. Pensar o corpo em uma perspectiva nietzschiana
nos remete à forma como este é compreendido em suas obras e: como podemos
pensar a educação e o ensino de filosofia como instrumento problematizador de uma
tríplice relação envolvendo a cultura, escola e o corpo?
Na obra Schopenhauer como Educador (1874), Nietzsche compreende a
educação como “cultivo de si”, em um processo educativo que requer a auto
superação da grande individualidade a partir da autocrítica. Confrontando-se com um
tipo de ser humano e de sociedade da modernidade, a educação do “cultivo de si” tem
por objetivo criticar a sociedade da padronização, a qual renega o posicionamento
singular no mundo. É preciso lentidão no pensar, experiência interior com o
pensamento solitário e criador que exige um tempo de maturação.
O indivíduo buscará a partir da experimentação, não um processo de formação
pré-determinado, mas a autoafirmação na relação que o corpo estabelece com as
forças imanentes, desde as relações com questões fisiológicas às representações
sociais, afetivas e de sobrevivência. Valorizando a singularidade, a criatividade na
afirmação da sua existência no enfrentamento de tudo aquilo que se opõe a uma
formação e ensino a serviço da vida, pois “viver é inventar”6. Segundo Nietzsche, todo
valor e sentido doados ao mundo são gerados por nossas interpretações e estas estão
relacionadas intimamente com a vida manifesta em nós, pois “ao falar do valor da vida
falamos sob a inspiração e através da óptica da vida. A própria vida nos obriga a
determinar valores, a própria vida evolui por meio de nossa mediação quando
determinamos esses valores” (CI, §5, p, 41).
Segundo Rosa Dias (2011) o corpo em Nietzsche é pensador, é o grande centro
de organização e interpretação do mundo e o ser humano está inserido na vida pelo
6Segundo Rosa Dias: “Viver, para Nietzsche, é inventar. Uma invenção que não se pensa a partir da soberania de um sujeito capaz de criar-se a si próprio, mas a partir da experiência, ou melhor, da experimentação. O grande inventor experimentador de si mesmo é o sujeito sem identidade real ou ideal. [...] Esse sujeito não se concebe como substância dada, mas como forma a compor, como permanente transformação de si, como o que está sempre por vir”. Cf. DIAS, 2011, p. 128
16
corpo. E vida é vontade de potência, um eterno superar-se, “atividade criadora e como
tal é alguma coisa que quer expandir sua força, crescer, gerar mais vida”7. Ainda
segundo Dias (2011), Nietzsche afirma que toda interpretação só é possibilitada a
partir da luta instintiva que há em cada força atuante em nós e por sua busca em
querer tomar uma posição.
Para a pesquisadora Scarlett Marton (1990) o corpo é combate entre as forças
vitais. Marton explica que o combate ocorre devido às forças dos impulsos se
encontrarem sempre em resistência,
a luta entre seus diversos impulsos manifesta-se aqui até mesmo no pensamento. ‘A sequência de pensamentos e conclusões lógicas, em nosso cérebro de agora, corresponde a um processo e luta de impulsos, que por si só são todos muito ilógicos e injustos; de hábito só ficamos sabendo do resultado do combate’ (GC, § 111). Começa a delinear-se uma concepção mais consistente de vida, na qual a luta se impõe como seu traço fundamental. Pensamentos, sentimentos, impulsos estão em franco combate, mas também células, tecidos, órgãos (MARTON, 1990, p, 47).
Em cada impulso há uma avaliação do que ocorre e do que é vivenciado e esta
avaliação varia segundo a perspectiva. Neste sentido, os textos de maturidade de
Nietzsche, como por exemplo, em Aurora (1881) e Genealogia da Moral (1887),
ajudam-nos a compreender a necessidade em se fazer uma crítica dos valores morais,
levantando questões frente à origem desses valores e o valor mesmo desses valores.
Para a elaboração desta crítica é necessário também que se conheça a origem e
fundamento dos valores que favoreceram seu nascimento e seu desenvolvimento.
Colocando os valores em questão, Nietzsche inaugura o chamado procedimento
genealógico, o qual consiste em uma espécie de instrumento de diagnóstico.
Segundo Marton (2006), o procedimento genealógico é constituído de dois
movimentos inseparáveis, num primeiro momento os valores devem ser relacionados
com os marcos circunstâncias em que foram criados, relacionando-os, por exemplo,
aos valores de “bem” e “mal” em relação a perspectiva avaliadora que os cria. Pois,
todos os valores são criados a partir de uma determinada perspectiva. No segundo
7Cf. DIAS, 2011, p, 34.
17
movimento, as perspectivas avaliadoras devem ser relacionadas com os próprios
valores8.
Na obra Gaia Ciência (1882), Nietzsche, contrário a toda concepção dualista,
afirma que o corpo é o ponto inicial de qualquer questão filosófica. O corpo é pensado
como uma relação de forças conflitantes e em um eterno embate, não havendo uma
dicotomia entre alma e corpo. Neste sentido o que há é uma “má interpretação” do
corpo em toda filosofia tradicional:
[...] – e frequentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo. Por trás dos supremos juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamento se escondem más–compreensões de constituição física, seja de indivíduos, sejam de classes ou raças inteiras (GC, §2, p, 12).
Segundo Azeredo (2008), Nietzsche defende a valorização dos instintos, do
corpo e dos ritmos naturais como os únicos capazes de orientar o homem a uma vida
exuberante e vigorosa. “A guerra contra o instinto e toda dimensão corpórea provoca
o enfraquecimento do homem, posto que o combate, o jogo de forças são justamente
os elementos fundamentais para a saúde do homem” (AZEREDO, 2008, p, 70).
É importante ressaltarmos que a crise de valores e a interpretação lançada por
Nietzsche em direção à avaliação destes valores, constitui um passo importante para
o entendimento do que foi feito do corpo e estendendo-se aos processos educacionais
cria-se uma educação que descaracteriza a vida. É preciso compreender, a partir da
concepção de educação em Nietzsche, como o corpo é pensado e como ele possibilita
a autoafirmação de nossa existência na criação e valorização de nossa singularidade,
na produção de novas formas de vida a partir da sua vontade de potência.
Todo caminhar requer, além da transitoriedade inerente ao devir do
acontecimento, trilhas que visualize algumas objetividades e finalidades para que
nossas experiências não se percam ou evaporem no ato em si. Todo avanço requer
8Segundo Marton (2006), os valores para Nietzsche são humanos, demasiado humanos. Ou seja, na interpretação nietzschiana, “a questão do valor apresenta duplo caráter: os valores supõem avaliações, que lhes dão origem e conferem valor; as avaliações, por sua vez, ao criá-los, supõem valores a partir dos quais avaliam” (MARTON, 2006, p, 52).
18
a superação de um estado anterior a novos estados mais elaborados, e se falando de
pesquisa científica, nossa atitude enseja de um lado a própria rigorosidade da
pesquisa no seu trato com a questão a ser estudada e do outro lado com o seu
método. Ambas as atitudes não estão dissociadas, mas entrelaçadas. É neste
caminhar que indagações são realizadas e realidades vão sendo construídas e isto
não é uma atitude abstrata do pensamento, mas do próprio envolvimento do
pesquisador na ação.
Por isso, faz-se necessário uma metodologia que garanta as ferramentas na
travessia desse objetivo. Como afirma Minayo “a metodologia é o caminho do
pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade” (MINAYO, 2013. p. 14).
Neste processo, podemos identificar três atitudes inerentes e necessárias: a teoria da
abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do conhecimento (as
técnicas) e a criatividade do pesquisador, a sua experiência, sua capacidade pessoal
e sua sensibilidade.
Este trabalho apresenta-se como uma pesquisa teórica. Segundo Demo (2000,
p. 20) “trata-se da pesquisa que é dedicada a reconstruir teorias, conceitos, ideias,
ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos
teóricos”. A pesquisa teórica não se configura na imediata intervenção da realidade,
mas na criação de condições de intervenção, o que não deixa de ser importante. “O
conhecimento teórico adequado acarreta rigor conceitual, análise acurada,
desempenho lógico, argumentação diversificada, capacidade explicativa” (DEMO,
1994, p. 36). Este tipo de pesquisa direciona-se a (re)construir quadros de referências,
teorias, condições explicativas da realidade, discussões e polêmicas pertinentes.
Nosso estudo, EDUCAÇÃO E CORPO EM NIETZSCHE: DO CAMINHO DO
CRIADOR, teve como objetivo compreender a noção de corpo e sua relação com a
concepção de educação no pensamento filosófico de Nietzsche. Debruçamos no
conjunto dos escritos dos períodos de juventude e maturidade sobre os quais o filósofo
apresenta suas críticas à educação de sua época e esboça uma concepção própria
de educação, crítica aos valores morais e a relação do corpo com a elaboração do
pensamento.
19
Na primeira parte do estudo intitulada NIETZSCHE E O PROBLEMA DA
EDUCAÇÃO, atentou-se ao estudo das obras do período de 1870 a 1876: percebe-se
nesta fase o início do envolvimento do filósofo com questões referentes à educação e
à cultura de seu tempo, tais obras podemos observar: Schopenhauer como educador
(1874), Conferências sobre o futuro de nossas instituições de Ensino (1872) e o
Nascimento da Tragédia (1872). Nestas obras Nietzsche apresenta sua crítica à
educação e a cultura ministrada nos estabelecimentos de ensino alemão da sua época
por não produzir um vínculo com o pensamento e a vida. Buscamos também na obra
Ecce Homo (1888) os elementos que embasam a revisão destes escritos, nos seus
habituais movimentos de autocrítica, indicando elementos importantes sobre algumas
noções que possibilitam repensarmos suas ideias iniciais.
No período em que atuou como professor no Padagogium e na Universidade
de Basiléia, os problemas educacionais impulsionaram Nietzsche a pensar sobre a
formação desenvolvida no ensino secundário e superior. Nos textos das conferências,
Nietzsche critica o ensino Alemão por ter se desvinculado da formação humanística,
passando a oferecer uma formação que tinha como objetivo a formação de homens
de profissões ligados aos interesses estatais, ao comércio e à formação de um homem
teórico, ou seja, de formação cientificista9. É preciso destacar a diferença de contexto
dos textos aqui utilizados. Enquanto nas conferências Nietzsche se refere às
instituições, no texto sobre Schopenhauer ele se refere ao grande crítico da burocracia
institucional.
Nietzsche compreende que a modernidade é um período de forte crença na
ciência e no pensamento como forma de transformação social e de libertação de
preconceitos e crenças comuns, herdeira do movimento iluminista. A crítica de
Nietzsche à razão incide no fato de que a racionalidade, a consciência e o intelecto é
para o homem da modernidade o elemento que o coloca em grau privilegiado em
relação aos demais seres. Assim, nasce uma cultura que busca sobrepor à natureza,
e um homem que acredita dominar a si mesmo, negando pela via do pensamento,
9Em linhas gerais o Humanismo seria um movimento cultural amplo, advindo do Renascimento e que, após algumas transformações tomou conta da Europa. Suas ideias básicas implicam uma volta a Antiguidade clássica, greco-romana ou greco-latina. Segundo Ghiraldelli Jr, “fundamentava-se pela busca por uma concepção de homem” (Cf. 2014, p, 4).
20
seus instintos e paixões10. A modernidade passa a sustentar uma cultura utilitarista
que privilegia a formação de homens que atendam as demandas e interesses do
Estado.
Segundo o filósofo, a educação ministrada nos estabelecimentos de ensino
Alemão não produz um vínculo com o pensamento e a vida. Buscava-se ali, a
formação de um indivíduo preocupado com a formação profissionalizante para assim
atender às demandas do Estado e de uma sociedade utilitarista que privilegiava o
saber teórico, especialista e erudito cada vez mais distanciado da vida.
É preciso destacar dois movimentos que estavam em vigor na Alemanha do
século XVIII, a saber, a tendência à extensão, à ampliação da cultura; e a tendência
à redução, ao enfraquecimento da própria cultura. No intuito de criar pessoas cada
vez mais aptas ao acúmulo excessivo, foi dada ênfase à profissionalização impedido
que o sistema educacional possibilitasse a autêntica cultura. Segundo Nietzsche, a
autêntica cultura não está subordinada aos interesses utilitaristas e cientificistas, mas
aliada a uma formação humanista que leva em conta o desenvolvimento e o cultivo
dos indivíduos, e não apenas sua erudição. Nestas reflexões Nietzsche caracteriza
quatro tipos de egoísmos que são como forças que corroem e enfraquecem a cultura:
o dos negociantes, o do Estado, o dos camufladores e dissimuladores e o da ciência.
Ao refletir como o homem pode educar a si mesmo, é necessário ter em mente
que esta não é uma tarefa fácil, pois ao tentar se conhecer o homem é levado ao
caminho oposto, podendo-se degenerar na figura de um erudito ou homem da
utilidade que se apega a tarefa diária, aos ideários de felicidade coletiva desprezando
a singularidade. É preciso que o homem assuma a responsabilidade por sua
existência e a afirme convictamente. Nietzsche afirmará que o homem devido a sua
característica maleável e de transforma-se constantemente pode educar-se, a partir
do exemplo de um modelo de vida e não unicamente dos livros ou de uma educação
meramente técnica.
Schopenhauer é apresentado por Nietzsche como um “ideal de educador” por
manter uma coerência entre vida e pensamento. Assim como Schopenhauer,
10Cf. MOSÉ, 2011, p, 11.
21
Nietzsche manteve uma relação explosiva e intensa entre a vida e seu pensamento.
Pois a educação ocorreria, para este filósofo, a partir do encontro da “força”que
impulsiona o desenvolvimento dos grandes mestres e não apenas pela transmissão
exacerbada de conhecimentos que se entregam ao pragmatismo, ao utilitarismo, ao
tecnicismo, fragilizando, assim, a criação da personalidade autêntica.
Na segunda parte, intitulada DE COMO EDUCAR A SI MESMO: OU TORNAR-
SE CRIADOR DE SI, nos interessa o estudo dos elementos motivadores e
propositivos referentes à noção de corpo em Nietzsche e como se empenhara em
reabilitar a imanência como campo de experimentação e crítica aos valores e
interpretações que imperam como verdades. Buscou-se utilizar as obras Gaia Ciência
(1882), Aurora (1882), Assim Falou Zaratustra (1883) e Genealogia da Moral (1888)11.
Na obra Aurora é estudada a crítica aos juízos morais e a moralidade como
criadora de valores que determinam a forma de agir comunitária. Nietzsche afirma a
perda na crença da existência de uma relação de tudo com a moral e de um significado
ético do mundo (A, §3 p, 12). Buscou-se entender nesta obra como se efetua a noção
“paixão do conhecimento” caracterizada pelo filósofo.
Em Gaia Ciência, por ser um livro também anterior à obra Genealogia da Moral,
buscou-se estabelecer a relação de alguns elementos, como, consciência como
função orgânica e os instintos, impulsos, como aquilo que está a serviço da vida e
consequentemente suas influências na(s) noção(ões) de corpo. É preciso também
compreendermos como o filósofo da Gaia Ciência e da Genealogia da Moral, opera a
crítica do valor dos valores e apresenta sua compreensão acerca da “má
interpretação” do corpo pela tradição filosófica.
Na obra Genealogia da Moral investigamos a crítica levantada pelo filósofo
acerca dos valores morais, suscitando questões referentes à origem e ao valor dos
valores. Nietzsche apresenta o procedimento genealógico possibilitando avaliar o
valor dos valores e interpretar o sentido das forças que estão em relação. Estes são
movimentos importantes para entendermos à noção de corpo na tradição filosófica.
11 Os livros Gaia Ciência e Aurora se inscrevem no período intermediário ou “positivista”, inaugurado por Humano, demasiado humano (1878).
22
Na obra Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém, centramos
nossa atenção na seção “Do caminho do criador”. Nesta seção, Zaratustra oferece um
belo exemplo de personalidade autêntica, de cultivo espiritual, de avanço intelectual e
cultural, como uma provocação à era de banalização da formação. A partir da
experimentação, o indivíduo buscará não um processo de formação determinado e
acabado, mas a afirmação da sua existência, valorizando a singularidade e a
criatividade no enfrentamento de tudo aquilo que se opõe a uma formação preocupada
com seu tempo a serviço da vida.
Neste sentido, buscamos no referencial teórico apresentado, compreender o
corpo na interpretação nietzschiana, apresentando suas possíveis relações com a
educação. Apresenta-se a noção de educação como experimentação e justificativa ao
aparecimento de novas balizas conceituais para compreender a cultura, o que será
responsável pela criação de uma nova imagem do homem, do conhecimento e do
processo formativo.
Por fim, nas CONSIDERAÇÕES FINAIS, tecemos perspectivas e questões
diante do estudo apresentado, na medida em que se constata a imposição de uma
determinada compreensão de corpo a ser cultuado e efetivado ao longo da cultura
humana e da educação. Pensar o corpo como fio condutor, em uma concepção de
uma educação que desenvolva nos estudantes a personalidade ativa e criadora frente
a uma sociedade massificada e padronizada, nos lança possibilidades de uma
educação da sensibilidade em que o ser humano, em relação a sua vida, possa ser
um criador de si. Uma educação da experimentação se abre a nós esboçando
tensionamentos sobre o tipo de formação que temos hoje e qual o tipo formativo que
ainda se pode elaborar.
23
PRIMEIRA PARTE
NIETZSCHE E O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO
Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu. Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias (Co. Ext. III, § 1, p. 164.
24
Nesta primeira parte se estruturam dois momentos: primeiro buscamos
compreender como estrutura a análise realizada pelo filósofo Nietzsche no que diz
respeito aos estabelecimentos de ensino alemães; e um segundo momento, a partir
da sua própria experiência com Schopenhauer, Nietzsche mostrará os perigos, as
dificuldades e as peculiaridades da experiência formativa a que se é submetido na
presença de um filósofo intempestivo.
Entraremos em um labirinto no qual os minotauros são monstros que
necessitam domá-los, sejam eles a decadência de um sistema educacional sendo
devorado pelas investidas de um poder estatal e econômico, seja por uma
compreensão de ciência e uma formação (instrução) que não favorece um modo
criativo de ser e da potencialização da vida. O que será possível ver é que tais
labirintos, aparentemente confusos e cheios de direções, contribuem para traçar
coordenadas na cartografia das críticas Nietzschianas à educação de sua época.
É necessário que ao buscarmos compreender as análises do filósofo
intempestivo, segurarmos no fio condutor de um novelo de questões que devem surgir
à mente ao adentrar em seu labirinto. Como as análises, aqui levantadas, se
aproximam de nossa realidade e contexto, já que não somos alemães, nem gregos e
cuja “elevação” espiritual geralmente passa pelos altares de algum templo – e essa é
a nossa raiz com todas as possibilidades e contradições de misturas de crenças,
estilos e línguas – e não por uma tradição constituída de reflexões sobre filosofia,
literatura, educação? Acreditamos que tais questões não nos são completamente
estranhas, pois aquilo que está na raiz do problema da educação, da formação
(bildung), da cultura, diz respeito a qualquer cultura e a qualquer ser humano, pois é
necessário que se pense o sentido de ser humano a partir do seu estar no mundo.
2.1 UMA CRÍTICA À EDUCAÇÃO DA ALEMANHA DO SÉCULO XIX
É notável o interesse do filósofo Nietzsche pela educação desde seus primeiros
escritos, tais interesses ora por oferecer como sendo fruto dela, ou por acreditar no
papel que ela desempenha no processo de renovação cultural. Durante o tempo em
25
que foi professor na Universidade de Basiléia, o jovem filósofo produzira alguns
escritos como as Considerações extemporâneas, porém nesta primeira parte de
nossas reflexões, as mais relevantes são suas conferências, Sobre o futuro de nossos
estabelecimentos de ensino e Schopenhauer como educador, proferidas na
Akademisches Kunstmuseumem Basiléia, no ano de 1872. É interessante observar
que Nietzsche em sua obra de maturidade o Ecce Homo, ao realizar uma revisão
sobre estes escritos de juventude, ressalta que neles se encontram a sua “história
íntima”, seu vir a ser, o seu compromisso como educador12.
Estes textos deixam expresso o empreendimento do jovem filósofo e sua
preocupação com a educação, a formação (Bildung), seu papel sociocultural e a
cultura de seu tempo. Tempo este demarcado pela banalização da sociedade
moderna a qual fora conduzida pela “cultura jornalística13” e pelo “filisteísmo
cultural14”.
A educação nos estabelecimentos alemães, segundo Nietzsche, visava à
preconização de uma formação e de um tipo de homem, a saber, o tipo homem que
se enquadra em uma função, o especialista qualificado, o homem útil, erudito e
homem da ciência. Nietzsche denuncia assim o caráter alucinante e destruidor da
imposição econômica e do capitalismo industrial. A educação e a cultura ligada ao
Estado como mentor e guia de suas funções, nutria em ambos o objetivo principal de
estimular a formação de mão de obra especializada centrada no ajuste e na
adequação dos indivíduos ao próprio Estado, à ciência e ao interesse daqueles que
Nietzsche caracteriza como a classe dos comerciantes. Trata-se da padronização dos
mesmos desempenhos, dos modos de ser, e das habilidades possível a todos os
indivíduos pelo processo pedagógico do ensino-aprendizagem.
12 É importante destacar que na mesma obra Ecce Homo, Nietzsche ressalta que também fora erudito por um tempo, pois que é preciso “haver sido muitas coisas em muitos lugares, para poder-me tornar-me um – para poder alcançar alguma coisa. Por um tempo eu tive de ser também erudito” (EH, p. 68). 13Nietzsche critica o Jornal por se apresentar em seu estilo uma forma sofisticada aparente, pois se utiliza das obras dos grandes gênios apresentando assim apenas resumos de seus trabalhos o que faria desestimular os estudantes a lê-los. 14Filisteu era o nome genérico que se dava aos indivíduos que habitavam a antiga Síria, que aparece na Bíblia. Nietzsche recorre a algumas palavras carregadas de forte sentido cultural para construir um tipo de imagem que criar movimentos em suas ideias.
26
O homem moderno, segundo Nietzsche, busca se adequar às obrigações do
Estado, o qual necessita de um indivíduo cada vez mais especializado em um saber
quantitativo e historicista15 pautado na transmissão de conteúdos e no interesse do
enriquecimento pessoal e da promoção social. Nietzsche refere-se ao homem como
um funcionário do Estado e “filisteu da cultura”, este último expressaria um “saber
envernizado”, aparente e superficial. O “Filisteu da cultura” é uma expressão usada
pelo filósofo para caracterizar um determinado tipo de homem possuidor de uma
ignorância referente ao valor e ao poder transfigurador da arte, se caracterizando pela
imitação e pelo consumo dos bens culturais.
A produção cultural passa a ser a assimilação da produção industrial. Para o
jovem filólogo, as instituições de ensino na Alemanha, no século XIX, tinham como
objetivo a formação de profissionais para atenderem a fins específicos dentro do novo
cenário capitalista e industrial que começava a ascender na Alemanha. Atendendo
aos objetivos do Estado e ao mercado, a educação ministrada nos estabelecimentos
de ensino não contribui, mas depõe contra à elevação da cultura. Nesta perspectiva,
Nietzsche percebe o aprofundamento de uma crise educacional que desdobra em um
processo maior: a vida.
Em Nietzsche a vida é entendida como vontade de potência, definida a partir
da ótica da arte que privilegia o aspecto de intensificação da própria potência. Viver,
neste sentido, não é apenas adaptar-se às diversas circunstâncias externas, antes de
tudo, a vida é atividade formadora16 que leva o homem a ser artista de sua própria
existência e não evadir-se de si mesmo. O que acontece neste cenário de crise
identificado por Nietzsche, sobre as instituições de ensino, é uma perda de um vínculo
com a vida como “desenvolvimento de si”, ou seja, educação como manifestação das
pulsões do gênio artístico. O gênio é a figura do desenvolvimento do homem que tem
15Segundo o dicionário filosófico Abbagnano (2007. p, 508) “o historicismo é uma doutrina segundo a qual a realidade é História (desenvolvimento, racionalidade e necessidade) e que todo conhecimento é conhecimento histórico. Essa é a tese fundamental do idealismo romântico. Uma variante da doutrina precedente, que vê na história a revelação de Deus no sentido de considerar que cada momento da história está em relação direta com Deus e é permeado dos valores transcendentes que incluiu na história”. 16É preciso destacar, segundo José Weber (2008), no período em que Nietzsche trata dos temas de formação este parece profundamente vinculado ao tema da arte, como em Hölderlin, Winckelmann, por exemplo, e em toda a tradição alemã que pensa o problema da formação.
27
a capacidade de cultivar a sensibilidade em prol de uma vida afirmativa, criativa e
expansiva sem negar nenhuma das forças criadoras: apolínea e dionisíaca17.
O que Nietzsche tem em mente é a noção de que “o homem é o animal ainda
não determinado”, sempre inacabado (ABM, §62 p. 65). Por isso, a possibilidade de
uma tarefa educadora. Educação deve afirmar-se como uma força vital realizando-se
intempestivamente, contra aquilo que constitui o presente, o mundo das necessidades
acumulativas, ideias e ações correlatas de uma época indigente acometida pela
pressa incessante. Sua empreitada é desenvolver uma educação como “cultivo de si”
18, uma educação que desperte os sentidos para a elevação da cultura, da
experimentação e que possa ser afirmativa e criadora de valores.
Por outro lado, a crise educacional e a cultura promovida pelo Estado, segundo
Nietzsche, produziu o homem teórico e erudito que passa a ser sinônimo de status
quo rendido pela utilidade de um Estado industrial. Há uma supervalorização do saber
historicista e jornalístico colocando a vida, o imanente, o devir em segundo plano. O
saber erudito e esvaziado de experimentação é instituído como força legitimadora da
instrução e não da experiência como afirmação da vida e das criações.
A escola passa a ser obstinada a instruir, como afirma Nietzsche:
A educação: um sistema de meios que visam arruinar as exceções em proveito da regra. A instrução: um sistema de meios que visam ensinar o gosto contra a exceção, em proveito dos medíocres. Visto assim, isto parece duro; mas, de um ponto de vista econômico, é totalmente racional. [...] Uma cultura de exceção, da experimentação, do risco, da nuance – uma cultura de estufa para as plantas excepcionais não tem direito de existir, senão quando há muitas forças, de modo que mesmo o desperdício se torne ‘econômico’ (Apud SOBRINHO, 2009, p. 347.).
17Apolíneo e dionisíaco referem-se ao que vem dos deuses, e que são tratados como forma de contraste: entre a ordem, racionalidade e harmonia intelectual (Apolo) e a vontade, viver espontâneo e extasiante (Dioniso). Porém, não são elementos contrários, mas sim de unidade, complemento, no qual um é parte distinta do outro (PAES, 2015). 18Nietzsche apresenta o conceito cultivo de si na III Intempestiva: Schopenhauer como educador (1874). Na obra Ecce Homo (1888), Nietzsche, ao lançar algumas críticas aos seus textos da juventude, apresenta o que de fato pretendia com tais escritos: “No fundo, com esses escritos eu desejava fazer algo bem diferente de psicologia – um problema de educação, um novo conceito de cultivo de si, defesa de si, até a dureza, um caminho para a grandeza (...)” (EH, §3, p. 67).
28
A filosofia e as artes devem ser retomadas como experiência vital. Uma cultura
da experimentação é contrária a todo processo de vulgarização e nivelamento cultural
o que separa a vida e o pensamento. Por isto, na interpretação de Nietzsche, Apolo e
Dioniso, são figuras centrais para a constituição da arte, da civilização grega e da
própria história, funcionam como princípios imanentes. Segundo Nietzsche, os
homens tinham uma maneira afirmativa de lidar com as paixões e os conflitos
mediante a exemplaridade de uma civilização que soube, por meio da arte, sobreviver
às adversidades.
Assim, a exemplaridade dos gregos, para Nietzsche, consistia não apenas
como modelo estético, mas no seu modo de viver diante dos sofrimentos e das dores
que não os faziam pessimistas. A este modo grego, o jovem filósofo, compreenderá
originário de uma sabedoria mítica e de uma arte trágica da experimentação.
2.2 A NOÇÃO DE CULTURA EM NIETZSCHE
A palavra cultura na sua origem etimológica é oriunda do verbo latino colere
significando o cultivo, o cuidado. Inicialmente podemos pensar a cultura como um
modo de vida, de pensar ou como campo próprio instituído pela ação humana
referente a todos os aspectos da vida social. Etimologicamente a palavra cultura
dimensiona para a natureza, a “lavoura”, “cultivo agrícola” que entrelaça um
movimento tanto de um crescimento espontâneo como movimento regulado,
elaborado. Segundo Chauí (2008) ligada ao cultivo e ao cuidado com a terra, nos dá
a noção de agricultura, já o cuidado com as crianças, denomina-se puericultura. Com
os deuses e o sagrado, surge o “culto” que no latim, refere-se o termo cultus,
compreendendo tanto o sentido religioso quanto aos cuidados com os pertences.
Como cultivo, a cultura era concebida como uma ação que conduziria a plena
realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém.
Segundo Chauí (2008, p. 55) no correr da história do ocidente, no século XVIII,
a palavra cultura ressurge, porém como sinônimo de civilização. Civilização deriva-se
29
da ideia de vida civil, portanto, de vida política e de regime político. Com o movimento
Iluminista a cultura passa a ser vista como o “padrão” ou o “critério” que mede o grau
de civilização de uma sociedade. Segundo Chauí (2008) a noção de tempo contínuo,
linear e evolutivo é introduzida no conceito de cultura o que pouco a pouco a torna
sinônimo de progresso. Neste sentido, o progresso de uma civilização seria avaliado
pela sua cultura e assim se avaliaria a cultura pelo progresso que esta traz a uma
civilização.
As sociedades modernas passaram a ser avaliadas segundo a ausência ou
presença de alguns elementos, os quais são próprios do ocidente capitalista e a
ausência desses elementos era considerada sinal de falta de cultura ou de uma cultura
pouco evoluída. Segundo a filósofa Chauí, os elementos que passam a ser critério de
avaliação das sociedades são: “o Estado, o mercado e a escrita. Todas as sociedades
que desenvolvessem formas de troca, comunicação e poder diferentes do mercado,
da escrita e do Estado europeu, foram definidas como culturas ‘primitivas” (CHAUÍ,
2008 p. 56).
A cultura não é estática pois é sempre uma tensão entre aquilo que é racional
e espontâneo. Não sendo determinada e fixa, muito menos deliberadamente
modificada, ela implica aquilo que a natureza realiza em nós, a saber, as ações que
realizamos na natureza. A cultura é um movimento oriundo de seu próprio processo
vital. Neste sentido, é necessário compreendermos que sobre o conceito de cultura,
na raiz de toda significação, há forças, isto é, todos os eventos significativos são
movidos pela junção de significado e de poder, por sua vez, só podem ser identificados
a partir da própria cultura.
Mas, qual é a definição de cultura em Nietzsche? O filósofo, no livro David
Strau: o devoto e o escritor, nos dá uma definição daquilo que ele define como cultura:
A cultura é antes de mais nada uma unidade de estilo que se manifesta em todas as atividades de uma nação. Mas saber muito e ter aprendido muito não são nem meio necessário nem um signo de cultura, mas combina perfeitamente com o contrário de cultura, a barbárie, com a ausência, com ausência de estilo, ou com a mistura caótica de todos os estilos (DE, §2, p. 11).
30
O filósofo compreende cultura como arte, criação diferente de algo que se
possa adquirir ou possuir. A cultura, para Nietzsche, deveria possibilitar a criação dos
grandes gênios, dos seres criadores e inventivos. É justamente pela distinção entre o
tempo da lentidão e o tempo da pressa que os conceitos de “cultura autêntica” e
“pseudo-cultura”, tão presentes na escrita nietzschiana podem ser estabelecidos.
É preciso elucidarmos que muitas expressões utilizadas por Nietzsche podem
soar estranhas ou se julgadas por algum cunho ideológico levaria a um viés justificador
de concepções extremistas. Sendo um filósofo intempestivo e crítico do seu tempo,
Nietzsche ao falar de cultura, tal qual ele compreende, a cultura autêntica, é aquela
que não está presa a um fim utilitário e pragmático. A cultura não pode estar a serviço
do desenvolvimento de aptidões utilitárias, sejam questões políticas, militares ou
formação profissional, isto inviabilizaria o desenvolvimento da própria cultura na
concepção nietzschiana.
Nietzsche entende por cultura autêntica ou verdadeira cultura aquela que
permite ao homem aceder ao seu próprio ser criador. A cultura, neste sentido, não
pode estar a serviço de bens materiais ou o desenvolvimento de aptidões utilitárias.
Este tipo de cultura exige muitas renúncias, trabalho e restrições a poucas coisas e
autodomínio, pois são habilidades adquiridas lentamente, que “só tem início numa
atmosfera que está acima deste mundo das necessidades, da luta pela existência, da
miséria” (EE. §III, p.103).
Diante das incessantes contradições da cultura, encontra-se o homem
moderno, carente de identidade, de sentido e esvaziado de si. O homem preso ao
julgo de imposições de diferentes sistemas e organizações se prende ao seu próprio
individualismo e isolamento. Na busca por um sentido para a vida o homem anseia
encontrar a si mesmo. Porém, mergulhado em uma concepção racionalista, o homem
da modernidade depositará toda sua crença na ciência como uma entidade que
explicaria o sentido do mundo. Segundo Lima (2012) a ciência prioriza a razão, que
busca a verdade e a exatidão, não deixando espaço para a ilusão, para a intuição e,
especialmente para a criatividade. Porém, como nos mostra Nietzsche, não existe
uma verdade ou uma essência por trás da aparência. O homem moderno ao perceber-
31
se incapaz de produzir uma cultura autêntica, depara-se com o nada, mergulhado no
niilismo19 decadente.
Sendo o niilismo caracterizado pela ausência de valores afirmativos e de
condutas que potencializam a vida, podemos então afirmar que, a modernidade é
caracterizada por uma decadência. Segundo Giacoia (2007) a lógica da decadência
opera-se devido à perda de potência e dos valores esvaziados, pois a pseudocultura
busca adquirir certos privilégios, na acessão dos funcionários, burgueses e no
funcionalismo público. De modo que:
Não é o niilismo a causa da decadência cultural, antes pelo contrário: ele é antes o resultado necessário de um lento, até então insuspeitado, processo de declínio e perda de potência, pois nessa escalada são extraídas as consequências lógicas inexoráveis das pretensões sustentadas com base nesses mesmos valores que se esvaziam (GIACÓIA, 2007, p. 26-27).
Segundo Giacoia (2007), deparamo-nos com uma cultura fragmentada, em
meio à ausência de valores que se sustentem sem coesão e integridade,
caracterizando uma pseudocultura vazia de “amor e pensamento”. Na obra
Schopenhauer como Educador, encontramos a caracterização deste cenário moderno
tão em evidência:
As ciências, praticadas sem medida e abandonadas ao mais cego laissez-faire, se retalham e dissolvem tudo em que se acredita firmemente; as classes cultas e os Estados civilizados são arrastados por uma corrente de dinheiro gigantesca e desprezível. Jamais o mundo foi mais mundano, mais pobre de amor e de bondade. As classes cultas não são mais os faróis ou os asilos em meio a todo esse turbilhão de espírito secular. A cada dia, elas se tornam mais inquietas, mais vazias de amor e pensamento. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, tudo, aí incluídas a arte e a ciência desta época. O homem culto degenerou até se tornar o maior inimigo da cultura, pois ele quer negar com mentiras a doença geral e é um estorvo para os médicos (SE, §3, p.166).
Neste sentido, o homem moderno interessa-se por aquilo que é útil, “tudo gira
em torno das necessidades, da luta pela existência” (EE, §III, p. 103) como, por
19Redução ao nada, aniquilamento.
32
exemplo, um “posto de funcionário ou um ganho material” (EE, §III, p. 104). Afirma
Giacoia (2007), a cultura moderna:
[...] desde seus primórdios, mantém uma íntima relação com as referências de valor atualmente em vias de dissolução. Pois a forma geral da racionalidade lógica provém de uma inspiração congenitamente socrático-platônica, nela predominando o pensamento de tipo teórico, em sua busca incessante de causas, razões e princípios que explicam a essência, existência e os modos de ações dos entes e de seus processos de transformação (GIACOIA, 2007, p.23).
Nietzsche, ao diagnosticar a decadência cultural da Alemanha, procurou na
Grécia arcaica a exemplaridade de uma cultura autêntica. Segundo o filósofo, os
gregos em um momento de sua história sentiram o perigo de perder sua cultura em
fusão com culturas estrangeiras (egípcias, semitas, lídias e babilônicas). Para manter
a autenticidade e a personalidade de sua cultura20, os gregos souberam contornar a
situação e organizar o caos. Nos fala Nietzsche:
Os gregos aprenderam pouco a pouco a organizar o caos, voltando-se para si próprios, conforme o ensinamento délfico, dando ouvidos às suas autênticas necessidades e deixando morrer as suas necessidades artificiais. Foi assim que eles retomaram a posse da sua própria personalidade; não permaneceram durante muito tempo como herdeiros e epígonos oprimidos do Oriente. Eles tiveram mesmo a felicidade, graças à aplicação prática desta máxima, depois de um difícil combate entre eles mesmos, de aumentar e enriquecer o tesouro que tinham herdado com o que se tornaram os precursores exemplares de todos os povos civilizados do futuro (SE, §3, p.176-177).
Desde os primeiros escritos é notório o apreço que Nietzsche manteve aos
gregos principalmente a Grécia pré-socrática ocupando um lugar de destaque em
suas reflexões, que segundo Weber (2003, p. 50) constitui-se referência obrigatória
para a compreensão do seu pensamento. Se houve uma mudança no decorrer do
20Diferentemente, nosso processo cultural, ao contrário de perder-se com a mistura de culturas diversas, criou formas e perspectivas próprias com todas as rupturas e resistências de seu povo diante das diversas contradições culturais, criando uma miscelânea de sincretismos e complexidade.
33
tempo, houve também uma coerência. Pois, até os últimos momentos de vida lúcida,
Nietzsche proclamou-se discípulo do deus Dionísio.
Segundo o filósofo Weber (2003) à volta aos gregos não é característica
exclusiva do pensamento nietzschiano. A cultura grega expressava uma fonte de
inspiração para a criação de novas maneiras de pensar o homem, a cultura, a vida
corporal e espiritual, os tornando únicos e exemplares na criação da arte, do
pensamento e, principalmente da vida. Voltar-se aos gregos assumia o sentido de
volta à origem na qual “a vida não estava medida pela visão científica utilitária, sendo
estes alguns dos pressupostos observados nos empreendimentos literários, artísticos
e até mesmo filosóficos na Alemanha em fins do século XVIII e no século XIX”
(WEBER, 2003 p. 50). Nietzsche admitindo a necessidade de uma renovação na
cultura de sua época, buscando encontrar uma “verdadeira cultura”, admitirá a Grécia
como “cultura exemplar”.
2.3 FORÇAS ATUANTES: APOLO E DIONÍSO
Na obra Nascimento da tragédia (1873), Nietzsche demonstra que o
desenvolvimento da tragédia ática está relacionado ao resultado de um duplo caráter:
o Apolíneo e o Dionisíaco, duas forças que ora se abraçam, ora se chocam. O deus
Apolo, equivale à aparência, a fantasia, o sonho, a arte plástica e ao mesmo tempo é
o deus do equilíbrio, moderador, ou seja, a força racionalizante que estabelece limites
às emoções mais selvagens. Apolo expressaria também o princípio de individuação,
isto é, o homem individual resgatado dos tecidos da ilusão, a consciência de si que se
reflete no indivíduo, no Estado e o no patriotismo. Já Dionísio, equivale à arte sem
forma, à música, à embriaguez, fazendo cessar todas as limitações e as
individuações, destrói a ilusão e manifestam-se o desmedido. Dionísio representa a
sensibilidade e as forças vitais do espírito humano promovendo a reconciliação do
homem com sua origem e sua natureza.
Tendo uma sensibilidade para o sofrimento e para a dor, o grego poderia
apresentar um perigo para a vida: o pessimismo ocasionado pela percepção da
34
dolorosa violência da existência. Nietzsche ressalta que os deuses olímpicos não
foram criados no sentido de um “escapamento do mundo” ou fuga da realidade. Mas,
como uma expressão de religião que respira vida, imanente e que diviniza o existente,
tornando tudo à sua volta belo (embelezando), a saber, o sofrimento, as perdas, a
morte, as lutas, sendo a vida possibilitada pelas imagens artísticas da criação
humana. Neste sentido, pergunta Nietzsche: “de que outra maneira poderia aquele
povo tão suscetível ao sensitivo, tão impetuoso no desejo, tão singularmente apto ao
sofrimento, suportar a existência, se esta, banhada de uma glória mais alta, não lhe
fosse mostrada em suas divindades? (NT, §3, p. 36- 37).” Segundo Roberto Machado
(2002) os gregos encontravam nos mitos e nas artes e expressados nos deuses as
forças necessárias para criar um tipo de ordem, não de forma racionalizada, mas uma
ordenação estética que se expressava na sua cultura,
[...] todas as forças do espírito e do corpo se manifestavam nos deuses olímpicos de modo esplendoroso e ilimitado. A primeira grande ordem que os gregos criaram e seguiram, portanto, fundada na mitologia e na arte, não era uma ordem racional, mas estética. A beleza possibilita um tipo de ordenação, de medida, e foi por meio desta medida que os gregos ordenaram sua cultura (MACHADO, 2002, p. 17).
Apolo e Dionísio para Nietzsche são considerados como impulsos artísticos
advindos da natureza, ambos são reconciliados pelos povos helenos. Como tal junção
ocorreu? Segundo Nietzsche, a primeira e mais simples união do apolíneo e o
dionisíaco apresentam-se na poesia lírica e na canção popular: a união entre a
Palavra e a Música. Segundo Rosa Dias (1994), Nietzsche “identifica nessas
manifestações artísticas o mesmo mecanismo que dá origem à tragédia: a música,
gerando as imagens e as palavras, e a linguagem, procurando imitar a música” (DIAS,
1994, p.13). Foi a partir de sua própria existência que os gregos puderam exaltar a
vida, com o mundo das divindades, os infortúnios, o sofrimento e toda a realidade
eram mostrados como “espelho transfigurador”, ou seja, “os deuses legitimam a vida
humana pelo fato deles próprios a viverem” (NT, §3, p. 37).
A música para Nietzsche assume um papel fundamental na tragédia ática. A
tragédia seria originária do espírito da música, configurada no coro trágico “essa
tradição nos diz com inteira nitidez que a tragédia surgiu do coro trágico e que,
35
originariamente, ela era só coro e nada mais que coro” (NT, §7, p. 52). O elemento
da união apolíneo-dionisíaco é encontrado na tragédia, iniciando com o coro entoado
pelo grupo de adoradores de Dionísio e, pouco a pouco foi sendo inserido à
representação dramática. Segundo Weber:
A irrupção do trágico no coro dionisíaco – forma primitiva da tragédia – foi posteriormente incorporado à representação dramática, por meio do qual, Ésquilo e Sófocles criaram a arte da tragédia na qual o espírito da música, engendrando o drama, os sofrimentos de Dionísio, eram representados na relação ondulante entre a figura de um herói mascarado – máscara de Dionísio – e o coro – manifestação primitiva de Dionísio. Aos olhos de Nietzsche, a tragédia grega na representação esquiliana e sofocliana é a forma artística por excelência pois foi construída sobre a intuição do exato limite entre música e drama, sendo que a ‘serenidade grega’ repousando sobre um fundo aterrador permite que o terror seja representado como belo, posto que essência do mundo, signo da vida (WEBER, 2003, p. 25-26).
A relação da música na representação da tragédia é caracterizada, por
Nietzsche, como a afirmação da existência. O filósofo exalta a cultura helênica por
compreender que encontrara um povo que soube suportar os perigos e as tensões de
existir sem sucumbir ou desvanecer sendo fortes exatamente porque não renegou a
dor e o sofrimento. Pois os gregos, para Nietzsche, possuíam a sabedoria mítica e a
arte trágica que lhes possibilitava viver apesar do sofrimento e da dor. De acordo com
Rosa Dias (1994), a tragédia para Nietzsche:
não é apenas uma nova forma de arte ou um novo capítulo na história da arte; ela tem função de transformar o sentimento de desgosto causado pelo horror e absurdo da existência, numa força capaz de tornar a vida possível e digna de ser vivida. Toda verdadeira tragédia traz um ‘consolo metafísico’: ‘a vida no fundo das coisas, a despeito de toda mudança dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e alegre’ (DIAS, 1994, p. 59).
Diante disso, a Grécia para Nietzsche, segundo Lima (2011) não era apenas
como modelo estético a ser imitado ou até mesmo contemplado, tão comum no
ocidente do século XIX, considerava os helenos pela sua sensibilidade com a vida.
Segundo Nietzsche, a música “difere de todas as outras artes pelo fato de não ser
36
reflexo do fenômeno, porém reflexo imediato da própria vontade” (NT, §19, p. 99).
Para Nietzsche, a música seria a linguagem universal, pois todos poderiam
compreendê-la imediatamente. Percebe-se a influência de Schopenhauer fortemente
nesta fase do pensamento nietzschiano. A música, então, deveria ser compreendida
como uma arte da qual se poderia exprimir o ser em si mesmo. Por que a música teria
essa função? Na concepção nietzschiana, a música é uma arte diferente das demais,
isto devido a palavra estar sempre subordinada à música, esta última manteria uma
relação anterior à palavra destacando assim sua supremacia.
Na música do compositor Wagner21, Nietzsche percebia a mesma
representação trágica e tensional apresentada na tragédia grega. Segundo o filósofo,
nos dramas wagnerianos havia uma relação entre música e a “atividade literária”.
Conforme observa Dias:
Ainda que posteriormente Nietzsche venha a reformular sua opinião sobre Wagner, na época em que elogia o compositor, ele o faz por ter percebido em sua obra a possibilidade de a música exercer de novo todo o seu poder de ‘justificativa estética da existência’, tal como proporcionava a antiga tragédia ática, e por isso mesmo anunciar o renascimento de uma cultura trágica (DIAS, 1994, p. 95).
Nietzsche no Nascimento da tragédia inscreve uma concepção trágica de
interpretar o mundo. O trágico para Nietzsche é o conflito dos deuses Apolo e
Dionísio. O filósofo desejava resgatar a sabedoria trágica de mundo e isto nos coloca
em uma postura de saber viver diante das contradições dos acontecimentos. Em
Nietzsche, a realidade não opera por dicotomias, por expressar contradições como,
por exemplo: ascensão/decadência, luz/escuridão, vida/morte, dentro de uma mesma
vida. Somente a arte possibilitaria decifrar esse mundo.
Entretanto, há um momento em o saber trágico na Grécia antiga desaparece.
Nietzsche entende que o desaparecimento da sabedoria trágica ocorre inicialmente
com Eurípedes22. É a introdução do prólogo, segundo Nietzsche, a partir de um
resumo de tudo que seria apresentado ao ser colocado no início da peça teatral,
21 Richard Wagner foi maestro, compositor, diretor de teatro e ensaísta alemão do início do século XX. 22Eurípedes foi um poeta trágico grego, do século V a.C.
37
havendo assim uma antecipação de tudo que viria ocorrer como acontecimento.
Neste sentido, percebe-se que o mito, a ilusão, as aparências acabam e, em seu lugar,
é colocado o conhecimento racional teórico, a realidade e a “verdade”. Segundo Lima
(2011, p. 44) “o nascimento da tragédia com sua característica poética, para além de
fazer uma análise do nascimento e morte da tragédia ática, pretende problematizar a
ciência, o conhecimento racional que se inicia com Sócrates e ganha força no mundo
moderno”.
O que possibilitou a criação da tragédia ática foi à sabedoria mítica, a ilusão e
a aparência. Nestas peças teatrais eram encenados temas do cotidiano que todos os
cidadãos atenienses discutiam em praça pública. Nietzsche percebe com Eurípedes
e Sócrates23 que a tragédia passar a ser pensada e calculada racionalmente seguindo
padrões estabelecidos pela vida cotidiana. “[...] Eurípides foi, em certo sentido, apenas
máscara: a divindade que falava por sua boca, não era Dionísio, tampouco Apolo,
porém um demônio de recentíssimo nascimento, chamado SÓCRATES” (NT, §12 p.
79). Com Eurípedes os espectadores são levados para a cena introjetando em si “a
máscara fiel da realidade”:
no essencial, o espectador via e ouvia agora o seu duplo no palco euripidiano e alegrava-se com o fato de que soubesse falar tão bem. Mas o caso não ficou somente nessa alegria: cada pessoa por si só aprendeu a exprimir-se com Eurípides. [...] o povo aprender a observar, a atuar, tirar consequências segundo as regras da arte e com as mais matreiras sofisticações (NT, §11, p. 74).
É notório que o conhecimento da arte se dissipa surgindo o conhecimento
ligado à ciência, a tudo que é inteligível e, para Nietzsche, é essa concepção que se
manifesta na cultura moderna, cultura exclusivamente preocupada em trabalhar a
formação de homens teóricos, cultos e para a ciência:
Todo o nosso mundo moderno está preso na rede da cultura alexandrina e reconhece como ideal o homem teórico, equiparado com as mais altas forças cognitivas, que trabalha a serviço da ciência, cujo protótipo e tronco ancestral é Sócrates. Todos os nossos meios educativos têm originariamente esse ideal em vista: qualquer outra
23 Sócrates foi um filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga.
38
existência precisa lutar penosamente para pôr-se à sua altura, como existência permitida e não como existência proposta (NT, §17, p.108-109).
Nietzsche pretende mostrar, com O Nascimento da Tragédia, que a arte, a
intuição, são modos de conhecer a realidade. Mas, qual teria sido o problema de
Sócrates? Segundo Nietzsche o problema de Sócrates foi sobretudo, dar prioridade
unicamente à razão como via segura de conhecimento da realidade. Segundo Lima
(2011) para Nietzsche é necessário a unicidade dos instintos tal como existia na
Grécia antiga, na manifestação da “vontade helênica”: “Em todos os impulsos gregos
se mostra uma unidade urgente: a chamamos a vontade helênica” (LIMA apud:
NIETZSCHE,1873, p. 19 [41]).
Nietzsche almejava na arte seus fins elevados, na manutenção das ilusões, de
uma cultura da magia dionisíaca que revitalizasse os mitos pelo espírito da música
fazendo ressurgir a cultura e a criação estética. A arte como magia difere da função
apenas de divertimento do humano em seus períodos de tédio. É os fins elevados da
arte que almeja o filósofo:
Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem [...] Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial (NT, §2, p. 31).
A sabedoria dionisíaca propiciará ao homem a possibilidade de reconciliação
com a natureza, à qual não há dissociação entre cultura e vida. É o estado de
encantamento e unicidade e exaltação da vida que dará significado a cultura. Neste
sentido, a cultura em Nietzsche é compreendida como criação e o homem não é
simplesmente espectador: ele faz parte da obra de arte, “o homem não é mais artista,
tornou-se obra de arte” (NT, §2, p. 31).
39
2.4 A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA
A educação e a cultura em Nietzsche são vistas como inseparáveis e para
existir cultura é preciso um projeto educativo, pois não haverá educação sem uma
cultura que a sustente. Como vimos no tópico 3.1, a consequente vulgarização do
ensino tinha por objetivo formar homens úteis e rentáveis, e não personalidades
harmoniosamente desenvolvidas, inventivas e amadurecidas. A concepção
nietzschiana de educação implica elementos opostos aos da educação científico-
burocrática. A respeito dessa decadência pedagógica que chegara a escola, assevera
Nietzsche:
E, no entanto, em lugar nenhum se chega à sinceridade total; a triste causa disso é a pobreza de espírito pedagógico de nossa época; eis que estão ausentes justamente os talentos realmente inventivos, eis que faltam os homens práticos, quer dizer, aqueles que têm ideias boas e novas e que sabem que a verdadeira genialidade e a prática correta devem necessariamente encontrar-se no mesmo indivíduo: embora os práticos prosaicos faltem justamente as ideias e, por esta razão, também a prática correta (EE, §II, p. 79).
No texto das conferências sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de
ensino, Nietzsche apresenta algumas reflexões sobre a educação ministrada no
gymnasium,24 nas escolas técnicas e nas universidades. Como explica Sobrinho
(2009, p. 109) “há nestas conferências apontamentos de métodos, conteúdos,
objetivos e as formas de educação dos jovens bem como as relações didáticas entre
professor e aluno”. Essas críticas evidenciam a preocupação de Nietzsche diante do
enfraquecimento da cultura alemã, devido ao processo de fragmentação, e no qual a
cultura não pode ser concebida como algo dissociado da natureza, já que é por ela
que a cultura é determinada. Porém, a educação nestes estabelecimentos de ensino
dissocia as experiências vivas de cada estudante em prol de um conhecimento
apenas teórico, e a este respeito nos diz Rosa Dias:
24Equivalente em nosso currículo à Educação Básica equivale hoje em três etapas da organização do nosso sistema brasileiro de educação: Infantil, Fundamental e Médio.
40
Todo sistema educacional é concebido como se o jovem pudesse descobrir sua vida nas técnicas passadas. Como se a vida não fosse um ofício que é preciso aprender a fundo. Quem quiser pulverizar esse tipo de educação deveria, segundo Nietzsche, ser o porta-voz da juventude, iluminá-la com uma nova concepção de educação e cultura (DIAS, 1993, p. 64).
Assim, a modernidade apresenta-se para Nietzsche a mediocridade e barbárie,
e no âmbito da educação promove um estudante destituído de uma reflexão, por
exemplo as questões filosóficas ligadas ao sentido da existência, porém o que se vê
é um sentimento de conformismo e adequação. O Saber teórico acumulado em
excesso deixa de ser atuante como uma “força transformadora” no homem. O que
está em pauta para este tipo de formação que busca ajustar os indivíduos às
estruturas existentes, é a formação de um homem erudito: o “filisteu da cultura”. Se
estabelece assim, uma ruptura entre vida e pensamento, corpo e inteligência.
Neste sentido nos diz Rosa Dias (1993):
Nietzsche despreza o sistema educacional que tem sob seus olhos. Esse sistema visa promover o “homem teórico”, que domina a vida pelo intelecto, separa vida e pensamento, corpo e inteligência. Em lugar de procurar o conhecimento a serviço de uma melhor forma de vida, coloca-o em função de si próprio, de criar mais saber, independentemente do que isso possa significar para a vida (DIAS, 1993, p. 32).
Segundo Nietzsche, o sistema educacional em prática nas instituições da
Alemanha estimula uma erudição livresca destituída de qualquer atenção para uma
formação humanística, sua função é produzir estudantes especializados em
profissões para uma vida de sobrevivência. A intromissão das ciências na educação,
segundo Nietzsche, acarretaria na alienação e no afunilamento do estudante em
relações a questões filosóficas ou estéticas25. A figura do erudito passa a ser a moda
do momento, em seu interior há o “acúmulo de saber” e uma pressa em chegar a todo
custo às certezas e a verdade. O excesso de história, a cultura livresca (sem vida e
25Cf. CASTRO, 2014, p. 129.
41
superficial), a separação do corpo e do espírito, segundo Rosa Dias (1993), levam
Nietzsche a afirmar que a Alemanha não tem exatamente uma cultura e se de fato
existe, ela é artificial e não a expressão direta da vida: um suplemento, um excedente.
Com seu olhar singular para as questões da educação, Nietzsche busca uma
concepção de educação pautada nas experiências vivas de cada indivíduo, pois, a
partir das leituras das tragédias grega a vida é percebida como propulsora de
diferentes formas de pensar e sentir. Seria necessário, segundo Nietzsche, educar-se
a si mesmo e contra si mesmo26. Formar novos hábitos e uma nova natureza e assim
se desfazer novamente de nossa primeira natureza em um processo de metamorfose
constante em direção a “tornando-se o que se é”.
2.4.1 A educação como prática de lidar o vivo como vivo
Ao propor uma restauração na cultura alemã27, Nietzsche examina as
instituições de ensino responsáveis por administrar as diferentes etapas de formação
dos jovens. O ginásio, a escola técnica e a universidade demonstram a decadência
de uma cultura apressada e uma formação rápida destituída de concisão e rigor. Neste
sentido, Nietzsche inicia suas críticas ao ginásio, pois, é neste ambiente que irá refletir
as fases posteriores de aprendizado de uma renovação cultural, a qual era a sua
preocupação na época sob forte influência das ideias de Schopenhauer.
A língua é destacada como o primeiro elemento propulsor de uma autêntica
cultura, pois possibilita o aluno a exprimir seu pensamento de diferentes formas,
aprimorando constantemente. Segundo Nietzsche, a tarefa dos estabelecimentos de
ensino de alta qualidade é a de levar a língua a sério. Por isso, a crítica de Nietzsche
à defasagem da linguagem diante do movimento jornalístico com “pretenso estilo
elegante”, ou seja, umas escritas na quais todos escrevem e falam mal:
26Cf.SE, §2, p. 81. 27Observemos que no Ecce Homo, Nietzsche se reportando a terceira e no texto da quarta Extemporâneas, dirá que elas indicariam “um mais elevado conceito de cultura, para a restauração do conceito de “cultura”, duas imagens do severo amor de si, cultivo de si, tipos extemporâneos par excellence (...)” (§ 1, p. 64)
42
Se vocês não chegarem a experimentar um desgosto físico por certas palavras e jargões, aos quais os jornalistas nos habituaram, então, devem renunciar à aspiração da cultura: pois é aqui, bem perto de vocês, a cada momento em que falam e escrevem, que têm uma pedra de toque para compreender a dificuldade, a imensidão da tarefa do homem culto e a improbabilidade que deve haver para que muitos de vocês alcancem uma cultura autêntica (EE. §II, p. 81).
É preciso, para a formação do homem cultivado, o domínio de sua língua
através do hábito e da obediência, pois para Nietzsche a educação começa pelo
“hábito linguístico”. É a partir do hábito linguístico que o professor deveria chamar a
atenção dos seus alunos para a inadequação vocabular de determinadas expressões
e palavras dos “lugares comuns” da imprensa jornalística. Seria tarefa de o mestre
levar aos seus estudantes a “leitura dos clássicos linha por linha” e estimular “seus
alunos a exprimir o mesmo pensamento várias vezes a fim de melhorar a cada
momento” (EE, §II, p. 82).
O que está em pauta é a crítica à instrução puramente prática com a qual os
professores conduziam o ensino da língua materna como um idioma morto. O hábito,
ao qual Nietzsche se refere, não é domesticação e acumulação de saber. O “hábito
linguístico” seria o requisito para uma “autêntica cultura" e a partir dela, os jovens
poderiam continuar a construir uma língua artística, a partir dos trabalhos daqueles
que procederam, tornando-se assim, senhores de sua língua. Os educadores
deveriam habituar seus estudantes a uma “severa ‘educação de si’ no domínio da
língua”.
Trata-se de considerar a “língua um organismo vivo”, complexo. Por isso, a
linguagem deve ser vivida e não apenas colocada ao âmbito do falar, ou seja, a
expressar apenas palavras que relacionam a um determinado fato. No entanto, o que
se percebe, segundo Nietzsche, é que o estudante do ginásio é levado por seus
mestres ao acúmulo da erudição puramente histórica, pois, os mestres tratam o corpo
vivo da língua como algo morto. É preciso extrapolar a concepção burocrático-
cientificista do ensino, por exemplo, superando as noções de estudar a língua apenas
como objeto sem vida:
43
(...) mas a cultura começa justamente quando se começa a tratar o vivo como vivo, e a tarefa do mestre da cultura começa justamente pela repressão de um ‘interesse histórico’ que em todo lugar procura penetrar, lá onde é preciso antes de tudo agir adequadamente, e não conhecer. Ora, a nossa língua materna é um domínio no qual o aluno deve aprender a operar convenientemente: e é somente deste ponto de vista prático que o ensino alemão é necessário nos nossos estabelecimentos de ensino (EE, §II, p. 83).
É imprescindível atentarmos para o fato de Nietzsche vivenciar grandes
transformações em seu país, particularmente relacionadas às questões políticas e
culturais do contexto histórico de sua época e que influenciaram as suas conferências
e o modelo de educação ao qual critica.
Até o final do século XVIII a cultura alemã estava ligada aos ideais neo-
humanista28. A concepção neo-humanista começa a se modificar a partir do processo
tardio de uma Alemanha particularista e patriarcalista à Alemanha capitalista e
industrial. Segundo Marton (2006), se no final do século XVIII, a cultura manifestava
um ideal de criação desligada de questões utilitaristas, a partir de 1870 passa a
vincular-se às exigências e designíos da moda que lhes são convenientes. Os
institutos profissionais e as escolas técnicas se proliferam por todo o país e as
universidades passam a oferecer cursos especializados:
Agora, ela está atrelada às exigências do momento, aos caprichos da moda, aos ditames da opinião pública. Antes, o ensino deveria ser puro, desvinculado de objetivos práticos. Agora, com a proliferação dos institutos profissionais e escolas técnicas e com o desfalecimento das universidades em cursos especializados, ele converte-se em ensino de classe (MARTON, 2006, p. 18).
Nietzsche ao criticar a cultura de sua época entende que há um antagonismo
existente na modernidade, sendo o Estado e a Cultura adversários que vivem se
beneficiando um a expensas do outro. Em detrimento de uma formação humanística,
há uma instrução alicerçada pelo excesso histórico e científico. É interessante
28Segundo a autora Marton (Cf. 2006, p. 18.), os neo-humanistas consideravam a cultura e a civilização gregas a realização mais acabada e perfeita do gênero humano; Pretendendo resgatar antigos ideais, eles identificam de alguma forma, o espírito grego e o alemão.
44
destacarmos que no arcabouço das teses e temas gerais que perpassam as críticas
nietzschianas, fica evidente segundo Weber (2009);
1º. criação de um Sistema Nacional de Educação, caracterizado pela
padronização e destruição das diferenças regionais; 2º interferência excessiva do
Estado nos assuntos da cultura; 3º. Contraposição entre a cultura científica e a cultura
clássica; 4º a filosofia universitária como destruição da verdadeira filosofia; 5º
contradição entre os objetivos das instituições para a cultura e das instituições para a
sobrevivência; 6º centralidade do ginásio para o desenvolvimento da cultura; 7º
obediência como princípio fundamental do ginásio; 8º importância do cultivo da língua
pátria; 9º a importância das escolas técnicas; 10º crítica da liberdade acadêmica29.
Assim, é preciso questionar: como se relacionariam a cultura, educação e o Estado
neste cenário identificado por Nietzsche? A este respeito, é preciso entender duas
tendências que estão em vigor na Alemanha do século XVIII: a ampliação e a redução
da cultura que, a nosso ver, repercute no cenário brasileiro.
2.4.2 Ampliação e redução: máxima da cultura
Nas conferências sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino,
Nietzsche aponta ao público algumas tendências que desgastam a educação e
estendem seus efeitos negativos à cultura. A tendência à extensão, à ampliação da
cultura, e a tendência à redução, o enfraquecimento da própria cultura.
A primeira tendência, a ampliação máxima, busca estender o direito da cultura
e acessibilidade a todos, para isto, seria necessário estar vinculada à economia
política que, segundo Nietzsche, ligava-se aos interesses do mercado. Atrelada ao
lucro e à utilidade, a tendência à ampliação buscaria promover um indivíduo da
utilidade e do acúmulo de conhecimento, estando assim permeado pela produção em
larga escala, segundo as necessidades vigentes. A finalidade desta tendência é a
produção em série, tanto de bens como de homens correntes. O lucro e felicidade
29 Ver: SOBRINHO. 2009.
45
aqui se equivalem para este homem que tem a vida como um valor a ser produzido
em fábrica. Com tom irônico, acerca da tarefa que exerce a concepção de ampliação
da cultura, Nietzsche nos diz:
A verdadeira tarefa da cultura seria criar homens tão ‘correntes’ quanto possível, um pouco no sentido em que se fala de uma ‘moeda corrente’. Quanto mais houvesse homens correntes, mais um povo seria feliz; e o propósito das instituições de ensino contemporâneas só poderia ser justamente o de fazer progredir cada um até onde sua natureza o conclama a se tornar ‘corrente’, formar os indivíduos de tal modo que, do seu nível de conhecimento e de saber, ele possa extrair a maior quantidade possível de felicidade e lucro (EE, §I, p. 73).
Percebe-se que a cultura, ligada à tendência de ampliação e aos interesses da
economia política, descaracterizava o indivíduo singular e diferente. Segundo esta
concepção é preciso uma cultura que tenha como fim o lucro baseado em uma “cultura
rápida”. Seu fundamento está vinculado ao interesse do Estado em investir na
formação de funcionários e de exércitos para melhor se capacitar na luta contra outros
Estados.
A segunda tendência que desgasta a cultura é a que possui perspectiva da
redução. Nesta tendência, os indivíduos deveriam trabalhar em consonância com a
defesa dos interesses ligados ao Estado, sendo servidores pautados em uma
especialização e formação rápida, deixariam de lado a “fidelidade nas pequenas
coisas”, no trato e na disciplina com as questões e tarefas que envolvam a cultura e
seu desenvolvimento. Esta tendência prega a divisão do trabalho nas ciências e a
especialização do erudito em determinada área de conhecimento:
Assim, um erudito, exclusivamente especializado, se parece com um operário de fábrica que, durante toda sua vida, não faz senão fabricar certo parafuso ou certo cabo para uma ferramenta ou máquina determinadas, tarefa na qual ele atinge, é preciso dizer, uma incrível virtuosidade. Na Alemanha, onde se pretende recobrir os fatos mais dolorosos com um glorioso manto de pensamento, se admira como sendo fenômeno moral esta acanhada especialização dos nossos eruditos e seu distanciamento cada vez maior da verdadeira cultura: a ‘fidelidade nas pequenas coisas’, a ‘fidelidade do carroceiro’, se torna um tema de ostentação, a falta de cultura fora dos limites da
46
disciplina é apresentada como sinal de uma nobre sobriedade (EE, § I, p. 76).
É importante entendermos que o erudito é um intelectual movido por um
paradoxo: de um lado possui o instinto de conhecimento e do outro uma imensa
pressa do conhecimento. Também é destituído de uma visão abrangente e realista no
que diz respeito à vida e ao mundo. Seu campo de visão é estreito, são produtivos no
sentido quantitativo e o excesso de conhecimento lhes pesa sobre o ombro, o tédio
lhes é nocivo e assim, se “arrastam no estado de espírito morno ou gélido no qual
realizam suas tarefas diárias” (SE, §6, p. 229). Este homem é, para Nietzsche,
explorado em proveito da ciência como uma espécie de vampiro, extrai de tudo e de
nada absorve com profundidade30. Sendo a ciência e o homem teórico participante da
divisão do trabalho, ambos visam à redução e o aniquilamento da própria cultura.
Ao lado das duas tendências anteriormente expostas está a cultura jornalística.
Para Nietzsche, é no jornalismo que a ampliação e redução da cultura se confluem
para a produção da “pseudocultura”. O jornalista, “o senhor do momento”, substituiria
os verdadeiros mestres da cultura, pois é no jornal que os chamados eruditos e
especialistas divulgariam seus pretensos saberes para o público em uma pressa e
simplista redução de conhecimento. Essa pressa que tudo quer conhecer gera uma
“compressão ofegante do instante”, precipitação que acomete o jornalista se tornando
em uma espécie de “escravo de três “M”: O momento presente, as maneiras de pensar
e os modos de agir” (SE, §6, p. 221).
Entendemos que Nietzsche, como aponta Dias (1993), não é contrário à
proliferação na Alemanha de escolas com ensino técnico. Nietzsche não descarta a
possibilidade de criação de escolas técnicas, às quais são destinadas a uma
educação para a sobrevivência. É nestes ambientes que os estudantes aprendem a
dominar a linguagem para a comunicação, a calcular corretamente e adquirem
conhecimentos das ciências naturais. Neste sentido, estas escolas cumpririam seus
objetivos de formar negociantes, médicos, especialistas e funcionários oficiais. Porém,
30Segundo Rosa Maria Dias, as concepções de Nietzsche acerca da ciência alteram-se ao longo de sua obra. Entre os períodos de 1870 a 1876, a ciência é vista como saber que destrói as ilusões em proveito da sobrevivência dos homens.
47
o ginásio e a universidade em suas diretrizes continuariam a acreditar que seriam
lugares onde a cultura ainda deve ser alimentada. Para Nietzsche, estas duas
instituições, em seus objetivos, não se distinguem das escolas profissionalizantes.
Segundo Dias (1993):
O que Nietzsche censura, ao afirmar que a cultura é “serva do ganha-pão e da necessidade”, é o fato de o gymnasium e a universidade se terem voltado para a profissionalização e, apesar disso, continuarem a acreditar que são lugares destinados a cultura, quando na verdade não se distinguem muito da escola técnica em seus objetivos (DIAS, 1993, p. 99).
Para Nietzsche, não há existência de cultura sem o desligamento do “mundo
das necessidades”. O homem ligado a este mundo da luta individual pela
sobrevivência não poderá dispor de tempo suficiente para atingir uma “verdadeira
cultura”. O ginásio deixara de alimentar a “verdadeira cultura”, a qual busca a nutrição
e o engendramento do gênio31. O gênio é uma natureza solitária no mundo,
contemplativa e de criações eternas, a exemplo de Beethoven, Schiller, Goethe,
Schopenhauer e tantos outros. Conforme explica Dias (1993), “a extensão da alma, a
força da imaginação, a atividade do espírito, a abundância e a irregularidade das
emoções tudo isso compõem o caráter do gênio” 32.
O nascimento do gênio não depende da cultura, pois ele é uma dádiva da
própria natureza, porém a sua nutrição e amadurecimento se dão em meio ao seio
materno da cultura de um povo. Neste sentido o ginásio, para Nietzsche, deve ser
fecundo ao promover a “verdadeira cultura”, já que a erudição renega este princípio:
Nossos ginásios, predestinados por sua natureza a realizar este sublime desígnio, ou se transformam em lugares onde se cultiva uma cultura duvidosa, que rechaça com ódio profundo a verdadeira cultura, ou seja, a cultura aristocrática, que se funda numa sábia seleção dos espíritos, ou antes, cultivam afincadamente uma erudição microscópica e estéril, em todo caso distante da cultura e cujo mérito se deva talvez justamente a que esta fecha os olhos e os ouvidos às seduções desta cultura incontestável (DIAS, 1993, p. 81).
31Nosso propósito não é traçar uma possível teoria do gênio em Nietzsche, mas apenas explicitar o que é interessante para a compreensão da educação e da cultura. 32Cf. DIAS. 1993, p. 81.
48
A natureza da autêntica cultura parte do princípio da disciplina rigorosa tendo
como exemplo os grandes mestres. Nietzsche compreende a educação por meio de
uma vida solitária e de uma educação individual, ou seja, uma educação da solidão e
do destaque. Esta educação requer a autosuperação da grande individualidade a
partir da autocrítica. Confrontando-se com um tipo de homem e de sociedade da
modernidade, a educação em seu objetivo deve criticar a sociedade da padronização
e da massa que renega o posicionamento singular no mundo, os “exemplares raros”.
É preciso lentidão no pensar, experiência interior com o pensamento solitário e criador
exigindo um tempo de maturação.
Em tempos atuais vivemos sobre a complexidade de uma rede de necessidade
básicas de interação com o mundo, família, amigos, vizinhos, universidade, trabalho.
Um ambiente que se apresenta cada vez mais hostil ao pensamento solitário e mais
favorável ao pensamento rápido, relacionado a uma necessidade de exposição de
opiniões sobre tudo o que acontece no mundo, em nossa comunidade, com o nosso
vizinho. Na maioria das vezes, sem aprofundamentos necessários que auxiliem o
pensamento a criar condições de apreensões significativas e contextualizadas dos
eventos, fatos, da realidade em si, nos parece incompatível às noções de cultura e
educação defendidas por Nietzsche. Nas palavras do filósofo “enfim, uma
necessidade autêntica de cultura, conduzida por uma educação adequada e tornada
um hábito: cultura que é antes de qualquer coisa, como já disse uma obediência e
uma habituação à disciplina que caracteriza o gênio” (SE, §4, p. 137).
Contra essa massificação cultural, Nietzsche contrapõe uma cultura canalizada
para o surgimento de grandes gênios que deixam sua marca na história para a
posteridade e possam servir de variável que ajuda a avaliar todo o esplendor e
grandiosidade de uma época.
O Estado percebera que ao promover e “estimular” a cultura, esta por sua vez,
seria útil às suas finalidades. O Estado moderno da Prússia passou a ser a “estrela
guia da cultura e da educação” visando assim, transformar o ginásio na criação de
“escolas de gladiadores da elegante barbárie, com o nome de ‘cultura alemã atual’33”
33Até o ano de 1934 a Prússia foi considerada Estado, porém com o advento nazista foi abolido e seu termo passou a ser utilizado para designar contextos históricos, geográficos e culturais da Alemanha.
49
(SE, §2, p. 112). O Estado Moderno não possibilita o nascimento dos espíritos nobres,
temendo a natureza aristocrática, ele amplia em número excessivo os
estabelecimentos de cultura e de formação rápida para elevação de seus objetivos
econômicos e para obtenção de cargos. Assim, indaga Nietzsche:
Por que o Estado tem necessidade deste número excessivo de estabelecimentos de cultura, de mestres da cultura? Por que esta formação do povo e esta educação popular tão amplamente difundida? (...) porque se quer incentivar os grandes indivíduos a buscar um exílio voluntário, propagando e alimentando no grande número uma pretensão à cultura, porque se busca escapar da elevação dura e rigorosa pelos grandes mestres, persuadindo a massa de que ela própria encontrará o caminho guiado pela estrela do Estado. Aqui, temos um fenômeno novo! O Estado como estrela-guia da cultura [grifo nosso] (SE, §4, p. 117).
O jovem Nietzsche percebera que era incompreensível a posição que o Estado
moderno ocupava em relação à cultura se portando de modo utilitarista. O papel que
ocupa o Estado Moderno frente à cultura, leva Nietzsche a recorrer aos gregos antigos
e como estes, suas criações que nutria pelo Estado um sentimento de relação mútua.
O Estado, na Grécia antiga, portava-se como protetor e assistente que possibilitava o
desenvolvimento e a proteção da cultura, sendo o “companheiro de viagem”. Na
compreensão nietzschiana, o Estado Grego se manteve sempre distante das
considerações utilitaristas:
No mais profundo de seu pensamento, os Gregos, por esta razão, tinham pelo Estado este sentimento poderoso de admiração e de reconhecimento, quase escandaloso para o homem moderno, porque eles reconheciam que, sem esta instituição de assistência e proteção, não se poderia desenvolver um só germe de cultura, e que sua cultura absolutamente inimitável e para sempre única não teria justamente alcançado essa exuberância, senão sob a guarda atenta e prevenida de suas instituições políticas de assistência e de proteção (SE, §4, p. 116).
Se a cultura alemã de forma geral está em decadência, tanto no âmbito da
música, da filosofia e instituições de ensino, isto se deve, segundo Nietzsche, ao
vínculo entre a cultura e o Estado. No intuito de criar pessoas cada vez mais aptas ao
50
acúmulo excessivo e ao desejo de ganhar dinheiro, foi dada ênfase à
profissionalização, a uma formação massificada que uniformiza todos a partir de
características comuns e medíocres.
2.4.3 A cultura utilitária dos egoístas
Há alguns obstáculos promovidos pela cultura utilitarista que impedem o
nascimento e o desenvolvimento do gênio. Este impedimento, segundo Nietzsche,
ocorre por interferência de quatro egoísmos: o dos negociantes, o do Estado, o dos
camufladores e dissimuladores e o da ciência. São estes egoísmos que fazem da
cultura uma escrava, pois as potências que mais trabalham para a cultura “alimentam
precisamente os pensamentos dissimulados e não se conduzem para ela segundo
uma ótica pura e desinteressada” (SE, §5, p. 216).
O primeiro egoísmo, os dos negociantes, percebe o conhecimento e a cultura
como possibilidade de geração de necessidades. Quanto mais favorecimento e
investimento estes segmentos obter, mais produção e lucro serão gerados. Cultura
aqui equivale à inteligência, pois os indivíduos em suas necessidades e na busca das
suas satisfações se tornariam atualizados e dispostos a ganhar dinheiro com maior
facilidade. O tripé que norteia este tipo de egoísmo é a produção, o lucro e a felicidade.
No âmbito educacional, os adeptos desta concepção buscam:
[...] uma educação rápida para se tornar logo um ser que ganha dinheiro, mas uma educação muito estranhada, no entanto, para ganhar muito dinheiro. Não se atribui ao homem senão justamente o que é preciso de cultura no interesse do lucro geral e do comércio mundial, mas é do mesmo modo que se exige dele: ‘O homem tem necessariamente direito à felicidade terrestre, eis porque a cultura é necessária, mas somente para isto!’ (SE, §6, p. 217).
Os estabelecimentos de ensino devem promover uma educação geral e rápida,
aqui o que se busca é “formar o maior número de homens corrente” no mesmo sentido
que se fala de uma moeda corrente, favorecendo modelos que se adaptem e
multipliquem conforme as necessidades do momento. A cultura só é permitida até
51
onde for necessária a este homem comum que está ligado ao comércio mundial e ao
interesse geral. É preciso rapidez para com a realização de suas tarefas,
aprendizados, e valorar às necessidades da vida como qualquer outra mercadoria.
Assim, a educação que promove o indivíduo solitário vinculado a uma formação que
exige um tempo mais demorado é execrada.
Em segundo lugar está o egoísmo do Estado que é alimentado pelo objetivo de
alcançar a extensão e a generalização da cultura. Os objetivos deste segundo tipo de
egoísmo são atingidos por intermédio da cultura que alimenta os estabelecimentos de
ensino. Seu interesse no desenvolvimento intelectual de uma geração visa somente
que os indivíduos sirvam e sejam úteis às instituições. É função do Estado, neste
sentido, ser o vigia que sempre está a lembrar de que é dele “o objetivo, o fim e a
quintessência” em formar seus funcionários para mantê-lo existindo e nunca romper
sua estrutura.
O egoísmo dos camufladores e dissimuladores fará Nietzsche lançar seu olhar
aos alemães que acreditam ser possuidores de uma cultura autêntica, quando na
verdade, estão sendo dissimuladores de uma opulência na qual busca mudar seus
conteúdos por uma pretensa “bela forma”. É inadmissível, para este pensador, uma
cultura que promovera Schopenhauer e Richard Wagner atrelada a uma absorção
desregrada a partir das “coisas estrangeiras”. Em sentido polêmico, o que Nietzsche
nos demonstra é a falta de criação que se instalara no povo alemão, e isto era
promovido pela intencionalidade da produção com o objetivo lucrativo. Este povo, para
Nietzsche, é como “estátuas e bonecas de cera” que fogem de todo mestre exemplar
como Schopenhauer e Wagner.
Para fugir dessa lentidão solitária que faz parte do ofício de todo exemplar culto,
a figura do erudito é destacada enquanto crítica, pois através deste se tem a busca
pela “bela forma” em uma pressa ofegante do instante. Estes homens tornam-se
escravos do momento presente, das normas e leis do mercado, ditando normas sobre
o agir, na forma de pensar e sobre o momento atual. O homem moderno se apresenta
experimentando um desgosto infinito, consciente de possuir “um conteúdo de fealdade
e de tédio” (SE, §6, p, 219) e, ao seguir junto de outros indivíduos, busca como
antídoto ser interessante e interessado a partir de todas as artes que possam usufruir:
52
Então, por seus artistas, eles mesmos se fazem apresentar e servir como pratos apimentados e bem temperados, se enchem com todos os aromas do Oriente e do Ocidente e certamente exalam agora um perfume dos mais interessantes, exalam tudo ao mesmo tempo, do Oriente e do Ocidente. Eles se preparam para satisfazer a todos os gostos: todos devem ser servidos, quer se comprazam com o que percebem como sendo bom ou mau, com as sublimações ou a grosseria camponesa, com os gregos ou com os chineses, com as tragédias ou com as porcarias do teatro (SE, §6, p. 219).
Em resumo, o princípio do egoísmo dos dissimuladores é mascarar e
envernizar sua inautêntica criação, se portando como tradutores dos produtos e das
artes de outros continentes e povos, sem estilo próprio e assim perdendo o sentido da
sua criação original.
O quarto egoísmo é o da ciência. É importante entendermos que a posição de
Nietzsche referente a ciência, segundo Rosa Dias (1993), se mantém inalterada ao
longo de seus escritos iniciais. Neste sentido de 1870 a 1876, a ciência é vista por
Nietzsche como um saber que atrofia as ilusões fundamentais à sobrevivência
humana34.
O cientista, assim como o erudito, está em busca da verdade, porém este
“impulso” o coloca na condição de servo para “com certas pessoas, para com as
castas, para com as opiniões, as igrejas e os governos estabelecidos” (SE, §6, p. 225).
Seu instinto é encontrar “certas verdades” que possam ser colocadas a favor destas
instituições e assim, o homem da ciência acredita fazer um serviço a si próprio. Ele
tem um descrédito a tudo que é velho e exige tempo vagaroso, o que importa é o novo
e o habitual. Não importa ao cientista o que a ciência representa para o homem, mas
o que o homem pode favorecê-la, sua conveniência é sempre lançar um olhar da
verdade para as coisas ao invés de calar-se. Segundo Nietzsche, se instala “uma
grande miopia para o longínquo e o geral. Seu campo de visão é habitualmente muito
estreito, e é preciso que ele mantenha os olhos muito próximos do objeto” (SE, §6, p.
225).
34Ver DIAS, Rosa. Nietzsche educador (1993, p. 83).
53
A visão do cientista reduz a vida a codificações e jogos racionalizados em
símbolos, equações, uma mista e raquítica doença impera sobre o homem da ciência:
a inexistência dos véus da ilusão. O homem nesta atividade torna-se a figura de um
ser esquelético, como se os “véus” de sua pele estivessem destituídos de suas
funções, o que sobra é seus ossos descobertos de todas suas capas, órgãos e peles
são vistos em movimentos separados de um todo, é o “olhar microscópico” que fala
sobre o homem e o mundo.
O que está na base das críticas lançadas por Nietzsche à ciência, não é
desacreditá-la ou eliminá-la de seu papel, mas conter os seus excessos, advindos da
racionalidade. Isso porque os excessos da razão, segundo Nietzsche, são sintomas
da decadência iniciada quando os instintos estéticos passaram a perder seu real valor
em nome da consciência. Segundo Nietzsche, a ciência por meio de métodos busca
tudo conhecer, criando homens teóricos sem discutir sobre o valor que a ciência tem
para a vida. Essa análise nietzschiana consiste em entendermos que na Alemanha no
início do século XIX, o processo de formação é visto apenas como um meio para
edificação de um fim maior, a saber, a edificação do próprio conhecimento científico,
seja a partir das tendências positivistas ou das ciências naturais que passaram a
dominar as instituições educativas alemãs a partir da segunda metade do século XIX.
É notório que os quatro tipos de egoísmos, apresentados por Nietzsche, se
apropriam da cultura em benefício próprio. O egoísmo dos comerciantes, o egoísmo
do Estado, o egoísmo dos camufladores e dissimuladores e o egoísmo da ciência se
relacionam impedindo que a tarefa da educação e os objetivos da cultura possibilitem
o desenvolvimento pleno das potencialidades humanas. Os negociantes exigem
educação e cultura para gerar o lucro. Para autopromover-se, o Estado tem a cultura
como intermediária que lhe garante o elo entre ele e os seus interesses. O egoísmo
dos camufladores e dissimuladores têm como crença a inserção de diferentes culturas
e tradições como forma de extrair o que seja “aprazível” ao gosto aparente de um
povo, mas na verdade escondem uma falta de criação e perda de originalidade. O
egoísmo da ciência, na imagem do cientista, acredita fazer algo em proveito da cultura,
porém, são as suas necessidades que estão em seus objetivos.
54
2.5 A EDUCAÇÃO COMO DESENVOLVIMENTO DE UMA “FORÇA CENTRAL”
Além dos quatro egoísmos expressos por Nietzsche, ele identifica duas
tendências que corrobora para a decadência cultural: a extensão e a redução. Essas
tendências são nefastas para a educação e a cultura. No campo educacional essas
concepções buscam em um primeiro momento exigir que o “educador deva
imediatamente reconhecer o ponto forte dos seus alunos e dirigir então todas as
energias e forças, a fim de levar à maturidade e à fecundidade esta única virtude” (SE,
III, §2, p. 167). Esta postura busca destacar em um centro apenas um aspecto mais
relevante no jovem e descaracterizar os demais, ou seja, busca-se desenvolver
apenas algumas qualidades que lhes tornem capazes para aquilo que foram
capacitados, sendo despreparados para todas as demais atividades.
A segunda tendência quer que “o educador tire partido de todas as forças
existentes, as cultive e faça reinar entre elas uma relação harmoniosa” (SE, III, §2, p.
167). Nesta postura percebe-se que todas as potencialidades são colocadas em
mesmo plano, no qual todos são “iluminados” ao mesmo tempo. “Essa é uma
educação democrática, cujo produto é o homem burguês, o animal de rebanho” 35.
Segundo Nietzsche, essas duas tendências apresentam contradições, pois
para o filósofo, o jovem que possui uma “força” dominante sobre os demais aspectos
é fruto de uma aprendizagem, não é anterior. Ao mesmo tempo é imprescindível que
existam outras forças operando em consonância com o centro para que ele não
desapareça. Em outras palavras, a oposição entre uma força dominante e a
valorização de todas as forças existentes no indivíduo só é resultado de uma
educação decadente. Pois “se o dom nada mais é do que um ‘instinto mais forte que
obedeceu por mais tempo a uma mesma regra’, ele só pode continuar a existir, a ser
dominante, se os outros instintos não forem eliminados e continuarem a ser
trabalhados sob seu comando” 36. Neste sentido, a tarefa da educação é cultivar e
35Cf. DIAS, 1993, p. 70. 36Idem, p. 70.
55
descobrir o ponto forte de cada um ou relacionar harmonicamente todas as forças
entre si. Seguindo as reflexões nietzschiana, se desenvolvesse apenas o ponto forte,
tornar-se-ia especializada e negligente para todas as outras dimensões; se, porém,
concedesse a mesma importância a cada um dos elementos criaria um ser superficial.
Todo propósito da educação deveria estimular no estudante o desenvolvimento
de sua “força central”, sem para isto destruir as demais forças. Contrário às
concepções de educação de sua época, Nietzsche sonhava encontrar um filósofo
educador que o ajudasse a educar a si mesmo. Frente às duas tendências da
educação alemã do seu tempo, Nietzsche descreve a influência que teria o educador
filósofo que ele desejava encontrar. Este educador o ajudaria a encontrar a “força
central”, e a “lei da sua mecânica superior" impedindo assim, que esta força
aniquilasse e se sobrepusesse às demais forças:
Este educador filósofo com quem eu sonhava poderia, não se deve duvidar, não somente descobrir a força central, mas também impedir que ela agisse de maneira destrutiva com relação às outras forças; eu imaginava que sua tarefa educativa consistiria principalmente em transformar todo homem num sistema solar e planetário que me
revelasse a vida, e em descobrir a lei da sua mecânica superior (SE, §2, p. 143).
Nietzsche percebe em Schopenhauer um exemplo de mestre por ter sido capaz
de manter uma coerência entre sua vida e obra. O modelo de educador deve ter o
exemplo como ponto de referência mais nítido de ensino, pois “o exemplo deve ser
dado pela vida real e não unicamente pelos livros” (SE, §2, p. 172). O exemplo, neste
sentido, não é uma cópia, um quadro canônico a ser seguido, porém um modelo entre
tantos possíveis que expressa uma atitude diante da vida e da sua existência de
autenticidade.
56
2.6 O FILÓSOFO E O PROFESSOR DE FILOSOFIA: O EXEMPLO
SCHOPENHAUER
Schopenhauer foi um filósofo solitário que nutria pouco interesse por castas
acadêmicas e manteve sua busca de independência do Estado e da sociedade. O
isolamento e o “desprezo da verdade”, segundo Nietzsche, são alguns sentimentos
causadores de uma série de mal-entendidos frente ao filósofo. É fruto a filosofia
oferecer ao “homem um asilo onde nenhum tirano pode penetrar, a caverna da
interioridade, o labirinto do coração: e isto deixa enfurecidos os tiranos” (SE, §2 p.
181).
Para além de uma vida conformada com sua época, Schopenhauer segundo
Nietzsche, levantou-se contra sua cultura, expulsando de si e tornando-se um filho
bastardo de caráter intempestivo e nunca de conformidade. Viveu sem temer entrar
em contradição com a ordem existente, e sentiu em si o “pulsar do gênio”. São estes
os exemplos que Nietzsche tira de Schopenhauer para compreender o que há de mais
exemplar e educador na natureza deste filósofo. Percebemos que ao explicitar tais
caraterísticas da figura de Schopenhauer, Nietzsche tenta extrair os impulsos e as
forças vitais que impulsionaram este educador. Seria tarefa dos jovens ligar-se a
algum grande homem, vendo-o como um ser que se elevou e reconhecer
humildemente sua estreiteza diante da grandeza do gênio. Mas como encontrar em
uma cultura que está em decadência estes exemplares que sirvam de modelo? Será
que as instituições de ensino possibilitam o nascimento de tais seres intempestivos?
Nietzsche percebe que nas instituições de ensino superior o filósofo como
educador é algo abjeto, pois nestes ambientes misturam-se a seriedade da filosofia
com a mesma seriedade da cultura do jornal, tudo é transformado em uma pressa
indecorosa. O Estado é colocado como bem supremo da finalidade última, sendo o
homem destinado ao seu serviço. Ao recorrer a imagem de Schopenhauer, Nietzsche
pergunta-se como o filósofo vê a cultura de sua época. É inevitável perceber que toda
falta de simplicidade, de recolhimento e lentidão para o exercício filosófico são
descaracterizadas para a segurança em carreiras, honras, e prestígio, pois estes são
57
“sintomas de uma extirpação e de um desenraizamento completo da cultura” (SE, §4,
p. 193).
Neste cenário de total “cultura artificial” é preciso estabelecer as diferenças
entre os filósofos e os professores de filosofia, em meio a uma época que há um
endeusamento do Estado como finalidade última de bem-estar, e a filosofia é vista
como instrumento de ganha pão. Neste sentido, Nietzsche, influenciado pelas leituras
do ensaio de Schopenhauer Sobre a filosofia universitária (1851), conclui que não
existem filósofos na universidade, mas apenas professores de filosofia (eruditos)
satisfeitos e submissos ao poder econômico do Estado em que vivem. Segundo
Nietzsche, o Estado;
[...] obriga aqueles que escolhem a permanecer num lugar determinado, entre homens determinados, a aí exercerem uma atividade determinada; eles têm de instruir, todos os dias, em horários fixos, todos os jovens acadêmicos que manifestem desejo de instrução. Uma questão: poderia propriamente um filósofo, conscientemente, comprometer-se em ter todos os dias algo para ensinar? E ensinar isto a qualquer um que queira ouvi-lo? Não deve ele dar uma aparência de saber mais do que sabe? Não deve ele falar, diante de um auditório desconhecido, sobre coisas das quais somente poderia falar sem risco diante dos seus amigos mais próximos? E, em geral, não se despojaria ele da sua mais magnífica liberdade, aquela de seguir seu gênio, quando este o chama e para onde o chama – por estar comprometido a pensar publicamente, em horas determinadas, em coisas já fixadas previamente? E isto diante de jovens! Um tal pensamento não está, de antemão, como que emasculado? E se por acaso, num belo dia, ele tivesse a seguinte percepção: hoje, não posso pensar nada, nada de inteligente me vem ao espírito – e apesar disso, tivesse de ocupar seu posto e parecer pensar? (SE, §8 p. 246-247).
Para Nietzsche, o Estado tem receio do filósofo, por este ser solitário e de ideias
próprias poderá colocar em perigo a permanência do sistema. Por isso, ao favorecer
um número grande de filósofos, o Estado busca conferir a ilusão de ter a filosofia ao
seu lado. De tal modo, para lecionar o filósofo universitário é obrigado a ensinar as
doutrinas que o Estado impõe e que julga ser necessárias à sua existência e tudo que
exige como seu bem, por exemplo, “uma forma determinada de religião, de ordem
social, de organização militar” (SE, §8 p. 246). Percebe-se o adestramento do
58
pensamento pela sua submissão às obrigações trabalhistas. A forte relação entre o
pensamento e o controle do Estado sugere a submissão do pensamento ao próprio
Estado desempenhando a função de controle total e a atividade universitária
descaracterizada da liberdade de investigação.
O Estado na compreensão nietzschiana coloca em perigo o futuro da filosofia,
pois é ele que escolhe para si seus “servidores filosóficos”, na medida em que
preenche seus quadros institucionais e decide aos seus critérios aqueles que são
bons ou maus filósofos. O filósofo profissional ou professor de filosofia é, antes de
qualquer coisa, um funcionário. É preciso que o professor de filosofia se torne pouco
a pouco um mestre na erudição e não mais um pensador, pois sua tarefa é ser um
historiador da filosofia e assim, “refletir sobre o pensamento de outro e repeti-lo” para
ter sempre algo a dizer aos seus alunos.
Porém, o professor de filosofia exercendo sua função que lhe é imposta pela
necessidade estatal conseguirá pensar com hora marcada? Estará pensando quando
o que pensa contraria os princípios do Estado, seu patrão? No texto da primeira
conferência, Nietzsche nos diz o seguinte: “Como? Vocês temem que o filósofo os
impeça de filosofar? Eis que isto pode mesmo ocorrer, e vocês não o experimentaram
ainda? Não tiveram a experiência disso na Universidade? Não ouviram, enfim, aulas
de Filosofia?” (EE,§I, p. 57).
O esquema acadêmico a partir das influências do Estado é tão bem estruturado
que nenhum professor sente falta do que dizer, pois nem professores e nem
estudantes pensam por si mesmos37. Todas as lacunas que existem no sistema
universitário, nesta organização, são supridas pela cultura histórica e científica.
Segundo Nietzsche, esta é uma concessão perigosa que o filósofo faz ao Estado, pois
se torna um erudito e historiador da filosofia38. Neste sentido, dirá o filósofo:
37Cf. DIAS, 1993, p. 107. 38Nietzsche não descaracteriza o estudo da história, apenas busca pensá-la enquanto possibilidade de entender as grandes construções humanas, artes, arquiteturas e como possibilidade de conhecer mundos. O problema é fazer da história o único saber verídico e, assim, deixar de lado as novas construções sem perceber o que brota do novo, a vida em seu momento presente gerando também novos aprendizados e vivificando o saber. Diz Nietzsche: “A história erudita do passado jamais foi o afazer de um verdadeiro filósofo, nem na Índia, nem na Grécia; e um professor de filosofia, quando está ocupado com um trabalho desse gênero, deve se contentar com que se diga dele, no melhor dos casos:
59
E afinal de contas, o que importa a nossos jovens a história da filosofia? Devem eles ser desencorajados a ter opiniões, diante do montão confuso de todas as que existem? Devem eles também ser ensinados a entoar cantos jubilosos pelo muito que já tão magnificamente construímos? Devem eles porventura aprender a odiar e desprezar a filosofia? [...] E agora, que se imagine uma mente juvenil, sem muita experiência de vida em que são encerrados confusamente cinquenta sistemas reduzidos a fórmulas e cinquenta críticas destes sistemas – que desordem, que barbárie, que escárnio quando se trata da educação para a filosofia! (SE, §8, p. 248).
Em função de uma massa de conhecimentos que precisa ser administrada pela
universidade, o jovem, segundo Nietzsche, não é educado para pensar e viver
filosoficamente, tendo como meta a assimilação de conhecimentos que possam ser
“despejados” na prova de filosofia. É preciso adestrar39 a compulsão de saber, pois o
ensino acaba desencorajando o jovem a ter opiniões próprias, em função de todo
conhecimento histórico que é preciso assimilar40. Neste sentido a prerrogativa
nietzschiana defende a necessidade da filosofia se desvincular do Estado para que
este não continue intervindo e dirigindo este conhecimento ao seu favor41.
Nietzsche percebera que não há um vínculo entre o pensamento e a vida em
sua sociedade, pois o que há é “uma grande miopia para o longínquo e geral” (SE, §6,
p. 225). A vida é tratada a partir de um pensamento datado, histórico, ao qual é
ensinada apenas “a crítica pelas palavras” e não o estímulo a experimentar e viver de
acordo a filosofia.
É importante percebermos que a “força” extraída de Schopenhauer como “ideal
que educa” a partir de seu exemplo intempestivo, levará Nietzsche a elaborar seu
próprio processo de formação e sua concepção de educação. Pautada nas
‘É um bom filólogo, um bom especialista dos antigos, um bom linguista, um bom historiador’- mas nunca: ‘É um filósofo. ’” (SE.§8, p. 248). 39O adestramento, ao qual Nietzsche se refere, busca adestrar o que há de animalidade no homem, ou seja, seus instintos. Nietzsche refere-se à busca incessante do homem - o desejo de conhecimento - como um instinto. Os instintos precisam ser educados e disciplinados e não negá-los ou reprimi-los como ocorre com uma educação decadente. Sobre adestramento em Nietzsche ver: Rosa Dias, Nietzsche, vida como obra de arte, 2011. 40Cf. DIAS, 1993, p. 108 41Contrário a este pressuposto, segundo Silvio Gallo (2012), um exemplo nefasto que tivemos em nossa realidade brasileira foi retirada de alguns conhecimentos, entre eles a filosofia, sociologia e artes do currículo escolar pelo próprio Estado no período da Ditadura Militar.
60
experiências vivas, relacionadas com um pensamento grandioso que não se conforma
com sua época, mas critica, cria e tem a vida como vontade de potência42.
2.7 TRÊS TIPOS FORMATIVOS: O HOMEM DA NATUREZA DE ROUSSEAU,
GOETHE E SCHOPENHAUER.
Nietzsche ao pensar a sua época percebera que só há fragmentos de homens,
eruditos e servidores do momento presente, sintoma de uma “humanidade híbrida”
onde “tudo está a serviço da barbárie, tudo, aí incluídas a arte e a ciência desta época”
(SE. §4, p. 194). Segundo o filósofo, é preciso encontrar seres inteiros e coerentes
que possam superar a imagem que é feita do homem. Tal imagem está imersa em um
período denominado pelo filósofo de “período dos átomos, do caos atômico” 43. É
inegável que o século XIX passou por grandes guerras, mudanças sociais,
econômicas e de novos valores44. Ao perceber o “caos” que passava seus
contemporâneos, mergulhados em uma cultura utilitarista e dominada pelos
interesses egoístas e de total insegurança, Nietzsche alerta que este é um movimento
de “forças antagônicas” que em alguns períodos da história o homem tentou conter45.
Em sua época, assevera Nietzsche, as forças antagônicas mais grosseiras e
mais nefastas são determinadas pelo “egoísmo dos proprietários e pelos déspotas
42 Na parte II desta pesquisa desenvolve-se com maior aprofundamento como se relaciona a vida como vontade de potência que sempre quer ampliar-se, apropriar e criar novas condições e como este movimento contínuo das forças possibilita estímulos que intensifica corpo e pensamento: a experimentação. 43Cf. SE, § 4, p. 19. 44As conquistas e revoluções do período marcaram profundas mudanças nas estruturas da sociedade, no pensamento e na organização social, tais como: Guerras Napoleônicas (1792-1815), Guerras do Ópio (1839-1842), (1856-1860), Guerra austro-prussiana (1866), Guerra franco-prussiana (1870), Comuna de Paris (1871), a Revolução Industrial que se iniciou no século XVIII e estendeu-se até meados do século XIX, entre outras. 45Na Idade Média, por exemplo, esclarece Nietzsche, “as forças antagônicas eram mais ou menos contidas pela igreja” (SE, §4, p. 195) ou eram assimiladas conforme a pressão que a própria Igre ja exercia. Ao passo que a entidade religiosa ao perder seu poderio e influenciada com o advento da Reforma, tivera que aceitar as posições contrárias e assim continuar a existir, porém sem toda força com a qual outrora mantinha e governava o mundo.
61
militares” (SE, §4, p. 195-196). O Estado na mão dos déspotas militares passa a
organizar e conter todas as pressões contrárias aos seus desígnios e interesses, tal
como o egoísmo dos proprietários. O Estado então substitui a Igreja, passando a ser
o soberano em relação a quem os homens em suas obrigações e cargos ocupacionais
tornam-se dependentes, manifestando a mesma ligação de prestígio que outrora era
destinada à Igreja.
A cada momento de rompimento e na proximidade de tais períodos, alerta
Nietzsche, o que é humano corre sempre perigo, pois surgem expectativas ansiosas
na exploração voraz de cada instante em que o homem se vê mergulhado em todo
tipo de covardia frente à mudança geradora de todos os tipos de “pulsões egoístas da
alma”. Este é o cenário observado por Nietzsche e vivenciado pela sociedade de sua
época. Neste sentido, questiona o filósofo:
Ora, no meio destes perigos da nossa época, quem agora consagrará seus serviços de sentinela e cavalheiro à ideia de humanidade, ao tesouro do tempo sagrado e inatingível que várias gerações pouco a pouco acumularam? Quem erguerá ainda a imagem do homem, se todos só percebem nele o verme do egoísmo e um medo sórdido, e se desviam tanto dessa imagem, que acabam caindo na animalidade, ou seja, numa rigidez mecânica? (SE, §4, p. 196).
A este respeito, Nietzsche nos apresenta três imagens formativas de homem
que é visível em sua época: o homem da natureza de Rousseau, o homem de Goethe
e o homem de Schopenhauer. O homem de Rousseau, segundo Nietzsche, seria uma
imagem de efeito popular. É a figura do homem oprimido que se degenerou em meio
aos processos educacionais e religiosos, vivendo em meio à nostalgia de sua antiga
natureza, gritando para si: “Somente a natureza é boa, somente o homem natural é
bom” (SE, §4 p. 197). Vive utilizando-se de imagens que se tornaram ultrapassadas e
de aparente de refinamento, tanto nas artes como nas ciências.
O homem de Goethe é contemplativo, espectador de grande estilo, é como um
“viajante do mundo”. Este homem não é movido pela ação, como explicita Nietzsche,
“este insaciável espectador vê pairar sobre sua cabeça todos os domínios da vida e
da natureza, todos os passados, as artes, as mitologias, todas as ciências; o desejo
mais profundo é excitado e acalmado” (SE, §4, p. 198). A imagem do homem de
62
Goethe não é tanto ameaçadora, segundo Nietzsche, seria como um sedativo ou até
mesmo corretivo de todas as emoções desvairadas pelas quais é acometido o homem
de Rousseau. Esta segunda imagem de homem é feita para o pequeno número, pois
sendo uma força conservadora tenta conciliar tudo a sua volta, daí porque este homem
poderá se degenerar tornando-se um “filisteu da cultura” por estar em conformidade
com ordem estabelecida.
A terceira imagem, o homem de Schopenhauer, “exige, para aqueles que a
contemplam, os homens mais ativos: [...] ela esgota os contemplativos e apavora a
massa” (SE, §4, p. 197). Diferentemente do homem de Goethe, o homem de
Schopenhauer, ao mesmo tempo em que pretende preservar-se, deseja extraviar-se
em meio às multiplicidades das coisas, “ele é a primeira vítima que se oferece em
sacrifício de si mesmo”. Não há espaço para receios ou conformidade, este homem
despreza todas as convicções alheias, quaisquer que sejam a manifestação de uma
força de degeneramento da cultura de sua época, e pouco lhe interessa o seu próprio
bem-estar ou mal-estar. Pois “sua força reside no esquecimento de si, e se ele pensa
em si, compreende a distância que há entre ele e o seu objetivo mais elevado vendo
abaixo de si um pequeno monte miserável de escórias” (SE, §4, p. 203-204). O homem
de Schopenhauer, segundo Nietzsche, assume para si o “sofrimento voluntário da
veracidade”, um espírito negador do próprio Schopenhauer que em sua época está
ligado a todo tipo de malignidade:
Mas há uma maneira de negar e destruir que é precisamente um extravasamento desta poderosa aspiração à santificação e à salvação, da qual Schopenhauer foi para nós, homens profanos, homens seculares no sentido próprio do termo, o primeiro mestre filosófico. Toda existência que pode ser negada merece também ser negada; e ser verídico significa crer numa existência que não poderia absolutamente ser negada, crer numa existência que é ela própria verdadeira e sem mentira. É por isso, que o homem verídico sente que sua atividade tem um sentido metafísico (SE, §4, p. 200).
Este olhar sobre a existência que a imagem do homem de Schopenhauer
produz sobre os demais homens denuncia que a vida é uma luta da vontade, e como
tal, ela é produtora de uma dor incurável, a partir daí se busca preparar uma
63
subversão, ou seja, a possibilidade de “total transformação do seu ser, alvo que
constitui o objetivo e o sentimento verdadeiro da vida” (SE, §4 p. 199). Segundo
Nietzsche, esta proposição é encarada pela maioria dos homens como uma
malignidade, pois a maioria prefere viver em suas “ninharias” e ilusões sem perceber
que a partir destas desilusões poderão encontrar não uma verdade que possa
arquitetar, mas, segundo as próprias leis da vida, perceber uma vida superior e
distinta. Um sentido que lhe seja afirmativo, mesmo que tudo a sua volta pareça
destinado a destruir e quebrar as leis da vida atual.
Segundo a autora Sobrinho (2009), podemos tirar da imagem do homem de
Schopenhauer duas grandes lições, a primeira é que segundo o filósofo
Schopenhauer, o mal é parte essencial do mundo e “o horror e a injustiça [...] eram
produto da vontade cega da natureza: esta era sua ‘veracidade’” 46. A segunda lição
foi a afirmação de que o sofrimento educa, e a dor teria uma função pedagógica e não
podendo ser negada: aí estaria o seu heroísmo. Porém, segundo Sobrinho é preciso
ressaltar que:
Nietzsche certamente não pretendeu e realmente não apresentou como alternativa à condição trágica do homem no mundo um paraíso nirvânico alcançável através da negação da vontade, como parecia ser a posição de Schopenhauer, mas antes quis apontar que através da cultura era possível compensar o homem desta sua condição irrecusável, a exemplo do que fizeram os antigos Gregos. Em outras palavras, somente a cultura pode redimir a natureza, transfigurando-a em obra humana, isto é, humanizando a physis, pacificando a relação
do homem com a natureza (SOBRINHO, 2009, p. 22).
Conforme observado acima, o pessimismo schopenhaueriano ao afirmar a
ausência de sentido metafísico da existência, não levará Nietzsche a um pessimismo
na sua formulação de educação, mas o leva a afirmar convictamente a vida em sua
tragicidade, o seu vir-a-ser. Neste sentido, a cultura é inconformismo e transfiguração
contrária à barbárie do Estado como finalidade e bem supremo da humanidade. A
cultura é a possibilidade de o indivíduo dar por si mesmo um sentido à vida.
46Cf. SOBRINHO, 2009, p. 22.
64
As três imagens formativas de homem apresentadas nos mostram a tentativa
de Nietzsche encaminhar uma resposta à questão do sentido da vida humana. É
necessário que ao mergulharmos nos infinitos oceanos de nossa existência,
respondermos uma série de questões que estremecem nossos lábios: “Por que é que
vivo? Que lição devo aprender da vida? Como me tornei o que sou e por que devo eu
sofrer por ser assim?” (SE, §4 p. 202).
Viver é estar em constante transformação e em incessante luta consigo mesmo,
por isso, inventamos e criamos imagens nas quais produzimos e interpretamos o
mundo. Ao extrair de Schopenhauer um “ideal que educa”, Nietzsche mostra aquilo
no qual é possível perceber nos grandes mestres, a “força central” que os motivaram
a continuar criando e embelezando o mundo em que viveram.
Os grandes gênios, filósofos e artistas de Nietzsche não possuem a mesma
finalidade desses tipos em Schopenhauer, pois, para o filosofo das conferências, a
natureza sempre os produzirá. Segundo Weber (2009) para Nietzsche interessa
realçar o que há neles de extraordinário, o que neles atesta a força imperiosa de vitória
sobre o banal, sobre a moda e a padronização, o que neles há de afirmativo.
Favorecer o alimento que nutrirá essas potencialidades é cuidar da elevação da
cultura, e sendo papel da cultura ser o solo da sua gestação é preciso fazer crítica e
ter sempre o inconformismo frente à sua época utilitária. Portanto, a imagem de
Schopenhauer ou o “vir a ser” de Nietzsche como exemplo de vida e educador não
pretende receitar uma fórmula e regra a serem seguidas47. O exemplo de um
educador, une vida e pensamento, visa possibilitar ao jovem - no qual a natureza é
cega e desmedida - a orientação e a educação, despertar sua “força central” para
assim realizar a natureza em si própria.
É preciso favorecer e criar instituições de ensino que tenham o objetivo de
possibilitar o desenvolvimento de todas as forças e energias que advém nos
indivíduos, “de modo a criar nos jovens uma harmonia tal que neles façam crescer as
forças ainda imberbes que carregam e façam por outro lado diminuir as forças
47Referimo-nos aqui, a uma passagem no livro Ecce Homo no qual Nietzsche expressa que “em Schopenhauer como educador” está inscrita [sua] história mais íntima, meu vir a ser. (EH, As Extemporâneas, §3 p, 67).
65
predominantes que os contaminam” 48. O indivíduo busca a partir da experimentação,
não só um processo de formação determinado e pronto, mas a autoafirmação.
Afirmando a sua existência, valorizando a singularidade e a criatividade no
enfrentamento de tudo aquilo que se opõe a uma formação a serviço da vida, pois
“viver é inventar” 49 e o homem não é um ser estático, mas em devir mundo.
Segundo Nietzsche, o homem moderno está em seu processo educativo
mergulhado em uma educação que o capacita exclusivamente para a ocupação em
uma posição social no mercado de trabalho e, assim, descaracteriza a dimensão do
sentir e do criar. Segundo Souza (2011) todo o corpo humano precisa se conhecer,
sentir a si mesmo e tudo que o envolve, é preciso conhecer suas relações. “Neste
sentido, conhecer é um afeto, um sentimento, e não somente uma abstração da
pequena razão. É necessário, pois, que essa pequena razão conheça sua grande
razão, o corpo” (SOUZA, 2011, p. 62). A formação deste homem moderno é
influenciada por um movimento que aspira à necessidade de um pensamento cada
vez mais lógico e abstrato, e pela promulgação de uma moral, que em seus aspectos
nega a existência em si mesma em prol de valores além-mundo.
Percebemos que em nossa atualidade, no sistema neoliberal em que aglutinam
nossas instituições de ensino, o modelo de educação voltado para a não utilidade
[mercadológico] do ensino –, defendido por Nietzsche, seria ultrapassado. Por outro
lado, as críticas levantadas à massificação do ensino de nossa modernidade e pela
superficialidade dos currículos permanecem pertinentes. Interrogar-nos-íamos todo o
sistema de educação e formação deveria ser extinto, restringindo-se os espaços de
formação apenas àqueles de formação da cultura? Neste ponto estaríamos distantes
da concepção de Nietzsche. Diz o filósofo, no início da quarta conferência:
Não vão com isso crer, meus amigos, que eu quero mitigar os elogios às nossas escolas técnicas e às nossas escolas primárias importantes: eu honro os lugares onde se aprende a calcular
48 Cf. SOBRINHO, 2009, p. 34 49Segundo Rosa Dias: “Viver, para Nietzsche, é inventar. Uma invenção que não se pensa a partir da soberania de um sujeito capaz de criar-se a si próprio, mas a partir da experiência, ou melhor, da experimentação. O grande inventor experimentador de si mesmo é o sujeito sem identidade real ou ideal. [...] Esse sujeito não se concebe como substancia dada, mas como forma a compor, como permanente transformação de si, como o que está sempre por vir” (2011, p. 128).
66
adequadamente, onde se domina a língua, onde se leva a sério a geografia, onde se é instruído pelos conhecimentos admiráveis que nos dão as ciências naturais. Estou também inclinado a concordar de bom grado que os estudantes que se instruem nas melhores escolas técnicas da nossa época estão perfeitamente autorizados a ter os mesmos direitos que se tem o costume de atribuir aos alunos dos ginásios no final dos seus estudos; e não está longe o dia em que se abrirão, para as pessoas que receberam este ensino, as portas das Universidades e da administração pública, com a mesma largueza com a qual se beneficiou exclusivamente até agora os alunos do ginásio – bem entendido, do ginásio atual! No entanto, não me posso furtar de acrescentar este codicilo: se é verdade que a escola técnica e o ginásio, nos seus fins atuais, são em tudo tão semelhantes e não se distinguem senão por detalhes mínimos, de modo que podem contar com um tratamento igual diante do fórum do Estado – isto ocorre porque nos falta completamente um certo tipo de estabelecimento de ensino: o estabelecimento da cultura! Isto não é de maneira nenhuma uma recusa dirigida às escolas técnicas que perseguiram até agora, com tanta felicidade e honestidade, tendências bem mais modestas, mas altamente necessárias (EE, IV, p. 106).
É preciso percebermos o pano de fundo das críticas nietzschianas para não
sermos levados a habituais acusações de posicionamento elitista. O que Nietzsche
exige, já em 1872, é que se chamem as coisas pelos devidos nomes; afinal, escolas
técnicas, necessárias para a sociedade, não são escolas de cultura, de formação
(Bildung). Para Nietzsche o sistema do mercado é distinto do sistema da cultura.
Seguindo este imperativo nietzschiano, caso chamássemos as coisas pelo devido
nome, por exemplo, muitas de nossas instituições de ensino, universidades atuais, na
sua maioria pressionadas pelo Estado, detém forte atenção com a formação para o
mercado, para uma profissão, e não preocupada com a formação no sentido forte do
termo. A exigência de Nietzsche mostra o quanto ele ainda está vinculado neste
período aos princípios do neo-humanismo alemão. Nietzsche insiste que uma
instituição de cultura ou o ginásio, enquanto instituição de cultura, não deveria ter
nenhuma relação com a profissionalização. Segundo Nietzsche existe “[...] os
estabelecimentos para a cultura e os estabelecimentos para as necessidades da vida”
(EE, III, p. 107). A incompreensão é confundir o que seja uma instituição de cultura.
As críticas de Nietzsche ao artifício do Estado em produzir especialistas com a
promessa de felicidade para o lucro são anúncios oraculares de nossa atualidade;
uma vez que observamos a desumanização do trabalho, a produção em larga escala
67
de pesquisas e conhecimentos sem um tempo necessário de maturação, ocorrendo
assim, uma diminuição do tempo versus aceleração da produção acadêmica. Todos
estes fatos levam o ser humano, frente ao salário ao fim do mês, negar toda ação que
escape os limites previstos para sua atividade50.
Percebe-se que Nietzsche não pensa uma produção/padronização serial do
humano, mas uma educação da experimentação. Porém, como ocorre esse processo
de criação de si buscando tornar-se o que sé é? Fazer de si uma obra de arte é a
possibilidade de encontramos o “produto de uma situação que predomina a
abundância de vida” 51. É preciso dizer um “sim” a tudo aquilo que intensifica o
humano, o que se encontra em trânsito, seja a dor, o sofrimento, a alegria, o
conflituoso, o instável, efêmero e estranho à nossa existência.
Nietzsche nos diz que vida é vontade de potência e como tal criadora de formas
de vida que manifesta em exuberância ou negação da vida. Neste sentido, Nietzsche
se empenha em reabilitar o corpo como campo de experimentação e crítica aos
valores e interpretações que imperam como verdades, pois o homem está inserido na
vida pelo corpo52 e é preciso entender que a natureza labiríntica corporal detém
percursos abissais.
Voltar-se ao corpo como fio condutor é termos claro em Nietzsche que “o corpo
não pode ser adequadamente tomado apenas como registro físico-somático, ou
biológico, mas tem a implacável concretude de um campo de forças, de uma superfície
de múltiplos cruzamentos”53. O alvo de toda educação deve ser o homem cultivado e
criador, mesmo tendo atingido seu objetivo continua mudando e desenvolvendo novas
possibilidades de reinterpretações de si e do mundo, assim como, o artista com sua
obra de experimentação. Porém, como o processo de experimentação culminará
passando pelo corpo como fio condutor, o qual foi forjado a um projeto de humanidade
que tem o tipo homem como meta a ser atingida? Quais as travessias serão
50Cf. CASTRO, 2014, p. 133. 51Cf. DIAS, 2011, p. 54. 52 Cf. DIAS, 2011. P. 50. 53Cf. GIACÓIA, 2007, p. 178.
68
necessárias realizar54, quais as terras e solos serão preciso fecundar para que a
“planta homem” possa desenvolver-se?
54Cf. ZA, Prólogo, §3, p. 14.
69
SEGUNDA PARTE
COMO EDUCAR A SI MESMO OU TORNAR-SE CRIADOR DE SI
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. (Tempo de Travessia – Fernando Pessoa).
70
Como observado na primeira parte de nosso estudo, as críticas lançadas por
Nietzsche denunciam a situação decadente em que se encontravam os
estabelecimentos de ensino e a cultura da Alemanha no século XIX. Foram
destacados na parte I deste estudo, os textos do período de juventude do filósofo
Nietzsche a saber: as conferências sobre os estabelecimentos de ensino, a obra
Schopenhauer como educador e O nascimento da tragédia. Buscamos elucidar com
o filósofo Nietzsche suas críticas a um tipo de formação que anula a singularidade e
as personalidades autênticas, ligando todo processo formativo a uma concepção
pragmática que não expressa autenticidade no modo do homem se colocar diante da
vida.
Verificaremos nesta segunda parte, que o discurso e o tom das críticas
anteriores serão modificados aparecendo outros direcionamentos, a partir dos escritos
Humano Demasiado Humano, Aurora, A gaia Ciência e sua obra Assim Falou
Zaratustra. A concepção de educação nietzschiana é caracterizada como movimento
singular e individual, um projeto que se dá pelo cultivo de si, ou seja, o caminho do
criador de valores. Isto não denota que as questões referentes à cultura e à formação
estejam restritas as obras de juventude. Buscamos elucidar uma educação da
experimentação como justificativa ao aparecimento de novas formas de compreender
a cultura e os estabelecimentos de novas balizas conceituais, o que será responsável
pela criação de uma nova imagem do ser humano, do conhecimento e do processo
formativo. Neste sentido, o filósofo se empenha em reabilitar o corpo como campo de
experimentação e crítica aos valores e interpretações que imperam como signos de
verdades.
3.1 CRÍTICA AO INSTINTO DO CONHECIMENTO: PENSAMENTO É CORPO
Nietzsche, na obra O nascimento da tragédia, destaca a arte trágica como um
modelo alternativo com vistas à resolução do problema da ciência o qual se busca o
71
equilíbrio entre ilusão e verdade55. Observar-se, segundo Marton (2014) que no
período posterior a obra Nascimento da tragédia e o anterior a Humano Demasiado
Humano, a crítica à ciência e à verdade ainda permanece, contudo, a partir do
conceito de instinto de conhecimento ou instinto de verdade.
Segundo Marton (2014), no ensaio sobre verdade e mentira no sentido
extramoral, os conceitos de verdade e linguagem, aparecem como indissociáveis. Os
homens antes da vida em coletividade viveriam em um mundo onde imperava “o mais
grosseiro omnium contra omnes”. Tentando preservar-se os indivíduos
desafortunados e fracos perceberam a necessidade de conservar-se, preocupados
em manter a existência, teriam procurado modificar um estado que lhes era
insuportável, a saber, sua não conservação, buscando “convergir às forças principais
do intelecto para a dissimulação”.
Nietzsche pretende evidenciar que não há o instinto de conhecimento ou até
mesmo um instinto de verdade, mas um “instinto da crença no conhecimento ou na
verdade” (MACHADO, 1985, p. 40). Ele procura a todo o momento evidenciar o
aspecto superficial do conhecimento, e isto significará que conhecimento e aquilo que
os homens buscam como verdade, nada mais é que uma suposição, uma ilusão,
estabelecida por uma necessidade social. Enfatiza Nietzsche:
Como a verdade tem importância para os homens! É a vida mais elevada e a mais pura possível aquela que possui na crença, a verdade. A crença na verdade é necessária ao homem a verdade aparece como uma necessidade social: é depois aplicada a tudo por uma metástase, mesmo quando não é necessária. Todas as virtudes nascem de necessidades. Com a sociedade nasce a necessidade da veracidade, senão o homem vive em eternos véus. A fundação de Estados suscita a veracidade. O instinto de conhecimento é uma fonte moral (VM, §1, p. 53).
Deste modo, teve início o desenvolvimento do intelecto humano e
consequentemente “conferiu-se assim à palavra uma fixidez que ela não possui”
(MARTON, 2014, p, 19). A verdade surgiria a partir da convenção linguística, que para
55 Já estudamos no tópico 2.3 (p. 33) as reflexões lançadas por Nietzsche referente a obra O nascimento da tragédia.
72
manter a vida em coletividade, os membros de um dado grupo empregariam as
designações usuais, às quais haviam sido estabelecidas por convenção. No intelecto
humano não haveria um desejo natural direcionado para a verdade. Segundo
Nietzsche, o intelecto tem por finalidade a conservação dos indivíduos mais fracos por
meio de uma compensação da falta de força, já que, em seu estado natural, o
intelecto, é um criador de ilusões, dissimulador e mestre do disfarce. “Acreditamos
saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e, no
entanto, não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum
modo correspondem às entidades de origem” (VM, §2, p. 57).
Por que preferimos a verdade à mentira? De onde deriva a crença na verdade?
E, quando a desejamos, o que nela desejamos? Há um condicionamento pelo qual o
homem preferiria a verdade à mentira? Será que a verdade é verdade? De acordo
com Nietzsche,
[...] os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as consequências nocivas, hostis de certas espécies de ilusões. É também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as consequências da verdade que são agradáveis e conservam a vida: diante do conhecimento puro e sem consequências ele é indiferente, diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas ele tem
disposição até mesmo hostil (VM, §1, p. 48).
Há entre o homem e o mundo e as coisas um enorme abismo, e tal insuficiência,
além de caracterizar a impotência de nosso intelecto, por outro lado, fica visível a
indiferença das coisas ao homem, este enquanto conhecedor do mundo, ou seja,
“sujeito do conhecimento”. Evitando as “consequências nocivas” do engano, a
capacidade intelectiva do indivíduo, o próprio intelecto, dissimulador, teria a função de
manutenção da vida, levando a criação de supostas condições de conhecimento
objetivo da realidade. Compreende-se então que “a verdade não é uma adequação
do intelecto à realidade; é o resultado de uma convenção que é imposta com o objetivo
de tornar possível a vida social; é uma ficção necessária ao homem em suas relações
com os outros homens” (MACHADO, 1985, p. 43). É neste abismo que o filósofo
enfatiza a linguagem como metáfora de entidades que não conhecemos. Sendo a
73
verdade uma necessidade social, a vida exigiria certa uniformização social de
comportamentos e de valores, pois que a linguagem é construída de caráter
totalmente metafórica. Para Nietzsche essa necessidade social é “o primeiro passo
para a obtenção daquele enigmático impulso para a verdade” (VM, p. 217).
Nietzsche em sua crítica ao “instinto de conhecimento” ou “instinto de verdade”
não age com uma postura epistemológica criando ou estabelecendo critérios que
possa encontrar e diferenciar a verdade da mentira. O problema não é o engano ou
ser enganado, mas os efeitos nocivos que um engano e as ilusões podem trazer para
a conservação da vida. A capacidade de representar, de mascarar, fez com que o
homem ocultasse a real origem e função da faculdade da consciência. Segundo
Roberto Machado, a intenção de Nietzsche é “mostrar que a oposição entre verdade
e mentira tem uma origem moral” (MACHADO, 1985, p. 43). Neste sentido, Nietzsche
estaria evidenciando uma ordem de cunho fisiológico no valor que os homens
atribuem às coisas, às ideias tendo fundação numa perspectiva moral, em que “a
verdade e a mentira são de ordem fisiológica” (VM, §1, p. 45).
O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é resultado de uma aplicação falsa e ilegítima do princípio de razão. Como poderíamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na gênese da linguagem, se somente o ponto de vista da certeza fosse decisivo nas designações, como poderíamos, no entanto, dizer: a pedra é dura: como se para nós esse ‘dura’ fosse conhecido ainda de outro modo, e não somente como uma estimulação inteiramente subjetiva! (...) A coisa em si (tal seria justamente a verdade pura sem consequências) é, também para o formador de linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas. Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera inteiramente outra e nova” (VM, §1, p. 55.).
Nietzsche correlaciona a palavra, à imagem e ao som como condição de
possibilidade do conhecer trágico ou artístico. A primeira metáfora destacada por
Nietzsche na citação anterior, é a metáfora corporal que diz respeito à transposição
de estímulos em imagens. A palavra é caracterizada como símbolo sonoro que por
74
sua vez expressa um estímulo nervoso (imagem + som). A sensação é produzida por
um estímulo que é percebido pela percepção da retina. Ora, a retina, por sua vez, ao
captar os sinais emitidos por aquele estímulo cria para si uma imagem
correspondente; o que ocorre é uma representação que corresponde ao estímulo, não
havendo assim um objeto externo. A segunda transposição é produzida
fisiologicamente. Ao ocorrer o estímulo, e não inferindo uma causa “exterior a nós”, o
que é construído por esse olho, seu estímulo e percepção (imagética sempre
recorrente), é significado pelo som, por uma palavra e posteriormente fixada a um
signo.
Percebemos com Nietzsche que a atividade intelectual possui uma natureza
superficial. Segundo o filósofo na sua obra Aurora, nenhum impulso, em si, não possui
“nem um caráter, nem uma intenção moral, nem sequer vem acompanhado de um
sentimento de prazer ou desprazer” (A, §38, p.38). O impulso não busca satisfazer a
uma finalidade como meta a ser atingida: é possível evitar a sua satisfação, como
realizar sua satisfação em excesso ou redirecioná-lo para outros canais das forças
que lhe são relacionadas e assim, o seu estado poderá obter diferentes maneiras e
modos opostos de descarga.
O intelecto não age deliberando conscientemente postulando um veredito a uma
luta entre dois ou mais impulsos, o que determina tal deliberação, seus meios e
resultados, são as forças contidas entre os próprios impulsos (A, §109, p. 80). Aquilo
que nos direciona às ações não são as consequências dos diferentes atos levados a
consciência, mas ao agirmos atuam sobre nós diferentes forças e motivos de
diferentes categorias dos quais pouco ou nada sabemos de um processo invisível e
inconsciente onde “operam também o elemento corporal, (...) o humor do momento, o
salto de um afeto qualquer (...), motivos atuantes que conhecemos mal, ou que não
conhecemos” (A, §129, p. 97).
Sobre as diversas atividades mentais e corporais, a filosofia nietzschiana rejeita
qualquer espécie de dualismo psicofísico como fundamento de um poder atribuído à
consciência racional: “pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou
seja, em signos de comunicação o que se revela a origem da própria consciência (...)
não só a linguagem serve de ponte entre o ser humano e outro, mas também o olhar,
75
o toque, o gesto” (GC, §354, p. 249). A mente e o corpo, para Nietzsche, formam um
todo complexo constituído por uma multiplicidade de “almas”, de impulsos e de
vontades em relação de mando e obediência: “pois nosso corpo é apenas uma
estrutura social de muitas almas [...] em todo querer a questão é simplesmente mandar
obedecer, sobre a base, como se disse, de uma estrutura social de muitas ‘almas’”
(ABM, §19, p. 25).
O homem guiado pelo “impulso de verdade” é levado assim, a desprezar a
intuição, a fantasia, a imagem pela racionalidade por meio de abstrações. Segundo
Roberto Machado, o homem se esquece de que é “um artista, um criador, isto é, um
criador de aparência, situando o antagonismo entre arte e ciência no próprio campo
da ilusão” (MACHADO, 1985, p. 45). Nietzsche não pretende com isto aniquilar a
ciência, mas discipliná-la por meio da arte e da filosofia. Nesse sentido, pondera
Machado:
Dominar a ciência significa discipliná-la, controlar seus excessos. O que caracteriza a posições socráticas, e é criticado por Nietzsche, não é exatamente o conhecimento; é o instinto de conhecimento sem medida e sem discernimento; é o instinto ilimitado de conhecimento, o instinto desencadeado do saber, o conhecimento do saber, o conhecimento incessante, a verdade a qualquer preço. Dominar a ciência é determinar seu valor no sentido de controlar a exorbitância de suas pretensões, no sentido de estabelecer até onde ela pode se desenvolver. É colocara questão dos limites (MACHADO, 1985, p. 48).
Na obra Gaia Ciência ao abordar o caráter da ciência, no que se refere sua
finalidade à necessidade de um conhecimento científico menos mecanicista e mais
humano, Nietzsche leva a ciência a aproximar-se da arte na criação de novos valores.
Ou seja, vida e conhecimento são partes constituintes de um mesmo processo e sua
busca não se resume apenas por uma postura erudita e profissional, mas é um meio
para a vida. Por isso, é preciso que todo o corpo possa se conhecer, sentir a si mesmo,
e tudo o que o envolve56. É preciso conhecer suas relações.
Segundo Souza (2011) conhecer é um afeto, um sentimento, e não somente
aquela abstração da pequena razão (consciência). É necessário também que essa
56 Ver, SOUSA, M. Nietzsche: Para uma crítica a ciência.
76
pequena razão conheça sua grande razão, o corpo, possibilitando a elaboração de
um saber alegre que possa “fazer brilhar novas galáxias de alegria” (GC, §12, p. 64).
3.2 O CORPO COMO FIO CONDUTOR: A NECESSIDADE DE APROPRIAÇÃO DAS
FORÇAS CRIADORAS
Como analisado no tópico 3.1, o homem avalia o mundo pela ótica da própria
vida como sentido extra moral. Segundo Nietzsche, a valoração é sintoma de uma
expansão da vida e de um crescimento da própria vida. Por isto, Nietzsche vai nos
dizer pela voz de Zaratustra que “uma tábua de valores se acha suspensa sobre cada
povo; é a voz de sua vontade de potência!” (AFZ, I, §Das mil metas e uma só meta,
p. 57). Vida é vontade de potência e como tal criadora de formas e contornos que se
manifesta em exuberância ou de negação da existência.
É preciso retornar ao início do texto Schopenhauer como educador, pois nesta
obra Nietzsche inicia a seção§1 postulando, que o homem que não deseja pertencer
à grande massa é preciso que siga sua consciência, “sê tu mesmo! Tu não és isto que
agora fazes, pensas e desejas” (SE, §1, p. 162). Porém, por preguiça ou temor, povos
se escondem atrás de costumes e opiniões, agem como animal de rebanho. Os
homens encontram-se presos a convicções em uma vida social ligados ao Estado, à
ciência e à religião, mantendo-se opiniões alheias. Dessa maneira “apenas porque o
homem se esquece de si como sujeito, na condição de sujeito criador e artista, vive
ele com algum descanso, segurança e coerência” (NT, §24, p. 225). Pergunta-se
Nietzsche:
Mas como nos encontrar a nós mesmos? Como o homem pode se conhecer? Trata-se de algo obscuro e velado; e se a lebre tem sete peles, o homem pode bem se despojar setenta vezes das sete peles, mas nem assim poderia dizer: “Ah! Por fim, eis o que tu és verdadeiramente, não há mais invólucro”. É também uma empresa penosa e perigosa cavar assim em si mesmo e descer à força, pelo caminho mais curto, aos poços do próprio ser. Com que facilidade, então, ele se arrisca a se ferir, tão gravemente que nenhum médico poderia curá-lo. E, além disso, por que seria isto necessário, se tudo
77
carrega consigo o testemunho daquilo que somos, as nossas amizades e os nossos ódios, o nosso olhar e o estreitar da nossa mão, a nossa memória e o nosso esquecimento, os nossos livros e os traços da nossa pena? (SE, §1, p. 141).
Com tais prerrogativas, enfatizamos com o filósofo as seguintes questões:
Como pode o homem se conhecer? Como nos encontrarmos em nós mesmos?
Haverá um “eu” preso em uma trama perdida e velada em algum labirinto do nosso
ser? Antes de qualquer tentativa de resposta, alerta-nos o filósofo sobre o perigo em
descer à força “os poços do próprio ser”, pois mesmo o homem despojando-se de
suas inúmeras peles, mesmo assim não poderia afirmar convicto ter desprendido de
todos seus invólucros. Quais peles são essas e o que, em nós, nos dá “testemunho
daquilo que somos”? A moral, juízos de valor, sentimentos de afirmação e negação,
as amizades, os impulsos são forças que nos alimentam ou paralisam nossas atitudes
diante da vida, por isso que a tarefa de autoconhecimento é penosa, obscura e
perigosa. Este caminho se faz obscuro e perigoso porque jamais encontraremos um
substrato último no qual desembocaria na essência humana e assim nos identificar.
Nas descidas de nosso ser, percorrendo o íntimo dos nossos labirintos, cada
passo se faz perigoso e penoso é seu percurso, pois os fantasmas criados por nossos
medos e ressentimentos, tomam formas e se apoderam do corpo; se tudo carrega “o
testemunho daquilo que somos”, então desnecessária é a atitude racional de buscar
no interior deste labirinto obscuro aquilo que está na nossa frente? Segundo Weber
(2008) o autoconhecimento não virá apenas de um movimento de dentro, mas para
fora, nas coisas exteriores. Por isso, as imagens da águia, na obra Assim falou
Zaratustra, olha ao longe e ver o todo e não mais a visão da toupeira, que vive no
interior do subsolo. “A exterioridade enquanto espaço para a tarefa do
autoconhecimento cria, não apenas uma nova geografia, mas uma nova relação do
homem com o espaço, com o mundo e com o próprio corpo” (WEBER, 2008, p. 101).
A essa inversão, Nietzsche dará o nome de imanência.
Nietzsche se empenha em reabilitar o corpo como campo de experimentação
e crítica aos valores e interpretações que imperam como verdades, pois o homem
78
está inserido na vida pelo corpo57. A vida como critério é a vida como vontade de
potência. É bom tudo que promove o crescimento da vida, a saber, as forças criadoras
e é ruim as forças de adaptação, ou seja, aquilo que desagrada a expansão e o
crescimento. E se a vida não é adaptação às circunstâncias exteriores (Estado,
funcionalismo público, cargos), ela é atividade criadora e como tal não busca
conservar-se, mas crescer, apropriar-se, incorporar e assim imprimir uma “forma, um
sentido, uma função, uma nova direção” (DIAS,2011 p. 15).
A vida como vontade de potência passa a ser o critério que Nietzsche utiliza
para interpretar o mundo, pois todo pensamento por mais hostil que seja a vida, é
sempre expressão de uma forma de viver. É segundo a uma determinada condição
existencial que o pensamento cria seus conceitos corporalmente e assim lança seu
olhar interpretativo sobre a vida. A partir de um modo de produção de nossos valores,
da relação do homem com o mundo e estes não se constituem de uma mesma
perspectiva, o que os caracteriza são a abundância ou carência nos quais os valores
e sentidos foram criados.
Como visto no tópico 3.1, a atividade interpretativa que dá forma e interpreta o
mundo na sua totalidade é sempre inconsciente, “superficial e a linguagem age
metaforicamente”. A comunicação de um estado corporal, o próprio sentimento, para
ser comunicado se utiliza de uma linguagem que gera conceitos a partir de metáforas
produzindo significados. Sendo a consciência um instrumento para deixar aparecer
uma atividade mais fundamental: a saber, os impulsos (AFZ, §Dos desprezadores do
corpo, p. 35). Os instintos e os afetos não passariam de palavras e, por trás dessas
palavras, a única realidade apreensível é a dos processos fisiológicos que está, assim
como a linguagem e a verdade, sujeito a relações de poder, a todo tipo de jogo de
forças ao longo do desenvolvimento da história humana.
Segundo o filósofo Wotling (2013) poderíamos objetar que Nietzsche produz
um reducionismo fisiológico ao questionar o estatuto exato do corpo em seu texto,
porém, um exame atento mostra que a tese do reducionismo fisiológico não se
sustenta. Para o pesquisador “a redução destacada é acompanhada, na verdade, por
57 Cf. DIAS, 2011. P. 50.
79
uma redução simétrica, ao fim do qual os processos fisiológicos são, por sua vez,
reduzidos por Nietzsche a consequências de processos psicológicos” (WOTLING,
2013. p. 120). Os instintos e afetos aparecem, pois, como ficções, mais precisamente
como interpretações forjadas pelo intelecto (GC, §354. p. 249), daí que a
multiplicidade dos impulsos hierarquizados por uma vontade forte, segundo Dias
(2011) produz uma interpretação sadia, que abre caminho para novas formas de vida.
Mas o caminho contrário também persiste, pois, a multiplicidade dos impulsos
anarquizados, contrários à vontade, lançará uma interpretação doentia e isto posto,
não cria valores, mas adapta ao que já está estabelecido.
A hierarquização dos instintos é uma imposição moral. Na hierarquia, fica
evidente os tipos de instintos que são valorizados ou depreciados por uma moral.
Segundo Nietzsche “no filósofo, pelo contrário, absolutamente nada é impessoal; e
particularmente a sua moral dá um decidido e decisivo testemunho de quem ele é –
isto é, da hierarquia em que se dispõem os impulsos mais íntimos de sua natureza”
(ABM, §6). Hierarquia é saber quais instintos são valorizados e quais são depreciados
em uma moral. Por isto, atrás de um juízo sempre haverá um tipo de instinto e este
age afirmando ou negando a vida, apresenta-se em contornos ascendente ou
descendente em relação à força e sua amplitude.
3.2.1 A vida como vontade de potência
Compreender a perspectiva do corpo como fio condutor, é termos claro em
Nietzsche que “o corpo não pode ser adequadamente tomado apenas como registro
físico-somático, ou biológico, mas tem a implacável concretude de um campo de
forças, de uma superfície de múltiplos cruzamentos”58. Nos primeiros escritos de
juventude, analisado na primeira parte desta pesquisa, ao falarmos de formação nos
institutos de ensino, atrelados a um projeto moderno com fins universalistas, envoltos
numa atitude autoritária e de dominação, demonstraram uma postura decadente e de
58Cf. GIACÓIA, 2007, p. 178.
80
negação da vida. Ressaltamos que é sobre a afirmação da vida, o valor da existência
singular que Nietzsche nos alerta ao demonstrar que nossos processos de formação
muitas vezes colocam dificuldades em afirmarmos a própria potência da vontade.
O que é o homem, é uma questão fundamental para aquele que busca alcançar
um caminho para si mesmo, ou seja, uma educação “do caminho do criador” que
rabisca modos de ser na elaboração de sua singularidade. Um caminho para a
questão colocada é a perspectiva que compreende o homem como vontade de
potência. O medo de ser ele mesmo faz o ser humano aprisionar-se no mundo. Se
somos revestidos de diversas peles e cada uma nos dá “testemunho daquilo que nos
obrigam a sermos”, por que temos medo de ser vontade de potência? É o medo dos
conflitos inerentes à vida que nos aprisiona no mundo.
Se vontade de potência é algo que tem intrínseco desejo nela mesma, de fazer
existência, de exprimir, de diferenciar, de criar e experimentar a realidade, o que essa
potência quer é continuar sendo potência. Não se busca atingir uma meta final ou uma
essência humana imutável, mas o incessante movimento de criar mais potência na
maneira de experimentar, nos diferentes modos de ser o que se é. Esse movimento
criador envolve diversas forças de destruição, que também são forças de construção,
ambas não se anulam. O medo de ser vontade de potência distancia o ser humano
dele próprio, da sua possibilidade de destruição do que é, e o lança a uma vida muitas
vezes superficial e inautêntica. Ao falarmos de vida inautêntica, não estamos dizendo
que o oposto, a vida autêntica é superior, mas que carrega em si diversas forças e
pulsões que não param de se superar constantemente.
Como afirma Nietzsche em sua obra Gaia Ciência, o homem sendo definido
por seus impulsos e não apenas pela sua consciência e sua racionalidade (GC, §11),
a finalidade última da vida seria a intensificação de suas forças vitais e de seus
impulsos, sendo a consciência e a racionalidade instrumentos e não valores
superiores. Por isso, ao iniciar o prólogo de GC, Nietzsche estabelece a relação entre
corpo e filosofia ou filosofia e saúde.
Haveria uma relação do estado corporal de um filósofo e a sua filosofia, pois
“num homem são as deficiências que filosofam, no outro as riquezas e forças”
81
(GC/Prólogo §1 p. 10). Tenciona o filósofo como a filosofia histórica se apropriou e
compreendeu o corpo:
[...] e frequentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo. Por trás dos pequenos juízos de valor que hoje guiaram a história do pensamento se escondem más-compreensões da constituição física, seja de indivíduos, seja de classes ou raças inteiras (GC/Prólogo, §2, p. 12).
Embora o corpo constitua para o filósofo o único ponto de partida possível em
virtude de razões metodológicas, a representação de que dele temos permanece
desprovida de valor epistemológico. O ponto de partida da análise de Nietzsche é a
vontade de potência, “hipótese de interpretação e não fundamento gnosiológico
absoluto” (WOTLING, 2013, p. 123).
É preciso distinguir dois pontos, a fisiologia enquanto explicação da verdade
dos processos orgânicos e a fisiologia enquanto linguagem simbólica, como
interpretação, como falsificação, simplificação, assimilação, que busca dominar os
fenômenos orgânicos através da elaboração de uma representação desses
fenômenos, que são arrancados da esfera do misterioso e do absolutamente
desconhecido. O intelecto é instância derivada que leva à elaboração da linguagem
simbólica, permitindo que se obtenha ao menos uma descrição convencional,
simplificadora, parcialmente deformadora, dos processos orgânicos, primeiros em
relação a ele, que, por natureza, lhe escapam, e sobre os quais ele só comunica
informações pessoais.
Segundo Wotling (2003), a fórmula ‘o corpo como fio condutor’ permanece
como a tradução adequada da aplicação da hipótese da vontade de potência. A
fisiologia não entra no lugar da vontade de potência como polo de referência
fundamental a partir do qual se organiza a leitura do texto da realidade, ela é
expressão metafórica, “a primeira palavra, antes das dos instintos, pulsões e afetos,
da linguagem simbólica que permite descrever de maneira convencional a realidade,
mas não explicá-la, nem desvelar sua essência última” (WOTLING, 2003 p. 123). A
apreensão do corpo como “grande razão”, como unidade de organização (GIACOIA,
82
2002, p. 210) denuncia a “ficção do Eu”, à qual se contrapõe o “si próprio”, ou o corpo,
do qual a pequena razão ou espírito, é apenas o instrumento:
O corpo é uma grande razão, uma pluralidade dotada de um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão, meu irmão, a que chamas “espírito”, um pequeno instrumento e um pequeno joguete de tua grande razão. Dizes “eu” e estás orgulhoso dessa palavra. Porém essa coisa maior ainda, na qual tu não queres crer, – teu corpo e sua grande razão: essa não diz eu, porém faz eu (AFZ, I, §Dos desprezadores do corpo, p. 35).
Em Nietzsche toda referência à objetividade desaparece. Se ele diz, e repete
que é preciso tomar o corpo como fio condutor, também acrescenta que não podemos
esquecer que não temos conhecimento objetivo acerca do corpo. “O homem,
enquanto corpo não é um substrato espiritual ou material” (BARRENECHEA, 2002, p.
184). Corpo e mundo, longe de serem substâncias, identidades e essências, são
formas do desenrolar da vontade de potência. Nossa relação com o corpo é, desde
sempre, interpretativa. O que podemos perceber de maneira reflexiva através do
corpo já é uma triagem, uma escolha, uma reorganização na massa enorme de
processos complexos que organiza a vida do organismo. Somos seres vivos que
percebemos o mundo a partir de nossas necessidades e não espíritos absolutos.
Nesse sentido, se nunca podemos fugir da relação interpretativa, a objetividade em
geral se torna inviável.
Segundo Wotling (2003), o corpo é um conceito que, em Nietzsche, só tem
sentido em referência à teoria dos afetos. Não se trata de uma entidade material, um
substrato físico autônomo, uma res extensa, mas de um termo que serve para
designar, em sua multiplicidade irredutível, o jogo conflitual dos instintos que é a
vontade de potência. O corpo como superfície de cruzamento de infinitas perspectivas
e de natureza labiríntica. Segundo Deleuze,
[...] o que define um corpo, em Nietzsche, é esta relação entre forças dominantes e forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político. Duas forças quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo desde que entrem em relação; por isso o corpo é sempre o fruto do acaso, no sentido nietzschiano, e
83
aparece como a coisa mais "surpreendente", muito mais surpreendente na verdade do que a consciência e o espírito. (...) O corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo, "unidade de dominação". Em um corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas ativas, as forças inferiores ou dominadas são ditas reativas. “Ativo e reativo são precisamente as qualidades originais que exprimem a relação da força com a força” (DELEUZE, 1976, p. 21).
Os nossos corpos, os nossos pensamentos são constituídos por uma
pluralidade de forças em conflito contínuo que geram valores através de nós. Se em
Nietzsche o mundo é vontade de potência, anterior aos corpos (orgânicos e
inorgânicos) o que existe é um conflito perpétuo entre forças em relação contínua que
produz tudo que existe. Uma força não existe isolada de outra força, se existe uma
força ela domina ou é dominada por outra força. O que ele chama de força ativa é a
força que consegue dominar uma outra. A força que é dominada por outra força ele a
chamará de reativa.
Nietzsche chama o querer da força como vontade de potência, toda força quer
expandir a sua potência. Ela anseia pelo domínio, pela exploração e um dominar e
apropriar outras forças. O nosso corpo, assim como qualquer coisa que existe é
apenas resultado do conflito das forças. Se as coisas existem é própria da natureza
constituída por um conflito perpétuo, por um devir entre tais forças. Por isso, o filósofo
afirmará como segue “o mundo visto de dentro, o mundo determinado por seu ‘caráter
inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e nada mais (ABM, §36)”. Essas
forças continuam constituindo nossos corpos, desejam e pensam em nós. O
pensamento não vem quando queremos, mas quando ele quer. Nós pensamos e
queremos de modo contínuo e inconsciente. Como expressa Nietzsche no §354 de
A gaia Ciência:
O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência – ao menos parte deles –, é consequência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível – e para isso tudo ele necessitava antes de 'consciência', isto é, 'saber' o que lhe faltava, 'saber' como sentia, 'saber' o que pensava. (GC, §344, p. 249)
84
Quando pensamos e desejamos é só uma parte que se torna consciente. E a
consciência é só um espelho que reflete aquilo que desejamos e já pensa de modo
inconsciente, são forças ou impulsos que constitui o nosso próprio corpo e constitui o
nosso pensamento que deseja e que pensa. Daí que, consciência, pensamentos,
corpos orgânicos e inorgânicos são produtos da vontade de potência e o que ela quer
é ampliar sua própria potência, expandir suas forças. Porém o homem dominado por
forças reativas, forças que visam à conservação é um homem que só conhece a
existência pelo aspecto do reativo ou da conservação.
Somos constituídos no corpo e no pensamento por forças ativas e forças
reativas, pois somos produtos da nossa relação com a realidade. As forças reativas
(conscientes) apenas conservam, visam à adaptação ao meio. As forças ativas
(inconscientes) são forças de criação, não obedece a nenhuma constituição a priori.
O ser humano se torna reativo quando ele é dominado por forças de conservação. As
forças ativas quando não vazam são interiorizadas constituindo aquilo que Nietzsche
chama de má-consciência que em um primeiro momento é a interiorização dos
impulsos ou forças ativas, reduzindo o homem ao aspecto reativo da existência
humana. Somos dominados por forças de fora que são forças da natureza, potências
da própria natureza e assim nos relacionamos ao domínio dessas outras forças. É a
capacidade relacional das forças que cria a realidade, visto que o existente no mundo
não surge de uma adaptação a uma forma pré-estabelecida.
Na obra Ecce Homo, Nietzsche destaca a necessidade do cuidado com as
relações do corpo com as forças que nos vem de fora e que possibilitam as condições
propicias ao corpo e ao pensamento. O ser humano reativo ignora a influência do
clima no metabolismo, da alimentação, do lugar onde o corpo habita, trabalha, estuda,
das companhias e das maneiras de experimentar as potências do corpo (EH, Porque
sou tão inteligente, § 2,). O sentido da fisiologia estabelecida por Nietzsche é o
conhecimento das forças do nosso próprio corpo com forças exteriores, que podem
favorecer a potência corpórea fazendo passar intensidades, ou acabam obstruindo a
potência da criação tanto dos nossos pensamentos como do próprio corpo. É preciso
lançar o olhar para as “pequenas coisas”:
85
Essas pequenas coisas –alimentação, lugar, clima, distração, toda a cuística do egoísmo – são inconcebivelmente mais importantes do que tudo que até agora tomou-se como importante. Nisto exatamente é preciso recomeçar a reaprender. O que a humanidade até agora considerou seriamente não são se quer realidades, apenas construções; expresso com mais rigor, mentiras oriundas dos instintos ruins de naturezas doentes, nocivas no sentido mais profundo (EH, Porque sou tão inteligente, § 10).
Esta fisiologia nietzschiana é importante porque será o conhecimento da sua
própria fisiologia envolvendo lugar, clima, alimentação que favorecerá forças de
criação ou forças de conservação e adaptação. Segundo Nietzsche, foram às forças
de conservação do homem reativo que
todas as questões da política, da ordenação social, da educação foram por eles falseados até a medula, por haver se tomado os homens mais nocivos por grandes - por ter ensinado a desprezar as coisas ‘pequenas’, ou seja, os assuntos fundamentais da vida mesma (EH, Porque sou tão inteligente, § 10).
Por isso, nossa “pequena razão”, a nossa consciência, deve mergulhar nos
segredos e abismos do nosso corpo, procurando assim, desvendar os inúmeros
movimentos a que tem acesso desvendando seus enigmas e interpretando os seus
sinais.
Segundo Giacoia (2005) a tarefa interminável da sintomatologia de Nietzsche -
já que somos constituídos por forças de conservação e de criação – “tem propósito de
multiplicar as perspectivas sobre o corpo, aumentando o campo de visibilidade e as
margens de controle da consciência, para que essa possa se embeber da prodigiosa
sabedoria do corpo” (GIACOIA, 2005, p. 211). Neste sentido, o corpo não é visto como
contrário a racionalidade, mas uma figura ignorada, ou seja, a “pequena razão”, a
consciência, é apenas um instrumento dessa outra razão que é corpo e que não é
dominado pela razão e nem tampouco cabe atribuir à razão qualquer autonomia ou
superioridade, em oposição a ele. O corpo é um todo “uma multiplicidade com um só
sentido” (AFZ, I, §DA Guerra e dos guerreiros, p. 47) e que permanece abjeto para a
própria consciência.
86
A totalidade de forças e instintos que agem sobre o corpo está sempre em
embate expandindo e afirmando a vida. São multiplicidades das forças corporais que
atuam rompendo limites e criando infinitas possibilidades. É preciso compreender que
em alguns momentos, certas forças dominam, e em outras situações essas forças
obedecem, emergindo, sobressaindo à manifestação de outras vontades e afetos. Os
eventos devem ser encarados no interior deste movimento em que se produzem
perspectivas considerando o homem, o mundo e as produções sempre decorrentes
dessas relações de forças.
Para o filósofo, é no corpo que os instintos fundamentais da natureza são
exprimidos e nele se percebe a plena manifestação da natureza. Os embates e
conflitos que ocorrem no corpo, sejam eles de negação, ‘fuga’ ou de afirmação é
constituinte do modo como o homem se relaciona, interpreta, cria e vive no mundo. A
negação da vida, entendida como decadência, fraqueza e impotência, reflete um
estado fisiológico doente, pois o medo alimenta a desconfiança de lidar com a
realidade intempestiva, no devir, no acaso, nas multiplicidades e nos movimentos
conflituoso da própria natureza levando o homem a avaliar de modo negativo a vida.
Na obra Genealogia da Moral, Nietzsche entende que os sentidos das forças
sempre são reinterpretados, porém não se busca atingir um objetivo ou uma finalidade
última para elas:
[...] de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitando de maneira nova [...] de que todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorar-se, e todo subjugar e assenhorar-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o ‘sentido’ e a ‘finalidade’ anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados [...] Logo, o ‘desenvolvimento’ de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta [...] Se a formula é fluída, o ‘sentido’ é mais ainda... (GM, II, p. 60-61)
Nesse sentido, não há como existirmos fora da imanência, pois sempre existirá
aquilo que estará aberto ao imediato, a novas interpretações e avaliações. Todo
pensamento ou doutrina que desconsidera a intrínseca relação entre os instintos, a
saúde, a força, são considerados decadentes ou antinaturais. Assim, Nietzsche
tomando a vida (extramoral) como critério de interpretação nos diz que se os valores
não caíram do céu (não existem por si), mas foram gerados, que sintoma foi esse que
87
os geraram? Que vontade no homem gerou estes valores e continua investindo?
Como se cria valor? Sob que condições o homem inventou os juízos de “bom” e
“mau”?
[...]e que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? É indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro (GM, Prólogo, §3 p. 09).
Nietzsche destaca as circunstâncias em que foram gerados os valores e as
avaliações. A genealogia (enquanto método) busca mostrar que a moral na verdade
é um conceito e como tal surge num tempo e lugar determinado, aquilo que é bom e
o que é mal, não são atemporais ou extra físico, foi inventado pelo homem. Essa
invenção, como já analisando nos tópicos anteriores, parte de um sintoma de vida que
é expressão de uma potência afirmativa ou de negação, oriundas de um tipo de
homem ativo e o homem reativo expressão de tipologias morais. É necessário
compreender então como opera essa vontade no homem ativo e no homem reativo.
Os valores tidos como verdade, só porque são úteis e por conter a nossa
existência para manter-se vivo, não é critério para postular sua veracidade. O reativo
agarra-se a um sentido e a qualquer valor para conservar-se. A postura afirmativa
exerce uma crítica aos valores que apenas conservam a existência humana para criar
novos valores.
Para Nietzsche existe uma hierarquia e a criação vem a ser primeira. O que
conserva, só se conserva, o que primeiro foi criado. Porém, quando existe a inversão
no ocidente a conservação vem a ser primeira, tudo passa ao critério da conservação,
reprimindo as forças de criação e só existindo naquilo que conserva. Essa é a
perspectiva negativa, niilista, ressentida e culpada. A perspectiva afirmativa mata o
ressentimento e o sentimento de culpa.
Toda grande obra é resultado de tensão e criação de novos valores. Em
Nietzsche a causa sempre envolve relações de forças. Tudo envolve uma espécie de
psicofisiologia, ou seja, aquilo que se manifesta psicologicamente envolve o corpo. O
corpo é “a grande razão” por ser uma unidade múltipla, é ele em sua totalidade que
88
faz pensar, experimenta os sentidos, criar conhecimento. A vontade de potência se
caracteriza pela organização dessas forças.
3.3 O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE SI: DO CAMINHO DO CRIADOR
É preciso colocar em questão o valor da existência como processo de
apropriação de si, criação de si na elaboração de valores que afirme sua potência
afirmativa e possibilite o processo formativo. Sendo o homem “o animal ainda não
determinado”59 fica evidente sua incompletude, a falta e estado de deriva, portanto,
necessita empenhar-se para tomar para si a responsabilidade de educar-se e
produzir-se.
Levando em consideração a etimologia da palavra educação, educere ”levar
para fora”, “conduzir de uma margem a outra” é criar modos singulares de ser no
mundo se apropriando do Si-mesmo, isto é o corpo próprio, aquele que cria, educa-
se. Nas conferências sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino,
Nietzsche se dirige aos estudantes perguntando:
Quem dentre vocês chegará a uma verdadeira percepção da gravidade sagrada da arte, se são pervertidos metodicamente a balbuciar indistintamente por si mesmos, quando se deveria ensiná-los a falar, a estetizar por si mesmos, quando se deveria leva-los ao fervor diante da obra de arte, a filosofar por si mesmo, quando se deveria obriga-los a escutar os grandes pensadores? [Grifo nossos] (EE, §II, p. 80).
Em sua obra de maturidade Assim Falou Zaratustra, na seção dos “Dos filhos
e do matrimônio”, diz: “Deves construir para além de ti. Mas primeiro tens de construir
a ti mesmo” (NIETZSCHE, I, §Dos filhos e do matrimônio, p. 67). É fundamental que
ao querermos educar outra pessoa, entrarmos antes no exercício formativo de
elevação de si mesmo, de desconstrução de si para assim tornarmos educadores.
Mas a educação, as organizações sociais e a cultura forjaram uma noção de ser
humano que acumula ao invés de gerar, que enche ao invés de esvaziar-se e não cria
59 NIETZSCHE. Além de Bem e Mal. §62)
89
espaços e movimento de apropriação de si e mundo. Nietzsche parece tocar o âmago
do problema educacional: que tipo de ser humano, de estudante entra em formação
nos processos constitutivos do caráter e da personalidade humana? Como filosofar
por si mesmo, falar por si mesmo, estetizar por si mesmo, gerar conhecimento e
modos de viver por si mesmo?
O caminho da perspectiva Nietzschiana de educação é baseado na experiência
corporal dos impulsos. Como visto no tópico 3.2, é preciso voltar ao corpo como fio
condutor, pois é a partir dele que surgem os sentimentos e pensamentos, e a vontade
de potência os coordena e reúne a infinidade de impulso, pulsões, instintos, desejos
e inclinações do ser humano. A maior parte do pensamento consciente é determinada
pelas atividades instintivas. Dessa forma, “nossas valorações morais são fantasias
sobre um processo fisiológico que desconhecemos, e a consciência é um comentário
sobre um texto não sabido, mas sentido” (A, §119, p. 92). É importante, aqui, a ideia
de certo arranjo entre os instintos, ou seja, mover-se neste abismo de caos supõe a
relação e a interpretação das forças para um modo afirmativo e isto é o que promove
a unidade do “eu”, e não o contrário.
Segundo a autora Dias (2011), o fato de o homem ser uma singularidade é
condição determinante para guiá-lo a sua própria medida e lei na criação de si. O “eu”
expressaria para Nietzsche uma metamorfose que está a se reinventar
constantemente e nunca é algo estável e fixo como uma substância. O “eu” não é
apenas outro ou uma entidade dotada de uma natureza imutável, mas um pedaço de
todo conjunto linguístico e sendo assim, a linguagem é toda exterioridade60. No fundo,
o “eu” seria uma mistificação a ser superada, pois “esse ‘eu’ é igual a todos os outros
‘eus’ gregários” (DIAS, 2011, p. 105). A mistificação vem do uso que fazemos da
linguagem quando a usamos para designar aquilo que somos ou supostamente
acreditamos ser. Essa partícula que remete a uma ‘interioridade, que designa e que
leva a consciência de mim mesmo, ao se relacionar com aquilo que concebe como
outro que é mundo, o “eu” entra em variação gerando signos que se encadeiam e
assim vão estruturando um processo que conhecemos como subjetivação. Porém, é
60 No tópico 2.2 discutimos sobre a relação conhecimento e linguagem no modo como o intelecto abstrai e cria conceitos.
90
preciso compreender que o sentido e o intelecto ou espírito são apenas instrumentos
que ocultam o Si-mesmo, pois o corpo “não diz Eu, mas faz Eu” (AFZ, I, §Dos
desprezadores do corpo, p. 35). Nos fala o personagem Zaratustra:
Instrumentos e brinquedos são sentidos e espírito: por trás deles está o Si-mesmo. O Si-mesmo também procura com os olhos do sentido, também escuta com os ouvidos do espírito. O Si-mesmo sempre escuta e procura: compara, submete, conquista, destrói. Domina e é também o dominador do Eu. Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido-ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo o habita, teu corpo é ele (AFZ, I, §Dos desprezadores do corpo, p. 35).
O Si-mesmo implica uma realidade de vozes de diversas intensidades que se
alteram e reservam expressando esse “eu”, usando para isso um signo que exprima
sua singularidade e não como algo subjetivo. Despojar-se de todas as máscaras
torna-se uma tarefa por demais insatisfatória, pois sempre haverá inúmeros
sentimentos, forças e interesses de diferentes ordens se sobrepondo e nos movendo.
Assim, a tarefa de “tornar-se o que se é” implica no distanciamento da cultura artificial,
ou seja, não há na interpretação nietzschiana um “eu fixo”. Daí erroneamente nos
colocamos em busca de um sentido para o “eu”. A esta tarefa de busca, assevera o
filósofo:
É também uma empresa penosa e perigosa cavar assim em si mesmo e descer à força, pelo caminho mais curto, aos poços do próprio ser. Com que facilidade, então, ele se arriscaria a se ferir, tão gravemente que nenhum médico poderia curá-lo. E, além disso, por que seria isto necessário, se tudo carrega consigo o testemunho daquilo que somos, as nossas amizades e os nossos ódios, o nosso olhar e o estreitar de nossa mão, a nossa memória e o nosso esquecimento, os nossos livros e os traços de nossa pena? (SE, §1, p. 165).
Na citação acima, Nietzsche apresenta o que seria a “lei fundamental de nosso
ser” e que nos constitui, a saber, o conjunto de objetos que nos dominam e preenche,
como já expresso em passagens anteriores, são os olhares atentos “às pequenas
coisas”. Tudo que amamos o que desperta nossos interesses, nossas alegrias e tudo
que nos atrai. Estes são os “objetos venerados” que se completam e crescem
91
preenchendo dentro e fora o íntimo do nosso “eu”, expressando neste sentido nossa
singularidade:
Compare estes objetos, observe como eles se completam, crescem, se superam, se transfiguram mutuamente, como forma uma escada graduada através da qual até agora chamaste de eu. Pois tua essência verdadeira não está oculta no fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti, ou pelo menos daquilo que tomas como sendo teu eu. (SE, §1, p. 165).
Neste sentido, para alcançar os fins mais elevados, o indivíduo a partir de sua
individualidade poderia reconhecer seus limites, carências e remédios que
possibilitassem atingir seus objetivos. Nietzsche tem em mente que tornar-se o que
se é envolve um percurso repleto de perigos tentadores, pois, por todos os lados o
homem é seduzido a tornar-se outra coisa distinta daquilo que ele é: ora erudito, ora
homem de ciência, ora um comerciante. Trata-se sempre da mistura de diferentes
características em uma única imagem: o homem moderno. No caminho do
aprendizado de ser ele mesmo, o homem é conduzido a uma tarefa árdua e penosa,
pois, torna-se suscetível ao tédio, à solidão, mergulhado ao desprezo e à profunda
melancolia.
Este caminho singular e solitário exige uma liberdade constante e tal
caminhada não é livrar-se daquilo que lhe oprime, mas uma conquista, e necessário
é a ruminação, a paciência. “Sabem vocês para onde levam estes passos, para onde
atrai esse caminho brilhante?” (SE, §4, p. 126). Na solidão o sujeito sofre porque
ninguém reconhece, não entende, ainda há culpa quando espera o julgamento dos
homens e sente-se necessidade de ser reconhecido. Não basta ir para a solidão, é
preciso não se sentir injustiçado pelo rebanho, assim começa a falar em nome próprio,
o Si-mesmo, o tornar-se criador. Se o homem ainda necessita de reconhecimento, de
algum um tipo de aplauso dos homens que participam de um rebanho é porque ainda
sofre da solidão. Por isso, nos aconselhará Zaratustra na seção §Das moscas do
mercado, “foge para a tua solidão, meu amigo! [...] onde cessa a solidão, ali começa
o mercado” (AFZ, I, §Das moscas do mercado, p. 51).
Só é criador quando a solidão já não é um problema e se vive de modo
imperceptível, pois “longe do mercado e da fama se passa tudo o que é grande: longe
92
do mercado e da fama habitam, desde sempre, os inventores de novos valores” (AFZ,
I, §Das moscas do mercado, p. 52). Não se deve amar o que é próximo, mas amar ao
o distante que é na verdade um amor a si mesmo e quando se sofre da própria solidão
é porque não ama a si mesmo. Por não amar a si mesmo, a experiência da solidão é
terrível, o sujeito não suporta ter momento de solidão precisa então da gregaridade,
do estabelecido e da conduta do rebanho.
3.3.1 Do caminho do criador
Na seção “Do caminho do criador” da primeira parte da obra Assim Falou
Zaratustra, o personagem nos ensina como o próprio homem tornar-se o que se é.
Segundo Larrosa (2009) este escrito poderá ser compreendido como um poema
didático em prosa, há uma linguagem poética e refinada podendo ser visto como
romance de formação (Bildungsroman). Seguindo esta noção, buscamos interpretar
essa obra não como um sistema, mas com a sua narrativa e sua forma poética
apresenta o caminho do cultivo da personalidade autêntica como o processo formativo
numa incessante construção.
Não há um modo ou fórmula que prescreva um caminho a conduzir o criador
de si, pois o caminho é criado ao mesmo tempo em que vai formando-o na própria
experimentação de se pôr a caminho. Esse caminhar é um percurso que abre veredas
dentro de si em uma poética do viver repleto de caminhos e labirintos ainda a se
explorar.
O caminho é a viagem, uma atividade que se lança na própria vida, em sua
complexidade e incerteza. Este caminho que exige coragem para lançar-se não dá
garantias, esse tipo de formação não tem controle sobre o conhecer e o aprender. Por
isso, Zaratustra não nos fala por regras ou normas, mas pelo experimento consigo
próprio, na apropriação de suas forças, no seu Si-mesmo, na afirmação de todo
manancial que é a vida.
93
Aqueles que desprezam a vida são duramente criticados e os criadores são
destacados, visto que apenas os criadores conseguem amar e unir aquilo que é
estranho, hostil. Tem anseio e buscam superar sua própria vontade criando diferentes
modos de existência, diferentemente dos desprezadores da vida (o homem reativo)
que menospreza sua capacidade de criar. O corpo criador criou para si o espírito,
como “uma mão de sua vontade” (AFZ, I, §Das paixões alegres e dolorosas, p. 36). O
empreendimento do personagem Zaratustra e sua preocupação com a educação, a
formação (Bildung), sendo importante compreendermos, a partir de sua descrição, o
caminho para chegar a si mesmo, a tornar-se o que se é. É preciso cuidado e comando
de si nesta empreitada educativa e formativa. Adentrando neste labirinto é preciso
deter-se na solidão para ouvir a si mesmo e não se perder nas forças outrora
revestidas de instituições, de profissão e do próprio Estado:
Queres ir para a tua solidão, meu irmão! Queres buscar o caminho para ti mesmo? Detém-te um pouco e me escuta: “Quem busca facilmente se perde. Todo isolamento é culpa”: assim fala o rebanho. E durante muito tempo pertenceste ao rebanho. A voz do rebanho ainda ressoará dentro de ti. E, quando disseres ‘já não tenho a mesma consciência que vós’, isso será um lamento e uma dor. Vê, essa dor mesma foi gerada por tal consciência, e o último reluzir dessa consciência ainda arde na tua aflição. Mas queres seguir o caminho de tua aflição, que é o caminho para ti mesmo? Então me mostra teu direito e tua força para isso! (AFZ, I, § Do caminho do criador, p. 61).
O sujeito preso na gregariedade, na organização do Estado, não tem a
experiência da solidão, as pessoas não podem ficar com elas mesmas, pois
começaram a ter desejos que não convém ao ponto de vista dos poderes
estabelecidos. “Queres encontrar o caminho para ti mesmo?”61 A ausência de si nos
torna doentes, sofremos porque estamos ausentes de si mesmos, preso a atividade
maquinal que distrai a consciência. Todo isolamento tornar-se culpa: “- você vai se
perder” é a acusação contra nossa singularidade. Através do silêncio e da solidão
estramos no deserto, na caverna de Zaratustra (AFZ, Prólogo, p. 11).
61 NIETZSCHE, I, §Do caminho do criador, p. 60
94
Ao afirmar sua existência o indivíduo é levado ao questionamento de si, e
questionando o seu ser é possível que chegue à afirmação de “assumir diante de si a
responsabilidade por sua existência [...] e não apenas uma contingência privada de
pensamento” (SE, §1, p. 163-164). Certamente, existirá “veredas e pontes e
semideuses” que aparecerão com intuito de “ajudar” o homem na busca de ser ele
mesmo. Assim, Nietzsche, ao definir “‘o homem como um animal ainda não
determinado’ sabe que o ser humano corre o risco de se extraviar e de se
degenerar”62.
Por outro lado, o filósofo entende que devido a característica maleável de se
regenerar, ampliar, apropriar-se, criar e transformar-se, o ser humano pode educar-
se. Mas como pode o homem educar a si mesmo? Como veremos, segundo
Nietzsche, é preciso constantes transformações, metamorfoses. É preciso a
superação dos valores para criar novos valores e isso se dá pela transvaloração de
todos os valores.
É preciso que a existência seja afirmada assumindo a presença de si no mundo,
e esta é dada a partir de um vínculo ocupacional ou profissional, mas de um modo de
ser singular, único. Neste sentido, para Nietzsche, é preciso buscar nos experimentos
de vida, na apropriação do Si-mesmo, modos de viver que elaborem sempre o vir-a-
ser63. Buscar sempre a força ativa que o impulsiona, força que não busca imitar
passivamente o exemplo, mas tenta superá-lo, reconstruí-lo a partir das
potencialidades que surgem no contato com os mestres e educadores. Para dar um
exemplo de como educar a si próprio, Nietzsche apresenta suas experiências no
campo da educação como forma de uma confissão, apresentando sua personalidade
educadora:
Quando outrora eu me entregava, por vontade própria, a fazer minhas promessas, imaginava que o terrível esforço, o tremendo dever de educar a mim próprio, me seria poupado pelo destino, porque no momento propício encontraria um filósofo para me educar, um verdadeiro filósofo a quem pudesse obedecer sem mais reflexão,
62Cf. DIAS. 2011, p. 118. 63O modelo como uma imitação para Nietzsche não é a imitação passiva do “filisteu da cultura”, o qual age como uma cópia visando lucrar-se. “A imitação, para ele, é construtiva, ativa, permitindo a reconstrução do modelo, a superação de si mesmo” (DIAS, 1993, p, 76).
95
porque teria nele mais confiança do que em si próprio. Depois, é verdade, eu me perguntava quais os princípios poderia ele então adotar para minha educação (SE, §1, p. 166).
A educação ocorre a partir do modo experimental na vida e não apenas pela
transmissão desenfreada de conhecimentos. Nietzsche estaria indicando em relação
à imitação, o que expressa em seu Zaratustra, acerca da necessidade de superarmos
ao passo que não nos encontrando, buscamos sempre o auxílio de outrem64. Ao
encontrarmos a figura exemplar daqueles que possa auxiliar este processo de
formação, é preciso assumir nossas singularidades. A “força” que fora encontrada, o
processo, o meio, desaparece assim no produto.
É preciso de tempo, lentidão, ruminação, pois, “a voz do rebanho ainda
ressoará dentro de cada um”, porque há muito tempo estivemos no rebanho, no
caminho alheio ao nosso. Mas o caminho é a necessidade de criar seus próprios
valores. O “pior inimigo que podes encontrar será sempre tu mesmo” necessário é
uma luta sobre si mesmo (AFZ, I, §Do caminho do criador, p. 62).
Este caminho exige constantes metamorfoses que o nosso espírito deve
passar, a saber, “de como o espírito se torna camelo, o camelo se torna leão e o leão,
por fim, criança” (AFZ, I, § Das três metamorfoses, p. 27). Estas três imagens
expressam em Zaratustra a atitude do homem no modo como avalia a vida e que
somos acometidos o tempo todo. É a atitude pedagógica de se dirigir a cada momento
que surge como transformação, que sempre reporta a cada momento em que ele se
expõe como mudança e metamorfose. Este é um do seu caráter educativo e um
convite para rever valores e crenças quando se sustenta e expõe-se diante da vida.
O camelo é a figura daquele que vai carregando os valores estabelecidos
fazendo “bilhar sua tolice”, negando sua vontade criadora e carregando nas costas o
peso do seu deserto. O homem do ressentimento sofre porque está aprisionado, daí
a vontade não cria. É aquele que perde energia em descobrir maneiras de se vingar,
maneiras de agir ressentida, com relação a algo que lhe aconteceu, pois “o que é
64Dirá Nietzsche pela boca de Zaratustra, “Ainda não havíeis procurado a vós mesmos: então me encontrastes. (...) Agora vos digo para me perder e vos achar; e somente quando todos vós me tiverdes negado eu o retornarei a vós” (AFZ, I, §Da virtude dadivosa, p. 76.
96
pesado? Assim, pergunta o espírito resistente, e se ajoelha, como um camelo, e quer
ser bem carregado” (AFZ, I, § Das três metamorfoses, p. 27). Na consciência do
camelo impera o “Tu deves”, impera uma necessidade de alguém que lhe conduza e
indique a direção. O camelo não pode dizer “não” porque ele é um ser que obedece,
perdeu sua coragem e em alguns momentos ao dizer "sim", é um “sim” sem sentido,
é o "sim" escravizado, domesticado e servil.
O leão é a força que deseja, “eu quero a vida finalmente”. Ser leão, é querer
queimar na sua própria chama e “ter um caos dentro de si, para poder dar à luz uma
estrela dançante” (AFZ/Prólogo, p. 18). É aquele que percorres o caminho de quem
ama, passa por dúvidas, confusões, e busca fazer virar cinza o rebanho dentro dele,
pois para criar é necessária a morte interna. “Há sentimentos que buscam matar o
solitário; se não o conseguem, eles próprios têm de morrer! Mas és capaz disso, ser
um assassino? ” (AFZ, I, §Do caminho do criador, p. 62). O leão carrega um grito
ressonante em suas entranhas, ele anseia a liberdade, é rebelde, vive da confrontação
buscando destruir tudo que lhe prende e inibe de seguir seu caminho. Não muda os
valores, mas destrói radicalmente as entranhas que os geraram, diferentemente do
camelo, o leão não tem necessidade de que alguém lhe der ordens, ele é seu próprio
líder. O "Tu deves" já não comanda, ao contrário isto é ofensa para o seu orgulho.
Nele impera o "Eu quero", pois “criar liberdade para si e um sagrado “Não” também
ante o dever: para isso, meus irmãos, é necessário o leão” (AFZ, I, § Das três
metamorfoses, p, 28). Já o leão não pode dizer “sim” é contra a sua natureza, pois
isto o lembra do “sim” do camelo.
No leão há um grande esforço para romper todas as repressões. É preciso que
o leão passe também por uma metamorfose, neste estágio do crescimento humano
não há criação de valores, sua força ainda é reativa. Como nos diz Zaratustra: “criar
novos valores - tampouco o leão pode fazer isso; mas criar a liberdade para a nova
criação - isso está no poder do leão” (AFZ, I, § Das três metamorfoses, p. 28). O leão
agora deve tornar-se criança.
A criança é o movimento da transformação em devir, é inocência e
esquecimento. Esta imagem da criança reflete aquele que não é instruído ou
deformado pelas instituições, ela é sempre o começo e diversão, na sua inocência há
97
sempre uma espécie de deslumbramento; ela é o símbolo da expressão da
sinceridade, autenticidade e abertura, sendo pura confiança: “um novo começo, um
jogo, uma roda a girar por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim”
(AFZ, I, §Das cátedras da virtude. p. 29). Dirá Zaratustra: "inocência é a criança, e
esquecimento". O espaço de devir aberto pela imagem da criança lança uma liberdade
que não se tem garantias, não se agarra em nada e é sempre um estado a porvir. Seu
"sim" parte da confiança, caso contrário não o diria, pois ela tem todo o potencial para
dizer "não", e quando o diz, não age por medo, não é ressentida nem sofre do
passado, mas pela confiança diante da existência e da vida e a tudo nela contido.
Aquilo que simboliza a criança no espírito é o sujeito que mata o ressentimento
(o leão), o sentimento de culpa (o camelo) e não precisa se pendurar num ideal
ascético para salvar-se. O sentido e o valor que foram criados em algum momento
terão que ser destruídos, pois eles não são eternos, mas exigem superação constante.
É um retorno da potência de criar e não das mesmas coisas, por isso, o sentido e o
valor que foram criados não são eternos. É necessário dar a existência novos sentidos
para os signos e interpretações, como o poeta que violenta a gramática ativando
intensidades nas imagens de suas metáforas. É por anular sua potência de criação
que os homens tornam impotente seus impulsos.
Na gregariedade o homem é reduzido ao uso banal da linguagem que conserva
a existência por suas regras e pactos sociais. A conservação da existência é
importante, porém primordial é a criação, o devir-criança. Aquilo que é conservado,
através da obediência passiva (figura do camelo), foi criado anteriormente pelo hábito
e pelo esquecimento dos homens, tomado como verdades. É preciso então que estas
verdades sejam destruídas com a selvagem a força do leão para as criações de outros
valores e verdades, a partir da perspectiva da potência singular, com a originalidade
inocente da criança. É o movimento da própria vida de apropriação, destruição e
criação que não tem origem nem finalidade.
As imagens das três metamorfoses, longe de serem figuras unívocas ou
doutrinável é antes um espelho de nossa relação com o mundo e conosco diante da
perplexidade do caminhar. O caminho criador exige a travessia de todas as
experiências da existência humana de um impotente "sim" e de um feroz "não". Este
98
percurso exige movimentos de longa duração que se expressa no incerto do caminhar,
no intemporal, no instante que se queira como eterno ou na eternidade instantânea.
Nesta aventura da escuta de si mesmo, é preciso passar pelo enfrentamento das
decepções, dos medos e incertezas, da avaliação dos valores morais. Esse
direcionamento no cultivo de si lança-se a uma vontade que quer criar.
Todo verniz moral, para Zaratustra, impede o surgimento de homens singulares
e afirmativos, pois “quem sobe aos montes mais altos ri das tragédias do palco e da
vida” (AFZ,I, §Do ler e escrever. p. 41). É necessário o afastamento de tudo que
uniformiza e afasta de estar perto de si mesmo. Nietzsche destaca novamente a
solidão necessária contrária à multidão e tudo que nos padroniza, anulando a
subjetividade e as singularidades, fazendo que aquilo que é único e histórico em cada
indivíduo seja exaurido na massificação dos valores.
A solidão dirá para Zaratustra que a vida quer aprender a falar, “querem
cavalgar em teu dorso”, não na gregariedade, porque na experiência da solidão a vida
quer se expressar de maneira singular. A vida quer se tornar palavra, signos da
música, da pintura. A vida então tem um sentido que acreditamos, talvez exista um
objetivo, mas este na verdade é um simulacro de objetivo, não é para se levar a sério.
O que interessa é o que intensifica enquanto se busca um objetivo. A vontade de
Potência é sempre um eterno retorno de maneiras de existir que a intensificam sem
chegar a um objetivo. É o leão que quer a vida novamente, quer expressar-se, não
quer se submeter ao “tu deves” da moral.
O caminho inspira o experimento necessário para tornar-se o que se é. A
criação se faz importante por mobilizar no homem outras dinâmicas de entendimento,
de diferentes processos criadores e da vontade de potência de onde surgem os
impulsos vitais nas invenções e construções de nossa própria vida. O homem abre
assim a possibilidade de poetizar e inventar uma singularidade, uma personalidade
autêntica na afirmação da existência nascida de uma exuberante vitalidade. Ao passar
por diferentes processos e metamorfoses, este caminho nos ensina e nos é formativo
exigindo a demolição daquilo que temos de mais convicto em nossas entranhas. Por
isso, não são mais os valores reativos, a nossa “pequena razão” que deve nos
99
comandar, o corpo também se faz presente como a casa da interpretação e da
criação.
Assim, o tornar-se o que se é no processo formativo de apropriação das forças
que possibilitam a intensificação da vida, propõem ao homem ver a sua existência
como singularidade aberta, sempre como obra de arte interminável, em oposição ao
rebanho, ao erudito e ao homem que se degenera da sua potência de criar. Valoriza-
se o cuidado, no que lhe é próprio, “nas pequenas coisas”, no “Si-mesmo”. O filósofo
almeja fazer com que o homem se lembre de si mesmo, sobretudo, como um criador,
um artista. Vida é sinônimo de tempo que é ação, vida que é preciso mover-se para
fazer política e o mundo que vivemos é produto de nosso pensamento. Para viver um
mundo novo, é preciso mudar nossa ação cotidiana. Isto envolve, portanto, a
recuperação de um novo gesto.
100
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao tecer estas considerações, visualizamos a problemática de pensarmos uma
educação que busca unir vida e pensamento. Nosso primeiro esforço consistiu em
compreender os aspectos que estão na gênese da crise dos modelos educacionais,
sobretudo no que se refere à postura dos setores que desenvolvem a educação na
Alemanha do século XIX. Segundo Nietzsche, a educação neste período não favorece
uma educação criativa. Pois, o papel de toda cultura é favorecer o nascimento e o
cultivo de grandes personalidades, ou seja, de indivíduos críticos, criadores e
inconformados com sua época.
É importante destacar que para haver cultura é preciso uma educação que
incentivem o desenvolvimento de personalidades autênticas e criativas que nascem
no seio da própria natureza. Por isso a grande preocupação de Nietzsche frente à sua
época, momento no qual vê apenas fragmentos de homens destinados - não mais a
uma formação humanística, artística e criadora- à obtenção de uma formação e
capacitação para atingir uma posição na escala social.
Ao lançar críticas ao Estado, à ciência e ao erudito, Nietzsche nos mostrar que
o homem da modernidade, sendo fruto de diversas forças antagônicas, passa em sua
época a ter o Estado como o grande regulador de todas as contradições. A ciência é
vista como o conhecimento que levaria os indivíduos a saírem do mundo das opiniões
e os conduziria à verdade. Neste sentido, a sociedade e os indivíduos passaram a
girar em torno do Estado, destinando a este toda a finalidade de suas ações e na
construção de seus ideais.
Na mesma posição são colocados os professores de filosofia. O Estado os
convoca para serem seus servidores, acreditando, com isto, possuir a filosofia ao seu
lado. Nietzsche argumentará que a ideia de filósofo-educador nas instituições de
ensino passa a ser tratada como obsoleta, pois a grande preocupação é a formação
de homens eruditos e o quanto de conhecimento estes podem acumular.
101
Há uma grande pressa e excesso no acúmulo de conhecimentos que
possibilitam os indivíduos adentrarem o mais rápido possível na satisfação do mundo
das necessidades. Por isso a cultura, para Nietzsche, concebida por seus
contemporâneos, não expressa a cultura autêntica, pois ela não deve visar a um status
quo ou a um bem utilitário. Sua função é fazer nascer as personalidades autênticas,
criadoras de si. Nietzsche não renega a luta pela sobrevivência e a satisfação do
homem frente suas necessidades básicas, porém o filósofo alerta que não existe
cultura se colocá-la com a finalidade última ações pragmáticas. O que leva ao
degeneramento da cultura, entrelaça os quatros tipos utilitarista de egoísmo, que
ficaram evidentes na pesquisa, a saber: o egoísmo dos negociantes, dos
camufladores, do Estado e dos cientistas. Todos estes egoísmos corroem a cultura
de modo a fazer dela apenas uma possibilidade de atingir o lucro, a autopromoção e
uma falsa criação, pois buscam apenas a realização do interesse geral, a produção e
o acúmulo excessivo.
Aliadas aos tipos de egoísmo estavam duas tendências que corroboram para o
enfraquecimento da cultura. De um lado, está a extensão da cultura, com objetivo de
atingir o máximo de homens possíveis, vinculada à economia política, e aos interesses
mercadológicos. A segunda tendência visava a redução, caracterizada na
especialização do erudito e a divisão do trabalho nas ciências. Todos estes
movimentos favoreceram a produção de uma cultura artificial, na figura do erudito e o
seu ligamento com um saber mecânico e sem intensificação de sua potência.
A crítica lançada por Nietzsche à concepção de educação e ao homem
moderno, está alicerçada por uma compreensão de indivíduo levado à exaustão e sua
forma de relacionar-se como o conhecimento. Por isso, Nietzsche busca na obra
Nascimento da tragédia a dimensão das figuras de Apolo e Dionísio como forma de
contraponto a um modelo de razão instaurado na modernidade. A arte promoveria a
dissolução do indivíduo, colocando-o na condição de fronteira, o homem assim voltar-
se-ia a conciliar com sua natureza: criador de si. A tragédia, no olhar nietzschiano,
nos mostra a necessidade da conciliação do apolíneo, relacionado à razão, à
consciência, e o dionisíaco, relacionado à embriaguez, à dissolução da consciência a
partir do momento do impulso, da imanência e o criador de um artista. É preciso
102
preservar o movimento contraditório dos instintos, e não sua eliminação ou elevação
de um instinto sobre os demais.
Outro aspecto fundamental de nossa análise foi compreender a necessidade
de reabilitar o corpo como campo de experimentação, promovendo a crítica aos
valores, e entendendo que a vida é vontade de potência. A noção de homem visto em
Nietzsche é questão fundamental. Aliado a um processo de adaptação as
circunstâncias exteriores, ao Estado, a uma profissão, o homem tornar-se aquele que
é responsável moralmente, obediente e sua felicidade consistiria em atingir um status
social. Para aquele que busca alcançar um caminho para si mesmo, uma educação
do caminho do criador, que rabisca modos de ser na elaboração de sua singularidade,
é necessário resgatar a força e a potência dando-lhes novos direcionamentos na
criação do seu estar no mundo.
Importante observar que o percurso daquele que busca criar um caminho para
si, passará sempre pela destruição daquilo que é, e assim, recriar-se constantemente
em meio a dança de um vir-a-ser. O medo de assumir a vida como vontade de
potência distancia o homem dele próprio, deixando-se guiar pelo impulso de verdade
desprezando a intuição, a fantasia, para agarrar-se a certezas imediatas degenerando
seus instintos nascidos da potência vital do corpo. A capacidade intelectiva de
representar, mascarar ocultou no homem a real origem e função da faculdade da
consciência. É preciso que a “pequena razão”, a consciência, penetre nos abismos do
corpo sem cair na antiga oposição entre corpo e alma.
Como visto na segunda parte deste estudo, a hierarquização dos instintos é
uma imposição moral. Na hierarquia ficam evidentes os tipos de instintos que são
valorizados ou depreciados por uma moral. Sensibilidade, pensamento, vontade se
fazem presentes também no corpo, não são apenas atributos da alma. Em nossas
células, nas funções de nossos órgãos, são dotados de regime próprio, configuram-
se como “sujeitos” também. São multiplicidades das forças corporais que atuam
rompendo limites e criando infinitas possibilidades. É preciso compreender que alguns
momentos, certas forças dominam, em outros obedecem, emergindo, sobressaindo à
manifestação de vontades e afetos. O corpo torna-se, assim, a própria metáfora
103
interpretativa; ruminar, ouvir, ver, iludir, esquecer são alguns dos tropos que
expressam sua empreitada filosófica.
O medo de ser vontade de potência, de ser aquilo que se é, distancia o ser
humano dele próprio, da sua possibilidade de destruição do que é, e o lança a uma
vida muitas vezes superficial e inautêntica. É preciso colocar em questão o valor da
existência como processo de apropriação de si, criação de si, na elaboração de
valores que afirmando sua potência afirmativa possibilite o processo formativo.
É neste sentido que as reflexões aqui apresentadas buscam, na interpretação
nietzschiana, promover uma ideia de cultura e educação que prolongue a natureza a
realizar sempre a sua obra: o nascimento de grandes personalidades que saibam lidar
com a vida e o pensamento de forma a criar e recriar incessantemente. Uma
concepção de educação que desenvolva nos estudantes a personalidade ativa e
criadora frente a sua sociedade. Em uma época de massificação e padronização,
faltam indivíduos que saibam lidar com as inseguranças, os conflitos e suas
subjetividades.
Após elucidarmos algumas proposições levantadas à luz nietzschiana,
chegamos ao término desta pesquisa nos questionando: Como seu pensamento pode
nos auxiliar a pensar a nossa educação na atualidade? Como nos educarmos e
consequentemente contribuir no processo de formação de nossos estudantes, nesta
empreitada do tornar-se o que se é? Como constituirmos o corpo como potência de
mover e ser movido?
É inegável a pertinência de todas as questões aqui levantadas. A partir da
reflexão nietzschiana, percebemos que a própria vida necessita de uma cultura sadia
e realmente viva; é preciso pensar nos estabelecimentos de ensino que possam estar
voltados para a cultura e não apenas para uma formação que se degenera. A escola,
a universidade e os educadores deveriam buscar formas de estimular a criação e as
suas singularidades, desenvolvendo assim, a criação de indivíduos realmente cultos
e não apenas destinados ao estímulo de um conhecimento para fins utilitários.
Sabendo que “nascemos biologicamente prontos, como os outros animais, mas
104
espiritualmente inacabados”65. É preciso nos tornamos capazes de exercer as
potencialidades de nosso espírito a partir de um entrelaçamento entre a vida e a
cultura em seu processo de autocriação.
Assim, nos reportarmos a nossos grandes mestres que marcaram nossos
processos formativos - tal como as leituras de Nietzsche acerca de Schopenhauer -
buscamos não seus encadeamentos lógicos e seus pensamentos, mas o “fragmento
de sua personalidade”66. É neste sentido, que o valor de um pensamento ou de uma
filosofia, segundo Nietzsche, não reside exclusivamente na esfera do conhecimento,
mas da vida67.
Por isso, é necessário nos lembrarmos dos exemplos que exalam “invenções,
audácia e esperança”, os quais trazem força e alegria aos seus sucessores, nos
movendo em direção à criação de novas possibilidades de vida que garantam o cultivo
e apropriação de nossas forças criadoras.
65 GALEFFI, 2014, p. 12 66Ver DIAS, Rosa. Nietzsche Educador (1993, p. 114) 67 Ibidem, (1993, p. 114).
105
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