Post on 11-Jan-2019
1
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA
A INCONGRUÊNCIA DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL, SEM PROVOCAÇÃO DAS
PARTES, EM DECORRÊNCIA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO PELA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Biguaçu (SC)
2008
2
CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA
A INCONGRUÊNCIA DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL, SEM PROVOCAÇÃO DAS
PARTES, EM DECORRÊNCIA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO PELA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção de título de Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Centro de Educação de Biguaçu. Orientador: Prof. MSc. Juliano Keller do Valle
Biguaçu (SC)
2008
3
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí –
UNIVALI, a coordenação do curso de direito do centro de Biguaçu, a banca examinadora e o
orientador de toda e qualquer responsabilidade penal, civil e administrativa que
eventualmente dele possa decorrer.
CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA
4
CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA
A INCONGRUÊNCIA DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL, SEM PROVOCAÇÃO DAS
PARTES, EM DECORRÊNCIA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO PELA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Esta monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de Bacharel em Direito e
aprovada pelo Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Centro de
Educação de Biguaçu.
Área de Concentração: Direito Processual Penal
Biguaçu (SC), 12 de novembro de 2008
Prof. MSc. Juliano Keller do Valle
UNIVALI – CE de Biguaçu
Orientador
Prof. MSc. Luiz César Silva Ferreira
UNIVALI – CE de Biguaçu
Membro
Profa. MSc. Rita de Cássia Pacheco
UNIVALI – CE de Biguaçu
Membro
5
Dedico este trabalho aos meus
maiores exemplos de vida e que
nunca mediram esforços para, em
todos os sentidos, se dedicarem a
mim: meus pais.
Dedico também a Cleber Rodrigo,
mesmo não tendo a oportunidade
de conhecê-lo (in memoriam).
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente a Deus, que me concedeu, acima de tudo, saúde para
alcançar mais este objetivo.
Com amor e infinita gratidão, agradeço a meus Pais, José Nilton da Silva e Maria
Lúcia Bosquetto da Silva, por caminharem em comunhão de desígnios comigo desde o
início do caminho, até porque sem eles realmente seria impossível concluí-lo.
A minha família: avós, Alísio Querino da Silva e Inácia Ávila da Silva, irmãs,
Tânia Mara da Silva Costa e Ana Cláudia da Silva Gubert, cunhados, João César Costa e
Jaime Alberto Gubert, sobrinhos, Guilherme Costa e Alice Gubert, e afilhada, Heloisa Costa,
por terem colaborado de inúmeras maneiras para que eu superasse as intempéries surgidas
tanto na universidade quanto na vida.
A meus avós, Anselmo Bosquetto e Alaíde Eller Bosquetto, pois, embora
ausentes pessoalmente, sempre me protegeram (in memoriam).
As pessoas que tive oportunidade de trabalhar e estagiar, mesmo antes do
ingresso à universidade, especialmente a Jádel da Silva Júnior, que, em seu gabinete, do 4º
ao 7º período do curso, me ensinou a dar as primeiras grandes engatinhadas no direito e
com quem tive os primeiros debates acerca da viabilidade da presente pesquisa.
A todos os colaboradores do BSA – Borges Schmidt & Almeida & BDV – Barros,
Demaria & Vecchio, com os quais passei e passo desde 1º/10/2006 grandes momentos
profissionais e pessoais, e cujo escritório, exemplo de advocacia neste país, fez com que a
confecção do trabalho ficasse mais simples, além de me propiciar a aprender que a
excelência profissional encontra-se nos minúsculos detalhes.
A Juliano Keller do Valle, por receber meu convite de orientação com euforia,
dedicar seu tempo à pesquisa e sugerir algumas referências bibliográficas, principalmente a
obra Direito processual e sua conformidade constitucional, de Aury Lopes Jr.
E, por fim, agradeço a todas as pessoas com quem oxigenava minha mente
após os estudos, mormente durante o intenso período da elaboração da presente pesquisa,
principalmente os amigos Ricardo e Thiago, e de classe, Alvaro, Juan e Luciano.
7
Uma boa mentira, repetida
centenas de vezes, acaba se
tornando uma verdade.
Paul Joseph Goebbels
8
RESUMO
A Constituição Federal de 1988, ao instituir no Brasil um Estado Democrático,
deu azo à feição garantista que atualmente norteia o nosso direito processual penal. Esta
tendência democrática, aliás, já dominava a maioria dos países do mundo à época. Antes da
mudança de paradigma, servia como sol ao processo penal o Código de Processo Penal de
1941, elaborado no seio do fascismo do “Estado Novo”, com aspirações complemente
antagônicas à Constituição. Enquanto a Lei Maior publicizou o sistema acusatório no
ordenamento jurídico pátrio, separando nitidamente as funções processuais e concedendo
ao acusado tratamento como sujeito de direitos, a lei infraconstitucional, ao contrário,
manteve os velhos ranços da matriz inquisitória, dentre eles a tutela ao juiz a proceder de
ofício à procura e à obtenção de provas sob o fundamento da busca da verdade real,
enfeixando, assim, as funções de acusar e julgar numa mesma pessoa, prevalecendo o
interesse público em detrimento daquelas garantias. Com arrimo em doutrina e
jurisprudência, busca-se apresentar raciocínio no sentido de que a atividade instrutória
judicial de ofício não pode mais subsistir diante desta atual sistemática processual penal,
mesmo com escólio na busca da famigerada verdade real, já que esta não passa de um
mito inalcançável, dando lugar à verdade auferida com respeito aos comandos
constitucionais: a verdade processual. Enfim, a figura do juiz que age sem provocação à
busca e à colheita de provas (juiz-ator ou juiz-inquisidor) cedeu espaço ao juiz garantidor
dos direitos do acusado e que seja expectador no que toca à produção de provas, deixando
tal mister apenas à incumbência das partes (autor e réu), reservando-se a exercer apenas
funções jurisdicionais a fim de preservar sua imparcialidade e a neutralidade judicial.
Palavras-chave: Sistema. Acusatório. Democracia. Garantismo. Inquisitório.
Inquisitivo. Inquisitorial. Autoritarismo. Totalitarismo. Verdade. Função processual.
Constituição. Lei ordinária. Juiz. Acusação. Instrução. Produção. Prova.
9
ABSTRACT
The Federal Constitution of 1988, to establish a democratic State in Brazil, has
led to the security feature currently guides our criminal procedural law. This democratic
tendency, in fact, already dominated the majority of countries in the world at that time. Before
the change of paradigm, the sun served as the criminal procedure Code of Criminal
Procedure of 1941, prepared within the fascism of the "New State", with aspirations
completely antagonistic to the Constitution. While the Law Top publicized the accusatory
system in the legal vernacular, clearly separating the processor functions and giving to the
accused treatment as a individual of rights, the law below constitutional, in contrary, kept the
old rancid of the matrix inquisitorial , among them the guardianship to judge the conduct of
the demand letter and the taking of evidence on the basis of the actual search for truth,
focusing thus acknowledge the role of judge and the same person, prevailing the public
interest to the detriment of those guarantees. With strength in doctrine and jurisprudence,
seeks to present arguments to the effect that the activity instructor of judicial office can no
longer survive on this current system of criminal procedure, even with support in search of
the notorious real truth, as this is a unachievable myth, giving rise to the truth received with
respect to constitutional commands: the truth procedure. Therefore the figure of the judge
who acts without provocation to the search and collection of evidence (judge or court-actor-
inquisitor) yielded space to judge guarantor of the rights of the accused and to be spectator
with regard to the production of proofs, leaving only such mister the task of the parties
(author and defender), limiting itself to just exercise judicial functions in order to preserve
their impartiality and neutrality court.
Key words: Accusatory. Democracy. Guaranteed. Inquisitorial. Inquisitive.
Inquisitorial. Authoritarianism. Totalitarianism. Really. Civil Procedure. Constitution. Judge.
Indictment. Instruction. Production. Proof.
10
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Ag Agravo de instrumento
AgRg Agravo regimental
ampl. ampliado
art. artigo
atual. atualizado
CF Constituição Federal de 1988
CP Código Penal (Dec.-lei nº 2.848/40)
CPC Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/73)
CPP Código de Processo Penal (Dec.-lei nº 3.689/41)
Dec. Decreto
Des. Desembargador
Dec.-lei Decreto-lei
DJ Diário da Justiça
ed. edição
Edcl. Embargos de declaração
HC Habeas corpus
Min. Ministro
nº número
p. página
RE Recurso extraordinário
rel. relator
REsp Recurso especial
rev. Revisado
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
vol. volume
11
ROL DE CATEGORIAS
Rol de categorias que o autor considera estratégico à compreensão do seu trabalho, com os
seus respectivos conceitos operacionais:
AUTORITÁRIO
“Assim se diz do poder público, ou administrativo, que desempenha suas atribuições,
exorbitando da autoridade, que lhe é assinalada em lei ou no ato legal, que o constitui.
Igualmente, designa o próprio regime autoritário ou regime de força, em que o poder
discricionário do governo prevalece sobre as próprias leis. E neste sentido se opõe ao
regime liberal ou regime democrático. O regime autoritário, formador do Estado autoritário, é
forma disfarçada de ditadura, onde, em regra, o governo enfeixa em suas mãos as
atribuições dos poderes constitucionais”1.
DEMOCRACIA
“É o governo do povo, pelo povo e para o povo”2. [...]
DIREITO INDIVIDUAL
“O referente ao indivíduo e assegurador nos aspectos dos direitos à vida, à liberdade, à
segurança e à propriedade e aos meios necessários a preservá-los”3.
ESTADO DE DIREITO
“[...] É a organização de poder que se submete à regra genérica e abstrata das normas
jurídicas e aos comandos decorrentes das funções estatais separadas embora harmônicas.
A expressão ‘Estado Democrático de Direito’ significa não só a prevalência do regime
democrático como também a destinação do Poder à garantia dos direitos; já na expressão
‘Estado Social de Direito’, além de assegurar o caráter democrático, introduz-se o Poder
como agente transformador da sociedade; na expressão ‘Estado de Direito Ambiental’ já
1 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 177. 2 Ob. Cit., p. 428, em itálico no original. 3 Ob. Cit., p. 471.
12
agora se pretende situar o poder como garantidor do relacionamento dos indivíduos como o
meio que o circunda”4.
ESTADO DEMOCRÁTICO
“Assim se diz do Estado, cujo governo se constitui sob os moldes da democracia”5.
GARANTIA CONSTITUCIONAL
“É a denominação dada aos múltiplos direitos assegurados ou outorgados aos cidadãos de
um país pelo texto constitucional. [...] As garantias constitucionais, pois, diferem e não se
confundem com os direitos individuais, sendo seu estabelecimento fundado no dever de
ampará-lo e protegê-los. E assim se mostram os princípios constitucionais que podem ser
convocados, a fim de que se respeitem os direitos individuais, anulando-se as molestações
aos mesmos, como e onde quer que se evidenciem tais desrespeitos. Casos há, porém, em
que se podem suspender as garantias constitucionais. E estes se encontram anotados,
também, na própria Magna Carta, que as institui”6.
GARANTIA FUNDAMENTAL
“Representa salva-guardas que as Constituições Políticas agasalham para validade dos
direitos assim consignados. Pode ser: a) ativa – depende de provocação do indivíduo ou da
coletividade (habeas corpus, mandado de segurança, habeas data, mandado de injunção,
ação popular); b) passiva – independem da iniciativa individual ou coletiva, uma vez que se
insculpem como princípio constitucional basilar”7.
GARANTISMO
“Segundo um primeiro significado, ‘garantismo’ designa um modelo normativo de direito:
precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de ‘estrita legalidade’ SG,
próprio do Estado de Direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza com um sistema
cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de
tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como
4 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 555, em itálico no original. 5 Ob. Cit., p. 557. 6 Ob. Cit., p. 651. 7 Ob. Cit., p. 651.
13
um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos
cidadãos”8. [...]
“[...] Em um segundo significado, ‘garantismo’ designa uma teoria jurídica da ‘validade’ e
‘efetividade’ como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela ‘existência’ ou
‘vigor’ das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica
que mantem (sic) separados o ‘ser’ e o ‘dever ser’ no direito; e, aliás, põe como questão
teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos
normativos (tendentementes garantistas) e práticas operacionais (tendentementes
antigarantistas), interpretando-a com a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora
destes patológica – que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e
efetividade (e invalidade) das segundas)”9.
“[...] Segundo um terceiro significado, por fim, ‘garantismo’ designa uma filosofia política que
requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos
interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido o
garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre o direito e moral, entre validade e
justiça, entre o ponto de vista interno e o ponto de vista externo na valoração do
ordenamento, ou mesmo entre o ‘ser’ e o ‘dever ser’ do direito. E equivale à assunção, para
os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do
ponto de vista exclusivamente externo”10.
INCONGRUÊNCIA
“S.f. 1. Qualidade do que é incongruente; incompatibilidade. 2. Ato incongruente”11.
INCONGRUENTE
“Adj. 2g. Que não é congruente, que não convém; incompatível, impróprio, inconveniente”12.
INQUISIÇÃO 8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 785-786, em itálico no original. 9 Ob. Cit., p. 786, em itálico no original. 10 Ob. Cit., p. 787, em itálico no original. 11 RIOS, Dermival Ribeiro. Novo dicionário global da língua portuguesa ilustrado. São Paulo: DCL, 2007, p. 386. 12 Ob. Cit., p. 386.
14
“[...] Inquisição. Era o nome que se dava ao antigo tribunal de jurisdição eclesiástica,
conhecido pela denominação de Santo Ofício, e estabelecido para conhecer dos crimes
contra a fé cristã. Foi introduzido, no ano de 1 200, pelo papa INOCÊNCIO III, durante a
guerra contra os albigenses. Em Portugal a Santa Inquisição, designação que lhe era
também atribuída, foi instituída em 23 de maio de 1536, por bula do papa PAULO III, sendo
o primeiro inquisidor-geral D. DIOGO DA SILVA, bispo de Ceuta e primaz da África. O
tribunal inquisitorial conhecia dos crimes por delação própria ou mediante denúncia e
acusação. Os componentes da Inquisição diziam-se inquisidores, que eram seus ministros,
com autoridade para inquirir sobre a herética pravidade e depravação dos costumes.
Inquirir, aí, quer significar investigar, promover inquérito ou devassa. Era presidida pelo
inquisidor-geral, que era seu presidente nato e tinha poderes para nomear os inquisidores
particulares”13.
INSTRUÇÃO
“[...] Instrução. Na terminologia forense, é empregado para exprimir a soma de atos e
diligências que, na forma da regras legais estabelecidas, devem ou podem ser praticados,
no curso do processo, para que se esclareçam as questões ou os fatos, que constituem o
objeto da demanda ou do litígio. A instrução, pois, dispondo de elementos na ordem
regulamentar, vem ministrar os esclarecimentos ou trazer elucidação aos fatos que se
precisam saber. Tecnicamente, evidencia-se a reunião ou procura de provas, conseqüentes
dos atos praticados ou das diligências feitas, que determinam a procedência ou
improcedência dos fatos alegados, quando em processo civil, ou dos fatos imputados a
alguém, quando em processo penal”14. [...]
JUDICIAL
“Derivado do latim judicialis, é empregado comumente para indicar ou exprimir todos os atos
ou todas as coisas, que se fazem em juízo ou segundo a autoridade do juiz, e que
pertencem à justiça. Opõe-se, desse modo, a extrajudicial, que é o que se faz fora de juízo e
sem assistência ou autoridade do juiz. É o judicial tido em sentido equivalente a judiciário,
quando empregado como adjetivo. Judicial ou judiciário, assim, têm análogo sentido”15.
13 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 746, em itálico no original. 14 Ob. Cit., p. 752, em itálico no original. 15 Ob. Cit., p. 788, em itálico no original.
15
OFÍCIO
“[...] Ofício. Na linguagem forense, notadamente na expressão por ofício (ex officio) entende-
se o que se faz ou se executa por iniciativa própria, sem pedido de alguém, somente porque
se está na obrigação ou no dever legal de assim proceder. Equivale a oficiosamente”16. [...]
SISTEMA
“Do grego systema, e trazendo o sentido de reunião, método, juntura, exprime o conjunto de
regras e princípios sobre uma matéria, tendo relações entre si, formando um corpo de
doutrinas e contribuindo para a realização de um fim. É o regime, a que se subordinam as
coisas. Assim, todo conjunto de regras, que se devem aplicar na ordenação de certos fatos,
integrantes de certa matéria, constitui um sistema. Destarte, há sistemas jurídicos, sistemas
econômicos, sistemas sociais, sistemas de trabalho, etc”17.
TOTALITÁRIO
“De total, exprime geralmente o que encerra a totalidade de partes ou de atributos, sem
nada lhe faltar. Totalitário. Mas, no sentido político, entende-se o regime em que o Estado
absorve e subordina os interesses dos indivíduos aos interesses da coletividade, adotando
como forma de governo a ditadura pessoal ou de grupo. No regime totalitário, o Estado é
que dirige todas as atividades da vida social do país, nele somente se admitindo a existência
do partido ou do grupo de onde saem seus dirigentes ou administradores. Totalitário.
Designa o partidário do sistema político que se firma no totalitarismo”18.
16 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 979, em itálico no original. 17 Ob. Cit., p. 1.306, em itálico no original. 18 Ob. Cit., p. 1.411, em itálico no original.
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................ ...................18
1 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS...........................................................................20
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .....................................................................................20
1.2 ACUSATÓRIO ...........................................................................................................21
1.3 INQUISITÓRIO ..........................................................................................................28
1.4 MISTO ......................................................................................................................32
2 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS E O SISTEMA ACUSATÓRIO -
MECANISMOS DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL EM FACE DO PODER (MONOPÓLIO)
ESTATAL .......................................................................................................................38
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .....................................................................................38
2.2 O DEVIDO PROCESSO LEGAL ...............................................................................41
2.3 A PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE E O IN DUBIO PRO REO ...................43
2.4 A IGUALDADE PROCESSUAL ..................................................................................48
2.5 O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA ...............................................................50
2.6 A IMPARCIALIDADE (DO JUIZ NATURAL) ...............................................................53
3 ASPECTOS TANGENTES À ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL - A
NECESSIDADE DE REMODELAGEM DO PAPEL DO JUIZ EM DECORRÊNCIA DO
MODELO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL ..............................................................56
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .....................................................................................56
3.2 O ÔNUS DA PROVA E O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO ..................................56
3.3 A SUPOSTA DISTINÇÃO ENTRE VERDADE REAL E FORMAL ..............................59
3.4 A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE REAL - O PROCESSO PENAL DE CUNHO
ACUSATÓRIO (DEMOCRÁTICO) RUMO À BUSCA DA VERDADE PROCESSUAL .......62
3.5 A UTILIZAÇÃO DA VERDADE REAL PARA A ATIVIDADE PROBATÓRIA JUDICIAL
DE OFÍCIO ......................................................................................................................66
3.6 A INCOGRUÊNCIA DA PRODUÇÃO DE PROVA EX OFFCIO PELO JUIZ ................70
3.7 A AMPLIAÇÃO DE PODERES DO JUIZ COM O ADVENTO DA LEI Nº 11.690/2008 -
PERMANÊNCIA DE PROCEDIMENTO INQUISITIVO NO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL BRASILEIRO .......................................................................................................76
CONCLUSÃO..................................................................................................................77
17
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS .........................................................................79
18
INTRODUÇÃO
Partindo-se de construção histórica atinente aos grandes sistemas informadores
do processo penal mundial, visa-se inicialmente identificar as reais partes que os integram
para, posteriormente, digerir algumas questões relativas ao modelo empregado no Brasil
pela Constituição Federal de 1988.
Uma vez identificadas as características primordiais de cada um dos três
protótipos, poder-se-á observar que, dentre outras, a principal diferença entre o acusatório e
o inquisitório diz respeito à divisão entre os sujeitos processuais. Historicamente, no primeiro
há notória divisão entre o acusador e o juiz. A acusação é considerada como parte na
relação processual, assim como o réu, e o julgador reserva-se a praticar tão-somente
atividades jurisdicionais; no segundo sistema, as funções de acusar e julgar concentram-se
enfeixadas na pessoa do inquisidor, que mantém relação linear com o réu, que não é
considerado parte, tampouco é visto como sujeito de direitos. O protótipo misto, por sua vez,
é a miscigenação de ambos os modelos, só que dividido em duas fases. Apesar de tudo,
identificar-se-á que cada país modela seu sistema de acordo com sua opção política,
podendo haver uma miscelânea entre as características de cada um, desde que não
desnaturem a própria configuração do próprio sistema, como a divisão de funções entre
acusar e julgar, típica do acusatório, no inquisitório.
Além da separação de funções, será possível perceber que o tratamento dado
ao acusado como sujeito de direitos também serve de alicerce para a anomalia entre
aqueles dois sistemas, principalmente pelas garantias fundamentais concedidas ao réu. Na
verdade, decorrem daí as razões pelas quais elege-se o modelo acusatório como o eleito
pela Constituição Federal de 1988. Por outro lado, serão esposadas opiniões doutrinárias a
fim de se perceber se tal entendimento é uníssono (pacífico).
Superada a diferenciação dos aplicadores da lei material penal, mergulhou-se no
bojo de algumas garantias fundamentais trazidas pela atual Constituição. Assim, será
demonstrado o conceito, o valor e a abrangência do devido processo legal e de seus
corolários (presunção de não-culpabilidade, contraditório, ampla defesa, igualdade
processual e imparcialidade), direcionando a atenção para as suas interferências na
produção de prova de ofício pelo juiz. Estas ponderações terão, certamente, forte influência
no terceiro capítulo.
19
Em último lugar, no terceiro capítulo, serão esboçadas considerações que
reflitam pontualmente na oficiosa atividade instrutória judicial. Para tanto, além das garantias
já aludidas no segundo capítulo, que serão trazidas à tona novamente, apresentar-se-ão
aspectos relativos ao ônus da prova e à verdade real, tendo em vista que a busca por esta
verdade, insculpida no art. 156 do CPP, fornece ao julgador poderes para procurar e colher
provas, enquanto o ônus da prova estabelece que apenas à acusação incumbe provar a
pretensão punitiva em face do réu.
Todo o embasamento para chegar-se ao raciocínio explicitado, porém, será
realizado sob interpretação constitucional, deixando o Código de Processo Penal (legislação
infraconstitucional) de lado, embora analisado com ênfase o seu art. 156, cujo dispositivo
regula concomitantemente o ônus de prova e a liberdade do juiz para atividade instrutória.
20
1 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Por amor à metodologia e visando facilitar a compreensão do assunto objeto do
capítulo, torna-se imprescindível esclarecer que sistema processual penal, resumidamente,
“é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de
cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito
penal a cada caso concreto”19.
Na oportunidade, traz-se à baila outra definição também preconizada pela
doutrina:
Sistemas processuais penais são, pois, campos criados a partir do agrupamento de unidades que se interligam em torno de uma premissa. Funcionam como uma indicação abstrata de um modelo processual penal constituído de unidades que se relacionam e que lhe conferem forma e características próprias20.
Para não confundi-lo com sistema penal, é de bom alvitre colacionar seu
significado, cujo instituto, por não estar atrelado ao tema, não merecerá nossa atenção:
[...] sistema penal é um conjunto de agências de poder, que interage com o meio social, influenciando e sendo por este influenciado (mídia, família, igreja, vizinhos, escola etc., os quais formam o senso comum), funcionando com o objetivo de combater a criminalidade (função declarada) para proteger as pessoas de bem daquela minoria muito má que põe em risco a segurança pública (ideologia da defesa social)21.
Dirimida, através dessas lições, eventual dúvida existente acerca do conceito de
sistema processual penal, far-se-á em seguida pertinentes considerações concernentes a
cada um dos grandes sistemas informadores do processo penal, tudo com a finalidade de
que o leitor possa identificá-los futuramente. De todo modo, para evitar prolongamento de
conteúdo que fuja do âmbito da pesquisa, será dado ênfase às características históricas e,
acima de tudo, às relações com o direito processual brasileiro, haja vista que “muitos dos
19 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 45. 20 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 38. 21 NEPOMOCENO, Alessandro. Além da lei: a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 43.
21
aspectos do sistema hoje vigente no Brasil configuram repetição de procedimentos adotados
em épocas mais remotas”22.
Em relação à gradativa evolução histórica dos moldes processuais penais,
acredita-se que “a mudança de paradigma, decorrente da transformação do próprio
pensamento humano, foi o fator relevante para conferir ao processo penal sua feição
contemporânea”23.
Existem dois protótipos em que o processo penal pode revestir-se para alcançar
seu objetivo especial e precípuo: o inquisitivo e o acusatório24. Há ainda o misto, que nada
mais é do que a compilação entre aqueles25.
No mais, em sendo o foco – cerne – da pesquisa analisar de maneira restrita a
produção de provas pelo juiz, sem provocação das partes, sob o prisma constitucional
advindo da Constituição Federal de 1988, será percorrido neste capitulo um curto caminho
no âmago dos aplicadores da lei penal material, porque será mister distingui-los para
entendimento da celeuma.
1.2 ACUSATÓRIO
Afirma-se que era acusatório o protótipo procedimental utilizado em toda a
Antigüidade26, o qual predominou até meados do século XII, quando foi substituído pelo
inquisitório27.
22 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 39. 23 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 233. 24 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 64. 25 “Historicamente, e conforme a atual estrutura básica dos procedimentos vigentes em vários países, os tipos processuais classificam-se, segundo a terminologia usual e levando-se em conta os princípios que os informam, em processo acusatório e processo inquisitivo – admitindo-se ainda uma terceira forma mista – cujo traço fundamental revela-se pela existência, no primeiro, de um órgão próprio de acusação separado do órgão jurisdicional, contrariamente ao segundo que acumula ambas as funções”. OLIVEIRA, Gilberto Callado de. O conceito de acusação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 36. 26 TUCCI, Rogério Lauria. Persecução penal, prisão e liberdade. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 62. 27 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58.
22
Originariamente a acusação penal era privada, competindo ao ofendido (vítima)
ou a qualquer pessoa do povo a difícil outorga de acusar publicamente aquele que tivesse
praticado uma infração penal. O Estado, indiferente, não se importava com a “guerra”
processual formada, que dependia da habilidade, tenacidade ou malícia das partes, razões
pelas quais qualificou-se o processo como “coisas das partes” (sache der partein)28.
No mesmo trilho percorrido acima, LOPES JR. ratifica:
A origem do sistema acusatório remonta ao Direito grego, onde se desenvolve referendado pela participação direta do povo no exercício da acusação e como julgador. Vigorava o sistema de ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada para os delitos menos graves, em harmonia com os princípios do Direito Civil29.
Percebe-se com facilidade que não só a acusação como a persecução penal,
tarefa que “consiste no poder de promover a perseguição do indigitado autor da infração
penal”30, ficava a encargo dos particulares.
Na medida em que o Estado não auxiliava os particulares na persecução penal,
referida atividade ficava conseqüentemente prejudicada, uma vez que os particulares não
detinham instrumentos ou meios pelos quais poderiam realizá-la de forma satisfatória a fim
comprovar suas alegações, carência que dificultava, por vezes, a condenação do autor da
infração e ensejava a desistência ou o desinteresse pela sua realização31.
Esterilizando eventual imprecisão a respeito da origem do procedimento,
discorre PRADO:
A forma acusatória adotada na época, prescindindo de uma investigação anterior, era dominada integralmente pelo contraditório, cumprindo às partes pesquisarem e produzirem as provas das suas alegações. Tratava-se de um modelo de processo público e oral, cujos debates formavam o eixo central, dos quais derivava o fundamento da decisão. Neste paradigma processual as partes tinham, via de regra, a disponibilidade do conteúdo do processo,
28 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42. 29 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58. 30 TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal (estudo sistemático). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 166. 31 “Não é difícil perceber que tal sistema debilitava em muito a persecução penal, sendo fruto da sociedade liberal e individualista romana. [...] O particular, quando não se desinteressava, encontrava-se desarmado do instrumental mínimo e necessário para desincumbir deste pesado fardo”. JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42.
23
competindo ao Estado tão-só o conhecimento e julgamento da ação criminosa, em se tratando de delicta pública
32. [...]
Atualmente, por exemplo, a persecução penal no Brasil é promovida pelo Poder
Executivo – e não pelo Poder Judiciário – através das Polícias Civil e Federal33 e fiscalizada
pelo Ministério Público34.
Retornando à evolução histórica, restou evidenciado à época do império romano
que o procedimento mostrou-se insuficiente para reprimir novas formas de infrações,
possibilitando freqüentemente os inconvenientes de uma persecução inspirada por ânimos
de vingança. A insatisfação propiciou aos juízes concentrarem as funções de julgar e acusar
num mesmo órgão, oportunidade em que começaram a proceder de ofício, caracterizando o
procedimento extraordinário (extra ordinem), o qual, após alterações, originou o sistema
inquisitório35, cujo modelo terá exposição no item seguinte.
No sistema acusatório – antítese do inquisitório – autor e réu figuram na relação
processual em pé de igualdade, sendo o titular da jurisdição órgão imparcial de aplicação da
lei e, assim, sobrepondo-se a ambos36. Portanto, “como decorrência lógica do equilíbrio e
divisão de poderes processuais penais, não há coincidência subjetiva entre o órgão
acusador e julgador”37.
Segundo BADARÓ, sem esta separação não há que se falar em processo
acusatório, tampouco em relação jurídica. O acusado torna-se objeto do processo e não em
sujeito de direitos, o que inviabiliza a existência de um verdadeiro processo:
A característica insuprimível do modelo acusatório, sua conditio sine qua non, é a nítida separação entre as funções de acusar, julgar e defender. Eliminada a divisão de tarefas não há processo acusatório. Sem tal separação e inviabilizada a existência de uma verdadeira relação jurídica processual, não há que se falar em sujeito de direitos, sendo o acusado convertido em um objeto do processo. Na verdade, sem separação de
32 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 75-76. 33 Art. 144, § § 1º, I, II, III, IV, e 4º, da CF. 34 Art. 129, VII, da CF. 35 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58. 36 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 66. 37 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 38.
24
funções e sem relação processual, não há sequer um verdadeiro processo38.
Dentro desse contexto, o julgador não praticava qualquer tipo de interferência na
produção de provas, tarefa que, em verdade, cabia privativamente ao acusador e ao
acusado (partes)39.
Tendo em vista que, aqui, o julgador não exerce qualquer tipo de ativismo
probatório durante o trâmite processual, não carregando conseqüentemente nenhum fardo
acusatório ou probatório, seu estado de ânimo permanece – deveria permanecer –
preservado para conduzir o processo e, ao final, prolatar sua decisão.
A imparcialidade do magistrado na estirpe acusatória resulta, grosso modo, do
seguinte raciocino:
No sistema acusatório, o juiz não tem contato com as partes: o único contato processual que tem é com a pretensão das partes, que conhece através de seus pedidos manifestados no processo, e cuja verossimilhança examina através dos fatos ou circunstâncias provadas no processo40.
Convém identificar que “o processo acusatório, como visto, corresponde a uma
concepção de processo penal em que as partes se encontrem em pé de igualdade e que
deve ser resolvido por um terceiro imparcial, o órgão jurisdicional”41.
Em que pese existir divergência doutrinária em rotular as reais partes integrantes
deste modelo, as ponderações supracitadas sedimentam, pelo menos, seus traços
fundamentais, servindo satisfatoriamente para identificá-lo diante dos demais sistemas
(inquisitório e misto).
Comenta-se, contudo, que os sistemas acusatório e inquisitório são abstrações
ou modelos ideais, inexistindo atualmente suas formas “puras”, pois, em tese, nenhum
legislador estruturaria o processo penal integralmente em seus moldes, fato que
38 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 108. 39 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 234. 40 MALCHER, José Lisboa da Gama. Manual de processo penal: teoria geral e processo de conhecimento. Vol. I. Rio de janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1980, p. 69. 41 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 59.
25
possibilitaria várias combinações entre as suas características em diversos ordenamentos
jurídicos42.
Sobre a discussão do estado puro dos sistemas processuais penais,
FERRAJOLI tece distinta consideração:
[...] Embora de fato dessa reconstrução possa resultar um esclarecimento dos nexos funcionais que ligam os diversos elementos de qualquer modelo teórico, na experiência prática estes nunca aparecem em estado puro, mas sempre misturados a outros não logicamente e nem axiologicamente necessários. Isso depende de contingentes e espontâneas dinâmicas histórico-políticas, ou de explícitas escolhas legislativas precárias, ou ainda do fato de que muitos princípios relativos a uma ou outra tradição acabaram se afirmando como universalmente válidos na Idade Moderna, surgindo, portanto, ao menos no papel, em todos os ordenamentos processuais evoluídos: pense-se, por exemplo, o caráter público da acusação em lugar do caráter privado, de origem inquisitória, ou no livre convencimento do juiz, no contraditório e nos direitos de defesa, de ascendência acusatória43.
Embora pertinentes, cuida-se de assertivas um tanto delicadas, podendo levar o
leitor ao pensamento errôneo que seria plenamente aceitável, via de regra, todas as
características inquisitórias em sistemas acusatórios ou vice-versa, dependendo do
ordenamento jurídico de cada Estado, isto é, uma miscelânea processual, a teor do que
preconiza a doutrina44.
Assim, com fulcro nas palavras de PRADO citadas no parágrafo antecedente,
nota-se que cada um deles possui alguns ferrenhos traços que lhes são peculiares e não
podem se coadunar sob pena de anomalia, como, por exemplo, a divisão entre o órgão
acusador e julgador (condição sine qua non da matriz acusatória) no estereótipo inquisitório,
uma vez que a centralização destas funções numa só pessoa é requisito fundamental para a
sua configuração.
42 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 101-102. 43 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 519. 44 “10. Não existe uma compreensão exclusiva e unicamente válida sobre que elementos compõem os sistemas processuais, variando conforme a história dos povos e o enfoque teórico que conferem à questão do comportamento delituoso e seu modo de controle, de sorte que nem sempre coincidem as visões histórica e teórica dos sistemas; 11. é possível, todavia, determinar alguns pontos convergentes, sendo que, relativamente ao sistema acusatório, há, além do pacífico reconhecimento de que se fundamenta na divisão das tarefas de acusar, defender e julgar (princípio acusatório), concordâncias sobre as exigências de publicidade e oralidade;”. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 242.
26
Apresentado este sucinto e necessário escorço histórico, vê-se a seguir algumas
características relativas à consagração (publicidade) do sistema acusatório no Brasil, eis
que adotado explicitamente pela Constituição Federal de 198845, muito embora antes dela
vigorasse entre nós um sistema acusatório privado46.
Parte da doutrina, entretanto, não comunga da assertiva a respeito da adoção do
sistema acusatório no Brasil, de modo que a fase prévia representada pelo inquérito policial
estaria incluída na idéia de processo judicial, razão pela qual ter-se-ia um sistema misto:
Não é unânime a conclusão a respeito do real enquadramento do processo penal brasileiro no sistema acusatório ou no sistema misto. Para os defensores da primeira posição, o inquérito policial não se inclui no conceito de processo. Prepondera, portanto, o processo acusatório, visto que os autos de investigação, de coloração inquisitiva, não constituem processo47.
Data venia, assim como defendeu aquele autor, a melhor doutrina também
defende a idéia relativa à eleição do sistema acusatório:
No processo brasileiro adota-se o sistema acusatório. Quanto à fase prévia representada pelo inquérito policial, já vimos que constitui processo administrativo, sem acusado mas com litigantes (após o indiciamento), de modo que os elementos probatórios nele colhidos (salvo as provas antecipadas a título cautelar) só podem servir à formação do convencimento do Ministério Público, mas não para embasar uma condenação48.
Ainda no que pertine à ratificação do esqueleto acusatório pela Constituição de
1988, interessante averbar as plausíveis considerações de CHOUKR, in verbis:
[...] o texto político que nos governa, se não foi absolutamente coerente no todo, na parte que nos interessa é inequivocamente coeso, adotando um aparelho de processual [...] de matriz acusatória, na busca da salutar separação dos papéis a serem atuados na construção da justiça criminal, tocando fundo, inclusive, na própria estrutura das instituições ligadas à política de segurança pública49.
Superado o embate técnico acerca de qual modelo foi instaurado em nosso
ordenamento jurídico, há de se notar que a publicização promovida pela Constituição deu-se
em virtude da titularidade exclusiva outorgada ao Ministério Público para promover a ação
45 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 16. 46 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 130. 47 AQUINO, José Carlos G. Xavier de. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 13. 48 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 58-59. 49 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. 2. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 9.
27
penal pública50, bem como pela injeção de alguns princípios inerentes ao protótipo
acusatório no rol de direitos e garantias fundamentais, sendo que os que interessarem à
finalidade da pesquisa (atividade instrutória judicial) serão objeto do próximo capítulo.
Defende-se que a institucionalização do Ministério Público pela Constituição foi
fundamental para “a evolução do processo penal de um sistema acusatório privado para o
salutar sistema acusatório público, onde o Estado se coloca como titular da ação e
resguarda o Juiz para as funções propriamente jurisdicionais”51, De fato, é inegável que o
juiz, ao passar a exercer apenas funções jurisdicionais, tende – deveria – a permanecer
eqüidistante das partes, principalmente do réu.
Nessa gravitação, “ninguém pode ser condenado por crime de ação pública sem
que o Ministério Público o tenha acusado”52. Todavia, caso a ação penal pública não seja
intentada no prazo legal pelo Ministério Público, a Constituição, em seu art. 5º, LIX53, e o
Código de Processo Penal, em seu art. 2954, permitem o ajuizamento de ação subsidiária da
pública através de particulares, sem prejuízo ainda dos casos exclusivamente de iniciativa
privada, previstos em minoria.
Portanto, o monopólio de promover a ação penal pertence privativamente ao
Estado, mediante o Ministério Público, mas existem determinadas infrações penais (crimes
ou contravenções) que a lei tutelou tão-só ao particular a conveniência (princípio da
oportunidade) de promovê-la, sem embargo da possibilidade de desistência (princípio da
disponibilidade), o que nos faz remontar à sua origem histórica, época em que a acusação
era somente privada, não havendo uma acusação oficial como acontece atualmente55.
50 Art. 129, I, da CF – “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”. 51 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 130. 52 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 201. 53 “Art. 5º, LIX, da CF – será admitida ação privada nos casos de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”. 54 “Art. 29, do CPP – Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo o tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal”. 55 [...] “O fato de a acusação, hoje entre nós, ficar a cargo do Ministério Público não desnatura, pois, o processo acusatório. Este, à evidência, sofreu alterações, ditadas pela evolução dos tempos, aperfeiçoando-se”. [...] OLIVEIRA, Gilberto Callado de. O conceito de acusação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 37.
28
Outra questão que chama a atenção é o caráter democrático do processo
acusatório:
O modelo acusatório de processo nada mais é que uma opção política direcionada para um Estado democrático e de direito, tendo como uma de suas conseqüências diretas um novo mapeamento de interesses e valores para o aparato instrumental penal. Entre eles está um reequilíbrio da balança que tem em cada extremidade as idéias de segurança pública e garantias individuais, e que apresenta justamente no rompimento com a dualidade verdade real x verdade material o seu fiel56.
Não obstante, a adoção da aludida base acusatória ao direito processual penal
brasileiro advém – como não poderia ser diferente – da onda democrática que banhou o
Congresso Constituinte de 1987/198857, culminando em 1988 na promulgação da atual
Constituição da República Federativa do Brasil, classificada à época como “Constituição
Cidadã”.
Ventiladas estas curtas, mas pertinentes, considerações referentes ao sistema
de cunho acusatório, cujo modelo será alvo de atenção permanentemente no decorrer da
pesquisa, segue-se o exame dos demais grandes sistemas informadores do processo penal.
1.3 INQUISITÓRIO58
O procedimento acusatório não foi o único a vigorar em toda a história, de tal
maneira que, “como toda evolução humana (e mesmo da natureza em geral) se faz através
da oposição dos contrários, dialeticamente surgiu, posteriormente, o sistema inquisitório,
sob a forte influência do Direito Canônico”59, o qual paulatinamente “passou a dominar toda
ou quase toda a Europa continental”60.
Sobre sua origem, são valiosíssimos os ensinamentos de RANGEL:
O sistema inquisitivo surgiu nos regimes monárquicos e se aperfeiçoou durante o direito canônico, passando a ser adotado em quase todas as legislações européias dos séculos XVI, XVII e XVIII. O sistema inquisitivo
56 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 74. 57 Ob. Cit., p. 62. 58 Ler-se-á comumente sistema inquisitório e inquisitivo como sinônimos. 59 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42. 60 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 34.
29
surgiu após o acusatório privado, com sustento na afirmativa de que não se poderia deixar que a defesa social dependesse da boa vontade dos particulares, já que eram estes que iniciavam a persecução penal. O cerne de tal sistema era a reivindicação que o Estado fazia para si do poder de reprimir a prática dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada ou delegada aos particulares61.
Precisamente, os séculos XIII e XIV marcam o início da predominância do
sistema inquisitório e o século XIX registra seu descarte, pelo menos, na Europa Ocidental
(Continental)62.
Nesse ínterim entre sua ascensão e seu descarte, mais precisamente no século
XV, o protótipo acusatório foi abandonado e, sobretudo, substituído definitivamente pelo
inquisitório. Comenta-se que a decadência ocorrera, principalmente, em razão da criação do
Tribunal do Santo Ofício, ou Tribunal da Inquisição, perdurando este domínio até o século
XIX63.
Sustenta BARROS a predominância do sistema inquisitivo depois da Idade
Média:
[...] excetuado período mais remoto, ou seja, a Antigüidade e a Idade Média, em que se exigia, para os crimes de ação pública, demanda da parte ofendida ou de qualquer outro cidadão, e o sistema era do tipo acusatório, o processo criminal se caracterizou pelo procedimento inquisitivo64.
Com seu surgimento, “passou, então, o juiz a formular a acusação penal e a
perquirir a prova. Desaparece o frágil triangulo processual (actum trium personarum),
formando-se uma relação linear entre juiz e réu”65. Assim, “a concentração de poderes nas
mãos de um único órgão é o seu marco essencial. Perseguir, acusar, e decidir são
atividades exercidas pelo mesmo sujeito: o inquisidor”66.
Escoimado pelo princípio procedat iudex ex officio, todas as atividades
executadas pelo órgão jurisdicional, inclusive a acusação, são realizadas sem provocação.
61 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 45-46. 62 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 81. 63 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 48. 64 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 130. 65 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42. 66 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Resquícios inquisitórios na Lei nº 9.034/1998. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCrim, São Paulo, n. 46, p. 117, jan.-fev. 2004.
30
Não se fala “sem provocação das partes”, pois, acumulando o juiz as funções
acusadora/julgadora e o acusado sendo apenas objeto do processo, estas
conseqüentemente sequer podem ser qualificadas como tal, porquanto “inconcebível, em tal
sistema, a existência de uma relação jurídica processual”67.
No tocante à instauração do processo de ofício pelo juiz, CINTRA, GRINOVER e
DINAMARCO aludem que tal iniciativa relaciona-se ao processo inquisitivo, donde a
imparcialidade se mostra ausente:
[...] a experiência mostra que o juiz que instaura o processo por iniciativa própria acaba ligado psicologicamente à pretensão, colocando-se em posição propensa a julgar favoravelmente a ela. Trata-se do denominado processo inquisitivo, o qual se mostrou sumamente inconveniente pela constante ausência de imparcialidade do juiz68.
Por conseguinte, tem-se que o juiz não forma seu convencimento mediante as
provas carreadas no processo; na verdade, almeja ele comprovar sua íntima convicção, pois
já emitiu, anteriormente, determinado juízo de valor ao iniciar, ex officio, a ação69.
Nessa esteira, imperioso se faz transcrever ipsis litteris entendimento
concernente à diferença do impulso processual dos dois estereótipos:
[...] no sistema inquisitivo, o juiz-acusador impulsiona o processo desenvolvendo a função acusatória; no processo acusatório, o juiz impulsiona em busca da formação da certeza, imparcialmente, tanto procurando elementos que possam formar uma certeza sobre a pretensão condenatória do autor, como sobre a pretensão absolutória do réu70.
Trata-se, precipuamente, de um modelo processual penal autoritário71 e que
“aparece em todos os ordenamentos nos quais o juiz tem funções acusatórias ou a
acusação tem funções jurisdicionais”72. Cuida-se, aliás, de monopólio funcional jurisdicional
que lhe é peculiar, enquanto que na forma acusatória, como vimos, não se pode admitir de
forma alguma o enfeixe em tela.
67 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 105. 68 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 58. 69 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 46. 70 MALCHER, José Lisboa da Gama. Manual de processo penal: teoria geral e processo de conhecimento. Vol. I. Rio de janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1980, p. 69. 71 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 97. 72 Ob. Cit., p. 96.
31
Em plena harmonia com o exposto no parágrafo anterior, no que se refere ao
modelo processual penal autoritário, a doutrina brasileira leciona no mesmo diapasão e
afirma que “o sistema inquisitório predomina historicamente em países de maior repressão,
caracterizados pelo autoritarismo ou totalitarismo, em que se fortalece a hegemonia estatal
em detrimento dos direitos individuais”73.
Como corolário disso, o processo é secreto, escrito e nenhuma garantia se
confere ao acusado, figurando numa situação de subordinação que se transfigura e se
transmuda em objeto do processo e não em sujeito de direito74. Enfim, “é considerado
primitivo, já que o acusado é privado do contraditório, prejudicando-lhe o exercício de
defesa”75.
Averbe-se, por oportuno, que “sua principal meta é a busca de uma verdade
histórica76, não importando, para tanto, os meios e os modos utilizados para o cumprimento
de tal mister”77, “pois nele prevalece o objetivo de realizar o direito penal material”78. Um
exemplo simplório disso é a possibilidade de o juiz submeter o acusado a torturas com a
finalidade de obter sua confissão, que neste sistema é considerada a “rainha das provas”79,
sendo mais do que suficiente para condená-lo.
Constata-se diante de tudo o que já foi dito que, “nessa postura metodológica,
ganha importância o papel do juiz na colheita do material probatório, em nome de um
tratamento técnico da questão criminal e do ‘interesse público’”80. “Em linguagem
73 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58. 74 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 34 75 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 28. 76 “Por verdade histórica entende-se a reconstrução de um acontecimento pretérito. Esta é, aliás, a tônica do processo penal. Embora a verdade, usualmente indicada pela doutrina, como material dificilmente seja atingida, os interesses públicos característicos do processo penal – poder-dever punitivo e liberdade jurídica –, são mais bem conjugados ao se estabelecer como meta a maior aproximação possível e permitida da exatidão fática”. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Resquícios inquisitórios na Lei nº 9.034/1998. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCrim, São Paulo, n. 46, p. 117, jan.-fev. 2004. 77 Ob. Cit., p. 117. 78 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 104. 79 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 58. 80 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 46.
32
contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre função de segurança pública no exercício
do magistério penal”81.
De outro norte, caso se deixe de analisá-lo sob o enfoque histórico para se
vislumbrar suas raízes no direito processual brasileiro, verificar-se-á indubitavelmente que o
atual Código de Processo Penal, elaborado em 1941, manteve fragmentos do molde em
discussão, muito embora àquela época aspirava-se instituir plenamente o protótipo
acusatório no processo penal pátrio.
É exatamente o que se sustenta diuturnamente:
Em 1941, com o advento do atual Código de Processo Penal, pretendeu-se a consolidação do um sistema acusatório, todavia ainda com forte tendência inquisitorial, questão completamente compreensível em razão do momento histórico de seu surgimento, pois estávamos em pleno momento ditatorial no Brasil e com fortes tendências mundiais a governos totalitários. Há que se ressaltar que de 1937 a 1945 o Brasil submeteu-se ao regime do Estado Novo, com fortes ligações com o Estado fascista italiano. Não sem razão, o Código de 1941 inspirou na legislação fascista italiana e adotou postulados inquisitoriais na nossa legislação processual82.
No entanto, de acordo com a Constituição Federal de 1988, “não há, em nosso
processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de
acusar e a função jurisdicional”83.
Após a construção científica relativa ao em questão, identifica-se sem esforço
que sua forma procedimental é consideravelmente antagônica à de cunho acusatório.
1.4 MISTO
O sistema misto, “inaugurado com o Code d’Instruction Criminelle (Código de
Processo Penal) francês, em 1808, constitui-se pela junção dos dois modelos anteriores,
tornando-se, assim, eminentemente bifásico”84.
81 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 105. 82 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 234. 83 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 67. 84 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 29.
33
Como bem lembrado nas considerações iniciais do capítulo, AQUINO aduz que
“corresponde ele ao temperamento dos dois outros sistemas e, embora possa ser detectada
sua sintomatologia no direito imperial, foi historicamente adotado e sistematicamente
organizado pelo Código de Napoleão, de 1808”85.
Sublinha-se alguns importantes motivos que ensejaram seu advento:
[...] O descontentamento com as formas essencialmente inquisitórias, expresso durante o Iluminismo e posteriormente concretizado na legislação revolucionária francesa, traduziu uma mudança radical de rota na tentativa de se buscar, no sistema inglês, inspiração para mudanças da legislação processual penal até então predominante na Europa Continental86.
Mesmo com o fracasso da inquisição e a paulatina aceitação da matriz
acusatória, o Estado ainda assim mantinha a titularidade absoluta do poder de punir, porém
não podia abandoná-la em mãos de particulares. Logo, tornou-se necessário repartir o
processo em fases e atribuir as atividades de acusar e julgar a órgãos distintos. Diante
disso, a acusação continua como monopólio estatal, mas exercida por intermédio de um
terceiro distinto do juiz87. Pela necessidade desta divisão, surge o Ministério Público88 (fato
relevante lembrado até hoje como um marco histórico do processo penal).
Ora, se o referido tipo de processo penal é composto pelo liame entre os dois
esqueletos anteriormente explicitados, só resta identificar, ao que parece, a ordem
cronológica de aplicação e a abrangência de cada um daqueles em seu âmbito, cuja
conjuntura procedimental foi chamada de “monstro” por FERRAJOLI89.
85 AQUINO, José Carlos G. Xavier de. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 13. 86 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 41. 87 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 69, sem grifo e sublinhado no original. 88 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 51. 89 “Direi antes que, se o processo misto do tipo francês e italiano, nascido da justaposição de uma instrução inquisitória e de um juízo acusatório, é um ‘monstro’, não menos monstruoso é o processo anglo-saxão, também ele fruto de uma híbrida união entre a publicidade da acusação e dos órgãos a ela designados, que é de derivação inquisitória, e sua discricionariedade, que é de ascendência acusatória. É de fato completamente absurda a figura de um acusador público – pouco importa que seja eleito – não sujeito à lei e dotado do poder de escolher arbitrariamente quais violações penais são merecedoras de perseguição ou ainda de predeterminar a medida da pena pactuando com o imputado”. [...] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 524.
34
Com arrimo na boa doutrina, inicia-se a identificação:
1ª) instrução preliminar: nesta fase, inspirada no sistema inquisitivo, o procedimento é levado a cabo pelo juiz, que procede às investigações, colhendo as informações necessárias a fim de que se possa, posteriormente, realizar a acusação perante o tribunal competente; 2ª) judicial: nesta fase, nasce a acusação propriamente dita, onde as partes iniciam um debate oral e público, com a acusação sendo feita por um órgão distinto do que irá julgar, em regra, o Ministério Público90.
Conforme grifado outrora, falou-se em processo que foi divido em duas fases e
não em procedimento. É de suma importância ter-se isso em mente para se raciocinar mais
tarde.
Em face do cenário apresentado, observa-se que a primeira fase é
essencialmente inquisitiva e a segunda, obviamente, adota a forma acusatória, haja vista
que “o critério definidor de um sistema ou outro seria a ‘separação das funções de acusar e
julgar’, presente apenas no modelo acusatório”91.
No entanto, reitera-se que a divisão é realizada sob o prisma histórico, podendo
o sistema misto sofrer particulares alterações no caso concreto em certos ordenamentos
jurídicos, como pode ocorrer também com o acusatório e o inquisitório, cuja compilação
funcional já foi pauta de discussão, quando se disse que alguns pressupostos genuínos não
se podem coadunar.
Tratando-se especificamente de Brasil, se demonstrou alhures que alguns
pesquisadores entendem ser o estereótipo empregado ao nosso direito processual penal,
mesmo sob a égide da atual Constituição. Para tanto, atribuem a fase investigativa –
pautada pelo inquérito policial – ao conceito de processo.
Antes mesmo da promulgação da atual Carta Magna havia o entendimento de
que vigorava no país o procedimento misto. Aqui, abre-se parênteses para o respeitável
registro assentado por TUCCI em 1980:
Alastrando-se pela Europa e, por igual, pelos países americanos de origem latina, esse novo tipo procedimental, denominado misto, foi também, obviamente, implantado no Brasil, em que a persecutio criminis se desenvolve em duas fases, a saber: a) a primeira, realizada, quase toda
90 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 50, em negrito no original. 91 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58.
35
inquisitorialmente por agente estatal encarregado da investigação criminal, em regra pertencente à polícia judiciária, para a constatação da prática delitiva ou contravencional e da respectiva autoria; e b) a segunda, denominada de ação penal, dirigida por órgão do Poder Judiciário, e com a presença dos órgãos técnicos da acusação e da defesa, postos em contradição recíproca, num procedimento público e, ainda que parcialmente, informado pela oralidade92.
Para fundamentar raciocínio contrário, colaciona-se entendimento segundo o
qual a contaminação do atual sistema brasileiro só seria possível se a investigação
ocorresse perante o juízo (Juizado de Instrução):
[...] somente quando a investigação for realizada diretamente perante o juízo (Juizado de Instrução) será possível vislumbrar contaminação do sistema, sobretudo quando o mesmo juiz da fase de investigação for reservada a função de julgamento. Não é esse o caso brasileiro93. (grifo nosso)
Conforme se comenta adiante, duas atividades procedimentais realizadas no
processo acusatório brasileiro também corroboram para essa acirrada discussão (confusão),
a saber: a) a inserção da prova produzida na fase investigatória aos autos do processo
judicial; e b) a interferência do juiz em procedimentos praticados no caderno policial.
No que toca à inserção da prova produzida na fase investigatória aos autos do
processo judicial (primeira hipótese), comenta-se brevemente:
Maior problema existe quanto à prova pericial produzida na fase policial. Admite-se sua realização como prova definitiva quando há urgência, postergando-se o contraditório para momento posterior, em que as partes poderão contestar o laudo, elaborar quesitos suplementares, pedir esclarecimento aos peritos94.
A segunda menção – interferência do juiz em procedimentos praticados no
caderno policial – sofre contundente crítica doutrinária:
[...] O magistrado deve encontra-se, portanto, distante daquilo que poderíamos chamar de objeto da investigação e, mais do que isto, sua formação de convencimento não se deve deixar levar pelos informes colhidos ainda na fase da preparação da ação penal. E, muito embora desejável, a prática desmente a desvinculação, estimulando o lado oposto da moeda95.
92 TUCCI, Rogério Lauria. Persecução penal, prisão e liberdade. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 79. 93 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 11. 94 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 89-90. 95 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 39, em itálico no original.
36
É consabido que a fase investigatória se realiza através de procedimento
administrativo de competência das polícias judiciárias – e não do juiz, como no juizado de
instrução (sistema misto) – que carece das mesmas prerrogativas processuais e
constitucionais inerentes ao processo judicial, como, por exemplo, contraditório, ampla
defesa, publicidade etc., sendo o indiciado apenas objeto da investigação e não de
acusação.
Para MARQUES, por exemplo, o inquérito policial é um procedimento de caráter
inquisitivo e não um instrumento para dar a cada um o que é seu, como o processo:
[...] O inquérito policial não é um processo, mas simples procedimento. O Estado, através da polícia, exerce um dos poucos poderes de autodefesa que lhe é reservado na esfera de repressão ao crime, preparando a apresentação em juízo da pretensão punitiva que na ação penal será deduzida através da acusação. O seu caráter inquisitivo é, por isso mesmo, evidente. A polícia investiga o crime para que o Estado possa ingressar em juízo, e não para resolver um lide, dando a cada um o que é seu96.
Todavia, há quem diga que o inquérito sequer é procedimento, em virtude de lhe
faltar característica essencial: “a formação por atos que devam obedecer a uma seqüência
pretederminada pela lei, em que, após a prática de um ato, passa-se à do seguinte até o
último da série, numa ordem a ser necessariamente observada”97.
Quer seja o inquérito policial um procedimento, quer não, o importante é não
confundi-lo com processo judicial.
Veja-se, então, que o impasse de opiniões relaciona-se à primeira fase, sendo o
divisor de águas para compreensão da celeuma. Para uns ela atine ao processo e, para
outros, seria mero procedimento investigatório de competência do Poder Executivo quando
se tratar de infrações98 de alçada pública (condicionada ou incondicionada).
Por outro lado, fala-se que o sistema acusatório vigente no Brasil não é puro em
sua essência, eis que, além de conter vários resíduos inquisitórios na legislação ordinária
processual, o caderno inquisitivo é juntado os autos do processo judicial depois de
concluído. Nesse trilho, não discrepa a opinião a seguir:
96 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 164. 97 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 70. 98 Crimes ou contravenções penais.
37
O Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de investigação, integra os autos do processo, e o juiz, muitas vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do inquérito policial são verdadeiros99.
Como se isso não fosse o bastante para dar azo à celeuma, há quem lembre
que o caderno indiciário serve para condução do processo pelo juiz, senão vejamos:
[...] Inclusive, ao tomar depoimento de uma testemunha, primeiro lê seu depoimento prestado, sem o crivo do contraditório, durante a fase do inquérito, para saber se confirma ou não, e, depois, passa a fazer perguntas que entende necessárias. Neste caso, observe o leitor que o procedimento meramente informativo, inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da verdade processual. Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o sistema acusatório adotado entre nós é puro. Não é. Há resquícios do sistema inquisitivo, porém já avançamos muito100.
Enfim, constata-se que no Brasil não incumbe ao juiz dirigir a fase investigativa
como no juizado de instrução e, também, que, em virtude do caderno indiciário se tratar de
mero procedimento administrativo, não se pode qualificá-lo como processo judicial. Além
disso, afere-se ainda que esse sistema é composto pelas ferrenhas características
imanentes aos outros dois procedimentos que já mereceram nossa atenção (acusatório e
inquisitório).
99 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 51. 100 Ob. Cit., p. 51.
38
2 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS E O SISTEMA ACUSATÓRIO –
MECANISMOS DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL EM FACE DO PODER (MONOPÓLIO)
ESTATAL
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Defende-se muito, mormente em sede doutrinária, que não há conformidade
entre a atual ordem constitucional proveniente da Carta Magna de 1988 e o Código de
Processo Penal de 1941, vigente desde 1º/01/1942 (art. 810), porquanto “o modelo
constitucional é acusatório, em contraste com o CPP, que é nitidamente inquisitório”101.
Via de regra, trata-se de incongruência inadmissível em nosso ordenamento
jurídico, pois, uma vez em vigor, “a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem
e se interpretam todas as normas infraconstitucionais”102.
Antes, é preciso digerir muitas questões para chegar-se à aludida conclusão.
Algumas características que motivaram referida dissonância (constitucional x
infraconstitucional) serão expostas para dar-se continuidade ao raciocínio realizado
inicialmente, de modo que intimamente enraizadas ao assunto central: a atividade
instrutória judicial.
É agora que determinados princípios entram em cena, visto serem também
responsáveis pela mudança de paradigma processual penal – como bem apontado no item
1.2 do capítulo antecedente (acusatório) –, englobando uma série de direitos e garantias
individuais fundamentais ao processo penal de eficácia e aplicação imediata.
Mas o que seriam direitos e garantias fundamentais?
Em suma, “os direitos fundamentais seriam declarações da imprescindibilidade
de um rol de situações jurídicas de vantagem que corresponderia a um núcleo mínimo de
101 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 185. 102 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 285.
39
direitos necessários, essenciais e fundamentais para o desenvolvimento do homem”103. Em
contrapartida, “as garantias seriam os mecanismos de proteção de tais direitos”104.
Para melhor visualização: “os direitos são bens e vantagens conferidos pela
norma, enquanto as garantias são meios destinados a fazer valer esses direitos, são
instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e vantagens”105.
No direito nacional, os direitos e garantias fundamentais receberam demasiada
atenção do legislador constituinte. Estão classificados no Título II da Constituição Federal,
disciplinados nos 78 (setenta e oito) incisos do art. 5º. Diga-se de passagem, nenhuma
Carta foi tão generosa neste aspecto.
Na verdade “a maioria dessas regras, verdadeiros princípios da ciência
processual, são mesmo auto-aplicáveis, porque representativas de direitos fundamentais,
prescindindo de disciplina processual ordinária para serem implementadas”106. Some-se a
isso o fato que “todo o direito processual tem suas linhas fundamentais traçadas no direito
constitucional, que lhe fixa as bases, em decorrência de se constituir em ramo do direito
público”107.
Para evitar delongas e propiciar ao leitor apenas uma certa idéia do valor e
abrangência do vocábulo “princípio”, expor-se-á restritamente seu conceito para, aí então,
se tocar naqueles relacionados à temática central.
Quanto à sua definição, REALE preleciona:
Restringindo-nos ao aspecto lógico da questão, podemos dizer que os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da praxis
108.
103 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e constituição: princípios constitucionais do processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 13. 104 Ob. Cit., p. 13. 105 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 412. 106 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 68. 107 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 31. 108 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 303.
40
Abre-se também parênteses para aduzir que os princípios possuem status de
norma jurídica, assim como as regras:
Na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram que conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras109.
E mais: “princípios são as idéias fundamentais que constituem o arcabouço do
ordenamento jurídico; são os valores básicos da sociedade que se constituem em princípios
jurídicos”110.
Fala-se ainda que, “em uma ordem democrática, os princípios freqüentemente
entram em tensão dialética, apontando direções diversas”111. Não por acaso, esta premissa
vai a encontro (não de encontro) do que se pretende demonstrar, na medida em que alguns
dos que serão explicitados a seguir foram injetados em nosso ordenamento jurídico graças
aos ventos democráticos que culminaram com a promulgação da Constituição Federal em
1988, resultando na publicização do sistema acusatório (fato relevante lembrado no capítulo
anterior).
Tecido o conceito, grifa-se a definição daqueles imbuídos na Constituição
(princípios constitucionais):
Os princípios constitucionais são normas presentes na Constituição que se aplicam às demais normas constitucionais. Isso porque são dotados de grande abstratividade, e têm por objetivo justamente imprimir determinado significado á demais normas. Daí resulta o que se denomina sistema constitucional, que impõe a consideração da Constituição com um todo coeso de normas que se relacionam entre si (unidade da Constituição). Os princípios constitucionais, portanto, servem de vetores para interpretação válida da Constituição112.
109 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 292-293. 110 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e constituição: princípios constitucionais do processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 7. 111 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 293. 112 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 100.
41
Por conseguinte, BONAVIDES exara que os princípios constitucionais situam-se
no ponto mais alto da escala normativa, razão pela qual são classificados como a norma das
normas:
Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmo, sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo passo positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria constitucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja, norma das normas113.
Facilitada a assimilação do conteúdo com o resumo esposado, serão analisados
abaixo determinados direitos e garantias fundamentais que regem o processo penal
hodierno. Reitera-se que alguns deles sugiram no ordenamento jurídico brasileiro
concomitantemente com a implantação da nova sistemática processual penal, por estarem
acoplados à Lei Maior.
2.2 O DEVIDO PROCESSO LEGAL
É pacífico que a origem histórica do princípio do devido processo legal provém
do art. 39 da Magna Carta, outorgada na Inglaterra em 1215 por João Sem Terra, que
estabelecia:
Art. 39. Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou e harmonia com a lei do país114.
Inicialmente utilizava-se a expressão the law of the land, a qual foi alterada em
1355 quando o Rei Eduardo III foi compelido pelo parlamento a aceitar um Estatuto
referente ao devido processo legal (due process of law)115.
113 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 289-290. 114 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 73. 115 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 7.
42
Seguem os fatos que ensejaram seu advento:
[...] Ascendendo ao trono de seu irmão, Ricardo Coração de Leão, o príncipe e déspota normando era ignorante e afastado do povo inglês. A idéia de que seu poder vinha diretamente de Deus já não impressionava mais: em toda a Grã-Bretanha brotavam insatisfações, por parte de quem podia manifestar-se, ou seja, os senhores feudais e o alto clero. A situação de João sem Terra, no trono, se deteriorava e enfraquecia, até que, em 1215, sob pressão, e temeroso de perder o trono, outorgou a Carta, em que se concediam algumas liberdades aos baronetes e aos bispos. Redigida em latim, tinha 63 capítulos, mais o preâmbulo. O poder real, divino e incontrastável, estava, agora, submetido à força da lei, cuja observância a todos se impunha. Foi uma notável virada de história116.
Assim, “entende-se, com essa fórmula, o conjunto de garantias constitucionais
que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes
processuais e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição”117 ou, ainda,
como proteção ao cidadão contra o arbítrio do Estado, “proibindo a este exercer o seu direito
de punir senão por meio de um processo judicial legítimo, concedendo ao acusado o direito
de oferecer resistência, produzir provas e influenciar no convencimento do Julgador”118.
Além disso, “pressupõe o contraditório (paridade de armas, a defesa se
pronunciar sempre depois da acusação, etc.), a garantia da ampla defesa (defesa técnica e
auto-defesa), o duplo grau de jurisdição, a proibição das provas ilícitas, etc., etc., etc”119.
Respeitá-lo é, portanto, um dos corolários do Estado Democrático de Direito120.
Esclarece-se que o princípio somente foi incorporado expressamente no Brasil
por intermédio do art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, tendo, assim, o legislador
constituinte inovado em relação às antigas Cartas121, quando estabeleceu que “ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Considera-se uma ”cláusula de segurança” do sistema jurídico, havendo
inclusive dois distintos aspectos ínsitos em sua órbita: a) o material; e b) o formal122.
116 VARGAS. José Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 84. 117 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 82. 118 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 21. 119 Ob. Cit., p. 122. 120 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 130. 121 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 94. 122 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 39.
43
Com espeque nas palavras do sobredito autor, se vê as peculiaridades dos dois
institutos:
[...] a) O devido processo legal em sentido material ou substancial (substantive due process of law) refere-se aos direitos materiais de garantias fundamentais do cidadão, representado, portanto, um garantia na medida em que protege o particular contra qualquer atividade estatal que, sendo arbitrária, desproporcional ou não razoável, constitua violação a qualquer direito fundamental. [...] b) Por seu turno, o devido processo legal formal, ou em sentido processual (procedural due process of law), tem como conteúdo certas garantias de natureza processual, conferidas às partes tanto no trâmite do processo quanto no que diz respeito á sua relação com o Poder Judiciário123.
Ademais, o devido processo legal “está vinculado diretamente à depuração do
sistema acusatório, mormente quando conjugado com a regra do art. 129, inc. I, do novo
texto constitucional”124. Com efeito, o princípio está adstrito também às normas que
“sistematizam e asseguram a independência do Poder Judiciário, em prol de sua
imparcialidade e neutralidade na prestação jurisdicional e aquelas outras que, igualmente,
tutelam a autonomia e independência funcional dos órgãos do Ministério Público”125.
Fazendo-se esta leitura, reporta-se novamente aqui ao item 1.2 para reiterar que
a regra do art. 129, I, da CF está umbilicalmente ligada à publicidade do sistema acusatório
no Brasil, na qual tutelou-se privativamente ao Ministério Público a promoção da ação penal
pública, separando as funções de acusar e julgar.
É viável dizer que, a partir da sua instauração, todos puderam se beneficiar da
tutela legal contra o arbítrio do Estado. Hoje o princípio se desdobra num leque de outros
direitos protegidos de maneira específica pela Constituição126.
2.3 A PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE127 E O IN DUBIO PRO REO128
123 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 39-40. 124 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 318. 125 Ob. Cit., p. 318. 126 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 36. 127 A denominação presunção de não-culpabilidade ou de inocência é controversa na doutrina e jurisprudência brasileira. Optou-se pela expressão “não-culpabilidade” porque a Constituição declara que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. 128 A dúvida interpreta-se a favor do acusado.
44
Comenta-se que “desde os primórdios do processo penal acusatório vigorava a
denominada presunção de inocência”129.
A garantia (princípio) remonta ao Direito Romano (escritos de Trajano), mas fora
seriamente atacada e até invertida na inquisição da Idade Média quando a dúvida gerada
pela insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, resultando um juízo de
semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve, tornando-se, ao contrário,
presunção de culpabilidade e não de inocência130.
O princípio “permaneceu assim ofuscado até o final do século XVIII quando,
simultaneamente com outros postulados jurídicos, veio a ser efetivamente afirmado, não
tardando a ocupar uma posição de destaque”131, sendo “referenciado pela primeira vez no
bojo do Due Process of Law, na declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 2 de
junho de 1766”132.
Ato seguinte, o art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, prescreveu que toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarado
culpada, preceito preconizado ainda no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU, de 1948133. Este último preceito, aliás, foi objeto da Assembléia Geral de
16/12/1966, quando formalizou-se o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que
teve anuência do Brasil em 06/07/1992 pelo Decreto nº 592, conforme Carta de Adesão
depositada em 24/01/1992.
Em 22/11/1969 a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica) também assentou o princípio134, entretanto o Brasil só depositou a carta
de adesão à convenção em 25/09/1992, sendo ela incorporada (ratificação) à legislação
nacional pelo Decreto 678, de 06/11/1992, tendo o Ministro Gilmar Mendes, atual Presidente
do STF, exposto recente entendimento de que os tratados de direitos humanos subscritos
129 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 280. 130 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 187. 131 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 176. 132 Ob. Cit., p. 176. 133 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 22. 134 “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes condições mínimas [...]”. SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 176.
45
pelo Brasil possuem feição supralegal135, isto é, situam-se hierarquicamente em nível
superior à legislação infraconstitucional (legalidade) e inferior à Constituição.
O princípio “deita raízes no movimento filosófico-humanitário chamado
“iluminismo”, ou Século das Luzes, que teve à frente, dentre outros, o Marquês de Beccaria,
Voltarie, Montesquieu, Rousseau”136. Há quem diga que o Código de Processo Penal
brasileiro também adotou, de início, a presunção de culpabilidade (e não de inocência)137.
Acontece que a presunção de não-culpabilidade (ou de inocência) somente
alcançou status constitucional quando a nossa Magna Carta trouxe imbuída em seu bojo a
seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença
penal condenatória” (art. 5º, LVII).
Enfatiza-se sua dupla aplicação:
Como amplamente reconhecido pela doutrina, a regra da presunção de inocência tem dupla aplicação. A primeira relaciona-se ao tratamento processual e social a ser dispensado ao réu que, para todos os efeitos e perante todos, deve ser considerado inocente até que a condição resolutiva representada pelo trânsito em julgado da sentença condenatória autorize tratamento diverso. Nesse sentido, a regra dirige-se, também, ao julgador a quem cabe o respeito estrito à imparcialidade operativa, ficando, pois, proibido de realizar qualquer ato indicativo de adesão prévia à tese acusatória. A segunda, por seu turno, está associada ao âmbito probatório que, para muitos, se relaciona com a fixação do ônus de provar imposto á acusação. Caberia a esta, portanto, demonstrar a presença de requisitos objetivos e subjetivos ensejadores do reconhecimento da prática de uma infração penal, e não ao réu, o encargo processual de provar a sua inocência138. (grifo nosso)
Denota-se, com efeito, que a primeira aplicação interfere no tratamento do réu
durante o trâmite processual, devendo o juiz manter-se imparcial mesmo frente à acusação
articulada. Assim, deve considerá-lo inocente até o trânsito em julgado de uma possível
sentença condenatória, pois agora “não mais visto como um objeto do processo, mas sim
um sujeito de direitos da relação processual”139.
135 Ver Recurso Extraordinário (RE) n.º 466.343/SP. 136 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 29. 137 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 6. 138 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 147-148. 139 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 27.
46
A segunda aplicação refere-se ao campo probante, cuja repercussão também é
ministrada por ZILLI:
E é justamente a acepção probatória da presunção de inocência que toca profundamente a temática da iniciativa instrutória. De fato, o discurso doutrinário é uníssono ao reconhecer como imperativa a absolvição na hipótese de persistência de dúvida da mente do julgador140. (grifo nosso)
Some-se a isso a atenção de GOMES, ao se referir sobre natureza jurídica
(extrínseca e intrínseca) do princípio em questão:
[...] do ponto de vista extrínseco (formal), destarte, no Brasil, o princípio da presunção de inocência configura um direito constitucional fundamental, é dizer, está inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais da pessoa (art. 5.º). Do ponto de vista intrínseco (substancial), é um direito de natureza predominantemente processual, com repercussões claras e inequívocas no campo probatório, das garantias (garantista) e de tratamento do acusado. Cuida-se, por último, como não poderia ser diferente, de uma presunção iuris tantum, é dizer, admite prova em sentido contrário141. (grifo nosso)
Valioso, por ora, tecer considerações também a respeito do princípio do in dubio
pro reo, uma vez que “ambos são manifestações ou espécies do gênero favor rei”142.
A presunção de inocência é uma presunção juris tantum que vigora desde a
deflagração do processo penal e que, para ser desvirtuada, requer atividade probatória
suficiente da autoria do crime; já o in dubio pro reo é aplicável depois da produção de provas
no processo, vedando a condenação do réu em caso de dúvida, mas isso após a realização
da atividade probatória143 – principalmente a produção de provas pelo acusador, a quem
incumbe provar a culpa do acusado, cuja inocência se presume.
Conseqüentemente, parece uma tarefa simples concluir que, como o ônus da
prova pertence à acusação, seja na ação pública, seja na ação privada, mas não tendo o
acusador comprovado nos autos suas alegações por ausência de provas, a absolvição do
réu pelo juiz seria a única medida a se impor – conforme preceitua o princípio do in dubio
pro reo –, sendo defeso ao julgador praticar qualquer ativismo probatório que implique
posteriormente em sua condenação. Contudo, na prática forense isso não é bem assim,
140 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 148. 141 GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 109, em itálico no original. 142 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 48, em itálico no original. 143 Ob. Cit., p. 48.
47
haja vista a liberdade dada ao magistrado pelo art. 156 do CPP, dispositivo que consagra –
ainda – o princípio da verdade real (princípio inquisitivo estritamente enraizado à produção
de prova judicial, conforme será visto no próximo capítulo).
Ainda no que atine ao in dubio pro reo, massifica-se que a absolvição do
acusado deve obrigatoriamente ser prolatada quando sua culpabilidade não for suficiente
demonstrada:
Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de solução de incerteza (dúvida) judicial, o princípio do in dubio pro reo corrobora a atribuição da carga probatória ao acusador e reforça a regra de julgamento (não condenar o réu sem que sua culpabilidade tenha sido suficientemente demonstrada). A única certeza exigida pelo processo penal refere-se à prova da autoria e da materialidade, necessárias para que se prolate uma sentença condenatória. Do contrário, em não sendo alcançado esse grau de convencimento (e liberação de cargas), a absolvição é imperativa144.
E diga-se mais: “parte da doutrina entendeu que esse preceito só possibilita a
prisão durante o processo se tiver natureza cautelar; custódia sem essa natureza
representaria indevida antecipação da pena”145.
Não destoam as ponderações de TOURINHO FILHO, no sentido de que a prisão
do réu antes do trânsito em julgado da sentença condenatória é cabível tão-só a título de
cautela, sob pena de antecipação da pena:
[...] Sendo o homem presumidamente inocente, sua prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória implicaria antecipação da pena, e ninguém pode ser punido antecipadamente, antes de ser definitivamente condenado, a menos que a prisão seja indispensável a título de cautela146.
Ao relacionar o princípio de submissão à jurisdição e o princípio da presunção de
inocência, concluiu-se que a prova apta a incriminar alguém deve ser encontrada por
intermédio da jurisdição, caso contrário ninguém poderá ser considerado culpado de alguma
prática delituosa:
Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada
144 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 520. 145 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 342. 146 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 29.
48
mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a (sic) pena147.
Como consectário lógico, “a culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é
a prova da culpa – ao invés da de inocência, presumida desde o início – que forma o objeto
do juízo”148.
2.4 A IGUALDADE PROCESSUAL (PARIDADE DE ARMAS ENTRE AS PARTES)
O princípio da igualdade em nosso ordenamento jurídico emana do caput do art.
5º da Constituição da República de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
A propósito, é importante que se diga que “a noção de igualdade, como a de
liberdade, é fluída, variável. Cada credo, cada Estado, cada ideologia acaba externando-a
de forma diversa”149.
De qualquer forma, o que precisamos é esmiuçar alguns fatores relativos à
igualdade que tenham influência no âmbito processual (igualdade processual) para, em
segundo lugar, verificar sua aplicação material (dinâmica) e não só meramente formal
(estática)150.
De efeito, define-se: “a igualdade processual é um desdobramento do princípio
da isonomia ou da igualdade (art. 5º, caput, da CF), reconhecida com verdadeira medula do
devido processo legal”151.
147 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 505. 148 Ob. Cit., p. 506. 149 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 49. 150 Sobre igualdade material e formal ver GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo constitucional em marcha: contraditório e ampla defesa em cem julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1985, p. 12. 151 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 50, em itálico no original.
49
Apoiando-se na lição de FERNANDES, pode-se verificar a existência de dois
sentidos de manifestação da igualdade processual, quais sejam:
1.ª) como exigência de mesmo tratamento aos que se encontrem na mesma posição jurídica no processo, como, por exemplo, o mesmo tratamento a todos os que ostentem a posição de testemunha, só se admitindo desigualdades por situações pessoais inteiramente justificáveis e que não representem prerrogativas inaceitáveis; 2.ª) como exigência de igualdade de armas no processo para as partes, ou par condicio, assegurando-se às partes equilíbrio de forças; no processo penal, igualdade entre Ministério Público, ou querelante, e acusado152.
Ao que se propôs pesquisar, apenas a segunda manifestação – paridade de
armas entre as partes – será objeto de estudo, visto identificar-se com o equilíbrio específico
entre acusação e defesa.
Segundo GRINOVER, “entende-se, modernamente, por par condicio ou
igualdade de armas, o princípio de equilíbrio de situações, não iguais mas recíprocas, como
são, no processo penal, as dos ofícios de acusação e da defesa”153.
Isso porque é cediço que o processo penal democrático possui estrutura
dialética angular ou triangular (autor, juiz e réu) e não linear (horizontal), fato que
sacramenta as vigas mestras do sistema acusatório. Ao juiz incumbe exercer a função de
julgar, despindo-se, então, da iniciativa da persecução penal154. Tanto é que o juiz não é
parte, razão pela qual mantém-se eqüidistante delas (ou, ao menos, deveria).
Dessa forma, na justaposição processual temos, de um lado, a acusação e, de
outro, a defesa, esta última representando o acusado/denunciado (réu) – lembra-se que no
processo não há que se falar em indiciado (denominação atribuída no inquérito policial).
Assim, a acusação deduzirá sua pretensão em juízo e o réu, por meio da defesa, resistirá ao
direito pretendido.
Muito bem.
152 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 50. 153 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo constitucional em marcha: contraditório e ampla defesa em cem julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1985, p. 13. 154 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 33.
50
Se é certo que essa igualdade é relativa e não absoluta, sofrendo
temperamentos especialmente pelo principio do favor rei em favor do acusado155-156,
também é certo que, diferentemente do processo civil, donde prevalecem relações entre
particulares, no processo penal o litígio põe o particular, na maioria das vezes, contra um
órgão do Estado (Ministério Público), o qual, sabe-se, detém toda uma estrutura suficiente
para a promoção do jus puniendi (direito de punir).
Sob pena de desigualdade, torna-se fundamental que a defesa do réu tenha
habilitação técnica:
[...] Sendo acusatório, deve haver uma igualdade entre as partes. Sem essa igualdade de condições, não haverá equilíbrio entre elas, e a ausência de equilíbrio implicaria negação da Justiça. Note-se, por exemplo, que o réu não pode defender-se a si mesmo, salvo se tiver habilitação. É como soa o art. 263 do CPP. Se fosse possível a defesa a cargo de pessoa sem habilitação, defesa e acusação ficariam desniveladas, e a contraposição ou possibilidade dialética entre as partes tornar-se-ia impossível157.
Prima facie, nada parece mais sensato e justo do que o réu possa utilizar-se do
seu direito à defesa técnica frente a um órgão técnico como é o Ministério Público.
Entretanto, veremos no desaguar do trabalho se a interferência do magistrado no campo
probatório, sem provocação, poderá mitigar a igualdade processual entre as partes.
2.5 O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA
O princípio do contraditório “decorre do brocardo romano audiatur et altera
pars158 e exprime a possibilidade, conferida aos contendores, de praticar todos os atos
tendentes a influir no convencimento do juiz”159, o qual, “por força de seu dever de
155 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 50. 156 “O princípio do favor rei é a expressão máxima dentre de um Estado Constitucionalmente Democrático, pois o operador do direito, deparando-se com uma norma que traga interpretações antagônicas, deve optar pela que atenda ao jus libertatis do acusado”. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 32. 157 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 18. 158 Que a parte contrária seja também ouvida. 159 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 19.
51
imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas eqüidistante delas: ouvindo uma, não pode
deixar de ouvir a outra”160.
Isso porque “a bilateralidade da ação gera a bilateralidade do processo. Em todo
processo contencioso há pelo menos duas partes: autor e réu”161. No processo penal, a
defesa do réu ocorre sob dois aspectos: defesa técnica e autodefesa.
Para visualizar-se a importância do direito de defesa, colaciona-se a salutar
ponderação:
A nomeação de um defensor técnico ao réu visa exatamente garantir o equilíbrio na relação jurídico-processual, onde as partes (autor e réu) ficam no mesmo pé de igualdade, mantendo uma perfeita harmonia entre os bens jurídicos que irão se justapor (e não contrapor): direito do Estado de punir e proteção dos direitos e garantias do acusado
162.
A defesa técnica “é sem dúvida indisponível, na medida em que, mais do que
garantia do acusado, é condição da paridade de armas, imprescindível à concreta atuação
do contraditório e, conseqüentemente, à própria imparcialidade do juiz”163.
Por conseguinte, alega-se que o direito à defesa e ao contraditório está inserto
no sistema acusatório, o que não acontece no sistema inquisitório:
[...] A defesa, que por tendência não tem espaço no processo inquisitório, forma, portanto, o mais importante instrumento de solicitação e controle do método de prova acusatório, consistente precisamente no contraditório entre hipótese de acusação e hipótese de defesa e entre as respectivas provas e contraprovas164.
Logo, “em todo o processo de tipo acusatório, como o nosso, vigora este
princípio, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação à qual se propõe a ação
penal, goza do direito “primário e absoluto” da defesa”165. Quanto à decorrência do
160 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 55. 161 Ob. Cit., p. 55. 162 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 17, em itálico no original. 163 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO; Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 9. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, 87. 164 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 564. 165 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 21.
52
contraditório, “o réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la,
evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido”166.
No Brasil, o princípio do contraditório está esculpido/insculpido no art. 5º, LV, da
CF, e vem atrelado com o da ampla defesa, in verbis: “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes”, em que pese já estivessem contidas na ordem
constitucional anterior, consoante a redação do art. 153, §§ 15 e 16 da Emenda n.º 1, de 17
de outubro de 1969167.
Em relação à influência do contraditório na atividade instrutória judicial, que é o
que mais interessa para a pesquisa em apreço, defende-se que o magistrado deve
participar intensamente do processo, mas, ao mesmo tempo, deve evitar atuar de
ofício e não possuir poderes instrutórios, sob a possibilidade de comparação com o
juiz-inquisidor, assertiva que é, por ora, embasada na doutrina:
Numa visão moderna, o contraditório engloba o direito das partes de debater frente ao juiz, mas não é suficiente que tenham a faculdade de ampla participação no processo; é necessário também que o juiz participe intensamente (não confundir com juiz-inquisidor ou com a atribuição de poderes instrutórios ao juiz), respondendo adequadamente às petições e requerimentos das partes, fundamentando suas decisões (inclusive as interlocutórias), evitando atuações de ofício e as surpresas. Ao sentenciar, é crucial que observe a correlação acusação-defesa-sentença168.
Não é demais lembrar que o inquérito policial carece da garantia do contraditório,
“pois o chamado “acusado” não passa de mero objeto de investigação, não sendo,
tecnicamente, acusado, e sim investigado, motivo pelo qual não há que se falar e
contraditório na fase pré-processual ou no procedimento administrativo”169.
Ademais, a consistência da previsão de defesa reflete, além da distinção entre
juiz e acusador, a principal diferença prática entre os processos acusatório e inquisitório170.
166 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 21. 167 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 72. 168 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 193, em negrito e sublinhado no original. 169 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 17, em itálico no original. 170 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 143.
53
“Portanto, quando o processo abre mão das atividades defensivas clássicas – de resistência
à pretensão de condenação –, caminha-se para trás, ressuscitando o modelo inquisitório”171.
Analisado que os princípios sob exame são quase confundíveis – não foi à toa
que a Constituição Federal os consolidou no mesmo dispositivo – e que, além disso, estão
embutidos no processo penal de cunho acusatório, explicita-se sobre outra garantia
constitucional.
2.6 A IMPARCIALIDADE (DO JUIZ NATURAL)
A jurisdição (dizer o direito) é uma só. “O monopólio da administração da Justiça
é, pois, do Estado, por meio do Poder Judiciário – Estado-Juiz”172. Logo, “o exercício da
jurisdição, em um Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto ao exercício de
qualquer outro poder no âmbito deste Estado, condicionado a regras de impessoalidade”173.
De qualquer maneira, “não basta a garantia da jurisdição, não é suficiente ter um
juiz, é necessário que ele reúna algumas qualidades mínimas, para estar apto a
desempenhar seu papel de garantidor”174.
Figurando o juiz como terceiro imparcial (eqüidistante) na relação processual
dialética formada entre autor é réu, sua imparcialidade apresenta-se como conseqüência
lógica da adoção da heterocomposição175. Logicamente, “de nada adianta o princípio da
igualdade na lei se juízes e tribunais não mantiverem sua posição de imparcialidade no
processo”176.
171 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 143. 172 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 19. 173 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 110. 174 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 128, em itálico no original. 175 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 80. 176 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 272.
54
A imparcialidade, como um corolário natural do devido processo legal e de um
Estado Democrático de Direito, tem o condão de manter o julgador eqüidistante das partes
processuais para tornar válida uma atividade jurisdicional, senão vejamos:
[...] a imparcialidade é uma decorrência natural do devido processo legal e de um Estado verdadeiramente Democrática de Direito. Não há como se conceber uma atividade jurisdicional válida que não venha a ser conduzida por um juiz eqüidistante das partes processuais177. [...]
Antes disso, “para que possamos garantir um Estado-jurisdição impessoal, é
imperiosa a adoção de um sistema que preveja o órgão jurisdicional competente para
julgamento anteriormente ao acontecimento do fato”178. Falamos, por ora, do princípio
constitucional do juiz natural, conhecido como “o órgão jurisdicional estabelecido
constitucional e legalmente antes da ocorrência do fato delituoso”179.
No direito pátrio a imparcialidade do juiz “representa uma das facetas da garantia
do juiz natural, sendo assegurado constitucionalmente pela impossibilidade de tribunais de
exceção (art. 5.º, XXXVII) e pela competência previamente fixada (art. 5.º, LIII)”180.
Nessa íntima e tênue relação, suscita-se que os dois princípios asseguram às
partes o fato de o juiz não aderir uma das alternativas de explicação contrapostas no
processo, in verbis:
A posição equilibrada e que o juiz deve ocupar, durante o processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz natural – garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição – que consiste na combinação da exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a priori a uma das alternativas de explicação que o autor e réu reciprocamente contrapõem durante o processo181.
Parece uma tarefa árdua, quiçá impossível, a possibilidade de alcance pelo
magistrado da imparcialidade plena, tendo em vista que os julgadores, assim como qualquer
outro ser humano, possuem qualidades, defeitos, valores, paixões etc. e, obviamente, não
177 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 140. 178 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 240. 179 Ob. Cit., p. 240. 180 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 80-81. 181 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 109.
55
estão isentos de pôr um pouco de si no teor do processo. A imparcialidade, entretanto,
impõe um limite.
Ainda nessa linha de raciocínio, FERRAJOLI argúi que a imparcialidade do juiz
possui três perfis:
Chamarei eqüidistância ao afastamento do juiz dos interesses das partes em causa; independência à sua exterioridade ao sistema político e em geral a todo sistema de poderes; naturalidade à determinação de sua designação e à determinação das suas competências para escolhas sucessivas à comissão do fato submetido ao seu juízo182.
Ventilado acima os três perfis, vejamos suas respectivas explicações no dizer do
mesmo autor:
[...] Esses três perfis da imparcialidade do juiz requerem garantias orgânicas que consistem do mesmo modo em separações: a imparcialidade requer a separação institucional do juiz da acusação pública; a independência requer a sua separação institucional dos outros poderes do Estado e por outro lado a difusão da função judiciária entre sujeitos não dependentes um do outro; a naturalidade requer exclusivamente a sua separação de autoridades comissionadas ou delegadas de qualquer tipo e a predeterminação exclusivamente legal das suas competências183. [...] (grifo nosso)
No tocante ao primeiro perfil (imparcialidade), já vimos alhures que no Brasil há
separação institucional entre juiz (Poder Judiciário) e acusação pública (Ministério Público);
quanto ao segundo (independência) e ao terceiro (naturalidade) perfis, a Constituição de
1988 prevê, além dessas duas, outras garantias aos juízes, fornecendo toda autonomia
necessária para o exercício da função, afastando qualquer possibilidade de influência que
acarrete, teoricamente, na atividade judicial.
Por derradeiro, sabendo-se da liberdade que o juiz detém em nosso
ordenamento jurídico para produzir prova de ofício, fala-se muito que tal atividade
compromete a imparcialidade do julgador, mais isso é assunto para o capítulo seguinte.
182 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 534, em itálico no original. 183 Ob. Cit., p. 534, em itálico no original.
56
3 ASPECTOS TANGENTES À ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL – A NECESSIDADE
DE REMODELAGEM DO PAPEL DO JUIZ EM DECORRÊNCIA DO MODELO
PROCESSUAL CONSTITUCIONAL
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Construídos os capítulos anteriores, nos quais se pretendeu esmiuçar e delimitar
da forma mais essencial possível aspectos históricos e atuais tocantes ao trabalho, chega-
se ao terceiro e último capítulo.
Em síntese, viu-se no primeiro capítulo as principais características e diferenças
entre os grandes sistemas informadores do processo penal mundial e, ainda, que o Brasil
adotou há vinte anos o modelo acusatório. Constatou-se, no entanto, que cada Estado
(país) implanta e ajusta seu modelo de acordo com sua opção política, inexistindo, em tese,
suas formas puras (históricas), muito embora alguns pressupostos genuínos de cada
sistema não pudessem (podem!) se miscigenar com os de outros.
Aproveitou-se o segundo capítulo para apresentar algumas garantias
constitucionais que estariam sofrendo mitigações quando da iniciativa da produção de
provas pelo Estado-juiz, tendo elas íntimo e relevante envolvimento com o tema pesquisado.
É hora de complementar e findar a elaboração do desenvolvimento da pesquisa.
Para tanto, até poder-se-ia trazer aqui outros tópicos para a discussão, mas, pela exígua
extensão duma monografia, expõem-se aqueles que possuem maior relação com a
atividade instrutória judicial.
3.2 O ÔNUS DA PROVA E O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO
O ônus da prova, no processo penal, está inserto na dicção da primeira parte da
cabeça do art. 156 do CPP: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer...”.
57
Apesar da lei nº 11.690/08, em vigor desde agosto, alterar o dispositivo em
exame para ampliar a produção de prova pelo magistrado para a fase policial, deixou intacta
a redação no que diz respeito ao ônus da prova na esfera judicial.
A construção da sua teoria no processo penal pode advir da mesma acolhida
pelo Código de Processo Civil, segundo a qual cabe à acusação a prova do fato constitutivo
de seu direito ou pretensão e ao réu incumbe provar a existência de fato impeditivo,
modificativo ou extintivo do direito do autor184. Conclui-se, portanto, que “o sistema
processual civil adota técnica superior à do processo penal, que refere-se tão-somente ao
ônus de provar o fato alegado”185.
Veja-se, destarte, a redação trazida pelo Código de Processo Civil referente ao
onus probandi:
[...] Art. 333. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência do fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. [...]
Não é relevante, no momento, apontar aspectos imanentes às divisões ou às
espécies de ônus186 ou até mesmo adentrar à teoria da prova. Interessa, por outro lado,
trazer à tona que o encargo de provar recai tão-só sobre o pólo ativo (acusação) e, em
poucas hipóteses, sobre o passivo da ação (réu), mas de forma alguma paira sobre a
pessoa do julgador, embora a Código de Processo Penal o autorize a produzir provas187.
Define-se ônus como sendo “uma faculdade cujo exercício é necessário para a
obtenção de um interesse”188. No âmbito do direito processual penal, conceitua-se o ônus de
provar como “a faculdade que tem a parte de demonstrar no processo a real ocorrência de
um fato que alegou em seu interesse, o qual se apresenta como relevante para o julgamento
da pretensão deduzida pelo autor da ação penal”189.
184 GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 205. 185 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 115. 186 Sobre ônus da prova ver BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 187 NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 117-118. 188 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 171. 189 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 203.
58
Como dito noutra ocasião, em decorrência do art. 129, I, da CF, a titularidade
privativa de figurar como autor da ação penal pública é outorgada ao Ministério Público, ou
seja, é quem carrega o fardo de acusar e provar os fatos constitutivos da pretensão
condenatória alegados nos autos do processo, porque a norma em apreço (art. 129, I, CF)
deu publicidade à divisão entre acusador e julgador, adotando as linhas mestras da base
acusatória, conforme reza a explanação a seguir:
[...] é ela, na verdade, uma das bases do princípio acusatório, na medida em que impõe a um determinado mecanismo do Estado a persecução oficial, impossibilitando a confusão entre julgador e acusador, em estrita sintonia com todos os modelos reformistas em curso na Europa continental190.
E de mais a mais, como o acusado tem ao seu lado a benesse da presunção de
não-culpabilidade (ou de inocência), o princípio em comento só vem reforçar que todo o
ônus probatório recaia sobre a acusação:
Afirmar que ninguém poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória implica e deve aplicar a transferência de todo o ônus probatório ao órgão da acusação. A este caberá provar a existência de um crime, bem como a sua autoria
191.
Inclusive o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA já se manifestou pela
impossibilidade da inversão do ônus da prova no processo penal, não tendo o réu o ônus de
provar sua inocência, que é presumida:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. INTELIGÊNCIA DO ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO CONDENATÓRIA. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE. DOCUMENTO APRESENTADO PELA DEFESA IGNORADO PELO ÓRGÃO JULGADOR. VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO PENAL E INFRINGÊNCIA AOS ARTIGOS 231 E 400 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. 2. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. 3. Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que impõe ao acusado a prova de sua inocência, bem como ignora documento
190 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 63. 191 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 292, em itálico no original.
59
apresentado pela Defesa a teor dos artigos 231 e 400 do Código de Processo Penal. 4. ORDEM CONCEDIDA para anular a decisão condenatória, para que outro julgamento seja proferido, apreciando-se, inclusive, a prova documental ignorada192. (grifo nosso)
Em razão da nítida divisão de funções, bem como da regra do ônus probante,
maior discussão ocorre quando o juiz produz provas, principalmente porque a disciplina do
ônus da prova perderia seu objeto num sistema puramente inquisitório:
Os poderes de iniciativa do juiz com relação à prova dos fatos controvertidos, seja no processo penal, como visto acima, seja no processo civil (CPC, art. 130), têm importante reflexo na relevância da distribuição do ônus da prova. Num imaginário sistema puramente inquisitório, em que o Estado chamaria a si toda a função de investigar a verdade dos fatos, perderia todo sentido a disciplina legal do ônus da prova193. (grifo nosso)
Visto, mesmo em linhas gerais, que o juiz não carrega consigo qualquer tipo de
ônus probatório ou acusatório no processo penal e que as funções de julgar e acusar foram
devidamente separadas pela Constituição Federal de 1988, passa-se a verificar alguns
aspectos atinentes à forma adotada pelo Código de Processo Penal para a reconstrução
dum acontecimento pretérito (crime ou contravenção penal) nos autos do processo.
3.3 A SUPOSTA DISTINÇÃO ENTRE VERDADE REAL E FORMAL
Assinala-se, de plano, que “a questão da verdade real normalmente é vista a
partir da lição clássica de distinção entre verdade material (real, substancial) e sua dicotomia
com a verdade formal”194.
Não raro, atribui-se o princípio da verdade formal ao direito processual não penal
(cível), por tratar na maioria das vezes com bens disponíveis, e o princípio da verdade real
ao direito processual penal, já que este lida com bem indisponível fundamental (liberdade),
senão vejamos:
192 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 27684 – AM. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=acusat%F3rio&livre=%F4nus+da+prova&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 11 out. 2008. 193 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 352. 194 DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, provas típicas e atípicas (atualizado de acordo com as Leis 11.689/80, 11.690/08 e 11.719/08). Campinas: Millennium Editora, 2008, p. 93.
60
A distinção se justifica. No âmbito cível, a maioria das causas versa sobre interesses patrimoniais disponíveis, que em tese têm menor grau de relevância para a sociedade. Já no âmbito penal, tendo em vista a possibilidade concreta de aplicação de penas que restrinjam o direito fundamental da liberdade, bem como pelo elevado grau de interesse social com relação às condutas tuteladas no direito penal material, é muito mais relevante que a elucidação dos fatos que fundamentam as decisões seja feita da forma mais acurada possível. De forma excepcional, somente, aplica-se o princípio da verdade formal, como na hipótese de absolvição por insuficiência de provas (art. 386, VI, do CPP)195.
Ao contrário, quando possível, procura-se que o resultado obtido no direito
processual civil seja o mais aproximado da verdade real196, principalmente em virtude da
atual mitigação do princípio da verdade formal no âmbito do processo civil197.
Para se ter noção do descontentamento na órbita processual civil, BEDAQUE
aduz que “o que não se pode mais aceitar é a suposta vinculação do juiz civil à denominada
verdade formal, prevalecendo a verdade real apenas no âmbito penal”198, defendendo aí
maiores poderes instrutórios ao julgador.
Tanto é verdade que o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA decidiu
recentemente:
PROCESSUAL CIVIL. PRODUÇÃO DE PROVA PERICIAL. DETERMINAÇÃO DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ART. 130 DO CPC. PRECLUSÃO QUE NÃO SE APLICA, NA HIPÓTESE. ART. 183 DO CPC. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. RECURSO ESPECIAL. INADMISSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 211/STJ E ADEMAIS, DA SÚMULA N. 83/STJ. I - A matéria inserta no dispositivo infraconstitucional suscitado (art. 183 do CPC) não foi objeto do julgamento a quo, sequer implicitamente, carecendo o recurso especial do pressuposto específico do prequestionamento (Incidência da Súmula n. 211/STJ). II - Demais disso, esta Corte tem entendimento pacífico no sentido de que a livre iniciativa do magistrado, na busca pela verdade real, torna-o imune aos efeitos da preclusão, sendo lícita a determinação de produção de prova pericial, que indevidamente não foi deferida em primeira instância, mesmo de ofício (art. 130 do CPC). III - Noutras palavras, ainda que tenha havido o anterior indeferimento da produção de prova pericial, pelo juízo de primeiro grau, ainda assim pode o
195 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 49. 196 “Quando se trata de bens indisponíveis, procura-se, de forma mais acentuada, fazer com que, o quanto possível, o resultado obtido no processo (verdade formal) seja o mais aproximado da verdade material, que se pretende fielmente retratar no processo, como, por exemplo, na anulação de casamento”. [...] ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 10. ed. Vol. II. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 405. 197 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 49. 198 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 16, em itálico no original.
61
Tribunal de apelação, de ofício, determinar tal produção, se entender pela sua indispensabilidade. IV - Precedentes citados: AgRg no REsp nº 738.576/DF, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJ de 12/09/2005; Edcl no Ag nº 646.486/MT, Rel. Min. BARROS MONTEIRO, DJ de 29/08/2005; AgRg no AG nº 655.888/MG, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES DE LIMA, DJ de 22/08/2005; REsp nº 406.862/MG, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, DJ de 07/04/2003. V - Aplicação, de qualquer modo, da Súmula n. 83/STJ. VI - Recurso especial não conhecido. Manutenção do acórdão que determinou a realização de nova perícia judicial199. (grifo nosso)
A básica e maior distinção entre os dois princípios, na verdade, diz respeito aos
poderes dados ao magistrado de produzir provas, justamente pelas características já
elencadas de cada processo. Enquanto no processo não penal (tributário, do trabalho,
administrativo, civil etc.) o julgador, via de regra, forma seu convencimento somente a partir
das provas trazidas pelas partes, no processo penal o juiz não está adstrito às provas
produzidas pelas partes, podendo perquirir outras que entender pertinentes à reconstrução
do acontecimento pretérito.
No tocante à verdade formal, aufere-se a seguinte lição:
Verdade formal, dogma tradicional do processo não penal (especialmente o civil), corresponde ao princípio pelo qual a verdade processual será aquela produzida exclusivamente pela vontade das partes, ou seja, somente os dados levados ao processo pelas partes serão analisados pelo julgador, que permanece inerte, sem imiscuir-se na produção probatória200.
Agora, quanto à verdade material:
[...] Por outro lado, quando se fala em verdade real, não se tem a presunção de se chegar à verdade verdadeira, como se costuma dizer, ou, se quiserem, à verdade na sua essência – esta é acessível apenas à Suma Potestade –, mas tão-somente salientar que o ordenamento confere ao Juiz penal, mais que ao Juiz não penal, poderes para coletar dados que lhe possibilitem, numa análise histórico-crítica, na medida do possível, restaurar aquele acontecimento pretérito que é o crime investigado201. [...]
Apesar de tudo, modernamente chegou-se à conclusão que não há distinção
entre verdade formal e verdade material, quando visa-se diferenciar a verdade alcançada na
instrução processual:
199 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 896072 – DF. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=verdade+real&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=20>. Acesso em: 5 out. 2008. 200 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 231. 201 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 17.
62
A distinção entre verdade formal e verdade material é falsa, quando se procura distinguir a verdade obtida em decorrência da instrução processual – obviamente com as limitações que lhe são inerentes – da verdade obtida por meio de técnicas ou métodos próprios de outras formas do conhecimento, com a do historiador ou a do cientista – que, do ponto de vista epistemológico, também encontram limitações instransponíveis. Também não se pode aceitar que a dicotomia verdade formal/verdade material seja válida para distinguir a verdade objetivada no processo penal daqueloutra que se busca no processo civil. Por fim, a distinção entre verdade formal e verdade material também tem sido utilizada para tentar justificar a distinção entre verdade obtida, respectivamente, no processo acusatório e no inquisitório202.
Visualizada, grosso modo, a falsa distinção entre os dois princípios que são
aplicados no processo para a busca a verdade, tentar-se-á apresentar no próximo tópico
que o conceito de verdade real é relativo e não absoluto, bem como que este dogma não
encontra amparo nos atuais modelos de processo penal (democrático e garantista), devendo
o julgador formar seu livre convencimento motivado com a verdade carreada nos autos do
processo obtida pelas partes: a verdade processual.
3.4 A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE REAL – O PROCESO PENAL DE CUNHO
ACUSATÓRIO (DEMOCRÁTICO) RUMO À BUSCA DA VERDADE PROCESSUAL
Na medida em que o processo penal é um “modo de construção do
convencimento do juiz”, torna-se imperioso, ao se tratar de provas, identificar “que verdade”
foi perquirida no processo203.
O processo é o instrumento que permite ao julgador conhecer a verdade sobre
os fatos, apesar de haver opiniões defendendo a impossibilidade de o processo atingir a
verdade ou, ainda, que a verdade é irrelevante para a decisão judicial204. Outrossim,
enfatiza-se acertadamente que “verdade e certeza são conceitos absolutos, dificilmente
atingíveis”205.
202 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 35. 203 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 537. 204 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 21. 205 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 15.
63
No entanto, “mesmo que se aceite a impossibilidade de se atingir um
conhecimento absoluto ou uma verdade incontestável dos fatos, não é possível abrir mão da
busca da verdade”206, mormente em razão de que “a busca da verdade é o único critério
aceitável como premissa para uma decisão justa”207.
E para que se tenha um processo justo, com o alcance da verdade necessária à
conclusão justa, imprescindível que não ocorra qualquer transgressão à integridade humana
ou às garantias fundamentais do indivíduo, não se admitindo uma verdade real auferida de
qualquer maneira, a teor da afirmação perfilada:
O processo justo, pois, não se compadece com violação alguma de garantia fundamental do indivíduo – devendo atentar-se para que as garantias fundamentais têm por referencial a dignidade humana, não o patrimônio de alguns. A verdade necessária à conclusão justa do processo é a que se pode atingir sem arranhaduras na integridade humana do cidadão, não uma verdade real arrancada a qualquer preço208. (grifo nosso)
Nessa esteira, “a obtenção da ‘verdade plena’ configura, pois, um mito que não
se sustenta diante da realidade imposta pela obediência aos métodos de acertamento
regrados por um Estado de Direito”209, obediência esta não respeitada pela verdade real:
[...] A verdade a que aspira o modelo substancialista do direito penal é a chamada verdade substancial ou material, quer dizer, uma verdade absoluta e onicompreensiva em relação às pessoas investigadas, carente de limites e de confins legais, alcançável por qualquer meio, para além das rígidas regras procedimentais. É evidente que esta pretendida “verdade substancial”, ao ser perseguida fora de regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, denegera em juízo de valor, amplamente arbitrário de fato, assim como o cognitivismo ético sobre o qual se baseia o substancialismo penal resulta inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do processo penal210. (grifo nosso)
206 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 24. 207 Ob. Cit., p. 25. 208 BAPTISTA, Francisco das Neves. O mito da verdade real na dogmática do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 186. 209 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 114. 210 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 519, em itálico no original.
64
Exatamente ao inverso, tem-se que a verdade formal ou processual “não é
obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto pessoal; está condicionada em si
mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa”211.
Não bastasse isso, veja-se, com o respaldo de DEZEM, que o conceito de
verdade real vem sendo relativizado, haja vista a impossibilidade de alcance à verdade
absoluta:
[...] o conceito da verdade real tem sido cada vez mais relativizado, na medida em que é reconhecível a impossibilidade de se atingir a verdade absoluta, ou seja, é impossível atingir com grau de certeza o que efetivamente tenha ocorrido, daí porque se fala, modernamente em verdade possível
212. [...]
Em lapidar conclusão bastante citada pela doutrina, DINAMARCO defende que o
máximo que se pode obter no processo é um grau muito elevado de probabilidade, pois
jamais se tem segurança de atingir a verdade e jamais se consegue a certeza, tendo em
vista serem dois conceitos absolutos. Ademais, salienta o mesmo autor que o juiz deve
renunciar à certeza no processo de conhecimento, de modo que a obsessão pela certeza
constitui fator de injustiça:
[...] A verdade e a certeza são dois conceitos absolutos e, por isso, jamais se tem a segurança de atingir a primeira e jamais se consegue a segunda, em qualquer processo (a segurança jurídica, como resultado do processo, não se confunde com a suposta certeza, ou segurança, com base na qual o juiz proferiria os seus julgamentos). O máximo que se pode obter é um grau muito elevado de probabilidade, seja quanto ao conteúdo das normas, seja quanto aos fatos, seja quanto à subsunção destes nas categorias adequadas. No processo de conhecimento, ao julgar, o juiz há de contentar-se com a probabilidade, renunciando à certeza, porque o contrário inviabilizaria os julgamentos. A obsessão pela certeza constitui fator de injustiça [...]213.
Nesse viés, assevera-se que a verdade perseguida no processo penal é formal,
assim como no processo civil, mas nem por isso seria menos verdade:
Desenganadamente, a verdade que se persegue no processo penal, como no civil, é a verdade ética, ou verdade suficiente, pragmaticamente
211 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 48. 212 DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, provas típicas e atípicas (atualizado de acordo com as Leis 11.689/80, 11.690/08 e 11.719/08). Campinas: Millennium Editora, 2008, p. 93, em itálico no original. 213 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 390, em itálico e negrito no original.
65
construída mediante argumentação, para pôr termo a uma contenda, a uma tensão oriunda da proposta punitiva do Estado, visante a atingir o imputado, sempre, em sua dignidade (com a desonra da reprovação pública) e, por vezes, em sua liberdade de locomoção. O deslinde desse conflito deve dar-se de tal forma que o povo, e sobretudo a comunidade jurídica, aceite a solução como satisfatória, ou, no mínimo, consiga compreendê-la, conquanto dela discorde, em razão dos argumentos de sua fundamentação. Essa verdade, força é admitir, é formal, vale dizer, aceitável somente porque atingida com a observância de raciocínios gnoseologicamente válidos214. [...] (grifo nosso)
Ainda no que concerne à comparação entre verdade real e formal, colhe-se
opinião no sentido de que, se o juiz só pode buscar a verdade real pelas provas carreadas
“em seu mundo”, qual seja, o processo, a verdade revelada nos autos seria igualmente
formal, in verbis:
É certo que ao magistrado não cabe apenas julgar, mas julgar bem, apresentando uma decisão a mais próxima do justo, com isso se requerendo um bom embasamento jurídico e lastro probatório, todavia essa certeza há de ser adquirida nos limites da prova trazida nos autos, pois esse é seu mundo. Como encontrar uma “verdade real” que não seja aquela revelada pelos autos e, pois, igualmente “formal”? Vê-se, portanto, a corroborar as idéias esposadas no segundo capítulo do trabalho, que as expressões verdade formal e verdade real carregam inerente imprecisão215. [...] (grifo nosso)
Diante disso, a verdade apurada no processo não passa de uma verdade
processual ou uma falsa verdade real:
[...] É certo, ademais, que, mesmo na justiça penal, a procura e o encontro da verdade real se fazem com as naturais reservas oriundas da limitação e falibilidade humanas, e, por isso, melhor seria falar de “verdade processual”, ou “verdade forense”, até porque, por mais que o Juiz procure fazer a reconstrução histórica do fato objeto do processo, muitas e muitas vezes o material de que ele se vale (ah! as testemunhas...) poderá conduzi-lo a uma “falsa verdade real” [...]216.
No sentido de que a verdade buscada no processo é processual e não real,
colaciona-se o presente entendimento:
[...] O conceito de verdade não é ontológico nem absoluto e, no processo penal – penal ou civil que seja –, o juiz só pode buscar a verdade processual, que nada mais é do que o estágio mais próximo possível da
214 BAPTISTA, Francisco das Neves. O mito da verdade real na dogmática do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 213. 215 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 124-125, em itálico no original. 216 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 17.
66
certeza, centrando suas atenções sobre os fatos apontados pelas partes como juridicamente relevantes para, assim, lastrear um conclusão oficial217.
E sacramenta-se: “a verdade é processual. São elementos de prova que se
encontram dentro dos autos que são levados em consideração pelo juiz em sua sentença. A
valoração e a motivação recaem sobre tudo que se apurou nos autos do processo”218. Em
outras palavras, conclui-se que “toda verdade judicial é sempre uma verdade processual. E
não somente pelo fato de ser produzida no curso do processo, mas, sobretudo, por tratar-se
de uma certeza de natureza exclusivamente jurídica”219.
Enfim, passando os olhos sobre o que disse FERRAJOLI e o mosaico de
informações trazidas a lume, pode-se perceber que a verdade real não reflete um conceito
absoluto de verdade, mas sim relativo, sendo somente possível a obtenção da verdade
processual e não real; além disso, viu-se também que a verdade real não encontra guarida
num Estado Democrático de Direito que adotou o sistema acusatório como o nosso, tendo
em vista o meio pelo qual – inquisitivo – é obtida, infringindo, sobretudo, as garantias
fundamentais individuais analisadas no segundo capítulo desta pesquisa, que são utilizadas
de escudo em face de eventual poder irracional praticado pelo Estado.
3.5 A UTILIZAÇÃO DA VERDADE REAL PARA A ATIVIDADE PROBATÓRIA JUDICIAL DE
OFÍCIO
Argüiu-se anteriormente que o Código de Processo Penal brasileiro foi decretado
em 1941 e entrou em vigência a partir de 1º/01/1942 (art. 810).
Não é necessário ser um professor de história para perceber que a situação
atual do Brasil, especialmente política, é muito divergente daquela à época do advento do
Decreto-Lei 3.689/1941 (Código de Processo Penal). Em 1941 estávamos no meio da 2ª
Guerra Mundial (1939-1945) e sofríamos, no “Estado Novo” da “Era Vargas”, contundente
influência autoritária (ditatorial) do regime fascista italiano, que havia inspirado a legislação
217 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 125. 218 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 7. 219 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 291.
67
processual penal daquele país, de 1930220. Utiliza-se como apoio a esta lição a oportuna
averbação a seguir na mesma trilha:
Inspirado na legislação processual penal italiana produzida na década de 1930, em pleno regime fascista, o CPP brasileiro foi elaborado em bases notoriamente autoritárias, por razões óbvias e de origem. E nem poderia ser de outro modo, a julgar pelo paradigma escolhido e justificado, por escrito e expressamente, pelo responsável pelo projeto, Ministro Francisco Campos, conforme se observa em sua Exposição de Motivos
221.
Infere-se da primitiva redação do art. 596 do CPP222 que, nos crimes cuja pena
correspondesse a período igual ou superior a 8 (oito) anos, a sentença absolutória –
pasmem! – não era suficiente para restituir a liberdade ao réu. “Do mesmo modo,
dependendo da pena abstratamente cominada ao fato, uma vez recebida a denúncia, era
decretada, automaticamente, a prisão preventiva do acusado”223.
Tudo porque “o princípio fundamental que norteava o CPP era, como se
percebe, o da presunção de culpabilidade”224 e não o princípio da não-culpabilidade (ou de
inocência) carreado na Constituição Federal de 1988.
Pautando pelas práticas autoritárias e abusivas do Poder Público em detrimento
das liberdades individuais, o Código de Processo Penal concebeu em seu art. 156 poderes
instrutórios ao órgão julgador, cuja assertiva pode ser confirmada com o escólio da doutrina:
Não é necessário lembrar que o artigo 156 do Código de Processo Penal brasileiro, em sua parte final, que contempla o juiz com poderes probatórios, na linha do artigo 209 do mesmo código, é fruto do processo penal do Estado Novo, período autoritário em que a supressão das liberdades contava com apoio do Sistema de Justiça Penal, para fazer valer os interesses da ditadura Vargas”225.
220 “O caso brasileiro é curioso na medida em que trabalha com texto instrumental penal nascido durante um governo de exceção e inspirado em um modelo igualmente autoritário, onde o respeito às conquistas individuais contra o Estado não era exatamente o valor dominante”. [...] CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. 2. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17. 221 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 5. 222 “Art. 596. A apelação da sentença absolutória não impedirá, que o réu seja posto imediatamente em liberdade, salvo nos processos por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a oito anos”. 223 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 5. 224 Ob. Cit., p. 6. 225 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 140.
68
Aduziu-se noutras vezes que o princípio da verdade real encontra guarida
apenas em sistemas inquisitivos, modelo este empregado por governos totalitários e
autoritários em que o interesse público prevalece sobre os direitos individuais, tutelando-se
ao inquisidor (juiz-ator ou juiz-instrutor) a busca da “verdade” a qualquer custo, consoante se
lê a seguir:
O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema inquisitório; com o “interesse público” (cláusula geral que serviu de argumento para as maiores atrocidades); com os sistemas políticos autoritários; com a busca de uma “verdade” a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históricos); e com a figura do juiz ator (inquisidor)226.
Pois bem.
Descortinado que a verdade real e os poderes para a produção de provas pelo
juiz caminham lado a lado, visto serem pressupostos de sistemas inquisitivos, veja-se a
seguir que o princípio da verdade real ainda dormita sob a toga de muitos magistrados
brasileiros.
Iniciando a demonstração, colhe-se julgado do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE
SANTA CATARINA:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. NULIDADE. SENTENÇA TACHADA DE NULA EM RAZÃO DE HAVER PROFERIDO JULGAMENTO COM BASE EM PROVA NÃO SUBMETIDA AO CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIO DA VERDADE REAL. LIVRE CONVENCIMENTO DO JULGADOR. EIVA INEXISTENTE. ""No sistema misto, acusatório e inquisitório, consagrado pelo art. 156 do CPP, ao magistrado incumbe suprir a deficiência do feito, buscar a verdade, esclarecimento, ao invés de se acomodar ante falhas das partes" (TACRIM-SP - AP - Rel. Geraldo Pinheiro - JUTACRIM-SP 33/316)" (Franco, Alberto Silva; Mañas, Carlos Vico; Cintra Júnior, Dyrceu Aguiar Dias; Choukr, Fauzi Hassan; Silva Júnior, José; Betanho, Luiz Carlos; Lauria Filho, Márcio; Podval, Maria Fernanda de Toledo R.; Moraes, Maurício Zanoide de; Podval, Roberto; Stoco, Rui; Feltrin, Sebastião Oscar; Martins, Sérgio Mazina; Bicudo, Tatiana Viggiani, e Ninno, Wilson, Código de processo penal e sua interpretação jurisprudencial, volume 2, 2ª tir., São Paulo, Ed. Revista jurisprudencial, 2001, p. 1706). HOMICÍDIO CULPOSO. ART. 302, DA LEI 9.503/97. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS. ELEMENTOS DE PERSUASÃO HARMÔNICOS, QUE EVIDENCIAM O COMPORTAMENTO IMPRUDENTE DO RÉU. CULPA CARACTERIZADA. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO. INADMISSIBILIDADE. Pratica o delito capitulado no art. 302, do Código de Trânsito Brasileiro, o agente que conduz veículo automotor com desatenção e provoca acidente de que resulta vítima fatal. PERDÃO
226 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 538.
69
JUDICIAL. ALMEJADO RECONHECIMENTO. ARGUMENTO DE QUE A VÍTIMA ERA SUA AMIGA, PARTICULARIDADE QUE EVIDENCIARIA O SOFRIMENTO SUPORTADO EM CONSEQÜÊNCIA DO ÓBITO. AUSÊNCIA DE PROVAS DE QUE O DESFECHO FATAL TENHA ATINGIDO GRAVEMENTE O APELANTE. RECURSO DESPROVIDO. Embora afigure-se viável a concessão do perdão judicial nos crimes de trânsito, sem provas seguras de que o óbito da vítima tenha provocado intenso sofrimento no condutor não há ensejo ao respectivo reconhecimento227. (grifo nosso)
No mesmo diapasão, expõe-se acórdão do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO
GRANDE DO SUL:
EMENTA: APELAÇÃO-CRIME. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. NULIDADE PROCESSUAL. INOCORRÊNCIA. Sobressai no Processo Penal a busca pela verdade real, o que autoriza, na esteira do artigo 209 do CPP, a oitiva de ofício pelo juiz de testemunhas não arroladas na denúncia. PROVA. CONDENAÇÃO MANTIDA. Incontroversa a apreensão de dois veículos na garagem do condomínio do acusado, provenientes de ilícitos penais. Demonstrado, ainda, à saciedade pelo caderno probatório, que o acusado, não só podia, como tinha plena ciência da origem espúria dos veículos que adquiriu. DESCLASSIFICAÇÃO PARA RECEPTAÇÃO CULPOSA. IMPOSSIBILIDADE. Evidenciando o conjunto probatório que o acusado agiu mediante dolo, impossível a desclassificação para a modalidade culposa. AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA. INVIABILIDADE. Uma vez que o próprio acusado admitiu laborar com a compra e venda de veículos, razão pela qual adquiriu os veículos apreendidos, inviável o afastamento da qualificadora. Apelo desprovido, à unanimidade228. (grifo nosso)
E, finalmente, para concretizar o raciocínio, colaciona-se julgado do SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA com o mesmo entendimento:
CRIMINAL. HC. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA NA QUAL NÃO TERIA SIDO INDICADO O ROL DAS TESTEMUNHAS. EXORDIAL QUE ATENDE AOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. JUIZ QUE ORDENOU A INTIMAÇÃO DE TESTEMUNHA OUVIDA NA FASE INQUISITORIAL. DILIGÊNCIA OPORTUNAMENTE DETERMINADA. BUSCA DA VERDADE REAL. BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. RÉU DENUNCIADO EXCLUSIVAMENTE PELA PRÁTICA DO DELITO PREVISTO NA LEI DE TÓXICOS. FUNDAMENTAÇÃO DO DESPACHO QUE RECEBEU A INICIAL. DESNECESSIDADE. ORDEM DENEGADA. I. Hipótese em que o impetrante pugna pelo trancamento da ação penal, ao argumento de inépcia da denúncia, pois o Parquet teria entendido que a produção de provas seria despicienda, eis que a autoria e a materialidade do crime imputado ao paciente teria sido sobejamente comprovada no inquérito policial, não tendo arrolado o rol de testemunhas. II. O Ministério Público poderá deixar de indicar o rol de testemunhas caso entenda não ser necessária a produção de prova testemunhal, sendo que
227 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação criminal nº 2006.045830-2. Disponível em: <http://tjsc6.tj.sc.gov.br/jurisprudencia/VerIntegraAvancada.do>. Acesso em: 5 out. 2008. 228 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70023495831. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 5 out. 2008.
70
tal omissão não pode ser considerado vício apto a ensejar o reconhecimento da inépcia da denúncia. III. Peça acusatória atende aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, na medida em que houve a exposição do fato considerado criminoso, com suas circunstâncias, assim como se deu a devida qualificação do acusado e a classificação do crime. IV. Eventual inépcia da denúncia só pode ser acolhida quando demonstrada inequívoca deficiência a impedir a compreensão da acusação, em flagrante prejuízo à defesa do acusado, ou na ocorrência de qualquer das falhas apontadas no art. 43 do CPP e no art. 39 da Lei 10.409/02 V. É posição desta Corte que o trancamento da ação penal, normalmente, é inviável em sede de writ, pois dependente do exame da matéria fática e probatória. VI. Não há que se falar em nulidade do feito por ter o Julgador determinado a oitiva de testemunha que havia prestado depoimento durante o inquérito, por entender que tal prova seria necessária à busca da verdade real. VII. O art. 40 da Lei 10.409/02 estabelece que ao receber a denúncia, o Juiz designará dia e hora para a realização da audiência de instrução e julgamento, restando claro que a oitiva da testemunha foi determinada no momento oportuno, em face do rito da Lei de Tóxicos. VIII. Paciente denunciado, apenas, pela prática, em tese, do crime de associação para o tráfico de entorpecentes, sendo infundado o argumento de duplo enquadramento legal da conduta a ele atribuída. IX.A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que o despacho de recebimento da denúncia, em face de sua natureza de decisão interlocutória simples, prescinde de fundamentação substancial, mesmo no rito da Lei de Tóxicos, por constituir em um mero juízo de admissibilidade da acusação. X. Ordem denegada229. (grifo nosso)
Vislumbrado no item antecedente que a verdade real é um mito (3.4), viu-se
agora que ela nada mais é senão uma “artimanha engendrada nos meandros da inquisição
para justificar o substancialismo penal e o decisionismo processual (utilitarismo), típicos do
sistema inquisitório”230, mas que vem servindo de “desculpa” (subterfúgio) para muitos
magistrados tomarem a iniciativa probatória nos autos do processo.
Sendo assim, tentar-se-á demonstrar no tópico seguinte que, de acordo com a
atual ordem constitucional, a figura do juiz-instrutor (juiz-ator) não pode mais subsistir no
processo penal brasileiro, na medida em que a Constituição aclama pela figura do juiz
garantidor desde a sua promulgação.
3.6 A INCOGRUÊNCIA DA PRODUÇÃO DE PROVA EX OFFCIO PELO JUIZ
229 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 66600 – MG. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=verdade+real&ref=CPP-41&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=14>. Acesso em: 5 out. 2008. 230 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 537.
71
Alcança-se aqui o ponto culminante da pesquisa. É onde será sustentada a
incompatibilidade de interferência ex officio do juiz na atividade probante de acordo com os
moldes do processo penal vigente no Brasil. Para construir-se tal raciocínio, será crucial se
reportar às informações acostadas anteriormente, as quais já são aptas a levar o leitor à
referida conclusão.
É de bom grado ter-se em mente que, “dentro da matriz constitucional, a parcela
de atuação reservada ao juiz ficará destinada à idéia de garantismo que permeia a atual
concepção do processo penal”231. Partindo da premissa que “não há verdade absoluta,
verdade real, a maneira mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente não
justificará o desrespeito aos valores fundamentais da pessoa humana”232, conforme requer o
sistema acusatório233.
Para cumprir essas exigências, o sistema acusatório compele o julgador a se
manter numa posição eqüidistante e acima das partes, sobretudo em atenção à
incolumidade de sua imparcialidade (veja item 2.6) e à divisão entre as funções de julgar e
acusar (art. 129, I, CF)234.
Logo, não se pode olvidar que a intromissão do magistrado na gestão da prova,
além de provocar interferência numa atividade de prerrogativa apenas da acusação (seja
pública ou privada), implicará certamente na quebra da sua imparcialidade, como bem
lembra PRADO, quando disse que “quem procura ao certo o que pretende encontrar e isso,
em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência
perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador”235.
231 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 70. 232 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 131. 233 “Por outro lado, o modelo acusatório do processo penal também acarreta uma nova forma de atuar do Estado-Juiz em relação ao tema da instrução probatória. Particularmente delicado é este tema, na medida em que exige um redimensionamento da tradicional dicotomia existente no processo quanto as chamadas verdades real e material”. CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 73, em itálico no original. 234 “A imparcialidade do juiz tem perfeita e íntima correlação com o sistema acusatório adotado pela ordem constitucional vigente, pois, exatamente visando retirar o juiz da persecução penal, mantendo-o imparcial, é que a Constituição Federal deu exclusividade da ação penal ao Ministério Público, separando, nitidamente, as funções dos sujeitos processuais”. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 20. 235 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 137.
72
Sobre a mácula da imprescindível garantia constitucional da imparcialidade pelo
juiz ao lançar-se de ofício à produção de prova, o TRIBUNAL DE JUSTIÇA GAÚCHO
manifestou-se acerca do assunto:
EMENTA: CORREIÇÃO PARCIAL. INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS: 1. ROL MINISTERIAL INTEMPESTIVO. INVIABILIDADE. 2. INQUIRIÇÃO DE OFÍCIO. SISTEMA ACUSATÓRIO. VEDAÇÃO DA INICIATIVA JUDICIAL. 1. O rol de testemunhas, na dicção do Art. 41, CPP, deve instruir a denúncia, sendo vedado, pela preclusão apresentação de rol complementar; 2. No sistema acusatório, o réu é tratado como sujeito de direitos, devendo ter suas garantias constitucionais respeitadas, sem qualquer concessão (favor rei). O Estado acusador, através do agente ministerial, manifesta a pretensão ao agente imparcial que é o Estado-juiz. Essa imparcialidade que se apresenta mais nítida agora, com a definição constitucional dos papéis processuais, é a plataforma na construção de uma ciência processual penal democrática, pelo que é vedada a iniciativa judicial na produção de provas (ex officio). Recurso provido236. (grifo nosso)
Em conluio com os argumentos carreados ao acórdão em exame, acredita-se
que só a transgressão à imparcialidade já teria o condão de coibir a iniciativa judicial sem
provocação das partes, por ser um requisito supremo do processo, de maneira que, “quando
diligencia, de ofício, além dessa fronteira do aclaramento das imputações e elementos a ele
já elevados, o julgador expõe-se, sim, ao parcialismo”237.
De qualquer forma, além da imparcialidade, pensa-se que a estrutura dialética
(ver tópico 2.5) formada entre os contendores (partes) no sistema acusatório também sofre
intempéries com tal atividade judicial, como bem lembrado na seguinte lição:
Sempre que se atribuem poderes instrutórios ao juiz, destrói-se a estrutura dialética do processo, o contraditório, funda-se um sistema inquisitório e sepulta-se de vez qualquer esperança de imparcialidade (enquanto terzietà = alheamento). É um imenso prejuízo gerado pelos diversos pré-juízos que o julgador faz238. (grifo nosso)
No sentido de que os poderes instrutórios ao juiz relacionam-se tão-só com o
sistema inquisitório, excluindo por óbvio o contraditório, FERRAJOLI afirma:
[...] Inversamente, chamarei inquisitório todo sistema processual em que o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas,
236 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Correição parcial nº 70020177036. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 6 out. 2008. 237 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 127. 238 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 79.
73
produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa239. [...]
Ora, se a estrutura dialética do processo penal acusatório prevê um duelo entre
as partes sob o pálio do contraditório, mas que deve ser resolvida por um terceiro imparcial
e longe delas, é forçoso reconhecer que a invasão deste sujeito processual em qualquer
atividade de incumbência daqueles, especialmente a probatória, aniquila totalmente a
igualdade processual garantida no processo penal democrático (ler item 2.4).
Não parando por aí, urge ressaltar que a condição de igualdade processual
engloba ainda a defesa ampla (veja tópico 2.5), cuja garantia também sofre mitigação pela
produção de provas ex officio, conforme reza LOPES JR.:
A defesa técnica obriga (e garante) a presença de defensor em todos os atos do processo, principalmente em matéria probatória. Não apenas a comunicação dos atos e oportunidade para que os exerça, senão que a garantia da defesa também impõe a presença efetiva do defensor nos atos que integram a instrução, sendo absolutamente ilegal a prática neo-inquisitória de alguns (prepotentes) juízes que resolvem colher a prova sem a presença do réu e de seu defensor (!). Nem o art. 93, IX, da Constituição, nem o art. 217 do CPP autorizam essa prática absurdamente ilegal240.
Sabe-se que toda pretensão punitiva deve obrigatoriamente ser comprovada em
juízo a fim de que o órgão julgador possa formar o seu livre convencimento motivado, sob
pena de improcedência da ação e, logicamente, a absolvição do denunciado (ação publica)
ou do querelado (ação privada). Se processo é o único instrumento hábil à reconstrução de
um fato ocorrido no tempo, como o próprio destinatário da prova pode produzi-la241?
Esta indagação surge ao passo que se tem conhecimento que a absolvição do
réu é a única opção do juiz quando não emergir no processo provas aptas a condená-lo, em
atenção ao in dubio pro reo e à presunção de não-culpabilidade (ver item 2.3), não podendo
239 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 520, em itálico no original. 240 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 529. 241 “O juiz é o destinatário da prova e, sem dúvida alguma, sujeito de conhecimento. Quando, porém, se dedica a produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas: há crime e o réu e responsável ou isso não é verdade, a prova produzida de ofício visará confirmar um das duas hipóteses e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que pretende comprovar”. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 141.
74
o jus puniendi do Estado se sobrepor ao jus libertatis do réu, tampouco o ônus da prova da
acusação ser invertido em prejuízo do acusado, a teor do julgado colacionado abaixo:
EMENTA: FURTOS. CHAMADA DE SUSPEITOS. EXCULPAÇÃO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. Não obtém vigor probatório para sustenmtar (sic) a condenação a palavra de menores identificados na sentença como co-participes que incriminam o acusado e exculpam-se. Reduz-se o valor informativo quando um deles estava na posse dda (sic) res furtivae (sic). O modelo acusatório vigente no sistema penal pátrio, a partir da Constituição Federal de 1988, consagra o estado de inocência, cabendo à acusação fazer prova extreme de dúvidas da culpabilidade do acusado. Considerando que o órgão ministerial não comprovou que o réu praticou o delito de forma suficiente a ensejar o juízo condenatório, imperativa é a absolvição, como consagração do princípio do in dubio pro reo. RECURSO PROVIDO242. (grifo nosso)
Então, como se não bastasse a presunção de inocência e o in dubio pro reo para
fazer com que o julgador não produza provas, tem-se que o ônus probandi (vide tópico 3.2)
carregado apenas pela acusação corrobora para impedir este incongruente comportamento.
O juiz, ao deparar-se com a fragilidade das provas juntadas aos autos pela acusação, deve
decretar a absolvição do réu e não incorporar a si o ônus probante de responsabilidade da
acusação.
Ou seja: o ônus acusatório da prova não pode recair sobre a pessoa do juiz:
[...] a rígida separação dos papéis entre os atores do processo, que como se viu nos parágrafos 10.7 e 39.3 forma a primeira característica do sistema acusatório, impede que tal ônus possa ser assumido por sujeitos que não da acusação: não pelo imputado, a quem compete o contraposto direito de contestação, e de modo algum pelo juiz, que tem ao invés a função de julgar livremente a credibilidade das verificações e das falsificações exibidas243. [...] (grifo nosso)
Superados estes apontamentos relativos à imparcialidade, ao contraditório, à
ampla defesa, à paridade processual, à presunção de inocência, ao in dubio pro reo e ao
ônus da prova, chega-se à busca da verdade real.
Forte nos argumentos ventilados nos itens 3.4 e 3.5 deste capítulo, nos quais
demonstrou-se que a verdade real não passa de um subterfúgio utilizada por juízes –
inquisidores – para agirem de ofício em detrimento da liberdade individual do acusado,
242 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70022224331. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 11 out. 2008. 243 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 562.
75
ofendendo suas garantias fundamentais, a atividade instrutória de ofício não pode prosperar,
por fim, com fulcro na busca deste famigerada “verdade real”, cujo óbice a jurisprudência
vem, ao poucos, firmando entendimento:
PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. GESTÃO DA PROVA. INQUIRIÇÃO DA OFENDIDA DE OFÍCIO PELO JUIZ. ILEGITIMIDADE. A oficiosidade do juiz na produção de prova, sob amparo do princípio da busca da “verdade real”, é procedimento eminentemente inquisitório, que agride o critério basilar do sistema acusatório: a gestão da prova como encargo específico da acusação e da defesa. Lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Precedentes da Câmara. PROVA ORAL POLICIAL: seu desvalor. PROVA ORAL COLETADA DE SURPRESA: agressão à ampla defesa inadmissível porquanto medieval. PERSONALIDADE: não pode aumentar pena do cidadão por invadir a intimidade – garantia constitucional. REGIME INTEGRAL FECHADO: excluído do sistema por inconstitucional. À unanimidade, deram parcial provimento ao apelo defensivo e negaram acolhida ao recurso ministerial244. (grifo nosso)
Com supedâneo no acórdão em tela, resta evidenciado que a prova produzida
de ofício com espeque – “desculpa” – na busca da verdade macula não só a ampla defesa
como ofende todo o sistema acusatório, sobretudo por se tratar de procedimento
genuinamente inquisitivo, apesar de existirem pensamentos em contrário245.
A verdade no processo penal é construída por intermédio da estrutura dialética
firmada entre as partes numa base isonômica, a qual, por seu turno, é garantida mediante
ferramentas asseguradas constitucionalmente e que se enquadram no processo penal de
cunho acusatório. Se é assim, perde sentido valer-se o magistrado do princípio da verdade
real a fim de arvorar-se do poder de produzir provas, porquanto concretizará a figura do juiz
instrutor, incompatível com as diretrizes esposadas na Lei Maior246.
Para findar o exposto, traz-se a fulminante afirmação:
[...] dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios (como o famigerado art. 156 do CPP) devem ser expurgados do ordenamento ou, ao menos, objeto de leitura restritiva e cautelosa, pois é patente a quebra da igualdade, do contraditório e da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminada está a principal garantia da jurisdição: a
244 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70015801350. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 11 out. 2008. 245 Sobre a admissibilidade da produção de prova de ofício pelo juiz no sistema acusatório ver ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003; e BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 246 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 145.
76
imparcialidade do julgador. O sistema acusatório exige um juiz expectador, e não um juiz ator (típico do modelo inquisitório)247.
Ato seguinte, abre-se espaço para informar que a Lei nº 11.690/2008, que entrou
em vigor no ínterim da elaboração da pesquisa, em nada alterou o que se disse até aqui.
3.7 A AMPLIAÇÃO DE PODERES DO JUIZ COM O ADVENTO DA LEI Nº 11.690/2008 –
PERMANÊNCIA DE PROCEDIMENTO INQUISITIVO NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
BRASILEIRO
A Lei nº 11.690/2008 modificou recentemente o art. 156 do CPP, que passou a
vigorar com a seguinte redação, in verbis:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
O dispositivo, nota-se, continua em contraste com o sistema acusatório,
mantendo intacto o espírito da dicção antecedente no que toca ao âmbito processual,
consagrando, ainda, o princípio inquisitivo da verdade real.
Acontece que agora os poderes instrutórios do juiz foram ampliados
taxativamente para a fase policial, com a inserção do inciso I.
Vejamos a redação anterior revogada:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
Parece, então, que a saga ou obstinação de muitos juízes à procura da verdade
real está longe de terminar. E agora será possível buscá-la até no inquérito policial...
247 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 429.
77
CONCLUSÃO
Diante de tudo o que foi articulado, restou-nos tecer essenciais considerações a
respeito da tendência declinada no teor do trabalho, com o escopo, inclusive, de facilitar a
compreensão da celeuma.
Compreendeu-se que manejar o vigente Código de Processo Penal (Dec.-lei
3.689/41) frente à declinação democrática tornou-se uma tarefa de aguçada hermenêutica
constitucional. Não há como se prescindir da contemporânea Constituição para a aplicação
de um processo penal, acima de tudo, justo. Interpretá-lo somente à luz do Código seria, no
mínimo, um absurdo.
Isso porque, em primeiro lugar, a Constituição Federal de 1988 institucionalizou
o Ministério Público como essencial à função jurisdicional do Estado, tendo, na
oportunidade, atribuído ao parquet a competência para promover privativamente a ação
penal pública. Decretou-se, assim, o fim da confusão entre acusador e julgador,
descentralizando-se o poder estatal a órgãos distintos
Por esse motivo, mas não só por ele, a matriz acusatória foi eleita, razão pela
qual o órgão julgador ficou defeso de interferir em funções de acusação, reservando-se a
exercer apenas aquelas relativas à jurisdição.
Contudo, o grande mecanismo processual não foi remodelado nesse tocante,
mantendo sua redação original na qual o juiz se enfeixa, algumas vezes, com a acusação,
como na liberdade para a produção de provas, por exemplo. A produção de provas, na
verdade, incumbe a quem tem o encargo (ônus) de provar a culpa do réu nos autos: a
acusação (Ministério Público na ação penal pública e o particular na ação de alçada
privada). O juiz, por sua vez, é o destinatário da prova, ou seja, é quem irá valorá-la para
seu íntimo convencimento motivado, não carregando eventual ônus que seja.
Em segundo lugar, a percepção quanto à escolha da sistemática processual
também pôde ser observada pelo status de direitos fundamentais dado a algumas garantias
típicas do molde acusatório, oriundas da opção do constituinte por um Estado Democrático.
Estas normas, verdadeiros princípios que possuem eficácia imediata no ordenamento
jurídico, passaram a servir de escudo ao acusado em face do poder de punir, equilibrando a
relação processual.
78
O processo penal pátrio deve, necessariamente, se nortear por tais ditames. O
atual papel do juiz deve ser repensando, bem como sua afinidade com a produção de
provas. É inadmissível a manutenção do resquício inquisitorial insculpido em 1941 pela
ditadura de Getúlio Vargas correspondente à produção de prova, outorgando ao julgador
poderes para produzir provas no curso do processo e, agora com a Lei 11.690/2008, no
inquérito policial. As opções de governo quando da elaboração do Código e da Constituição
são completamente antagônicas. Saiu-se de arbítrio, do autoritarismo, do totalitarismo, da
ditadura para, meio século depois, chegar-se à aspirada democracia.
Como consectário lógico, o acusado hoje passou a ser tratado no processo
como sujeito de direitos, não ficando a mercê da arbitrariedade do magistrado como visto
outrora, que procurava – há muitos ainda que procuram – a torto e a direito a verdade real,
fazendo com que a segurança pública sobressaísse em detrimento da sua liberdade. Tanto
é que o acusado presume-se inocente até prova em contrário escoimada por sentença
transitada em julgado, a teor do que preceitua o princípio da presunção de não-culpabilidade
(ou de inocência). Aliás, vale dizer, o denunciado só pode ser condenado quando não pairar
sobre a pessoa do julgador dúvida da sua culpabilidade, pois, do contrário, sua absolvição é
a única medida a se impor, exemplo de típica aplicação do princípio do in dubio pro reo.
Além do mais, o dogma responsável pela verdade obtida a qualquer preço foi
desmitificado no transcorrer da pesquisa. Além de se desvendar que o conceito de verdade
real é relativo e não absoluto, o meio pelo qual é obtida fere gravemente os cânones
constitucionais. Assim, só há uma verdade apta a não arranhar os direitos fundamentais do
réu no processo penal hodierno, qual seja, a verdade processual, eis que auferida em
consonância ao devido processo legal e aos seus corolários, especialmente por um juiz
eqüidistante das partes, cuja imparcialidade e a neutralidade judicial manteve-se ou
presumiu-se incólume durante o trâmite processual.
Sob nossa ótica, merece prosperar o entendimento doutrinário e jurisprudencial
segundo o qual o julgador, ao lançar-se à atividade probatória com o fito de instruir o
processo, quebra o sistema processual constitucionalmente adotado. Afinal de contas, a
Carta Federal exige um juiz penal que garanta os direitos fundamentais do acusado e seja
expectador quanto à produção de provas, atividade genuinamente de competência das
partes, especialmente da acusação.
79
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 10. ed. Vol. II. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. AQUINO, José Carlos G. Xavier de. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1997. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. BAPTISTA, Francisco das Neves. O mito da verdade real na dogmática do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 66600 – MG. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=verdade+real&ref=CPP-41&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=14>. Acesso em: 5 out. 2008. _____ . Superior Tribunal de Justiça. HC nº 27684 – AM. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=acusat%F3rio&livre=%F4nus+da+prova&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 11 out. 2008. _____. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 896072 – DF. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=verdade+real&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=20>. Acesso em: 5 out. 2008. _____ . Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação criminal nº 2006.045830-2. Disponível em: <http://tjsc6.tj.sc.gov.br/jurisprudencia/VerIntegraAvancada.do>. Acesso em: 5 out. 2008.
80
_____ . Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70023495831. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 5 out. 2008. _____ . Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70022224331. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 11 out. 2008. _____ . Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Correição parcial nº 70020177036. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 6 out. 2008. _____ . Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70015801350. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 11 out. 2008. CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e constituição: princípios constitucionais do processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. 2. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. _____ . Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, provas típicas e atípicas (atualizado de acordo com as Leis 11.689/80, 11.690/08 e 11.719/08). Campinas: Millennium Editora, 2008. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
81
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo constitucional em marcha: contraditório e ampla defesa em cem julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1985. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO; Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 9. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. MALCHER, José Lisboa da Gama. Manual de processo penal: teoria geral e processo de conhecimento. Vol. I. Rio de janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1980. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2006. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006. NEPOMOCENO, Alessandro. Além da lei: a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
82
OLIVEIRA, Gilberto Callado de. O conceito de acusação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. RIOS, Dermival Ribeiro. Novo dicionário global da língua portuguesa ilustrado. São Paulo: DCL, 2007. SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007. SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. TUCCI, Rogério Lauria. Persecução penal, prisão e liberdade. São Paulo: Saraiva, 1980. _____ . Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal (estudo sistemático). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. VARGAS. José Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
83
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. _____ . Resquícios inquisitórios na Lei nº 9.034/1998. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCrim, São Paulo, n. 46, jan.-fev. 2004.