Post on 10-Nov-2018
11º Colóquio de Moda – 8ª Edição Internacional 2º Congresso Brasileiro de Iniciação Científica em Design e Moda
2015
UMA MULHER VESTIDA DE SOL ABRE PASSAGEM PARA AS FUTURAS EXPERIMENTAÇÕES TELEVISIVAS
Uma mulher vestida de sol opens passage for future trials on television
Carolina Bassi de Moura1 carolina.bassi@gmail.com
Resumo Este artigo destaca a obra Uma mulher vestida de sol (1994), transcriação da obra homônima (1947), de Ariano Suassuna para a TV, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho. Encontra nela alguns pontos seminais de experimentação desenvolvidos pelo diretor e sua equipe em importantes trabalhos posteriores como Hoje é dia de Maria (2005) e A Pedra do Reino (2007). Palavras Chave: figurino; transcriação literária; direção de arte; direção; Luciana Buarque; Luiz Fernando Carvalho. Abstract This article highlights the work Uma mulher vestida de sol (1994), transcreation the homonymous work (1947) by Ariano Suassuna for TV, directed by Luiz Fernando Carvalho. Is it some seminal points of experimentation developed by the director and his team in important later works like Hoje é dia de Maria (2005) and A Pedra do Reino (2007) . Keywords: costume design; transcreation literary; production design; direction; Luciana Buarque; Luiz Fernando Carvalho.
Introdução
Desde o aclamado longa metragem Lavoura Arcaica (2001) o diretor
Luiz Fernando Carvalho parece não ter mais parado de nos surpreender, de se
reinventar e reinventar a linguagem de um meio tão desgastado pelo mau uso
– o televisivo.
O salto artístico dado por meio do longa metragem deu fôlego de sobra
para mais seis minisséries, um quadro de ficção para o Fantástico, Correio
Feminino (2013, a partir dos textos de Clarice Lispector para a revista de
1 Carolina Bassi de Moura é doutora e mestre em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), investiga a construção poética das imagens no cinema, na televisão, no teatro e nas diversas possibilidades da linguagem cênica e audiovisual. Professora dos cursos de especialização em Cenografia e Figurinos e Direção de Arte em Comunicação, da Belas Artes e do curso de formação técnica em Direção de Arte da Academia Internacional de Cinema, ambos em São Paulo. Atua como diretora de arte, figurinista, cenógrafa e produtora de objetos em Cinema e Teatro.
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mesmo nome), o especial de fim de ano Alexandre e outros heróis (2013,
composto de um capítulo, a partir de contos de Graciliano Ramos), e uma
novela, Meu pedacinho de chão (2014, recriação da novela homônima gravada
na década de 1970, na mesma emissora). Todos foram trabalhos muito
marcantes e bastante diferentes uns dos outros, mantendo a unidade na
qualidade artística e na marca autoral de Luiz Fernando.
Onde teria começado o plantio de tão saborosa colheita? Bem, pode-se
dizer que os plantios foram muitos, mas buscando por trabalhos que possam
ser considerados seminais em relação aos experimentos feitos por Luiz nos
anos 2000, é preciso lembrar de alguns trabalhos por ele realizados na década
de 1990.
Naquele momento, o diretor andava impregnado da cultura nordestina.
Por cerca de dez anos, ainda antes de gravar a novela Renascer (1993),
mergulhara numa busca por suas origens maternas no nordeste do país. Luiz
Fernando infelizmente perdera sua mãe, que era nordestina, ainda muito
pequeno e, naturalmente, não tinha tido a chance de conhecer mais a fundo
esta porção de sua história.
Após aqueles dez anos de imersão na cultura nordestina, os trabalhos
da primeira metade da década de 90 vieram repletos de muita pesquisa e
propriedade sobre o assunto, além de muita poesia. A transcriação literária de
obras do escritor paraibano, Ariano Suassuna, começou neste período com os
especiais: Uma mulher vestida de sol (1994) e A Farsa da boa preguiça (1995),
e alcançou qualidade máxima em A Pedra do Reino (2007) que seria, segundo
o escritor, sua obra mais complexa.
Este artigo, destacará no especial Uma mulher vestida de sol, pequenas
ousadias estéticas largamente desenvolvidas mais tarde, tanto em A Pedra do
Reino, quanto em Hoje é dia de Maria. Neste processo, apontarei o papel dos
trajes de cena, assinados por Luciana Buarque, afinados com toda a
visualidade da encenação, nesta poética da transcriação literária.
Interlocuções com Uma mulher vestida de sol
Uma mulher vestida de sol, foi o primeiro texto de dramaturgia escrito
por Ariano Suassuna, quando ele ainda era um estudante de Direito da
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Universidade Federal de Pernambuco. O texto fora escrito para um concurso
de textos teatrais promovido pelo TEP (Teatro de Estudantes de Pernambuco)
e ganhou o prêmio principal, o que encorajou o escritor a seguir a carreira
literária. Já nesta ocasião, ao costurar à estória, causos e cantigas populares,
Ariano teria declarado o seu interesse pelo Romanceiro Popular, mais tarde
valorizado pelo Movimento Armorial, fundado pelo escritor em 1970.2
A narrativa conta uma estória de inimizade entre dois irmãos que moram
com suas famílias em terras vizinhas e disputam as terras um do outro por
ganância. As terras são divididas por uma cerca, simbolizando esta cisão de
laços afetivos, que não pode ser interrompida ou ultrapassada. No entanto,
dentro deste contexto, surge o amor entre os primos, Rosa e Francisco, que
vão casar-se às escondidas e lutar pelo que sentem até as últimas
consequências. Como na famosa tragédia shakespeariana, os amantes
permanecem unidos apenas na morte.
À época do lançamento do especial Uma mulher vestida de sol, Hélio
Guimarães escreve para a Folha de São Paulo um pequeno texto: “Mulher
vestida de sol desafia o padrão de realismo da Globo”. Nele, classificava o
trabalho como uma volta da TV ao “teleteatro”: O teleteatro voltou à Globo e abriu uma brecha no padrão de realismo cultivado pela emissora. O gênero, que praticamente desapareceu da TV, fez sua reestréia com "Uma Mulher Vestida de Sol", exibido na "Terça Nobre" anteontem. A peça de Ariano Suassuna, com adaptação do próprio autor, apostou na sofisticação e na densidade do texto original. [...] Uma ousadia e um golpe profundo no padrão cristalizado de optar pela caricatura na representação do "regional". Manifestações folclóricas e populares ocuparam o primeiro plano, mas não eram apenas enfeite. (GUIMARÃES. 1994)
Havia uma busca, neste texto para o jornal, por classificar aquilo que
não estavam acostumados a ver na televisão àquela época. Uma liberdade
2 O Movimento Armorial “Foi lançado oficialmente, no Recife, no dia 18 de outubro de 1970 [...] Seu objetivo foi o de valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro, pretendendo realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares da cultura do País. [...] O Movimento tem interesse pela pintura, música, literatura, cerâmica, dança, escultura, tapeçaria, arquitetura, teatro, gravura e cinema. Uma grande importância é dada aos folhetos do romanceiro popular nordestino, a chamada literatura de cordel, por achar que neles se encontram a fonte de uma arte e uma literatura que expressa as aspirações e o espírito do povo brasileiro, além de reunir três formas de arte: as narrativas de sua poesia, a xilogravura, que ilustra suas capas e a música, através do canto dos seus versos, acompanhada por viola ou rabeca.” GASPAR, Lúcia. Movimento Armorial. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 28 mai. 2015.
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muito incomum para os padrões da linguagem televisiva, que o diretor tem o
desejo de reinventar. Muito interessante notar como ele vem conquistando este
objetivo – ao longo de vinte anos aproximadamente, recursos de linguagem
próprios do teatro, do cinema e das artes visuais foram sendo incorporados à
linguagem televisiva e aprimorados na mescla com a sua linguagem, em
propostas cada vez mais bem articuladas pelo diretor. Nas críticas atuais, não
encontramos mais o termo “teleteatro” referindo-se a trabalhos dessa ousadia
estética.
Contudo, é possível encontrar críticas que tenham considerado
trabalhos como a Pedra do Reino e Capitu, muito teatrais. Sobre este assunto,
o próprio Ariano Suassuna, que se identificava muito com Luiz Fernando e
aprovava plenamente as transcriações literárias feitas por ele, disse:
Acho isso uma observação inteiramente despropositada. Veja, em Uma Mulher Vestida de Sol, ele [Luiz Fernando Carvalho] partiu comigo, fizemos uma viagem juntos pelo sertão da Paraíba. Ele viu as casas onde passei a infância, viu as fazendas. No fim [da viagem], era tempo de chuva. O sertão tava chuvido (sic), molhado, e a peça se passava em tempo de seca. Aí ele disse - ele me chama de mestre -: “Mestre, o que você acha de a gente fazer como uma peça de teatro?” Eu respondi: “Excelente”. Ele fez então como uma peça de teatro, com cenário de teatro, cerca de teatro e ficou uma beleza. Ficou excelente. A Farsa da Boa Preguiça também. É claro, é evidente que, do mesmo jeito, você pode ver em tudo o que escrevo uma presença muito grande do circo. Por isso vai ficar invalidada uma peça minha que tem muito de circense? Não, eu não estou de acordo com essas críticas que fazem por aí. (OLIVEIRA, p. 151. 2012)
Luiz [...] Tem um respeito muito grande pelo texto; procura muito se aproximar. E aquele universo que você disse que os críticos chamam de teatral, aquele é o meu mundo, tá certo? Ele procurou realmente se aproximar da pessoa e do meu trabalho de escritor. (OLIVEIRA, p. 154. 2012)
O comentário deixa claro que no processo da transcriação poética,
artística, de uma obra literária para o meio audiovisual (que reúne tantas
formas de arte) é necessário que se proceda lançando mão de recursos
linguísticos próprios desses campos artísticos todos. E não é possível que se
faça isto sem sensibilidade, sem propriedade destas linguagens e até mesmo
sem que haja liberdade para tais expressões.
Sendo assim, é inegável que Uma mulher vestida de sol possui
componentes estéticos do teatro, principalmente, mas também da xilogravura,
elemento tão característico dos cordéis nordestinos. O acabamento gráfico das
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imagens é forte, como na arte da gravura – há o uso de poucas linhas, áreas
bem marcadas de luz e sombra, além do uso comedido de cores.
A paleta, toda em tons de areia, é invadida apenas por vermelho e azul,
em momentos e espaços muito específicos. A dualidade simboliza os
personagens principais, Rosa e Francisco, e o conflito entre as duas famílias. Figura 1 – A e B) Teresa Seiblitz em cena de Uma mulher vestida de sol. O elemento da rosa simboliza seu
personagem, de mesmo nome, assim como a cor vermelha. C) À esquerda, o mesmo elemento cenográfico da rosa, agora em cor azulada, pois remete ao personagem Francisco,
que cava a cacimba de água, elemento ao qual aparece associado. D) - À direita, o elemento da rosa faz fundo a um bando de músicos que, como trovadores medievais, cantam
comentando a narrativa – um coro. As cores vermelho e azul se unem no quadro simbolizando a união de Rosa e Francisco.
É possível reconhecer em Uma mulher vestida de sol um pouco das
opções estéticas experimentais que Luiz Fernando irá explorar mais a fundo
nos trabalhos posteriores, como já foi dito. A questão da fala é um ponto. Aqui,
o desejo forte era de uma fala natural, sem uma “construção” estética sobre,
pois o que mais se queria era que o sotaque nordestino não saísse caricato.
Desejava-se apenas uma fala mais natural, que não chamasse a atenção dos
espectadores para as diversas origens do elenco e também que não soasse
falsa:
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Quando fizemos Uma Mulher Vestida de Sol, ele [Luiz Fernando Carvalho] perguntou pra mim: “Mestre, como irão falar os atores?” Eu disse: “Olha, Luiz, cada ator que fale o português de seu local de ori-gem, contanto que não exagere. O que eu não quero é essa imitação caricata do sotaque nordestino, que não é de estado nenhum daqui. Então, por favor, bote os personagens pra falar.” Resultado: tinha uma gaúcha lá, um nordestino; tinha paulista, carioca. E você nem nota. Pois bem, eu fiquei muito satisfeito [...] (OLIVEIRA, p.151. 2012)
Em Hoje é dia de Maria esta questão parece ter sido ainda melhor
trabalhada desde os ensaios com a prosódia. Muito bem colocada, buscava
com naturalidade uma fala muito interiorana, no sentido de arcaica, e colaborou
para transportar os espectadores a uma outra realidade e outro tempo, não
cronológico, mas interno, em cada um de nós.
Foi interessante notar também como ponto de contato entre obras, duas
importantes parcerias que irão se estabelecer mais tarde em Hoje é dia de
Maria – Lia Renha e Luciana Buarque, respectivamente diretora de arte e
figurinista3.
O cenário teatral, atemporal, todo recoberto de texturas, fechado em si
mesmo, ao mesmo tempo nos oferece uma impressão de vastidão sertaneja.
Ele nos mostra uma representação do sertão, que tanto é plástica quanto nos
remete àquela geografia mesmo, com verdade contundente. O tipo de
cenografia “fechada em si mesma” pode nos lembrar da proposta desenvolvida
em Hoje é dia de Maria com o domo. Nele, também tínhamos o sertão numa
perspectiva roseana, infinita, mas intimista, muito próxima – pois como
afirmava Guimarães Rosa, “o sertão é o terreno da eternidade” e “o sertão é
dentro da gente”.
Os cenários de Lia Renha e Fernando Velloso para o especial, então,
não era redondo como o domo da minissérie, mas nele também não se viam
quinas ou arestas em paredes, as junções das telas de fundo foram
arredondadas, inclusive no encontro com o chão. A cenografia explorava o pé
direito alto do estúdio, trazendo elementos gráficos icônicos desenhados e
fundo infinito, construído com textura de pau-a-pique (ou algo muito próximo
disto) como o restante da parede.
3 Luciana, por sua vez, continua mais presente na trajetória do diretor, assinando os figurinos de mais três obras de suas obras até o presente momento – Suburbia (minissérie de 2012), Correio Feminino (quadro para o Fantástico, assina com Thanara Schönardie, 2013) e Alexandre e outros Heróis (especial de 2013).
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Os elementos gráficos icônicos compostos são basicamente três. Há a
grande cerca espinhosa que divide o cenário em dois e é feita com pedaços
cruzados de galhos. Simboliza evidentemente a separação entre as famílias,
mas também a aspereza de suas relações.
Há também a grande rosa, com textura de pétalas abertas em várias
camadas, frontalmente, como um símbolo bastante potente para o amor. Este
elemento cenográfico da rosa é bastante grande, aparece como fundo,
envolvendo algumas cenas. É iluminado por detrás de sua estrutura,
valorizando a textura do material e sua sobreposição em camadas. Quando se
refere à Rosa, é iluminado em tons de vermelho. Quando se refere ao
personagem de Francisco, é banhado em tons de azul. Nota-se que quando
Francisco manda cavar a nova cacimba e nela encontram água, ao olhar o
fundo, vê-se embaixo d’água a mesma figura estilizada de uma rosa azul. Esta
flor se mantém como um elo de ligação entre os dois, um símbolo de amor. As
cores, vermelho e azul, usadas também de maneira simbólica, aparecem
primeiramente separadas, identificando os personagens e, depois,
simultaneamente, explicitando a união do casal.
O outro forte elemento gráfico são as grandes portas desenhadas que
aparecem como pano de fundo para a cena da morte de Francisco. Elas soam
como incisiva representação de passagem – da vida para a morte. Ou como se
não houvesse outra “porta de saída” para esta situação, senão a morte. O
quarto em que Rosa é jogada e trancada para que não assista a morte de
Francisco também é representado de forma gráfica. O ambiente é contado com
recurso de iluminação, desenhando sobre a atriz uma janela, e com ambiência
sonora, fazendo-nos ouvir a porta que bate, assim que Rosa é jogada para
dentro do quadro.
Os cavalos são adereços de cena, bonecos bastante verossímeis ao
serem manipulados pelos atores, como irá acontecer de novo em A Pedra do
Reino, Hoje é dia de Maria e em Meu pedacinho de chão (embora neste último
fuja ao acabamento rústico encontrado nos anteriores). No entanto, aqui são
mais simplificados, usando uma estrutura na qual se pode entrar e andar
sustentando-a. Assim, é o próprio ator que cria o “trote” do cavalo durante a
ação.
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Os objetos de cena são poucos, apenas o essencial para a narrativa e
para a construção dos personagens, tendo sido escolhidos sob chave
simbólica. Dessa forma, os capangas evidenciam sua relação com a violência
pelo uso marcante dos rifles em cena. Rosa, cuja relação com a terra é bem
evidenciada, lida com rosas vermelhas que planta, ou que arranja em jarro de
barro cheio de água. O delicado punhal com detalhes de ouro, que serve como
aliança de casamento aos protagonistas, tanto é simbólico para o fim trágico
que terão, como aponta para o fator trágico da família, pois sabemos que já
havia sido aliança de casamento de seus avós.
O conflito entre as duas famílias, que culmina na morte dos amantes,
facilmente nos faz lembrar de Romeu e Julieta e, mais especificamente, da
montagem da qual participou Luciana Buarque, com o Grupo Galpão, em 1992.
Os acabamentos cheios de texturas já haviam sido testados por ela nos
figurinos daquele espetáculo, conforme relata a figurinista:
De início, começamos a fazer uma série de experimentos relacionados ao contexto medieval, resgatando tradições relacionadas ao final da Idade Média por meio de materiais que o grupo já tinha naquele momento. Foi a partir dessas condições que nos aproximamos do conceito final: uma mistura entre tradições medievais e mineiras. Depois de algum tempo, enquanto acompanhava alguns ensaios na região de Morro Vermelho, perto de Belo Horizonte, dei início a uma pesquisa de técnicas até chegar à textura craquelada que boa parte dos figurinos têm até hoje. Os únicos que mantiveram certa delicadeza, em contraste com os demais, foram justamente os dos personagens Romeu e Julieta. [grifos da pesquisadora] (TOLEDO. 2012)
A sutileza das texturas craqueladas citadas por Luciana, passaram por
um restauro, em 2012, para que se mantivessem4 e podem ser notadas em
vários tons. Figura 2 - Texturas craqueladas mencionadas por Luciana Buarque em entrevista.
Foto: Alessandra Teixeira
4 O restauro de figurinos e cenário foi feito por Wanda Sgarbi, com assistência de Alessandra Teixeira.
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Luiz Fernando conhecera o trabalho de Luciana Buarque no teatro. Vira
dois espetáculos nos quais ela fora figurinista: o já citado Romeu e Julieta, do
Grupo Galpão e Auto da Paixão, de 1994, dirigido por Romero de Andrade
Lima. Este último era uma adaptação de toadas de domínio popular que este
diretor (e também reconhecido artista plástico) recifense ouvia na casa do tio,
Ariano Suassuna. O trabalho de Luciana já era repleto de texturas e parecia
articular materiais usuais e não-usuais com agilidade e beleza.
Quando questionada sobre a origem deste processo, Luciana explica: Eu comecei a trabalhar [no teatro] com o Romero de Andrade Lima que, por ser artista plástico, já vem com um universo técnico diferente do universo convencional do figurino. E eu comecei com ele, já nessa brincadeira. Como eu não passei por escola – nem de figurino, nem de artes plásticas5 – eu não conhecia esse caminho meu, próprio. Eu comecei com ele e já foi meio que natural optar por materiais inusitados, pra buscar texturas e tal. Não foi uma escolha muito “Ah! Agora eu vou fazer...”, não. Foi meio que espontâneo. E o Luiz me convidou porque viu o Romeu e Julieta e o Auto da Paixão, que era do Romero de Andrade Lima. Então ele já me convidou conhecendo essa possibilidade de materiais inusitados. É todo com areia [os figurinos] em Uma Mulher Vestida de Sol, a textura da roupas... É no nordeste, uma adaptação do Ariano Suassuna. Então, este foi o primeiro trabalho com ele [Luiz Fernando] que tinha essa brincadeira com materiais diferentes dos tradicionais. [grifos da pesquisadora] (Entrevista concedida à pesquisadora em 2013)
Pode-se notar, pela liberdade estética do teatro, ou pela proximidade
com as artes plásticas por influência de Romero no início de sua carreira, o uso
poético de materiais muito expressivos e, às vezes inusitados, e técnicas mais
artesanais, incomuns à televisão. Tudo isto teve espaço garantido na criação
5 Luciana é formada em História.
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do diretor Luiz Fernando, que sempre se interessou em atender as
necessidades internas de uma obra literária ao recriá-la, atendendo às
necessidades sentidas por seu ponto de vista, sem abrir concessões pautadas
na convenção.
Acredito que esta prática da artesania por Luiz Fernando venha de um
desejo de comunhão de todas as artes, numa tendência muito atual das
criações artísticas, mas que é muito própria de sua direção.
Assim, os figurinos de Uma mulher vestida de sol também já haviam
sido experimentais como em Hoje é dia de Maria. Talvez um pouco menos
radicais, apostando na monocromia e nas texturas orgânicas. A figurinista, que
chegou a usar a aplicação de areia nos figurinos do especial, como já citado,
usou novamente o recurso em A Pedra do Reino, como afirmou ao
documentário:
A gente foi até a Idade Média pra pesquisar os artistas plásticos, as cores e as texturas, que também estão presentes na obra do Ariano Suassuna. E, depois, cada personagem tem um universo muito particular. Os panos vão desde tecidos nobres, sedas, passando por tecidos que são regionais – colchas de retalho, rendas, bordados feitos na região... Então é uma mescla de materiais em tecido. E aí, depois deles, vem todos aqueles materiais alternativos que a gente faz (sic) pra enriquecer, às vezes pra transformar mesmo esse tecido inicial. Passa por metal, aplicações até de areia pra dar uma textura que a gente queira. [grifos da pesquisadora] (MATERIAL EXTRA DO DVD, 2007)
Sobre este cuidado com a criação visual e a importância de cada
elemento plástico, a figurinista comenta o apreço que tem pelas artes plásticas
em seu processo criativo e como acredita que isto faça diferença no resultado
obtido em um traje de cena: É, eu acho que todas as artes são fundamentais nos diversos processos criativos. Agora, realmente eu tenho um carinho especial pelas artes plásticas. Eu achava que todo mundo tinha que buscar as artes plásticas e eu acho que é uma fonte (até histórica) importante. Eu particularmente gosto muito. Eu gosto das texturas, das sombras, das cores. [...] E é isso que eu acho que faz a diferença num figurino. No meu figurino, eu acho que é essa tentativa de representar aquela cor ou aquela forma de uma maneira plástica, com as técnicas que eu uso pra chegar nisso. Então, pode ser um simples tubinho verde, mas não é um tecido verde comprado, um vestido confeccionado e pronto. Você dá um nível de plasticidade que faz a diferença no resultado final. (Entrevista concedida à pesquisadora em 2013).
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Os figurinos do personagem Rosa, em relação aos das outras mulheres,
sua tia e sua avó, são mais graciosos, menos fechados no colo. Um deles
apresenta alcinhas estreitas nos ombros, revelando ainda mais sua jovialidade
e beleza. Os tecidos são repletos de rendas artesanais e são claros, em tons
crus. O vestido com que ela se casa, que é também aquele com o qual ela
comete suicídio, apresenta pequenas rosas vermelhas bordadas, sendo estes
os únicos pontos de cor mais viva, entre todos os figurinos. As rosas
obviamente a representam, mas os pontos vermelhos no fundo claro do vestido
também nos antecipam a ideia da morte que se aproxima, a mancha de sangue
que virá do golpe com o punhal.
Há um largo uso de rendas de diversos tipos nos figurinos femininos,
justapostas e sobrepostas, conferindo movimento e uma textura orgânica
crespa, em consonância com toda a proposta estética. Este largo uso de
rendas está presente também no espetáculo Auto da Paixão, já citado, cujos
figurinos foram realizados por Luciana e que podem ter sido referência para o
diretor. Figura 3 – Cena de Auto da Paixão. Foto de Guto Muniz.
Fonte: http://www.focoincena.com.br/auto-da-paixao/11472
O traje de Francisco é mais bem composto que o dos demais
personagens masculinos e apresenta um tom cru mais claro, quase branco. Ele
veste calça, camisa e paletó de um tecido que parece ser de linho. Os
acabamentos são rústicos, feitos com ponto caseado, o que acrescenta uma
textura a mais ao traje e interfere no caimento das peças, no modo como
assentam as golas, por exemplo. Essa cor assim tão clara, combina com o
caráter nobre do personagem, com sua leveza de espírito. O modo como ele
nos é apresentado na obra reforça esta impressão: a cena começa com um
feixe de luz branca azulada cortando o quadro, escuro, da esquerda para
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direita, do alto para baixo. O plano acompanha a direção apontada pela luz e
culmina na figura de Rosa a carregar uma cabrinha branca nos braços. O
contra-plano revela então Francisco, que a observa amorosamente do outro
lado da cerca. Há uma aura quase divina nesta luz que anuncia o amor dos
dois personagens. A voz dos dois personagens é mais suave que a de todos os
outros, acompanhando todo este “desenho” feito. A ingenuidade do
envolvimento amoroso é sublinhada pela presença do pequeno animal branco.
Sem esquecer que a pequena cabra branca talvez também antecipe a ideia de
sacrifício dos dois e do filho que poderiam ter.
Nos trajes dos demais, nota-se também os tons crus e as texturas rudes.
Há mais amarronzados e esverdeados nos trajes dos capangas, e tons mais
escuros no traje do pai de Rosa, o personagem mais hostil. Nele, há o uso de
couro, adereços sobrepostos com amarrações na altura dos punhos e
antebraços ressaltando sua força, que é bruta e física, não espiritual. Sua calça
é preta, sua figura tem um peso aterrador que a interpretação de Raul Cortez
sublinha.
A outra figura a usar preto é a avó de Rosa, mas no sentido de luto pelo
assassinato da filha, morta pelas mãos do genro. A atriz Miriam Pires, com
grandes olhos claros, usa o traje preto rendado com véu emoldurando o rosto
preocupado. O traje muda após o casamento de Rosa e Francisco, quando
então veste-se com um traje de formas e texturas semelhantes, mas claro, e se
despede em um burrinho, como se estivesse ali apenas para cuidar da neta. O
negro usado como luto aparece novamente no último traje de Inocência, mãe
de Francisco, quando este é morto.
Notam-se na obra também inserções lúdicas. Nesta cena de Inocência
diante do filho morto, vê-se um menino pequeno que se aproxima, vindo do
lado oposto, no escuro, com traje de camisa e bermuda clara, a segurar uma
gaiola de passarinho. Fazemos a associação desta imagem com uma
lembrança da mãe, pois, nas mãos, ela segura um pequeno par de sandálias
velhas e gastas que ela embala como se fosse o próprio filho.
A figura feminina parecida com Rosa, que vemos dançando logo no
início do especial, traz um arranjo de rosas vermelhas no alto da cabeça. Esta
figura sugere ser a mãe de Rosa, pois a montagem intercala a sua dança com
a imagem de uma menina de vestido claro também dançando, as duas
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parecem se olhar, felizes. Depois, a criança assustada cobre os olhos e vemos
pétalas vermelhas que caem diante de seus pezinhos parados, como
representação do sangue derramado. Aquela mesma figura feminina com os
cabelos presos no alto, aparece apenas mais uma vez, em silhueta, por detrás
de uma parede translúcida e texturizada. Esta imagem materializa uma
lembrança que a avó tem do momento do assassinato da mãe de Rosa, mas
também metaforiza uma suposta tragédia envolvendo a neta. Por fim, há
também a imagem de uma Nossa Senhora com o Menino Jesus ao final da
narrativa, figura muito presente no imaginário popular do Brasil.
Figura 4 - Fotogramas do especial em que se pode ver a textura do cenário, a paleta em tons de areia, e elementos icônicos marcantes. Fonte: Fotograma extraído da obra.
Considerações finais Em 1994, Hélio Guimarães terminava o seu texto colocando os
impasses da televisão àquele tempo: se, nela, havia espaço para aquele tipo
de criação híbrida de outras linguagens e se a “vocação” de Luiz Fernando
Carvalho não seria grandiosa demais para o meio.
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É uma felicidade saber que de lá pra cá tanto já foi feito e tanto ainda se
pode fazer com sensibilidade. As possibilidades podem ser infinitas, há muito
mais além das convenções pré-estabelecidas. A linguagem televisiva ainda é
muito jovem e precisa cada vez mais se reconhecer como meio de expressão -
por que não, também artística?
Como meio de comunicação de massa, a televisão alcança a
praticamente todos, vencendo barreiras sociais e geográficas. Precisa tomar
consciência de seu potencial “para o bem” a fim de exercer sobre as pessoas
uma influência mais positiva, levando àqueles que ainda não saíram de seus
lugares, a função sensibilizadora e questionadora da arte.
Os figurinos de Luciana Buarque são obras plásticas de muita
sensibilidade, uma camada viva de personagem que o ator vai vestir em cena.
Deve ter sido mesmo um encantamento para o espectador daqueles anos ver
surgir diante de seus olhos trajes de areia na televisão! Neste espectador pode
ter sido despertada a vontade de conhecer mais a fundo a obra daquele
escritor, a linguagem do teatro, a linguagem plástica, ou, simplesmente, ele
pode ter tido os olhos mais sensibilizados para encarar o mundo. É necessário
sensibilidade para compreendê-lo.
As experimentações que surgem depois, em Hoje é dia de Maria e em A
Pedra do Reino, pelas mãos de Luciana Buarque, e em outros trabalhos, pelas
mãos de Beth Filipecki e de Thanara Schönardie (as outras duas figurinistas
com que trabalha Luiz Fernando) devem muito a esses primeiros passos dados
e mostram ressonâncias. Como é jovem a linguagem televisiva, temos ao
nosso lado a vantagem de estarmos ainda inventando melhores formas de se
trabalhar com ela, renovando continuamente seu léxico, como se espera de
uma linguagem viva.
Referências
BUARQUE, Luciana. Entrevista concedida para Carolina Bassi de Moura para sua tese de doutorado: “A direção e a direção de arte – construções poéticas da imagem em Luiz Fernando Carvalho”. Rio de Janeiro, 2013. CARVALHO, Luiz Fernando. Renascer. Novela com 213 capítulos. Brasil: TV Globo, cor, 1993. ______. Uma mulher vestida de sol. Especial. Brasil: TV Globo, cor, 1994. ______. A farsa da boa preguiça. Especial. Brasil: TV Globo, cor, 1995.
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______. Hoje é Dia de Maria. (Primeira Jornada, 8 episódios e Segunda Jornada, 5 episódios). Série, Cor, Brasil: TV Globo, 2005. ______. A Pedra do Reino. Série, 5 episódios, Cor, Brasil: TV Globo, 2007. ______. Material extra do DVD da série. Cor, Brasil: TV Globo, 2007. ______. Capitu. Série, Cor, 270 min., Cor, Brasil: TV Globo, 2008.
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