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UM OLHAR SOBRE A EDUCAÇÃO NA COLÔNIA: OS VIAJANTES ESTRANGEIROS
Ana Paula Seco
Universidade Estadual de Campinas anapas@unicamp.br
INTRODUÇÃO
“Não há quem possa, na verdade, fazer um estudo acurado do Brasil, particularmente do Brasil antigo, da fase colonial e mesmo da fase imperial, sem a consulta de tais relatos”.
Nelson Werneck Sodré (1973, p. 318)
O presente trabalho intitulado Um olhar sobre a educação na Colônia: os
viajantes estrangeiros consiste no desdobramento de um trabalho mais amplo
e de longa data1 que tem como objeto de pesquisa os livros de viagens
deixados por viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil desde o seu
descobrimento. Um dos objetivos do estudo iniciado, tendo como fonte esses
livros de viagens, foi realizar um levantamento a fim de identificar, localizar e
catalogar fontes que ampliem o leque de opções para o campo da História da
Educação brasileira, e a partir daí buscar elementos, nos discursos destes
viajantes, sobre a educação, a fim de viabilizar a análise e compreensão do
fenômeno educação que estes viajantes veicularam na Europa e mais ainda,
1O trato com este tipo de fonte histórica teve início com um trabalho de pesquisa de Iniciação Científica, com duração de dois anos, desenvolvido durante a graduação em Pedagogia, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/FE. Tal trabalho intitulado Levantamento e catalogação para estudo histórico das obras deixadas pelos viajantes que estiveram no Brasil durante o período colonial e o Império se insere num projeto mais amplo, de caráter nacional denominado Levantamento e catalogação de fontes primárias e secundárias da educação brasileira, desenvolvido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil – HISTEDBR. Uma vez realizado o levantamento das obras dos viajantes (não em sua totalidade, pois isso se traduz num trabalho impossível de se realizar sozinha dada a amplitude do número de viajantes e de obras por eles deixadas que retratam o Brasil desde o seu descobrimento), parti para um estudo sobre os conteúdos destes relatos, direcionando o olhar para os relatos que tratam sobre educação em diferentes épocas e regiões do Brasil, agora em nível de Pós-graduação/Mestrado.
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como tais interpretações serviram de substrato para embasar discursos e
também estudos sobre diferentes aspectos desta área no Brasil.
No decorrer deste trabalho foi possível constatar que os primeiros a
construírem um dado conhecimento referente ao estado geral da educação no
Brasil, desde o seu descobrimento, foram os europeus. Com isso, os viajantes
estrangeiros apresentaram à Europa um quadro a respeito do país, que não
deixa de ser expressões ideológicas que envolveram interesses de classes em
tempos históricos diferentes. A partir destas constatações não é difícil perceber
a importância e a necessidade de estudos, que procura compreender, numa
perspectiva histórica, o caráter ideológico dos relatos dos viajantes, em
diferentes épocas.2
O presente trabalho, a ser apresentado neste VII Seminário, constitui-se
de um breve estudo, um panorama geral de como os livros de viagem,
deixados por viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil durante os séculos
XVI e XVII, tornaram-se um testemunho fundamental e um critério de
legitimidade para a construção de interpretações sobre diversos aspectos da
sociedade brasileira, isto é, como tais obras expressaram o modo como seus
autores observaram, interpretaram e registraram os diferentes aspectos da
sociedade brasileira, em especial a educação, em diferentes períodos de nossa
história, neste caso do século XVI ao XVII.
No intuito de não ocultar o sentido que os viajantes quiseram dar aos
seus relatos, para melhor demonstrar como a educação foi registrada sob o
olhar do estrangeiro, trouxemos na íntegra os trechos referentes à educação -
aqui entendida tanto no seu sentido mais restrito, como meio de adquirir
formação e desenvolvimento físico, intelectual e moral, no sentido mesmo de
instrução, de ensino, como também num sentido mais abrangente, enquanto
conhecimento e observação dos costumes, da vida social, civilidade,
2Seguindo nesta linha de pensamento e dando seqüência aos estudos utilizando como fonte e objeto de análise os livros de viagens, iniciei no Programa de Pós-graduação (Doutorado) o desenvolvimento do projeto que tem como objetivo o estudo da questão de como alguns viajantes construíram uma interpretação, articularam fatos e idéias, elaboraram teorias e incorporaram o que foi observado a um conjunto de noções organizadas, ou seja, como construíram e reproduziram um conhecimento científico a respeito da sociedade brasileira, em especial sobre a educação no Brasil. Em outras palavras, questões que integram a problemática daquilo que, a partir do século XIX, viria a ser designado como ideologia, buscando entender a concepção de educação, presente nos relatos de viagens, enquanto expressões ideológicas, em diferentes épocas de nossa história.
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delicadeza, polidez, cortesia, cultura, socialização e sociabilidade.
O Brasil foi retratado por viajantes estrangeiros que aqui aportavam com
seus interesses comerciais, científicos e colonialistas, amalgamando
motivações teológicas, morais e estéticas, que ficaram expressas em seus
textos e imagens, umas mais outras menos coerentes com a realidade, mas
todas importantes devido ao seu caráter informativo, pelas diferenças e
diversidade de aspectos observados e registrados.
A importância de tais viajantes para a análise dos mais variados
aspectos do passado brasileiro, portanto, é inegável3, uma vez que muitos
deles expressaram, de forma rica e detalhada, através de desenhos4 e de
textos escritos, suas impressões sobre o país. A importância também se atribui
ao número notável de relatos de suas incursões pelo país.5 A contribuição
desses viajantes para o conhecimento do Brasil foi, às vezes, pequena e em
outras, de imenso valor.
No entanto, qualquer que tenha sido esta contribuição, ela não pode ser
desprezada por aqueles que querem conhecer a história do nosso país. A
exemplo disso temos autores renomados como Gilberto Freyre, Caio Prado
Júnior, Nelson Werneck Sodré, Oliveira Lima, Sérgio Buarque de Holanda e
Florestan Fernandes, para citar apenas alguns dos mais afamados estudiosos
do nosso tempo, que fizeram grandes sínteses da história nacional utilizando
os livros de viagens como fontes para suas obras.
Os Viajantes, seus relatos e a viagem.
Uma vez que as definições de viajantes e livros de viagem não são
3 Não podemos negar que dentre os muitos livros de viagens encontramos alguns que não merecem tanta estima. 4 Para o nosso estudo, no entanto, utilizaremos apenas os textos escritos, deixando a rica iconografia deixada pelos viajantes para um outro possível estudo. 5 Quanto ao número de obras encontradas no trabalho de levantamento das obras deixadas pelos viajantes, temos o século XVI liderando em números (excetuando o século XIX, que não é um período aqui estudado), vindo em seguido o século XVIII. O século XVII é o que apresenta o menor número de obras, fato este devido à proibição, por parte do governo português, em 1604, da entrada de estrangeiros no Brasil. Também no ano seguinte, outra ordem foi dada para que se intensificasse a vigia quanto a entrada de estrangeiros, prevendo o internamento a 12 léguas da costa dos estrangeiros ali encontrados; provocando a diminuição do numero de viajantes. Não podemos nos esquecer que Portugal mantinha sua colônia bem guardada dos olhos das outras nações, assim sendo estas medidas são coerentes ao temor de espionagem por parte da metrópole e da intenção do mesmo em preservar seu território.
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muito precisas, buscamos, em algumas interpretações já criadas por
historiadores contemporâneos, elementos para construirmos estes dois
conceitos que são de extrema importância em nossa análise, ajudando assim a
compreender, afinal, quem seria essa figura do “viajante”, a despeito de sua
inegável singularidade, juntamente com seus escritos, os livros de viagens.
Os viajantes foram caracterizados como sendo estrangeiros, e como tal,
sem maiores ligações com a população local visitada. Como não poderia deixar
de ser, os viajantes que aqui chegaram apresentavam e representavam
diferentes culturas e por isso mesmo, não se identificavam com os sistemas de
orientação, com os hábitos do grupo com que entravam em contato e, sem a
intenção de incorporar os esquemas mentais do povo visitado, conservaram,
assim, certa autonomia diante do espaço ocupado pela população. Também
“viajantes” devido às travessias dos oceanos e por continuarem explorando as
grandes dimensões do território brasileiro, não importando o tempo de
permanência no Brasil, (por vezes breve, por outras mais extensas), mas
sempre limitada. Entra, também, neste quadro que procura definir o que está
sendo entendido por “viajante”, o fato de o próprio naturalista, comerciante,
aventureiro, engenheiro, capelão, missionário ou educador se denominar como
tal (Leite, 1997, p. 161-164).
Como livros de viagens entendemos “todos os relatos que deram à
Europa uma visão do ‘Novo Mundo’ através de uma experiência própria”,
informações estas proporcionadas por um deslocamento físico e por um tempo
determinado, ou seja, pela viagem (Mindlin, 1991, p. 35)6. A literatura de
viagem, através do olhar estrangeiro do viajante, une exploração, aventura,
aprimoramento e objetividade científica, observação, impressões e
representações, constituindo-se um tipo único de escrito (Leite, 1996, p. 101).
Os livros de viagens são vistos, portanto, como um gênero próprio, produtor de
representações sociais, condicionadas a um tipo de experiência específica, a
viagem, e não como sendo exclusivamente um documento histórico, literário,
ficcional ou científico, mas muitas vezes reunindo todos estes estilos ao mesmo
6Neste sentido, enquadramos sobre a definição de viajantes: os missionários, os náufragos, os invasores, os naturalistas, ou seja, todas aqueles que em virtude da viagem empreendida deixaram registradas suas impressões acerca do Brasil.
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tempo.7
Desde já, é importante lembrar que o uso destas obras deve vir cercado
de cuidados. A utilização desses escritos como instrumentos para explicações
sociológicas, históricas, antropológicas ou de outra natureza, sem a devida
relativização em relação ao colonialismo, ao racismo e ao etnocentrismo,
acaba apenas por reproduzir, no interior dos trabalhos que pretendem ser
críticos, uma reificação do olhar do “branco europeu”. Estar atento às
especificidades políticas dos argumentos dos viajantes constituí um dos
principais cuidados que o historiador/pesquisador deve ter no momento de
utilizar fontes desse tipo para seu trabalho de reconstrução e reinterpretação
da história.8
Buscamos também, para este trabalho, estabelecer uma noção de
viagem, de forma bastante resumida. Dentro do período definido para este
trabalho, ou seja, os séculos XVI e XVII, as viagens eram chamadas de
viagens maravilhosas, quando se deu a conquista do Novo Mundo. Como uma
forma de definir como eram essas viagens optamos por contrastá-las às
viagens que vieram posteriormente, mais especificamente as chamadas
expedições científicas. Ao estabelecer as diferenças entre as primeiras viagens
e as viagens do Século das Luzes, nas quais a curiosidade sobre os países e
gentes longínquas foi substituída pela busca de conhecimentos científicos e
informações relativas às possibilidades de exploração econômica, fica claro
como se deu a mudança gradual de uma visão edênica, de terra encantada e
de habitantes ingênuos para uma visão de lugar de atraso e carente de
civilização.
Consideramos importante, primeiramente, lembrar que o ato de viajar
traz consigo especificidades e condicionantes políticos, econômicos, sociais e 7É grande a diversidade dos tipos de narrativas, sendo preciso distinguir os relatos de viagem que foram escritos para serem apresentados a um público específico, como as narrativas que revelam o novo mundo à Europa e que foram encomendadas pelos governos dos diferentes países e institutos científicos, daqueles que casualmente acabaram sendo impressos e colocados em circulação, como é o caso dos diários, notas e cartas. Os livros de viagens podem aparecer sob a forma de relatos de viagem propriamente ditos; registros de acontecimentos cronológicos; diário para fins científicos e diários pessoais; reunião de notas e impressões; registros de viagens com interesses mercantis, em busca de possibilidade de exploração econômica e de investimentos; cartas, relatórios informais ou livros. Portanto, as diferenças estão na forma dessas obras, nos objetivos que foram escritos, na especificidade de seu destinatário e no interesse pessoal do autor viajante. 8Estas observações não desmerecem nem minimizam a importância dos relatos de viagens, mas servem como um alerta quanto ao uso de tal fonte histórica.
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culturais, isto é, fatores que variavam de acordo com as motivações dos
viajantes, tanto na esfera particular: desejo de aventuras, pesquisas, interesses
científicos, profissionais e econômicos; como na esfera pública ou política:
colonização, conquista, relações diplomáticas, criação de museus, investigação
das potencialidades exploratórias, etc. E mais, variavam também de acordo
com os diferentes locais por onde os viajantes passavam, com os diferentes
segmentos da população com quem entravam em contato e com as diferentes
épocas em que aqui estiveram.
Das viagens surgem os livros de viagens
Com as viagens, que levaram às chamadas “descobertas”, na América e
no Pacífico, com Cristóvão Colombo, Pero Vaz de Caminha, Américo
Vespuccio e outros, nasceu o gênero literatura de viagem, como conseqüência
e fruto dessas viagens de conquista9. Suas narrativas “inauguraram” o
continente através de cartas descritivas, de relatos fantásticos e dos mapas10.
As viagens promoveram inventários do espaço, dos costumes e da
natureza, que nos permite vê-las como parte do processo de conquista,
colonização e consolidação de paradigmas científicos. As viagens, nos séculos
XVI e XVII, caracterizam-se por uma exploração de deslocamento espacial, por
serem de conquista, narrados de maneira cronológica (Raminelli, 2000, p. 27).
Os conquistadores ultramarinos iniciaram um processo de desvendamento e
exploração de um mundo ainda fantástico, criando a idéia de um “Novo
Mundo”, contrapondo-se ao “Velho Mundo”, característica da lógica do período
do expansionismo europeu.
Esses conquistadores não tinham idéias muito claras a respeito das
terras recém-descobertas, nem mesmo os geógrafos tinham certeza sobre a
geografia desses novos mundos. “Além do Atlântico tudo era lenda e, por isso,
os testemunhos dos viajantes passam a adquirir foro, desde já, de verdade e
9Américo Vespucci teve suas cartas, Mundus Novus, difundidas através de folhetins, enquanto que as cartas de Pero Vaz de Caminha teve sua primeira publicação em 1817, na Corografia brasílica de Ayres de Cazal. 10Os mapas, além de firmarem acordos sobre a repartição das terras descobertas e de orientar no espaço, se impõem também como pensamento político, servindo ainda de decoro figurativo, conveniente à exibição mais elegante e harmoniosa dos domínios conquistados. (Belluzo, 2000, v. I, p. 73).
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as imagens que suscitam são tidas como evidências, onde a viagem e o texto
mantêm relação direta e recíproca”. A percepção, neste período, caminha do
texto para a imagem e vice-versa (Belluzo, 2000, p. 18).
Embora a travessia do Atlântico inaugure o que se convencionou chamar
de “época moderna”, os primeiros europeus, que abordaram estas terras a
partir do século XVI, descreveram a América como um mundo de natureza
primitiva, um espaço devoluto e atemporal, ocupado por plantas e seres de
uma alteridade inaudita; um mundo não organizado em sociedades e
economias; um mundo cuja única história era aquela prestes a se iniciar. Essas
narrativas também retrataram a América em meio a um discurso sobre
acúmulo, abundância e inocência, instituindo um “mito fundador”, que reforçava
utopias e sonhos, resgatando o imaginário medieval do fantástico, do exótico e
do mitológico.
Nas descrições nos são revelados os elementos arcaicos que aparecem
na construção da alteridade, como as imagens dos canibais e que marcaram
profundamente a visão da América e a do Brasil, citadas pela primeira vez na
carta de Colombo.11
O século XVI foi uma época de profundas transformações na visão de
mundo do homem ocidental, época marcada por verdadeira paixão pelas
descobertas. No tempo e no espaço abriram-se novos horizontes: construiu-se
uma sabedoria nova, oposta às concepções que prevaleceram na Idade Média,
um conhecimento científico da natureza e do homem que abalou os alicerces
que fundamentavam a concepção medieval e teológica do mundo. O homem
europeu descobria, assim, que havia idéias bem diversas das que acreditava e
outros povos vivendo segundo padrões bem diferentes daqueles que lhe
pareciam os únicos legítimos. A sociedade não era mais um reflexo
transcendentalmente articulado de algo predefinido, externo e para além de si
mesmo que ordena a existência hierarquicamente, e sim uma entidade nominal
ordenada pelo Estado.
Algumas décadas antes do advento dos “descobrimentos” (na
11As estórias de canibais passaram a povoar o imaginário europeu através de obras divulgadas com sucesso, conhecidas por literaturas de sobrevivência, em geral referentes às navegações, cujos grandes temas eram os sofrimentos e perigos, de um lado, e as maravilhas exóticas e as curiosidades, de outro. Nessas, o desconhecido aparece como um mundo de fascinação e perigo.
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perspectiva dos observadores europeus), as fronteiras geográficas coincidiam
com as fronteiras da humanidade. Acreditava-se que criaturas bizarras, com
duas cabeças, três braços e assim por diante, habitavam as regiões além das
fronteiras conhecidas. Os limites da geografia coincidiam com os limites da
humanidade. Com o advento de um novo continente, as fronteiras do mundo e
da humanidade começaram a se transformar. As estranhas criaturas que
outrora habitavam os recantos desconhecidos do mundo foram substituídas
pelos selvagens (ou canibais) que habitavam o Novo Mundo.
As fronteiras geográficas e as fronteiras da humanidade na cosmologia
cristã foram recolocadas, tanto pela transformação do conhecimento gerado
através das interações interculturais entre povos, até então, mutuamente
desconhecidos, quanto pela consciência crescente da expansão da terra além
dos limites conhecidos.
Portanto, com a descoberta do novo continente se instala a necessidade
de repensar a própria cultura e rever as bases sobre as quais a Europa firmava
sua visão de mundo.
Neste cenário, os portugueses saíram à frente e empreenderam
descobertas que aos poucos iam desmistificando a geografia fantástica das
novas terras, o que foi também modificando, paulatinamente, uma das
características mais marcantes dos relatos desses viajantes do período da
Conquista, que é a menção ao maravilhoso, ao fantástico, ao exótico e ao
mitológico.12 Ainda assim, restaram textos que descreveram um Novo Mundo
com uma natureza exuberante e aborígines bondosos, narrativas submersas
em sonhos e figuras lendárias sedimentadas pelo imaginário medieval. E mais,
como não poderia deixar de ser, a produção literária, que adveio desse
período, construiu representações sobre os nativos, as riquezas naturais e as
terras, construções estas que trazem no seu conteúdo um comprometimento
com uma visão colonialista e etnocêntrica.
As Primeiras Viagens
12Os portugueses, por sua vez, estavam mais voltados para os fins práticos das rotas marítimas, não negando, entretanto, suas visões pragmáticas do mundo, buscavam cartas náuticas mais precisas, menos propensos à elaboração do fantástico, do simbólico.
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As primeiras viagens, que trouxeram para o Brasil seus primeiros
visitantes, foram marcadas pela incerteza. As notícias de terras distantes e de
povos desconhecidos estimulavam cada vez mais a curiosidade do europeu.
Os países envolvidos na expansão marítima e nas descobertas, no início
desse empreendimento, não possuíam um corpo científico organizado, que
possibilitasse a realização de estudos das terras descobertas. A colonização,
nesse período, era marcadamente de caráter predatório, o que dispensava
esse tipo de investimento por parte dos colonizadores. Além disso,
estabeleceu-se o regime de monopólio que garantia a esses países o domínio
exclusivo das terras descobertas.
Apesar desse quadro nada favorável à exploração de caráter científico,
nesse período, o Brasil não deixou de ser um centro de interesse tanto para
portugueses envolvidos na empresa colonizadora, como para navegadores,
invasores ou mesmo curiosos que utilizaram os portos brasileiros para se
abrigarem, praticarem o contrabando ou mesmo em busca de novas
descobertas.
Segundo Leite (1996), podemos até mesmo considerar de caráter
circunstancial as obras dos viajantes que estiveram no Brasil nos primeiros
séculos de nossa história, uma vez que Portugal mantinha sua Colônia
rigorosamente fechada às demais potências européias, e conseqüentemente
às explorações científicas. A política portuguesa se mostrou bastante relutante
em permitir a entrada de estrangeiros para fins de estudos, pesquisas ou
qualquer divulgação sobre sua Colônia que viesse a despertar ainda mais o
interesse das demais potências sobre suas terras.
As principais obras produzidas durante o período colonial e que retratam
nossa terra, foram escritas, em sua maioria, por portugueses ou rivais na
disputa colonial, como franceses e holandeses, ou então por missionários
principalmente por padres jesuítas, uma vez que os mesmos estavam
diretamente ligados ao processo de colonização. Podemos dizer então, que as
obras produzidas neste período têm em comum a característica de terem sido
elaboradas sob circunstâncias ocasionais, na maioria das vezes o aporte de
viajantes se deu por ocasião de contatos portuários em caso de naufrágio,
colonização, missões religiosas ou de invasões por disputas de territórios.
Dentro deste quadro, podemos citar alguns nomes mais reconhecidos pela
10
nossa historiografia: Hans Staden que devido ao naufrágio de sua embarcação
esteve em vários lugares do litoral brasileiro, e também no interior de nosso
território; dentre os que aqui vieram motivados pela empresa colonizadora
temos Pero Magalhães Gandavo; temos os missionários, sobretudo jesuítas,
talvez o grupo religioso mais expressivo para os estudos no campo da
educação, como é o caso de Fernão Cardim, José de Anchieta e Manoel da
Nóbrega; e devido às invasões e disputas pelo território brasileiro passaram por
diversas áreas de nosso território André Thevet, Jean de Léry, Claude
d’Abbeville, Georg Marcgrave, Ives d’Evreux, entre outros.
As viagens passaram por transformações impostas, principalmente,
pelas modificações nos meios de produção, ou melhor, dizendo, as viagens em
diferentes épocas apresentaram suas especificidades, sendo moldadas pelo
contexto que as cercavam.
Seguindo nesta direção, no Século das Luzes, as viagens ganham uma
racionalidade científica, um planejamento e uma crescente especialização
(Raminelli, 2000, p.28). Este tipo de viagem, que também se estendeu por todo
o século XIX, foi motivada por razões científicas, e foi realizado, na sua
maioria, por naturalistas,13 sem contudo descartar os comerciantes,
aventureiros, missionários, militares e outros. No século XVIII, exploradores
europeus perscrutaram os oceanos, atravessaram os continentes e
estabeleceram um novo mapa do mundo, com seus desenhos, suas coleções e
seus escritos instituindo um saber enciclopédico sobre o homem e a natureza.
Os naturalistas viajantes, longe de serem estudiosos isolados, estavam
ligados por uma formação comum, transmitida pelos enciclopedistas. Herdeiros
de uma tradição rousseauniana, para eles, o viajante não podia ser um simples
espectador, mas sim um observador atento da realidade, exercitando diante
dela a arte de pensar, desprendendo-se de seu mundo imaginário, para dirigir a
atenção ao verdadeiro útil. Para aqueles homens, a natureza não se limitava
aos reinos mineral, vegetal e animal, mas compreendia os astros, o clima, os
mares, o homem, a língua e seus costumes. Dá-se, assim, a extensão dos
métodos das ciências naturais ao estudo de fenômenos humanos e sociais,
13Podemos considerar a viagem de La Condomine, em 1735, como o marco inicial da exploração científica no continente americano, mesmo que em seu relato ainda persistam elementos do modelo de literatura de séculos anteriores.
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além do incremento da especialização e da profissionalização de técnicos e
cientistas.14 Outro aspecto que os relacionava era o fato de considerarem tanto
a arte quanto a ciência métodos de aquisição de conhecimento.
Encaminhadas, organizadas e financiadas pelos Estados e institutos
oficiais as circunavegações ganharam fôlego, em nome da ciência e eram
sustentadas por interesses econômicos e expansionistas.15
Novos modelos burgueses de subjetividade e uma nova fase territorial
do capitalismo, estimulada por fatores como a expansão do comércio costeiro
doméstico, rivalidades nacionais, a busca de matéria-prima para atender as
necessidades do crescimento industrial e a busca de mercados consumidores,
acompanharam e reforçaram as modificações acima apontadas.
Em suma, a literatura de viagem dos séculos XVI e XVII constitui
documentação preciosa calcada no imaginário da sociedade européia, desde o
fim do período medieval até o Renascimento, na história da descoberta do
Brasil e na fase inicial de sua colonização. Nesse período, marcado pela era
dos descobrimentos marítimos, ainda imperava largamente o gosto medieval
pelo maravilhoso, pelo exótico e pelo misterioso. O assombro e a excitação
causados pela descoberta do Novo Mundo expressam bem a realidade do
feito. O mundo abrira-se, transformando e colocando a questão da
autoconsciência européia. Estudiosos formulavam teorias e questões acerca da
natureza dos “selvagens” habitantes das novas terras. Os artistas defrontavam-
se com um campo fértil de imagens e temas. Os cartógrafos viram a
necessidade de refazer constantemente mapas para acolher as novas
informações que chegavam cada vez mais dos viajantes que se lançavam à
“aventura” e à “exploração” desse “admirável Novo Mundo”. Os monstros
marinhos e as lendas fantásticas, pouco a pouco, foram dando lugar a novas
massas continentais que apresentavam, ao Velho Mundo, sua natureza e seus
14 Na Europa, jardineiros e botânicos completam o ciclo da viagem, foram eles que organizam as imensas caixas de materiais coletados. Ao estabelecerem uma nomenclatura e classificação dos espécimes, impuseram uma ordem inteligível à natureza caótica, inserindo-a no seu “devido lugar”. Os Jardins Reais, posteriormente transformados em museus de História Natural, são a imagem da racionalização típica do quadro botânico, no qual a infinita variedade da natureza é domada, graças às pesquisas científicas e às descobertas das novas espécies e matérias-primas. Existe mesmo, neles, um lugar para as plantas “ainda por descobrir”: sonho de completar, um dia, as lacunas do inventário do planeta. 15As missões de Louis Bougainville, James Cook e La Pérouse são alguns exemplos de circunavegações. Para saber mais sobre as missões desses exploradores, consultar Lisboa, 1997.
12
habitantes. Enquanto as viagens do “Século das Luzes”, ou as chamadas
expedições científicas, se tornaram uma forma privilegiada de atividade
científica, com suas regras e protocolos, devendo os naturalistas estudar in
loco a natureza, fosse nos trópicos ou na Europa. Além disso, a Ilustração
conferia um sentido pragmático, utilitário, instrumental à ciência, visto que os
objetivos desta se dirigiam ao aproveitamento técnico da natureza pelo
homem.16
A educação na colônia na visão dos viajantes estrangeiros
Nas páginas dos livros de viagens podemos encontrar os mais diversos
temas tratados pelos viajantes que estiveram no Brasil desde o seu
descobrimento. O que aparece com maior freqüência nos relatos destes, como
não poderia deixar de ser, são elementos de nossa flora e fauna, exaltando o
exótico e ao mesmo tempo desconstruindo a idéia do fantástico e do
monstruoso cada vez que se aproximava mais das Ciências Naturais. Porém,
muitos outros aspectos foram também observados. Encontramos relatos sobre
a política, a economia, os hábitos, a religiosidade e as crenças, os hábitos
alimentares e as habitações em diferentes regiões do país.
A educação ou a falta dela também foi um fator observado e registrado
pelo olhar do estrangeiro. Vindos da Europa estes estrangeiros possuíam uma
cultura diferente da que ainda estava se formando no Brasil, o choque entre os
diferentes níveis culturais e do estado da educação aqui confrontados levaram
ao interesse pelo tema, daí as muitas informações sobre o estado da educação
e da cultura serem encontrados nos livros de viagens.
Nesses relatos podemos encontrar diversos fragmentos que nos trazem
os diferentes modos de olhar, as diversas visões sobre a educação no Brasil.
Porém, vale a pena chamar a atenção para o fato de que para qualquer estudo
que envolva questões referentes à educação no Brasil, entendida tanto como
um processo sistemático de transmissão da cultura e de conhecimentos como
16Ronaldo Raminelli inscreve a obra Viagem Philosophica, de Alexandre Rodrigues Ferreira, nesse projeto. Durante a administração colonial portuguesa, Alexandre Rodrigues Ferreira percorreu as províncias do norte entre 1783 e 1792, recebendo incentivo do governo português e chefiou a expedição que marcou o início das expedições às regiões desconhecidas do interior do país. (Raminelli, 2000, p. 44-46)
13
no sentido de polidez, de civilidade e sociabilidade, não podemos
desconsiderar a influência das condições inerentes ao regime colonial.
Escolher de forma criteriosa e abrangente de modo a não deixar nenhum
viajante de fora é algo impossível, portanto, procuramos apontar apenas alguns
viajantes mais (re)conhecidos que estiveram no Brasil durante nosso período
colonial. Uma escolha desse tipo é sem dúvida arbitrária levando a inevitável a
omissão de muitos viajantes que tem muito a contribuir com a historia da
educação brasileira, mas devida a amplitude do número de viajantes e de seus
escritos e da limitação deste trabalho isto se faz necessário. Aproveitando o
que diz Mindlin, “de fato o número de obras de ou sobre viajantes é tão grande
que mesmo se fosse para fazer apenas um resumo dos principais relatos, o
volume seria certamente excessivo” (MINDLIN, 1991, p. 34)
Estudar as contribuições, ou seja, os modos como os viajantes
estrangeiros olharam e retrataram o Brasil, como podemos perceber, é um
campo bastante extenso. Assim ao se propor uma exposição acerca da
temática, uma discussão quanto às contribuições, no nosso caso para a
história da educação brasileira, se faz necessário uma demarcação mais
precisa.
Um dos parâmetros adotados para delimitar o amplo campo de
investigação foi restringir a nomes que melhor exemplificassem cada um das
categorias que acima descrevemos, dos motivos que levaram estes viajantes a
aportarem em nosso território, ou seja, na condição de naufrago, de
colonizador, de missionários e de invasores, são eles: Hans Staden, Pero
Magalhães Gandavo, Fernão Cardim, José de Anchieta, Jean Lery e Calude
d’Abbeville. Além disso, limitamos o período a ser tratado para esta exposição,
restringindo-nos aos dois primeiros séculos de nossa história, século XVI e
XVII.17
17Podemos dizer que o primeiro a escrever sobre as coisas do Brasil foi Pero Vaz de Caminha, mesmo que sua cata somente tenha sido publicada em 1817, na Corografia brasílica de Ayres do Cazal. Esta demora, ou podemos até mesmo dizer, esta ocultação, é condizente com o sigilo português referente a sua mais rica colônia, ao mesmo tempo que contrasta com a visibilidade dada à América por outros conquistadores, como por exemplo as imagens sobre a América vinculadas no início do século XVI através das gravuras que acompanham as cartas de Américo Vespúcio, difundidas em forma de folhetins. Segundo o grande entendedor de viajantes e livros de viagens, José Mindlin, “o primeiro livro que menciona a viagem de Cabral, e que em forma de livro iniciou a série dos viajantes que mencionam o Brasil é o Paesi nuovamente ritrovati, coletânea de viagens publicada por Fracanzano da Montalbodo em 1507”. (Mindlin1991, p. 35)
14
Hans Staden
Hans Staden, esteve no Brasil duas vezes e sobreviveu ao ataque de
índios canibais. Podemos mesmo enquadrá-lo como uma das precursoras da
literatura de viagem sobre o Brasil ao empreender viagens pelo interior do
Brasil e retornar à Europa com histórias impressionantes sobre o que havia
observado.18
No ano de 1547, o alemão nascido em Hesse realizou sua primeira
viagem ao Brasil, em busca de meios para ganhar a vida e de aventuras. Na
sua segunda visita ao Brasil, em 1550, em conseqüência de um naufrágio,
enquanto lutava ao lado dos portugueses, acabou por ser aprisionado pelos
tupinambás, no litoral da capitania de São Vicente (atual São Paulo). Deste
infortúnio e aventura surgiu sua obra, Viagem ao Brasil, publicada em 1557,
contendo relatos e ilustrações das mais espantosas para os europeus ao
descrever as atrocidades, os horrores e as curiosidades dos rituais canibais.
Num desabafo Hans Staden escreve:
“Mas minha vida entre eles esteve bem longe de um simples aprendizado de costumes pitorescos e da Natureza local. (...) meus padecimentos foram tantos que não os poderia desejar a nenhum outro homem, na minha condição de civilizado e cristão.” (Staden, p. 61)
Quanto ao conteúdo presente em seus relatos referente à educação, no
seu sentido lato, temos sua impressão quanto a organização social dos
indígenas. Assim escreve Staden em sua obra:
“Mais espantoso, talvez, do que suas crenças, é sua estranha
organização social. Como algo que só pode ter existido no Paraíso, não há entre eles leis fixas, nem governo de espécie alguma.” (Staden, p. 56) Ao se referir à educação, mais especificamente, apresenta como se
dava a educação de meninos entre os gentílicos:
18Outro viajante importante para o conhecimento das coisas do Brasil, do século XVI, é Ulrico Schmidel, cujo relato foi publicado pela primeira vez em 1567, juntamente com o texto de Hans Staden, na coletânea de viagens publicada por Sebastião Franck.
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“Todo menino é educado desde cedo para a guerra, a caça e a
pesca. Ao chegar da floresta, entrega tudo o que conseguir pegar à mãe, que prepara o alimento e reparte entre todos”. (Staden, p. 60)
Pero Magalhães Gandavo
Pero Magalhães Gandavo movido pela empresa colonizadora, pela
administração e exploração da terra para a Metrópole viajou para o Brasil e
desta viagem surgiu sua obra intitulada História da Província de Santa Cruz a
que vulgarmente chamamos de Brasil, publicada em 1576.
Nesta obra, apresenta suas idéias e seu modo de ver os indígenas
locais diferentemente da posição dos jesuítas, que se pronunciam sempre
denunciando a violência do processo de colonização português, levando ao
extermínio e a exploração do índio. Gandavo vê como uma contingência
natural da colonização o modo como se lidava com “os selvagens”, pois os
mesmos recusavam submeterem-se à escravidão. A questão do índio é vista
por ele como um obstáculo ao processo de colonização e a conseqüente
produção e enriquecimento da Metrópole. Gandavo passa a imagem de um
Brasil onde os portugueses que para cá viessem poderiam se enriquecer e
ascender socialmente, usando a mão-de-obra escrava indígena, não cogitando
nunca a possibilidade do próprio colonizador português trabalhar.
Referente ao que mais nos interessa neste trabalho, Gandavo faz uma
longa descrição sobre o modo de vida dos indígenas e em seu relato podemos
perceber como a educação foi observada e registrada:
“Pela maior parte sam bem dispostos, rijos e de bôa estatura; gente mui esforçada, e que estima pouco morrer, temeraria na guerra, e de muito pouco consideraçam: sam desagradecidos em gran maneira, e mui deshumanos e crueis, inclinados a pelejar, e vingativos por extremo. Vivem todos mui descançados sem terem outros pensamentos senam de comer, beber, e matar gente, e por isso engordam muito, mas com qualquer desgosto pelo conseguinte tornam a emmagrecer, e muitas vezes pode delles tanto a imaginaçam que se algum deseja a morte, ou alguem lhe mete em cabeça que ha de morrer tal dia ou tal noite nam passa daquelle termo que nam morra.” (Gandavo, p. 134)
“A lingoa de que usam, toda pela costa, he huma: ainda que em certos vocabulos differe n'algumas partes; mas nam de maneira que
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se deixem huns aos outros de entender: e isto até altura de vinte e sete gràos, que dahi por diante ha outra gentilidade, de que nós nam temos tanta noticia, que falam já outra lingoa differente. Esta de que trato, que he ageral pela costa, he mui branda, e a qualquer nação facil de tomar. Alguns vocabulos ha nella de que nam usam senam as femeas, e outros que nam servem senam pera os machos: carece de tres letras, convem a saber, nam se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna despanto porque assi nam têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem alem disto conta, nem peso, nem medido.” (Gandavo, p. 98)
“Esta gente nam tem entre si nenhum Rei, nem outro genero de justiça, senam um principal em cada aldêa, que he como capitam, ao qual obedecem por vontade, e nam por força. Quando este morre fica seu filho no mesmo logar por sucessam, e nam serve doutra cousa senam de ir com elles á guerra, e aconselha-los como se hão de haver na peleja; mas nam castiga erros nem manda sobre elles cousa alguma contra suas vontades.” (Gandavo, p. 70)
“Todos criam seus filhos viciosamente, sem nenhuma maneira
de castigo, e mamam até a edade de sete, oito annos, se as mães té então não acertam de parir outros que os tirem das vezes. Nam ha entre elles nenhumas boas artes a que se dêm, nem se ocupam noutro exercicio senam em grangear com seus pais o que hão de comer, debaixo de cujo amparo estão agazalhados até que cada hum por si he capaz de buscar sua vida sem mais esperarem heranças delles nem legitimas de que enriqueçam, somente lhe pagam com aquella criação em que a natureza foi universal a todos os outros animaes que nam participam de razão.
Mas a vida que buscam e grangearia de que todos vivem, he á custa de pouco trabalho, e muito mais descançada que a nossa: porque nam possuem nenhuma fazenda, nem procuram acquiri-la como os outros homens, e assi vivem livres de toda a cobica e desejo desordenado de riquezas, de que as outras nações nam carecem; e tanto que ouro nem prata nem pedras preciosas têm entre elles nenhuma valia, nem pera seu uso têm necessidade de nenhuma cousa destas, nem doutras semelhantes.
Desta maneira vivem todos estes Indios sem mais terem outras fazendas entre si, nem grangerias em que se desvelem, nem tão pouco estados nem opiniões de honra, nem pompas pera que as hajam mister: porque todos, como digo, sam iguaes e em tudo tam conformes nas condições, que ainda nesta parte vivem justamente, e conforme à lei da natureza”. (Gandavo, p 123)
Fernão Cardim
O padre Fernão Cardim escreveu um tratado sobre o clima, Do Clima e
Terra do Brasil (1625). Fernão Cardim visitador, reitor de colégio, viveu no
17
Brasil por 42 anos, de maneira intermitente, substituiu José de Anchieta. Na
sua obra Tratados da Terra e gente do Brasil, publicada em Lisboa pela
Imprensa Nacional, em 1847. Esteve no Brasil a partir de 1583, na Bahia de
Todos os Santos.
Sua obra é constituída de relatos e cartas de grande valia. Nela, o
escrito mais significativo é a Narrativa epistolar de uma viagem e missão
jesuítica pela Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, desde o ano de 1583 ao de
1590.
Ao visitar as aldeias de São João, santo Antônio e do Espírito Santo
escreve:
“em todas estas três aldeias há escola d eler e escrever, aonde
os padres ensinam os meninos índios, e alguns habeis tambem ensinam a contar, cantar e tanger; tudo tomam bem, e há já muitos que tangem frautas, violas, cravos, e officiam missas em canto d’orgão, cousas que os pais estimam muito. Estes meninos fallam portuguez, cantam à noite a doutrinar pelas ruas, e encomendam a almas do purgatório.” (Cardim, p. 155) Ao passar pela Bahia de Todos os Santos, descreve o colégio lá
existente19:
“os padres têm aqui collegio novo qasi acabado; é uma quadra formosa com boa capella, livraria, e alguns trinta cubiculos, os mais delles têm as janelas para o mar. O edifício é todo de pedra e cal de ostra, que é tao boa com a de pedra de Portugal. (...) das janellas descobrimos grande parte da Bahia, e vemos os cardumes de peixes e baleas andar saltando n’agua, os navios estarem tao perto que quasi ficam à falla. “ (Cardim, p. 144)
José de Anchieta
Podemos deixar de lado as cartas dos missionários, principalmente
padres jesuítas, já que nosso objetivo é estudar sobre como estes viajantes
viam a educação no período colonial, período este cuja educação estava nas
mãos da igreja, mais precisamente a cargo dos jesuítas.20
19O colégio da Bahia foi o segundo estabelecido no Brasil, sendo o primeiro o de São Paulo de Piratininga. O ano da sua fundação foi o de 1556, quando o padre Manuel da Nobrega regressava do sul. 20Também se encontram cartas muito informativas de Nóbrega, Anchieta e vários outros missionários nos Diversi avisi e Nuovi avisi, publicados em Roma em 1558 e 1559, com referências à Bahia, ao Espírito Santo e São Paulo.” (Midlin, 1991, p.38)
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Quanto à especificidade e à precariedade em se trabalhar num espaço
tão diferente da Europa, Anchieta descreve:
“em tantas estreitezas nos achamos na verdade colocados que é muitas vezes necessário aos Irmãos explicarem a lição de gramática no campo, e como ordinariamente o frio nos incomoda da parte de fora, e, dentro da casa, o fumo, (...) já os meninos que freqüentam a escola, cujo ânimo não se abala expostos ao vento e ao frio, agora também, aquentando-se ao calor da fogueira, em paupérima e antiguíssima, porém, decerto, feliz cabanazinha, vemos que se aplicam à lição.” (Anchieta, p. 53)
“temos uma grande escola de meninos índios, bem instruídos a leitura, escrita e em bons costumes, os quais abominam os usos de seus progenitores. São eles a consolação nossa, bem que seus pais já pareçam mui diferentes nos costumes dos de outras terras, pois que não matam, não comem os inimigos, nem bebem da maneira por que dantes faziam. “ (Anchieta, p. 89)
Sua narrativa nos informa sobre os colégios e residências da Companhia
na colônia, mais especificamente na província da Baia, no ano de 1584.
“Residem neste colégio 62, incluindo aqueles que moram em três aldeias de índios, dos quais 31 são sacerdotes; 4 professores de 4 votos, coadjutores espirituais: 8; mestres: 5, um de questões de Teologia de Consciência, outros em Filosofia, dois de latinidade; o sexto finalmente de meninos”. (Anchieta, p. 403)
Atendendo aos filhos dos colonizadores, no Colégio de Pernambuco:
“(...) dois ou três estudantes e as vezes nenhum; uma classe de gramática que ouvem até 12 estudantes de fora, e também os casos e gramática estudam alguns de casa; escola de ler e escrever, que terá até 40 rapazes, filhos de portugueses.” (Anchieta, p. 419-420)
Sobre o atendimento à educação no Rio de Janeiro, Anchieta escreve:
“as ocupações dos nossos com os próximos são: uma lição de casos de consciência que ouvem de ordinário um ou dois estudantes de fora e às vezes nenhum, mas sempre se lê aos de casa; uma classe de gramática onde estudam dez ou doze meninos e alguns de casa, escola de ler e escrever que tem cerca de trinta meninos filhos de portugueses. “ (Anchieta, p. 429)
19
Mais uma vez sobre a Baia escreve:
“As ocupações dos nossos com os próximos são: uma lição de teologia que ouvem dois ou três estudantes de fora, outra de casos de consciência que ouvem outros tantos e alguns de casa, um curso de artes que ouvem dez de fora e alguns de casa, escola de ler, escrever e contar que tem até 70 rapazes filhos de portugueses, duas classes de humanidades, na primeira apreendem 30 e na segunda quinze escolares de fora e alguns de casa.
Os estudantes nesta terra, além de serem poucos, também sabem pouco, por falta dos engenhos e não estudarem com cuidado, nem a terra o dá de si por ser relaxado e melancólica, e tudo se leva em festas, cantar e folgar. Porém. Já há alguns casuístas que são vigários, e alguns artistas mestres nelas, e dois ou três teólogos pregadores e cônegos, e vigários das paróquias.” (Anchieta, p. 423)
Jean de Léry
No contexto da ocupação francesa21, dois missionários religiosos
realizaram importantes trabalhos geográficos e cartográficos sobre o Brasil,
Jean de Léry e André Thevet. Ambos vieram acompanhando Nicolas
Villegaignon por ocasião da ocupação do Rio de Janeiro, durante os anos de
1555 a 1559, quando o mesmo tentou desenvolver o projeto de estabelecer no
Rio de Janeiro a 'França Antártica', uma Colônia que serviria à exploração
mercantil e abrigaria os protestantes perseguidos na França.22
O padre franciscano André Thevet, que veio para o Brasil em 1555 e
publicou o livro Les singularitez de la France Antarctique, em 1557, em Paris, e
em 1575 publicou Cosmographie universelle, apresentado in folio, contendo
importantes informações sobre o Brasil. Escreveu Os Tratados Cosmografia
(1575) e Singularidades da França Antártica (1557), porém não nos deteremos
na obra deste viajante estrangeiro, nos limitando a apresentar as impressões e
registros de seu companheiro Jean de Léry.
Léry chegou ao Brasil em 1557 e de sua viagem surgiram duas 21Foi na segunda metade do século XVI que a França tentou conquistar uma parcela do novo território português na América do Sul, ocupando em 1557 a atual baía de Guanabara. Com isso forçou Portugal a criar um novo pólo de defesa e ocupação do país, iniciados com um ataque naval em 1560, no qual foi destruído o forte de Coligny, com a fundação da cidade do Rio de Janeiro em 1565 e com a definitiva expulsão dos franceses em 1567. 22André Thevet e Jean de Léry foram os responsáveis pelas primeiras referências sobre o pau-brasil em livro.
20
publicações. Escreveu pela primeira vez sobre o Brasil na Histoire memorable
de la ville de Sancerre, em 1574, mas sua obra mais conhecida é Histoire d’un
Voyage em la terre du Bresil, autrement nommée Amérique, publicada em
1578. Este livro apresenta uma publicação traduzida para o português de 1926,
intitulada História de uma Viagem à Terra do Brasil. 23
Nesta obra que pode ser considerada também um outro registro
fundamental sobre os canibais, Jean de Léry - além de desenhar a carta do
litoral do Rio de Janeiro (França Antártica) - faz referência às desventuras da
colonização francesa na baía da Guanabara, onde se projetava construir um
refúgio para os huguenotes franceses e documenta a incompreensão do nativo
em relação à necessidade de acumulação de bens por parte dos
colonizadores.
No campo da educação, relatou sobre a condição de vida do povo dos
locais por onde passou.
“Embora a sentença de Cicero, a saber, que não existe povo tam bruto, nem nação tam barbara e selvagem, que não tenha idéa da existencia de alguma divindade, seja aceita e recebida por todos como maxima indubitavel todavia quando atentamente considero nos nossos Tupinambás da America, vejo-me algo embaraçado na aplicação d’essa maxima a similhante gente.” (Léry, p. 97)
“Ignorantes da creação do mundo, não distingem os dias por denominações, nen fazem diferença entre uns e outros, bem como não contam semana, mezes, nem annos; apenas calculam o assinalam o tempo por luas.”(Léry, p. 112)
“Quanto á escritura, quer santa quer profana, não só desconhecem o que ela seja, mas não possuem caracteres para significar couza alguma; o que ainda maior importancia tem. Quando xeguei ao seo paiz, e comecei a aprender a sua linguagem, escrevia algumas sentenças, e depois as lia em prezença d’eles. Julgavam ser isso feitiçaria, e diziam uns aos outros: - Não é maravilha, que quem ontem não sabia dizer uma só palavra em nosso idioma, seja agora entendido por nós em virtude d’esse papel, que tem, e o faz falar assim?” (Léry, p. 99)
23A obra de Jean de Léry, publicada em 1578, foi escrita em francês do antigo estilo; daí vem, que está em linguagem antiquada, cheia de termos obsoletos, de transposições repetidas, e períodos longos.
21
Claude d'Abberville
No início do século XVII, os trabalhos de dois padres capuchinhos
franceses, que percorreram a província do Maranhão, marcaram os estudos
geográficos na porção norte do país. Claude d'Abberville com sua História dos
Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas (1614)24 e
Ives d’Evreux, desembarcaram no Brasil em decorrência da permanência dos
franceses no Maranhão.
Durante o ano de 1612, o missionário francês Claude d'Abbeville passou
quatro meses entre os tupinambás do Maranhão, perto da linha do Equador.
Seu livro "Histoire de la Mission de Pères Capucins en l'Isle de Maragnan et
terres circonvoisins", publicado em Paris também em 1614, é considerado uma
das mais importantes fontes da etnografia dos tupis. Seus relatos fornecem
testemunhos da prosperidade da colônia e contêm inúmeros detalhes sobre os
recursos naturais da região e sobre o bom entendimento com os índios, além
das múltiplas conversões e das milagrosas curas efetuadas.
Segundo d'Abbeville, "os tupinambás atribuem à Lua o fluxo e o refluxo
do mar e distinguem as duas marés cheias que se verificam na lua cheia e na
lua nova ou poucos dias depois". Assim, mesmo antes dos europeus, os
tupinambás já sabiam que perto dos dias de lua nova e de lua cheia, as marés
altas são mais altas e as marés baixas são mais reduzidas do que nos outros
dias do mês. O conhecimento da periodicidade das marés antes dos europeus
pode ser explicado em virtude da relação entre as marés e as fases da Lua ser
melhor observada entre os trópicos, região em que se localiza a maior parte do
Brasil.
Claude d'Abbeville apresenta em sua obra vários relatos contando sobre
a aprendizagem da doutrina em tupi pelos índios, por exemplo, discorre sobre o
filho de um dos chefes indígenas do Maranhão:
“tinha tanto desejo de aprender que, com seu belo espírito (ou melhor, com a graça divina), [que] foi o primeiro a saber e aprender em pouco tempo a Oração Dominical, a Saudação Angélica, o Símbolo dos Apóstolos, os mandamentos de Deus e da Igreja e os
24Yves d'Evreux deixou a continuação do trabalho de d'Abberville, intitulada Suíte da História das Memoráveis Aventuras no Maranhão entre 1613-1614, publicada em 1615.
22
Sete Sacramentos, tudo na sua língua indígena […]. (Abbeville, p. 79).
Considerações finais
Expomos apenas alguns dos muitos fragmentos encontrados nos livros
de viagens que tratam da situação da educação no Brasil a fim de ilustrar o que
se pode encontrar em tais fontes. Não caberiam aqui muitos mais fragmentos
encontrados sobre educação, pois mais citações alongariam por demais este
trabalho.
Percebemos que estes viajantes, por um lado, procuraram privilegiar,
nas suas narrativas, o “novo”, o “inusitado”, para os de sua terra, e por outro,
demonstravam uma certa preocupação com a variedade temática de seus
escritos. A qualquer direção que tenham lançado seus olhares, naturalmente
tiveram disposição para entender o país visitado, a partir de seus próprios
referenciais.
O que consideramos como válido nos escritos dos viajantes
estrangeiros, sejam eles náufragos, colonizadores, missionários ou invasores
são as idéias neles contidas, que por sua vez refletem a educação e/ou
instrução numa determinada época, em diferentes regiões do Brasil. E mais,
consideramos que os trechos apresentados acima possibilitam uma mostra de
como tais fontes podem ser úteis para pesquisas na área da História da
Educação, bem como nas demais áreas de estudos sobre educação.
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