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Seminário: “Francisco de Oliveira: a tarefa da crítica” Mesa: os territórios, a cidade e as formas de habitação Universidade de São Paulo, 12/06/2003
Trabalho, cidade e os elos perdidos da política
Vera da Silva Telles 2003
Publicado in: Cibele Saliba Rizek e Wagner Romão (orgs.). Francisco de Oliveira, a tarefa
a crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006
A re-leitura dos escritos de Chico de Oliveira, é preciso desde logo dizer e reconhecer,
provoca um forte impacto, na verdade um fortíssimo impacto sobretudo quando vistos à luz
das nossas complicações atuais. De partida, o reencontro com as questões estruturantes que
conformaram a história desse país, exatamente essa dimensão que nos tempos que correm
parecem ter se esvanecido, para não dizer que se volatilizaram, sumiram, em grande parte
dos debates(?) que correm em nossas searas. E junto com isso, o sentido da crítica – e a
tarefa da crítica – como experiência de pensamento que busca, em diálogo com os dilemas
contemporâneos, perscrutar as linhas de força contidas no real e, a partir daí, a natureza dos
bloqueios e impedimentos históricos que armam o enigma a ser decifrado pela inteligência
crítica e desatado pela política.
Mas é isso que nos dá uma medida, uma medida em tudo inquietante, do esfacelamento do
pensamento critico nesses últimos tempos. Não se trata apenas de constatar a indigência dos
debates recentes. Isso seria trivial, além de correr o risco de injustiça ou julgamento
excessivo com uns e outros. O problema é mais de fundo. Na voragem das transformações
que se superpõem em velocidade cada vez maior, o passado parece se esvanecer como
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referência trabalhada na experiência social, ao mesmo tempo em que o futuro torna-se
indiscernível e o horizonte dos possíveis devorado pela imprevisibilidade e aleatoriedade de
eventos e circunstâncias que parecem operar o tempo real do mercado e seus imperativos
(ou idiossincrasias). É como se vivêssemos um presente inteiramente capturado pelas
urgências do momento, e não nos restasse muito mais do que a sua gestão cotidiana, sem
conseguir figurar as linhas de fuga de futuros possíveis. O debate sobre a cidade e o urbano,
tema proposto para esta mesa, é de uma gritante evidência. Durante décadas, a questão do
urbano se apresentou como um prisma pelo qual se discutia o país e seus descaminhos, em
torno dele organizava-se um jogo de referências que dava sentido às polêmicas, embates e
debates sobre a história, os percursos e destinações da modernização brasileira. Hoje,
parece que se perdeu de vez as conexões que articulam o econômico, o político, o urbano e
o social. A economia é coisa que parece transitar definitivamente em outra galáxia de
referências, a política passa a se reduzir ao problema da gestão das urgências de um
presente imediato e o cidade – ou a “questão urbana” para lembrar uma noção que fez sua
época nos “tempos de antigamente”, parece se confinar em um “social” desconectado do
político e do econômico. Quanto ao mais, face à erosão de referências futuras e em nome
das urgências do presente, o campo fica aberto para um pragmatismo “bem fundado” que se
apóia na pesquisa acadêmica para propor programas sociais aos excluídos do mercado de
trabalho e fica inteiramente cativo do diagrama liberal nas formas possíveis de gestão da
pobreza.
Daí a importância da voz dissonante de Chico nos debates recentes. Introduz uma cunha
que rompe essa espécie de círculo de giz do presente imediato, tratando de decifrar os
sentidos da atualidade e buscar as conexões (os elos perdidos, para jogar aqui com o título
de um de seus livros) que permitem atualizar a tarefa da crítica e recolocar o enigma da
política. Se suas proposições, hoje, aliás como sempre, operam como um petardo critico
que provoca, que incomoda a uns e outros, que suscita, abre e reabre a polêmica, é porque
jogam ao debate a formulação de problemas dos quais não se pode furtar. Chico desenvolve
e desdobra no limite as suas próprias questões e é nisso que, sem complacência e sem
desconto, todos os descompassos, irracionalidades, violências e iniqüidades que
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acompanham nossa história são figurados em uma inscrição polêmica que termina por
pautar o debate.
Mas é na trama rigorosa dos argumentos que encontramos o sentido da crítica, numa
elaboração da experiência social que busca a construção dos conceitos que traçam o plano
em que os problemas se colocam. A recente reedição de O Elo Perdido – classes e
identidade de classe no Brasil, publicado originalmente em 1987, pode ser tomado aqui
como ponto de partida, até porque o prefácio do autor a esta segunda edição permite, aliás
como ele próprio se adianta em dizer, “uma avaliação da continuidade da pertinência da
abordagem realizada, na metade dos anos 80”. O que está aí em jogo não é tão
simplesmente uma revisão de algo que foi escrito em outro momento histórico. É na
diferença dos tempos que toda a questão ganha sentido (e um novo sentido) e nos dá a
medida das complicações e desafios atuais. E o fio que articula, em negativo, os dois
momentos é precisamente a questão que está no centro do livro de 1987, a questão da
constituição das classes e dos sujeitos políticos. Não é suficiente, diz Chico, “reconhecer na
produção material a produção das classes. Faz-se necessário, além disso, um processo de
medições que, fundado sobre o primeiro, constrói o discurso simbólico da re-presentação
das classes em suas relações e serve de pressuposto à reprodução” (p.19). É nisso em que
se aloja o problema da política: o movimento de representação, de reconhecimento, de
“consciências recíprocas de classe”, é o que constitui propriamente o espaço da política.
Mas para isso é necessária a constituição de um equivalente geral que é colocado em
operação pelo contrato mercantil, que aciona a ficção da igualdade na trama das relações,
permite a construção do discurso identificador de classe e a definição, em disputa, da
medida dessa mesma relação. N’O Elo Perdido, Chico discutia as circunstâncias da
economia regional, tomando como foco a formação das classes sociais urbanas na Bahia
moderna. O “elo perdido” dizia então respeito às mediações da política que não chegavam a
se completar. Questão central na “Bahia de todos os pobres”, mas sobretudo questão central
das modernas realidades urbanas do país. No “elo perdido” estava então cifrada toda uma
história, longa história, de recusa da alteridade de classe e privação da palavra dos “de
baixo”, a chave das desigualdades abissais da sociedade brasileira e de toda a violência que
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acompanha nossa história. Uma história que já havia e continua sendo repassada de ponta a
ponta nas muitas linhas escritas sobre os dispositivos de tutela, controle e repressão
contidos nas formas de regulação das relações trabalho-capital (aqui, todas as mazelas da
legislação trabalhista e da estrutura sindical brasileira), para não dizer a reiteração da
violência aberta, direta e sem disfarces. Mas aqui, no Elo Perdido, a novidade vinha de um
outro lugar. Chico tematizava o que sempre figurou como a sombra da modernização
brasileira, fazia girar o caleidoscópio das peças aparentemente desconjuntadas da realidade
nacional e projetava o assim chamado mercado informal no centro mesmo do enigma
político a ser deslindado. Chico dava um outro lance no fundo deslocamento de referências
que já havia provocado quinze anos antes, na Crítica à razão dualista. Em 1972, anos de
chumbo da ditadura militar, a inteligência crítica do país estava investida da exigência de se
rever e revisitar explicações e interpretações sobre as inflexões ou rupturas da história
recente, o ponto de clivagem representado pelo golpe militar de 1964 e elucidar os
percursos e destinações da economia e sociedade brasileiras. A inscrição polêmica de Chico
nesse debate foi tão radical quanto decisiva para os rumos que o debate tomou nos anos
seguintes. Ao fazer a “crítica à razão dualista”, ao mostrar a simbiose do “arcaico” e
“moderno”, do formal e do informal e modo como essas relações eram tecidas, postas e
repostas na lógica mesma da acumulação capitalista, Chico definia um outro plano de
referência que projetava as figuras do “atraso” – a urbanização caótica, o terciário inchado,
a economia de subsistência e o cada vez mais amplificado universo do trabalho informal, a
pobreza que se espalhava por todos os lados - no centro mesmo da moderna economia
urbana. E no centro de um conflito que classe cuja radicalidade o levava a dizer, nas
últimas linhas do ensaio, que o futuro “está marcado pelos signos opostos do apartheid ou
da revolução social”. Em 1987 a questão política embutida na tragédia social brasileira será
desdobrada e aí vai-se perfilando um outro feixe de referências. Em sintonia fina com os
acontecimentos que atravessavam o país, estava em foco a construção democrática dos anos
80. E no seu centro, o problema ou o enigma – o elo perdido – da representação de classe e
do próprio jogo, ou melhor: a possibilidade da política.
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É sob esse prisma que o problema do trabalho informal era então colocado. No caso dos
trabalhadores mergulhado do mercado informal, o contrato mercantil não opera, suas vidas
parecem regidas pelo azar e aleatoriedade das circunstâncias, o trabalho abstrato – a
expressão da igualdade formal do contrato mercantil – não se realiza. Não se trata de atraso
e a questão tampouco se reduz ao problema social da pobreza urbana. É um mundo de
mediações que não chega a se estabelecer. Classes inacabadas, disse Chico em outro texto,
um texto curto mais igualmente luminoso sob o sugestivo título Anos 70: as hostes
errantes (1981). Pela convergência de processos e circunstâncias históricas que Chico
trata de deslindar, opera-se o bloqueio das mediações que permitiriam sua constituição
como classe e representação. A questão será retomada em outros textos e não é o caso aqui
de reconstituir todo este percurso. Por ora, importa tão somente chamar a atenção para as
conexões que vão se estabelecendo entre trabalho, classe, representação e os espaços da
política. Conexões que não se completam. Daí um espaço político que não chega a se
constituir - “um modo de representação que não identifica os interesses convergentes
postos pelo movimento da economia e da sociedade”. E daí os riscos de um descolamento
da institucionalidade que apenas repõe e reforça a violência da dominação (p.99). Nas
últimas linhas do livro, Chico então dizia: “todo o problema da política contemporânea
reside em ultrapassar as paredes da representação”(p.101). E esta era a urgência que os
tempos então colocavam. Urgência política e exigência teórica, a que Chico responde ao
desdobrar a questão, ao desenvolver suas implicações nas teses que irá apresentar no O
surgimento do antivalor (1988). Uma tese que era também uma aposta política que, na
virada da década, se alimentava das formas que o conflito social ganhava na cena política
do país, algo como uma experimentação histórica que abria a possibilidade de uma nova
sociabilidade construída em arenas públicas de representação e negociação, capazes de
publicizar conflitos privados, universalizar reivindicações, forçar o reconhecimento
institucional das alteridades e constituir atores coletivos que não poderiam mais deixar de
ser levados em conta na cena política. É essa a aposta lançada no texto em que Chico
discute o Acordo das Montadoras (1993) no ABC paulista.
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Bem sabemos que a aposta não vingou, foi vencida. A revolução social de que falava Chico
em 1972 não chegou, sua figuração atualizada na constituição de uma esfera pública
democrática capaz de trazer para o campo de uma negociação - pública e publicizada - o
centro nevrálgico em que se cristaliza a luta de classe, o fundo público no qual se arbitra os
usos e destinações da riqueza social, essa então foi transfigurada no seu avesso e a
possibilidade mesma de constituição de sujeitos políticos foi erodida em suas bases. Esse o
abalo sísmico provocado pela devastação neoliberal em tempos de globalização,
financeirização da economia e revolução tecnológica.
No artigo A política em uma era de indeterminação (2001), Chico é contundente ao tirar
as conseqüências da situação: “a sociabilidade plasmada à época do trabalho como
categoria central, do trabalho fixo, previsível e a longo prazo, base para a produção
fordista e do consenso welfarista, dançou”. [...] “a relação entre classe, interesse e
representação foi para o espaço; a possibilidade da formação de consensos tornou-se uma
quimera mas num sentido inteiramente dramático, isto é não é o anúncio do dissenso, e
não gera política”. As conseqüências para a política não poderiam ser mais devastadoras.
Desaparece a alteridade, o movimento dos atores perde qualquer previsibilidade, tudo
transita para além de qualquer medida – esta aliás é o que deixou de existir – e a política se
esvanece na mais radical indeterminação. É verdade, reconhece Chico, que tudo isso
acontece ao mesmo tempo em que se dá um notável aumento do assim chamado
associativismo civil. Porém, o atual “deslocamento do trabalho e das relações de classe
esvazia essa ‘sociedade civil’ de um campo de conflito capaz de estruturar o jogo dos
atores. As relações são difusas e indeterminadas, as conexões de sentido são erráticas e o
conflito social perde sua potência política, ao mesmo tempo em que essa mesma
indeterminação e volatilização dos espaços da política, vão abrindo espaço para
intolerâncias, violências e a barbárie de todos os dias. O fato é que mesmo aí - ou sobretudo
aí talvez poderíamos dizer - é que se mostra uma das facetas (uma delas) as mais perversas
do cenário atual, no mínimo porque sugere as derivas do que já foi, em décadas anteriores,
movimentos e experiências portadores de dimensões universalizantes. Agora, tudo isso
parece encapsulado nos arranjos locais e localizados, quando não capturados nas novas
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formas de gestão da pobreza, transformando-se, nesse passo, mesmo que ao revés das boas
intenções, em agentes e operadores ativos do outro lado do desmanche atual pelas vias do
esfacelamento da política social, agora pulverizada em “microcentros de organização
social”,“onguização da política social”, levando ainda mais longe a refilantropização da
pobreza.
É “a administração da exceção” diz Chico n’O Estado e a Exceção: Ou o Estado de
Exceção? (2003). Juntando pontos e linhas, o que vai se enunciando no cenário desenhado
por Chico, é o estilhaçamento disso que vem sendo celebrado como “sociedade civil
organizada”, sob o impacto desse duplo desmanche, por cima e por baixo, a rigor
modulações de um mesmo movimento pelo qual a autonomização dos mercados em tempos
de financeirização da economia e “revolução molecular-digital” desfaz as relações
mercantis do contrato ao mesmo tempo em que retira autonomia do Estado – “o Estado se
funcionaliza como máquina de arrecadação para tornar o excedente disponível para o
capital”. Quanto às políticas sociais, desconectadas (e impotentes para tanto) de um projeto
de mudar a distribuição de renda, “transformam-se em anti-políticas de funcionalização da
pobreza”. O que antes era percebido como exceção, singularidade de um movimento
histórico que, esperava-se, haveria de alcançar algum patamar de normalidade, transforma-
se em regra – as desigualdades abissais, a pobreza urbana, o desemprego, o “trabalho sem
forma” das multidões de ambulantes que ocupam os espaços da cidade, bem tudo isso está
aí para ficar. E “as cidades são os lugares por excelência dessas exceções, e o conjunto
delas é a administração da exceção”.
Esse texto, uma prévia do que viria a ser o Ornitorrinco (esse bicho esquisito e
desconjuntado já comparece aí como figura do estado atual do país), apresentado na
conferência de abertura de um fórum acadêmico de pesquisa urbana, está em diálogo tenso
com um outro, publicado vinte anos antes e que também marcou, pautou, grande parte dos
debates que corriam na época e em particular por entre os estudos urbanos que então
vinham se multiplicando. Em 1983, n’ O Estado e o Urbano, Chico traçava as linhas de
uma diagrama de relações que faziam da cidade o cenário de um conflito cujo epicentro era
o próprio Estado, ou, para lembrar o título de outro artigo publicado alguns anos antes, um
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diagrama de relações que articulava “acumulação monopolista, Estado e urbanização”
(1977) e definia a “nova qualidade do conflito de classes”. A cidade era o seu cenário. E o
urbano, o solo tecido no ponto de inflexão de uma intervenção estatal que redefinia as
relações entre campo e cidade, que regulamentava as relações entre capital e trabalho e
articulava produção industrial e a acumulação ampliada do capital. Nesse agenciamento das
relações entre economia, cidade e espaço nacional, afirmava-se o lugar do Estado na
articulação geral da economia - o Estado “definia-se como potência de acumulação do
capital privado”, “lugar onde se arbitra a distribuição do excedente social”(p.53). A face
política disso foi o desmantelamento do poder politico das classes trabalhadoras no pós-64
e a reiterada anulação das vozes das classes populares. Nas cidades, todo esse processo
ganhava forma, estava corporificado nos seus espaços, pulsava na nova estrutura de classes
que aí se materializava e explodia na pobreza urbana, na massa crescente de trabalhadores
pobres que se viraram por sua própria conta e risco nas periferias da cidade e nas “mil
faces” do “problema urbano”. Agora, vinte anos depois, o que temos é a desmontagem do
diagrama de referências que conferia sentido, dava ressonância e qualificava a potência
política das “mil faces” do conflito urbano. Nesses anos muita coisa aconteceu e muita
coisa mudou nesse país. Temos a democracia, as instituições democráticas se consolidaram
e o jogo politico segue, mal ou bem, com tropeços e complicações, as regras da
normalidade democrática. Mas a exceção está comendo tudo isso por baixo e por cima. As
conexões que articulavam o “Estado e o urbano”, estas foram cortadas ou viradas no seu
avesso, e a política deslizou para práticas de gestão do que está aí para ficar. É a “exceção
do Estado ou o Estado como exceção”, diz Chico: as chamadas políticas de emprego e
renda “são a exceção do desemprego; elas aprofundam o desemprego ou o mantém com o
propósito de combatê-lo”; as políticas de mutirões são “a cidade como exceção, é a
desmercantilização da força de trabalho que prepara o enorme exército de
‘informal’...para as portas dos estádios de futebol, ou os arredores dos formosos teatros,
ou as bancárias e banqueiras ruas dos centros de nossas cidades”. E por aí vai ...
O exercício da crítica não poderia aí ser mais contundente e impiedoso (eis o petardo). Mas
pulsação polêmica e o movimento da crítica ganham todo o sentido quando se refaz o seu
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percurso, não para atestar a coerência (o que nem seria necessário, por suposto), mas para
fazer a marcação dos tempos e da diferença dos tempos. Vale então, aqui, reatar o ponto
deixando solto linhas atrás – o “elo perdido” das mediações políticas e as barreiras da não-
representação. Era o problema que Chico colocava em 1987. Mas o elo perdido talvez não
exista mais, diz Chico no prefácio da segunda edição do livro, agora, quinze anos depois.
Não se trata mais das incompletudes do contrato mercantil que não se generaliza como
regra da sociabilidade de classe. Trata-se agora de sua implosão e, ao que parece definitiva:
o extraordinário aumento da produtividade do trabalho, potenciada nos circuitos
globalizados dos capitais, “está na origem da banalização da utilização do capital” – “o
capital já não necessita dos antigos constrangimentos que foram a forma técnica do
processo de trabalho e que ao mesmo tempo, apropriados pelos trabalhadores, se
constituíram em suas identidades e, pois, em suas armas para reivindicar, nos termos de
Rancière, a parte dos que não tem – ou que não tinham – parte” (p.12). Não se trata tão
somente da reposição e ampliação do mercado informal. É pelo outro lado que a questão se
determina, pois o que hoje é chamado de flexibilização do contrato de trabalho pode ser
entendido como uma informalização que penetra todas as ocupações e redefine, desloca,
por inteiro as relações de classe. É o trabalho sem forma que se expande no núcleo mesmo
do que antes era chamado “mercado organizado”. O resultado é que as fronteiras do formal
e do informal foram detonadas. Duplo deslocamento cujas conseqüências trata-se de
aquilatar. De um lado, é um deslocamento que representa uma inflexão de fundo em uma
discussão e um modo de colocar em debate e em perspectiva as destinações da sociedade
brasileira que, desde os anos 70 e prolongando-se nos 80, tinha exatamente na clivagem
formal-informal um de seus eixos. Como diz o autor, “a hipótese da clivagem entre o
formal e o informal foi central nas discussões dos anos 1970 e ainda informava as
démarches na década de 1980. Alto desemprego e perda da capacidade de representar,
que problemas criam para a formação da classe e para a política?”(p.12).
Porém, de outro lado, é o próprio problema do informal - o “elo perdido” das mediações
políticas, a representação e a constituição do campo da política - que dá o parâmetro para
aquilatar o sentido da atual mutação do trabalho. Diferente da repressão de outros tempos e
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para além da privação da fala que sempre marcou a história brasileira, agora essa espécie de
não-lugar do trabalho e um valor para além da medida, significam a impossibilidade da
própria constituição das classes como identidade e representação. A questão, apenas
enunciada neste prefácio, foi desenvolvida em outros textos e tem a sua formulação a mais
acabada no Ornitorrinco (2003) que acompanha a reedição da Crítica à Razão Dualista.
Na marcação dos tempos e da diferença dos tempos, os 30 anos que separam os dois textos,
a questão é aí colocada em outro patamar: o que se desfaz e desaparece do horizonte
histórico da sociedade brasileira, é a própria noção (e a aposta na sua possibilidade) de
superação, noção fundante dos debates que percorreram parte considerável desses anos. É
esse o sentido polêmico da questão que Chico apresenta ao usar a imagem do Ornitorrinco
para descrever o país: um monstrengo feito de pedaços desconjuntados, que dão a cifra de
diferenças, defasagens, descompassos, desigualdades que, não sendo mais atravessados por
uma virtualidade de futuro, não mais articulados internamente por uma “dialética dos
contrários”, ficam onde estão, um neo-atraso como diz Roberto Schwarz no Prefácio, fatos
irrevogáveis de nossa realidade, sem solução e sem superação possível no cenário do
capitalismo globalizado e de uma revolução tecnológica que não só aprofunda o abismo
entre os países mas corta as pontes possíveis de sua superação.
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Mas então com ficamos? O petardo critico agora nos interpela a todos. A noção de
superação sempre foi operante no exercício da crítica e também no pensamento e prática
políticas, no esforço em discernir a potência histórica contida no estado de coisas e a
possibilidade de trazer as maiorias, desde sempre relegadas às fímbrias da modernização
capitalista, ao universo de uma cidadania ampliada, em grande parte associada ao trabalho
assalariado e aos direitos a eles associados. Já não é de agora que sabemos de todas as
ambivalências que existem quando esse patamar esperado de modernidade é projetado, num
perverso jogo de espelhamentos, da “norma civilizada” associada ao Primeiro Mundo. E
não é de agora que sabemos que o espelho foi quebrado, e esse é um dos lados do
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desmanche que Roberto Schwarz lançou ao debate em um artigo de 19931: como pensar o
país quando a norma civilizada na qual, desde sempre, o país se espelhou, apenas nos
promete, nesses tempos de capitalismo globalizado, uma modernização que não cria o
emprego e a cidadania prometidos, mas que engendra o seu avesso na lógica devastadora de
um mercado que desqualifica – e descarta – povos e populações que não têm como se
adaptar à velocidade das mudanças e às atuais exigências da competitividade econômica.
Como pensar o país se “o aspecto da modernização que nos coube, assim como a outros,
for o desmanche ora em curso, fora e dentro de nós?”.
Mas Chico, agora, dá um novo lance na questão proposta por Schwarz. Que se diga, desde
logo, que tal como formulada, a questão nos coloca em compasso com os tempos e é de
uma radical contemporaneidade. Não se trata, longe disso, aliás muito longe disso, de dizer
que a pobreza de lá e de cá finalmente se encontram pelos circuitos excludentes do capital
globalizado – essa espécie de “constatação das evidências” que corre solta por aí, repondo
em outros sentidos o jogo dos espelhamentos de que trata Schwarz, com o peculiar efeito de
desativar, neutralizar, o foco de inquietação, o “mal-estar” face à distância que nos separava
do “moderno” – já que as coisas são assim, já que mesmo eles descobrem a desgraça da
pobreza, a tal brasiliniazição do Primeiro Mundo, e já que essa é a cota comum que nos
cabe, a eles e a nós, já que essa é também e finalmente a cifra de nossa “modernidade”,
bem, então podemos agora aproveitar com gosto e proveito, sem má-consciência, de todos
os brilhos que o mundo globalizado nos oferece, ao mesmo tempo em que a pobreza, agora
desvinculada do campo conflitivo do trabalho e dos direitos (aí o desmonte ou
esvaziamento da “questão social”), vai alimentando o hoje proliferante discurso edificante
da solidariedade moral e os igualmente expansivos programas de “combate à exclusão”,
aliás tudo isso também devidamente plugado nas vias globais pelos circuitos do assim
chamado Terceiro Setor, financiados (monitorados?) pelos “generosos” recursos das
agências multilaterais, quando não capturados por essa espécie de nova frente de expansão
1 SCHWARZ, Roberto. Ainda o livro de Kurz. Novos Estudos, CEBRAP, n.37, novembro, 1993
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do capital e que vem com a “griffe” da “responsabilidade social” das empresas. De fato,
tudo por aqui ficou mesmo globalizado...
Pois o petardo lançado por Chico não permite o sossego das boas consciências pacificadas
com o estado de coisas. Se não há mais superação possível, isso na verdade coloca a
exigência crítica em outro patamar. Como diz Schwarz, hoje “o naufrágio da hipótese
superadora” aparece como “o destino da maior parte da humanidade, não sendo, nesse
sentido, uma experiência secundária”2. Em seus últimos escritos, em especial no
Ornitorrinco, Chico deslinda, ponto a ponto, esse desmanche. E o exercício da crítica não
fica no meio do caminho. Não segue o caminho fácil da denúncia sem mais e muito menos
faz o lamento desse mundo que já se foi, não é um verbo conjugado no futuro do pretérito
– o que poderia ter sido mais não foi: esses dois modos de lidar com as coisas que
paralisam o trabalho da crítica, na aceitação resignada, ou cínica, do que aí está. Ao
desenvolver no limite as suas próprias questões, procede a um agudo deciframento das
forças operantes nesse desmanche e traça as implicações nele contidas. E com isso, o
andamento da crítica, em correspondência com o próprio movimento da história, nos
impulsiona para frente e nos leva a um limiar (e não o ponto final) em que essas mesmas
questões abrem-se a novas indagações.
Afinal, que mundo social é este que vem se configurando nas dobras desse desmanche? Se
a equação que se estabelecia entre trabalho, direitos e cidadania foi quebrada, se o
movimento histórico que lhe dava plausibilidade foi interrompido, se a “hipótese
superadora” (ou essa hipótese superadora), para usar os termos de Schwarz, foi erodida,
então com quais parâmetros ou a partir de quais parâmetros discernir, no atual estado de
coisas, as linhas de força que vem aí sendo traçadas? Ainda: como decifrar a pulsação de
fissuras possíveis que reabram, ao menos virtualmente, essa potência de confrontar o
presente e ampliar o horizonte dos possíveis, essa mesma potência (e essa aposta) que de
alguma forma esta(va) contida na idéia de superação, mesmo que agora esteja
2 . SCHWARZ, Roberto. Sequências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.58.
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desvencilhada do telos no qual foi formulada e figurada no século XX (e na verdade, desde
antes)?
A questão está longe de ser simples. A rigor, é o próprio problema que ainda precisa ser
formulado e bem posto. E isso, claro está, não é coisa que se resolva assim de uma penada e
certamente não vai ser qualquer contorcionismo teórico que haverá de abrir caminhos. Mas
é o próprio Chico que dá pistas para pensar além da catástrofe que se arma em nossa
atualidade. É verdade que estamos caminhando em meio à neblina, diz ele em texto que
leva, aliás, o mais do que sugestivo título Passagens na neblina (2000). E as respostas, é
isso que ele aí sugere, estas ninguém tem, e será preciso, não propriamente esperar, mas ao
contrário, prospectar essa espécie de experimentação histórica que vem se processando
nessa “era de indeterminação”. Mas já que estamos falando de passagens, então lembremos
que passagens são feitas de trilhas que se entrelaçam e se bifurcam, e são estas que será
preciso seguir, mesmo sem saber ao certo para onde nos levam, ou mesmo sabendo que a
catástrofe também vai sendo desenhada por esses mesmos traçados.
E Chico nos dá o ponto de partida, que é justamente o ponto nevrálgico do desmanche. E
então, retomando: nesse salto nas alturas da produtividade do trabalho propiciada pela
“revolução molecular-digital” em combinação com o movimento de mundialização do
capital, o processo de valorização se descola dos dispositivos do trabalho concreto, já não
depende da quantidade e dos tempos do trabalho da produção fordista (está para além da
medida) e termina por implodir todas as distinções conhecidas: tempo do trabalho e tempo
do não-trabalho, trabalho e consumo; as diferenças das ocupações perdem relevância do
ponto de vista desse movimento virtual da valorização do capital, ao mesmo tempo em que
vai para os ares a divisão entre trabalhadores ativos e o que antes então era chamado de
exército industrial de reserva. É o trabalho abstrato levado a extremos, “trabalho abstrato
virtual”, que captura, mobiliza e transforma processos sociais e as atividades as mais
disparatadas em sobrevalor. Quebra-se o vínculo entre trabalho, empresa e produção da
riqueza e são outros agenciamentos e diagramas de relações que se constituem: para seguir
as situações comentadas por Chico em seus últimos escritos, a maquinaria abstrata de
produção de valor é acionada a cada vez que se utiliza os caixas eletrônicos dos bancos ou
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quando, no recinto privado da vida doméstica, se acessa serviços e produtos pela internet;
são as formas de entretenimento, lazer, gostos e estilos de vida que movimentam um
capital que faz do “nome da marca”3 o principal esteio de sua valorização, ao mesmo
tempo em que joga na mais radical irrelevância social miríades de trabalhadores espalhados
pelas redes de subcontratação no mundo inteiro, submetidos ao trabalho precário, incerto,
mal pago e degradado, gente sujeita aos espaços físico-sociais do trabalho concreto, mas
que desaparece sob a pirotecnia do marketing e do espetáculo cultural. Zarafian fala de uma
“economia de serviços” que não tem nada ver com as divisões conhecidas de setores de
produção, que a rigor transborda por todos os lados e torna irrelevantes essas mesmas
divisões, pois tem a ver a trama de relações materiais e imateriais entre produção e
consumo – publicidade, efeitos de marca, ações de marketing, cartões de fidelidade e tudo o
mais que acompanha o produto ou o serviço vendido/consumido, de tal forma que os
consumidores, transformados em clientela cativa, terminam por participar da formação do
valor apesar de não entrarem em nenhuma contabilidade e em nenhum instrumento de
gestão4.
São mutações de fundo. Mas, então, é preciso reconhecer que isso muda tudo nas formas de
lidar e fazer a experiência do trabalho, da cidade, seus espaços e territórios. É uma situação
que está a exigir um giro em nossas categorias, de modo a construir um plano de referência
e um espaço conceitual que permitam colocar em perspectiva e figurar esses processos, re-
situar os problemas, colocar outros tantos e perceber nas dobras desse desmanche, nas
dobras das redefinições e desagregações do “mundo fordista” (as aspas aqui apenas para
indicar uma ordem de questões, bem sabemos que essa noção é incerta), outros diagramas
de relações, campos de força que também circunscrevem os pontos de tensão, resistências
ou linhas de fuga pelas quais perceber a pulsação do mundo social.
3 . FONTENELLE, Isleide Arruda Fontenelle. O nome da marca. MacDonnald’s, fetichismo e cultura descartável. São Paulo: Boitempo, 2002 4 . ZARAFIAN, Philippe. La disparition du marché. In : ZARAFIAN, F. A quoi sert le travail ? Paris : La dispute, 2003, pp. 135-147
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No Passagens na neblina, Chico já sugere que “em conjunto essas modificações pedem
uma nova abordagem sobre o trabalho e as categorias de trabalhadores que o exercem, ou
dos que trabalham mas não são trabalhadores” (p. 17). E para tomar a coisa pelo lado das
questões urbanas hoje em pauta (e na pauta da mesa para a qual esse texto foi preparado), é
caso de se interrogar até em que ponto a noção de exclusão social não está fora de foco.
Claro, tem correspondências fortes com as realidades sociais e urbanas que bem
conhecemos, mas como não desconfiar que deixa escapar talvez o mais importante,
justamente por ser uma noção centrada nas binaridades dos dispositivos físico-sociais do
trabalho (trabalho-não trabalho. Ainda mais problemáticas são as visões que hoje
prevalecem de uma cidade fragmentada entre enclaves fortificados e globalizados, de um
lado e, de outro, o mundo da pobreza confinado nos bairros pobres espalhados pelas
periferias da cidade. As evidências imediatas sustentam ou podem sustentar essa visão das
coisas, mas também aí podemos nos perguntar se essa não é uma medida estreita demais,
que se fixa em certos pontos de cristalização dos fluxos da riqueza e fluxos da pobreza que,
a ver sob um outro parâmetro, transbordam por todos os lados essas definições
socioespaciais.
Apenas para jogar ao debate, sem nenhuma certeza e sem a menor pretensão de responder
às questões colocadas: nesse salto nas alturas de uma “mais valia virtual” que ultrapassa
todos os limites e segue os movimentos acelerados de desterritorialização do capital, a
riqueza social, o sobrevalor, vai também se corporificando (e circulando por entre os) nos
espaços da cidade, pedaços globalizados que vão cortando e recortando o mundo urbano: as
fortalezas globais concentradas no côté pós-moderno da cidade e as formas predatórias e
excludentes de apropriação privada do solo urbano5; os grandes equipamentos de consumo
e lazer que se concentram nesses mesmos espaços, mas também se espalham num grande
arco que chega até mesmo nas periferias da cidade, também cortando e recortando o mundo
da pobreza; da cultura transformada em mercadoria às chamadas intervenções urbanas
5 . FIX, Mariana. Os parceiros da exclusão. São Paulo: Boitempo, 2001
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pelas quais a cidade passa a ser ela própria a ser gerida e consumida com mercadoria6; tudo
isso e mais alguma coisa, ao mesmo tempo em que segue, numa extensão sem limite, a
mercantilização de tudo e todos. Como aliás Chico nota e comenta, isso também compõe os
pedaços do Ornitorrinco: “com a revolução molecular-digital como forma técnica
principal da acumulação de capital, ...o fatiamento digital é capaz de descer aos infernos
da má distribuição de renda”. Como tem sido amplamente noticiado, os celulares
chegaram lá (façanhas da privatização, como se sabe), nos confins do mundo da pobreza:
ao mesmo tempo em que as redes de telefonia móvel se estendem, no mesmo passo vai se
ampliando a inadimplência generalizada. E qualquer um que circule pelos bairros das
periferias mais pobres haverá de encontrar a parafernália do consumo moderno e pós-
moderno, e haverá de encontrar o morador pobre desses lugares mais-do-que-pobres
exibindo, junto com a fatura de uma dívida sempre adiada, as versões populares (ou nem
tanto) de cartões de crédito ou os cartões de compra dos grandes equipamentos de consumo
que chegaram por lá: é a financeirização do popular fiado, na feliz expressão de Stela
Ferreira, parceira em nossas andanças pelas periferias da cidade. Eis aí os “sujeitos
monetários sem mercado”, para usar a expressão cunhada por Kurtz7. Ou o “homem
endividado”, essa figura das “sociedade do controle”, como diz Deleuze, que vem
substituindo o “homem confinado” da sociedade da disciplina descrita por Foucault. É bem
verdade, diz ainda Deleuze, que o capitalismo mantém em escalas sempre crescentes a
extrema miséria das maiorias, povos e populações “pobres demais para a dívida,
numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação
das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas”8. Mas, para usar a linguagem
do filósofo em outros textos, os “fluxos urbanos” ou os “fluxos selvagens” liberados pela
subtração dos dispositivos do trabalho, circulam e vão encontrando outros agenciamentos e
pontos de cristalização, de que é evidência esse promissor e expansivo mercado que é o
6 . ARANTES, Otilia. Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, Otilia et alii. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000. 7 . KURZ, Robert. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 8. DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992, pp 219-226:224
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tráfico de drogas e as redes do crime organizado, aliás também eles globalizados e
conectados nos circuitos desterritorializados do capital financeiro. Nada mais eloqüente do
que o retrato desenhado por Alba Zaluar de um garoto metido no tráfico de drogas no Rio
de Janeiro: o menino favelado com uma AR-15 ou metralhadora UZI, considerados
símbolos de sua virilidade e a fonte de grande poder local, com um boné inspirado no
movimento negro da América do Norte, ouvindo música funk, cheirando cocaína produzida
na Colômbia, ansiando por um tênis Nike do último tipo e um carro do ano9 . Isso não se
explica, diz Zaluar e com razão, pelos níveis de salário mínimo ou pelo desemprego, e
muito menos pelo peso das camadas geológicas da tradição ou resquícios da violência
costumeira do sertão, como muitas vezes se diz: entender como o ilícito e o ilegal se
enraizaram no setor informal para comandar um exército de desempregados e sócios
menores é fundamental (p.55), até porque tudo isso põe em movimento bens materiais e
monetários que entram na circulação de mercadorias do mundo capitalista (pp. 58-59).
Entre a brutalidade da destituição dos miseráveis e os brilhos faiscantes desse capitalismo
pós-moderno, entre a privação extrema, o futuro sempre adiado (como a dívida, deixada
para o dia seguinte, para o mês seguinte, para um dia qualquer...) e o também muito pós-
moderno presente imediato do garoto do tráfico em que tudo isso se conjuga no verso-e-
reverso do capitalismo contemporâneo, há todo um entramado de linhas que se cruzam e
entrelaçam, que atravessam e transbordam os “domínios” estritos da pobreza e da riqueza
(esses que dão fundamento às noções de uma cidade fragmentada ou dualizada, apartada), e
vão montando um socius que ainda será preciso conhecer melhor. Pelo lado do trabalho,
são também esses e outros traçados que vão redesenhando o mundo social e a paisagem
urbana. É o que acontece nos circuitos descontínuos do trabalho precário, temporário ou
subcontratado que, passando por pólos descentrados no tecido urbano, vão serpenteando os
pontos em que a riqueza se cristaliza nos espaços da cidade, que mobilizam as conhecidas
“atividades de sobrevivência” do dito “mercado informal”ou reativam o velho conhecido
9. ZALUAR, Alba. A globalização do crime e os limites da explicação local. In: VELHO, Gilberto e ALVITO, Marcos (orgs.). cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editoria FGV/Editora UFRJ, 1996; pp. 48-68: 55
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trabalho a domicílio de antanho, que passam, alimentam e se alimentam das mil formas de
práticas ilícitas que se espalham por todos os lados, ao mesmo tempo em que crescem as
legiões de desempregados e sobrantes do mercado de trabalho que se viram como podem
ou então ganham a identidade de “público alvo” dos programas de combate à exclusão nos
bairros pauperizados da cidade. Por outro lado, junto com tudo isso, a experiência social
também vai se fazendo em um outro diagrama de relações e referências que também
redefinem fronteiras e territórios. O desemprego intermitente e prolongado, o emprego(?)
incerto e descontínuo, esse constante entre-e-sai do mercado por entre os velhos e novos
expedientes de trabalho precário, tudo isso vai alterando e desestabilizando as referências
que pautavam e ritmavam a vida social – os tempos do trabalho e os “tempos da vida”
(individuais e familiares) perdem as sincronias que os dispositivos disciplinares do mundo
fordista impunham, ao mesmo tempo em que se esfacelam as fronteiras dos espaços/tempos
públicos de trabalho e os espaços/tempos privados do não-trabalho.
Tudo isso foi aqui colocado de um jeito apressado, um tanto vago e mesmo canhestro, é
preciso que se diga. Mas serve como indicação, não mais do que isso, de que talvez
tenhamos que mudar o foco das atenções. Não mais as verticalidades que construíram o
trabalho nas suas formas conhecidas (suas regulações centralizadas), mas os vetores
horizontalizados de relações que articulam trabalho, a cidade e seus espaços, outros
agenciamentos e também outros eixos em torno dos quais desigualdades, controles e
dominação se processam, afetam formas de vida e o sentido da vida.
Se há processos estruturantes que ainda precisam ser melhor compreendidos, também será
preciso averiguar os campos de experiências que se armam nos pontos de cruzamento das
linhas de força que vem reconfigurando o mundo social. Se é verdade que a desconexão
entre trabalho e empresa já faz parte da paisagem social, se é verdade que a empresa perdeu
seu poder de gravitação como lócus de investimento subjetivo, isso significa que os tempos
da vida e os tempos do trabalho tendem se articular sob novas formas não mais contidas nas
relações que antes articulavam centro-periferia, emprego-moradia, trabalho-família,
trabalho-não trabalho. Eram binaridades que pautavam os ritmos da vida social, tendo por
referência o trabalho, com suas regularidades e os disciplinamentos impostos pelas formas
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de emprego10. Mas, então, talvez seja necessário se desvencilhar dessas binaridades, talvez
melhor dizendo, suspendê-las, assim como a do formal-informal, para apreender a nervura
própria do campo social. Talvez seja por aí que possamos decifrar o modo como as
reconfigurações do trabalho também redesenham mundos sociais e seus circuitos, os
campos de práticas e relações de força que fazem a tessitura da cidade e seus espaços.
Não se trata, longe disso, de buscar virtudes nesse mundo social, e muito menos cair nas
trampas de um discurso edificante que sempre clama por encontrar o-lado-positivo-das-
coisas. O que importa, isso sim, é a exigência de um trabalho fino de deciframento do
social capaz de flagrar campos de força que vem se desenhando no traçado das atuais
reconfigurações do mundo social e, quem sabe, pólos de gravitação por onde experiências
diversas e talvez disparatadas se articulem ou pelo menos convirjam e se entrecruzem em
torno de outras referências e novas constelações de sentido.
Em um momento em que, junto com a desmontagem das formas reguladas de emprego,
também se esvanecem os parâmetros coletivos de classe e a perspectiva de universalização
de direitos através da “cidadania salarial”, é o caso de se indagar pelas relações que podem
estar sendo traçadas entre territorialidades, identidades coletivas e direitos. Essa é uma
hipótese forte formulada no corpo de um projeto em desenvolvimento pelo Cenedic sobre a
experiência recente do Orçamento Participativo em São Paulo. Aqui, as questões de Chico
são reatualizadas, seguindo, como sempre, a contemporaneidade dos tempos, ao se abrir à
interrogação sobre “uma nova possibilidade de universalização, não a partir do
pressuposto liberal da igualdade , mas a partir do compartilhamento das mesmas
necessidades, pautada pela igualdade de acessar os recursos do Estado. Pode bem ser a
construção de uma nova universalidade”11. Como diz Cibele Rizek, “o OP pode se
10 . A propósito ver SUPIOT, Alain. Critique du droit du travail. Paris, PUF, 1994 e Au-delà de l'emploi. Transformations du travail et devenir du droit du travail en Europe. Paris, Flamarion, 1999. Também BESSIN, Marc. Les temps, une question de pouvoir. Mouvements, no. 2, janvier-février 1999, pp.47-54
11 . OLIVEIRA, Francisco; PAOLI, Maria Celia e RIZEK, Cibele. Atas da Revolução: O Orçamento Participativo em São Paulo . www.ibase.br; janeiro de 2003
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constituir em contexto que concretiza a cidade como espaço e território comum,
transformando os bens sociais em bens públicos para além dos interesses particulares”12.
Pode ser que essas experiências não consigam escapar das estreitezas dos jogos políticos
locais, pode ser que não consigam ultrapassar o confinamento de referências
“comunitárias”, pode ser também que tudo seja risível perto do tamanho da tragédia social
estampada nas cidades, e pode ser ainda e mais fundamentalmente que, como bem nota
Rizek, face à radical desterritorialização do capital, “o território, transformado em quase
resíduo para as novas formas de acumulação cada vez mais autonomizadas, elemento cuja
importância encolhe face à potência das tecnologias de informação ... já pode ser
parcialmente devolvido às disputas da população, sem danos às novas formas de gestão e
controle compatíveis com as formas mais recentes de acumulação”13. Pode ser. Mas se
assim for, essas limitações (e outras) não são irrelevantes para a compreensão das novas
realidades que vem se configurando. Essas experiências operam como um prisma pelo qual
apreender campos de força e os diagramas de relações que aí vão sendo tecidas. Mas
também podem ser entendidas como acontecimentos que (re)configuram esse jogo de
forças e que, ao colocar a cidade como perspectiva e em perspectiva, permitem, ao menos
virtualmente, como diz ainda Rizek, reabrir “a possibilidade frágil de novos combates pela
distribuição da riqueza”, restituir “o território à uma elaboração cidadã”, e com isso,
talvez, ampliar horizontes de possíveis.
Seja como for, se nos tempos que correm não há nenhuma razão, muito pelo contrário, para
alimentar otimismos ingênuos, o trabalho do pensamento – a tarefa da crítica – sempre tem
nele embutido, nem que seja de forma hesitante, quase como uma experimentação (e, pelo
menos hoje em dia, não dá para ser de outra forma), uma aposta em outros possíveis. Mas
é nisso que também aprendemos com a tarefa crítica exercida por Chico: tendo sempre em
mira os pontos de clivagem que compõem a atualidade, suscita e incita a reabrir, sempre, a
interrogação pelos campos de força e virtualidades contidas no presente, mesmo quando ou
12 . RIZEK, Cibele Saliba. Relatório de Pesquisa (Projeto Fapesp), Cenedic, 2003 13 . Idem
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sobretudo quando é difícil, quase impossível, discernir os seus sinais. Mas então isso
também significa dizer que o trabalho da crítica também tem, junto com a confrontação
com o presente, o sentido de uma resistência a esse desapossamento do mundo de que fala
Deleuze em uma bela passagem que, a título de não-conclusao, sem ponto final, vale aqui
citar:
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar
no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao
controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. ... É ao nível de cada
tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao
mesmo tempo de criação e de povo14
14 . DELEUZE, Gilles. Conversacoes. São Paulo: Editora 34, 1992, p.218