Post on 27-Jun-2020
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA
FILIPE PESSOA CAMELO
“GASTRONOMIA” REGIONAL CRIATIVA: O
CASO DO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS
FORTALEZA – CEARÁ
2017
FILIPE PESSOA CAMELO
“GASTRONOMIA” REGIONAL CRIATIVA: O
CASO DO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado Acadêmico em Sociologia do
Programa de Pós-Graduação em
Sociologia do Centro de Estudos Sociais
Aplicados da Universidade Estadual do
Ceará como requisito parcial à obtenção
do título de mestre em Sociologia. Área de
Concentração: Sociologia.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Kadma Marques
Rodrigues.
FORTALEZA – CEARÁ
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Sistema de Bibliotecas
CAMELO, Filipe Pessoa.
“Gastronomia” Regional Cearense: O Caso do Centro das Tapioqueiras.
[recurso eletrônico] / Filipe Pessoa Camelo. – 2017. 1 CD-ROM: il. ; 4 ¾ pol.
CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico
com 105 folhas, acondicionado em caixa DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).
Dissertação (mestrado acadêmico) – Universidade Estadual do Ceará,
Centro de Estudos Sociais Aplicados, Mestrado Acadêmico em Sociologia,
Fortaleza, 2017.
Área de concentração: Sociologia.
Orientação: Profª. Ph.D. Kadma Marques Rodrigues.
1. Gastronomia. 2. Cultura Alimentar. 3. Criatividade. 4. Tapioca. I. Título.
À Deus.
AGRADECIMENTOS
A Deus, a Jesus e ao Espírito Santo por estarem comigo a cada momento da minha vida.
Nos momento de acertos e de erros, sempre colocando aos meus olhos o melhor que há
por vir. Amo vocês!
A minha esposa, Katiane Camelo. Obrigado pelos dias e noites de muita compreensão,
parceria e por cada palavra que tem me feito crescer espiritual e profissionalmente. Amo-
te!
A meu pai, minha mãe e meu irmão, uma família abençoada. Grato pelo amor e auxílio
diário.
Ao meu sogro e minha sogra. Agradeço pela ajuda nos momentos que necessitei.
Aos professores do Mestrado Acadêmico em Sociologia da Universidade Estadual do
Ceará (UECE). Sou grato pelos ensinamentos tanto durante as aulas quanto nos momentos
informais.
Aos meus e as minhas colegas de turma do Mestrado Acadêmico em Sociologia da
Universidade Estadual do Ceará (UECE). Obrigado pelo companheirismo.
Ao Programa de Educação Tutorial – PET da Sociologia, da Universidade Estadual do
Ceará (UECE), por ter proporcionado inúmeras oportunidades para o meu
desenvolvimento acadêmico.
A minha orientadora Prof.ª Dr.ª Kadma Marques Rodrigues. Durante estes dois anos, tem
compartilhado comigo suas experiências acadêmicas, mostrando-se uma socióloga
criativa, ativa e responsável. Deixo o meu “muito obrigado” por sua atenção, paciência e
amizade.
À Profª. Drª. Maria Lucia Bueno Ramos, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Agradeço os direcionamentos teóricos colocados em minha qualificação, pois foram
imprescindíveis para a conclusão dessa pesquisa.
À Profª. Drª. Gerciane Maria da Costa Oliveira, da Universidade Federal Rural do Semi-
Árido (UFERSA). Grato por participar da minha banca de qualificação ampliando as
reflexões e os estudos.
Às professoras doutoras Raquel Azevedo, Manuela Barros e Gustava Bezerril do curso de
graduação em Ciências Sociais da UECE. Obrigado por seus ensinamentos.
Ao professor Gerson Augusto de Oliveira Junior do Curso de Graduação em Ciências
Sociais da UECE. Minha caminhada acadêmica começou com seus ensinos. Serei sempre
grato.
Às secretárias do curso do Mestrado, Cristina e Luciana, que sempre me ajudaram
facilitando a resolução dos problemas acadêmicos. Obrigado também pelas conversas
agradáveis e alegres.
Às tapioqueiras Núbia, Valdênia e Leonícia do CETARME por partilharem de suas
experiências profissionais e de vida, contribuindo, assim, para o processo de construção
desse trabalho.
Ao tapioqueiro Reginaldo do CETARME pelas conversas agradáveis e por compartilhar
seus ensinamentos a respeito de seu ofício.
A todas(os) aquelas(es) do CETARME que participaram desta pesquisa direta e
indiretamente. Admiro a força de vontade e a busca constante por melhorias em suas
condições de trabalho.
À Eveline Tabosa, do SEBRAE. Obrigado pela recepção amigável e por aceitar ceder
uma entrevista para nossa pesquisa.
Ao Fernando, da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) do Estado do
Ceará, responsável pela Coordenadoria de Empreendedorismo, que foi muito solícito.
Grato!
Aos meus irmãos em fé da Igreja do Evangelho Quadrangular do João Paulo II. Obrigado
por suas orações.
Aos meus amigos Filipe Pinheiro, Reginaldo, Alesson, David e Danny. Nossas conversas
possibilitaram meus avanços no trabalho de campo e em minhas reflexões.
Aos integrantes do Observatório Cearense da Cultura Alimentar (OCCA) e do Grupo de
Estudo Sociologia da Arte e da Cultura. Conheço-os há pouco tempo, mas as trocas de
ideias a cada reunião têm me proporcionado um avanço intelectual.
“A tradição (alimentar) nada mais é
que uma invenção bem sucedida”.
(Massimo Montanari)
RESUMO
Esta pesquisa tem como escopo principal analisar a relação entre produção, criatividade e
comercialização das tapiocas, a partir do Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de
Messejana (CETARME), em Fortaleza/Ceará. Neste lugar, pode ser saboreada uma tapioca
tradicional, regada à receptividade das(os) tapioqueiras(os), à apreciação do próprio local, da
escuta de histórias do dia a dia e da oposição entre a tradição no modo de fazer esta comida e
suas modificações ao longo do tempo. Entretanto, este cenário configura aspectos relacionados
não somente às especificidades da culinária tradicional e popular, mas a “diversificação” das
tapiocas, do atendimento, dos produtos e utensílios utilizados, dos discursos a respeito do
valor desse espaço. Assim, por meio de informações colhidas durante minha observação
participante, a articulação desta dupla tendência parece propiciar a emergência de um
elemento que atualmente tem adquirido notoriedade em âmbito mundial: a criatividade como
fator que agrega valor a um produto. A partir desta perspectiva, e apesar desses sujeitos
estarem inseridos em um contexto mundial de massificação e de internacionalização da
cultura, da industrialização dos alimentos, da padronização das comidas (principalmente para
atender ao consumidor turista), da mercantilização dos serviços alimentares (formalização dos
estabelecimentos informais), é possível afirmar que eles têm elaborado invenções alternativas
e atuais dos modos humanos de estar no mundo. Com uma abordagem de tipo etnográfica,
foram realizadas observações, escutas e entrevistas informais com os sujeitos considerados
fundamentais no entendimento do objeto deste estudo. Deste modo, dentre os 26 boxes que
compõem o Centro das Tapioqueiras, foram escolhidos somente quatro. Portanto, esta
situação revela que, apesar dos embates que emergem no contato entre diferentes repertórios
culturais e agentes com trajetórias de vida díspares, os agentes têm demonstrado
potencialidades criativas graças aos vários conhecimentos que aprenderam nos cursos de
profissionalização.
Palavras-Chave: Gastronomia Regional. Cultura Alimentar. Criatividade. Tapioca.
RÉSUMÉ
Cette recherche a comme la marque principale pour analyser la relation parmi la production, la
créativité et la commercialisation des tapiocas, commençant du Centro das Tapioqueiras e do
Artesanato de Messejana (CETARME) dans Fortaleza, Ceará. En cet place, un tapioca
traditionnel peut être savouré, arrosé à la réceptivité des le tapioqueiras, à l'appréciation du
propre place, de l'il/elle écoute des histoires de jour après jour et de l'opposition parmi la
tradition comme faire cette nourriture et leurs modifications le long du temps. Cependant, ce
paysage configure des aspects liés non seulement aux spécificités de la cuisine traditionnelle et
populaire, mais "à la diversification" des tapiocas, du service, des produits et des ustensiles
utilisés, des discours quant à la valeur de cet espace. Comme ceci, par des informations
cueillies pendant mon observation de participant, l'articulation de cette tendance de couple
semble pacifier le cas d'urgence d'un élément qui a maintenant acquis la gloire dans la mesure
mondiale: la créativité comme le facteur qui rejoint la valeur à un produit. Commençant de ce
point de vue et malgré ces sujets ils être inséré dans un contexte mondial de massification et de
l'internationalisation de la culture, de l'industrialisation des produits alimentaires, de la
standardisation des produits alimentaires (principalement pour aider le touriste grand public
consommateurs, du mercantilizaç ã o des alimentaires (formalization des établissements
informels) des services, il est possible d'affirmer qu'ils ont élaboré les inventions alternatives
et actuelles des manières humaines d'être dans le monde. Avec une approche de type
etnografique, les observations ont été accomplies, vous écoutez et des entretiens informels
avec les sujets ont considéré fondamental dans la compréhension de l'objet de cette étude. De
cette façon, parmi les 26 boîtes que composez le Centre de Tapioqueiras, ils ont été choisis
seulement quatre. Donc, cette situation, révèle que malgré les collisions qui apparaissent dans
le contact entre des répertoires culturels différents et des agents avec des chemins de vie
disparates, les agents ont démontré des potentialités créatives grâce à plusieurs connaissance
qui a appris dans les cours de professionnalisation.
Mots-Clés: Gastronomie Régionale. Culture Alimentaire. Créativité. Tapioca.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura1- Modelo para preparação da Tapioca Tradicional .................................................... 48
Figura 2- Fachada do CETARME ............................................................................................. 60
Figura 3- Xícaras do CETARME .............................................................................................. 62
Figura 4- Primeiro e segundo estacionamentos. ........................................................................ 63
Figura 5- Capa dos Cardápios “Recanto do Sertão” e “Silvia Helena” ................................. 66
Figura 6- Interior dos Cardápios. .............................................................................................. 66
Figura 7- Capa dos Cardápios “Tia Neuma e “Recanto do Sertão” ...................................... 68
Figura 8- Apostila “Apreender a empreender” ........................................................................ 83
Figura 9- CETARME – forno a lenha....................................................................................... 88
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
A.T. Antigas Tapioqueiras
ATP Associação das Tapioqueiras da Paupina
CENTEC Centro de Ensino Tecnológico
CETARME Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana
CT Centro das Tapioqueiras
EMLURB Empresa Municipal de Limpeza e Urbanização
MTUR Ministério do Turismo
PNT Plano Nacional de Turismo
PNMT Programa Nacional de Municipalização do Turismo
PRODETUR-NE Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste
PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
SEBRAE Serviço Brasileiro às Micro e Pequenas Empresas
SETAS Secretaria do Trabalho e Ação Social
SETUR Secretaria Estadual de Turismo
STDS Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................15
2 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO “CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS”:
SÍNTESE SÓCIO-HISTÓRICA...............................................................................19
2.1 AS FACES DA PESQUISA: MÉTODO E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA..........28
3 O CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
ALIMENTAR.............................................................................................................37
3.1 GASTRONOMIA OU CULINÁRIA: É PRECISO ENCAIXAR O CETARME?.....42
3.2 CRIATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: AS POSSIBILIDADES
INOVADORAS NO CETARME................................................................................47
4 OLHANDO, OUVINDO E COMENDO: PROCESSO DE PRODUÇÃO E
COMERCIALIZAÇÃO DAS TAPIOQUEIRAS....................................................60
4.1 DENTRO DOS BOXES: UM PROCESSO COLETIVO............................................70
4.2 DOIS PERMISSIONÁRIOS E SUAS RELAÇÕES COM A CRIATIVIDADE........77
5 RELAÇÃO ENTRE PERMISSIONÁRIAS E GOVERNO DO ESTADO DO
CEARÁ........................................................................................................................87
5.1 PROMOVENDO O EMPREENDEDORISMO INDIVIDUAL: INTERVENÇÕES DO
SEBRAE NO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS......................................................94
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................100
15
1 INTRODUÇÃO
Embora saciar necessidades fisiológicas da ingestão diária de proteínas, sais
minerais, lipídios e vitaminas seja condição vital para a sobrevivência humana, é preciso
considerar que, como seres socializados, não fazemos isto “genericamente” (BARBOSA;
CAMPBELL, 2006), mas sim por razões que vão para além da nutrição do organismo. A
depender dos diferentes segmentos sociais, o ato de se alimentar pode se converter em rituais,
em que se come por prazer para evocar a lembrança de pessoas e de lugares, para acumular
novas experiências gustativas, afirmar identidades étnicas ou nacionais, celebrar acordos,
distinguir-se socialmente, experimentar algo criativo e/ou inovador, ou fortalecer laços sociais.
Enfim, a participação em determinada cultura alimentar manifesta realidades históricas,
territoriais, sociais, econômicas e políticas específicas, revelando que a alimentação humana é
inseparável da dimensão simbólica.
Neste sentido, a preferência pelo consumo de tapioca – comida cuja origem
encontra-se na alimentação de povos nativos do Brasil (CASCUDO, 2011) e que se acha
presente no cardápio de vários estados, inclusive no Ceará – leva muitos apreciadores a se
dirigirem ao Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana (CETARME)1. Com a
finalidade explícita de comê-la, os consumidores não só acalmam o imperativo da fome, mas
também reforçam a potência de disposições sociais e culturais incorporadas. Neste lugar, pode
ser saboreada uma tapioca tradicional2, regada à receptividade das(os) tapioqueiras(os)
3, à
apreciação do próprio local, da escuta de histórias do dia a dia e da oposição entre a tradição no
modo de fazer esta comida e suas modificações ao longo do tempo.
Este cenário, entretanto, configura aspectos relacionados não somente às
especificidades da culinária tradicional-popular, mas a “diversificação” das tapiocas, do
atendimento, dos produtos e utensílios utilizados, dos discursos a respeito do valor desse espaço.
1 Localizado no Km 10 da CE-040. Bairro de Messejana, em Fortaleza, Ceará
2 Para a tapioqueira/permissionária N. (boxe Tapioqueira da Xuxa), a tapioca tradicional é aquela de origem
indígena: massa grossa, em formato redondo e com coco. Seu processo é explicado mais adiante. 3 O termo “tapioqueira” pode significar tanto o local quanto à função exercida pelas pessoas que preparam e
comercializam as tapiocas. Deste modo, de acordo com a tapioqueira N. (Boxe Tapioqueira da Xuxa) e o tapioqueiro
R. (Boxe Silvia Helena/Reginaldo), ser “tapioqueira(o)” é aquela pessoa que cuida de tudo no boxe e que tem o
ofício de fazer e de vender tapiocas há muito tempo. Portanto, a partir deste ponto de vista, quando esta palavra for
utilizada em um sentido geral, estar-se-á trabalhando com os sujeitos que são remanescentes das “antigas
tapioqueiras” e com aqueles que estão desde o início do CETARME.
16
Assim, por meio de informações colhidas durante minha observação participante
(CAVALCANTE; AZEVEDO, 2014), a articulação desta dupla tendência parece propiciar a
emergência de um elemento que atualmente tem adquirido notoriedade em âmbito mundial: a
criatividade como fator que agrega valor aos produtos. Além do mais, está inserido em um
contexto onde as escolhas turísticas não são feitas apenas pelos aspectos tangíveis
(infraestrutura, transporte, hospedagem e alimentação), mas também pelos elementos intangíveis
(lazer, entretenimento, novas experiências, conhecimento da cultura local, criatividade,
emoções, sabores etc.). Isto põe em evidência que a dimensão simbólica dos produtos
oferecidos, e especialmente o contato com a gastronomia regional de uma sociedade, tem sido
valorizada pelo consumo turístico (SAMPAIO, 2009).
Nesta perspectiva, apesar de esses sujeitos estarem inseridos em um contexto
mundial de massificação e de internacionalização da cultura, da industrialização dos alimentos,
da padronização das comidas (principalmente para atender ao consumidor turista), da
mercantilização dos serviços alimentares (formalização dos estabelecimentos informais),
entendo que eles têm elaborado “invenções alternativas e atuais dos modos humanos de estar no
mundo” (GONÇALVES, 2011, p.141). Ou seja, apesar da nostalgia evocada pelas(os)
tapioqueiras(os) – em relação ao antigo local de trabalho – muito daquilo que é feito por ela(es)
e suas(eus) funcionárias(os) ganhou outros formatos: a maneira de molhar a goma de mandioca;
a escolha dos insumos utilizados; o trabalho em família, organizado em consonância com as
normas estabelecidas pelo Governo do Estado do Ceará e pelo SEBRAE; e a racionalização do
próprio negócio, de maneira a atender às exigências sanitárias.
Diante desse contexto, indago-me: tentativas de distinção configuram-se por meio de
relações de cooperação e/ou de conflito entre esses sujeitos? Por quais modos se manifestaria a
criatividade como elemento de diferenciação? Seria a criatividade um recurso para atrair clientes
ou uma disposição incorporada e associada à gastronomia tradicional-popular em um contexto
de economia criativa?
Sendo assim, esta pesquisa tem como escopo principal analisar a relação entre
produção, criatividade e comercialização das tapiocas, a partir do Centro das Tapioqueiras e do
Artesanato de Messejana (CETARME), em Fortaleza/Ceará. Para tanto, objetivos
complementares foram traçados: a) identificar os diferentes papéis desempenhados pelos agentes
institucionais (STDS e SETUR – CE) envolvidos diretamente no processo de manutenção e
17
promoção do CETARME como produto turístico, especificamente o gastronômico; b) analisar
como o Turismo e a “Gastronomia” regional cearense são representados a partir de documentos
oficiais e por meio dos canais midiáticos em âmbito nacional e no Estado do Ceará (Planos
Nacionais e Estaduais de Turismo, Leis nacionais e estaduais, informações propagadas pela
mídia – impressa e/ou via internet – e entre outros); c) pesquisar os diversos aspectos do
trabalho das(os) tapioqueiras(os), a fim de apreender quais elementos colaboram para o
desenvolvimento de uma “gastronomia” regional criativa no Ceará.
Com uma abordagem aproximativa, tenho observado, ouvido e conversado com
alguns sujeitos que parecem ser fundamentais no entendimento do meu objetivo. Deste modo,
dentre os 26 boxes que compõem o Centro das Tapioqueiras, escolhi somente quatro. São eles:
Recanto do Sertão; Tia Neuma; Tapiocaria da Xuxa; e Silvia Helena/Reginaldo (estes dois
boxes são do mesmo permissionário).
O processo de seleção dos boxes se deu pela receptividade das(os)
permissionárias(os), pelo fato de um deles ser gerido pela presidente da Associação das
Tapioqueiras da Paupina (ATP) – tem uma relação mais próxima com as instituições privadas e
públicas –, pela boa quantidade de clientes e por se preocuparem, de alguma forma, com a
criação de novas estratégias para tornar seu trabalho mais atrativo para o cliente. Logo, sempre
que possível, inseri-me no cotidiano (com algumas interrupções) dessas(es) tapioqueiras(os)
para melhor apreender a produção e a comercialização das tapiocas e entender de que maneira a
criatividade é uma ferramenta utilizada por aqueles sujeitos.
Os principais lugares desta pesquisa são os boxes. Estes, observados de frente,
geralmente revelam a presença de chapa a gás – onde se fazem as tapiocas –, geladeira, freezer,
fogão, armário, e boa parte das paredes é revestida de cerâmicas. No local onde ficam os
clientes, há mesas e cadeiras, ambas de plástico e da cor branca. Sobre aquelas, um “pano” (na
verdade é de plástico) com o desenho de grãos de café em várias cores, o símbolo do
CETARME e da empresa Santa Clara, além dos utensílios utilizados pelos clientes (recipientes
de plásticos contendo talheres – facas, garfos e colheres de chá – e açúcar, porta-guardanapos,
garrafas de café na cor branca e xícaras na cor branca – estes três com a marca da Santa Clara –,
além de adoçante). As cadeiras, em parte, são revestidas por panos, com cores a depender do
boxe (verde “limão”, roxo, azul marinho, vermelho, verde), além do nome boxes e da marca
18
Santa Clara (empresa de café que é “parceria”4 do CETARME). Em sua maioria, as(os)
permissionárias(os) possuem em torno de quatro funcionárias(os) (duas ou dois atendentes,
um(a) que faz as tapiocas na chapa – chapista/cozinheira – e um(a) que faz a limpeza do local).
Nos finais de semana, acrescentam-se mais duas atendentes.
O presente trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro, acham-se a
apresentação, o contexto histórico de constituição do CETARME e a fundamentação teórica-
metodológica da dissertação. Em seguida, no segundo, faço um panorama da alimentação no
âmbito globalizado e, mais propriamente, sua imbricação com a economia criativa. Já no
terceiro, analiso meu objeto de estudo com base naquilo que apreendi em trabalho de campo.
Por fim, destaco as relações estabelecidas entre permissionárias(os) e governo do Estado do
Ceará e SEBRAE.
4 De acordo com o tapioqueiro/permissionário R., esta empresa é uma parceira por entender as dificuldades
enfrentadas no Centro das Tapioqueiras. Assim, existe um contrato entre Associação das Tapioqueiras e Santa Clara.
19
2 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO “CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS”:
SÍNTESE SÓCIO-HISTÓRICA
O Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana (CETARME) pode ser
compreendido como consequência das políticas públicas do Governo do Estado do Ceará
voltadas para o desenvolvimento do setor turístico no final da década de 1990. Porém, interessa
apreender a elaboração desse lugar como fruto da relação entre agentes públicos e privados a
partir das reivindicações das(os) tapioqueiras(os) tomadas como fio condutor.
A fim de melhor entender como isto ocorreu é preciso saber como o turismo passou
a ser valorizado no âmbito das políticas governamentais, tanto no Brasil quanto no Ceará. Deste
modo, evidencio um período histórico específico, de 1930 ao início do século XXI, pois se trata
do pano de fundo para a constituição do CETARME. E, em seguida, explano a respeito dos
impactos atuais que o mercado do turismo tem causado sobre as práticas culinárias daqueles
produtores e vendedores de tapioca.
Desta sorte, no Brasil, o interesse do poder público pelo turismo emergiu a partir da
década de 1930. Naquele contexto, uma das primeiras ações governamentais foi a criação da
Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR), em 1966, com o objetivo de planejar ações para
este setor. Todavia, conforme assinala Carvalho (2000), naquele período, a agenda
governamental brasileira não incluía o turismo em suas políticas prioritárias. Apenas com a
Constituição Brasileira de 19885 é que esse setor passou a ser visto como elemento relevante na
economia do país.
Assim, durante o governo do ex-presidente Collor de Mello (1990-1992), houve a
reestruturação da EMBRATUR e, por meio do Decreto 448, de fevereiro de 1992, tentou-se
equacionar problemas relativos à renda nacional também a partir do desenvolvimento do
turismo. Para tanto, foram estabelecidas diretrizes para que isto ocorresse. Dentre estas, destaca-
se a prática do turismo como forma de valorização e preservação do patrimônio natural e
cultural do país (CARVALHO, 2000). Neste sentido, o turismo passou a ser percebido como
ferramenta necessária para manter e enaltecer os aspectos culturais e históricos brasileiros. Quer
dizer, este setor passou a integrar o engajamento governamental em divulgar, manter e elevar
5 Art. 180. Cap. I. Título VII: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios promoverão e incentivarão o
turismo como fator de desenvolvimento social e econômico” (BRASIL, 2012, p.110).
20
elementos simbólicos que fazem parte da vida de cada grupo social nacional (museus, prédios
históricos, “gastronomias” regionais entre outros), convertendo-os também em mercadoria.
A partir disto, pode-se perceber o entendimento dos representantes do Estado de que
as culturas (em suas diversas matrizes) podem contribuir para o desenvolvimento da economia
brasileira. Assim, as florestas, as praias, o mar, as montanhas, enfim, as “belezas” naturais não
são os únicos elementos disponíveis para se conhecer o Brasil. As comidas, as músicas, as
danças, os artesanatos, os prédios históricos, isto é, os aspectos construídos social e
culturalmente também são meios de imersão na realidade dos lugares visitados.
Portanto, o turismo passa a ser considerado como um dos caminhos de “proteção”,
propaganda, “valorização” e até mesmo de inovação das culturas regionais e populares6. Isto
parece ter reverberado, dez anos depois, na maneira como o governo cearense modelou o
processo de qualificação do ofício das(os) tapioqueiras(os), aproximando as práticas de preparo
da tapioca e o consumo alimentar dos turistas. Isto será explicado pormenorizadamente mais
adiante.
Devido à instabilidade política do referido momento histórico nacional, esses
objetivos não foram concretizados no tempo estabelecido. Foi o sucessor do Presidente
Fernando Collor de Melo, Itamar Franco (1992-1995), quem deu andamento às metas do
governo anterior. Para tanto, em seu mandato, foi elaborado o Plano Nacional de
Municipalização do Turismo (PNMT). A proposta deste era “fomentar o desenvolvimento
turístico sustentável nos municípios, com base na sustentabilidade econômica, social, ambiental,
cultural e política” (EMBRATUR apud BRUSADIN, 2005). Todavia, foi somente no governo
seguinte que esta seria executada.
Baseados em “pressupostos desenvolvimentistas” (BRUSADIN, 2005) – estabilizar
a economia, financiar o desenvolvimento e a reforma do Estado, tornar este mais competitivo,
moderno e eficaz, além de reduzir as desigualdades sociais e espaciais – e no escopo de
fortalecer social e economicamente o turismo brasileiro, foi nos dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso na Presidência da República (1994-1998/1999-2002) que se organizou e se
efetuou o Plano Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT)7 e o Plano Nacional de
6 Isto nos remete à construção do Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana (CETARME), visto que se
trata de lugar de “ordenação” e “controle” de uma culinária tradicional de base popular, ou seja, mulheres e homens
de classe social pobre que preparavam tapiocas a partir de um conhecimento adquirido hereditariamente. 7 Por falta de comunicação entre governos Federal e Municipal, e também por oposições políticas, esse plano não
deu os frutos desejados.
21
Turismo (PNT). Ambos foram alicerçados na meta estratégica de descentralizar as ações
concernentes a esse setor, isto é, os governantes dos Estados, dos Municípios e do
Distrito Federal teriam “autonomia” para selecionar aquilo que seria atrativo turístico
concernente à sua localidade.
No Estado do Ceará, desde a década de 1970, alguns lugares despontaram como
destinos turísticos: ressalta-se a praia de Canoa Quebrada, na cidade de Aracati (IPETURIS,
2011). Todavia, pelo Brasil, a imagem que se tinha do território cearense estava relacionada à
seca e à miséria – por motivos tanto naturais quanto sociais. Em virtude disto, a partir da
segunda metade dos anos de 1980, ações governamentais tiveram como escopo mudar esta
representação. Dentre estas, ampla propaganda governamental, pelos meios de comunicação
(televisão, jornais impressos, guias turísticos), foi feita em prol desta alteração. Assim, a
primeira iniciativa foi eleger as praias cearenses como atrativos turísticos. O critério de escolha
se fundamenta no fato de que, no Ceará, os períodos chuvosos são curtos. Por conseguinte,
praticamente todas as atividades empreendidas pelo governo cearense, neste sentido, foram
direcionadas às regiões litorâneas.
Isso não se sucedeu de maneira isolada do que estava acontecendo no mundo. Pois,
com o advento da globalização, para que um lugar se converta em atrativo turístico competitivo,
os agentes públicos devem buscar, nas particularidades deste território, algo que estimule o
consumo dos turistas. Para tanto, o foco sobre as suas singularidades culturais, sociais e naturais
se torna a principal via. Partindo desta compreensão, a primeira tentativa de ressignificação do
Ceará, sob a perspectiva naturalística – de um lugar seco e miserável para belo e próspero –
destacou as singularidades das praias cearenses. Porém, esta conversão abriu o caminho para
que manifestações de cunho cultural e social pudessem ser valorizadas.
No âmbito desta mudança e em consonância com o que estava sendo feito na esfera
nacional, em meio ao terceiro mandato de Tasso Jereissati (1998-2002) como governador do
Estado do Ceará, o setor do turismo cearense deu um salto qualitativo em termos de
estruturação. Em conformidade com aquilo que estava sendo planejado pelo governo federal,
foram executadas três ações na década de 1990: a criação da Secretaria de Turismo do Ceará
(SETUR), o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Ceará (1995-1998)8 e o Programa de
8O Plano de Desenvolvimento Sustentável do Ceará, para tornar o turismo cearense mais atrativo, objetivou uma
ampla campanha publicitária que estimulasse a mudança do imaginário social construído que representava o Estado –
associado à seca e à miséria (LIMA, 2012).
22
Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETUR-NE). Deste modo, a
articulação entre tais ações foi tornar o turismo cearense competitivo tanto entre os outros
Estados brasileiros como internacionalmente. Para tanto, algumas obras foram realizadas com
este fim: a construção do Aeroporto Internacional Pinto Martins, além de "rodovias
estruturantes" que facilitaram a ligação de Fortaleza (capital cearense) às cidades do litoral
Leste e Oeste (LIMA, 2012).
No mesmo período, especificamente no ano de 1999, em virtude do Programa
Rodoviário de Integração Social do Estado do Ceará II (Programa Ceará II)9, a malha rodoviária
estadual foi ampliada e reformulada, possibilitando, assim, a ligação entre todas as regiões do
Ceará e o aumento do fluxo da produção interna e das matérias-primas para o parque industrial
cearense. E, atendendo as demandas do turismo doméstico e internacional, a Rodovia CE-040
foi duplicada para facilitar o acesso às praias do litoral Leste. Desta maneira, as pessoas
interessadas em visitar esta região teriam duas alternativas saindo da capital do Estado: seguir
por este novo trajeto ou se deslocar pela Avenida Barão de Aquiraz (antiga rota)10
. Entretanto,
frente à intensificação do tráfego de automóveis no novo itinerário, ficou claro que esta
intervenção acarretou um impacto negativo sobre os rendimentos financeiros nos pequenos
comércios que ocupavam a antiga rota, incluindo as(os) tapioqueiras(os) que trabalhavam
naquela Avenida.
Sendo a produção e a comercialização de tapiocas tradicionais (formato redondo,
grossa em espessura e misturada com coco ralado) a principal fonte de renda de muitas(os)
tapioqueiras(os) há mais de 50 anos, estas(es) reivindicaram do Governo do Estado do Ceará
alguma solução para o problema do decréscimo nas vendas (BEZERRA, 2005). Porém,
enquanto não obtinham uma providência efetiva do poder público, elas(es) colocavam placas e
faixas na rodovia recém-ampliada (CE-040) indicando a existência de seus estabelecimentos à
beira da Avenida Barão de Aquiraz. Neste local, as(os) tapioqueiras(os) trabalhavam em casas
feitas com tijolos, ladeadas por fornos à lenha para a preparação das tapiocas.
Como resultado deste contexto de tensões, no ano de 2001, o governador Tasso
Jereissati autorizou a ordem de serviço para a elaboração de um espaço destinado a abrigar a
9 O “Programa Ceará II” teve financiamento externo (Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID e Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social-BNDE) e interno (recursos públicos). Aliás, esse programa
esteve estruturado nos critérios exigidos por essas instituições privadas nos contratos de empréstimos (BEZERRA,
2005). 10
Localizada no bairro Paupina, subdistrito do Bairro de Messejana, em Fortaleza, Ceará.
23
atividade produtiva das(os) tapioqueiras(os). Essa ação culminou na construção do Centro das
Tapioqueiras e do Artesanato de Messejana (CETARME) e, consequentemente, na mudança
das(os) tapioqueiras(os) para este novo endereço, localizado no km 10 da CE-040. Apesar
disso, essa transferência não aconteceu do dia para a noite. De acordo com uma das
tapioqueiras dessa época,
foi um pouco difícil a gente conseguir isso aqui. Quando eu pensava que estava muito
bem lá, fizeram essa avenida CE-040. Ai nós tivemos que... interditô, interditô! Num
tinha mais nada! Entraram muita gente em depressão, desespero e eu disse ‘eu num
vou ficar calada não[...]. Aí comecei a botar faixa, placas aqui na avenida né?! Mas, o
pessoal do DERT arrancava. Fiz uma faixa bem grande. Chamei oito tapioqueiros,
porque lá era umas dez. Chamei umas donas de tapioqueira lá, umas oito. Inclusive até
esse meu filho tava também. Aí vamo colocar uma faixa. Aí na faixa eu coloquei:
‘Pedimos ao DERT retorno pras nossas tapioqueira”, [...]. Quando eu vim colocar essa
faixa aqui, o primeiro carro que vinha era do DERT. Aí eu digo ‘Vá-la meu Deus,
vamo fechar essa faixa dipressa’. Aí enrolei, eles: ‘o que é que tem nessa faixa?’. Aí
eu disse: ‘o jeito é abrir, vamo abrir essa faixa’. Quando ele viu, um olhou para o
outro... só que eu não sabia que aquela faixa tinha tanta utilidade. Não sabia. Pensei
que era só um aviso, pedindo compaixão [risos], né?! Mas, não! Não foi assim! Mas,
eu não sabia. Aí, com muita peleja, eles foram ir diretamente ao Governo do Estado e
lá disseram que a gente não ia ficar calado, né?! (Tapioqueira N.)
Foi um período de negociações políticas com a finalidade de solucionar o
decréscimo nas vendas de tapiocas. Mas, neste ínterim, fatos relevantes aconteceram para
modificar os comportamentos e as maneiras de pensar das(os) tapioqueiras(os) em relação à sua
prática culinária. Um, dentre os fatores mais proeminentes, foi a oferta de cursos de
qualificação profissional, ministrados pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do
Ceará (SEBRAE) e pelo Centro de Ensino Tecnológico (CENTEC), que passaram a ser pré-
requisitos para as(os) tapioqueiras(os) que quisessem ter a permissão do governo do estado para
utilizar os boxes nesse novo espaço.
Os conteúdos lecionados nos cursos referiam-se aos aspectos técnicos da culinária,
à eficiência energética em micro e pequenas empresas, ao empreendedorismo, ao
associativismo, ao cooperativismo, à qualidade no atendimento e à etiqueta. Estas matérias
reconfiguraram a forma como esses sujeitos praticavam e pensavam o próprio trabalho11
. De
acordo com Bezerra (2005), até mesmo o estilo de vida delas(es) foi alterado por consequência
da nova realidade: a intenção do poder público foi ajustá-los aos padrões do consumo turístico 11
Para Bezerra (2005), o que antes era resolvido no espaço privado da família, passou a levar em conta outros
sujeitos e tendo que prestar contas à ATP e ao Estado.
24
nacional e internacional.
Por conseguinte, o CETARME foi inaugurado em 9 de janeiro de 2002. Foi feita
uma solenidade, com a presença do então governador do Estado do Ceará – Tasso Jereissati – de
deputados e vereadores ligados à região da grande Messejana, das(os) permissionárias(os), além
de outras pessoas ligadas a estes. Assim, foi entregue uma estrutura física constituía de 26 boxes
(22 para as(os) tapioqueiras(os) e quatro para lanchonetes), um pequeno espaço para a venda de
artesanato (inaugurado pouco tempo depois), vagas para estacionamento de veículos (carros,
motos e ônibus), banheiros, sala de reunião, 22 “despensas” e um pequeno jardim12
.
Vale ressaltar que a divisão desses boxes foi feita pelos agentes da Secretaria do
Trabalho e Ação Social (SETAS), por meio de sorteio aleatório entre as(os) 26
permissionárias(os)13
. Mas, apenas algumas(uns) tapioqueiras(os) poderiam participar, ou seja,
somente aquelas(es) integrantes da Associação das Tapioqueiras da Paupina (ATP)14
que
participaram dos cursos de qualificação profissional. Durante uma entrevista informal com a
permissionária do boxe “Tapioca da Xuxa”, ela afirmou que essa etapa definiu não somente um
boxe para cada tapioqueira(o), mas também demarcou aquelas(es) que teriam mais facilidade
para receber os clientes – devido à própria estrutura física do local15
.
Com o passar dos anos, tanto o quadro do turismo, em âmbito internacional,
brasileiro e cearense, quanto o contexto do próprio CETARME se modificaram. No que tange
àquele, desde o ano de 2002 até o ano de 2016 – durante os dois mandatos de Luís Inácio Lula
da Silva e passando pelos mandados de Dilma Rousseff, ambos na presidência da República do
Brasil – o turismo foi se aproximando, de maneira intensiva, das manifestações culturais, em
especial das gastronômicas, consideradas potencialmente criativas.
No último ano do governo Lula, por meio do documento “Turismo Cultural:
Orientações Básicas” (MTUR, 2010), abordou-se o potencial que o “turismo gastronômico”
poderia ter. Entendido como um segmento do turismo que tem surgido com o papel de criar
12
A Empresa Municipal de Limpeza e Urbanização (EMLURB) da Prefeitura de Fortaleza-CE executou uma ação
para “revitalizar” o jardim deste espaço no ano de 2011. Foram colocadas plantas nativas, ornamentais, aromáticas
e medicinais. (Em: http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2011/02/28/noticiafortaleza,2108190/centro-das-
tapiocas-ganha-projeto-de-paisagismo.shtml). 13
Tapioqueiras(os) que conseguiram permissão para obter um boxe neste espaço. 14
Regimento elaborado por duas agentes da SETAS para direcionar aquilo que é permitido ou não às(os)
permissionárias(os) fazerem no interior do CETARME. 15
A questão da estrutura física do CETARME, como elemento gerador de conflitos, pode ser mais bem entendida
em Bezerra (2005).
25
novos destinos turísticos, ele possibilita ao visitante experimentar a culinária típica do local
visitado. O interesse nesse segmento está relacionado às mudanças ocorridas nos padrões de
consumo alimentar deste tipo de público. Quer dizer, não somente os aspectos tangíveis, mas
também os intangíveis passam a ser mais valorizados no consumo turístico.
Com o advento do Governo Dilma (2010-2016), a valoração das dimensões
regionais da cultura traduziu-se em ações que incentivavam o segmento turístico a saborear
“gastronomias” locais, incrementando, assim, o referido turismo gastronômico. Isto está em
consonância com o escopo de "estimular processos que resultem na criação e na qualificação de
produtos turísticos que caracterizem a regionalidade, genuinidade e identidade cultural do povo
brasileiro" (MTUR, 2013, p.97). Deste modo, algumas ações, mesmo que timidamente,
contribuíram para a concretização desta proposta. De acordo com informações contidas no site
Ministério do Turismo em relação ao interesse deste pelas gastronomias regionais, no ano de
2012, o “Grupo de Turismo Gastronômico” (GTG) tinha como propósito incrementar ações
neste setor por meio do investimento em educação e pesquisa sobre a gastronomia brasileira.
Ainda no referido ano, o MTUR apontou ainda que “a gastronomia é um dos itens
com maior aprovação entre os visitantes estrangeiros: havendo cerca de 90% de satisfação. Isso
prova que o turismo gastronômico está presente tanto nas opções de lazer quanto nos negócios”
(MTUR, 2014). Já no ano de 2013, ressaltou-se o crescimento dos gastos dos turistas com
alimentação e, em especial, a participação deles em festivais gastronômicos pelo Brasil. Ficou
atrás somente do setor de transportes. No ano posterior, enfatizou-se a avaliação positiva da
gastronomia brasileira pelos turistas internacionais durante a Copa do Mundo da FIFA 2014.
No ano de 2015, as gastronomias regionais foram discutidas como potencialidades
para o desenvolvimento do turismo brasileiro. Desta maneira, atualmente, a
Gastronomia e os meios de hospedagem são dois grandes pilares do turismo brasileiro
– e correspondem a cerca de 60% da força de trabalho do setor, de acordo com o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Na última década, a valorização da
culinária regional fez surgir centenas de festivais gastronômicos pelo país e criou um
novo nicho de mercado: o turismo gastronômico. Da mesma forma, o avanço do
número de turistas pelo país – foram mais de 200 milhões de viagens no ano passado –
multiplicou os meios de hospedagem (MTUR, 2015).
Deste modo, recentemente, em julho de 2015, foi aberta uma Chamada Pública para
selecionar propostas que valorizassem a gastronomia regional como fator diferencial de
26
competitividade (a inovação como principal estratégia) em termos de destino turístico. A
proposta priorizava os 214 municípios inseridos no PRONATEC-Turismo. Cada cidade deveria
elaborar propostas que estivessem de acordo com o objetivo de divulgar suas comidas regionais
como produto turístico diferenciado, competitivo e inovador. Sendo o recurso financeiro de três
milhões, cada contemplado receberia trezentos mil para a execução do seu projeto. Deste modo,
sintetizando as diretrizes estabelecidas, este documento tinha como principal meta a valorização
e a inovação das “gastronomias” regionais.
Dentre os Estados, os Municípios vencedores desta Chamada Pública foram: a
Secretaria de Estado de Turismo do Distrito Federal/DF; Município de Foz do Iguaçu/PR;
Município de Paranaguá/PR; Município de Natal/RN; Município de Gramado/RS; Empresa
Municipal de Turismo de Belo Horizonte/Belotur/MG; Município de Corumbá/MS; Prefeitura
Diamantina/MG; Município de Vitória/ES; Município de Araranguá/SC. O estado do Ceará
ficou fora do universo dos contemplados. Já em relação aos estados beneficiados, destaca-se o
pioneirismo de Minas Gerais como um dos principais incentivadores do turismo gastronômico
no país. Pois, além de ter sido selecionado pelo Ministério do Turismo, sua Assembleia
Legislativa, no mês de novembro do ano de 2015, aprovou o Projeto de Lei 1.618/15. Este tinha
como objetivo incentivar o poder público a formular políticas públicas que valorizassem a
gastronomia mineira de forma sustentável, incentivando o turismo gastronômico.
No que diz respeito às novas maneiras de se lidar com as comidas regionais, a
capital do Estado do Pará/Belém, apesar de não estar entre os “beneficiados” pelo MTUR, no
mês de dezembro de 2015, foi nomeada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) como “cidade criativa da gastronomia”16
. Isto foi fruto da
prefeitura da cidade em articulação com instituições privadas que têm como finalidade promover
a gastronomia paraense como referência internacional.
Portanto, estas iniciativas recentes mostram que o tema alimentação não tem sido
pensado somente em uma perspectiva nutricional ou atrelada ao problema social da fome –
embora o Governo Federal, na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tenha assumido a
campanha FOME ZERO.
16
“Atualmente, a rede de cidades criativas é composta por 116 cidades em todo o mundo e em sete segmentos da
indústria criativa: literatura, cinema, música, artesanato e arte popular, design, artes e gastronomia. Além de Belém,
outras duas cidades brasileiras entraram na lista: Santos, na categoria Filmes; e Salvador, por sua música”. (Site
G1.Globo.com, em 03/03/2016).
27
Encarada também como um fator de desenvolvimento econômico, social e cultural, a
gastronomia acha-se no cerne de aspectos simbólicos. Mas, no Ceará, os agentes da Secretaria
do Turismo (SETUR) ainda não têm elaborado políticas públicas tendo como foco as
“gastronomias” cearenses. Na verdade, eles têm somente a função de divulgação da arte
culinária, complementando, assim, o principal produto turístico do Estado do Ceará: as praias.
No tocante às mudanças ocorridas no CETARME desde 2002, tenho apreendido
que, apesar de todas essas ações terem como função promover a padronização de
procedimentos, mediante normas estipuladas pelo regimento da Associação das(os)
Tapioquerias(os) da Paupina17
e pelo poder público, sem desprezar a influência do setor privado,
o qual também contribui para isso, há certa “autonomia” nas ações das(os) permissionárias(os).
Isto pode ser manifesto na decoração dos boxes, nos cardápios, na forma de abordar os clientes e
no modo de preparo e apresentação das comidas. Ou seja, elas(es) tentam se diferenciar
umas(uns) das outras(os)18
.
Um exemplo disto é a feitura da “tapioca tradicional com queijo” (goma de
mandioca tipo grossa com coco e queijo coalho). No boxe Tia Neuma, a tapioca é redonda,
grossa e sobre ela o queijo – assado na chapa. Já no boxe Silvia Helena, ocorre um processo
diferente. Sobre esta escrevi: “Hoje comi a tapioca tradicional com queijo, mas de um jeito que
nunca havia visto. O queijo veio no meio de duas tapiocas, em forma retangular, lembrando o
formato de um sanduíche.” (Diário de Campo, 17/02/2016).
Sendo assim, o saber culinário tradicional e popular dessas(es) tapioqueiras(os) não
desapareceu diante disto. Não obstante, parece ter acontecido uma articulação entre este
conhecimento e as perspectivas relacionadas à Gastronomia (as diversas formas de combinação
dos ingredientes, a preocupação com a estética do prato, a maneira como o ambiente está
organizado e o modo de tratar os clientes), à racionalização (cálculo e anotação de tudo aquilo
que diz respeito à preparação da tapioca), à mercantilização (torná-los empreendedores,
competitivos entre si e criativos) e à segurança alimentar (higiene e manipulação de alimentos).
Neste sentido, tenho como hipótese: foi criada uma “gastronomia” regional de base
tradicional- popular que potencializa as(os) tapioqueiras(os) a agir e a pensar de maneira a
17
Documento este elaborado tanto pelos agentes do Governo do Estado do Ceará quanto pelas(os) tapioqueiras(os). 18
O ritmo de trabalho que era determinado de acordo com a necessidade de cada um tornou-se baseado pelas
imposições do mercado internacional: acelerado, normatizado e padronizado (BEZERRA, 2005). Mas, de acordo
com minhas observações, não há uma unicidade no preparo das tapiocas.
28
valorizar a criatividade, haja vista que os cardápios não ficam reduzidos à tapioca tradicional
com café. Porém, com o advento da tapioca fina com recheio, várias são as possibilidades de
sabores e modos de preparo.
Diante do consumo crescente de comidas típicas com características criativas, qual
seria a influência desse novo padrão alimentar, que valoriza as comidas regionais de maneira
inovadora e criativa, sobre as práticas culinárias das(os) tapioqueiras(os) do CETARME?
2.1 AS FACES DA PESQUISA
Desde minha inserção no campo acadêmico, tenho ouvido orientações a respeito da
importância do esclarecimento teórico-metodológico que o pesquisador deve apresentar na
construção do seu texto. Não deve somente abordar os métodos e as teorias que fundamentam o
trabalho, mas também deve expor os caminhos – objetivos e subjetivos – que ele próprio tem
percorrido. Como lembra Favret-Saada (2005), o cientista social não deixa de afetar e ser
afetado por aquilo que estuda, principalmente quando se trata de uma pesquisa que exija o
estabelecimento de uma relação com outros agentes sociais. Para isto, faço a seguir uma
explanação sobre minha inserção no âmbito da investigação que me propus a realizar.
Antes de tudo, estruturo este capítulo em quatro faces: 1) em primeiro lugar, arrisco-
me na apresentação de mim mesmo: tanto em relação aos meus primeiros passos como
sociólogo como meu interesse pela sociologia e antropologia da alimentação; 2) posteriormente,
falo das minhas inserções e observações no CETARME, expondo as dificuldades do início do
trabalho de campo e, do mesmo modo, as vantagens que tenho encontrado em mim mesmo para
que o trabalho flua de maneira proveitosa; 3) em seguida, exponho como se desenvolveu minha
relação com os sujeitos da pesquisa, não só com as(os) tapioqueiras(os), mas, igualmente, com
agentes do serviço público e privado; 4) por fim, apresento os instrumentos, as técnicas e minhas
fundamentações teóricas.
A primeira face. Não tenho nenhuma referência familiar no que diz respeito à
produção científica e aos esforços que esta exige. Deste modo, minha maneira de pensar
cientificamente, sob a perspectiva sociológica, foi sendo elaborada na própria universidade.
29
Sendo assim, foi no decorrer da graduação em Ciências Sociais e, especificamente
na elaboração de minha monografia, que me deparei com o interesse pela alimentação como
objeto socioantropológico. Deste modo, seguindo a trilha de Mauss (2003), quando este aponta
para o entendimento dos fatos sociais em sua totalidade, venho constantemente me debruçando
sobre os diversos aspectos desse tema – sociais, culturais, históricos, políticos e econômicos –
com a finalidade de compreender melhor as diversas ramificações desse elemento vital para a
vida humana. É neste sentido que procurei investigar a relação entre prática, comercialização e
criatividade no CETARME. Quer dizer, se a tradição ainda perpassa pela preparação das
tapiocas, a criação passa a compor estes processos a ponto de ser um elemento que, atualmente,
agrega valor (cultural, econômico, social e histórico) a essa comida.
Segunda face. Minhas idas ao CETARME, tanto como consumidor quanto como
pesquisador, foram repletas de desafios pessoais e profissionais. De um lado, a adaptação a um
“novo” campo empírico (estudara alimentação na Graduação, mas a partir do consumo da
merenda escolar). Isto acarretou uma aproximação mais lenta do universo social das(os)
tapioqueiras(os). E de outro, o esforço intelectual a fim de apreender e compreender os fatos que
remetem às práticas culinárias nos boxes pesquisados na maior abrangência e particularidade
possível. Sobre isto, remeto-me à questão da “imaginação sociológica” (MILLS, 1982). Uma
atitude reflexiva que todo cientista social deve ter com o objetivo de enxergar um determinado
fato social em sua totalidade.
Desta sorte, o método etnográfico balizou toda minha incursão em campo. Assim,
percebi que era vital estar constantemente próximo de meus interlocutores – tapioqueiras(os) –
seja observando-as(os) ou conversando com elas(eles). O intento maior desta pesquisa era,
sobretudo, obter informações concernentes às práticas e discursos relacionados à preparação e à
comercialização das tapiocas.
A terceira face. Como foi dito acima, o desafio de aproximação, estar por perto e
poder conversar, foi sendo superado a cada incursão em campo. Deste modo, meu contato com
as(os) tapioqueiras(os) e com os agentes do poder público caminhou bem. Foi um processo de
familiarização tanto minha em relação a elas(es) quanto destas(es) no que concerne a mim.
Aproximei-me daquelas(es) tapioqueiras(os) que transpareceram maior receptividade e que
gostavam de conversar. Deixei aquelas(es) que eram mais reservadas(os) para um momento
posterior. Foi uma escolha estratégica, tanto para facilitar meu caminhar na pesquisa quanto para
30
elas(es) irem me conhecendo melhor.
A respeito das opções envolvidas em todo processo de pesquisa, dentre os 26 boxes
que compõem o “Centro das Tapioqueiras”, foram escolhidos somente quatro. O número
reduzido se dá justamente pela abordagem metodológica verticalizada que empreguei. Deste
modo, trabalhar com todas(os) tapioqueiras(os) exigiria mais tempo e um processo de confiança
que um pesquisador, que realiza um estudo de cunho etnográfico, necessita e que demandaria
uma convivência mais longa. Mesmo assim, estudar quatro boxes requereu cautela e muito
esforço. Porém, aos poucos, galguei degraus neste quesito: fazer a minha própria tapioca com a
ajuda da(o) permissionária(o), conversar com esta(e) de maneira descontraída, ficar sentado em
algum lugar observando sem “ninguém se incomodar” são exemplos.
Por fim, a quarta face. Esta pesquisa tem caráter qualitativo e, especificamente, com
uma abordagem do tipo “etnográfica”. Deste modo, fiz observações, escutas e entrevistas
informais, tanto com os sujeitos considerados fundamentais no entendimento do objeto deste
estudo quanto com pessoas que participam do cotidiano do CETARME. E destas técnicas,
utilizei caderneta e diário de campo, câmera fotográfica e gravador de áudio para registrar aquilo
que era pertinente para o objetivo do estudo em cada dia de investigação.
As aspas, logo acima, na palavra etnográfica, foram postas para indicar que não fiz
um trabalho etnográfico como o próprio método exige (GEERTZ, 1989; LAPLANTINE,
2003)19
, pois esse empreendimento exigiria um convívio cotidiano e constante com o grupo
social por mim pesquisado, para que eu pudesse obter informações volumosas, tanto de natureza
quantitativa quanto qualitativa, além de subsídios para a elaboração de uma “descrição densa”,
isto é, a construção de uma análise interpretativa que se entendesse como esforço intelectual de
apreensão da realidade pesquisada. Portanto, desde já coloco que a minha postura “etnográfica”
se configura como um primeiro esforço de aproximação.
A escolha dessa perspectiva teórico-metodológica reside no emprego (dentro do
possível) de técnicas provenientes da “prática etnográfica”: observação participante, um olhar e
um ouvir microssociológicos, uma escrita descritiva para além da mera narração e que
“privilegie” o ponto de vista das pessoas pesquisadas. Deste modo, a abordagem do tipo
etnográfica possibilita a apreensão de informações/dados fundamentais para a compreensão de
19
Para ambos os antropólogos, a principal característica de uma pesquisa etnográfica é ser fundamentalmente
microssociológica. Trata-se de colocar uma lupa sobre a realidade social que se estuda. Portanto, é um olhar
direcionado e atento ao cotidiano das(os) tapioqueiras(os) no CETARME.
31
comportamentos e de discursos relativos à elaboração das tapiocas.
Isto ocorre na observação e na escuta dos conteúdos e das maneiras de falar e de
agir. E, mais propriamente, na participação (o mais regular e próximo possível) do dia a dia
desses sujeitos no CETARME. Logo, trata-se de assimilar os elementos simbólicos que
estruturam a lógica cotidiana desses sujeitos no momento de preparar e de servir as tapiocas.
Como complemento, entrevistas semiestruturadas foram realizadas. Elas são
utilizadas, geralmente, em pesquisas de caráter qualitativo para possibilitar a tomada dos
discursos dos pesquisados. São perguntas relacionadas ao objetivo da minha investigação,
deixando o entrevistado falar sobre os assuntos por mim interpelados. Porém, nos intervalos
entre uma pergunta e outra, abordei outros assuntos (sobre a situação política atual, por
exemplo) no intuito de descontrair essa “conversa com finalidade”. Mas, além destas interações
mais específicas, conversei de modo mais informal com outros funcionários do CETARME e
de cada boxe pesquisado.
Não posso deixar de apontar a importância do Diário de Campo no andamento deste
estudo. Após cada incursão em campo, no CETARME ou em outra instituição, fiz gravações em
áudio ou digitei no computador minhas “experiências etnográficas”. Isto me permitiu
autocríticas sobre minha postura como pesquisador, reformulações de estratégias para melhor
interação com as(os) tapioqueiras(os), e, diante do que foi visto e ouvido, propiciou-me ainda
uma articulação com a teoria que fundamentou a investigação. Logo, não foi somente um
registro puro e simples do que acontecia.
Quanto à fundamentação teórica, interpretar os comportamentos e os discursos
empreendidos pelas(os) tapioqueiras(os) no CETARME exigiu a compreensão de que as
maneiras20
de preparar e de oferecer as tapiocas (tradicionais e finas com recheio) são
governadas pelos valores e pelas regras sociais advindas de determinado contexto sociocultural
não estático. Deste modo, baseando-me em Geertz (1989), entendo que esses agentes sociais
fazem parte de uma rede de significados, criada pela própria sociedade e pelo grupo social ao
qual pertencem, para guiá-los no seu modo de ser e de ver o mundo (LARAIA, 1997). É uma
herança social acumulada e reproduzida, cotidianamente, de forma dinâmica (MORIN, 2007;
SANTOS, 1994). Portanto, o conceito de cultura é utilizado como um instrumento para analisar
20
Apesar das(os) tapioqueiras(os) seguirem um padrão de produção e de comercialização das tapiocas, cada um(a)
tem suas particularidades “gastronômicas”. Isto é, comer uma tapioca fina, recheada com carne sol e queijo, é
singular em estética e sabor a depender do boxe.
32
a atuação dos sujeitos pesquisados.
Na investigação do CETARME, lugar por excelência alimentar, tomo como
referência Braga (2004), à luz da perspectiva anterior, para entender que cultura alimentar pode
ser abordada como um sistema simbólico na medida em que indivíduos que compõem esse
espaço conferem sentidos, classificações, valores e normas às preparações e às comercializações
das tapiocas. Desta maneira, estes elementos influenciam na determinação do que é ou não
comestível e onde, com quem, como, quando, por que, por quem e quanto se deve comer. Por
conseguinte, seleciona-se aquilo que está de acordo com as regras sociais e culturais
interiorizadas/aprendidas.
Esta perspectiva se refere à dicotomia entre simbólico/cultura e fisiológico/natureza
que pode ser evidenciada na distinção entre alimento e comida. Para DaMatta (2001), aquele é
algo universal e que se aplica a todos os seres humanos, independentemente de que lugar ocupe
neste mundo. É genérico, pois todos têm que ingerir os nutrientes oriundos dos alimentos –
proteínas, vitaminas, sais minerais, água – para manter-se vivo. E são diversas as possibilidades
do ser humano conseguir prover o organismo com estes elementos, pois, como é um ser onívoro,
tem a capacidade de comer de tudo, tanto de origem animal como de origem vegetal.
Tendo em vista que os seres humanos são governados por suas culturas alimentares,
essa imposição fisiológica não implica “comer de tudo”. Escolhe-se o que se deve comer a partir
de classificações – bom/ruim, quente/frio, familiar/estranho, cru/cozido, mole/duro, feio/belo,
cheiroso/malcheiroso etc. Desta forma, dá-se origem à noção de comida. Assim, uma maçã
colhida da árvore e lavada com água já se configura um alimento valorizado simbolicamente
(Idem, 2001). Além disso, também pode ser fabricada pelo ser humano – uma das características
que o diferencia dos outros animais (MONTANARI, 2008). Isto quer dizer que nós somos os
únicos seres vivos que podem produzir comidas que não estão postas na natureza. É um
construto sociocultural em que, a depender do grupo social, da época histórica e dos interesses
econômicos e políticos, existem várias formas de prepará-la e de consumi-la.
Um exemplo disto é a tapioca. No CETARME, especificamente no boxe
“Tapioqueira da Xuxa”, o processo de feitura da tapioca tradicional começa com a compra dos
ingredientes: goma de mandioca grossa (da marca “Prata”, ou mistura-se com a da marca
“Juriti”, o importante é que ela seja “caroçuda”); coco seco (de preferência vindo de coqueiros
da praia, por conta do “aroma”); sal a gosto e água. Primeiramente, molha-se a goma – o ponto
33
certo somente a permissionária sabe, disse-nos que é um de seus segredos – mistura-se com as
mãos e depois deixa essa combinação “descansar” até ela ficar com uma consistência dura. Em
seguida, manualmente, ela faz passar a goma por uma peneira grande. A goma, assim preparada,
é então guardada em recipientes de plástico dentro da geladeira. Posteriormente, por alguns
minutos, ela aquece a chapa a gás, colocando aros em formato de círculo sobre esta. A seguir,
uma das mãos em formato de colher serve de medida para mergulhar no recipiente de plástico,
emergindo cheia de goma. A partir deste momento, dá-se o processo de “cozimento” da goma.
Com a ajuda de uma espátula, vira-se a tapioca o quanto for necessário até ela ficar com a cor e
a consistência exata: macia. Posteriormente, colocam-se as tapiocas grossas em pequenos sacos
plásticos transparentes em um recipiente de isopor em cima de uma mesa. Por fim, podem ser
comidas do modo como saíram da chapa, banhadas com leite de coco, com queijo assado –
colocado em cima e em baixo delas – com ovos, com leite condensado ou com chocolate.
A preparação da tapioca fina é semelhante. Nesta, usa-se a goma de mandioca fina
(da marca “Juriti”), sal a gosto e água. O que diferencia o preparo é o tamanho da peneira
utilizada para peneirar a goma depois que ela é molhada, bem como o momento de levá-la à
chapa. É um método semelhante, no entanto, o resultado final é diferente, pois se terá uma
tapioca fina, redonda ou comprida (o formato é de acordo com a preferência de quem faz) que,
para a tapioqueira N., tem que ficar “crocante”. Todavia, o principal elemento acha-se durante o
feitio desta tapioca, quando se insere o principal atrativo do Centro das Tapioqueiras: a
variedade do recheio. A partir deste elemento, podem-se elaborar centenas de combinações:
tapioca com carne de sol e queijo, com carne de sol e requeijão, com carne de sol e nata, com
frango e catupiry, com frango e carne de sol, com bacalhau, com caranguejo, com camarão, com
sardinha, com banana e canela, com chocolate e queijo, com geleia de pimenta e queijo, com
doce de leite, com coco e rapadura, com chocolate e morango e outras. Assim preparadas, as
tapiocas não devem ser servidas de qualquer maneira. Afinal, a preocupação com a estética e a
organização da comida no prato constituiu parte bastante enfatizada durante os cursos de
culinária.
No que concerne à utilização do termo “popular” relacionado às práticas
“gastronômicas”, tive a intenção de situar o acervo histórico, social e cultural da tapioca no
Centro das Tapioqueiras. Isto é, na classe social desprovida de grandes recursos financeiros,
cujos conhecimentos culinários são aprendidos de forma artesanal e hereditário e o ritmo de
34
trabalho é feito em família e ditado por esta, assim como a simplicidade dos estabelecimentos
(tapiocaria), a homogeneidade do cardápio e a informalidade e a relação social entre
tapioqueiras(os) e clientes. Apoiado nisso, fundamento-me em Canclini (1989), quando este diz
que a palavra cultura sempre esteve associada à história dos excluídos, assim como sua
utilização, nas Ciências Sociais, estava relacionada à dicotomia modernidade/tradição,
erudito/popular e hegemônico/subalterno. E também no historiador francês Roger Chartier
(1995), em que este afirma que além do conceito de cultura popular ser utilizado para descrever
tudo que está fora do que é erudito, ele tem sido abordado, tanto por historiadores, sociólogos e
antropólogos, a partir de duas visões: a) como sistema simbólico coerente e autônomo; b) e
como dependente e carente em relação à cultura dos dominantes. A primeira se refere a uma
lógica interna independente das influências externas. E a segunda diz respeito à sua submissão
aos aspectos da cultura legítima.
É importante frisar que numa relação entre cultura dominante e cultura dominada, as
imposições daquela não excluem elementos particulares desta. Mesmo diante de um contexto
mundial de massificação e de internacionalização da cultura, da industrialização dos alimentos,
da padronização das comidas (principalmente para atender ao consumidor turista), da
mercantilização dos serviços alimentares (formalização dos estabelecimentos informais), o
contato de uma tradição com aspectos de um momento presente não significa dizer que houve o
“falecimento” de uma cultura (GONÇALVEZ, 2011). Logo, é mais viável se pensar que há
ressignificação das antigas práticas. Ocorrem mudanças, mas estas se mantêm com outros
formatos.
Apesar das modificações sofridas diante das imposições estabelecidas pelo Governo
Estadual do Ceará, principalmente durante os cursos de qualificação, as práticas culinárias e
outros elementos da “vida antiga” das(os) tapioqueiras(os) ganharam outras “roupagens” ou
mesmo ficaram adormecidos. Ou seja, o aprendizado de aspectos relacionados à Gastronomia
construiu um modo diferente de fazer e de representar tanto o próprio trabalho quanto as
tapiocas. E isto remete a uma questão: por que se denomina determinado tipo de tapioca como
comida tradicional21
?
Tomando como referência a realidade do CETARME, emprego este termo
relacionando-o à afirmação de Montanari (2008) quando diz que “a tradição não passa de uma 21
Preparada com goma de mandioca, possui formato redondo, grossa em espessura e misturada com coco ralado.
Vinculada às(aos) tapioqueiras(os) que ficavam na Avenida Barão de Aquiraz.
35
invenção bem sucedida” (p.27). E, de acordo com Lima (2007), a tapioca, a partir do referido
espaço, passou a posição de comida tradicional por conta da ação legitimadora do poder público.
Ou seja, antes do ano de 2002, não havia preocupação em descrevê-la como tal. E, segundo
notícias de jornais e conversas informais com os sujeitos desta pesquisa, elementos como a
história dos índios Potiguara, no Bairro Paupina, e a transmissão do saber culinário, passado de
geração a geração, pesam na constituição dessa tapioca como “tradicional”. Consequentemente,
este termo foi estabelecido para se diferenciar do outro modelo ensinado: tapioca fina com
recheio.
Em relação à criatividade, diante de um cenário em que muitos países têm buscado
alternativas para alavancar suas economias, além das indústrias tradicionais, os fatores relativos
aos conhecimentos criativos têm se destacado. Ou seja, o capital intelectual é colocado como
principal matéria-prima do século XXI, haja vista as formulações de políticas públicas nesta
nova perspectiva: que incentivam principalmente o empreendedorismo e a promoção de bens e
serviços culturais (FERNANDEZ e SERRA, 2012). Desta maneira, o Centro das
Tapioqueiras pode ser incluído neste contexto, pois, como um produto turístico que tem como
foco tornar as tapioqueiras(os) qualificadas(os) em seus serviços e empreendedores, a
criatividade surge como possibilidade para ser utilizada como elemento decisivo na produção e
na comercialização de tapiocas.
Apesar de vários aspectos padronizados no CETARME, cada boxe tem suas
especificidades, tais como: as cores dos utensílios, o formato do cardápio, a organização do
estabelecimento, a vestimenta dos funcionários, a origem dos produtos alimentícios utilizados, o
modo como servem os clientes e os diferentes tipos de tapiocas. Dentre os boxes que estou
investigando, os sabores das tapiocas, tanto tradicionais como finas, têm suas particularidades –
seca ou mole, pouco sal ou muito sal, muito coco ou pouco coco, quente ou fria – e a
apresentação da comida sempre é diferente, nunca fica idêntico. Talvez, ao invés de criativo, eu
pudesse falar em inovador – aquilo que já existe e é fabricado de outra maneira. Por exemplo, o
caso da tapioca fina com recheio de nutella com morango, pensada pelo permissionário R., e a
tapioca da Xuxa feita pela Tapioqueira N. poderiam se enquadrar neste ponto de vista: ambas
foram formuladas por eles, mantendo o mesmo formato e preparo da tapioca, mudando apenas o
recheio, mas tendo como objetivo agradar os clientes. Entretanto, sempre que algum cliente pede
algo que não está no cardápio, essas(es) tapioqueiras(os) procuram fazer a vontade dele,
36
facilitando, assim, o surgimento de uma nova maneira de se fazer a própria tapioca: outro
formato, nova maneira de molhar a goma e de armazená-la etc. Sendo assim, o vocábulo
“criatividade” norteou meu olhar em campo.
Por fim, saliento que as aspas adotadas no título deste trabalho revelam a
complexidade estabelecida por uma aproximação entre o universo da gastronomia (como
conhecimento estruturado e hierarquicamente institucionalizado) e aquele representado pela
culinária (prática cumulativa intergeracional), sobretudo quando assentada sobre uma base
tradicional popular e étnica, a exemplo da preparação da tapioca. Assim, o CETARME ilustra
exemplarmente a tensão que marca a relação que se estabelece entre diferentes universos –
aquele das chamadas culturas popular e elaborada, da culinária e da gastronomia, dos
sentimentos de perda e dos ganhos obtidos pela inserção em outro patamar de produção –
enquanto as(os) tapioqueiras(os) seguem modelando, diariamente, um conhecimento aprendido
com lastro na tradição a partir de novas sociabilidades, lógicas mercantis e gostos alimentares no
que concerne à preparação e à oferta das tapiocas.
37
3 O CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
ALIMENTAR
Sentado no boxe Tapiocaria da Xuxa, chamei a atendente: “por favor, quero uma
tapioca tradicional com chocolate e, para beber, coca-cola”. Ao receber meu pedido, refleti:
como a tapioca chegou ao ponto de ser misturada ao chocolate, tendo refrigerante como
acompanhamento?
Meu pedido não se trata de algo ocasional ou mesmo inusitado, ao contrário,
encontra- se no âmbito de um campo de possíveis aberto por um movimento planetário de
transformação social, cultural, político, econômico, geográfico e temporal. Esse movimento
pode ser denominado de “Globalização”. Talvez seja sensato começar explicitando este
conceito, já que interliga tudo aquilo que será trabalhado ao longo deste texto.
Não se fala aqui de fenômeno recente, mas que progride conjuntamente com o
processo de modernização (HALL, 2006; MORIN, 2001). Deste modo, antes de apontar sobre
qual ponto de vista assento esse termo, a retomada de sua marcha histórica, no mundo ocidental,
é significativa para alcançar sua compreensão da maneira como eu a abordo. A retomada pode,
portanto, ser dividida em duas etapas: a partir do século XVI, com a expansão marítima e a
conquista das Américas; e sua intensificação no período pós-Segunda Guerra Mundial, ou seja,
até os dias de hoje.
Os contatos entre europeus e “povos nativos”, desde o período colonial, além de
terem evidenciado processos de dominação daqueles sobre estes, ocasionaram também
contínuas trocas culturais. A comercialização de ingredientes e de alimentos advindos da Índia,
das nações africanas e dos grupos ameríndios nas sociedades europeias, assim como aquilo que
compunha a alimentação destas entre aquelas, caracteriza bem o início da maior interação entre
os povos do mundo.
Exemplo desse estágio pode ser encontrado em uma passagem da obra História da
Alimentação no Brasil (CASCUDO, 2011). Nela, o autor toma a carta de Pero Vaz de Caminha,
datada de 1500, e faz uma síntese do contato de dois indígenas com a “ementa portuguesa”22
:
22
As aspas são para frisar que aquilo que está exposto na obra como o repertório alimentar português, entre os
séculos XVI e XVIII, foi selecionado pelo autor tendo em vista suas preferências metodológicas e os materiais
coletados em sua pesquisa. Portanto, não abrange a totalidade da cultura alimentar portuguesa do referido período.
38
“Deram-lhes ali de comer; pão e peixe cozido, confeito, fartéis, mel e figos assados.
Não quiseram comer quase nada daquilo; se alguma coisa provaram, logo a lançavam
fora. [...]. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram
nada, nem quiseram mais. [...]. Pão de trigo, vinho de uvas, massa d’ovos, taça de
vidro, as condições do peixe cozido, eram revelações. O mel seria de abelhas. Ou
açúcar da Madeira”. (Idem, p. 73-74)
Essa primeira aproximação com comidas e bebidas diferentes daquelas que eles
aprenderam a gostar remete ao início das permutas planetárias que avançaram desde então.
Ilustra rejeições decorrentes da dureza valorativa da cultura alimentar apreendida que, aos
poucos, vai sendo amolecida em virtude das constantes relações estabelecidas entre nativos e
europeus.
Já o segundo período é definido por Morin (2001) como o século da globalização,
que tem sido fortemente vivenciado pelas pessoas em todo o mundo. Alguns fatos históricos
podem facilitar a percepção disso: os avanços nos transportes, nos meios de comunicação de
massa, nas ciências e nas tecnologias; no número crescente de pessoas viajando para fora de
suas regiões (turismo internacional); os acordos políticos sendo feitos, levando em consideração
consequências mundiais; e a ampliação das trocas econômicas entre diferentes países. Isto
fortalece a seguinte asserção: isso conduz à “interdependência cada vez maior entre diferentes
povos, regiões e países do mundo à medida que as relações sociais e econômicas se estendem ao
redor do mundo” (GIDDENS, 1991, p.795).
Stuart Hall (2006) valida essa afirmação, pois a encara como um processo que gera
mudanças em escala planetária. Ultrapassa fronteiras nacionais e locais, interliga as pessoas, as
coletividades e instituições em uma nova realidade, produzindo-se, assim, uma nova
combinação de espaço-tempo e de economia, cultura política e de relações sociais.
A globalização, sendo um fenômeno complexo, justamente por suscitar grande
controvérsia, será por nós entendida como a intensificação das relações sociais em escala
mundial (GIDDENS, 1991), ou mesmo a “unificação mundial” (MORIN, 2001). As duas
perspectivas se casam na medida em que tratam da estreiteza dos laços entre as pessoas e das
trocas materiais e imateriais entre as sociedades.
Desde o final dos anos de 1970 até os dias de hoje, essa integração global, tanto em
ritmo como em impacto, passou a ser muito mais intensiva e ininterrupta. Conectamo-nos, via
internet, uns com os outros e trocamos informações e experiências instantaneamente, podemos
39
viajar para outros países com mais acessibilidade e rapidez, produzimos, consumimos e
comercializamos produtos alimentícios em escala mundial, isto é, unificamo-nos ao mesmo
tempo em que compartilhamos nossas particularidades.
Maior interação entre sujeitos de diferentes sociedades, ao longo desses anos,
possibilitou o contato com diversas culturas e com tudo aquilo que eles possuem. Nos
supermercados, podemos encontrar grande variedade de frutas, de legumes, de verduras, de
pães, de queijos, de carnes, de vinhos, de cervejas, de sucos etc., o que era muito diferente há 40
anos. Muitos desses produtos são desterritorializados, sendo vendidos longe do local onde foram
produzidos: é o caso da goma de mandioca, comercializada fora do Brasil.
As grandes empresas multinacionais têm se mostrado como os principais atores
dessa movimentação. Sendo assim,
nunca, no âmbito da história, um comedor teve acesso a tal diversidade alimentar como
agora no Ocidente. Os progressos dos agronegócios no nível das técnicas de
conservação, de acondicionamento, de transporte, reduzem consideravelmente a
pressão do nicho ecológico. Agora, os mercados não racionam mais em âmbito
nacional. As empresas agroalimentares transnacionais distribuem em todo o planeta
carnes e peixes congelados, conservas enlatadas, queijos, Coca-Cola, ketchup,
hambúrguer, pizza... (POULAIN, 2013, p.27)
Essa variedade de alimentos, ao mesmo tempo em que se expande, é acompanhada
por um processo de homogeneização. Inicia-se com a higienização – contribuindo com a
diminuição de doenças – passando pelos elementos sinestésicos – cor, sabor, aroma e textura –
até chegar aos significados ligados às comidas e às maneiras de comer. Essa similitude tem
como finalidade o consumo daquilo que é produzido.
A rede de restaurantes, de estilo fastfood, McDonald’s, é um exemplo bem concreto
desse modelo de empresa que investe globalmente em um tipo de alimentação homogênea. Seus
hambúrgueres, com formato, sabor e ingredientes, são preparados de forma praticamente
idêntica para serem consumidos em qualquer um dos seus estabelecimentos, seja no Brasil ou no
Japão, come-se o “mesmo”23
Mc Lanche Feliz.
Outro agente importante nessa padronização alimentar é o turismo internacional.
Quando as pessoas viajam para lugares nunca antes visitados, um dos meios de conhecê-los é
23
As aspas evidenciam que há diferenças quanto à preparação dessa comida, a depender do contexto sociocultural.
40
por meio das comidas regionais. Deste modo, a fim de tornar essas viagens mais atrativas, ações
são empreendidas no intuito de adaptar essas comidas locais a um gosto que seja reconhecido e
aceito por sujeitos dos mais diferentes lugares do mundo. É justamente o que ocorreu no Centro
das Tapioqueiras de Messejana: cursos profissionalizantes foram ministrados com o escopo de
modelar a produção e a venda de tapiocas aos gostos alimentares das mais diferentes pessoas.
Isto pode ser percebido nos diferentes recheios e nas maneiras de apresentar a tapioca no prato.
É preciso salientar, no entanto, que esse processo de homogeneização alimentar não
se sucede sem os devidos ajustes culturais. Tomo o caso da inserção do McDonald’s, no
território francês, nos anos de 1970:
O próprio McDonald’s, que aparece como uma caricatura da homogeneização, tem de
colocar em prática estratégias de microdiversificação para adaptar-se aos gostos dos
mercados locais. A estratégia de partida dessa cadeia de restaurantes rápidos, de
inspiração ‘marketing da oferta’, considerou sua oferta – ou seja, sua gama de produtos
que resultou de uma organização bastante sofisticada –, como imutável, estabelecendo
como objetivo próprio eliminar os obstáculos para sua aceitação ao apostar na
comunicação. Entretanto, em face da resistência dos mercados, pouco a pouco, uma
série de modificações da oferta foi introduzida para adaptá-la aos hábitos locais [...].
(POULAIN, 2013, p.29).
É preciso ainda destacar o fato de que a introdução de um novo modelo alimentar
depende dos elementos socioculturais de determinado lugar. Na França, nesse referido período,
houve uma resistência ao tipo de cardápio promovido por essa empresa. Em sua história, mesmo
antes da Revolução de 1879, esse país manteve uma ligação estreita com a alimentação. Sua
gastronomia faz parte da construção identitária do seu povo. Sendo assim, houve inclusão de
cerveja e do tipo carne Royal ao menu do McDonald’s francês. No caso brasileiro, o Centro das
Tapioqueiras de Messejana pode ser tomado como um possível exemplo: a “resistência” não foi
em relação à incorporação de novos ingredientes à tapioca, mas nas transformações das práticas
culinárias das(os) tapioqueiras(os).
Compreender as particularidades de cada lugar permite um olhar mais atencioso
diante do seguinte questionamento: a promoção da diversidade e da homogeneização alimentar
faz com que as especificidades regionais/locais desapareçam? Se for este o caso, os
conhecimentos e práticas tradicionais, construídos e aprendidos pelas(os) tapioqueiras(os) das
Antigas Tapioqueiras, “sumiriam” após os cursos profissionalizantes.
41
Entendo que os hábitos alimentares, por mais maleáveis que possam ser, tendo em
vista que eles são fruto de trocas entre culturas alimentares, possuem uma estrutura rígida
(CASCUDO, 2011), isto é, os significados e as práticas alimentares não são facilmente
“extintos”. Assim, as trocas e a homogeneização dos elementos culturais, presencial e
virtualmente, não promovem o aniquilamento destes em um curto espaço de tempo. E, durante
esse período de transformações, podem agenciar a valorização e o fortalecimento das
particularidades regionais (POULAIN, 2013).
Diante disso, o CETARME não pôs fim aos saberes concernentes à produção e à
venda das tapiocas relacionados às “Antigas Tapioqueiras”. Ao contrário, ocorre tanto o
reconhecimento dessa comida como pertencente à cultura alimentar cearense e brasileira como a
invenção de um novo modelo de cozinha feita pelas(os) tapioqueiras(os) da Paupina, fruto do
entrecruzamento de conhecimento e práticas culinárias.
A partir daqui, para melhor compreender como está se desenrolando concretamente
o processo de globalização, é preciso pôr em evidência a relação entre o “global” e o “local”. E
para tratar disto, uso o termo “glocalização” (GIDDENS, 2009). Este neologismo se refere à
“mistura de processos globalizantes e contextos locais que leva muitas vezes ao fortalecimento,
ao invés da diminuição, de culturas locais e regionais” (idem, p.795). Por exemplo, comidas
relacionadas a determinado lugar são postas em destaque a fim de “combater”, ou mesmo
“associar”, a dinâmica da padronização dos gostos imposta pelas indústrias alimentícias. Logo, o
CETARME, longe de ser símbolo de aculturação, originou um modelo de cocção e serviço de
tapiocas que possibilita a integração de conhecimentos locais e internacionais.
Mesmo presente nas culturas alimentares de muitos brasileiros, desde os tempos
coloniais, existem os que não apreciam a tapioca. Logo, se dentro do próprio lugar de origem,
ela pode ser rejeitada, que dirá das pessoas que não a possuem em seu repertório alimentar e
nem sequer a conhecem. Portanto, para torná-la culturalmente acessível, modificou-se tanto seu
modo de preparação quanto a maneira de servi-la. Então, a ideia de recheá-la pode ser
considerada como o principal fator para pensar o CETARME como uma via de acesso a novas
possibilidades da “gastronomia regional” cearense.
O CETARME desponta aqui como um espaço concebido e construído em um
contexto de intensa globalização econômica, cultural, social e política. É um dos equipamentos
do Governo do Estado do Ceará para atrair turistas estrangeiros para as praias cearenses. Desse
42
modo, tratou-se de aproximar os turistas da prática de consumo das tapiocas recheadas e de
habituar as(os) tapioqueiras(os) com outro modo de preparar e de comercializar esta comida,
familiarizando, assim, diferentes povos com aquilo que lhes era “exótico”, originalmente
estranho às culturas em questão.
A globalização parece não se efetivar como uma tendência inexorável que levaria à
destruição de práticas locais (HALL, 2006). Porém, no que concerne ao objeto deste estudo, ela
produziu novos significados e modos de se preparar a tapioca e também apontou certa perda de
autonomia do gerenciamento dos sentidos (BAUMAN, 1999). Isto é, as ações e os significados
dos sujeitos sociais não são mais governados exclusivamente por questões de determinado
espaço. Assim, além das tensões estabelecidas entre as práticas e os conhecimentos culinários de
outrora, bem como do conteúdo aprendido nos cursos profissionalizantes, acontece
subordinação, em grande medida, aos ditames do mercado de serviço internacional. Exemplos
disto: a passagem do forno a lenha para a chapa a gás; inovações no preparo e no serviço das
tapiocas a fim de dar praticidade; alterações em muitos boxes por conta das necessidades
cotidianas; e introdução de outras comidas – sanduíches, cuscuz, pratos regionais, doces,
salgados etc.
Em virtude dessa interdependência em relação ao mercado turístico mundial, aos
conhecimentos da Gastronomia, aos meios de comunicação de massa, à indústria alimentícia e
às decisões políticas, é possível apontar que o Centro das Tapioqueiras simboliza um processo
de mestiçagem cultural24
. Isso significa dizer que as mudanças ocorridas ao longo de 15 anos,
nas atividades culinárias de muitas(os) tapioqueiras(os) da Paupina, têm resultado “na criação de
novos modelos originais” (POULAIN, 2013, p. 42), que não se opõem frontalmente ao saber
tradicional-popular. Veremos isso mais à frente.
3.1 GASTRONOMIA OU CULINÁRIA: É PRECISO ENCAIXAR O CETARME?
O Centro das Tapioqueiras (C.T.) é caracterizado, de acordo com a Secretaria de
Turismo do Ceará (SETUR), como “polo gastronômico” e uma das referências da “gastronomia
regional” desse Estado. Diante disso, surgem os seguintes questionamentos: Por qual motivo a
24
Refere-se à noção créolité réunionnaise utilizada por Jean Pierre Poulain (2013).
43
palavra “gastronomia” é empregada? É pelo fato de estar relacionada a aspectos da cozinha
erudita francesa? Por que ligá-la à dimensão internacional? Por que não associá-la ao termo
“culinária”?
Com a finalidade de tratar de forma mais profunda esses questionamentos, este
tópico apresenta as seguintes etapas: a) explanação do termo “gastronomia” atrelado ao contexto
francês25
; b) relação desta palavra com a globalização e o turismo internacional; e c) nascimento
de “novas cozinhas”, “novas gastronomias”.
O surgimento da palavra "gastronomia" data do século XVII no contexto europeu e,
especificamente, na sociedade francesa. Desde seu aparecimento, ela está vinculada aos escritos
de juristas e filósofos na tentativa de estabelecer as normas do "comedor". Dentre esses sujeitos,
Brillat-Savarin é destacado como o primeiro a encarar a alimentação para além dos seus
benefícios fisiológicos.
Para esse jurista francês, a Gastronomia é uma ciência da alimentação, mas que se
une aos elementos sinestésicos e hedonistas da vida humana (SAVARIN, 2010). Com isso, ele
enfatiza que o ato de alimentar-se transcende o nutricional e põe em destaque os desejos e a
imaginação. E, além disso, compara a racionalidade e a sistematização científica com o estado
de prazer e de contemplação característico das artes (NASCIMENTO, 2007).
A história do vocábulo tem acompanhado o desenvolvimento da sociedade francesa,
que vem mudando desde os tempos da aristocracia, da revolução de 1789, da industrialização,
da modernização e da globalização. Essa cozinha tem participado ativamente na construção e
resistência da identidade cultural desse país. Por conseguinte, questões de mudança e de
inovação são abordadas com cautela e envoltas em intenso debate. Posso citar a tensão entre
defensores das cozinhas de terroir e das cozinhas internacionais no final da década de 1990:
Os primeiros se colocam na defesa da ‘arte culinária francesa’, considerada o objeto
dos ataques da indústria agroalimentícia, controlada pelas grandes empresas
internacionais de origem americana, e censuram os segundos por sacrificar o
patrimônio gastronômico francês, tanto clássico como regional. Por detrás da
mundialização da alimentação, aparece um medo de neocolonialismo americano. Os
segundos lembram que a cozinha francesa foi construída a partir de influências
múltiplas e que não deixou de fazer empréstimos de produtos ou de técnicas ao longo
de toda sua história, sem, contudo, perder sua identidade (POULAIN, 2013, p.36).
25
Esta escolha está imbricada com influência da Gastronomia francesa em âmbito mundial, principalmente depois
dos anos de 1980 (BUENO, 2013).
44
Este debate aconteceu em um lugar onde a alimentação não é vinculada somente à
saúde, mas também à política, à cultura, além de ser encarada como construto de relações
sociais. Demonstra a relevância do assunto frente a outras questões da vida em sociedade.
Em se tratando da "gastronomia brasileira", houve influência dos colonizadores
portugueses, escravos africanos e nativos (CASCUDO, 2011; DÓRIA, 2014; NASCIMENTO,
2007). Os hábitos alimentares destas três etnias deram origem à cultura alimentar do Brasil.
Porém, é preciso fazer ressalvas quanto a esta formulação. Aquilo que foi compartilhado ou
imposto pelos colonizadores, o que os escravos negros conseguiram trazer (possivelmente
somente seus conhecimentos) e comungado pelos ameríndios não configuravam tudo aquilo que
compunha as culturas alimentares de cada um desses povos. Elas são fruto de miscigenações
culturais que, ao longo dos séculos, outras nações também contribuíram.
Dentre estas, a França tem atuado sobre a configuração das cozinhas das elites
brasileiras há bastante tempo (NASCIMENTO, 2007). Durante o século XX, as transformações
ocorridas na gastronomia francesa – a nouvelle cuisine (reformulação dos procedimentos
culinários), fusion cuisine (mistura de vários modelos) e cuisine de terroir (valorização dos
produtos e das receitas regionais) – têm impactado, seja em dimensão macro ou micro, nas
práticas e nos significados alimentares dos brasileiros, sobretudo a última modificação.
A utilização dos insumos e das receitas locais foi adaptada às técnicas da cozinha
erudita, requintada. Porém, isso não aconteceu de modo espontâneo. Sua causa se dá pelo
contraponto feito à globalização e à industrialização dos alimentos, representando, assim, um
risco à identidade alimentar dos franceses. A saída foi enfeitar e tornar atrativos os produtos
regionais (POULAIN, 2013). E, nesta situação, o turismo teve um papel atuante:
No início dos anos 1980, no centro do que se denominava na época nouvelle cuisine – a
nova cozinha –, o movimento toma amplitude e se expande. Sob o impulso de guias
como Gault et Millau, que concede lauriers du terroir – honrarias regionais, ou o
Champérard, a quem se deve a expressão nouvelle cuisine de terroir – nova cozinha
regional, os grandes cozinheiros profissionais falam abertamente, com ardor, sobre o
tema da 'cozinha regional'. (idem, p.31)
A chegada dessa cuisine de terroir no Brasil, por meio de chefs franceses, fez-se
pela rede de hotelaria. O objetivo foi de atender tanto as necessidades do consumidor interno,
quanto àquelas do turista vindo do exterior – ansioso pela sofisticação alimentar (BUENO,
45
2013). Entretanto, isto se configurava em determinada classe social:
O aumento do poder aquisitivo da classe média brasileira e a popularização das viagens
internacionais foram responsáveis por um novo perfil de consumidor – mais culto,
informado e aberto para experiências inovadoras –, que respaldou o desenvolvimento
de uma cultura gastronômica no país alimentada pelas tradições locais. (Idem, p.11)
Seguindo o que foi dito, uma das formas atuais de entender o que seja “gastronomia”
é verificar sua posição no âmbito alimentar. Sendo assim:
Distingamos em primeiro lugar alimentação e gastronomia. A gastronomia é uma
estetização da cozinha e das maneiras à mesa, uma virada hedonista dos fins biológicos
da alimentação, esta atividade muito amplamente cercada por regras sociais e no
exercício da qual somos condenados várias vezes por dia. Se todas as culturas
apresentam formas de estetização da alimentação, raras são as que a colocaram num
grau de sofisticação atingido pela gastronomia francesa. (POULAIN, 2013, p.209)
Uma diferenciação precisa ser analisada: entre “gastronomia”, “culinária” e
“cozinha”. A distinção é sutil: a primeira consiste na combinação de vários elementos, tais como
a sofisticação, a criatividade, a arte, a preocupação com a qualidade dos produtos; a segunda é
reportada à praticidade, à técnica do ato de cozinhar; e a terceira é utilizada para se referir a
ambas.
Este último é dividido por Montanari (2004) entre cozinha oral e cozinha escrita. Na
primeira, os saberes e as técnicas de preparação das comidas são aprendidos e ensinados por
meio de socializações informais. Ou seja, é por meio da fala e da observação das pessoas mais
velhas para as mais jovens que esses conhecimentos são partilhados. Já na segunda, tudo é
registrado em papel de maneira mais sistemática e racional. Pode ser encontrada em livros de
receitas. Esta característica possibilita sua perpetuação ao longo da história em detrimento
daquela – dependente das pessoas que a praticam.
Considerando o contexto desta pesquisa, para a SETUR-CE, os três termos são
utilizados para exprimir a mesma ideia: as comidas regionais/internacionais e as técnicas para a
preparação destas. Em documento recente, esse órgão afirma a respeito da capital cearense:
Fortaleza é a porta de entrada para todas as delícias que o Ceará tem a oferecer. A
pedida é mesclar ingredientes e criar pratos simplesmente ímpares que variam da
gastronomia do sertão à culinária tipicamente praiana, marcada por peixes e frutos do
46
mar. Nas noites de quinta-feira, comer caranguejo na Praia do Futuro é o programa
tradicional dos fortalezenses que o turista adotou. No bairro da Varjota, Polo
Gastronômico da cidade, a culinária ganha uma mistura de sabores típicos e
internacionais em restaurantes bem cearenses que oferecem peixe, lagosta e camarão
em combinações irresistíveis. Há também opções de pratos japoneses, portugueses,
árabes, chineses, franceses e italianos, como as pizzas, que ganham cobertura de carne-
de-sol e caranguejo. Como sobremesa, nada melhor que um delicioso sorvete feito de
frutas regionais como caju, seriguela, cajá, graviola e sapoti servidos nas sorveterias da
Avenida Beira Mar. (SETUR, 2015)
Em uma mesma frase, utiliza-se “gastronomia” para aludir às comidas da região
sertaneja e “culinária” para falar de pratos das localidades situadas no litoral. Parece não haver
uma distinção clara da parte dos agentes políticos no emprego desses termos que povoam o texto
oficial, como as palavras genéricas que fazem referência às comidas consideradas regionais e
tradicionais cearenses.
Como objeto de estudo sociológico, embora o Centro das Tapioqueiras seja
associado ao termo gastronomia, o caráter problemático do emprego deste termo exigiu a adoção
de aspas, pois, por um lado, ele é acionado de forma imprecisa pelos agentes públicos; e por
outro, não é sequer empregado pelas pessoas pesquisadas no que diz respeito à designação do
próprio trabalho.
A partir deste viés, apesar das(os) tapioqueiras(os) serem constantemente
influenciadas(os) a se adaptarem aos padrões de produção e de serviço do turismo internacional,
elas(eles) – as(os) mais ligados à história das “antigas tapioqueiras” – parecem ainda se valer
das “velhas” maneiras de comprar, preparar e servir as tapiocas. Elas(eles) reconhecem não ser
mais como anteriormente, e sabem que outro modelo de “cozinha” tem sido elaborado.
Isto advém de mudanças de ordem prática e simbólica. Destaco o ato de prezar pela
aparência e singularidade da tapioca. Cada um dos boxes apresenta, em seu cardápio, uma ou
mais tapiocas consideradas particulares. Levando em conta algumas diferenças no preparo desta
comida, de boxe para boxe, as(os) tapioqueiras(os) parecem se apropriar de novas informações
para produzir algo alternativo, podendo estas virem de diversos meios: televisão, revistas,
conversas, cursos, internet etc.
No que concerne ao objeto deste estudo, o uso do vocábulo gastronomia passar a
expressar, a partir deste momento, uma mesclagem entre a “cozinha oral” das tapioqueiras e a
“cozinha escrita” advinda dos cursos de qualificação.
47
3.2 CRIATIVIDADE E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: AS POSSIBILIDADES
INOVADORAS NO CETARME
Na virada do século XX para o XXI, a indústria e a agricultura, nos países
desenvolvidos, mostraram-se não ser mais a pedra angular de suas economias. A intensa
globalização da economia, os avanços científicos e tecnológicos, a escolarização em massa, a
melhoria na qualidade de vida (principalmente financeira), o maior desenvolvimento nos
transportes e nos meios de comunicação, tudo sendo muito intenso e contínuo desde 1980
(DEMASI, 2003), inclinaram esses países para a valorização dos aspectos intangíveis
provenientes da mente humana (GIDDENS, 2012).
O conhecimento e suas potencialidades criativas têm ganhado relevância frente aos
trabalhos que usam somente da força dos braços. O mundo contemporâneo tem exigido
flexibilidade e adaptabilidade às rápidas mudanças, geralmente causadas pelas necessidades do
mercado consumidor. Sendo assim, as ideias têm agregado valor econômico às mercadorias e
gerado novos bens e formas de serviço.
O economista Richard Florida (2011) aponta esse cenário sendo constituído, nos
Estados Unidos da América, já na década de 1990. De acordo com ele, determinados atores
sociais, ligados às classes média e alta, ao utilizarem a criatividade como principal meio de
trabalho, passaram a contribuir gradativamente e mais fortemente com a economia
estadunidense. Denominada de “classe criativa”, esta tem como principais profissionais: os
cientistas, os engenheiros, os arquitetos, os educadores, os artistas e aqueles que trabalham na
solução de problemas complexos (negócios, leis e saúde).
A criatividade passou a ganhar relevância nas “sociedades pós-industriais”. Desta
sorte,
Valores como a estética, a subjetividade, a feminilidade, a vitalidade, a flexibilidade, a
descentralização e a motivação ganharam terreno em relação à racionalidade, à
padronização, à produção em série, à massificação, ao controle, ao gigantismo e à
centralização, aspectos privilegiados ao longo de todo o período precedente da
sociedade industrial. (DEMASI, 2003, p.14)
Esses aspectos se entrecruzam e dão forma a novas maneiras de trabalho, de
produção, de distribuição e de consumo de produtos advindos da junção entre elementos
48
provenientes da era industrial e pós-industrial. Um exemplo é a preocupação estética com a
preparação das comidas industrializadas ou não. Isto é evidente tanto nas embalagens quanto na
própria comida.
Quando se trata de preparações realizadas em restaurantes, em estabelecimentos
especializados no serviço alimentar, a questão estética normalmente é colocada em relevo.
Pontos como o “belo” e o “feio” são postos em destaque para atrair os consumidores.
No que diz respeito ao presente estudo, a valorização daquilo que é intangível está
inculcada no próprio ato de preparação das tapiocas. Segundo o tapioqueiro R., o cliente come
primeiro com os olhos, depois ele come a tapioca. Quer dizer, o ato de comer é precedido pela
avaliação visual. Portanto, regularmente a clientela do CETARME concebe este tipo de
consumo de forma depurada, pois leva em consideração a aparência da comida como indicativo
de um bom prato.
A partir disso, penso na gastronomia francesa, mais especificamente no
embelezamento dos pratos – característica que a acompanha desde sua formação. Contudo,
durante as duas últimas décadas do século XX, dentre as inúmeras influências exteriores por
conta de uma intensa internacionalização da alimentação, a estética japonesa kaiseki26
modificou
o modo francês de montagem dos pratos. Isso significa dizer que o aspecto simbólico é
fundamental na alimentação humana, e muito mais em um mundo que intensifica, a cada dia, as
trocas culturais entre diferentes sociedades.
As comidas provenientes da gastronomia têm, em sua constituição, a “originalidade”
como um elemento característico. Existe a preocupação com a introdução de novos insumos,
modos de preparo, equipamentos, utensílios, e o uso de temperos com a finalidade de apresentar
originalidade, tanto em sabor quanto em aparência.
Disponibilizar recursos e informações possibilita que isso aconteça. Porém, é
necessário que as pessoas tenham uma “disposição cultural” (DE MASI, 2003) para reconhecer,
pôr em prática aquilo que aprenderam e saber usar o que têm em mãos. Para tanto, é preciso um
processo de aprendizagem capaz de incutir valores e atitudes destinadas a formular e a converter
novas ideias em mercadorias. A respeito disso, Flórida (2011) fala em “ethos criativo”:
Todos os membros da classe criativa – sejam eles artistas ou engenheiros, músicos ou
cientistas da computação – compartilham o mesmo ethos criativo, que valoriza a
26
A estética alimentar kaiseki preza pela meticulosidade e bela apresentação dos pratos.
49
criatividade, a individualidade, as diferenças e o mérito. Para esses indivíduos, todos os
aspectos e todas as manifestações da criatividade – tecnológicas, culturais e
econômicas – estão interligados e são inseparáveis. (idem, p.8)
Embora as considerações de Flórida almejem uma formulação universalizante, a
descrição do modus operandi, que conduz os comportamentos e os pensamentos em direção a
manifestações criativas, constitui-se como um caso particular porque se refere ao contexto
estadunidense estudado por ele. Contudo, comparativamente, tais considerações dão suporte na
tentativa de compreender de que modo específico as(os) tapioqueiras(os) do CETARME
expressam seus conhecimentos, por quais caminhos acumularam o saber que foi sendo
construído e como este se converte em práticas nos dias de hoje.
Sendo assim, no processo de constituição do CETARME, a finalidade de adaptar as
práticas e os saberes culinários e gerenciais das(os) tapioqueiras(os), de cada boxe, ao modelo
do mercado turístico internacional levou órgãos privados e públicos a investirem em cursos
profissionalizantes para que esses sujeitos pudessem se adequar a outros modelos de
atendimento, de trabalho cooperado, de culinária, de gestão do próprio negócio, de higiene e de
manipulação dos alimentos. Tais agentes, públicos e privados, apresentaram novos materiais e
novos conteúdos com o objetivo de moldar este ofício a determinado público consumidor: o
turista estrangeiro. Em suma, era preciso promover uma transformação no próprio estilo de vida
e de trabalho dessas pessoas.
Tem-se ensinado às(aos) permissionárias(os) outro modo de cocção das tapiocas
tradicionais:
50
Figura 1: Modelo para preparação da Tapioca Tradicional
(Fonte: autor, 2016)
Este tipo de preparação se assemelha àquela já praticada pelas(os) tapioqueiras(os),
porém, de maneira sistemática, objetiva e racionalizada. Calcula-se a quantidade de goma de
mandioca, de recheio, quais recursos utilizar (fonte de calor) e a porção de sal necessária à
preparação de cada tapioca. O preço final da tapioca, no cardápio, é influenciado tanto pelo
valor de cada insumo quanto pelo modo de preparo.
Em relação ao enfoque da pesquisa, é preciso lembrar que esta pretende apreender a
dinâmica entre os diversos sujeitos que concorrem para que o Centro das Tapioqueiras exista.
Desta feita, o que é colocado em destaque no processo de criação/inovação na produção e na
comercialização das tapiocas são as mútuas influências dos vários atores que participam do
CETARME – tapioqueiras(os)/permissionárias(os); chapistas; atendentes; cozinheiras; pessoa
responsável pelo caixa; faxineiros; vigilantes; representantes comerciais; clientes; familiares;
funcionários do governo do Estado do Ceará e de empresas privadas – além dos fatores externos,
como economia, política, cultura, sociedade, meio ambiente, entre outros. Portanto, é na
apreensão de elementos coletivos que este trabalho busca apreender a valorização de processos
criativos como novidade no contexto analisado27
.
27
Essa posição metodológica parte das leituras de De Masi (2003), “Criatividade e grupos criativos”, e Howard
Becker (2010), “Mundos da Arte”.
51
O vocábulo criatividade é geralmente empregado para designar a feitura de algo
“original”, seja um objeto, uma técnica, uma estratégia ou um regimento interno. De todo modo,
os momentos de criação ou elaboração inovadora fizeram-se presentes ao longo de toda a
história da humanidade. E uma das formas de percebermos isto é na maneira como os seres
sociais lidam com a natureza a partir de suas culturas – estas mesmas podem ser consideradas
como criações humanas. Montanari (2004) exemplifica essa ação criadora com a agricultura: “A
perspectiva mental dos antigos colocou a agricultura como o momento de ruptura e inovação,
como o salto decisivo que constrói o homem “civil”, separando-o da natureza, ou seja, do
mundo dos animais e dos “homens selvagens” [...]” (idem, p.22).
O surgimento de novas técnicas de caça, de pesca e de plantação revolucionou a
maneira como tais sujeitos viviam, além de contribuir para o desenvolvimento dos grupos
sociais posteriores. Isso demonstra que o ato “criativo” é subjacente à história da humanidade.
Outro exemplo é a fabricação do pão:
Na região mediterrânea – a área do trigo –, é o pão que desenvolve essa fundamental
função simbólica [passagem do estado de natureza para a cultura], além de nutricional:
o pão não existe na natureza, e somente os homens sabem fazê-lo, tendo elaborado uma
sofisticada tecnologia que prevê (desde o cultivo do grão até a preparação do produto
final) uma série de operações complexas, fruto de longas experiências e reflexões.
(Idem, p.26)
E, apesar de o historiador italiano delegar a uma mulher específica a exclusividade
da criação do pão, é razoável considerar que sua ação somente foi possível graças ao
intercruzamento de vários outros atores: os plantadores, colhedores e distribuidores de trigo e da
cevada (provavelmente uma só pessoa fizesse estas três funções); os fabricantes dos utensílios
necessários para a preparação dessa comida; e a pessoa que lhe ensinara as técnicas e os
conhecimentos culinários. Sendo assim, tratou-se mais de uma criação coletiva do que
propriamente de uma única pessoa. Isso não quer dizer que inexistam as “genialidades”
individuais, porém, somente o trabalho de síntese feito por eles não seria suficiente para explicar
a perpetuação da novidade, sua difusão e sucessivas reconfigurações no tempo.
No caso da tapioca, ocorre um processo semelhante. Com base nos escritos
históricos acerca dessa comida (CASCUDO, 2011; DÓRIA, 2014), ela está incluída nas culturas
alimentares de quase todos os povos nativos do Brasil. No entanto, saber ao certo sua origem,
52
não é possível. É de conhecimento público que esses povos plantavam, colhiam e processavam a
mandioca (alimento utilizado para a feitura da tapioca), gerando, assim, a goma (farinha de cor
branca e de textura fina). Historicamente, diversos sujeitos concorriam para a feitura das
tapiocas, entre homens, mulheres e crianças. Comparando ao que ocorre no CETARME, trata-se
igualmente de uma atividade coletiva.
Com o passar dos anos e das transformações subsequentes, a tapioca passou a ser
preparada de maneira diferente. Com o advento da globalização alimentar, tornamo-nos muito
mais dependentes uns dos outros para podermos comer. E isto reverbera no Centro das
Tapioqueiras: a formulação de um novo modelo de tapioca ou de novas combinações está
conectada a uma “rede de cooperação” (BECKER, 2010).
Grande parte dos estudos acerca da criatividade, ou da inventividade, estão
vinculados à Psicologia e à Psicanálise. O foco recai sobre o indivíduo e sua personalidade e
capacidade neural. Contudo, no que tange à abordagem sociológica, o objetivo acha-se voltado
para as atividades praticadas por um grupo de pessoas e pela influência de fatores exógenos –
economia, cultura, sociabilidades, ambientes. Em conjunto, tais fatores conformam as “ações
criativas”.
De Masi (2003) fala em “criatividade social”, ou seja, algo que é criado para e pelos
indivíduos em sociedade. Ele dá exemplos: Constituições; Estatutos Municipais; Emendas,
Códigos e Regulamentos Urbanos; Leis; etc. Isso promove, de acordo com esse autor, a criação
de novas formas de sociabilidade e, a partir disso, pode ocorrer a “criatividade organizacional”:
formulação de relações sociais inventadas no negócio, na escola, no partido, no restaurante e,
neste caso, no Centro das Tapioqueiras.
A elaboração da Associação das Tapioqueiras da Paupina (ATP) pode ser
vislumbrada como a criação de uma nova forma de relação social. Sua constituição foi resultado
de ações empreendidas por vários atores sociais: funcionários do SEBRAE e do Governo do
Estado do Ceará; além das(os) tapioqueiras(os). Porém, neste caso, os primeiros impuseram aos
segundos a formulação e a participação nessa associação. Segundo a Tapioqueira N.: não
sabíamos de nada, foram os profissionais do SEBRAE que ensinaram tudo pra gente. Mas, de
acordo com os relatos que colhi de outros funcionários, esse período foi marcado por muitos
conflitos envolvendo esses agentes sociais, o que comprova a ideia de que se trata de um
processo de criação coletiva.
53
Não se pode descartar a possibilidade de essa situação ganhar uma versão oficial,
elaborada pelo poder público, que simboliza o “ponto de vista dos pontos de vista”
(BOURDIEU, 2014). A difusão desta versão ocorre, então, mediante um movimento de cima
para baixo, como uma imposição para quem se destinou a ser permissionária(o). Entretanto, esta
pesquisa também busca enfatizar o papel das(os) tapioqueiras(os) no estabelecimento das regras
e das normas que regem as atividades no CETARME. Consequentemente, os ditames dos
agentes oficiais caminham paralelamente aos discursos e práticas das(os) permissionárias(os) em
relação ao trabalho que fazem, havendo, assim, momentos tanto de convergência quanto de
tensão.
Esse regimento foi redigido levando em consideração as práticas relacionadas às
“Antigas Tapioqueiras”, tanto para legitimá-las por escrito quanto para transformá-las. Entre
elas, há a questão da vestimenta, do modo de atender o cliente, dos utensílios a serem utilizados,
do horário de funcionamento, do que poderia ou não ser vendido, da maneira de conservar a
tapiocaria etc. Ocorreram alterações cuja finalidade era o enquadramento das(os)
permissionárias(os) àquilo que o Governo do Estado e o SEBRAE afirmavam ser a maneira
correta de produzir e comercializar tapiocas. Portanto, a orientação que passa a prevalecer é que
cada um deve seguir o que for estabelecido pela Associação. As preferências individuais devem
estar em conformidade com o regulamento e com as decisões tomadas em grupo entre as(os)
permissionárias(os).
Mediante o que foi exposto, fica evidente que a ATP não vem seguindo à risca o
Regimento Interno. Diante disso, adaptações foram feitas ao longo dos anos em função do
arbítrio de cada permissionária(o): as vestimentas não são mais padronizadas; nos boxes das
tapiocarias, foram acrescentados vários equipamentos; não existem lanchonetes; não se tem o
controle da rotatividade dos automóveis nos dois estacionamentos; entre os horários de
funcionamento, 5h às 22h, cada boxe abre e fecha a depender do movimento de clientes. Estes
são alguns pontos que sofreram alterações. Porém, por mais que haja “curvas” nos
comportamentos das pessoas que trabalham no Centro das Tapioqueiras, a maneira como elas se
relacionam é diferente, ou mesmo nova, em comparação ao que era vivenciado pelas “Antigas
Tapioqueiras”.
Uma questão precisa ser esclarecida: neste contexto, o que pode ser entendido por
“criação” e por "inovação”? Domenico De Masi (2003) afirma que o primeiro termo é definido
54
como novo produto, algo que não existia, enquanto que o segundo remete à modificação, ao
aperfeiçoamento, à ressignificação de um produto já existente. Porém, é preciso salientar que
esse sociólogo trabalha em um contexto no qual há uma discrepância explícita entre o que é
“novo” e o que é “modificado”.
O “novo”, vocábulo ligado à noção de criatividade, refere-se ao que não existia, a
exemplo do sistema operacional Windows, do Modelo T da Ford, da Lei da Gravidade, de uma
sinfonia, de uma comida, de um aparelho celular etc. Além disso, promove uma ruptura com
modelos e padrões já estabelecidos. No âmbito da alimentação humana, a gastronomia francesa
pode ser encarada como uma criação de um novo modo de comer, de representar, de preparar,
de apresentar as comidas e a ligação entre arte, ciência e alimento (SAVARIN, 1995). Sendo
assim, ela estabeleceu um novo formato de cozinha na França, contribuindo até para a
construção da identidade francesa (POULAIN, 2013).
A “inovação” é uma mudança produzida em algo já existente. Desta maneira,
acompanhando o exemplo acima, adaptações têm sido introduzidas na própria gastronomia
francesa. Como mencionado anteriormente, a primeira delas foi após o século XIX, com a
incorporação dos produtos regionais/camponeses aos conhecimentos gastronômicos eruditos. E
a segunda, já no final do século XX, foi o estabelecimento de contatos mais intensos com
cozinhas de outros lugares, o que alterou significativamente essa gastronomia.
No que tange ao que foi e é produzido no Centro das Tapioqueiras, o limite entre o
novo e o modificado é tênue, pois ora posso compreender a feitura das tapiocas como algo
original, ora como algo adaptado à sistematização e à racionalização provindas das exigências
do mercado turístico internacional. Tomo a preparação das tapiocas finas com recheio, ela pode
ser encarada tanto como novidade como transformação. A preparação de uma tapioca fina,
contendo recheios dos mais variados tipos, foi algo “novo” para as(os) tapioqueiras(os) da
Paupina. Antes de 2002, trabalhavam com a tapioca “tradicional”.
Alguns tapioqueiros e tapioqueiras não quiseram participar dos cursos de culinária
promovidos pelo CENTEC, alegando que já sabiam fazer tapioca. Mesmo nesta perspectiva,
podemos dizer que a “tapioca fina com recheio” era uma situação nova para elas(es), ao mesmo
tempo em que se tratava da utilização diferente de uma comida já conhecida.
Discute-se se a criatividade é competência somente da habilidade de uma única
pessoa ou se ela é desenvolvida a partir de determinadas condições socioculturais. De Masi
55
(2003) trabalha com a noção de “ação coletiva”, isto é, uma criação é resultado da atividade de
vários atores sociais em cooperação. E, dentre estes, os “gênios” se inserem. Esse ponto de vista
pode ser complementado com a perspectiva de Becker (2010), no livro “Mundos da Arte”: os
atores sociais que participam do funcionamento de determinado mundo da arte (música, pintura,
artes plásticas etc.) concorrem para que a obra seja produzida, distribuída e comercializada.
Alguns fatores exógenos têm impactos sobre a constituição da criatividade nas
“sociedades pós-industriais”, são eles: o progresso científico e tecnológico, o desenvolvimento
das ciências organizacionais, a globalização, a difusão da cultura escolástica, a difusão dos
meios de comunicação de massa e dos meios de transporte, o crescimento demográfico, o
prolongamento do tempo médio de vida, as lutas de classe, as lutas de liberação, o
aperfeiçoamento das democracias e do respeito às diferenças sociais (DE MASI, 2003;
FLORIDA, 2011). Tais pontos têm influenciado na construção de novas dinâmicas sociais e
culturais, em especial, de acordo com os estudos dos dois referidos autores, nos países
desenvolvido, ricos.
O processo de criação é abordado nesta pesquisa como atividade advinda de um
grupo de pessoas, não rejeitando, no entanto, o ponto de vista psicológico e psicanalista em que
o escopo recai sobre o indivíduo. Porém, esta dissertação destaca o conjunto das
“personalidades criativas” (DE MASI, 2003). Sendo assim, corroboro com a ideia de que os
momentos de criação e de inovação no Centro das Tapioqueiras são o resultado da
interdependência entre os vários atores com compõem este espaço.
É preciso salientar que não há um único “mundo” onde ocorra, com exclusividade, a
criatividade. Apontada como advinda da ciência, da arte e da economia, pode ser apreendida em
todas as esferas da vida social. Na perspectiva sociológica, o caráter organizacional é destacado,
ou seja, a produção coletiva de novas sociabilidades, novos saberes e práticas.
A respeito do método empregado para o estudo sobre a criatividade social, De Masi
(2003) diz que
Meu estudo é voltado, sobretudo, a entender quais são as características
organizacionais dos grupos que demonstram grande genialidade criativa. Procurei
analisar a gênese, o percurso, a difusão e a concretização das ideias produzidas por
equipes organizacionais ad hoc para exprimir o máximo a sua própria criatividade.
Portanto, um subsídio precioso à compreensão desses processos pode ser fornecido
pela sociologia do trabalho e da organização. (Idem, p.540)
56
A partir disso, De Masi divide o processo criativo nas seguintes fases: a) pesquisa
pura, refere-se ao momento de liberdade criativa; b) pesquisa aplicada, apela para o
conhecimento de especialistas; c) tomada de decisão, é ligada aos dirigentes da empresa; d)
desenvolvimento, compete ao grupo de pessoas engajadas na elaboração de um planejamento
estratégico; e) produção, trata da divisão do trabalho; e f) colonização e uso, aborda a operação
de publicidade e de consumo. Tais etapas se referem ao mundo científico e empresarial,
podendo, segundo o autor, estarem relacionadas ao processo criativo no mundo artístico. Porém,
ele salienta a necessidade de contextualização para modelar cada percurso de pesquisa.
Esse ponto de vista ainda remete à noção de “impulso para inovar” (p.554). Esta
motivação pode advir de vários estímulos: acaso; insucesso; mercado; fornecedores; parceiros;
genialidade do empreendedor; necessidades; desejos incubados; e outros. Dependendo do
momento social, cultural, político e econômico de determinada sociedade ou grupo social,
podem emergir tais impulsos para ações inovadores.
No caso das(os) tapioqueiras(os) do Centro das Tapioqueiras, posso elencar alguns
fatores que podem provocar motivações inovadoras: exigências do turismo internacional; a
globalização da alimentação; a difusão dos preceitos da economia criativa; os saberes da
Gastronomia; necessidades surgidas pelo dia a dia; e conhecimentos ligados ao
empreendedorismo.
Acerca desses pontos, o primeiro diz respeito às políticas públicas voltadas para o
mercado do turismo e às exigências que este impõe às localidades que investem nesta área. No
Ceará, a construção e a ampliação de rodovias estaduais, bem como o marketing do litoral
cearense, interferem, sobremaneira, na dinâmica do CETARME, principalmente no que tange a
formulações de estratégias para atrair consumidores por meio da atualização dos cardápios, da
divulgação do boxe pela internet, da fabricação de cartões de visita.
O segundo refere-se à globalização entre diversas culturas e o turismo. E isto, no
âmbito deste estudo, da intensa e incessante troca de informações acerca das culturas
alimentares. Para Bueno (2013), graças ao “desenvolvimento de um sistema de comunicação-
mundo, responsável pela construção de uma nova base material da qual a vida – social,
econômica, cultural e política –, em diferentes regiões do planeta, passa a evoluir num
movimento de conexão crescente” (p.9). Deste modo, a fusão deste ponto com a difusão dos
preceitos da economia criativa, mediante a intensificação de trocas de bens e significados entre
57
diferentes sociedades, possibilita o aparecimento de práticas culturais inovadoras voltadas para a
alimentação. Aliás, as incessantes viagens pelo mundo de turistas que desejam conhecer outros
lugares, além do seu, influenciam no aumento dessa permutação sociocultural.
Os saberes da “gastronomia regional” constituem a terceira influência. Aprender a
preparar e apresentar as comidas locais, em articulação com as regras e valores gastronômicos,
tem propiciado atitudes que visam à criação de outros modos de fazer as tapiocas. Um dos
elementos mais evidentes disso é a preocupação com a estética (leia-se, montagem e aparência
do prato) e as combinações entre os diversos recheios que podem vir a compor a tapioca (fina ou
tradicional).
Necessidades que surgem cotidianamente, eu coloco como a quarta influência para
motivações criativas e inovadoras. Seja na parte estrutural, seja na organizacional ou
envolvendo as comidas e as bebidas, no Centro das Tapioqueiras, essas necessidades surgem
para atrair clientes. A formulação de estratégias, em sua maioria, parte das(os) permissionárias
(os), mas sempre levando em consideração a participação de seus familiares e funcionários que
trabalham em seus respectivos boxes.
Outro ponto que, de maneira consciente, tem relevância no “impulso criativo” ou
inovador é a ideia promovida pelo SEBRAE de as(os) tapioqueiras(os) do CETARME se
esforçarem para se tornarem “empreendedoras(res) individuais”. Para adquirir esta posição
social, ainda hoje esses profissionais participam de cursos profissionalizantes. Nestes cursos,
eles(elas) aprendem novos conhecimentos que podem contribuir na elaboração de estratégias
com a finalidade de melhorar tudo aquilo que se refere ao próprio negócio.
Em entrevista com E.T. (interlocutora do SEBRAE), ela disse o seguinte: fazer
destes sujeitos “empreendedores”, é colocá-los na formalidade comercial e social. É instruí-los
com novos conhecimentos voltados ao setor de serviços, garantindo, assim, linhas de crédito
junto aos bancos públicos e privados (ela enfatizou o Credamigo, do Banco do Nordeste), além
dos benefícios relativos à seguridade social advindos do pagamento de impostos, como a
aposentadoria.
A Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), por meio da
coordenadoria de empreendedorismo, iria promover um curso de qualificação, no ano de 2015,
para as(os) tapioqueiras(os) do CETARME. O objetivo seria aperfeiçoá-las(os) no que diz
respeito ao conhecimento para ser “um(a) empreendedor(a)”. Ele seria dividido em treze
58
módulos, dentre os quais destacamos os seguintes assuntos: “Empreendedorismo: o que é um
empreendedor, como ser um empreendedor, oportunidades e desafios”; “Inovação e
Oportunidades para os Microempreendedores”; e “Economia Criativa”. Estes iriam viabilizar o
gerenciamento de um pequeno negócio, de maneira sistemática e mais racionalizada,
incentivando a cooperação entre as pessoas e dando relevância às atitudes inovadoras e criativas.
Essa ação governamental não foi concretizada, pois as (os) tapioqueiras (os)
preferiram articular uma reforma estrutural no Centro. Porém, apesar de algumas reuniões entre
representantes da STDS, da ATP e das (os) artesãs (ãos) não houve acordo quanto aos três
projetos elaborados pela Secretaria. Portanto, o impasse permanece.
O módulo “Economia Criativa” se assemelha àquilo que De Masi (2003) expõe
acerca do processo criativo nas grandes empresas e como é analisado pelas pesquisas nesta área.
A criatividade é empregada em etapas: preparação; investigação, transformação, incubação,
iluminação, verificação e implementação (OSTERNE, 2013). Entretanto, a originalidade surge
no limiar deste percurso, mais precisamente na fase de “iluminação”, após o aprendizado de
novos conhecimentos.
O material acima foi tomado como exemplo já que não foi possível ter acesso aos
materiais utilizados nos cursos de qualificação destinados as(os) tapioqueiras(os) do
CETARME, com exceção de alguns documentos disponibilizados para fotografia por parte da
tapioqueira N..
O empreendedorismo, como atividade socioeconômica, está relacionado à
“impaciência contagiosa de enriquecer, substituir, modificar e inovar continuamente os
processos e produtos, a sua venda e o seu uso, é o próprio coração do capitalismo, com o seu
espírito empreendedor e sua competitividade, a sua opulência e a sua alienação” (DE MASI,
2003, p. 554). Os comportamentos e os discursos das pessoas observadas e contatadas não
apresentam estritamente esse modelo de ação empreendedora. Contudo, características como
“substituir”, “modificar” e “inovar” estão constantemente presentes, de uma maneira ou de
outra, no modo de gerenciar as relações sociais e a produção de comidas dentro dos boxes.
Desta maneira, encontra-se em cena o estabelecimento de relações entre práticas culinárias
tradicionais e práticas empreendedoras.
Destaco aqui que, desses contatos, emergem atitudes conscientes – sabendo o que se
faz – e/ou inconscientes daquilo que podemos denominar de uma “‘gastronomia’ regional
59
criativa” de base tradicional-popular. A confluência dos dois elementos descritos concorre para
o funcionamento do CETARME, diferente do que ocorria nas “antigas tapioqueiras”, e se
modifica a cada intervenção feita, tanto externa quanto interna.
60
4 OLHANDO, OUVINDO E COMENDO: PROCESSO DE PRODUÇÃO E
COMERCIALIZAÇÃO DAS TAPIOCAS
Durante minhas idas ao CETARME, pude apreender muito em relação ao processo28
e dinamismo29
que concorrem para produção e venda das tapiocas. Deste modo, utilizo a
perspectiva de Roberto Cardoso de Oliveira, em sua obra O trabalho do antropólogo (2000),
quando nos diz que a visão e a audição são elementos fundamentais em uma pesquisa de campo
de cunho etnográfico. Porém, acrescento outros fatores sinestésicos: o olfato e o paladar. Estes
se constituíram recursos chave de investigação, pois, de forma recorrente, fui introduzido no
campo pelo aroma e degustação das tapiocas nos boxes investigados.
Trabalhei in loco, simultaneamente, com um olhar de longe e um olhar de perto30
.
Aquele se refere ao esforço de captar os comportamentos das pessoas e o espaço físico de
maneira distante e com menor interferência do pesquisador. Quanto ao segundo, diz respeito à
atitude de estar mais próximo dos agentes sociais que constituem o CETARME, principalmente
aqueles que se interessaram pela pesquisa. Saliento que não abordo essas duas perspectivas em
momentos estanques, mas paralelamente e de modo complementar. Decisão esta tomada durante
as incursões em campo na medida em que aquilo que apreendia a distância se confirmava ou
divergia do que estava próximo.
Quanto ao ouvir, trato em uma abordagem mais aproximada. Oliveira (idem) define
este momento como aquele em que as vozes dos sujeitos pesquisados são captadas e levadas em
consideração, significando dizer que as categorias nativas são postas em destaque. Seguindo
este preceito, ouvi não somente as pessoas que foram selecionadas, mas também aqueles que
circulam no dia a dia do CETARME.
Já o “cheirar” e o “comer”, estes, sim, vivenciei exclusivamente nos boxes. Essa
ferramenta sensório-analítica possibilitou a apreensão de convergências e discrepâncias em
torno das tapiocas: os tipos de ingredientes, as texturas, os sabores (doce/salgado, quente/frio),
28
A noção de processo aqui utilizada advém de Howard Becker (2010), na medida em que “nada acontece de uma
vez, de que tudo acontece por etapas, primeiro isto, depois aquilo, e que isso nunca pára. [...]. A análise sociológica
consiste em descobrir, passo-a-passo, quem fez o quê, como é que coordenaram a actividade e quais os seus
resultados” (p.11). Partindo desta compreensão, as ações criativas dentro dos boxes são encaradas como
constitutivas de sucessivas etapas e por diferentes atores sociais agindo em conjunto. 29
Esse “dinamismo” corrobora com a ideia de processo social, pensando a sociedade como flexível em seu espaço e tempo (WISE, 1977). Portanto, as práticas e os discursos concernentes às tapiocas, no contexto do CETARME, têm sofrido mudanças provenientes da globalização e da indústria do turismo. 30
Referência ao trabalho “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana” (MAGNANI, 2002).
61
as várias combinações, as maneiras de comê-las, os tipos de bebida que melhor acompanham
determinadas tapiocas (com recheio ou não) etc. Enfim, estes foram aspectos que me auxiliaram
na captação de informações acerca do processo de cocção e de serviço dessa comida.
Realizei aqui uma descrição do material coletado e não somente o relato puro e
simples do que foi observado, a fim de analisá-lo de maneira densa (GEERTZ, 1989). Desta
forma, segui as seguintes etapas: primeiramente, abordei a estrutura física e os comportamentos
das pessoas; em seguida, considerei conversas formais e informais; e, por último, descrevi
minhas observações acerca das tapiocas que comi. Para tanto, fiz uso dos diários de campo e de
fotografias produzidos ao longo do processo de pesquisa.
Meu percurso em direção ao CETARME era geralmente feito a pé, mas, quando eu
precisava sair mais cedo, ia de carro. Saia de casa às 6h30min, do bairro de Messejana, e seguia
pela CE-040 até o meu destino – Centro das Tapioqueiras. Nesse entremeio, observava
elementos que costuravam meu entendimento sobre os sujeitos pesquisados: o grande fluxo de
carros nos dois sentidos (Litoral Leste - Fortaleza/Fortaleza - Litoral Leste), duas placas de
indicação, um ponto de venda de tapiocas à beira da pista em uma rua paralela a CE-040, o
restaurante/churrascaria Tempero da Tia Lúcia e, ao redor do campo de pesquisa, terrenos
“desocupados” com vasta vegetação.
A logística de acesso ao espaço pesquisado foi executada para receber clientes com
seus respectivos meios de transporte motorizados (carro, moto, ônibus e vans de viagem), ou
seja, não há outras modalidades de chegada, como paradas de ônibus públicos ou passarelas. As
placas de indicação se referem ao “Centro das Tapioqueiras”, quer dizer, não fazem referência
ao artesanato. A pequena tapiocaria me faz lembrar a situação de algumas/alguns
tapioqueiras(os), anterior ao CETARME, e incita-me a pensar as criações e as ressignificações a
partir deste espaço. No que tange à churrascaria, atento para a dimensão da comida regional. E
quanto aos terrenos “abandonados”, este ponto emergiu durante as conversas com alguns
permissionários como uma das reclamações mais recorrentes entre esses sujeitos. Para eles, os
terrenos poderiam ter sido aproveitados durante a fase de construção para que houvesse um
estacionamento bem mais amplo.
Chegando ao CETARME, sentava em um dos boxes destinados ao artesanato. Deste
lugar, tinha uma visão panorâmica do que acontecia em cada tapiocaria. Anotava tudo o que me
parecia pertinente sobre: a fachada dos boxes; o fluxo de carros; a dimensão dos dois
62
estacionamentos; as divisões, as decorações e as cores dos estabelecimentos; os modos de agir
dos clientes, dos funcionários e das(os) tapioqueiras(os)/permissionárias(os); o tempo de
permanência no local, o horário de entrada e de saída dos consumidores; e a estrutura física
externa do CETARME (aquela que dá vistas para a CE-040).
Entendendo que nada é concretizado por intermédio de apenas um fator/ator
(BECKER, 2010), mas, ao contrário, relações de interdependência se estabelecem entre os
vários aspectos e pessoas para constituir a realidade desse referido lugar, cada informação se
tornou significativa para a compreensão dos processos que conduziram a essa elaboração
coletiva.
Em primeiro lugar, destaco uma indagação que me surgia de forma recorrente
quando avistava o lugar investigado: como se estabelece a relação entre as(os) tapioqueiras(os),
os agentes oficiais do Governo do Estado do Ceará e os funcionários da empresa Santa Clara?
Esta inquietação emergiu a partir da visão do totem que figura na fachada do CETARME:
Figura 2: Fachada do CETARME
(Fonte: Autor, 2016)
Por que os tamanhos das logomarcas são diferenciados? Quem definiu a ordem de
importância na qual elas aparecem (imaginando a sequência convencional de leitura de cima
para baixo)? Por que se privilegiou a marca Santa Clara (preenchendo mais de 2/3 da placa) em
detrimento daquela do CETARME? Feito deste modo, o totem interfere na decisão dos
consumidores de entrar neste lugar? E, sobretudo, o que esta hierarquia revela da dinâmica de
produção/comercialização de tapiocas neste local? Segundo “Tia Neuma”, uma das funcionárias
63
da Tapiocaria, a placa foi uma iniciativa da empresa Santa Clara, em acordo com a Associação
das Tapioqueiras da Paupina (ATP), para fazer a publicidade do local (17/02/2016). Sem que
os citados questionamentos devam, necessariamente, converter-se em respostas, sua formulação
conduziu-me à consideração da influência substancial destes dois atores sobre aquilo que
acontece no Centro a partir das falas das pessoas que integram este campo empírico.
De acordo com a tapioqueira N., a parceria31
com a empresa Santa Clara se
estabeleceu quando ela, como a primeira presidente da ATP, foi incumbida de encomendar as
placas e o nome de fantasia32
de todos os boxes:
Botei a mão na cabeça aí disse ‘agora, agora me pegou. Como é que eu vou fazer meu
Deus? Já todo mundo sem trabalhar, tudo sem dinheiro... E foi na época que a gente
tava parada viu?! Já tava parada! Tinham pessoas ali que só viviam daquilo ali, né?! Aí
eu digo ‘pronto, e agora?!’. Mas, assim mesmo eu fui atrás das placas! Num tinha
condição, muito cara! Eu queria uma coisa bonita e luminosa. Aí eu tive que pegar o
nome dessas pessoas pra colocar nas faixa, das placas. Aí eu digo: ‘E agora o quê que
eu faço?’. Quando eu tava pensando, chegou o carro com o nome Santa Clara. Eu digo:
‘é por aqui!’. Aí fui logo! Ele foi logo perguntando se eu queria fazer um contrato,
entrar em patrocínio, né?!, com eles. Eu digo ‘é agora!’. Ganhei as placa tudim! As
placas tudo luminosa, a coisa mais linda! Com o nome fantasia de todo mundo! Só o
que eu achei difícil aqui foi isso aí. Aí ficou muito bom, até hoje Santa Clara está com
a gente. Tem as festas que eles fazem: natal. Ajuda, faz aquelas festinha. Dá aquelas
lembrancinha. Né?! Café ele facilita! Tem um mês aí que eles trazem o café. [ENTÃO
ESSA RELAÇÃO COM A SANTA CLARA É DESDE O COMEÇO?] Antes da gente
vir pra cá! Antes de vir pra cá eu já tinha arranjado eles... (risos)... aí, lá mesmo eu
distribuindo garrafa de café, xícara pro povo. Era toalha de mesa. E até hoje, tá com 14
anos que a gente tá aqui. E lá, eu trabalhei mais de 15 anos. Lá era muito bom também!
(Tapioqueira N.)
Durante esse período de transição, a empresa Santa Clara surgiu como mais um ator
na configuração do CETARME. Sua marca, seus produtos e, sobretudo, seus interesses estão
presentes cotidianamente tanto na estrutura espacial quanto naquilo que as(os) tapioqueiras(os)
fazem e pensam sobre o próprio trabalho. Estes aspectos aparecem na decoração de todos os
boxes – placa de identificação, panos que cobrem as cadeiras, alguns enfeites –, nos utensílios
utilizados – pano de mesa, garrafa de café, porta guardanapos, xícaras, camisas dos
funcionários, cardápios – e no café servido aos clientes.
Essa “omnipresença” pode ser percebida, a partir da utilização de dois tipos de
xícaras:
31
A palavra “parceria” é empregada pelas pessoas pesquisadas para se referirem às articulações feitas com a
empresa Santa Clara e com o SEBRAE. Geralmente, quando fazem o uso desse vocábulo, usam-no: “parceiro
forte”. Isto é, auxilia na solução de problemas – principalmente estruturais – diante da ausência de intervenções do
Governo do Estado do Ceará. 32
O nome referente ao boxe.
64
Figura 3: Xícaras do CETARME
(Fonte: Autor, 2015) (Fonte: Autor, 2015)
A empresa Santa Clara passou a fabricar essas xícaras após acordo firmado com
a Associação das Tapioqueiras da Paupina (ATP). A primeira xícara é utilizada frequentemente
em detrimento da segunda, que não é mais produzida. O motivo, de acordo com algumas
pessoas que conversei, é que esta tinha um custo maior, tendo em vista que era distribuída
exclusivamente para o CETARME. Para o tapioqueiro R., a xícara que possui o desenho de duas
pessoas sentadas comendo tapioca e tomando café – subentende-se – “tinha mais serventia”
(Tapioqueiro R.), já que divulgava mais diretamente o local onde trabalha.
A partir disso, ponderei que há certa tensão na relação entre esses dois atores,
Empresa Santa Clara e Tapioqueiras(os) do CETAMRE. Aquele simboliza uma posição de
dominação a partir do momento em que, de certo modo, impõe a utilização exclusiva de seus
utensílios e produtos alimentares em todas as tapiocarias. Já as(os) permissionárias(os), em
virtude das necessidades que se apresentam no cotidiano, usam aquilo que está à disposição.
Vale ressaltar que a segunda xícara e as garrafas de café sem logomarcas ainda são usadas, no
entanto, a marca de café não tem sido alterada33
.
Outro ponto que interfere na dinâmica do lugar é aquele presente nos
estacionamentos.
33
É apresentado aqui o ponto de vista das(os) tapioqueiras(os) que tivemos mais contato. No que concerne à
empresa Santa Clara, não tivemos retorno quanto à possibilidade de possíveis entrevistas.
65
Figura 4: Primeiro e Segundo estacionamentos
(Fonte: autor, 2015) (Fonte: autor, 2015)
As duas fotos acima foram tiradas no horário da manhã, por volta de sete horas, por
isso há pouca quantidade de carros. No entanto, elas ilustram bem a estrutura do referido local,
que atende aos propósitos da pesquisa. O principal ponto a considerar é que a parte da frente
comporta duas vagas para a maioria dos boxes. Alguns não as possuem por uma questão
decorrente do projeto inicial. Já a parte de trás, foi construída para receber ônibus e veículos de
grande porte. Para as(os) permissionárias(os) e funcionárias(os) com os quais tive contato, esse
espaço destinado aos automóveis é insuficiente para a demanda dos consumidores.
Elas(eles) imputam então a “culpa” aos engenheiros e arquitetos que formularam e
executaram o projeto estrutural. Uma das permissionárias afirmou: “deviam ter nos ouvido. Lá
nas Tapioqueira Velha era muito ônibus, muito carro. Aqui, do jeito que tá, não cabe a metade
do que passava lá” (Tapioqueira N.). O projeto é apontado então como uma ação
governamental de “cima para baixo”, por ter sido formulado sem levar em conta a dinâmica
própria dessas(es) tapioqueiras(os) da Paupina. Em curto prazo, o Governo parecia ter
“resolvido” o problema do decréscimo nas vendas. Contudo, hoje elas(es) atribuem a baixa
frequência de clientes a uma limitação espacial permanente.
A partir da observação daquele lugar e de tudo o que ouvi, considero que a questão
do estacionamento me remete a outra indagação: o posicionamento de todos os boxes. Muitos
destes estabelecimentos não ficam tão visíveis para quem chega de automóvel. Estaciona-se e, a
partir desse local, escolhe-se em qual boxe entrar. Geralmente os clientes vão àqueles que ficam
de frente para a vaga onde estacionaram. Têm aqueles que já frequentam determinado lugar,
mas, mesmo assim, até estes tentam deixar o carro próximo do boxe de sua preferência.
66
Para enfrentar esse problema, cada tapioqueira(o) dá sua característica ao lugar que
administra. Sendo formado por 26 (vinte e seis) boxes, todos buscam se diferenciar uns dos
outros, seja no quesito comida, na decoração, nos utensílios utilizados, nos equipamentos, nos
comportamentos dos funcionários, nas vestimentas destes, além do modo como trabalham.
Essas particularidades são condicionadas por normas estabelecidas pela ATP e pelo
Governo do Estado do Ceará. Deste modo, surgem elementos novos em consonância com as
convenções34
que todo boxe deve seguir. Vejamos alguns pontos do regulamento da ATP35
:
Art. 5. – O horário de funcionamento do CETARME para entrada e saída dos
permissionários será o seguinte: - Entrada: a partir das 5 horas e 30 minutos - Saída: no
máximo às 22 horas;
Art. 7 – Durante as horas em que o CETARME esteja aberto ao acesso dos
permissionários e do público em geral, o ingresso, a permanência e a circulação em
suas dependências estarão sujeitas à fiscalização por parte da Comissão Disciplinar,
que deverá fazer cumprir as seguintes normas: [...]; h) Diligenciar pela preservação do
projeto arquitetônico original (fachada e pintura) dos boxes; Art. 9. – Os associados da
ATP e da Associação de Artesãos, na condição de permissionários do CETARME
deverão atender as seguintes normas de apresentação e uso dos boxes: [...]; c) O boxe
destinado a venda de tapioca poderá utilizar mesa de madeira para suporte do isopor
para acondicionamento das tapiocas; d) O boxe destinado a venda de tapioca poderá
conter no seu interior somente os seguintes equipamentos: fogão a gás e geladeira;
Art. 13. – Em relação aos produtos a serem produzidos e/ou revendidos nos boxes fica
assim estabelecido que: a) Em hipótese alguma será permitida a venda de qualquer tipo
de bebida alcoólica, a exceção de cerveja em lata; b) A comercialização da cerveja em
lata é restrita aos boxes de lanchonetes; c) Aos boxes de tapiocas serão permitidas a
produção e comercialização dos seguintes produtos: tapioca, bolos, cocadas, água de
coco, água mineral, refrigerante, café, petas, sequilhos; (CETARME. In: BEZERRA,
2005).
Esses elementos concorrem para a padronização do estabelecimento, das práticas e
dos discursos concernentes ao gerenciamento dos trabalhos. Essas exigências foram
estabelecidas no início do CETARME, porém, foram se reformulando ao longo dos anos, haja
vista a necessidade de obter um número crescente de clientes. Um exemplo de tais
reformulações foi uma alteração feita na estrutura física:
Fizeram isso aqui, uma barraquinha só daqui pra acolá. Não fizeram isso aqui
[cobertura com telha], deixou aberto aqui. Aí, os meus clientes, todos os meus clientes
34
“Convenção” é um termo empregado tendo como referência os estudos de Howard Becker em “Mundo das
Artes” (2010). 35
Em virtude de não ter tido acesso a esse documento, utilizo aqui o que está presente na dissertação de Celina
Bezerra (2005).
67
ficavam na chuva e no sol. E não tinha condições. Inventei de fazer um toldo bem
grande. Mas, eu quase apanhava! Porque eu fiz esse toldo. Porque os clientes vinha
procurar onde tava melhor. Na sombra, sem chuva. Mas, eu fiz pra que as pessoas
entendesse que não podíamos trabalhar daquela maneira. Aí chamaram o pessoal do
SEBRAE, até uma psicóloga venho no meio. Antes delas começarem o assunto, eu
comecei logo né?! Eu disse ‘gente eu fiz isso aqui talvez sem pensar, que se tivesse
feito isso aqui na hora do ar livre eu colocava, na hora né?! do sol e da chuva, tirava’
mas, nem todos aqui iam fazer. Não iam. Aí eu, contei minha história todinha que eu
não tinha feito só pra mim. Tinha feito para os clientes. Que não tinham acreditado
nisso aqui. Isso aqui era muito pequeno. Sei que me deram um cartão, se precisasse
podia ligar. Foi num instante, fizeram isso aqui todim. Botaram uns toldo que com
pouco tempo se rasgava. Chamei o pessoal da Santa Clara e disse ‘olha, vocês botem
de telha, porque se quebrar uma telha a gente coloca! Vocês tão tendo prejuízo’.
Pegaram e fizeram de telha. Tá aí, todo mundo na sombra. (Tapioqueira N.)
Tais alterações também ocorrem nas decorações dos boxes. De longe, notei as
diferenças: nas vestimentas dos funcionários, na utilização de brinquedos (pula-pula, o mais
comum) que existe em algumas tapiocarias; nas cores (nos panos das cadeiras, nos cardápios e
nos utensílios utilizados); e na maneira como cada funcionário tenta chamar atenção do cliente.
São alguns pontos que podem concorrer para novas práticas no que diz respeito à
comercialização das tapiocas, influenciando, assim, no seu consumo.
A respeito do último ponto, a abordagem feita aos clientes ocorre por meio das
expressões “seja bem-vindo, pode entrar!”, tendo sempre em mãos o cardápio. Todavia, este tipo
de atendimento padronizado acontece com algumas diferenças: o modo como se fala, como se
utiliza o corpo, como entrega o menu ao cliente, e como este é tratado enquanto espera o pedido.
Os cursos de qualificação tiveram o papel de enquadrar os serviços dos boxes a
determinadas regras, especificamente aquelas voltadas para o turismo internacional. Contudo,
trata-se de um local em que o modo de se produzir e servir tapiocas, provenientes das A.T.,
ainda predomina. Desse modo, a tradição culinária destes se entrecruza com as novas
informações, configurando, assim, uma “gastronomia” regional e tradicional própria e criativa.
Outro fator que classifica cada tapiocaria como única é o cardápio. Toda(o)
permissionária(o) estabelece a estética do seu menu – plastificação, cores, formato das letras,
ilustrações, fotos, informações adicionais – e a ordem das comidas e das bebidas. Seguem
abaixo dois exemplos:
68
Figura 5: Capa dos Cardápios “Recanto do Sertão” e “Silvia Helena”
(Fonte: autor, 2016) (Fonte: autor, 2016)
O cardápio da tapiocaria Recanto do Sertão apresenta elementos visuais de ligação
com a região nordestina: a cor amarela (relacionando-se com o sol e o calor); a cor verde (a
vegetação própria da caatinga); e a tapioca fina com carne de sol e queijo (representando a
comida característica do CETARME). No que concerne ao outro cardápio, da Silvia Helena,
esta faz uso de cores que remetem ao universo rústico (de palha ou de madeira, sendo queimado
em um forno a lenha, como eles faziam anteriormente). Tudo dá oportunidade à diferenciação,
inclusive as páginas seguintes:
Figura 6: Interior dos Cardápios
(Fonte: autor, 2016) (Fonte: autor, 2016)
69
Os dois se assemelham com relação aos preços e aos tipos de combinações feitas
com as tapiocas finas. Estas convenções são acordadas pelas(os) permissionárias(os) durante as
reuniões da ATP. Para o tapioqueiro R., na proporção em que os preços dos mantimentos sobem
também é elevado o preço das tapiocas (22/06/2016). Tudo é feito com o conhecimento de
todos. Pode haver uma pequena variação de preço em um mesmo tipo de prato, por exemplo, a
tapioca fina com creme de frango e catupiry, na figura 1, custa dez reais; na figura 2, já custa 12
reais. Todavia, não deve ser uma diferença exorbitante.
A padronização não encerra as peculiaridades. Aliás, estas podem advir tanto de
quem faz parte das tapiocarias quanto dos clientes. Cito dois casos: o primeiro se refere à
tapioca fina, com nutella e morango, produzida e comercializada no boxe Silvia Helena; e o
segundo da tapioca fina com alho e ovo, feita no boxe Tapiocaria da Xuxa. Naquele, a criação
não passou somente pelo crivo do permissionário, mas também teve influência de outros
sujeitos. E a decisão de inseri-la no cardápio passou por vários momentos. Quer dizer, sua ideia
foi sendo objetivada por etapas (apreensão de novas informações, experiências, demonstração
para os funcionários, para os clientes e, por fim, a implementação no cardápio) e por meio da
opinião dos vários atores que compõem o boxe que ele gerencia.
Diante das informações que o tapioqueiro R. me concedeu, sua trajetória de vida tem
possibilitado ações que objetivam a criação de estratégias para a produção e a comercialização
de tapiocas, bem como outros tipos de comida, além de estar apto para resolver problemas que
ocorrem no dia a dia. Deste modo, elenco alguns fatores que o auxiliam: as diversas
modalidades de trabalho pelos quais passou; os conhecimentos adquiridos durante os cursos
profissionalizantes ministrados pelo SEBRAE; aquilo que aprendeu durante os anos em que está
no CETARME; dentre outras experiências de vida.
O segundo caso, não foi ideia da tapioqueira N. Mas, de um cliente que pediu algo
de seu gosto e que não estava no cardápio. Por meio do público consumidor, houve a
formulação desse tipo de tapioca. Percebi, assim, que outros atores podem concorrer para a
criação de algo que não existia até então no cardápio (para além das comidas e bebidas
preestabelecidas).
Outro elemento que me chamou a atenção foi a cor de cada boxe. Elas qualificam
cada um: azul marinho (Silvia Helena); Roxo (Tia Neuma); Verde escuro (Recanto do Sertão);
Verde claro (Tapioqueira da Xuxa), entre outros. A procura pela distinção parece ter sido feita
70
pela escolha das(os) próprias(os) permissionárias(os), haja vista que as cores se repetem em
outros boxes, mas nada que cause discordâncias profundas. Na verdade, isso faz referência à
marca de cada lugar. Tanto é que, até nos cardápios e nos utensílios postos à mesa, tais cores são
utilizadas. As figuras, a seguir, ilustram isto:
Figura 7: Capa dos Cardápios “Tia Neuma e “Recanto do Sertão”
(Fonte: autor, 2016) (Fonte: autor, 2016)
Sendo assim, os aspectos apresentados se revelam como fruto de ações coletivas, ou
seja, vários fatores e atores sociais concorrem para a dinâmica “gastronômica” de diferenciação
no Centro das Tapioqueiras, principalmente para o surgimento de ações criativas ou inovadoras.
4.1 DENTRO DOS BOXES: UM PROCESSO COLETIVO
Sete horas da manhã, horário que costumava chegar ao Centro, adentrava no boxe
Tia Neuma. A atendente tinha o hábito de estar sentada em uma das mesas conversando com a
permissionária. Uma vez ou outra, encontrava as duas na mesa comendo pão com café. Chegava
nesse espaço não somente na posição de pesquisador, pois o papel de cliente me parecia facilitar
a formação de uma relação de confiança com a elas.
Dando “bom dia”, sentava em uma das mesas próximas ao local onde ficava a
tapioqueira e pedia tapioca tradicional com queijo. A escolha teve o objetivo de saber como
esse prato era preparado e servido, para fazer uma comparação entre este e os outros boxes
pesquisados. Além disso, apreender como a tapioca tem se modificado com o passar do tempo,
já que a permissionária remonta às Antigas Tapioqueiras.
71
Havia três pessoas trabalhando juntas na maior parte do dia:
tapioqueira/permissionária, a atendente – acrescenta mais uma ou duas, de acordo com as
necessidades – e a cozinheira. São mulheres, com idades diferentes e que se relacionam de
maneira muito próxima. Elas podem fazer as funções umas das outras, mesmo com pouca
técnica. É o caso da atendente fazendo tapioca ou outra comida, sendo esta função da
permissionária, que possui conhecimento e técnica referentes a esses papéis.
Da mesa, conseguia observar somente uma parte da preparação: o momento em que
o queijo coalho (ralado) é colocado sobre a tapioca36
. E pelo que pude apreender, a depender de
quem a fizesse, a quantidade e o modo como o queijo é disposto sobre a tapioca, bem como o
tempo necessário para que seja assado, modificam o sabor e a aparência da comida. Logo,
demandam habilidades que somente a permissionária e a cozinheira detêm com segurança.
Todas elas cooperam para que essa comida venha a ser preparada e servida, a
começar pela tapioqueira. Esta tem as seguintes incumbências: administra as finanças e o
funcionamento do boxe; seleciona e compra os produtos alimentícios necessários para feitura
das comidas; prepara e serve as tapiocas e outros tipos de comida e bebidas. O principal papel
da tapioqueira, no entanto, é administrar e organizar sua tapiocaria.
Quem deve estar diretamente ligada às comidas e às bebidas é a cozinheira. A
apreensão desta denominação surgiu durante uma conversa informal com a permissionária, que
me explicava o cotidiano de seu boxe. A cozinheira, por exemplo, tem as seguintes funções:
molhar e peneirar a goma de mandioca, fazer as tapiocas (tradicional e fina), ralar o queijo e
preparar o café (com e sem açúcar), preparar o cuscuz, limpar a cozinha37
etc.
Dentro do boxe, as comidas são preparadas em dois lugares distintos: o forno e a
cozinha. O forno ainda possui parte de sua estrutura, porém, as tapiocas são feitas numa chapa a
gás. A cozinha é utilizada para a feitura das outras comidas e bebidas, a partir de vários
utensílios: fogão a gás, liquidificador, panelas, garrafas e talheres. E, em cada tapiocaria do
Centro, esses dois espaços são utilizados de modo particular.
E quanto à atendente, sua tarefa específica é atender os clientes. Quando necessário,
também toma a posição de cozinheira. Embora, em alguns momentos, ela tenha preparado meus
36
Sem retomar o processo de produção, já descrito no primeiro capítulo, salientamos aqui a cooperação entre essas
mulheres para que esse prato seja servido aos clientes. 37
Esse vocábulo se refere a um determinado espaço dentro da tapiocaria. Essa explicação se faz necessária, pois,
durante o texto, iremos abordá-lo com outra conotação: conhecimento e técnica alimentar.
72
pedidos e demonstrasse conhecer os passos para a feitura das tapiocas, logo revelou pouca
perícia técnica na realização destas.
Em virtude dos poucos clientes, na maioria dos dias em que estive presente, elas
conversavam muito entre si e com os funcionários do boxe vizinho. Sempre com comentários a
respeito do que estavam vendo no facebook e/ou algo que acontecera no Centro no dia anterior.
Tudo parecia funcionar em ritmo lento, conforme as necessidades do momento.
No mesmo corredor do referido boxe, podia avistar o “Recanto do Sertão”. Este
boxe foi aquele em que eu menos estive presente. A razão para isto foi a atenção dada com mais
ênfase aos dois boxes que abordarei a seguir. As informações coletadas, ainda que divergentes
em termos de profundidade, foram de grande valia para as considerações acerca de meus
objetivos.
Nessa segunda tapiocaria, quem me atendeu foi a permissionária entregando-me o
cardápio e dando “bom dia”. Para fins de comparação, também pedi tapioca tradicional com
queijo. A tapioca foi retirada de uma caixa de isopor e passada ao chapista. Este é o sujeito
encarregado de preparar as tapiocas. No intervalo de cinco minutos, meu pedido foi posto diante
de mim: sobre a mesa, em um prato de vidro, ao lado de uma faca e de um garfo.
Enquanto comia, notei que se tratava do único boxe que ainda utilizava tanto o forno
a lenha quanto à chapa a gás. De acordo com a permissionária, a opção de manter o forno, tal
qual foi concebido, era de caráter estético e também para manter o sabor característico da
tapioca. A opção levou-me à seguinte pergunta: quais atores e fatores condicionam a
permanência de determinados elementos e o abandono de outros?
No CETARME, o forno a lenha tem sido representado tanto pela SETUR-CE quanto
pelos meios de comunicação como um elemento rústico e tradicional da “gastronomia regional”
cearense (O POVO, 2015; SEBRAE, 2015; SETUR, 2015). Ele tem as seguintes características:
feito de tijolo tipo branco, retangular; sua cor lembra a madeira; seu formato, no Centro,
assemelha-se à letra “L”; na parte horizontal há um compartimento no qual se coloca a lenha e,
acima dele, há dois suportes de metal que servem para preparar as tapiocas; e na parte vertical,
encontra-se a chaminé. Nos outros boxes, esta composição foi modificada ou completamente
retirada, sendo que a maioria das tapiocarias mantém apenas a parte horizontal.
Já a chapa a gás tem representado um contraponto ao modelo do forno a lenha. Nada
de rústico ou de algo que lembre o que era feito nas Antigas Tapioqueiras. Sua caracterização
73
geralmente parte dos seguintes aspectos: composto de alumínio e de ferro, de cor cinza; possui
forma retangular, tendo uma estrutura de metal para a produção das tapiocas – nesta tem
orifícios que são utilizados na retirada do excesso de goma de mandioca; e é ligado ao botijão de
gás por meio de um cano de plástico. Todos os boxes possuem esse mesmo modelo, tanto os que
têm somente uma chapa quanto àqueles que apresentam mais de uma.
As escolhas e as decisões concernentes à utilização de um ou de outro recurso
técnico são influenciadas por questões internas e externas. Creio que uma das tapioqueiras
manteve ambos em funcionamento por motivos estéticos e culinários. Outras usam a chapa,
deixando parte da estrutura do forno a lenha, a fim de manter vínculos com a imagem do lugar
tradicional. E há aquelas que não o destruíram, apenas mudaram a aparência do forno a lenha
por certo comodismo em relação ao projeto inicial. Além disso, por conta dos boxes serem
muito próximos uns dos outros, o fator segurança também motivou tais mudanças.
Ações exógenas de dimensões micro e macro concorreram, sobremaneira, para a
efetivação dessas transformações. Isso vai desde o pagamento de imposto sobre a lenha
utilizada38
até os impactos da industrialização e globalização da alimentação. Neste contexto, as
alterações de âmbito técnico nos serviços de alimentação fora de casa, priorizando uma
produção e um atendimento rápido e prático (POULAIN, 2013), podem ser encaradas como
propulsoras das referidas escolhas.
Deste modo, revela-se mais um aspecto da permanência de práticas culinárias
relacionadas às Antigas Tapioqueiras. São costumes que ainda sobrevivem às novas
informações, técnicas e conhecimentos culinários/gastronômicos, além do contato com outras
esferas da sociedade, a exemplo daquela mantida pelo Governo do Estado do Ceará. Esse
fenômeno contribui para a compreensão das possibilidades criativas subjacentes à produção e à
comercialização desse equipamento cultural.
Percebo que no Recanto do Sertão existem mais funcionários em comparação com o
boxe Tia Neuma. Segundo a permissionária, em uma entrevista informal (sem gravação em
áudio), isso se dá em virtude de maior movimentação de clientes. Dessa forma, além da
tapioqueira, há dois atendentes (um rapaz e uma moça), um chapista39
(responsável pela feitura
38
Os permissionários da tapiocaria “Silvia Helena” e da “Tia Neuma”, afirmaram-nos que agentes do IBAMA
foram até o CETARME alertar sobre essa imposição. 39
Função relacionada à pessoa que tem a responsabilidade de preparar as tapiocas na chapa a gás.
74
das tapiocas), uma cozinheira e outras pessoas que ajudam na manutenção do local. Sempre que
necessário, acrescentam-se mais funcionários em virtude da quantidade de consumidores.
O número de sujeitos influencia no maior ou menor estabelecimento de posto.
Assim, a relação pessoa/função se torna mais estreita. Além disso, cotidianamente, surgem
situações em que alguém atua sobre o papel de outrem. É o caso da permissionária que exerce
diversos encargos: gerenciamento, organização, preparação das comidas, limpeza e atendimento
aos clientes. Ela me disse: tem momentos que é preciso atender os clientes, limpar as mesas,
fazer tapioca... depende muito do movimento (Diário de Campo, 17/06/2016).
Saindo desse boxe, dirigi-me para a “Tapiocaria da Xuxa”. A situação se tornou bem
diferente, em termos de qualidade no contato com os sujeitos pesquisados. Consegui, no que
tange às entrevistas, maior abertura e apreensão de informações. A princípio, este
esclarecimento não atribuiu nada de negativo aos dois boxes acima descritos. É certo que
precisei de um tempo maior de contato com essas pessoas para que pudesse “ganhar” sua
confiança. Esse é um aspecto necessário quando se trata de uma pesquisa social em que o
objetivo do trabalho de campo é permitir a aproximação do pesquisador da realidade sobre a
qual investiga.
Assim como nos outros boxes, pedi tapioca tradicional com queijo. Notei que o
procedimento é o mesmo, a tapioca é retirada de um recipiente de isopor envolta em um saco
plástico transparente. Porém, a discrepância está na maneira como o queijo é utilizado. Este é
posto tanto na parte de cima como na de baixo, sendo a feitura atribuída à chapista/cozinheira.
A permissionária utilizou essas duas expressões se referindo à mulher que preparava a tapioca
solicitada.
Tomei a decisão de pedir o mesmo tipo de tapioca. O objetivo era notar como ela era
feita e se havia variação de técnicas e de sabor entre os boxes pesquisados; até mesmo em cada
um deles. Essa maneira de trabalhar foi escolhida a partir de minhas próprias experiências como
consumidor e dos argumentos expostos por clientes que consomem no Centro das Tapioqueiras.
Geralmente, participavam de meu pedido uma atendente e a chapista. Aquela pegava
a tapioca tradicional e entregava a esta que, por sua vez, retirava da geladeira uma bacia de
plástico contendo queijo coalho ralado. Uma das diferenças em relação aos outros boxes é que
este ingrediente é posto tanto na parte de cima quanto em baixo da tapioca, contribuindo para
realçar ainda mais o sabor do queijo.
75
O número de pessoas não é muito diferente do “Recanto do Sertão”. Tem-se a
permissionária, esta tem uma filha que também se encarrega do gerenciamento, uma
chapista/cozinheira, dois atendentes – uma moça e um rapaz – e mais uma ou duas pessoas que
ajudam na manutenção do local. Entretanto, saliento que, diferentemente dos anteriores, grande
parte dos funcionários tem a mesma origem familiar da tapioqueira.
A forma de organização me leva a refletir sobre a continuação de algumas práticas
oriundas da A.T.. Uma delas é a conjugação da vida familiar/doméstica com a produção e a
venda das tapiocas (BEZERRA, 2005). Pai, mãe, irmãs, irmãos, avós, avôs, tios, tias, entre
outros, cumpriam suas tarefas de acordo com aquilo que era estabelecido entre eles mesmos, ou
seja, baseado em conhecimentos e técnicas herdados de geração em geração e de maneira
autônoma. Desse ponto de vista, o funcionamento das tapiocarias se movimentava por normas e
valores tradicionais e populares.
Com o advento do CETARME, houve a mudança desse padrão organizacional.
Predominantemente privado, foi posto num processo de qualificação para ser modelado àquilo
que o poder público exigia dos serviços alimentares cujo objetivo era atender aos turistas
(estrangeiros ou domésticos). Assim, por meios dos mais variados cursos, a relação
casa/trabalho passou a dar lugar ao trabalho/negócio.
Desta sorte, na terceira tapiocaria estudada, percebi que houve assimilação das
regras estabelecidas por aqueles que conceberam o CETARME e da dinâmica do mercado
turístico. Todavia, a permissionária direciona todos os trabalhos de acordo com o cotidiano do
boxe: “Bom, aqui a gente abre cinco e meia da manhã até dez horas da noite. Nove, dependendo
do movimento. Só nas férias, na alta estação, que a gente tem uma venda melhor, uma renda
melhor - julho e janeiro. São 100% melhor. Porque vem muito turista! Tem muito turista.”
(Tapioqueira N.).
As prioridades, os modos de perceber e administrar a própria atividade, as práticas
culinárias, a vida privada, tudo isso foi alterado nas etapas de preparação para a inserção no
Centro. E as transformações ainda continuam, pois a cada intervenção externa modifica-se o
sistema de funcionamento das tapiocarias. No capítulo quatro, este tema será abordado, tomando
como exemplo as(os) tapioqueiras(os) na posição de empreendedores.
Já na tapiocaria Silvia Helena, encontrei uma situação peculiar em relação às
demais. Seu permissionário, assim como a do Recanto do Sertão, não tem uma trajetória de
76
vida ligada à A.T. Mas ele demonstra ter incorporado com mais vivacidade os ditames
provenientes dos cursos profissionalizantes. Suas ações e seus discursos são voltados para o
aperfeiçoamento da produção e do serviço do seu empreendimento.
Rapaz, a gente mora aqui! Eu costumo dizer que a gente vai em casa só passear.
Durante esses quase 15 anos, que a gente tá aqui, a gente tem o prazer de ir em casa.
Mas, não vai na casa toda. Sala, quarto, quarto, sala, entre no carro e vem trabalhar de
novo. E porque a gente tá aqui quase todo tempo, a gente tem a facilidade de tá vendo
as coisas. Hoje ainda nós estamos, AINDA, quase que tudo no natural, no manual.
AINDA! Mas, há muito tempo que já pede um programa, um acompanhamento direto
de fiscalização. Comigo e com os freezers dos recheios Há muito tempo que me pede
“quantas tapiocas tu faz com uma saca de goma?”, “quantas tapiocas tu faz com 100 kg
de carne de sol?”, e o fato é que as coisas vão acontecendo. A gente inicia ninguém
trabalhava com carteira assinada, hoje todo mundo tem sua carteira assinada. Hoje todo
mundo que vai sair tem seu aviso prévio. Hoje todo mundo que sai recebe sua
indenização com férias, 13º, fundo de garantia, com PIS, tudo que te direito. Hoje a
gente já tem um contador que trabalha pra gente, trazendo a burocracia dos órgãos de
serviço estadual, municipal ou federal. E hoje a gente é uma empresa que, que hoje a
gente pode dizer “conceituada”! [Então você enquadra como “empreendedor
individual, segundo o SEBRAE?] Não porque a gente subiu mais uns degrausim. Um
empreendedor individual, ele tem um limite para trabalhar até 60 mil anual e ele tem o
direito de assinar a carteira de um funcionário só. Micro, que é o nosso, a gente tem o
direito de assinar quantas carteiras houver necessidade. Hoje, nós temos 11 pessoas
com carteira assinada com a gente. E a gente tem um limite de 1 milhão e 600 mil reais
para trabalhar por ano. Então, existe uma diferença grande. E a margem de imposto
também é outra. Mas, já tamo enquadrado no simples. Desde 2008 ou 2009.
(Tapioqueiro R.)
O arranjo estabelecido para a divisão do trabalho é mais delimitado. Com
permissionário/tapioqueiro, caixa, atendentes, chapista, cozinheira e auxiliares de limpeza, seu
boxe funciona a partir da execução de cada uma destas funções, todas interconectadas e
realizadas pelo seu respectivo agente.
Para exemplificar, assim como nas outras tapiocarias pesquisadas, tomava a posição
de cliente e pedia tapioca tradicional com queijo. Primeiramente, uma atendente me
disponibilizava cardápio. Depois que fazia o pedido, ela se dirigia até o chapista e o informava
sobre aquilo que eu queria. Em seguida, este pegava uma tapioca grossa em um recipiente de
isopor ao lado do forno, tirava-a do saco plástico transparente e esquentava a comida na chapa.
Por fim, era-me entregue em um prato de vidro.
Sempre comia um tipo de tapioca tradicional diferente daquela que os outros boxes
servem. Normalmente, eram retangulares e continham queijo entre as duas porções de tapioca,
muito semelhante a um sanduíche. Somente depois descobri que eles também trabalhavam com
o formato redondo. Porém, não indaguei de pronto a respeito dessa discrepância, pois queria
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entender, a priori, como as ações desses sujeitos eram desenvolvidas.
Durante minhas primeiras incursões, além do que observava a respeito da prática
culinária, as movimentações acerca da administração dos produtos alimentícios mostraram que
outros atores sociais coparticipavam do processo de produção e de comercialização das tapiocas.
A demonstração disso começa na compra do queijo, pois quem produz e comercializa esta
mercadoria influencia na cadeia de produção das tapiocas recheadas com queijo. De acordo com
o permissionário, a qualidade do queijo pode mudar substancialmente o sabor da tapioca. Ele
diz que tudo é feito para satisfação do cliente (Diário de campo, 21/06/2016).
A depender da trajetória de vida das(os) permissionárias(os), principalmente como
tapioqueiras(os), as dinâmicas e formas de organização serão sempre particulares nos seus
respectivos boxes. Pude notar que a velocidade com que as atividades são realizadas, por quem
é efetuada, o que é utilizado, como é feita a montagem dos cardápios, interfere, sobremaneira,
na qualidade dos produtos, principalmente naquilo que enxerguei como o motor de
possibilidades criativas: a interdependência entre os papéis que cada um exerce.
4.2 DOIS PERMISSIONÁRIOS E SUAS RELAÇÕES COM A CRIATIVIDADE
A cooperação entre os sujeitos contribui para a produção de tapiocas, isto é, as ações
realizadas durante as atividades dentro de seus respectivos boxes auxiliam na elaboração de
ideias sobre a produção de novas tapiocas. Sendo assim, os dois tipos de tapiocas, tradicional e
fina, ambas podendo levar recheio ou não, são colocadas por nós como principal fator de
possibilidades criativas no âmbito da alimentação.
O recheio é o ponto de partida para possíveis inovações ou criações. Mesmo
aparentando ser a tapioca o cerne do ato de comer, as escolhas produtivas e comerciais são
efetuadas a partir do que deve acompanhá-la, em razão da gama de recheios disponíveis. A
primeira vista, parece tratar-se de um elemento secundário, um simples acompanhamento da
tapioca. Contudo, no contexto do CETARME, ganha notoriedade por ter mais de 100 variações.
É o caso da tapioca fina com nutella e morango, elaborada pelo permissionário do
box Silvia Helena a partir de uma experiência com o acompanhamento:
Eu sou o tipo da pessoa assim: vou com a minha família pra pizzaria... eu não como só
tapioca, eu como pizza, como salgado, como tudo... quando vou com minha família pra
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uma pizzaria, eu chego lá, eu fico namorando com o cardápio. E tem alguma coisa no
cardápio da pizza que me desperta pra trazer pra tapioca. Vou no supermercado,
compro o recheio e faço o teste. Eu mesmo sou o primeiro a degustar. Eu sou o cobaia.
E depois que passa no teste por mim e pelos funcionários que trabalham aqui comigo,
os colaboradores, ai bota no cardápio, vai pra mesa e é show! Como pro exemplo, o
último tchan, o último lançamento da gente aqui, nutella com morango... [pausa].
Então, o que eu vi na pizzaria, pizza de chocolate com morango. Eu trouxe pra cá, deu
certo! Ai, de repente, a nutella surgiu na televisão. Eu disse: opa! Corri no
supermercado, comprei um potinho de nutella. Ai eu fiz a comparação da de chocolate
e da nutella, têm sabores diferentes. Então, se existe sabores diferentes, bota no
cardápio também nutella com morango. A criançada caiu em cima, a juventude caiu em
cima, as pessoas de idade caíram em cima, e hoje ela é conhecida aqui como a “tapioca
do amor”. Dividida no meio, porque ela é uma tapioca diferenciada porque a pessoa
não pede pra comer sozinho. Pede e divide. Depois que come a salgada, queijo com
carne de sol, ai pede uma nutella com morango, divide no meio. Ai os dois vão
saborear. Eles já pedem que a gente já leve dividida. (Tapioqueiro R.)
Noto que o entrevistado acima teve como fundamento a apreensão de vários tipos de
informações e de conexões entre os sujeitos que compõem seu ambiente familiar e de trabalho.
Os conhecimentos dos cursos profissionalizantes, os meios de comunicação, a observação do
que produzem os outros locais, a atenção a opiniões pessoais, como da família, dos funcionários
e dos clientes, são aspectos que pude apreender desse processo de inovação/criação.
Partindo do que foi citado por este permissionário, elenco os seguintes elementos de
acordo com os objetivos da pesquisa: a) trajetória de vida familiar e profissional; b) participação
nos cursos profissionalizantes; c) formação como tapioqueiro, cotidianamente, no Centro; d)
apreensão de informações a partir de outras variantes; e) interdependência de outros sujeitos; e
f) o ponto de vista do cliente.
Proveniente do Estado do Piauí, Brasil, as experiências alimentares do tapioqueiro
R. eram somente na posição social de comensal. Ele me contou, durante entrevista, que Lidava
com tapioca somente com a boca (22/06/2016). Aliás, antes do CETARME, suas ocupações
profissionais envolviam tarefas totalmente distintas da dinâmica da cozinha.
Eu já conhecia tapioca desde quando eu nasci, que a gente [familiares] foi criado no
interior. A gente nasceu [leia-se criado] em casa de farinha. E lá se fazia, depois da
farinhada, as tapiocas. Aquela tapioca caseira, diferenciada dessa daqui. O “beiju”
chamado. Lá na nossa região, a gente conhece mais como beiju. E pra mim foi um
desafio muito grande, porque antes eu trabalhava como vendedor externo. Eu vendia
panela, de porta em porta. É a história do galego, chamado aqui no Ceará. E eu aceitar
trabalhar numa atividade que era desconhecida pra mim. Mas, eu fui pedindo ajuda!
Aqui são 26 boxes, e ai eu fazia amizade e chamava um, chamava outro, e perguntava
como era e ia me dizendo, me mostrando, outro fazia pra me ver... e eu terminei
aprendendo. (Tapioqueiro R.)
79
Saindo do âmbito da alimentação doméstica para aquela feita fora de casa, ele
adaptou aquilo que aprendera durante seus anos de trabalho autônomo à possibilidade de se
tornar “tapioqueiro”. O esforço de estar a todo o momento tentando ganhar a confiança de seus
clientes, promovendo a atratividade dos produtos que vendia, ainda influencia aquilo que ele
vem realizando em sua tapiocaria.
Isso demonstra que os processos de socialização são dinâmicos, intermitentes e
atuam por vários caminhos ao longo da trajetória de vida dos agentes sociais (DARMON,
2015). Os conhecimentos e as práticas aprendidas durante esse fenômeno têm possibilitado ao
permissionário estar municiado para possíveis transformações “gastronômicas” no seu boxe.
Esse ponto de vista só confirma o que evidenciei no segundo capítulo: a ação criativa ou
inovadora tem como um de seus aportes os percursos de vida pessoal e profissional dos agentes
sociais (DE MASI, 2003). Portanto, estar atento ao que os agentes viveram, onde e como
trabalhavam, auxilia na compreensão do que podem fazer hoje em dia.
No que diz respeito aos cursos profissionalizantes, ele afirma que:
Nós tivemos a felicidade de ser acompanhados por essa “luz divina” chamada
SEBRAE. Eu costumo dizer que tudo que ele toca vira ouro. Se assim vice quiser dar
continuidade. E nós tivemos a felicidade deles virem aqui no Centro das Tapioqueiras e
fazer cursos diversos com a gente. E um desses cursos que nos ajuda até hoje e vai nos
ajudar pro resto das nossas vidas, enquanto a gente trabalhar nesse segmento de
tapioca, foi trabalhar com tapioca recheada. Porque até então, a gente conhecia mais a
tapioca tradicional. Era só tradicional com queijo, com leite condensado, só a
tradicional no leite do coco. E ai o SEBRAE veio aqui e nos fascinou com essa ideia de
trabalhar com tapiocas finas e recheadas. E daí, então a tapioca tradicional se
distanciou. Ela vende, ainda é a tapioca mais vendida e mais pedida. [...] Curso de
atendimento, culinária, como manusear a fécula pra trabalhar com essa tapioca fina,
curso de manipulação... então, foi cursos diversos. A única pessoa que chegou leigo
aqui no assunto aqui, foi eu. A única pessoa que realmente não sabia trabalhar com
tapioca era eu. Eu só sabia trabalhar com ela na boca. E pra mim, foi de uma valia
muito grande. E pra quem já conhecia, pra quem já trabalhar com tapioca há muito
tempo, no início eles rejeitaram. No início o SEBRAE chegou dizendo “vamos ensinar
vocês a fazer tapioca”. Ora mais, teve muita gente que disse assim: “tem 80 anos que
trabalho com tapioca, tenho 30 anos, tenho 40 anos, tenho 25 anos que trabalho com
tapioca, eu aprender a fazer tapioca? Que conversa é essa?”. E muitos deles, dos 26
aqui, uns 8 a 9 num foi pro curso não. “Vou fazer o que lá, aprender a fazer tapioca? Eu
nasci em cima de tapioca!”. E ai, depois, no meio do curso, eles perceberam que tava
perdendo muita coisa que tem que ter um toque a mais. Tudo na vida, a cada dia de
passa, a gente aprende um pouco mais. Ai eles entenderam isso ai, e correram pra
dentro da sala e foram trabalhar junto com a gente. Aprender a fazer tapioca. Os
profissionais de tapioca foram aprender a fazer tapioca. E eu, que não sabia, tava lá
desde o início aprendendo tudo que me passavam e guardando até hoje, botando em
prática. (Tapioqueiro R.)
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Fiz referência ao empreendedorismo como uma das características que se destaca
entre aqueles que estão envolvidas em projetos criativos (DE MASI, 2003). E no referido caso,
o enfoque recai sobre as atividades realizadas pelo SEBRAE. Tendo o intuito de tornar as(os)
permissionárias(os) do Centro em empreendedores individuais, a promoção dessa perspectiva
tem agenciado um modo de administrar a tapiocaria mais dinâmico e atento às mudanças.
Portanto, aquilo que foi passado por meio dessa perspectiva exige que o “empreendedor” se
renove intermitentemente (ESCARLATE, 2010), a fim de atrair clientes cada vez mais ansiosos
por novidades.
Ele aprendeu saberes e práticas culinárias tradicionais relativas às(aos)
tapioqueiras(os) da A.T. da Paupina de maneira informal,
Hoje eu solto um sorriso largo quando eu me lembro disso daí, mas no início foi
doloroso. A gente jogou muita goma no mato, a gente perdeu muito coco, a gente
perdeu muita tapioca, porque a gente molhava a goma e ia lá pra fazer a tapioca e num
dava certo. Tava molhada demais. Ai voltava pra cá [parte da cozinha], botava mais
goma, ficava seca demais. E ficava nesse impasse. Até que um dia eu alcancei o ponto
x de fazer o ponto da massa, de fazer a tapioca. Ai pronto, de lá pra cá num teve
sofrimento. Teve muito trabalho. (Tapioqueiro R.)
A incorporação dessa culinária tradicional redirecionou sua posição profissional, não
somente como permissionário, mas também como tapioqueiro. E isso não ocorreu de qualquer
maneira e num espaço de tempo curto. Ao longo dos anos ele aprendeu com as tapioqueiras
advindas da Avenida Barão de Aquiraz a preparar a goma de mandioca – ou seja, saber molhar,
peneirar, conservar, escolher o melhor tipo e ter indicação de quem deve comprar – e as
tapiocas.
Em meio às necessidades diárias, mesclam-se os conhecimentos adquiridos de
maneira formal (cursos de qualificação) e informal (saberes e práticas das(os) tapioqueiras(os)).
São momentos em que um se sobrepõe ao outro, mas que podem provocar o surgimento de
novas receitas, técnicas de cocção, de gerenciamento e de atendimento.
Aqui, retomo o exemplo da tapioca recheada com nutella e morango, descrita
anteriormente. Mas o que ressalto agora é a necessidade percebida pelo permissionário de
apresentar uma comida nova aos seus clientes. A forma de pensar está diretamente ligada à
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satisfação deste diante do serviço e do que será consumido. Outras fontes também contribuem
significativamente para que esse modo de pensar seja aceito. Duas delas foram citadas pelo
permissionário: a propaganda de televisão e o cardápio de uma pizzaria. No entanto, a maneira
como ele manejou as informações passadas por estes meios é parte substancial no que tentamos
compreender. A confluência dos vários elementos que perpassam as atividades desse
tapioqueiro permitem fagulhas de ações inovadores e criativas.
As interferências de uma globalização alimentar, cada vez mais intensas e
incessantes, facilitam as trocas culturais pelos mais diversos meios de comunicação,
principalmente quando se trata do serviço de uma alimentação fora de casa calcada no
atendimento aos turistas. No entanto, esse serviço vem sofrendo transformações técnicas para
melhor suprir as novas necessidades da sociedade contemporânea (POULAIN, 2013). Assim, a
formulação de novas comidas ou variações destas sofre influência do que ocorre fora do espaço
sociocultural dos atores sociais que atuam diretamente para que isso aconteça.
Outro ponto que deve ser levado em consideração é aquele da cooperação
estabelecida entre os diversos sujeitos que compõem o boxe Silvia Helena. A opinião e o modo
como as(os) suas(seus) funcionárias(os) agem possibilita a concretização ou o descarte de ideias
formuladas pelo tapioqueiro. De acordo com ele, “hoje todas as pessoas que vem trabalhar
comigo aprendem comigo. E no decorrer do tempo eles vão passando para os outros. Mas, num
trabalho aqui com nenhum profissional. Eu gosto de trabalhar com pessoas que querem
aprender. Se torna mais fácil” (Tapioqueiro R.).
A articulação entre os funcionários remete-me à ideia de “rede de cooperação”
(BECKER, 2010). Segundo esta perspectiva, os vários atores que compõem dado mundo
contribuem, sobremaneira, para a produção e a distribuição de determinado produto. Longe de
ser uma relação sem conflitos, eles conseguem estabelecer as mais variadas intervenções, de
maneira flexível, dirigindo-as para um mesmo ponto.
Sob esta ótica, foi fundamental perceber, na minha análise, que a referida tapiocaria
busca a articulação do trabalho em grupo, nada é feito por uma única pessoa. Mesmo havendo
uma hierarquia estabelecida, tendo o tapioqueiro no topo, os demais atores são considerados
como peças importantes no funcionamento deste estabelecimento.
Justamente sob esse aspecto, posso inserir outro ator que influencia na produção e na
comercialização das tapiocas no boxe Silvia Helena: o cliente/comensal. Sobre isso, a visão do
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permissionário é a seguinte:
Eu costumo dizer que o freguês ele primeiro come com os olhos. Aí, depois que ele
come com os olhos, é que ele vai perceber se o que ele tá comendo com os olhos tem
mesmo sabor com o paladar dele. Rapaz eu vivo de um aprendizado sem fim. Eu adoro
sugestão, eu adoro crítica. A crítica me ajuda a crescer e a sugestão me ajuda a criar.
Então, eu gosto tudo que vem do cliente. Tudo que vem do cliente é bem-vindo. É
porque é assim, hoje o atendente tá habituado a trabalhar com o paladar do cliente. O
que é o “paladar do cliente”? Eu tenho aqui uma tapioca de carne de sol com queijo, no
cardápio, aí o cliente chega e diz assim: “eu queria queijo, carne do sol, ovo e
requeijão, tem?”. Aí o quê que o atendente passa pra esse cliente: “Não tem no
cardápio, mas eu faço a sua tapioca agora!”. Aí vem no forneiro, diz como é que o
cliente tá querendo a tapioca dele, a tapioca é feita e o cliente sai daqui morto de
satisfeito. A gente costuma dizer que o cliente pegue ele [cardápio] vire ele, derrame
tudo que tem na mesa, tudo que é recheio na mesa e faça a montagem de sua tapioca. O
importante é ele sair daqui contente. (Tapioqueiro R.)
O Centro recebe uma diversidade de clientes – locais, regionais, nacionais e
internacionais. Não se tem controle das características desses visitantes, contudo, as(os)
tapioqueiras(os) estão em contato diário com diferentes gostos alimentares, e lidar com essa
variedade, exige um movimento duplo: manter a tradição da tapioca ao mesmo tempo em que se
pode ajustá-la as mais diferentes preferências gustativas.
A partir disso, entendo que, no boxe Silvia Helena, não existem “perdas” definitivas,
pois as tradições culinárias aprendidas sãos mescladas com novos ingredientes a fim de agradar
o paladar do cliente. Já no caso da Tapiocaria da Xuxa, por conta da trajetória profissional da
permissionária como tapioqueira, sua situação difere da do boxe Silvia Helena, pois questões
como a “criatividade” são apresentadas com outras conotações. Isso fica claro na afirmação
proferida pela permissionária: Criar pra quê? Eu tenho mais de cem sabores de tapioca
(Tapioqueira N.).
Durante minhas observações e entrevistas, apreendi que a presença da mudança é
distinta daquela encontrada no discurso do permissionário R.. Desse modo, analiso essa situação
sob vários aspectos: a) trajetória de vida; b) sua constituição como tapioqueira; c) participação
nos cursos profissionalizantes; d) maneira de apreender informações externas; e)
interdependência em relação aos seus funcionários; e f) seu ponto de vista sobre o cliente. São
pontos praticamente iguais que utilizo para constituir o entendimento do processo criativo no
boxe Silvia Helena.
A Tapioqueira N. nunca esteve diretamente ligada ao fazer do tapioqueiro. Seus
83
primeiros contatos com esse universo se deram na infância. Assim como o tapioqueiro R., de
modo indireto, antes como comensal. Entretanto, foi na família de seu primeiro marido que ela
se iniciou nessa profissão. Quer dizer, ela tomou a decisão de ingressar no trabalho de produzir e
de comercializar tapiocas:
Desde aquele momento, que eu comecei fazer tapioca, eu tinha uns 33 anos. Vendo a
minha sogra fazendo tapioca, eu achei que aquele fluxo de carro e aquela renda dava
muito. Meu marido, na época, trabalhava como gerente de uma construção, de material
de construção, e evitei de fazer uma tapioqueria né?! De montar uma tapioqueria pra
mim. Vixe, foi muito difícil. Muito difícil, porque ele não queria. Mas, aí eu consegui
dinheiro emprestado e montei minha tapioqueria. Quando ele viu que aquilo ali dava,
que aquilo ali dava bastante, era muito, tinha muito fluxo de carro vindo na litoral leste,
todos passavam na frente. Então, a gente tinha um movimento muito grande. Era
somente aquela tapioca tradicional redondinha com coco. (Tapioqueira N.)
Sua tapiocaria foi construída nas “Antigas Tapioqueiras”, estabelecimento edificado
a base de tijolo e cimento, muito próximo a casa dela. Predominava o trabalho em família, os
utensílios utilizados para preparação e consumo das tapiocas não levavam a sofisticação de uma
gastronomia erudita e a relação com os clientes tendia ao âmbito do privado (BEZERRA, 2005).
Por um período de 20 anos, ela aprendeu e ensinou essencialmente o ofício de
tapioqueira na família, como: escolher o melhor tipo de goma de mandioca; a quantidade ideal
de água tanto para molhar como para peneirar a goma; o modo de fazer as tapiocas; habilidades
para atender os clientes, enfim, saberes e fazeres transmitidos de maneira informal. Não havia
receita totalmente fixa ou prescrições por escrito.
O contexto acima se assemelha àquele que Montanari (2008) expõe para classificar
o que vem a ser uma cozinha oral. Esta é descrita como pertencente à classe camponesa
europeia nos tempos e nos lugares onde não havia a transcrição das receitas. Embora
representem situações díspares daquelas que acontecem nas classes aristocráticas do
mesocontinente, o autor define o registro gráfico de todos os procedimentos, desde a cocção ao
consumo das comidas, como elemento promotor da cozinha escrita, que posso dizer fundadora
da Gastronomia francesa.
No caso desta pesquisa, as mudanças que ocorriam estavam, fundamentalmente,
ligadas às necessidades diárias da própria tapiocaria. Uma delas, comumente praticada pelas
demais que compunham as Antigas Tapioqueiras da Paupina, foi a utilização do fundo da lata de
84
goiabada como forma de mediação para a feitura das tapiocas. A culinária tradicional e popular
praticada por aquelas mulheres não tinha a preocupação em relação às inovações.
O tratamento despendido neste trabalho sobre as noções de culinária, tradicional e
popular, refere-se principalmente àquelas práticas da A.T: as técnicas e os conhecimentos na
preparação de tapiocas pelas(os) tapioqueira (os) da Paupina há mais de 50 anos. E que estas(es)
comungavam uma situação financeira não abastada, pois moravam na periferia de Fortaleza em
que os preços das tapiocas eram baixos.
Sobre o termo culinária, não se tem uma definição científica concisa no âmbito da
sociologia da alimentação. Sendo assim, utilizo o que Poulain (2013) e Dória (2014) dizem a
respeito: conhecimento prático de preparar comidas. Desse modo, são as técnicas empregadas
para o processo de cocção das tapiocas. A respeito disto, o aspecto mais apontado e relevante
para os sujeitos entrevistados é o procedimento de “molhar a goma de mandioca”. Já que sem a
execução e o conhecimento adequados não se faz uma “boa tapioca”.
Já a noção de tradição, adoto-a na perspectiva de que as práticas e os saberes
considerados tradicionais são inventados (MONTANARI, 2008; HOBSBWAN; RANGER,
1997). Desse modo, são construtos sociais suscetíveis às mudanças do tempo e do espaço.
Sendo assim, no presente estudo, o Centro das Tapioqueiras tanto agrega uma carga tradicional
advinda das A.T.’s como é considerado – principalmente pelo governo do Estado do Ceará –
como espaço tradicional da gastronomia cearense.
E, por último, o vocábulo “popular” é abordado, neste caso, sob o ponto de vista
contrário ao vocábulo “erudito”. Distinção esta que causa controvérsia, pois se tende a
caracterizar aquele com base em tudo o que este não é (CHARTIER, 1992), e que se refere às
classes sociais pobres (SANTOS, 1994). Contudo, mesmo frágil, auxilia-me na análise do que
“é” feito no Centro das Tapioqueiras: uma “gastronomia” regional de base tradicional popular.
A participação das(os) tapioqueiras(os) nos cursos profissionalizantes modificou o
modelo tradicional de produção e comercialização das tapiocas (BEZERRA, 2005). Fazendo
parte desse grupo, a tapioqueira N., apesar de ter resistido no começo, por achar que estavam
tentando ensiná-la a fazer algo que ela própria já sabia, cedeu a esta condição de adaptação.
Seu modo de administrar e produzir as tapiocas mudou. Do mesmo modo que o
permissionário R., ela teve que acompanhar aquilo que os poderes público e privado entendiam
como setor de serviços alimentícios, como este devia proceder, a fim de melhor atender os
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clientes, em especial, os turistas. Desse modo, tudo aquilo que aprendera ganhou uma nova
dimensão. Não posso afirmar que todas as suas características como tapioqueira continuam ou
que sua culinária se “perdeu”, porém, muito daquilo que era praticado e conhecido, hoje
coexiste com novos conteúdos.
Embora não tenha tido acesso às primeiras apostilas utilizadas, ela disponibilizou
para a pesquisa um dos últimos materiais trabalhados pelo SEBRAE no CETARME. A
finalidade do documento é conformar os participantes ao empreendedorismo:
Figura 8: Apostila “Apreender a empreender”
(Fonte: autor, 2016)
O estudo parte de um curso de qualificação a distância cujo objetivo é melhorar o
gerenciamento de uma empresa. Esse material ensina como o empreendedor deve administrar
seu processo de autoaprendizagem. Isto é, ele é ensinado e motivado a buscar e organizar novos
conhecimentos por conta própria, a fim de se adaptar às mudanças ocorridas no mercado. Posso
pensar, com base nos “grupos criativos” estudados por De Masi (2003), que investimentos na
aquisição desses conhecimentos também possibilitaram aos sujeitos de minha pesquisa
caminhos em direção às criações e às inovações.
Na Tapiocaria da Xuxa, isso acontece de maneira esporádica. Talvez pelo fato de
estar muito vinculada ao que realizava na A.T.. A permissionária não se preocupa em modificar
o serviço e as comidas do seu boxe. Aqui, faz-se um contraponto entre a Tapiocaria da Xuxa e o
86
que é realizado pelo tapioqueiro R., no boxe Silvia Helena, sempre inquieto, no desejo de atrair
a atenção dos clientes por meio de novidades.
Quanto à dinâmica entre os sujeitos que compõem a tapiocaria da Xuxa, esta se
diferencia da anterior pelo fato de ter menos funcionários e por alguns deles serem parentes da
permissionária. Esta segunda característica a vincula, mais fortemente, aos hábitos concernente
à A.T. Sendo assim, apesar do Centro ter propiciado uma formalização das relações sociais, com
a separação entre o local de trabalho e a casa (BEZERRA, 2005), ainda assim as relações de
parentesco ajudam a constituir o referido boxe.
No que se refere ao ponto de vista da permissionária em relação aos clientes, ela
afirma que são eles que contribuem para a elaboração de novas tapiocas. “A tapioca geleia de
pimenta foi criada por mim. Quer dizer, quando a pessoa vem de fora, que fala, aí eu já... Nunca
mais eu fiz, nunca mais veio ninguém pra me dar uma ideia. Aí essa de geleia de pimenta com
queijo. A tapioca da Xuxa foi eu mesma quem criei.” (Tapioqueira N.). Neste boxe, as
possibilidades criativas e inovadoras são geradas levando em conta o gosto alimentar destes
atores. Portanto, o foco principal se dá na contribuição dos próprios consumidores. Eles podem
pedir recheios que não estão no cardápio, como é o caso da tapioca Romeu e Julieta. Assim, se a
permissionária gostou do modelo elaborado por um de seus clientes, este é logo introduzido no
menu de sua tapiocaria.
A tapioca da Xuxa foi uma criação dessa permissionária. Esta contém inúmeros
ingredientes: carne de sol, queijo, bacon, calabresa, tomate e orégano. A concepção, segunda a
tapioqueira, não foi meticulosa e nem intencional. A criação surgiu de uma inspiração casual,
com o intento de colocar tudo aquilo que ela própria gosta em uma tapioca fina. Entretanto,
compreendo que se trata de uma prática culinária reformulada pelos cursos de qualificação.
Quer dizer, apropriou-se, mesmo que de maneira não consciente, de dois esquemas relacionados
à gastronomia: a estética e a reelaboração de comidas já conhecidas.
O único objetivo era preparar as tapiocas tradicionais e vendê-las. E tudo em
conformidade com aquilo que aprendera com a sua sogra. Todavia, a partir do CETARME, o
conhecimento que a tapioqueira N. possuía foi articulado a outros saberes: gastronômico,
empresarial, segurança alimentar, associativismo etc. Ou seja, com esse processo de
miscigenação cultural (POULAIN, 2013), originou-se algo inovador: uma “gastronomia”
regional criativa, de base tradicional e popular.
87
5 RELAÇÃO ENTRE PERMISSIONÁRIAS(OS) E GOVERNO DO ESTADO DO
CEARÁ
A pesquisa de campo subsidiou a compreensão de que os contatos estabelecidos
entre as(os) permissionárias(os) do CETARME com agentes do governo Estado do Ceará são
movidos por alternâncias entre tempos de conflito e de calmaria. Ou seja, ora aqueles
expressam publicamente, via jornais impressos e televisivos, sua indignação frente ao abandono
do Centro pelo poder público, ora parece tudo estar resolvido. Contudo, as queixas estão
latentes, parecendo aguardar as circunstâncias e as pessoas propícias para emergirem
novamente.
Assim, tentando entender como isso acontece e de que modo influencia na produção
e comercialização de tapiocas, este capítulo trata especificamente da relação entre as(os)
permissionárias(os) e as ações empreendidas ou não pela Secretaria do Trabalho e
Desenvolvimento Social (STDS) e a Secretaria de Turismo (SETUR), ambas do Estado do
Ceará. Para tanto, o capítulo estrutura-se em três momentos: a) condição de permissionárias(os);
b) estrutura física do Centro; e c) CETARME como ponto turístico da “gastronomia regional”
cearense.
Deste modo, aponto que minhas referências empíricas estão fundamentadas nas falas
do permissionário R. e da permissionária N.. Os demais discursos, tanto das(os) outras(os)
permissionárias(os) quanto do coordenador de empreendedorismo da STDS, serão expostos por
meio dos diários de campo40
. Aliás, ainda trabalho com aquilo que é dito pela Secretaria de
Turismo (SETUR) do Estado do Ceará a respeito do meu objeto de pesquisa por meio de sua
página na internet.
Já disse anteriormente que as(os) tapioqueiras(os) pesquisadas(os) são abordadas(os)
neste trabalho também como permissionárias(os), isto é, sujeitos que detêm a permissão de
utilizar um boxe no CETARME. E acrescento: tal condição é formalizada por um “termo de
comodato”41
, documento que oficializa essas pessoas a gerenciar uma tapiocaria neste espaço.
Portanto, o local onde trabalham “não é delas(es)”, mas trata-se de um equipamento turístico do
40
Algumas entrevistas não puderem ser gravadas por decisão dos próprios pesquisados, deixando-me como opção
anotar em papel seus discursos. Desta maneira, usando o recurso das anotações em blocos de nota e de memórias,
fiz as transcrições um turno depois. Portanto, coloco suas afirmações por meio dos meus diários de campo. 41
Não tive acesso a esse documento.
88
Estado do Ceará.
A maneira como isto ocorre é controversa desde os primeiros anos de
funcionamento do Centro. Após o ano de 2002, a prática de aluguel ou de venda de tapiocarias
para outras pessoas, até mesmo para as(os) permissionária (os) ao lado, tem sido recorrente. Na
maioria dos casos, o motivo da desistência é a dificuldade de manter financeiramente o
estabelecimento.
Diante dessas mudanças, elenco três tipos de permissionárias(os): as(os) que advêm
das Antigas Tapioqueiras; as(os) que entraram e aquelas que entram no Centro após sua
inauguração. Esta divisão tem sua relevância quando o assunto é a identidade de
“tapioqueira(o)”, a relação dos novatos com a ATP e como os agentes da Secretaria do Trabalho
e Desenvolvimento Social (STDS) do Estado do Ceará têm interpretado essa situação de
permuta.
Dentre os sujeitos provenientes das Tapioqueiras da Paupina, localizadas na
Avenida Barão de Aquiraz, que ganharam a permissão de ocupar um boxe no CETARME,
poucos são os que permanecem. Entre as 26 tapiocarias deste local, apenas oito são gerenciadas
por essas pessoas – ou por seus familiares. As demais são inseridas nos outros dois tipos de
permissionárias(os). As tapiocarias “Tia Neuma” e “da Xuxa” são dois exemplos desses
remanescentes. A primeira é administrada pela permissionária V., passando a esta posição em
virtude de problemas de saúde de sua mãe – Neuma, tapioqueira da Paupina. Já a segunda é
dirigida pela N. (já mencionada anteriormente).
A transição para o Centro das Tapioqueiras modificou o estilo de vida e a prática
culinária dessas pessoas (BEZERRA, 2005). De um ambiente que correlacionava casa/trabalho,
passaram para um lugar onde estes dois elementos andam “separados”. Quer dizer, as relações
familiares não preponderam na dinâmica de todo boxe. Contudo, de uma maneira ou de outra,
ainda persistem.
A lógica predominante não é mais do âmbito privado, das relações de vizinhança,
onde as decisões e a produção de tapioca eram executadas com base nas relações familiares. As
determinações passam agora pela esfera pública, ou seja, os crivos dos agentes do governo e de
empresas privadas que influenciam na organização das tapiocarias do CETARME.
Quanto aos que ingressaram no Centro das Tapioqueiras logo após a construção
deste, a posição de “permissionária(o)” ganha outra conotação. Trata-se agora de pessoas que
89
não tinham a prática de fazer e de vender tapiocas. Melhor dizendo, entre aqueles que
permanecem, houve na necessidade de aprender o ofício de tapioqueira(o) ao mesmo tempo em
que eram instruídos a obedecer às normas estabelecidas no Regimento da ATP.
Exponho aqui dois destes casos: o tapioqueiro R., no boxe Silvia Helena; e a
tapioqueira L., no boxe Recanto do Sertão. Apesar de terem trajetórias de vida distintas, ambos
se enquadram na condição acima. Ao longo dos anos, eles tiveram que aprender a fazer tapioca,
assim como se encaixar ao modelo de comercialização já estabelecido com as(os)
permissionárias(os) que tivessem mais acessibilidade. E, no período da pesquisa, observo que se
tratam dos dois estabelecimentos que mais recebem clientes.
Nesse caso, eles estão mais preocupados em inovar seus produtos e reformular o
modo de atendimento, diferentemente daqueles que ainda têm suas raízes nas Antigas
Tapioqueiras. Eles ainda não têm uma constante preocupação com a criação de outros modelos
de tapioca ou de outras maneiras de chamar a atenção dos consumidores.
No que diz respeito àqueles que têm adentrado no Centro recentemente, sua relação
com a ATP é em certa medida conflituosa. Com pouco tempo nesse espaço, as regras e os
costumes já estabelecidos entre os demais ainda não são conhecidos, e, se são, não foram
colocados em prática.
Quanto às condições físicas do CETARME, já apontei alguns elementos no capítulo
anterior, tais como: problemas na cobertura e nos estacionamentos. Esses dois fatores já
resultaram em reclamações pelos meios de comunicação – jornais impressos. A principal
palavra que expressa essa relação é “abandono”. Alguns sujeitos do Centro divergem sobre a
maneira de lidar com a situação, porém há consenso quanto à falta de auxílio por parte do poder
público.
Os agentes colocam a situação sobre dois pontos: por um lado, a construção e a
organização do CETARME foram grandes benefícios governamentais; por outro, aquilo que foi
realizado e que eventualmente se executa não está de acordo com as reais necessidades deste
local. Assim, são recorrentes as expressões de decepção em relação às intervenções dos últimos
governos estaduais do Ceará, já que são poucas ou inexistem.
A última informação que tive a respeito desse assunto foi a de que havia a
elaboração um projeto, pela coordenadoria de empreendedorismo da STDS, para a reforma do
Centro. Foram planejados dois modelos de intervenção, porém não houve consenso entre os
90
sujeitos – tapioqueiras(os), artesãs(ãos) e agentes públicos.
Os discursos desses atores sociais são marcados ora por consensos, ora por conflitos,
a depender das circunstâncias apresentadas. Quando a situação exprime possíveis vantagens
para outrem, lançam-se artifícios para que não haja perda daquilo que já é possuído. Por meio de
negociações, tenta-se chegar a um consenso, havendo benefícios para todas as partes.
Entretanto, nas etapas concernentes ao referido projeto, têm acontecido tensões entre
representantes das(os) tapioqueiras(os) e das(os) artesãs(ãos). Desse modo, diante dos impasses,
o projeto ainda não foi finalizado até o presente momento.
A Secretaria de Turismo do Estado do Ceará (SETUR) mantém uma relação com o
Centro das Tapioqueiras apenas de publicidade. A única ação investida é a exposição deste
espaço como atrativo turístico por meio de sua página na internet:
Figura 9: CETARME – forno a lenha
(Fonte: SETUR, 17/12/2015)
Apresenta-se esse espaço a partir do “rústico”, do “regional”, do “tradicional” e da
“diversidade”. Contudo, depois de 12 anos, após a publicação dessa fotografia, vários aspectos
foram modificados. Um deles é a utilização da chapa a gás em detrimento do forno a lenha e a
própria prática culinária desses sujeitos. Desse modo, a partir desse informativo, pode-se
conceber que o lugar e as pessoas ainda são os mesmos. Entretanto, sendo as(os)
tapioqueiras(os) seres socioculturais, suas práticas e discursos não são fixos como uma “atitude
imóvel” perpétua (PASQUIER, 2005). As alterações ocorrem, embora não seja do dia para a
noite, mas, certamente, a estrutura do CETARME e as pessoas que o compõem modificam-se de
acordo com as circunstâncias sociais que lhe são dadas.
91
Esse conteúdo sobre o Centro das Tapioqueiras está inserido no link “turismo
cultural”, especificamente relacionado à “Gastronomia”. Vejamos as representações da SETUR
em torno do primeiro ponto:
Movido pela busca de informações, o turista agrega os novos conhecimentos à
interação com outras pessoas, comunidades e lugares. Motivados pela curiosidade
sobre costumes e tradições, turistas do mundo inteiro procuram a identidade cultural de
cada lugar que visitam. No Ceará, o elo entre o passado e o presente, o contato e a
convivência com o legado cultural abrem perspectivas para a valorização e
revitalização do patrimônio, do revigoramento das tradições, da redescoberta de bens
culturais materiais e imateriais, muitas vezes abafadas pela concepção moderna. Todas
as regiões possuem um rico acervo cultural representado pela arte, tradição e memória.
(SETUR, 2015)
Antes de analisar este discurso e de que modo ele interfere na dinâmica do
CETARME, faz-se necessário retomar o entendimento daquilo que é definido como cultura.
Desse modo, alguns elementos são apontados: “costumes”, “tradições”, “identidade”,
“patrimônio”, “arte” e “memória”. Todos devidamente relacionados a um determinado lugar e
tempo. Logo, “cultura” mobiliza a compreensão de tudo aquilo que pode identificar uma
sociedade.
A intenção é fazer com que os turistas se sintam atraídos pelas diversas
manifestações culturais do Estado do Ceará. Nesse sentido, as “gastronomias” cearenses foram
postas como produtos turísticos. Esta concepção da SETUR-CE não está alheia àquilo que está
no âmbito nacional. A representação que o Ministério do Turismo brasileiro elaborou, no seu
último documento, promove a cultura como produto turístico:
Nos últimos anos, novos produtos turísticos culturais vêm ampliando a percepção das
possibilidades de interpretação e sentidos para os bens culturais do país, antes restrita
ao patrimônio edificado e a algumas festas tradicionais brasileiras. Assim, as diversas
combinações da cultura e do turismo configuram o segmento de Turismo Cultural, que
é marcado pela motivação do turista de se deslocar especialmente com a finalidade de
vivenciar os aspectos e situações que são peculiares da nossa cultura. (BRASIL, 2010)
O atual contexto do consumo turístico tem reivindicado novos atrativos. Para além
do patrimônio natural e “edificado” (prédios históricos), a inserção das “gastronomias”, das
músicas, das danças, das festas, dos artesanatos, entre outras manifestações culturais, tem como
objetivo atender à demanda de viajantes que têm reclamado por conhecer os aspectos sociais e
92
culturais dos lugares que visitam (idem, 2010).
Abrem-se as portas, assim, para o chamado “turismo gastronômico”. Termo
relativamente recente que tem sido definido da seguinte maneira: “a visita a produtores
primários ou secundários de alimentos, participação em festivais gastronômicos e busca de
restaurantes ou lugares específicos onde a degustação de pratos e/ou a experimentação dos
atributos de uma região especializada na produção de alimentos é a razão principal para a
realização de uma viagem” (HALL; SHARPLES, 2003. In: SCHLÜTER; ELLUL, 2008).
Porém, no âmbito cearense, essa área alimentar tem sido um assessório para a rede de hotelaria e
estabelecimentos de serviço que se encontram à beira-mar. Logo, não há, ainda, atividades
planejadas pela SETUR-CE no que diz respeito às “gastronomias” regionais do Ceará.
Quanto ao termo “gastronomia”, no material coletado ao longo da pesquisa, não há
uma definição clara para sua utilização. Porém, a partir das descrições acerca das
“gastronomias”42
cearenses, elenco elementos gerais para compreender o emprego desse
vocábulo pela SETUR. Vejamos a seguinte tabela:
Tabela 1: “Gastronomias” cearenses relacionadas à determinada região e cidade
Gastronomias/Localidade Comidas Principais características
Fortaleza (região praiana)
Peixes, caranguejo, lagosta,
camarão, pizza com
ingredientes locais e
sovertes de frutas regionais;
Mistura de ingredientes regionais e
internacionais; ênfase na tradição;
Serras de Aratanha e de Baturité
(região serrana)
Fondue de carne e queijo,
doces, crepes, aguardentes,
licores, café ecológico,
tapiocas, cuscuz com carne
de sol;
Apresenta pratos de outras
nacionalidades influenciando e
coexistindo no menu regional;
Cariri (região sertaneja) Comidas à base de pequi
(fruta local); Destaca o que é produzido na
região;
Polo Jericoacoara (Taíba,
Flecheiras e Jericoacoara) (região
praiana)
Peixes, frutos do mar e comidas regionais; Enfatiza a tradição, o “típico”, os
pratos nacionais e internacionais;
Polo Canoa Quebrada
(Pindoretama, Canoa Quebrada e
Centro das Tapioqueiras43
) (região
praiana)
Peixes, caranguejo,
camarão, lagostas,
rapadura, cachaça artesanal
e tapiocas.
Realça a variedade de comidas
regionais e internacionais.
(Fonte: Elaboração do autor)
42
A colocação no plural assinala os vários tipos de “gastronomias” descritos pela SETUR no território cearense. 43
É colocado, logo após o polo de Jericoacoara, como lugar que pode ser visitado na volta do litoral Leste. Não é
incluso, especificamente, em nenhum dessas “gastronomias” apresentadas. Colocamos juntamente com o último por
conta do trajeto de acima descrito.
93
As regiões praiana, sertaneja e serrana, a partir das respectivas cidades apresentadas,
são relacionadas com algumas comidas características de sua localidade. Mas, além disso,
apontam pratos tanto nacionais quanto internacionais. Neste quesito, a cidade de Fortaleza-CE é
descrita como o lugar que agrega esses três aspectos: estrangeiro, nacional e regional,
mesclando-os a depender do estabelecimento. Consequentemente, inclino-me a afirmar que os
vocábulos tradicional e regional, bem como “mistura” e “diversidade” contribuem para aquilo
que a SETUR-CE denomina de “gastronomia” cearense.
Os termos “tradicional” e “regional” são utilizados para caracterizar as comidas
produzidas e consumidas em território cearense e/ou brasileiro. E os vocábulos “diversidade” e
“mistura” são introduzidos a fim de ressaltar a variedade de opções alimentares tanto locais
quanto de outras sociedades; e a mesclagem realizada parte destes dois elementos, dando origem
a novos pratos.
A ideia de “processo de mesclagem cultural” (POULAIN, 2013) auxilia justamente
na construção temporária dessa definição. Assim, aplicada essa compreensão ao Centro das
Tapioqueiras, a partir dos boxes investigados, percebe-se imediatamente que há produção e
comercialização de comidas tradicionais, regionais e as que são fruto de mesclagens. Vejamos
as seguintes tabelas:
Tabela 2: Comidas apresentadas nas tapiocarias analisadas
Cardápio Tradicional/Regional Mesclagem
Tapiocas Tradicionais
Simples/tradicional: feita com
coco ralado;
Queijo; queijo assado; leite
condensado; ovo; chocolate; queijo e
chocolate; goiabada; doce de leite;
queijo e presunto; nata; manteiga;
carne de sol; frango; bacon; camarão;
Tapiocas Finas
Sem recheio
Ovos; queijo; presunto; carne do sol
com queijo; frango com catupiry;
bacon e requeijão; camarão e
catupiry; calabresa, queijo e ovos;
sardinha; carne moída, calabresa e
ovo; atum e queijo; bacalhau; carne de
caranguejo; coco e chocolate; banana e
canela; abacaxi, queijo e leite
condensado; nutella com morango;
maçã, leite condensado e canela etc.
Outras comidas
Cuscuz paulista;
panelada; feijoada;
caldo; canja; carneiro; paçoca; galinha caipira;
Cada uma das comidas descritas à
esquerda possuem suas Variações em cada cardápio;
94
Bebidas
Café; cajuína caseira; sucos e
vitaminas de frutas locais
(cajá, caju, goiaba, laranja,
abacaxi etc.).
O café é a bebida com maior
diversidade de opções.
(Fonte: Elaboração do autor)
A “gastronomia” cearense é utilizada como atrativo cultural para atender ao público
turístico. Não há políticas públicas específicas para o desenvolvimento dessa área, o que
acontece, pontualmente, são eventos de festivais gastronômicos com a intenção de tornar o lugar
atrativo para visitantes. Portanto, não existem planos específicos, por parte da SETUR, para esse
setor no Ceará.
5.1 PROMOVENDO O EMPREENDEDORISMO INDIVIDUAL: INTERVENÇÕES DO
SEBRAE NO CENTRO DAS TAPIOQUEIRAS
De antemão, afirmo que, neste último ponto do trabalho, a questão do
empreendedorismo é associada à ação que o SEBRAE tem direcionado às(aos)
permissionárias(os) do Centro das Tapioqueiras como agente formador de empreendedores
individuais. Deste modo, apresento alguns elementos que têm influenciado nesta ação e como
as(os) tapioqueiras(os) têm lidado com a implantação “não coercitiva” dessa disposição.
Começo com o entendimento do SEBRAE a respeito do empreendedorismo
individual:
O empreendedor individual é aquele pequeninho (camelô, pipoqueiro etc.) que não
pode emitir uma nota fiscal. Aquele pequeninho que quando vai comprar um produto,
às vezes, tem dificuldade de comprar numa quantidade maior ou de um fornecedor com
um preço melhor. Porque não tem o CNPJ. Cabeleireiro tem produto que só pode
comprar se tiver CNPJ. Aí o cabeleireiro que é informal, ele vai pedir a alguém que
pode emitir a nota; geralmente cai na mão de um intermediário. Compra mais caro.
Eles, geralmente, não pagam o INSS como autônomo. Então, se ficar doente, se
engravidar, não tem nenhum benefício social. E o empreendedor individual veio
justamente pra atender a essa demanda. Então, ele pode faturar até 60 mil por ano. Se
ele for comércio ou indústria ele vai pagar 1 real de imposto por mês fixo. Todos os
impostos vão ser 1 real. Se for serviço, todos os impostos dele por mês vão ser 5 reais.
Ele não precisa declarar imposto de renda. Ele não precisa emitir nota fiscal, exceto se
ele for vender para uma pessoa jurídica. Pode ter um funcionário de carteira assinada. E
vai ter os benefícios do INSS, pagando apenas 5% do valor do salário mínimo. Então,
ele vai ter a seguridade social, ele vai poder ir no banco fazer empréstimo – linha de
crédito específico como empreendedor individual. Ele vai poder emitir uma nota fiscal,
se assim o cliente pedir. E, no final do ano, ele vai fazer uma declaração, assinar de
próprio punho dizendo que faturou até 60 mil/ano. Ele tem uma série de vantagens, de
95
facilidades. Ele entra no site, preenche lá os campos, e na mesma hora sai o cartão do
CNPJ dele. É gratuito. E se ele for dar baixa, entra no site e dá baixa da empresa. O
empreendedor individual foi criado para facilitar, para estimular que esse pequenininho
se torne formalizado e ele possa crescer. E que no futuro ele possa se tornar um ME
(Microempresa) e assim por diante. (Interlocutora do SEBRAE, E.T.)
O objetivo, então, é formalizar o trabalhador autônomo para que este venha a pagar
impostos. A “facilidade” apresentada concerne a este sujeito a possibilidade de conseguir
empréstimos, aposentadoria e outros direitos trabalhistas. Contudo, foca-se no “pequeninho”,
sujeito que possui um negócio (comércio, indústria ou estabelecimento de serviço) de pequeno
porte. É promovido um discurso de “crescimento” econômico e de “segurança” social para que
esses pequenos empresários formalizem seu negócio.
No Centro das Tapioqueiras, essa intervenção se fez presente desde o processo de
adaptação das(os) tapioqueiras(os) até as novas condições de trabalho. Os cursos de capacitação
promovidos por essa empresa conduziram estes sujeitos a práticas e modos de pensar mais
sistemáticos e racionalizados. Quer dizer, apontaram um caminho para a formatação dessas
pessoas como empreendedores.
Vejamos como ocorreram essas primeiras ações no discurso do SEBRAE:
O SEBRAE fez uma intervenção com elas pra que elas já chegassem lá nos boxes de
uma maneira mais profissionalizada: a parte de atendimento, de higiene, de boas
práticas, de manipulação de alimentos... E na época nós fizemos alguns cursos com
elas. Palestras e tudo. Como administrar aquele negócio. Passado um tempo, o
SEBRAE sempre estava voltando e fazendo alguma intervenção na área de capacitação
com elas. Parou! Elas começaram a andar com suas próprias pernas. (Interlocutora do
SEBRAE, E.T.)
Dois pontos a serem ressaltados: a) o ensino de como administrar o próprio negócio;
e b) andar com as próprias pernas. O primeiro nos remete propriamente aos cursos, todavia
assinala a inserção de outra maneira de pensar. A partir do que foi apresentado, o conhecimento
das(os) tapioqueiras(os) era insuficiente ou inadequado para lidar com as novas circunstâncias
que passariam a enfrentar. Em um equipamento legitimamente definido como turístico e com as
exigências postuladas – um cardápio muito diversificado – o modo como essas pessoas
deveriam dirigir suas tapiocarias teriam que passar por mudanças.
Exemplo disso foi abordado no capítulo 3. O simples ato de pôr no papel todas as
etapas de produção da tapioca tradicional, como: estabelecer bons fornecedores; preocupar-se
96
com a qualidade e a quantidade dos produtos comprados; buscar a medição exata da preparação
da comida; fazer o cálculo para estabelecer os preços nos cardápios e para administrar as
finanças do boxe; saber o modo como gerenciar os comportamentos dos funcionários; e fazer,
de maneira correta, a abordagem aos clientes etc, não quer dizer que essas características
estivessem ausentes nas Antigas Tapioqueiras, mas uma lógica específica de como conduzir um
estabelecimento de serviço alimentar foi imposta.
Essa etapa da constituição das(os) tapioqueiras(os) como das(os)permissionárias(os)
do CETARME não teve a intenção direta de fomentar ações criativas e/ou inovadoras por parte
destes sujeitos, tampouco nos cursos realizados nos anos posteriores. Um dos motivos é a
inserção desses novos permissionários no Centro para orientá-los sobre a necessidade de serem
instruídos para aquilo que se espera deles. Logo, segundo E.T. (interlocutora do SEBRAE): “a
gente sempre trabalha com eles o ponto básico: importância da cooperação; o atendimento; e a
parte de higiene e manipulação de alimentos. Sempre trabalha, a princípio, isso: a gestão do
negócio. Não adianta a gente enxertar muita coisa. Tem que dar sempre o primeiro passo. Pra
depois, levar outras coisas pra eles” (28/06/2016).
Chego, agora, ao segundo ponto. A expressão “andar com as próprias pernas” pode
ser interpretada como a independência das(os) permissionárias(os) do Centro em relação às
ações tanto do SEBRAE quanto do Governo do Estado, principalmente no que diz respeito aos
cursos de capacitação.
Um último esforço direto, até então, para formalizá-las(os) à posição de
“empreendedoras(es) individuais” e ensiná-las(os) um modelo de gerenciamento do próprio
negócio a fim de melhor atender às demandas dos turistas estrangeiros, aconteceu no ano que
antecedeu a Copa do Mundo de 2014, em que o Centro das Tapioqueiras recebeu o Programa
SEBRAE 201444
.
O Sebrae no Ceará começou a realizar um trabalho de preparação das tapioqueiras,
com foco no ambiente do mundial da Fifa. A iniciativa faz parte do programa Sebrae
2014 e tem como objetivo aumentar a competitividade do polo gastronômico da tapioca
por meio da capacitação dos proprietários dos boxes para uma gestão mais profissional
do negócios, com a realização de consultorias e treinamentos abordando temas como
atendimento ao cliente, boas práticas na manipulação de alimentos, gestão de pessoas e
gestão financeira, entre outros. (DIÁRIO DO NORDESTE, 26/05/2015)
44
O Programa SEBRAE 2014 teve seis eixos de atuação, são eles: Turismo, Economia Criativa, Têxtil e Vestuário,
Comércio Varejista, Agronegócios e Serviços em geral. O Centro das Tapioqueiras foi inserido neste último ponto
como “polo gastronômico”.
97
E ainda,
O ponto de partida é o incentivo à formalização já que a grande maioria dos negócios
ainda é informal. Até hoje foram realizados dois encontros de sensibilização para a
apresentação da figura do Empreendedor Individual e as facilidades para legalizar o
negócio de quem fatura até R$ 60 mil por ano, bem como os benefícios previdenciários
e a possibilidade de contratar até um empregado com carteira assinada. Ainda este mês
está previsto um terceiro encontro, em que o Sebrae irá levar até o Centro das
Tapioqueiras toda a estrutura necessária para a formalização. (Idem.)
O escopo é torná-las(os) autônomas(os) na administração da tapiocaria, na produção
das comidas, bem como na resolução de conflitos e de problemas na estrutura física. Trata-se,
portanto, de uma relativa autonomia, ou seja, ao mesmo tempo em que essas pessoas têm a
possibilidade de criar estratégias e outros tipos de comida, elas estão – ou devem estar –
fundamentadas nas diretrizes estabelecidas durante essas aulas preparatórias.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os processos de preparação e de comercialização das tapiocas no CETARME estão
ligados à criatividade, ainda que de modo incipiente. Poucos são os sujeitos observados e
analisados que colocam este elemento como fundamental no cotidiano de seus respectivos
boxes. Dentre as tapioqueiras N. e V., percebi mais semelhanças que discrepâncias.
Entendo que elas mantêm uma relação muito estreita com as práticas culinárias e
organizacionais características das Antigas Tapioqueiras da Paupina. Em virtude disto, a
dimensão criativa apenas tangencia seus trabalhos, pois não há preocupação constante em
apresentar uma comida e/ou tipo de atendimento novo.
No que diz respeito à tapioqueira Leonícia, por não advir das A.T’s., sua forma de
gerenciar seu boxe orienta-se muito mais para os conteúdos transmitidos nos cursos
profissionalizantes. As mudanças elaboradas na estrutura física do estabelecimento e nos
utensílios, tanto para decoração quanto para o uso dos clientes, indica que sua intenção é
diferenciar-se das demais tapiocarias a partir de algum elemento novo.
Já o tapioqueiro R., associo-o a uma posição “oposta” às outras. Não digo que ele se
desvencilha radicalmente das outras, mas sua trajetória no Centro das Tapioqueiras parece
mostrar que é o mais afeito às práticas e discurso voltado às elaborações inovadoras e criativas.
Durante o período de pesquisa, a informação que colhi a respeito do modo como organiza seu
boxe leva-me a considerar que os aspectos tradicionais e de cunho popular relacionado às
Antigas Tapioqueiras da Paupina não têm tanta influência em seu trabalho. O que prepondera,
no seu caso, é atrair o cliente por meio de algo que não esteja no cardápio de nenhum outro
boxe.
Em conjunto, esses sujeitos agem mediante relações de cooperação como de
competição entre si. E é neste momento que percebo a manifestação das criatividades. Elas se
revelam nos produtos alimentícios comprados, nos cardápios, nas comidas, nas bebidas, na
forma de administrar o estabelecimento, nas relações estabelecidas com os funcionários, na
decoração, nos utensílios, nas cores, nas roupas utilizadas, entre outros elementos. No entanto,
as práticas e as intervenções que cada permissionário faz têm que levar em consideração os
acordos estabelecidos nas reuniões da ATP, para serem fundamentados no Regulamento desta
associação.
99
A interpretação de que os elementos tradicionais se ligam ao que pode ser
considerado como novo desemboca na apreensão de que, no CETARME, se tem uma
“gastronomia” voltada para comidas regionais cearenses, como para outras localidades. Desse
modo, as aspas são para indicar que não faço comparação com a Gastronomia em seu sentido
clássico. O vocábulo somente possui elementos característicos desta, como por exemplo:
relaciono, na medida do possível, um permissionário ao chef de um restaurante. Ambos são
responsáveis por toda a dinâmica de seus estabelecimentos, desde a compra dos produtos
alimentares até o atendimento ao consumidor.
Sendo assim, inclino-me a considerar que, nesse local, ocorreu a agregação de vários
conhecimentos – alimentares e de cunho empreendedor – possibilitando a emergência de um
tipo específico e inovador de preparação alimentar. Hoje, ano de 2017, pode parecer que aquilo
que é elaborado no Centro das Tapioqueiras seja um modelo encontrado em qualquer lugar que
comercialize tapioca. Contudo, no momento de sua constituição – ano de 2002 – esse local foi
um dos primeiros do estado do Ceará a apresentar uma comida apreciada no repertório alimentar
dos cearenses, dos nordestinos e dos brasileiros, em nova roupagem, no intento de torná-la
atrativa, principalmente para o turista estrangeiro.
Por fim, considero que os elementos tradicionais concernentes à produção e à
comercialização das tapiocas persistem frente à suposta padronização imposta pelo mercado
turístico internacional e globalizado. Além disso, a formulação de práticas criativas configura
uma tensão entre aspectos do passado e construção de novos produtos e informações
provenientes do presente, porém, a finalidade é atrair clientes e “preservar” o significado da
culinária regional “autêntica” representada pelo Centro das Tapioqueiras no Ceará.
Entendo que este trabalho contribui para futuras reflexões acerca das mudanças que
ocorrem nas práticas culinárias e alimentares, sobretudo fora do âmbito doméstico. A incessante
globalização cultural, inclusive alimentar, e do turismo têm promovido modificações na forma
como produzimos e negociamos as comidas. Precisa-se pensar a respeito dos novos modelos
alimentares, frutos da mistura de práticas e de conhecimentos social e culturalmente distintos.
100
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