Post on 08-Jan-2017
TERESA PIZARRO BELEZA
FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO
DIREITO PROCESSUAL PENAL I
OBJECTO DO PROCESSO,
LIBERDADE DE QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
E CASO JULGADO
(texto introdutório)
LISBOA
2001
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
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Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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Nota prévia
O presente texto procura realizar uma exposição didáctica do tema,
sempre complexo, do objecto do processo, relacionando-o expressamente
com a vinculação temática e a liberdade de qualificação jurídica do
tribunal.
A sua divulgação neste momento visa corresponder ao interesse dos
alunos de Direito Processual Penal no tema e fornecer-lhes um primeiro
quadro de referência, a par da demais literatura disponível sobre a matéria.
Trata-se, como é evidente, de um texto não completo sobre o tema, que
pode ser visto como uma introdução (relativamente pormenorizada) à
problemática do objecto do processo. Abrange por isso, neste momento,
apenas dois capítulos de cinco programados.
Lisboa e Faculdade de Direito, Dezembro de 2001
Teresa Pizarro Beleza
Frederico de Lacerda da Costa Pinto
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
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Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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Indíce
CAPÍTULO I
O OBJECTO DO PROCESSO:
ESTRUTURA E VALORES ENVOLVIDOS NO PROBLEMA
§ 1. Identidade e variação do objecto do processo: introdução.
I. Conceitos fundamentais
II. Casuística
III. Princípios enformadores: identidade, estabilidade, indivisibilidade e
consunção
§ 2. Identidade do objecto do processo e valores do sistema processual penal
I. Estrutura acusatória, direito de defesa e contraditório
II. Princípio da acusação e vinculação temática
III. Litispendência e “ne bis in idem” (proibição do duplo julgamento pelo
mesmo facto)
IV. Síntese
§ 3. A proibição constitucional do duplo julgamento pelo mesmo crime
I. Enquadramento
II. Origem, natureza e funções do princípio “ne bis in idem”
III. Conteúdo e limites do princípio “ne bis in idem” na Constituição
portuguesa
IV. Critérios de identidade do facto para efeito do” ne bis in idem”
§ 4. Os momentos processuais de fixação do objecto do processo
I. Formulação do problema
II. O objecto do processo durante a fase de inquérito
III. O objecto do processo e a fase de instrução
IV. O objecto do processo e o saneamento
V. O objecto do processo e o julgamento
VI. Casuística
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CAPÍTULO II
O PROBLEMA DA IDENTIDADE E VARIAÇÃO
DO OBJECTO DO PROCESSO
§ 1. As bases legais e os critérios doutrinários
I. Enquadramento legal dos problemas
II. Delimitação negativa e positiva do problema
§ 2. Delimitação negativa do problema
I. O regime dos factos (completamente) novos
II. Alteração dos limites mínimos das molduras penais abstractas
III. Falta de prova de factos favoráveis aos arguidos
IV. O regime da “reformatio in pejus”
V. Circunstâncias probatórias estranhas à factualidade que integra a
matéria da proibição
VI. Alteração de factos alegados pela defesa
VII. Alteração da qualificação jurídica
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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CAPÍTULO I
O OBJECTO DO PROCESSO:
ESTRUTURA E VALORES ENVOLVIDOS NO PROBLEMA
§ 1. Identidade e variação do objecto do processo: introdução.
I. Conceitos fundamentais
1. O decurso de um processo penal, seja na forma comum, seja numa das
formas especiais que mais divergem das fases processuais daquela, como
acontece com o processo sumário (art. 382º e ss do CPP), pressupõe a
identificação dos factos que, tendo relevância criminal, podem ser
imputados ao arguido através do processo.
Essa selecção dos factos é uma exigência, desde logo, das normas penais
substantivas que serão aplicadas no processo, já que elas próprias
descrevem factos e circunstâncias de factos que, uma vez imputados ao
arguido no processo, podem gerar responsabilidade criminal.
Esse processo pode ser mais ou menos complexo, de acordo com a
forma de processo em causa: pode existir uma fase como o inquérito (art.
262º e ss do CPP) em que se recolhe a factualidade criminalmente relevante
e as respectivas provas, imputando-as depois ao arguido numa peça
processual específica que é a acusação (art. 283º e, ainda, 284º e 285º do
CPP). A partir daí, e em função desses factos descritos na acusação, o
debate sobre a eventual responsabilidade do arguido far-se-á, primeiro,
numa fase processual facultativa (a instrução) na qual se controla o acto
que pôs fim ao inquérito (art. 286º do CPP) ou, em segundo lugar, no
julgamento (art. 311º e ss do CPP).
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Essa recolha de factualidade relevante pode ser menos estruturada em
formas de processo, como a forma sumária (art. 381º e ss do CPP), onde
não existe inquérito, mas sim uma recolha simplificada de indícios da
prática de um facto criminalmente relevante, eventualmente (mas não
necessariamente) descritos numa peça processual específica, o auto de
notícia (art. 243º do CPP), que serão depois apresentados ao Ministério
Público que decidirá da sua submissão ou não a julgamento na forma
sumária (art. 382º e 389º do CPP).
2. Em qualquer um destes casos o debate sobre a responsabilidade do
agente será efectuado sobre factos que no processo lhe são indiciariamente
imputados pelo MP (art. 283.º do CPP) e/ou pelo assistente, caso o mesmo
esteja constituído e tenha requerido abertura de instrução (art. 287.º, n.º 1
al. b) do CPP) ou deduzido acusação particular (arts 284.º ou 285.º do
CPP).
Toda a problemática que envolve o tema do objecto do processo assenta
na necessidade de estes factos, que serão imputados ao arguido no processo
penal, não estarem em constante mutação ao longo do processo, mas
ficarem cristalizados a partir de certo momento (em regra, o momento da
acusação). Por outro lado, essa cristalização dos factos imputados ao
arguido implica igualmente que não devem existir variações sensíveis (ou
intoleráveis, à luz de certos valores e fins) desses factos durante o
subsequente processo, em especial variações que possam descaracterizar o
complexo de factos (e, consequente, o enquadramento jurídico dos
mesmos) anteriormente imputados indiciariamente ao arguido na acusação.
Esta pretensão de estabilidade factual é também, em parte, uma
pretensão de manutenção da identidade do objecto do processo (ou seja, a
preservação da identidade do conjunto de factos que no processo serão
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imputados ao arguido), mas não é, de modo algum, absoluta: na verdade,
essas exigências de estabilidade e identidade do objecto do processo
(entenda-se, dos factos criminalmente relevantes que serão imputados ao
arguido no processo) variam de acordo com as fases processuais. Elas não
se verificam no inquérito e, inversamente, atingem a sua máxima
intensidade nas fases de julgamento e de recurso.
Estas exigências são expressivamente descritas por CASTANHEIRA
NEVES nos seguintes termos:
”E o problema que aqui se põe não é outro que o de saber em que termos
– de que modo ou mediante que critérios – se pode dizer assegurada a
identidade entre o acusado, o conhecido e o decidido” (Sumários, 1968,
208).
Nestes três momentos (acusação, julgamento e decisão) deve existir
uma estabilidade da realidade factual levada para o processo, os factos
apreciados em julgamento e imputados na decisão final ao arguido.
Por que razão esta exigência de estabilidade e de identidade do objecto
do processo é tão premente? A resposta a esta interrogação passa pela
identificação dos valores que estão em causa quando se enuncia o tema e
pelo conhecimento dos contornos jurídico-legais do problema na nossa
legislação.
II. Casuística
1. A descrição de alguns casos poderá ilustrar de forma mais expressiva
as dimensões problemáticas do tema do objecto do processo:
a) Caso do roubo: Suponha-se que X é acusado para prática de um
furto qualificado (art. 204º, nº 2, al. a) do CP) cometido contra V. Na
audiência de julgamento prova-se que X subtraiu os valores a V
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usando violência e ameaças, razão pela qual (em função destes
factos não descritos na acusação, a violência e as ameaças)
estaremos perante um roubo (art. 210º, nº 1 e 2, al. b) do CP). A pena
abstracta no primeiro caso irá de 2 a 8 anos de prisão e no segundo
caso de 3 a 15 anos de prisão. Poderá o Tribunal de julgamento
conhecer estes novos factos (violência e ameaças) e condenar o
arguido pela prática do crime de roubo?
b) Caso da receptação: suponha-se que C é acusado de ser co-autor do
furto qualificado cometido conjuntamente com A e B (arts 204º, nº
2, al.a) e e) e art. 26º, terceira proposição, do CP). Na audiência de
julgamento não se prova que C tenha estado presente durante a
execução do facto, razão pela qual terá de ser absolvido da acusação
de ter sido co-autor naquele facto. Mas prova-se que adquiriu os
valores furtados, tendo desse modo cometido eventualmente um
crime de receptação (art. 231º, nº 1 do CP). Este facto (a aquisição
dos objectos furtados) não constava da acusação dirigida contra A, B
e C. Pode o Tribunal de julgamento condenar C pela receptação?
c) Caso das injúrias: V apresentou queixa contra A por este lhe ter
dado duas bofetadas num local público, no dia 3 de Março de 2000.
O MP acusou A da prática do crime de ofensas simples à integridade
física (art. 143º, nº 1 do CP). No julgamento, A é absolvido por falta
de provas. V procura então arranjar outras testemunhas do facto e,
tendo-o conseguido, apresenta uma nova queixa contra A por ter
cometido contra si o crime de injúrias (art. 181º, nº 1, alargado pelo
art. 182º do CP) ao dar-lhe duas bofetadas num local público, no
mesmo dia 3 de Março. Poderá haver um novo processo e um novo
julgamento com bases neste mesmo facto à luz de outra norma legal
que o qualifica como crime?
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d) Caso do abuso de confiança continuado: A é acusado pelo MP de
ter, durante 3 meses (Janeiro, Fevereiro e Março de 2000), retirado
dinheiro ilegitimamente da caixa do supermercado onde trabalha.
Ao todo, tirou seis vezes 5.000 escudos. A é acusado da prática de
um crime de abuso de confiança continuado no valor de 30.000
escudos (art. 205º, nº 1 e art. 30º, nº 2 do CP). Durante o julgamento,
descobre-se que A não retirou 5.000 por seis vezes, mas sim por oito
vezes. Poderá o Tribunal conhecer estes dois factos que se
traduziram em retirar por mais duas vezes 5.000 escudos da caixa
registadora (mais 10.000 escudos, portanto)? Admita-se, numa
variante deste caso, que o Tribunal condena A por ter tirado seis
vezes os 5.000 escudos. Depois de transitada em julgado esta
decisão, conhecem-se outras situações de apropriação de dinheiro,
por A, nos mesmos termos e no mesmo período. Pode ser aberto um
novo processo só com base nestas novas apropriações de quantias
realizadas por A?
2. Estes diversos casos colocam problemas diferentes que interferem
com diversos aspectos do sistema penal português.
Assim, surge desde logo o problema de saber se o Tribunal de
julgamento pode conhecer factos (a violência e a ameaça) que não estando
na acusação fazem com que a factualidade do crime de furto passe a ser
qualificado como um crime de roubo (caso do roubo). Revela-se
igualmente a questão de saber se o Tribunal, absolvendo o arguido por falta
de prova relativamente aos factos constantes da acusação, o poderá
condenar por outros factos criminalmente relevantes que ficaram provados
durante a audiência de julgamento (caso da receptação). No terceiro caso
descrito (caso das injúrias) suscita-se o problema de saber se aqueles facto
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(as bofetadas) foram já julgados criminalmente e se isso impede ou não que
esse mesmo facto, com outra qualificação jurídica (ou com a mesma, o que
é equivalente para o problema em causa), sejam objecto de outro processo.
Finalmente, na última situação descrita (caso do abuso de confiança
continuado), suscita-se a questão da identidade do objecto do processo, da
sua indivisibilidade e da força consuntiva do caso julgado: será que, na
primeira hipótese avançada, fica descaracterizado o objecto do processo se
o Tribunal de julgamento conhecer as duas acções isoladas integrando-as
no crime continuado? Relativamente à segunda hipótese formulada, será
que fica preterida a possibilidade de serem judicialmente conhecidos os
factos que poderiam ter sido conhecidos como parcelas do crime
continuado já decidido?
III. Princípios enformadores: identidade, estabilidade, indivisibilidade
e consunção
1. Deste modo se podem identificar os princípios essenciais que
orientam a delimitação do objecto do processo no processo penal.
Desde logo, o princípio da identidade do complexo de factos que
integram o objecto do processo, de acordo com o qual as oscilações da
matéria de facto durante o processo não podem em regra afectar a
identidade do objecto do processo definido na acusação; por outro lado, o
princípio da estabilidade, ou seja, a preservação do círculo de factos ao
longo do processo sem oscilação significativas ou intoleráveis. Por outro,
ainda, o princípio da indivisibilidade do objecto do processo, através do
qual se veda a segmentação da sequência de factos que, em função da sua
conexão interna e da sua unidade jurídica, devem ser tratados
conjuntamente e não ser objecto de fragmentações processuais
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discricionárias. Daqui resulta, por seu turno, um princípio de consunção
dos poderes de cognição do Tribunal que se esgotam não só no
efectivamente conhecido, como também naquilo que, estando em
sequência unitária com o acusado e o conhecido, deveria ter sido
efectivamente apreciado pelo Tribunal, ficando preterida a possibilidade
do seu conhecimento autónomo.
Neste exacto sentido, pode-se concluir que o problema da delimitação
do objecto do processo não é apenas o da identificação do complexo
natural de factos efectivamente descritos na acusação e realmente
conhecidos pelo Tribunal, mas sim o problema da delimitação
factico-normativa dessa realidade, que tanto abrange os factos reais, como
os factos hipotéticos em unidade sequencial com aqueles (caso dos
fragmentos de acções não descritas numa acusação que impute ao arguido a
prática de um crime continuado – cfr. supra caso d), do abuso de confiança
continuado).
Vejamos o significado destes problemas à luz dos valores fundamentais
do sistema penal português.
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§ 2. Identidade do objecto do processo e valores do sistema processual
penal
I. Estrutura acusatória, direito de defesa e contraditório
O problema da estabilidade, identidade, indivisibilidade e consunção do
objecto do processo revela uma especial dificuldade nos modelos de
processo penal de matriz acusatória, ao ponto de CASTANHEIRA NEVES
afirmar que se trata de um problema específico deste modelo de processo
penal (Sumários, 1968, 208).
Existe, contudo, uma dimensão do problema que é independente da
estrutura acusatória do processo penal, na sua vertente orgânica e funcional
(ou seja, um aspecto distinto da separação de funções entre acusação e
julgamento): a flutuação do objecto do processo pode colidir severamente
com o direito de defesa do arguido e, de forma mais genérica, com o
princípio do contraditório e com o princípio da confiança, além de, em
situação extrema, lesar de igual modo o princípio da lealdade processual.
É evidente que uma hipótese desta natureza torna-se especialmente
sensível num processo de matriz acusatória, onde todas estas componentes
devem ser garantidas para que o sistema não fique descaracterizado. Mas,
numa perspectiva ou noutra, se é certo que o problema em causa ganha uma
especial e essencial atenção nos processos de matriz acusatória, então deve
igualmente ser sublinhado que a questão adquire outras dimensões e
contornos num processo penal que acolha uma matriz essencialmente
acusatória, mas integrada por um princípio da investigação (cfr. arts 294º,
299º, 301º e, em especial, art. 340º, 1 e 2 do CPP. Se ao Tribunal (de
instrução ou de julgamento) se reconhece um estatuto activo na busca da
verdade material então o problema da identidade, estabilidade e
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indivisibilidade do objecto do processo projecta-se não apenas no estatuto
do arguido como também nos poderes do próprio Tribunal.
II. Estrutura acusatória, princípio da acusação e vinculação temática
Haverá desde logo que reconhecer que esses poderes autónomos de
investigação do Tribunal supõem uma acusação (princípio da acusação) e,
quando exercidos efectivamente, se contêm nos limites temáticos do
acusado, não os podendo livremente exceder (vinculação temática).
Num modelo acusatório, mesmo integrado pelo princípio da
investigação, não cabe ao Tribunal compor livremente o objecto do
processo. E a ser “reformulado” esse objecto após a acusação – o que
apenas excepcionalmente se admite – tal só poderá acontecer com o acordo
dos demais sujeitos processuais (MP, arguido e defensor, mas também do
assistente). Doutro modo serão lesados a estrutura acusatória e o princípio
do contraditório. O Tribunal não pode reformular livremente o objecto do
processo pois, entre outras razões, estará simultaneamente a investigar e a
julgar os factos criminalmente relevantes. E se o fizer unilateralmente viola
ainda o princípio do contraditório. Por isso, na nossa lei, uma reformulação
do objecto do processo em julgamento que altere a sua identidade essencial
só é possível com o acordo de todos os sujeitos processuais (art. 359.º, n.º 2
do CPP). Isto porque, exactamente, está em causa o princípio da acusação,
a vinculação temática associada à estrutura acusatória, a imparcialidade do
tribunal de julgamento, o direito de defesa do arguido e, de forma mais
genérica, o contraditório decorrente da existência de diferentes pretensões
de natureza penal assumidas no processo.
A verdade material, por seu turno, fito essencial de um processo (cfr.
arts 53º, nº 1, 299º, nº 1 e 2, 340º, nº1 do CPP) que procura dentro dos
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limites da instância a verdade histórica sobre os factos eventualmente
geradores de responsabilidade, não é um fim que justifique todos os meios.
Não é um fim absoluto, mas sim um fim a prosseguir de forma
condicionada, nos limites dos factos acusados (cfr. arts 303º, 309º, 311º, nº
2, al. b), 359º e 379º do CPP) e, dentro deste, de tudo aquilo que o Tribunal
pode e deve conhecer, sob pena desse conhecimento ficar definitivamente
preterido (princípio da consunção do objecto do processo).
Em suma, num modelo de processo penal que acolha uma estrutura
acusatória, o tribunal de julgamento estará vinculado tematicamente pelo
conteúdo material da acusação, isto é, o conjunto de factos descritos na
acusação. O conhecimento de outros factos que não tenham sido
legitimamente integrados no objecto do processo só pode ocorrer dentro de
certos limites e regimes previstos na lei processual.
III. Litispendência e “ne bis in idem” (proibição do duplo julgamento
pelo mesmo facto)
Nesta linha de considerações, repare-se ainda que alguns aspectos
fundamentais do sistema penal dependem da fixação do objecto do
processo. A identificação de um caso de litispendência ou, na formulação
constitucional, o cumprimento do princípio ne bis in idem (art. 29º, nº 5 da
CRP) pressupõe devidamente identificado um crime e, necessariamente, a
factualidade que lhe está subjacente e que é imputada ao arguido no âmbito
do tipo e no contexto de um processo penal. A afirmação de que dois
processos pelo mesmo facto contra o mesmo sujeito estão em curso ou de
que um processo tem por objecto um crime já julgado (ou a julgar) noutro
processo pressupõem a comparação entre os crimes em causa e também,
porque esse é o seu substrato essencial, os factos que imputados ao arguido
permitiram concluir pela prática de tal crime. Noutro termos, sem
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identificação rigorosa do objecto do processo não é possível afirmar com
segurança a existência de um caso de litispendência, nem dar efectividade
ao princípio da proibição da dupla condenação pelo mesmo facto (ne bis in
idem).
IV. Síntese
É agora possível apresentar de forma mais evidente os diversos aspectos
envolvidos na temática do objecto do processo.
A estabilidade, identidade, indivisibilidade e consunção do objecto do
processo são condições essenciais para garantir o direito de defesa, o
princípio da acusação e a estrutura acusatória do processo penal. Desses
aspectos depende ainda a efectivação do contraditório, o respeito pelo caso
julgado e a aferição da litispendência, bem como o respeito pela proibição
da dupla condenação pelo mesmo crime.
Isto, e tudo isto, é o que está em causa quando se analisa a temática do
objecto do processo penal.
§ 3. A proibição constitucional do duplo julgamento pelo mesmo crime
I. Enquadramento
1. Quando se afirma, como se fez nas páginas anteriores, que a
identidade essencial do objecto do processo deve ser mantida ao longo da
instância penal isso não significa que o conjunto de factos que integram o
objecto do processo se mantém absolutamente o mesmo ao longo do
processo. Uma perspectiva desta natureza seria irrealista e desconheceria a
dinâmica probatória do processo penal. O que se pretende é antes garantir a
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identidade essencial entre o acusado, o conhecido e o decidido no âmbito
do processo.
O problema da identidade do objecto do processo manifesta-se não só
durante a dinâmica processual, mas também noutras matérias que
pressupõem essa definição de identidade. É o que acontece com a
litispendência e com o caso julgado e, noutro plano conexo com o caso
julgado, com o cumprimento da proibição constitucional do duplo
julgamento pelo mesmo crime (art. 29.º, n.º 5 da CRP).
Noutros termos: saber quando é que o objecto do processo sofre
oscilações inadmissíveis ou quando é que certos factos penalmente
relevantes já foram julgados, não o podendo voltar a ser, são problemas de
natureza semelhante.
2. A nossa lei usa contudo conceitos diferentes para regular estas
matérias: assim, o objecto do processo pode sofrer oscilações que a lei
enquadra como alterações de factos, sujeitas a regimes diferentes
consoante sejam alterações de factos substanciais (por exemplo, art. 359.º
do CPP) ou não substanciais (art. 358.º do CPP). Este conceito de alteração
substancial de factos, definido parcialmente no art. 1.º, n.º 1 al. f) do CPP, é
portanto a forma de aferir a identidade do objecto do processo durante o
processo penal.
Contudo, a identidade do objecto do processo noutros casos pressupõe a
aplicação de conceitos aparentemente diferentes: assim, quando se trata de
saber se está a ser respeitado ou violado o princípio da proibição do duplo
julgamento pelo mesmo crime, o que é necessário é saber se “o mesmo
crime” está a ser julgado novamente. Mas também aqui está em causa um
problema de identidade do objecto do processo: trata-se de saber se o
objecto dum certo processo corresponde ao objecto doutro processo
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anteriormente decidido. Saber quando tal acontece supõe a delimitação dos
factos que integram o objecto de cada processo e a sua comparação.
A análise dos elementos fornecidos pela doutrina a este propósito pode
ser esclarecedora para o problema da variação do objecto do processo. Mas
vejamos antes disso como tem evoluído o problema da proibição da dupla
condenação pelo mesmo crime.
II. Origem, natureza e funções do princípio “ne bis in idem”
1. Curiosamente e ao contrário do que normalmente sse pensa, o
princípio ne bis in idem não tem origem no Direito Penal liberal, iluminista
ou pós-iluminista, mas sim raízes muito mais antigas que ao longo dos
tempos tem adquirido funções distintas.
Em breve excurso, no Direito romano o princípio visava
essencialmente garantir a força do caso julgado e, portanto, a autoridade
dos tribunais, a legitimidade do sistema jurídico e a segurança das partes.
Neste contexto, tratava-se dum pressuposto processual de formulação
negativa: uma acção não podia versar matéria que tivesse sido já decidida
noutra acção (bis de eadem re agere non licet). Reflexamente, o
pressuposto processual começou a adquirir contornos substantivos para
vedar a dupla demanda no cumprimento de obrigações: assim, de acordo
com a formulação de Gaio, aceitava-se que “a boa fé não tolera que se exija
duas vezes o mesmo”.
A partir da Idade Média, com a duplicação de sistemas jurídicos no
mesmo território, nomeadamente do poder central e das ordens religiosas,
o princípio passou a ser usado para garantir o privilégio do foro
eclesiástico: assim se defendeu que uma vez julgado um clérigo no foro da
igreja ele não poderia voltar a ser julgado no foro civil, porque isso
implicaria uma dupla punição. Neste caso, o princípio passou a ser usado
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para garantir a autonomia dum sistema jurídico em relação a outro e, ao
mesmo tempo, para evitar que a pessoa em concreto sofresse a dupla
punição dos sistemas em causa. Mas, simultaneamente, o desenvolvimento
dos processos de matriz inquisitorial permitiam desconsiderar ou contornar
(através da mera absolvição da instância) a força do caso julgado e diluiram
desse modo o alcance e a força do ne bis in idem, pelo menos em matéria
penal.
Com a teorização do Direito e do Estado pela neo-escolástica, no
século XVI, o princípio adquiriu contornos mais amplos e passou a
funcionar claramente como um limite ao poder do Estado. Assim, nas obras
da Segunda Escolástica peninsular o princípio da proibição da dupla
valoração foi aplicado claramente ao Direito tributário para evitar a dupla
cobrança de impostos pela Coroa e, em alguns autores, como Francisco
Suarez, é expressamente assumido também no âmbito do Direito Criminal.
Apesar de revelar contornos de limitação ao poder da Coroa, a sua filiação
axiológica é ainda e basicamente a temperança e proporcionalidade da
justiça divina, fundamentando a doutrina tais soluções em passagens do
Antigo Testamento.
Com estes contornos, mas com outros fundamentos, o princípio da
proibição da dupla condenação foi adoptado pela legislação revolucionária
saída de 1789 e com a ideologia liberal é convertido em princípio
fundamental do Estado. A partir daqui as diversas Constituições passam a
acolhê-lo, ora como princípio orientador de segmentos do sistema jurídico,
ora como direito fundamental do cidadão, como acontece com a
Constituição portuguesa de 1976, no art. 29.º, n.º 5.
A culminar este processo de conversão axiológica e funcional do
princípio ne bis in idem o “Protocolo n.º 7” aditou à Convenção Europeia
para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais,
em 22.11.1984, um artigo que proíbe o duplo julgamento e punição por
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uma infracção que já tenha sido objecto duma absolvição ou condenação
anteriores, transitada em julgado.
2. Actualmente a doutrina utiliza este princípio coo diversas
formulações (que correspondem a leituras mais limitadas ou mais amplas
da regra constitucional) que vão desde o mero respeito pelo caso julgado,
até à sua aplicação à matéria do concurso de crimes ou do concurso de
infracções de natureza diferentes (crimes, contra-ordenações, infracções
disciplinares, etc.).
Certa é a curiosa mutação histórica deste princípio que passou de
pressuposto processual a princípio estruturante do Estado e deste a direito
fundamental. Dessa forma a proibição acabou por ganhar uma dimensão
individual que no início se encontrava relativamente diluída no objectivo
de garantir a integridade do caso julgado: a de protecção do cidadão contra
o excesso punitivo do Estado.
III. Conteúdo e limites do princípio “ne bis in idem” na Constituição
portuguesa
1. O art. 29º, n.º 5 da CRP proíbe o duplo julgamento pela prática do
mesmo crime, numa formulação clara mas em si mesma de limitado
alcance literal, como veremos.
A proibição do duplo julgamento pelo mesmo crime, a que corresponde
o núcleo originário do princípio ne bis in idem, proíbe literalmente apenas o
duplo julgamento pelo mesmo crime. Mas este não é o seu sentido material.
Assim formulada, a proibição apenas veda a repetição de julgamento com o
mesmo objecto, o que corresponde basicamente ao efeito preclusivo do
caso julgado: uma vez julgado penalmente um facto, não pode haver novo
julgamento pelo mesmo facto.
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A doutrina aceita que a proibição constitucional se estende à proibição
da dupla penalização pelo mesmo crime, projectando assim a regra
constitucional em matérias diversas que vão para além da salvaguarda do
caso julgado, como o regime da comparticipação ou do concurso de crimes
- veja-se, por todos, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição
da República Portuguesa. Anotada e Revista, 3ª edição, Coimbra Editora,
1993, anot VI ao art. 29º (p. 194).
Com este alcance, a proibição do art. 29.º, n.º 5 CRP estende-se à dupla
valoração do mesmo facto, mesmo que ocorra no âmbito do mesmo
julgamento (sem repetição de julgados, portanto).
2. Outra limitação do art. 29.º, n.º 5 CRP resulta de a sua letra se referir
apenas à proibição do duplo julgamento pelo mesmo crime, o que,
abrangendo seguramente o mesmo facto com natureza criminal, não
contempla na sua configuração a dupla valoração do mesmo facto em
sistemas que não qualifiquem esses factos como crimes, como é o caso do
Direito de Mera Ordenação Social e o Direito Disciplinar.
Não se pode, na verdade, confundir a proibição da dupla condenação
pelo mesmo crime com a dupla condenação pelo mesmo facto (isto é, a
possibilidade de se retirarem consequências jurídicas diferentes do mesmo
facto em sistemas sancionatórios autónomos: responsabilidade criminal e
disciplinar, por exemplo) nem com a dupla valoração do mesmo facto, ou
seja, a possibilidade de o mesmo facto, independentemente da sua
qualificação jurídica no plano das infracções, ser valorado de forma
diferente quer no mesmo sistema, quer em sistemas distintos: cite-se, como
exemplo, a dupla valoração do dolo, em sede de tipo e em sede de culpa,
aceite por alguma doutrina.
O que significa que não existindo interferências entre os diversos
sistemas de valoração dos factos, o problema fica fora do âmbito do
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
23
preceito constitucional. Só assim se garante a própria autonomia dos
diversos sistemas sancionatórios.
Na sua letra o art. 29.º, n.º 5 da CRP não proíbe expressamente que o
mesmo facto gere responsabilidades a diversos títulos (concretamente,
criminal e contra-ordenacional). Essa cumulação pode no entanto resultar
de outras regras, como acontece com o Regime Geral das
Contra-ordenações (RGCords), previsto no Dec.-Lei n.º 433/82, de 27 de
Outubro (com alterações posteriores), nos seus artigos 20.º, 38.º e 79.º, em
nome da subsidiariedade das contra-ordenações em relação aos crimes
assumida até às últimas consequências pela citada lei geral, mas não
corresponde necessariamente a uma solução decorrente do art. 29.º, n.º 5
CRP, dadas as suas evidentes limitações.
3. Por outro lado, a ratio do preceito constitucional proíbe seguramente
que o mesmo facto seja valorado duas vezes da mesma forma dentro do
mesmo sistema sancionatório; e, nesse sentido, não é possível, a partir de
uma interpretação extensiva do art. 29.º, nº 5 da CRP, a dupla condenação
pelo mesmo facto em matéria de contra-ordenações. Ou seja, uma
interpretação do art. 29.º, n.º 5 da CRP à luz dos valores fundamentais do
Estado de Direito e do princípio da confiança impede que o mesmo facto
seja sancionado duas vezes como a mesma contra-ordenação. É este em
parte o sentido do art. 79.º, n.º 1 do RGCords.
4. Mas, como se viu, já não se inclui no âmbito da proibição
constitucional do art. 29.º, n.º 5 a hipótese de o mesmo facto gerar efeitos
jurídicos distintos, repercutindo-se em diferentes sistemas ou sub-sistemas.
Assim, pode perfeitamente existir a partir do mesmo facto títulos de
responsabilidade distintos, como seja, por exemplo, responsabilidade
criminal, contra-ordenacional, disciplinar ou responsabilidade civil.
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
24
Os possíveis inconvenientes desta solução que permite a cumulação de
títulos diversos de responsabilidade apenas podem ser limitados pelo
princípio da proporcionalidade, nomeadamente pela proibição do excesso.
5. Questão não resolvida pelo art. 29.º, n.º 5 da CRP é a de saber quando
é que estamos perante o mesmo crime. A doutrina tem a esse propósito
avançado alguns critérios que importa conhecer.
IV. Critérios de identidade do facto para efeito do” ne bis in idem”
1. Colocando a questão com a necessária clareza: quando é que um facto
se pode considerar “o mesmo”, para dessa forma se poder dizer que está a
ser objecto dum novo julgamento?
Esta é matéria não resolvida expressamente pelo legislador nacional,
embora alguns regimes legais em vigor entre nós a suponham resolvida.
Assim, a título de exemplo, o conceito de identidade de facto surge, em
regra sob a capa da expressão “o mesmo facto”, em normas como o art. 20.º
do RGCords (concurso de infracções) e o art. 420.º do Código dos Valores
Mobiliários (concurso de infracções, preceito com origem no CdMVM de
1991, no seu art. 675.º, cuja fonte por sua vez foi o Direito espanhol).
2. De acordo com a doutrina dominante, o conceito de identidade do
facto é de natureza material e não puramente processual e, por outro lado, é
um conceito normativo e não um conceito naturalístico.
Significa isto que não é o processo que determina se o facto é ou não o
mesmo, mas sim as características materiais do facto que podem infirmar
ou confirmar a identidade do mesmo.
A identidade do facto é, por seu turno, um conceito normativamente
modelado para o qual concorrem não só aspectos naturalísticos do
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
25
acontecimento em causa, como também as conexões normativas que lhe
conferem as qualidades que justificarão a sua integração no objecto dum
processo.
Nesse sentido, a doutrina aponta três vectores da identidade do facto que
devem ser tipos em conta, a saber: a identidade do agente, a identidade do
facto legalmente descrito e a identidade de bem jurídico agredido. Agente,
facto e bem jurídico são os três crivos de identificação da identidade do
acontecimento que se pretende submeter a um processo.
Só perante a identidade destes três conjuntos de elementos (agente, facto
legalmente descrito e bem jurídico) é que se pode afirmar que o facto que
se pretende submeter a um certo processo é o mesmo ou é distinto de outro
facto submetido, anteriormente ou concomitantemente, a outro processo.
Os três crivos de identidade do facto atrás avançados (agente, facto e
bem jurídico) correspondem ao núcleo mais consensual que sobre a
matéria se encontra na doutrina. A sua explicitação analítica pode trazer
mais alguns elementos que contribuem para tornar mais precisa a
comparação entre os factos cuja identidade ou dissemelhança se pretende
afirmar.
3. As normas penais não prevêem factos autónomos, puros
acontecimentos naturalísticos do mundo ou da vida. Pelo contrário, pela
sua função de normas de comportamento e pela finalidade de valorarem a
responsabilidade de alguém no âmbito dum processo, as normas penais
prevêem em regra factos imputáveis a alguém que por esses factos poderá
ser objecto das sanções legalmente prescritas. Nesse sentido, a identidade
do agente é uma parcela essencial da identidade do facto processualmente
considerado. Onde se quebra a identidade subjectiva quebra-se a identidade
do facto. Assim, não haverá qualquer duplicação da valoração e julgamento
pelo mesmo facto se esse facto for imputado ora a uma pessoa ora a outra.
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
26
Pode é ser necessário ponderar a congruência entre os dois processos de
imputação, mas não por causa da identidade do facto.
4. O segundo crivo referido é o próprio facto, em si mesmo, tal como
surge legalmente configurado. A função básica da tipicidade consiste em
delimitar com precisão o acontecimento que se pretende proibir e valorar
como desvalioso. Esse acontecimento é em regra uma manifestação
exterior do agente que no seu núcleo essencial comporta a conduta proibida
e, consoante os casos, outras circunstâncias relevantes para aferir o
desvalor do acontecimento global. Nesse sentido, a identidade do facto
pode aferir-se em função das suas componentes básicas ou acessórias,
como sejam a identidade de conduta, a identidade de objecto visado por
essa conduta, a identidade de consequências (isto é, de resultados
tipificados pelo legislador) e a identidade do título de imputação
subjectiva. A identidade do facto assim aferida pode ser total ou parcial,
consoante se verifique uma correspondência exacta entre todos os
elementos da comparação ou apenas entre alguns. O que permite, por seu
turno, ponderar as relações de concurso determinadas pela regra lógica da
identidade: quando a previsão de um facto abarcar integralmente a previsão
doutro facto e a operação não for reversível, teremos uma relação de
consunção, em que o primeiro facto consome o segundo.
5. Finalmente, a superação duma pura concepção naturalística da
identidade do facto permite incluir nos termos da comparação um elemento
estritamente normativo que é o bem jurídico. A identidade plena do facto
supõe também identidade de bens jurídicos tutelados. A partir deste
elemento é possível articular ainda de forma mais nítida as relações de
concurso que se estruturam numa relação de subordinação lógica e
axiológica, nomeadamente as regras de subsidariedade entre normas. Se a
proibição de agressão a um bem jurídico for instrumental em relação à
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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proibição doutra agressão a outro bem jurídico, em regra a primeira norma
perde autonomia em relação à segunda.
6. Com base nestes elementos tornam-se mais claros os limites dos
problemas enunciados:
Existirá dupla valoração sobre o mesmo facto quando o juízo de valor
jurídico formulado incida sobre o mesmo agente e o mesmo facto em
função da tutela do mesmo bem jurídico. Isto acontecerá
independentemente da natureza da sanção aplicável.
Para além destes casos de identidade plena de factos, ainda será
necessário ponderar as situações de identidade parcelar dos factos em
função das relações lógicas e axiológicas de identidade (i.e. consunção e,
eventualmente, especialidade) e subordinação (i.e. subsidariedade) entre
as normas que valoram as situações jurídicas. O que vale por dizer que a
dupla valoração só é realmente evitada quando se sujeita o material
analisado às regras vigentes que regulam as relações de concurso de
normas.
Só assim se pode garantir que uma pessoa ou entidade não é duplamente
julgada ou condenada pelo mesmo facto, no seu todo ou em parte.
7. Se estes são os crivos básicos de aferição da eventual repetição do
julgamento pelo mesmo crime, então as alterações do objecto do processo
antes de o mesmo estar fixado pelo âmbito do caso julgado não devem ser
radicalmente diferentes, embora o legislador use para o efeito conceitos
diferentes, como o de alteração substancial ou não substancial de factos
(cfr. arts 1.º, n.º 1, al. f), 303.º, 358.º e 359.º do CPP).
Vejamos como é que o problema se coloca no âmbito da tramitação do
processo penal anterior à formação do caso julgado.
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
28
§ 4. Os momentos processuais de fixação do objecto do processo
I. Formulação do problema
Enunciada a questão e devidamente traçado o seu alcance
jurídico-penal, importa agora procurar perceber em que momentos da
tramitação do processo se pode fixar o objecto, isto é, em que momentos ou
actos processuais se cristalizam os factos que deverão manter-se pelo
menos entre a acusação e a decisão.
Em regra esse momento é o da acusação. Pode mesmo afirmar-se que,
em princípio, o objecto do processo é o objecto da acusação. Mas é
possível que a fixação do objecto do processo ocorra antes ou depois da
acusação. Vejamos em que termos, seguindo a tramitação do processo
comum.
II. O objecto do processo durante a fase de inquérito
1. Durante o inquérito (art. 262º e ss do CPP) é livre a fixação do
objecto do processo. Pela própria natureza e função desta fase processual,
que visa “investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e
a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à
decisão sobre a acusação” (art. 262º, nº 1 do CPP), a factualidade recolhida
(e eventualmente imputada ao arguido, posteriormente, na acusação) é
variável.
2. O arquivamento previsto no art. 277º do CPP não fixa o objecto do
processo. Trata-se de um despacho de natureza formal e não de natureza
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
29
material. Na realidade, o art. 277º prevê, nos seus dois números, dois
grupos de situações distintas:
a) Uma delas consiste, basicamente, em não se ter apurado durante o
inquérito factos que possam ser imputados a uma agente no âmbito
dum tipo legal de crime. Isso pode ter acontecido por diversas
razões: porque, de acordo com o nº 1 do art. 277º, se recolheu prova
bastante de se não ter verificado crime ou, diversamente,
concluiu-se que se verificou um crime mas o arguido não o praticou
a qualquer título (ou seja, aconteceram factos criminosos mas não
são imputáveis ao arguido) e, de acordo com o nº 2 do art. 277º, não
se recolheu prova suficiente sobre a prática do crime e dos seus
agentes. Em todos estes casos ou não se verificaram factos
criminosos ou os factos criminosos identificados não podem ser
imputados ao(s) arguido(s). Os factos criminalmente relevantes não
valem por si. O Direito Penal só os considera relevantes na medida
em que esses factos, correspondendo à descrição de um tipo de
crime ou de circunstâncias relevantes para a sua valoração, os
imputa a um agente no âmbito do tipo. Sem imputação (ou sem
indícios que permitam a imputação judicial) os factos perdem valor
processual e não justificam a continuação do procedimento.
b) A segunda situação consiste, de acordo com a parte final do nº 1 do
art. 277º, em o procedimento não ser legalmente admissível. Um
caso como este pode acontecer pela falta de um pressuposto
processual estranho ao merecimento penal dos factos, como, por
exemplo, a falta de queixa num crime semi-público ou particular
(art. 49.º CPP) ou o não levantamento da imunidade parlamentar
relativamente a um deputado (art. 49.º, n.º 4 CPP e 157.º, 2 CRP).
Nestes casos, independentemente da factualidade apurada, o
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
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procedimento não pode ter lugar. Como entre nós vigora o princípio
da mediação judicial em Direito Penal (art. 27º, nº 2 e art. 29º, nº 1
da CRP) a imputação judicial desses factos ao agente não pode ter
lugar. O que significa que, para efeitos penais, é como se tais factos
juridicamente não existissem. Inclusivamente, uma vez verificado
que o procedimento não é legalmente possível, não deve o MP
investigar criminalmente os factos, porque a falta de uma condição
de procedibilidade impede, desde logo, a abertura de inquérito, se
for conhecida no momento da obtenção da notícia do crime. Não se
identificando factos que possam ser processualmente imputados a
uma pessoa não há verdadeiramente objecto de um processo penal.
3. O arquivamento em caso de dispensa de pena realizado antes de ser
deduzida acusação (art. 280º, nº1) e o arquivamento subsequente à
suspensão provisória de um processo (arts. 281º e 282º, nº 3) fixam um
objecto do processo e formam caso julgado material. Nesses casos, é
delimitada a factualidade relevante e imputada a um agente no âmbito dum
tipo de crime, retirando-se daí efeitos jurídicos imediatos, em termos
processuais e em termos substantivos. Significa isto que esses factos não
podem voltar a ser apreciados criminalmente para efeitos da determinação
da responsabilidade criminal daquele agente e que ficam abrangidos pelo
caso julgado não só os factos efectivamente conhecidos como todos
aqueles que encontrando-se numa unidade histórica com os primeiros
poderiam e deveriam ter sido conhecidos pelo Tribunal.
4. A acusação do MP (art. 283º do CPP), nos crimes públicos e
semi-públicos, e a acusação do assistente (art. 285º), nos crimes
particulares, fixam o objecto do processo. A identidade do objecto do
processo delimitada nestes actos vai servir de referência para outros actos
processuais posteriores. Assim, a acusação particular dependente não pode
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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introduzir no processo factos que impliquem uma alteração substancial
(cfr. art. 1º, al. f) do CPP) em relação aos factos invocados pelo MP na sua
acusação, como decorre expressamente do art. 284º, nº 1, in fine. A
acusação do assistente nos crimes particulares, por seu turno, limita
tematicamente a eventual acusação do MP (cfr. expressamente art. 285º, nº
3 do CPP).
III. O objecto do processo e a fase de instrução
Para além disto, o objecto do processo fixado na acusação pode ser
legitimamente alargado por via do requerimento para abertura de instrução
(art. 287º, nº 1, als a) e b) do CPP). Neste caso, a decisão instrutória poderá
legitimamente conhecer de toda essa factualidade. Exemplificando: se o
MP acusa o arguido de furto qualificado (art. 204º, nº 2, al. a) do CP) e o
assistente no requerimento invoca novos factos que se traduzem em
ameaças e violências cometidas pelo arguido sobre a vítima do suposto
furto, o JIC irá conhecer toda esta factualidade e pode, indiciados todos os
factos, proferir uma pronúncia por roubo (art. 210º do CP).
Significa isto, também, que a acusação e o requerimento para a abertura
de instrução vão servir de referências temáticas à decisão instrutória (art.
303º do CPP). Noutros termos, o JIC está tematicamente vinculado pelo
conteúdo factual da acusação e pelo requerimento para abertura de
instrução (na parte em que alegue novos factos).
IV. O objecto do processo e o saneamento
1. O despacho de saneamento do processo, previsto no art. 311º do CPP,
não pode em regra alterar o objecto do processo, pois inclusivamente é
feito por um juiz que vai estar presente no julgamento. O que significa que
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
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a composição unilateral do objecto do processo pelo juiz no saneamento
colidiria com a estrutura acusatória do processo penal.
2. Pode, contudo, o juiz no saneamento limitar o objecto do processo,
rejeitando parcialmente a acusação (do MP ou do assistente) na medida em
que ela implique uma alteração substancial de factos, em violação dos
limites previstos nos artigos 284º, nº 1 e 285º, nº 3 do CPP.
Não se prevê idêntico procedimento quanto a uma pronúncia (art. 303º)
que acolha uma alteração substancial de factos em relação a uma acusação
ou requerimento de abertura de instrução, porque essa hipótese constitui
uma nulidade que tem de ser requerida e que se o não for no prazo de 8 dias
se sana por completo (art. 309º, nº 1 e 2), reformulando-se desse modo o
objecto do processo por consenso tácito entre os sujeitos processuais.
V. O objecto do processo e o julgamento
O Tribunal de julgamento está tematicamente vinculado à acusação
e/ou à pronúncia, consoante os casos, como resulta expressamente do
regime de alteração de factos descrito nos artigos 358º e 359º do CPP,
conjugados com o regime da nulidade da sentença cominada para a
violação daqueles preceitos de acordo com o art. 379º, nº 1, al. b) do CPP.
A lei admite apenas uma hipótese de reformulação do objecto do
processo na fase de julgamento, através do acordo entre todos os sujeitos
processuais (art. 359º, nº 2 do CPP).
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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VI. Casuística
Admitamos agora um exemplo, sucessivamente reformulado, de forma
a ilustrar a exposição anterior.
O Sr. A apresenta queixa contra o Sr. B por este o ter agredido
violentamente. O MP investigou os factos e concluiu que se tratava de um
caso de ofensas corporais simples (art. 143º, nº 1 do CP), acusando B da
prática deste crime. Notificado da acusação do MP, o Sr. A entende que os
factos nela narrados estão incompletos, porque não fazem qualquer
referência ao facto de A ter estado, em consequência da agressão, 15 dias
sem poder trabalhar, o que se traduzirá num crime de ofensas graves à
integridade física (art. 144º, al. b) do CP). O JIC só poderá conhecer
legitimamente esta factualidade se A a invocar no requerimento para
abertura de instrução (art. 287º, nº 1, al. b) do CPP). O mesmo acontece se
não tiver lugar a instrução, relativamente ao juiz de julgamento. Neste
caso, se A invocar esses factos durante a audiência (sem ter havido
instrução) o Tribunal de Julgamento não poderá em princípio conhecer
essa factualidade naquele processo, a não ser que todos os sujeitos
processuais estejam de acordo que aquele processo passe a integrar
também os novos factos (art. 359º, nº 2 do CPP).
Admitamos agora, noutra variante desta história, que durante a
audiência de julgamento surgem novos depoimentos relativos à agressão,
através dos quais se prova que o arguido estava armado com uma pistola
que chegou a apontar à cabeça da vítima quando ela estava caída no chão
(facto que a vítima desconhecia por estar nessa altura de costas para o
agressor) e que, além disso, B não terá disparado porque surgiram diversos
populares. Estes novos factos relacionam-se com os factos tipicamente
imputados ao arguido mas, uma vez “lidos” conjuntamente com aqueles,
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
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fazem com que a agressão em causa seja, provavelmente, uma tentativa de
homicídio (art. 131º, 22º, 23º e 14, nº 1 do CP). Em regra o Tribunal não os
pode conhecer (pelo menos legitimamente) porque tais factos implicariam
uma alteração substancial dos factos (art. 1º, al. f) e art. 359º do CPP)
descritos na acusação ou na pronúncia.
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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CAPÍTULO II
O PROBLEMA DA IDENTIDADE E VARIAÇÃO
DO OBJECTO DO PROCESSO
§ 1. As bases legais e os critérios doutrinários
I. Enquadramento legal dos problemas
1. A lei portuguesa não enuncia expressamente os diversos princípios
atrás invocados, como o da identidade do objecto do processo, o da sua
indivisibilidade ou da força consuntiva do caso julgado. Mas o regime legal
da alteração de factos e a consequente vinculação temática, nomeadamente
do JIC e do Tribunal de julgamento, a par da regra constitucional ne bis in
idem (art. 29º, nº 5 do CP) constituem manifestações de tais princípios.
2. A técnica seguida pelo CPP traduziu-se em definir o conceito de
alteração substancial de factos, no nº 1, al. f) do CPP, e usar depois esse
conceito ao longo do seu texto para limitar tematicamente certos actos ou
os poderes de cognição do tribunal (JIC e Tribunal de julgamento). Assim,
desde logo, a acusação do MP e do assistente limitam-se reciprocamente,
consoante a natureza dos crimes: nos crimes públicos e semi-públicos a
acusação do MP (art. 283º) vincula tematicamente (entenda-se, quanto à
factualidade nela descrita) a (eventual) acusação subordinada do assistente
(art. 284º, nº 1 do CPP) e nos crimes particulares a acusação do assistente
vincula tematicamente a acusação (facultativa) do MP (art. 285º, nº 3 do
CPP). A pronúncia (art. 303º) está tematicamente vinculada pela acusação
(art. 283º,284º e 285º do CPP) e pelo requerimento para abertura de
instrução (art. 287º, nº 1). E, finalmente, o Tribunal de julgamento está
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
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tematicamente vinculado pela acusação ou pela pronúncia (caso tenha
existido instrução) (cfr. arts 311.º, 358.º, 359.º e 379.º do CPP).
3. A violação desta regra da vinculação temática é cominada pelo CPP
com nulidades de diferente grau: uma nulidade mista no caso da pronúncia
(art. 309º), já que depende de arguição e se sana com o decurso do prazo de
8 dias; uma nulidade absoluta no caso da decisão final do julgamento (art.
379º), de conhecimento oficioso, e que afectará parcialmente a decisão
(art. 379º, nº 2, e 414º, nº 4 do CPP), isto é, exactamente na parte em que
representar uma alteração substancial de factos. A lei prevê ainda a
hipótese da rejeição parcial da acusação no despacho de saneamento do
processo (art. 311º, nº 2, al. b) por violação dos limites do objecto do
processo aferida à luz do conceito de alteração substancial de factos.
II. Delimitação positiva e negativa do problema
1. O problema da identidade, estabilidade e indivisibilidade do objecto
do processo (com a consequente força consuntiva do caso julgado) pode ser
considerado em duas perspectivas: uma positiva, através da qual se
procurará esclarecer o conteúdo do conceito de alteração substancial de
factos e o respectivos regime ao longo de todo o processo; uma perspectiva
negativa, através da qual se procurará delimitar as realidades que, por não
integrarem a problemática da alteração substancial de factos, devem ser
excluídas desse debate e, consequentemente, seguir outro regime jurídico.
2. Seguindo uma sugestão metodológica já adoptada anteriormente por
Teresa BELEZA, revela-se de grande utilidade realizar, em primeiro lugar,
uma delimitação negativa do problema para, dessa forma, determinar com
rigor o campo verdadeiramente problemático da matéria e nele concentrar
o essencial da nossa análise. Será também esta a técnica seguida: vamos
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
37
começar por delimitar as situações que não constituem uma alteração de
factos e, num segundo momento, passaremos a considerar só o essencial da
temática da alteração substancial de factos.
3. O conceito de alteração substancial de factos só parcialmente está
determinado no art. 1º, al. f) do CPP. Na verdade, este preceito diz-nos
quando é que uma alteração de factos se pode qualificar como substancial,
mas não nos diz quando é que existe uma alteração de factos. A
qualificação de uma alteração de factos como substancial só ocorre quando
se identifica uma possível quebra da identidade do objecto do processo,
traduzida numa alteração de factos (em pormenor, ISASCA, Alteração
substancial dos factos, 59 e ss). Por isso, sempre que a lei recorre a tal
conceito é fundamental analisar o problema em dois momentos distintos:
primeiro, identificar se temos ou não uma alteração de factos e, em
segundo lugar, ponderar se essa alteração de factos é substancial, de acordo
com os dois critérios legais do art. 1º, al. f) (qualitativo, crime diverso, e
quantitativo, pena máxima mais elevada). A delimitação negativa que se
segue reporta-se a estas duas parcelas distintas do conceito: a alteração de
factos e a sua qualificação como substancial que, quando ponderadas em
conjunto, representam uma mutação intolerável do objecto do processo.
4. A doutrina tem identificado diversas situações que reconhece não
constituírem um problema de identidade do objecto do processo, de
alteração de factos, eventualmente qualificada como substancial.
Desde logo, o regime dos factos completamente novos (e estranhos) em
relação ao objecto do processo;
Em segundo lugar, a alteração de factos que tem como efeito apenas a
subida dos limites mínimos da pena imputada ao arguido;
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38
Deve ainda ser ponderada a hipótese de o Tribunal abandonar, por falta
de provas, uma certa qualificação indiciária do crime imputado ao arguido
e passar a imputar-lhe, em consequência dessa falta de prova, um crime
mais grave (como acontece sempre que não se faz a prova de elementos de
um tipo privilegiado e, em consequência, se aplica o tipo base mais grave).
Não é igualmente um problema de alteração substancial de factos a
eventual agravação da pena feita pelo Tribunal superior em sede de
recurso, nos termos permitidos por lei.
Mais complexas, mas úteis para delimitar o alcance do próprio conceito
de alteração de factos, são as situações em que novos factos são invocados
a título de prova indirecta ou circunstancial, sem terem a ver com os factos
que integram a matéria da proibição e imputados ao agente no âmbito do
tipo incriminador.
Finalmente, é de excluir igualmente do conceito de alteração substancial
de factos o problema da alteração da qualificação jurídica, a que o
legislador de 1998 deu uma especial atenção criando regulamentação
expressa para o tema.
Vamos analisar com mais pormenor cada uma destas situações.
§ 2. Delimitação negativa do problema
I. O regime dos factos (completamente) novos
1. Os factos novos são todos os acontecimentos completamente
estranhos à unidade histórico-social de acontecimentos que, por
corresponderem a um ou vários tipos incriminadores, são imputados ao
arguido no processo. Os factos novos traduzem-se não numa diferente
representação da realidade que integra o objecto do processo, mas sim uma
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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realidade completamente diferente. São, nesse sentido, acontecimentos
completamente estranhos à sequência unitária dos factos que integram o
objecto do processo. De forma mais sintética, factos novos são todos os
acontecimentos completamente estranhos ao objecto do processo.
2. Os factos novos surgem em regra casualmente no processo criminal e
a única relação que com ele mantêm consiste em ter alguma eventual
ligação com o arguido. Na realidade, pode até acontecer que nem isso se
verifique; por exemplo, num processo por crime de dano (art. 212.º CP)
uma testemunha pode depor sobre um crime de abuso de confiança (art.
205.º CP) cometido por outra testemunha. Noutro exemplo distinto,
durante um processo em que se debate a responsabilidade do arguido pela
prática de umas ofensas graves à integridade física cometidas na pessoa de
X (art. 144.º CP) toma-se conhecimento que o arguido tinha no mês
anterior cometido um furto qualificado (art. 204.º CP). Este facto é
completamente estranho ao objecto do processo e por isso não gera
qualquer vicissitude para a tramitação processual. Em relação a esse facto o
MP tomará conhecimento oficioso do mesmo e, se tal facto corresponder a
um crime público, abrirá inquérito (art. 262º, nº 2 do CPP), iniciando-se,
portanto, um novo processo. Se o facto novo surgir durante o inquérito já
aberto e a sua investigação ficar concluída a tempo de ser deduzida
acusação em simultâneo, pode colocar-se a hipótese de ter lugar a conexão
de processos, nos termos dos art. 24º e ss do CPP. Caso contrário, nem
conexão haverá.
3. Aos factos completamente novos (e estranhos, portanto, ao objecto do
processo em que surgem) não se aplica o regime de alteração de factos (arts
1º, al. f), 303º e 358º e 359º do CPP), desde logo porque falta o pressuposto
essencial que é o de serem alterados os factos que integram o objecto do
processo. Se, não obstante, um JIC ou um Tribunal de julgamento conhecer
Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto _______________________________________________________________________________
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de factos novos, violará o princípio da acusação e a estrutura acusatória do
processo. Por isso, isto é, por estarem em causa estes princípios
estruturantes do sistema processual penal português, em relação a factos
novos não se pode sequer aplicar o regime do caso julgado de consenso,
previsto no art. 359º, nº 2 do CPP.
4. Sendo aberto um novo processo por factos novos a única hipótese que
se poderá colocar é a de o último processo a ser julgado conhecer também a
factualidade e a pena aplicada no primeiro processo, para efeito de
cumprimento do regime da pena única (arts 77ºe 78º do CP).
5. Deste enquadramento resulta também, para o problema da identidade
do objecto do processo, que esta só está verdadeiramente em causa quando
os factos são novos em relação à factualidade acusada (ou objecto da
pronúncia) mas mantém alguma relação com essa factualidade, pois caso
contrário serão facto completamente novos, isto é, estranhos ao objecto do
processo.
II. Alteração dos limites mínimos das molduras penais abstractas
1. Não alteram, igualmente, a identidade (jurídica) do objecto do
processo os factos que, quando conhecidos a par do objecto do processo,
apenas se repercutam nos limites mínimos das penas. Estes casos poderão
ser considerados uma alteração não substancial de factos (art. 358º, nº 1 do
CPP) sujeita, nos termos consagrados no preceito, ao regime do
contraditório, mas não se altera verdadeiramente a identidade do objecto do
processo (o conjunto de factos imputados ao arguido, no âmbito de um tipo
incriminador, num processo penal).
2. Um caso como este como acontecer quando se verifiquem os
pressupostos da reincidência, previstos nos artigos 75º e 76º do CP.
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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III. Falta de prova de factos favoráveis ao arguido
1. Não constituem igualmente alteração de factos as situações em que,
por falta de prova quanto a uma circunstância favorável ao arguido, o
Tribunal deixa de aplicar um tipo privilegiado e passa a aplicar uma norma
incriminador com uma pena mais severa.
2. Assim, por exemplo, se o arguido é pronunciado por homicídio a
pedido da vítima (art. 134º do CP) e não se prova que existiu um pedido
com as características exigidas na lei penal, o Tribunal deixará de aplicar o
tipo incriminador do art. 134º e passará a aplicar ou o art. 133º ou o art.
131º consoante os casos (que prevêem penas em abstracto mais graves).
3. Em situações desta natureza toda a factualidade relevante integra o
objecto do processo desde a acusação ou desde a pronúncia, consoante os
casos, por isso a ausência de prova sobre um dos factos não altera a
identidade do objecto relevante. Casos como este, devem ser tratados como
alterações da qualificação jurídica, nos termos que adiante se expõem, e
não como problemas da identidade factual do objecto do processo.
IV. O regime da”reformatio in pejus”
1. O art. 409.º, n.º 1 do CPP proíbe, dentro de certos limites, a
reformatio in pejus em processo penal: nos casos descritos no nº 1 do art.
409º do CPP não pode o Tribunal de recurso agravar a pena aplicada pelo
tribunal recorrido, com as excepções do nº 2 quanto à pena de multa.
Resulta, no entanto do nº1 do art. 409º, a contrario sensu, que a
possibilidade de agravação existe quando o recurso tiver sido interposto
pelo MP com esse propósito, mesmo que o arguido também recorra.
Nestes casos, poderemos ter uma agravação da responsabilidade, mas
não se verifica uma alteração do objecto do processo, porque os factos
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usados pelo Tribunal ad quem são os mesmos conhecidos pelo Tribunal a
quo.
2. Questão distinta é a da modificação da responsabilidade do arguido
por via de uma diferente qualificação jurídica utilizada pelo Tribunal ad
quem. O problema também não será um problema de alteração de factos,
mas antes do regime da alteração da qualificação jurídica na fase de
recurso. A esta questão dedicaremos algumas linhas mais adiante.
V. Circunstâncias probatórias estranhas à factualidade que integra a
matéria da proibição
1. Uma outra forma de enquadrar a relevância de novos factos
relativamente ao objecto do processo consiste em verificar se esses factos
se relacionam ou não com a factualidade que, por integrar a matéria da
proibição, é imputada ao arguido no âmbito do tipo incriminador. Este
crivo de análise permite diversas graduações:
a) Pode acontecer que os novos factos se reportem directamente à
matéria da proibição. Por exemplo: no julgamento em que o arguido
é acusado de espancar violentamente a vítima uma testemunha diz
(o que até aí não estava no processo) que o agressor usou para o
efeito um maço de madeira.
b) É possível, por outro lado, que sejam invocados outros factos que
não os descritos e que esses factos se integrem na sequência unitária
de acontecimentos que constituem a matéria da proibição,
reforçado probatoriamente a imputação dos factos típicos ao
arguido. Por exemplo, num julgamento em que é imputada ao
arguido uma tentativa de homicídio uma testemunha afirma que o
arguido tinha consigo nesse momento uma arma carregada, facto até
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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aí não descrito na acusação. A posse da arma pode ser usada para
apoiar a prova sobre a intenção homicida.
c) Noutra hipótese, os novos factos podem ser estranhos à sequência
unitária de acontecimentos que constituem a matéria da proibição,
mas têm o efeito de reforçar probatoriamente a imputação dos factos
típicos ao arguido. Por exemplo, no julgamento de um processo em
que se imputa ao arguido um crime de homicídio, mas em que
existem dúvidas sobre se foi ou não ele que disparou sobre a vítima,
uma testemunha declara que dois dias antes do homicídio viu o
arguido comprar uma pistola numa loja de armas. Este facto, a
aquisição da pistola, não constava da acusação e reforça
probatoriamente os indícios que permite a imputação do facto típico
ao agente. Mas, por outro lado, é um acontecimento estranho à
unidade sequencial de factos relatado na acusação.
2. A questão que se suscita é se nestes casos teremos uma alteração do
objecto do processo (isto é, da sua identidade) ou se, diversamente,
estaremos perante meras circunstâncias probatórias, legitimamente
produzidas no processo ao abrigo do princípio da investigação e dentro da
normal dialéctica processual dum julgamento, e que podem por isso ser
introduzidas no processo sem quebra da sua identidade.
A resposta a esta questão depende do conceito de “alteração de factos”
que se utilizar (veja-se infra Capítulo IV). Mas, pode desde já adiantar-se
que, excepto numa construção naturalista extrema, estes casos não parecem
implicar uma alteração intolerável da identidade do objecto do processo,
sendo antes meros resultados de diligências probatórias realizadas em
torno do objecto do processo que se mantém sempre o mesmo. O seu
regime deve ser o da normal dialéctica processual em sede de produção de
prova. Ou seja, a questão que se suscita a partir deste enquadramento é o de
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saber se estes aspectos constituem uma alteração de factos ou se,
diversamente, são apenas uma consequência da dialéctica processual no
plano probatório, não se alterando a identidade do objecto do processo.
A distinção que aqui se traça entre factos que integram o objecto do
processo e factos que surgem no processo com uma mera vocação
probatória em relação aos primeiros encontra-se aflorada no art. 339.º, n.º 4
do CPP quando este preceito contrapõe os factos alegados pela acusação e
pela defesa aos factos que resultarem da prova produzida em audiência.
Alguns destes podem ser factos que se visa imputar ao arguido mas outros
têm apenas uma função de prova em relação aos primeiros, nos termos
descritos, e por isso não devem ser tratados como problemas de alteração
de factos (isto é, do objecto do processo) mas como problemas de prova
(sujeitos portanto aos limites das regras de prova).
VI. Alteração de factos alegados pela defesa
1. Na lei vigente nem toda a alteração de factos fica sujeita ao mesmo
regime. O CPP contempla uma situação especial onde, apesar de se
verificar uma alteração não substancial de factos, não se segue o regime do
nº 1 do art. 358º. Trata-se da hipótese prevista no nº 2 do preceito: se a
alteração (não substancial) resultar de factos alegados pela defesa não se
segue o regime especial do contraditório, previsto no art. 358º, nº 1. Este
regime compreende-se pelo facto de, nestes casos, o arguido conhecer
previamente a factualidade que introduz no processo, sendo por isso
desnecessário seguir a tramitação prevista no art. 358º, nº 1 do CPP.
2. O que o preceito em causa não contempla é a necessidade de, no caso
do art. 358º, nº 2 do CPP, se respeitar o contraditório relativamente aos
novos factos quanto a outros sujeitos processuais, concretamente quanto ao
Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado _______________________________________________________________________________
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assistente e ao MP. Em alguns casos a alteração não substancial de factos
pode colidir com a pretensão acusatória do MP, sendo razoável respeitar o
contraditório mesmo à margem do nº 1 e 2 do art. 358º.
3. Nos casos descritos altera-se legitimamente o objecto do processo,
simplesmente não se segue o regime previsto no art. 358º, nº 1 do CPP.
4. A solução contemplada no nº 2 do art. 358º do CPP apenas se aplica à
alteração não substancial de factos e não aos casos, previstos no art. 359º,
de alteração substancial de factos.
5. Não existe um regime equivalente ao do art. 358º, nº2 do CPP para a
fase de instrução, já que o art. 303º não contempla este caso. Parece, no
entanto, razoável que o art. 358º, nº 2 do CPP seja analogicamente
aplicado, por identidade de razões, na fase de instrução.
VII. A alteração da qualificação jurídica
Diferente de todas as situações atrás analisadas é o problema da
alteração da qualificação jurídica. Nestes casos, o objecto do processo
mantém-se exactamente o mesmo; apenas se altera a qualificação dos
factos em relação à acusação, à pronúncia ou à decisão da 1ª instância,
consoante os casos. Para já interessa reter que o problema da alteração da
qualificação jurídica é distinto do problema da identidade (factual) do
objecto do processo, como aliás resulta claramente da lei após a reforma de
1998 (cfr. art. 358º, nº 3 do CPP). A complexidade deste problema e as suas
diversas vertente justifica que o seu tratamento seja autonomizado (cfr.
infra Capítulo III).
(FIM em 20.12.2001)