Post on 13-Aug-2015
,A VIDA E SONHO
PERSONAGENS 33
BASiLIO, Rei da Polonia
SEGISMUNDO, Principe
ASTOLFO, Duque de Moscou
CLOTALDO, Velho
CLARIM, gracioso (criado de Rosaura)
ESTRELA, Infanta
ROSAURA, Darna
Sold ados, Guardas, Musicos, Comitivas, Criados e Da-
mas.
Cenas na corte da Polonia, numafortaleza pouco dis-tante, e no campo.
PRIME IRA JORNADA 35
De urn. lado urn. aspero monte; de out ro. urna torre, cuja
parte terrea serve de prisdo a Segismundo. A porta que dafrente para 0 espectador esta entreaberta. A acdo principiaao anouecer. Rosaura, uestida de homem, aparece no alto domonte pedregoso, e desce: CLarim a acompanha.
ROSALRA - Ah, centauro violento
que correste parelhas corn 0 ve n to!
Ja que por estas penhas
te enfureces, arrastas e desperihas
ficatc neste monte
que eu seguirei sern ti a minha sorte!
.vlal, Poloni a, recebes
a urn estrangeiro, pois corn sangue escr eves
sua entrada em tuas pedras
e aterras a quem chega em tuas tcrras'
Bern minha sorte 0 diz.
Vlas quando achou piedade urn infel iz?
CLARIYI - Urn so? Diz dois' Por que me esqueces?
Fomos dois a sail' em busca de aventuras, dois os que entre
desditas e loucuras viernos parar aqui ... Dois caidos na
montanha, sem cavalos, perdidos ... 1550 nao e bastante praunir nossos pesares? Ah, senhora, e agora:' :\ pe, sozinhos
e perdidos a esta hora?
Oucem-se ruidos de correnie.
31i
PRJ:VIEIRA JORNADA
CI.AHI:vt - Ceus' Que ouco?
IWSAI'HA - Deus' Que e isso?
CI.AHI:vt - Correntes? Deve ser um calabouco:
SEGIS\It:NIJO (dentro) - Ai, rnisero de mim! Ai. infeliz!
HOSAI-RA - Qup triste voz: Que triste esse rumor!
CI.AHIM - :\ mim me da payor!
HOSAl!HA - Clarim .
CI.AHI:vt - Scnhora .
HOSAL'HA - Fujamos dos perigos desta torre encan-tada ...
CI.AIIIM - Animo pra fugir e que me faha ...
IIOSAI;HA - Se fugir nao podemos,
ao tllCllOS suas desdi tas escu ternos ...
-lbre-se a porta e aparece Segismundo, acorrentado erestido de peles. f fa lu : na torre.
SECISML':\[)O - Ai, misero de mirn! Ai, infeliz:
I)(>scobrir, oh Deus, pretendo,
j;', que 'lie tratas assirn
que delito cometi
fatal, contra ti, nascendo.
Vlas cu nasci, c compreendo
que 0 crime foi cornerido
pois 0 delito maior
do homem e ter nascido.
S6 quereria saber
s(>PIIl algo mais te ofendi
pra lllP castigar('s mais.
--CALDER6N
Nao nasceram os demais?
Entao, se os outros nasceram
que privi legio tiveram
que eu nao tive jarnais?
~ asce 0 passaro dour ado,
joia de tanta beleza
e e flor de plurna e riqueza
ou bem ramalhete alado
quando 0 ceu desanuviado
corta com velocidade
negando-se a piedade
do ninho que deixa em calma:
e por que, tendo mais alma,
tenho menos liberdade?
'\'asce a fera, e muito cedo
a humana necessidade
ensina-Ihe a crueldade,
monstro de seu labirinto:
e eu, com melhor instinto
tenho menos li berdade?
~asce 0 peixe e nao respira,
aborto de ovas e lamas,
e apenas barco de escamas
quando nas ondas se mira
e por toda parte gira
medindo a imensidade
de sua capacidade;
tanto the da sui ou norte.
37
3H
PRIMEIRA JORXADA
E e-u que sei da minha sorte
u-nho menos liberdade?
Nasce 0 regaLo, serpente
quP en tre Ilores se desata
(' ('UlIIOcobra de prata
en trc as flores se distende
celebrando a majestade
do campo aberto a fugida.
Par que eu, tendo mais vida,
tr-nho menos liberdade?
Em chegando a esta paixao,
n um vulcao todo transfeito,
qu iscra arrancar do peito
pcdacos do eora<,;ao;
que lei, justica ou razao
rerusar aos homens sa be
privi legio tao suave,
Iiccnca tiio essencial
dada por Deus ao cristal,
a urn pei xe, a urn bruto e a uma ave?
IIOSAURA - Tenho pena ... e tenho medo ...
SE(;IS:\>1O"DO - Quem me cuviu? Clotaldo?CI.AI\IM (a sua ama) - Diz que sim ...
HOS.\L:I\.\ - Lm triste apenas ... que conheceu tuas quei-xas.
SEGIS:\>1c"no (agarranda-a) - Apenas porque me ou-vistr- e precise que eu te mate.
CLAIlIM - Eu sou surdo'
IIOSAlJRA - Se es homem, bastara que eu me ajoelhe,para qlle mc vcja livre.
CALDERON
SEGIS:\1UNDO - A tua voz me enternecc, tua presen<;,a
me encanta eu te respeito pOl' forca. Quem es? :\"ada
sei do mundo Esta tone me foi berco e sepulcro. Nuncavi nem falei senao a urn homem e so por cle sei noticias
do ceu e da terra. Sou urn homem para as feras e umafera para os homens. Dos animais, aprendi politica, e
aconselhado pelos passaros con temp lei os astros e aprendi
a medir os circulos. S6 tu conseguiste aplacar minha ira,
surpreender meus ouvidos e encantar meus olhos. Olho-te
e quero ver-te ainda. Fala: quem esJ
ROSACRA - Com tanto assombro de ver-te, com espanto
de te ouvir, nao sei que possa dizer-te nem 0 que te per-
gun tar. Eu sou ...
39
Ouve-se a voz de Clotaldo, dentro.
CLOTALDO (denlro) - Guardas desta torre! Adorrnecido
ou covarde, alguem deu passagelll a duas pessoas que
violaram 0 carcere ...
ROSAlJRA - Que mais perigos me esperam)
SEGISMC-";DO - Eis Clotaldo, 0 meu guardiao. Que
novas infelicidades devo sofrer?
CLOTALDO (dentro) - Venham, guardas, para prender
ou rnatar!
VOZES (dentro) - Traicaol
CLARIyr - Guardas da torre! Se nos e dado esco-
lher ... preferimos a prisao!
Entrarri Clotaldo e as soldados, Clotaldo com arrna de
fogo, e as mais com a rosto coberto.
4()
PRLVIEIRA JOR:\ADA
CLOTALDO (aparle, aos soldados) - Cub ram 0 rosto. Eunport a nte que nao saibarn quem somos.
CI.AHIM - Krineando de mascarados?
CI.OT.\I.1l0 - Ilaveis ultrapassado os !imites perm itidos
(' dcsrespe itado 0 decreto real. Vossas armas e vidas, senaousarei de forca.
SEGlSMC:-;IJO - Antes, tirano, que toques ou of end as
a r-stas pessoas, acabara minha vida nestes grilhoes mise-
rave-is . .luro pelos C{~uSIDespedacado aqui me teras, com
miuhas nraos e meus dentes, antes que consinta em teusultrajcs,
CLOTAI.1l0 - Segismundo, se sabes que tuas desditassfio tilo grandes que, rnesrno antes de nascer, rnorreste
pcla lei dos c{'us ... se sabes que esta prisao e 0 freio da tua
arrogaucia, por que esse orgulho? (aos soldados) Fechem aporta do carcere.
SEGISMC-';DO - Ah, ceu, que bem fazes em tirar-rne a
Iibordade: Se assim riao fosse eu seria urn gigante contrati!
CLOTAU)O - For isso e que padeces tantos males.
Segismundo e levado pur soldados, que a encerram. naprtsiio.
HOSAUH.\ - Ja percebi que a soberba te ofen de. Por isso,liumi lde, estou aqui a teus pes.
CI.AI\I:\l - Ese nem hurnildade nem orgulho te cati-
\',1111, CIl, nern humilde nern orgulhoso, antes eonfundido
entre as duas metades, peco-te que nos desculpes e ampa-re-s.
CLOTAI.IJO (aus soidadosy - Hei:
CALDER6N
SOLDADOS - Senhor ...
CLOTALDO - Tirem as armas dos dois, e ponham vendasem seus olhos, para que nao vejam de onde saern, nern
corno 0 fazem.
HOSACRA - Aqui esta a rninha espada. :\ao a entrego a
qualquer urn.
CLARLYI - A minha e tao ordinaria que pode ser entre-
gue ate ao pior sujeito. (a um soldadoy Toma la.
ROSAURA - Se hei de morrer sem rcrnedio, quero
deixar-te esta espada, prenda que foi estimada por quemurn dia a eingiu. Por algurn pressentimento, sei que estaarrna dourada encerra rnisterios grandes. Ncla apenas
confiado, venho a Pol6nia vingar-me.
CLOTALDO (aparle) - Ceus' Que c isto? E quem te deu
esta espada?
ROSACRA - Iima mulher.
CLOTALDO - Seu nome)
ROSAURA - Nao posso dizer 0 nome.
CLOTALDO - Por que achas que ha urn segredo nessa
arrna?
ROSAURA - Quem me deu <I espada, disse:
"vai a Pol6nia e procura
com perseveran<;:a e arte
que a vejam nobres senhores
porque algum ha de ajudar-te ".CLOTALDO (aparte) - Valha-rne 0 ceu! (.: possivel?
Esta e a espada que urn dia
dei it formosa Violante
e, por ela, ao nosso filho;
esse seria 0 sinal
41
PRIME IRA JORNADA
para scr rcconhecido.
COTALI)O - .vlas que fazer, se e usada
por 11m hornem condenado?
Lstr- e meu filho, bem vejo,
ht'lll 0 diz 0 coracao,
mas que fazer? Pois, leva-Io
ao Rei e leva-Io a morte
e nao levar e traicao,
l Je 11111lado 0 arnor de pai
e do uutro a lealdade.
Porern, como duvidar
se a o bed iencia a majestade
vern em primeiro lugar?
E, agora, penso rnelhor:
ole fa lou ern vingan~a.
Hornem que esta of en dido
E', antes de tudo, infame.
Portanto nao e meu filho,
IIf'I!I tern 0 111eUnobre sangue.
Vlas so de fat.o uma afronta
SOrrell clc, de tal arte
quP u marcasse, pOI-que a honra
(. de materia tao fragil
qlle cum urna a~ao se quebra
(' corn 0 ven to se rnancha,
Ioi nobrr- de sua parte
u-r vindo para vingar-se.
"esse casu, ele e meu filho.
--CALDERON
Porque seu valor e grande.
Entre uma duvida e outra
o melhor sera leva-Io
ao Rei, dizer que e meu filho,
e que mesmo assim 0 mate.
Talvez que 0 Rei u perdce
gra~as a minha Iealdade.A ele nada direi.
Se morrer, nao sabe nada.
CLOTALDO (alto) - Vinde cumigo, estrangeiros. Cumigo,
nada vos falte.
43
Mudanca de cendrio. Saldo do Palacio Real da Corte.?" '
A stolfo e soldados entram par um lado e, par outro, a infantaEstrela e damas. Musica miluar e saluas, dentro.
ASTOLFO - Diante dos teus bel os olhos, que sao estrelas,
as trombetas e os tam bores, as aves e as fontes misturam
salvas diferentes. Es a rainha de rninha alma.
ESTRELA - Se as palavras deve ser com paras as a~6es,
fizeste mal pronunciando gentilezas tao cor tesas. Eu po-
deria deslnentir todos esses graves ornamentos, que ousodeclarar irnerecidos. As lisonjas que ou~'o de ti nao condi-
zem, segundo creio, com os fates que vejo. E olha que ea~ao baixa 0 elogiar com a boca e matar com a von tade.
ASTOLFO - Estas mal informada, pois duvidas da sin-
ceridade das minhas gcntilezas. Suplico-te que oucas as
minhas razoes: ha muito tempo, bern sabes, morreu Eus-t6rgio 111, rei da Polonia, deixando Basilio como herdeiro,e mais duas filhas, minha mae e a tua. :'-Iao quero recordar
o que nao vern ao nosso assunto. Clorilene, tua mae, que
PRLVIErRA JOR ADA
agora lPIII do d,u de estrelas em melhor imperio, foi aprilllOgPllita; it outra foi a al taneira Recisunda, que Deus
gllard(, mil a n os, casou-se ern Vloscou; e dela nasci eu.:\gOl"il vo ltcmos atras. Basilio, que ja vergado pelos anos, em a is dado ao estudo que as mulheres, enviuvou sern filhos,(' t II (' (-'II aspirarnos ao trono desse Estado. Tu pOl'que es
Iilh« da primogenita, e-u, que nasci varao, em bora de irrnjl
mais 1I00'il, dcvo ser, para 0 efeito, preferido. Contamos ao
tio as nossas intencoes, e ele respondeu que desejava urn
arordo ontrr: nos e para isso rnarcarnos este lugar e este dia.Com esta intencao sa i de minha patria. E aqui estou, cornit n iesrn a int.encao. Ern vez de fazer-te guerra, podes tul'azt'>·laa mim. Oh, queria 0 arnor, sabio deus, que 0 vulgo
seja lioje a rcspeito de nos ambos urn astrologo exato e que
o acordo termine fazendo de ti rainha - mas rainha na
mi nha vontado. Para rnaior honra, 0 nos so tio dar-te-a sua
coma; 0 teu merecimentn te dar a vitorias, e 0 meu amorIe ellt.regadl 0 seu imperio.
ESTHFLA - Digo-te que no peito nao ha men os gene-rosidarlr-. Foigaria que a imperial realeza Fosse minha so.para tor na-]n tu, em bora no intima, nao esteja convencida'df' qlle PS ingrat.o, suspeito de quanto dizes por causa desseret rato qlle esta pendente do teu peito.
ASTOLFO - Penso elar-te satisfat;;oes a respeito(h'le ... (soafll os tambores) Vlas a ocasiao foge, com tantos
mst ruu n-ntos sonoros que anunciam a chegaela do rei.
Entra 0 rei Basilio e comitiva.
I':STHELA - Sabio Tales ...
ASTOl.FO - Douto Euclides .
ESTHELA - Que entre signos .
--CALDER6~
ASTOLFO - Que entre estrelas ...
ESTRELA - Hoje govern as ...
ASTOLFO - ... Resides ...
ESTRELA - E seus caminhos.
ASTOLFO - ... Seus rastros
ESTRELA - Descreves ...
ASTOLFO - ... Regulas, medes ...
ESTRELA - Deixa que em humilde laces ..
ASTOLFO - Deixa que em ternos abracos ..
ESTRELA - Hera deste tronco seja.
ASTOLFO - Rendido a teus pes me veja.
BASiLIO - Sobrinhos, dai-me os braces. E ja que vindes
com tao efusivas provas de afeto e sois leal a minha paterna
autoridade, acreditai que a ninguem eleixarei rlescontente.
Ficareis nivelados os dois. Prestai atencao, rneus amados
sobrinhos, ilustre corte ela Polonia, vassalos, parentes e
amigos: confesso-me rendielo ao peso dos an os e, nesta
ocasiao, so voz pet;;o0 silencio. Ja sabeis que as sutis cienciasmaternaticas SaD as que rnais curso e estirno; sacrifico--Ihes 0 meu tempo e desprezo a Iarna em seu beneficio,para me instruir mais todos os elias. Leio estes livros tao
rapidament.e que 0 meu espir ito acompanha no espat;;0 as
rapidas rnudancas dos astros. Prouvera ao Cell que eles
nao viessem jamais a concretizar-se consumando a rninha
traged ia, que ja ha anos venho adianrlo e sofrendo. Peco
outra vez atencao para que observeis a minha coriduta.
(adianta-se)De Clorinda, minha esposa,
tive urn desgracado filho,
para cujo parto os ceus
45
46 i
PRIMEIRA JORNADA
Sf' esgotaram em prodigios.
Antes que a forrnosa luz
Ihe desse 0 sepulcro vivo
de urn ventre (porque 0 nascer
co morrer sfio parecidos)
sua mae, muitissirnas vezes
entre ideias e delirios
sonhou que ele rornpia
suns entranhas, atrevido,
qual monstro em fonna de homem:
c por seu sangue tingido
dava rnorte a sua rnae,
sendo assim h umana vibora.
Chegou 0 dia do parto
e os pressagios se cumpnram.
Foi tal a forca dos astros
que 0 Sol, no seu sangue tinto,
ent.rou a lutar corn a Lua
como dois far6is divinos.
Foi este 0 maior eclipse
pclo Sol ja padecido,
desde que chorou corn sangue
a crua morte de Cristo.
Julgou-se que 0 Sol morria
no ultimo paroxisrno.
() ceu se obscureceu,
t remcram os edificios,
choverarn pedras as nuvens
CALDERON
e correu sangue nos nos.
Assirn nasceu Segismundo
dando-nos os maus indicios
porque matou sua rnae
e foi como se dissesse:
"homem sou; porque corneco
a pagar mal beneficios".
Vi que meu filho seria
o homem mais atrevido,
o principc mais cruel
e 0 monarca mais terrivel.
Com ele 0 reino seria
totalmente dividido,
escola de traicoes
e academia de vicios.
E que eu a seus pes seria
roto, pis ado e ofen dido.
Acreditei nos pressagios
porque sao vozes divinas
e resolvi encerrar
em prisflo 0 mal-nascido,
para ver se 0 sabio tern
sobre as estrelas dominio.
Mandei con tar que 0 infante
morrera quando nascido;
fiz construir uma torre.
Nessa torre e que ele vive,
pobre, misero e cativo.
47
4H So digo tres coisas mais:
a pri meira e que te estimo
tanto, Polonia, que quis
l ivrar te de um rei ind igno.
.\ segundo C 0 min ha duvida
sobre o direito que tive
ao desviar de meu sangue
honra que lhe era devida.
Pois para evitar que 0 faca
fiz a meu filho urn delito.
ESLa C 0 u ltirna e tereeira:
talvez urn erro haja sido
acreditar-se nos astros
quando cxiste 0 livre-arbitrio,
Por todas cssas raz6es
decidi propor-vos isto:
a man ha YOU colocar
110 rueu lugar 0 meu filho;
SPill que ele saiba quem esera rei qual tenho sido.
Com isso conseguirei
t res respostas aos tres itens:
primeir a ~ se ele for
oa lmo, prudente e benigno,
desmentira de uma vez
total mente 0 seu destino.
St'gunda ~ se for cruel,
sobcrbo, ousado e atrevido,
PRIMEIRA JOR.'IADA--
CALDERO:-;-
saberei que estive certo,
minha obriga.;;ao eumprindo.
Finalrnente, se assim for,
tereis soberanos dig nos
de rninha coroa e cetro:
esses serao rneus sobrinhos,
unidos em matrimonio
urn do outro merecidos.
ASTOLFO ~ Como 0 mais interessado, digo que Segis-
mundo apare.;;a, pois basta-Ihe ser teu filho.
TODOS ~ Dai-nos 0 nosso principe, que ja desejamos
rei!
49
BASiLIO ~ Vassalos, vereis amanha 0 rneu filho.
TODOS ~ Viva 0 grande rei Basilio!
Saem todos acompanhando Estrela e ASloifo;fi'ca 0 rei;en tram Clotaldo, Rosaura e Clarim.
CLOTALDO ~ Posso falar-te, serihor?
BASiLIO ~ Clotaldo, bern-vi ndo sejas.
CLOTALDO ~ Aconteceu uma coisa, oh Rei, que rornpe
o foro da lei e do costume.
BASILIO ~ Que foi?
CLOTALDO ~ em belo lovern, ousado e inadvertido,
entrou na torre ... E esse jovem, senhor, e...BASiLIO ~ Nao te aflijas, Clotaldo. Se isso tivesse aeon-
tecido ern outro dia, confesso que ° larnentaria. Mas jadivulguei 0 segredo e portanto, nao irnporta que ele 0 saiba.Procura-rne rnais tarde, porque tenho muitas coisas que
te dizer, e rnuitas a te pedir. Teras de ser 0 instrumento
50
PRIMEI~\ JOR:\ADA
do m aior acontecimento que 0 mundo ja viu. E perdooa esse jovem, para que, enfim, nao penses que castigo os
tells deseuidos. saiCI.()TAI.I)O - Que vivas, Senhor, mil seculosl (aparte)
Vlr-l horou 0 cf~u a minha sorter Ja nao direi que e meu
filho, pois ja posso poupar a sua vida. (alto) Estrangeiros,
estais livres.
HOSAURA - Beijo os teus pes mil vezes.
CLAHIM - E eu vejo-os, que uma letra nao faz dife-
rell~'a ...HOSAUHA - Deste-me a vida, senhor e, ja que vivo por
tua vontade, serei teu eterno escravo.CLOTALI)O - :'\ao foi vida 0 que te dei, porque um
hornem agravado nao esta vivo.
HOSAUHA - Vl as com a vinganga deixarei a minha
h on ra tao lim pa que a minha vida ha de poder parecer
dadiva tua.
CLOTALI)O - Toma a espada que me entregaste. Ela
basta, ell sei, para te \·ingar. Espada que foi miriha - aindaljllt' so por mornen tos - sempre te servira.
HOSAURA - E sobre ela juro vinganca, mesmo que 0
me-n inimigo fosse mais poderoso do que e.
CLOTALllO - Ele e rnuito poderoso?
HOSAURA - Tao poderoso que nem quero falar disso.
CLOTALIlO - Melhor seria esclarecer de quem se trata,
para que eu nao ven ha a ajudar 0 teu inimigo.
HOSAl:I\A - Mcu adversario e nada menos que Astolfo,
d uq ue de \Ioscou.CLOTAI.[)O - (aparte) Ceus' (alto) Se nasceste mosco-
vit a, poueo podera ter-te ofen dido aquele que e teu naturalseuhor, Regressa a tua parria, pois, deixa esse ardente brio
que le precipita.
CALDERON
ROS..I.CR.\ - Ofendeu-me, embora Iosse 0 meu principe.
CLOTALDO - :\ao e possivel, mesmo que atrc\'idamente
tivesse posto a mao no teu 1'0510.
ROSAURA -.\ ofens a que me fez foi hem maior.
CLOTALDO - Explica-te, pois nao podes ir alern do que
eu imagino.
ROSACRA - Poderia falar; porern, nao sei com que res-
peito te olho, com que afeto tc venero, com que estirna te
ougo, que nao me atrevo a dizer-te que este traje esconde
um enigma, pois ele nao e de quem parece.
CLOTALDO - Como)
ROSAURA -Basta-te saber que nao sou 0 que pare<;o e
que se Astolfo veio para casar com Estrela, podera sem
duvida ofender-me. E com isto ja te d isse hastante.
51
Saem Rosaura e Clarim.
CLOTALDO - Escuta, espera! Detern-te!
Que confuso labirinto
e este, por onde a raz ao
nao consegue achar 0 fio:
A minha honra e a ofend ida,
poderoso 0 inimigo,
eu vassalo, ela rnulher:
descubra 0 ceu urn carninho,
mas eu duvido, em verdade,
de que possa descobri-lo,
quando em tao confuso abismo,
todo 0 ceu e urn prcssagio
e todo 0 mundo urn prodigio.
r
SEGUNDA JORNADA 53
Saliio do Palacio Real. Basilio e Clotaldo.
CLOTALDO - Tudo foi feito conforme ordenaste. Com a
agrada\'el bebida que com tantas ervas mandaste preparar,desci a estreita prisao de Segismundo .. \ rim de que seencorajasse para a empresa que solicitas, falei com ele
sobre a presteza de uma aguia vertiginosa que, despre-zando a rosa dos veritos, passa\'a a ser na altitude suprema
do fogo urn raio de pluma ou urn cometa em liberdade,
Ele nao precisa de mais; tocando neste assunto da rnajes-
tade, discorre com arnbicao e orgulho, e d isse-rne: "Que
na in quieta republica das ayes haja tam hem quelll Ihes
jure obed iencia! Isso me consola. Se estou subjugado,
e a forca porque voluntariarnente jamais me renderia ".Vendo-o ja enfurecido com isto, que tern sido tema desua dor, ofereci-lhe logo 0 Iicor e, sem Iorcas, de caiu no
sono; vi no seu corpo urn suor frio, de modo que, se eunao soubesse que era morte fingida, duvidar ia da sua vida.
Coloquei-o numa carruagem e levei-o ate 0 teu quarto,
preparado com a rnajestade e a grandeza que a sua pessoamerece. La 0 deitamos na t ua cama e quando 0 letargo se
dissipar, sera por nos servido, com majestade e grandeza.Qual e 0 teu in tento, traz endo desta maneira Segismundoca para 0 palacio? Explica, se a minha obediencia merece
esse favor,
BASILIO - Quero satisfazer-te, dando res posta a tudo.
SEGC);"DA JOR:\ADA
5-i ' S{' hoje f'1f' sou hesse que e meu filho e arnanha se visseout ra \"('Z reduzido it prisao e a miseria, nao haveria duvida
que, pelo SCIl carater, fir-aria para sempre desesperado, poissabeudo quem e, que consolo poderia ter? Por isto quis
dr-ixa r aber ta urn a porta ao desgosto: Ele pod era dizer
que foi sonhado quanto aqui viu. Deste modo poderemos
vr-rificar duas coisas: a primeira e a sua natureza, porque
r-Ie, acor dado, pode fazer quanto pensa ou imagina; a se-
gUllda e 0 cousolo, po is ainda que agora seja obedecido e
de pois torne a sua pr isao, podcra entender que sonhou, eisto farIhe-a bem. De resto, Clotaldo, no mundo, todos osque vivcm sonham.
CLOTALDO -1\ao me faltariam razoes para provar que
te enganas; mas ja nao ha rernedio e, pelo que ou~o, pareceque t eu hlho despertou, encaminhando-se para nos,
HASILIO - Quero retirar-me. Tu, como seu guia,
procura-o C desfaz as incompreensoes que 0 cercam.
CLOTALDO - Tenho licenca para the dizer a verdade?
BASILIO - Sim. Sabendo a verdade pode ser que fiquea conhr-cer 0 perigo e que assim m ais facilmente 0 ven\ia.(sal)
/';Illra Clarun.
CLAHIM (aparle) - Entrar aqui custou-me quatro paula-
das de urn guarda r uivo que inchou dentro da farda. Acho
que ja teuho 0 rlireito de ver 0 que esta acontecendo. Parar-m.rar nesta Iestanca, urn homem despojado e despejadonao pone ter \·engonha ...
CI.OTAI.DO - Clarirn, que ha de novo?
CLAHI:vt - Ha que por tua clernencia,
disposta a \'ingar agra\'os,
CALDER6:\
a Rosaura aconselhaste
que tome seu pr6prio traje.
CLOTALDO - Fiz isso para que nao pare~a leviandade 0
vestir roupas de homem ...
CLAREVl - Ha que, rnudando seu nome
ela hoje se apresenta
qual se fosse tua sobrinha
e agora e darna de Estrela.
CLOTALDO - Fez bem em gozar finalmente a honra que
o nosso parentesco the da.
CLARL\1 - Ha que ela esta esperando
que a ocasiao logo chegue
para vingar sua honra
como ja the prometeste.
CLOTALDO - E urn cuidado sensato. 1\0 en tanto, 56 0
tempo hit de tornar isso possivel.
CLARIM - Ha que ela esta regalada,
servida como princesa
por ser a tua sobririha ...
... e de mim ninguern se lernbra'
CLOTALDO - 0 teu Iamento e justo. Vou te satisfazer.
Entretanto, colabora comigo.
CLARIM - Segismundo ja vem ai!
55
Entram musicos cantando e criados que entregam uestes
a Segismundo.
CLARI:VI (cantando) - Houve urn jovem bem nascido
que numa torre encantada
viveu vinte anos de vida
50 sern nuuca ter visto nada
do que era a sua vida
do que era a sua vida ...
L; m dia, meio desperto,
viu ao sou lado um criado
e outro jovern tao formoso
que 0 prisioneiro, encantado,
qucria-o sempre ao seu lado
P podia te-Io amado ...
Ondc esta 0 prisioneiro,
onde esta 0 cavaleiro
P onde esta 0 criado?
Nao hit cavalo nem rnoco,
nem torre, principe, nada,
porque tudo foi sonhado .
porque tudo foi sonhado .
Segismul/do entra.
SEGUNDA JORNADA
SEGlSIVH;1'I)O - Estranho e tudo que vejo ...
Tudo qm' sinto e respiro .
(~espanto 0 que admiro .
e tanto que ja nao creio .
Eu, em tclas e brocados,
('11, ce rcado de criados,
urn lei to cheio de sed as,
gente pronta a me vestir..
:\ilo sou ho? Ou sim? f: engano.
Belli sei que estou acordado.
CALDERON
Eu sou Segismundo ... ~aoJ
Ceu ... 0 que e que foi mud ad o?
Que fez minha fantasia?
o que fizeram de mim?
Que houve enquanto eu dorrnia?
Isto que eu sou tera firn?
Nao sei ... nao posso saber. ..
Ja nao quero discutir. .
Melhor deixar-me servir. ..
E seja 0 que ha de ser,
1° CRIADO - Quanta melancolia!
2° CRIADO - Quem nao estaria melanc6lico no seu
caso?
57
CLARIYl - Eu.
2 ° CRIADO - Basta de conversa.
1° CRIADO (aSegismundo) - Devem continual' a cantar?
SEGISMUNDO - Nao, nao quero que cantem mais.
2° CRIADO - Pretendiamos alegrar-te, visto que estas
tao absorto.
SEGlSYlCNDO - Eu nao preciso distrair-rne com as suas
vozes. S6 gostei de ouvir as musicas marciais.
CLOTALDO - De-me vossa alteza, grande senhor, a mao
a beijar.
SEGISYlU"'DO (aparte) - E Clotaldo. Como sera pos-
sivel distinguir-me com tal respeito quem na prisao me
rnaltratava? Que se passa cornigo?
CLOTALDO - Com a grande confusao que este novo
estado te da, sofrera mil duvidas 0 teu entendimento ea tua razao, Senhor, es 0 principe herdeiro da Pol6nia.
Se estiveste escondido, isso foi devido as inclemencies da
SEGC:\DA JOR:\ADA
5H sortr-, qllC' promcte grandes tragedies a este imperio aororoar a tuu allgusta fronte com os laureis regios. Apesar
de t udo, 110 cntanto, creio em tua inteligencia. Sei queveuceras 0 prognostico das est rei as. Lm varao magnanimo
pode ve nce-Ias. Trouxeram-tc da torre em que vivias para
('stt' pa lacio, enquanto tinhas os sentidos rendidos ao sono.
Tell pai, 0 rei meu serihor, vira ver-te e por ele saberas 0
rest ante.
SF(;ISMl':'-iDO - Vil, infame e traidor! :VIas que tenho
ell de saber mais, agora que sei quem sou, para mostrardc-srlr- hojc 0 mcu orgulho C 0 meu poder? Como pudestetrail' a Lila pat.ria, a ponto de me ocultares, negando-me am iuha COlldi<;ao, contra a razao e 0 direito?
CI.OT,\I.\)O - Tristc de mim, meu senhor:
SEGISMt::\DO - Traiste a lei, lisonjeaste 0 rei e foste
cruel para mime e assim a lei, 0 rei e eu, entre infelicidadesliio d urns, oondcnam-tc it morte!
2° CHIADO - Senhor ...
SEGIS:VIC:\DO - Que ninguern me interrompa, isso seraesforco vao~ E por Deus: Se alguern interferir, jogo-o pela[anela.
2° CHIADO - Foge, Clotaldo!
CLOTALDO - Ai de ti, que tanto orgulho rnostras, sem
saber que estas vivendo urn sonho: (sai)
2° CBIADO - Senhor, repare que ...
SEGISMUl'."DO - Retira-te daqui.
2° CHIADO - ... que ele obedeceu ao rei.
SEGlS:V1C:,\DO - ::\aquilo que nao e lei justa, ele nao
de"e obedecer ao rei, mas ao seu principe, que sou eu.
2° CHIAlJO - Ele nao tinha 0 direito de julgar se faziabCIl1 ou mal,
CALDERO:\
SEGIS:vJL~DO - Acho que estas contra rn im , porque me
replicas.
CLARIM - Diz 0 principe muito bern, e tu fizeste muitomal.
2° CRIADO - Quem te deu licenca para intervir?
CLARIM - Eu proprio a tomei.
SEGIS:':lU '00 - Quem es?
CLARIM - urn intrornetido, e neste oficio sou chefe;
sou 0 maior mequetrefe que tera sido parido!
SEGTSMCNDO - So tu, nestes novos rnuridos me agra-
daste'
CLARE"! - Eu, senhor, sou urn grande agradador de
todos os Segismundos ...
59
Entra A stolfo.
ASTOLFO - Vl.il vezes feliz seja 0 dia, oh principe, ern
que te mostras, enchendo de sol a Pol6nia e de resplendore alegria todos estes horizontes' Surges qual divina aurora,pois acabaste de sair, como 0 sol, do seio dos montes! Sur-
ges, portanto, e em bora tao tarde a tua fronte seja coroada
com 0 laurel regio, queira Deus que ainda tarde muito a
tua morte!
SEGISMU. DO - Deus te guarde.
ASTOLFO - So porque nao me reconheces, devo
desculpar-te por nao me honrares mais. Sou Astolfo,duque de :Vloscou, e teu prirno; haja igualdade entre nos.
SEGlSMU:-iDO - Se digo que Deus te guarde nao te
mostro bastante agradoe> Ja que te queixas, alardeando
quem es, para outra vez direi: que Deus uao te guarde.
2° CRIADO (a Astolfo) - Considere Vossa Alteza que
SEGUNDA JORNADA
so e Ie cresccu 1I0S montes e por isso faltam ~the rnodos. (aSe.e:isIIlllfIdo)\stolfo, sen hor, prefere ...
SVGISMC:'-iDO - Vlolestourne ouvi-Io falar, dando-se
Lalita importancia. Adernais, apressou~se ern por 0 cha
11<>u ...2° CHIA])O - f: pessoa importante.
SEGIS\!Ul\"])O - Vlais irnportante sou eu.
2° CHIA])O - Contudo, e melhor que haja mais respeito
entre os dois do que entre as demais pessoas.
SI-:GISMC:\DO - Quern es tu para me falares desta rn a-ue-ira.'
Entra Estrela.
ESTHELA - Seja Vossa Alteza muitas vezes bem-vinda
ao trono que, agradecido, vos recebe e deseja; apesar das
Ialsidades. oxa la nele vivais augusto e eminente, uma vida
longa, que se conte por seculos e nao por anos.
SE(;IS\1UNDO (a Clarim) - Quem e esta soberba bel-dade) Quem e esta deusa hmnana? Quern e est a forrnosa
mulhcr.'
CLAHI\1 - I,: tua prima Estrela, senhor.
SE(3]SMUl\"DO - Vle lhor dirias 0 Sol: (a Estrela) Pedes,
Estrela, ofuscar e dar alegria ao rriais rutilante farol. Da~IIW a beijar a tua mao, em cuja taca de alvura bebe aaurora sua pureza.
ESTHELA - i~sgalante e cortesao.
ASTOI.FO i aparte) - Estou perdido.
2° CHL\])O - Repara, scn hor, que nao e comedido ir tao
longe, e jamais estando Astolfo ...
SEGIS\1Ul\"])O - Nao me aborrecas'
CALDERO:\
2° CRIADO - Digo 0 que e conveniente.
SEGISMC:\DO - Tudo isso me enfada. Contra 0 meu
gosto, nada rne parece coriveniente e justo.
2° CRIADO - Pois eu, senhor, te ouvi dizer que 010 justo
e born 0bedecer e servir.
SEGISMUKDO - Tambem me ouviste dizer que saberei
atirar pela janela quem me aborrecer!
2° CRIADO - ~ao se pode fazer isso a urn homem como
61
eu!
SEGIS\ICNDO - Nao? Por Deus! Hei de provar que sirn!
Agarra 0 criado, lenantarido-o e 0 carrega, saindo da
sala acompanhado pelos demais.
ASTOLFO - Que vejo!
ESTRELA - Todos, todos para dete]o! (sai)
VOZES - Fora! (Segismundo volta a enlrar.)
SEGISMUNDO - Caiu ao mar, da varanda. Provei que
podia ser fei to.
ASTOLFO - Pois doveras medir com mais calma as tuas
agoes. 0 que vai de urn errno ate 0 palacio e a mesma
distancia que separa os homens das feras.
SEGISMC:'-iDO - Ja que es tao severo e [alas corn tanto
orgulho, tern cuidado. Talvez nao aches em breve cabeca
onde por 0 chapeu ...
SaiAstoljo; entram Basilio, Clarim e criados.
BASiLIO - Que aconteceu aqui?
SEGIS\IUNDO - ]'\ao foi nada. Atir ei daquela varanda
abaixo urn homem que me aborrecia.
SEGUNDA JORNADA
f)2 <:I.AI\I.\1 (a Segismundo) - t 0 rei. Nao estas verido?
HASiuo - .\ tua chegada ja custou uma vida, logo no
prime-iro d ia.'SH;IS.\1lINIJO - () homem me disse que aquilo nao
podia ser Ieito . .Toguei e ganhei a aposta.
HASil.lO - Pois muito me desgosta, principe, vir te vel',
psperallc,:ado ern te encontrar prudente e triunfante de
Iados e est.rclas, e, ern vez disso, te encontrar de ariimo tao
{ISPPro,que a primeira ac;ao que neste momento praticasteIoi 11111 gra\'e homicidio. Com que amor poderei agoraestr-nder os mr-us braces para estreitar os teus, se sei quepies sjio ciljJazes de matar? Assim, eu, que vejo nos teus
bracos 0 instrurnento desta morte, afasto-rne deles. E
Pill bora tivcsse desejado cingir amorosamente 0 teu peito,
vou r-n ibora sem 0 fazer, pais sinto medo dos teus braces.
SEGlS:VIL::-.iDO- Posso prescindir disso, como ate agora.
U III pai que sabe usar contra mim tanta rudeza que desi n n- a last.a, negando-se como pai, para me criar como
1I1T1a Icra (' me tratar como urn monstro, e chega a desejara m inh a mortr-, convence-me da pouca irnpor tancia que
tPIlI isso d(~nao me dar os braces, porque me tira, afinal, a
qual idade de ser humane.
1I.\siLlO - Prouvera ao ceu e a Deus que eu nao tivesse
('hpgado ,I dar-te vida, pois nao escutaria a tua voz nern
veri.i 0 teu atrcvirnento.
SEC;ISMI:~])O - Se nao me tivesses dado 0 ser, nao me
qur-ixa ri» de ti. Mas, ja que nasci, queixo-rne porque melIegast.t'. Em bora dar seja a ac;:aomais nobre que existe, ehaixr-z» d ar, para depois retirar.
HASil.lo - .ern me agradeces 0 te haver de repente
t ranslor mado de pobre prisioneiro em principe?
SE(;ISMI~:\UO - Que tenho eu de agradecer-te por isso?
CALDER6;",'
Tirano da minha vontade, se estas velho e caduco, que medas ao rnorrer? S6 0 que e rneu. F.s meu pai e rneu rei.
Logo, toda a grandeza da minha condicao me c dada pela
natureza, pelo direito da sua lei. Poderia, isso sirn, pedir-te
contas pelo tempo que me negaste liberdade, vida e honra.
Deves agradecer que eu nao cobre de t.i, porque es tu 0
meu devedor.
BASiLIO - Es barbaro e atrevido; cumpriu 0 ceu 0 que
ditou. Portanto, apelo para ele .. Ainda que saibas agora
quem es, e estejas inforrnado, ouve bem este aviso: sehumilde e branda, porque talvez estejas a sonhar por mais
que te sintas desperto. (sai)SEGIS:VWI'OO (confuso) - Estarei sonhando? Estou
tao mal ciente e desperto?
Nao sonho, pois sei ao certo
o que fui e 0 que sou.
Ainda que nao te agrade
hei de prosseguir aqui;
sei quem sou eo que ja vi
pOl' mais que isso te enfade.
Nao podes tirar-rne 0 nome
e 0 lugar de teu herdeiro.
Se estive em prisao, primeiro,
morto de frio e de fome,
foi pOI' nao saber quem era;
mas corno informado estou
de quem sou, ja sei que sou
misto de hornem e de fera.
63
Entra Rosaura, com trajes femininos.
SEGC='IDA JOR:-;ADA
64 I\OS.-\UH - Foi-me ordenado que seguisse Estrela, mas
teuho mr-do de cncontrar Astolfo, Clotaldo nao quer que('It, saiba quem sou nern que rne veja, dizendo que isso
uu ere-ssa A rninha horira. (pausa) 0 principe esta aqui ... eme lhor que eu me va.
SEGISMU:\[)O - Ouve, mulher, urn momento. Surpresa'
qlH' vejo.'
I\OSAt:I\A - 0 mesmo que eu, d uvidando e crendo,
SEGIS:\lW\f)O - Eu ja vi est a beleza em outra ocasiao,
I\OS.-\I'RA (aparte) - E eu vi esta pompa, esta grandeza,rcduz ida a un ia estreita prisao.
SE<;IS:\1U '1)0 - Quem es?
HOSAUHA - Sou urna in feliz dama de Estrela.
SE<i1S:\lUNDO - Diz antes que es sol, a cuja luz vive
aque la estre la, pois e de ti qUE' ela recebe 0 resplendor.
Entra Clotaldo, que se oculta, Clarim. e eriados.
CI.OTALJ)O - (aparte) - Precise dominar Segismundo;afinal, f:'1I 0 criei (pausa) Os dois juntos!
I\OSAllH\ - ;\grade\io a tua gentileza. Que 0 meu silenrio, ma is eloquente que as palavras, te responda. Quando
a radio c ,·agarosa, fala melhor, senhor, quem mais cala.
SJo:(;ISMUl\1l0 - Espera, nao te vas. For que me queresdr-ixar assini perdido)
H()SAl'HA - t·: licenca que pe\io a vossa alteza.
SE(;IS Ml.:~ DO - Parti r tfio depressa e tomar a licenca ...
H()SAl'HA - Se nao a das, terei de torna-Ia.
SE(;ISMI::\1l0 - Far as que eu me torne grosseiro .. \
rr-sistencia f.' Ulll veneno cruel para a minha paciencia.
I\OSt\U\A - Nao ouso, nem posso ofender-te.
CALDERON
SEGISY1UNDO - Para provar meu poder, quero afastardo teu rosto os vestigios do medo. Sou bastante inclinado aveneer 0 irnpossivel. Hoje, arrojei pela janela urn hornem
que me dizia que is so nao se podia fazer, Assirn, so para
provar que posso, atirarei tua honra pela janela ...
CLOTALDO (aparte) - Fica mais teimoso a cad a
hora ... Que hei de fazer? Se por urn loueo desejo es-
tao novarnente arriscando a minha honra?
ROSAURA - ::\Taoera em VaG que este reino infeliz re-
ceava, com a tua tirania, traicoes, delitos, lutas e mortes.Mas que pode fazer urn homem que de humano so terno nome, e que nasceu no meio das feras, cruel, orgulhoso,
barbaro, tirano e atrevido?
SEGISMl;:-';DO - Se nao fossem as tuas injurias, eu me
mostraria cortes, para te cativar. Mas se falas de mim
nesses termos, por Deus! Vou me esforcar por dar razao ainjuria. (aos presentesy Deixern-nos 56s! Feehem a porta, e
que ninguern entre.
65
Saem Clarim e os criados.
ROSAURA. (aparte) - Vou morrer] ... J (alto) Senhor. ..
SEGISMC:>IDO - Sou tirano. For que pedes rnerce?
CLOTALDO (aparecendo) - Principe, atende, olha ...
SEGISY1UNDO - E a segunda vez que me irritas, velho
louco e caduco, Como pudeste entrar aqui?
CLOTALDO - Vim para aeonselhar que sejas mais agra-
davel se desejas reinar; ja te ves senhor de todos, e eu querodernover-te de crueldades, pois talvez tudo isso nao passe
de urn sonho.
SEGISY1UNDO - Tu me provocas, quando me arneacas
SEGUNDA JORNADA
(i(i co m 0 d('sengano. Matando-tc, verei se isto e sonho ourcalidndc.
Segismundo arranca a adaga; Clotaldo detem a arma("011I (/ rruio e poe-se de joelhos.
CLOTAUlO - Imploro-te que poupes a minha vida.
SEC;ISMl::'-IDO - Tira essa rnao da adaga:CLOT.-\I.I)O - Nao a soltarei, enquanto nao venha gente
que dotr-nha a tua c6lera.
HOSAt:RA - ,\ i, Deus'
SEGISMl:~])O - Solta, caduco, louco, barbaro inimigo~
Solta, 011 rnorreras de outra maneira!
HOSAI;HA - Corram todos depressa: Clotaldo vai ser
rnorto!
Hilt ra Astolfo 110 momenta em que Clotaldo vem cair aseus pes; iuterpoe-se aos contendores.
ASTOLFO - Entao, 0 que e isso, principe generosoJ As-
sun se mancha adaga tao viril num sangue gelado? A
nu-us pes, esta vida tornou-se sagrada para mim. De algolho servira ell ter chegado.
SEC;IS\<lUNIlO - Que sirva para morreres. Tarnbern
poderei \'ingar-me agora, com a tua morte, da insolencia<Jill' h;l POIKO tiveste cornigo,
.-\STOLFO - Eu defendo a minha vida; assim, nao ofen doa majestarle.
/1slo(fo desembainha a espada e lutam.
CALDER6N
CLOTALDO - Nao 0 firas, senhor! 67
Entram Basilio, Estrela e comiuua.
BASiLIO - Lutam aqui, em meu palacio?ESTREU. (aparte) - Astolfo!
BASiLIO - Que aconteceu'
ASTOLFO - Nada, senhor, porque tu chegaste.
Embainham as espadas.
SEGISMl""OO - Vluito, senhor, em bora tenhas chegado.
Eu quis matar esse velho.BASiLIO - ~ao respeitavas aquelas cas)
SEGISMt:NDO - E vao pretender que eu respeite cabelos
brancos. (ao rei) Esses mesmos, hei de ver urn dia aos
meus pes. (sai)BASiLIO - Po is antes desse dia voltar as a dormir onde
poderas verificar que tudo quanto aconteceu foi sonhado.
Saem a Rei; Clotaldo e comuiua.
ASTOLFO - Em face do que houve entre mim e Segis-
mundo, prevejo orgulhos, infelicidades, mortes ... e sei que
acerto, porque tudo acabara por acontecer. K 0 entanto, ao
ver, senhora, esses olhos magnificos ...ESTRELA - Acredito que essas finezas sejam verdadei-
ras, mas devem destinar-se a dama cujo retrato vi pen-
dente no vosso peito .
Entra Rosaura, que se oculta:
ASTOLFO - Farei com que 0 retrato saia do meu peito
•..SEGUNDA JORNADA
tiS ' (' Iwlt' e-ntre a irnagern da tua formosura. Vou buscar 0
retrato. (q/asfalldo-se) Perdoa, bela Rosaura, 0 agravo queIe 1'<1<;0... (.mi)
.lparece Rosaura.
IO:STI{ELA - Astr cia!
HOSAl.:KA - Senhora!
ESTREJ.A - Quero confiar-te urn segredo.
HOSALHA - Honras, senhora, quem te obedece.
ESTHEI.A - Apesar de te conhecer ha pouco tempo,
Ast rc-ia, clltrego·te as chaves da minha confianca.
HOSALHA - Dispiie desta tua serva.
I·:STHEL\ - Pois, para dizer tudo em poucas palavras, 0
meu primo :\stolfo vai casar comigo. Desgostou-me, no
entail to, vc-Io trazer ao pesco<;o 0 retrato de uma dama.
Fa lci-l he cortesme nte nisso, e ele, pOl' galanteria, e por me
<jllt'rpr bem, foi busear 0 retrato para rnostrar-rne. Ora,iSLOlile em baraca muito. Assirn, pc<;o-te que fiques aqui itsua cspera. Quando ele vier, diz que 0 entregue a ti. :'\ao1(> digo mais nada, I'·:ssensata e formosa, deves saber 0 que(.0 amor. (sai)
HOSACHA - Oxala nao 0 soubesse! Valha-me 0 ceu!
()lIP devo fazer lioje, nesta ernergencia? Se digo quem sou,
Clotaldo, a quem minha vida deve este amparo, pode ficar
ofell dido eomigo. Se nao disser quem sou e Astolfo checa• b
a vcr-rne, como hei de dissirnular?
1~'lIfra /lsfo{fo, que traz 0 retrato.
ASTOLFO - Aqui esta, senhora, 0 retrato. Vlas ...
HOSAUHA - POl' que se detern Vossa Alteza? De que sead m ira?
CALDER6N
ASTOLFO - De ouvir-te, Rosaura, e de te ver aqui.
HOSACRA - Eu, Hosaura? Engana-se Vossa Alteza se me
toma por outra dama. Eu sou Astreia e a minha humildade
nao rnerece a grande dita de the causar essa perturbacao.
ASTOLFO - Nao continues a disfarcar, Rosaura. :\ alma
nunca mente e, em bora eia te veja como Astreia, e como
Rosaura que te quer.
ROSAURA - :"Jao compreendi, e pOl'tanto nao sci res-
ponder. Aperias direi que Estrela mandou que 0 esperasseaqui, pedindo-me para dizer de sua parte que me entregueaquele tao discutido retrato: c que eu propria 0 va levar.
ASTOLFO - Por mais esforcos que faca, oh, como dissi-
mulas mal, Rosaura!
ROSAURA - Ja te disse que 56 cs pero 0 retra to.
ASTOLFO - Bern se queres levar 0 engano ate 0 fim, ecom 0 engano que te respondo. Diras, Ast.re ia , it infanta,
que a estimo tanto que, tendo-me ela pedido urn retrato,
seria POllCOgentil erivia-]o. Assirn, manelo-Ihe 0 original,para que 0 aprecie e estime: 0 original do retrato pod eras
tu leva-Io, porque esta contigo.
ROSAURA - De-me Vossa Alteza esse retrato porque
sem ele nao saio daqui.
ASTOLFO - .vlas como poderas leva-Io, se nao 0 dou?
ROSAURA - Desta maneira. (procura tira-Io]
ASTOLFO - E inutil.
ROSAURA - Por Deus! Ele nao ha de ir parar nas maos
de outra mulher!
ASTOLFO - Es terrivel'
ROSACRA - E tu ardiloso!
ASTOLFO - Basta, Rosaura minha.
69
SEGC~DA JOR~ADA
70 IIOSAU\;\ - Eu, t.ua? Mentes, vilao.
.-lmbos agarralll a cordiio com a retrato, entra Estrela.
ESTIIELA - .\streia ... Astolfo ... que e isto?
IlOS.\l:H.\ - Se queres saber, senhora, eu te direi. (igna-rondo .l stolfo, que pretende impedi-la) Vendo-te falar emret rat os, rcr-or dei-rne de que tinha urn, meu, na manga.
(~lIis \"0-10, r- tirei-o, a retrato me caiu da mao, e Astolfo,
<jllt' ai nda t em ° da outra darna, recolheu-o do chao, estalitO re-be Ide q lie, ern vez de me dar urn, quer levar as dois,
E como nao me devolvia 0 meu, apesar dos rogos, eu, zan-
gada e im paciente, quis arrebata-lo, Aquele que ele tem
lid IlIaO t' () meu. Podes verificar.
ESTIIELA - Da-me, Astolfo, esse retr ato.
Tim ()retrato da rn.do de Astolfo.
ASTOLFO - Senhora ...
ESTHELA - As aparencias nao desmentem a verdade.
II()SAUHA - ~ao C 0 meu?
ESTHELA - Pode haver duvida?
HOSAUHA - .\gora pede que te de 0 outro.
ESTHELA - To IIIa 0 teu retrato e vai-te.
HOSALHA (apanhando 0 retrato) - Agora, venha 0 quevior. (sai)
ESTHFLA - I )a-rne agora ° retrato que te pedi. EmboralIao ~ll'lIse ver te nern falar-te jamais, nao quero que eleIiqu« r-rn rcu poder.
,\STOLFO - Embora quisesse, Iorrnosa Estrela, servir-te
" obcdeccr-tc, nao posso dar-te 0 retrato, porque ...
CALDER6~
ESTREL\ - Es vilao e grosseiro amante. Ja nao 0 quero,
nern quero que recordes 0 meu pedido. (sai)ASTOLFO - Espera, Lstrela' (pausa) Valha-te Deus,
Rosaura' Donde, como, e de que maneira vieste hoje itPol6nia, para me perder e te perderes? (sai)
71
Mudanca de cena; prisao de Segismundo na torre. Se-gismundo, como no principio, com peles e grilizoes, deitadono chiio; Clotaldo, dais criados e Clarim.
CLOTALDO - Deixem-no aqui. 0 seu orgulho acaba
hoje oncle cornecou,
CLARIM - Nao despertes rnais, Segismundo, para que
nao vejas mudada a tua sorte, e te sintas perdido de uma
g16ria irreal. A tua gl6ria foi uma som bra da vida e urn
prenuncio da morte.
CLOTALDO - Quem tfio bem sabe discursar devia tam-bern preyer urn born lugar on de exercit.ar a sua eloquencia.
(aos soldados) Podem fechar tarn bern esse. (aponta umquarto contiguo)
CLARIM - A mirn? Por que)
CLOTALDO - Porque Clarim que conheee tao graves
segreclos deve ficar em prisao, corn muros bastante espessos
para guarclar 0 que sabe.
CLARI:\-1- Acaso eu ameaco de morte 0 meu pai? _-ao.
Atirei cia janela algum novo Icaro) Eu durmo, eu sonho?
Por que devo ser preso?
CLOTALDO - Porque es Clarirn.
CLARIM - Entao, desde am an ha serei corneta, caladi-
nha, que e instrumento ruim!
SEGUNDA JORNADA
72 IA>/'({II/-IW, e Clotaldo fica 56;erura Basilio, embucado,enquanlo S<,gismundo segue adormecido.
IlAsiuo - Clotaldo.
CLOTAI.IlO - Senhor' Vossa Vlajestade, aqui?
B\siuo - LIlla tola curiosidade animou-me a vir ver 0
que acoutece ClSegisrnundo.
CI.OTAI.f)O - .\i esta ele, reduzido a sua miseravel COI1-di~"lo.
IlAsiuo - .\i, principe infeliz e mal nascido! Procuradr-spc-rt a-l o, Clotaldo. 0 opio the tirou as for cas.
CLOTAU)() - Esta inquieto, senhor, falando baixo.
BAsil.lO - Quais serao seus sonhos, agora?
SE(;ISMV\[)O (sonhando) - Piedoso e 0 principe que
castiga os t iranos. Vlorr a Clotaldo as minhas rnaos e beijen u-u palos rue-us pes.
CI.OTAU)O - Quer rne rna tar.
uvsir.ro - Anieacarne com maus tratos e humilhacoes,
CLOTAI.J)O - I'retende rou bar- rne a vida.
BASiLIO - l'rojeta derrubar-me a seus pes.
SU;ISVlUNf)O (sonhando) - Surja na espac;;osa prac;;ado grande teatro do mundo este valor primordial: para
rr-a lizar a villgan<,;a vejarn 0 principe Segismundo que
dr-rro t a 0 proprio pai. (despertando) Mas, onde estou?
BASiLIO (escondendo-se) - ~ao convern que me veja. (aC/ola/do) .Ia sabes 0 que Iazer, Fico para escutar de maislo))ge. ((l{asla-se)
SECilSVlU DO - Sou eu, porventura? Sou eu, preso
(' akrrollrado:' Sois, torr e, 0 rn eu sepulcro? Sim. Ah!QUCl))(aS roisas espantosas eu sorihci!
CALDER6N
CLOTAUJO - Ja e hora de acordar?
SEGIS.\1U -DO - Sirn, ja e hora de acordar.
CLOTALDO - Dormiste todo este tempo!
SF.GISMU:\DO - E acho que ainda nao despertei. Pois se
o que vi, palpave! e certo, era sonho. 0 que vejo agora e
incerto. Sera que nao sonho que estou acordado?
CLOTALDO - Conta-me 0 que sonhaste.
SEG1SMUi':'00 - XIesmo que tivesse sido urn soiiho, nao
direi 0 que sonhei, Clotaldo, mas sim 0 que vi. Desper-tando me vi num leito colorido e magnificente. XIii no-,bres submissos a m.eus pes me chamaram principe, e me
of ere eel' am pomposas roup as, adornos e joias. Tu trans-
formaste a calma do meu animo em alegria, revelando a
minha sorte: embora esteja nesta miseria, eu era 0 prin-
cipe herdeiro da Polonia.CLOTALOO - Entao, mereci urn prernio.
SEGlSMU"'OO - ]\ao. Eu te mataria duas vezes, pOI'
traidor.CLOTALOO - POl' que tanta severidade?SEG1S 1U -DO - Eu era senhor de todos, e a todos pedia
desforra. So amava uma mulher creio que tudo isto foi
verdade, ja que tudo se acabou so isto nao se acaba ...
73
o rei se vai.
CLOTALDO - Como antes de adormeceres haviarnos fa-
lado sobre as aguias, tu, dorrnindo, sonhaste grandezas
impossiveis. Vlas teria sido born que, rnesmo ern sorihos,pudesses honrar quem te criou com tantos cuidados, Segis-
mundo. Ate em sonhos nao se perdem as boas ar;oes.
Sai Clotaldo.fica Segismundo, so.
•••SEGUNDA JORNADA
74 SEGlSMC:-JDO (so) ~ E certo; entao reprimamos
esta fera condicao,
esta Furia, esta ambicao,
pois pode ser que sonhemos;
co faremos, pois estamos
ern rnundo tao singular
que 0 vivcr so e sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que 0 homem que vive, sonha
o que e, ate despertar.
Sonha 0 rei que e rei, e segue
corn esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que reeebe,
vazios, no vento escreve;
e ern cinzas a sua sorte
a morte talha de urn corte.
E hi'!quem queira reinar
vendo que hit de despertar
no negro sonho da morte?
Sonha 0 rico sua riqueza
que trabalhos the oferece;
sonha 0 pobre que padece
sua miseria e pobreza;
sonha 0 que 0 triunfo preza,
souha 0 que luta e pretende,
sonha 0 que agrava e ofen de
e no mundo, ern conclusao,
CALDERON
todos sonham 0 que sao,
no en tanto ninguern entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que noutro estado
mais lisongeiro me vi.
Que e a vida? Urn frenesi.
Que e a vida? Uma ilusao,
urna sombra, uma ficcao,
o maior bem e tristonho,
porque toda a vida e sonho,
e os sonhos, sonhos sao,
75
..
TERCEIRA JORNADA 77
Mesmo cenario, na torre de Segismundo, 0 compartimentode Clarim.
CLARIM - Pelo que sei, vivo preso nurna torre encan-
tada. Quem me faz cornpanhia sac as aranhas e os ratos.Se pelo que sei me m atarn, que castigo me darao pelo
que ignoroJ Pode urn hornem com tanta forne estar a
morrer vivendo? Quero dizer em voz clara; todos irao acre-
ditar, porque, para mim, silencio nao casa corn 0 nome de
Clarim. ~ao posso calar-me. Tenho a cabeca cheia dos
sonhos desta noite: mil clarinetas, trombetas, miragens,
prociss6es, cruzes, penitentes; uns sobem e outros descem,outros ainda desmaiam vendo 0 sangue que escorre dos
corpos . Mas eu, e de fome que desmaio. Nestes novostempos, considerarn que e proprio dos santos aguentar e
calar, mas santo, para mim, e isto de jejuar sem querer.
In util queixar-me. t bem merecido 0 castigo que padeco,
pois, sendo criado, calei-rne, e isto e 0 maior sacrilegio,
Som de tambores, clarins e gritos, dentro.
1° SOLDADO - EsUt nesta torre. Derru bem a porta e
entrem.
CLARIM - Gracas a Deus: l\'ao ha duvidas de que me
procuram, pois dizem que estou aqui. Que sera que eles
querern?
1° SOLDADO - Entrem!
..TERCE IRA. JOR);ADA
7H 1::11 I ram I'{l rios soldados.
2° SOLllAIlO - Esul. aqui:
CI.AHIM - :\iio csta.
SOI.IlADOS - Senhor. ..
CI.AHI~l - Sera que estao bebados?
1° SOLDADO - Tu es 0 nosso principe. TaOadmitimos
nem qlleremos senao 0 nosso principe natural, e nao 0
duque estrallgeiro. Da-nos os pes, senhor, para beijarmos.
SOl.llAIlOS - Viva 0 nosso grande principe!
CI.AHIM (aparte) - Por Deus, parece que e serio. Sera
cost ume neste pais prenderem uma pessoa num dia,
consagra-Ia como principe no outro e despacha-Ia no ter-
ceiro outra vez para a prisao? Sim, e, porque estou vendo.Precise desempenhar meu papel.
SOI.IlAIlOS - Danos os pes, senhor:
CLAHL\1 - l\iio posso, porque preciso deles para mim..\ 1(;111 do q lie, seria feio urn principe perneta.
2° SOLllAIlO - Dissemos todos a teu pai que so a ti
aceitariamos como principe, e nao a Astolfo.
1° SOLllAllO - Sai, para reaver 0 teu imperio. VivaSegisiliulldo!
TOIlOS - Viva!
CL\HI~1 - Segismundo? Para voces todos os principes itfor~'a s.io SegismundosJ
SEGISML':-;[)O (aparecendo) - Quem chama aqui porSqrisllllllldo:'
CLAHIM - Pronto. Sou urn principe gorado,
1 ° SOLDADO - Quem e Segismundo?S!-:(ilS:VWI\DO - Eu.
CALDERON
2° SOLDADO (a Clarim) - Tolo atrevido! Querias fazer-
te passar por Segismundo?
CLARIM - Eu, Segismundo? Nego isso. Forarn voces
que me segismundaram,
1° SOLDADO - Grande principe Segismundo, nos te
aclarnamos senhor nosso, 0 teu pai, 0 grande rei Basilio,
receando que os ceus cumpram uma profecia que preve asua submissao a ti, pretende tirar-te a t'aculdade da ac;:ao
e 0 direito que te pertence; quer que em teu lugar fiqueAstolfo. Com esse fim reunia a corte, VJas 0 povo, comurn nobre desprezo pela profecia que se atribui ao teu
destino, vern buscar-te, para que, ajudado pelas suas armas,saias desta prisao para reaver a tua imperial coroa e poder,
Sai pois, que lit fora urn exercito numeroso de revoltados
plebeus aguarda para te aclarnar. A. liberdade te espera,
~ao ouves as vozes da multidao?
VOZES (dentro) - Viva Segismundo! Viva!
SEGISMUNDO - Que e isto, oh ceu?' Queres que eu
sonhe outra vez grandezas que 0 tempo ha de desfazer?Queres que veja outra vez entre ideias e sombras vacilan-
tes a majestade e a pompa varridas pelo vento? Queres
que outra vez sinta a desilusao aquele que nasceu humilde
e vive atento? Nao hei de tornar aver-me agarrado pela
minha desgrac;:a, Adeus, oh sombras, que perante os meus
sentidos agora fingem ter corpo e voz. ao quero 0 poderfingido, nao quero pornpas fantasticas, ilusoes inuteis. Ja
vos conheco, e sei que e 0 que acontece corn quantos so-nham. VIas para mim acabaram as ilusoes; estou acordado,
sei muito bem que a vida e sonho.
2° SOLDADO - Se pensas que te enganamos, olha para
fora e ve 0 povo que te aguarda, disposto a obedecer-te.
79
TERCEIRc\ JOR:"ADA
HO SFGISMUI\[)() - HI outra vez vi isto ruesmo, tao clara e
dist mt.nncntc como agora estou a ve-Io ... e foi sonho.
2° SOI.DA[)O - Sempre, grande senhor, as grandes coisas
t rou xr-rnm pre-nuncios: se ja sonhaste corn isto, foi urnprc-uuncio.
SFGISVW:\1l0 - Dizes bern: foi urn prcnuncio. Ese elesc- c-onIir ma, j{1que a vida e t.ao curta, sonh ernos, alma,
sonl u-mos out.ra vez, mas corn a precaucao de despertardt'ste t'llgallo 11amelhor altura, e de ver que ele acaba. As-sin i, c-onscir-n tr-, sera mcnor a desil usfio ... Tanto rna is que
recusar seria e-srar neccr da sorte e desafia-Ia ... Atrevamo-
110S a t.urio, pois todo poder e ernprestado e ha de tornar ao
se-u legilimo clono. Vassalos, eu vos agradec,;o a lealdade.
ElIl 1IliIII tendes quern vos livrarn da escravidao. t minha
i!lte!l~'ao r-mpunh ar ar m as contra rneu pai e dar razao aoque c-st.acscrito nos ceus. Ja que hei de veIo aos rneus
pi's ... tocai alnrma!'
T()[)OS - Viva Scgismundo! Viva!
Entr« C/ota/do.
CI.OTAU10 - Que alvoroco e esse;
SI:CiISML)J[)() - Clotaldo:
CLOTAL[)O - Senhor. ..
CLAHIVI ({{parte) - Aposto que vai atira-lo pela janela.
CLOTAI.()O - Ja sei que chego a teus pes para morrer.
SI·:(;ISMI':\1l0 - Ergue-te pai, ergue-te do chao, porque
va is sc-r 0 nortr- e gllia de quantos confiarern nas rninhas
resolu~'i)es e porque ja sei que devo a minha cri acao a tuak-aldude. I )(I-lllC tuas maos.
CI.OTAI.[)() - ()ue riizcs.'
CALDER6:"
SEGISMU:\DO - Digo que estou sonhando e que procuro
agir bern, embora em sonhos.
CLOTALDO - Pois, senhor, se agir bem e agora 0 teu
lema, penso que nao te ofender as por eu hoje procurar
outro tanto. Vl as, fazer guerra a teu pail Eu nao posso
aconselhar-te contra 0 meu rei, nem ajudar-te. Fstou aqui
a teus pes. Mata-rne.
SEGIS:\1UNDO - Vi lao, traidor ingrato! (aparte) Ceus!
Devo moderar-me pois, n ao sei ai nda se estou acor-
dado ... (alto) Clotaldo, invejo a t.ua coragem e te agradec,;o.
Vai servir ao rei; no campo de batalha nos veremos.
CLOTALDO - Beijo mil vezes os teus pes. (sai)SEGISMUKDO - Voces, toquem as arrnas' Vamos reinar,
minha sorte! Nao rne despertes, se durmo e, se estou acor-
dado, nao me adorrnecas. Se for realidade, por isso mesmo;
senfio. por ganhar amigos para quando despertarmos.
81
Saem todos; tocam as tambores.
Mudanca de ceria; Salao do Palacio Real. Basilio eAsto/fo.
BASiLIO - Quem, Astolfo, sendo valente, pod era deter
a fur ia de urn cava lo sern freio? Quem, sendo prudente,
poder a deter 0 caudal de urn rio que corre, soberbo e
vertiginoso, para 0 mar? Pois parece mais facil deter tudoisso que a soberba ira do povo. Que 0 diga 0 rumor daplebe dividida que, de urn lado, grita: Astolfo! E de outre:
Segismllndo~ Eo rumor ressoa e multiplica-se em ecos por
todo 0 pais.
ASTOLFO - Serihor, adia-se hoje 0 que a tua rnao me
prometia. Se a nac,;aoainda resiste ern aceitar-me e precise
TERCE IRA JORNADA
H2 qllP ('11 a lIlere<;a prirneiro. Da-me a tua ajuda e que urn
r.uo ca ia sabre quantos se julgam trovao! (sai)BAsil.lO - Pouco conserto tern 0 que e irievitavel: e
muitos riscos 0 que e previsivel. 0 que tern de ser, sera.
Que dura lei' Peusando fugir ao perigo, ofereci-me ao
perigo. Com 0 que eu reprimia, me perdi. Lu mesmo, eudcstrui a rni nh a patria.
ESTIWU - Se COlli tua autoridade nao tratas de refrear
o unnulio desenfreado que vai crescendo pelas ruas e pra-
c;as, entre as dois grupos do povo dividido, veras 0 teu reinoa fogar-se ern sangue. Os soldados ja parecem esqueletosv ivos'
Entra Ctotaldo.
CLOTALI)() - Cra<;as aos ceus, chego vivo aos teus pes!
BASiLIO - Clotaldo! Que notieias me das de Segis-muudo:'
CLOTALDO - 0 povo, desabrido e cego, entrou na prisao
(' dr- lit t irou 0 principe. Vendo-se restituido it sua condicao,ek mostro u valent.ia, dizendo ferozmente que ha de darrazao aos vereditos do ceu.
HAsil.lo - Preparern-me urn cavalo! Quero ser eu, emlH'ssoa, a vr-nr-cr na luta a urn filho ingrato. Que ao me-
IIOSna de-Iesa da minha coroa venc;aln as armas e sejamde-rrotados os pressagios!
Saem Basilio e Estrela, quando Clotaldo vai sair. entraHosaura; que 0 detem.
CALDER6N
ROSAURA - Embora as virtudes do teu peito gritem,
ouve-me a mirn, que sei que tudo e guerra. vlandaste que
eu vivesse disfarcada no palacio e que evitasse encontrar-
me com Astolfo. :\0 entanto, ele acabou por me ver e ficou
em tao dificil situacao que passou a falar com Estrela itnorte, n urn jardim. Ora, eu tenho a chave do jardim eposso entrega.-la a ti, para que mates Astolfo. Assirn, ficara
restaurada a minha honra.CLOTALDO - E verdade que, desde 0 dia em que te vi,
fiquei decidido a fazer por ti 0 mais que pudesse. VIasquando Segismundo pretendeu assassinar-rne, Astolfo in-
terveio em minha defesa, demonstrando-me a sua afeicao.
Como poderei eu, tendo a alma agradecida, pensar em dar
rnorte a quem me salvou a vida?ROSAURA - em dia me salvaste a vida; mas me disseste
que vida manchada nao e vida. Devo supor, entao, que
nao me deste nada? Queres ser ao mesrno tempo generosoe agradecido) Se antes generoso. Salva a minha honra.
Seras grato depois.CLOTALDO - Serei apenas generoso. Ell, Rosaura, te dou
a minha fortuna. Recolhe-te a um convento, e a melhor
solucao que te posso dar. Nesta altura, quando 0 rei no,
dividido, sofre tao graves desditas, nao hei de ser eu, que
nasci nobre, quem as aurnentara. Creio que nao poderia
fazer mais e melhor, mesmo que fosse teu pai.ROSACR..\ - Se fosses meu pai e nao me vingasses, seria
eu quem sofreria a injuria.CLOTALDO - Que pensas Iazer?
ROSAURA - Matar 0 duque.CLOTALDO - Uma dama, que nao conheceu 0 pai, tern
tanta coragern?ROSACRA - Eu tenho!
83
TERCEI~;\ JORNADA
H4 CLOTAU)() - () que te encoraja?
I\OSAl;I\A -.'\ minha fama.
CLOTAI.[)O - Olha que teras de enfrentar Astolfo ...
I\OSAI'RA - Toda a minha honra 0 eondena.
CLOTALDO - Eo novo rei, e 0 noivo de Estrela~
HOSAUHA - Deus nao ha de permitir!
CI.OTAU)O - f: urna loucura.
I\()SAI'KA - Bern sei.
CLOTALDO -Pois cura-te dela.
ROSAI;HA - :\ao posso.
CLOTALDO - Perderas, eertamente ...
I\OSACHA - Hi sei ...
CLOTALDO - ... vida e honra.
HOSA(;HA - Nao duvido.
CLOTAl.DO - Que tens em mente?
HOSACKA - :VJatar-me, depois.
CLOTALDO - Isso e despeito.
I\OSAUI\A - (.: honra.
CLOTALDO - E desatino.
I\oSAUHA - f: coragem.
CI.OTAU)O - f~delirio.
HOSAUHA - t raiva, e ira.
CI.OTAI.IJO - Quem vai te ajudar?
HOSAt:HA - You sozinha.
CLOTAU)O - :Nao desistes?
I\OSAU\A - :\ao.
CLOTAU)O - Pensa bem se ha outras maneiras ...
I\OSALHA - Do coritrario, estaria perdida. (sai)
CALDER6~
CLOTALDO - Ja que tens de perder-te, espera, filha, e
pereamo-nos todos. (sai)
85
Mudanca de cena; Segismundo, uestido de peles, comsoldados que marcham; e Clarim. No campo. Rufam tam-bores.
SEGISMC~DO - Se aRoma triunfante dos seus eome-
~os irnperiais me visse neste momenta, como sc alegrariapor tel' eonseguido a fera que eu sou para dirigir os seus
poderosos exercitosl
Entra Rosaura, uestida com saia de pastor, com espadae adaga.
ROSAURA - Generoso Segismundo:
tua majestade heroiea
nasee ao dia dos seus feitos
da noite de suas sombras.
Grande amanhecas ao mundo,
lucido sol da Poloniae a uma mulher infeliz
que hoje a teus pes se arroja
ampares por ser mulher
e infeliz: duas eoisas
que ao homem que for valente
qualquer uma basta e sobra.
Tres vezes ja tu me viste
em diver so traje e forma:
a primeira em tua prisao,
estando eu vestida de homem.
..
86 i Na segunda, era mulher
quando estavas tu na corte.
:\ ierceira e esta, quando
sou mulher e arrnas suporto.
:\ os palacios de Vloscou
nasci, de mae mui to nobre,
e de urn traidor, cujo nome
lIao diga porque 0 ignoro.
.vlinha sorte foi taD dura
quanto a desta mae formosa.
Tarnbem conheci ladrao
dos tro leus da minha honra.
Astolfot Ai de mim! Seu nome
me encoleriza e me enoja.
:\stolfo foi dono ingrato
que, olvidado de suas gl6rias,
(porque, de um passado amor
se esquece ate a mem6ria)
vcio a Poldnia, chamado
por sua arnbicao famosa
para casar-se com Estrela,
do rneu crepusculo 0 foco.
Eu, of end ida, burl ada,
calei minhas penas fundas
ate que UHl dia, a Violante
contei-as todas, chorosa.
Ela entao corrtou-rne as suas
consolaudorne, piedosa.
TERCElRA JOR~ADA CALDER6N
Juiz que foi delinquente
quao facilmente perdoa:
Deu-me a espada recebida
do raptor de sua honra,
e mandou que, disfarcada,
vestisse trajes de homem.
"Vai a Polonia ", me disse
"para que te vejam os nobres,
em algum encontraras
consolo para tuas dores''.
Aqui encontrei Clotaldo,
o que me salvou da morte
e me pedi u fosse dama
de Estrela, noiva de Astolfo.
No entanto, quer impedir
somente esse matrimonio
I 87
e pede que minha luta
por minha honra abandone.
Por isso hoje venho a ti
Segismundo! E em tua pessoa
ponho minha confianca
ofereco a minha forca
mulher, para me queixar,
varao, para ganhar gl6rias.
SEGISMUNDO - Oh ceusl Era entao verdade?
Mas entao nao era sonho?
Como po de esta mulher
dizer coisas tao not6rias?
TERCEIR.,<\ JOR~ADA
88 Pais se (> assirn, e ha de ver-se
dcsvanecida entre sornbras
a g-randeza e 0 poder
saiharnos aproveitar
estc poueo que nos toca
po is so se goza na vida
o que entre sonhos se goza.
Rosaura esta em meu poder,
e bela, e minha alma a adora ...
Ivludanca.
Vias nao ... e mulher ferida ...
e mais a urn principe toea
dar hanra do que tira-Ia.
Por Deus: Que de sua honra
hei de ser conquistador
mais que de minha corea.
H.OSAt:H.A - Senhor! Pois assim te vais?
:"Iel1l uma palavra boa
tc merece 0 meu cuidado
te mer ece 0 rneu desgosto)
Como e possivel, senhor,
que naa me olhes nern me oucas?
SEGISMC:-JDO - Rosaura, 0 dever me forca
por ser piedoso contigo
a ser cruel contigo agora.
:"Iao te responde esta voz
para que a brio responda,
CALDERON
nao te falo, porque quero
que por mim falem as obras
nem te olho, pois e forca,
em pen a tao rigorosa
que nao olhe tua beleza
quem deve olhar por tua honra.
ROSAURA - Vleu Deus, que palavras dizes'
Depois de tanto pesar
posso eu me conformar
com enigmas infelizes?
89
Entra urn. soldado cantando.
SOLDADO (cantando) - Ja se declarou a guerra
de Segismundo a Basilio.
Ja saem para 0 combate
forcas do pai e do filho.
Soam tambores valentes
no palacio sitiado;
agora e a hora da morte
para os rniseros soldados.
Uns gritam: "Que viva 0 rei!"
outros: "Viva a liberdade!"
Todos querem 0 poder
e redobra a luta armada
e soa a hora da morte
para 0 povo esfomeado.
o exercito de Basilio
sofre derrota fatal.
90 Tam bern se acabam as reis
quando 0 maior e rival.
E se a rnorte nos persegue
de pouco adianta fugir,
pois rnesmo estando escondido
cai u ferido Clarim.
Clotaldo aconselha a todos,
Astolfo bUSCda batalha,
ao rei suplicarn que fuja
montado no seu cavalo.
Po rem, Basilio recusa
mesmo que a rnorte 0 aguarde.
Do lado de Segismundo
mostramIhe onde 0 rei se acha;
o principe, sem perdao,
ordena que os seus soldados
busquem nos bosques e arvor es
cada tronco e cad a ramo.
Quando Basilio compreende
que ter minou a contend a
depoe as armas que tinha
e ante 0 filho se apresenta,
para que 0 cursu da vida
mais urna vez se rnantenha ...
TERCEIRA JOR:'\ADA
Elltram Basilio, Clotaldo e Astolfo, que vem fugindo.
BASiLIO - Ai de mim, rei infeliz!
Ai de mirn, pai perseguido!
CALDER6N
CLOTALDO - Teu oxercito, vencido,
foge de inimigos vis!
ASTOLFO - Os traidores triunfantes ficam.
BASiLIO - Em batalhas tais
os que vencem sao leais
e vencidos as traidores.
Fujamos, Clotaldo, pois,
do cruel, do desumano
rigor de urn filho tirano.
91
Ouve-se urn tiro dentro e cai Clarirn,jerido, de onde
estaua.
CLARIM - Valha-me Deus!
ASTOLFO - Mas quem e
este rnisero soldado
que a nossos pes vern cair
do proprio sangue manchado?
CLARIM - Sou urn homem desgra<,;ado
que por querer me guardar
da morte, a fui procurar.
Fugindo dela, encontrei
a rnorte, po is nao ha lugar
para a inimiga secreta.
Quanto mais longe te escondes
rnais te alcanca a sua seta.
Por isso digo: voltai
it sangrenta guerra, e logo,
porque entre as armas e 0 fogo
TERCEIRA JOR~ADA
92 ! bem mais seguros estais
que no bosque mais guardado;
nao ha segura caminho
contra a forca do destino
e a inclernencia do Facio.
I)e pouco vale ten tar
da rnorte se defender;
selllpre acaba par morrer
aquele que Deus mandar.
Cai rnorto.
BASiLIO - Sempre acaba par morrer
aquele que Deus mandar:
Corn que razao esclarece
nossa pobre ignorancia
e tlOS da conhecimento
este cadaver que fala
par boca de uma ferida
sendo 0 sangue que derrama
cruenta lingua que ensina
o POllCO valor do esforco
que fazemos contra a sinai
() homern bem pouco alcanca
se all te si a lea -se a Forca ~
Pais eu, par livrar de mortes
e sedicoes minha patr ia
tcrrninei por entrega-Ia
aos traidores que evitava.
CALDERON
CLOTALDO - Inda que saiba 0 destino
os caminhos, e incla que ache
a quem busca, na espessura
de penhascos, nao e proprio
de nossa gente crista
percler a fe na vi tori a.
Certo e que 0 varao prudente
vence a destino carrasco
e se nao esta protegido
con tra a pena e a desgrar;:a
procm'a como salvar-se.
ASTOLFO - Clotaldo, senhor, te fala
como prudente varao
que madura idacle alcanca;
eu, como jovem valente.
Por entre as espessas matas
deste monte esta um cavalo
93
rapido filho dos ventos.
Foge, que eu te guardarei
de todos as elementos.
BASiLIO - Se Deus quiser que eu pere\ia
ou se a morte a mim me aguarda
aqui a quero encontrar
esperando, car a a cara.
Entram Segismundo, Estrela, Rosaura, soldados, corte.
BASiLIO - Se andas a procurar-me, aqui estou, principe, ao teu dispor. Calea a minha fronte e pisa a minha
TERCEIR.;\ JOR:\"ADA
coroa: abatr-. arrasta rniuha dignidade, vinga-te na minha
hourn, SL'IT('-ll' de mim como escravo. E apos tantas pre-call~'o(:,s, clllllpra-se 0 que estava escrito. Cumpra 0 ceu asua palm'!",\.
SE(i/S\Il'i\DO - Ilustrc corte da Polonia, que es tcstemu-IIlia df' latos Lao surpreendentes, escuta 0 que deterrnina 0
((,II pri nr-ipe! Df'US escr eveu tudo 0 que 0 ceu determina
t' qlle, r ifrado 1I0S espac;;os azuis, nunca engana ou mente.EIIgalla e mente, sim, quem decifrar as determinac;;oes do
Cell para as usar ern seu beneficio. :VIeu Pai, aqui presente,
para se ex imir a sanha da minha condicao, fez de mim
UIl\ hrut o, urn a fera humana, de maneira que eu, devendo
In nasrido galhardo, generoso, d6cil e hum ilde, para 0
qlle bastar ia urna vida normal, aprendi desde a infancia os
mr-us costumes com as feras. Que born modo de irnpediressc-s costumes! Se dissessern a urn homem: "Lrna fera
vai (e matar!' - iria ele desperta-Ia enquanto dorrnia? Se
d isscssr-m: "Essa espada que trazes cingida sera aquela
qlle Ie m atara " - seria tolice, para evitar 0 desastre, de-
semba inhar a espada e aponta-Ia contra 0 proprio peito, Sed issessern: "Vlontanhas de agua hao de ser a t.ua sepultura
IIUIll por,;o df' pr ata " - mal faria e le em se atirar ao mar,
quando, espuma ndo, erica a raiva de suas ondas. Aeon-tr-rr-u ao In('U pai 0 mesmo que acontece a quem, sendo
.uneacado pOl' urn a fera, a desperta, a quem, sendo visado
por uma espada, a en costa ao peito; a quem agita as on-
das de lllll mar tempestuoso. Lrna vez desencadeadas asforr,;as, niio poderia mais descansar a minha sanha, adocar
a espada da m inha Furia, tranquilizar a dureza da minha
vio lenr-ia, pnrque 0 futuro nao pode ser afeicoado com in-justir,;as e fornes de vinganc;;a. Assirn, quem deseja dominar
a sun mil sort e, tera de usar de prudencia e terrrperanca,
CALDERO::\"
Ningucm se preserva dos desastres que ainda nao acon-
teceram; quando muito podera preve-Ios e acautelar-se
deles na devida altura; sua chegada, ninguem pod era evi-
tar. Que nos sirva de exemplo 0 que neste local aconteceu,
espetaculo prodigioso e singular! Basta termos chegado aver, apesar de todas as prudencias, ajoelhado a rneus pes
urn pai e derr ubado urn monarca. Foi ver ed ito do ceu; pormais que ele quisesse irnpedi-Io, nada po de fazer, Poderei
eu, no entanto, que sou menor na idade, nos rneritos e
na sabedoria, dominar 0 meu destine" (ao rei) Ergue-te,
senhor, e da-me a tua rnao.
BASiLIO - Filho! Com tao nohre aC;;ao outra vez as
minhas entranhas te geram, es 0 principe. Vlereces 0
laurel da tua ccndicao e a palma da tua vitoria. Venceste.Que as tuas facanhas te coroem!
TODOS - Viva Segismundo, Viva!
SEGISyHJNDO - Porque espero obter outras grandesvit6rias, vou alcancar a mais custosa hoje: vencer-me a
mim pr6prio. Astolfo, da a mao a H.osaura. Tu [he deves a
honra e eu estou disposto a fazer-te pagar essa divida.
ASTOLFO - Embora seja verdade que the devo obriga-
c;;oes, repara que ela nao conhece pai e seria urna baixeza
infamante eu casar-me COITI rnulher ...CLOTALDO - ~iio continues. Rosaura e tao nobre
quanto tu, Astolfo, e a minha espada a defendera. Bastadeclarar que e rninha filha.
ASTOLFO - Que dizes?
CLOTALDO - Que eu quis guardar segredo disto ate a
ver casada, nobre e honrada. A hist6ria e muito longa, mas
e certo, e minha filha.
ASTOLFO - Pois sendo assi m, cumprirei a rninha pala-
95
vra.
TERCElRA JOR:-;ADA
96 I SEGISMC:\DO - Para que Estrela nao fique desconso-
lada, vendo que perde urn principe com tanto merito e
fama, pela minha mao hei de casaIa com alguem que, se
nao 0 cxcede, 0 iguala. Da-me a tua mao!
ESTRELA - Ell nfio mereco tanta felicidade:
SEGISMl.::"!)O - Clotaldo, que lealmente serviu meu
pai, t.ern os meus bracos it sua espera, com as rnerces que
queira solicitar.
SOL.DADO - Se assim recompensas quem nao te auxi-
liou, que me daras a mim que causei a rebeliao no reino,
libertando-te da prisao em que jazias?
SEGISMUNDO - A prisao. £ para que nao saias nunca
de la, has de permanecer vigiado ate a morte, estando atraic,;ao passada, ja nfio e preciso 0 traidor.
RASil.lo - 0 teu talento surpreende a todos.
ASTOLFO - Que car ater tao mudado!
HOSAURA - Que sabio e que prudente!
S~~GIS:vIUI\l)O - 0 que e que vos espanta?
Se 0 meu mestre foi 0 sono
e temendo em minhas arisias
estou, de acordar na terre?
E mesrno que assim nao seja,
basta sonha-lo de novo .
.\ssim cheguei a saber
que a felicidade humana
passa sempre cornu um sonho
e hoje quero aproveita-la
ainda que dure pouco
pedindo, de nossas faltas
a todos os que rne ouvem
...•
CALDER61\'
perdao, pois em peitos nobres
o perdao e flor de ouro.
97