Post on 01-Aug-2020
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES
FACULDADE DE ARQUITETURA
DENTRO Uma experimentação tipográfica em torno
da legibilidade das contraformas
Patrícia Rodrigues Esteves Reina
Trabalho de Projeto
Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas
Trabalho de Projeto orientado
pela Prof.ª Doutora Sofia Leal Rodrigues
2018
i
DECLARAÇÃO DE AUTORIA
Eu, Patrícia Rodrigues Esteves Reina, declaro que o presente Trabalho de Projeto de
mestrado intitulado “Dentro: uma experimentação tipográfica em torno da legibilidade das
contraformas” é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é
original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou
outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm a
devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.
A Candidata
Lisboa, 30 de outubro de 2018.
ii
RESUMO
Com base na perceção do espaço como elemento estruturante na tipografia, a presente
investigação teórico-prática pretende estudar as relações formais entre os caracteres e as suas
contraformas no contexto da formação das palavras. A hipótese propulsora do
desenvolvimento desta pesquisa é a de que há grande influência dos espaços interiores e
adjacentes ao desenho das letras no processo de reconhecimento das palavras durante a
leitura, contribuindo significativamente para a legibilidade tipográfica.
Para que se compreenda como funciona a dinâmica de contraste entre a letra e o
fundo, recorre-se inicialmente às teorias da perceção visual e à teoria da escrita de Gerrit
Noordzij. Essas definições propiciam a compreensão do papel da contraforma, tanto dos
espaços internos quanto dos adjacentes a cada letra que forma as palavras, perfazendo o
caminho de formação da imagem da palavra como função última da relação equilibrada entre
os caracteres e os espaços tipográficos.
Num segundo momento, analisa-se a definição do conceito de legibilidade e de alguns
dos mais relevantes postulados sobre os processos de leitura e de reconhecimento dos
caracteres. Coloca-se, então, a questão da familiaridade como base sistémica da ideia de
repertório tipográfico, discutindo-se a preservação da semelhança, pela aparência universal
da letra, e da sugestão da diferença, pelo funcionamento pragmático do alfabeto em si. Por
fim, a prática da decifração, no contacto habitual do leitor com a tipografia no processo de
leitura, é tratada sob a égide da tensão entre eficiência e conveniência.
Fundamentada sobre a reflexão teórica, desenvolveu-se a tipografia Dentro, que
assume em cada um dos seus caracteres as suas respetivas contraformas tipográficas. Infere-
se, pela realização dessa tipografia experimental, o grau de protagonismo dos espaços
microtipográficos no ato da leitura, sendo possível a comparação dos efeitos da contraforma
tanto no alfabeto latino maiúsculo quanto no alfabeto latino minúsculo.
Palavras-chave: Contraforma; Imagem da Palavra; Legibilidade; Perceção visual; Tipografia.
iii
ABSTRACT
Based on the perception of space as a structuring element in typography, the theoretical-
practical investigation of the present project intends to study the formal relations between
the characters and their counters in the context of word formation. The hypothesis
propelling the development of this research is that there is great influence of the interior and
adjacent spaces to the letter design in the process of word recognition during the reading
process, making them forms of direct contribution to the typographic legibility.
In order to understand how the contrast dynamic between the letter and the
background works, we first resort to the theories of visual perception and Gerrit Noordzij’s
theory of writing. These definitions allow the understanding of the counter, both in the
internal spaces and in the spaces adjacent to each letter that forms the words, making up the
path of the formation of the word-image as the ultimate function of the balanced relationship
between characters and typographic spaces.
In a second moment, the definition of the concept of legibility and some of the most
relevant postulates about the process of reading and character recognition are analyzed. The
question of familiarity as a systemic basis for the idea of a typographic repertoire. Then is
discussed the affinity preservation, as the similarity with a universal appearance of the letter,
and the suggestion of difference, as the pragmatic functioning of the alphabet itself. Finally,
the practice of deciphering — in the habitual contact of the reader with the typography in
the reading process — is treated under the aegis of the tension between efficiency and
convenience.
Grounded on the theoretical reflection, the typography Dentro [inside] was developed,
presenting each of its characters in their respective typographic counters. It is inferred, by
making this experimental typography, the level of protagonism for the verification of the
microtipographic spaces in the act of reading, enabling the comparison of the counter hole
effects both in the upper case latin alphabet and in the lower case latin alphabet.
Keywords: Counter; Legibility; Visual Perception; Typography; Word-image.
iv
AGRADECIMENTOS
Presto minha sincera gratidão à orientadora deste projeto, professora Sofia Rodrigues, pela
presença inspiradora como docente, uma figura de competência e sensibilidade ímpares.
Obrigada pelas leituras atentas e pelas tardes de encontro.
Tenho minha gratidão também junto à comunidade académica como um todo, por tantas
influências positivas que possibilitaram meu percurso até aqui – entre conversas distraídas
com colegas que trouxeram aquela ideia que faltava, ou entre a profusão de pensamentos
acarretada por uma leitura sugerida ou um seminário. Enfim, todas as circunstâncias que
corroboraram não só para a entrega deste trabalho, neste momento e desta forma, mas
também para meu desenvolvimento integral.
Agradeço ao Felipe, meu amor e meu amigo, todo apoio, atenção, ajuda, acolhimento,
esforço com o qual ele contribuiu para que eu alcançasse a consecução deste projeto. Viver
os desafios ao seu lado é sempre mais fácil.
Também aos meus pais, Marly e José Carlos, pelos quais sinto incomensurável privilégio em
ser filha, pela multiplicidade de formas que conseguem elaborar para impulsionar minha
prosperidade material e imaterial.
Ao meu irmão, Leandro, agradeço a inspiração em se dispor sempre com leveza e otimismo
às partes mais difíceis dos processos que envolvem uma escolha.
Por fim, Àquele que gera em mim a maior gratidão que eu poderia ter: pela vida.
v
ÍNDICE GERAL
i DECLARAÇÃO DE AUTORIA
ii RESUMO / PALAVRAS-CHAVE
iii ABSTRACT / KEYWORDS
iv AGRADECIMENTOS
v ÍNDICE GERAL
vi ÍNDICE DE IMAGENS
1 INTRODUÇÃO
5 1. CONTRAFORMA TIPOGRÁFICA
5 1.1 Perceção visual e contraste
10 1.2 Contraforma na letra
15 1.3 Contraforma na palavra
18 1.4 Imagem da palavra
23 2. LEGIBILIDADE
23 2.1 Definições
27 2.2 Especulações sobre a leitura
33 2.3 Repertório tipográfico
38 2.4 A palavra decifrável
43 3. TIPOGRAFIA EXPERIMENTAL DENTRO
44 3.1 Pressupostos teóricos
48 3.2 Metodologia e Desenvolvimento
49 3.2.1 Maiúsculas
53 3.2.2 Minúsculas
58 3.3 Discussão dos resultados
62 CONCLUSÃO
65 BIBLIOGRAFIA
68 ANEXO
vi
ÍNDICE DE IMAGENS
6 Figura 1: Figuração da perceção de uma página em um ambiente com ausência de luz, à esquerda, e
com presença de luz, à direita. (Gluth, 1999, p.244)
8 Figura 2: Planos das formas e princípio de completude (Gibson, 1950, p.143)
10 Figura 3: Exemplo do que seria um Vaso de Rubin
10 Figura 4: Exemplos de contrastes que podem ser considerados, respetivamente, moderado, grande
e nulo (Noordzij, 2013, p.14)
11 Figura 5: A aparência de um traço pode ser produzida de muitas formas sem que seja possível
definir, pelo resultado, como o traço foi feito. (Noordzij, 2013, p.33)
12 Figura 6: Presença comum do corpo “nu” de A e R, mesmo “vestidos” de algumas diferentes
“roupagens”(Gill, 2003, pp.77,79)
17 Figura 7: Equilíbrio entre contraformas internas e externas dentro das palavras
17 Figura 8: Ritmo tipográfico arruinado não só pela falta de equilíbrio entre os espaços internos e
adjacentes às letras, como também pela falta entre esses e o contraponto das hastes (Smeijers, 2015,
p.27).
19 Figura 9: Comparativo de três versões de um mesmo alfabeto (grego), de cariz fonético. Não é
possível distinguir as palavras nas versões mais ancestrais – acima e ao centro da imagem.
(Bringhust, 2006, p.34).
28 Figura 10: Movimentos de leitura e especulação de como seriam percebidas as palavras na região
favoal e parafoveal durante as fixações (adaptado de Hochuli, 2013, p.9)
29 Figura 11: Dois casos de deterioração por reprodutibilidade ensaiadas para testes com a Roxane
(Gluth, 1999, p.250)
32 Figura 12: Impression mi-type, Maître Leclair, 1843 (Unger, 2016, p.62)
32 Figura 13: Alfabeto minúsculo experimental mínimo, pensado por Brian Coe (Spencer, 1969, p.62)
33 Figura 14: Poster para a Revista FUSE 1, Can you (and you want to) read me?, Phil Baines. (Creative
Review, 2015)
35 Figura 15: Interrelações entre as letras sob a ótica da teoria da comparação das características.
Ilustração feita na tipografia Helvetica (Beier, 2009, p.35)
36 Figura 16: Régua stencil RUHA (Tipos das Letras, s.d.).
37 Figura 17: À esquerda, alguns dos módulos para a formação das letras no Super-tipo Veloz. Ao
centro, um material usado para promoção do tipo. Por fim, à direita, uma peça que usa os módulos
na construção de uma ilustração (Gamonal Arroyo, 2012, p.19-20.).
47 Figura 18: Yurnacular, de David Berlow (Fonts.at, 2018).
47 Figura 19: Espécimen da tipografia de Neville Brody, Autossugestion, 1993 (Deer, 2015, p.285).
48 Figura 20: Pequena amostra da Minuscule Deux Regular do espécimen da fonte Minuscule, de Thomas
Hout-Marchande (256TM, 2018).
49 Figura 21: Primeira versão do alfabeto em versal Dentro, novembro de 2017.
50 Figura 22: Diagonalidade intrínseca da forma do F na Quadraat, acima, e Avenir, abaixo.
51 Figura 23: A letra Y na versão anterior Dentro (acima) e na versão atual (abaixo).
51 Figura 24: A letra W na Quadraat e a sua contraforma extraída e, ao seu lado direito, a Garamond,
vii
com a sua respetiva contraforma. Note-se a diferença do espaço entre as contraformas em ambos os
exemplos.
52 Figura 25: Nova versão do alfabeto em versal Dentro, outubro de 2018.
53 Figura 26: Comparação entre a versão anterior (cinzento) e nova (preto) do alfabeto em versal
Dentro.
53 Figura 27: Comparação entre a mesma palavra utilizando-se a versão anterior (esquerda)
e versão nova (direita) do alfabeto em versal Dentro.
55 Figura 28: Soluções para o tratamento das ascendentes e descendentes em b, d, p e q. Autossugestion,
de Neville Brody, à esquerda, e Lint Light, de Kate Francis, à direita.
55 Figura 29: A primeira linha mostra a tipografia Roxane na sua versão final; a segunda linha, o
equilíbrio entre os seus espaços internos e relacionais; e a terceira linha a consistência das suas
contraformas internas. (Gluth, 1999, p.246)
56 Figura 30: Comparação entre as formas das letras t, f e l.
56 Figura 31: Comparação entre as formas das letras l e t, h e n, e y e v.
57 Figura 32: À esquerda, a letra g, considerando-se apenas a altura-x em contraforma e, à direita,
considerando-se que o desenho dessa letra em double-story, em específico, pede uma solução flexível.
57 Figura 33: Acima, as letras a e e sem as contraformas quase fechadas. Nota-se como a palavra
parece descompensada. Abaixo, o poder de equilíbrio das contraformas quase fechadas na vesão
final.
58 Figura 34: Diferença entre as formas das letras r, c, n e u.
58 Figura 35: Alfabeto minúsculo da tipografia Dentro, outubro de 2018.
59 Figura 36: Comparação entre as formas de B, E, F, K e R e, em baixo, C, D, G, O, Q e U.
60 Figura 37: Comparação entre as formas de f, i, j, l e t.
61 Figura 38: Alfabetos maiúsculo e minúsculo da tipografia Dentro, outubro de 2018.
1
INTRODUÇÃO
Dentre as múltiplas possibilidades investigativas que a tipografia oferece enquanto tema, o
presente estudo tem por objeto principal uma reflexão sobre a influência das contraformas
na formação e no reconhecimento da palavra tipográfica. A motivação para a escolha de tal
objeto recaiu na possibilidade de criação de uma tipografia que se apresentasse pelos espaços
interno e contíguo dos caracteres alfabéticos (latinos), ou seja, suas contraformas, visando o
reconhecimento pelo leitor, isto é, sua legibilidade.
Considera-se que a fonte, intitulada Dentro, produzida a partir de afirmações teóricas
relevantes sobre a natureza das contraformas, é um instrumento de potencialidade singular.
Sua aplicação em testes empíricos pode vir a atestar o objeto que rege o escopo deste trabalho
em diversos contextos.
A palavra como imagem está para além do universo da tipografia e imersa num
contexto muito mais abrangente, dentro dos limites do uso linguagem. No entanto, é
interessante notar como a passagem do registo caligráfico para o registo tipográfico
intensificou a consistência das formas dos signos alfabéticos na sua reprodutibilidade,
promovendo a familiarização dos leitores com a variedade das letras.
A forma das letras, assim como a de qualquer palavra por elas constituída, depende
de um contexto espacial para o seu reconhecimento, que é supostamente dado pelo seu
posicionamento, isto é, enquanto figura sobreposta num fundo. Nesse âmbito, o estudo da
contaforma ganha corpo e potencialidade frente ao desafio da legibilidade tipográfica, porque
os espaços de contraforma são – em teoria – os responsáveis por dar a cadência dos traços
constitutivos das letras, delimitando tanto a relação entre elas quanto a relação delas na
formação das palavras, a orientar o leitor no reconhecimento da palavra.
No momento em que esta investigação é feita, não há uma visão global sobre a real
contribuição da contraforma no que diz respeito à eficiência no reconhecimento das letras e
na legibilidade. Com frequência, o que se vê é a mera citação da contraforma como um aspeto
a ser considerado na otimização das formas tipográficas, muitas vezes, ligada a afirmação de
que quanto maior é a contraforma, melhor será a legibilidade, sem uma justificação mais
aprofundada. Também é comum presenciar uma sub-aplicação do conceito de contraforma
dentro do âmbito da tipografia, pela facto de sua associação muitas vezes limitar-se a aparecer
como parte dos estudos sobre anatomia tipográfica, a designar meramente os espaços
interiores de letras fechadas – um reducionismo lancinante do conceito.
2
Tomando essas questões por base, o objetivo geral do estudo é compreender de que
modo a contraforma tem protagonismo no processo de formação e de reconhecimento da
imagem da palavra tipográfica. Bem como, especificamente, compreender mais sobre a
natureza estética da tipografia e as suas extrapolações no ato de leitura, contextualizando a
problemática da legibilidade no âmbito da contraforma; e ainda, se possível, justificar o
conceito de contraforma como elemento fundamental na busca da consistência tipográfica
de uma fonte, pela questão da formação da palavra na administração dos seus espaços.
Este trabalho de projeto enquadra-se dentro da área de concentração de investigação
em Design de Comunicação, na linha de “Design e Edição”, segundo a divisão oficial referida
pelo CIEBA – Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes da Universidade de
Lisboa. A sua metodologia de investigação está concretizada sob a forma de um projeto final
do tipo teórico-prático.
A primeira parte, teórica, de caráter qualitativo e não intervencionista, será resultado
da Revisão Literária, que compõe o corpo de discussão crítica dos dois primeiros capítulos.
É importante destacar que a base teórica foi referencial quer para o desenvolvimento, quer
para a avaliação da parte prática.
A segunda parte, prática, possui um caráter experimental. Está descrita em detalhes
no escopo do terceiro capítulo e tem como resultado a tipografia experimental Dentro, feita a
partir das contraformas das letras. A tipografia é apresentada em peso regular, nos alfabetos
maiúsculo e minúsculo. Elaborou-se, ainda, como viés da prática, um espécimen tipográfico
da Dentro, legitimando assim o valor de experimento, além de explorar a sua utilização no
âmbito da palavra formada – uma das premissas para a qual a fonte foi pensada.
O primeiro capítulo é dedicado ao estudo da contraforma tipográfica. Pela
importância do conceito de contraste entre figura e fundo para o entendimento do que é a
contraforma, inicia-se com as perspetivas teóricas sobre a perceção visual dadas por Kurt
Koffka e a psicologia da Gestalt, e por James Gibson, que presta importantes contribuições
para o estudo específico da perceção das formas.
Já as subdivisões dedicadas às contraformas das letras e das palavras são
complementadas pela definição dos papéis exercidos pelos espaços dentro e entre as letras,
e mantêm uma proximidade sensível com a teoria da escrita de Gerrit Noordzij e com o
conceito de contraforma tipográfica explorado por Fred Smeijers. Explora-se o conceito de
traço, proposto por Noordzij como a superfície escrita (ou impressa) da letra, em
contraposição ao fundo, que seria por excelência o parâmetro de comparação entre os
3
diversos tipos de letra. Ainda nesse bloco, discute-se a palavra como unidade orgânica de
sentido e a relevância da cadência adequada dos espaços intermitentes ao traço.
No fim do primeiro capítulo, trabalha-se o conceito de imagem da palavra (word-
image), diferenciando-o do conceito de “forma da palavra” (word shape). Há também um
esforço no sentido de contradizer o uso do termo ‘imagem’, interpretado como ideia de
representação figurada, por reflexões introduzidas pelo tipógrafo Eric Gill e pelo filósofo
Vilém Flusser. A transição para o capítulo seguinte é trazida pela exposição da contraforma
como elemento fundamental na formação da imagem da palavra, afetando o seu
reconhecimento no processo de leitura.
O segundo capítulo inicia-se com a definição do conceito de legibilidade, em análise
das concordâncias e das divergências entre alguns dos autores mais influentes no campo da
tipografia, na tentativa de indagar se realmente existe espaço para experimentações com as
formas das letras. Para que seja possível tirar alguma conclusão a esse respeito, o segundo
item trata de especular sobre o conhecimento atual referente ao processo de leitura,
aprofundando explicações fisiológicas do funcionamento do olho no contacto com as letras.
Discute-se, a propósito, a preferência dos leitores pelas formas conservadoras e a sua relação
com os automatismos de leitura.
Passa-se, então, à proposição do que seria o repertório tipográfico e a sua função na
perceção das letras – pela semelhança entre as formas universais de um alfabeto, ou pela
diferença que existe entre os caracteres. Pela sugestão teórica dada por Jost Hochuli e Sofie
Beier, procura-se saber qual é o fator preponderante para alcançar a consistência no desenho
de um novo alfabeto.
Ao fim do terceiro capítulo, trata-se do poder de decifração da palavra, pela
observação da demora ou da rapidez no reconhecimento de uma letra, como uma variável
de significação da palavra escrita. Reflete-se sobre a busca de eficiência tipográfica em
contraposição ao conceito de adequação tipográfica.
O último capítulo diverge dos anteriores por ser principalmente descritivo, apesar de
também expositivo. Nele, apresentam-se os pressupostos teóricos por trás das escolhas
plásticas na elaboração da tipografia Dentro, como por exemplo o conceito de compensação
lumínica de Jost Hochuli e de equilíbrio de contraste em Emil Ruder.
Na parte dedicada à explicação da metodologia e do desenvolvimento dos alfabetos
maiúsculo e minúsculo, respetivamente, optou-se pela mesma ordem escolhida na execução
do trabalho prático. No caso específico da produção das minúsculas, foi preciso justificar
alguns dos modelos conceituais escolhidos na solução dos problemas encontrados. O
4
capítulo encerra com uma breve discussão dos resultados obtidos, que é complementada pela
conclusão geral deste trabalho de projeto, no qual discute-se pertinência das primeiras
hipóteses e outras questões levantadas durante o processo de produção teórico-prático de
Dentro.
5
1. CONTRAFORMA TIPOGRÁFICA
No famoso livro de Gerrit Noordzij, O traço: teoria da escrita, o autor argumenta que “[u]ma
letra é composta de duas formas, uma clara e outra escura” (2013, p.13), orientando as bases
da perceção em tipografia para a visualização da relação entre forma e contraforma. Entender
que a integridade de um caractere tipográfico não depende apenas da parte que será impressa,
é reconhecer que os espaços ditos vazios, dentro e entre as letras, são também formas que
constituem a face do tipo – mais exatamente o que será tratado no presente trabalho por
contraformas tipográficas.
O contorno que delimita a forma e a contraforma é um contorno comum entre
ambas. Se ele se desloca, não cria um vão, mas deforma-se em expansão ou contração: “[a]s
formas brancas determinam o lugar das formas pretas, mas essas formas brancas são
formadas pelas formas pretas” (Noordzij, 2013, p.21). Fred Smeijers também reitera essa
ideia em Contrapunção, ao afimar que as “(…) formas brancas fazem o segundo plano, as
formas pretas fazem o primeiro plano, e vice-versa. Mude uma, e a outra também muda”
(Smeijers, 2015, p.24). A chave dessa relação é, assim, o contraste, que será abordado em
duas acepções distintas: o contraste luminoso, advindo da perceção visual, e o contraste
tipográfico, proveniente no estudo da anatomia das letras, a demonstrar a
complementariedade que assumem para o estudo da contraforma.
1.1 Perceção visual e contraste
O estudo da perceção visual humana carrega grande impacto dos aspetos fisiológicos
envolvidos. Para que algo seja visto, é preciso que uma gama de funções biológicas exista e
esteja a funcionar bem: os olhos necessitam de estar abertos, com bom foco, nervos óticos
sadios e todo o trabalho neurológico que se sucede. O que precisa ser destacado, no entanto,
é que a perceção visual acontece através de estímulos exteriores ao sistema de visão per se:
“(…) perspective, light absorption, and reflection remain outside our organisms”1 (Koffka,
1936, p.79).
O clássico sobre a perceção visual, da autoria de James Gibson, The Perception of the
Visual World, introduz essa questão com primor. O autor explica que o estímulo visual
implica a chegada de luz à retina, ressaltando que “(…) the retina does respond to is
differential intensity in an adjacent order over the retina. The necessary condition for pattern
1 Tradução Livre (TL): “(…) perspetiva, absorção de luz, e reflexão permanecem fora dos nossos organismos”
6
vision is an in-homogeneity of the set of hypothetical rays, not the rays themselves”2 (Gibson,
1950, p.64).
Esse mecanismo pode ser muito bem ilustrado num exemplo simples dado por Stuart
Gluth (1999), no artigo para a Visible Language, intitulado “Roxane, A Study in Visual Factors
Effecting Legibility”. Se uma página de texto for vista na ausência de qualquer iluminação,
as letras que existem sobre a sua superfície não poderão ser distinguidas. Se houver alguma
incidência de luz sobre essa página, será possível ver as letras. O que tornará possível a visão,
portanto, será a diferença no comportamento dos raios incidentes sobre a superfície do
papel, entre as áreas impressas e não impressas, criando o estímulo luminoso na retina (fig.1).
Figura 1: Figuração da perceção de uma página em um ambiente com ausência
de luz, à esquerda, e com presença de luz, à direita. (Gluth, 1999, p.244)
Gluth explica que quando nenhuma luz é vista ou quando o olho vê preto, nenhum
sinal é enviado para o cérebro; os sinais são enviados apenas quando nervo é excitado, e isso
só acontece quando olho deteta a luz (1999, p.243). Tal facto elucida a comunhão entre os
aspetos de absorção e reflexão de luz relacionados com o estímulo visual, ao passo que não
se pode falar de um sem tratar do outro. O olho são percebe a existência de variações de
tonalidade e cor, e não apenas o preto e o branco. Isso se dá porque a frequência e o
comprimento de onda dos espectros luminosos que atingem a retina mudam consoante o
tipo de material e de textura dos elementos que constituem o mundo visual, criando as
nuances percebidas. Assim, será a porção refletida na superfície dos materiais a responsável
pelo envio das informações, uma vez que é somente a luminosidade que pode prover os
sinais para a perceção do campo.
2 TL: “(…) ao que a retina responde é a intensidade diferencial em uma ordem adjacente sobre a retina. A condição necessária para a visão padrão é uma não homogeneidade do conjunto de raios hipotéticos, não os próprios raios.”
7
Baseado na premissa certa, Gluth faz uma afirmação questionável, ao referir que é o
facto da porção branca da letra atingir a retina que converte o espaço negativo em
protagonista na leitura (1999, p.243). Há um equívoco nessa ideia, pois não se pode pressupor
que o espaço negativo será sempre a porção mais reflexiva de uma superfície. É preciso
considerar que buscar o espaço negativo de algo é propor uma visão de contraste sobre a sua
forma. Gibson explica que um elemento pode ser tido como branco ou preto apenas em
termos relativos (1950, p.65).
Os princípios da psicologia da Gestalt têm um peso expressivo no estudo dos aspetos
relacionais que permeiam a perceção visual e serão de grande valor para o presente trabalho,
por esse mesmo motivo. A coexistência de formas será sempre regida pela relação entre
forças de diversas naturezas que operam sobre as mesmas, determinando o modo como são
percecionadas. Kurt Koffka metaforiza essa questão como a relação entre dois líquidos de
tensões superficiais distintas, como por exemplo acontece com a água e o azeite:
The forces which segregate the oil from the other liquid are at the same time forces which hold the oil particles together (…). If we apply this to our problem of perceived form we must conclude that the shape of our ink blot or any other figure is the result of forces which do not only segregate the figure from the rest of the field but hold it in equilibrium with the field.3 (Koffka, 1936, p.132)
A dinâmica descrita por Koffka dá ensejo ao foco na perspetiva, que não será aqui
tratada da mesma maneira que é encontrada em conteúdos ligados à História da Arte. A
perspetiva inaugurada pelos renascentistas foi mais uma invenção técnica do que conceitual,
uma vez que a tridimensionalidade não é determinada apenas pela visualização do volume de
uma forma, mas também – e talvez antes disso – pela aparência de camadas de planos através
de formas sobrepostas num campo visual.
Gibson diferencia dois tipos de forma. Ele denomina forma profunda aquela que é
intrínseca ao objeto, independente da posição espacial do observador; ou seja, que será
definida objetivamente pelas suas características e não pela orientação em que se apresenta
de acordo com o ponto de observação de quem a vê. Já a forma projetada é aquela que um
objeto possui ao ser projetado em um plano. Nesse caso, o seu aspeto é determinado de
forma relativa, envolvendo características do ambiente, como o posicionamento do(s)
3 TL: As forças que segregam o óleo do outro líquido são ao mesmo tempo as forças que mantêm as partículas de óleo juntas (…). Se aplicarmos isso ao nosso problema da perceção da forma, devemos concluir que a forma de nosso borrão de tinta ou qualquer outra figura é o resultado de forças que não apenas segregam a figura do resto do campo, mas a mantém em equilíbrio com o campo.
8
objeto(s) e do seu observador (1950, p.34). É importante efetuar uma distinção entre ambos,
porque o mundo visual apresenta-se em formas profundas, enquanto o campo visual é
constituído por formas projetadas.
O fenómeno da superposição dos objetos no campo visual não deve ser visto como
uma mera “sugestão” de profundidade, porque o ser humano tem noção de que um objeto
ao longe pode ser parcialmente oculto por um objeto próximo – mas a retina não (Gibson,
1950, p.142). O indício de como as formas se comportam em termos de distância, entre elas
próprias e entre elas e o observador, será dado principalmente pelo princípio de completude (ou
continuidade das linhas do contorno), como pode ser observado na Figura 2. A esse
propósito Gibson refere: “We can reasonably assume that, if objects tend to have regular
outlines, completeness, closure, or continuity tends to be associated with the near side of a
common contour and incompleteness to be associated with the far side”4 (1950, p.143).
Figura 2: Planos das formas e princípio de completude (Gibson, 1950, p.143)
Essa ideia é fortalecida na tipografia pelas pesquisas de Erdmann and Dodge, que,
em 1898, buscaram compreender se o reconhecimento dos caracteres seria feito através de
suas partes constituintes. Para isso, os caracteres foram desconstruídos numa sucessão de
traços, como por exemplo e , e submetidos a teste, concluindo-se que não eram
facilmente reconhecidos como 5 e k (Spencer, 1969, p.17). O resultado do teste faz pensar
4 TL: “Podemos razoavelmente assumir que, se os objetos tendem a ter contornos regulares, integridade, fechamento ou continuidade tende a ser associado com o lado mais próximo de um contorno comum e incompletude a ser associado com o lado mais distante”.
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que mesmo que esse algarismo e essa letra tenham sido ancestralmente fixados através da
produção de traços consecutivos (o que não é o caso da tipografia), a imagem unificada de
cada um deles é garantida pelo princípio de completude referido, pois os contornos que
pertencem ao traço são regulares, favorecendo o indício de que pertencem ao mesmo plano.
Smeijers afirma que “(…) os desenhos de tipos [typefaces] são somas de partes” (2015,
p.33). Essas partes das quais Smeijers fala, no entanto, não se referem às partes das letras
apresentadas nas pesquisas de Erdmann e Dogde, mas sim à forma e à contraforma
tipográficas. Emil Ruder, no clássico do design Typographie, explica, de modo assertivo, a
relação entre áreas impressas e áreas não impressas, mostrando o caminho para a
compreensão de que as letras são mais que a mera soma dos seus traços.
Typographical symbols printed on paper capture, activate and regulate light; they can be comprehended only in conjunction with the unprinted areas. The printed value evokes its countervalue and the two together determine the overall form. The unprinted area is not an undefinable vacuum but an essential element of what is printed.5 (Ruder, 2009, p.52)
Por essa razão, o cariz relacional que marca o entendimento da perceção do campo
visual deve ser levado em consideração também no estudo das formas tipográficas. A
tipografia é uma projeção, mediada por forças de absorção/reflexão de luz e
união/segregação de planos. Como projeção, a natureza de um fundo tende a não se
diferenciar da natureza dos outros elementos da composição, portando-se como mais um
desses elementos (Gibson, 1950, p.38). Esse é o principal motivo pelo qual deve considerar-
se a contraforma, em conjunto com a forma, como parte constituinte do tipo da letra.
É importante destacar que a perceção nítida desses diferentes planos não é feita de
modo simultâneo, como pode parecer . A amplitude visual percecionada pelo olho é o efeito
de uma coleção de observações específicas conseguidas através de movimentos oculares
exploratórios, que tendem a fixar-se em pontos de atenção (Reis, 2000). A preferência do
olho em fixar-se em certos pontos é função da cognição e depende diretamente do tipo de
informação que cada indivíduo está — ou tende a estar — à procura (Solso, 1994 apud Reis
2000). Essa recolha informacional é, portanto, seletiva e sequencial. Todavia, por ser feita de
modo tão rápido, cria a impressão de que o foco do campo visual é genérico e amplo. Bons
exemplos dessa dinâmica são as figuras ambíguas provenientes dos estudos sobre ilusão
ótica. A indeterminação interpretativa do Vaso de Rubin (fig. 3), entre a silhueta de uma taça
5 TL: “Símbolos tipográficos impressos sobre o papel capturam, ativam e regulam a luz; Eles apenas podem ser compreendidos quando em conjunto com as áreas não impressas. O valor do impresso suscita o valor do fundo não impresso e os dois juntos determinam a forma total. A área sem impressão não é um vácuo indefinível, mas um elemento essencial do que está impresso.”
10
ou as silhuetas de dois perfis diametralmente opostos, ilustra bem como o que é visto
depende desses estímulos específicos e como, por sua vez, esses estímulos obedecem a regras
de assincronia, pois não será possível enxergar o vaso e os perfis concomitantemente.
Figura 3: Exemplo do que seria um Vaso de Rubin
Ver-se-á que essa relação de espaços interpretativos entre figura e fundo no âmbito
da tipografia, tem início ainda no desenho de cada glifo mas, inevitavelmente, estende-se à
composição das palavras, linhas e a todas as manchas de texto. Portanto, para entender os
fundamentos que regem uma forma tipográfica é preciso ter em atenção o estudo da sua
contraforma, uma vez que são faces igualmente valiosas de uma mesma moeda.
1.2 Contraforma na letra
Em se tratando de letras (e outros tipos de caracteres tipográficos, tais como algarismos e
sinais), o termo contraste é um vocábulo da anatomia tipográfica com definição bastante
específica. É empregado para denotar a diferença de espessura nos traços de uma mesma
letra. Quanto à sua qualificação, pode dizer-se que o contraste é médio, grande ou nulo
(Ferrand, Bicker, 2000, p.28), conforme mostra a Figura 4.
Figura 4: Exemplos de contrastes que podem ser considerados,
respetivamente, moderado, grande e nulo (Noordzij, 2013, p.14)
11
Para entender a relação entre contraste e contraforma, torna-se imprescindível
considerar a diferenciação entre os três tipos de contraste dada por Gerrit Noordzij na sua
teoria da escrita6, na qual o autor descreve as propriedades das formas das letras através de uma
precisão paramétrica (2013, p.11), isto é, de modo a que seja possível determinar e comparar
os valores de tamanho e orientação do que o autor reconhece como o traço da letra.
Translação: o contraste dos traços é resultante da mudança de direção do traço em si, porque o tamanho e a orientação do contraponto são constantes.
Rotação: o contraste dos traços é o resultado não apenas das mudanças de direção do traço, mas também das alterações na orientação do contraponto. O tamanho do contraponto é constante.
Expansão: o contraste é obtido pela mudança do tamanho do contraponto. A orientação do contraponto é constante. (Noordzij, 2013, p.27. Destaque do autor)
O traço, em Noordzij, define-se pela superfície aparente da escrita, enquanto o
contraponto de um traço é a ligação entre um ponto qualquer do contorno de um traço e a
sua contraparte respetiva (2013, p.21). A descrição desse termo, que tem tanto destaque na
classificação de Noordzij, parece demasiado vaga. No entanto, é o facto de que não é fácil
definir a orientação e o tamanho do contraponto de forma assertiva quando se olha para um
traço (2013, p.33) o principal argumento de Noordzij para a importância que o “branco”
assume no estudo das suas formas: “A forma produzida não permite qualquer conclusão
definitiva a respeito do traço. Assim são as formas pretas do desenho de uma letra (e de
tipografias). Elas só podem ser definidas a partir do espaço branco da palavra” (Noordzij,
2013, p.34).
Figura 5: A aparência de um traço pode ser produzida de muitas formas sem que seja
possível definir, pelo resultado, como o traço foi feito. (Noordzij, 2013, p.33)
6 É importante ressaltar que na essa teoria da escrita, defendida no livro O traço: teoria da escrita, Gerrit Noordzij leva em consideração que a tipografia também é um tipo de escrita – mecanizada e sistematizada visando reprodutibilidade. Ele argumenta que “[d]o ponto de vista tipográfico, os tipos são uma ramificação da escrita (…). O tipógrafo apenas pode trabalhar com a escrita que está disposta em uma fonte” (2013, p.11); e ainda denuncia que “[o]s estudos das letras tipográficas e a pedagogia oportunamente deixam de lado, negligenciam ou ocultam os verdadeiros fatos porque a visão que essas disciplinas têm da escrita está ligada ao entendimento de que a letra tipográfica e a escrita manual informal são autônomas” (2013, p.18).
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12
Noordzij, na sua teoria, defende que a parametrização entre as diferentes formas de
uma mesma letra será dada, então, pelas proporções relativas das áreas brancas. O autor
atesta que “(…) toda a comparação requer um ponto de vista privilegiado que torna as coisas
comparáveis. A única coisa que os vários tipos de escrita têm em comum é o branco das
palavras. Esse ponto de vista universal vale igualmente para a escrita manual e a tipografia”
(2013, p.15).
No seu Ensaio sobre tipografia, Eric Gill parece ter associado a esse ponto de vista
privilegiado o que chamou de nudez da letra:
Quando um A não é um A? Ou quando um R não é um R? É claro que para qualquer letra, há uma espécie de norma. Descobrir essa norma é a primeira coisa a fazer. (…) Porém, tal como há uma norma para a forma das letras – o corpo nu, por assim dizer, das letras – há também uma norma para a roupagem das letras; ou melhor, há muitas normas, dependendo do lugar e do propósito para que as letras são usadas. (Gill, 2003, pp.73-74)
A perceção de que um A é mesmo um A, através do reconhecimento das suas formas
fundamentais em diferentes “roupagens”, é o ponto de partida (e também de chegada) na
construção do desenho de uma fonte tipográfica. Smeijers assume o domínio da contraforma
como a pedra angular da construção das formas das letras: “O que faz de uma letra uma letra,
e de uma palavra uma palavra? É uma velha história que não se pode deixar de contar. Tudo
depende de consciência e respeito pelas formas entre e dentro das letras” (Smeijers, 2015, p.24).
Figura 6: Presença comum do corpo “nu” de A e R, mesmo “vestidos”
de algumas diferentes “roupagens” (Gill, 2003, pp.77,79).
lq’QD6 GI lq’QD6 G C
13
Os autores não estão a falar de aspetos divergentes sobre a construção das letras. Isso
fica claro quando se olha para os exemplos expostos por Gill, caracterizados como uma única
imagem, na Figura 6.
O que torna os diversos desenhos de uma mesma letra similares são, de facto, as
partes que delimitam o glifo, tanto internamente quanto externamente – ou seja, as suas
contraformas. Assim, a liberdade formal do design da letra estaria limitada apenas pelo nível
de reconhecimento do caractere, que comummente designa-se por legibilidade. Por sua vez,
esta dependerá do poder associativo (ou dissociativo) com formas familiares,
pontencialmente dada pela contraforma que a letra oferece ao leitor.
O termo contraforma, amplamente utilizado no escopo deste trabalho, pode referir-
se aos espaços tanto internos quanto externos que delineiam o traço da letra. Fred Smeijers,
em Contrapunção, propõe uma sistematização dos tipos de contraforma no âmbito da
tipografia:
O espaço dentro de um caractere pode ser divido em sub-categorias. Há o espaço ou contraforma fechada, definido de forma estrita: como no o ou no p. O segundo tipo é a contraforma quase fechada: como no n ou a [a]. E o terceiro tipo é a contraforma aberta: como no c ou z. (Smeijers, 2015, p.30)
Como a primeira linha da citação adverte, Smeijers refere-se somente aos espaços
interiores ao traço que compreende a superfície da letra. O autor aborda a questão dessa
forma, não por descuido para com as contraformas externas às letras, mas porque os espaços
tipográficos mudam de categoria quanto à sua natureza externa ou interna conforme a
disposição que assumem na formação de uma palavra:
Não é tão difícil colocar os caracteres lado a lado corretamente quando eles possuem contraformas fechadas ou quase fechadas. E quando essas formas são muito simples e conseguem perceber-se facilmente – então isso é simples e fácil. As coisas ficam mais difíceis quando os caracteres com contraformas abertas precisam de ser encaixados. (Smeijers, 2015, p.30)
As contraformas quase fechadas que possuem aberturas laterais, tais como o k e o x,
e as contraformas abertas (em geral) têm uma situação limítrofe diferente das contraformas
nas letras que possuem barras verticais e/ou barrigas – características que delimitam bem os
espaços dentro e entre as letras. Nesses dois primeiros casos, uma certa parte do espaço que
pertence ao interior da face aberta de um caractere é também o espaço que o separa do
caractere seguinte. O problema só consegue ser solucionado se se considerar que essa área
14
tem uma dupla função e será interpretada como espaço interior e exterior ao mesmo tempo
(Smeijers, 2015, p.32)
Como se pode notar, na subcategorização de Smeijers não entram os caracteres sem
qualquer espécie de contraforma interna, como é o caso, por exemplo, do l, do i, do j, do t e
do r. A predominância da forma de haste dos traços nessas letras faz com que as suas
delimitações sejam exclusivamente asseguradas pelas contraformas externas. Em particular,
esse tipo de situação demonstra o caráter relacional dos elementos que constituem qualquer
composição tipográfica, ratificando a premissa da Gestalt de que o todo é de facto mais do
que a soma das partes bem como outras questões de perceção visual.
Noordzij comenta na sua teoria da escrita que algumas letras, tais como as minúsculas
o, s, l, d, p, u, n, b, q e z, podem ser escritas ou lidas se rotacionadas à 180º, sem qualquer
prejuízo no processo de reconhecimento exclusivamente sígnico. A mudança ocorre apenas
no âmbito do significado: “O significado de p e d e o significado de u ou n não dependem da
forma das letras, mas apenas da minha posição em relação à forma. (…) Agora um d não é
apenas um p rotacionado, mas é também um b refletido” (Noordzij, 2013, p.63).
Isso acontece porque a contraforma interna tem um valor de espaço construtivo que
garante a forma da letra nos exemplos dados. Nesses casos, o que permite posicionar a letra
em relação ao seu observador é a contraforma externa e a interação que ela tem com o meio.
A partir dessa lógica, entende-se com mais nitidez que, pelo menos no que diz respeito ao
alfabeto latino, os “(…) caracteres não significam muito sozinhos, então são colocados juntos
para fazer palavras” (Smeijers, 2015, p.24).
O processo de construção de uma palavra, através do uso de caracteres tipográficos,
possui uma particularidade que contribui para a tendência de se pensar a tipografia letra a
letra:
Quando estamos fazendo carcteres que não são tipos, o conteúdo da mensagem à qual se deseja dar forma já é conhecido. Neste caso, estamos dando forma a palavras pré-definidas (…). Alguém que desenha um tipo não possui essa informação pré-definida. A sua tarefa é assegurar que o resultado tenha boa aparência, não importa qual língua ou quais palavras forem compostas nesses caracteres. (Smeijers, 2015, p.29)
Como foram projetados para reprodução, os caracteres tipográficos são desenhados
individualmente para que possam combinar-se em palavras. Portanto, é a palavra que toma
o protagonismo como unidade orgânica (Noordzij, 2013, p.15). Esse grau de distinção é dado
à palavra porque ela mantém a premissa de significar algo, de tal forma, que um conjunto de
15
caracteres que não possua um significado atribuído numa dada língua é considerado uma
pseudopalavra.
A letra impressa tem por finalidade básica formar uma palavra para ser lida. As letras
que são postas lado a lado para que se componha uma palavra são formas de natureza
diferentes e, no entanto, precisam de ser arrumadas de forma harmónica para garantir sua
inteligibilidade: “What the typographer has to do first and foremost is to sort out and
organize things which are of a very disparate nature”7(Ruder, 2009, p.14). Para tal, é
indispensável pensar os espaços entre as letras – que serão também responsáveis por
determinar os limites que definem onde começa e acaba uma palavra.
1.3 Contraforma na palavra
Abordar o conceito de contraforma no contexto da palavra é, acima de tudo, considerar que
a unidade orgânica que determina a aprensão do seu sentido só pode ser garantida quando
se combinam dois aspetos que definem a sua formação: o espaço que será percebido como
intervalo entre as letras e o espaço que será percebido como intervalo entre as palavras. Essa
relação de diferenciação fica mais didática quando se compara a palavra escrita com a palavra
falada, pois apesar de serem formas de linguagem díspares, a questão do ritmo é fulcral em
ambas.
Noordjiz explica que “[n]a linguagem falada no dia a dia, ritmo significa regularidade
em intervalos de tempo. Os intervalos não são exatamente iguais em tamanho e forma, mas
são idênticos em valor. Na escrita, o ritmo não é uma estrutura temporal, mas uma questão
espacial” (2013, p.43). Pode dizer-se, então, que a duração da linguagem falada e o uso de
espaço na escrita vão marcar tanto o início como o fim de uma palavra. O que não fica tão
evidente é que, particularmente na escrita, a regulação desses espaços é tão substancial que
uma pequena variação pode trazer desequilíbrio e inadequação, modificando o sentido
previsto.
Está claro que as composições “demais” e “de mais” são distintas. A diferença entre
ambas está no ritmo dado pelo espaço entre a letra e e a letra m. Quando esses exemplos são
compostos foneticamente, conta-se com um intervalo de tempo diferenciado para fazer a
separação em cada situação. Esse intervalo é usado como espaço no plano visual, com o
7 TL: “O que o tipógrafo tem de fazer em primeiro lugar é separar e organizar coisas que são de natureza muito desigual”
16
objetivo de adequar a composição visual à unidade de sentido, e assim garantir a
compreensão da palavra.
Apesar da sua simplicidade, o exemplo destaca que existe uma proporcionalidade
entre o espaço que faz as letras pertencerem a uma palavra e o espaço entre as letras que
servem de fronteira entre uma palavra e outra. Essa proporção entre as letras e entre as
palavras não pode ser negligenciada, pois caso o espaço seja excessivo ou diminuto, a
interpretação da palavra ou, até mesmo, da frase na qual se encontra é comprometida:
Quando os intervalos de um conjunto rítmico são separados por figuras mutuamente discrepantes, elas próprias são intervalos do conjunto rítmico (…). As formas brancas [entre as letras] são constituídas somente pela combinação de letras; não há uma simples medida de seu tamanho, e derivam quase incidentalmente dos traços pretos que requerem tanta atenção. É por essa razão que dou tanta ênfase às formas brancas de uma palavra. (Noordzij, 2013, p.44)
O fator agregador das letras que constituem uma palavra é o vazio que as intercala.
O que parece ser um espaço sem função, ‘vazio’, é na verdade responsável pela “manutenção
do equilíbrio das formas brancas” (Noordzij, 2013, p.14).
Emil Ruder também valoriza o que designa por “áreas não impressas”, ressaltando o
poder coesivo desses espaços: “The space between the typographical symbols becomes a
field of forces whose invisible lines run crisscross between the printed elements. The
ornamental power which may be inherent in the unprinted spaces must be detected and
emphasised in full”8 (2009, p.52). O autor explica que, por essa razão, o designer de tipos
deve efetuar um balanço constante entre a forma e a contraforma no processo de desenho
da letra. Trata-se de uma sugestão preciosa porque “[t]he various effects obtained by the
combination of letters are determined by the interplay of the white of the counter and the
white of the set width.”9 (Ruder, 2009, p.52)
Smeijers destaca que o valor ótico das contraformas entre os caracteres precisa de
corresponder ao valor ótico das contraformas internas, porque ele conta como uma
superfície tal qual o traço (2013, p.30). O grande desafio é fazer com que as diferentes formas
que caracterizam a composição de uma palavra possuam esse mesmo valor ótico. A
importância dessa paridade também é referida da obra de Noodzij, no qual o autor destaca
que o facto de esses intervalos precisarem de ser iguais em valor não invalida a diferença de
8 TL: “O espaço entre os símbolos tipográficos tornam-se um campo de forças cujas linhas invisíveis entrecruzam-se com os elementos impressos. O poder ornamental que tende a emanar das áreas não impressas deve ser detetado e enfatizado na íntegra.” 9 TL: “(...) [o]s diversos efeitos obtidos pela combinação de letras são determinados pela relação entre o branco da contraforma interna com o branco da distância entre as letras.”
17
tamanho e de forma entre eles (2013, p.43), pois a ênfase está na perceção visual e não em
valores matemáticos de área superfícial. Na Figura 7, apesar da diferença subtil, a forma que
se encontra entre o a e o l e entre o a e o m é um bom exemplo visual do aspeto referido por
Noodzij.
Figura 7: Equilíbrio entre contraformas internas e externas dentro das palavras
A boa administração dos espaços na composição de uma palavra também
correlaciona o equilíbrio dos traços em relação ao equilíbrio dos espaços. Pela lógica do
espaço negativo, a forma encontrada entre as contraformas internas e adjacentes às letras que
constituem uma palavra são os próprios traços: as formas “pretas” e “brancas” são
codependentes. Se por acaso o traço de uma letra for descompensado em relação aos outros,
de nada valerá o esforço de equilíbio dos espaços entre e dentro das letras, porque a palavra
parecerá deformada (fig.8).
Figura 8: Ritmo tipográfico arruinado não só pela falta de equilíbrio entre os espaços internos e adjacentes
às letras, como também pela falta de ritmo entre esses e o contraponto das hastes (Smeijers, 2015, p.27).
Aliás, é importante lembrar que em tipografia o erro é sempre expandido, com
imensa repercussão, devido às naturezas combinatória da linguagem e reprodutiva da técnica.
Smeijers compila, na imagem exemplificativa da Figura 8, praticamente todos os erros que
podem ocorrer na provisão do ritmo tipográfico, deixando explícito o quanto essas falhas
podem afetar a compreensão de um texto.
18
Portanto, se o ritmo dado pelos espaços não for aceitável, será difícil formar uma
palavra, mesmo que a sequência das letras que a compõem esteja correta (Noordzij, 2013,
p.43). A cadência dos espaços é tão sensível que “[o] mínimo distúrbio do ritmo parece ser
suficiente para que as palavras se distingam como unidades rítmicas” (Noordzij, 2013, p.48).
A força da palavra dependente das relações aqui descritas, de tal forma que é muito
mais fácil ler uma “pavarla desoerdanda” (palavra desordenada) que uma “pa l av r ae s p
a çad a” (palavra espaçada). É provável que assim aconteça porque, na leitura, o
reconhecimento de uma palavra é dado mais pelo padrão das formas de seus traços e espaços,
do que pela ordem das letras que a constituem. Esse assunto inscreve-se, portanto, no
conceito de imagem da palavra.
1.4 Imagem da palavra
É essencial que se entenda de maneira correta o que se quer dizer com imagem da palavra,
pois parece ser um conceito incompreendido, dado a sua constante má utilização. Com
frequência, o termo é vinculado a duas definições equivocadas. Uma delas é a confusão com
a locução ‘forma da palavra’ (word shape), amplamente usada nos estudos sobre
reconhecimento das letras, visitado em específico no capítulo 2. O outro equívoco é
correlacionar o conceito de imagem da palavra com a ideia de representação, em vez de
vinculá-la à ideia de associação.
A expressão é exaustivamente utilizada na teoria da escrita de Noordzij, em três
capítulos do ensaio O traço, dedicados à reflexão sobre a formação e consolidação da imagem
da palavra. Smeijers é outro autor que aborda o conceito, em Contrapunção, utilizando-o como
base de um dos seus argumentos principais: a premissa de que a consistência das formas
internas das letras traz força à imagem da palavra (2015, p.25). Pelo conteúdo dos autores de
referência, interessados nos espaços adjacentes aos traços das letras, já se pode ter um
pequeno vislumbre do que se quer dizer com imagem da palavra.
A ideia de palavra, como uma unidade orgânica de representação de sentido, não é
congénita ao nascimento da escrita. Como Noordzij lembra, num primeiro momento “a
escrita é logográfica – cada sinal (…) representa uma palavra. Depois disso, a escrita torna-
se silábica – cada sinal (…) representa uma sílaba. Finalmente, a escrita é fonética – cada
sinal (…) representa um som” (Noordzij, 2013, p.50). Nos textos que utilizam a escrita
chinesa, que é logográfica, não há marcas de separação entre as unidades de sentido, mesmo
quando o sentido é feito através de combinações de logogramas. Aliás, o estabelecimento
19
da palavra vista como uma unidade tão pouco coincide com a emergência da escrita
fonética.
Robert Bringhust, em A forma sólida da linguagem, aborda um bom exemplo. O autor
compara o mesmo trecho, em grego, de um poema de Parménides, escrito em três épocas
distintas: por volta de 500 a.C., na época do autor do poema; em 400 a.C., na época de Platão;
e uma visão mais moderna que remonta, pela sua aparência, ao século XVIII (2006, p.34).
Na parte superior e no meio da Figura 9, pode observar-se que tanto a versão original como
a da época de Platão não possuem qualquer tipo de separação entre as palavras, mesmo
pertencendo a uma escrita fonética. É possível que, antes de surgir o interesse em marcar o
fim e o início de uma palavra com espaços diferenciados, as primeiras transformações na
escrita fonética estivessem relacionadas com questões bastante mais basilares, como a
organização do sentido da escrita nas linhas e a alguma lógica de formação de períodos
sintagmáticos.
Figura 9: Comparativo de três versões de um mesmo alfabeto (grego), de cariz fonético. Não é possível
distinguir as palavras nas versões mais ancestrais – acima e ao centro da imagem. (Bringhust, 2006, p.34).
A imagem da palavra é o resultado de um processo de organização da escrita que
orienta a composição das letras segundo determinados ritmos espaciais, com o objetivo de
demarcar visualmente o conjunto de caracteres que compõem uma palavra. Essa noção
20
difere da ideia de forma da palavra, tratada nos estudos psicolinguísticos como o contorno
próprio que cada palavra possui com o seu bloco específico de caracteres.
Considera-se que ‘terno’ e ‘temo’ são palavras cujas formas são demasiado parecidas.
Contudo, é incorreto afirmar que as imagens dessas palavras são semelhantes. Seria um desvio
conceitual confrontar duas imagens de grafias distintas. A imagem de uma palavra só pode
ser comparada no mesmo contexto de arranjo de letras (Noordzij, 2013, pp.44-5, 55, 67-8),
de preferência no mesmo tipo de caixa de um mesmo alfabeto10 e com a mesma altura-x11.
Se essas condições forem observadas, pode comparar-se imagens de uma mesma palavra,
ainda que feitas através de técnicas de inscrição diferentes:
[a] qualidade de imagens visuais é, em primeiro lugar, uma questão de configuração própria e não o resultado de uma certa técnica ou produção. (…) Uma imagem de palavra pode ter muitas qualidades diferentes. Pode-se indicar uma diferença entre desenhar caracteres tipográficos e desenhar caracteres para outros processos. (Smeijers, 2015, pp.28-9).
O segundo equívoco também deve ser desfeito: a imagem da palavra não é a
proposição da palavra como uma figura, como uma representação de si mesma. O
substantivo ‘imagem’ usado no termo tem um valor associativo – como um determinado
conjunto de características que integra a aparência de uma grafia específica. Gill já tinha em
atenção que “[a]s letras não são imagens nem representações. São, mais ou menos, formas
abstractas” (2003, p.49). Todavia, as letras possuem a função essencial de formar as palavras
– e as palavras possuem significado.
O que se deve ter em consideração é que observar a palavra sob o ponto de vista de
uma figura é uma tarefa que a Semiologia propõe, pois considera a palavra escrita como uma
das possibilidades representativas de um significante para um determinado significado,
perfazendo o binómio necessário para a composição do respetivo signo. Nesse sentido, ter
uma palavra como imagem torna-se alheio ao campo de estudo da tipografia, pois releva
aspetos sobre a forma das letras e foca-se na função linguística contextual (Ferreira, 2014
apud Brideau, 2013).
10 Em Ensaio sobre tipografia, Eric Gill diferencia os conjuntos de letras específicos das maiúsculas, das minúsculas e das itálicas como três tipos de alfabeto romano distintos. Ele argumenta que “(…) embora estejamos familiarizados com eles, nem sempre é fácil descobrir as suas diferenças essenciais. Não é uma questão de inclinação, de serifas, de espessura ou de finura. (…) As diferenças essenciais estão, obviamente, entre as formas das letras.” (2003, p.87) 11 Fred Smeijers adverte que “para se fazer uma comparação verdadeira entre desenhos de tipos, é preciso fazer com que as alturas-x sejam iguais. Só então há um terreno neutro a partir do qual se pode fazer um julgamento.” (2015, p.38)
21
O filósofo da comunicação Vilém Flusser, em O mundo codificado, expõe uma visão
bastante original sobre a relação entre imagem e texto, que pode ajudar a elucidar algumas
questões propostas nesta secção sobre a imagem da palavra. Para tal, será necessário
remontar, novamente, às origens da escrita:
Se alguém examinar certas plaquetas mesopotâmicas poderá ver que o propósito original da escrita era facilitar o deciframento das imagens. Aquelas plaquetas contêm imagens impressas com selos cilíndricos e símbolos “cuneiformes”, nelas riscadas com buril. Os símbolos cuneiformes formam linhas que dão obviamente significado à imagem que acompanham. Eles “explicam”, “recontam” e “contam” sobre aquilo, e assim o fazem desenrolando a superfície da imagem em linhas, desembaraçando o tecido da imagem nos fios de um texto (Flusser, 2017, p.136).
Flusser defende que esse “desenrolar” da linha de um texto é um processo de fixação
de uma cena, que se mantém moldável até que a linha acabe e se perceba bem como se
articulam os conceitos correspondentes a cada símbolo isolado (2017, p.129). Deduz-se,
então, que a ideia representada por cada símbolo – ou por cada palavra, para ser menos
anacrónico – será passível de variação de acordo com o contexto dado pelos outros
elementos que o/a circundam:
Uma imagem é uma superfície cujo significado pode ser abarcado num lance de olhar: ela “sincroniza”a circunstância que indica como cena. Mas, depois de um olhar abrangente, os olhos percorrem a imagem analisando-a, a fim de acolher efetivamente seu significado; eles devem “diacronizar a sincronicidade” (Flusser, 2017, p.127).
É por essa razão que, diferentemente do texto, uma palavra nunca poderá ser vista
como imagem: ela não consegue fixar um significado sozinha. A partir da lógica de Flusser,
pode-se chegar à pertinência de uma boa imagem da palavra. O respeito pelos espaços
internos das letras e das palavras tem um impacto visual direto na estrutura de um texto,
como foi mostrado na Figura 7 (p.17).
Falar em imagem da palavra, especificamente no campo da tipografia, confere ainda
mais pertinência aos cuidados que devem ser tidos em conta para garantir alguma qualidade
aos espaços calculados entre as letras, bem como à distância que será aplicada quando se
pressionar a tecla de espaço. O problema reside no facto do designer de tipos não poder
controlar a forma como as suas criações vão ser utilizadas. Os editores de texto eletrónicos
são ferramentas populares, que se especializam, a cada versão, na manipulação visual de
palavras e caracteres de modo progressivamente mais profundo. O acesso a esse tipo de
modificações acaba por minar o equilíbrio dos espaços pré-configurados, criando
22
inconsistências e alterando desastrosamente a qualidade das imagens das palavras no texto
(Smeijers, 2015, p.29).
A força da imagem da palavra é construída a partir de caracteres que logram êxito em
manter uma relação otimizada entre as suas contraformas internas e externas, garantindo um
bom equilíbrio dos espaços na composição das palavras e das linhas:
Essas dimensões são todas definidas, em última análise, pela contraforma. Contraformas que são muito estreitas não dão ao leitor tempo suficiente (frações de segundo) para processar o que viram. Nós podemos ter a sensação de que estamos olhando não para letras, mas para códigos de barra. Tipos que são muito largos nos dão tempo demais, e nós nos esquecemos do que acabamos de ler. Aí temos que soletrar tudo para compreender a mensagem (Smeijers, 2015, p.35).
A relevância da contribuição dos designers de tipos com as suas novas proposições
estéticas não está em apresentar caracteres inovadores, mas na criação de caracteres que se
conjuguem numa imagem da palavra diferente das que já estão disponíveis (Smeijers, 2015,
p.29), sempre a considerar a imagem da palavra como meta. Se espaço entre as letras for mais
estreito, as contraformas internas destacam-se (Ruder, 2009), o que pode criar um
desequilíbrio entre o traço e o branco. Noordzij (2013, pp.55-7) explica que os escribas
medievais apertavam os traços que compunham as letras, estreitando a contraforma. Até
onde a equivalência foi possível, garantia-se uma boa imagem da palavra; mas a partir do
momento em que esse equilíbrio deixou de ser exequível, as palavras mergulharam na
uniformidade de suas partes e consequentemente numa maior falta de legibilidade.
Desse modo, vê-se que a qualidade, ou a força, da imagem da palavra é assegurada
pelos mesmos princípios de perceção que afetam as relações dentro de qualquer campo
visual. Faz-se necessário o equilíbrio entre as formas e espaços, porque “[q]uanto menos esse
princípio de equilíbrio for observado, menos legível será o resultado, não importa como ele
foi feito” (Smeijers, 2015, p.25). Por conseguinte, a consecução de uma boa imagem da
palavra é imprescindível para a facilidade no reconhecimento dos caracteres e das palavras,
isto é, para a leitura, pois “[s]e quisermos tornar um texto legível, precisamos respeitar certos
fatos básicos sobre visão e percepção” (Smeijers, 2015, p.27).
23
2. LEGIBILIDADE
Para perceber como a leitura pode ser influenciada pela qualidade da imagem da palavra, é
preciso considerar o que se sabe sobre esse processo quotidiano de decodificação alfabética.
Cabe também compreender como as formas das letras mantêm correspondência com a
memória e o reconhecimento das palavras, e como esse mecanismo cumpre uma dinâmica
retroativa com o próprio ato de ler.
Jost Hochuli pauta, em O detalhe na tipografia, que a receção da tipografia acontece em
duas gradações: “em primeiro lugar, como verdadeira leitura, ou seja, como conversão no
cérebro da sequência de letras vista e, em segundo, como visão pictórica (na maioria das
vezes, não percebida conscientemente), que desencadeia associações com algo já visto
anteriormente” (2013, p.10). Esse será o tema discutido a seguir, examinando-se o primeiro
escalão como matéria da legibilidade e do processo de leitura, e o segundo como matéria do
repertório de familiaridade das formas tipográficas e do poder de decifração da palavra.
2.1 Definições
No consagrado livro de Robert Bringhurst, Elementos do estilo tipográfico, a palavra
“legibilidade” aparece dez vezes, figurando inclusive como um dos princípios sobre os quais
o livro trata (2005, p.16), sem, contudo, ser definida em qualquer uma de suas páginas. Tal
como Gerard Unger aponta em Enquanto você lê, essa omissão é usual em inúmeros autores
no campo da tipografia, que “tendem a não ir muito além de enfatizar a importância da
legibilidade. Poucas vezes se explica o porquê de ela ser importante, ou mesmo o que de fato
é a legibilidade” (2016, p.18).
É por essa razão que a definição de legibilidade avançada por Walter Tracy, no seu
Letters of Credit (1986, p.30-1), ainda mantém um certo destaque, apesar do tempo em que foi
feita. Tracy explica que a qualidade do que é legível, em tipografia, é constrangida por dois
critérios que funcionam numa dinâmica retroativa: a legibilidade e a leiturabilidade12. A
distinção desses dois termos é delicada até mesmo no inglês, a língua que cunhou os
conceitos de legibility e readability. O facto é que ambos sugerem o sentido de “facilidade de
leitura”, embora haja uma diferença significativa entre eles.
12 O uso da tradução do termo readability como leiturabilidade tem frequência em livros sobre tipografia traduzidos na Língua Portuguesa do Brasil e também no Castelhano (cf. edição original de Hernerstosa et al., 2014[2012]). Possivelmente, trata-se de uma tradução mais exata de que outras utilizadas esporadicamente, tais como “conforto” ou “compreensão”, pois compartilha a mesma lógica de agregação entre “leitura” e “habilidade” (read + ability) que o conceito em inglês explicita (Ferreira, 2014, p.46).
24
Para tornar as diferenças nítidas, Tracy define legibilidade como o grau de
reconhecimento da letra, sendo uma questão diretamente ligada à perceção das suas formas
e, por isso, ao tamanho do caractere. O termo leiturabilidade, por sua vez, está associado ao
conforto visual durante a leitura, e é visto como uma qualidade valiosa para a compreensão
de textos longos (Tracy, 1986, p.31).
A distinção que Tracy faz é clara, e através dela já se pode supor que a leiturabilidade
não será objeto de contemplação para uma pesquisa que se constrange ao âmbito da
formação das palavras, como acontece no escopo deste trabalho. Como já foi anteriormente
referido, são os conceitos imanentes da legibilidade que serão assumidos como fatores
relevantes na perceção e na construção da qualidade do que é legível, quer numa só letra,
quer em combinações de letras, ou seja, na palavra.
Apesar de apresentar uma definição, Tracy faz o conceito de legibilidade depender
do tamanho das letras, como posteriormente desenvolve: “It is a matter for concern in text
sizes, and especially in such special cases as directories, where the type is quite small. In
display sizes legibility ceases to be a serious matter; a character which causes uncertainty at 8
point will be plain enough at 24 point.”13 (1986, p.31). No entanto, as afirmações de Tracy
podem ser rebatidas. Eric Gill, no Ensaio sobre tipografia, aborda a legibilidade através de um
caso particular de reconhecimento de caracteres que parece ser independente do corpo da
letra:
Um quadrado ou uma figura oblonga com os cantos arredondados, pode, por si mesmo, parecer-se mais com um O (…) do que outra coisa qualquer, mas ao lado de um D, feito segundo os mesmos princípios, não há muito por onde reconhecer qual é um e qual o outro; e à distância, os dois são indistinguíveis. (Gill, 2003, p.71)
Existem duas questões que merecem destaque no comentário de Gill e que vêm
tornar mais complexas as variáveis que determinam a condição de legibilidade, para além da
questão do tamanho do corpo da letra, sugerida por Tracy. A primeira questão advém do
facto de que uma letra será legível não apenas em si mesma, mas dentro de uma lógica formal
que permeia o desenho de todo o alfabeto do qual faz parte – uma consistência interna à
fonte e uma familiaridade externa à fonte. A segunda, tem a ver com o emprego que será
dado a determinado desenho tipográfico, sugerindo – através da referência indireta que faz
13 TL: “É uma questão que se preocupa com tamanhos de texto e, especialmente, em casos particulares, como diretórios [i.e. páginas amarelas e guias comerciais], onde o tipo é muito pequeno. Nos tamanhos de exibição, a legibilidade deixa de ser um assunto sério; um caractere que causa incerteza em 8 pontos será bastante claro em 24 pontos.”
25
à distância de leitura, por exemplo – que existiriam outras variáveis inerentes à legibilidade
que seriam difíceis de controlar.
Jorge dos Reis explica que a “(…) legibilidade de uma letra depende em primeiro
lugar das suas qualidades intrínsecas e em segundo lugar da forma como vai ser usada. Uma
boa letra mal-usada pode, nessas condições, ser menos legível do que uma letra pobre, mas
bem usada” (2013, p.280). Posto isto, coloca-se um dos maiores desafios a qualquer estudo
que paute o tema da legibilidade: a delimitação do alcance do seu conceito. A enumeração
dessas variáveis não parece ter sido despropositada, pois tal como é sugerido, não é possível
que uma letra pobre e mal-usada tenha qualquer hipótese de ser considerada legível. A
garantia de legibilidade, assim, não deve estar vinculada ao bom uso, isto é, à remediação de
uma forma de baixa legibilidade, mas “em primeiro lugar” às “qualidades intrínsecas”.
Levando-se em conta que a construção da imagem da palavra tem por base as formas
e as contraformas, o foco será a busca desses atributos específicos das letras e dos seus
desdobramentos ao nível combinatório na formação dos vocábulos. Aplica-se, aqui, uma
conceção mais próxima da que foi dada por Unger, bastante ligada à microtipografia, na qual
a “[l]egibilidade refere-se à facilidade em se distinguir uma letra da outra: se, por exemplo, o
I maiúsculo e o l minúsculo são suficientemente diferentes. (…) Em outras palavras,
legibilidade refere-se às formas das letras e aos seus detalhes” (2016, p.18-9).
É importante ressaltar que o conceito não abarca somente a ideia de diferença, mas
também de similitude ou, como se diz mais frequentemente, de familiaridade, porque a
legibilidade também “corresponde simplesmente àquilo a que estamos habituados” (Gill,
2003, p.71). Portanto, a legibilidade diz respeito tanto a um processo de reconhecimento, de
definição do caractere, como de não reconhecimento – o que acontece perante algo que é
tão habitual que acaba por passar despercebido, gerando assim uma convicção sobre a forma
de uma letra específica:
O pingo no i também pode assumir uma variedade de formas, e outras partes de letras, da mesma maneira, tendem a não ser uniformes. Quando se chama a atenção de leitores para isso, eles geralmente ficam surpresos e às vezes incrédulos. (Unger, 2016, p.13)
Esse aspeto é mais importante do que pode parecer. Todo o argumento, no sentido
de que é possível perceber as diferenciações, ou similitudes, no contexto semântico, deve ser
levado em consideração, até porque a “condição para aquilo que chamamos de leitura é a
palavra” (Noordzij, 2013, p.47). No entanto, não se pode perder de vista que as letras figuram
um sistema escrito, um código, artificialmente sustentado a partir da aprendizagem, como
26
meio de sedimentação da linguagem humana (Bringhurst, 2006, p.15). O respeito pelas
formas alfabéticas antecede o início da tipografia no ocidente:
A escrita com caneta, mesmo já no século IV, mostra, de forma muito clara, que o escriba não tinha qualquer ideia de inventar formas de letras ‘para canetas’, mas estava simplesmente a fazer, tão bem como sabia, com uma caneta, o que julgava ser a escrita comum. (…). Ele não estava a inventar letras; estava a escrever formas já inventadas (Gill, 2003, p.52).
A acuidade na reprodução das formas alfabéticas a longo termo, traz à tona a
dimensão teleológica da escrita em termos formais: sua inteligibilidade, isto é, seu grau de
decifração, perpassando a variação temporal sobre o registo. As formas das letras estão
firmemente gravadas nas nossas mentes, caso contrário, não seria possível reconhecê-las
(Unger, 2016, p.10), inclusive na passagem do tempo. Segundo o influente designer Kars
Gerstner, “[a] função está estabelecida, o alfabeto inventado, e as formas básicas das letras
são imutáveis” (1964, p.29 apud Unger, 2016, p.18).
No ensaio Experimental typography. Whatever that means, Peter Bi’lak recomenda cautela
na exploração das formas das letras:
Does type design and typography allow an experimental approach at all? The alphabet is by its very nature dependent on and defined by conventions. Type design that is not bound by convention is like a private language: both lack the ability to communicate.14 (Bi’lak, 2005)
As palavras de Bi’lak são um bom caminho para entender que o mesmo movimento
de constrição criativa também é um esforço de democratização informativa. As convenções
a que se refere dizem respeito à maneira como acontece a materialização de um texto, como
se apresentam os seus caracteres, a pontuação, os numerais e outros glifos, sem esquecer os
espaços entre as letras e as palavras. Tal como Tschichold pontua, “a tipografia é feita para
todos, não deixa espaço para mudanças drásticas” (1975, p.10 apud Unger, p.24).
Antes, porém, de assimilar de modo mais assertivo o que se entende por “mudanças
drásticas” no âmbito da tipografia, bem como o protocolo que cada letra do alfabeto carrega
no seu número avultado de versões, será imprescindível perceber como acontece a leitura e
a forma como o olho humano percebe essas formas gráficas.
14 TL: O design de tipos e a tipografia permitem, de todo, uma abordagem experimental? O alfabeto é, por sua própria natureza, dependente e definido por convenções. Design de tipos que não é vinculado às convenções é como uma linguagem privada: ambos não têm a capacidade de se comunicar.
27
2.2 Especulações sobre a leitura
Os paradigmas científicos que envolvem os estudos sobre como se dá o reconhecimento dos
caracteres ou como acontece a leitura são inconclusivos (Unger, 2016; Hochuli, 2013; Beier,
2009), apesar de existirem pesquisas envolvendo a tipografia e o processo de leitura desde os
fins do século XVIII (Spencer, 1969).
Os tipógrafos e investigadores do campo do design costumam criticar o facto de os
estudos, feitos sob a perspetiva da optometria e da psicologia cognitiva, não levarem
frequentemente em consideração variáveis como os desenhos de letra utilizados e a
compatibilidade de alturas-x entre os corpos estudados. Sophie Beier, na sua tese Typeface
Legibility: Towards defining familiarity, expõe o seu assombro perante alguns artigos mais
relevantes sobre esta temática, citados no seu trabalho:
A striking fact is that even when being through on all other aspects of the methods applied, only a few of the studies contain any information on the typeface applied or discuss its influence on the final result, and none of the papers discuss matters such as spacing, stroke contrast and weight.15 (Beier, 2009, p.39)
O facto é que a leitura é um tópico científico muito exigente por ser um processo
que engloba, além das capacidades fisiológicas de receção visual no indivíduo, outros aspetos
socioculturais de significação que dificultam a possibilidade de uma conclusão global.
Existem ainda diferenças no modo de ler, não só pelas questões idiossincráticas que essa
competência envolve em cada um (assim como cada qual tem a sua letra quando aprende a
escrever manualmente), mas também pelas diferentes exigências que cada leitura
circunscreve de acordo com a sua finalidade, isto é, um rótulo não será lido exatamente do
mesmo modo como será lido um romance.
Apesar disso, acredita-se que, embora essas experiências de leitura envolvam
contextos e propósitos destoantes, a sua parcela fisiológica, ou seja, a forma de
funcionamento dos olhos e do cérebro é praticamente a mesma. Como refere Unger: “em
todos os casos, é, ao fim e ao cabo, uma questão de reconhecer letras e palavras e de convertê-
las em linguagem e compreensão” (2016, p.59-60).
Para entender como acontece a leitura é particularmente importante ter em conta que
a visão humana, apesar de ampla, tem um foco bastante delimitado. A retina é constituída
15 TL: Um facto surpreendente é que, mesmo quando estão sendo exaustivos em todos os outros aspetos dos métodos aplicados, apenas alguns dos estudos contêm qualquer informação sobre o tipo de letra aplicada, ou discutem sua influência no resultado final, e nenhum dos artigos discute assuntos como espaçamento, contraste do traço e peso.
28
por uma camada de recetores fotossensíveis de dois tipos: os cones e os bastonetes. Os
bastonetes são acromáticos e hipersensíveis à deteção de luminosidade, sendo bastante úteis
para “enxergar” no escuro; enquanto os cones são os responsáveis pela deteção de cores e
de nitidez, exigindo-se sempre uma luminosidade mínima para o seu bom funcionamento
(Unger, 2016, p.56).
Pelas razões que foram demonstradas no capítulo anterior, não é possível ler palavras
no escuro, o que já sugere o destaque das células tipo cone nesse processo. Essas células
também delimitam duas áreas distintas no funcionamento da visão: a área que garante uma
visão mais nítida, designada por fóvea, localizada no meio da retina e que contém a
concentração de cones; e outra área, chamada parafoveal, que parte dessa centralidade e se
estende até à zona mais periférica do campo de visão, responsável por uma visão
progressivamente mais embaciada (2016, p.56). Considera-se preferível dizer que a leitura
usa a alternância entre a fóvea e a parafoveal, pelas razões que se verá a seguir.
A ação dos olhos durante a leitura é dividida em movimentos sacádicos e
movimentos de fixação. Quando os olhos percorrem uma linha de texto, em vez de fixarem
letra a letra, ou palavra a palavra – como se poderia supor pela forma como a escrita ou a
fala acontecem –, fixam-se em trechos que distam até dezoito caracteres um do outro,
chamados sacádicos (Rayner, Pollatsek, 1989, p.126; Wendt, 2000, p.10 apud Unger, 2016,
p.57). Entre esses saltos, há a fixação, que contempla em nitidez apenas dois ou três
caracteres, e é somente durante esse momento que a informação lida é registada pelo cérebro
humano (Hochuli, 2013, p.8). Apesar do foco da fixação pairar sobre um número bastante
limitado de caracteres, especula-se que as outras letras do intervalo sacádico são percebidas
pelo olho através da visão parafoveal e também se constituem como informação relevante
recolhida durante a pausa de fixação (fig.10).
Figura 10: Movimentos de leitura e especulação de como seriam percebidas as palavras na
região favoal e parafoveal durante as fixações (adaptado de Hochuli, 2013, p.9)
Unger explica que:
29
[n]a área gradualmente desfocada, à direita da fixação, na região parafoveal, ainda há muito o que se pode identificar: espaços, ascendentes e descendentes e outros componentes óbvios do campo de visão. Uma palavra vista apenas vagamente, e que, portanto, é identificada apenas parcialmente, pode vir a ser a próxima palavra a ser fixada, o que diminui a duração da próxima fixação. Quanto mais curtas e conhecidas as palavras percebidas parafovealmente, melhor elas contribuem para a leitura. (Unger, 2016, p.57-8)
A questão da identificação parafoveal é compatível com a perspetiva de que as letras
e as palavras nos oferecem formas familiares. Os leitores iniciantes, por exemplo, fazem
sacadas curtíssimas e fixam-se diversas vezes numa mesma palavra (Unger, 2016, p.56), ao
passo que, mesmo para leitores fluentes, é muito comum que as palavras muito longas, ou
menos usadas, ou nunca vistas, diminuam a extensão das sacadas e aumentem o tempo de
fixação (Unger, 2016, p.57). Essas reflexões incrementam a relevância que a visão parafoveal
possui na leitura.
É dentro dessa dinâmica de apreensão de toda a informação possível, não só a
respeito do que está nítido, mas também do que está baço, que as experimentações
tipográficas como a que Stuart Gluth usou para desenhar a sua fonte Roxane, mostram-se
particularmente elucidativas na discussão sobre a legibilidade. O autor argumenta que a
legibilidade é uma qualidade tipográfica imprescindível, em primeiro lugar porque grande
parte da população não possui visão corrigida (por problemas económicos ou de negligência),
mas também porque a leitura é um processo que tende a se automatizar, e as boas ou más
influências que se configuram no ato, eventualmente, diluem-se num processo que se
pretende irrefletido (Gluth, 1999, p.237). Após desenhar o que considerou ser o resultado
mais legível, Gluth submeteu a tipografia Roxane e outras tipografias conhecidas e
amplamente utilizadas a uma série de processos de reprodutibilidade que deteriorassem a
nitidez da forma (fig.11):
Figura 11: Dois casos de deterioração por reprodutibilidade
ensaiadas para testes com a Roxane (Gluth, 1999, p.250)
250 VISIBLE LANGUAGE 33·3
Soft focus, caused by reproduction (or by the viewer) can have a dramatic effect, both in this example where it has caused the letters to fatten (see figure 28) and in this example where it has caused them to thin out with parts of them disappearing (see figure 29) .
. l Bembo Bauer Bodoni Garamond New Baskerville Times New Roman ' l
• I
Bembo Bauer Bodoni Garamond New Baskerville Times New Roman
aaaaa aaa ' Frutiger Roman Gill Sans Helvetica Light Optima News Gothic Frutiger Roman Gill Sans Helvetica Light Optima News Gothic
a a a a Roxane Univers 55 Roxane Univers 55
figure 28 figure 29
30
A deterioração técnica criada por Gluth pode ser posta em paralelo com a
desfocagem que ocorre na parafoveal, ilustrando a importância de formas consistentes e de
traços bem construídos na replicação de qualquer desenho tipográfico num alfabeto
sistematizado. Contudo, é necessário ter em conta que durante uma fixação, o olho regista
não as letras isoladas, mas sim as palavras (ou parte das palavras), e “(…) é evidente que, no
processo de leitura, estas desempenham um papel especialmente importante. (…) As letras
isoladas são desenhadas sempre em vista de seu efeito na palavra” (Hochuli, 2013, p.24).
No processo de leitura, há muitas ressalvas em relação à hipótese de o
reconhecimento das formas poder ser dado, em algum nível, pela palavra como um todo
(Beier, 2009; Larson, 2004; Unger, 2016), mas é de comum acordo entre os estudiosos que
as “[p]alavras que ficam armazenadas na memória visual do leitor são lidas com mais rapidez
do que palavras desconhecidas” (Hochuli, 2013, p.8). Unger, por exemplo, que acredita que
a forma visual completa da palavra não tem importância, argumenta que a perceção de uma
imagem na leitura de uma palavra tipográfica tem a sua raiz no facto do cérebro atribuir
unidades de sentido completo às palavras. Contudo, logo de seguida o autor atesta: “é
somente quando estamos aprendendo a ler que absorvemos toda a representação tipográfica
de uma palavra: como leitores experientes, reconhecemos os significados das palavras a partir
de partes pequenas da notação tipográfica” (Unger, 2016, p.65).
Observa-se aqui um embate lógico: se o que é apreendido pelo leitor iniciante é a
representação integral da palavra, como é que essa representação deixa de ter qualquer
influência na automatização futura? É um facto conhecido que as fixações ocorrem, com
muita frequência, no início das palavras (Aitchison, 1999, p.134-136 apud Unger, 2016, p.65;
Hochuli, 2013), o que nos pode levar a crer que essa informação nítida e parcial é suficiente
para o reconhecimento da palavra através da ativação da memória linguística. No entanto,
como acabámos de ver, a visão parafoveal tem um papel ativo durante as fixações. Pode ser
que não se adivinhe a palavra apenas pela parte nítida que se fixa, mas – e ainda mais provável
– pelo indício da palavra como unidade, mesmo numa imagem baça. Afinal, lê-se sem
nenhuma confusão as palavras ‘conto’ e ‘controlo’, mesmo que o ponto de fixação tenda a
conter as mesmas letras.
A importância da memorização visual da palavra no processo de leitura, pode ser
uma das razões que leva os leitores assíduos a um maior conservadorismo quanto à forma
das letras:
Em geral, esse leitor de textos mais longos, sobretudo o leitor de livros, comporta-se em relação à fonte de modo conservador. Ele rejeita as experiências com as letras (e qualquer outras unidades da tipografia em
31
detalhe). A esse leitor, não interessam as letras em si. Ele não quer saber de caracteres “bonitos” ou “interessantes”, e sim de registar o sentido das palavras visualizadas através deles. Por isso, alterações essenciais na forma dos tipos usados no texto contínuo não são desejáveis. (Hochuli, 2013, p.10)
Hochuli expõe aqui a tensão que existe na leitura entre as componentes gráficas e
linguísticas. Uma postura conservadora geralmente é adotada apenas quando a tipografia é
percebida como um meio para prover o registo escrito de uma palavra. Nesse caso, como
diria Beatrice Warde (1955), a tipografia deveria se apresentar tal como um cálice cristalino.
Deve-se ter em mente que, sob o ponto de vista da legibilidade, se for necessário fixar durante
mais tempo o texto para descobrir uma determinada letra ou palavra, a atenção que os
aspetos gráficos suscitam será automaticamente subtraída aos aspetos lexicais de
compreensão, o que diminuiria o aproveitamento de um processo de leitura.
Ler mais lento, porém, não significa ler pior. Tão pouco ler mais rápido é ler melhor.
Unger explica que quando um leitor já tem um nível avançado de automatismos de leitura, o
processo tende a ganhar um ritmo mais veloz, porque esse indivíduo conseguiria projetar as
expectativas semânticas para além do que estaria de facto a ler naquele instante. Esse tipo de
leitor, especula-se, lê e compreende a leitura que está a fazer não só pelo que o autor escreve,
mas por aquilo que ele mesmo já sabe ou supõe saber sobre o assunto (Unger, 2016, p.58).
Com isso, poder-se-ia dizer que os automatismos de leitura, que são falsamente
creditados somente quanto ao mecanismo de reconhecimento das letras e palavras,
transporiam os limites do aspeto gráfico de um texto, influenciando também o nível do
entendimento linguístico. Essas constatações reforçam, também, para o âmbito gráfico, a
ideia de que o que é lido, de alguma forma, são pistas, indícios, que funcionam como
catalisadores nesse jogo de associações.
O resultado dos experimentos do tabelião francês Maître Leclair, feitos em 1843,
podem ajudar na exploração dessa hipótese. Quando resolveu imprimir somente a metade
superior das linhas que compunham uma coluna, Leclair não tinha a intenção altruísta de
contribuir para os estudos tipográficos, mas apenas de economizar tinta (fig.12). No entanto,
Émile Javal, profícuo estudioso em oftalmologia e leitura, fez estudos sistematizados e
controlados envolvendo aspetos de legibilidade já por volta de 1878, e chegou a conclusões
que corroboram a tese de que Leclair não teria conseguido os mesmos resultados caso
optasse pela reprodução de apenas as partes inferiores das linhas.
32
Figura 12: Impression mi-type, Maître Leclair, 1843 (Unger, 2016, p.62)
Outras empreitadas tipográficas, como o alfabeto mínimo pensado por Brian Coe
(fig.13), resultado de um experimento para determinar quanto poderia ser retirado da forma
das letras minúsculas sem que se comprometesse totalmente o seu reconhecimento (Spencer,
1969, p.62); ou ainda a tipografia Can you (and do you want to) read me?, de Phil Baines, para a
Revista FUSE 1 (fig.14) – comercializada atualmente sob o nome de FF You Can Read Me –,
mostram como a leitura de uma palavra será, de facto, algo como o desvelar de um indício.
Figura 13: Alfabeto minúsculo experimental mínimo, pensado por Brian Coe (Spencer, 1969, p.62)
33
Figura 14: Poster para a Revista FUSE 1, Can you (and you want to) read me?,
Phil Baines. (Creative Review, 2015)
Como se pode notar, “[a]s letras e a tipografia nos dão informações quase
instantaneamente convertidas em linguagem e processadas de forma a produzir compreensão
e memória” (Unger, 2016, p.60) – e isso de alguma forma explica o porquê de ser tão
importante o respeito por algumas características que funcionam como uma espécie de guia
para a perceção das formas das letras.
2.3 Repertório tipográfico
Tomando-se como consideração toda a questão discutida na secção anterior, vê-se que o
cuidado com o desenvolvimento dos desenhos tipográficos extrapola a sua função
comunicativa, explicitando também uma função metalinguística, referindo-se ao seu próprio
universo, que deve ser levada em conta nas discussões que envolvem legibilidade.
A tipógrafa Zuzana Ličko afirma que os “[d]esenhos de tipos não são intrinsecamente
legíveis. Na verdade, é a familiaridade dos leitores com as formas que confere legibilidade a
elas. Estudos já mostraram que leitores leem melhor aquilo que leem sempre” (Ličko, 1990,
p.12 apud Unger, 2016, p.38). Com base nisso, pressupõe-se, então, que há formas basilares
que devem ser respeitadas nos desenhos, e que tais formas contemplam um conjunto de
atributos que evidenciam a familiaridade e permitem o reconhecimento imediato.
34
Quando Eric Gill expõe as suas considerações sobre os desenhos de tipos, ratifica
essa ideia ao afirmar categoricamente que “[l]etras são letras. A é A, e B é B. O criador das
letras do século XX não tem de ser um inventor de formas de letras mas, simplesmente, um
homem de inteligência e boa vontade” (Gill, 2003, p.67). Existe, portanto, algo em cada
caractere que não deve ser de modo algo reinventado, sob pena de prejudicar a função
metalinguística que foi referida e de tornar o caractere impossível de representar a própria
letra a que se propõe.
Houchuli faz observações muito pertinentes a esse respeito, quando diz que “os
olhos de quem lê não devem ficar ‘presos’ a uma forma inabitual. Além disso, os símbolos
de um alfabeto devem falar a língua formal comum a todos os símbolos; entretanto, por
outro lado, cada letra deve nitidamente se distinguir uma das outras” (Hochuli, 2013, p.13).
Nessa fala, Houchuli defende que para se alcançar formas de letra familiares é necessário
observar dois aspetos: deve existir familiaridade entre as formas universais do alfabeto e entre
os caracteres que constituem o mesmo alfabeto. É sobre essas bases que aqui se explicita
esse tema.
A familiaridade das letras no seu sentido mais lato, ou seja, em termos universais, é
uma preocupação anterior às imposições técnicas da tipografia, como foi explicitado no fim
do primeiro capítulo e no início do corrente. Qualquer desenho em que se apresente uma
determinada letra deve parecer-se com qualquer um dos desenhos existentes para essa mesma
letra, independente do atributo envolvido: condensado, negrito, inclinado, monoespaçado,
excêntrico etc. Qualquer A deve ser como um A qualquer, caso contrário, não será
reconhecido como tal. Esse esforço de padronização da escrita remonta a milénios atrás, ao
mesmo tempo que perpassa qualquer desenvolvimento da técnica para a sua realização – e
esse é um ponto muito destacado por Gill, que sugere a seguinte reflexão:
No tempo dos Romanos, digamos, no ano 100 d.C., quando um homem pronunciava a palavra ‘letras’, é provável que pensasse imediatamente no tipo de letra que estava habituado a ver nas inscrições públicas. Embora existisse toda a espécie de outros géneros de grafia (em tabuinhas enceradas, em papiro etc.) o género da grafia formal mais comum era a inscrição em pedra. A consequência era que, quando fazia letras ‘tão bem como podia’, eram as letras das inscrições em pedra que tomava por modelo. Não dizia: Esta & aquela ferramenta, ou material, servem ou prestam-se para fazer tais e tais formas. Pelo contrário, dizia: As letras têm tais e tais formas; logo, quaisquer que sejam as ferramentas e os materiais que tenhamos que usar, devemos executar essas formas tão bem quanto as ferramentas e os materiais o permitirem. Esta ordem de procedimentos sempre foi a seguida. A mente é o árbitro na questão das formas das letras, e não a ferramenta ou o material. (Gill, 2003, p.51)
35
Partindo de um ponto de vista pragmático, Hochuli sugere que existiriam proporções
corretas, tanto das versais como das minúsculas, historicamente fixadas. Para o autor, as
maiúsculas têm por protótipo a Capitalis monumentalis, uma forma de escrita desenvolvida no
império romano, enquanto as minúsculas devem manter-se próximas da Scriptura humanistica,
o estilo caligráfico corrente na Itália renascentista (Hochuli, 2013, p.14). A boa observação
desses critérios seria imprescindível num desenho tipográfico que se propõe familiar e legível.
Sophie Beier faz uma aproximação semelhante ao primeiro dos dois aspetos de
familiaridade que Hochuli refere, quando trata da teoria dos modelos coincidentes16, na qual o
cérebro tem guardado um formato predefinido para cada letra do alfabeto. Quando um
indivíduo é confrontado com uma forma não familiar, o cérebro procura a que melhor se
encaixa naquela nova forma e admite a que seja a mais adequada (Beier, 2009, p.35-36).
A autora também explana uma segunda teoria, a teoria da comparação das características17,
que mantém muitos pontos em comum com o segundo nível abordado por Hochuli. Nessa
teoria, ao invés de perceber o caracter por inteiro, o cérebro decodificaria somente a parte
responsável por manifestar a sua singularidade dentro do alfabeto (fig.15), aproximando-se
da ideia que Hochuli faz das “características distintivas típicas” (2013, p.20) inerentes a cada
letra.
Figura 15: Interrelações entre as letras sob a ótica da teoria da comparação das características.
Ilustração feita na tipografia Helvetica (Beier, 2009, p.35)
Assim, a familiaridade das letras dentro de um mesmo alfabeto não diz somente
respeito às semelhanças, mas também às diferenças, que determinam a identidade da letra
dentro de um conjunto de pares. Trata-se de um conceito que está bastante ligado à
16 TL de “template-matching theory” (Beier, 2009, p.34). 17 TL de “feature-comparison theory” (Beier, 2009, p.34).
SOFIE BEIER 2009, ROYAL COLLEGE OF ART [ 35 ]
The basic idea of the template-matching theory is that for each letter of the alphabet, the brain has stored a basic template of the letterforms. As we perceive a new shape, the brain goes through a series of templates to find the one that matches the best. This is a logical assumption when trying to understand the process of letter perception, and also the idea of the renowned ���3�������3 ����Ú�3 )�����G3 @2�3 Ù�?�Ú���3 2�3 Ø��Ù���3 �Ø3reading to a keyhole and its key, where the reader locates the basic skeleton form of the letter that then fits like a key into the ���2� �3��32�3�����ĝÙÚ���3M��������G3Yaa`NH3��@����32�3?Ú��3���� �?3@�232��32����3��32�@3�3��3Ú� �3
to explain the wide variations in typefaces and handwriting that we are capable of perceiving. Does it mean that the brain has a ���Ú�Ú�3�?� Ú�3Ø��3Ú3ĞÚ?���Ú�3f$ ’ and a simple Sans Serif fA’, or for all variations of handwriting? Even if the brain has some form of clean-up process of the shapes, it seems doubt-ful that a system like this can decide which part of a character �2Ú��3 ��3 ������Ú 3 Ú��3@2�Ù23 ��3 ��3 M,Ú��3C3 �2� ?Ú�G3 Ya_^c3%��@���3 Ya`Zc3�Ú����3C3#� Ú���G3 Ya`ac3!����@���3C3"ÚG3Yaa^c3�?�2G3ZXX\Nc32��3���� �?3 �Ú��3��3�32�3Ø�Ú���hÙ�?-parison theory.
����Ú�3�Ø3���Ù�����32�3@2� �3Ù2Ú�ÚÙ��G32�3�Ú��Ù3���Ú3��2���3the feature-comparison theory is that the brain decodes the dif-ferent features of the character individually. The analytic process is based on a perception of the characters as a range of small features where the elements are put together until a stage of identification occurs (fig.2).
Figure 2: The internal relation-ship of letters in the feature-comparison theory illustrated in Neue Helvetica
36
consistência das formas das letras, uma qualidade que ao mesmo tempo agrega formas
díspares numa unidade gráfica, bem como dispõe as bases sobre as quais as divergências
formais podem ser construídas.
Pode-se perceber melhor essa questão no contexto dos estudos relativos à
legibilidade das letras isoladas. Hochuli cita o trabalho de Tinker, o qual concluiu que, com
frequência, confundem-se as letras: B com R, G com C e O, Q com O, M com W, c com e, i
com j, n com a, e l com j (Hochuli, 2013, p.20). O que levaria à confusão seria, justamente, a
aproximação das características gerais e uma amplitude reduzida entre as disparidades que
garantem as dissemelhanças. Em alguns desses casos, é possível perceber que o que
assemelha um caracter do outro não é tanto os seus traços, mas sim as suas contraformas
(como é o caso do n e do a, por exemplo), reivindicando, mais uma vez, a importância dos
espaços internos na construção das letras e a sua influência na persistência da familiaridade.
Uma outra ferramenta que elucida esse aspeto das características distintivas das letras
é a régua Stencil RUHA (fig.16), uma ferramenta pedagógica para o desenho tipográfico,
concebida pelos designers portugueses Ricardo Santos, Rúben Dias e Aprígio Morgado. A
régua coleciona como que partes de letras comummente encontradas no alfabeto latino, pelo
que cabe ao utilizador explorar as formas e combiná-las, encontrando o aspeto desejado para
cada letra..
Figura 16: Régua stencil RUHA (Tipos das Letras, s.d.).
De modo semelhante funciona o Super-Tipo Veloz (fig.17), desenhado por Joan
Trochut Blanchart e fundido em 1942 pela Fundición Tipográfica Iranzo, que possibilitou as
tipografias na Espanha do pós-guerra diversificarem a aparência de suas impressões a um
baixo custo. Pelas palavras de Gamonal Arroyo, “[s]e trata de un tipo ‘integral’ basado en
módulos con los diferentes trazos fundamentales y juego de remates y florituras que permite
37
crear tipos de letras personalizados, ya sean con o sin serifas”18(2012, p.18). Dessa forma,
pela combinação versátil de diferentes “partes” das letras, formavam-se novos desenhos
tipográficos.
Figura 17: À esquerda, alguns dos módulos para a formação das letras no Super-tipo Veloz.
Ao centro, um material usado para promoção do tipo. Por fim, à direita, uma peça que usa
os módulos na construção de uma ilustração (Gamonal Arroyo, 2012, p.19-20.).
Através das formas de construção da letra que estão por trás da lógica modular desses
exemplos é possível experimentar as duas faces da familiaridade colocadas por Hochuli e
Beier: a força do modelo mental na forma inteira e as características diferenciadoras de cada
letra. As idiossincrasias formais que correspondem a cada letra levam a um questionamento
conveniente em tempos como os atuais, nos quais as ferramentas para o desenho de tipos
são progressivamente mais meticulosas: será que a qualidade tipográfica é uma questão de
precisão? A este propósito Hochuli refere o seguinte:
Como todas as outras figuras bidimensionais que são captadas por nossos olhos, as letras também estão sujeitas a leis ópticas. Por essa razão, determinantes para o julgamento de sua qualidade formal não são os instrumentos de medição, mas apenas os olhos saudáveis do ser humano (Hochuli, 2013, p.18).
É importante entender que, mesmo nos primórdios da tipografia, a consistência tem
mais afinidade com a organicidade das formas do que qualquer padronização rígida e
obstinada. Smeijers explica que os cortadores de punções evitavam “questões e situações
18 TL: “[s]e trata de um tipo ‘integral’ baseado em módulos com os diferentes traços fundamentais e um jogo de arremates e floreios que permite criar tipos de letras personalizados, seja com ou sem serifas”.
38
demasiadamente minuciosas construindo uma espécie de dúvida visual: nenhuma borda reta,
nenhum canto afiado. As formas se tornam fáceis de manusear, fáceis de misturar e equilibrar
umas com as outras” (Smeijers, 2015, p.147)
Isso leva à reflexão sobre o equilíbrio entre a fidelidade formal dos caracteres e o seu
potencial de legibilidade. Hochuli defende que as “[n]ossas letras se desenvolveram
lentamente (…), elas se adaptaram à respetiva técnica de escrita, a seu instrumento, sua base,
às técnicas de produção e até ao senso estilístico dominante – menos em sua estrutura básica
do que nos detalhes” (Hochuli, 2013, p.10), o que de alguma forma vai ao encontro do
pensamento de Smeijers que, por sua vez, defende que os limites tipográficos não são limites
de técnica, mas limites de perceção – limites do sistema nervoso humano (Smeijers, 2015,
p.71).
Unger, numa tentativa de justificar o porquê de algumas experiências tipográficas
fracassarem, refere que as formas familiares sobrevivem por estarem conformadas ao próprio
processo automatização de leitura (2016, p.34). Isso quer dizer que o cérebro perceciona de
modo mais rápido o que chega através da visão com mais frequência, corroborando a visão
de que a familiaridade de uma letra (ou até mesmo de uma palavra) é resultado do contacto
recorrente com as características análogas das diferentes interpretações da forma do traço de
uma determinada letra (e, por efeito, de uma determinada palavra).
É precisamente nesse ponto que se encontra a pertinência do desenvolvimento
individual de um repertório tipográfico diversificado: uma tipografia experimental, em última
instância, alcançaria o mesmo objetivo da tipografia dita convencional – reforçar os detalhes
estilísticos específicos que constituem como que o corpo “nu” de determinada letra.
2.4 A palavra decifrável
Pesquisar sobre a capacidade que os leitores têm de reconhecer as formas das letras parecer
ser muitas vezes um exercício feito entre contrassenso. A pergunta lançada por Unger
exemplifica bem esse paradoxo que permeia as especulações sobre o assunto: “Será que é
possível inventar tantos desenhos não convencionais justamente porque as convenções são
tão fortes?” (Unger, 2016, p.77)
Talvez seja proveitoso começar por refletir sobre as convenções macrotipográficas,
que também podem ser incluídas no paradigma da familiaridade. É corrente a comparação
de uma página de um códice do século XV com uma página do último romance best-seller da
livraria mais próxima. A colocação dessa paridade entre ambos geralmente é utilizada para
39
argumentar como a organização textual e a própria aparência da tipografia não sofreram
mutações expressivas ao longo de quase seis séculos.
Por outro lado, ao olhar para a página de um objeto editorial como o jornal (quer seja
impresso quer digital), por exemplo, hoje tão familiar, percebe-se que a tensão na leitura
dessa tipologia é maior se comparada ao livro na perspetiva anacrónica do parágrafo acima.
Atualmente a maioria das pessoas não deve apresentar problemas para selecionar e ler o que
lhe interessa nas páginas de um jornal impresso (talvez com um pouco mais de dificuldade
na versão digital), mas não seria exagero pensar que o jornal infundiu um padrão de leitura
que se distancia do livro em termos de decifração formal, pela complexidade da sua
organização hierárquica e fragmentada.
Nesse caso, embora o tipo de letra seja familiar, a disposição dos elementos não é. O
mesmo acontece com a forma poética de Mallarmé, ou ainda com outras experimentações
macrotipográficas que muitas vezes mantêm a convenção ao nível da palavra, mas não ao
nível da composição textual. A familiaridade da formalidade poética, então, dá lugar ao
estranhamento do posicionamento das palavras na página. O próprio percurso histórico das
diferentes tipologias sugere que a quebra de uma convenção pode ser o nascimento de uma
outra – não em substituição, mas em coexistência.
Esses exemplos podem ajudam a perceber, de maneira mais genérica, a força de uma
convenção gráfica e como ela é construída pela assiduidade no contacto. No meio dessa
perplexidade perante o que pode ser comparável ou incomparável, entre a novidade do atual
e a trivialidade do de sempre, está o que pode ser designado por repertório tipográfico em
seu sentido lato, porque “[t]odos os meios nos quais se apresenta um texto contribuem para
a construção dessa base de dados interna” (Unger, 2016, p.13). O repertório tipográfico
tratado aqui, no entanto, restringe-se ao nível da microtipografia.
Entre tantas variedades nos desenhos tipográficas, há sempre algo em comum, afinal
“[a] infinidade e a complexidade do público leitor de hoje (…) torna nosso alfabeto rígido e
irreformável” (Morison, 1962, p.78 apud Unger, 2016, p.24), fazendo com que a própria
tipografia, mesmo alimentada por diferenças estilísticas, seja a principal razão para a
permanência das letras como elas são. Como Unger especula na pergunta que abre este item,
é o seu uso diferenciado que possibilita algumas mudanças.
Ana Hatherly, na obra A reinvenção da leitura, publicada em 1975, trata sobre a questão
da legibilidade e da ilegibilidade num sentido mais amplo, mas com muita sensibilidade para
o assunto. A autora entende que “[p]ensar o problema da legibilidade/ilegibilidade do texto
(…) é próprio do escritor, que constantemente se defronta com o problema da escrita que
40
cifra e da leitura que decifra.” (Hatherly, 1975, p.23). Trazendo a reflexão de Hatherly para o
cariz tipográfico, tem-se mais uma variável na conta da legibilidade, que seria o peso que o
ato de decifrar tem na significação de qualquer leitura.
Unger explica que, quando um designer foge das convenções corre o risco de ter um
texto menos fácil de ler (2016, p.34). Isso implicaria, como já foi visto, a perda de energia
para o entendimento do conteúdo que aquele texto veicula, prejudicando a eficiência da
leitura. Há quem defenda que o cunho sistémico não deve ser de modo algum negligenciado,
sob pena de descumprir o objetivo para o qual foi pensado: comunicar através das palavras.
Emil Ruder é rigoroso ao defender tal ideia: “Typography has one plain duty before it and
that is to convey information in writing. No argument or consideration can absolve
typography from this duty”19 (2009, p.6).
Em contrapartida, o polémico David Carson, certa vez advertiu os seus leitores para
não confundirem legibilidade com comunicação, sendo esta muito mais abrangente que
aquela (Unger, 2016, p.34-5). É claro que a compreensão do que está composto por meio de
letras depende da estabilidade das formas dentro de um limite aceitável, mas é preciso que se
reflita sobre o anseio de sempre trazer eficiência à leitura. Existe alguma razão que justifique
um texto que não seja pleno de legibilidade?
Hochuli propõe um equilíbrio lúcido entre elogiar ou depreciar o êxito de uma
tipografia no seu aspeto comunicativo, uma vez que “as fontes impressas têm de satisfazer
diversas exigências e cumprir diversas funções, determinada fonte não pode ser taxada, de
modo geral, como boa ou ruim.” (Hochuli, 2016, p.10). A multiplicidade de contextos nos
quais a palavra é empregada tende a amplificar não só a pertinência de tipos não tão legíveis,
como também a própria capacidade de decifração – pela complexificação crescente dos
repertórios tipográficos do leitor atual.
O senso de conveniência seria então mais forte que o axioma da transparência de
Warde (1955), a impelir o fazer tipográfico não só ao nível macrotipográfico, mas também
ao nível microtipográfico. Como pondera Smeijers, “[t]odos podem fazer o que bem querem;
cada atitude ou estilo tem o seu lugar. Assim o julgamento é difícil, e nós somos jogados de
volta aos fundamentos do corpo humano: os limites do corpo humano, da percepção
humana, da usabilidade.” (2015, p.180).
Ao mesmo tempo que as fontes mais conservadoras podem facilitar a fluidez textual
e a concentração na significação das palavras, as “fontes de difícil leitura, empregadas com
19 TL: “Tipografia tem, antes, um dever simples, que é transmitir informações por escrito. Nenhum argumento ou consideração pode absolver a tipografia desse dever”.
41
economia e habilidade, podem atrair a atenção do leitor (do observador), chocá-lo, provocá-
lo, e assim induzi-lo a uma observação mais atenta e a registar o restante da informação
presente” (Hochuli, 2013, p.10). Como refere Unger:
Em cartazes, panfletos, camisetas, convites e folders (isto é, textos impressos somente para um público pequeno), as fontes mudam com frequência, o que permite identificar modismos e experiências recentes. Tão logo textos se tornam mais longos e se destinam a um público leitor mais amplo, no entanto, voltam os tipos tradicionais e a paz é restaurada. Essas modalidades contrastantes da tipografia andam de mãos dadas com as diferentes maneiras de se ler: pulando de um texto para o outro, ou do título para uma legenda por meio de uma ilustração – isto é, uma forma de leitura alternada com longos períodos de leitura concentrada. E no meio disso tudo, é claro, existem diversas maneiras de se ler, e incontáveis formas de tipografia. (Unger, 2016, p.36)
Questionar a familiaridade, mesmo que seja através da contração da legibilidade, é
trazer atenção. É, de certo modo, desafiar o leitor, sendo o ganho a própria expansão de suas
capacidades de reconhecimento na leitura, impondo ainda mais uma condição ao seu
reportório tipográfico. Muitas vezes a estranheza formal também é um argumento, um
argumento gráfico, porque tensiona a decifração e a compreensão das formas, bem como a
associação da parte decifrada ao significado explorado no texto.
Bringhust é sintomático no nome que dá ao primeiro ponto do primeiro capítulo do
seu best-seller Elementos do Estilo tipográfico, que introduz os primeiros princípios da tipografia:
“a tipografia existe para honrar seu conteúdo” (2005, p.23). Portanto, a tipografia não só tem
a função prática de permitir que o seu conteúdo seja compreendido, como também ambienta
graficamente esse conteúdo, numa espécie de coerência total: “É a maneira que lemos que
dá a medida para o design de livros, e não as tradições, ideologias ou opiniões de tipógrafos.”
(Willberg, Forssman, 1997 apud Unger, 2016, p.20)
A qualidade tipográfica, como se viu até aqui, não é um atributo conseguido de modo
arbitrário. No entanto, existem muitas variáveis que influenciam uma deliberação nesse
sentido, envolvendo não só o contexto e o tipo de leitura, como o tipo de leitor e as formas
tipográficas mais convenientes para cada finalidade. No meio deste panorama, o tipógrafo
tem “um papel, acima de tudo, pragmático, proveniente de sua familiaridade com os
desenhos de letras e os múltiplos fins para os quais são empregados” (Unger, 2016, p.15).
Em nenhuma das opções, entretanto, deve prejudicar-se a imagem da palavra ao
ponto de torná-la apenas uma figura, sob a pena de que a palavra deixe de ser uma palavra.
Existem desenhos de tipos que tendem a funcionar duplamente como comunicação verbal e
imagética, como Smeijers destaca, uma vez que as suas qualidades ilustrativas chamam a
42
atenção por si só, o que pode levantar problemas de compreensão ou incoerência quando
mal utilizados (2015, p.33).
Existe, portanto, algo ainda mais preponderante do que a legibilidade no campo da
tipografia, que é o próprio senso de interceção entre a estruturação da imagem da palavra e
o poder comunicativo que ela possui. Esse será o cerne da pesquisa e do desenvolvimento
da fonte Dentro, tratada no capítulo a seguir.
43
3. TIPOGRAFIA EXPERIMENTAL DENTRO
As discussões sobre contraforma e legibilidade que dominaram os capítulos anteriores
servem de referência à componente prática deste Trabalho de Projeto: a criação e
desenvolvimento da tipografia Dentro. Trata-se de uma tipografia de cariz experimental, na
qual o aspeto em interesse é a observação da relevância dos espaços internos das letras na
formação das palavras. As primeiras pesquisas20 e a elaboração de uma versão inicial da
tipografia Dentro antecedem o presente estudo.21
Na primeira versão, que se restringiu apenas às versais, não foi utilizado um programa
específico de design tipográfico, porque se tomou a opção de extrair as contraformas, através
do software Adobe Illustrator. As primeiras experiências foram levadas adiante como
Trabalho de Projeto, tendo-se decidido a confeção das letras de maneira a serem utilizáveis
enquanto tipografia digital. Como será possível ver através do desenvolvimento do capítulo,
o facto de editar a tipografia com uma ferramenta de edição mais maleável trouxe influências
sensíveis sobre os desenhos das letras. O software utilizado foi o Glyphs Mini, versão 2.0.1.
As razões que deram origem ao nome da tipografia Dentro são três: referência direta
aos espaços internos das letras; alusão aos espaços que constituem como que um campo de
forças no interior da palavra, entre as suas letras, tornando-a uma unidade orgânica; e a
insinuação da relação entre a memória visual e o processo de leitura, isto é, a natureza
contentora das letras nas palavras e, por sua vez, das palavras nos sentidos (corporais).
O que se seguirá neste capítulo diz respeito a todo o processo de aprimoramento da
primeira tipografia desenvolvida, à qual se acrescentou o incremento inédito do alfabeto em
minúsculas. A componente prática desta investigação é fruto da reflexão teórica efetuada nos
dois capítulos anteriores, embora apresente-se também como objeto crítico na avaliação da
aplicabilidade relativa de algumas das proposições sobre perceção visual ligadas às
contraformas.
20 As primeiras pesquisas deram origem ao artigo “Tipografia e Contraforma: a formação da imagem da palavra”, publicado pela Revista Educação Gráfica, em 2017, v.21, n.3. Pode-se obter acesso em: <http://www.educacaografica.inf.br/artigos/tipografia-e-contraforma-a-formacao-da-imagem-da-palavra-typography-and-counter-form-the-word-image-formation>. 21 A tipografia Dentro foi apresentada em comunicação, previamente, no 8.º Encontro de Tipografia, em novembro de 2017, ao qual também se submeteu um artigo – ainda não publicado pela Comissão Organizadora até o presente momento, mas que se encontra disposto neste trabalho como Anexo (p.68), para eventuais consultas de interesse.
44
3.1 Pressupostos teóricos
A tipografia Dentro tem como base um pressuposto unânime que perpassa todos os modelos
de reconhecimento, que seria a ideia de indício. Seja ela do ponto de vista da letra ou do
ponto de vista da palavra, seja por comparação ou por coincidência, o reconhecimento dos
caracteres na leitura é possível, mesmo quando a letra está “incompleta”, como foi
demonstrado no alfabeto de Brian Coe (fig.13).
A prevalência do indício está claramente colocada quando existe êxito na leitura de
palavras feitas a partir de caracteres experimentais que apresentam formas tipográficas muito
incomuns, porque quando a leitura consegue ser realizada através de seus automatismos em
letras convencionais, a tipografia não revela sua natureza de intermediação – e menos ainda
seu aspeto indicial. Se o indício falta em alguma parte da palavra, por exemplo, é compensado
primeiramente pelo contexto linguístico dado pelos caracteres vizinhos, e depois pelo contexto
linguístico dado pela palavras vizinhas.
Sofie Beier, na conferência internacional ATypI em 2017, mostra, na sua pesquisa
sobre a legibilidade dos numerais, que uma das maiores dificuldades na determinação da
legibilidade de um número, é o facto de este não formar palavras. Um número, inserido numa
série de números, não pode funcionar como uma letra que falta numa palavra (Beier, 2017).
É possível responder à pergunta de qual dígito falta em 891, por exemplo? Com isso, Beier
corrobora em atestar o facto de as letras precisarem ser analisadas em contexto de palavra,
porque sua decifração se dá em nesse contexto: seus indícios servem à formação da imagem
da palavra.
A imagem da palavra pode ter a sua importância potenciada quando a tipografia é,
em alguma parte, irreconhecível para o leitor, ou quando existe a intenção de trabalhar com
tipografias que põem à prova a perceção da forma das letras, como é o caso da tipografia
experimental aqui apresentada. É precisamente por essa razão que a Dentro é uma fonte
pensada pela lógica da formação da imagem das palavras – não há interesse no
desenvolvimento de numerais e outros caracteres que sustentem um perfil de uso mais
independente da palavra.
Tal como foi apresentado no primeiro capítulo, a administração dos espaços internos
e adjacentes às letras é o elo que as mantém juntas, bem como a barreira que as separa, sendo
também, possivelmente, a chave pela qual a forma das letras alcança descodificação aos olhos
do leitor. O espaço é tão importante quanto o que é espaçado por ele, sugerindo uma
equidade entre forma e contraforma. Noordzij propõe que a tipografia é um espaço profícuo
45
de experimentações percetivas, sobretudo pela observação de determinadas características
entre a forma e a contraforma. Como o autor refere:
[a] relação entre forma e contraforma (…) é o fundamento básico da percepção. (…) A escrita é um bom modelo para a percepção porque, com suas regras precisas, cria um ambiente de trabalho como um laboratório artificial que qualquer um de nós tem ao alcance. (Noordzij, 2013, p. 15)
Se essa relação entre forma e contraforma é recíproca e equivalente, as palavras
poderiam ser levadas à situação limite de serem representadas apenas pelas suas
contraformas. Se o visível é o que marca o invisível, tanto o traço marca o espaço, quanto,
numa lógica inversa, o espaço poderia marcar o traço. Essencialmente, como se verá mais
adiante, a Dentro seria uma fonte que tem por intenção convocar a presença da palavra,
mesmo na ausência da forma icónica das suas letras. Em teoria, a presença da palavra
composta na tipografia Dentro poderá ser absorvida da mesma maneira que se lê qualquer
palavra. Aqui, volta-se novamente à busca pelas possibilidades de indício.
Para trabalhar a inversão, explorou-se o conceito de luz na tipografia, em detrimento
do conceito de superfície. A substituição do segundo conceito pelo primeiro é uma sugestão
dada por Hochuli para compor equilibradamente os espaços entre as letras de uma palavra.
Para o autor, essa substituição é importante porque os espaços superiores não possuem o
mesmo valor de perceção que os espaços inferiores – estes têm um peso menor que aqueles:
A luz, ou seja, a claridade do fundo, flui de cima e de baixo nos espaços internos dos caracteres e nos espaços entre eles. A luz que vem de cima é mais eficaz do que a luz que flui de baixo. Por conseguinte, a letra n de uma fonte sem serifa tem de ser desenhada de maneira um pouco mais larga do que a letra u da mesma fonte para ter a mesma largura do ponto de vista óptico. Do mesmo modo, o espaço entre I e A tem de ser menor do que aquele entre I e V (pressupondo-se que os ângulos de A e V sejam iguais). Esse fenômeno não pode ser resolvido com a teoria da uniformidade das superfícies, e sim pela tentiva de conseguir uma luminosidade uniforme. (Hochuli, 2013, p.28)
Como Hochuli expõe, no caso de u e n, há uma questão ótica que se aplica no
caractere em si, para garantir uma conformidade interior à lógica do desenho de todo o
alfabeto; enquanto a gestão dos espaços entre I e A ou I e V, evidencia a questão da
compensação ótica como fator de união ou separação. Essa conceituação proposta por
Hochuli é fundamental para a consecução da fonte Dentro, porque, ao se trabalhar com
contraformas, cada caractere adquire uma massa densa que requer uma compensação ótica
diferenciada das letras em traço.
O grande desafio da tipografia Dentro está na obtenção desse equilíbrio. Para delimitar
a invisibilidade do traço, é preciso recorrer aos espaços de largura – o espaço no qual um
46
caractere se insere de modo que, na maioria das combinações, a letra não fique desequilibrada
em relação às que estão próximas, isto é, anteriores ou posteriores a ela (Hochuli, 2013, p.30).
Para obter um certo equilíbrio entre os caracteres na inversão, foi usada uma ideia que Emil
Ruder explana sobre a intensificação das partes internas da letra pela atenuação do espaço
entre os caracteres. De acordo com o autor:
[t]he various effects obtained by the combination of letters are determined by the interplay of the white of the counter and the white of the set width. Narrow set width results in a more intense white and at the same time enhances the effect of the white counters. The interspaces may be made so wide that there is a harmonious balance between the white of the counters and the white of the set width. Letterspacing provides the typographer with the means of reducing the effect of counters.22 (Ruder, 2009, p. 52)
Se a tipografia Dentro é feita a partir dos espaços internos das letras, o que Ruder
propõe como variável será aqui a constante. Numa lógica muito particular de inversão, o
espaço entre os caracteres deverá ser contra balanceado a se considerar o limite do
estreitamento do intervalo espacial entre os caracteres, porque a contraforma está em
destaque como premissa do experimento. Esse manejamento do espaço é essencial para que
o traço ausente se torne visível, ou apenas sugerido, através da interação entre os espaços
internos das letras compostas em palavra.
Isso levanta ainda uma última questão, que tem raiz no tipo de fonte que a Dentro é.
Apesar de constituir um contributo para as questões relacionadas com a legibilidade dos
tipos, a Dentro não pretende ser uma fonte de texto, menos ainda uma fonte mais legível,
tendendo assim para uma fonte do tipo display, que mantém a possibilidade de leitura ao
mesmo tempo que instruí e testa os conhecimentos sobre as formas convencionais das letras
acessíveis ao leitor.
Considera-se aqui a existência de certas tipografias que não só têm um caráter
ilustrativo como também pedagógico, que visam inquirir o leitor sobre como é feita a leitura,
muitas vezes levando-o a adquirir uma maior consciência das características das formas das
letras. São tipos específicos como os de Brian Coe (fig.13) e Phil Baines (fig.14), mostrados
no capítulo anterior. Também alguns tipos como o Yurnacular (fig.18), de David Berlow e o
Autossugestion (fig.19), de Neville Brody, publicados respetivamente nas Revistas FUSE 4
22 TL: “Os vários efeitos obtidos pela combinação das letras são determinados pela interação entre o branco do interior das letras e o branco entre as letras. Um espaço entre as letras mais estreito faz com que o branco fique mais intenso e, ao mesmo tempo, aumenta o efeito dos espaços internos brancos. Os espaços entre as letras devem ser amplos o bastante para que haja um equilíbrio harmonioso entre o branco dos espaços internos e o branco entre as letras. O espaçamento entre letras fornece ao tipógrafo os meios para reduzir o efeito dos espaços internos.”
47
(1992) e FUSE 9 (1994), são igualmente representativos quanto ao uso da contraforma na
construção de um caráter mais acentuado de estranhamento na forma das letras e
questionamentos dirigidos ao limiar da legibilidade.
Figura 18: Yurnacular, de David Berlow (Fonts.at, 2018).
Figura 19: Espécimen da tipografia de Neville Brody, Autossugestion, 1993 (Deer, 2015, p.285).
Há, ainda, outros exemplos de fontes que estão na fronteira da classificação entre
texto e display, como a tipografia de texto de Thomas Huot-Marchande, a Minuscule (fig.20),
inspirada nas pesquisas optométricas de Émile Javal a respeito do reconhecimento das letras
e das palavras; ou ainda a Roxane, de Stuart Gluth, já citada anteriormente, cuja aparência
final não transparece a quantidade de experiências de reprodutibilidade a que foi submetida
para a definição das suas formas. Os estudos preliminares sobre a relação figura-fundo da
Roxane influenciaram as soluções para a concretização do alfabeto minúsculo.
48
Figura 20: Pequena amostra da Minuscule Deux Regular do espécimen da fonte Minuscule,
de Thomas Hout-Marchande (256TM, 2018).
Apesar de extremamente chamativos, esses tipos acarretam, em termos de
descodificação formal, uma espécie de reflexão metalinguística sobre a tipografia enquanto
código, evidenciando as múltiplas camadas do que pode designar-se por decifração, um
processo assaz complexo, “já que todo nível de deciframento assentará sobre mais um a ser
decifrado.” (Flusser, p.23, 1985).
A discussão entre legibilidade e contraforma proposta pela fonte Dentro vai – à sua
maneira, focada na formação da imagem da palavra – ao encontro das propostas tipográficas
deste tipo limítrofe de tipografia. Todas os exemplos referidos, a Dentro inclusive, parecem
apostar em – ou até mesmo indagar – quais seriam os indícios tipográficos mais arraigados
na tarefa da leitura. São as fontes experimentais que na maioria das vezes revindicam um
valor empírico quando utlizadas, uma vez que ratificam, por meio das suas provocações,
muitas das questões envolvidas na legibilidade tipográfica.
Depois de se explicar os pressupostos teóricos envolvidos na preconceção da
tipografia Dentro, segue-se a exposição dos detalhes da otimização do primeiro alfabeto em
versal e do desenvolvimento do alfabeto em minúsculas, acompanhados da explicação de
alguns problemas que foram encontrados e das respetivas soluções. Achou-se por bem
subdividir esta secção em duas partes para uma melhor organização do seu conteúdo.
3.2 Metodologia e desenvolvimento
Os alfabetos, maiúsculo e minúsculo, tiveram como ponto de partida a fonte Quadraat, de
Fred Smeijers, por ser uma fonte que reflete os estudos sobre contraforma elaborados pelo
autor, sendo, portanto uma referência gráfica de destaque nesse quesito. Porém, não é do
interesse da constituição da Dentro manter uma fidelidade excessiva às contraformas extraídas
da Quadraat, dado que a sua maior contribuição existe em termos referenciais, e não
miméticos.
49
Em alguns casos, em que a solução exigiu mais reflexão formal, tomou-se como
referência as contraformas da Avenir, de Adrian Frutiger. A escolha do tipógrafo foi feita
com base num facto téorico compartilhado por Frutiger, que acreditava na existência de uma
qualidade comum a todos os desenhos de letra de uma mesma letra, o que designava por
“essência”, presente nos seus diferentes tipos e atestada pela incrível mancha comum que
resulta da sobreposição das suas criações (Unger, 2016, p.72). Julgou-se por esse facto que a
busca pelas formas invariantes23 das letras por parte de Frutiger contribuiria para a extração
de contraformas consistentes. A escolha específica da Avenir foi feita pela boa combinação
com a fonte de referência (Quadraat), em termos de proporção de largura e altura-x (com a
diferença de 1 pt a mais para a Avenir, na obtenção do equilíbrio).
3.2.1 Maiúsculas
O alfabeto maiúsculo foi aprimorado em continuidade ao que tinha sido desenvolvido
previamente (fig.21).
Figura 21: Primeira versão do alfabeto em versal Dentro, novembro de 2017.
No item relativo à discussão dos resultados (Anexo, p.82) na altura da versão preliminar
desse alfabeto, destacou-se a influência que as barras horizontais e diagonais que cortam grande
parte das contraformas das letras maiúsculas têm na determinação da largura de cada desenho
– é o caso dos carateres A, B, E, F, G, H, N, Q, R, S, T, X, Y e Z. Acontece que, no momento
em que se combinam as contraformas, essas barras em dissonância de espessura (compare-se,
por exemplo, o H e o N na fig.21) acabam por trazer ao alfabeto uma certa inconsistência na
sua aparência. Uma espécie de versão às avessas do desconforto que o desequilíbrio entre as
contraformas confere a uma tipografia convencional. A primeira alteração foi no sentido de
minimizar essa sensação, reduzindo os resquícios do contraste da Quadraat na Dentro.
23 Na tese de Aprígio Morgado (2015), “Legibilidade Tipográfica no Português Impresso: Um ensaio prático para a eficiência tipográfica na leitura da Língua Portuguesa”, o autor dedica uma secção (p.50-4) ao que é conhecido por “invariância percetual” na Psicologia, que designa um lapso de justificação do porquê de conseguirmos reconhecer milhares de formas diferentes de uma mesma letra. (Morgado, 2015)
50
A mudança, aparentemente simples, ao mesmo tempo que resolveu algumas questões
de proporção e altura da versal, como aconteceu no caso do A e do X, trouxe a necessidade
de efetuar outras manipulações, nomeadamente em letras como o E e o G, cujas serifas
apareciam dentro da contraforma da primeira versão da tipografia (ver fig.21). Alterar o E
implicava alterar o F, pois a única diferença entre estes dois carateres é a marcação da barra
inferior da primeira letra (e a ausência da mesma na segunda).
Optou-se por retirar a demarcação do fim do braço do E, mantendo o vínculo entre
a contraforma e as serifas, de maneira a tornar a letra mais facilmente distinguível da
contraforma do H e do B. A letra F foi alterada para poder perceber-se a relação de
diagonalidade que se mantém da sua base até ao seu braço. Essa principal diferença formal
entre o E e o F só ficou clara a partir dos estudos tipográficos de extração da contraforma
da Avenir, onde a ausência de serifas entre ambas as letras deixou flagrante a distinção
fundamental entre elas.
Figura 22: Diagonalidade intrínseca da forma do F na Quadraat, acima, e Avenir, abaixo.
Buscando-se, então, fazer sobressair essa diagonal na contraforma do F, decidiu-se
utilizar a borda da serifa inferior, tal como ela é utilizada na letra P. No entanto, a opção de
manter a ligação entre os vértices das serifas inferior e superior trouxe a possibilidade dessas
duas letras serem confundidas. Optou-se, então, por considerar as serifas do braço
intermédio, o que motivou um desequilíbrio da diagonalidade da parte superior com a parte
inferior, pois apresentavam ângulos de inclinação excessivamente diferentes. Para trazer
continuidade, a ligação entre os vértices da serifa superior com a do braço foi mantida,
enquanto a diagonalidade da parte inferior da contraforma foi simplesmente ajustada de
acordo com a parte de cima – um ponto arbitrário na parte inferior do braço intermédio até
à base da letra F (ver exemplo superior da fig.22).
A modificação da letra G também colheu influências dos estudos da tipografia Avenir.
Num primeiro momento, pensou-se em suprimir a serifa, mas isso tornaria a contraforma
do G excessivamente parecida com a contraforma do C. Ao observar a contraforma da letra
51
G em Avenir – que possui o mesmo tipo de desenho que o G da Quadraat, no qual a barra
horizontal atravessa a parte inferior do traço que sobe da curva inferior –, confirmou-se
imprescindível a sugestão desse traço no canto esquerdo da contraforma da letra para garantir
o seu reconhecimento e promover uma diferenciação mais clara com a letra C. A forma da
serifa foi alterada de maneira a aproximar-se do desenho de uma barra.
A letra T foi subtilmente modificada sob os mesmos parâmetros de P e F, isto é, ao
invés de serem considerados os vértices das serifas para a delimitação da contraforma, optou-
se pela escolha de um ponto arbitrário na curva da serifa inferior, respeitando-se um certo grau
de inclinação para preservar a expressão diagonal, tomando-se como referência a letra V.
No caso da letra Y, substituiu-se a demarcação inteira da lateral esquerda por um sinal
mais subtil, da altura do caracter, a fim de diferenciá-lo do V e de preservar a sua coerência
formal face ao T, ao P e ao F (ver fig.23). A mudança foi forçosa também pelo facto dessa
demarcação antiga ter um traço com uma espessura de menor contraste. A reposição da
uniformidade do traço trouxe mais equilíbrio à letra e ao alfabeto como um todo
Figura 23: A letra Y na versão anterior Dentro (acima) e na versão atual (abaixo).
A letra W tinha o mesmo problema de sugestão de largura do traço, mas com a
aparência inversa, isto é, demasiado espessa. Na Quadraat, o W apresenta-se como uma
junção equivalente entre duas formas de V, com um aspeto muito diferente, por exemplo,
da versão de Garamond, em que a forma esquerda sobrepõe-se à da direita (fig.24).
Figura 24: A letra W na Quadraat e a sua contraforma extraída e, ao seu lado direito, a Garamond, com a sua
respetiva contraforma. Note-se a diferença do espaço entre as contraformas em ambos os exemplos.
52
Essa junção, na Quadraat, faz com que a barra central pareça espessa e a sua
contraforma traduz esse detalhe com uma expressividade maior. Nesse sentido, procedeu-se
a uma alteração que seguiu essa lógica de planificação não estratificada, e que passou pela
sobreposição das duas contraformas de modo a obter apenas uma (acompanhar a diferença
na fig.25).
Em termos de ajustes mais finos, seguiu-se o conselho de Fred Smeijers de evitar
armadilhas óticas que possam suscitar dúvidas no leitor, como a tentação de cair numa certa
racionalidade exagerada, que os programas de edição de tipos atualmente oferecem: “linhas
retas duras nos levam a indagar se elas são realmente retas. Se elas de fato não forem retas,
isso parecerá estranho ao olhar.” (2015, p.147)
Se se acrescentar ao comentário de Smeijers a teoria da luminosidade tipográfica de
Hochuli, anteriormente referenciada, tem-se mais uma questão: ainda que de facto as retas
sejam retas, dada a relação com as outras formas e diferentes projeções luminosas que as
variadas combinações fazem, é possível que o observador não as entenda como linhas retas,
o que pode acarretar também a dúvida visual. A pensar nessa questão, promoveu-se um
arredondamento dos cantos mais afiados, tendo em conta que as retas na fonte Quadraat não
são exatamente retas e que essa característica ficou preservada nas contraformas que dela se
extraíram.
Também, através de composições de diversas palavras em Língua Portuguesa, fez-se
um ajuste de equilíbrio das formas sólidas, alterando-se subtilmente a altura e a largura dos
carateres C, D, O, Q e U. A letra C, em especial, foi alterada no sentido de diferenciá-la ainda
mais da letra O, através da intensificação do corte que caracteriza a abertura da contraforma
de C. As formas do V e do W foram aumentadas em altura para dar mais equilíbrio às
composições. As alturas do I e do J foram diminuídas, pelo mesmo motivo.
Figura 25: Nova versão do alfabeto em versal Dentro, outubro de 2018.
53
Figura 26: Comparação entre a versão anterior (cinzento) e nova (preto) do alfabeto em versal Dentro.
Tirando o caso do Y, as variações não foram muito explícitas, embora tenham tido
um impacto substancial na melhoria da qualidade das palavras formadas. Para se ter um
exemplo, pode observar-se a palavra “DENTRO”, que dá nome à fonte, na versão anterior
do alfabeto, ao lado da mesma palavra escrita com o novo alfabeto, como mostra a Figura
27.
Figura 27: Comparação entre a mesma palavra utilizando-se a versão anterior (esquerda)
e versão nova (direita) do alfabeto em versal Dentro.
3.2.2 Minúsculas
A opção de iniciar a realização do alfabeto Dentro pelas maiúsculas foi impulsionada pela
questão da ausência virtual de variação entre a base e a altura de versal das letras, o que
hipoteticamente facilitaria a extração das contraformas e a compensação dos espaços entre
as letras na formação das palavras. No entanto, há uma questão muito delicada envolvida
aqui: a maioria das teorias relativas ao processo de leitura não consideram as palavras inteiras
em maiúsculas, mas apenas em minúsculas – simplesmente pelo facto dos textos não se
apresentarem em caixa alta, como os títulos e outros extratos mais curtos e menos frequentes.
Noordzij explica que não é proveitoso o uso de maiúsculas na composição de textos
extensos, justamente porque tendem a ser lidos letra a letra, e não pela imagem da palavra:
“Um texto composto em maiúsculas não é constituído apenas por linhas e palavras, mas de
letras” (2013, p.47). O autor argumenta que a natureza da organização dos espaços entre
letras maiúsculas e letras minúsculas numa mesma palavra é absolutamente diferente – as
primeiras não obedecem a um ritmo gráfico entre espaços e traços, pois não possuem a
cadência linear das letras minúsculas, e dá o exemplo do D e do B, cujas contraformas são
essencialmente as mesmas, variando em tamanho, número e organização. Já entre o m e o h,
54
só existe linearidade – uma forma após a outra –, o que o leva a argumentar que, neste caso,
sim, seria proveitoso o arranjo e o cuidado com base na organização da imagem da palavra.
Através de um paralelismo associativo entre as ideias de Noordzij e a teoria da escrita
de Vilém Flusser, exposta no capítulo 1, aborda-se aqui a questão da formação da imagem
da palavra, não com a rigidez de Noordzij, mas como se houvesse uma diferença na
intensidade da ideia de imagem da palavra entre o alfabeto maiúsculo e o minúsculo. O facto
de as letras maiúsculas possuirem subdivisões latitudinais, associadas a uma estrutura mais
homogénea de altura entre as letras de uma mesma palavra, faria com que ela tivesse uma
leitura menos linear (e talvez mais figurativa), quando comparada ao alfabeto minúsculo, em
que a dinâmica entre ascendentes, altura-x e descendentes traria menos movimentos
verticalizados no processo de leitura, do que as versais.
Para experimentar esse tipo de comparação tornou-se imprescindível a criação do
alfabeto minúsculo da tipografia Dentro. A intenção é testar e investigar as potencialidades da
contraforma das letras como diretrizes do processo de leitura. Simultaneamente, pretende-se
analisar se o uso da contraforma é essencial para se compreender melhor a dinâmica
diferenciada entre alfabetos minúsculos e maiúsculos.
Na projeção dos tipos de desafios que poderiam ser encontrados na realização de um
alfabeto minúsculo através do uso de contraformas, previu-se que a padronização dos
espaços seria problemático em contraformas ausentes e em letras com ascendentes ou
descendentes. De certa maneira, as partes ascendentes ou descendentes das letras não deixam
de ser tratadas como traços sem contraforma. Essas partes também inauguram o desafio de
se pensar na forma de equilibrar a altura entre os caracteres, de modo a que fique oticamente
viável uma composição apenas em contraformas.
Aqui já se pode dizer que a minúscula da tipografia Dentro não poderia ter sido
desenvolvida (pelo menos nessas circunstâncias) sem o trabalho de pesquisa e de referência
que o presente estudo suscitou. O primeiro movimento foi retomar alguns dos exemplos de
fontes já mostrados para se perceber melhor quais foram as soluções pensadas e até que
ponto estas seriam viáveis para esse propósito. Nesse ponto, notou-se que apenas dois dos
exemplos em contraforma (os do Anexo inclusive) trabalham minúsculas: a Autosuggestion, de
Neville Brody (fig.19), e a Lint Light, de Kate Francis (Anexo, fig.2, p.76).
Analisaram-se as letras b, d, p e q, por possuírem, historicamente, a mesma
contrapunção para designar a contraforma interna fechada em cada uma delas. Isso quer
dizer que, se fosse desprezada a relação da ascendente ou da descendente em relação à
55
contraforma, teríamos quatro contraformas idênticas para representar quatro letras
diferentes, o que seria totalmente inviável.
Figura 28: Soluções para o tratamento das ascendentes e descendentes em b, d, p e q.
Autossugestion, de Neville Brody, à esquerda, e Lint Light, de Kate Francis, à direita.
Como está claro, é preciso de algum modo, marcar a existência de algo para além da
contraforma e, mais ainda, dentro dos pares b-d e p-q, o lado em que essas barras se
encontram, se à direita ou à esquerda da contraforma. A decisão em relação ao que se faria
no caso da tipografia Dentro, estava não só ligada à questão do reconhecimento dos caracteres
em si, mas também à necessidade de prever uma certa correlação estética com a tipografia
em maiúsculas já desenvolvida. Deste modo, voltou-se novamente aos estudos da forma e
do contraste feitos por Stuart Gluth para o desenvolvimento do alfabeto minúsculo Roxane.
Figura 29: A primeira linha mostra a tipografia Roxane na sua versão final; a segunda linha,
o equilíbrio entre os seus espaços internos e relacionais; e a terceira linha a consistência das
suas contraformas internas. (Gluth, 1999, p.246)
Nos estudos de Gluth a altura-x é considerada o intervalo no qual há de facto uma
relação letra a letra e onde há, claro, uma perceção da contraforma. Essa visão, de certa
forma, vai ao encontro do pensamento sobre a cadência linear sugerido por Noordzij e
Flusser, exposto anteriormente. Essa foi uma lógica que se encaixou bem, tanto teoricamente
quando esteticamente, no desenvolvimento do alfabeto minúsculo da tipografia Dentro.
Extrair as contraformas das letras minúsculas no intervalo da altura-x torna a
possibilidade de evocar a presença do traço ausente pela interação lateral com outras letras,
56
um facto alcançado no alfabeto maiúsculo Dentro, por conta da altura da versal. Essa foi,
portanto, a base metodológica escolhida para a extração dos caracteres.
Essa escolha foi importante não só para as letras b, d, p e q, mas também – e de modo
ainda mais sensível – para f, i, j, l e t, que não possuem contraforma alguma. As letras i, j, e l
são compostas por um traço único vertical. Já o t e o f possuem uma breve barra horizontal
que corta a linha vertical dentro dos limites da altura-x, de maneira que em ambos os casos
a barra desapareceu na subtração do intervalo mencionado. Sem força específica na barra, a
letra f basta-se pela existência do ombro que funciona como a sua haste ascendente, ao
contrário do t, que se diferencia do l pela existência da barra. Por esta razão, a barra foi
mantida no t e trazida logo para acima dos limites superiores da altura-x (ver fig.30).
Figura 30: Comparação entre as formas das letras t, f e l.
Conforme pode ser visto na Figura 31, as letras h e y também foram influenciadas
pela metodologia de extração das contraformas nos limites altura-x, beneficiando-se dela por
diferenciar-se de, respetivamente, n e v. Já a letra k e a letra g fugiram a tal regra. A primeira,
porque não tirava nenhum benefício da barra superior: a sua contraforma é suficientemente
única. Já a segunda acarretou uma decisão mais radical.
Figura 31: Comparação entre as formas das letras l e t, h e n, e y e v.
A Figura 32, a seguir, mostra como seria a extração da contraforma do g tendo em
conta, de modo rigoroso, a altura-x como local de existência da contraforma. Nesse caso, em
específico, por ser a única letra com uma contraforma abaixo da linha base da altura-x, optou-
se por fazer uma exceção.
57
Figura 32: À esquerda, a letra g, considerando-se apenas a altura-x em contraforma e, à direita, considerando-
se que o desenho dessa letra em double-story, em específico, pede uma solução flexível.
Essa exceção foi pensada também pela natureza de contorno que a calda de g trouxe
à face do tipo quando cortada de acordo com a regra preestabelecida. Smeijers é bastante
categórico a esse respeito: “[u]m contorno não apresenta uma forma. Um contorno apenas
descreve uma borda ou limite de uma certa forma” (2015, p. 130). O rigor desse pensamento
ajuda a entender que, numa tipografia onde se quer destacar justamente as formas delimitadas
pelo contorno dos traços, não faria sentido manter uma forma com um contorno quase
fechado. Por isso, a exceção foi mantida como escolha final.
Nas letras a e e foram consideradas as contraformas quase fechadas juntamente com
as fechadas, por conferirem mais homogeneidade à estrutura das palavras compostas (fig.33).
Como no caso das maiúsculas, estas letras precisaram de um ajuste na marcação do contraste
dos traços entre as contraformas, assim como o m, o x e o z. As letras v e w foram também
ajustadas em altura segundo os critérios das maiúsculas.
Figura 33: Acima, as letras a e e sem as contraformas quase fechadas. Nota-se como a palavra parece
descompensada. Abaixo, o poder de equilíbrio das contraformas quase fechadas na vesão final.
As letras n e u tiveram que passar por pequenos ajustes para que se pudesse diferenciá-
las melhor. Os lados da abertura, respetivamente, inferior e superior, tornaram-se mais duros,
assinalando um fecho “forçado” – tal como acontece na lateral direita da letra c (ver fig.34).
Isso refletiu-se também nas letras m e h, que mantém contraformas equivalentes (tal como o
caso de b, d, p e q).
A letra r foi interpretada como uma letra de contaforma quase fechada, porque não
há nada fora da altura-x que a diferencie enquanto letra, como acontece, por exemplo, com
58
o pingo do i. Para que não houvesse aproximação com as letras c, n ou u, optou-se por trazer
a diagonal, que fecha a forma do vértice superior interno, até ao meio da base do enlace no
pé da letra.
Figura 34: Diferença entre as formas das letras r, c, n e u.
Os limites da contraforma quase fechada da letra s foram delimitados pela curva nos
extremos da espinha, como sucede no alfabeto maiúsculo. Por fim, a letra o não requereu
qualquer tipo de intervenção, além do equilíbrio com outras formas sólidas. Na Figura 35, a
seguir, pode analisar-se a aparência final do alfabeto inteiro em minúsculas da tipografia
Dentro.
Figura 35: Alfabeto minúsculo da tipografia Dentro, outubro de 2018.
3.3 Discussão dos resultados
Antes de qualquer comentário a respeito da formas das letras e do seu funcionamento na
formação das imagens das palavras, é preciso destacar como a ferramenta de design
tipográfico, que foi utilizada nessa fase do desenvolvimento da fonte, teve uma enorme
influência sobre os resultados obtidos. A extração, quase mecânica das contraformas feitas
no princípio por um processo simples de subtração por meio digital, resultou em formas
muito mais “duras” do que as que foram posteriormente manipuladas no programa
apropriado de edição tipográfica.
A maleabilidade na construção foi propícia, dado que, antes mesmo da escolha da
Quadraat, já se tinha o objetivo de tornar a fonte Dentro consistentemente mais orgânica do
que as fontes de referência, de modo a evitar ao máximo as pontas e os cantos rijos.
Pretendia-se com isso que as formas se tornassem fáceis de equilibrar, sem criar mais dúvidas
59
visuais, para além daquelas que as próprias contraformas fazem emergir. A natureza flexível
da ferramenta utilizada para o ajuste das formas teve aqui um papel de destaque, permitindo
alcançar um resultado muito próximo do esperado.
Outra ideia que permeou o desenho das letras no geral e que trouxe benefícios diretos
foi o foco na construção da imagem da palavra. Quando se desenha um alfabeto letra após
letra, a tendência é priorizar a consistência entre os traços e perseguir as lógicas propostas
pela tipografia que se está a desenvolver. Isso também aconteceu com a Dentro. No entanto,
como o objetivo final era alcançar qualidade na imagem da palavra e não na letra isolada,
houve mais liberdade e transigência em optar por exceções que melhorassem o aspeto da
letra nas suas combinações, e não como unidade em si. De alguma forma, isso ratifica a
importância de se pensar a tipografia na ordem da formação das palavras, tal como
insistentemente pontuam os autores que compõem a espinha dorsal do presente trabalho,
Noordzij e Smeijers.24
Um dos objetivos mais audaciosos da construção da tipografia Dentro é dar um
contributo real para a compreensão das características de cada letra que de facto promovem
a qualidade na imagem das palavras. É claro que essa contribuição só pode ser vista como
parcial, mas presume-se que em parte foi conseguida.
Na letras C e c, por exemplo, quanto maior a abertura, mais as suas contraformas se
diferenciam, respetivamente, do O e do o. Pode ainda referir-se a inusitada semelhança das
contraformas de K e R com B e E, ou a importância da diagonalidade acentuada do F, como
forma de diferenciação do B, do E e do R. Nas maiúsculas, em específico, as diferenças entre
as contraformas de C, D, G, O, Q e U são de facto bem subtis, consistindo basicamente na
boa coordenação entre retas e curvas.
Figura 36: Comparação entre as formas de B, E, F, K e R e, em baixo, C, D, G, O, Q e U.
24 O foco no resultado, de maneira geral, parece ser extremamente benéfico. Embora não tenha sido o caso de Dentro, e pode ser que possa ser futuramente, os tipógrafos mais guerridos, desde o início da impressão com tipos móveis, traziam o desenho subjulgado ao resultado final que esperavam na impressão. As chamadas Ink traps são um bom exemplo disso.
60
No alfabeto minúsculo, observou-se que a influência das contraformas é minimizada
pela essencialidade da marcação de ascendentes e descendentes. Apesar das contraformas
continuarem a favorecer a perceção das letras, elas estão mais na posição de cúmplices do
que de protagonistas nesse processo.
Essa influência poderia ser a base da discussão sobre a cadência linear mais expressiva
nas minúsculas, juntando-se às suposições de que se lê melhor a metade superior das palavras
e de que a visão parafoveal também recolhe informações importantes no ato da leitura,
expostas no Capítulo 2.
Nesse sentido, a exposição que Spencer faz, em The Visible Word (1969, p.14), sobre
a teoria de Messier de que as letras “dominantes” dentre as minúsculas seriam, em primeiro
lugar, as que se projetam para a fora da linha da altura-x (b, d, f, h, i, j, l, p, q e t), e em segundo
lugar, as que possuem curvas acentuadas (a, c, e, g, o e s ), contribui para a reflexão sobre essa
influência entre contraformas, ascendentes e descentes.
Mais ainda, quando a contraforma é ausente, como no caso das letras f, i, j, l e t, a
marcação na área das ascendentes e descendentes parece tornar-se imprescindível. Se em
rigor, o que diferencia as letras b, d, p e q são as ascendentes e as descendentes, somadas ao
lado em que se posicionam caracteristicamente em relação à contraforma, o que diferencia o
f, o i, o j, o l e o t, entre si, são as marcas de finalização superiores e inferiores à altura-x –
com exceção do t, que tende a manter a barra dentro do limite da altura-x25.
Figura 37: Comparação entre as formas de f, i, j, l e t.
Deste modo, confirmou-se a seguinte afirmação de Hochuli:
(…) as hastes ascendentes e descendentes das letras minúsculas, produzem contornos característicos, que são diferenciados por acentos, pelo pingo no i, pela altura específica do t e, naturalmente, pelo contorno próprio de cada letra. (…) por isso a formação clara das hastes ascendentes e descendentes é importante. (Hochuli, 2013, p. 24)
25 A altura da barra de t no limite superior da altura-x parece ser proveitosa para harmonizar seu traço horizontal com os espaços entre as letras na combinação com outros elementos do alfabeto na construção de palavras.
61
Embora Hochuli tenha referido que uma das características importantes para a
diferenciação da letra t é o facto de esta apresentar uma altura específica subtilmente inferior
à altura das ascendentes, os estudos efetuados durante a realização da Dentro minúscula não
corroboraram esse dado, ao concluir-se que sem a barra, o t pode ser facilmente confundido
com um l.
Finalmente, importa tecer algumas considerações a respeito do espaçamento entre as
letras na lógica da tipografia Dentro. Determinar os espaçamentos adjacentes às letras no
alfabeto minúsculo foi uma tarefa menos árdua do que determiná-los entre as letras
maiúsculas. Quando se observa os alfabetos maiúsculo e minúsculo em proximidade (fig.38),
percebe-se como as versais possuem formas laterais mais demarcadas – barrigas, diagonais e
entradas – que levantam um desafio quando colocadas lado a lado, em equilíbrio, com uma
largura padrão de kerning. Em ambos os casos, procurou-se definir espaçamentos que
valorizassem a impressão das barras laterais das letras, em equilíbrio com a(s) parte(s)
internas(s) em contraforma.
Figura 38: Alfabetos maiúsculo e minúsculo da tipografia Dentro, outubro de 2018.
O resultado final da tipografia Dentro, tanto em minúsculas quanto em versais, poderá
ser melhor apreciado no espécimen pensado para sua divulgação. Os detalhes da sua
conceção e da sua aparência final podem ser vistos no documento Anexo, à parte do presente
trabalho.
62
CONCLUSÃO
Este trabalho de projeto teve como objeto de investigação a influência das contraformas na
formação e no reconhecimento da palavra tipográfica. A principal motivação da pesquisa foi
concretizada sob a produção de uma tipografia experimental, Dentro, que evidencia a forma
das letras apenas pelas suas contraformas. A partir do desenvolvimento dessa fonte tornou-
se possível averiguar a real pertinência de um estudo com ênfase na contraforma e na sua
relação com o reconhecimento das letras no contexto da palavra. O resultado estético da
fonte é distante do alfabeto habitual sem, contudo, perder a sua possibilidade de decifração.
Atinge, portanto, a meta de constituir-se como um instrumento utilizável para futuras
análises no campo da relação entre a contraforma e a legibilidade.
Considera-se, desse modo, que o objetivo geral do estudo – a compreensão de como
a contraforma tem protagonismo no processo de formação e de reconhecimento da imagem
da palavra tipográfica – foi parcialmente conseguido. As letras versais do alfabeto latino
comportam-se de um modo diferente das suas respetivas minúsculas. O resultado das
composições tipográficas com a tipografia Dentro no espécimen, por exemplo, mostra que as
maiúsculas, por possuírem contraformas mais diferenciadas entre as letras, apresentam
contraformas com mais expressividade na formação da imagem da palavra.
No caso das minúsculas, o facto de existirem muitas letras com contraformas internas
semelhantes e caracteres sem contraformas internas, coloca-se em questão a possibilidade
real do reconhecimento das letras apenas se efetuar pela visualização indicial dos seus espaços
internos. De modo particular, há um vislumbre de que a altura-x tenha preponderância na
manutenção da cadência rítmica na formação da palavra, enquanto o espaço relativo à altura
das ascendentes e das descendentes concentra a maior parte dos elementos que promove a
semelhança com as formas universais dos caracteres e a diferença entre as formas internas
das letras que compõem o alfabeto. Esse processo de hibridização entre contraformas e
traços traz, especificamente para as palavras constituidas por essas letras, um registo visual
de planos visuais díspares. Ao mesmo tempo que esse facto gera dúvidas sobre a hipótese
primária de protagonismo, como comentado acima, ele confirma — no mínimo — o papel
coadjuvante das contraformas na leitura, a levar em consideração uma outra hipótese
construída ao longo do Capítulo 2: a de que, embora o olho seja seletivo na construção do
campo visual, a visão da palavra leva em consideração os espaços entre as letras na sua leitura.
Em termos empíricos, o cruzamento entre figura e fundo na caixa-baixa da Dentro
pode ser um campo de experimentações quantitativas comparativas profícuas para uma
63
melhor compreensão do movimento dos olhos no contacto com a palavra, por encerrar em
sua própria plasticidade a dinâmica constante de construção do campo visual que passa
incauta pela perceção final do que o olho “mostra” ver.
Quanto aos dois objetivos específicos para o trabalho, a saber, aprofundar o
conhecimento sobre a natureza estética da tipografia e as suas extrapolações no ato de leitura
pela relação entre contraforma e legibilidade; e desenvolver o conceito de contraforma como
elemento fundamental na busca da consistência tipográfica de uma fonte; presume-se que
tenham sido alcançados através da pesquisa dissertativa explicitada principalmente nos dois
primeiros capítulos.
Algumas das contribuições teóricas mais expressivas deste trabalho estão ligadas à
reflexão sobre o tratamento do conceito de legibilidade, não como uma qualidade tipográfica
que diz respeito ao reconhecimento da forma das letras, mas principalmente como um
atributo que tipifica o nível de “transparência” do traço no processo de leitura. São aspetos
que levantam questões oportunas sobre a função metalinguística da tipografia enquanto
código, quer no que diz respeito aos diferentes níveis de decifração desse código e dos seus
papéis na interpretação de uma mensagem, quer no âmbito de uma pretensa imposição da
eficiência, às vezes, em detrimento do compromisso de harmonização estética da tipografia,
com consequências ao nível da leitura.
Foi especialmente interessante notar como uma tipografia como a Dentro, que
aparentemente busca a compreensão dos mecanismos de universalidade nas formas das
letras, acaba por destacar a pertinência da diversidade de desenhos e o aproveitamento real
dessas variedades para o repertório tipográfico de cada leitor. Nesse sentido, as tipografias
assumem, de maneira inusitada, um ofício didático de expansão da memória visual, não só
de cada letra, como de cada imagem da palavra, reiterando a máxima popular “quem lê mais,
lê melhor”.
Viu-se, no entanto, que esta parcela do reconhecimento ligada ao leitor não diminui
as responsabilidades com a consistência na construção das letras. Ficou claro que a
consistência difere substancialmente da precisão em tipografia: esta não garante em nada a
consecução daquela. A consistência é conseguida através do entendimento do
funcionamento da perceção visual, reforçando a natureza interdisciplinar do campo da
tipografia, que não depende só das particularidades técnicas do design gráfico, mas também
das ciências biológicas envolvidas na fisiologia da leitura.
Em suma, este estudo propôs, longe de uma resposta definitiva às discussões
acaloradas sobre como se dá o reconhecimento das letras na leitura, um caminho para se
64
pensar as influências particulares do universo tipográfico que poderiam alterar as condições
de interação palavra-leitor, utilizando-se, para tal, do estudo da contarforma. Acredita-se,
assim, ter cooperado subtilmente no movimento de reabertura teórica das práticas artísticas
para as ciências empíricas, bem como para o incremento de perspetivas específicas do design
gráfico para as experimentações psicocognitivas sobre a leitura.
65
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68
ANEXO
69
DENTRO: TIPOGRAFIA DA CONTRAFORMA26
Resumo
Dentro é uma tipografia que explora a relação entre a forma, a contraforma e o espaço entre
as letras do alfabeto latino e o seu reconhecimento dentro do contexto da palavra. Trata-se
de um projeto tipográfico de fundo académico, de natureza particularmente experimental e
ainda em processo de desenvolvimento.
Foi iniciado como meio de estudo pessoal das partes internas das letras a partir da
leitura atenta de Contrapunção, de Fred Smeijers – uma referência chave para a compreensão
da importância dessa relação espacial. De igual importância para este projeto foi O traço: teoria
da escrita de Gerrit Noordzij, especialmente no que diz respeito à construção da imagem da
palavra.
A ideia de fazer um alfabeto a partir das contraformas das letras provém da afirmação
recorrente de que os espaços internos são grandes aliados da perceção das formas
tipográficas e influenciam o reconhecimento de um conjunto de letras específico – ou da
imagem da palavra – e, consequentemente, da sua leitura. O objetivo é refletir sobre uma
espécie de situação limite de construção de palavras, no sentido de testar se as suas imagens
podem ser ainda identificadas a partir, e somente a partir, das formas e dos espaços negativos
sobre os quais as letras assentam.
As formas que constituem os caracteres da tipografia Dentro são releituras dos espaços
internos da fonte FF Quadraat, de Smeijers. A fonte foi escolhida não só como forma de
homenagem, mas por ter sido possivelmente influenciada pelos estudos do autor no que diz
respeito à construção da forma da letra utilizando contrapunção. Também foi intencional a
escolha de um tipo serifado, potencialmente por sua capacidade de auxiliar na identificação
da letra pelo “fechamento” da forma e, portanto, em toda a varredura da palavra.
As contraformas foram extraídas de forma simples, por manipulação digital. Nas
contraformas fechadas, fundo e figura estão bem delimitados, de maneira que o processo de
subtração das formas é extremamente facilitado. Nas quase fechadas, usou-se como
parâmetro de limite o vértice da serifa. Nas abertas, o processo de delimitação tem sido
desenvolvido de forma menos fixa, devido à questão da fronteira de função dupla que esses
26 Artigo relativo à apresentação no 8º Encontro de Tipografia, 3-4 de novembro de 2017, ainda não publicado pela Comissão Organizadora e sem previsão de publicação da Ata do Encontro até o presente momento.
70
espaços assumem: fazem, ao mesmo tempo, parte do espaço interno a letra e do espaço entre
as letras.
O presente artigo expõe algumas das reflexões e soluções pensadas para a construção
apenas do alfabeto em maiúsculas. Deu-se assim a preferência pelo facto da pouca variação
entre a linha de base e a linha que marca a altura de versal, o que facilita a compensação ótica
dos espaços entre as letras nesta fase inicial. Dentre as questões que têm suscitado mais
dificuldade neste projeto estão as letras sem nenhum espaço interno, como no caso do T, do
I e do J, por exemplo. Também, as letras em que historicamente se usavam contrapunções
muito similares, tais como E, F e B, por exemplo.
Abstract
Dentro [inside] is a typography which explores the relation between the form, the counter-
form and the space between the letters of the latin alphabet set, and its recognition within
the context of the word. It is an academic typography project, of particulary experimental
nature and, still at the developing stage.
It has started as a personal study about the inner parts of the letters, after the careful
reading of Counterpunch, by Fred Smeijers, – a benchmark on comprehending the importance
of this spatial relation. Equally important to the project was The Stroke: Theory of Writing, by
Gerrit Noordzij, specially in regard to the word-image construction.
The ideia of making an alphabeth out of the letters counterforms comes from the
frequent statement that intern spaces are great allies on the perception of the typography
shape and they also influence the recognition of specific letters set – or a word-image – and
thus, the reading. The goal is to reflect about a threshold situation in the construction of
words, in order to test if its images are still recognizable from, and only from, the shapes and
the negative spaces in which the letters settle down.
The shapes which compose the typography Dentro are reinterpretations of the intern
spaces of the font FF Quadraat, designed by Smeijers. The font was chosen not only as
tribute, but also because it was probably influenced by the author studies regarding to the
typedesign making use of the counterpunch technique. It was also intentional the choice of
a serif type, potentially for its capacity of helping the reader concerning the recognition of
the letter inner space by their apperture and, therefore, the word scanning.
Counter-forms were extracted in a simple way, by digital manipulation. In the close-
shaped counter-forms, figure and background are well defined, in order to facilitate the
71
subtraction process of the shapes. In the almost close-shaped ones, the limiting parameter
used was the vertex of the serif. In open counter-forms, the delimitation process has been
developed in a more flexible way, for the matter of the double-functional role that those
spaces assume: they are both part of the inner space and the space between the letters at the
same time.
This paper exposes some of the reflections and solutions which have been thought
precisely for an uppercase alphabeth. It gives preference to the fact that there is little variation
between the baseline and the cap height line, which facilitates the optical compensation of
the spaces between the letters in this initial phase. Among the issues which have aroused
more difficulty to this project are the letters without any inner space, such as T, I and J, e.g.
The same goes for letters which historically hold a very similar or, even the same
counterpunch, like the E, F and B, e.g.
Palavras-chave
Contraforma, Desenho de Tipos, Imagem da Palavra, Legibilidade, Tipografia
Experimental.
Keywords
Counter-form, Experimental Typography, Legibility, Typedesign, Word-Image.
Introdução
Dentro é uma fonte essencialmente experimental. Experimental no sentido de se testar uma
ideia, de provocar uma realidade no propósito de avaliar a pertinência de uma afirmação.
Peter Bi’lak, no seu ensaio “Experimental typography. Whatever that means” alerta-nos para
as limitações da experimentação no campo da tipografia:
Does type design and typography allow an experimental approach at all? The alphabet is by its very nature dependent on and defined by conventions. Type design that is not bound by convention is like a private language: both lack the ability to communicate. Yet it is precisely the constraints of the alphabet which inspire many designers. (Bi’lak, 2005)
No presente artigo, são explorados os limites que constrangem a forma das letras –
as suas bordas e as suas contraformas. Em tese, quando esse limite é ultrapassado,
72
compromete a sistematização da escrita feita pelas formas tipográficas, e faz a palavra
ininteligível. Caso o desenho do tipo falhe nessa missão, deixa de servir o seu objetivo
comunicativo. Isso deve ser levado em conta, como alerta Emil Ruder: “Typography has one
plain duty before it and that is to convey information in writing. No argument or
consideration can absolve typography from this duty” (2009, p. 6).
Fred Smeijers explica, em seu livro Contrapunção, que, por sua vez “[a] qualidade de
imagens visuais é, em primeiro lugar, uma questão de configuração própria e não o resultado
de uma certa técnica ou produção. (…) Na raiz da configuração ou do arranjo visual geral
está o desenho da palavra” (2015, p. 28).
O desenho da palavra, e não da letra, será o campo de experimentação da tipografia
Dentro. A construção das formas dessa tipografia se baseia nas afirmações relativas a perceção
das letras no contexto da palavra presente na Teoria da Escrita, de Gerrit Noordzij:
A relação entre forma e contraforma (…) é o fundamento básico da percepção. (…) A escrita é um bom modelo para a percepção porque, com suas regras precisas, cria um ambiente de trabalho como um laboratório artificial que qualquer um de nós tem ao alcance. A interseção entre claro e escuro ocorre quando e onde houver algo para se ver, mas esse jogo só fica interessante quando os adversários estão bem equilibrados – só posso experimentar a relação se esta estiver bem clara (2013, p. 15).
E, de facto, nem sempre a relação está clara. Essa é uma das principais razões que
fazem pertinente esse estudo, dado que existe uma acessibilidade cada vez maior à edição de
textos, em níveis cada vez mais profundos e relacionados à unidade tipográfica. No entanto,
não fica explícito para o usuário comum o facto de que as alterações que ele tem a
possibilidade de propor através das ferramentas de edição mexem diretamente com o que
podemos chamar de imagem da palavra.
Ao usar todas as possibilidades de determinar o espaço entre as letras e as palavras, esse usuário irá alterar a imagem da palavra. E isso, na verdade, também vale para alguém que desenha um tipo. Apesar de parecer que o trabalho do designer de tipos é fazer novos caracteres, o objetivo real é criar uma nova imagem da palavra com qualidade diferente da que já está disponível. (Smeijers, 2015, p.29)
O ponto de contato entre a construção duma imagem da palavra e o poder
comunicativo que ela possui define, em outras palavras, o campo de estudo sobre a
legibilidade. Aliás, faz-se pertinente ressaltar que o reconhecimento na leitura não é feito a
partir de cada letra em sucessão, mas da palavra como um todo (Spencer, 1969).
A tipografia aqui mostrada vem ao encontro de situações-limite de representação das
palavras, no que seria a ausência da forma icónica das letras. Tem-se em consideração que
73
alguns dos aspetos observados na construção das formas tipográficas em contraforma
possam vir a dar o seu contributo aos estudos ligados à legibilidade e perceção no âmbito da
tipografia. Uma das aspirações menos modestas desta experimentação com tipos é ter a
possibilidade de contribuir para a delimitação das convenções tipográficas que dão, de facto,
a consistência à imagem das palavras.
O nome da tipografia, Dentro, faz referência a três situações: a primeira, e talvez mais
óbvia, é a alusão direta às partes mais internas (contraformas fechadas) das letras; a segunda,
diz respeito aos espaços entre as letras dentro das palavras, que seriam responsáveis por
manter as letras juntas no objetivo de assegurar um sentido (ex. “a manhã” e “amanhã”); por
último, numa visão mais subjetiva, conota essa relação entre a memória visual e a perceção
na leitura de uma palavra – algo que acontece no campo das ideias e de forma particular.
Enquadramento Teórico
Esse projeto de experimentação tipográfica iniciou-se a partir de um breve trabalho de
pesquisa a respeito da influência das formas internas das letras caligráficas no processo de
confeção de tipos para impressão, uma vez que os primeiros cortadores de punções
utilizavam o artifício da contrapunção como o principal elemento padronizador entre os
tipos manufaturados.
A importância da regularidade nas contraformas da letra, no entanto, não nasce com
a chegada dos tipos. Apesar da tipografia trazer mais regularidade à letra impressa do que a
caligrafia traz à letra escrita, essa fidelidade às formas internas das letras já estava
sistematizada pelo tipo de aparo, inclinação, sequência e ritmo de traços que a milenar arte
caligráfica exigia em cada estilo de escrita.
Um exemplo que testifica essa assertiva está na própria postura do Gutenberg. O
pioneiro cortou diversos tipos a partir de matrizes padronizadas e, no entanto, seu maior
objetivo em termos de estética era chegar a um resultado impressionantemente parecido com
um manuscrito da época:
Os primeiros gráficos procuravam competir com os calígrafos imitando o mais próximo possível o seu trabalho. Esse tipo sem curvas sutis foi tão bem desenvolvido que os caracteres na Bíblia de 42 linhas mal podem ser distinguidos de uma boa caligrafia. (Meggs, Purvis, 2009, p. 97)
Temos uma visão mais nítida da apropriação formal que a tipografia faz da caligrafia
a partir da Teoria da Escrita de Gerrit Noordzij. O autor afima que a “única coisa que os
74
vários tipos de escrita têm em comum é o branco das palavras. Esse ponto de vista universal
vale igualmente para a escrita manual e a tipografia” (Noordzij, 2013, p. 15).
Vale também para comparação entre as tipografias. A similaridade entre os diversos
desenhos de letra, portanto, são as partes delimitadoras do glifo, ou seja, sua contraforma.
Isso quer dizer que a liberdade formal do design da letra será limitada apenas pelo nível de
reconhecimento do caractere, pela legibilidade – e que isso depende do poder de
reconhecimento e familiaridade que a contraforma da letra oferece ao usuário da mensagem.
A perceção de que um “a” é mesmo um “a” e não um “e”, as formas (ainda que
mínimas) fundamentais para seu reconhecimento, é o ponto de partida (e também a chegada)
na construção do desenho de uma fonte tipográfica. Smeijers coloca a questão:
O que faz de uma letra uma letra, e de uma palavra uma palavra? É uma velha história que não se pode deixar de contar. Tudo depende de consciência e respeito pelas formas entre e dentro das letras. As formas brancas fazem o segundo plano e as formas pretas fazem o primeiro plano, e vice-versa. Mude uma, e a outra também muda (2015, p. 24).
O termo “contraforma” assume-se aqui como ambos os espaços internos e externos
que delineiam o formato da letra. O termo é usado e bem explicado por Smeijers (2015), que
o divide em três subcategorias: contraforma fechada, contraforma quase fechada e
contraforma aberta. Essa última, divide a sua definição com a ideia de espaço entre as letras,
que também acaba por se apresentar como contraforma delimitante do glifo e é bastante
influente na ligação e separação das letras na ordem da composição das palavras.
Se inserimos um caractere com contraforma aberta, logo descobrimos que não há nenhuma fronteira visível entre o espaço que pertence ao interior de um caractere e o espaço que pertence à área entre os dois caracteres. Fica difícil medir esses espaços. Para se resolver esse problema, é preciso entender que uma certa parte do espaço contíguo tem uma função dupla: ela é, ao mesmo tempo, espaço interior e exterior. (Smeijers, 2015, p.32)
Aliás, é importante ressaltar que, apesar da tendência de pensar a tipografia letra a
letra, pelo facto de os tipos móveis serem assim constituídos nessas unidades, ela é
desenvolvida em uma dinâmica de palavras. A letra impressa tem por finalidade básica formar
uma palavra a ser lida e entendida. Isso fica claro quando se lê uma pseudopalavra, por
exemplo. A pseudopalavra “TEIEUISÃO” não demora tanto para logo ser corrigida para
“TELEVISÃO” através da perceção das letras e compensação dos espaços internos pela
imagem prévia que temos dos espaços “IE” para “LE” e “UI” para “VI”.
Tanto Noordzij quanto Smeijers abordam a importância do reconhecimento das
letras por esses espaços chamados brancos, ou vazios. Noordzij (2013, p. 14) diz que a
75
“manutenção do equilíbrio das formas brancas faz toda a diferença. O branco da palavra é
minha única ferramenta para manter as letras juntas”. Smeijers (2015, p. 25) acrescenta a
importância da proporção entre esses espaços:
Caracteres não significam muito sozinhos, então nós precisamos lidar com outro problema: os espaços entre as letras. Esses espaços têm que estar em equilíbrio uns com os outros e, ao mesmo tempo, em equilíbrio com os espaços dentro dos caracteres. Faça isso e você conseguirá criar uma imagem da palavra (word-image) aceitável.
A tipografia Dentro tem como condição de existência a proporção harmónica desses
espaços internos às palavras a fim de constituir uma imagem reconhecível. No entanto, para
que a contraforma de cada letra assumisse seu papel de caractere, foi preciso pensar uma
solução de compensação espacial diferente das outras tipografias.
Estado da arte
Encontram-se nesta secção alguns trabalhos que se aproximam da intenção exploratória da
tipografia Dentro, e que de alguma forma influenciaram e ajudaram a pensar as soluções que
foram aplicadas, bem como, propuseram reflexões teóricas ligadas à estética e à formação da
imagem da palavra de maneira geral.
No clássico Thypographie, Emil Ruder (2009) dedica a integralidade de um capítulo ao
estudo da forma e da contraforma. Os exemplos colocados no livro e os respetivos
comentários do autor tiveram papel essencial na interpretação dos trabalhos tipográficos
destacados a seguir.
Para se ter uma visão mais nítida do que se quer dizer, é preciso ir aos exemplos,
como a tipografia experimental de Blondina Elms, Revelation27. Trata-se de um estudo
interpretativo das capitais romanas com o objetivo de ponderar sobre como a forma da letra
revela ou traça as formas adjacentes e qual seria a melhor maneira de estabelecer essa relação
visualmente (fig.1).
Figura 1: A fonte experimental Reveletion relaciona de modo particular a forma das letras e as formas entre as letras, de modo que, numa
espécie de fusão, seja possível a formação das palavras.
27 Disponível em https://www.atelierelms.com/pages/elms_typedesign.html (acedido em 21 ago. 2017).
76
Experiências tipográficas a utilizarem apenas as contraformas internas tendem a não
conseguir êxito em legibilidade, pois mantêm um relacionamento debilitado com os espaços
entre as letras. O próprio reconhecimento das formas alfabéticas, baseada na familiaridade
com a contraforma das letras, fica comprometido quando se anula a importância de abordar
as contraformas no contexto da palavra, isto é, as contraformas das letras em conjunto com
as contraformas entre as letras.
A tendência no desenvolvimento desse tipo de experiência na direção da legibilidade
é marcar, de alguma forma, extensões no exterior do traço, para ajudar na sugestão de qual
seja a letra. É o que se pode ver no processo de conceção da tipografia Lint Light,
desenvolvido por Kate Francis (fig.2).
Figura 2: De início, como mostra a figura mais acima28, havia fidelidade ao uso apenas das contraformas
internas das letras, com exceções para as letras i e t, que não apresentam contraformas, e para a letra l, que
aparece como vazio. A figura mais abaixo29 mostra a mesma frase com os caracteres da versão final aplicados.
Já se consegue ler, ainda com alguma dificuldade, a frase “Things that just happened, like lint”.
Pela aparência do resultado final de Lint Light, as formas fechadas – comportando-se
como silhuetas das letras que representam – ajudam a diferenciação entre os caracteres de
modo que seja possível supor a palavra, como é o exemplo comparativo entre a versão inicial
e final da palavra “happened”. Apesar de mais legível, a perceção de “that”, ou “just”, ou
“like”, por exemplo, é algo difícil, mesmo que sejam palavras recorrentes e, por isso,
teoricamente mais fáceis de serem reconhecidas pela questão da memória visual.
28 A primeira etapa está disponível em http://www.typophile.com/node/63025 (acedido em 21 ago. 2017). 29 O resultado final está disponível em http://www.katefrancisdesign.com/ (acedido em 5 set. 2017).
77
Um terceiro exemplo, dessa vez com enfâse na valorização do espaço entre as letras,
é o poster para o evento “Dia Tipo” em São Paulo (Brasil)30, feito pela designer Estela
Mendes (fig.3).
Figura 3: Poster “Dia Tipo” e, ao lado, detalhe da contraforma cortada em madeira para fazer o letterpress.
É interessante notar que, caso fosse decidido anular as contraformas fechadas do D
e do O, ler-sei-a o cartaz com alguma dificuldade. Também atrasa o reconhecimento da
palavra a ausência da contraforma inferior da letra S. O detalhe da letra T que se repete após
o O sem muito sentido (TIPOT?), sugere a importância de se manter uma relação de espaço
relativo à construção da palavra para o reconhecimento das letras.
No último exemplo, a logo anterior a 2014 da agência de publicidade Brand Union
(fig.4), as formas entre as letras são subtraídas em prol da legibilidade até serem totalmente
eliminadas. É interessante notar que, se os espaços em branco na figura fossem usados para
reconstituir os traços que compõem as letras, as letras se sobreporiam.
Figura 4: Logo da Brand Union tem como ligação entre as contraformas internas o que
seria a sobreposição dos traços das letras, como que sem nenhum espaço entre letras.
Uma comparação entre esse último exemplo e o terceiro destaca aspetos importantes
da relação entre as contraformas dentro e entre as letras. Ruder prevê que se a intenção é fazer
30 Disponível em http://www.estelamendes.com/dia-tipo-2014 (acedido em 5 set. 2017).
78
prevalecer os espaços internos das letras, a diminuição progressiva do que seja os espaços entre
as letras é o caminho a se tomar, por causa da compensação ótica.
The various effects obtained by the combination of letters are determined by the interplay of the white of the counter and the white of the set width. Narrow set width results in a more intense white and at the same time enhances the effect of the white counters. (Ruder, 2009, p. 52)
O que se vê, portanto, é que se a intenção é valorizar as contraformas internas em
detrimento das contraformas entre as letras na formação da palavra, faz-se necessário que a
compensação ótica tenda suprimir estes espaços adjacentes aos caracteres. É precisamente
essa relação que conduziu a conceção da tipografia Dentro.
Metodologia
Os princípios empregados nessa fase inicial da fonte Dentro estão limitados aos caracteres
maiúsculos de um alfabeto latino. A extração das contraformas das letras, que começou como
um exercício pessoal de visualização da teoria de Noordzij e do argumento de Smeijers, foi
feita em um processo simples de subtração por meio digital (fig.5).
Figura 5: Exemplo do processo inicial de extração da contraforma das letras
por destaque do fundo em relação à figura.
A fonte escolhida para este projeto foi FF Quadraat, de Fred Smeijres. Foi a primeira
família desenhada pelo autor e teve sua versão inicial em 1992. Ao que tudo indica, a fonte é
contemporânea à pesquisa que deu origem ao seu livro Contrapunção (Thompson, Smeijers,
2015) – o que sugere que ela contemplado em sua conceção alguns dos aspetos tratados no
livro, o que representa uma mais valia.
Uma primeira medida, já no sentido da definição das particularidades dessa tipografia
experimental, foi tomar as providências para que a largura de cada caractere fosse dada
maioritariamente pela largura de suas contraformas. A intenção por trás desse cuidado era
fazer com que os espaços entre os caracteres de uma palavra composta com a tipografia
Dentro criassem a ilusão das formas longitudinais das letras em si, e não dos espaços laterais
das letras, como nas tipografias regulares.
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Pode-se notar que entre os passos 3 e 4 da Figura 5, as contraformas laterais são
suprimidas. Isso porque, num processo inverso ao que acontece com os glifos, essa ausência
como que faz com que o ritmo dado pela intercalação dos espaços de fundo e figura, ou de
brancos e pretos, seja quebrado ao mínimo no caso da junção das contraformas.
Pela mesma razão da consistência do ritmo, optou-se por delimitar a contraforma no
sentido de excluir o espaço de abertura, que seria dado pelo vértice mais externo das serifas.
Essa escolha foi feita após um teste entre as duas possibilidades (fig.6), no qual se pode
observar que o fechamento da forma pelo vértice interno garante uma fluidez formal que
melhora a estética do tipo e possivelmente diminui os ruídos na leitura.
Figura 6: Acima, fechamento das formas pelo vértice interno. Abaixo, pelo vértice externo.
Para facilitar o trabalho de padronização, as letras foram divididas, de acordo com a sugestão
de Fred Smeijers, de acordo com a diferenciação mais nítida entre as contraformas internas:
fechadas, quase fechadas e abertas (Smeijers, 2015). Também acondiciou-se em um grupo os
caracteres isentos de contraforma interna.
As letras versais do alfabeto latino que possuem contraformas totalmente fechadas
geralmente são: B, D e O. Com bastante frequência, também as letras P e Q. Nas três
primeiras a extração da contraforma foi a mais simples possível. Não se pode dizer o mesmo
das letras P e Q, que possuem uma relação de espaço lateral mais complexa.
O espaço oco de P é muito similar a uma redução do oco do D ou ao corte longitudinal
da letra B (Noordzij, 2013). A solução foi demarcar a altura do P pela pequena abertura inferior
na barriga na letra31, até a base da serifa (fig.7). Já na letra Q, foi feita uma marcação mínima
na junção da linha inferior do bojo com a calda, a fim de enfatizar a existência de um espaço
lateral que a diferencia da letra O (fig.7).
31 Essa é característica particular que ocorre no desenho da letra P da fonte FF Quadraat.
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Figura 7: Exemplos das duas possibilidades que foram estudadas no desenho das letras P e Q.
Já nas contraformas quase abertas, existem letras cuja abertura não tem influência
nos espaços laterais, como é o caso de A, H, M, N, U, V e W, o que facilita a extração das
contraformas. Pode parecer, mas não é o mesmo caso em R, K e X. Apesar de terem
aberturas no sentido vertical, essas letras possuem concavidades laterais que influenciam na
compensação dos espaços laterais. Mesmo assim, optou-se por suprimir a contraforma
externa lateral nessas três letras, pelo facto de que as contraformas das letras R e K na fonte
FF Quadraat possuem diferenças longitudinais explícitas (fig.8)
Figura 8: Vê-se que a contraforma do R na fonte FF Quadraat possui duas partes e é bem mais larga que a
contraforma do K na mesma fonte, delimitada e uma única forma, pois sua forma original não possui junção.
As letras S e Z têm perfis parecidos. Apesar de possuírem aberturas laterais, mantêm
suas contraformas bem delineadas pelos segmentos que tendem a horizontalidade nos limites
que marcam a altura de versal.
A letra G inaugurou uma fase de pequenas manipulações das contraformas extraídas.
Na versão da primeira contraforma, o formado pontiagudo delimitado pela ligação entre os
vértices mais extremos da letra, traz inconveniências na compensação lateral nas
composições. A solução foi usar o vértice do arco e trazer um ponto paralelo no sentido do
fechamento da contraforma (fig.9), de modo que se apresentasse distinção entre as
contraformas do C e do O.
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Figura 9: Algumas tentativas de extração da contraforma da letra G e a versão final mais à direita.
Comparação entre C, G e o O dentro da palavra.
Diferenciar as letras E e F foi desafiador. Após diversas versões, chegou-se a
conclusão de que a melhor maneira seria unir os vértices inferior e superior sem levar em
consideração o braço intermediário em ambas as letras (fig.10).
Figura 10: Versões de E (acima) e F (abaixo), até a final.
A contraforma aberta do L foi extraída de forma simples. No caso da contraforma
do Y, que pode se confundir com a contraforma do V, foi considerado manter apenas um
dos espaços laterais, para demarcar a altura, como no caso do P.
As letras T, I e J não possuem qualquer espaço interno. Pelo facto de T possuir uma
barra horizontal, foi possível pensar uma solução na mesma lógica de extração da
contraforma de Z e S, levando-se em consideração o extremo das serifas como se fossem
formas horizontais.
Já nas letras I e J, por serem extremamente verticais, sem qualquer traço longitudinal
para além das serifas, a solução veio a partir da afirmação de Smeijers (2015). O autor explica
que alguns caracteres como T, I, 1, r, f tinham contrapunções que marcavam a regularidade
de suas hastes. Foi com base nessa afirmação que se construiu contraformas internas das
letras sem espaço oco. Pela simetria da letra I se fez indiferente o lado, mas pela letra J
escolheu-se o lado esquerdo, por possuir de facto a ligação entre dois pontos da letra em si
(fig.11).
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Figura 11: Comparação entre as versões do que seriam as contraformas das letras I e J
Discussão dos Resultados
Figura 12: Tipografia experimental Dentro (Alfabeto latino)
A questão da serifa foi algo que, logo de início, fez pensar que a lógica da contraforma
caminharia por uma espécie de “contra-lógica” tipográfica. A intenção de considerar os
vértices mais externos e, portanto, a serifa, na extração da contraforma era baseada na
hipótese de, sendo a abertura menor, a forma interna seria melhor delimitada – o que
contribuiria para legibilidade. No entanto, essa contribuição é mesmo para o glifo, não se
estendendo à contraforma do glifo, na qual acaba por causar uma espécie de ruído visual (ver
fig.6).
Outro facto a se considerar são as letras que possuem delimitações laterais claras,
pela existência de barras, que são mais fáceis de visualizar na composição das palavras em
contraformas. É possível que essas letras possuam papel relevante na fixação da imagem da
palavra em caixa-alta, assim como Messier, em 1903, destacou a relevância das consoantes
ascendentes para o reconhecimento da imagem da palavra em caixa-baixa. (Spencer, 1969)
Ainda outro ponto a se discutir, está na solução pensada para a das letras sem
qualquer contraforma interna, que acabou por trazer à luz desdobramentos não esperados
na compensação ótica das palavras que compõem. Smeijers (2015) fala que o uso das
contrapunções em caracteres desse tipo era feito para marcar a largura das hastes.
Inicialmente observado no T, mas também presente nas letras N, S e Z (ver fig. 12), o traço
que contra a contraforma acaba por determinar o traço de maior contraste no caractere
sugerido, o que dificultou encontrar a compensação ótica proporcional entre os caracteres
de maneira geral.
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Conclusão
A ideia de transformar esse estudo de especulação formal em tipos que pudessem ser compostos
em palavras está baseada na possibilidade real de comprovar a importância dos espaços no
interior e entre as letras na formação da imagem das palavras. Esse é um objetivo que se considera
cumprido já na fase de composição só com letras versais.
No entanto, existe a questão de que a imagem das palavras compostas em letras
maiúsculas não possui tanta força quanto as das palavras minúsculas (Spencer, 1969;
Noordzij, 2013). Isso impulsiona a continuidade dos estudos referente a contraforma também
nas letras minúsculas. Isso faz impulsionar ainda mais a continuidade do estudo desse tema,
bem como do desenvolvimento da tipografia experimental Dentro também para as letras
minúsculas e outros caracteres.
Nesse sentido, será exigido muito mais quanto à padronização de espaços de
contraforma aberta e a presença de ascendentes e descendentes, que influenciam a altura da
contraforma dos espaços laterias das letras. Em versais, como já dito, existe um fator
facilitador, a linha de altura da versal, que faz com que os espaços entre as letras sejam mais
fáceis de delimitar.
É possível que se leve em consideração algumas pesquisas e projetos tipográficos que
se debruçam sobre os caracteres em caixa-baixa, tais como a pesquisa tipográfica de Thomas
Huot-Marchande para seu tipo Minuscule, baseado nos escritos de Émile Javal sobre
reconhecimento das formas das letras e compensação ótica para leitura de tipos em tamanhos
extremamente pequenos (Bi’lak, 2005).
A Teoria de Messier sobre a personalidade das palavras e sua força de sua imagem,
medidas pelas influências das letras quando a extensão, peso e forma geométrica na formação
das palavras (Spencer, 1969) também pode ser um ponto a se considerar na extração das
contraformas nas letras minúsculas.
Sob um panorama geral, acredita-se que de facto foi possível refletir, não só de forma
teórica, mas também prática, sobre a importância dos espaços internos dentro e entre as
letras no reconhecimento da palavra. Foi de igual modo relevante observar os desafios
presentes no universo da microtipografia para um design de tipos, no qual ajustes mínimos
de pontos e formas reverberam a tão buscada qualidade na formação da imagem da palavra.
Referências
Bi’lak, P. (2005, Janeiro 23). Experimental Typography. Whatever that means. Disponível em
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https://www.typotheque.com/articles/experimental_typography_whatever_that_means
______. (2011, Fevereiro 24). Conceptual Type? Disponível em
https://www.typotheque.com/articles/conceptual_type
Meggs, P. B., & Purvis, A. W. (2009). História do Design Gráfico. São Paulo: Cosac Naify.
Noordzij, G. (2013). O traço: Teoria da escrita. São Paulo: Blucher.
Ruder, E. (2009). Typographie: Ein Gestaltungslehrbuch = Typography : a manual of design =
Typographie : un manuel de creation. Sulgen: Niggli.
Smeijers, F. (2015). Contrapunção: fabricando tipos no século dezesseis, projetando tipos hoje.
Brasília: Estereográfica.
Thompson, M., Smeijers, F. (2015). Reputations: Fred Smeijers. Eye, 23(90), n.90. Disponível
em http://www.eyemagazine.com/feature/article/reputations-fred-smeijers