Post on 20-Jul-2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Artes
Mariana Scarambone Jayanetti
Arte como Religião: pensando a busca religiosa através de separações
Rio de Janeiro
2014
Mariana Scarambone Jayanetti
Arte como Religião: pensando a busca religiosa através de separações
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.
Orientadora: Prof.a Dra. Cristina Adam Salgado Guimarães
Rio de Janeiro
2014
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEH-B
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
_____________________________________________ _____________________
Assinatura Data
J42 Jayanetti, Mariana Scarambone. Arte como religião: pensando a busca religiosa através de
separações / Mariana Scarambone Jayanetti. – 2014. 135 f.: il. Orientadora: Cristina Adam Salgado Guimarães. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Instituto de Artes. 1. Arte e religião – Teses. 2. Arte e sociedade – Teses. 3.
Alteridade – Teses. 4. Corpo como suporte da arte – Teses. I. Salgado, Cristina, 1957-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.
CDU 7:2
Mariana Scarambone Jayanetti
Arte como Religião: pensando a busca religiosa através de separações
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.
Aprovada em 20 de março de 2014.
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Profª. Dra. Cristina Adam Salgado Guimarães (Orientadora)
Instituto de Artes - UERJ
_____________________________________________
Profª. Dra. Tânia Alice Felix
Instituto de Artes - UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Gustavo Lima de Campos
Instituto de Artes - UERJ
Rio de Janeiro
2014
DEDICATÓRIA
Para meus pais, Nêga Scarambone e Don Kulatunga Jayanetti (in memorian), e para
meus irmãos, Nanda, Rosana e Don Rogério.
AGRADECIMENTOS
A Cristina Salgado, pela atenciosa e vital orientação.
Aos Professores Aldo Victorio Filho, Denise Espírito Santo da Silva, Marcelo
Campos, Maria Berbara, Leila Danziger, Malu Fatorelli, Ricardo Basbaum, Roberto
Corrêa dos Santos e Rodrigo Guéron, pelo conhecimento partilhado.
Aos amigos Isabella Pimentel, Ítala Isis, Vinicius Azevedo, Stéphane Dis, Sara
Panamby, Filipe Espindola, Odilon Rosa, Pedro Costa e Rodrigo Borba, pelos
valiosos conselhos.
Às muitas famílias que me acolheram pelo mundo afora, e aos parceiros cuja
presença sempre permanecerá em mim: Sandra, Renato, Nair e Rodrigo, Salvador
Castelo Branco, Alexandra Honoré, Vitor Pinto, Jeyson Hiroyto, David Medalla, Nick
Sawer, Monica de Miranda, Kazuo Iha, Adir Botelho, Lourdes Barreto e Marcos
Varela, Octávio, Alex, Grace, Marli, Tâmara, Oswaldo, Marcone, Pablo e Vivi, Ana,
Nana, Cris, Melissa, Melke e Mathu, Lene, Maria, Juju, Fabi, Eneida, Cia do Foco,
Gabriel e João.
RESUMO
JAYANETTI, Mariana Scarambone. Arte como religião: pensando a busca religiosa através de separações. 2014. 135 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
Arte como Religião é um convite à reflexão sobre religião por meio de trabalhos artísticos. A pesquisa artística, poética e filosófica sobre a relação fronteiriça entre arte e religião teve seu ponto de partida na minha história pessoal e foi desenvolvida relacionando as ideias de separação e alteridade como essenciais para a religião, e as ideias de transgressão e linguagem como essenciais para a observação da arte. O conceito poético foi delimitado pelos trabalhos artísticos Relicários de Santos Vivos e Canonizador AcSeita Coletivo, que partindo da ideia da separação busca isolar a figura dos ‘santos’ como os seres autorizados à busca religiosa e à prática de lidar com o sagrado, passando-se a observar, por meio dos objetos utilizados pelos mesmos, as mudanças de valores sociais. Palavras-chave: Arte e linguagem. Alteridade e relações sociais. Religião e
experiência interior.
ABSTRACT JAYANETTI, Mariana Scarambone. Art as Religion: thinking the search for religion through separations. 2014. 135 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
Art as Religion is an invitation to reflect on religion through artwork. The
artistic, poetic and philosophical research on the border relationship between art and religion had its starting point in my personal history and was developed relating the separation of ideas and diversity as essential to religion, and the transgression of ideas and language as essential to the observation of art. The poetic concept was defined by artwork Reliquary of Saints Alive and Canonizador AcSeita Collective, which on the idea of separation seeking to isolate the figure of the 'saints' as being authorized to the religious quest and the practice of dealing with the sacred, going-to observe, through the objects used by them, changes in social values. Keywords: Art and language. Alterity and social relations. Religion and inner
experience.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Fotografia do passaporte do Monge Anuruddha Bikhu........... 13
Figuras 2 e 3 – AcSeita Coletico. Relicários em Caixas de Fósforo................ 15
Figura 4 – Fotografia da Sede da Sociedade Budista em Santa Teresa
em construção......................................................................... 16
Figura 5 - Fotografia de Don Kulatunga ................................................. 17
Figura 6 – AcSeita Coletivo. Primeiros relicários .................................... 19
Figura 7 - AcSeita Coletivo. Para que Santo rogas................................. 19
Figura 8 - Instalação Canonizador AcSeita Coletivo. XI Festival de
Apartamentos de Campinas.................................................... 20
Figuras 9 e 10 - Instalação Canonizador AcSeita Coletivo. Evento de Arte e
Moda ManiKuss ..................................................................... 21
Figura 11 - AcSeita Coletivo. Canonização de Santa Mariana
Scarambone ........................................................................... 20
Figura 12 - AcSeita Coletivo. Santos Heréticos ....................................... 24
Figuras 13 e 14- Movimento Cidades Invisíveis. Poesias Urbanas.................. 26
Figura 15 - AcSeita Coletivo. Super Cristo ............................................... 28
Figura 16 - AcSeita Coletivo. Caixa da série Virando Buda ..................... 25
Figuras 17 e 18- Mariana Scarambone. Instalação Canonizador AcSeita
Coletivo montado no CCHO, em versão reduzida ................. 31
Figuras 19 a 22- AcSeita Coletivo. Santos AcSeita Coletivo ............................ 34
Figura 23 - Detalhe do canonizador exposto no CCHO, RJ ..................... 35
Figura 24 - AcSeita Coletivo. Série Artistas (santos) e seus vícios........... 38
Figura 25 - Fotografia da Gruta de Lascaux ............................................. 41
Figura 26 - AcSeita Coletivo. Relicários em Caixas de Fósforo ............... 44
Figuras 27 e 28 - AcSeita Coletivo. Primeira apresentação do Canonizador
AcSeita Coletivo ..................................................................... 47
Figuras 29 e 30 - AcSeita Coletivo. Relicário de Don Kulatunga........................ 48
Figura 31 - AcSeita Coletivo. Relicário de Don Kulatunga ....................... 50
Figuras 32 e 33 - AcSeita Coletivo. Relicários em Caixas de Fósforo ............... 62
Figuras 34 e 35 - AcSeita Coletivo. Relicários em caixas de Fósforo ................ 63
Figuras 36 a 38 - Mariana Scarambone. Totens de Luz. 2013 – em processo 65
Figuras 39 a 41 - Mariana Scarambone. Light Box………………....................... 71
Figuras 42 e 43 - Mariana Scarambone. Light Mail. .......................................... 72
Figura 44 - Mariana Scarambone. Instalação ‘Light Mail’. ‘Translatino
Highway’ ………….................................................................. 72
Figura 45 - Mariana Scarambone. Oficina de serigrafia e instrumentos
musicais feitos com objetos reciclados .................................. 73
Figura 46 - Mariana Scarambone. Performance com Casulos de
Objetos Tocantes no Parque das Ruínas. ............................. 73
Figura 47 - Mariana Scarambone. Detalhe de um ‘Objeto tocante’ ......... 74
Figura 48 - Malu Fatorelli. Superfície limite............................................... 75
Figura 49 - Gian Shimada. Cordel Cultural .............................................. 77
Figura 50 - Gian Shimada. Mapa das Arte. Intervenção urbana. 2013 .... 78
Figura 51 - Gian Shimada. Mapa das Arte. RJ. 2013 ............................... 78
Figura 52 - AcSeita Coletivo. Detalhe da instalação Canonizador
AcSeita Coletivo ..................................................................... 80
Figura 53 - AcSeita Coletivo. Instalação Canonizador AcSeita Coletivo .. 80
Figuras 54 a 56 - AcSeita Coletivo. Santa Marcela Mara ................................. 83
Figura 57 - AcSeita Coletivo. Santa Aline Oliveira tomando o primeiro
gole enquanto Santa .............................................................. 86
Figuras 58 e 59 - AcSeita Coletivo. Santa Ana Rosa tomando o primeiro gole
enquanto Santa ...................................................................... 86
Figura 60 - AcSeita Coletivo. Canonização de Solange tô Aberta! .......... 95
Figura 61 - AcSeita Coletivo. Detalhe da instalação Santa Trindade ....... 79
Figuras 62 e 63 - Ron Athey. St. Sebastien/50. ................................................ 99
Figura 64 - Sara Panamby e Filipe Espindola. Compassos do Ocaso. .... 102
Figura 65 - Sara Panamby. Consagração / Defesa de mestrado ............. 102
Figura 66 - AcSeita Coletivo Santa Trindade ........................................... 104
Figura 67 - David Medalla. London Biennale............................................ 105
Figuras 68 e 69 - Angélica Dass. Humanaes ..................................................... 107
Figuras 70 e 71 - Movimento Cidades Invisíveis Oferenda................................. 110
Figuras 72 e 73 - Movimento Cidades Invisíveis Existimos................................ 112
Figuras 74 e 75 - Movimento Cidades Invisíveis Existimos................................ 113
Figuras 76 e 77 - Movimento Cidades Invisíveis. Ah, se eu fosse uma
borboleta! ............................................................................... 114
Figura 78 - Movimento Cidades Invisíveis. Ah, se eu fosse uma
borboleta! ............................................................................... 115
Figura 79 - AcSeita Coletivo. Canonização da Santa Stéphane Dis ....... 118
Figura 80 - AcSeita Coletivo. Relicário ‘Abra em caso de emergência’ ... 118
Figuras 81 e 82 - Stéphane Dis. Abra em caso de emergência ........................ 120
SUMÁRIO
1 GÊNESIS................................................................................................. 12
1.1 Descontinuidade ................................................................................... 13
1.2 Continuidade ......................................................................................... 14
1.3 Em busca de uma separação ............................................................... 17
1.4 As Tábuas da Lei .................................................................................. 22
2 ARTE COMO RELIGIÃO ........................................................................ 27
2.1 Buscando relacionar a Religião, a Filosofia, a Ciência e a Arte ...... 29
2.2 Pensando religião segundo a perspectiva de Agamben .................. 32
2.3 Pensando religião segundo a perspectiva de Bataille ...................... 37
2.4 Pensando religião segundo a perspectiva de Flusser ...................... 42
2.5 Ser ou não ser Religioso? ou Todo Corpo é Santo?.......................... 44
2.5.1 Vícios e virtudes, autonomia e anomia ................................................... 45
2.6 E a arte com isso .................................................................................. 49
2.6.1 A questão de quem faz as listas ............................................................. 52
2.6.2 Alteridade: reconhecer no Outro a diferença como necessária .............. 54
3 OS RELICÁRIOS E O CANONIZADOR ACSEITA COLETIVO ............ 57
3.1 A santidade como condição para a busca religiosa ......................... 59
3.2 Relicários como lembranças alheias .................................................. 61
3.2.1 Descontextualizando e desconectando através do pensamento de
censo, mapa e museu ............................................................................. 66
3.2.2 A vocação dos relicários em recontextualizar objetos de consumo ....... 68
3.2.3 Obra enquanto dispositivo gerado pela fisicalidade de objetos-
testemunhas ........................................................................................... 69
3.3 O Canonizador AcSeita Coletivo como tentativa de resgatar um
diálogo ................................................................................................... 78
3.3.1 A Performance ‘Sede de Santos’ como geradora de ecossistemas
estéticos .................................................................................................. 84
4 O INEVITÁVEL APOCALIPSE DA ALUCINAÇÃO TEÓRICA .............. 88
4.1 A catalogação de santos vivos, com seus vícios e virtudes ............ 89
4.2 Corpo e voz no espaço, a performance do artista-profeta como a
vida num grau a mais ........................................................................... 91
4.3 Corpos-suporte ..................................................................................... 93
4.3.1 O Corpo-dispositivo e o trabalho de Ron Athey, Filipe Espindola e Sara
Panamby: do sacrificial ao sagrado ........................................................ 97
4.3.2 O coletivo como um corpo social ............................................................ 104
4.3.3 O corpo como casa da alma e a casa como prisão para a alma ............ 115
CONCLUSÃO ......................................................................................... 122
REFERÊNCIAS ...................................................................................... 124
ANEXO A - XI Festival de Apartamentos em Campinas ........................ 127
ANEXO B – ManiKuss ............................................................................ 128
ANEXO C - Pelas Vias da Dúvida ......................................................... 129
ANEXO D - Água Santa (canonizações) ................................................. 130
ANEXO E - Casa 24 ................................................................................ 131
ANEXO F – ANPAP ............................................................................. 132
ANEXO G - Café8bar ............................................................................... 133
ANEXO H - Arte em Água Santa ............................................................ 134
ANEXO I - Movimento Cidades Invisíveis ................................................ 135
12
1 GÊNESIS
Sem nomear, não há registro de compreensão, não há troca de conhecimento.
E faz-se verbo. A herança para Nietzsche é o que recebemos de nossos pais; vale o
que herdamos, seja segurar uma faiança ou beber café numa canequinha, a
verdadeira herança é ser o que se é. O amor ao destino: sendo múltiplo, se é plural,
e somente se na multiplicidade assumimos nossas heranças.
Nos dias de hoje qualquer busca da religiosidade é confundida com os dogmas
criados pelas instituições que se dizem religiosas. O conceito de religião perdeu sua
força por causa de instituições corrompidas que distorcem seu conceito original. O
dilema do místico: explicar algo que ele não sabe explicar – na(s) reforma(s)
qualquer visão que contrariasse a visão hegemônica era considerada herética. Os
místicos experimentam sensações na luta com o indizível, o inenarrável. A
experiência mística é da esfera do sobrenatural, análoga ao sentimento de
intoxicação, euforia, frenesi, que desafia todas as formas de expressão visual,
verbal, corporal ou musical, mas é temporária, e se acaba. Vivemos agora num
mundo de materialidade, onde se proliferam a reificação e a alienação dos
trabalhadores; a secularização do mundo gera novos modos de prover estímulos,
religião e arte.
Para tentar explicar o que me faz propor poeticamente a prática de Arte como
Religião, devo conduzi-los por entre histórias, imagens e experimentações; fatos
cotidianos de desencontros e desafetos; mundos onde constantemente conexões
são interrompidas; observando pelo viés do pensamento de que não existe religião
sem separação1; e da santidade como uma condição para a busca religiosa – a
santidade como forma de separação de valores mundanos, mas sempre lembrando
que tudo é movediço, impermanente, e que coisas que enxergamos neste momento
de um jeito podem ser percebidas de maneiras bem diferentes por outros indivíduos.
A realidade é muitas vezes fantástica.
1 Agamben. ?
13
1.1 Descontinuidade
Meu pai foi o ex-monge budista Theravada Anuruddha Bikhu (fig.1); nascido no
Sri Lanka, veio para o Brasil em 1967 com uma missão: implantar o budismo no
Brasil. Mas ele não permaneceu mais do que 20 anos como monge. Em 1973, um
ano após a inauguração da Sede da Sociedade Budista do Brasil, no bairro de Santa
Teresa, e de ter “largado o manto” para casar, eu nasci. Para a minha mãe, uma
artista plástica filha de imigrantes italianos, a religião budista não durou mais do que
oito anos, e o casamento, mais do que quatro. Cresci em igrejas evangélicas,
passando os domingos inteiros na igreja: de manhã, escola dominical e culto; à
tarde, serviço social e evangelismo em hospitais e comunidades; e à noite, culto de
novo. Isso sem contar as reuniões de estudo bíblico que minha mãe promovia em
casa, durante a semana. Eu só me mantive cristã até os 15 anos de idade, e só fui
experienciar o budismo mais tarde, em 1999, por intermédio do Venerável S. N.
Goenka, na Inglaterra, porém me concentrando mais na prática do que nas teorias.
Figura1- Passaporte do Monge Anuruddha Bikhu
Fonte: Fotografia Digital: Mariana Scarambone. 2011.
Brinco que comecei a fazer arte no berço, por tradição familiar. Meus avós
maternos eram artistas, escultores e engenheiros italianos que vieram para o Brasil
para trabalhar na execução das imagens e esculturas de igrejas e praças. Minha
mãe seguiu pelo mesmo caminho, tendo se formado em teatro e depois artes
visuais. Apesar de ter planejado estudar medicina, acabei me formando em Gravura
14
pela UFRJ em 1997, indo, no mesmo ano, parar em Londres, onde trabalhei
produzindo obras de arte até 2003. Nessa época assumi a posição de gerência de
recursos humanos numa empresa responsável por prover bebidas alcoólicas em
eventos musicais e esportivos no Reino Unido, passando a produzir mais instalações
interativas e performances e menos objetos de arte (produtos). Em 2006, depois de
ter vivido mais de oito anos em Londres, fui parar na Itália, onde morei por cerca de
dois anos. Ao retornar a Londres, em 2008, recebi a notícia de que meu pai, o ex-
monge, andava mal de saúde, precisando de cuidados, mas que se recusava a
receber desconhecidos como ajudantes. Essa notícia me fez retornar ao Brasil, em
outubro daquele ano.
No total, minha estadia no exterior durou cerca de 12 anos.
1.2 Continuidade
Sempre me senti diferente, não entendia por que as pessoas falavam tantas
coisas sem sentido. Não gostava de falar, achava perda de tempo as conversas
fiadas, e, como também era muito tímida, não gostava de ter gente por perto.
Mesmo durante a adolescência, preferia as bibliotecas à companhia de outras
pessoas. Lembro-me do dia em que isso mudou: no final da adolescência, como a
biblioteca do colégio estava fechada, eu me sentei para ler no pátio da escola e fui
abordada por duas colegas que me chamaram a atenção, dizendo que eu mais vivia
no plano das ideias do que na realidade, e que se quisesse realmente entender o
que eu tanto lia, deveria largar os livros. Foi como um “cair da ficha”2 tardio: após ler
tanto sobre a vida, resolvi conhecê-la ao máximo, comecei a sair com vários grupos
diferentes, e eventualmente essa curiosidade pela realidade me levou a emigrar
para a Europa, numa busca das origens.
2 Expressão que faz referência ao fato de muitas vezes pessoas falavam sozinhas por algum tempo antes das fichas caírem e ativarem os telefones públicos antigos; e um dos objeto-afetivo-inútil dos relicários é uma ficha telefônica.
15
Figuras 2 e 3 - Relicários em Caixas de Fósforo.
Papelão, madeira, objetos e resina, 8 x 5 x 2,5cm, 2011. Fonte: Coleção Particular
O que me fez voltar a morar no Brasil foi um resquício de obediência
evangélica (“honra teu pai e tua mãe”) misturado à curiosidade, pois como cresci
sem meu pai por perto, tendo como figuras paternas meu avô e meu tio, retornar
para tomar conta dele me pareceu uma boa oportunidade para conhecê-lo um pouco
melhor. Mas meu pai não gostava muito de falar sobre a sua vida, apenas sobre
budismo e filosofia. Fazê-lo falar de seu passado foi uma missão quase impossível!
Quando retornei ao Brasil, em outubro de 2008, meu pai se encontrava internado em
um asilo para idosos, mas havia fixado residência em um apartamento que comprara
em Água Santa3 em 2006, ano em que foi convidado a sair do centro de meditação
(fig. 4) que ajudou a construir, mas onde voltou a morar logo após separar-se de
minha mãe e lá permaneceu como instrutor de meditação. Encontrei o apartamento
onde ele morava cheio de mofo, seus pertences ainda empacotados e seus armários
desmontados.
3 Apesar do CEP do apartamento/ casa ser na divisa de Piedade e Encantado, o chamo de Água Santa, ou AS, por assim ter sido chamada por meu pai, e também por poesia.
16
Figura 4 - Sede da Sociedade Budista em Santa Teresa em construção
Fonte: Disponível em: <http://www.sociedadebudistadobrasil.org/quem-somos/historia/revistalotus/resumo-historico-da-sbb/>. Acesso em: 10 nov. 2013
Quando meu pai soube que eu havia voltado, exigiu sair do asilo e voltar à sua
casa, o que me levou a limpar e pintar o apartamento, montar seus móveis e
preparar a casa em tempo recorde. Antes que ele retornasse do hospital, joguei fora
muitas sacolas de lixo, com garrafas pet, caixas de papelão vazias, canetas velhas,
sem tinta, objetos enferrujados, etc.; mas separei algumas peças de uso doméstico –
fichas de telefone, esponjas, toalhas, panos, engrenagens – e roupas, que, de tão
obsessivamente remendadas e inúteis, me inspiraram a criar os relicários. Meu pai
nasceu em uma família nobre (Don era um título herdado, seu primeiro nome era
Kulatunga), foi filho de um reitor, formado em engenharia, trabalhou com os irmãos
na empresa de engenharia da família até sofrer um acidente de moto que o fez ficar
um ano de cama e o levou a decidir-se pelo monastério. Em 1967, veio ao Brasil
como monge representante da ONU, onde acabou se aposentando. Se quisesse,
poderia ter usufruído de todos os luxos da modernidade, mas sempre procurou
consumir o mínimo possível, recusando confortos básicos como, por exemplo, ter
lavadora de roupa. Só depois de muita insistência (e alguma chantagem emocional),
aceitou receber em casa uma geladeira e um telefone celular. Com a idade
avançada, a sua prática de desapego tornou-se obsessiva: ele doava as roupas
17
novas que recebia e remendava as antigas exaustivamente. Por ser contra o
desperdício, muitas vezes brigou comigo por jogar fora alimentos estragados.
Além dos cuidados com meu pai, tive a surpresa de também encontrar a minha
mãe com a saúde fragilizada, o que fez com que eu me desdobrasse
constantemente entre as casas dos dois, entre Flamengo e Água Santa. Nesse
período, comecei a operar luz e som para peças de amigos, e a planejar e montar
cenários; o que fez com que meu pai iniciasse sua insistência para que não ficasse
só na prática de arte, mas que voltasse a estudar arte.
Figura 5 - Ultima foto de Don Kulatunga em Água Santa, um mês antes de sua morte. 2011.
Fonte: Coleção Particular
1.3 Em busca de uma separação
No início de 2011, convencida de que meu pai chegaria a um centenário de
vida, tal como o pai dele e seus irmãos, decidi fixar residência no Rio e fui morar
com amigos, na Lapa; e por ter trabalhado recrutando e treinando barmen em
Londres, fui convidada a trabalhar autonomamente nos finais de semana como
barwoman, fazendo coquetéis em uma boate na zona sul do Rio. No dia 16 de
18
março, uma quarta-feira, comecei a assistir às aulas do mestrado da UERJ como
ouvinte oficial, inscrita na pauta com o tema Arte como Religião, pois, devido ao meu
histórico artístico e religioso, pretendia investigar como a arte foi utilizada pela
religião, confrontando símbolos budistas e cristãos. No sábado, dia 20, encontrei
meu pai morto, trancado em sua casa. Continuei assistindo às aulas, ao mesmo
tempo em que comecei a organizar os textos, imagens e objetos deixados por ele.
As minhas mudanças encaixotadas começavam então a se misturar com as dele, e
com outras que há muito tempo estavam guardadas no alto dos armários de minha
mãe.
Saí do Trabalho do bar e comecei a trabalhar em dois cinemas de arte antigos,
projetando filmes, trancada quase 10 horas por dia em uma pequena sala escura
com um grande projetor de luz, durante quase todo primeiro ano. Nesse período,
encontrei-me com muitos amigos dele, cujas palavras carinhosas me despertaram a
ideia de que um ermitão, um asceta, não deixa de ser um santo, um ser que busca
se separar de valores mundanos. Todo esse processo me levou a iniciar a produção
de inúmeros relicários, feitos inicialmente em caixas de fósforos, e a criar
assemblage4 de santos heréticos – imagens que criei com decalques de giz de cera
em papel de seda, feitos em uma matriz antiga de uma xilogravura de 1996, e com
as quais fiz intervenções urbanas na Lapa e no entorno da Casa 24; nos cartazes
colados tinham também a pergunta em estêncil: “PARA QUE SANTO ROGAS?”.
4 Termo de Jean Dubuffet para descrever colagens
19
Figura 6 - Primeiros relicários; e Figura 7- Santos heréticos
Caixas de fósforos, resina e imagens e objetos; e Decalques em cera de matriz de xilo sobre papel
impresso. Fonte: Coleção Particular
As caixas de fósforo que utilizo frequentemente nos meus trabalhos, como
depósito de pequenos objetos afetivos, foram inspiradas nas caixas de fósforo que
encontrei na casa de meu pai, e da lembrança de que meu avô colecionava palitos
de fósforo queimados para transformá-los em objetos de arte.
Em novembro de 2011, após prestar a última entrevista para a seleção do
mestrado, mudei-me da Lapa (bairro carioca conhecido por ser reduto da boêmia)
20
para Água Santa. Em dezembro, montei o Canonizador AcSeita Coletivo, com a
intenção de apresentá-lo na mostra Casa-Relâmpago5. Como não consegui terminá-
lo a tempo, sua primeira exibição pública ocorreu apenas no XI Festival de
Apartamento6 em Campinas, no dia 04 de fevereiro de 2012. Lá, não houve
candidatos à canonização, e apenas uma interação performática foi registrada.
(Anexo A – XI Festival de Apartamentos em Campinas).
Figura 8 - O Canonizador no Festival de performances; Figuras 9 e 10 - Canonizador no evento ManiKuss.
Fonte: Coleção Particular. 2012.
No Evento ManiKuss, (evento multimídia com exposição de arte, moda,
performance e música, que ocorreu em uma casa em Vila Isabel, no Rio de Janeiro,
dia 10 de fevereiro de 2012) juntamente com a instalação do Canonizador AcSeita
Coletivo, desenvolvi a performance Sede de Santo, na qual, como forma de
persuasão para obter o registro das canonizações, oferecia desde argumentos
religiosos e teóricos à ações profanatórias de suborno, oferecia um drinque: o
(primeiro) gole do santo, como recompensa, para quem se deixar registrar sendo
‘canonizando’. Nesse evento, foram feitas 28 canonizações (Anexo B - ManiKuss). A
5 Evento alternativo de Artes,com exposições de fotos, performancessimultãneas, realizado em uma casa em Santa Tereza com exposição de arte, projeções, musica e performances. http://semnomeperformance.blogspot.com.br/p/casa-relampago.html e https://www.facebook.com/pages/Casa-Rel%C3%A2mpago/238210819570401 6 Evento alternativo de Performances. http://festivaldeapartamento.blogspot.com.br/p/sobre-o-festival-de-apartamento.html
21
performance em si não é documentada, é a ação de convencimento do outro (o
expectador) a tomar parte da obra, se deixando fotografar. As fotografias
decorrentes das ações eu penso como ‘Ecossistemas de Santos’ (Comunicação feita
no 22º Encontro Nacional da ANPAP, em Belém do Pará) que criam mapas sociais
que muitas vezes se repetem.
A instalação Canonizador AcSeita Coletivo juntamente com a performance
Sede de Santo também foram apresentados na exposição Pelas Vias da Dúvida,
ocorrida em outubro de 2012, no Centro Cultural Hélio Oiticica, por ocasião do 2º
Encontro de Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Artes do Estado
do Rio de Janeiro, onde foram registradas mais 107 canonizações (Anexo C – Pelas
Vias da Dúvida). Alguns eventos de canonização esporádicos ocorreram em Água
Santa (Anexo D – Canonizações em Água Santa), no espaço cultural Casa 24
(Anexo E – Casa 24) e em Belém ocorreram dois eventos, um no 22º Encontro
Nacional da ANPAP, onde foram registradas 33 canonizações (Anexo F – ANPAP),
e outro no espaço alternativo de artes café8bar, onde foram registradas 14 (Anexo G
– Café8bar).
Os Relicários (Figs. 2, 3 e 6) e a instalação Canonizador AcSeita Coletivo
(Figs. 8,9 e 10) são as obras em que baseio minha pesquisa de mestrado e que
consistem no produto que apresento como trabalho visual, junto à dissertação,
resultado das ações com as quais dialogo, em minhas reflexões teóricas.
Figura 11 - Retrato de Auto Canonização
Fonte: Coleção particular. 2011/12.
22
1.4 As Tábuas da Lei
A minha pesquisa envolve uma parte teórica que envolve e é suscitada pela
produção de um trabalho de arte que investiga e relaciona os conceitos de Arte e
Religião. Busco encontrar, nas fronteiras de conceitos, novos caminhos possíveis
para exercer a religiosidade, tentando relacioná-los aos meus trabalhos. Proponho o
reconhecimento de aspectos religiosos na arte, observando também que, enquanto
linguagem subjetiva, a arte foi um poderoso instrumento (dispositivo) utilizado pelo
Estado, por instituições ‘religiosas’ e pela mídia, para controlar as sociedades.
Essas pesquisas procuram repensar o conceito de religião, ressaltando a
diferença entre a filosofia (ideia) e a instituição (máquina política). Dentro desse
pensamento poético, religião seria a prática de lidar com o sagrado, baseada em
uma concepção dualista que pressupõe a coexistência do profano e do sagrado, da
consciência e da matéria. É na interlocução com essas ideias que surge minha
produção artística.
Ao buscar dissociar religião das instituições que se apropriaram do sentido da
busca religiosa alterando-as para uso de manipulação política, respaldo-me também
no pensamento do sociólogo Massimo Canevacci, que percebe o sagrado como
independente da religião, e que associa religião às instituições. Penso que a
verdadeira religião é a lida com o sagrado – e é muito utilizada pelas instituições,
porém não apenas por elas – portanto discordo que possa ser institucionalizada; e
pensá-la “rígida, repetível” seria negar à dança, à arte, e outras formas de
comunicação o aspecto religioso do fazer.
“O sagrado foge a tudo isto. Não está encapsulado dentro de nenhuma instituição. O sagrado não liga, não mantém junto, não une, como está presente na etimologia da palavra religião. [...] Disciplinar o sagrado é dever de cada religião. [...] O sagrado é um princípio antimetafísico e imanente. O sagrado é espontâneo, móvel, imprevisível, incompreensível; a religião é institucional, rígida, repetível.” (CANEVACCI, 2008, p. 243 - grifo meu)
No capítulo 2, Arte como Religião, desenvolvo um conceito poético partindo da
ideia de separação que é comum tanto ao Santo quanto ao monge, associando o
artista ao profeta que denuncia, proponho não existir religião sem respeito à
alteridade - e procuro delimitar essa ideia com o apoio teórico de outras disciplinas,
para além do campo da arte e da teologia, relacionando-o com conceitos sobre
23
religião dos filósofos Georges Bataille, Giorgio Agamben e Vilém Flusser. Estes
pensadores observam que o verdadeiro sentimento religioso é baseado na
alteridade, no reconhecimento da diferença como parte integrante, e no consequente
respeito às diferenças, o que aponta a necessidade do surgimento de uma nova
religiosidade. Foi na costura do pensamento desses filósofos que construí o
pensamento poético sobre religião que funda a elaboração deste meu trabalho
artístico; configuro-o como dispositivo religioso e relaciono certos aspectos do
fenômeno religioso ao estatuto ontológico da arte. Foi este discurso filosófico que
utilizei para convencer os expectadores, catequizar novos santos; antes de me
utilizar da performance Sede de Santo (performance de convencimento para com o
publico para comprar a imagem de santidade deles com bebida).
O capítulo 3, Relicários e o Canonizador, é dedicado à descrição de como o
processo artístico se modificou, de um ponto de vista inicial bastante politizado para
uma proposição mais poética (e transgressora) de resgate de valores morais, por
meio do questionamento da religiosidade. Se inicialmente fui inspirada por
pensamentos que apontam a utilização da arte como dispositivo para transferência
da divindade para um Estado Soberano, com a investigação filosófica dos conceitos
primários surgiu a consciência da necessidade de buscar uma nova forma de
religiosidade através da arte.
24
Figura 12 - Santos Heréticos.
Fotografia de montagens. Fonte: Coleção Particular. 2011
Nessa perspectiva, as instituições às quais se associa o conceito de religião,
ao negar a alteridade essencial à verdadeira prática religiosa por não admitir
diferenças, gera o esvaziamento e descrédito necessários ao desenvolvimento da
secularização, que transfere então os poderes culturalmente considerados divinos
ao Estado.
Como suportes teóricos para delinear as questões envolvidas na minha
produção artística e teórica, foram inspiradores os textos dos historiadores e críticos
de arte Artur Danto e Merleau-Ponty, que propõem pensar a necessidade de
observar novos aspectos dentro do estatuto da arte, e da neurocientista Maria
Cristina Franco Ferraz, que levanta questões sobre um corpo cinético, que difere do
corpo psicanalítico no processo de despertar consciências, mas acredito seja
importante tentar associá-los para gerar um novo questionamento sobre os sujeitos
modernos não subjetiváveis.
25
Para concluir, no capítulo 4, associando trabalhos artísticos de alguns dos
artistas canonizados a aspectos religiosos, proponho, a partir desse mapeamento
iniciado com os Relicários e o Canonizador, uma possível continuação para a
pesquisa poética através da identificação desses diferentes aspectos religiosos nos
trabalhos desses artistas profetas – aqueles que usam a arte como instrumento de
conscientização. como observo em trabalhos de artistas como Ron Athey, Pedro
Costa (“Solange, tô aberta!”), Filipe Espindola e Sara Panamby, que, ao se utilizarem
do próprio corpo como dispositivos, assumem essa dimensão do religioso com a
arte, atravessam a membrana que separa sagrado e profano, para revelarem o
ethos da sociedade em que se inserem; ou na arte ‘profética’ de Gian Shimada, em
Stéphane Dis e em Ítala Isis, com seu projeto Movimento Cidades Invisíveis7, que
convoca, revela, questiona e cura.
7 No meu entender, Movimento Cidades Invisíveis é uma proposta artística e poética da arte-educadora Ítala Isis, para o desenvolvimento coletivo de pensamentos e de processos artísticos que trabalhem a consciência coletiva em ambientes urbanos. Suas performances provocam o corpo cidade, marcam e são marcadas por ele.
26
Figuras 13 e 14 - Intervenção do Movimento Cidades Invisíveis.
Poesias em Adesivos coladas pela cidade do Rio de Janeiro; colado em ponto de ônibus na Rua
Senador Vergueiro. Fonte: Fotografia digital: Mariana Scarambone. 2012
Buscando dialogar o máximo possível com artistas contemporâneos que
desenvolvem suas pesquisas dentro da proposição poética que proponho como
religiosa, entenda-se a busca de lidar com o sagrado, especialmente falando de
artistas que tive a oportunidade de presenciar e acompanhar; evitando ao máximo
me utilizar referencias meramente textuais, procuro falar através deste local de
troca onde ocorrem as experiências. A Utilização de rituais e de possível
associação com religião podem ser observados em muitos artistas em todos os
tempos, por isso preferi escolher artistas os quais pude observar o acontecimento
do trabalho, sua execução, acompanhar os processos.
27
2 ARTE COMO RELIGIÃO
“as necessidades que a religião satisfez e que agora a filosofia deve satisfazer, não são imutáveis; essas necessidades podem ser enfraquecidas e extirpadas [...], pois são necessidades aprendidas, limitadas no tempo, que repousam em hipóteses contrárias às da ciência. Neste caso, o que deveria servir de transição é muito pelo contrário a arte, a fim de aliviar a consciência sobrecarregada de emoções, pois, essas hipóteses serão muito menos alimentadas pela arte do que pela filosofia metafísica. A partir da arte, pode-se em seguida passar mais facilmente a uma ciência filosófica realmente libertadora.” (Friedrich Nietzsche – Humano, demasiado humano; p. 27.)
Repensar o que vêm a ser religião através da arte é uma forma de investigar a
definição de que religião consiste em um conjunto de sistemas culturais de crenças e
práticas relativas a determinadas comunidades dentro de universos históricos e
culturais específicos. Definir diferentes aspectos religiosos entre diferentes tipos de
praticantes de arte (artista-profeta; artista-sacerdote; corpos sacrificiais, etc) é
poesia. Relaciono religião e filosofia, por se preocuparem de problemas
fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento e valores morais. Rudolf
Otto8, um eminente teólogo protestante alemão e erudito em religiões comparadas,
distingue três modalidades cognitivas de apreensão do sagrado: os apreciadores
(adeptos); os profetas (produtores de religião) e os personificadores, aqueles que
chegam à condição de (filhos da) divindade. Criticando as instituições religiosas que
assumiram os nomes dos personificadores que verdadeiramente praticaram religião,
busco confrontar atitudes institucionais com a filosofia das religiões. Essas
instituições religiosas cresceram a partir dos resultados das experiências interiores
de seus personificadores, que vivenciaram e perceberam a obscuridade de seus
tempos, e conseguiram, por meio de uma prática austera e disciplinada, quebrar
preconceitos e restaurar relações de alteridade nas sociedades em que viviam,
estimulando novas condutas sociais que serviram como vínculos sociais e que
permitiram uma maior igualdade social.
8 In: OTTO, Rudolf. O sagrado. Tradução de Prócoro V. Filho. São Bernardo do Campo: Metodista,
1985.
28
Penso ser extremamente importante diferenciar as instituições religiosas dos
pensamentos desses personificadores que lhes dão nome, pois eles eram
justamente os hereges das instituições às quais pertenciam, uma vez que
apontavam o desrespeito às alteridades (não aceitação da diferença como
possibilidade), denunciavam incoerências e exigiam mudanças. Jesus foi
considerado herege pelo Judaísmo por defender os oprimidos e necessitados e
questionar a instituição religiosa a que pertencia; e Sidarta Gautama foi considerado
herege pelo Hinduísmo, por opor-se ao culto hinduísta de muitas divindades, ao
sistema de castas e ao poder da classe sacerdotal hinduísta.
Figura15- Super Cristo e Figura 16 - Caixa da série Virando Buda
Colagem com papelão madeira e resina; Colagem sobre papelão com resina. Fonte: Coleção
Particular. 2012.
Os relicários são produtos da destituição do uso de objetos e imagens, que ao
serem misturadas produzem uma variada gama de significações. Foi inevitável
questionar quais seriam os possíveis níveis de santidade dos possuidores destes
objetos, e começaram a surgir imagens de pessoas e santos em algumas das
caixas, gerando séries de trabalhos paralelos.
29
2.1 Buscando relacionar a Religião, a Filosofia, a Ciência e a Arte
‘Magia significa, precisamente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos sabiam, a felicidade à maneira do homem é sempre hybris, é sempre prepotência e excesso’ (AGAMBEN, 2009, p. 23)
A dissertação Arte como Religião é uma proposição poética que visa a resgatar
a importância da verdadeira prática religiosa por meio do questionamento de
conceitos, se apropriando e incorporando parte teóricas à pratica artística; a teoria
foi o fomento de um processo artístico, que teve que ser limitado para caber na
dissertação; pensando a religião como instrumento de coesão social que deveria ser
pleno de respeito à alteridade - entendendo alteridade como a aceitação da
diferença do outro (no outro) - e pensando a arte como um potente dispositivo.
Procurei focar nos processos separatórios, pensando na consagração e na
profanação; no fato de que tanto o monge e do santo se separarem de valores
mundanos e na criação de museu de relicários, que gerou um relicário grande que
se tornou um dispositivo em forma de instalação: o Canonizador AcSeita Coletivo,
que por sua vez gerou uma performance da artista, que ao invés de ser uma
apresentação foi um processo minimalista de convencimento para obtenção de um
registro de uma suposta ‘separação’ - que a artista clama ser uma ‘canonização
temporária’ - influenciada pela proposição de Giorgio Agamben de que não há
religião sem separação.
Do questionamento sobre as separações exigidas pelos processos religiosos,
focando inicialmente nos processos cristãos e budistas, escolhi como objeto de
estudo os objetos afetivos Relicários e a instalação Canonizador AcSeita Coletivo,
pois buscam mesclar conceitos de diferentes áreas para pensar o que são as buscas
religiosas, e apontar a necessidade de respeito com processos diferentes. Sendo
inevitável citar a performance Sede de Santos, que foi feita em algumas das
apresentações da instalação Canonizador AcSeita Coletivo e gerou diversos
‘ecossistemas de santos’9.
9 ‘Ecossistemas de Santos’ foi o tema da Comunicação feita no 22º Encontro Nacional da ANPAP, em Belém do Pará.
30
Acredito ser necessário pensarmos nas relações entre diferentes disciplinas
que estudam o conhecimento humano, pois enquanto a ciência e a arte geralmente
focam sua investigação no funcionamento das coisas, a filosofia e a religião
investigam o porquê, observando aspectos distintos da experiência humana, todas
disputando pela autoridade sobre a sapiência do que é a realidade. Se normalmente
a filosofia se utiliza das palavras e a arte se utiliza dos sentidos, principalmente da
visão e audição; a religião, por lidar com experiências interiores com o ‘sagrado’ para
entender o porquê de as sociedades se reunirem ou segregarem grupos, se utiliza
da combinação de filosofia e arte para se expressar. Por lidar com a racionalização,
a ciência convive melhor com a filosofia e a arte racionalizada, apesar de já terem
tido seu desenvolvimento impulsionado por dogmas religiosos, entrando em choque
com a relação paradoxal das religiões a cada vez que as mesmas se renovam, pois
entram em conflito com razões previamente aceitas pela ciência. É também
extremamente importante considerar como pensamos as diferentes formas de
religião; os estudos devem ser multiculturais e multidisciplinares, para que
possibilitem construir diferentes estratégias interpretativas. Acredito que as
concepções religiosas são cruciais, pois provêm da vivência de diferentes
sociedades, importantes atores nas mudanças sociais.
Tanto a pesquisa teórica do mestrado quanto o trabalho visual começaram com
um choque; um atravessamento, uma descontinuidade; uma separação; a
ocorrência de um interdito, a morte do ex-monge, interrompendo o que havia sido
planejado como um diálogo. E surgiram muitas caixas, caixas que foram feitas para
guardar, mas usadas para revelar; primeiro surgiu a série de Relicários em Caixas
de Fósforo e depois relicários em tamanhos variados; relicários feitos com caixas
forradas de imagens, cujos objetos, para serem guardados, demandavam sua
desconstrução e recontextualização. Por não ter coragem de usar (destruindo) todo
o material deixado por meu pai, e tendo coletado elementos diversos, comecei a
questionar o significado de santidade, o que fez surgir outro tipo de caixa: o
‘dispositivo’ Canonizador AcSeita Coletivo (fig), instalação que começou com três
estandartes feitos de toalhas amarelas com protetores de mesa, e um halo com
lâmpadas, se transformou em uma caixa de biombos feitos com cobertores velhos
de meu pai, sacos de lixo e cartazes políticos. A Instalação Canonizador AcSeita
Coletivo que não guarda nem expõe, busca promover questionamentos.
31
Os trabalhos artísticos que desenvolvi durante e para o mestrado foram
inspirados na busca de uma vida de prática religiosa; propondo um questionamento
sobre o que seria religiosidade a partir do ponto de vista da separação. Tal como o
monge budista é uma figura que opta por se separar da vida mundana, da mesma
forma os ‘santos’ são convocados a se separar de práticas e valores mundanos para
poderem atuar no plano ‘sagrado’, e tal semelhança gerou inicialmente dois
trabalhos, os Relicários e o Canonizador AcSeita Coletivo. Outras séries de
trabalhos surgiram concomitantemente: os ecossistemas de Santos Vivos, os
Breviários de Santos (sketchbooks), as moedas de troca (objetos encravados em
resina), os Totens de Luz (caixas esculturas), os Tronos Enterrados (instalações), os
Corações Coroados (serigrafia), e as performances dos Santos Vivos10. (Ver Anexo
H – Arte em AS)
Figuras 17 e 18 Canonizador montado no Centro Cultural Hélio Oiticica, em versão reduzida.
Instalação feita com ripas de madeira, cobertores, toalhas, protetores de mesa, um trono e luzes. Fotografia Digital. Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3.2012>. Acesso em: nov. 2012.
10 A performance Sede de Santos surgiu da necessidade de documentar as apresentações da Instalação , e consistia em variadas tentativas de persuasão de pessoas a posarem enquanto Santas AcSeita Coletivo.
32
2.2 Pensando Religião segundo a perspectiva de Agamben
Encontrei no pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben vários pontos
que se relacionam com os Relicários de Santos Vivos e com o Canonizador AcSeita
Coletivo. Para ele não é possível pensarmos religião sem separação, não só porque
não há religião sem separação, mas pelo fato de que toda separação contém ou
conserva em si um núcleo genuinamente religioso, sendo religião não apenas o que
“une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”
(AGAMBEN. 2007 p.66). O monge, os religiosos que creem no Deus de Israel – que
os convoca a serem santos –, os Relicários de Santos Vivos e o Canonizador
AcSeita Coletivo têm em comum o fato de serem elementos separatórios e de
possuírem uma condição intempestiva característica do contemporâneo, que é dada
numa relação de desconexão e dissociação com o tempo presente; enquanto o
monge e o santo são sujeitos, os relicários e o canonizador são dispositivos 11 que
buscam questionar essa subjetividade do ser separado, que é o ser religioso.
O pensamento que orientou os dispositivos é resultante do desenvolvimento da
tradução do termo teológico Oikonomia – um conceito aristotélico apropriado pelos
patriarcas da igreja como mediação derivada da boa administração pública que se
aplicava desde a ‘encarnação divina no corpo de Cristo’ até a passagem do invisível
para o visível. Foi traduzido como dispositio e associado à definição de Foucault que
relaciona esse dispositivo econômico de mediação aos dispositivos governamentais
de administração e adequação, e muito influenciou a instalação Canonizador
AcSeita Coletivo. Agamben observa que os dispositivos são criados como tentativa
inelutável de sujeição dos indivíduos às diretrizes do poder, porém na
contemporaneidade esses sujeitos não são mais configuráveis, o que tem feito a
máquina política girar no vazio. Penso na instalação Canonizador AcSeita Coletivo
como um dispositivo passível de subjetificação, caso produza questionamentos nos
corpos que interagem com ele; pois, apesar de ser herege por assumir uma
autoridade de reconhecimento, não foge nem contraria o sério mandamento que o
inspira.
11 AGAMBEN. 2009, p.12.
33
Agamben pensa a biopolítica como a luta da vida contra o poder que procura
negar sua potência, um poder que, por meio de um processo de sacralização da
vida comum, priva os homens da magia, negando-lhes o direito à religiosidade. Ao
mesmo tempo em que denuncia o uso da teologia política como tentativa de
secularizar o poder soberano de Deus, transferindo o poder inquestionável, antes
considerado divino, para a figura do Estado, propõe a profanação como operação
política de neutralização que desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso
comum os espaços que ele havia confiscado; a instalação Canonizador AcSeita
Coletivo propõe que a santidade retorne a ser uma busca coletiva. Ao retomar o
pensamento de Walter Benjamin,12 que propôs ser o capitalismo a religião
contemporânea por se tratar de uma organização que estabelece em sua substância
a esfera do consumo como separação radical, sem possibilidade de retorno, um
culto expiatório permanente, que não visa à transformação do mundo, mas sua
destruição, o autor prega a necessidade de que surjam pessoas capazes de
‘profanar o improfanável’, um ato que, ao propor outro uso das coisas, estabeleça
uma forma de relacionamento social que elimine a separação instaurada e que
restitua ao domínio humano a ‘vida’ que o sistema aliena para o plano do sagrado.
Repensar nossas relações com o consumo material, com o consumo do trabalho
alheio e com a(s) comunidade(s) de que fazemos parte ou com que temos de lidar,
tendo em mente que o respeito às diferenças é aceitar que o outro tenha hábitos que
são opostos aos nossos, é resgatar o verdadeiro conceito de religião. A utilização de
materiais descartados foi também uma escolha política, a vontade de questionar
nossa responsabilidade com o lixo que produzimos, dos materiais que inutilizamos.
12 AGAMBEN. Profanações. 2009, p. 70-71.
34
Figuras 19, 20, 21 e 22 - Santos AcSeita Coletivo do Centro Cultural Hélio Oiticica
Fotografia Digital. Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3.2012>. Acesso em: nov. 2012
Observa-se no pensamento de Agamben, no livro Profanações, a proposta da
vida como jogo, e do jogo como espaço de mágica capaz de resgatar a magia;
sendo o sagrado uma conjunção do mito (história, parábola, tipo de narrativa
simbólico-imagético) com o rito (ritual ou ação performática que gera uma memória
corpo-sensorial), o jogo se dá quando apenas metade dessa operação sagrada é
realizada, pois, embora o jogo libere e desvie a humanidade da esfera do sagrado,
ele não busca sua abolição, mas um novo uso que não coincida com o consumo
utilitarista. A profanação do jogo funciona não apenas na esfera religiosa, mas na
esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades consideradas
sérias. O termo utilizado por ele que mais relacionei à minha proposta poética é
proveniente das esferas do direito e da religião: Profanação. Para ele o jogo como
órgão da profanação deixa de funcionar quando se esquece que, apesar de no jogo
se recordar o sagrado, é precisamente o contrário dele o que ali se encontra, mas
que ainda pode funcionar como um meio de passagem do sagrado ao profano via
um uso incongruente do sagrado, pois o jogo cuja vocação seja puramente profana
não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa sua
inversão. Busco com minha pesquisa resgatar o pensamento sobre o que é religião
por meio de um jogo, uma conquista, uma troca.
Agamben define a paródia como imitação de outrem, na qual o elemento
parodiado é sério, mas se apresenta de forma ridícula, cômica, ou grotesca, uma
fala ao contrário, sendo uma das características canônicas da paródia depender de
35
um modelo pré-existente serio a ser transformado em cômico. Busco representar,
com meus trabalhos, coisas difíceis de narrar, por não serem constantes.
Figura 23 - Detalhe do canonizador exposto no Centro Cultural Helio Oiticica
Fotografia Digital. Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3.2012>. Acesso em: nov. 2012.
Penso os Ecossistemas de Santos Vivos – as séries de fotografias resultantes
das performances Sede de Santos na instalação Canonizador AcSeita Coletivo –
como uma paródia ao mandamento “Sedes Santos, porque sou santo” (Levítico 19 e
I Pedro 1), pois me utilizo da fotografia como registro, o que Agamben aponta como
uma exigência de redenção, um lugar de descarte, uma eterna repetição, que possui
o poder de condensar o gesto para o dia do juízo final, pois a ressurreição é das
figuras, não dos corpos. O Canonizador AcSeita Coletivo é neste aspecto
relacionável à escrita de Agamben por parodiar de um mandamento através da
profana tentativa de registrar uma santidade improfanável; fato que se dá por meio
do jogo – um jogo de ação que poderia gerar uma experiência interior, ao gerar um
autoreconhecimento enquanto ‘santo AcSeita Coletivo’, que neste caso consistiria no
simples ato de ao estar sentado na Instalação, sozinho, se autocontemplando se
reconhecer como tal – mas que com a fotografia, o registro obtido pela performance
Sede de Santos - quebra a unidade do ludus da instalação. A intenção da quebra da
unidade do jocus, parodiando o mandamento de ser santo, com a performance Sede
de Santo, foi também questionar a sociedade quanto a seus valores.
36
A escolha de assinar os processos não como indivíduo, mas como ‘AcSeita
Coletivo’ se deu por acreditar que processo artístico como um processo de
subjetivação se dá através de criação coletiva, e pensando através do texto ‘Autor
como gesto’13 onde Agamben ressalta como característica contemporânea dessa
função-autor a de ser um regime particular de apropriação que possibilita a
autenticação de textos, constituindo-os em cânone, ou, pelo contrário, a
possibilidade de certificar [aos textos] seu caráter apócrifo.
AcSeita Coletivo se apropria de ideias e imagens de trabalho de artista/autores
contemporâneos, como uma inevitável amizade forçada, uma relação baseada em
por vezes apenas interesses comuns. No mesmo livro em que pensa nos
dispositivos como forma de subjetivação em falência, Agamben desenvolve o ensaio
O Amigo, onde aponta a origem comum dos nomes amigo e filosofia no termo grego
philos –- uma das três variações do sentimento Amor.
‘os amigos não condividem algo (um nascimento, um lugar, um gosto): eles são com-divididos pela experiência da amizade. A Amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política.’ (AGAMBEN, 2009, p.92)
Citar artistas contemporâneos, que pensam religiosamente ou praticam rituais,
é também uma tentativa de politicamente criar relações de amizade; pensando o fato
de ‘amigo’ ser um termo não predicativo faz do nome amizade não uma propriedade
ou qualidade do sujeito, mas uma utilidade ou algo sobre o prazer da companhia.
Agamben também aponta para a definição de amigo como um outro de si – alter-ego
no latim – não como um outro eu, mas uma diferença que se tolera. Partindo do
pressuposto de que a amizade é condicionada ao querer conviver e condividir,
penso que alteridade seja a necessidade de com-sentir e condividir, independente
de ‘concordar’14, o que exige um respeito ainda maior do que a amizade. Proponho
poeticamente que não se pode praticar religião sem respeito a alteridades.
13 AGAMBEN. 2007, p. 55-65. 14 A palavra latina cordis significa coração, concordar é palavra formada do latim con + cordis, isto é, com coração. Para os antigos romanos, o coração era a sede da coragem.
37
2.3 Pensando religião segundo a perspectiva de Bataille
“O filosofo pode nos falar de tudo o que experimenta. Em princípio, a experiência erótica nos obriga ao silêncio. O mesmo não se dá com uma experiência que lhe é talvez vizinha, a da santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade é exprimível num discurso, que pode ser objeto de um sermão [...] Quero dizer apenas que ambas as experiências têm uma intensidade extrema. Quando falo de santidade, falo da vida que a presença em nós de uma realidade sagrada determina, de uma realidade que pode nos transtornar até o limite.” (BATAILLE, 2013, p. 279)
Reconheci no meu trabalho muitos aspectos do pensamento do teórico George
Bataille que definitivamente dialogam e influenciaram a construção do meu
pensamento poético e o desenvolvimento das obras feitas durante o mestrado.
Partilho da sua observação sobre as dualidades que englobariam as oposições entre
a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o Bem e o Mal –
especialmente do entendimento de que, na dualidade, a existência de aspectos que
diferem reforça as oposições sem as negar ou anular – como forma de expressão
das polaridades humanas. Da sagaz observação de que o sagrado e o profano
jamais se misturam15, pois o sagrado mistura aquilo que o profano opõe, sendo a
fusão de contrários o que define o sagrado como tal, e a oposição ao sagrado o que
define o profano. Enquanto as limitações impostas ao mundo profano para acessar o
sagrado corresponderiam às interdições, as passagens do mundo profano ao mundo
sagrado seriam dadas nos sacrifícios, e nas transgressões – permitidas apenas em
rituais e festas. Busco com meu trabalho explorar as dualidades, pensando o santo
como aquele que se propõem a busca espiritual, independente da religião que
pertença.
Bataille considera que o problema fundamental da religião atual está dado na
fatal negação da festa como solução mediadora, da temporária liberação dos
interditos, da abertura para o sagrado permanecendo no profano. Acredito que o
Canonizador AcSeita Coletivo seja um dispositivo transgressivo justamente por
propor fundir o profano ao sagrado, apesar de ser uma transgressão prescrita, pois o
mandamento bíblico que inspirou essa obra se encontra na Bíblia Católica em um
15 HOLLIER. Dennis. YFS 78, On Bataille. Yale: Yale University, c1990.
38
dos livros das leis (Levitico) do antigo testamento, que tentavam promover respeito à
divindade, à comunidade e à natureza e se repete no novo testamento.
Quanto a observação de Bataille ao diferenciar o homem do animal pela
consciência, acrescentaria que o que diferencia o homem do animal e da divindade
é o nível de consciência; e proponho que a verdadeira busca religiosa parte da
consciência de que nossa humanidade pertence simultaneamente ao divino e ao
animal. Ele aponta que a consciência gerou a necessidade de trabalhar, polarizando
as sociedades humanas em duas dimensões sociais: o mundo do trabalho e o
mundo da festa, sendo o trabalho que liberta o homem da sua esfera animal, mas
que tem como oposição a morte e a sexualidade. Opostamente à Bataille que afirma
que sua pesquisa difere, em sua origem, do trabalho do historiador das religiões, do
etnógrafo ou do sociólogo por ser fundada essencialmente na experiência interior,
penso que a Instalação Canonizador busca para além da experiência interior,
justamente esse lugar de historiador e etnógrafo de hábitos e vícios.
Figura 24 - Série Artistas (santos) e seus vícios
Colagem sobre caixas de fósforo com objetos e resina. 2013. Fonte: Coleção particular.
39
Bataille afirma que da mesma forma, sem experiência interior, não poderíamos
falar nem de erotismo, nem de religião; sendo para ele extremamente importante o
encontro entre erotismo e religião; ressaltando ser bastante raro encontrar quem
tenha tido experiência interior tanto na religião quanto no erotismo, pois ambos os
movimentos são baseados na necessidade igualmente contraditória de uma
experiência interior. A experiência interior se dá quando confrontamos os interditos,
o que gera no ser comunicável êxtase pelo reconhecimento de um ‘não saber’, e
angústia, pois revela aquilo que o homem sabe pelo fato de ser, mas não consegue
comunicar. Acrescentaria que também a embriagues do álcool e o entorpecimento
das drogas também são interditos, e faço paralelo o pensamento dos vícios à leitura
do pensamento que Bataille dá ao erotismo.
A instalação busca resgatar as memórias destes interditos, das proibições; ela
convida a pensarmos justamente nos interditos, no que deveríamos – mas Não
desejamos – nos separar. Penso que a combinação dos ecossistemas de santos
com os relicários de santos vivos busque revelar essa oposição entre santidade e
realização de desejos, que revela e oposição da experiência à obediência da não-
experiência. Quem são nossos ídolos e quais são os seus vícios e virtudes?
Bataille sugere que a comunicação sensível situa-se num entre, estando não
apenas no campo da linguagem, mas também no dos sentidos, produzindo
elementos que deslocam nossa capacidade de apreensão com a quebra dos
raciocínios lógicos condicionados. Destaca que a poesia produz a experiência
interior, por lidar com esse ‘não conhecimento’, o que se assemelha ao pensamento
de Didi-Huberman sobre a imagem enquanto arte16, ou ao processo de
esvaziamento da mente de pensamentos produzido pela experiência da meditação
ou pela dança, diferente do efeito dos alucinógenos, que modificam as sensações
corpóreas organicamente.
O Canonizador AcSeita Coletivo coloca o espectador de volta nesse local de
fronteira que causa vertigem, por se referir a um mandamento divino, que
consideramos humanamente impossível, pois nos desligaria completamente de
16 HUBERMAN. Confronting Images. 2005
40
nossa origem animal (que cede aos desejos). O mandamento bíblico ‘sede santos’ é
em si uma prescrição transgressora, mas é divino, sendo importante a tentativa.
Com o Canonizador AcSeita Coletivo, pretendo repensar a religião a partir do
conceito de santidade (no sentido de busca religiosa, produtora de experiência
interior), essa posição que inicialmente era mandatória mas que hoje é percebida
como proibida e restritiva, resgatando o direito a essa santidade cujo
reconhecimento nos foi negado. E, para gerar tal questionamento, ofereço a
possibilidade da experiência interior de um sacrifício indolor, uma separação do
mundo, permanecendo no mundo.
Acredito que os meus trabalhos desenvolvidos para o mestrado sigam por essa
linha de procurar pensamentos que por vezes assumem posições contraditorias,
permanecendo na perspectiva das dualidades – da racionalidade e irracionalidade,
imanência e transcendência, ser santo ou transgressor – e do questionamento sobre
o verdadeiro conceito de religião, produzido por meio da tentativa de produzir
experiências interiores a posteriori, ao resgatar a importância das verdadeiras
buscas religiosas – as únicas capazes de promover respeito às diferenças. O
conceito poético e artístico que venho desenvolvendo para o mestrado ao pensar
Religião coloca a experiência interior como parte fundamental dessa relação entre
conhecimento, proibição e transgressão prescrita, porque a arte lida com um “não
conhecimento", a arte fala desse outro lugar, da escuridão, onde a religião tem outro
estatuto que não é o institucional, mas o do rigor moral (segundo a filosofia moral de
Bataille), acima do bem e do mal, da região do saber mais do que das ações.
Para Bataille, um aspecto do sagrado é aquilo que estimula o gesto
transgressor, uma recuperação da intimidade entre o homem e o mundo, sujeito e
objeto; observando que a confusão entre o sagrado e a interdição é, em parte,
devido ao acesso ao sagrado ser dado na violência de uma infração ou de um
sacrifício. O sacrifício é um dispositivo de prevenção na luta contra a violência que a
vontade ascética não consegue saciar, um alívio momentâneo, mas indefinidamente
renovável, que impede o desenvolvimento dos germens de violência; para Bataille o
sacrifício destrói laços de subordinação, anulando o sentido de coisa da vítima. É na
transgressão e na violência que o homem potencialmente se revela; Bataille chama
a isso atitude soberana, podendo o homem soberano ser considerado tanto santo
como criminoso. Desse modo, renova-se a possibilidade do excesso: desautorizar
41
uma lei, um saber, suspender uma ordem, abolir um discurso para fazer valer uma
experiência-limite gerada pela profusão das imagens-registro. Entre a busca de um
registro da apresentação do Canonizador AcSeita Coletivo, a vontade de estimular
as pessoas a experimentarem a posteriori a sensação de santidade (representada) e
pensando a santidade como uma vida sacrificada em busca do sagrado, surgiu a
transgressiva ideia da performance Sede de Santos, que busca multiplicar o
questionamento sobre santidade por meio de uma inversão de valores, seduzir o
espectador com um vício ao mesmo tempo em que sua imagem é (re)criada como
ser separado dos vícios/desejos.
Figura 25 - Detalhe da gruta de Lascaux, com bisonte e homem morto com cabeça de pássaro
Fonte: Disponível em: <http://lascaux.fieldmuseum.org>. Acesso em: 10 nov. 2013.
Percebo um reconhecimento da dimensão religiosa da arte na observação
sobre as pinturas rupestres (fig. 25) das Cavernas de Lascaux17, que são para
Bataille o símbolo do momento da diferenciação entre o homem e o animal, em que
se estabelecem com mais clareza espaços de interdição relacionados aos funerais e
à sexualidade. Os objetos relacionados à morte, inclusive o corpo morto, passam a
ser diferentes de todos os demais e relacionados ao sagrado; tudo o mais passa ao
17 BATAILLE, Georges. Lascaux or the birth of art. Lausanne: Skira, 1955.
42
campo do profano, acessível. Esse processo de categorização, que torna objetos
importantes, que faria parte daquilo que Bataille classifica como propriamente
humano, é que me levou a re-utilizar objetos pessoais, de forte apego emocional de
meu pai para a construção do canonizador. A conclusão desse processo seria o
perfeito desenho da separação entre o mundo do trabalho, da medida, dos limites, e
o mundo do sagrado, da desmedida, da morte, da sexualidade, também aquele em
que a arte se inscreve. A sensibilidade do sagrado se baseia em harmonia com a
natureza, diferente daquela do mundo profano, em que homem e animal são
absolutamente diferenciados. Assim, dentro do espaço do sagrado, o divino
compartilha com a animalidade e os animais têm mesmo um caráter mais divino do
que os homens – os deuses mais antigos, em sua maioria, eram animais. Os
cobertores que cobrem as paredes dos biombos do canonizador me remetem as
cabanas construídas com peles de animais; e as imagens de santos coletadas os
registros a serem decifrados por seres com uma consciência superior, no futuro.
2.4 Pensando religião segundo a perspectiva de Flusser
"Chamarei de religiosidade nossa capacidade para captar a dimensão sacra do mundo [...]. Certas pessoas, certas épocas e certas sociedades dispõem de um talento especialmente marcado para a religiosidade. Há pessoas religiosamente surdas, mas não há época nem sociedade inteiramente isenta de religiosidade." (FLUSSER, 2002, p.17).
Tive o prazer de conhecer o pensamento do filósofo judeu e tcheco
naturalizado brasileiro Vilém Flusser pouco antes de terminar de escrever esta
dissertação, sendo inevitável citá-lo, pois ao me apropriar de seu pensamento,
acrescento o toque final ao processo desenvolvido através dos pensamentos dos
filósofos que acabei de expor. Tal como Bataille, para Flusser a observação do
fenômeno religioso só pode se dar pela vivência interna; porém, ele associa a
religiosidade à busca da realidade, sendo o real aquilo no que acreditamos e
religiosidade uma capacidade que torna opaco o mundo porque o questiona,
anulando sua clareza ao produzir a dúvida, a dobra do pensamento. Ele aponta que
repressão da capacidade individual para a religiosidade gera a inversão de valores
morais, e como consequência disso surgem deformações e perversões da
capacidade religiosa na forma de endeusamento do dinheiro e do Estado, além de
43
seitas variadas. O Canonizador busca captar uma dimensão outra que apenas a
dimensão sacra, a tentativa de enxergar pelo avesso.
A busca da santidade exigida na bíblia só é real no momento em que
entendemos que o processo e as tentativas são seus elementos primordiais,
aceitando os erros como parte inevitável da nossa humanidade. Nesse sentido, a
(busca da) santidade é um procedimento que permite que aceitemos as diferenças
sem necessariamente concordar com elas, e a negação desta busca religiosa é o
que permite o enfraquecimento das comunidades.
“A dicotomias que Descartes estabelece entre matéria e pensamento, entre corpo e alma, entre duvidoso e o indubitável é, a meu ver, uma dicotomia nefasta [...]. A dicotomia pensamento-matéria não é, portanto, fruto de uma distinção epistemológica, como parece ser se formos considerar a partir de Descartes, mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual participamos.” (FLUSSER, 2002, p.38-39).
A dualidade para Flusser é um pensamento nefasto, porém difícil de ser
superado; ele alerta que a dicotomia matéria-pensamento tem tornado nossa
civilização tediosa e fútil. Ao retornar ao mito da expulsão do paraíso, que associa à
alienação que é o nosso pensamento – apontando o pensamento como o processo
de compreensão e modificação de corpos, que se utiliza da ciência e da tecnologia
para devorar os corpos; e a filosofia como o movimento oposto do pensamento, que
vira o pensamento contra si e o faz devorar-se a si mesmo – descreve o paraíso
como um estado de não-divisão e não-dúvida, observando o pensamento (dúvida)
como o elemento responsável pela nossa expulsão do paraíso em busca de outro
paraíso. Acredito que a performance Sede de Santo dialogue também com o mito da
expulsão, pois a duvida que gera o riso e quebra as barreiras é o que permite a
entrada no paraíso, no momento que o espectador se torna co-autor, ele se torna
santo, o canonizador deixa de ser mero cenário.
Flusser define o pensamento como um processo linguístico quase saturado,
cuja conversação avançada ameaça mergulhar em conversa fiada, eventualmente
chegando a um estágio de paraíso na terra, indistinguível do inferno; propõe a arte
nova como possibilidade de linguagem pela qual estão sendo criadas novas
categorias de pensamento, portanto nova estrutura da realidade.
44
Figura 26 – Relicários de Santos Vivos
Relicários em Caixas de Fósforo. Papelão, madeira, objetos e resina, 8 x 5 x 2,5cm, 2011. Fonte: Coleção Particular.
Vilém Flusser observa maravilhosamente aspectos ‘religiosos’ em trabalhos
artísticos, descrevendo a transgressiva ‘busca religiosa’ do artista escritor Franz
Kafka, cuja mensagem passa pela religião e a ultrapassa sem a abandoná-la;
chama-o de ‘pontífice’18 por denunciar situações de fronteiras, nacional,
arquitetônica, inclusive a linha que divide os espíritos em intelectuais e meditativos; e
de profeta, por relatar situações iminentes. Penso em muitos dos Santos
fotografados como seres religiosos pelos mesmos motivos.
2.5 Ser ou não ser Religioso? ou Todo Corpo é Santo?
Meu conceito poético de religião se configurou apropriando-se de definições de
filósofos reconhecidos pelas academias, associando-os à parte do trabalho artístico
que produzi durante o período do mestrado, e segue procurando e observando
aspectos religiosos no trabalho de artistas contemporâneos (no sentido de estarem
produzindo formas diferentes de arte, seja ela acadêmica, popular, arte-produto,
etc.). A religião que lida com mitos para verbalizar o ‘indizível’, ao ser ‘explicada’
perde a magia, o encanto, e faz com que o homem moderno se afaste da busca das
origens. Porém há muito tempo já se observa a necessidade de voltarmos
18 Ibidem, p.65.
45
constantemente às origens para podermos reformular questões vitais ao bom
funcionamento das sociedades, pois o ‘sagrado’ é inconstante e paradoxal. E é
nessa busca de compreender as demandas sagradas que consiste o que defino
poeticamente como religião, ressaltando sempre que apesar de ser geralmente ser
praticada em instituições, a verdadeira religião não pode ser institucionalizada.
Acredito ser um erro gravíssimo tanto o excesso de poder outorgado às instituições,
quanto confundi-las com religião; nessa linha, o que os ‘santos AcSeita Coletivo’ são
convocados a fazer é buscar o sagrado, encarando as trevas de seu tempo e
tomando parte nos confrontos; ser ‘santos AcSeita Coletivo’ é proclamar revelações
repetidas e paradoxais, mas sempre promovendo o respeito às diferenças. O fato de
que as religiões apontam padrões de comportamento não pode nem deve impedir
padrões diferentes, ou condenar quem opta pela diferença, pois geralmente é nessa
diferença que reside o ‘sagrado’, e por isso mesmo deve ser evitado, mas nunca
combatido.
Acredito que as verdadeiras buscas religiosas, apesar de conflituosas, por
revelarem excessos praticados, geram uma convivência harmoniosa entre os
homens e o seu entorno, promovendo entendimento e tolerância. Convém observar
que essas buscas geralmente surgem em momentos em que a falta de alteridade se
torna predominante, na forma de questionamento dos valores societais que
culminaram em movimentos capazes de modificar padrões de comportamento, mas
eventualmente foram institucionalizados. Penso que a proposição poética Arte como
Religião não deixa de ser também política, pois, sendo o conceito de arte
intrinsecamente aberto e mutável, designando um campo que investe na sua
originalidade e inovação, como uma linguagem capaz de produzir significados
variáveis, é capaz de estimular novas formas de buscas religiosas que sejam
capazes de resgatar a tolerância e o respeito social.
2.5.1 Vícios e virtudes, autonomia e anomia.
Para a existência de uma sociedade saudável, normas que respeitem as
alteridades, promovendo solidariedade e tolerância, são definidas por instituições
para gerar a coesão social. A anomia social refere-se a um estado em que as
normas que promovem a coesão societal são quebradas, geralmente ocasionadas
46
por uma desestabilização das partes que compõem a estrutura social. Esta é
determinada, em boa parte, pelas metas a serem atingidas pelos indivíduos (ser rico,
famoso, cultuar um Deus, etc.) e pelas regras para atingi-las (leis, costumes,
dogmas, etc.). A anomia surge quando as normas de conduta estabelecidas como
regras pela sociedade para se alcançar metas sociais não estão devidamente
integradas nessas sociedades, e os indivíduos se sentem incitados a violá-las para
poder alcançar as metas; quando mais importância é dada ao alcance das metas do
que às normas sociais ou regras para se atingirem-nas. E é nesse momento que as
verdadeiras buscas religiosas devem ser estimuladas para que as normas possam
ser revistas.
Ao me utilizar de um mandamento para contestar atitudes e a autoridade da
igreja, não vou ao grau zero, mas exerço o lugar do vazio. O mandamento “Sede
Santos” da Bíblia é rigoroso com as necessidades de alteridade entre os humanos e
a natureza. A releitura do dever de separação para o religioso, por meio da figura do
santo, coloca a mágica de volta para aquele lugar imantado, traz de volta o conteúdo
simbólico mágico, faz o espectador exercer seu lugar de transgressão: o poder de
duvidar, questionar. Você vai ali acreditar um pouquinho que é santo? Ou quer
apenas trair um pouco a religião, brincando com seus conteúdos? Para tomar parte
da ação, o espectador precisa resgatar essa vontade de estar nesse lugar mágico;
exercitar seu lugar de Deus e Artista. No Canonizador AcSeita Coletivo, o coeficiente
de magia é ironizado pelo vazio da cadeira dentro do biombo – o objeto trono
permanece como resto, é um objeto-em-lugar que demanda uma ação, a atitude
participativa do espectador, se posicionando na cadeira-trono para ser registrado
como Santo AcSeita Coletivo.
47
Figuras 27 e 28 - Primeira apresentação do Canonizador. IX Festival de apartamento, Campinas.
Fotografia Digital. Fonte: Coleção Particular. 2012.
O que há de mais religioso na proposta poética Arte como Religião é investigar
os mecanismos de separação e as interdições, propondo o questionamento de
dogmas e das instituições O ser religioso possui a consciência da impermanência da
matéria, no qual estamos carne e possuímos alma, enquanto a coisa19 é alma, pois
não a possui. A Instalação Canonizador AcSeita Coletivo busca esse lugar de
separação exigido pela religião; “Sede Santos” não é apenas um mandamento
cristão, mas um princípio básico religioso, pois para se ter uma experiência interior é
necessária uma prática de separação. O Canonizador AcSeita Coletivo pretende
produzir subjetividades ao questionar o que seria a separação religiosa no contexto
contemporâneo, funcionando como um dispositivo que congela um momento de
separação ao mesmo tempo em que desloca o objeto de fetiche para o próprio
19 A coisa enquanto objeto criado pelo homem é inspirado no pensamento de Martin Heidegger.
48
espectador. A instalação original não teve nada de valor, nem de uso, nem
puramente estético. Foi feita de objetos que deveriam ter sido descartados, mas que
por uma questão de afeto foram mantidos. São objetos velhos guardados por meu
pai, um ex-monge budista que reclamava da falta de consciência em respeito à
materialidade das coisas; ele reclamava da falta de comprometimento do homem
com os elementos produzidos por eles mesmos, e sua relação com a natureza.
Figuras 29 e 30 - Relicário feito com imagens, documentos e recortes guardados por Don
Kulatunga.
Colagem sobre caixa de cartolina com resina. 2011. Fonte: Coleção Particular.
49
2.6 E a arte com isso?
“A imagem adquire um caráter de sagrado por sua função de ligar o profano, sociedades e pessoas, transformando-se em linguagem comum, como expressão arquetípica [...]. A função essencial que pode ser atribuída à imagem, em nossos dias, é a que conduz ao sagrado” (MAFFESOLI, 1995, p. 107)
Pensando sobre o estatuto da arte, parto do conceito do historiador Arthur
Danto20 que prega o fim da arte como meramente representacional, para propor uma
percepção religiosa, comparando o artista contemporâneo a seres religiosos (santos,
profetas, hereges, etc.) que, utilizando-se de dispositivos artísticos, perpassam a
membrana que separa sagrado e profano, para reavaliar os valores da sociedade
em que se inserem. A instalação Canonizador AcSeita Coletivo busca criar um lugar
inventado, ao gerar uma paisagem que demanda um protagonista; um convite a uma
experiência interior que gera a dúvida, um questionar que propõe que nos
coloquemos no lugar questionado; um jogo que denuncia trocas de valores morais.
A questão das imagens é complexa, tendo na arte e na mídia conceitos e
modos de relação e recepção diferentes, mas é certo que não vivemos sem
imagens, nem poderíamos nos relacionar sem elas. Para o sociólogo Michel
Maffesoli, as imagens são um elemento central na convivência dos indivíduos, pois o
que faz as pessoas estarem em grupo é o prazer de estarem juntas, vivendo o
presente coletivamente em busca de um sentido estético, pois, de modo geral, a
estética da mensagem tende a substituir seu conteúdo. Na mensagem estetizada, o
que convence é a forma; a arte na propaganda sofre uma a distorção da função
estética em benefício de uma função de comunicação manipulativa.
As imagens dentro da cultura contemporânea podem tanto revelar quanto
dissimular. De tão preciosas que são, por vezes as formas de poder vigente tentam
criminalizar sua ação como se elas tivessem vida própria, o que se conecta ao
pensamento da idolatria.
20 DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
50
Figura 31- Relicário feito com imagens e objetos guardados por Don Kulatunga,.
Colagem sobre papelão com objetos e resina. 2011. Fonte: Coleção Particular.
A mídia, ao criar ícones e promover sua circulação, em forma de bens ou
mensagens, propõe uma re-significação, transformando os ícones em artefatos que
passam a integrar a dimensão sócio-material da sociedade pela esfera do consumo.
“Muitos artesãos sabem que o objeto vai ser utilizado de modo diferente do original, mas, como precisam vender, adaptam a concepção ou o aspecto do objeto artesanal para que seja usado mais facilmente nesta nova função, que talvez evoque seu sentido anterior por causa da iconografia, ainda que seus fins pragmáticos e simbólicos predominantes participem de outro sistema sociocultural”. (CANCLINI, 2004, p. 42)
Viver uma experiência (interior) artística é entender, pensar diferente e
profetizar. É sentir a vibração do mundo fazendo seu corpo vibrar harmoniosamente
e, se necessário, vibrar diferente. É fazer o movimento continuar após você parar.
Escutar as respirações/aspirações do mundo e enlouquecer serenamente. Ficar de
pé em silêncio no palco da vida. Passar a sentir como seu corpo sente. O artista que
promovia tal sensação esteticamente, pela majestosa técnica, caiu em desuso.
Vivemos um momento em que o conteúdo mágico volta a aparecer com força
na arte contemporânea; são exposições repletas de pensamentos mágicos e
51
alteridade. A arte produz essa magia, fazer arte ritualmente proporciona ao
espectador transcender em busca de sua própria experiência interior.
“Há um é que figura principalmente nas afirmações concernentes às obras de arte que não é o é da identidade ou da predicação; nem é o é da existência, da identificação ou algum é especial inventado para servir a um fim filosófico. É o sentido de é, de acordo com o qual uma criança, a quem é mostrado um círculo e um triângulo e perguntado qual é ela e qual é sua irmã, apontará para o triângulo dizendo: “esse sou eu” [...] é uma condição necessária para algo ser uma obra de arte que alguma parte ou propriedade dele seja designada pelo sujeito de uma sentença que emprega esse é especial. Esse é um é, incidentalmente, que possui parentes próximos nos pronunciamentos marginais e míticos” (DANTO, Arthur. Artefilosofia, Ouro Preto, n.1, p.13-25, jul. 2006. Grifos meus)
Penso esse é citado por Danto como afirmações possibilitadas pela arte e
como esse elemento mágico, que, ao ser descontextualizado e ressignificado, perde
seu ‘aspecto religioso’ e passa a objeto de arte. Tendo seu valor se transformado em
valor de exposição, passa a disputar também um lugar de objeto geográfico. Em um
mundo globalizado onde constantemente artefatos são deslocados e
descontextualizados; em que questões de lugar, nação e comunidade têm sido
reguladas politicamente sem se considerar o aspecto religioso das comunidades;
inteiros procedimentos culturais e religiosos têm sido destruídos; a religião
(sentimento de busca) tem sido desacreditada e renegada, gerando um
individualismo exacerbado, a arte surge como um poderoso instrumento capaz de
promover questionamentos e modificar condutas, sendo essa capacidade de
modificar condutas aquela a que me refiro com relação à dimensão religiosa do meu
trabalho artístico.
Um dos aspectos messiânicos dos meus trabalhos consiste na necessidade de
convencimento da participação dos Outros. Nunca trabalhei com o tema religião por
respeito aos pensamentos religiosos que originaram as instituições religiosas cristã e
budista, mas, apesar de discordar de certos dogmas criados por elas, começar a
trabalhar com o tema é entender a necessidade de resgatar pensamentos originais.
A religião necessita da diferença e consequentemente precisa respeitá-la. Nesse
sentido, defendo que o Canonizador AcSeita Coletivo é uma obra religiosa, no
sentido que desenvolvo poeticamente: por necessitar do outro para que a obra se
realize. Nesse caso, para uma experiência de sacrifício, isto é, um tornar-se sacro,
colocar-se no plano do divino, uma (momentânea) saída do plano mundano.
52
Como a produção de uma memória nacional vem do reflexo de seus sujeitos,
os objetos folclóricos – enquanto artefatos culturais de uma classe social específica
de uma nação – deixam de ser mera “arte pela arte” e demandam a posição de lugar
geográfico para servir à construção dos nacionalismos, sendo exigida de suas
comunidades a adequação ao modelo de minorias ao estereótipo pré-definido e
rígido, que deve ser repetido e transformado em espetacularização de seus hábitos
culturais (inclusive suas religiões se transformam em espetáculos), que servem para
o Estado cultivar o turismo como modelo secular das peregrinações religiosas.
Alterando o espaço, a sociedade altera a si mesma, fazendo com que formas do
passado percam sua função original, passando a ter outra função no espaço; a que
o sociólogo Milton Santos denominou rugosidade: o espaço como acúmulo desigual
de tempos, que seria o que
“fica do passado como forma, espaço construído, paisagem; o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. [Elas] se apresentam como formas isoladas ou como arranjos.” (SANTOS, 2002, p.140)
Milton Santos pensa o espaço como resultado de diversas influências
mundiais, regionais e locais ao mesmo tempo, considerando-o como um todo,
indivisível como a sociedade que o ocupa; também observa os objetos criados para
esses espaços como formas espaciais cujas ações geram os conteúdos sociais.
Questiona a possibilidade de um objeto de arte ser posicionado como objeto
geográfico. Para ele, o espaço geográfico contém o espaço social, e, assim, as
ações e os objetos são indissociáveis e se pensados separadamente perdem seu
sentido, pois os objetos só têm sentido a partir da ação humana que os gera e os
utiliza. Repensar religião é entender a necessidade de convivência de diferenças.
2.6.1 A questão de quem faz as listas
Os nomes inscrevem a pessoa no simbólico, é o nome que dá sentido. Ao
mesmo tempo em que se sujeita ao simbólico, o sujeito é determinado, mas é
também determinante enquanto possibilidade de reconstrução. A criança para deixar
de ser “coisa” precisa ser nomeada e depende de um ato performativo de seus pais
ou de alguém responsável por ela. Os atos performativos de linguagem possuem
53
força de lei, como testamentos, casamentos, certidões em geral. Por exemplo,
alguém só é considerado legalmente morto se houver uma certidão de óbito; em
todos os rituais de passagem, há um documento escrito que autentica aquele
momento; há a questão do narrador como uma forma utilizada para a construção de
um ideário de imaginários, como uma figura que mascara a questão da autoria. Um
efeito que se nota na contemporaneidade é a superabundância de informações e
carência de atenção. A autoridade individual se torna exacerbada, perdendo-se
alteridade nos relacionamentos. Sócrates se negou a escrever por acreditar na
dialética, e que a escrita fecha o conhecimento; propôs uma investigação
permanente com ênfase maior em investigar o que não se sabe, do que transmitir o
que se julga saber.
Questões têm surgido no processo de elaboração do meu trabalho de artista,
da leitura de pensadores diferentes, como a crítica do historiador e crítico de arte Hal
Foster21 sobre a retirada de objetos que têm tanta aderência ao pensamento mágico,
do seu local natural, expondo-os fora do rito e tornando o nativo um objeto. A
colocação no interior de uma galeria de arte de elementos que são mágicos em seus
locais de origem lhes tiraria sua força simbólica e minaria sentimentos de fé? Essa
capacidade de ressignificação do objeto artístico não seria um elemento/aspecto
religioso da arte? Esse procedimento da arte contemporânea não seria uma
descontextualização, pelo deslocamento desses objetos tão aderentes ao
pensamento mágico de seu lugar de origem? Quando crio um trabalho que lida com
o elemento religioso em outro contexto, propondo outra leitura desse conceito,
modifico seu significado? Não seria nessa rugosidade causada pelas releituras que
residiria o elemento/aspecto religioso, ao qual o antropólogo Massimo Canevacci
chama de sagrado? Seria esse procedimento de recontextualização uma
fetichização no sentido proposto por Canevacci de interconectar visualmente a coisa
e o olho? Para esse autor, o fetiche funciona como domínio epistemológico, sendo
político no nomear como forma de dar uma hierarquia a discursos coloniais, mas no
qual entra o sagrado, enquanto espírito que move; para ele, “toda vez que o sagrado
21 FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural; 1996, p.244.
54
sai da normatividade de uma religião se metamorfoseia no fetiche”22 – sendo o
fetichismo, para ele, o sagrado. De que modo expor um elemento ritualístico?
O resgate das origens e da encenação muitas vezes gera apenas uma
espetacularização do ritual. A condenação no aspecto etnológico, que questiona a
função e o contexto do objeto, é de que apesar de a cultura exigir que se conheça o
ritual completo, quase sempre ocorre uma descontextualização ao se retirarem os
objetos de seus rituais para transferi-los para o museu. Quando o método e a forma
coincidem, aí sim se dá uma história, surge o intempestivo que Agamben
vislumbrou, aquele cujo tempo não coincide, a não coincidência morfológica das
imagens com o contexto, a história por trás das imagens sendo sempre mais
complexa. E o que resta depois da afinidade formal são objetos tribais ritualísticos
apenas como testemunhas, não mais fonte direta de experiência interior. Ao pensar
o porquê e o para quê servem estas imagéticas construções de realidade,
observamos a imagem não mais apenas como um lugar de visualidade, porém de
narrativa e problematização, a fotografia funcionando como modo de registro e até
mesmo denúncia implícita. A instalação Canonizador AcSeita Coletivo não busca
necessariamente questionar quem se separa de valores mundanos, ou quais
virtudes se almeja, mas talvez pensar de quais vícios devíamos nos separar. A
performance Sede de Santos procura este lugar de registro, de um gesto que nos
remete ao juízo final, no qual procuro desenvolver o questionamento sobre
religiosidade a partir do questionamento do que é ser santo. Cada ação é
independente, mas tem vínculos entre si, todas pensando o que é esse ser
separado, tentando registrar seus modos e hábitos, para além da sua imagem.
2.6.2 Alteridade: reconhecer no Outro a diferença como necessária
“o mundo sem lei: a lei é, com efeito, a introdução de um significante de alteridade que, interpondo-se entre o real e o sujeito, tem por efeito interditar o real de se oferecer à percepção interna do sujeito, que é simbolizada num dizer. Porém, nem tudo do real pode ser apreendido pelo simbólico. É assim que, aquilo que foi retirado da voz arcaica pelo poder simbolizante do interdito, faz retorno no real” (VIVES, Jean Michell, 2009).
22 CANEVACCI, Massimo. Fetichismos visuais – corpos erópticos e metrópole comunicacional. São Paulo: Atelier Editorial, 2008.
55
Lacan ressalta a questão de alteridade e a modificação do lugar do sujeito no
circuito da invocação. O “ser-chamado” necessita sempre de uma voz que o
invoque. Ao conferir à invocação o estatuto de Pulsão Invocante, Lacan articula a
voz ao desejo do outro. Ao relacionar o saber e o sentido (por meio do binômio
sujeito e escrita), é pertinente salientar que a verdade não pode ser dita toda,
apenas ser semi-dita, e que o real é o impossível de abordar, o inefável, o indizível.
Lacan aponta, como exemplo, a escrita de Joyce, uma amarração que dá conta em
si mesma – a escrita do nós – da coexistência da letra como jogo pulsional e da
inscrição de um traço do sujeito. A questão da letra enquanto voz que se insere e é
inserida na escrita; uma condição de ser resto (da fala) e tentativa de inscrição, a
partir do reconhecimento do outro. Para Lacan a letra indica que a emergência do
inconsciente ainda precisa de um caminho de elaboração. A relação da letra com o
significante gera a produção de sujeito.
Para que fazer um Canonizador? No século XXI, com a ruptura da
experiência dos sujeitos, o “humano” se depara num mundo propenso à
“desumanização”, pós-guerras, tornando-se mais um sujeito à deriva na multidão
cuja perda das noções de identidade e de pertencimento acaba por constituir
sujeitos que são pura exterioridade e gerar relações diluídas com automatismos
inconsequentes. O Santo é também um inumano. (Larrosa)
Mas como “o sileo não é taceo”23, Beckett segue na via inversa de James
Joyce – que prima pelo excesso, a busca da onisciência – e se torna a voz que nos
alcança através de um silêncio desestruturador de palavras e ações, que subtrai ao
máximo, mas não cala e atinge a completude pelo esvaziamento. Beckett pratica em
seus personagens a “arte do desaparecimento”. Com a subjetividade esvaziada,
individualidades fragmentadas, a noção do sujeito que desaparece, que se perde no
uso das coisas, repetições, o uso de palavras vazias, a subtração do corpo e sua
desconstrução junto à da linguagem, remete-nos a uma estética do fracasso – de
não poder se expressar por meio das palavras e do desejo de eliminá-las. O sujeito
23 O sileo é o nada dizer, taceo seria o silêncio da palavra não-dita, o silenciar-se ou ser silenciado. O sujeito a reconhecer seu inconsciente como sua história.
56
de Beckett é pura exterioridade, é voz, emanação, existência, é o devir; seus
personagens para mim são relicários vivos, personagens-profetas, cujos objetos de
cena reconheço em meus relicários: o tubo de pasta de dente quase acabado, a
escova velha, e cuja voz as vezes se reconhece e se surpreende. O mutilado não se
percebe mutilado, e ao tentar usar, é usado pelas coisas, uma vez que elas já estão
esgotadas. Sua crítica à falta de consciência nos propõe a busca do
autoconhecimento. Tal como o lugar que peço para ocuparem para tirar uma foto. A
partir de textos não convencionais (a não narrativa em Beckett), há um jogo, em que
as palavras se reorganizam e, através por meio da repetição, esvaziam-se de
sentido. Um texto que revela os procedimentos de sua composição, uma redução de
verbos para dificultar o reconhecimento de qual pessoa fala e gerar uma noção de
incompletude. A arte de calar utilizada para reforçar a ideia de que a linguagem é um
lugar de excessos, no qual o sujeito pode facilmente se perder de si, tornando-se
mais de outros do que de si mesmo. Os objetos esgotados passam a usar o sujeito,
que apenas se repete numa infinda combinatória ao tentar completar procedimentos
lógicos, em operações que beiram o absurdo. Chamar Beckett de profeta é,
portanto, reconhecê-lo como contemporâneo ao seu tempo, cuja alteridade provém
da fala de si mesmo e para si, como o sujeito que não se reconhece no espelho e
não sente que possa ser representado, “eu sou o outro que me ouve”. É nos outros
que busco me retratar. É na busca dos vícios que quero pensar as virtudes, procuro
lidar com contradições, procuro utilizar a fala ao contrário.
57
3 OS RELICÁRIOS E O CANONIZADOR ACSEITA COLETIVO
A proposta Arte como Religião seria inicialmente um trabalho artístico e político
baseado no estudo de registro de símbolos e rituais cristãos e budistas; mas que
pelo surgimento de um interdito, se transformou em caixas, muitas caixas que
surgiram e se misturaram; e objetos de uso se misturaram e se confundiram tal
como os conceitos e as teorias que surgem neste texto, e que pretende o registro
dos novos santos contemporâneos e seus vícios e virtudes.
Das muitas caixas cheias de papéis manuscritos, outras com objetos velhos,
outras com roupas, toalhas, e de um amontoado de bugigangas que encontrei no
apartamento de Água Santa, onde meu pai viveu seus últimos dias, surgiram os
Relicários em caixas de fósforo como pequenas lembranças alheias, um desejo de
perpetuar uma memória que não me pertence, e que, por isso mesmo, teme o que
pode revelar. Pequenas cápsulas de memórias, que registravam hábitos, apegos,
consumos. Surgiram Relicários maiores também, todos feitos de caixas cortadas de
modo a expor seu interior; cortadas ao meio, abertas como janelas e forradas com
material encontrado na casa e posteriormente com outras imagens que selecionei
por se relacionarem aos questionamentos que desejo propor. E um pouco como
justificativa para tantas caixas, criei a instalação Canonizador AcSeita Coletivo, feita
com objetos velhos do cotidiano de meu pai; um dispositivo para questionar
processos de subjetivações; para gerar diálogos e tornar mais interativo meu
questionamento, mas que não deixa de ser também um relicário.
Dentro de uma proposta poética ampla como a de Arte como Religião, procurei
fazer um recorte entre os trabalhos produzidos durante o mestrado, de modo a poder
tecer uma área específica de questionamento. Escolhi pensar o que é religiaão
através do pensamento do significado da santidade, e para isso escolhi os trabalhos:
Relicários e o Canonizador AcSeita Coletivo, os primeiros trabalhos que surgiram
como resultado de um diálogo que foi sumariamente interrompido, por serem
diretamente relacionados à ideia de separação proposta por Giorgio Agamben como
a base para que possamos pensar a religião, tendo como base a ideia de
separação. No caso dos relicários, a separação de objetos usados, revela hábitos,
expondo vícios e virtudes. E a santidade retratada é irônica, um deboche.
58
As relíquias são classificadas pela Igreja Católica em três classes; a primeira
seria composta de parte do corpo de um santo como, por exemplo, de ossos, unhas,
cabelo, etc.; a segunda classe de relíquias seria de objetos pessoais de um santo,
como roupa, um cajado, terço, rosários, os pregos da cruz, etc.; e a terceira classe
incluiria pedaços de tecido que tocaram no corpo do santo, como lençóis,
travesseiros, móveis de uso pessoal; sendo proibido pela igreja católica, sob pena
de excomunhão, vender, trocar ou exibir para fins lucrativos relíquias de primeira e
segunda classe. Observo também que os relicários buscam também questionar o
uso e a posse que temos em relação aos objetos.
Os Relicários artísticos que construí são constituídos de elementos separados,
a maioria da segunda e terceira classe: objetos que seriam descartados, mas que
foram guardados após sua utilidade ter sido extinguida. A instalação Canonizador
AcSeita Coletivo, que através da performance Sede de Santos24 gera imagens que
diferem dos retratos habituais, tanto dos espectadores, quanto dos santos; também
foi construída com relíquias de terceira classe: toalhas, protetores de mesa, etc.;
sendo um dispositivo, mas também um Relicário em potencial.
Esses trabalhos artísticos que procuram pensar o que seria a santidade
atingem também um ponto de discórdia das instituições cristãs, Católica e
Protestante: os santos canonizados. Para a Igreja Católica, os santos são figuras
míticas da fé cristã; pessoas de conduta e virtudes ímpares, capazes de se
submeterem às mais terríveis provações em nome da religião que professavam,
sendo canonizadas, declaradas santas, somente depois de mortas e de
necessariamente ter sido comprovado pela Instituição católica serem responsáveis
por milagres e feitos extraordinários; enquanto para os protestantes, santo é todo
aquele que é separado para Deus, pessoas que pela fé entregaram suas vidas à
prática religiosa.
Abraçando um pouco de cada posição, da possibilidade de pessoas que se
separam dos valores societais vigentes, e do processo de canonizar como
autenticação dessa separação como uma santidade, a instalação Canonizador
AcSeita Coletivo pretende não apenas chamar atenção para a separação necessária
24 A performance em si é a argumentação e as diferentes formas de persuasão que utilizo para a obtenção da participação do visitante e de seu registro sendo canonizado.
59
para Religião (prática) como a inversão de valores causada pelo afastamento da
verdadeira religiosidade dentro das instituições religiosas, ao propagar o ódio e a
intolerância a comportamentos diferentes dos padronizados e negar a necessidade
de buscar a santidade como condição para uma busca religiosa. O Canonizador
AcSeita Coletivo surgiu como forma de contextualizar o fato de os relicários serem
feitos de objetos de meu pai, um ex monge, e de pessoas que ainda estão vivas.
Ambos feitos com objetos testemunhas, como tentativa de entender e profanar
certos processos separatórios.
3.1 A Santidade como condição para a busca religiosa
O que seria o “santo”? Usualmente contém um significado fundamental de
‘separado’, ou fora do uso comum; algo restrito por regras cerimoniais ou limitado a
certo povo (Israel, sacerdotes), lugares (tabernáculo), coisas (altares), ou tempos
(sábado). Na Bíblia é um mandamento que impõe muitas restrições a todo o ‘povo
escolhido’, que aparece inicialmente em Levítico 20:07 e em 1 Pedro 1:16, a
santidade que o Deus exige é o respeito às alteridades. O nascimento não seria uma
separação? O monge não se separa da sua sociedade para poder a observar
melhor? A instalação Canonizador AcSeita Coletivo não demanda uma separação
para poder ser observado? Acredito que a separação começa na consciência que
temos dela, e aponto que um dos pontos importante das religiões é o fato delas
servirem de orientação para as buscas individuais, sendo imprescindível para que
haja harmonia, que as diferenças sejam respeitadas por todas as religiões. Combato
a ideia de que religião somente pode ser praticada dentro das instituições-que-se-
dizem-religiosas, apontando a semelhança entre profetas e os trabalho de grupos
alternativos como Anarko Punk e Coletivo Coiote.
Se relíquias são objetos usados por santos, ao expor objetos que pertenciam a
um ex-monge budista e convidar as pessoas a posarem como santas e se
posicionarem na frente de um halo luminoso, profanamente sacralizando- as,
60
resgato a figura do ‘homo sacer’25. Sendo que a posição de artista que pretendo é
aquela que é confundida com a do padre e do psicólogo, pois ao mesmo tempo que
busco proporcionar uma experiência interior convocando corpos a assumirem
lugares, privo-os do reconhecimento imediato proporcionado por um espelho, sendo
a fotografia seu único modo de autorreconhecimento; um modo de proporcionar
experiências interiores a posteriori.
Sob o ponto de vista do qual parti para realizar minha pesquisa teórica e meu
trabalho de arte está uma concepção social de que, da mesma forma que não se
concebe a existência de comunidades sem política, não deveria ser concebível fazer
política sem se respeitar o pensamento das diferentes religiões. Ressalto que toda a
pesquisa propõe repensar o que denominamos religião, pois o que as religiões
originalmente procuravam – por meio de parábolas, mitos ou histórias – era manter
as comunidades unidas por intermédio de conceitos plenos de alteridade,
entendendo-se, neste caso, alteridade como uma forma de respeito à diferença do
outro.
Pesquisar as relações entre arte, religião e cultura na formação da sociedade é
pensar a partir de pontos de contato, onde ocorrem as coincidências, onde
pensamentos se esbarram e se misturam; é também rever significados e
significantes de modo relacional, gerando processos de resgate de alteridade e
coesão social. Busco desassociar o conceito de religião das instituições que se
dizem religiosas, pois as mesmas abandonaram os pensamentos que as originaram
ao deixar de respeitar alteridades, não reconhecendo no outro o direito de ser
religioso. A vida em trânsito e o entendimento sutil do homem com a natureza e o
outro demanda uma nova consciência e novos parâmetros para uma (re)construção
social; consciência esta mais crítica em relação à nova ordem social consequente
das guerras e gerada pelo deslocamento dos indivíduos do campo para a cidade,
que produziu, além da erosão de laços sociais e geográficos, uma maior
desigualdade social e uma experiência de vida gregária e antirreligiosa, que deixa o
sujeito abandonado à própria sorte, a solidão acompanhada.
A religião a meu ver deveria funcionar como um elo social, que nos unisse ao
que separamos, um re-ligare que harmonizasse as diferenças por meio do respeito à
25 AGAMBEN, 2007, p. 69.
61
alteridade – respeito ao outro e respeito à vida de forma geral. Formas de
agrupamento sem respeito à alteridade se tornam associações de indivíduos
egoístas, que, ao invés de buscar uma adequação das minorias, as exclui,
separando-as da comunidade, muitas vezes agressivamente.
3.2 Relicários como Lembranças Alheias
Os primeiros objetos artísticos que fiz dentro da proposição poética Arte como
Religião foram Relicários em Caixas de Fósforo (figs.32 e 33), pensados como se
fossem objetos Haikais, que continham imagens e objetos. As caixas de fósforos
foram resultados de uma dupla lembrança: os variados e pequenos objetos, velhos e
enferrujados, que achei na casa de meu “pai verdadeiro” me trouxeram à memória
os variados objetos herdados de meu “pai de criação”: meu avô materno, que,
apesar de ter sido advogado no Ministério da Educação, era também um exímio
carpinteiro que possuía em casa uma oficina quase completa, na qual encontramos
várias prateleiras abarrotadas de caixas com palitos de fósforo queimados,
guardados para serem utilizados em uma maquete que ele nunca iniciou: uma
enorme Torre Eiffel.
Relicários são geralmente caixas ou bolsas, que contêm objetos que
pertenceram a santos ou imagens de santos. Haikais são formas poéticas de origem
japonesa, com três linhas e poucas sílabas, poesias concisas. A historia do haikai
retoma a filosofia espiritualista e o simbolismo Taoista dos místicos orientais e
mestres Zen-budistas que expressam muito de seus pensamentos na forma de
mitos, símbolos, paradoxos e imagens poéticas. Os meus relicários se propõem
como haikais visuais, cujas combinações de apresentação criam uma variedade de
histórias por serem feitos de objetos afetivos banais e cotidianos como pedaços de
roupas, parafusos, fichas telefônicas, moedas antigas, papel de balas variadas,
pedaço de trabalhos de amigos, recortes de jornal. Os Relicários de Santos Vivos
consistem em caixinhas de fósforos que guardam objetos usados pelos Santos
AcSeita Coletivo. As relíquias (feitas de dejetos) dos Santos AcSeita Coletivo geram
uma coleção que aponta não apenas as virtudes, mas também os vícios das
comunidades em que estão inseridos. Os relicários possuem uma precariedade
62
estética, formas errantes, quase signo, frase visual; e são excessivos, muito
semelhantes, quase gagueira visual.
Figuras 32 e 33 – 225 Relicários em Caixas de Fósforo.
Instalação com caixas de fósforos, objetos e resina, 8 x 5 x 2,5cm. 2011. Fonte: Coleção
particular.
Quando objetos meus e outros provenientes de amigos acabaram entrando nos
relicários, o questionamento do que vem a ser santidade se tornou imperativo. O
pronome de tratamento Sua Santidade é usado como forma de tratamento para
lideres espirituais notável, como por exemplo, é utilizado para o líder budista tibetano
Sua Santidade Dalai Lama. Pensar a santidade de forma cristã me levou a um
mandamento bíblico: ‘Sedes santo porque sou santo’ (Levítico 19 e I Pedro 1), que
gera conflito entre o cristianismo católico e o protestante acerca da figura dos santos
canonizados. Para os protestantes, a santidade é um mandamento condicionado à
separação necessária para adorar a Deus; enquanto os católicos, ao canonizar,
produzem o reconhecimento oficial de um estágio de separação. A canonização
católica se dá em três etapas: antes de ser santo é necessário ser considerado
venerável; após comprovação de milagres torna-se beato e, só após um novo
63
milagre, pode ser considerado santo. No caso dos mártires, não se exige nenhum
milagre, o processo é mais simples. Basta provar que morreram pela fé; o
derramamento do seu sangue – a morte – vale por muitos milagres.
Inicialmente os relicários foram feitos como objetos testemunhas, coletados da
casa de meu pai, um ex-monge. As imagens selecionadas por mim (fotos, recortes
de revistas, desenhos) são organizadas em uma associação poética que menciona a
separação dos monges budistas, relacionando-a com a dos santos católicos. A
grande quantidade de objetos velhos guardados gerou o questionamento sobre o
momento em que as virtudes teriam virado vícios, observando que o excesso de
respeito à matéria por parte de meu pai se tornou apego; e me fez lembrar uma
música que foi muito tocada no ano em que retornei, na qual se enaltece a
capacidade de ‘beber, cair e levantar’26, uma música que promove (o que deveria
ser) um vício à condição de virtude.
Figuras 34 e 35 - Relicários sobre vícios.
Madeira, papelão, tampinhas de cervejas, recortes e resina. 2012. Fonte: Coleção Particular.
É um colecionismo artístico contemporâneo, que se inspira no que Didi-
Huberman aponta do trabalho de colecionismo de livros e imagens de Aby Warburg,
que se nega a seguir uma lógica pré estabelecida e despretensioso de formular
conclusões; que se utiliza de linguagens artísticas como Appropriation Art, que
envolve a utilização de objetos e imagens existentes, com pouca ou nenhuma
alteração feita sobre eles, para a criação de um objeto artístico; e do conceito
participativo proposto pelo movimento Fluxus, que pretendia eliminar a distância
26 Beber, Cair E Levantar; Autor: Marcelo Marrone , Bruno Caliman , Thiago Basso; Álbum: Beber Cair E Levantar, Volume 3; Estilo: Música Brasileira ,Gravadora: Mansão CDs; 2008
64
entre as categorias de arte se utilizando de caixas contendo objetos encontrados em
variados tipos de comércio, que eram nomeadas e etiquetadas, e que se assemelha
ao colecionismo de imagens do historiador de arte alemão, que a meu ver buscava
entender a necessidade das diferenças por meio da observação de objetos que
possuíam elementos semelhantes e diferentes ao mesmo tempo, fazendo
associações imagéticas de coisas diferentes sem limitá-las com explicações escritas.
O Atlas Mnemosine de Aby Warburg (Georges Didi-huberman no livro A Imagem
Sobrevivente - História da Arte e Tempo dos Fantasmas Segundo Aby Warburg, Ed.
Contraponto; 2013) constitui-se em uma coleção de imagens com pouco ou nenhum
texto, e foi construído juntamente com uma biblioteca voltada às ‘ciências da cultura’,
que anulava divisões disciplinares, sendo que o princípio da disposição de seus
livros buscava problematizar a história ocidental fundado na teoria da memória social
ou coletiva. Ao expor imagens de danças indígenas ao lado de deuses gregos,
Warburg encara a história da arte como uma memória errática que regressa
constantemente como sintomas, observando a ‘polaridade’ das imagens, que, em
contacto com uma nova época, passam a ter o seu sentido completamente invertido.
Penso as coleções de Relicários de Santos Vivos como um museu vivo, resultante
da tentativa de associar a unificação proposta pela figura dos museus para formação
de comunidades ao conceito dos não-lugares27 de Marc Auge. Esse autor aponta
como características dos lugares antropológicos serem identitários, relacionais e
históricos, e dos não-lugares serem espaços que, por não se integrarem aos lugares
antigos, se tornam lugares de memória que muitas vezes só põem o indivíduo em
contato com outra imagem de si mesmo, destacando também que a anulação é
dada não pela pasteurização, mas pelo excesso antropológico.
A minha proposta inicial para os Relicários em Caixas de Fósforo foi de uma
produção excessiva, feita com uma grande variedade de objetos descartados e sem
preocupação com o acabamento das obras. Com a eventual preocupação com a
formalização da apresentação do conjunto, o acabamento acabou se tornando
necessário, e novos trabalhos artísticos surgiram; do aprimoramento dos relicários
surgiram esculturas que chamei de Moedas de troca; e da necessidade de criar um
27 AUGÉ; Marc. Não Lugares. 2012
65
modo de expor uma obra fragmentada surgiu a série de esculturas: Totens de Luz.
(figs.36,37 e 38).
Figuras 36,37 e 38 – Mariana Scarambone. Primeiras versões dos Totens de Luz.
Caixas moveis feitas com madeira, resina, objetos variados e luz, tamanhos variados. 2013.
Fonte: Coleção Particular.
66
3.2.1 Descontextualizando e desconectando através do pensamento do censo, do
mapa e do museu
Penso que a decorrente perda dos vínculos religiosos das novas nações sofreu
influência não apenas do fato de comunidades ditas primitivas terem suas histórias
destruídas, artefatos descontextualizados e ritos criminalizados, mas também do fato
de que houve guerras declaradas “santas”, ou seja, guerras legitimadas por
instituições religiosas que deveriam combatê-las, ou minimamente tentar regular
procedimentos de forma que questões de alteridade fossem respeitadas; e que tal
procedimento de quebra de alteridade, por parte das instituições que deveriam
promovê-la, possibilitou ao Estado a possibilidade de negar às novas comunidades
criadas o direito à religiosidade, confundindo laicidade com laicismo de acordo com
sua conveniência.
Se pensarmos religião como um sentimento baseado no entendimento do
sagrado e dos seus interditos, que entenda a necessidade do respeito à alteridade,
seria inevitável assumir que ela promoveria uma relação forte e saudável nas
comunidades, dificultando a manipulação e escravização das mesmas. A utilização
de vínculos sociais sem bases em conceitos de alteridade permite a criação de
grupos intolerantes e facilmente manipuláveis. Para o historiador de arte Jacob
Buckhardt28, desacreditar e desestimular as buscas espirituais se torna uma
necessidade para os Estados, que passam a propagar a aversão à ideia de religião
enquanto promotora de um sentimento de aceitação das diferenças, associados a
mecanismos de conexão sociais diferentes, tais como ideia de Nação, associações,
padrões de consumo e ainda aproveitando-se da corrupção de instituições religiosas
que invertem o propósito da aceitação da diferença para a exterminação da mesma;
que visando o benefício do poder e contrariando os pensamentos que as originaram,
apoiaram e justificaram guerras. Também Agamben aponta a secularização como a
busca de um constante Estado de Exceção: “a secularização política de conceitos
teológicos (a transferência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a
28 BURCKHARDT. O Estado como obra de arte. São Paulo: Ed. Penguin; Companhia das Letras, 2012.
67
transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena deixando, porém, intacto seu
poder”29. Benedict Anderson30 denunciou a comunidade como algo inventado após a
colonização, não apenas pela necessidade de demarcar nas comunidades
conquistadas a ideia de nação, mas visando a um melhor controle das massas, e
como forma de amenizar as perdas da guerra: o vazio deixado pelas mortes.
Anderson aponta como instrumentos usados para construção das comunidades três
elementos coloniais: o censo, o mapa e o museu.
Associo a pesquisa Arte como Religião, juntamente ao produto das
performances realizadas na instalação Canonizador Portátil AcSeita Coletivo, a um
censo, porém diferente do censo apontado por Anderson, que tinha por finalidade
nomear e definir as comunidades pela divisão, indicando como se houvesse apenas
uma posição/lugar para cada indivíduo, não aprofundando questões da comunidade,
negando-lhes o mergulho das características culturais e forçando a perda das
relações de afinidade, de religiões, hábitos, vestimentas, etc; um censo cuja forma
possibilitasse pensarmos a santidade pelo seu reverso, observando falhas e
defeitos, buscando informações nas diferentes possibilidades de leituras de cada
visualidade; em parte como consequência dos relicários, seria um censo que
catalogaria tanto virtudes como vícios.
O segundo elemento colonial, o mapa, apontado por Anderson como uma
irrealidade identitária que não completa da mesma forma que as imagens a
sensação de vazio, promoveu, naquela época, uma busca de colecionamento de
sensações locais e disseminação de diários de artistas que buscavam, por meio de
relatos de viagens e projeções, completar essa identificação registrando o devir,
refazendo essas viagens abstratas.
No ensaio textual Santos AcSeita Coletivo31, associo esses mapas gerados
pelo Canonizador AcSeita Coletivo a Ecossistemas Estéticos32, pois consistem em
agrupamento de imagens coletadas a partir da performance Sede de Santos
realizada junto aos diferentes públicos a que foi apresentada a instalação
29 AGAMBEN, 2007, p.68. 30 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. 2008. 31 JAYANETTI, M. S. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 22., 2013, Belém. SANTOS AcSEITA COLETIVO. 32 Ecossistemas estéticos foi o tema do vigésimo segundo encontro da ANPAP
68
Canonizador AcSeita Coletivo. Essa forma de mapeamento por imagens foi pensada
para ser associada aos relicários e moedas de troca juntamente com os trabalhos
desenvolvidos pelos ‘Santos Vivos’ para futuramente ser desenvolvida em tese.
Também associo esse procedimento de agregar novos elementos às imagens dos
Santos ao que Marc Auge33 propõe como o artista enquanto antropólogo, que
observa o típico e sua relação com o típico e, ao observar a superfície, aponta as
contradições, mesmo não criando definições; aquele para quem as raízes não
existem, existem apenas fantasias de lugares, sendo sua definição de não-lugar a
do terreno baldio, mas também a do trânsito, da acessibilidade e da experiência.
Acredito que o foco da investigação artística do trabalho Relicários de Santos
Vivos parodia o processo de museificação do mundo e reclama sua função de
templo, também dialogando com o último aspecto colonial apontado por Benedict
Anderson, o ‘museu arqueológico’ justamente por ser o avesso do pensamento
inicial, pois são originados não de objetos ‘separados’, ou de uso exclusivo como
eram os instrumentos religiosos, mas de dejetos que, ao serem resgatados, se
tornam artefatos religiosos. Anderson aponta que o museu arqueológico foi criado
com artefatos retirados da colônia como instrumento na construção das identidades
nacionais, sendo extremamente enriquecedor para os colonizadores, pois os
artefatos religiosos que eram retirados de suas sociedades consideradas primitivas e
levados para os museus das colônias tinham seu uso proibido, perdendo seu valor
de uso ao serem transformados em fetiche de posse enquanto mercadoria rara.
3.2.2 A vocação dos relicários em recontextualizar objetos de consumo
Para Hal Foster, foi a partir da exposição “Les Magiciens de la terre”34 que o
critério para se designar uma obra como artística deixou de ser meramente técnico e
formal. Por ter justificado a forma por sua não-racionalidade, observando a razão de
ser dos objetos, as obras passam a ser vistas pelo seu caráter mágico, no sentido de
cultural, o que gerou um discurso quanto à atitude dos museus e seus processos
classificatórios impostos. A observação de Nicolas Bourriaud, por sua vez, ressalta
33 AUGÉ, Marc. Lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 2012. 34 FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. 1996.
69
que a exposição chegou a alimentar certa confusão entre as figuras do artista, do
padre e do artesão, uma vez que o desenvolvimento da cultura urbana força uma
hibridação cultural, que dissolve singularidades reais sob a máscara de uma
ideologia multiculturalista, máquina de apagar as origens de elementos típicos e
autênticos que ela enxerta no tronco da tecnosfera ocidental. Ele convoca os
artistas, em qualquer latitude, para a tarefa de considerar o que seria a primeira
cultura, alertando que para que essa cultura emergente possa brotar das diferenças
e singularidades, em vez de se alinhar à padronização vigente, ela terá de
desenvolver um imaginário específico e recorrer a uma lógica que não aquela que
preside a globalização capitalista.
3.2.3 Obra enquanto dispositivo gerado pela fisicalidade de objetos-testemunhas.
Em meu trabalho artístico existe uma recorrência em trabalhar com materiais
alternativos; o velho, o objeto-que-deveria-ser-jogado-fora, sempre me causou
fascínio, não apenas por conta de meu pai ter sido monge e ter o estranho hábito de
doar tudo de novo que recebia, guardando para si somente o necessário. Comecei
na faculdade com a busca de uma nova materialidade para o suporte da impressão
gráfica: imprimia em plásticos, panos, revistas velhas, para depois montá-los como
quebra-cabeças; com o passar dos anos optei pelo papel de arroz, cuja
transparência permitia que imagens impressas nos lados opostos do papel
dialogassem, e passei a utilizar várias camadas de papéis impressas em ambos os
lados, sobrepostas (sempre abusando das cores), e utilizar fontes de luz para que as
imagens se confundissem e gerassem imagens abstratas. O trabalho passava a
carregar a ideia escondida dentro das cores; eventualmente, devido à facilidade do
manuseio, comecei a criar estruturas (esculturas de papel arroz) que dialogavam
com as imagens que imprimia nos papéis: caixas de correios em papier maché feitos
com impressões de cartas, caixas de música com impressões de fitas cassete, etc.
A tentativa de perpetuar a vida dos objetos afetivos que seriam descartáveis,
transformando-os em relíquias, já havia aparecido em um trabalho meu anterior, o
Light Box (Fig.39; Londres, 2000), no qual, para guardar as correspondências
trocadas com amigos nos primeiros anos em que cheguei a Londres, transformei as
cartas e fotos em estêncil, utilizando-as como ‘máscaras de cor’, e serigrafando-as
70
excessivamente em tecidos de algodão semi-transparente; com o tecido impresso
em ambos lados, montei em uma caixa-de-luz artesanalmente entalhada, a Light
Box, que foi exposta na Galeria de Arte de Willesden Green, na exposição ‘Pau-
Brasil’ e depois foi exposta juntamente com outros vários pequenos objetos
luminosos produzidos com as matrizes e as sobras das impressões(Fig.s. 42 e 43),
que geraram a instalação ‘Light Mail’ (Fig. 44), apresentada na exposição Translatino
Highway, na 291 Gallery, em Hackney, Londres.
71
Figuras 39, 40 e 41 – Mariana Scarambone. Light Box; Performance anônima; Willesden Green Art Center.
Caixa de madeira, tecido serigrafado e instalação de luz. 60 x 160 X 25cm. Willesden Green
Art Center, Londres, 2000. Fonte: Coleção Particular.
72
Figuras 42 e 43 - Mariana Scarambone. Light Mail.
8 Estruturas de Papier Maché com impressões, colagens e instalação de luz. Tamanho aprox. 30 x 40 x 20cm cada. Fonte: Coleção Particular.
Figura 44 - Instalação ‘Light Mail’. ‘Translatino Highway’, 291 Gallery, Londres, 2001.
Estruturas de Papier Maché com impressões, colagens e instalação de luz. Fonte: Coleção particular.
Em 2001, para a exposição ‘Rio-Trajetórias’, montei um barraco com um ateliê de
serigrafia, dentro da Galeria Funarte, produzi uma oficina e enchi de materiais
73
recicláveis (garrafas, latas, caixas) telas de serigrafia com desenhos-instruções, e
durante o periodo de exposição produzi um trabalho que consistia em ‘cocoons’
feitos em papel de arroz que continha séries de impressões serigráficas com
desenhos instrutivos para a criação de instrumentos musicais feitos a partir de
materiais descartáveis; os materiais descartáveis eram fechados dentro desses
‘cocoons’, o que demandava, para a utilização dos instrumentos, a destruição das
imagens.
Figura 45 – Mariana Scarambone. Oficina de criação de Casulos e Objetos Tocantes. Galeria Funarte
Catálogo Rio-Trajetórias, Funarte, RJ, 2001. Fonte: Coleção Particular
Figura 46 – Mariana Scarambone. Performance com Casulos de Objetos Tocantes.Parque das Ruinas.
Performance Sonora com Objetos Tocantes. Fonte: Coleção Particular.
74
Figura 47 – Mariana Scarambone. Detalhe de um Casulo de Objeto tocante
Serigrafias sobre papel de arroz, montadas sob luminárias. 2001. Fonte: Coleção Particular.
Penso que essa tentativa de perpetuar memórias através de reprodução de
imagens de correspondências, que gerou objetos artísticos luminosos que se
apresentavam em forma de instalação, possui essa linha de pensamento que deseja
perpetuar memórias, que me remeteu à instalação artística ‘Superfície limite: entre
arte e arquitetura’ (fig.48), de Malu Fatorelli, feita com folhas A4 impressas com o
rascunho geradas no processo de escrita do doutorado da artista, e que foi
apresentado no MAC em 2004; e que busca problematizar ‘a separação entre a
palavra (conceito, narração) e a percepção (experiência puramente ótica)’ na
destruição do material bruto, como um processo de ‘transferência de afetos por
contato’.
75
Figura 48 - Malu Fatorelli. Superfície limite: entre arte e arquitetura; MAC; 2004.
Fonte: Disponível em <http://evaklabin.blogspot.com.br/2010/08/plataforma-de-pesquisa-malu-fatoreli.html> Acesso em: ago. 2013.
Para Bourriaud, se antes a arte era julgada por uma série de fatores – pela
técnica, pela categoria (pintura, desenho, gravura, instalação, etc.), pela manufatura
ou pelo virtuosismo – isso precisou ser modificado quando o artista se tornou uma
espécie de gesto e de projeto, um deflagrador de conceitos e situações; mais que
um mero construtor de obras de arte, ele é quem vai colocar novamente em questão
os juízos de valores. Quando o que entra em questão é o Juízo de valor35, não
importa mais se a pintura é boa ou ruim; para a pós-modernidade o que importa é se
o trabalho exerce suas funções e condições críticas. Para um trabalho poder
apresentar questões dentro da pintura ele não precisa necessariamente ser uma boa
pintura; tanto se pode fazer parte do mercado criando um superproduto ou por meio
de um trabalho desmaterializado, constituído por uma ação, atitude ou gesto. A arte
cresce com essa nova possibilidade institucional, que permite observar a razão de
ser do objeto de arte em elementos outros que sua forma ou estilo, e passamos a
observar a questão da materialidade escolhida, que faz referência a processos que
agregam ou segregam indivíduos. A arte, por mais vanguardista ou permissiva que
35 Nicolas Bourriaud, 2011
76
seja, demanda uma formatização para participar do circuito comercial (e até mesmo
do circuito cultural).
Se para construir os relicários que buscam perpetuar memórias restituo o uso
a objetos que seriam descartados do circuito comercial, de maneira similar
funcionam as instalações ‘Cordel cultural’ (fig 49) e ‘Mapa das Artes’ (figs.50 e 51)
de Gian Shimada, ao se apropriar de ‘descartes’ do circuito cultural – catálogos e
mapas de arte – para perpetuar suas xilogravuras, imprimindo-as neles; o catálogo
que antes seria apenas um registro temporal se torna atemporal ao tornar-se
também suporte de uma obra, passando a possuir uma memória modificada. No
trabalho ‘Mapa das Artes’, que referencia o ‘Projeto Coca-Cola’ e ‘Inserções em
Circuitos Ideológicos’ de Cildo Meireles, Gian Shimada faz uso duplamente de
suportes transgressores: utiliza-se das folhas do Mapa das Artes, com suas gravuras
impressas, para colar nos muros da cidade. Como aponta a professora e doutora em
artes Malu Fatorelli no catálogo da exposição, “nesse trabalho, o suporte recusa um
lugar de invisibilidade para assumir outros planos conceituais evocados pelo mapa e
pela cidade [...] também ironiza o desejo de pertencimento a um circuito ao
permanecer colado do lado de fora nos muros urbanos". A Arte de Shimada não tem
uma razão de ser apenas estética (baseada na visualidade), mas também política:
na escolha da utilização de material impresso de galerias, nas escolhas dos
catálogos; religiosamente transgressora, revelando sistemas exclusivistas do circuito
cultural.
77
Figura 49 – Gian Shimada .Cordel Cultural; Detalhe da impressão sobre catálogos.
Instalação com xilogravuras impressas em catálogos. Detalhe de Cordel Cultural
Fonte: Disponível em: <http://paginadacaza.blogspot.com.br/>. Acesso em: ago. 2013.
78
Figuras 50 e 51 - Gian Shimada. Mapa das arte. Intervenção urbana; e Exposição Mapa das Artes.
Intervenção urbana com colagem de xilo sobre catálogos impressos; e Exposição Mapa das Artes. RJ. 2013. Fonte: Disponível em: <http://portalseteartes.blogspot.com.br/2011/10/perfil-gian-shimada.html> Acesso em: ago. 2013.
3.3 O Canonizador AcSeita Coletivo como tentativa de resgatar um diálogo
A instalação Canonizador AcSeita Coletivo é um dispositivo que pretende
investigar – dentro de um conceito poético sobre religião – o que é ser religioso, a
partir da investigação de mecanismos de separação: a sacralização e a profanação.
É inspirada no mandamento que se apresenta na Bíblia em momentos distintos,
demandando santidade aos judeus e cristãos: “Santos sereis, porque eu, o Senhor,
sou santo” (em Levítico 19:2 e 1 Pedro 1:16). Se penso a religião pelo viés da
separação, da dualidade do sagrado e do profano, do real e do imaginário, do
79
permitido e do restringido, com a instalação Canonizador AcSeita Coletivo
associando monges budistas, santos cristãos e católicos, o questionamento se
direciona para a questão da santidade como mandamento a quem busca a
religiosidade, questionando também a canonização como reconhecimento da
santidade como uma sacralização da busca religiosa.
80
Figuras 52 e 53 Canonizador AcSeita Coletivo; e Halo em detalhe. Exposição Pelas vias da Duvida; CCHO; 2012
Madeira, tecidos, plásticos, cadeira e instalação de luz, aproximadamente 2 x 3 x 1m.. Fonte: Coleção Particular.
81
A instalação Canonizador AcSeita Coletivo é composta de toalhas amarelas
herdadas de meu pai, protetores de mesa doados pela minha irmã, a estrutura de
isopor redonda que segura as luzes – que protegia a máquina de lavar, o primeiro
item comprado para facilitar minha nova vida em AS – lâmpadas, madeira e cordas.
O halo do canonizador já passou por algumas mudanças: as luzes que piscavam, a
semi-escuridão e o silêncio foram experimentados por poucos. A impressão de
precariedade da instalação, dependendo do contexto onde é apresentada, acaba
atraindo as pessoas que possivelmente não se aproximariam, já tendo sido instalada
em espreguiçadeiras, cadeiras, biombos, janelas e muros. É um trabalho que, ao
ocupar um espaço, pretende transformá-lo em ‘lugar’, criar afetos, gerar uma
experiência atemporal. A ambição do Canonizador AcSeita Coletivo é gerar
experiências interiores, questionamentos sobre a importância da religião e os
motivos pelos quais, hoje, falar nesse tema causa tanta aversão.
Bourriaud nos fala do conceito flutuante (ou radicante), cuja leitura convoca
vários elementos que flutuam em torno da forma, mas que só se completam quando
acontece a participação. Ao instaurar um imaginário de flutuação e de fluidez, a
proposta faz tudo gravitar em torno do trabalho que só se completa com o gesto
conquistado pelo artista; só quando o artista conquista a interação do espectador é
que ele consegue passar seu conteúdo/significado. Se não houver participação, o
trabalho é apenas forma, não tem raiz, não se pode buscar um sentido formal prévio.
Apesar de trabalhar com significados preestabelecidos, a releitura necessita de uma
série de predicados em forma de ações participativas, que produzam novos
significantes. A Resignificação da separação pedida para a santidade, e a própria
ideia de santidade é questionada.
Penso a Instalação Canonizador AcSeita Coletivo como flutuante (ou
radicante), pois a significação é dada pelo espectador ao assumir a coautoria; tanto
o questionamento da santidade quanto o sentido de ser santo ou apenas estar santo
não se completa sozinho; apesar de trabalhar com significados pré-estabelecidos, a
releitura necessita de uma série de predicados em forma de ações participativas:
não apenas o participar, mas o questionar é o que produz novos significantes, é
necessário que o espectador entre no jogo, que ceda sua imagem, que pose, que
brinque, se confesse, tome do meu ‘vinho’ e coma das minhas balas (outro recurso
utilizado como pagamento pela pose como santo). O Canonizador é investido de um
82
poder subjetivo de resgatar consciências; a descontextualização que propõe entra
pela crítica aos processos institucionalizados, questionando autoridades e
consequentemente problematizando quais são os deveres dos fiéis. Se não houver
participação, o trabalho fica apenas na forma vazia onde atua a lógica da ausência,
a existência de um lugar vazio mítico, passa a encarnar aquilo do que fomos
separados, a importância do objeto perdido logo após a primeira experiência de
satisfação.
O halo do Canonizador já passou por três versões. Nas primeiras duas
versões, as luzes piscavam; na primeira, a luz ora se apagava, ora estava “meio-
acesa”, atingindo apenas 1/3 das vezes seu potencial, o que gerava certa dificuldade
em atingir uma imagem de santo ‘brilhante’ e foi motivo para várias pessoas tirarem
muitas fotos até conseguirem atingir o ‘total estado de santidade’. Isso me fez
lembrar que no processo de canonização da igreja católica, quando uma causa é
iniciada, o candidato recebe um título Servo de Deus e passa por três processos, o
primeiro definido pela conferência de virtudes ou pelo martírio, no qual ele se torna
Venerável; no segundo processo, o da beatificação, é necessário comprovar um
milagre ocorrido (no caso dos mártires, não é necessária a comprovação de
milagre); sendo o terceiro e último processo a execução de mais um milagre para a
canonização, após a beatificação. Comprovado esse milagre, o beato é canonizado
e o novo santo passa a ser cultuado na igreja católica. Na segunda versão, o dobro
das luzes que piscam foi instalado, fazendo com que o halo sempre produzisse
alguma luz, e, na versão atual, tem instalado no halo uma lâmpada circular bem
mais forte, que permite uma canonização fora do biombo originário.
83
Figuras 54, 55 e 56 - AcSeita Coletivo. Canonização da Santa estilista e figurinista Marcela Mara
Três estágios de iluminação da primeira versão do Canonizador. Evento ManiKuss, RJ, 2012 Fonte: Coleção Particular.
Até o presente, houve sete eventos de Canonização, e o halo luminoso passou
por três transformações; a primeira versão, com dois estágios de luz e um momento
apagado (fig. Os três estágios de luz do primeiro halo do Canonizador), foi
apresentado no IX Festival de Apartamento de Campinas; no evento de arte e moda
ManiKuss e no Espaço Cultural Casa 24; mas em sua quarta apresentação, no
Centro Cultural Hélio Oiticica, ganhou o dobro de luzes para não haver mais o
momento em que ficava todo apagado e facilitar a obtenção de fotos; e
posteriormente uma luz circular mais forte e uma alça para facilitar o manuseio,
sendo apresentado sem as toalhas amarelas nos dois eventos em Belém: ANPAP e
Espaço Cultural Café8bar. (Ver Anexos F e G)
84
3.3.1 A Performance ‘Sede de Santos’ como geradora de ecossistemas estéticos
Para a pesquisa do mestrado, acreditei que deveria tentar registrar as pessoas
experimentando a sensação de estar em um ‘lugar para santos’, tentar registrar a
experiência para perpetuá-la, utilizando-me do registro fotográfico como um
resquício atemporal, que remete a um tempo outro, contínuo.
Durante o processo de registrar as apresentações da instalação, observei que
algumas pessoas se indispunham a se deixar registrar como santas, afirmando não
admirar santos, ou que simplesmente não estavam interessadas em assumir uma
postura de separação dos valores mundanos. Digo isso, pois a maioria dessas
pessoas que não queriam posar para mim, tirava uma foto – para si – como “santa”.
Senti então a necessidade de criar uma “performance” para vencer essa resistência
das pessoas em ceder sua imagem para ser associada à ideia de santidade, criar
algo que fosse igualmente sagrado e profano. O fato de ter trabalhado na Inglaterra
recrutando barmans para trabalhar em grandes eventos, e de ao sair desses eventos
constantemente me deparar com inúmeros bêbados caídos pelos cantos, e inspirada
então na libação greco-romana e no hábito de despejar o “primeiro gole pro santo”,
desenvolvi a “performance” Sede de Santos, na qual, tento vários métodos
persuasivos, sendo que após falhar na argumentação teórica proponho “moedas de
troca” diferentes como forma de persuadir as pessoas a posarem como santas;
inicialmente oferecendo em troca da permissão do registro da imagem-enquanto-
santo, a ser publicada em uma rede social da internet, drinques diferentes. A
performance Sede de Santos, em si não é registrada, pois é um ato disfarçado na
corriqueira ação de registrar um trabalho; é na verdade a ação da tentativa de
registrar o ‘publico/expectador’ dentro das diferentes instalações do Canonizador
AcSeita Coletivo; a performance em si é a argumentação usada no processo de
convencimento, e que não fica necessariamente registrada. Os argumentos
persuasivos foram em alguns dos casos apenas teóricos, como por exemplo, com as
pessoas que realmente acreditaram na proposição Arte como Religião; ou um
convencimento ‘persuasivo’, onde há o oferecimento de diferentes recompensas em
troca do ‘registro da canonização’, como por exemplo em alguns eventos, os
registros fotográficos foram trocados por drinques, doses de cachaça, ou
85
simplesmente com o riso que tal oferta causava nas pessoas (muitas aceitavam
posar após rirem muito da inversão de valores denunciada pela oferta do ‘gole do
santo’), sobre que a canonização que eu apontava estavaria em momentos como
aquele, em que o expectador está ali, sob o halo, separado de valores mundanos,
percebendo a excelência da matéria que o cerca, mesmo ela sendo considerada
lixo.
O que chamo de performance Sede de Santos é uma ação de convencimento
que consiste em pedir às pessoas que se deixem registrar como santas e tornar
essa imagem pública, e que normalmente se dá na vernissage e no fechamento de
exposições; associo tal ato de caça à imagens de santos vivos a uma busca por
sacrifícios humanos; a ação performática em si não é registrada, sendo apenas o
momento de convencimento do outro que fica registrado. As pessoas que posam
como santas são avisadas que as imagens dos participantes no interior da
instalação artística Canonizador AcSeita Coletivo, são disponibilizadas para o
acesso publico de qualquer pessoa que acessar o site do perfil AcSeita Coletivo na
rede social “Facebook”36. O Desejo é que a imagem vista á posteriori cause uma
sensação semelhante a da percepção que se prolonga em ação apontada por Jose
Gil37, que observou que quando assistimos a um espetáculo de dança, sentimos
nosso corpo também em movimento, mesmo que estando parado; e que aponte
também um processo de coisificação humana, pois ‘quando somos fotografados
viramos também uma ‘coisa’, um outro, desapropriado de nós mesmos’38. O
sacrifício é, no sentido etimológico da palavra, a produção de coisas sagradas.
Penso ser uma performance profana pois mesmo proclamando seguir um
mandamento de Deus (“Sede Santos”), não convoco os espectadores a se
separarem dos valores mundanos, mas a assumirem uma posição para serem
canonizados, e terem suas imagens expostas em uma rede social (Facebook). O
fetiche não permanece na obra, vai-se com a imagem que ocupou o espaço,
temporariamente, transformando a instalação em lugar.
Tal como os objetos criados com oratórios, armários, gamelas e ex-votos
descartados que (inicialmente) o artista mineiro Farnese de Andrade recolhia em
36 Endereço eletrônico: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo>. 37 GIL, José. Movimento total. 2004. p.328. 38 BARTHES,1984, p 29
86
praias e aterros; mesclado com a ideia da obra de Arthur Bispo do Rosário, um
paciente psiquiátrico que durante os 50 anos que passou internado produziu mais de
mil obras se utilizando do material que havia disponível, para tentar contar uma
história visualmente à Deus, quando morresse; o Canonizador AcSeita Coletivo
busca novamente trazer com o uso de lixo a atenção para a questão do consumo e
do descarte, fetichista por gerar um objeto mágico feito a posteriori, a foto como
registro de uma busca de santidade.
Figuras 57, 58 e 59 - AcSeita Coletivo. Santa Aline Oliveira e Santa Ana Rosa tomando o primeiro gole enquanto Santas.
Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3>. Acesso em: nov. 2012.
A ideia de explorar o conceito de santidade a posteriori, convocando esse
corpo que seria mero expectador a assumir uma postura, tomando uma posição para
que sua imagem possa gerar questionamentos, foi também motivada pela
87
Neurocientista Maria Cristina Ferraz, cuja investigação sobre memória e
esquecimento passa pelas mudanças ocorridas com a percepção e seus efeitos
sobre as novas formas de subjetivação, e que aponta o processo de modernização
ligado a uma percepção atrelada a um corpo cinético, que torna nossa subjetividade
cada vez menos vinculada aos meandros da interioridade e mais ligada à imagem do
corpo – sendo as subjetividades modernas fruto dessa ‘tendência crescente a um
declínio da interioridade, vinculada a um processo progressivo de somatização e
externalização do “eu”, tanto nas práticas quanto nos saberes contemporâneos’.39
Procuro pensar o corpo cinético não para negar o corpo psicanalítico – que
separa corpo/mente em corpo biológico e corpo representado/ erógeno, mas para
tentar achar pontes que liguem essas duas vertentes da representação corporal.
Embora a instalação busque proporcionar questionamentos por meio da experiência
interior, esse processo depende de vários fatores. Denunciando a manipulação
cognitiva dos dispositivos eletrônicos contemporâneos ao usar o álcool como moeda
de desejo/troca, denuncio a troca de valores resultante da desespiritualização
contemporânea dos corpos viciados em phamarkons. A imagem do espectador
enquanto santo é barganhada com cachaça, o oferecimento do vicio (um drink) para
obtenção da imagem de virtude é a fala irônica para denunciar troca de valores.
39 FERRAZ, Maria C.F. Homo Deletabilis, 2004, p.322.
88
4 O INEVITÁVEL APOCALIPSE DA ALUCINAÇÃO TEÓRICA
Ao investigar o sentido de religião a partir da ideia de separação, observei que
o pensamento ocidental é fruto da crença em uma realidade dual, paradoxal, que
pensa nascimento e morte, bem e mal, sagrado e profano. Sendo que o pensamento
sobre a dualidade no pensamento oriental seguindo por vezes pela via oposta, da
unicidade, da não-divisão; representada no Taoismo através da consciência dos
opostos como unidade. Se por um lado o ‘cristianismo’ prega o desapego ao corpo
através da negação à busca do prazer; o budismo também aponta a necessidade do
não-apego às sensações, através da não-aversão à dor e não-apego à prazeres
sensuais. A necessidade de escolha surge há muito tempo, através da constatação
da impossibilidade de uma compreensão simultânea de pensamentos opostos. O
desenvolvimento tecnológico possibilita um acesso maior à diferenças, o que tem
demonstrado uma importância cada vez maior em resgatar raízes que foram
subjulgadas e quase extintas. O fator tempo funciona como agente transformador,
um gerador de processos, que se torna uma realidade à parte, uma realidade não
apreensível, pois é a ‘passagem’ de uma realidade a outra, não se configurando
como uma ‘terceira realidade’, mas uma ‘realidade outra’.
Os relicários enquanto objetos artísticos questionam o sentido de uso e posse
que damos aos objetos que fabricamos e sua relação com a ‘natureza’ que
destruímos para isso, e juntamente com a instalação Canonizador AcSeita Coletivo
chamam a atenção para a questão da santidade como mandamento, e de sua
produtificação ocorrida por processos oikonomicos que, por vezes, acabaram
confundindo ao invés de exemplificar. Acredito que a dimensão religiosa dos
Relicários (artísticos) consiste em apontar que as memórias (consciência) que os
objetos nos trazem, ainda mais do que as palavras, são variáveis e impermanentes;
provocando o observador a identificar características cuja vasta possibilidade de
interpretação gera ressignificações; questionando se o uso que fazemos das coisas
poderia ser diferente; revalidando as escolhas erradas praticadas durante as buscas
religiosas (a busca pelo que é real, opaco), relembrando que fazem parte do
processo e não invalidam a busca.
89
A dimensão religiosa da instalação Canonizador AcSeita Coletivo estaria
diretamente relacionada à demanda de participação do espectador, fazendo com
que a experiência interior seja uma condição da existência do trabalho, mesmo que
ela só se dê a posteriori (você só se torna realmente santo quando entende o
significado da ação, indiferente de ter sido registrado em fotografia).
E a transgressiva proposta da performance Sede de Santos, ao seguir pelo
viés do corpo cinético buscando com o registro fotográfico da ação garantir a
possibilidade das experiências interiores a posteriori, registrando um corpo que tanto
pode querer lembrar quanto esquecer sua memória de ‘santidade’, apontou uma
nova pesquisa possível ao conceito poético Arte como Religião: a de associar
artistas a profetas e outros seres religiosos, observando, nas releituras de símbolos
e signos, ressignificações de mitos e ritos.
Afirma poeticamente a religiosidade desses artistas, nossos novos
contemporâneos, politizados, conscientes, radicais, etc., que apontam as mudanças
necessárias, por vezes expondo os ‘reis nus’, por vezes se sacrificando, por vezes
clamando como loucos por novas revelações para suas sociedades.
4.1 A catalogação de santos vivos, com seus vícios e virtudes
Minha concepção poética Arte como Religião propõe um olhar para a arte
como um dispositivo de intensificação capaz de tornar o ser humano um sujeito
melhor, ocupando este lugar que deveria ser o da religião, o de promover harmonia
e respeito entre grupos diferentes. Da investigação da santidade por intermédio do
viés do artista etnógrafo que investiga essas vidas separadas transformando os
objetos usados pelos Santos Vivos em relicários, surgiu a ideia de desenvolver um
trabalho de catalogação de artistas canonizados. A possibilidade de catalogar certos
artistas como novos profetas é apontar momentos em que a arte revela,
inevitavelmente trazendo à luz o que está escondido.
“A diferenciação entre bairros ricos e pobres levou à expansão da periferia da cidade, assim como a separação entre a residência e o local de trabalho tornou necessária a criação de uma rede de transportes capaz de garantir a circulação regular entre uma zona da cidade e outra. E é neste momento que Baudelaire nos mostra o flâneur, o vagabundo errante, sobrepõe o ócio ao “lazer”, é aquele que se contrapõe à vida como um modo de produção serial, a esquizofrenizante divisão do espaço moderno, desafiando a divisão do trabalho. Ele não existe sem a multidão, mas não se confunde com ela. Ele caminha no meio da
90
multidão e o efeito narcotizante que esta exerce sobre o flâneur, é o mesmo que a mercadoria exerce sobre a multidão." (D”ANGELO. In. A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin)
A sacralidade destituída pela racionalização se torna uma das causas do
eterno retorno. São o impensável e o inefável que precisam ser ditos; é a
transgressão prescrita pelo interdito. A palavra profeta tem raízes diferentes, no
hebraico profeta significa pacto, profeta, vidente. A palavra hebraica que refere-se
ao profeta o indica como porta-voz, aquele que prevê, um arauto. A palavra grega
prophetes, da qual se deriva a palavra profeta em português, significa “aquele que
expõe, fala sobre certo assunto em lugar de outrem”. O que chamarei de “profeta”,
no texto, seria o que Giorgio Agamben chamou de contemporâneo. Aquele que vê e
proclama a obscuridade de seu tempo.
O silêncio, o ruído, o som, a voz, a fala. O hieróglifo egípcio representado pela
boca designa o poder criador e, enquanto isso, a boca nos remete à consciência
integral. A antropologia do som aproxima a fala do corpo. O som, por ser impalpável
e invisível, atribui propriedades do espírito à voz, o que a torna “o elo comunicante
do mundo material com o espiritual e invisível”40. Daí o uso mágico do som em
diversas culturas. Os griôs são contadores de histórias que recuperam a potência
vocal da humanidade, com a missão de manter a história através da voz viva da
comunicação oral, colocando em causa o próprio corpo. Dentro da perspectiva do
registro dessa voz, o ato de ler possui uma reiterabilidade própria, pois apesar da
improbabilidade de que “lendo em seu quarto, você se ponha a dançar”41, temos
hoje a consciência de que, mesmo parado, o corpo “dança”, já que “a dança é o
resultado normal da audição poética”. Quanto à oralidade, pode-se aplicar a noção
de performance à percepção plena de um texto literário, puramente visual, que muda
de acordo com o funcionamento da voz poética. Constatação empírica de que a
performance é o único modo vivo de comunicação poética e o que, na performance
oral pura, é realidade experimentada, na leitura é da ordem do desejo. Nos dois
casos constata-se uma forte implicação do corpo.
40 WISNIK. 1999. 41 ZUMTHOR. 2007.
91
4.2 Corpo e voz no espaço, a performance do artista-profeta como a vida num
grau a mais
Observando que uma imagem é também sonora e até muscular, a doutora em
comunicação e semiótica Christine Greiner define imagem como “um padrão mental
com uma estrutura construída com sinais provenientes de cada uma das
modalidades sensoriais”42. Dentro deste mesmo pensamento do corpo como um
processador de laços comunicativos, a neurocientista Maria Cristina Franco Ferraz
aponta que os modelos constituídos da ciência, ao subtrair o corpo da sensibilidade
e da experiência – devido à nova percepção da captação das imagens pelo olho,
que permite enxergar o homem como extensão do mundo e vice-versa – gerou um
novo regime de atenção permeada por variadas formas de desatenção, que
produzem uma crescente fragmentação da percepção do mundo e uma
subjetividade moderna porosa e flutuante. Essa modernização da percepção tem
gerado novas formas de ‘industrialização da contemplação’43, similares a estados
relativos de hipnose e sonambulismo.
“A imagem passa a ser efeito e produto de um corpo vivo, humano, com seu modo de funcionamento específico e facilmente afetável. Pós-imagens e cores fisiológicas [...] podem ser produzidas por socos em um olho ou pela ingestão de substâncias alucinógenas.” (FERRAZ, 2004, P. 321)
Essa indeterminação da percepção atenta teria resultado em variados
dispositivos de intensificação, apostando na instabilidade para reinventar a
experiência perceptiva e renovar as práticas representacionais e gerando uma
subjetividade mais ligada à imagem do corpo em vez da interioridade. Como propõe
o sociólogo Zygmunt Bauman44 surgem então os colecionadores de sensações
instantâneas, para quem o caminho para a felicidade passa obrigatoriamente pela
necessidade de satisfações imediatas, agravando a procura pelas sensações
causadas pelas drogas, pelo prazer do sexo, pela endorfina liberado pelo exercício
físico e pelas compras. Uma resposta a um perigo que a atual estrutura social
42GREINER, Christine. O Corpo. Pistas para estudos interdisciplinares. 2006. p. 71. 43 FERRAZ, Maria C. F. 2004. p. 319. 44 BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
92
parece ignorar, a falta da verdadeira religiosidade – plena de alteridades –, fazendo
com que ter passe a ser mais importante do que ser.
Essa perspectiva de uma tendência crescente a um declínio da interioridade,
vinculada a um processo progressivo de somatização e externalização do eu, tanto
nas práticas quanto nos saberes contemporâneos, supõem um corpo superexcitado
que se contrapõe ao corpo intensivo de Deleuze, que o filosofo português José Gil
busca articular para tornar inseparáveis o corpo e o movimento. A noção de
movimento total quanto à ideia de movimento nascente remete diretamente ao
pensamento de que a percepção se prolonga em ação, uma consciência do corpo,
que por ser vivo, permanece em movimento, mesmo que infinitesimal.
“Para que a consciência do corpo emerja, é necessário descentrar a consciência (...) como consciência do corpo e corpo de consciência – irá corresponder, em Gil, uma noção de inconsciente remetida às forças e energias intensivas do corpo, vinculadas ao estatuto paradoxal dessa superfície dotada de profundidade que é a pele (...) Gil assinala de que modo a pele não é uma película superficial, mas “prolonga-se indefinidamente no interior do corpo”. (GIL, José. Movimento total. 2004, p. 328)
O historiador e filólogo Paul Zumthor45 percebe na elocução crítica a
percepção sensorial do corpo como organismo vivo a partir do efeito das
transmissões orais da poesia. Pensando a voz como emanação do corpo, que
sonoramente o representa de forma plena, percebe na memória do cantor de rua a
realização da vivência do espetáculo, por meio da combinação das frases,
versificação, melodia e mímica do intérprete. No nível em que o discurso é vivido, ele
nega a existência da forma que, com efeito, só existe na performance, pois a
performance é sempre constitutiva da forma. A performance rege simultaneamente o
tempo, o lugar, a finalidade da transmissão e a resposta do público, engendrando o
contexto real e determinando o alcance da mensagem.
Muitas culturas no mundo codificaram os aspectos não verbais da
performance e a promoveram como fonte de eficácia textual, cuja competência
passa a ser o saber ser. Um saber que implica e comanda uma presença e uma
conduta; e reconhecem que a performance modifica o conhecimento, não
simplesmente comunicando, mas deixando marcado quem a assiste. Um exemplo
45 ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naif, 2007
93
dessa força de performance é o da ‘menina pastora’, citada por Gilberto Icle46, que
assume uma dimensão pulsional ligada a sua voz. Um discurso que possui algo da
ordem da pulsão invocante, cuja fala possui algo do grito que remete à dimensão
real da voz, um apelo imperativo que se dirige ao Outro; e faz com que a referência
aproximada à palavra, beirando a sedução, se torne conteúdo associado ao saber
prometido, a uma transmissão simbólica. A palavra falada da ‘menina pastora’ tem
força cênica performática; a ‘palavra’ em si perde sua importância devido ao
comportamento espetacular criado por sua performance, que se baseia numa
imanência da pré-expressividade.
4.3 Corpos-suporte
O corpo para o dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett é abjeto; para
os místicos, uma experiência sublime que excede a linguagem e a razão; para o
poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês Antonin Artaud
é subjétil; e para o filósofo fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty esse
quiasma, que faz a carne e o pensamento se voltarem sobre si próprios. Merleau-
Ponty e Artaud pensam a arte como um fenômeno que restitui, pois possibilita uma
forma de se aproximar desse vazio paradoxal, assim como de sua fonte e de seu
lugar de enunciação, e cujas imagens e palavras passam a adquirir uma densidade
corporal.
Merleau-Ponty deseja misturar o estatuto da arte com ciência, enquanto
Artaud quer trazer o estatuto da vida para a arte, a experiência como o que há de
mais profundo, o corpo que fala e cuja fala é inarticulável, a resistência da língua, à
procura de algo que a palavra não consegue articular e o corpo é forçado a recordar.
Merleau-Ponty critica a ciência que deixa de ser ‘religiosa’ à medida que se torna
autônoma, parando de observar a natureza e passando a observar estatutos criados
e reproduzidos numa “contínua manipulação das coisas sem as habitar”47, cujos
modos operativos destituem o homem de sua natural vocação de perceber a
46 ICLE, Gilberto. In: Repertório: teatro & dança - Salvador: UFBA/ PPGAC, 2009. 47 MERLEAU-PONTY. O olho e o espírito. 2007.p.13
94
imanência das coisas através da memória corpórea, e reclama a necessidade de
despertar a consciência do corpo para compreender o homem como extensão do
mundo e vice-versa. Merleau-Ponty pensa o corpo do artista como um instrumento
religioso de decodificação do mundo, dando existência visível ao que a visão
profana crê invisível e praticando uma teoria mágica da visão: a pergunta se faz no
artista. Aponta também a necessidade da busca de outros sentidos que a visão,
tornando a arte metafísica, ressaltando a necessidade de se voltar ao ponto em que
as coisas ainda estão em estado bruto, pois isso nos faz ver na ausência do objeto
verdadeiro como se vê o objeto verdadeiro na vida por meio da imbricação e da
latência.
O artista-profeta Artaud indica novas possibilidades de subjetividade, o
aspecto religioso e místico do ato performático e, consequentemente, provoca o
esvaziamento de outras subjetividades, ensinando que a vida se faz vivendo e que
as palavras não são as coisas que representam. Com o Teatro de Bali, físico e não
verbal, aprende que a necessidade de sentir deve ser maior do que a necessidade
de compreender. Sua ideia de acabar com as “obras primas” é permitir a vida se
reformular. Critica a mera admiração literária como atividade espiritual neutra, que
nada faz e nada produz, pregando a crueldade como o direito de romper com o
sentido usual da linguagem, crueldade como rigor, aplicação e decisão absoluta.
A arte de Artaud busca expressar a visceralidade da peste por meio de um
corpo que luta para não ser alienado, uma arte que quer se fazer visível também
pelas sensações. Denunciando um mundo que se desvirtua cada dia mais,
invertendo vícios em virtudes, Artaud denuncia o uso repugnante e sórdido de
instituições como dispositivos usados para desacreditar artistas-profetas, citando
Gerard de Nerval e Van Gogh (entre outros) como loucos48, pois faziam parte
daqueles que se atreviam a questionar os sistemas, apontando os erros e
conformismos das instituições. Fala do impulso de rebelião reivindicatório que está
na origem do gênio reprimido pela força das instituições, cujo atavismo que faz com
que se enxergue em cada artista, em todo gênio a sua frente, um inimigo; que
necessitam calar toda forma de denúncia ou novidade. Percebo essa mesma
48 ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida, 2008.
95
energia de visceralidade da peste nas apresentações da “Solange, tô Aberta!”, que
vem desde 2006 desestabilizando corpos e fronteiras.
Figuras 60 – Canonização de Solange tô Aberta!; e 61 - Detalhe da instalação Santa Trindade.
STA! sendo canonizada na Casa 24; Caixa de luz com impressão em duratrans 45x32X20; 2012. Fonte: Coleção particular.
O projeto funk-carioca-queer “Solange, tô aberta!“ foi criado em 2006 pelos
artistas Pedro Costa (uma carioca suburbana, como Sara Panamby49 insiste em
registrar) e Paulo Belzebitchy em Salvador (BA), como homenagem às travestis e
um grito pelas sexualidades não-heteronormativas. Atualmente o projeto é realizado
apenas por Pedro Costa e/ou artistas convidados. Suas músicas falam sobre a
ditadura heteronormativa em relação às identidades binárias de gênero, ou seja,
homem e mulher, mas também contestam, desconstroem e expõem situações,
costumes, comportamentos e discursos adotados por diferentes segmentos da
sociedade, sempre com boas doses de irreverência e humor.
49 SILVA, Sara Panamby Rosa da. O Corpo-Limite. Rio de Janeiro, 2013. 210 p. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
96
“Tem muito gay que vai pra sauna ou boate, passa a vassoura, chupa todo mundo, transa até com o vaso sanitário e vem dizer que a gente fala muita baixaria, que estamos queimando o filme da comunidade ou coisas do tipo… Fazer pode, mas falar não. Por isso que a gente vai lá e fala…(Entrevista com Solange tô Aberta! In: <http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/blog/2008/01/14/entrevista-solange-to-aberta/>)
Tive a oportunidade divina de canonizar “Solange, tô Aberta!”, personagem de
Pedro Costa50, no espaço cultural Casa 24, para compor a Tríptico Santa Trindade
juntamente com Filipe Espindola e Mme. Escarnificina (Sara Panamby), antes da
‘primeira morte’ de “Solange, tô Aberta!” no show de encerramento do IV Seminário
de Pesquisadores do PPGArtes-Uerj: Vômito e Não. Práticas Antropoêmicas na Arte
e na Cultura51, realizado no cabaré Kalesa com abertura de Anarco Funk52,
fechamento de Paulo Belzebitchy e inúmeras participações especiais (inclusive de
Santos AcSeita Coletivo). Acredito serem santos não apenas por sua religiosa
capacidade erótica, mas ao observar que o ser humano nasce sexualizado – que
todo mundo, em algum momento, sente desejo de fazer sexo, não importa idade,
classe ou credo – sendo as instituições os dispositivos normatizadores usados para
controlar/dominar o sexo/prazer, controlando assim os desejos individuais. Ressalto
que a importância de resgatarmos o conceito de religião (e suas diferentes práticas –
inclusive as artísticas) é por ter sido inicialmente o fenômeno responsável por
instaurar respeito às alteridades dentro de suas comunidades, até apontando
posturas ou opções como erradas, sim, porém tentando promover respeito por quem
queria ou precisava ser diferente. O livre arbítrio enquanto decisão divina torna
religioso quem exige respeito a todos, sendo sua capacidade religiosa a de amar as
diferenças.
50 Pedro Costa, atualmente residente em Berlim (DE) desenvolve o projeto A Revolução é Meu Pau Mole, que prevê a criação de uma trilogia de filmes pornoterroristas sobre o alquebramento do falocentrismo. 51 Evento realizado em outubro de 2013 na UERJ. Presidente da Comissão: Prof. Luiz Cláudio da Costa. 52 Grupo artístico multimídia funk-rock carioca, que cria e divulga musicas com questionamentos ácidos sobre os mecanismos da máquina societal. https://www.facebook.com/anarco.funk?fref=ts
97
4.3.1 O Corpo-dispositivo e o trabalho de Ron Athey, Filipe Espindola e Sara
Panamby: do sacrificial ao sagrado
Muitas vezes, o sacrifício humano substitui o sacrifício animal, sem dúvida na medida em que o homem, afastando-se do animal, a morte deste, em parte, perdeu seu valor angustiante. (BATTAILLE, 2013. p.111)
O iconoclasmo e a iconofilia, a imagem como interdito que revela a violência, o
vício da busca de significações e representações. A palavra que é calada, a imagem
que é coberta, mas que constantemente retorna. As performances extremas de Ron
Athey, Filipe Espindola e Sara Panamby se utilizam do corpo como objeto sacrificial,
um corpo em devir que nos convoca à experimentação, ao desafio e ao risco. Tal
como uma entidade, se torna objeto de culto e zelo. A escatologia do ser religioso ao
revelar, expor o divino que existe no mundo e o mundano no divino. A busca de
‘profanar o improfanável’.
A noção transgressiva da escatologia de Georges Bataille estabelece uma
relação de correspondência entre os processos orgânicos e/ou fisiológicos e os
fenômenos obscuros da vida social, a parte maldita ou excesso, a parte que deve
ser desperdiçada por bem ou por mal, (citada no livro "A Noção de despesa" de
Bataille) Observa-se que toda comunidade humana num dado momento sente a
necessidade de viver esse excesso, que geralmente se organiza em rituais festivos,
sendo a parte maldita um pensamento subversivo que ressignifica os fenômenos
desprovidos de utilidade, tais como a violência, a festa, o jogo, o sexo sem finalidade
de reprodução. Durante os anos 30, no plano pictórico, Bataille e os surrealistas
fragmentaram os corpos humanos de tal modo que a imagem do acéfalo foi
considerada a síntese de uma época. Deu-se um movimento por meio do qual o
corpo em pedaços, que no século XIX fora pintado para os atlas anatômicos, entrou
definitivamente para o universo pictórico da arte, embora até então se houvesse
mantido incólume à fragmentação que lhe fora imposta pela ciência anatômica. A
questão do excesso de imagens que por meio da aceleração e da desconexão
produz imunização sensorial: no mundo cada vez mais insensibilizado, não só os
vícios como o excesso de imagens anestesiam, insensibilizando ao estimular ao
extremo as sensações – um cansaço que nunca chega ao esgotamento – o novo
homem-robô que necessita de altas doses de prazeres intensos.
98
O corpo enquanto categoria filosófica: corpo-objeto, corpo-suporte, numa
percepção da arte não como mercadoria – suscetível ao mercado – mas voltada
para sua vocação ontológica, da apresentação de um mundo (des)estruturado. O
corpo que luta para não ser alienado deixa de ser mero sujeito, tornando-se
dispositivo ao se expor como suporte, desconstruindo os modelos que buscavam
subtraí-lo da sensibilidade da experiência. O corpo que se expõe é mutilado ao
tentar se tornar verbo; a exposição de corpos mutilados e martirizados se prolifera
após a II Guerra Mundial – “o ritual máximo de violência”53. Se a ciência se deparava
com a necessidade de limites aos excessos da experimentação com seres humanos,
a arte se deparava com a necessidade de transpor os limites no uso do corpo que
haviam sido traçados pela arte clássica e pela moral. Ele é retirado do lugar
normatizado das sociedades com engrenagens sofisticadas para ser exposto em
uma dimensão de sacralidade, como um interdito-que-precisa-retornar. A relação do
corpo dentro da experiência artística como elemento religioso, uma ferramenta para
a corporificação de pensamentos; a experiência sensorial que ressurge durante o
ritual e visa a despertar pensamentos que perturbam, mas precisam ser
relembrados. A visibilidade da violência do sacrifício que busca resgatar essas as
imagens internas do corpo, reduzindo assim a violência externa.
53 SELIGMANN-SILVA, 2003
99
Figuras 62 e 63 - Ron Athey - St. Sebastien/50
Ron Athey e Filipe Espindola na performance St. Sebastien/50. Fonte: Festival Entre Lugares, RJ, 2012
Em tempos em que a cultura celebra o “oco” e o vazio incapaz de restaurar o
vínculo do homem criador com seus espaços naturais, destaco a especificidade do
artista-profeta ao retratar o novo ethos da sociedade burguesa. Ron Athey apresenta
a performance St. Sebastian desde 1990, como parte de sua série sobre mártires e
santos. Tive a oportunidade de presenciar a performance que se deu no Espaço
Cultural Sergio Porto no dia 23 de junho de 2012, com a presença do percussionista
Rafael Rocha e do body-piercer Santo Filipe Espindola. Em conversa, Ron contou
100
como as imagens de St. Sebastian da obra de Yukio Mishima e de Derek Jarman
provocaram nele uma forte sensação erótica e como isso o influenciou a criar sua
performance, em que ele atinge um estado de transcendência que o tem feito repeti-
la por mais de 20 anos, numa busca de atingir um maior discernimento sobre
questões como a liberdade sexual e a expressão pessoal. Ao som de percussão,
nos é mostrado um “corpo sexual”, que sofre perfurações de flechas e é alçado. A
percussão para e o corpo entra em convulsão. Ouve-se a voz, não é uma fala
inteligível, são ruídos, semigritos. A performance de Ron também provoca
inquietação a respeito da questão da segurança do corpo: o pharmakós sacrificial ou
um pharmakon que tanto pode mascarar, curar ou matar. A questão da arte abjeta
em oposição à ciência estéril, e asséptica.
Em pauta a questão da dor como forma de transcendência – a observação
religiosa de que as sensações corporais do prazer e da dor são as mesmas. O
arremedo de castração, em que o falo é distorcido, apagado ou ignorado. A
interpretação dos atos sexuais das apresentações é ampliada para além do que é
prazeroso ou “sexy”.
“Os experimentos artísticos, diferentemente dos científicos, não problematizaram a vida com base na lógica biopolítica de compensação entre riscos e benefícios à população. Assim, usar o termo experimento para referir trabalhos artísticos pode soar estranho; serve-nos, entretanto, para assinalar dois aspectos: 1) o caráter de tentativa sem conhecimento prévio dos resultados das ações; 2) as consequentes transformações na matéria. Segundo Pelbart (2003) são “experimentos sem verdade”, ou seja, que não procuram comprovar ou negar hipóteses, nem chegar a fatos. A arte não busca o mesmo valor de verdade que a ciência; não está submetida ao mesmo regime de produção de verdade que tem na objetividade um de seus principais parâmetros.” (GALINDO, 2009)
Na tentativa da construção desse sentido religioso nas manifestações
artísticas, as dimensões indissociáveis das corporeidades precisam ser
consideradas para possibilitar um novo tipo de recepção cognitiva – é necessário
insubordinar os sentidos na percepção das sensações, buscar a outra consciência
que o estímulo sensorial provoca. O que é extremamente complexo, porque o
indivíduo, ao se conscientizar de uma sensação, o fará de acordo com seus
patrimônios cognitivo, volitivo, afetivo e instintivo.
“Ron Athey subvertia a lógica do rechaço incorporando material humano e ao mesmo tempo mostrando a força de nova intolerância, através da questão sobre o potencial risco à saúde do público, amplificada pelo
101
medo do contato com o fluido corporal de uma “pessoa poluente”. Nas incisões e aplicação de implantes, em vez de vítimas, os adeptos são protagonistas, pois controlam as condições de realização do trabalho sobre seus corpos. Os artistas e adeptos das modificações corporais se submetem a dor controlada.” (GALINDO, 2009)
De tempos em tempos a questão dos mitos demanda ser revista e
reformulada, surgindo questionamentos como quem são as novas Medusas, cujo
amor extremado produz morte; ou os novos Marqueses de Sade, que, utilizando-se
da arte como anteparo, tornam visível o impensável, dando voz à violência extrema
ao retratar a total falta de alteridade da busca extrema e contínua do prazer; em um
prenúncio-denúncia de um total individualismo e da inconsciência de ser parte de
algo que vem se espalhando na sociedade atual.
Alerto para a santidade do artista quando este percebe e se utiliza do corpo
como um campo pleno de potências e detonador de processos culturais, sociais,
estéticos e éticos. Capazes de recriar rituais, retratando os mitos corporificados
através do próprio corpo, e ressignificando tradições dos antepassados que trazem
proteção divina; sendo o corpo, por vezes, também transformado em totem. Os
rituais de passagem tratam de compreensões de mundo que são criadas a partir da
percepção da fisicalidade das coisas pela experiência de sua corporeidade em
relação a tudo que o toca. Isolamento, frio, fome, às vezes extremos, eram utilizados
nesse sentido; não era o rito de passagem simplesmente como transição de um
período para outro da vida, mas também como de um estado de consciência para
outro. Das tantas performances com forte aspecto religioso de Sara Panamby e
Filipe Espindola que tive oportunidade de conhecer (algumas tive a honra de
presenciar, outras apenas conheci em palestras), escolhi o ritual performático
Compassos do Ocaso54, realizado na Virada Cultural de São Paulo em 2011 para
citar como exemplo de uma linda ressignificação de ritual de passagem que possui
um caráter mágico da cura por meio de um processo de libertação.
54 Disponível em: <http://vimeo.com/23509939>.
102
Figuras 64 - Sara Panamby e Filipe Espindola. Compassos do Ocaso; e 65 - Defesa de mestrado de Sara,
RJ/2013
Virada Cultural, SP/2011. Disponível em http://piercer-snoopy.blogspot.com.br/2011/03/piercer-snoopy-
frrrkcon-virada-cultural.html > Acesso em agosto 2013; Casa 24; RJ/2013. Fonte: Coleção Particular.
O ritual performático Compassos do Ocaso é uma homenagem póstuma, uma
celebração da morte e da vida que sobra que foi desenvolvido em homenagem à
avó (e ‘mãe’) da artista Sara Panamby, dona Rita Maria da Silva, falecida na
madrugada do dia 1º para o dia 2 de janeiro de 2011. Foi inspirado no Kuarup, um
grande ritual das tribos xinguanas, uma homenagem dos guerreiros aos seus mortos
ilustres, que se inicia no seu preparo, o ritual inteiro possui diversas possibilidades
103
de interpretações e leituras, desde a escolha dos elementos, da preparação, onde
toda historia e verbalmente relembrada, num pessoal resgate cultural. A totemização
da morte dos grandes avós guerreiros – Rita, Palmyra e José Rosa –, por meio do
sacrifício simbólico e verdadeiro da suspensão corporal como uma homenagem
àqueles que os ‘carregaram nas costas’, tem seu apogeu na performance ritualística
Compassos do Ocaso, com a suspensão corporal de Sara Panamby e Filipe
Espindola. O ritual, na realidade, começou na sua preparação, cuja concepção teve
início em janeiro de 2011, passando por uma imersão artística e espiritual feita com
a família e parceiros de performance, para a preparação do espírito, do corpo e dos
objetos artísticos/ritualísticos que seriam usados, na semana prévia à performance
pública, e só terminando quase uma semana depois, após uma gira de caboclo
realizada no dia seguinte à apresentação e do ritual de fechamento de corpo da
Sexta-Feira Santa. No domingo, dia da performance pública, os participantes
começaram de manhã cedo auxiliando na preparação do Kavadi, executado pelo
artista Alexandre Peco (Campinas/SP), um belíssimo ritual indiano de devoção ao
deus Murugan, em que o devoto caminha com dezenas de lanças apoiadas no
corpo, formando uma grande estrutura de flores, frutas e guizos, e de uma mesa de
discussão sobre body art e body modification com Cláudia Machado (RJ) e T. Angel
(SP). A performance pública Compassos do Ocaso ocorreu no Lgo. do Paissandu
(SP) e contou com a participação de Renata Borges, Michelle Mattiuzzi e Petronio
Tales, vestido como orixá Obaluaiê no momento da suspensão fazendo colagens
sonoras de pontos de umbanda, e Alecto Maracatu.
Filipe Espindola, Pedro Costa e Sara Panamby são artistas que cujo
entendimento espiritual sobre o desapego do próprio corpo, que os permitem se
utilizar dos seus corpos como suporte, fato que considero o mais próximo da
consciência do personificador que gerou o catolicismo. Isso foi o que me inspirou a
convidá-los a serem canonizados para compor uma Santa Trindade para o AcSeita
Coletivo.
104
Figura 66 – Tríptico Santa Trindade AcSeita Coletivo.
Caixas de luz com impressões sobre duratrans. 2012. Fonte: Coleção particular.
4.3.2 O Coletivo como um corpo social
O resultado estético da performance Sede de Santos me inspirou a tentar
mapear os artistas canonizados, porém, devido à proporção que tomaria, não
caberia em uma dissertação de mestrado. Colocar toda e qualquer pessoa como
santo do AcSeita Coletivo é uma forma transgressora de mapeamento, que vai aos
extremos; enquanto um dos argumentos de convencimento para a canonização é a
consciência da dualidade espírito-matéria, o outro é um apelo a ceder ao prazer: a
oferta de um entorpecente em forma de bebida. Quanto mais santos, melhor! O
objeto do qual eles se separam passa a não importar mais. A tentativa de capturar a
imagem dos outros como santos é ao mesmo tempo uma paródia e uma tentativa de
mapear o que virá a ser essa nova religiosidade prenunciada por Vilém Flusser, pois
apesar do dispositivo desejar produzir subjetividades, a performance procura
produzir imagens que gerem questionamentos a posteriori em quem não for
inicialmente afetado pelo dispositivo.
105
Figura 67 – David Medalla. London Biennale. 2000
Fotografia Digital; Londres, 2000. Fonte: Coleção Particular.
As imagens geradas com a performance Sede de Santos têm produzido um
sistema de mapeamento artístico, mapas de pessoas em lugares, agrupadas dentro
de diferentes contextos, tais como eventos de moda, eventos de arte, exibição de
pós-graduandos em artes visuais e festivais. Isso me recordou outros movimentos
artísticos de que tive a oportunidade de participar, como a proposta artística London
Biennale, do artista David Medalla (fig. 67), e o projeto Humanaes, da artista carioca
Angélica Dass. A London Biennale de David Medalla, foi iniciada em agosto de
2000, com a proposta de ser uma bienal de artes aberta a toda pessoa que quiser
participar, independente da formação profissional, e contou com a participação de
artistas de variadas partes do mundo. Possuindo o formato de um evento “faça-você-
mesmo”, as únicas exigências para a formalização da participação consiste em
enviar uma foto de si mesmo – ou fotomontagem – segurando uma ‘flecha’ apontada
para a estátua de Eros da Praça da Picadilly Circus, no centro de Londres, e do
registro do trabalho sendo exposto, em qualquer tipo de local, com qualquer tipo de
106
mídia, durante o mês do evento. O mapa de artistas e eventos da London Biennale
contém tanto grandes nomes da arte contemporânea quanto de artistas de rua, e
são publicados em blogs, gerando um mapeamento democrático e ‘polinizações’55
da ação em diferentes países. Tal como no evento artístico London Biennale, onde
todos que fazem arte e expõem são considerados membros, na performance Sede
de Santos, todos que cedem suas imagens são considerados santos, fazendo do
Canonizador AcSeita Coletivo uma analogia à estátua de Eros da Picadilly, por ser
um elemento que agrega.
55 Tal como o ‘Rio Trajetórias’ no Rio Janeiro em 2000, ‘Changing Channels’ em Berlin em 2001, e outros em Nova Iorque, Roma e Cremona.
107
Figuras 68 e 69 - Angélica Dass. Humanaes
Angélica Dass e Mariana Scarambone, catalogadas pelo Humanaes. Fonte: Disponível em <http://humanae.tumblr.com> Acesso em: ago. 2013.
O projeto Humanaes é de um inventário cromático, em que Angélica Dass (fig.
68) fotografa e cataloga as pessoas na frente de um fundo branco, selecionando a
cor de cada pessoa por meio de um quadrado no nariz do "modelo", onde busca
108
uma cor correspondente no catalogo Pantone56, aplicando no fundo branco a cor da
pele e deixando o código do catálogo em uma faixa branca abaixo da foto. Inspirado
na variação de cores de sua própria família, Angélica é negra, descendente de
índios, e filha de pai negro adotado por família branca; ela busca a partir do projeto
desenvolver outro olhar sobre questões de identidade social, cultural e racial, que vá
além das fronteiras de códigos preexistentes. Penso que as semelhanças entre o
mapeamento dos Santos Vivos e o mapeamento gerado pelo projeto Humanaes da
artista carioca Angélica Dass não sejam apenas por ambos terem tido origem na
história pessoal, e reunirem pessoas diferentes em fotografias com formas
padronizadas de registro, mas também por reunir imagens de pessoas para gerar
questionamentos a posteriori.
Os artistas profetas seriam aqueles ‘santos’ que, se utilizando da arte, pregam
a necessidade de uma maior harmonia entre as diferentes classes sociais,
questionando e investigando os valores sociais vigentes até mesmo por meio da
transgressão de interditos. A obra dos Artistas-profetas, cuja voz faz vibrar o corpo
que passa a se reconhecer não como outro corpo, mas como parte dessa vibração
poética, é uma “emanação do corpo que sonoramente o representa de forma
plena”57. A audição não é editável, por isso que é nos sons, nos lapsos e nos chistes
que pode ocorrer o processo analítico.
O artista-profeta contemporâneo, tal como uma voz que clama do deserto,
retrata a necessidade de um distanciamento para dizer o que precisa ser dito. O
deserto seria como os não-lugares proposto por Marc Augé, um lugar de
impossibilidade de relações de alteridade: as cidades da sociedade de informação e
consumo; guetos de ilegalidade criados pela falta de poder econômico para se
transitar na legalidade, que são ocupados com pichações e grafites. O silêncio da
violência e a civilidade da palavra58 se contrapõem na contemporaneidade dessas
vozes que são grafadas nos muros para serem percebidas; são as vozes dos
artistas-profetas que pedem mais alteridade e gentileza e também dos que tentam
deixar registradas suas existências na tentativa de fugir do aprisionamento
56 Pantone Inc. é uma empresa conhecida pelo seu sistema de catálogo de cor. 57 ZUNTHOR, Paul. 2007 58 BATAILLE, 1987.
109
mascarado das cidades, fábricas, instituições escolares e clínicas. Nas artérias do
corpo-cidade que quebra laços com a terra, relacionamentos familiares e sociais são
diluídos.
No sentido que proponho com o conceito poético Arte como Religião, a
proposta do Movimento Cidades Invisíveis (ver Anexo I – Movimento Cidades
Invisíveis) da artista e arte educadora Ítala Isis trabalharia gerando artistas-profetas,
ao produzir com sua arte formas de protesto que demandam a participação de
outras pessoas, gerando, além do questionamento do comportamento da sociedade
e de seus governantes, registros de experiências transformadoras.
Tive oportunidade de registrar/participar de algumas das ações poéticas
promovidas pelo Movimento Cidades Invisíveis, observando essa capacidade de
gerar ‘profetas’ por meio de performances. Na performática instalação Oferenda
(figs. 70 e 71), a ação que consistiu na construção de uma Mandala de sal grosso,
arruda e pimenta em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, uma forma de
arte-protesto contra a falta de direito para questionar ou demandar satisfações das
autoridades vigentes, que não prestam conta de verbas públicas e que aumentam
impostos apesar da diminuição da qualidade de serviços prestados, nem por conta
de seu caráter político deixou de ser uma releitura (sincrética) de um ebó59. Para
nós, quem participou foi muito além da satisfação de realizar uma ‘bela obra estética’
de denúncia, sendo o seu caráter religioso, para além das ‘revelações’ implicadas na
ação, transcendente pelo conjunto de significações que se acumularam com as
‘coincidências’ que aconteceram no dia.
59 Ritual de religiões afro que visam limpeza, ou na oferenda à um orixá.
110
Figuras 70 e 71 - Movimento Cidades Invisíveis. Oferenda.
Performance e Intervenção urbana feita com sal, pimenta e arruda. RJ, 2013. Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.457612064314361.1073741827.100001967152537&type=3> Acesso em: ago. 2013.
A instalação Oferenda, feita com elementos de limpeza e proteção, utilizados
por religiões de matrizes africanas – sal grosso, arruda e pimenta – em formato de
mandala, que relembra culturas asíaticas, havia sido marcada para ser realizada
após o almoço do Domingo de Páscoa, o dia da ressurreição na religião cristã – que
é precedido pelo dia da Paixão, que representa o sofrimento, e pelo dia de Aleluia,
que representa a espera – mas atrasou bastante, começando apenas no final da
tarde. Apesar da presença de policiamento no local, a ‘beleza’ do trabalho enquanto
ritual artístico, serviu como ‘estratégia de diminuição de risco’, como reparou a
idealizadora Ítala Isis, nos liberando da interrupção dos guardas municipais que se
encontravam a poucos metros de nós, mas não se incomodaram com nossa ação.
Após o término da construção da mandala, no momento em que registrávamos as
111
últimas fotos, fomos agraciados por um feixe de luz solar refletido de uma janela de
um prédio vizinho que acertou em cheio a obra, uma ‘coincidência’ que quase nos
conduziu a um êxtase coletivo. Após o devido registro fotográfico, ainda
desnorteados pela emoção, decidimos seguir até um centro cultural para sentar e
conversar, porém fomos atravessados pela exposição Lágrimas de São Pedro, do
artista baiano Vinícius S.A, que acontecia no Centro Cultural da Caixa Econômica,
no centro do Rio de Janeiro.
Ainda dentro das ações poéticas promovidas pelo Movimento Cidades
Invisíveis, nas quais observo essa capacidade de gerar ‘profetas’, se encaixa a ação
poética Existimos: um passeio performático realizado dentro da Mostra In Cena
Múltiplos Palcos para o espaço cultural Oi Futuro no Flamengo, cuja ação deseja
questionar a convivência nos grandes centros urbanos, e consistiu na caminhada
interativa de quatro artistas mascarados pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, em
que a interação com o público se dava pela ação de ligar e desligar os aparelhos
gravadores contendo os poemas. As máscaras foram feitas com materiais bizarros,
inusitados, e dialogavam com as pessoas por intermédio de um ou mais poemas
contidos nos gravadores portáteis carregados pelos performers.
112
Figuras 72 e 73 - Existimos. Movimento Cidades Invisiveis.
Performance de intervenção urbana com mascaras e gravadores. RJ, 2013. Fonte: Disponível em < https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.399705610105007.94427.100001967152537&type=3> Acesso em: ago. 2013.
Uma troca de pele que provoca desvios de rota e/ou questionamentos, uma
necessidade de reconhecer algo de estranho. O que é isso? O que quer que a gente
seja... Existimos! Uma máscara de tecido com flores artificiais e apliques de
borboleta foi vestida na artista Cecília Terrana, acompanhada pela gravação de um
poema da própria artista chamado Álbum de revelações. A máscara feita com
verduras, restos de comida e coisas achadas no chão, vestida no artista Wellington
Dias, carregava no gravador os poemas Aquilo que sobra e Propércio e eu, de
Ricardo Chacal. A máscara feita de gaiola de pássaros forrada com plástico
transparente e peixes pescadinha, vestida na artista Meireane Oliveira, dialogava
com o publico pelos poemas A escritura dos peixes e Madrugada, de Sidnei Cruz; e
113
a máscara feita com fita e adesivo de isolamento vestida no artista Emerson
Rodrigues, dos poemas 1, 2 3 e 4, de Marilene Vieira.
Figuras 74 e 75 - Movimento Cidades Invisíveis. Existimos.
Performance de intervenção urbana com mascaras e gravadores. RJ, 2013. Fonte: Disponível em <https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.399705610105007.94427.100001967152537&type=3>. Acesso em: ago. 2013.
A performance de uma caminhada ritualística com a interação interventiva Ah,
se eu fosse uma borboleta! (fig.s 76 e 77) no Rio de Janeiro – performance que já
aconteceu nas cidades do Rio de Janeiro e Goiânia –, além do aspecto profético de
buscar chamar a atenção para a dificuldade de locomoção de cadeirantes nas ruas
das cidades por meio de uma inscrição com estêncil da frase ‘Ah, se eu fosse uma
borboleta!’ nos locais onde a passagem de um cadeirante é extremamente reduzida
devido a má conservação, ou impossível devido ao descaso dos administradores em
relação às pessoas com essas dificuldades, possuiu o aspecto religioso da cura
gerada por uma poética libertadora, um ritual de libertação para as cadeirantes que
participaram e que passavam verdadeiramente no momento da performance por
114
problemas de mobilidade e falta de autonomia, sendo a performance um processo
de receber carinho e atenção, no qual a troca com os outros gera cura emocional.
Figuras 76 e 77- Movimento Cidades Invisíveis.Ah, se eu fosse uma borboleta!
Performance com intervenção urbana. Goiânia, 2013. Fonte: Disponivel em: https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.584127831662783.1073741836.100001967152537&type=3 Acesso em agosto 2013.
115
Figura 78- Movimento Cidades Invisíveis. Ah, se eu fosse uma borboleta!
Performance com intervenção urbana. Rio de janeiro, 2012. Fonte: Disponivel em: <https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.110947955647442.16732.100001967152537&type=3>. Acesso em: ago. 2013.
4.3.3 O corpo como casa da alma e a casa como prisão para a alma
Devido à velocidade dos meios de transporte, que nos obriga a perceber a
paisagem em movimento, o sensível agora se dá no impacto, originando novos
116
dispositivos e criando novos tipos de subjetivação, como o cinema com sua imagem
em movimento que nos faz percebermo-nos em movimento. O corpo tem uma
função de invólucro, tal como a casca da cigarra abriga um sopro, mas não o
contém: esse sopro esvai, e com ele nossa consciência. O que se passa depois fica
incógnito, o corpo fica como registro que precisamos eliminar ou esconder. A prisão
é a pena privativa de liberdade, o ato da captura, a própria custódia. Na vida, a casa
se torna o abrigo do corpo, o corpo sem casa pena, o corpo que se prende à casa,
transformando-a em mundo em miniatura, se apega a ela. O intelectual, crítico
literário e ativista da causa palestina Edward Said escreveu
"O exílio nos compele, estranhamente, a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal. Entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. E embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heróicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre. Mas, se o verdadeiro exílio é uma condição de perda terminal, por que foi tão facilmente transformado num tema vigoroso – enriquecedor, inclusive – da cultura moderna? Habituamo-nos a considerar o período moderno em si como espiritualmente destituído e alienado, a era da ansiedade e da ausência de vínculos. Nietzsche nos ensinou a sentir-nos em desacordo com a tradição, e Freud a ver na intimidade doméstica a face polida pintada sobre o ódio parricida e incestuoso. A moderna cultura ocidental é, em larga medida, obra de exilados, emigrantes, refugiados. Nos Estado Unidos, o pensamento acadêmico, intelectual e estético é o que é hoje graças aos refugiados do fascismo, do comunismo e de outros regimes dados a oprimir e expulsar os dissidentes." (SAID. Orientalismo, 2003)
Para Platão, o corpo é o cárcere da alma, pois enquanto o saber humano
ocorrer por meio dos sentidos ele será sempre opinião, que o filósofo afirma ser um
saber tão falso quanto as sombras projetadas na caverna para os prisioneiros do
Mito da Caverna, ao contrário do saber verdadeiro acessado via o intelecto
verdadeiro e justo, capaz de negar o desejo. Já para Aristóteles, o corpo não é um
obstáculo para a alma; a alma lhe dá forma e movimento, e o que diferencia um
corpo de outro são os seus acidentes (gênero, cor, etc.), que não afetam a sua
essência, a alma.
Platão diferenciou desejo de vontade, vinculando o primeiro ao corpo
enquanto a vontade seria vinculada à alma, ao relatar que Sócrates, em sua decisão
de permanecer preso, concordando com a pena a ele imputada, não pensa em sua
117
comodidade, negando o desejo de permanecer vivo, para conscientemente aceitar a
decisão da pólis, que o condena a morte. O empobrecimento da dimensão da
experiência e os processos de alienação de indivíduos na sociedade moderna nos
remetem a pensar na arte numa perspectiva de fenômeno. O espaço como algo a
construir e que tem sido construído por meio de seus próprios modelos. O corpo
como a casa do espírito torna-se um quiasma religioso. O universo dos mitos num
mundo que é pura exterioridade. A questão do sujeito que se esforça por se
constituir, mas, por ser tão solapado, passa a ser a imagem que constroem dele. O
elemento burguês “casa” é nosso ponto de partida e chegada, no deslocamento pela
cidade. O homem que se torna anônimo, ao perder sua individualidade na dimensão
da metrópole, colecionando elementos (indícios) que apreende em suas andanças,
faz da sua casa uma miniatura de cidade, onde pode novamente se reconhecer
como indivíduo.
Quando perguntado sobre sua saída do mosteiro que construiu, Don
Kulatunga sorria e dizia ter sido muito ruim, mas muito bom! Pois o ajudou a
observar mais de perto o fenômeno da impermanência, observando que nada nos
pertence, nem pessoas, nem lugares. Nunca entendi direito a escolha de Água
Santa como local de moradia, pois na época em que meu pai comprou a casa
poderia ter escolhido outra menor no centro da cidade pelo mesmo valor, porém
preferiu comprá-la de uma discípula. Poderia também ter trocado para um endereço
mais central após meu retorno ao Brasil, fato sobre o qual muito insisti, mas nunca
fui ouvida. Essa teimosia dele em permanecer em AS, juntamente com a vontade de
comparar o subúrbio brasileiro ao subúrbio londrino, foi o que me fez decidir que ali
deveria ser minha residência durante o período do mestrado.
Outra forma possível de desenvolvimento foi observando como o trabalho de
amigos artistas que se deixaram canonizar e dialogavam com minha pesquisa. Na
montagem da exposição Pelas Vias da Dúvida, tive a maravilhosa oportunidade de
conversando com Stéphane Dis sobre essa questão de deslocamento e apego a
lugares, reconhecer um dialogo possível com o trabalho apresentado pela artista
(fig.79 ) na exposição coletiva que participamos no centro cultural Helio oiticica; o
trabalho dela “Sinta-se em casa” (fig.81 e 82 ) dialogava com minha experiência de
deslocamento, de sentimento de casa e pertencimento ocorrida no processo da
minha mudança para viver em isolamento na casa de água santa; fui presenteada
118
pela artista com uma cápsula do seu trabalho Abra em Caso de Emergência, que
estava sendo exposto no mesmo espaço da instalação Canonizador AcSeita
Coletivo, e me comprometi a transformá-la em relicário (fig.80) em homenagem a
sua canonização.
Figura 79 – Canonização de Santa Stéphane Dis; e 80 – AcSeita Coletivo. Relicário ‘Abra em caso de
emergência’
Foto disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3> Objeto -Técnica Mista, 14 x 7 cm; CCHO, RJ, 2012. Fonte: Coleção Particular.
119
O trabalho Abra em caso de emergência, de Stéphane Dis, consistia em um
modelo de garrafa de remédio antigo com cápsulas de remédio contendo a inscrição
Sinta-se em casa, buscando ressaltar a importância da relação do homem com sua
casa e o bem-estar proporcionado por esse espaço, que é o abrigo do homem, seu
primeiro canto no mundo. Conversando com a artista, descobri que o trabalho foi
inspirado no refugo de um tratamento médico, no qual ela necessitava abrir as
cápsulas para usar seu conteúdo, descartando-as depois. Acredito que, ao se
inspirar na observação do desperdício diário das cápsulas que lhe serviam de
pharmacon, dando a elas um novo destino ao criar o trabalho Abra em caso de
emergência, a artista ressignifica a importância do sentimento de abrigo que uma
casa proporciona ao associá-lo a um remédio para a alma, tema que se relaciona
com sua pesquisa de mestrado para UFF.
120
Figuras 81 e 82 – Stéphane Dis. ‘Abra em caso de emergência’.
Objeto/ Técnica Mista; CCHO, RJ, 2012. Fonte: Coleção Particular.
Nestes últimos dois anos morando em Água Santa, cuja distância até o
Flamengo, bairro da zona sul, pode ser percorrida de carro em menos de meia hora,
pude observar que o mesmo percurso usando transportes públicos não se completa
em menos de uma hora e meia, necessitando de pelo menos uma baldeação; e que
embora o sistema de ônibus oficialmente tenha que funcionar nas 24 horas do dia,
121
os veículos são quase inexistentes da meia-noite às seis horas da manhã,
transformando os subúrbios cariocas em dormitórios-senzala, onde quem não possui
veículo próprio fica confinado nas horas em que não está trabalhando – sem contar
que o ‘vale-transporte’ oferecido aos trabalhadores, apesar do transporte ser caro (e
ineficiente), só contempla os trajetos de ida e volta do emprego, negando qualquer
importância à tentativa de locomoção individual e práticas de socialização.
122
CONCLUSÃO
Os trabalhos artísticos que geraram a dissertação de mestrado eram
concentrados na tentativa de entender a santidade dos seres religiosos, e foram
inspirados em teorias de filósofos, teólogos, sociólogos, psicólogos e artistas
populares. A busca da santidade, ou do que deveria ser a busca espiritual, não se
resume a um instante, é ato contínuo, não se resume a uma separação física, mas é
um processo individual, que não pode nem deve ser medido ou comparado. Pensar
a santidade questiona o direito individual á busca espiritual, em suas diferentes
possibilidades socioculturais e políticas.
Os Relicários que contem registro dos vícios e virtudes é uma tentativa de
catalogação de objetos cotidianos, e inspirou a criação da instalação Canonizador
AcSeita Coletivo, que não deixa de ser um relicário e ao ser apresentada gerou a
performance Sede de Santos; a performance que consiste em um envolver a plateia,
foge do lugar encenado para o improviso, um jogo de relações onde a tentativa de
trocas, barganha a adesão a um projeto de santificar através de vícios: as moedas
de trocas usadas eram balas, doses de cachaça ou drinks.
A escolha de falar de artistas vivos e contemporâneos se dá por acreditar que
seja importante para essa pesquisa focar no que está acontecendo no momento, há
muitos artistas no Brasil falando e fazendo arte como religião. Poderia se falarem
variadas categorias para eles: artistas-profetas; artistas que utilizando seu corpo
como suporte se tornam corpos sacrificiais; artistas sacerdotes, etc.
O surgimento de coletivos se dá na agregação de pessoas em torno de uma
mesma ideia, uma arte política e ao mesmo tempo religiosa. A ideia de criar um
coletivo para a pesquisa se deu por acreditar na importância de um resgate ás
buscas religiosas e que isso se dê de uma forma coletiva e livre. Durante o período
que se deu o mestrado, escolhi viver no subúrbio do Rio, em um bairro perto do
Méier, com a intenção de vivenciar várias formas de separação: a separação que
meu pai passou ao sair do mosteiro que construiu; a separação de viver numa
cidade onde o sistema publico é negligente na saúde e no transporte para uma
grande parte da população; a separação de estar totalmente dedicada a estudar e
viver com o mínimo possível de gastos; a separação de não ir a festas e eventos
123
sociais por estar isolada e sem dinheiro. Pude entender a contentação de meu pai
em afirmar que a melhor coisa que aconteceu a ele foi sair do mosteiro, afirmando
que a mudança foi a separação do que ele precisava para praticar o desapego ao
templo.
124
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