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TÍTULO: Os direitos dos estrangeiros não documentados no Brasil
RESUMO
O presente artigo visa a identificar os direitos dos estrangeiros reconhecidos pelas
ordensjurídicas doméstica e internacional, que deveriam ser assegurados no Brasil
independentemente da situação documental do estrangeiro. A abordagem adotada toma o
indivíduo como sujeito de direitos em âmbito nacional e internacional e, buscando apresentar
uma linha coerente de institutos normativos, será realizado um breve levantamento acerca dos
tratados internacionais e da legislação brasileira que resguardam os direitos dos estrangeiros, em
especial dosnãodocumentados,dentro dos limites constitucionais e jurisprudenciais
brasileiros.Vale dizer, o que se pretende é apenas jogar luz sobre os direitos dos trabalhadores
estrangeiros nãodocumentados no Brasil. Dessa forma, será demonstrado que, apesar de toda a
proteção normativa existente em âmbito internacional, a legislação brasileira infraconstitucional,
ao não adotar normas específicas que protejam o trabalhador imigrante e sua família, permite que
lhes sejam subtraídos direitos e garantias fundamentais à dignidade da pessoa humana.
OBJETIVO
O presente estudo tem por objetivo demonstrar, através de uma breve revisão
daliteratura de direitos humanos e da legislação nacional e internacional, que o Brasil não
resguarda adequadamente os direitos humanos dos trabalhadores imigrantes não documentados.
PALAVRAS-CHAVE
Direitos humanos, direitos dos estrangeiros, direito internacional, soberania.
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TITLE: The rights of non-documented aliens in Brazil.
ABSTRACT
This article aims to identify the foreigners’ rights recognized by national and international law, which should be
assured in Brazil regardless of foreigners’ documental situation. Taken approach adopt individuals as the subject
of national and international rights and, looking forward to show a coherent path of normative institutes, it will
design a brief survey about international treaties and Brazilian domestic law that protects foreigners’ rights,
specially of non-documented people, within constitutional limits and Brazilian jurisprudence. The main purpose of
this paper is to enlighten the non-documented foreign workers’ rights in Brazil. Therefore, it will be demonstrated
that, despite of some protection assured by international law, the Brazilian domestic law is insufficient to protect
the basic human rights of non-documented foreign workers and its families.
OBJECTIVE
This study aims to demonstrate that, through a brief literature review of human rights and
national and international legislation, Brazil does not protect properly the human rights of non-
documented immigrant workers.
KEYWORDS
Humans rights, foreigners‟ rights, international law, sovereignty.
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A rectaratio tem, com efeito, ao longo dos séculos, sempre
propugnado por um direito das gentes verdadeiramente universal.
Definitivamente, não se pode visualizar a humanidade como
sujeito do Direito a partir da ótica do Estado; o que se impõe é
reconhecer os limites do Estado a partir da ótica da humanidade.
(Cançado Trindade)
INTRODUÇÃO
Na região central da cidade de São Paulo, encontram-se milhares de imigrantes
nãodocumentados trabalhando na indústria têxtil, majoritariamente bolivianos, muitas vezes em
condições análogas às de escravidão. Trata-se de uma realidade complexa, a qual não se
pretende,aqui, investigar amplamente. Contudo, essa realidade expõe um gravíssimo problema da
legislação brasileira no trato dos estrangeiros nãodocumentados: considerá-los “ilegais” e sujeitá-
los à pena de deportação os submete à clandestinidade, fazendo com que sejam privados da
proteção do Estado na garantia de seus direitos humanos.
Os direitos humanos, no sentido contemporâneo do termo, são aqueles que devem ser
reconhecidos a todo ser humano e por decorrência, tão somente, de sua mera existência. Vale
dizer, são direitos que visam a resguardar condições de sobrevivência digna, bem como a
proteger o indivíduo das agressões perpretadas pelo Estado. Os direitos humanos são universais
e obrigam todos os Estados a respeitá-los.
Dentro dessa perspectiva, alguns autores, como Guido Soares, por exemplo, apontam
que o Brasil possui um ordenamento jurídico bastante avançado no que tange à proteção dos
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direitos humanos.Contudo a visão que se apresentará neste artigo é outra. Sem negar os avanços
realizados e o acerto dos rumos tomados desde a redemocratização do país, pretende-se
demonstrar, através de uma breve revisão da literatura de direitos humanos e da legislação,
nacional e internacional, que o Brasil não resguarda os direitos e garantias fundamentais dos
trabalhadores imigrantes.
Este trabalho se apresenta dividido em duas partes: na primeira, será investigadaa
universalidade dos direitos humanos e a receptividadedesses direitos pelo Brasil; na segunda, será
apresentada a abordagem internacional do direito dos trabalhadores migrantes como uma
especialidade dos direitos humanos universais. Desse modo, pretende-se iluminar o grave atraso
brasileiro quanto à proteção dos direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores migrantes
que, ao não serem protegidos por uma legislação especial1,ficam vulneráveis e desprotegidos, até
mesmono que diz respeito aos seusdireitos e garantias fundamentais.
OS DIREITOS HUMANOS UNIVERSAIS
Desde o final da Segunda Guerra mundial, com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, considera-se que todo e qualquer ser humano, independente de sua nacionalidade, é
detentor de direitos e liberdades individuais que devem ser assegurados por qualquer Estado a
qualquer pessoa humana. Em verdade, a internacionalização dos Direitos Humanos foi uma
resposta às atrocidades cometidas por governos totalitaristas durante as duas grandes guerras do
século XX, e se desdobrou em um movimento extremamente recente na história, conformando a
chamada concepção contemporânea dos direitos humanos (PIOVESAN, 2012).
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Essa proteção mínima garantida a cada ser humano pelas Nações Unidas foi,
posteriormente, reproduzida regionalmente, nos continentes Americanos, Europeu e Africano, e
nacionalmente, com a incorporação dessas garantias no ordenamento jurídico nacional de cada
Estado. No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, os valores propalados pelos tratados
internacionais foram incorporados ao ordenamento jurídico pátrio e sucessivas ratificações de
tratados internacionais reforçaram o primado da prevalência dos direitos humanos. Assim,
intensifica-se a interação e a conjugação do Direito Internacional e do Direito interno, que
fortalecem a sistemática de proteção dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógicas
próprias, fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos.”(PIOVESAN, 2012, p. 71)
O sentido contemporâneo de direitos humanos evoluiu ao longo do tempo, de maneira
que esse conceito surge, também, da universalização dos direitos definidos através dos processos
políticos que surgem com os acordos internacionais. Assim, embora a maior parte dos
estudiosos, ao usar a expressão “direitos humanos”, estar se referindo aos termos definidos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR em inglês), bem como nas convenções
subsequentes, BonnyIbhawoh define “direitos humanos” como os direitos e liberdades que
antecedem e que conformam a UDHR.
Por sua vez,Jack Donellydestaca que os direitos humanos não eram tema de debates na
arena internacional antes de Segunda Guerra Mundial, pois, até aquele momento, eram tratados
como assunto doméstico(DONELLY, 2007). Os Estados, principais atores políticos nas relações
internacionais, eram vistos como soberanos e o princípio mais elementar era o da não-
intervenção. Assim, o histórico traçado por Donellytem início nas convenções pactuadas no pós-
guerra e durante a Guerra Fria, passando pela evolução ao longo da década de 1970, com o
surgimento de ONGs e com a regionalização do tema. Esse mesmo autor menciona, ainda, a
expansão e a institucionalização ocorrida durante a década de 1980, quando se verifica
numerosos acontecimentos políticos relevantes ao redor do globo, tais como a queda das
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ditaduras na América Latina, no Paquistão, na Coréia do Sul e nas Filipinas, que colocaram em
evidência a discussão sobre os direitos humanos.
Donellysugere a consolidação do progresso, as respostas ao genocídio na década de 1990
e os atentados de 11 de setembro, quando houve marcante inflexão na política das relações
internacionais, como elementos determinantes do conceito de direitos humanos. Desde então, as
violações aos direitos humanos, especialmente as cometidas por ditadores contra sua população
civil, têm sido muito menos toleradas pela opinião pública internacional, de modo que o
indivíduo passou a ser detentor de direitos universais, independente do Estado Nacional em que
se encontra e a comunidade internacional tem buscado protegê-lo, superando o princípio
internacional da soberania e o da não intervenção.
BonnyIbhawoh também traça uma excelente evolução histórica do conceito de direitos
humanos, contextualizando cada interpretação do termo em seus respectivos tempo e lugar.
Afirma, entretanto, que a consciência internacional do pós Segunda Guerra Mundial, de
necessidade de proteção dos direitos básicos de todos os povos através de algum parâmetro
universalmente aceitável, influenciou, em boa medida, a Carta das Nações Unidas, de 1945, em
que se reafirma a “fé nos direitos humanos fundamentais, na igualdade de direito entre homens
e mulheres e entre nações grandes e pequenas”(IBHAWOH, 2007).
O fato é que, independente de quando surgiramos direitos humanos, o compromisso de
promover os direitos humanos expressos na Carta da ONU de 1945 foi seguido na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (UDHR, em inglês). Essas convenções que,
posteriormente, foram replicadas em nível regional na Europa, nas Américas e na África,
constituem, atualmente, a base dos padrões internacionais contemporâneos de direitos humanos.
Segundo Flávia Piovesan, a concepção contemporânea de direitos humanos é fruto da
internacionalização dos direitos humanos, constituindo um movimento recente na história, a
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partir do Pós-Guerra, que apresenta o Estado como o grande violador de direitos
humanos(PIOVESAN, 2012). Para Ferrajoli, os direitos humanos simbolizam a lei do mais fraco
contra a lei do mais forte, na expressão de um contra poder em face dos absolutismos, advindos
do Estado, do setor privado ou mesmo da esfera doméstica(FERRAJOLI, 2002)2.
Pode-se extrair das posições mencionadas acima que, conforme argumenta Ibhawoh, os
direitos humanos são anteriores às Guerras Mundias, porém sua concepção contemporânea
decorre da internacionalização e, principalmente, da universalização dos direitos humanos
ocorridaa partir da Segunda Guerra, marcadamente com a Carta das Nações Unidas (1945) e
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que inovou o tema ao reconhecer o
homem como sujeito de direitos fundamentais(CARVALHO RAMOS, 2008).
A proteção dos direitos humanos universais
O problema que decorre da concepção contemporânea dos direitos humanos é como
assegurar direitos e garantias fundamentais de pessoas que estejam fora do território de seu
Estado de origem. A universalização dos direitos humanos, segundo Andrew Linklater, visa a
assegurar direitos e garantias individuais a qualquer homem, em qualquer território, resguardados
pela comunidade internacional. Porém, essa distinção entre homens e cidadãos criou um sério
problema para a teoria política internacional: o problema de como conciliar a atual diversidade e
divisão das comunidades políticas com a crença recém-descoberta da universalidade da natureza
humana(LINKLATER, 1981).
A função primordial do Estado-nação é a de proteger seus cidadãos, que, aliás, é a
origem de sua legitimidade. Portanto, em sua essência, o dever do Estado de proteger dizia
respeito apenas aos cidadãos reconhecidos como tal, ou seja, dotados de cidadania. Contudo, a
natureza da cidadania tem sido questionada, por exemplo, tanto pela erosão do direito à
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privacidade, quanto pela proliferação de velhos temas que ganham nova atenção, tais como o
status de comunidades aborígenes, de expatriados, de refugiados, etc.(SASSEN, 2006).
Para lidar com essa problemática, Rossana Rocha Reis desenvolve o conceito de
cidadania pós-nacional, em que argumenta que o fortalecimento do regime internacional de
direitos humanos levaria à transferência de direitos do cidadão para o indivíduo, demaneira que a
cidadania poderá deixar de ser o elemento garantidor de direitos tomados, então, como
garantidores da dignidade inerente da pessoa humana, não mais de sua nacionalidade(REIS,
2004).
O indivíduo, agora detentor de direitos universais, independente do Estado-nação em
que se encontre3, passou a ser objeto de preocupação da comunidade internacional, superando os
princípios internacionais da soberania e da não intervenção. Isso pode ocasionar uma possível
mudança estrutural do sistema, que permitiria uma autodeterminação individual ou coletiva,
independente dos Estados(LINKLATER, 1981). Nesse sentido, embora sem radicalismos, há
uma corrente de teóricos (Cosmopolitas) que visualiza o surgimento de uma democratização
global, tanto das instituições como da participação política dos indivíduos na arena global como
um todo.
Os Cosmopolitas afirmam que a globalização ocasionou uma justaposição de jurisdições,
de maneira que, em um mesmo local, o poder soberano pode estar dividido entre as autoridades
internacionais, nacionais e locais, como ocorre na União Europeia, e acreditam que está em curso
uma reconfiguração do poder político, não mais norteada pelas demarcações tradicionais de
interno/externo e territorial/não territorial (HELD, 2004). Deste conceito, decorrem dois
outros: a democracia cosmopolita, que trata da possibilidade de novas estruturas de poder
representativas; e a cidadania cosmopolita, que é o reconhecimento dos direitos e garantias
individuais independente da subsunção do indivíduo a algum Estado Nacional.
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Os Cosmopolitas afirmam que a democracia, enquanto sistema de governo, expandiu-se
largamente após o fim da guerra fria e a vitória do Ocidente sobre o sistema
soviético(ARCHIBUGI, 2004). De fato, como decorrência de movimentos populares, muitos
países do Leste Europeu e do sul adotaram constituições democráticas e, apesar de inúmeras
contradições, aos poucos, governos autônomos têm se expandido e se consolidado. Nesse
sentido, recentemente, os eventos ocorridos no Oriente Médio, chamados de Primavera Árabe,
reforçam a tese de Archibugi, pois, ainda que não surjam alinovas democracias, o processo de
revisão e discussão dos sistemas políticos atuais naquela região demonstra-se profundo,
complexo e inegável.
Quanto à cidadania cosmopolita, há um argumento contrário a ser observado, que
sustenta que o quadro proposto pela regulação cosmopolita, baseado em uma cidadania global de
direitos ainda fictícios, não reconhece os direitos democráticos dos cidadãos, nem a expressão
coletiva desses direitos na soberania estatal, o que poderia implicar na perda da garantia da
proteção que oEstado-naçãooferece. Deve-se ponderar, ainda, que, enquanto o sistema
predominante for o de Estados-nações, a proteção aos direitos dos indivíduos, bem como a
cidadania e sua garantia de direitos e deveres, permanecerá dependente, primordialmente, dos
Estados(CHANDLER, 2003).Por outro lado, o quadro da regulação do sistema democrático
moderno seria histórica e logicamente decorrente da presunção formal de auto governança
individual igualitária(CHANDLER, 2003, p. 341).
Em outra perspectiva universalista, Antônio A. Cançado Trindade sustenta que os
direitos humanos são a parte essencial do Direito Internacional, ou seja, seria uma expressão
dojus gentium, queé o “direito natural identificado pela rectaratio, de modo a se apresentar como
um direito „superior‟, de aplicação universal, que se propõe a regulamentar as relações humanas
em uma base ética, formando uma espécie de „razão comum de todas as nações‟ em busca da
realização do bem comum”(CANÇADO TRINDADE, 2006).Cançado Trindade relembra a
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concepção de jus gentium de Hugo Grotius, para quem o Estado não é um fim em si mesmo, mas
“um meio para assegurar o ordenamento social consoante à inteligência humana, de modo a
aperfeiçoar a „sociedade comum que abarca toda a humanidade‟”. No início do século XVII,
Grotiusadmite a possibilidade da proteção internacional dos direitos humanos contra o próprio
Estado,ao contrário da perspectiva hegeliana, que identifica na personificação do Estado todo-
poderosouma influência nefasta na evolução do Direito Internacional em fins do século XIX e
na primeira metade do século XX.
A proposta de Cançado Trindade é a de resgatar o legado do jus gentium em evolução,
sustentando uma concepção universalista do Direito Internacional, voltada ao mundo em que
vivemos. Vale dizer, colocar o Estado a serviço das pessoas, não o contrário, bem como tomar o
Direito Internacional como o direito das gentes, e não um Direito entre Estados. Segundo o
Autor, “o ser humano passa a ocupar, em nossos dias, a posição central que lhe corresponde,
como sujeito do direito tanto interno como internacional, em meio ao processo de humanização
do Direito Internacional”.
OS DIREITOS HUMANOS DOS ESTRANGEIROS
Para Guido Soares (2004) e André de Carvalho Ramos(2008), os estrangeiros são
indivíduos que, embora estejam domiciliados ou residentes num determinado Estado, não
possuem a nacionalidade desse Estado. Trata-se, portanto, de um referencial negativo: qualidade
ou status de um indivíduo que não tem os mesmos direitos nem os mesmos deveres daqueles
outros indivíduos, os quais a ordem jurídica considera como seus nacionais. Desse modo, parte-
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se do estudo da nacionalidade das pessoas físicas e dos direitos e deveres atribuídos aos
nacionais, e que, em princípio, não se acham reconhecidos aos estrangeiros.
A caracterização do conceito de nacionalidade, que Guido Soares afirma ser o
vínculo mais antigo da História da Humanidade, vez que une as pessoas e entre elas e que
estabelece as bases para o exercício do poder, éa configuração por parte de uma autoridade local
de uma unidade política autônoma, a qual viria a constituir a unidade indivisível que compõe as
relações internacionais. O estrangeiro seria, assim, o indivíduo alheio ao grupo social e, por isso,
vítima das maiores hostilidades. Para Carvalho Ramos, o estrangeiro pode ser observado por
diferentes realidades normativas: i) a do imigrante, que é o estrangeiro que migra para outro
Estado com o intuito de ali permanecer, legal ou ilegalmente; ii) o estrangeiro transitório, que se
desloca a outro Estado em caráter temporário; iii) o estrangeiro em situação especial, que devido
a acordos bilaterais, multilaterais ou regionais possuem os mesmo direitos que os cidadãos
nacionais; e iv) os refugiados.
Ao observar a realidade normativa do imigrante, Neide Lopes Patarraestabelece uma
classificação dos imigrantes em três categorias: i) documentados (que deveriam ser igualados aos
cidadãos nacionais); ii)não-documentados (cuja ocorrência deveria ser reduzida e,
simultaneamente, redobrada a atenção para evitar xenofobia, etnocentrismo ou racismo); e iii)
refugiados/asilados (que devem ter seus direitos fundamentais garantidos em qualquer lugar,
bem como deveriam ter acesso a alojamento adequado, a educação e a saúde).
Os imigrantes
Dentre as categorias de estrangeiros estabelecidas por André de Carvalho Ramos, três
delas parecem menos problemáticas, a de estrangeiros temporários, de estrangeiros especiais e de
refugiados, pois todas estão submetidas a regimes especiais. Os estrangeiros temporários são
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condicionados às determinações do país de destino; os estrangeiros especiais são condicionados
às determinações estabelecidas nos próprios tratados que os constituem como especiais; e os
refugiados são tutelados por um regime especial internacional que conta inclusive com um Alto
Comissariado para Refugiados dentro da Organização das Nações Unidas.
A categoria que será analisada a seguir é a outra: a dos imigrantes; que são os
estrangeiros que teriam direitos assegurados se estivessem sob a jurisdição de seu próprio
Estado, mas permanecem em território de outro Estado, que não o reconhece como
nacional.Esse dilema é analisado por Aristides Zolberg, que argumenta que a organização política
do espaço territorial no mundo passa a ser uma de exclusão mútua de soberanias. Vale dizer,
cada espaço é de soberania de algum Estado, que exclui a de todos os demais e, nessa
perspectiva, o imigrante deixa de ser aquele que surge da natureza do movimento (algo intrínseco
à natureza humana), para ser o que se transfere de uma jurisdição à outra(ZOLBERG, 1994).
O imigrante, então, começa a ser visto como o desviante da norma do novo mundo
politicamente organizado. Zolberg alerta que o fluxo de pessoas, o direito de deixar um país e
transitar entre fronteiras, reduziria significativamente a autoridade soberana sobre aquele
território, o que leva à reflexão de que, mais do que uma questão de segurança, ou de viabilidade
econômica de gerir um território, a livre migração implica perda de poder do governo soberano
sobre seu território e seu povo.Para Catherine Dauvergne, nesses tempos de globalização
contemporânea, as leis de migração e sua aplicação são, cada vez mais, o último bastião da
soberania(DAUVERGNE, 2008).
Dentre os imigrantes em sentido estrito, os documentados são aqueles que o Estado de
destino aceitou receber e autorizou o ingresso em seu território e que, por isso, tende a
reconhecer e assegurar os direitos humanos desses imigrantes.A questão que se impõe,
sobretudo, é quanto aos imigrantes nãodocumentados que, embora não pertençam ao povo
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daquela nação ou, mesmo, de não serem desejados naquele Estado,também são titulares de
direitos humanos, de modo que todo e qualquer Estado deve assegurar a eles seus direitos
humanos fundamentais.
O ordenamento jurídico brasileiro
A Constituição Federal, ao estabelecer, em seu artigo 5º, inciso II, que os direitos e
garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados, ou dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte”,
elimina qualquer questionamento quanto à obrigatoriedade de cumprimento das normas de
tratados, ou de organismos internacionais, aos quaiso Brasil tenha soberanamente aderido. O
Brasil é membro fundador na Organização dasNações Unidas, é membro da Organização dos
Estados Americanos e signatário de numerosos tratados internacionais de proteção aos direitos
humanos.
Sendo assim, o primeiro diploma a ser observado deve ser a Declaração Universal de
Direitos Humanos (UDHR), que foi o marco fundamental dos direitos humanos
contemporâneos. Nesta Declaração foi estabelecido que:
Artigo II – 1. Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor,
sexo, língua, religião, opinião politica ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (grifos adicionados)
O texto do artigo II da Declaração Universal de Direitos Humanos encontra-se replicado
na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 1º.), no Protocolo Adicional à
Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de deireitos econômicos, sociais e
culturais (artigo 3º.). Seguindo na UDHR, temos:
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Artigo IV – Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o
tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V – Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante. (grifos adicionados)
Artigo VIII – Toda pessoa tem o direito de receber dos Tribunais nacionais
competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que
lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
Artigo X – Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e
pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus
direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ela.
Prosseguindo com os dispositivos de proteção universal aos direitos humanos, a
Declaração de Direitos Humanos de Viena (1993) estabelece que:
Os direitos humanos e as liberdades fundamentais são direitos naturais aos seres
humanos; sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos
Governos.
...
5. Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-
relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma
global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora
particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim
como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados
promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam
quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.
15. O respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem distinções de
qualquer espécie, é uma norma fundamental do direito internacional na área dos
direitos humanos. A eliminação rápida e abrangente de todas as formas de racismo e
discriminação racial, de xenofobia e de intolerância associadas a esses
comportamentos deve ser uma tarefa prioritária para a comunidade internacional.
Os Governos devem tomar medidas eficazes para preveni-las e combate-las.
Em âmbito doméstico e corroborando com os dispositivos internacionais, a Constituição
Federalbrasileira estabelece:
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Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
...
III – a dignidade da pessoa humana;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
...
Par. 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.
Guido Soares esclarece que os direitos humanos têm por finalidade proteger a pessoa
humana na sua realidade individual (os direitos individuais oponíveis contra o Estado), na sua
vivência coletiva (os direitos exigíveis do Estado) ou como individualidade ou pessoas inseridas
no mundo (os direitos ditos difusos)(SOARES, 2004). Vale dizer que não se pode distinguir
indivíduos nacionais de estrangeiros, pois, conforme o artigo I da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Sendo assim, o termo “estrangeiros residentes” mencionado no caput do artigo 5º deve
ser entendido em sentido amplo. Ainda de acordo com o mesmo diploma, todo homem tem
capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas na Declaração, sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Observa-se, portanto, que
fazer discriminação em razão de origem nacional passa a ser a negação da universalidade da
pessoa humana.
A Ação de Viena,ao dispor sobre os trabalhadores migrantes, estabelece:
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33. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos insta todos os Estados a
garantirem a proteção dos direitos humanos de todos os trabalhadores migrantes e
suas famílias.
34. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos considera particularmente
importante a criação de condições que estimulem uma harmonia e tolerância entre
trabalhadores migrantes e o resto da sociedade do Estado onde residem.
35. A Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos convida os Estados a
considerarem a possibilidade de assinar e ratificar, na maior brevidade possível, a
Convenção Internacional sobre o Direito de Todos os Trabalhadores Migrantes e
seus Familiares. (Nações Unidas, 1993)
NoBrasil, portanto, não se poderiaadmitir a discriminaçãonegativa em relação aos
imigrantes. Embora seja permitido ao país dar tratamento diferenciado aos migrantes
documentados com relação aos migrantes em situação irregular, ou entre imigrantes e nacionais,
este tratamento diferencial deve ser justo, objetivo, proporcional e não ferir os direitos humanos.
Dentre as discriminações aceitáveis, por exemplo, estariam as distinções entre imigrantes e
nacionais referentes ao exercício de alguns direitos políticos. Além disso, é permitido estabelecer
mecanismos para controlar entradas e saídas de migrantes em situação irregular no seu território,
que devem ser sempre aplicados com estrita observância da garantia do devido processo legal e
do respeito pela dignidade humana.
Assim, a situação migratória de uma pessoa não pode, de qualquer forma,
consubstanciar-se em justificativa para privá-la do gozo e exercício de seus direitos humanos,
incluindo aqueles relacionados ao emprego. O migrante, assumindo uma relação de trabalho,
adquire direitos como trabalhador, que devem, conforme entendimento4da Corte Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH), ser reconhecidos e garantidos, independentemente do emprego
regular ou irregular no Estado. Estes direitos são decorrentes da relação de emprego.
Evidentemente, o Brasil não tem a obrigação de oferecer emprego para os imigrantes não
documentados, entretanto, uma vez estabelecida uma relação desta natureza, o Estado tem
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odever de assegurara proteção aos direitos humanos de todos os trabalhadores,
independentemente de sua condição de nacionais ou estrangeiros. De igual modo, o Estado tem
o dever de não tolerar situações de discriminação contra os imigrantes nas relações de trabalho
estabelecidas entre empregadores e empregados, de maneira quenão se deve admitir relações de
trabalho que violem os padrões internacionais mínimos estabelecidos.
Portanto, é imperioso assegurar a estrita observância dos regulamentos atinentes às
relações de trabalho, independentemente da nacionalidade, origem social, étnica ou racial, e status
de imigração.Dessa maneira, cabe ao Estado, por meio de seus agentes, tomar todas as medidas
administrativas necessárias, legislativas ou judiciais para impedir situações discriminatórias e,
principalmente, para eliminar as práticas de empregadores, locais, regionais, nacionaisou
internacionais, que discriminem e que firam os direitos humanos dos trabalhadores migrantes.
No Brasil, contudo, a legislação infraconstitucional que dispõe sobre os direitos e deveres
dos estrangeiros, a Lei 6.815/1980, chamada de Estatuto do Estrangeiro, em lugar de assegurar
os direitos humanos fundamentais dos estrangeiros, ocupa-se essencialmente em criminaliza-lo:
Art. 125. Constitui infração, sujeitando o infrator às penas aqui cominadas:
I – entrar no território nacional sem estar autorizado (clandestino);
Pena – Deportação.
II – Demorar-se no território nacional após esgotado o prazo legal de estada;
Pena – Multa..., por dia de excesso,... e deportação, caso não saia no prazo fixado.
...
VII – empregar ou manter a seu serviço estrangeiro em situação irregular ou
impedido de exercer atividade remunerada;
Pena – Multa..., por estrangeiro.
VIII – infringir o disposto nos artigos 21, par. 2o, 24, 98, 104, par. 1
o ou 2
o e 105.
5
Pena – Deportação.
18
Conforme se observa, o estrangeiro que não estiver devidamente autorizado a entrar e
permanecer no país, ou que não estiver autorizado a exercer atividade remunerada, poderá a
qualquer momento ser detido e deportado. Conforme elucida Francisco Resek:
A deportação é uma forma de exclusão, do território nacional, daquele estrangeiro
que aqui se encontre após uma entrada irregular – geralmente clandestina -, ou cuja
estada tenha se tornado irregular – quase sempre por excesso de prazo ou por
exercício de trabalho remunerado(RESEK, 2008).
O Estatuto do Estrangeiro não faz qualquer alusão à proteção dos direitos e garantias
fundamentais dos estrangeiros, tampouco o faz sobre a proteção dos trabalhadores imigrantes e
de suas famílias. O que diz a lei brasileira é que qualquer pessoa que esteja no Brasil sem a devida
permissão das autoridades estatais, deve ser deportada, mesmo que tenha filhos e/ou cônjuge
brasileiros, mesmo que esteja empregado há anos e totalmente integrado à vida comunitária,
mesmo que venha contribuindo com a economia e com o desenvolvimento do país. A situação é
tão absurda que, na prática, os processos de deportação de estrangeiros têm sido analisados caso
a caso e, devido a algumas Resoluções Normativas do Conselho Nacional de Imigração6, tem
sido priorizado a reunião familiar e sido permitida a regularização da estada de alguns imigrantes
não documentados.
Contudo, é impossível compreender a real dimensão do problema sem observar a
hierarquia das normas e o descompasso entre as leis superiores e as inferiores. Os direitos dos
estrangeiros se subdividem em três categorias jurídicas distintas: i) dos direitos fundamentais
previstos na Constituição; ii) dos direitos fundamentais por irradiação (art. 5º. Pár. 2º., CF/88); e
iii) direitos previstos em leis ordinárias e tratados internacionais diversos, em geral
bilaterais(CARVALHO RAMOS, 2008). As duas primeiras categorias, as de direitos
fundamentais, são as superiores e compõe o núcleo duro dos direitos humanos, que são
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universais, indisponíveis e que devem ser assegurados indiscriminadamente a nacionais e
estrangeiros, regulares ou clandestinos.
Quanto à terceira categoria, a dos direitos previstos em leis ordinárias e tratados diversos
bilaterais, estas devem estar em consonância com as normas constitucionais e multilaterais. É
nesta categoria que se encontra o Estatuto do Estrangeiro e onde se identifica o problema a ser
enfrentado: a contribuição do Estado brasileiro, por omissão, para a violação dos direitos
fundamentais de trabalhadores imigrantes nãodocumentados.
O tempo na Lei de imigração
A lei 6.815/1980, quando estabelece as infrações e as penas, tal como em um Código
Penal, atribui ao ingresso e à permanência irregulares a pena de deportação. O intuito do
legislador, evidentemente, era o de coibir a conduta tipificada. Contudo, não se faz a
diferenciação entre uma conduta recente e uma situação consolidada,entre o estrangeiro que
recém incorreu em situação violadora e o estrangeiro que vive há anos no país, integrante de
estrutura social acomodada e que exerce atividade remunerada de forma irregular por anos a fio.
O decurso de tempo que o estrangeiro permanece em território brasileiro, legal ou
ilegalmente, é imperioso para o julgamento da situação de um imigrante no país. O tempo exerce
um papel de enorme relevância nas Leis de Imigração, inclusive para a construção de hierarquias
quanto ao status de pertencimento(STUMPF, 2005). É incontroverso que para o imigrante
documentado o tempo que permanece em um país em absoluta consonância com o
ordenamento local funciona com um prêmio. Entretanto, se em alguns países quanto maior o
tempo que o imigrante não documentado permanece maior o delito, há que se observar que
maior será sua integração com a comunidade local, sua contribuição com a economia,
trabalhando, consumindo, pagando impostos, etc.
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No caso de conduta recente, a legislação parece adequada ao fim a que se pretende, bem
como em consonância com o a legislação de direitos humanos fundamentais ou fundamentais
por irradiação. Entretanto, no caso de imigrante nãodocumentado que esteja em situação
consolidada, enraizados no país, a lei produz efeitos desastrosos, como, por exemplo, ocorre
com muitos bolivianos em São Paulo.
O emblemático caso dos bolivianos em São Paulo
A situação de vulnerabilidade dos imigrantes bolivianos que são recrutados paratrabalhar
na indústria têxtil na cidade de São Paulo é notória. Diversos estudos foram produzidos sobre
essa imigração e foi constatado que se trata de um esquema no qual os imigrantes geralmente se
percebem envolvidos em servidão por dívida, podendo se submeter à prostituiçãoou outras
formas de exploração sexual, e ao trabalho forçado, em uma condição análoga à da escravidão,
podendo estar sujeitos, até mesmo, ao tráfico ilegal de órgãos(CACCIAMALI & AZEVEDO,
2005). Conforme esclarecem Maria Cristina Caccialmali e Flávio Antônio G. De Azevedo,
O tráfico humano produz a exploração de suas vítimas, não apenas pela condição de
ilegalidade na qual elas passam a estar circunstanciadas, mas também pelo fato de
ser este o seu desdobramento natural. Uma vez as vítimas enredadas nesse processo,
elas são consideradas perante a lei como infratoras. Há também o fato de tratar-se
de organizações complexas e aparatadas de conexões internacionais, capazes de
atuar em distintas regiões que perfazem o trajeto do deslocamento clandestino...
As vítimas são mantidas em situação de exploração por mecanismos de coerção:
exercendo ameaças e o uso da força, restrições físicas à liberdade de movimento,
abusos, violência, fraude, cativeiro, confisco de documentos, entre outros...
Devido a sua natureza transnacional, aos seus dispositivos e mecanismos de
ocorrência e ao seu alto grau de complexidade, o tráfico de pessoas e/ou o
contrabando de imigrantes encontra-se diretamente associado ao trabalho forçado
no meio urbano...
Uma questão bem documentada refere-se ao fato que as estruturas legais de muitos
países veem os imigrantes clandestinos mais como criminosos do que como vítimas,
ressaltando o seu envolvimento com a ilegalidade, e tratando-os como infratores das
leis de imigração (CACCIAMALI & AZEVEDO, 2005). (grifos adicionados)
21
O problema apresentado evidencia como a lei que deveria coibir a imigração de
nãodocumentados favorece redes clandestinas de tráfico de pessoas e de recrutamento de mão
de obra estrangeira para trabalho em condições análogas às de escravidão. Os imigrantes
bolivianos nãodocumentados, por temerem a deportação, temem o Estado e a Justiça e vivem
privados de seus direitos e garantias fundamentais. O Estado brasileiro, que poderia lhes
assegurar condições dignas de trabalho e de vida, com a atuação de seu poder judiciário em favor
da garantia de seus direitos frente àqueles que os exploram, opta por tratar esses milhares de
estrangeiros que vivem em condição degradante como criminosos.
Nesse sentido, a lei 8.615/80, ao não diferenciar o imigrante que está irregular devido a
uma conduta recente daquele cuja situação esteja consolidada, impede que esse ciclo vicioso seja
rompido. Em situação semelhante, a Corte Interamericana de Direitos Humanos(Corte) se
manifestou, através da Opinião Consultiva nº18/2003, reconhecendo que os trabalhadores
migrantes em situação irregular, por medo deportação, não recorrem à Justiça para reivindicar
seus direitos. Em que pese, a princípio, um trabalhador imigrante não documentado ser passível
de deportação, a Corte assevera que ele deve sempre ter o direito de ser representado perante o
órgão competente para ter reconhecidos todos os seus direitos trabalhistas. E, neste aspecto, é
urgente ponderar que existem diferentes situações que deveriam ser tratadas separadamente.
A Corte considera que os trabalhadores não documentados migrantes, que estão em uma
posição de vulnerabilidade, e de discriminação em relação aos empregados nacionais, têm os
mesmos direitos trabalhistas dos demais trabalhadores do Estado de emprego, e o Estado deve
adotar todas as medidas necessárias para garantir que tais direitos sejam reconhecidos e aplicados
na prática. No caso brasileiro, o Estado deveria reconhecer que trabalhadores imigrantes que
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estejam em situação consolidada não devem ser deportados, ao contrário, devem ter sua situação
de fato(a de residente) reconhecida pelo direito.
O primeiro passo no sentido de reverter o descompasso existente estre a proteção que a
legislação brasileira oferece e àquela que realmente se verifica em relação aos trabalhadores
migrantes, seria a ratificação das Convenções sobre os Trabalhadores Migrantes e suas
disposições complementares (de nº. 143/1975, da Organização Internacional do Trabalho) e a
adesão e ratificação à Convenção sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores
Migrantes e Membros de suas Famílias (ONU, 1990), que entrou em vigor em 2003. Dentre
outras proteções e garantias previstas nessas duas convenções, a Convenção nº143/75 assegura,
em seu artigo 9º:
Sem prejuízo das medidas destinadas a controlar os movimentos migratórios com
fins de emprego garantindo que os trabalhadores migrantes entram no território
nacional e aí são empregados em conformidade com a legislação aplicável, o
trabalhador migrante, nos casos em que a legislação não tenha sido respeitada e nos
quais a sua situação não possa ser regularizada, deverá beneficiar pessoalmente,
assim como a sua família, de tratamento igual no que diz respeito aos direitos
decorrentes de empregos anteriores em relação à remuneração, à segurança social e
a outras vantagens.
Em caso de contestação dos direitos previstos no parágrafo anterior, o trabalhador
deverá ter a possibilidade de fazer valer os seus direitos perante um organismo
competente, quer pessoalmente, quer através dos seus representantes.
Em caso de expulsão do trabalhador ou da sua família, estes não deverão custeá-la.
Nenhuma disposição da presente Convenção impedirá os Estados Membros de
conceder às pessoas que residem ou trabalham ilegalmente no país o direito de nele
permanecerem e serem legalmente empregadas. (grifos adicionados)
Não obstante, independentemente da ratificação proposta, deve o Estado brasileiro se
ocupar em distinguir o imigrante não documentado cuja situação infracional seja recente daquele
cuja situação esteja consolidada. O imigrante nãodocumentado que já se encontra em território
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nacional há anos, que possui laços sociais e/ou familiares,se encontra empregado, sustentando a
si e a sua família, que através de seu consumo diário de bens e serviços contribui para o
desenvolvimento socioeconômico brasileiro e que, através de suas relações interpessoais,
contribui para o desenvolvimento sociocultural brasileiro, deve ter sua situação imediatamente
regularizada. Essa regularização é imprescindível para que o imigrante deixe de ser um “ilegal” e
tenha seus direitos e garantias fundamentais respeitados e amparados pelo Estado brasileiro,
inclusive através de seus tribunais.
CONCLUSÃO
A análise do caso concreto dos imigrantes bolivianos em São Paulo,especialmente no que
tange a realidade da parcela de nãodocumentados destes imigrantes, indica que a legislação
brasileira sobre a proteção dos direitos humanos fundamentais é falha. Restou demonstrado
acima que o Brasil reconhece o caráter universal dos direitos humanos e diversos instrumentos
foram criados e aperfeiçoados, nacional e internacionalmente, para proteger o indivíduo e
assegurar sua vida em condições dignas. Além de a Constituição Federalser bastante moderna
nesse sentido, o Brasil ratificou numerosos tratados internacionais sobre o tema.
Entretanto, conforme evidenciado, a legislação especial brasileira sobre os estrangeiros
não se apresenta adequada para proteger devidamente os trabalhadores imigrantes, notadamente
os nãodocumentados. O Estatuto do Estrangeirose mostra obsoleto e incapaz de atender aos
anseios da sociedade. Mais do que não proteger, a legislação brasileira é omissa e marginaliza o
trabalhador imigrante nãodocumentado, lançando-o à sorte de traficantes de mão de obra e
sujeitando-os a condições de trabalho análogas a de escravidão.
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Assim, para que haja a devida proteção aos direitos humanos fundamentais, é preciso
tratar o trabalhador imigrante nãodocumentado que esteja incorporado de fato à sociedade
brasileira como trabalhador,não como um criminoso. Nesse sentido, além de revisar sua
legislação doméstica, o Brasil deveria ratificar a Convenção nº143 da OIT, sobre a proteção dos
trabalhadores migrantes e de suas famílias, bem como a Convenção sobre a Proteção dos
Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias (ONU - 1990). Essa
mudança de enquadramentoincentivará os imigrantes a procurar a proteção do Estado contra os
abusos sofridos e, dessa forma, poderá o Estado brasileiro cumprir com o seu dever de
assegurar, em seu território, que todos os seres humanos tenham seus direitos fundamentais
respeitados.
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Notas:
1O Brasil não ratificou a Convenção nº 143 sobre os trabalhadores migrantes (OIT - 1975) e a Convenção sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias (ONU - 1990), ambas absolutamente relevantes para a proteção dos direitos dos trabalhadores imigrantes. A Convenção nº143 da OIT, em
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seu artigo 1º, estabelece que "todo Membro para o qual a presente Convenção esteja em vigor compromete-se a respeitar os direitos humanos fundamentais de todos os trabalhadores migrantes". Essa Convenção dispõe também sobre as garantias mínimas que devem ser asseguradas aos trabalhadores migrantes, mesmo que tenham imigrado ou que tenham sido contratados de maneira irregular. A Convenção sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias (ONU - 1990), que entrou em vigor em 2003, éo instrumento internacional que reconhece e protege a dignidade e os direitos básicos de todos os trabalhadores migrantes, independentemente da regularidade de situação migratória. Essa Convenção, em seu art. 2º, define que "trabalhador migrante é a pessoa que vai exercer, exerce ou exerceu uma atividade remunerada num Estado do qual não é nacional". Na Parte III, estabelece os direitos que devem ser assegurados a todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias, documentados ou não, estejam ou não em situação regular. Destacam-se, dentre outros, o direito à vida, à dignidade humana, à liberdade, à igualdade entre homens e mulheres, à não-discriminação e submissão ao trabalho desumano, forçado ou degradante, à liberdade de expressão e de religião, à segurança, à proteção contra prisão arbitrária, à identidade cultural, à igualdade de direitos perante os tribunais e ao direito inalienável de viver em família. Assegura, ainda, que os trabalhadores migrantes devam beneficiar-se de tratamento não menos favorável que aquele concedido aos trabalhadores nacionais de emprego em matéria de retribuição e outras condições de trabalho. 2Citado em: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional. 3ªed. Saraiva, 2012, p.38.
3 As convenções relativas aos refugiados e apátridas reconhecem, pela primeira vez, a existência do indivíduo no cenário internacional (REIS, 2004, p. 151). Em seguida, o princípio da Responsabilidade de Proteger (UNITED NATIONS, 2006) foi aprovado pela Assembleia Geral da ONU, em New York, 2005 (A/RES/60/161), por mais de 170 Estados e tem sido invocado para permitir a ocupação de Estados violadores dos direitos humanos pela comunidade internacional. 4Opinião Consultiva nº 18/2003.
5Exercer atividade remunerada sem a devida autorização das autoridades de migração.
6 O Conselho Nacional de Imigração (CNIg) é órgão colegiado da administração pública, vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, composto por representantes: i) do Ministério do Trabalho e Emprego (que o preside); e ii) dos Ministérios da Justiça;iii) das Relações Exteriores; iv) da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária; v) da Saúde; vi) da Indústria, do Comércio e do Turismo; vii) da Ciência e Tecnologia; viii) Quatro representantes dos trabalhadores; ix) Quatro representantes dos empregadores; e x) Um representante da comunidade científica e tecnológica.