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Agatha Christie
Um crime no
Expresso do Oriente
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ÍNDICE
PARTE I Os Factos
I Um passageiro importante no Expresso Tauro ........11II O Hotel Tokatlian ....................................................................................................................23
III Poirot recusa um caso ......................................................................................................33IV Um grito na noite .......................................................................................................................43V O crime .............................................................................................................................................................48
VI Uma mulher? ........................................................................................................................................62VII O corpo ............................................................................................................................................................72
VIII O caso do rapto Armstrong ................................................................................85
PARTE II Depoimentos
I O depoimento do revisor .........................................................................................93II O depoimento do secretário .........................................................................102III O depoimento do criado ......................................................................................108IV O depoimento da senhora americana .....................................115V O depoimento da senhora sueca .........................................................125
VI O depoimento da princesa russa ........................................................132VII O depoimento do conde e da condessa
Andrenyi ...................................................................................................................................................141VIII O depoimento do coronel Arbuthnot .....................................148IX O depoimento de Mr. Hardman .........................................................158
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X O depoimento do italiano .............................................................................167XI depoimento de Miss Debenham ......................................................172XII O depoimento da dama de companhia alemã ..178XIII Síntese dos depoimentos dos passageiros.....................186XIV A prova da arma ................................................................................................................195XV A prova das bagagens dos passageiros .............................204
PARTE III Hercule Poirot Senta-se e Pensa
I Quem de entre eles? ........................................................................................................225II Dez perguntas ...............................................................................................................................236III Certos aspetos sugestivos ...................................................................................243IV A mancha de gordura num passaporte
húngaro .....................................................................................................................................................254V O nome de batismo da Princesa Dragomiroff .....262
VI Um segundo interrogatório ao coronel Arbuthnot .............................................................................................................................................268
VII A identidade de Mary Debenham ....................................................272VIII Mais revelações surpreendentes ........................................................277IX Poirot propõe duas soluções ........................................................................285
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PARTE I
OS FACTOS
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Capítulo 1
UM PASSAGEIRO IMPORTANTE
NO EXPRESSO TAURO
Eram cinco horas de uma manhã de inverno na Síria. O comboio, grandiosamente designado nos guias
ferroviários como Expresso Tauro, estendia-se ao longo da plataforma de Alepo. Consistia numa carruagem--cozinha e restaurante, numa carruagem-cama e em duas carruagens para os passageiros locais.
Um jovem tenente francês de uniforme resplendente estava junto do estribo que dava para a carruagem-cama a conversar com um homenzinho magro agasalhado até às orelhas e do qual se via apenas a pontinha vermelha do nariz e as arestas de um bigode revirado para cima.
Estava um frio de enregelar, e esta obrigação de acompanhar à estação um distinto estrangeiro não tinha nada de invejável, mas o tenente Dubosc cumpria a sua parte corajosamente. Saíam-lhe dos lábios expressões amáveis num francês educado. Não que ele soubesse o que se passava. Houve rumores, claro, como havia
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sempre em casos assim. O temperamento do general – do seu general – piorara cada vez mais. E depois apare-cera este estrangeiro belga – diretamente de Inglaterra, segundo o que se dizia. Foi uma semana... uma semana de inusitada tensão. E depois aconteceram certas coisas. Um ofi cial notável suicidara-se, outro demitira-se – os rostos ansiosos perderam subitamente a ansiedade, cer-tas precauções militares afrouxaram. E o general – o general a quem o tenente Dubosc reportava – pareceu rejuvenescer dez anos.
Dubosc chegara mesmo a ouvir acidentalmente uma conversa entre ele e o belga: «Salvou-nos, mon cher», dissera o general com emoção, o grande bigode branco tremendo-lhe enquanto falava. «Salvou a honra do exército francês – evitou uma grande carnifi cina! Como posso agradecer-lhe por ter acedido ao meu pedido? Vir de tão longe...»
O estrangeiro (que dava pelo nome de M. Hercule Poirot) fornecera então uma resposta oportuna que incluía a frase: «E eu esqueceria por acaso que já me salvou a vida uma vez?» E o general dera também uma resposta oportuna, negando qualquer mérito por esse serviço passado, e, por entre mais menções à França, à Bélgica, à glória, à honra e coisas afi ns, tinham-se abra-çado efusivamente e a conversa terminara.
O tenente Dubosc continuava ainda às escuras sobre o que é que se tinha passado, só sabia que o tinham encarregado de acompanhar M. Poirot ao Expresso Tauro, tarefa que estava a desempenhar com todo o zelo e entusiasmo próprios de um ofi cial jovem com uma auspiciosa carreira diante de si.
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– Hoje é domingo – disse o tenente Dubosc. – Ama-nhã à tarde, já estará em Istambul.
Não era a primeira vez que fazia aquela observação. As conversações numa plataforma de embarque, antes de o comboio partir, tendem a ser algo repetitivas.
– Assim é.– E, segundo creio, pretende demorar-se por lá
alguns dias?– Mais oui. Istambul, uma cidade que nunca visitei.
Seria uma pena passar apenas por lá, comme ça. – E estalou os dedos de modo expressivo. – Não há pressas, vou demorar-me por lá uns dias, como turista.
– Santa Sofi a, uma maravilha – disse o tenente Dubosc, que nunca vira esse templo.
– Um vento frio silvou pela plataforma. Ambos tiri-taram. O tenente Dubosc conseguiu deitar um olhar sub-reptício ao relógio. Cinco para as cinco só faltavam mais cinco minutos!
Pensando que o outro notara aquele olhar sub-rep-tício, apressou-se a entabular conversa novamente.
– Pouca gente viaja nesta época do ano – disse, olhando de relance para as janelas da carruagem-cama acima deles.
– Assim é – concordou Poirot.– Esperemos que o Tauro não fi que preso na neve!– Pode acontecer isso?– Já aconteceu, já. Não este ano, pelo menos até
agora.– Esperemos então que não – disse M. Poirot. – As
previsões meteorológicas para a Europa são más.– Muito más. Nos Balcãs há muita neve.
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– Na Alemanha também, pelo que ouvi dizer.– Eh bien! – disse o tenente Dubosc, apressadamente,
quando parecia que ia haver nova pausa. – Amanhã à tarde, às sete e quarenta, estará em Constantinopla.
– Sim – disse Poirot, e prosseguiu com algum deses-pero: – Santa Sofi a, ouvi dizer que é maravilhosa.
– Magnífi ca, segundo creio.A cortina de um dos compartimentos da carrua-
gem-cama acima deles foi levantada e uma mulher jovem olhou para fora.
Mary Debenham tinha dormido pouco desde que deixara Bagdade, na quinta-feira anterior. Não conse-guira dormir bem, nem no comboio para Kirkuk, nem na hospedaria em Mossul, nem na noite anterior no comboio. E agora, esgotada por ter permanecido acor-dada na cama naquele ar quente e pesado do comparti-mento sobreaquecido, decidiu levantar-se e espreitar lá para fora.
Devia estar em Alepo. Nada digno de se ver, claro. Apenas uma comprida plataforma pobremente ilumi-nada e o ruído de furiosas altercações em árabe algures por ali. Dois homens estavam a falar em francês por baixo da sua janela. Um era ofi cial, o outro um homen-zinho com uns bigodes enormes. Sorriu tenuemente. Nunca vira ninguém assim tão agasalhado. Devia estar muito frio lá fora. Era por isso que o calor no comboio era tão terrível. Tentou forçar a janela um pouco mais para baixo, mas em vão.
O revisor da carruagem-cama acercara-se dos dois homens. Disse que o comboio estava prestes a partir; que era melhor Monsieur embarcar. O homenzinho tirou
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o chapéu. Mas que cabeça em forma de ovo ele tinha! Apesar das suas preocupações, Mary Debenham sorriu. Que homenzinho de aspeto mais ridículo! O género de homenzinho que ninguém levaria a sério.
O tenente Dubosc estava a proferir o seu discurso de despedida. Tinha-o preparado de antemão e guarda-ra-o até ao último minuto. Era um discurso admirável e cortês.
Para não fi car atrás, M. Poirot respondeu-lhe na mesma moeda.
– En voiture, Monsieur – disse o revisor.M. Poirot subiu a bordo do comboio com um ar
de infi nita relutância. O revisor subiu atrás dele. Poi-rot acenou com a mão. O tenente Dubosc correspondeu à saudação. O comboio avançou lentamente com um enorme solavanco.
– Enfi n! – murmurou M. Hercule Poirot.– Brrrrr – disse o tenente Dubosc, tomando plena
consciência de como se sentia enregelado...
– Voilà, Monsieur – disse o revisor a Poirot, mos-trando-lhe com um gesto dramático a beleza do com-partimento e a perfeita arrumação da bagagem. – A pequena maleta de Monsieur, coloquei-a aqui.
A mão estendida era sugestiva. Hercule Poirot depo-sitou-lhe na mão uma nota dobrada.
– Merci, Monsieur. – O revisor mostrou-se ativo e efi ciente. – Tenho aqui os bilhetes de Monsieur. Preci-sava também do seu passaporte, por favor. Monsieur interrompe a sua viagem em Istambul, segundo creio?
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M. Poirot assentiu.– Não há muita gente a viajar, imagino? – disse ele.– Não, Monsieur. Tenho apenas mais dois passagei-
ros, ambos ingleses. Um coronel da Índia e uma jovem senhora inglesa de Bagdade. Monsieur deseja alguma coisa?
Monsieur pediu uma garrafa de Perrier.Cinco da manhã é uma hora estranha para se embar-
car num comboio. Ainda faltavam duas horas para o dia nascer. Consciente de uma noite mal dormida e de uma delicada missão cumprida com êxito, M. Poirot encolheu-se num canto e adormeceu.
Quando acordou já passava das nove e meia e diri-giu-se energicamente para a carruagem-restaurante à procura de café quente.
Nesse momento só estava lá uma pessoa, obviamente a jovem senhora inglesa que o revisor mencionara. Era alta, esguia e morena – talvez vinte e oito anos. Mos-trava uma atitude segura e fria no modo como tomava o pequeno-almoço e chamava o empregado para lhe trazer mais café, o que revelava um conhecimento do mundo e de quem estava habituado a viajar. Vestia roupa própria para viajar de um tecido escuro e leve, visivelmente ade-quado à atmosfera aquecida do comboio.
Sem nada melhor para fazer, M. Hercule Poirot dis-pôs-se a passar o tempo a observá-la sem aparentemente estar a fazê-lo.
Segundo julgava, era o género de jovem que sabia tomar conta de si com perfeito à-vontade para onde quer que fosse. Havia nela elegância e segurança. Gostou bastante daquela severa regularidade das feições e da
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delicada palidez da pele. Gostou do seu cabelo escuro, brilhante e ondulado, e dos olhos, frios, impessoais e acinzentados. Mas era, concluiu, demasiado altiva para ser aquilo a que chamava uma jolie femme.
Outra pessoa entrou então na carruagem-restau-rante. Um homem alto, entre os quarenta e os cinquenta anos, magro, pele morena, cabelo ligeiramente grisalho nas fontes.
O coronel da Índia, disse Poirot para si próprio. O recém-chegado fez uma ligeira vénia à jovem.– Bom dia, Miss Debenham.– Bom dia, coronel Arbuthnot.O coronel tinha a mão pousada na cadeira em frente
à da jovem.– Permite-me? – perguntou.– Certamente. Sente-se.– Bem, como sabe, o pequeno-almoço nem sempre é
uma refeição para conversas.– Espero bem que não. Mas eu não mordo. O coronel sentou-se.– Rapaz! – chamou ele com modos perentórios. Pediu ovos e café.Pousou os olhos por um momento em Hercule Poi-
rot, mas desviou-os logo com indiferença. Interpretando corretamente a mentalidade inglesa, Poirot sabia que ele dissera para si mesmo: «O raio de um estrangeiro qual-quer»
Fiéis à sua nacionalidade, os dois ingleses não eram muito conversadores. Trocaram uns breves comentários e pouco depois a rapariga levantou-se e voltou para o seu compartimento.
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Partilharam novamente a mesa ao almoço, e de novo ambos ignoraram por completo o terceiro passageiro. A conversa foi mais animada do que ao pequeno--almoço. O coronel Arbuthnot falou do Punjab e oca-sionalmente fazia algumas perguntas sobre Bagdade, depreendendo-se que ela tinha desempenhado um cargo de precetora. No decurso da conversa descobriram alguns amigos comuns, o que teve o efeito imediato de os tornar mais amigáveis e menos rígidos. Falaram então do velho Tommy Fulano e Jerry Sicrano. O coro-nel perguntou-lhe se ia diretamente para Inglaterra ou se se demoraria em Istambul.
– Não, vou diretamente.– E não tem pena?– Fiz este percurso há dois anos e passei então três
dias em Istambul.– Oh, compreendo. Bem, devo dizer que fi co con-
tente por seguir diretamente, pois o mesmo acontece comigo.
Fez uma espécie de pequena vénia desajeitada, corando um pouco.
É suscetível o nosso coronel, pensou Hercule Poirot, algo divertido. Viajar de comboio é tão perigoso como uma viagem por mar.
Miss Debenham disse, impassível, que isso seria muito agradável. Mas a sua atitude era ligeiramente reservada.
Poirot reparou que o coronel a acompanhou ao compartimento. Mais tarde atravessavam o magnífi co cenário do Tauro. A rapariga deu subitamente um sus-piro quando estavam no corredor ao lado um do outro
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a observarem os Portões da Cilícia lá em baixo. Poirot estava perto deles e ouviu-a murmurar:
– É tão bonito! Quem me dera... quem me dera...– Sim?– Quem me dera poder desfrutar disto!Arbuthnot não disse nada. A linha quadrada do maxi-
lar pareceu tornar-se um pouco mais austera e severa.– Deus sabe como eu gostaria que estivesse fora de
tudo isto – disse ele.– Cale-se, por favor. Cale-se.– Oh!, não há problema. – Lançou um olhar ligei-
ramente aborrecido na direção de Poirot. E prosseguiu: – Mas não me agrada a ideia de a ver como precetora, sempre às ordens de mães tiranas e dos seus fedelhos cansativos.
Ela riu com uma entoação que sugeria alguma perda de controlo.
– Oh!, não deve pensar assim. A precetora oprimida não passa de um mito bastante gasto. Asseguro-o de que os pais é que têm medo de serem maltratados por mim.
Não disseram mais nada. Arbuthnot sentia-se talvez envergonhado da sua explosão de sentimentos.
Mas que comediazinha mais estranha observo eu daqui, disse Poirot para si próprio, pensativo.
Iria lembrar-se posteriormente daquele pensamento.Chegaram a Konia nessa noite, cerca das onze e
meia. Os dois ingleses saíram para distender as pernas, caminhando para cá e para lá na plataforma cheia de neve.
M. Poirot sentia-se feliz por estar a observar a ati-vidade fervilhante da estação através de uma vidraça
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fechada. No entanto, cerca de dez minutos depois, resolveu que uma lufada de ar fresco não seria afi nal má ideia. Fez preparativos cuidadosos, embrulhando-se em vários casacos e abafos e enfi ando as botas impecáveis em galochas. Assim ataviado, desceu cautelosamente para a plataforma e começou a percorrê-la. Caminhou para lá da locomotiva.
Foram as vozes que lhe chamaram a atenção para os dois vultos indistintos na sombra de um vagão de mercadorias. Arbuthnot estava a dizer:
– Mary...A rapariga interrompeu-o.– Agora não. Agora não. Quando tudo tiver pas-
sado. Quando tivermos deixado isto para trás... e então...M. Poirot afastou-se discretamente, pensativo.Quase não teria reconhecido a voz fria e segura de
Miss Debenham. Curioso, disse para consigo.No dia seguinte interrogou-se se os dois não teriam
talvez discutido. Falavam pouco um com o outro. A rapariga pareceu-lhe ansiosa. Tinha olheiras.
Eram cerca das duas e meia da tarde quando o com-boio se deteve. As cabeças espreitaram para fora das janelas. Um pequeno grupo de homens amontoava-se junto da linha, a olhar e a apontar para algo debaixo da carruagem-restaurante.
Poirot debruçou-se e falou para o revisor que pas-sava todo apressado.
O homem respondeu e Poirot recuou, e ao voltar-se quase colidiu com Mary Debenham, que estava mesmo atrás dele.
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– O que é que aconteceu? – perguntou ela em fran-cês e quase sem fôlego. – Por que é que parámos?
– Não é nada, Mademoiselle. Foi algo que se incen-diou debaixo da carruagem-restaurante. Nada de grave. Já apagaram o fogo. Estão agora a reparar os estragos. Não há qualquer perigo, asseguro-lhe.
Ela esboçou um pequeno gesto abrupto, como se a ideia de perigo fosse algo completamente sem impor-tância.
– Sim, sim, compreendo. Mas o tempo!– O tempo?– Sim, isto vai atrasar-nos.– É possível... sim – concordou Poirot.– Mas não nos podemos dar ao luxo de atrasos!
Está previsto o comboio chegar às 6.55 e temos de atra-vessar o Bósforo e apanhar o Expresso do Oriente-Sim-plon na outra margem às nove horas. Se houver uma ou duas horas de atraso, vamos perder a ligação.
– É possível, sim – admitiu ele.Olhou para ela com curiosidade. A mão agarrada à
barra da janela não estava bem fi rme, e os lábios tam-bém lhe tremiam.
– Isso tem muita importância para si, Mademoi-selle? – perguntou-lhe.
– Sim. Sim, tem. Eu... eu tenho de apanhar esse comboio.
Afastou-se e avançou pelo corredor para se juntar ao coronel Arbuthnot. Mas aquela ansiedade era porém desnecessária. O comboio retomou a marcha dez minu-tos depois. Chegou a Haydapassar apenas com cinco
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minutos de atraso, tinha conseguido recuperar durante a viagem.
O Bósforo estava agitado e M. Poirot não apreciou a travessia. Tinha-se separado dos companheiros de via-gem no barco e não tornou a vê-los.
Ao chegar à ponte de Gálata, dirigiu-se diretamente para o Hotel Tokatlian.
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Capítulo 2
O HOTEL TOKATLIAN
No Tokatlian, Hercule Poirot pediu um quarto com casa de banho. Depois dirigiu-se para a portaria e
perguntou se havia correspondência. À sua espera havia três cartas e um telegrama. Ficou surpreendido ao ver o telegrama. Não estava à espera.
Abriu-o com os seus modos elegantes e calmos de sempre. As palavras impressas destacavam-se clara-mente.
«Evolução que previu para Caso Kassner aconteceu inesperadamente por favor voltar imediatamente».
– Voilà ce qui est embêtant – murmurou Poirot, contrariado. Olhou de relance para o relógio.
– Tenho de partir esta noite – disse ao porteiro. – A que horas parte o Oriente-Simplon?
– Às nove horas, Monsieur.– Consegue arranjar-me lugar numa carruagem-
-cama?
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– Com certeza, Monsieur. Nesta altura do ano não haverá difi culdade. Os comboios estão quase vazios. Primeira ou segunda classe?
– Primeira.– Très bien, Monsieur. Vai viajar para onde?– Para Londres.– Bien, Monsieur. Vou arranjar-lhe passagem para
Londres e reservar-lhe um compartimento na carrua-gem-cama Istambul-Calais.
Poirot voltou a dar uma olhadela ao relógio. Eram dez para as oito.
– Tenho tempo para jantar?Mas com certeza, Monsieur.O homenzinho belga acenou com a cabeça. Voltou à
receção para cancelar a reserva do quarto e atravessou o vestíbulo para o restaurante.
Uma mão pousou-lhe no ombro quando fazia o seu pedido ao empregado.
– Ah!, mon vieux, mas que prazer inesperado! – disse uma voz atrás de si.
Era um homem de idade, baixo, robusto, de cabelo cortado en brosse. Sorria com deleite.
Poirot levantou-se de um salto.– M. Bouc!– M. Poirot!M. Bouc era belga, diretor da Compagnie Interna-
tionale des Wagons Lits, e a sua amizade com a velha celebridade da Força Policial belga datava de há muitos anos.
– Está longe de casa, mon cher – disse M. Bouc.– Um pequeno compromisso na Síria.
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– Ah! E quando volta para casa?– Esta noite.– Esplêndido! Eu também. Isto é, vou até Lausana,
onde tenho uns compromissos. Presumo que viajará no Oriente-Simplon?
– Sim. Acabei de pedir que me arranjassem uma passagem. Era minha intenção permanecer aqui por uns dias, mas recebi um telegrama solicitando o meu regresso a Inglaterra para um assunto importante.
– Ah! – suspirou M. Bouc. – Les affaires... les affaires! Mas você... você agora está bem no topo da carreira, mon vieux!
– Algum pequeno êxito que tive, talvez. – Hercule Poirot tentou parecer modesto mas falhou rotunda-mente.
M. Bouc riu.– Encontramo-nos mais tarde – disse.Hercule Poirot concentrou-se na operação de man-
ter os bigodes fora da sopa.Terminada aquela complicada operação, olhou em
redor enquanto aguardava o prato seguinte. Havia ape-nas cerca de meia dúzia de pessoas no restaurante, e dessa meia dúzia só dois lhe interessavam.
Esses dois estavam sentados a uma mesa não muito distante. O mais novo era um homem bem-parecido de trinta anos, assumidamente americano. Não foi ele, no entanto, mas o companheiro que atraiu a atenção do detetive.
Era um homem entre os sessenta e os setenta anos. Assim àquela distância, tinha a aparência gentil de um fi lantropo. A cabeça ligeiramente calva, a testa
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abaulada, a boca sorridente exibia uma série de dentes falsos muito brancos, tudo parecia revelar uma perso-nalidade benevolente. Apenas os olhos contradiziam esta conjetura. Eram pequenos, encovados e astuciosos. Mas não se tratava apenas disso, pois enquanto comen-tava qualquer coisa com o seu jovem companheiro, o homem relanceou o olhar pela sala e fi xou-o em Poi-rot por um momento, e durante aquele segundo houve naquele olhar uma estranha malevolência, uma tensão pouco natural.
O homem levantou-se então.– Pague a conta, Hector – disse.O tom da voz era ligeiramente rouco. Tinha uma
característica algo bizarra, suave, perigosa.Quando Poirot se reuniu ao amigo no vestíbulo, os
outros dois homens estavam prestes a deixar o hotel. Estavam a trazer-lhes a bagagem para baixo. O mais novo supervisionava aquela tarefa. Pouco depois abriu a porta envidraçada e disse:
– Já está tudo pronto, Mr. Ratchett.O homem mais velho resmungou em jeito de con-
cordância e desapareceu.– Eh bien – disse Poirot. – O que acha daqueles dois?– São americanos – disse M. Bouc.– Certamente que são americanos. O que eu quis
dizer foi o que pensa deles como pessoas?– O homem mais jovem pareceu-me bastante agra-
dável.– E o outro?– Para lhe ser franco, meu amigo, não quis saber
dele. Causou-me uma impressão desagradável. E você?
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Hercule Poirot fi cou um momento sem responder.– Quando ele passou por mim no restaurante – disse
por fi m –, tive uma sensação estranha. Foi como se um animal bravio... um animal selvagem, mas bem selva-gem!, percebe... tivesse passado por mim.
– E no entanto, todo ele parecia do mais respeitável que há.
– Précisément! O corpo... a jaula... é tudo do mais res-peitável que há... mas o animal selvagem espreita através das grades.
– Está a ser fantasioso, mon vieux – disse M. Bouc.– Talvez esteja. Mas não consegui libertar-me da
impressão de que o diabo passou bem perto de mim.– Aquele respeitável cavalheiro americano?– Aquele respeitável cavalheiro americano.– Bem – disse M. Bouc, animadamente. – Pode ser
que sim. Há muita maldade no mundo.A porta abriu-se naquele momento e o porteiro
encaminhou-se para eles. Tinha um ar preocupado e ansioso.
– Que coisa extraordinária, Monsieur – disse ele a Poirot. – Não há no comboio nenhum compartimento de primeira classe livre.
– Comment? – exclamou M. Bouc. – Nesta altura do ano? Sem dúvida há algum grupo de jornalistas... de políticos...?
– Não sei, sir – disse o porteiro, dirigindo-se-lhe res-peitosamente. – Mas o facto é que é esta a situação.
– Bem, bem – M. Bouc voltou-se para Poirot. – Não se preocupe, meu amigo. Havemos de arranjar alguma
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coisa. Há sempre um compartimento livre, o número 16. O revisor trata disso tudo! – Sorriu e depois olhou para o relógio. – Venha. Está na hora de tratarmos disso.
M. Bouc foi cumprimentado na estação com res-peitosa efusividade pelo revisor da carruagem-cama de farda acastanhada.
– Boa noite, Monsieur. O seu compartimento é o número 1.
Chamou os carregadores que levaram aquela carga até a meio da carruagem, onde as placas de metal pro-clamavam o destino:
ISTAMBUL TRIESTE CALAIS
– Ouvi dizer que o comboio está cheio.– É incrível, Monsieur. Parece que toda a gente deci-
diu viajar esta noite!– Mesmo assim, tem de arranjar lugar para este
cavalheiro. É um amigo meu. Pode fi car no número 16.– Já está ocupado, Monsieur.– O quê? O número 16?Ambos trocaram um olhar de entendimento e o
revisor sorriu. Era um homem alto e macilento, de meia--idade.
– Sim, Monsieur. Mas como lhe disse, não há luga-res... não há lugares em nenhum lado
– Mas que se passa afi nal? – exigiu M. Bouc irri-tado. – Há alguma conferência em algum lugar? Alguma reunião?
– Não, Monsieur. Foi puro acaso. Acontece que muita gente decidiu viajar esta noite.
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M. Bouc deu um pequeno estalido de enfado.– Em Belgrado – disse – chega a carruagem-cama
que vem de Atenas. E chega também a de Bucareste-Pa-ris... mas só vamos chegar a Belgrado amanhã à noite. O problema é para hoje à noite. Não há nenhum com-partimento de segunda classe livre?
– Há um compartimento de segunda classe, Mon-sieur...
– Bem, nesse caso...– Mas é um compartimento para senhoras. E já está
ocupado por uma alemã... a dama de companhia de uma senhora.
– Là, là, mas que situação! – disse M. Bouc.– Não se preocupe, meu amigo – disse Poirot. – Vou
ter de viajar numa carruagem comum.– Nem pense nisso! Nem pense nisso! – Voltou-se
novamente para o revisor. – Já chegaram todos?– Bem, a verdade – disse o homem – é que um dos
passageiros ainda não chegou.Falava devagar, com hesitação.– Mas diga lá então!– Compartimento número 7... segunda classe. O
cavalheiro ainda não chegou, e faltam quatro minutos para as nove.
– Quem é ele?– Um inglês. – O revisor consultou a lista. – Um tal
M. Harris.– Um nome de bom agoiro – disse Poirot. – Conheço
bem o meu Dickens. Esse M. Harris não virá.– Coloque as bagagens de Monsieur no número 7 –
disse M. Bouc. – Se este M. Harris vier, dir-lhe-emos que
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chegou demasiado tarde... que os compartimentos não podem fi car retidos por tanto tempo... De uma maneira ou de outra arranjaremos as coisas. Que me importa a mim um tal M. Harris?
– Como Monsieur desejar – disse o revisor.Falou com o carregador de Poirot, indicando-lhe
para onde devia ir.Depois afastou-se dos degraus para deixar Poirot
embarcar. – Tout à fait au bout, Monsieur – disse. – O penúltimo compartimento.
Poirot percorreu o corredor num movimento lento, já que a maior parte dos passageiros estava no exterior dos seus compartimentos.
Os seus corteses «Pardons» eram proferidos com uma regularidade de relógio. Alcançou por fi m o com-partimento indicado. Lá dentro estava o jovem ameri-cano do Tokatlian a arrumar uma mala.
Franziu o sobrolho quando Poirot entrou.– Desculpe – disse ele. – Creio que se enganou. –
E depois, laboriosamente em francês: – Je crois que vous avez un erreur.
Poirot replicou em inglês.– É Mr. Harris?– Não, chamo-me MacQueen. Eu...Mas nesse momento ouviu-se a voz do revisor que
falava por detrás de Poirot. Uma voz num tom de des-culpa e quase sem fôlego.
– Não há mais nenhum compartimento no comboio, Monsieur. Este cavalheiro terá de fi car aqui.
Estava a subir a janela do corredor enquanto falava e começou a içar para dentro as bagagens de Poirot.
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Poirot reparou no seu tom de voz com algum diver-timento. Certamente que lhe tinham prometido uma boa gorjeta se conseguisse conservar o compartimento só para o uso do outro passageiro. Contudo, até a gor-jeta mais generosa perde o seu efeito quando um diretor da companhia está presente a bordo dando ordens.
O revisor saiu do compartimento após ter colocado as malas nas prateleiras de cima.
– Voilà, Monsieur – disse. – Está tudo em ordem. O seu beliche é o de cima, o número 7. Partimos dentro de um minuto.
Apressou-se pelo corredor fora. Poirot voltou a entrar no compartimento.
– Um fenómeno a que raramente assisti – disse ele, de bom humor. – O próprio revisor a arrumar ele mesmo as bagagens! Nunca se viu!
O seu companheiro de viagem sorriu. Já tinha evi-dentemente recuperado daquele aborrecimento – prova-velmente decidira que não valia a pena encarar aquele assunto a não ser de um modo fi losófi co.
– O comboio está extraordinariamente cheio – disse ele.
Soou um apito e a locomotiva deu um longo e melancólico silvo. Ambos saíram para o corredor.
Lá fora uma voz gritou.– En voiture.– Vamos partir – disse MacQueen.Mas não partiram de imediato. O apito voltou a soar.– Sir – disse o jovem, de repente –, se preferir o beli-
che de baixo... mais cómodo e tudo isso... bem, por mim não há problema.
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MacQueen era evidentemente um rapaz muito amá-vel.
– Não, não – protestou Poirot. – Não quero privá-lo...– Não há problema...– É demasiado gentil...Protestos corteses de ambas as partes.– É só por uma noite – explicou Poirot. – Em Bel-
grado...– Oh, compreendo. Vai sair em Belgrado...– Não exatamente. Sabe...Um súbito solavanco. Ambos foram à janela e olha-
ram para a longa plataforma iluminada que deslizava lentamente.
O Expresso do Oriente iniciava a sua viagem de três dias através da Europa.
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