Post on 27-Oct-2015
Rinaldo Cesar Nascimento Leite
A Rainha Destronada
Discursos das Elites sobre as Grandezas e os Infortúnios da Bahia nas Primeiras Décadas Republicanas
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO -- SP
2005
Rinaldo Cesar Nascimento Leite
A Rainha Destronada Discursos das Elites sobre as Grandezas e os Infortúnios
da Bahia nas Primeiras Décadas Republicanas
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História Social, sob a orientação da Profa. Dra. Heloísa de Faria Cruz.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO -- SP
2005
Banca Examinadora
______________________________________________
Heloisa de Faria Cruz
______________________________________________ Erivaldo Fagundes Neves
______________________________________________ Estefânia Knotz C. Fraga
______________________________________________ Maria Odila Leite da Silva Dias
______________________________________________ Tania Regina de Luca
Dedicatória
Este trabalho é dedicado ao meu filho, Luís Felipe, meu pequeno herói da
aventura paulistana em busca de doutoramento, meu pequeno animador da rotina
cotidiana, meu pequeno moleque travesso.
Ele procurou, inocentemente, e de todas as formas, atrapalhar a consecução
deste empreendimento, reivindicado a minha constante atenção para participar das
suas importantíssimas preocupações existenciais, quais sejam, as suas tantas,
impreteríveis e inadiáveis opções de atividades lúdicas.
Muitas vezes precisei negar-lhe minha companhia. Mas para não ser totalmente
injusto com ele — que freqüentemente me perguntava quando acabaria esta tese e não
tinha nenhuma responsabilidade pela minha opção de cuidar de duas diferentes crias —,
acedi aos seus pedidos algumas vezes. Foi nos diversos momentos que dividi com ele,
quando por obrigação deveria estar concentrado na escrita deste texto, que encontrei
alívio para a aflição e a angústia de que muitas vezes fui tomado.
Oxalá, o resultado deste trabalho ajude-o, um dia, a pensar o seu lugar no
mundo! Que todas as forças superiores do universo o protejam sempre!
Agradecimentos
Para chegar à conclusão desta tese, foram várias as atividades que precisei
executar: elaborar projeto, freqüentar disciplinas do programa de pós-graduação, fazer
leituras de textos diversos, pesquisar as fontes, refletir e desenvolver um plano de tese,
redigir o trabalho e, por fim, finalizá-lo (realizar revisão, padronização, arte-final e
impressão). Como existe vida fora de um processo de doutoramento, tinha ainda as
preocupações familiares, profissionais e outras coisas típicas do cotidiano de um
indivíduo comum. Não teria conseguido me incumbir de tudo se não tivesse contado
com a ajuda de muitas pessoas, algumas tiveram inclusive que assumir, por completo,
responsabilidades pertencentes a mim, para que eu pudesse concentrar toda a atenção
no doutorado. Devo a todos os meus mais sinceros agradecimentos.
No Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP, agradeço
primeiramente à minha orientadora, Heloísa de Faria Cruz, com quem mantive relação
de grande liberdade. Devo às professoras Estefânia Fraga, Maria Odila Leite da Silva
Dias, Maria Antonieta Antonacci e Denise Bernuzzi proveitosas discussões e leituras,
bem como interessantes sugestões de encaminhamento da pesquisa, feitas no decorrer
das disciplinas por elas orientadas — às duas primeiras, também, por participarem na
Banca de Qualificação. Com os colegas da turma de doutorado, ingressa em fevereiro de
2000, compartilhei dúvidas, debati idéias e vislumbrei possibilidades para o
desenvolvimento da pesquisa.
Devo mencionar algumas velhas e novas amizades... Maria das Graças Andrade
Leal foi companheira de seleção, de curso e de muitas discussões acadêmicas. Claudia
Andrade Vieira, Ione Celeste, Venétia Braga e Neivalda Oliveira, todas com passagem
pela pós-graduação em História da PUC-SP, competentes e admiráveis colegas de
profissão, que atuam nas universidades baianas, resolveram diversas pendências
institucionais em São Paulo, após o meu retorno para Salvador. Quando não pude mais
contar com elas, que voltaram para casa tão logo puderam, encontrei valiosa
colaboração em Elizabeth Rago, professora e pós-graduanda da própria PUC-SP, que
conheci através da minha esposa. Cecília Conceição Soares e Wilson Paulo de Oliveira,
prestimosos parceiros da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), foram
meus intermediários com Feira de Santana, evitando, com isso, que eu precisasse me
deslocar de Salvador para resolver os problemas surgidos.
Aos colegas da Área de História, como um todo, devo a liberação de todas as
atividades por mim mantidas na UEFS, permitindo-me a dedicação integral ao
doutoramento. A minha ex-aluna Márcia Suely Oliveira do Nascimento ajudou-me nas
primeiras pesquisas, que resultaram na elaboração do projeto submetido à Pós em
História da PUC-SP.
Os meus familiares deram-me tanto apoio emocional quanto na logística
cotidiana, muitas vezes, dependi deles para me substituir nas obrigações paternas, visto
que assumiram os cuidados com o meu pequeno Luís Felipe. Além disso,
compreenderam pacientemente meu longo período de ausência no convívio. Meus pais,
José Dionísio e Valdete Leite, têm sido um modelo de vida para mim. Minha irmã, Cintia
Leite, teve um importante papel, sendo uma espécie de faz-tudo, ao gerenciar minhas
coisas em Salvador durante a estadia em São Paulo; dela recebi, ainda, uma
colaboração fundamental para finalização da tese, a qual está configurada no anexo.
Márcia Maria da Silva Barreiros Leite, companheira de vida, mãe do meu filho,
colega de profissão, trabalho e doutoramento, enfim, minha parceira de todas as
venturas e desventuras diárias, compartilhou e dividiu comigo as delícias e dores destes
últimos cinco anos. Seu exemplo de apaixonada dedicação à História tem sido uma
fonte de inspiração constante. Obrigado pelo suporte afetivo e intelectual. A Luís Felipe,
meu pequeno-gigante, hoje com seis anos, mas que um dia vai ler pelo menos esta
introdução, agradeço a alegria da vida doméstica.
Nas visitas às instituições de pesquisa encontrei muito apoio. O Centro de
Documentação e Informação da Fundação Clemente Mariani foi o porto em que mais
ancorei. Agradeço à sua direção e a todos os seus funcionários, especialmente, à
bibliotecária Maria das Graças Nunes Cantalino, pela atenção e primor no trabalho, não
se aquietando enquanto não conseguisse localizar o material solicitado, e a Maria Lúcia
Silva, sempre muito gentil na forma de receber-me. No Instituto Geográfico e Histórico
da Bahia, que freqüento desde as pesquisas para o mestrado, contei com o costumeiro
acolhimento da sra. Maria Augusta, mas não posso esquecer de citar Fernando, nem
deixar de agradecer à direção da casa. Também registro o meu agradecimento aos
funcionários da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, mais conhecida como Biblioteca
Central. Por fim, Marina Santos, da Biblioteca da Pós-Graduação da Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia da UFBA, mais uma da época do mestrado, mantém-se
muito delicada e prestativa no atendimento ao público.
A CAPES concedeu-me bolsa do programa de PICDT, o que me deu tranqüilidade
para investir na qualificação sem comprometer tanto os parcos vencimentos de um
professor universitário brasileiro e, mais grave do que isso, baiano. Da UEFS obtive
licença renumerada e todo apoio material para a produção desta tese. Estou convencido
de que muito dificilmente teria iniciado o Doutorado se não tivesse estas instituições a
apoiar-me.
Para finalizar, agradeço à Banca Examinadora — composta por minha
orientadora, Heloísa Cruz, as professoras da PUC-SP Estefânia Fraga e Maria Odila Leite,
o professor Erivaldo Fagundes, colega da UEFS, e a professora Tânia Regina de Luca, da
UNESP — pela disposição de enfrentar a leitura deste trabalho.
Perdoem-me àqueles que, porventura, esqueci de citar.
Resumo
A implantação da República no Brasil engendrou duros embates políticos e simbólicos
entre as diversas unidades da Federação pelo domínio do poder no novo regime, ou, ao
menos, pela garantia de uma inserção que parecesse suficientemente vantajosa a cada
uma delas. As elites baianas, que gozaram de posição privilegiada no império, sofreram
um grande choque com os rearranjos então operados, quando novos grupos regionais
ascenderam no plano nacional. Discute-se, neste trabalho, como na chamada Primeira
Republica, sobretudo nas décadas de 1910 e 1920, a Bahia respondeu a estes fatos,
operando a “invenção” de uma identidade local que se apresentava como alternativa às
narrativas identitárias advindas de outros lugares do país, e por meio da qual procurava
se mostrar enquanto uma integrante de relevo na construção da nacionalidade. Trata-se
de perceber as elites cantando as grandezas baianas, que se respaldavam, por um lado,
numa série de idealizações ligadas às tradições históricas do passado, vivamente
conservada na memória, e, por outro lado, num conjunto de falas que acentuavam as
qualidades da gente e as potencialidades da terra — o que ajudaram a configurar uma
identidade local. E para compreender quais necessidades concorreram para a
formulação desta, torna-se imprescindível ouvir as acusações das elites acerca dos
infortúnios vivenciados pela Bahia na era republicana, momento em que se sentiram
preteridas no jogo do poder político nacional. Diante de uma realidade que lhes parecia
adversa, construíram um tipo de discurso que servia para reivindicar maior espaço de
atuação na cena nacional, especialmente no que concernia ao exercício do poder
político. Enfim, analisando livros, folhetos e periódicos da época, com especial destaque
na revista Bahia Ilustrada, pretende-se reconstituir alguns daqueles “discursos sobre as
grandezas e os infortúnios da Bahia” que foram produzidos durante a primeira fase
republicana brasileira, e que denotavam, nas suas linhas e entrelinhas, um nítido
caráter político.
Palavras-chaves: Bahia, Identidade Baiana, Elites Intelectuais, Primeira República.
Abstract
After the establishment of the republican order in Brazil, in 1889, the confederated
States started some tough political and symbolic struggles among them in order to
ensure shares of the power in the new political system. The elites of Bahia, which had
been enjoying a privileged situation during the period of Monarchy, experienced a great
chock from this new context, when other regional groups raised up in the national
scenery. It is discussed, in the present work, how, during the so called First Republic
(1889-1930), mainly in the 1910’s and 1920’s, Bahia reacted to the occurring changes,
by conceiving the “invention” of a local identity that sets against the narratives of
identity proceeding from other parts of the country, seeking for presenting itself as a
preeminent participant in the nationality sense build-up. It concerns to notice the elites
declaiming the Bahia's greatnesses, shown through many idealizations about the past
historical traditions and through a set of speeches that emphasized the people attributes
and the land potentialities. It is also intended to focus on elites complaints about the
misfortunes experienced by Bahia in the republican period, moment in which they felt
intentionally left behind in the game for the national political power, investigating a
certain claiming for a bigger range of action in the national context. By analyzing books,
papers and magazines of that time, with a special spotlight to the magazine Bahia
Ilustrada, it is aimed to recompose some of the “discourses on the greatnesses and
misfortunes of Bahia”, produced during the First Republic times, which were determining
to the configuration of a local identity, besides an undeniably political aspect that they
display.
Key words: Bahia, Local Identity, Intellectual Elites, First Republic.
Crédito de Imagens
As imagens que constam no corpo do trabalho foram fotografadas e manipuladas
digitalmente pelo próprio autor. Todas as figuras que compõem o encarte de foto foram
obtidas da revista Bahia Ilustrada (Rio de Janeiro, 1917-1921), a partir da coleção
pertencente ao CEDIC-Fundação Clemente Mariani, cuja sede fica em Salvador-Bahia, a
quem agradeço por terem autorizado a reprodução. As exceções são as figuras 27 e 29,
tiradas do Álbum da Bahia (Edição Folgueira, 1930), conseguido por meio de Fernanda
Reis dos Santos, jovem estudante de História da UESF, a quem faço meus
agradecimentos.
Sumário
DEDICATÓRIA ....................................................................................................... 3
AGRADECIMENTOS................................................................................................ 4
RESUMO .............................................................................................................. 7
ABSTRACT ........................................................................................................... 8
CRÉDITO DE IMAGENS............................................................................................ 9
SUMÁRIO ........................................................................................................... 10
CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 12
PARTE I ― TEMPOS DE GLÓRIA:
AS ELITES E A MEMÓRIA HISTÓRICA DAS GRANDEZAS BAIANAS
CAPÍTULO 1 – “MATER HERÓICA” E “RAINHA NORTE”: O PAPEL DA BAHIA NA HISTÓRIA
NACIONAL.......................................................................................................... 42
A Bahia na história...........................................................................................45 A Bahia mater: primordialidades baianas.............................................................47 Novas primordialidades baianas: os ideais republicanos.........................................54 “A heroína dos seios titânicos”...........................................................................57 Um pouco mais de heroicidade ..........................................................................75 A “Rainha do Norte” .........................................................................................77 Hegemonia econômica......................................................................................78 Hegemonia política ..........................................................................................84
CAPÍTULO 2 – “ATENAS BRASILEIRA”: O TALENTO INTELECTUAL, A CENTRALIDADE
CULTURAL E OS ESTADISTAS BAIANOS .................................................................. 94
A idéia de “Atenas Brasileira” ............................................................................96 A tradição das atividades culturais baianas ........................................................100 Atividades e vocações literárias .......................................................................101 A “plêiade” intelectual baiana ..........................................................................106 Castro Alves: “O maior poeta de todos os tempos no Brasil” ................................112 O Teatro baiano em sua “Idade do ouro”...........................................................116 As outras artes..............................................................................................120 Faculdade de Medicina: ciência, civismo e o culto às belas-letras ..........................124 Oradores e estadistas: os políticos baianos do império ........................................130 Rui Barbosa: “gênio brasileiro” ........................................................................139 A continuidade da “Atenas brasileira”................................................................144
PARTE II ― TEMPOS DE INFORTÚNIO
AS ELITES BAIANAS E AS SUAS PERCEPÇÕES SOBRE A ERA REPUBLICANA
CAPÍTULO 3 – “A BAHIA — JÁ TEVE”: A SENSAÇÃO DE DECLÍNIO NOS TEMPOS
REPUBLICANOS ................................................................................................ 149
O sentimento de perda ...................................................................................149 O Desconforto com a república ........................................................................156 “Ódio” contra a Bahia .....................................................................................161 “Mulata velha”: a renegação de um apelido .......................................................169 Um símbolo para a Bahia ................................................................................173 A propósito do monumento da independência ....................................................179 O sentimento de “decadência” .........................................................................181 O sentimento de saudade ...............................................................................190
CAPÍTULO 4 – A “RAINHA DESTRONADA”: RAÍZES DE UMA CRISE E EPISÓDIOS ADVERSOS
NA ORDEM REPUBLICANA .................................................................................. 203
A idéia de “Rainha Destronada” .......................................................................203 As raízes da crise nas explicações de época .......................................................207 A Bahia na federação brasileira, a partir dos informes historiográficos ...................216 A Bahia e a instalação da República..................................................................222 Os sinais do declínio político ............................................................................227 Sobre as dissensões na política baiana..............................................................235 Entre dissensões e intervenções federais...........................................................240 O “descontentamento” dos mortos ...................................................................245 Sobre a condição econômica da Bahia...............................................................248
CAPÍTULO 5 – “PELA BAHIA”...: A RECONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE E A PROMOÇÃO DAS
QUALIDADES BAIANAS....................................................................................... 254
A “propaganda” da Bahia ................................................................................257 A revista Bahia Ilustrada e a “propaganda” da Bahia...........................................262 “Bemdita terra”! ............................................................................................268 Os “invasores” baianos e seus atributos ............................................................270 A “terra de festas” e o “lar clássico das tradições” ..............................................276 “As riquezas da Bahia” ...................................................................................283 “Pela elevação política da bahia” ......................................................................288 A “ressureição” da história ..............................................................................292
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 298
ANEXO............................................................................................................. 304
FONTES & BIBLIOGRAFIA.................................................................................... 311
1. Fontes......................................................................................................311 2. Bibliografia................................................................................................313
Considerações Iniciais
Para mim, nascer baiano e, especialmente, soteropolitano (para os que
desconhecem a expressão, ela significa ser natural de Salvador) constitui uma
experiência singular. Isso não acontece porque acredite que compartilhar essa
identidade, dispor do conjunto de valores que lhe são imputados como peculiares
represente de fato a posse de qualidades positivamente diferenciadoras em relação aos
que tiveram berço em outras partes do país, como muitos baianos, nacionais e
estrangeiros acreditam.1 A singularidade se dá porque é preciso corresponder sempre às
expectativas criadas, confirmar os estereótipos relacionado a este povo com tão fortes
marcas identitárias, como poucos outros no Brasil talvez as tenha ― cariocas e gaúchos,
ambos bastante orgulhos das suas identidades, talvez sejam aqueles que mais
concorrem com os baianos nesse sentido.
Dentro e fora da Bahia, quantas vezes não puseram dúvidas em torno da minha
“baianidade”... conquanto me considerasse um autêntico baiano. Por outro lado,
quantas vezes não sou eu mesmo que me ponho a interrogá-la, haja vista não
conseguir me enxergar como partícipe de um universo que aparenta ser estranho.
Negociar a minha inclusão e a minha exclusão dos modelos mais ou menos rígidos da
identidade baiana é o que considero a experiência ímpar, isso porque somos
cotidianamente impelidos e cobrados a definir a nossa identidade regional/nacional. No
meu caso específico, já fui vítima de tais exigências pelas mais diversas partes.2
Sinto-me, freqüentemente, dividido entre a postura de dúvida em relação à
existência de identidades pré-definidas e a impossibilidade de negar a evidência de que
muitos compartilham a vivência cotidiana da identidade regional, mais especificamente,
a “baianidade”, o que lhe confere uma forma de ocorrência cotidiana “real” — talvez,
abstrata, entretanto, ainda assim, “real”, por mais que queiramos recusar a sua
validade.
Experiências particulares com a cobrança para exercer minha suposta identidade,
ao que se soma um certo ceticismo meu para com ela, compeliram-me a interpelar as
1 Obviamente, nem todos pensam desse modo, preferindo caracterizar os baianos a partir de outros
elementos alternativos. 2 Cito os exemplos de cobrança: 1) de baianos que se consideravam baianos mais legítimo do que eu, a
exemplo de algumas vendedoras de acarajé, que me desqualificaram por não gostar de temperar seus deliciosos quitutes com pimenta; de baianos que se consideravam menos baianos do que eu, a exemplo de alguns conhecidos nascidos no sertão, que alegam ser a identidade baiana assentada nos valores de Salvador e seu Recôncavo; e de “estrangeiros” (os nacionais e os internacionais), que esperam de todos os baianos a reprodução de certos estereótipos — nesse sentido, lembro-me das reclamações que fui obrigado a ouvir por não saber cantar as músicas do carnaval baiano.
Considerações Iniciais 13
formas de ser, estar e pertencer a esta “comunidade imaginada” chamada Bahia —
lembrando-me aqui do conceito de Benedict Anderson a respeito da identidade
nacional,3 mas que cabem, ao meu ver, nesta discussão, pois considero as identidades
local e regional uma variante em escala menor daquela maior. Há muito tempo me sinto
instigado a compreender os processos de identificação social e a construção dos seus
discursos, com destaque para os que se ligam à localidade, regionalidade ou
nacionalidade nos seus aspectos culturais.
Por outro lado, desde quando iniciei os meus estudos pós-graduados, com o
mestrado, nos idos de 1993, venho me deparando com um tipo insistente de conteúdo
nas fontes, relacionado às tentativas de definição da Bahia e do seu povo. Habituado a
manipular documentos produzidos nas primeiras décadas do século XX, fui
vislumbrando, aos poucos, os traços definidores de uma identidade baiana nessa época.
Saltaram-me, aos olhos, certas semelhanças, mas sobretudos as grandes
dessemelhanças existentes entre as representações hodiernas e passadas, o que não
cabe aprofundar aqui.
Portanto, do entrecruzamento de inquietações, digamos, existenciais com a
prática contumaz da pesquisa foi engendrado o interesse pelo tema ora proposto, e, por
fim, designado de “discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia nas
primeiras décadas republicanas”, que vai precedido, na capa, pelo extravagante título
de A Rainha Destronada, cujo sentido ficará evidente para o leitor no decorrer do texto,
mais precisamente, no penúltimo capítulo.
As chaves (ou, talvez, uma parte delas) para a compreensão do que será este
trabalho se encontram enunciadas no próprio título. Contudo, irei repeti-las, objetivando
fixar algumas das opções que fiz. Em primeiro lugar, ressalto os sujeitos desta
narrativa, que serão as elites. Em segundo lugar, defino o tipo de foco dirigido aos
sujeitos, que serão flagrados, especialmente, no papel de produtores e reprodutores de
falas, as quais, numa linguagem inspirada em Foucault, recebem o nome de
“discursos”.4 Em terceiro lugar, aponto o objeto de tais discursos, que vem a ser a
“Bahia” (explicarei as aspas adiante), apresentada e representada em suas experiências
históricas passadas e presentes — trata-se, também, aqui, de uma definição do recorte
espacial do estudo, como se costuma dizer e exigir na formalidade da prática
historiográfica. Em quarto (e último) lugar, cumprindo outra formalidade, delimito o
período histórico da ação dos nossos sujeitos, ou seja, as primeiras décadas
3 Sobre o conceito de comunidade imaginada, ver ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São
Paulo, Ática, 1989, p. 13-16. 4 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1986.
Considerações Iniciais 14
republicanas, identificadas com a chamada Primeira República, porém, enfatizando-se
as décadas de 1910 e 1920, nas quais veio à luz a maior parte das fontes consultadas.
Preciso tecer comentários a respeito de cada um desses pontos.
Utilizo o termo elite no plural para designar os sujeitos desta trama porque
enxergo a existência de uma diversidade na unidade do seu conjunto. Assim, o conceito
de elites possui uma noção bastante alargada neste estudo, englobando os segmentos
dominantes em termos político, social e econômico, que são aqueles que vêm,
instantaneamente, à nossa consciência quando se utiliza a expressão, mas, absorvendo,
também, muito especialmente, no caso, aqueles que possuíam um patrimônio
intelectual. Esses homens tinham o letramento como substrato comum, habilitando-os à
interlocução e ao compartilhamento de valores num nível bastante aproximado. O gosto
por atividades intelectuais (refletido nos escritos que produziram) e as pretensões de
serem reconhecidos social, profissional e publicamente pelo fato de possuírem as
faculdades do intelecto são elementos articuladores de uma identidade entre os
participantes do agrupamento, conforme tenho procurado concebê-lo. Citando-as em
sua variedade, eram compostas por doutores (médicos, advogados e engenheiros),
professores, jornalistas, funcionários públicos e afins; por homens ricos e dos diversos
níveis da classe média; por políticos profissionais, ocasionais e não-políticos; por
brancos, predominantemente, assim como por alguns mestiços. É importante salientar
que, não se constituindo regra, mas indicando uma tendência, muitas vezes a condição
de elite social e/ou política e/ou intelectual estava reunida num mesmo indivíduo ou
grupo. Vamos encontrá-las (as elites) a transitar nas instituições acadêmicas, como o
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, nas instituições literárias, como a Academia de
Letras da Bahia, nas instâncias do poder, nos órgãos da imprensa e outros espaços
semelhantes. Conseqüentemente, expressavam suas opiniões, a respeito dos mais
diversos temas, incluindo os que interessam a este estudo, em jornais, revistas,
folhetos e livros publicados por tais órgãos e instituições. Devo ressaltar a posição
relevante ocupada pelo Instituto Geográfico e História da Bahia como lugar aglutinador
dos nossos personagens, posto que, se não todos, a grande maioria fazia parte do seu
quadro de associados. Por último, considero que as elites eram integradas por homens
de vivência, tipicamente, urbana, com passagem pela capital do Estado, embora muitos
tenham vindo do interior.5
Os discursos se caracterizavam pela regularidade dos argumentos, entretanto
não eram necessária e totalmente homogêneos, embora tendessem a estipular uma
espécie de senso comum em torno de uma série de enunciados. Pareciam querer
5 Para saber mais sobre o perfil dos intelectuais baianos, recomendo MACHADO NETO, Antonio Luiz. A Bahia
intelectual. Universitas – Revista de Cultura da UFBA, Salvador, nº 12/13, p. 261-305, 1972.
Considerações Iniciais 15
fundar, consolidar certas percepções de mundo das elites, as quais adquiriam o caráter
de “verdade” irretocável. Relacionados, como definir há pouco, a uma gama
diversificada de assuntos, foram por mim reunidos em dois grandes grupos: um que
trata das grandezas, de feição enaltecedora; e outro que trata dos infortúnios, revelador
de desconfortos e tristezas.
A “Bahia”, escrita entre aspas, refere-se a um lugar difícil de precisar, pois,
muitas vezes não passava de uma abstração, noutras, de uma generalização, e, em
dados momentos, remetia a locais específicos. Nesse sentido, um problema significativo
diz respeito à sua territorialidade ao longo da história nacional, pois anexou capitanias
que foram unidades autônomas (casos de Ilhéus e Porto Seguro), recebeu terras antes
pertencentes a outros (como aquelas na margem esquerda do Rio São Francisco,
originalmente de Pernambuco), perdeu porções de seu território (como Sergipe Del Rey,
que adquiriu autonomia administrativa), enfim, tinha litígios fronteiriços com os
vizinhos. Como muito dos discursos produzidos resgatavam fatos históricos, falar em
Bahia podia consistir tanto na exclusão de muitas regiões e localidades quanto na
inclusão das mesmas, as quais só teriam sido incorporadas ao seu território em
momentos posteriores. Em certas ocasiões, expressava, unicamente, Salvador, ou
incluía o Recôncavo; podia, ainda, reportar-se ao sertão ou outras regiões,
principalmente, quando se falava da exploração de recursos econômicos. Na minha
visão, a idéia de Bahia refletia, sobretudo, uma tentativa de homogeneização, com fins
de atender aos interesses de parcelas de suas elites. Daí que sou levado a pensá-la
como uma ficção de lugar. Em virtude dessas observações, deveria usar o nome da
Bahia, na maioria das oportunidades, sempre entre aspas. Não farei isso, no entanto,
crente de que o leitor não esquecerá as breves reflexões ensejadas neste parágrafo.
As primeiras décadas republicanas são o período que tenho me dedicado a
estudar desde minhas primeiras pesquisas. Contudo, as décadas de 1910 e 1920 serão
as mais discutidas porque aí localizei um problema provocante e um repertório de
fontes bastante denso, que, juntos, permitem esmiuçar, a contento, o tema escolhido.
O período guarda certas particularidades no tocante aos eventos nacionais e aos
regionais. Por um lado, introduziu a disputa entre diversas regiões do país pelo poder
político e pelo monopólio simbólico da nacionalidade, que passaram ao controle dos
novos Estados hegemônicos do país. Além disso, engendrou uma progressiva crítica à
ordem republicana, advinda de vários grupos e lugares. Por outro lado, despertou nas
elites baianas um forte sentimento de decadência, as quais passaram a se perceber
envolvidas numa experiência nova de crise.
Eis os fundamentos do trabalho que ofereço à leitura.
Considerações Iniciais 16
Mas a problematização não se esgota nesse ponto. Por isso, gostaria de avançar
em direção a outros aspectos importantes. Desejando esclarecer mais sobre o tema
deste estudo, afirmo que não seria inadequado tratá-lo como preocupado em analisar as
“questões de identidade da Bahia”, designação, por sinal, recebida quando tudo isto
aqui não passava de um projeto. Em última instância, a maior parte dos discursos a
serem revelados e analisados não passa de reflexões, formulações, definições dos
elementos que constituíam ou não a identidade do Estado.
Apontar alguns dos princípios básicos da identidade baiana pressupõe, então,
ficar atento para duas questões cruciais: 1) como as conjunções históricas vieram a lhe
influenciar; e 2) quais foram as diversas implicações (ou seja, complicações,
comprometimentos, incompatibilidades, inferências e conseqüências) decorrentes do
processo de sua elaboração. Por isso, não se deve perder de vista que os tempos
republicanos assinalaram, para as elites baianas, uma realidade bastante adversa, se
comparada à que se conservava na memória a respeito da era imperial. Devo destacar,
portanto, os impactos ocasionados pela mudança de regime político, procurando, ainda,
revelar a torrente de sentimentos contristadores e angustiantes desencadeados nas
elites.
O objetivo que me coloco é averiguar os elementos da identidade baiana, tal
como foram construídos por uma elite que desenvolve a percepção de uma progressiva
perda de status da Bahia a partir da instalação da República. Noutras palavras,
pretendo observar quais respostas simbólicas ou práticas foram orquestradas pelas
elites locais na conjuntura de “crise”, “declínio” ou “decadência” — expressões utilizadas
na época — que se abateu sobre a Bahia no período republicano. Deste modo, estarei
reconstituindo as teias de representações urdidas por essas elites como forma de se
situarem, perceberem-se e reagirem à nova realidade, que lhes parecia muito
desfavorável.
Faz-se necessário uma pausa para discutir a idéia de “crise”, “declínio” ou
“decadência”, pois, como coloca Jacques Le Goff, a última das três palavras é “um dos
conceitos mais confusos aplicados ao domínio da história” (e, por extensão, adicionaria
as duas primeiras devido a proximidade que todas mantêm entre), visto os riscos em
assumi-las.6 Particularmente, detecto uma série de questões em relação ao uso das
mesmas: 1) os problemas conceituais, concernentes à definição do que podem significar
hoje e do que expressaram antes; 2) em conseqüência da antecedente, os perigos da
sobreposição de parâmetros e concepções hodiernas sobre as experiências do passado;
3) as dificuldades acerca da dimensão de temporalidade que acompanha esses termos,
6 Sobre os problemas no uso da expressão “decadência”, ver LE GOFF, Jacques. Memória e história.
Campinas, Ed. UNICAMP, 1992, p. 375-422.
Considerações Iniciais 17
pois enquanto “crise” pode sugerir uma posição transitória e superável, “declínio” e
“decadência” tendem a uma condição situada em uma temporalidade mais duradoura,
pressupondo até mesmo o fim de uma era; 4) a possibilidade de que com estas
palavras se passe a impressão subjacente do uso de uma concepção cíclica de tempo
histórico.
Esclareça-se, então, que as idéias de “crise”, “declínio” ou “decadência” serão
trabalhadas, especialmente, em conformidade com a perspectiva adotada pelos sujeitos
que se sentiram vitimados por uma contingência histórica considerada adversa.
Procurarei, portanto, respeitar sempre as denotações por elas possuídas no período em
estudo. O emprego de tais conceitos constituirá uma tentativa de compreender as
avaliações, as percepções e os sentimentos dos sujeitos da época, interpretando as
significações que deram às suas vivências/vicissitudes. Trata-se, portanto, de
acompanhar as leituras históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais que uma
época (mais precisamente, os homens de uma época) faz(em) de si mesma(os), as
quais se relacionam inextricavelmente com as noções de identidade que elaboram.
De qualquer modo, registre-se que entre a vontade e a realização de um ato
muitas vezes se interpõe uma razoável distância, por isso, mesmo que procure evitar ao
máximo fazê-lo, posso, de repente, acabar assimilando os conceitos e aplicá-los sob a
influência dos problemas que os envolve e sobre os quais comentei.
Retomemos o fio das explicações... Cabe ressaltar, por fim, que pensar os
“discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios” como “questões de
identidade” pressupõe um percurso teórico-metodológico que envolve três dimensões
de análise. Na primeira, perceber as falas das elites enquanto diagnóstico, que informa
sobre uma situação presente avaliada a partir de uma condição passada, onde a história
é re(a)presentada em uma perspectiva positiva, por assinalar uma hegemonia e uma
tradição, e ao mesmo tempo negativa, por legar relações, costumes e paisagens
(materiais e sociais) que produziram a “crise”. Na segunda, assinalar nas falas das elites
um projeto para o futuro, que se pretende próximo e a exigir urgente implementação.
Na terceira, estabelecer uma confrontação, sempre que for possível, entre discursos e
práticas, abrindo uma janela para observar como as duas dimensões —
falas/discursos/representações, por um lado, e práticas/experiências sociais, por outro
lado — se “correspondiam”, buscando, com isso, observar as condições de elaboração
dos discursos, as tentativas de operacionalização dos mesmos e, também, as
dificuldades que se opunham a eles.
Agora uma indagação inevitável: como se aproximar do tema? Quais são os
referenciais que deverei adotar? Do ponto de vista teórico, a presente proposta de
Considerações Iniciais 18
trabalho pretende transitar entre dois eixos: a representação e a identidade. Uma vez
que sustentarão, direta e indiretamente, toda a minha abordagem, faz-se necessário
tecer algumas considerações sobre as mesmas.
O suporte teórico da representação diz respeito à pretensão de inclinar este
trabalho, ou, noutras palavras, à possibilidade de inscrevê-lo na tendência de uma
história sócio-cultural, embora ele não venha a se resumir exclusivamente a isso. É
fundamental pensar o que vem a ser uma história cultural e como através daquela
categoria (a representação) é possível alcançá-la. Trata-se de discutir a utilidade desse
referencial teórico em relação ao tema aqui apresentado. Não se pode deixar de
observar, entretanto, as especificidades do tema bem como a historicidade dos nossos
sujeitos, buscando estabelecer um diálogo e uma negociação com o referencial teórico a
fim de que ele possa atender às nossas necessidades, em lugar de se constituir em um
conceito monolítico que engesse a “experiência” peculiar, que é o foco da minha
atenção, dentro de um modelo fechado.
Ao optar por fazer uma espécie de história sócio-cultural, surge um grande
problema: conceber uma definição clara do que ela seja. O termo cultura tem uma
ampla diversidade de sentidos, abarcando desde a produção artística ou intelectual até
formas de ser e pensar, além dos costumes de um grupo, em sua acepção mais
antropológica. Em conseqüência, a história cultural, também, caracteriza-se pela
mesma complexa dificuldade, não podendo, desse modo, ser pensada como se pudesse
ter definição única, pois se abre para tantas perspectivas quantas forem as concepções
que se tenha do termo cultura, multiplicando-se, assim, em variedades. Por isso, é que
se faz história cultural que aborda as artes, as idéias científicas e filosóficas, as
doutrinas, os hábitos e costumes, as mentalidades, etc.7
Nas duas últimas décadas, principalmente, o sentido maior que a história cultural
parece estar assumindo se refere à ênfase nas formas dos homens e das mulheres
(embora os primeiros dominem completamente esta história) conceberem e se situarem
no mundo, constituindo teias de significações para suas experiências de vida,
historicamente determinadas. Para expressar de outro modo, serão enfatizadas as
formas de ser e estar dos sujeitos no tempo/espaço em que estão inseridos.
Diante da variedade de caminhos existentes, é imprescindível apontar qual viés
será seguido para focalizar as “questões de identidade na Bahia”. E aqui aparecem as
reflexões de Roger Chartier como uma promissora possibilidade. Ele indica um modo de
abordagem dos aspectos sócio-culturais de uma determinada experiência histórica 7 BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993. Ver,
especialmente, o capítulo 1, “Origens da história cultural”.
Considerações Iniciais 19
assentando-se na tríade que reúne as representações (os discursos que ordenam a
realidade), as apropriações (que são as maneiras como os discursos são
compreendidos, reelaborados ou negados pelos grupos sociais) e as práticas que
caracterizam os grupos na sociedade. A história cultural tem como meta “identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler”. O olhar recai sobre as formas de se conferir sentidos
ao real, por meio de operações simbólicas e práticas que lhes são correspondentes.8
O fomento de representações realiza “classificações, divisões e delimitações que
organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e
apreciação do real”. Elas se constroem segundo uma lógica que está relacionada à
situação de classe e aos recursos intelectuais dos indivíduos e grupos, elaborando,
portanto, discursos que coadunam interesses específicos. Dessa forma, as
representações revelam a tentativa de imposição de uma autoridade, constituindo-se
em estratégia de poder — palavra essa que me parece empregada num sentido mais
foucaultiano, ou seja, não apenas os macropoderes, mas também os micropoderes
difundidos nas relações sociais da vida cotidiana, os poderes disseminados em todos os
espaços do social. A inferência que se faz daí é que lutas de representações despontam
como conseqüência natural de um embate de visões díspares sobre o mundo e a ordem
social.9
Para Chartier, o conceito viabiliza-se como referencial para a história cultural por
“articular três modalidades da relação com o mundo social”:
Em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objectivadas graças às quais uns representantes (instâncias colectivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade10
O conceito de representação, tal como é apresentado, traz a oportunidade de
articular diversos níveis dos fenômenos históricos, além de permitir repensar certos
pressupostos que dominaram a nossa disciplina. A questão pode ser iniciada pelo
confronto das propensões universalistas (generalizantes e atemporais), que durante
muito tempo orientaram os estudos da história, com a descontinuidade das experiências
8 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990, p. 16-17. 9 Incluindo o trecho aspado no início do parágrafo, Idem, ibidem, p. 17 e 23. Para a noção de poder aqui
empregada, ver FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1992. 10 CHARTIER, Roger, op. cit., p. 23.
Considerações Iniciais 20
históricas e, conseqüentemente, dos sujeitos, já que as essências universais pretendem
mascarar as diferença e as tensões que envolvem os homens na sua relação. Por
conseguinte, deve-se valorizar a historicidade própria — as inserções temporal, espacial
e social — dos indivíduos ou grupos; as experiências, num certo sentido, únicas dos
sujeitos, que são condicionados pelo conjunto de particularidades que marcaram uma
determinada realidade. E a partir do reconhecimento dessa historicidade, tornar o
estudo do passado um trabalho de interpretação das percepções do social, das
sensibilidades desenvolvidas em relação ao mundo, das apropriações e das práticas às
quais as representações correspondem. Pondo-se em destaque, com tudo isso, a
relatividade dos discursos que articulam as visões do social.11
A inspiração em Chartier deve, porém, ser relativizada. Antes disso, é
interessante resgatar algumas das reflexões do hermeneuta Hans-Georg Gadamer para
fundamentar essa tarefa. Parece-me significativo lembrar duas importantes
considerações de Gadamer: 1) a natureza própria do conhecimento histórico; e 2) a
interpretação básica a ser empregada pelo historiador no diálogo com os documentos.
Por um lado, é preciso que se considere a especificidade do ato do conhecimento
histórico (e das ciências humanas em geral), que não pretende encontrar regularidades,
tal como ocorre em outras ciências, pois o “seu verdadeiro objetivo é antes
compreender um fenômeno histórico em sua singularidade, em sua unicidade. [...] Não
é saber como os homens, os povos, os Estados se desenvolvem em geral mas, ao
contrário, como este homem, este povo, este Estado veio a ser o que é; como todas
essas coisas puderam acontecer e encontrar-se aí”.12 Reconhecer essa particularidade
significa liberar o historiador da prisão de teorias e métodos apriorísticos, ou seja,
teorias e métodos pré-formulados que definam de antemão a relação entre aquele que
produz o conhecimento e o “objeto” do conhecimento. Parafraseando Aristóteles,
Gadamer vai salientar que “é o próprio objeto que deve determinar o método
apropriado para investigá-lo”.13
Por outro lado, deve-se pensar o lugar da interpretação durante a tarefa de
pesquisa, a qual coloca os historiadores diante das suas fontes — e, por quê não,
11 Chartier, Roger. “Cultura popular”: revisando um conceito historiográfico. Revista Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v. 8, n. 16, p, 179-192, 1995, reforça, de algum modo, a necessidade de relativizar os objetos culturais. Sobretudo quando discute um dos elementos da sua tríade, as apropriações, demonstra que a busca da pluralidade dos usos e dos entendimentos é um dos fundamentos básicos do trabalho do historiado. Nas suas palavras, “a apropriação tal como a entendemos visa a elaboração de uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas práticas específicas que os constroem”. Parece-me, assim, que longe de serem conceitos estanques, a representação, a apropriação e a prática devem ser trabalhados a partir do reconhecimento das experiências diferenciadas e particulares nas quais os indivíduos e o os grupos levam suas vidas.
12 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro, Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 23-24.
13 Idem, ibidem, p.21.
Considerações Iniciais 21
também, pensar a interpretação das obras dos autores que nos servem de inspiração. A
essência do trabalho do historiador se encontra na situação hermenêutica de diálogo
com os documentos e os textos. Para Gadamer, “a intenção do interprete é se fazer
mediador entre o texto e a totalidade nele subentendida”, o que significa, no meu
entendimento, reconstituir as teias e as redes das informações contidas nos textos. Na
busca da compreensão do texto, espera-se que ele informe alguma coisa, e para isso é
preciso que o seguidor do procedimento hermenêutico se abra para a exposição de
diferenças afixadas nesses textos. Isso significa estar consciente em “relação às nossas
opiniões e preconceitos que, ao qualificá-los como tais, retira-lhes o caráter extremado”
e permite o aparecimento de uma verdade outra, que contrasta com “idéias
preconcebidas que lhe impúnhamos antecipadamente”.14
Deste modo, a idéia de representação em Chartier precisa ser relativizada,
porque suas formulações são fruto de uma experiência particular de trabalho, de uma
relação específica entre o historiador e o seu objeto. Não se deve pensá-la como um
conceito estanque, que sirva de modelo fechado e para pronta aplicação em contextos
outros, sem passar por qualquer re-elaboração. O contato com as minhas fontes, minha
inserção numa realidade histórica bastante particular, minha forma de ler os homens
em suas relações me fazem pensar de modo um pouco diferenciado o referencial da
representação. Nesse sentido, é fundamental explicitar a apropriação — usando o termo
que é trabalhado pelo historiador — que faço do conceito de representação.
Como trabalha com livros e leituras, a impressão que se tem, às vezes, é que
para Chartier a representação é fruto da elaboração mental que resulta em escrita ou
registro imagético (pinturas, esculturas e materiais iconográficos de um modo geral),
que se tornam referência de uma visão de mundo. Tenho uma percepção mais larga da
representação, que, para mim, não deixa de ser uma imagem que se forma acerca das
experiências concretamente vividas. Imagem essa, no entanto, que pode tomar a
maneira de discursos, com maior ou menor grau de elaboração, escritos, orais, visuais,
gestuais, etc., os quais expressam certos modos de sensibilidade e visão de mundo. Na
minha percepção, trata-se de pensar todas as “leituras” possíveis das experiências
humanas ― traduzidas em linguagens e em práticas diversas ― como representação.
Isso porque penso que, uma vez transcorridos os fatos que contaram com a presença
humana, só restaram deles imagens, lembranças, descrições parciais e fragmentadas,
as quais escapam à possibilidade de reconstituição na sua integridade ― restaram
somente, e isso não é pouco, as representações deles.
As “questões de identidade na Bahia”, ou os “discursos das elites sobre as
grandezas e os infortúnios da Bahia”, envolvem embates que configuram
14 Idem, ibidem, p. 59 e 63-64.
Considerações Iniciais 22
representações da ordem local. Descortinar, pela interpretação, os significados dessas
representações, no seu duplo movimento de conformação simbólica e de práticas a ela
vinculada, não esquecendo da pretensão de vê-la como efetiva expressão do “real”, é
um objetivo do trabalho. Mais do que a tentativa de apresentar o “real”, tal como ele foi
durante muito tempo entendido, a meta é atingir o seu entendimento a partir da análise
das sensibilidades — introduzindo uma componente menos racionalizada e mais
subjetivada na expressão dos sujeitos, ou, noutros termos, recuperando a experiência
dos sentimentos que se articulam com os processos conscientes e racionalizados — e
das percepções desenvolvidas sobre ele. E quando se trata de discutir identidade, as
componentes sentimentais tendem a adquirir uma expressidade que, não raro,
sobrepõem-se à racionalidade.
Pretendendo fechar o cerco sobre as articulações entre representação,
racionalização/racionalidade, emoção/sensibilidade e identidade (nacional, regional ou
local), lanço mão dos argumentos de uma estudiosa do nacionalismo, Montserrat
Guibernau, com os quais concordo plenamente. Segundo ela,
A carga emocional que os indivíduos investem em sua terra, língua, símbolos e crenças, enquanto desenvolvem sua identidade, facilita a difusão do nacionalismo. Assim, enquanto outras formas de ideologia, como o marxismo ou liberalismo, requerem a doutrinação de seus seguidores, o nacionalismo emana desse apego emocional básico à terra e à cultura das pessoas. A teoria social e política tende a colocar as emoções e sentimentos fora da esfera de sua pesquisa, considerando o irracional inevitavelmente inferior ao racional. Minha posição é de que a força do nacionalismo procede não do pensamento racional apenas, mas do poder irracional das emoções que se originam dos sentimentos de pertencer a um grupo determinado.15
Essas palavras dizem muito do que penso a respeito do tema da pesquisa e do
procedimento a se adotar em relação ao mesmo. “Os discursos das elites sobre as
grandezas e os infortúnios da Bahia” devem ser observados como um tipo de
representação, que aspira uma função identitária. Além disso, deixam transparecer um
processo de racionalização que lhes conferem um flagrante caráter ideológico, mas que
não conseguem, nem podem excluir, de modo algum, a forte carga sentimental deles
participantes.
Derivando da abordagem precedente em torno da representação, coloca-se a
questão sobre o sentido da identidade. Por isso, a própria noção de identidade constitui
o segundo eixo de aproximação do objeto. Este conceito vem sendo incorporado por
15 GUIBERNEAU, Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1997, p. 86.
Considerações Iniciais 23
estudiosos dos mais diversos campos de saber (psicólogos, antropólogos, sociólogos,
cientistas políticos, teóricos e críticos da cultura, e, dentre outros, os historiadores), que
imprimem ao mesmo os referenciais trazidos da sua disciplina, qual seja, um caráter
político, antropológico, cultural, sociológico ou psicológico, dentre outros.
Destarte, a “identidade” deverá ser focalizada não tanto sob o ponto de vista de
uma questão conceitual, pois não parece suficientemente adequada para as nossas
inquietações, mas enquanto um problema histórico,16 que se desdobra em dois níveis de
temporalidade. Primeiramente, remetendo-se ao passado, ao colocar a pergunta acerca
de quem era e como estava a Bahia nas primeiras décadas da República. Em seguida,
reconhecendo as inquietações atuais de um grande número de estudiosos das
chamadas ciências humanas a respeito das formas de identificação social
experimentadas pelos sujeitos.
A referência de identidade que se toma aqui se respalda nas discussões de Stuart
Hall e Homi Bhabha, a partir das críticas que fazem ao nacionalismo. Ambos são
motivados a discutir o tema tendo em vista o aprofundamento das tensões culturais que
são típicas da nossa contemporaneidade (que vem designada de pós-modernidade ou
modernidade tardia ou pós-colonialismo). Enquanto Hall acentua os efeitos da
globalização na deflagração da crise das identidades nacionais, Bhabha procura
observá-las por dentro, demonstrando como na sociedade despontam e são
equacionadas as tensões que levam ao enfraquecimento da narrativa nacional e à
emergência de novas identidades.17
16 As tensões entre o resgate conceitual da palavra e sua validade enquanto referencial teórico nos leva à
discussão travada por Koselleck sobre a chamada história conceitual. Esta pode ser pensada sob três perspectivas: 1) como método de crítica das fontes, auxiliando na abordagem de uma história social; 2) como disciplina autônoma, com metodologia própria, onde o estudo da historicidade do conteúdo do conceito se realize paralela e independentemente da história social; 3) como uma pretensão teórica, que só pode ser realizada de modo insuficiente em relação ao que já desempenha a história social. Em nosso caso, é a primeira forma de tratamento da história conceitual que interessa. Koselleck ressalta a importância de se buscar contextualizar o uso das palavras (no sentido de significantes) de conteúdo político e social, apreendendo nelas os conceitos apropriados que expressavam em uma dada realidade histórica. Trata-se, portanto, de reconhecer que nem sempre a significação possuída por uma palavra é a mesma que associamos a ela hodiernamente. Recuperar o sentido original de uma expressão, ou melhor, voltar a atenção para o seu conceito no contexto das nossas análises nos “proporciona uma chave de compreensão sem a qual não se poderiam conceber hoje os fenômenos do passado” (p. 111, no original espanhol: “proporciona una clave de comprensión sin la que no se podrían concebir hoy los fenómenos del pasado”). Esforçar-se para assimilar as significações anteriores de uma palavra é meio de aproximar-se às experiências históricas passadas. Assim, a história conceitual adquire a feição de método que permite criticar as fontes e reconstituir o passado. Em estudo realizado anteriormente, analisei as idéias de civilização em um contexto de reforma urbana de Salvador, entre 1912 e 1916. Nas fontes coligidas encontramos, em profusão, os sentidos que a palavra/conceito civilização assumia para os contemporâneos. Busquei, através das idéias de civilização, tal como eram expressas pelos sujeitos históricos, compreender aspectos da realidade do momento ― um dos capítulos do trabalho foi dedicado a esta discussão conceitual. Agora, diferentemente, o conceito de identidade não aparece mencionado nas fontes, apenas se infere sua noção. Ver, KOSELLECK, Reinhart. Pasado presente: para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona, Ediciones Paidos, 1993.
17 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP & A 1999; e BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1998.
Considerações Iniciais 24
Seguindo a trilha de Hall, devo distinguir três concepções diferentes de
identidade. A primeira, a do sujeito do iluminismo, predominante até o século XVIII,
baseava-se no individualismo, onde o sujeito aparecia centrado no seu próprio interior e
determinado pela sua razão, consciência e ação. A segunda, a do sujeito sociológico,
forma-se na passagem para o século XIX, o indivíduo vai aparecer enredado no mundo
social e estabelecendo relações com outras pessoas, que “mediavam para o sujeito os
valores, sentidos e símbolos dos mundos que ele/ela habitava”. Funda-se aí uma
interação entre o interior e o exterior, entre o indivíduo e a sociedade. A última se
refere ao sujeito pós-moderno, que é fragmentado e descentrado, pois não possui uma
identidade fixa, essencial ou permanente. Nessa situação, a identidade se multiplica,
tornam-se várias, por vezes contraditórias, deslocando-se a depender das
circunstâncias em que os indivíduos se encontram.18 Observe-se que vai ocorrendo um
processo de transformação da identidade, pela qual o sujeito se apresenta, inicialmente,
centrado em si mesmo, passa, em seguida, a ser centrado em relação com a sociedade,
e alcança, ao final, o descentramento, não estando ligado exclusivamente a uma forma
de identidade.
A identidade nacional só pode despontar no instante do surgimento do sujeito
sociológico. A nacionalidade refere-se a uma comunidade de indivíduos supostamente
associados por laços de afinidade. A construção de um discurso nacional unificador mina
as diferenças e se cristaliza pela invocação de uma origem comum, de uma tradição, de
eventos fundadores e reiteradores do caráter nacional, de imagens, símbolos e rituais
que alinhavam a narrativa da nacionalidade. Esta se constitui, assim, num discurso que
produz um sentido para o corpo que compõe a nação. Segundo Hall, a temporalidade do
discurso nacional se situa entre o passado e o presente, colocando-se numa condição de
ambigüidade que luta para “se equilibra[r] entre a tentação por retornar a glórias
passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade”.19
A propósito dessa questão, cabe muito bem a reflexão de Raoul Girardet, para
quem a delicada relação entre a realidade do presente e o imaginário do passado é a
fonte de origem de uma das principais formas de mito e mitologia política, por criar a
idéia da existência anterior de uma idade de ouro em oposição a uma experiência tida
como decadente:
O passado ao qual se referem nunca foi diretamente conhecido; seu poder evocador é o de um modelo, de um arquétipo, modelo e arquétipo a que a emergência fora do tempo decorrido parece por definição dar um valor suplementar de exemplaridade.... Como quer que seja, a cada modo de
18 HALL, Stuart, op. cit., p. 11-32. As três concepções de identidade são discutidas nos dois primeiros capítulo
do livro. 19 HALL, Stuart, op. cit., p. 56.
Considerações Iniciais 25
sensibilidade — ou de pensamento — político corresponde, assim, uma certa forma de leitura da história, como seus esquecimentos, suas rejeições e suas lacunas, mas também com suas fidelidades e suas devoções, fonte jamais esgotada de emoção e de fervor. Acontece, no entanto, que o passo entre a legendificação de certos tempos privilegiados da memória e sua fixação no sagrado não pode deixar de ser rapidamente dado. Oposto à imagem de um presente sentido e descrito como um momento de tristeza e decadência, ergue-se o absoluto de um passado de plenitude e de luz. Resultado quase inevitável: cristalizando ao seu redor todos os impulsos, todos os poderes do sonho, a representação do “tempo de antes” tornou-se mito. E mito no sentido mais completo do termo: ao mesmo tempo ficção, sistema de explicação e mensagem mobilizadora.
Não se contentando em cultuar o passado e “desesperar-se” com o presente,
Girardet aponta como se renovam as esperanças por um futuro, que se alimentam do
imaginário do tempo pretérito, fechando, assim, todo um ciclo:
[...] os contornos do mito revelam-se tanto mais difíceis de abarcar quanto os limites aparecem quase sempre singularmente imprecisos entre o que pertence ao domínio apenas do pesar e o que pertence ao domínio também da esperança, entre o que não é senão evocação nostálgica de uma espécie de felicidade desaparecida e o que exprime a expectativa de seu retorno. De fato, existem bem poucas representações do passado que não desembocam em uma certa visão do futuro, como também, paralelamente, há bem poucas visões do futuro que não se apóiem em certas referências ao passado.20
Os “discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia” oscilam,
tranqüilamente, entre o resgate da opulência do passado e a as tentativas de
recuperação do status por meio da inserção na nova ordem — assim como elaboram a
idéia de uma “idade de ouro” ou, como preferi chamar, de “tempos de glória”, e
estimulam as expectativas de um futuro redentor.
Mas retomemos o problema identidade... Hall analisa a nacionalidade e eu estou
a tratar de uma região, a Bahia, não de uma nação. Entretanto, não temo em dizer que
as operações lógicas que elaboram as identidades regionais são as mesmas
responsáveis pela criação das identidades nacionais. Na minha interpretação, toda
forma de identificação que pressupõe como uma de suas dimensões a territorialidade
pode ser entendida como regional. Falar em americanos, brasileiros, baianos,
soteropolitanos, puxando o exemplo para o que nos é mais próximo, corresponde a lidar
com o solapamento das diferenças que caracterizam a sociedade e fundamentá-la,
primeiramente, em princípios regionais (territoriais, geográficos), que é passível de ter
a escala de um continente, um país, um estado ou uma cidade — e essa escala pode ser
reduzida ainda, se for desejável, para um bairro ou uma rua. Respaldada em uma
20 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 98 e 102-103,
respectivamente, para cada um dos excertos.
Considerações Iniciais 26
localidade, que possui maior ou menor dimensão, estabelece-se uma tessitura de
valores comuns que unem aqueles que habitam o lugar ou a região.
Bhabha, por sua vez, coloca uma questão instigante na análise da nacionalidade
(ou nacionalismo), mostrando as fendas existentes na sua própria elaboração. A
narrativa da nação presume a existência de um povo “pensado num tempo-duplo”. Nas
suas palavras,
[...] o povo consiste em “objetos” históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no pré-estabelecido ou na origem histórica constituída no passado; o povo consiste também em “sujeitos” de um processo de significação que deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povo-nação para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional é redimida e reiterada como processo reprodutivo.21
Ou seja, o povo é definido, por um lado, enquanto objeto pedagógico, fruto de
um poder totalizante que pretende homogeneizá-lo a partir de concepções prévias de
sua essência, supostamente respaldadas no passado. E por outro lado, o povo é um
elemento performático, sujeito de uma ação, que deve presentificar os princípios que o
origina e confirmar o discurso que o funda e o fundamenta. As falhas na sedimentação
da identidade nacional no tocante à noção do povo, com seu caráter ambíguo,
aparecem quando, no tempo da performance, que se situa no campo das experiências
concretas, o povo interpela as significações pré-estabelecidas a seu respeito com formas
de identificação e práticas que são contrárias ao discurso nacional. Despontam aí
tensões que refletem as diferenças, as cisões e os conflitos reais existentes no seio de
um povo-comunidade que se imagina unificado.
As preocupações de Stuart Hall e Homi Bhabha estão inicialmente relacionadas
ao momento presente. Na crítica que desenvolvem à idéia de nação na
contemporaneidade se formula a proposição de que venham ocorrendo dissensões em
relação a este tipo de identificação cultural. Cabe nos perguntar se essas fissuras já não
ocorriam, ainda que em menor proporção, desde tempos mais remotos, por exemplo,
no período em que trabalho. Por isso, ainda que enfatize as peculiaridades regionais,
estarei adotando uma dupla perspectiva na abordagem das “questões de identidade na
Bahia”: por um lado, pretendo discutir a inserção do Estado nos projetos de uma
identidade nacional; por outro lado, devo perseguir a questão da emergência de
identidades locais/regionais que contrastavam com outras idéias de nação. Falando de
outro jeito, talvez procure debater sobre as negociações e conflitos entre o nacional e o
21 BHABHA, Homi, op. cit., p. 207.
Considerações Iniciais 27
regional, bem como os embates entre os regionais, os quais podem ser tomados como
fissuras nas tentativas de sedimentação das identidades coletivas.
Retomando a afirmação colocada no início do tópico, de que maneira a
identidade nacional deriva da representação? Homi Bhabha fala em uma
“metaforicidade dos povos de comunidades imaginadas”.22 Stuart Hall, mais
explicitamente, nos fala da identidade nacional como “um sistema de representação
cultural”.23 Ambos denunciam que os discursos nacionais encerram uma estratégia de
poder. Não é difícil perceber que tais discursos buscam articular percepções de mundo
que são particulares aos interesses de um grupo. Percorrendo o roteiro traçado por
Roger Chartier que parte da elaboração das representações, passa pelos processos de
apropriações, redundando em certas práticas, constata-se a natureza representativa das
identidades nacionais e regionais. Na multiplicidade de situações das elites regionais
brasileiras, cada qual com seus discursos e conseqüentes esquemas simbólicos, todas
envolvidas em disputas pelo exercício de hegemonias no interior da nação, pode-se
constatar a “luta de representações” de que nos fala Chartier.
Os “discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia” nos
oferecem uma chance de promover o cruzamento da perspectiva de uma história social
e cultural que se respalda no referencial teórico da representação, com as implicações
decorrentes da apreensão do conceito de identidade. Explorar as formas de
“sensibilidade” (histórica, social, cultural, etc.) que engendram percepções de mundo,
promotoras de uma identificação cultural baseada no regionalismo ou no nacionalismo,
é se aproximar das experiências sociais, historicamente determinadas, pelos
mecanismos da representação.
Como se encontra a questão da identidade nacional ou regional nos textos
historiográficos e de áreas afins? E a Bahia... como tem aparecido nesta discussão?
Cabe agora discutir um pouco da bibliografia que servirá de apoio, referindo-se aos
estudos que tratam direta ou indiretamente da identidade e aos que discorrem sobre o
contexto a ser analisado. Essa tarefa vai ajudar muito no delineamento do tema aqui
proposto, visto que assim será possível assinalar as semelhanças e dessemelhanças na
abordagem, os pontos de contatos históricos e historiográficos do tema, as
complementaridades entre os textos e os processos históricos, enfim, as inspirações
existentes.
Abordagens em torno de identidade, especialmente no que tange ao problema da
nacionalidade, têm se tornado bastante freqüentes. Alguns tentam discutir a identidade 22 Idem, ibidem, p. 201. 23 HALL, Suart, op. cit., p. 49.
Considerações Iniciais 28
da nação, Lúcia Lippi Oliveira, por exemplo, no livro A questão nacional na Primeira
República,24 apresenta uma análise das projeções de nacionalismo elaborados no país,
as quais buscavam construir novos princípios de unidade no regime republicano recém
instalado. Destaca o papel dos intelectuais nesse processo, em especial os homens de
letras, que eram responsáveis pela elaboração dos ideários constitutivos da identidade
nacional.
Quem persegue caminho parecido é Márcia Regina Capelari Naxara, Estrangeiro
em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870-1920, que volta a discussão
para a percepção de povo no período.25 Analisa como o personagem do Jeca Tatu,
criado por Monteiro Lobato, foi transformado na imagem típica do brasileiro comum e
pobre, discutindo, a partir daí, a busca de soluções para o atraso que marcaria a cultura
e a sociedade nacional. Mas a autora não perde de vista as relativizações que alguns
intelectuais, como Euclides da Cunha, Sílvio Romero e Manoel Bomfim, fizeram a
respeito do caráter do brasileiro, quase sempre definido em termos negativos.
Embora tragam referências importantes, Lúcia Oliveira e Márcia Naxara, uma
preocupada com as representações da nacionalidade e outra com a noção de povo,
optaram por uma abordagem alargada das suas problemáticas, pretendendo
compreender todo o Brasil, quando, de fato, este é um tipo de intenção impraticável.
Neste sentido, a percepção de matizes regionais ou locais, com certeza assumidos pela
representação do brasileiro e pela noção de identidade, escaparam aos seus trabalhos.
Dentre outros textos voltados para o debate da identidade nacional, existem
alguns que avaliam a questão a partir da independência brasileira. Neste caso, incluem-
se Marly Silva da Motta, A nação faz 100 anos: questão nacional no centenário da
Independência, e Noé Freire Sandes, A invenção da nação: entre a monarquia e a
república.26 A Marly Motta analisa os preparativos para as comemorações de 1922, que
enseja diversas reflexões a respeito dos rumos tomados pelo país, em especial no
tocante ao regime republicano. Mas no centro de suas preocupações está o embate
entre cariocas e paulistas pelas premissas da nacionalidade. Noé Sandes volta-se para a
memória da Independência que, desde cedo, passou a ser tratada como mito fundador
da nação, estando repleto de significações simbólicas. A problemática central que o
autor persegue diz respeito à reconciliação da monarquia com a república na década de
comemoração do centenário da independência, revigorando o sentido de nacionalidade.
Processo esse que se deu em meio uma crise política e uma crise de identidade.
24 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1990. 25 NAXARA, Márcia Regina C. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870-1920.
São Paulo, Annablume, 1998. 26 MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: questão nacional no centenário da Independência. Rio de
Janeiro, Ed. da Fund. Getúlio Vargas-CPDOC, 1992; e SANDES, Noé Freire. A invenção da nação: entre a monarquia e a república. Goiânia, UFG, 2000.
Considerações Iniciais 29
Tania Regina de Luca, por sua vez, em A revista do Brasil: um diagnóstico para a
(n)ação,27 nos oferece referenciais dos mais interessantes. Nessa obra analisa o
material veiculado na Revista do Brasil, entre 1917 a 1926, a qual contava com a
colaboração dos mais importantes intelectuais brasileiros do período. A autora elege
alguns temas considerados cruciais para se pensar a nação: a história, a geografia, a
etnia, a ciência e a língua, que ganham destaque por refletirem melhor o cerne das
preocupações do período. A revista é encarada como veículo difusor das versões das
elites para a questão da identidade nacional, bem como espaço de discussão das
alternativas que viabilizariam o país. A natureza regionalista das propostas lançadas na
revista é salientada quando argumenta que, antes de serem pensadas enquanto idéia
de brasilidade, vinha a corresponder a uma idéia de "paulistanidade", visto que
perpassava no periódico a visão de que São Paulo deveria ser um exemplo a ser
seguido. Um projeto bandeirante, ou seja, a natureza empreendedora e desbravadora
paulista, seria o caminho para o Brasil. A introdução dessa nuança coloca o seu
trabalho, para mim, num plano destacado.
Enfocando, de modo mais explícito, a elaboração de uma identidade regional
paulista há o trabalho de Antonio Celso Ferreira, A epopéia bandeirante: letrados,
instituições, invenção histórica (1870-1940),28 que aprofunda sobre o imaginário das
elites letradas, instaladas em instituições como a Academia Paulista de Letras e o
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, no que tange ao seu papel (histórico) na
nação brasileira. Ao articular os discursos sobre o passado com a situação privilegiada
que foi sendo ocupada pelo Estado no país, o autor apresenta as elites paulistas durante
a tarefa de urdidura das explicações para a recente hegemonia, ao mesmo tempo em
que procura fixar os princípios de sua identidade regional, calcada na idéia do
bandeirante desbravador e empreendedor, como se fossem os próprios fundamentos da
nacionalidade.
As discussões de Ferreira têm grande proximidade com as que pretendo
encadear aqui, pois diversos dos seus referenciais serão por mim, também, assumidos.
Alguns exemplos: a ênfase nos homens de letras, que vão constituir uma elite
intelectual e, muitas vezes, elite social e política; a atenção nos discursos históricos,
bem como nas representações simbólicas da identidade; e, as implicações políticas do
projeto paulista, relacionadas à questão da nacionalidade.
Para bem situar o problema da construção da identidade regional, é bom voltar-
se para as experiências situadas fora do eixo Rio-São Paulo. Por isso, merece destaque
27 LUCA, Tania Regina de. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. São Paulo, Fundação Ed. da
UNESP, 1999. 28 FERREIRA, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940).
São Paulo, Editora UNESP, 2002.
Considerações Iniciais 30
o trabalho da autoria de Maria Arminda do Nascimento Arruda, designado Mitologia da
mineiridade, que coloca em cena a questão da identidade em Minas Gerais.29 Aí ela
busca explicitar o conjunto de imagens, símbolos, utopias, mitos que recompõe a idéia
do ser mineiro. Para ela, o problema do declínio econômico de Minas, por conta da
queda da produção aurífera e de pedras preciosas, estimulou um sentimento de perda e
saudade nos herdeiros das riquezas e tradições mineiras. Por outro lado, revela como
foi construído um discurso que procurava colocar o Estado no centro da nacionalidade,
em consonância com a sua posição central no território do país, e que tinha forte
conotação política. Deste discurso emergia o mineiro como sujeito simples, conciliador e
pragmático, que teria muito a contribuir para os destinos do país.
Eis outro trabalho, esse de Maria Arruda, que mantém certa similaridade com a
presente proposta, colocando-se num lugar de destaque quando discute as alternativas
de construções identitárias elaboradas no período republicano, do mesmo modo que
este pretende ser. Tal como Minas Gerais, a Bahia foi tomada por um sentimento de
decadência, que engendrou nas elites a necessidade e a vontade de reconstituir os
cacos partidos do seu orgulho e, em conseqüência, da própria identidade. Processo este
que conduziria os dois Estados a reclamar por um maior reconhecimento dentro da
nacionalidade. Minha restrição ao estudo diz respeito à pouca preocupação em demarcar
melhor as transformações do discurso, visto que encara a "mineiridade" como uma
identidade estática, ou um conjunto de noções associadas ao mineiro desde quando se
fez sentir o início da decadência, nas décadas iniciais do século XIX, até épocas mais
recentes (a década de 1960, pelo menos). Isto é fruto da abordagem sociológica que
adota, menos antenada às temporalidades, tão caras à abordagem histórica.
No final da década de 1970 e início da seguinte, alguns historiadores
estrangeiros se voltaram para a discussão de tendências regionalistas no Brasil. O
pioneirismo neste trabalho foi de Joseph Love, com O regionalismo gaúcho e as origens
da revolução de 1930. Inspirado no estudo sobre o Rio Grande do Sul, apareceram,
alguns anos depois, obras dedicadas a outros três importantes Estados brasileiro no
contexto republicano, as quais seguiam um mesmo esquema de abordagem e
estruturação dos capítulos, contando, inclusive, com uma introdução comum. Foram os
trabalhos de Joseph Love, A Locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira (1889-
1937), de Robert M. Levine, A velha usina: Pernambuco na Federação Brasileira (1889-
1937), e John D. Wirth, O fiel da Balança: Minas na Federação Brasileira (1889-1937).30
29 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Mitologia da mineiridade. São Paulo, Brasiliense, 1990. 30 LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1975; LOVE, Joseph. A Locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira. 1889-1937. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982; LEVINE, Robert M. A velha usina: Pernambuco na Federação Brasileira. 1889-1937. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980; WIRTH, John D. O fiel da Balança: Minas na Federação Brasileira. 1889-1937. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
Considerações Iniciais 31
No conjunto, nenhum dos quatro livros citados apresenta preocupação com as
representações identitárias. Mas a ênfase no regionalismo é importante por introduzir a
questão dos embates políticos no seio do poder da nação. E nesse sentido, os três
brasilianistas definem regionalismo como “um comportamento (político) caracterizado,
de um lado, pela aceitação de uma unidade política mais abrangente, mas, de outro,
pela busca de um certo favoritismo e de uma certa autonomia de decisão (em matéria
de política e econômica), mesmo ao perigo de pôr em risco a legitimidade do sistema
político”. E para melhor definir a perspectiva de uso do termo, excluem os componentes
simbólicas e culturais que por ventura possam se associar a ele, ao definir que “a ênfase
não é na peculiaridade regional per se (folclore, traje típico, maneiras locais de falar
etc.), mas naqueles fatores que podem afetar, provadamente, as relações políticas,
econômicas e sociais com outras regiões e com a unidade maior de governo, no caso, a
União”.31
É relevante ressaltar a idéia de regionalismo, na sua acepção política, porque na
análise dos “discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia” ficará
muito evidente o quanto a elaboração das identidades estava associada às lutas pela
manipulação simbólica do poder, ou seja, havia nelas uma evidente faceta política. Em
busca de certos favorecimentos (políticos e econômicos) tornava-se importante recorrer
às representações simbólicas para legitimar ou reivindicar um lugar nas estruturas do
poder nacional.
Durval Muniz Albuquerque, A invenção do Nordeste e outras histórias,32 discute a
identidade regional nos aproximando um pouco mais da realidade baiana. Seguidor de
uma abordagem foucaultiana, o autor se propõe a analisar como, a partir dos últimos
anos da década de 1910, configura-se uma “dizibilidade” e uma “visibilidade” do
Nordeste, resultante do intercâmbio de imagens construídas fora e dentro da região.
Para tanto recorre a uma rica variedade de fontes: literatura, música, iconografia,
cinema; mas também, texto científicos, sociológicos e historiográficos, bem como
matérias da imprensa. Esse trabalho revela o surgimento de uma identidade regional
que podia tanto ser uma recusa quanto uma contraproposta à identidade nacional,
denunciando ainda as estratégias de poder vinculadas a tais elaborações.
Desviando agora a nossa atenção para as peculiaridades locais, diria que a Bahia
apresenta muitas lacunas historiográficas para o período republicano ― isso no que se
refere aos mais diversos temas. No que diz respeito à identidade, localizei poucos
estudos em que se percebe uma aproximação mais objetiva em relação às minhas
próprias inquietações. O primeiro trata-se do trabalho de Wlamyra Ribeiro de
31 Ver, LOVE, Joseph, A Locomotiva, p. 11; ou LEVINE, Robert M., op. cit., p. 23; ou, ainda, WIRTH, John D.,
op. cit., p. 31. 32 ALBUQUERQUE, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo, Cortez, 1999.
Considerações Iniciais 32
Albuquerque, Algazarra nas ruas: comemorações da Independência na Bahia,33 no qual
é discutido o sentido da festa da independência da Bahia, mais conhecida pelo nome de
Dois de Julho, no nosso ambiente sócio-cultural. Embora seu foco analítico não esteja
propriamente na questão da identidade baiana, ela demonstra como essa importante
data contribuía para defini-la. No seu livro, a autora buscou destrinchar a lógica
participativa dos mais diversos segmentos da sociedade local em tais festividades,
desde os grupos populares aos típicos representantes das elites intelectuais e políticas.
Assim, demonstrou como cada um deles se apropriavam da festa, associando sentidos
particulares ao cortejo cívico e aos demais eventos que compunham as comemorações.
O fato do estudo de Wlamyra Albuquerque estar situado no mesmo contexto da
presente proposta conferiu-lhe o privilégio de ser citado primeiramente. Mas existem
outros textos preocupados em analisar, direta ou indiretamente, as questões da
identidade da Bahia para aquém e para além do referido período. Inserido neste
conjunto, há a tese de doutorado de Lizir Arcanjo Alves, Os tensos laços da nação:
conflitos político-literários no Segundo Reinado,34 que se dispõe a discutir a difícil tarefa
de inserção da Bahia na nacionalidade nas décadas que medeiam o século XIX. A autora
destaca como a produção literária foi um lugar onde se estabeleceram duros embates
pela fixação dos princípios nacionais. A partir da obra poética de literatos baianos de
tendências liberais, analisa tanto a formulação de elementos identitários da Bahia, nos
quais sobressai a tradição histórica do Dois de Julho, quanto as diversas tensões
políticas ― dentro da própria província, para com a Corte e em relação a outras
províncias ― por conta do ideário compartilhado por muitos baianos, questionadores de
certos status e promotores de valores alternativos, profundamente marcado de um
caráter local.
Do ponto vista da problemática colocada neste trabalho, voltado para “as
grandezas e infortúnios da Bahia”, é importante anotar que Lizir Alves apresenta
contribuições relevantes, em especial, quando evidencia a formulação de inúmeros
fundamentos da identidade baiana muito antes da época republicana. Isto me leva a
concluir que com o declínio vivenciado pelo Estado no novo regime se procurou reforçar
certas representações, símbolos e mitos, todos constituintes da identidade regional e
compartilhados desde o Império. Deste modo, não podem ser eles considerados
invenções recentes; quando muito, passaram por uma reatualização dos conteúdos,
para melhor cumprir as funções exigidas pelas vicissitudes adversas dos novos tempos.
33 ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. Algazarra nas ruas: comemorações da Independência na Bahia.
Campinas, Ed. da Unicamp/Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. 34 ALVES, Lizir Arcanjo (org.). Os tensos laços da nação: conflitos político-literários no Segundo Reinado.
Salvador, 2000, 2 v. Tese (Doutorado em Letras) — Instituto de Letras, UFBA, 2000.
Considerações Iniciais 33
Abordando o contexto posterior à Primeira República, dois estudos assinalam a
continuidade de certas premências que faziam a Bahia pensar a sua identidade, mas
que se separam na abordagem pelo de fato de exporem duas perspectivas diferentes de
acentuá-la. São eles os textos de Paulo Santos Silva, Âncoras da tradição: luta política,
intelectuais e construção do discurso histórico na Bahia (1930-1949), e Celeste Maria de
Pacheco Andrade, Bahia, cidade síntese da nação brasileira: uma leitura em Jorge
Amado.35 Paulo Silva se apoia numa espécie de história política (reação, adesão e
demais implicações político-partidárias) e história intelectual (sua conformação, seus
espaços institucionais de associação e sua inserção política) para discutir sobre a
produção historiográfica baiana dos anos que seguiram aos acontecimentos que
receberam o nome de Revolução de 1930, contexto este de dificuldades e desprestígio
na visão de muitos. O autor não se reconhece fazendo um estudo sobre identidade, mas
é perceptível o fato de que acaba resvalando nisso. Após indicar que parcelas das elites
baianas se sentiram frontalmente atingidas pelas mudanças decorrentes da ascensão
getulista, demonstra que a produção intelectual de cunho historiográfico se constituiu
num importante instrumento de combate político. Preocupados em reconstituir uma
visão idealizada do passado, os historiadores baianos acabaram por elaborar um tipo de
identidade regional, pois ressaltaram as singularidades das experiências e dos sujeitos
históricos baianos, os quais pretendiam aparecer perante o projeto centralizador de
poder em curso no país como praticantes do liberalismo e da cordialidade, bem como
ressaltar o papel do Estado para a constituição da nacionalidade.
Paulo Silva desperta substancial interesse por revelar a continuidade de certas
questões que serão destacadas ao longo deste trabalho. Aliás, muitos são os pontos de
contato entre as nossas propostas, tais como: as influências, as conseqüências e as
demandas políticas relativas aos problemas analisados; a importância da memória
histórica, revelada pela preocupação de reconstituição e re-significação do passado; e a
recorrência à produção textual das elites intelectuais, com a diferença de que prefere
realçar os discursos sobre o passado selecionando apenas algumas obras
historiográficas e um número restrito de autores, enquanto procuro alargar ambas
referências, recorrendo a uma maior variedade de textos e de sujeitos. O comentário
adicional diz respeito ao fato de que escapou a Paulo Silva que a situação de crise
política vivenciada pela Bahia remontava à implantação do regime republicano. Deste
modo, posso afirmar que muitos dos problemas que julga ou apresenta enquanto
resultantes do movimento de 1930 tiveram origem bem mais remota do que
35 SILVA, Paulo Santos. Âncoras da tradição: luta política, intelectuais e construção do discurso histórico na
Bahia (1930-1949). Salvador, EDUFBA, 2000; e, ANDRADE, Celeste Maria de Pacheco. Bahia, cidade síntese da nação brasileira: uma leitura em Jorge Amado. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História) — PUC-SP, 1999.
Considerações Iniciais 34
pressupunha, assim como a reação das elites à perda de espaço na cena nacional vinha
de longa data.
Celeste Andrade, em sua tese de doutorado, discute a idéia da Bahia, ou mais
precisamente, de Salvador, como típica representante da nacionalidade brasileira,
calcando-se em representações que fazem dela Jorge Amado em duas obras literárias
da sua lavra ― Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios (1945) e Tenda dos
Milagres (1968). Para a autora, o famoso escritor buscou fixar símbolos e tradições que
reforçavam uma identidade baiana extensiva à nação. E tal como já exprimi a respeito
de outros trabalhos, ela justifica as elaborações amadianas enquanto conseqüência da
necessidade de responder às aflições políticas e econômicas vividas pela Bahia. Com
isso, delegava às representações simbólicas ― ou “tradições inventadas”, com base nas
idéias de Eric Hobsbawn e Terence Ranger,36 que vem a ser o conceito à qual se alinha ―
a função de conferir um novo status, mais prestigioso, e atenuar os efeitos das perdas.
O seu estudo apresenta o diferencial de se ocupar de um autor que relaciona como
elementos da baianidade tanto as contribuições dos segmentos populares (os negros e
mestiços que compunham o conjunto sócio-cultural baiano) quanto alguns valores
associado às elites, fossem estes novos ou desde há muito tempo enraizados no
imaginário das mesmas. Sendo isto algo que, para mim, torna-o um legítimo praticante
do escrito literário baseado na circularidade cultural.
Embora tenha algumas ressalvas ao trabalho de Celeste Andrade, justificada pela
falta de um melhor aporte teórico no tocante à questão da identidade e à relação
história e literatura, bem como em razão da opção teórica pelo conceito de “tradição
inventada”, vejo nele uma qualidade: apresentar uma versão alternativa da identidade
baiana, a qual passou a despontar e ter maior difusão somente depois da década de
1930. Versão essa que teve no próprio Jorge Amado seu maior promotor e
representante, a qual, até hoje (os anos iniciais do século XXI), continua repercutindo,
pois ainda serve como importante referencial da Bahia e do ser baiano. Deste estudo, é
possível concluir que ocorrem processos de negociação em torno da validade e
representatividade de certos valores e símbolos que redundam na redefinição das
identidades.
Os estudos comentados nesta parte constituem, obviamente, apenas uma
parcela dos materiais que contribuíram para pensar a problemática dos “discursos das
elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia”. Outros tantos livros, artigos, teses
e dissertações também trazem idéias e conclusões estimuladoras, especialmente alguns
que tratam do declínio econômico, que teve inclusive um termo posteriormente criado
36 ANDRADE, Celeste Maria de Pacheco, op. cit., ver a “Introdução”. HOBSBAWN, Eric & RANGER, Terence (org.). A
invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p. 09-23.
Considerações Iniciais 35
para defini-lo, qual seja, “enigma baiano”. Ao traçarem um painel das esferas social,
cultural, econômica e política, todos eles serão bastante úteis para compreender melhor
a situação geral da Bahia. E serão chamados a se apresentarem nos momentos
oportunos.
Além do fato de ajudar a facilitar uma melhor apresentação da minha temática,
tenho outra razão para ter desenvolvido esta extensa revisão bibliográfica. Possuo uma
especial predileção por textos historiográficos que enfatizam as fontes, e por hábito
tenho a tendência de escrever muito mais em diálogo com os meus testemunhos do que
com uma bibliografia. Como, talvez, não venha a fazer, no corpo do trabalho, tanta
referência à produção historiográfica quanto farei às fontes, quis deixar delineado o
quadro acima. Preciso esclarecer um pouco mais acerca da minha preferência:
intenciono demonstrar e reforçar quais eram as sensações imbricadas nas experiências
dos sujeitos, enfatizando, ao máximo, suas próprias vozes sobre a situação em que
viviam. Por isso, quase sempre estarei fazendo um intensivo emprego das fontes, o que
vai resultar num texto predominantemente narrativo, o tempo inteiro recorrente a
numerosos e, por vezes, repetitivos fragmentos das falas produzidas no período
focalizado.
O uso profuso das fontes tem a ver, também, com o que julgo ser o
conhecimento histórico, no tocante ao labor da pesquisa e, sobretudo, à apresentação
posterior dos seus resultados sob a forma escrita (a historiografia). Agindo dessa forma,
sinto-me mais seguro quanto ao fato de estar expressando informações mais
aproximadas às experiências dos sujeitos, ou, noutras palavras, estar produzindo um
conhecimento que possa ser o mais coerente possível com os fatos do passado —
embora tem plena consciência de isso não passa de uma aspiração. A preferência é,
portanto, algo que diz respeito a certas aflições epistemológicas que alimento quanto à
“ciência” histórica, as quais são amenizadas por meio da prática que adoto ao
apresentar os resultados da pesquisa.37
37 As minhas aflições dizem respeito ao que JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo, Contexto,
2001, define como fragilidades epistemológicas da História, idéias que ora compartilho. Para ele, tais fragilidades se manifestam em pelo menos quatro aspectos: 1) a impossibilidade de recuperar a totalidade dos acontecimentos passados, restando ao historiador atingir apenas seus fragmentos; 2) a dificuldade do relato historiográfico recuperar (ou expressar) o passado tal como ocorreu, por conta do desacordo entre o fato (o que ocorreu) e o relato (o registro do fato), sendo que o historiador só tem acesso aos relatos (a fonte), jamais aos fatos; 3) o problema da historia (ou historiografia) ser uma construção pessoal, onde o historiador aparece como um narrador e intérprete dos acontecimentos; 4) a questão de, ao olhar para o passado,’ retrospectivamente, o historiador poder dispor de mais informações sobre ele que os próprios sujeitos que vivenciaram ele, de modo que “descobre não só o que foi esquecido sobre o passado, mas também ‘reconstitui’ coisas que, antes, nunca estiveram constituídas como tal” (p. 31-34). De certa forma, Jenkins levanta problemas relacionados à produção historiográficas que lembram as teorias de Hayden White, de quem voltarei a falar.
Considerações Iniciais 36
Aproveitando que confessei minha predileção em trabalhar com as fontes, é
necessário apresentá-las. Para desenvolver os argumentos deste trabalho, recorri a um
repertório vasto delas. Em destaque aparecem as coleções de revistas, dedicadas a
temáticas diversas: variedade e mundanismo, manifestações cívicas e comemorativas,
letras e artes, humanidades e ciências, etc. Nesses periódicos, localizei textos de muitos
tipos: matérias jornalísticas, crônicas, artigos e ensaios (biográficos, historiográficos,
econômicos, etc.), discursos, propaganda (política, regional, institucional, etc — não
confundir com reclames publicitários), dentre outros. Seguindo a ordem de importância
adquirida no decorrer do trabalho, cito a revista Bahia Ilustrada (1917-1921), que foi a
mais abundantemente utilizada, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia
(apenas no intervalo de 1894-1931, visto que manteinuidade de edição), utilizada quase
na mesma intensidade da primeira, e a Renascença (1916-1928, interrompi a consulta
nessa última data, mas ela se manteve circulando por muitos anos). Esporadicamente,
apoiei-me, na Revista Cívica, na Revista da Bahia e em A Voz do Povo, dentre outras.
Utilizei bastante, também, uma edição especial do Diário Oficial do Estado da Bahia,
datado de 2 de julho de 1923, que reuniu diversos artigos sobre a Bahia. Nesse
volumoso material, pretendeu-se fazer um painel da história baiana nos cem anos da
Independência, realçando as suas “glórias”, ainda que tenha revelado muito dos seu
“infortúnios”. Em complemento aos periódicos, porém conferindo-lhes a mesma
importância, fiz uso de um número amplo de folhetos e livros, da autoria de jornalistas,
estudiosos e intelectuais locais, que versavam sobre a história, a geografia, as artes, a
cultura, a economia, as questões políticas e muitos outros temas relativos ao Estado.
Procurei utilizar todo esse material explorando a qualidade das informações que
apresentava e tomei suas falas enquanto discursos que revelavam as impressões,
positivas ou negativas, tidas pelos indivíduos a respeito da Bahia. Confrontados uns com
os outros e analisados em seus conteúdos, não tenho dúvida em afirmar que foram
bastante úteis para a elaboração da minha narrativa, a despeito das possíveis lacunas
que os leitores venham detectar.
Resta-me agora explicar a estrutura da tese. Optei por dividi-la em duas partes,
cada qual correspondendo a uma das dimensões de tempo que os “discursos das elites
sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia” elaboraram. Deste modo, enquanto uma
nos remete às percepções do passado, as vezes longínquo, mas, na maioria das vezes,
relativamente recente, a outra registra as percepções desenvolvidas quanto ao presente
(ou seja, os anos republicanos). E cabe enfatizar aqui uma questão: ao longo do texto
falarei em passado para me referir a tudo que constitua um resgate da história/memória
pelas elites, enquanto presente irá definir as experiências vividas na era republicana,
especialmente nas décadas de 1910 e 1920.
Considerações Iniciais 37
A primeira parte recebe o nome de “Tempos de Glória”, sendo composta por dois
capítulos. Aí procuro reconstituir alguns fragmentos de memória das elites baianas
acerca do passado, freqüentemente assinalado como uma época faustosa, sobretudo a
era imperial. Trata-se de apreender a leitura que se fazia dos diversos eventos, para
subtrair dela as imagens e os símbolos que se pretendiam firmar, reforçando os traços
de uma identidade regional. Muita atenção ao que será dito agora: embora esteja,
aparentemente, falando do passado, estarei tratando, na verdade, do presente (as
primeiras décadas republicanas, mais freqüentemente, os anos 1910 e 1920), seja por
meio da série de representações que este elabora daquele, seja pelas tentativas de
estabelecer uma continuidade entre ambos, seja pelo fato de a memória e os discursos
sobre o passado revelarem os dramas do presente.38 No capítulo 1, “‘Mater Heróica’ e
‘Rainha do Norte’”, apresento as versões sobre o papel, a participação e a hegemonia da
Bahia na história nacional, na qual, segundo as falas das elites, o Estado (ex-província e
ex-capitania) teria se destacado por relevantes contribuições. No capítulo 2, “‘Atenas
Brasileira’”, realço as falas que apontam uma imaginada proeminência intelectual e
cultural baiana, a qual teria favorecido o surgimento de uma “plêiade” de talentosos
artistas, escritores e cientistas, bem como de um número expressivo de sujeitos que
ocuparam importantes funções de Estado.
A segunda parte se refere aos “Tempos de Infortúnio”, estando constituída de
três capítulos. Neste momento, pretendo, basicamente: expor os argumentos que
reconheciam uma condição “decadente”, “declinante”, “crítica” para a Bahia no cenário
nacional; descrever alguns fatos que evidenciavam a adversa situação; e apresentar, do
ponto de vista dos sujeitos do período, as possíveis causas dos seus infortúnios. Mas os
“tempos de infortúnios” não deverão ser enxergados apenas nos seus lamentos. Por
isso, depois de reconhecida a existência de uma crise, devo apontar as reflexões e as
propostas de ações a serem empreendidas com a intenção de superá-la. No capítulo 3,
“‘A Bahia – já teve’”, acompanho como, a partir da comparação entre passado e
presente, desenvolveu-se um sentimento de perda entre as elites, o qual vai ser
revestido de ressentimentos em relação aos que imputava a culpa pelos seus males.
Outro aspecto a ser observado, diz respeito ao cultivo de uma saudade dos “tempos de 38 Esse aspecto tem, para mim, tão grande importância que irei martelá-lo um pouco mais aqui na nota. Em
nenhum momento a minha intenção será discorrer sobre a história da Bahia no Império ou mesmo de antes desse período. Não trabalhei com fontes dessas épocas, ademais seria impraticável dar conta de todos os fatos ocorridos naquele extenso intervalo. Como, na verdade, limitei-me a manipular os documentos produzidos nas décadas de 1910 e 1920, pretendo apenas apresentar a memória do passado tal como foi conservada pelos sujeitos que viveram no referido contexto republicano. Para mim, a memória seletiva acerca do que já aconteceu revela muito das leituras a respeito daquilo que se pensa a respeito do momento vivido. A construção de uma determinada visão do passado tanto pode se prestar aos “vitoriosos” da vez, que buscam legitimar o status adquirido como conseqüência de terem sido, supostamente, bem sucedidos em suas vicissitudes históricas, quase sempre assentadas na idéia de superação das dificuldades, quanto pode servir aos “derrotados”, que buscam reconstituir suas tradições a fim de reivindicar o restabelecimento do antigo estado das coisas. A “invenção” de uma identidade paulista, por exemplo, atende ao primeiro caso, enquanto a “invenção” de uma identidade baiana, do modo que será tratado neste trabalho, atende ao segundo. É exatamente esse o viés que deverei explorar.
Considerações Iniciais 38
glória”. No capítulo 4, “‘Rainha Destronada’”, tenho a atenção voltada para a inserção
da Bahia na República, procurando levantar o conjunto dos seus problemas políticos,
especialmente, e os econômicos. No que tange aos acontecimentos políticos, busco
analisar a tensão entre os interesses regionais e os dos grupos instalados no poder
nacional, bem como descrever os sucessivos fracassos na tentativa de reaver algo da
antiga importância. No capítulo 5, “‘Pela Bahia’”, discuto alguns meios empregados para
recuperar a abalada auto-estima das elites locais, através dos quais se percebe a
preocupação em afirmar uma espécie de identidade baiana e o desejo de formular
proposições que visavam promover o reerguimento do Estado no plano nacional.
Esse plano de tese, com sua divisão em duas partes, que julga respeitar a
percepção de múltiplas temporalidades pelos sujeitos históricos, é apenas uma dentre
as muitas opções de apresentação do tema que poderia ter escolhido. Quero salientar
este aspecto porque sempre que se define por um ou outro modo de narrativa corre-se
o risco de encaminhar a análise e interpretação dos acontecimentos para um
direcionamento que não corresponde exatamente àquele desejado. Assim, faço estas
considerações porque não quero obscurecer o fato de que todas as sensações a serem
descritas nos próximos capítulos, tão fortemente imbricadas às experiências dos
sujeitos, foram vividas num único e mesmo tempo. Concomitância que fez com que as
mesmas, muito freqüentemente, estivessem envoltas por uma capa de ambigüidades,
dualidades e contradições. Desejo, portanto, deixar muito claro que a valorização do
passado de grandezas, o desapontamento com um presente de infortúnios e a
renovação das esperanças, que produziam expectativas para o futuro, constituíram-se
em ações e sensações simultaneamente experimentadas pelas elites baianas. E isto não
deve ser perdido de vista em nenhum momento da leitura do texto que aqui ofereço aos
leitores.
Ainda sobre a opção de apresentação do tema, que, também, pode ser tratada
como estratégia narrativa, gostaria de acrescentar algumas palavras, visto que não
tenho certeza de que minhas escolhas sejam, prontamente, compreendidas. Há décadas
que Hayden White vem chamando a atenção para as proximidades entre os textos
historiográficos e literários, haja vista a predominância da linguagem narrativa em
ambos, que se caracteriza pela interpretação, imaginação e natureza metafórica. O
discurso historiográfico não seria, portanto, isento de certa subjetividade, configurada,
por um lado, nas conclusões particulares do historiador (ou seja, a própria
interpretação) e, por outro lado, na forma da linguagem — chamada de tropos por
White — utilizada para apresentar os resultados de um estudo.39
39 Ver WHITE, Hayden. Teoria Literária e Escrita da História. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
Fundação Getúlio Vargas, v. 7, n. 13, p. 21-48, 1994; ou, do mesmo autor, Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo, Edusp, 2001.
Considerações Iniciais 39
Sou adepto do princípio de que o historiador, consciente ou inconscientemente,
sempre faz uma escolha em torno do tipo de narrativa que vai empregar. No meu caso
específico, assumo de pronto, e, como se fala coloquialmente, sem pestanejar, que
minha escolha se fez com total consciência. Preciso, então, declarar minha dívida para
com Peter Burke, que foi o primeiro a me sensibilizar para a necessidade dos
historiadores hodiernos buscarem novas alternativas de apresentação textual do
conhecimento histórico, sugerindo a inspiração nos escritos literários.40 Ainda que longe
de cultivar a pretensão de ter conseguido atender satisfatoriamente ao seu incitamento,
não posso negar sobre o fato de ter me proposto a ousar nesse sentido. Daí porque um
texto, como perceberá o leitor, que cria um certo suspense narrativo, dando-se a
atender, mais transparentemente, apenas em um dos seus capítulos finais.
Aproveito a oportunidade, então, para pedir, antecipadamente, desculpas aos
leitores especializados, meus companheiros historiadores e afins, pelos possíveis
“escorregos” cometidos na “composição” do texto. Confesso que, além do clima de
suspense, em muitas passagens não resisti à vontade de me desembaraçar das
formalidades da escrita estritamente acadêmica. A mim mesmo, por vezes, ficou a
impressão de ter redigido numa maneira uma tanto ensaística. Espero dos historiadores
que não considerem isso um defeito crasso, em respeito à existência de estilos pessoais
de elaboração da escrita.... Ao proceder assim, tive a intenção de tornar este texto um
pouco mais palatável aos menos afeitos à linguagem típica dos trabalhos produzidos em
nível de pós-graduação, para que não fique tristemente condenado às estantes das
bibliotecas universitárias. Desejo apenas, sinceramente, não ter perpetrado o pecado de
descontentar tanto a uns quanto a outros. Na dúvida, meus pedidos de excusas a todos.
Um adendo final a esse problema: enfatizo que o pedido de desculpas em
nenhuma hipótese se estende ao conteúdo, pelo qual assumo a mais completa
responsabilidade, tanto em relação ao que disse quanto ao que omiti. Na crítica às
minhas idéias, às opções teóricas e metodológicas, bem como às conclusões não espero
a menor condescendência do leitor, mesmo porque acredito que somente no confronto
de opiniões se engrandece o conhecimento. Nesse sentido, desde já me declaro um bom
ouvinte, pronto para receber os juízos que advirão, sejam eles positivos, negativos ou
neutros, sob todas as variações de forma que as críticas podem assumir ao serem
expostas. Espero, aliás, sinceramente, que os meus argumentos suscitem muitas
críticas, pois será a melhor demonstração de haverem tocado os leitores.
40 BURKE, Peter. A história do acontecimento e o retorno da narrativa. In BURKE, Peter (org.). A escrita da
história: novas perspectivas. São Paulo, UNESP, 1992, p. 327-348.
Considerações Iniciais 40
As considerações iniciais já se estenderam por demais, por isso, faz-se
necessário colocar um ponto final nelas. Deixarei quaisquer outras explicações sobre o
trabalho para os momentos em que novas questões forem suscitadas. Desta forma,
feitos, por ora, todos os esclarecimentos considerados necessários, é chegado o
momento de iniciarmos o longo percurso pelos caminhos que fizeram as grandezas e
pelos descaminhos que engendraram os infortúnios da Bahia, conforme as falas das
suas elites registraram.
PARTE I ― TEMPOS DE GLÓRIA:
AS ELITES E A MEMÓRIA HISTÓRICA DAS GRANDEZAS BAIANAS
Salve, terra lendária e hospitaleira,
primeva plaga onde ancorou Cabral!
És estrela e diamante, astro e palmeira,
visão de glória, céu de água triunfal...
Doce origem da pátria brasileira,
és solo e espaço, e templo, e sonho, e ideal...
Tens o mar e a montanha sobranceira,
e o rio, e o campo, e a selva tropical!
Bandeirantes, guerreiros, estadistas,
poetas geniais, tribunos e cientistas,
brilham teus filhos num fulgor de sol.
E, evocando Castro Alves da penumbra,
entrevejo a apoteose que deslumbra:
hás de ascender em mágico arrebol!...
Eurico de Góes1
1 GÓES, Eurico. “Revendo o Berço”. In Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 54,
p. 319-325, 1928, p.325.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha Norte”: o papel da Bahia na história nacional
Segundo as elites baianas da época republicana, houve um tempo em que a
“Bahia” podia se vangloriar de ser a melhor no Brasil. Tempo esse em que as garras de
sua hegemonia teriam se estendido pelos mais diversos ramos da vida nacional. Uma
certa proeminência econômica, política, artística, intelectual, religiosa e espiritual,
conforme as pressuposições de muitos, fizera da Bahia um lugar privilegiado. Foram
“tempos de glória”... os quais se tornaram memoráveis e invejáveis, prontos a animar o
desejo de que se fizessem repetidos.
Conquanto pudesse se caracterizar por certa fluidez na definição, esse tempo
referia-se, sobretudo ao século XIX, mais precisamente o intervalo entre 1808 e 1889,
com especial ênfase no Império. Esse momento tão especial poderia ser identificado
como sendo os “tempos de glória” ou “idade do ouro” da Bahia, como alguns chegaram
a tratá-lo. Não se deve subestimar, entretanto, as proeminências baianas restritas
apenas a esse período, que nada mais seria do que a culminância de um grande
destino. As proeminências baianas podiam ser localizadas em épocas mais remotas,
estendendo-se, regressivamente, para a era colonial. Progressivamente, ela continuava
perdurando, ainda que se encontrasse talvez em estado de latência, esperando o
instante propício para recuperar o antigo vigor.
Passando pelos fatos políticos, militares, intelectuais, dentre outros, constituiu-se
um consenso entre as elites de que a Bahia sempre havia despontado na história do
país, assumindo a função luminar da liderança e/ou vanguarda, dando provas de
civismo e patriotismo, propagando talento e heroísmo sem iguais. Eis o que nos dizem
alguns deles:
[...] Bahia «que em toda a história deste paiz, brilhou sempre à testa da vanguarda, sobressaindo, nas horas mais criticas e nos mais prosperos dias, entre as primeiras na linha extrema do perigo, entre as maiores na ultima divisa da intelligência, entre os summos na mais alta raia da auctoridade, rainha entre as rainhas do espirito, da bravura e do poder
[...]».1
O Estado da Bahia exerceu sempre a mais prenunciada influencia na vida do Brasil, destacando-se nas differentes phases de sua historia, não somente pelo valor intellectual e moral dos seus filhos, com os quaes se tem irmanado em todo vigor da sua proverbial intrepidez e do seu
1 Rui Barbosa citado por MELLO, Adhemar. “Livros e Bibliothecas”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 9,
ago./1918.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 43
denonado patriotismo, mas, também, pelas contribuições materiaes de
suas potentes forças econômicas [...].2
A Bahia na historia da literatura brasileira tem situação idêntica às cidades gregas ou da época babylonica. Irradiando de sobre suas muralhas para o
mundo, a grandeza, a magnificência, o valor, o talento e o heroísmo.3
Rui Barbosa (senador federal, jurista e maior figura política e intelectual baiana),
Antonio Moniz (governador do Estado, deputado federal e senador federal) e Affonso
Ruy (bacharel em direito, jornalista e historiador) foram, respectivamente, os autores
de cada um destes extratos ― todos eles ilustres baianos, conhecidos nacional ou
regionalmente. Outra publicação, datada de 1908, indica como, desde o início do século
XX, havia se desenvolvido a crença do prodígio baiano. Tratava-se de uma Polyanthéa
(Poliantéia na grafia atual), que vem a ser uma miscelânea de homenagens,
apresentada no formato de revista. Como tal, os primeiros louvores foram dirigidos ao
Estado, consumados num texto introdutório sugestivamente designado “Ave, Bahia”, o
qual asseverava em um trecho:
No lento envolver dos tempos, no avançar continuo e fatal das eras, à proporção que o Paiz exsurge das sombras para a luz, do obcurantismo para a gloria e cresce, e avulta, em affirmativas victoriosas para o Progresso, vemos a Bahia, na vanguarda, norteando-lhe os destinos, roteando-lhe a marcha, arrebatando-o, no impulso das grandes idéas, para os momentos dos supremos triumphos, das reivindicações supremas, arrojando aos hombros de heroína o manto resplandescente das tradições immortaes.4
Justificando o status de proeminência conferido à Bahia, variados eram os títulos
com que se poderia designá-la: Mãe, Rainha, Deusa, Heroína — todos, segundo se
supunha, fiéis denominativos das suas mais profundas virtudes. Numerosos, também,
foram os epítetos que lhe atribuíram, bastante sugestivos por sinal, nas suas qualidades
sintéticas, dos conteúdos simbólicos que impregnavam as inúmeras linhas escritas e
tantas outras palavras pronunciadas sobre a Bahia e o seu papel na história nacional.
Alguns bons exemplos deles são: “terra mater, berço da nacionalidade brasileira”;
“mater dolorosa”; “mater veneranda”; “terra abençoada do gênio, da galhardia e do
2 MONIZ, Antonio. “A Bahia e o seu Papel Histórico na Evolução Política do Brazil”. Revista da Bahia, Bahia,
nº 21, 15 de outubro de 1922. 3 Alex (Affonso Ruy). “Chronica”. Renascença, Bahia, nº 72, 30 de abril de 1921. 4 “Ave Bahia”. In Polyanthea (sem referências). Pela revista não trazer nenhuma referência, foi ao proceder
uma análise geral do seu conteúdo que se cheguei à conclusão de que foi publicada em 1908. Como foi dito no corpo do texto, Poliantéia significa miscelânea de homenagens, exatamente o que ela procurava fazer em relação a Afonso Pena, presidente da república à época, José Marcelino de Souza, que estava deixando o cargo de governador da Bahia, como a própria revista cita, e José Ferreira de Araújo Pinho, que assumiu o cargo exatamente nesse ano, além de outros nomes, dentre os quais Rui Barbosa.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 44
desinteresse”;5 “alma mater”; “berço da civilização christã no Brasil”; “o coração do
Brasil, a alma nacional”; “primogênita de Cabral”; “terra de titânicos seios, sempre
nobre, sempre forte e heróica”;6 “Athenas Brasileira”; “Rainha do Norte”; “Leal e
Valorosa”; “a heroína de todos os tempos”;7 “Bahia altiva, terra de tantas glórias e
tradições heróicas, berço de illustração e de civismo”; “legendária capital, a antiga
metrópole do paiz”; “eterna metrópole da intellectualidade brasileira”; “a generetriz das
maiores individualidades políticas, literárias e scientificas do segundo reinado”; “mãe
amantissima”;8 “terra de tradição e intellectualidade”; “Bahia heróica”, “Bahia
triumphante”, “Bahia tradicional”; “terra privilegiada desde os dias remotos da
descoberta, terra de heroísmo e de amor, terra de opulência e de inexcedível
hospitalidade”.9
Se considerarmos as pequenas variações de forma que sofreram os exemplos
citados, seria possível encher muitas páginas com títulos, epítetos e outros modos de
adjetivações associados à Bahia, tal a freqüência com eles apareciam nos textos que
foram direta ou indiretamente dedicados a ela. Todos esses qualificativos fazem uma
referência ao passado — ainda que aparentemente não esteja isso tão claro ― e trazem
embutido a noção de antecedência. Nesse caso, enquadram-se as expressões
“tradição”, “berço”, “mater”, “primogênita”, “antiga” e “eterna”, palavra essa que
prolonga o passado pela continuidade de uma condição para além do futuro. Até as
designações que se referem a valores abstratos ou que dizem respeito a propriedades
espirituais — tais como “leal e valorosa”, “heróica”, “nobre” e “forte” —, também trazem
a mesma marca, visto se fundamentarem ou se associarem a fatos que teriam conferido
destaque à ação histórica da Bahia.
Diante da variedade de epítetos, mostra-se impraticável explorar os sentidos de
todos eles. Por isso, torna-se necessário selecionar alguns, a fim de melhor
compreender a extensão dos seus conteúdos nas possíveis significações que assumiam.
5 Respectivamente, “A maior data bahiana”. Renascença, Bahia, nº 44, jul./1919; ALMEIDA, Miguel Calmon du
Pin e. “A Batalha de Pirajá” (Conferência no Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, aos 8 de Novembro de 1922). Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 49, p. 223-262, 1924, p. 223; e CALMON, Pedro. “Os libertadores”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 54, p. 477-504, 1928, p. 503, para as duas últimas.
6 Respectivamente, SAMPAIO, Teodoro. “Discurso”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 52, p. 391-394, 1926, p. 391, grifo do original; SILVA, D. Jeronymo Thomé da. “2 de Julho — A data da verdadeira Indepêndencia”. Revista da Bahia, Bahia, nº 27, 1 de fevereiro de 1923; LEMOS, Virgilio de. “A Bahia”. Renascença, Bahia, nº 92, jun./1922; e PIN, Alan. [sem título]. Revista Cívica, Bahia, nº 46, 02 de julho 1923, para as duas últimas.
7 Para Atenas Brasileira, “Lúmen Civitas”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 16, mar./1919; “Castro Alves e Ruy Barbosa”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 39, jun./1921; e para as demais, respectivamente, “Scenas do Civismo Baiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 17, abr./1919; OLIVEIRA, José Campos de. “A Bahia na Escola”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 8, jul./1918; e “A maior data bahiana”. Renascença, Bahia, nº 31, 13 de julho de 1918.
8 Para a primeira, ver AZEVEDO, Leôncio. “Data Bahiana”. A Voz do Povo, Bahia, nº 1I, jul./1920; quanto as demais, ver “O Dois de Julho”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 31, jun./1920.
9 Ver, respectivamente, A. de C.. “Chronica”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 36, mar./1921, para as quatro primeiras; e “O Estado da Bahia”. Renascença, Bahia, nº 41, 25 de abril de 1919, para a última.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 45
Dentre os mais expressivos, relaciono aqueles que remetem à noção de mãe, heroína e
rainha, haja vista que eles nos permitem abarcar um amplo conjunto de representações
da Bahia. Além disso, foram, nas primeiras décadas do século XX, os epítetos
empregados com maior freqüência. Atenas Brasileira também se constituía um título
muito importante, sendo inclusive mais recorrente que qualquer outro. E justo por este
fato, assim como em virtude da sua especificidade e das inúmeras referências a que nos
remete, julgo mais pertinente tratá-lo em capítulo à parte. Conquanto as escolhas aqui
definidas, priorizando a mãe, a heroína e a rainha, elas nos abrirão brechas para
pequenas incursões, ainda que isto venha a se dar indiretamente, aos conteúdos
simbólicos de algumas outras designações.
Devo passar, então, a tratar desses títulos, epítetos e formas múltiplas de
designações e acredito que a melhor estratégia para apreendê-los será focalizando a
série de ocorrências do passado que justificavam a utilização dos mesmos, sem perder
de vista, obviamente, a delicada questão dos modos como os fatos foram
reconstituídos, interpretados e discursivamente concebidos.
A Bahia na história
Por muitas vezes a Bahia foi tratada pelas elites dos anos republicanos como
uma espécie de entidade especial, cuja tradição na história e na cultura elevava seu
nome nas páginas da vida nacional. E era sim como uma entidade especial, investida
com propriedades místicas, que seu nome aparecia. A abstração do lugar [a Bahia] —
consequência natural da impossibilidade de determiná-lo em sua concretude, seja
geofísica, seja cultural ou em termos de anima coletivo, tornando sua definição uma
resultante de operações cognitivas particulares, promovidas pelos sujeitos históricos nas
vicissitudes das suas próprias experiências — cedia passagem para a elaboração de uma
“ficção”10 sobre o lugar, que era uma representação e uma interpretação que
apresentava a sua história a partir de perspectivas e propósitos bem definidos.
Decorria, daí, uma grande fixação em torno da importância — aos olhos de hoje
talvez pretensa e suposta ou, no mínimo, passível de relativização, mas aos olhos da
época real e insofismável — que a Bahia tivera nos eventos mais marcantes da história
brasileira. Importância de tal magnitude que, não bastando ser considerada relevante,
parecia adquirir o status de crucialidade e imprescibilidade. Nesse sentido, a percepção
desenvolvida por Braz do Amaral, que nos servirá de exemplo inicial, caracterizava-se
por uma densa radicalidade na adesão à idéia, demonstrando isso ao afirmar que no
10 Conceito utilizado conforme apresenta a acepção 1.2 do Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa, Versão 1.0, Ed. Objetiva, 2001, que define ficção como “relato ou narrativa com intenção objetiva, mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato etc”.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 46
Brasil “nunca se fez coisa digna de ser referida à posteridade que não fosse levada à
effeito pelos bahianos, ou com o concurso positivo delles”.11 É possível que outros
compartilhassem deste pensamento, embora poucos o tenha exprimido com tanta
incisividade quanto ele.
As narrativas que emergiam dessa situação, oscilando entre história e memória,
e as sensações nelas afloradas eram substancialmente determinadas pela posição da
Bahia e das suas elites na conjuntura da primeira fase da república. As narrativas sobre
a Bahia na história, excetuando alguns poucos trabalhos, recorriam a fragmentos (no
sentido mais estrito que essa palavra possa ter) da história para produzir um sentido
que se distanciava completamente da busca de um conhecimento mais aprofundado do
passado. Entretanto, isso não significa dizer que o conhecimento produzido não tivesse
uma coerência e uma finalidade própria, muito pelo contrário. Ele sinalizava para uma
percepção de história com explícita função moral, conforme nos indica Braz do Amaral.
Ou seja, os escritos sobre a história procuravam estimular um sentimento de justiça.12
Eis os sentidos implícitos nos discursos históricos de então.
Arriscando uma breve descrição de fatos marcantes transcorridos na Bahia ou
protagonizados pelos baianos, compreende-se quais eram as principais representações
que lhes foram associadas na era republicana. Ao se produzir narrativas sobre a Bahia
na história brasileira, recorreu-se a acontecimentos que se passaram desde a colônia e
alcançaram os últimos dias do império — e alguns chegaram a incluir os primeiros
momentos da república, quando ainda não estavam configuradas as conseqüências da
mudanças de regime para o Estado. Mas enquanto as descrições para a primeira fase
eram esparsas, para a segunda elas abundavam, em especial quando se referiam aos
episódios da emancipação política brasileira e do papel dos baianos no segundo reinado.
E considerando a proximidade entre o tempo a partir do qual se falava (os anos 1910 e
1920), e o tempo sobre o qual mais se falava (que teve fim com a implantação da
República em 1889), temos aparentemente — mas não necessariamente — um fator
que reforça de alguma forma a idéia de que o modo de resgate do passado era muito
mais um exercício de memória do que um esforço de labor histórico.13
11 AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre Finanças da Bahia e Festas do Centenário. Bahia:
[s.n.] 1922, p. 28. Esta obra é uma coletânea de vários textos do autor. Ver o perfil biográfico de Braz do Amaral no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Amaral").
12 AMARAL, Braz do. “Discurso pronunciado na sessão solene de 3 de maio”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, Typographia Bahiana, nº 42, p. 173-180, 1916.
13 Antes que seja questionado, permitam-me alguns comentários acerca da associação entre a história recente e a memória. Quando considero esse aspecto, não estou negando a possibilidade de elaboração de estudos históricos sobre os tempos recentes, o que me colocaria na contramão de uma expressiva tendência historiográfica contemporânea. Julgo possível e importante a realização desse tipo de trabalho. O que coloco aqui tem que ser situado a partir do contexto do tema da minha pesquisa, no qual a profissão de historiador era inexistente no Brasil e as discussões teóricas em torno da história eram incipientes. Por isso muitas vezes faltava o cuidado maior no tratamento e na consulta aos documentos; não havia também a preocupação com as precisas referências bibliográficas e documentais. Por outro lado, não devemos
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 47
No percurso a ser percorrido, devo assimilar o ponto de vista adotado pelos
sujeitos das primeiras décadas do século XX. Por tal lógica, os dois primeiros termos
que intitulam esta seção do trabalho dimensionam com propriedade aqueles que foram
os dois principais papéis desempenhados pela Bahia na interpretação histórica do
período: a mãe e a heroína, os quais foram, conforme vimos anteriormente, duas
rotulações atribuídas com freqüência.
A Bahia mater: primordialidades baianas
De um modo geral, as citações feitas ao período colonial com maior recorrência
diziam respeito aos fatos e aspectos que presumivelmente a punham na condição de
mãe do Brasil: núcleo onde se originou e, portanto, onde teve berço o território, a vida
econômica, política, social e religiosa nacionais, bem como o local em que se viu
emergir os alicerces de uma cultura nacional. E, em termos de maternidade, ela poderia
se orgulhar duplamente: por ter dado gênese ao território brasileiro, tal como foi citada
ainda há pouco, e por ter gerado, propriamente falando, a nação brasileira como efeito
das lutas pela independência de Portugal.
Comecemos, entretanto, por aquilo que é considerado, segundo os mitos de
origem elaborados na Bahia, o princípio de tudo: o Descobrimento, que seria o primeiro
nascimento do Brasil. Pelo que informa a história oficial, o descobrimento teria ocorrido
em um lugar que pertencia ao Estado da Bahia — nas cercanias de Porto Seguro que,
anos depois, seria a Capitania do mesmo nome e incorporada, em 1759, à Capitania da
Bahia.14 Fato este que por si só já lhe conferia uma posição de destaque. Como nos diria
Bernardino José de Souza, secretário perpétuo do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia:
Quando em vesperas do século XVI “a mais formosa e poderosa armada que até aquelle tempo para tão longe dos reinos partira” rumo às Índias do levante, navegando o mar de longo, se desviou da rota do Gama, e pelos azares das ondas ou segundo plano de afortunado almirante, descobriu o Brasil, foram terras da Bahia as divisadas primeiro no cimo do Paschoal ou “Monte Aviso” e na costa do sul, entre as barras dos humildes ribeiros de Santa Cruz e Cahy. Foi na Bahia que brilhou primeiro a civilização ocidental, dando-nos a benção christã nos braços daquella cruz de Porto Seguro, a primeira que se chantou em terras da América do Sul.15
esquecer as relações de diversos tipos, mas quase sempre de proximidade, existentes entre os nossos informantes e os sujeitos que eram objeto das suas falas e escritas.
14 Ver TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo, UNESP; Salvador, Edufba, 2001, p. 89-98. 15 SOUZA, Bernardino José de. A Bahia: palestra sobre o Estado da Bahia em 1928. Bahia, Imprensa Official do
Estado, 1928, p. 26. Ver o perfil biográfico de Bernardino de Souza no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Souza”).
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 48
Note-se, nas três repetições do vocábulo “primeiro(a)”, a necessidade de
asseverar e, talvez mais do que isso, fixar para a Bahia um papel primordial: suas
terras foram “divisadas primeiro” pelos portugueses; foi nela que “brilhou primeiro a
civilização ocidental”; e, marcando a penetração cristã, nela viu-se chantada (estacada,
colocada) a primeira cruz. Em outro texto, as expressões primevo e berço são utilizadas
com função idêntica:
Terra em que se alteou primeiro o symbolo da redempção de cujo topo irradiou a verdade illuminando o cérebro rude do selvicola; núcleo primevo e mais poderoso de civilização durante o largo período colonial, em que foi
cabeça do Brasil; [...] berço, pois, da estremecida Pátria [...].16
Nesse momento inaugural, em que tantas referências simbólicas logo se fizeram
inscrever, dois importantes fundamentos da futura civilização brasileira viram-se logo
introduzidos: os elementos da cultura européia (a civilização ocidental) e a fé cristã (o
Catolicismo). A respeito da religião, por exemplo, não era demais enfatizar, como o fez
D. Jeronymo Thomé da Silva, que “foi [...] no território da Bahia, onde primeiramente
raiou o Sol Eucharistico; foi alli, nas plagas de Porto Seguro, pelas mãos de um
religioso, que se elevou a Hóstia Sacrosanta pela primeira vez para abençoar este
immenso colosso que se chama — Brasil”, enquanto Salvador foi definida como “capital
religiosa da colônia”. Dessa forma, a Bahia passava a ser assinalada não somente como
berço da terra brasileira, o ponto de partida para a definição do território, mas também
como guia “espiritual” e “civilizador” do Brasil. Aspecto este que, do prisma religioso,
poderia ser considerado uma dádiva divina, pelo menos isto é o que se percebe numa
exclamação do D. Jeronymo, que dizia: “Salve Bahia, terra privilegiada, escolhida por
Deus para ser o berço da civilização christã no Brasil”!17
Os esforços em destacar o papel cristianizador e fundador da igreja católica
tinham uma grande importância, visto que as elites baianas sempre fizeram questão de
ressaltar suas fiéis tradições religiosas de origem eminentemente católica.
A partir da Bahia, também, foi levada adiante a primeira ação verdadeiramente
governamental da Coroa portuguesa para estabelecer o controle eficaz das posses no
Novo Mundo, após a experiência mal sucedida das capitanias hereditárias. Isso se deu
através da instalação da capital colonial, cabendo a “Thomé de Souza lançar os
fundamentos da grande cidade do Salvador, nas margens da bahia de Todos os Santos”,
onde se estabeleceu todo um aparato administrativo e legal. Como afirmava Paschoal
16 “Estado da Bahia”. Renascença, Bahia, nº 72, 30 de abril de 1921. 17 SILVA, D. Jeronymo Thomé da. “O 2 de Julho — a data verdadeira da independência”. Revista da Bahia,
Bahia, nº 27, 1º de fevereiro de 1923; e SOUZA, Bernardino de. “Bahia em la historia de la pátria”. In OTERO, F. Gomez de y J. MUÑOZ, Burriel, Bahia, orgulho Del Brasil. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1929, p. 9.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 49
de Moraes, “aos vastos recursos de que dispunha e à energia do seu Governo, deve esta
cidade o lugar importante que desde logo occupou”.18
Salvador adquiria, então, a função de centro da vida brasileira. Em algumas
décadas assumiria o posto de maior entreposto comercial do Novo Mundo e se tornaria
a segunda mais importante metrópole do vasto império português, cobrindo porções de
territórios dos quatro cantos conhecidos do mundo (Europa, África, Ásia e América).
Sendo a Bahia um dos principais núcleos da civilização do açúcar, Salvador concentrava
grande parte dessa riqueza gerada na Colônia. Sede da vida religiosa, passou a contar
com inúmeras igrejas, conventos e mosteiros; foi nela, também, que se estabeleceu o
arcebispado primaz do Brasil. O fato de ter sido a primeira capital era citado para, em
mais uma circunstância, ressaltar-se a sua primordialidade.
Como informei, as leituras em torno da Colônia são mais raras que para o
império. Diante da falta de referências mais substanciosas, quem consegue nos
apresentar uma pequena e interessante síntese sobre o período é o engenheiro (de
formação e profissão) Teodoro Sampaio que no folheto intitulado O Estado da Bahia:
Agricultura, Criação de Gado, Industria e Commercio, no qual traça um painel geral das
atividades econômicas baianas em meados da década de 1920, reserva a parte inicial
do trabalho para apresentar uma “Breve noticia historica sobre o Estado da Bahia”. Em
sua narrativa, nota-se logo a ênfase nas qualidades naturais das terras da Bahia de
Todos os Santos, capitania que fora pertencente a Francisco Pereira Coutinho,
justificando da seguinte forma a escolha do local para implantar o centro da
administração colonial:
Tanto que el-rei soube da morte de Pereira Coutinho, conhecidas já as grandes possibilidades da Bahia, a fertilidade da terra, os seus bons ares, maravilhosas águas e abundancia dos mantimentos, determinou de a tomar à sua conta para fazer povoar e servir de centro e coração de toda a costa do Brasil e, com esse intuito, mandou edificar nella, próximo do arruinado estabelecimento do donatário, uma cidade, que chamou do Salvador, donde se pudesse ajudar e soccorrer todas as mais capitanias e ministrar justiça.
Descrevendo o crescimento da cidade e da população, em conseqüência da
ocupação das terras do Recôncavo baiano pela cana-de-açúcar, vai apresentar a origem
da boa estirpe baiana — talvez uma menção aos ascendentes das elites baianas que ele
de algum modo representava, ou pretendia representar — e os frutos colhidos pela
relação com os indígenas:
18 Para esse e o trecho aspado anterior, ver MORAES, Paschoal de. “O Estado da Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio
de Janeiro, nº 10, set./1918.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 50
Cresceu a cidade e a população cresceu, cultivando as pingues terras do recôncavo da Bahia. A lavoura da cana d’assucar desenvolveu-se e fez a fortuna dos colonos e enriqueceu o Estado e attrahiu gente das melhores e mais nobres famílias do reino. Concederam-se terras em grandes sesmarias e o gentio da terra, convertido ao christianismo pelo zelo apostólico dos jesuítas, começou de collaborar e de se ligar pelo sangue com os europeus, facilitando o trabalho da conquista, realizada esta, a principio, ao longo do litoral e depois pelo interior a dentro nos sertões occidentaes.
A vinda das melhores e mais nobres famílias da metrópole, a cristianização das
populações autóctones, a mestiçagem entre índios e europeus imprimiram à Bahia uma
dinâmica que teriam feito dela um centro de irradiação do progresso do Brasil.
Teodoro Sampaio afirmava que a cidade do Salvador, assim como Recife e São
Paulo, foi um ponto de partida para a expansão territorial brasileira — assinale-se que
ele não fala em exclusividade baiana, nem de qualquer outro região. Conforme nos
apresenta, as bandeiras baianas teriam se dirigido em direção ao norte, ao sul e ao
interior do país. Bastante ilustrativa da questão, eis o que descreve:
Da Bahia, no centro, saíram os conquistadores e povoadores de Sergipe; saíram os descobridores do São Francisco para cima do grande Sumidouro (cachoeira de Paulo Afonso); saíram os primeiros povoadores afazendados nos sertões do Pihauy. Sertanistas, oriundos da Bahia, deitaram raízes até aos sertões do Ceará para além dos Cariris e da Serra do Araripe; entraram pelos fundos do Maranhão, uma vez transpostos o S. Francisco e o caudaloso Parnahyba; foram, pelos campos dalem do Espigão Mestre, até beberem das águas do médio e baixo Tocantins, cruzando-se com as bandeiras paulistas; foram os batedores dos sertões mineiros no rio Pardo, no Jequitinhonha e no Mucury; foram ainda como aventureiros, os chamados mboavas, para além do Rio das Velhas, disputar e tomar aos paulistas as minas de ouro que estes descobriram. Foi na Bahia que saíram os conquistadores e principaes povoadores do Rio de Janeiro com Mem de Sá. Foi da Bahia o grosso da população mineira, que lavrou o ouro, quando os paulistas, desenganados, mudaram o rumo das suas impávidas bandeiras, buscando Goyaz e Matto Grosso.19
Seu posicionamento, no tocante ao assunto, soa como um questionamento à
idéia difundida pelas elites paulistas de que a partir de São Paulo teria se realizado a
expansão e o conquista do território brasileiro, sedimentando o mito dos bandeirantes
como a mais expressiva representação paulista. Se estivermos certos na avaliação,
registre-se a favor de Teodoro Sampaio que tinha bases suficientes para proceder tal
crítica, visto que atuou freqüentemente em São Paulo como engenheiro e era sócio do
19 Para os três excertos de Teodoro Sampaio, ver da autoria desse autor o opúsculo O Estado da Bahia:
Agricultura, Criação de Gado, Industria e Commercio. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1926, p. 2-5. Ver o perfil biográfico de Teodoro Sampaio no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Sampaio”).
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 51
Instituto Histórico deste Estado, estando a par de como vinha sendo construída tal
versão da história paulista e brasileira.20
Bernardino de Souza também associava alguma importância ao “surto
bandeirante da Bahia [que], se não teve a estupenda floração do de S. Paulo, foi-lhe,
sem duvida, anterior”. Para ele, Francisco Dias de Ávila, senhor do Castelo da Torre —
que varou o sertão até alcançar o Maranhão, tornando-se o maior proprietário de terra
que o Brasil já teve e, portanto, um grande conquistador de territórios para o país -, é
uma “figura estupenda” de bandeirante “que bem pode figurar ao lado do maior dos
conquistadores de territórios para o Brasil, aquele épico sertanista de S. Paulo que foi
Antonio Raposo”.21
Embora não tenha sido intensa nem contínua, mais uma vez a Bahia se
destacava pela primordialidade e, também, por certa grandiosidade na ação
bandeirante. Encontrava, assim, motivos de orgulho em um tema que foi quase
completamente identificado com São Paulo. E com isso parecia mandar um recado aos
paulistas — não foram eles os únicos a promoverem a expansão do território nacional.22
Admitindo como verdadeira tais abordagens, conclui-se que a centralidade da
cidade do Salvador na administração impunha a dinâmica da vida colonial, resultando
na ascendência por ela exercida sobre toda a colônia.
A partir de uma abordagem singular — pelo que trazia de subjetivo, ou noutros
termos, pelo que demonstrava de particular ao sujeito que fala — dos eventos até aqui
apresentados, foi-se formulando uma idéia que se tornou bastante referenciada: a
noção que punha a Bahia como terra-mãe, lugar onde foi gerado o espaço-território
chamado Brasil, bem como a nação (enquanto povo livre e auto-governado) — numa
lógica reprodutiva em que de certo a função complementar do pai fosse representada
por Portugal, embora não tenha à disposição nenhuma fonte que comprove a
interpretação. Com a simples inserção de palavras como “célula mater” em frases
isoladas ou em textos mais extensos estava sintetizada a fórmula. Daí a elaboração de
um slogan do tipo: “Bahia! Amemol-a com carinho: ella é a 'cellula mater' da patria
brasileira”.23 A própria palavra célula já é bastante sugestiva, pois se trata, em
20 Breves referências sobre a relação de Teodoro Sampaio com o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
podem ser encontradas em FERREIRA, Antonio Celso, op. cit., p. 102, 122 e 142. 21 SOUZA, Bernardino José de, A Bahia: palestra sobre o Estado da Bahia em 1928, p. 27. 22 Sobre os fundamentos do mito bandeirante paulista, ver LUCA, Tania Regina de, op. cit., p. 98-126; e
FERREIRA, Antonio Celso, op. cit. Tania Regina de Luca cita em seu livro, p. 98-99, um artigo publicado na Revista do Brasil (v. 2, nº 8, ago. 1916), assinado por H. Silva, no qual o autor assinala num trecho que a informação de “que a vida da nossa nacionalidade se expandira por intermédio da Bahia e seu recôncavo, através e pelo vale do Rio São Francisco, é coisa que se deve ter em conta de novela mal contada”, e assevera que foram oriundos de São Paulo os povoadores de todos os Estados do Sul, assim como os do Norte.
23 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 6, mai./1918. Hodiernamente esta idéia permanece fortemente sedimentada, sendo uma das mais veiculadas nas campanhas oficiais de divulgação do estado. Exemplificando, no ano 2000, por conta das comemorações pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil, o
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 52
linguagem biológica, da referência a uma unidade menor de um corpo que ao se
multiplicar gera organismos maiores. A Bahia, enquanto célula mater, foi se
reproduzindo até gerar a imensa pátria Brasil — subtende-se então que antes de uma
pátria os brasileiros tiveram uma “mátria”.
Além de considerada terra-mãe, a Bahia era distinguida também como alma-
mãe, estendendo os preceitos da sua maternidade para a conformação do próprio ser
da sociedade brasileira. Era a isso que se referia outra designação bastante freqüente
na época: “alma mater”:
Centro da direcção administrativa do paiz, foco da cultura maior da colônia, berço de origem de tantas populações perdidas nesses sertões occidentaes, a Bahia é, com razão, chamada a alma-mater no Brasil. Tradições, costumes, troncos genealógicos das principaes famílias do paiz, tudo guarda a Bahia como padrão de suas glorias na formação da nacionalidade brasileira.24
Define-se a Bahia aí como aquela que conferia um caráter distintivo à
nacionalidade brasileira, tendo legado tradições e costumes, instituindo uma espécie de
anima nacional, bem como originado as principais famílias. Fazendo uso de novas
palavras, mas reiterando a idéia, acrescente-se que, sendo “alma mater, a Bahia foi a
semente abençoada que deu ao Novo Mundo essa arvore imponente, que é a Nação
Brasileira, ipê majestoso dos serros, sob cujos ramos, que ora se vão enganalando de
florescências de oiro, há de se abrigar, forte e valente, um povo que dominará no
futuro”.25
Nesse sentido, corpo e alma, as duas dimensões básicas que caracterizam tudo
que tem vida própria — em nosso caso, uma entidade comunitária, ou seja, o país com
seu território e com seu povo mais sua cultura —, na relação íntima, intrínseca e
indissolúvel que mantêm entre si, encontravam matrizes únicas na Bahia. Não era à toa
que, para alguns, ela representava uma espécie de pequeno Brasil ou mesmo a síntese
da nacionalidade: “se o Brasil [...] pelas suas riquezas, pelos seus differentes climas,
pelos seus productos, pode se chamar um pequeno mundo, a Bahia é um pequeno
Brasil”.26
Configuravam-se, nesse momento, mitos de origem, que buscavam seus elos
existenciais nos tempos mais remotos escritos na história nacional, bem como tradições
Governo do Estado da Bahia reatualizou a idéia, utilizando um slogan que foi bastante divulgado em peças publicitárias para televisão, meios impressos e em outdoors, não só no próprio Estado, mas em diversas partes do país, formulado do seguinte modo: “Bahia. O Brasil nasceu aqui”.
24 SAMPAIO, Teodoro, O Estado da Bahia, p. 5. 25 “Ave Bahia”. Polyanthea [sem referências]. 26 SILVA, D. Jeronymo Thomé da. “O 2 de Julho — a data verdadeira da independência”. Revista da Bahia,
Bahia, nº 27, 1º de fevereiro de 1923.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 53
inventadas para sustentar princípios que engrandecessem o Estado: inicialmente, como
tenho salientado até aqui, pela atribuição de funções maternais, calcada na idéia da
primordialidade; em seguida (e concomitantemente), reconhecendo sua atuação heróica
em episódios importante do passado brasileiro, conforme veremos logo mais adiante.
O uso das combinações “célula mater”, “terra mater”, “alma mater” — e mesmo
mais explicitamente, “Bahia mater” — além de outras tantas designações associadas à
palavra mater — serviam para afirmar e reafirmar, lembrar e relembrar a condição
primeira da Bahia no conjunto geral da civilização brasileira — num permanente embate
contra a possibilidade de esquecimento ou negação do caráter ascendente da sua
autoridade. Parece-me que a determinação da maternidade baiana para a pátria
brasileira pode ser, por um lado, interpretada como um apelo de amor ao lugar,
conforme se verifica na frase supra citada e, por outro lado, tomada como uma
exigência de reconhecimento e respeito por ela merecidos.27 (Na próxima parte deste
estudo, será possível compreender com maior clareza o por que dessa exigência. Por
ora, diga-se apenas que nossos sujeitos liam a “história” a partir dos problemas que os
afligiam no seu tempo, e estes, segundo a percepção deles, não eram poucos).
Ainda em proximidade com o tema da maternidade baiana, uma coisa bastante
singular diz respeito ao Estado ser considerado a “terra de Catharina Paraguassú”.28
Avançando na subjetividade desse esquema simbólico, se quisermos pensar uma figura
feminina representativa de mãe para os Brasileiros, a índia Catarina talvez pudesse
cumprir bem essa função. Batizada no catolicismo durante viagem a Europa e tendo
desposado Diogo Álvares Correia, o Caramuru, gerou uma enorme descendência no
primeiro século da colonização, sendo uma das precursoras da mestiçagem antes
mesmo do estabelecimento do governo-geral na Capitania da Bahia de Todos os Santos.
Já o português Diogo Álvares, náufrago que passou a viver entre os índios tupinambás
alguns anos após a data oficial do descobrimento, representaria o ancestral paterno do
povo.29
Embora tenha dado ênfase, até aqui, nos acontecimentos coloniais para
caracterizar o surgimento do princípio da maternidade, não se deve concluir que em
outros momentos não a vejamos se manifestar. Assim, veremos a descrição de
situações, na fase seguinte (o Império), em que a Bahia esteve, segundo os discursos
de suas elites, no desempenho da sua velha função, fosse por demonstrar
27 Todos esses epítetos foram citados na segunda página do presente capítulo, excetuando “Bahia mater”,
citado por SOUZA, Bernardino de, “Bahia em la historia de la pátria”. 28 LEMOS, Adhemar. “Da Bahia. Livros e Bibliotecas”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 9, ago./1918. 29 Sobre Catarina Paraguassu, ver SABINO, D. Ignez, Mulheres Illustres do Brasil, Florianópolis, 1996, p. 1-
7. Esta obra é uma edição fac-similar do livro original publicado em 1899. Ver também, AZEVEDO, Thales de. Povoamento da Cidade do Salvador, Salvador, Editora Itapuã, 1969, p. 94-115. Foi pouco mais de dez anos após a viagem de Pedro Álvares Cabral que Diogo Álvares passou a habitar nas terras da Bahia, em meio aos tupinambás.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 54
primordialidade, constituindo-se em fonte originária de novas idéias ou realidades, fosse
pela atitude protetora para com a nação em momentos de risco.
Novas primordialidades baianas: os ideais republicanos
Os homens que se dedicavam ao estudo da história da Bahia, sistematicamente,
descobriam novos episódios em que podiam acentuar alguma proeminência da mesma,
fosse pela amplitude do denodo com que se entregava à causa, fosse pela originalidade,
fosse pela maior importância em comparação a ocorrências similares, fosse pelas
grandiosas proporções que os acontecimentos assumiam com a presença dela, ou ainda
pelo pioneirismo.
Braz do Amaral foi um dos poucos que procuravam aprofundar o conhecimento
histórico com base na pesquisa sistemática aos documentos. Baseado nessa premissa,
menciona ainda outro episódio sucedido na era colonial: o movimento hoje conhecido
como Revolução dos Alfaiates, Conjuração Baiana ou, mesmo, Conspiração dos Búzios,
ocorrido em 1798 e que, nas décadas iniciais do século XX, permanecia, assim
aparenta, praticamente ignorado. A menção a este movimento era justificada em razão
de Amaral considerá-lo mais importante que a Inconfidência Mineira. Num texto em que
comentava os antecedentes da Independência, condição na qual era colocado o caso
mineiro, argumentava:
[...] já tinha havido na Bahia uma aspiração revolucionária que se traduziu em formal tentativa de rebeldia contra o poder colonial. Esta inconfidência, logo abafada na morte, foi muito mais importante do que a de Tiradentes, porque a constituíram elementos exclusivamente populares. Ella não é fallada como a de Minas, porque na Bahia não se dá muita attenção, nem grande apreço às cousas da terra. Foi esta conspiração a de João de Deus, em 1799, no período em que governou a Bahia D. Fernando José de Portugal.30
Note-se que não designa o episódio por um dos nomes que se utiliza hoje para
reconhecê-lo. Além disso, refere-se imprecisamente ao ano da sua ocorrência, talvez
confundindo o momento da punição aos envolvidos (1799) com o da eclosão (1798), ou,
noutra hipótese, talvez tivesse se referindo às devassas que se estenderam ao ano de
1799. A “conspiração de João de Deus” (ou Revolta dos Alfaiates ou Conjuração Baiana)
foi uma das primeiras, em ordem de ocorrência, e, pelo programa que propunha, uma
das mais intensas manifestações do anseio de liberdade vistas no Brasil. Ela permitiria 30 AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre Finanças da Bahia..., p. 63. Em 1922, ano de que
data a citação, o autor talvez estivesse iniciando os seus estudos sobre o movimento dos alfaiates. Em 1926, seria publicado A Conspiração Republicana da Bahia de 1798, a partir de uma conferência realizada no Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, na forma de livreto com 70 páginas.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 55
que a Bahia pudesse evocar com maior ênfase, se assim o desejasse, uma tradição na
luta em prol da independência desde há muito tempo — princípio reclamado, dentre
poucos, por Braz do Amaral.31
E para o lamento do próprio historiador, faz uma observação relevante a respeito
do pouco prestígio histórico de que desfrutava o acontecimento, explicando-o como uma
conseqüência do descaso dos baianos para com suas próprias coisas. No entanto, tenho
para mim que isso era fruto de um processo de esquecimento, diria, intencional,
iniciado lá no século XIX, em razão de ter sido um movimento impulsionado por
lideranças e participantes originários dos segmentos populares — aspecto este em que
Amaral reconhece a maior importância do mesmo em comparação à Conjuração
Mineira. Foram negros e mestiços, escravos e libertos muitos dos principais atores deste
movimento, quando as glórias históricas da Bahia foram conduzidas pelos melhores
segmentos das elites, predominantemente brancas (e muito ocasionalmente mestiça) e
bem situadas socialmente. Talvez fosse impensável admitir o papel de lideranças
positivas a tais personagens, mas, sobretudo, talvez fosse inadmissível tolerar, em uma
terra com grande predomínio de negros e mestiços na população, o exemplo de
insubordinação política e social que os seus participantes representavam, ao questionar
as hierarquias sociais e raciais.32 Esse, entretanto, é apenas um dentre os muitos
esquecimentos observados nas narrativas sobre os “Tempos de Glória”.
31 Além do indicado na nota anterior, Braz do Amaral insistiu, em outros escritos, em apontar a Conspiração
dos Alfaiates como um importante antecedente da independência, colocando-a ao lado da Conjuração Mineira (1789) e da Confederação do Equador (1817). Ver, por exemplo, AMARAL, Braz do, Ação da Bahia na Obra da Independencia Nacional, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1923.
32 Em termo de esclarecimentos, os autos da devassa do movimento de 1798 foram descobertos (ou redescobertos) na década de 1910, e os primeiros escritos sobre o tema somente foram publicados na década seguinte, decorrendo daí uma das possíveis razões para uma certa dificuldade de sua penetração no rol dos grandes fatos históricos ocorridos na Bahia. Ver sobre esta questão, TAVARES, LUÍS Henrique Dias. “Algumas questões ainda não resolvidas na história da sedição de 1798 na Bahia”. In Da Sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia. Salvador, EDUFBA; Campinas, UNESP, 2003, p. 22-52. De qualquer modo, mesmo nas décadas subseqüentes, ainda que tenham surgido alguns estudos a seu respeito, a Revolução dos Alfaiates nunca mereceu a importância devida dentro da historiografia baiana e brasileira, a exemplo do que ocorreu com a Inconfidência Mineira. Não tenho dúvida de que o grande envolvimento de negros e mestiços no acontecimento era encarado como um fator que prejudicava a sua memória, isto num ambiente político, social e cultural impregnado de idéias racistas, eugenistas e elitistas. Nos trabalhos históricos das primeiras décadas do século XX, há uma quase completa ausência de negros ou dos fatos em que tenham tomado participação significativa. Nos trabalhos de então, eles normalmente apareciam apenas no papel de escravos. Em discurso publicado na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 41, p. 12-24, 1915, Braz do Amaral chamou a atenção para a necessidade de se estudar, dentre outras muitas temáticas, “os elementos ethnicos”. Nesse mesmo número, publicou a “Contribuição para o estudo das questões de que trata a these 6ª da Secção de Historia das Explorações Archeologicas e Ethnographicas e que tem por enunciado: «As tribus negras importadas. Estudo ethnographico, sua distibuição regional no Brasil: os grandes mercados de escravos»”, p. 39-72. Antes de Amaral, poucos estudos foram publicados, entre eles os artigos de FERREIRA, José Carlos. “As Insurreições dos africanos na Bahia”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 29, p. 69-94, 1903, referente ao período colonial e que qualificava os levantes de escravos como “funestos acontecimentos”; e de IGNACE, Etienne. “A Revolta dos Malês”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 33, 129-149, 1907, francês, professor no Seminário Arquiepiscopal da Bahia, que, fazendo uma abordagem descritiva do acontecimento, concluiu ter sido justa a repressão desencadeada contra o movimento, pelo que representava o “perigo muçulmano”, o qual definiu como “diabólico”. O elemento negro foi trabalhado também pelo professor da Faculdade de Medicina da Bahia Nina Rodrigues, com suas observações racistas, entre o final do século XIX e início do século XX. E, por fim, fazendo um estudo numa perspectiva mais favorável, Manoel Querino, homem negro, que publicou diversos trabalhos, tais como: “A raça africana e os
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 56
Na defesa dos ideais federalistas a primordialidade da Bahia esteve mais uma
vez presente, ressaltando o seu papel de mãe (geratriz) de causas importantes. Para
Braz do Amaral, o Rio Grande do Sul, como se reconhece tradicionalmente, não deveria
merecer o título de sua primeira patrocinadora, pois, “antes que no Rio Grande do Sul
rebentasse a campanha que foi o expoente da idea da liberdade provincial, se levantou
aqui [na Bahia] o principio da federação das provincias que somente vem a se realizar
sessenta annos depois, quando foi proclamada a republica”.33
As pretensões liberais envolvidas no federalismo, que propunha maior autonomia
para as províncias pela descentralização do poder imperial, viram eclodir uma série
sucessiva de movimentos em Salvador e nas cidades do Recôncavo, entre os anos de
1831 e 1833. Braz do Amaral cita quatro desses movimentos: o primeiro, ocorrido em
outubro de 1831, em Salvador, foi logo debelado; o segundo eclodiu nas vilas vizinhas
de Cachoeira e São Felix, em fevereiro de 1832, chegando a instituir a federação da
província da Bahia e um governo provisório, mas após alguns dias depois foi abafado; o
terceiro, em março de 1833, ocorreu em Salvador, durando não mais do que algumas
horas; o quarto e último irrompeu em final de abril de 1833, no Forte do Mar, instalado
em meio às águas da Bahia de Todos os Santos, em Salvador, contando com a
participação de aprisionados envolvidos nas tentativas anteriores e durando as lutas
três dias.34
Embora todos eles tivessem malogrado, sendo contidos em poucos dias,
diferentemente da Revolta Farroupilha no Rio Grande do Sul que durou dez anos (1835-
1845), mantinham sua importância pelo caráter de antecedência que assumiam. Esse
exemplo reafirmava, mais uma vez, as presunções do pioneirismo e da imprescibilidade
dos baianos em episódios marcantes. Como dizia Braz do Amaral, “notando-se esse
facto, de haver a Bahia precedido todas as outras províncias na luta pela causa da
federação dellas, vê-se, como pode affirmar, sem medo de erro, [permitam-me a
repetição de uma pequena fala, utilizada algumas páginas atrás] que neste, paiz nunca
se fez coisa digna de ser referida à posteridade que não fosse levada à effeito pelos
bahianos, ou com o concurso positivo delles”.35
seus costumes na Bahia”, publicado no anais do 5º. Congresso Brasileiro de Geografia (1916); “O colono preto como fator da civilização brasileira”, apresentado no 6º. Congresso Brasileiro de Geografia e publicado em separata (1918); “Os homens de cor preta na História”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 48, p. 353-363, 1923. Alguns dos trabalhos de Querino foram reunidos por Artur Ramos, em 1938, e publicados conjuntamente na forma de livro sob o título de Costumes Africanos no Brasil.
33 AMARAL, Braz do. História da Bahia: do Império a Republica. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1923, p. 87.
34 AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre Finanças da Bahia..., p. 23-59. Ver ainda a “A Revolução Federalista na Bahia em 1832”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 11, out./1918.
35 AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre Finanças da Bahia..., p. 28.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 57
De outro modo, as referências aos movimentos federalistas eram significativas
por representarem o germe de uma idéia que, algumas décadas depois, seria
firmemente defendida por Rui Barbosa e implementada com a república. Estar-se-ia,
então, produzindo aí uma sutil vinculação da Bahia com o movimento que resultou no
estabelecimento do novo regime? Se não se envolveu mais diretamente nos eventos —
mesmo porque, até que a historiografia prove o contrário, foi bastante moderada a
dimensão da militância pela causa na ainda província —, ela teve sua parcela de
participação. Pelo menos quando se assumia uma perspectiva genealógica, ficava
notório, segundo os argumentos de alguns, como se deu a contribuição ao ideal
republicano. Citando a defesa do federalismo e aludindo a um novo episódio ocorrido na
Bahia, Antonio Moniz expressou uma opinião ratificadora da hipótese aventada:
Poucos mezes antes da queda do Império foram bahianos os que, no Congresso do Partido Liberal, reunido na Corte para lançar as bases da revisão do seu velho programma, arvoraram a bandeira do federalismo como único recurso de salvação para a monarchia agonisante e de garantia para a integridade do territorio nacional. Não foi, outrossim, pequena a contribuição da Bahia à proclamação da Republica. O movimento revolucionário que passou à historia com o nome de “Sabinada”, porque se chamava Sabino o seu intrépido chefe, foi de caracter francamente republicano.36
É difícil precisar a importância atribuída à Sabinada nas décadas de 1910 e 1920,
pois ela não foi dos eventos históricos mais comentados no material a que tive acesso,
embora em um deles, a Revista Cívica, a data de sua ocorrência, o 7 de Novembro,
estivesse assinalada como feriado oficial do Estado da Bahia.37
“A heroína dos seios titânicos”
Segundo as versões históricas das elites, além dos predicados de mãe, a Bahia
se caracterizara pela heroicidade com que se movera nos acontecimentos que
colocaram em risco a existência do Brasil, sobretudo nas lutas e guerras em que se
envolveu — não teria sido à toa que lhe chamaram da “heroína dos seios titânicos”. E
em se tratando de eventos bélicos, a Bahia assumia uma dupla função: tornava-se
heroína sem deixar de cumprir o papel de mãe, fazendo-se protetora e sofrendo com a
sorte de todos os seus filhos. Por isso, em busca de uma fórmula que sintetize esses
36 MONIZ, Antonio. “A Bahia e o seu Papel Histórico na Evolução Política do Brazil”. Revista da Bahia, Bahia,
nº 21, 15 de outubro de 1922. Até o final da década de 1930, a Sabinada não era um acontecimento muito citado entre as glórias da Bahia. A opinião de Antonio Moniz é a primeira referência que localizei cuja interpretação adquiriu sentido positivo para os baianos. Ver o perfil biográfico de Antonio Moniz no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Aragão”).
37 Revista Cívica, Bahia, nº 04, 15 de novembro de 1910.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 58
dois princípios, talvez não houvesse nenhuma inadequação em defini-la como sendo a
mater heróica.
Na própria época da Colônia, já se podia identificar o despertar dessa veia de
heroína, em um episódio que Braz do Amaral define como sendo o “primeiro feito épico
que se pode citar da historia do Brasil”, qual seja, a invasão dos holandeses de 1624 e a
luta da Bahia para repeli-los, movimentação que teria permitido a preservação do
território brasileiro em mãos portuguesas e distante, portanto, do domínio estrangeiro.
Bastante interessante é a breve — visto não se alongar por mais do que um parágrafo
— mas envolvente abordagem que Amaral fez do episódio:
Desde o principio da formação deste paiz foi a Bahia quem o defendeu, attraindo os inimigos que tendiam a desagregal-o, como naquelle primeiro feito épico que se pode citar da historia do Brasil, quando se viu nesta parte da América, pela primeira vez, uma grande esquadra inimiga, naquelle anno terrível de 1624, em que sobre nós cahiu o flagello da guerra, com todo o peso das armas de Hollanda, e em que, nas águas deste mar da Bahia, foi desfraldado o pavilhão cor de sangue, mostrando um braço empunhado uma espada nua, temível insígnia da batalha dos flamengos, e sobre esta povoação se desencadeou a tempestade das boccas de fogo da sua poderosa frota.38
Ainda que Amaral não tenha comentado a respeito, suas colocações atiçam em
nossa lembrança a experiência histórica dos pernambucanos que, vítimas da mesma
desdita, não conseguiram defender o território com igual eficiência, submentendo-se ao
jugo holandês por muitos anos (1630-1654). Será que não teve a intenção de provocar
os pernambucanos, contra quem a Bahia disputava a primazia no Norte? O que se
destaca claramente, na percepção do historiador, é a certeza de que a Bahia atraiu os
inimigos e se banhou em sangue para garantir a integridade brasileira, exprimindo com
isso uma idéia de sacrifício, caracterizada como uma das mais significativas formas de
participação do atual Estado na vida nacional. Diria Amaral:
Não sei como se possa occultar que em todos dias de soffrimento e de miséria, onde quer que tenha alguma vez cahido sobre o Brasil a cólera de um inimigo, ou a desgraça de uma fome, ou de uma peste, não tivesse elle sempre contado com o apoio do braço ou o do carinho dos
bahianos.39
E se assim o foi, dentre todas as passagens da história brasileira que contaram
com a intervenção decisiva da Bahia, as mais aclamadas pelos próprios baianos foram,
sem qualquer sombra de dúvida, os acontecimentos relacionados à Independência, que
se constituiu, de fato, em evento fundador da nação brasileira — sendo deste modo o
38 AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre Finanças da Bahia..., p. 28. 39 Idem, ibidem.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 59
segundo princípio de tudo, o segundo nascimento do Brasil. As leituras que enxergavam
a “ação da Bahia na obra da independência nacional”, tomando emprestado o título de
um escrito de Braz do Amaral, como a força verdadeiramente promotora da
emancipação, faziam parte do senso comum nas primeiras décadas do século XX, mas
fique registrado que tal idéia já estava sedimentada desde o século XIX,40 quiçá desde o
ano de 1823. O que se observava era a maior ou menor recorrência a essa crença ao
longo dos anos — e, pelo que nos parece, a intensidade dela ganhou grande vulto em
meio às elites entre meados da década de 1910 e o final da década de 1920.
Se o Sete de Setembro de 1822 é citado, pela história oficial, como o marco da
Independência do Brasil, o Dois de Julho de 1823 marca o acontecimento que ficou
gravado na história do estado como a Independência da Bahia. Bastante expressivo era
(e ainda o é) o simbolismo implícito na data, e mais firme era (e ainda o é) a fidelidade
de muitos baianos a ela, capazes de produzir sentimentos arrebatadoramente ufanos:
Dous de Julho de 1823! Data gloriosa e inesquecível para a Bahia! Pharol flammisangrento, cujo foco desepende raios brilhantes, reflexos dos feitos gloriosos dos nossos antepassados, irisados de scintilações rubras, que relembrando para todo o sempre o sangue rutilante, que espadanou pelo peito generoso e patriótico dos grandes lutadores pela sacrossanta causa da liberdade do Brasil do jugo opressor dos mantenedores de nossa escravisação.41
O historiador João Reis afirma que “a Bahia tem a personalidade de um país e o
Dois de Julho é seu principal mito de origem”.42 Essa frase breve define de modo muito
preciso a significação da data. Como diziam os sujeitos das primeiras décadas do século
XX, “não sabemos se há na Bahia, nas páginas da sua historia, uma data mais fulgente
do que a de — 2 de Julho de 1823”, afinal “ella foi escripta com o sangue precioso dos
nossos avós [...]”.43 Natural, portanto, que em se tratando de destacar a Bahia na
história, abundassem as referências ao mais glorioso dos eventos em que tomara parte
e que ofuscava qualquer outro.
Nas lutas pela independência, os espíritos da maternidade e da heroicidade se
amalgamaram para coroar a Bahia nas funções que melhor traduziam, segundo o ponto
de vista de nossos sujeitos, seu desempenho na história pátria. E, nesse momento,
deve ter sido, mais do que nunca, a mater heróica. As narrativas sobre o assunto
buscavam reforçar sempre o papel decisivo, valoroso, doloroso, sacrificante que a Bahia
40 Ver ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit. 41 “2 de Julho”. Revista A Voz do Povo, Bahia, nº 1, 02 de Julho de 1920. 42 REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na Independência da Bahia. In REIS, João
José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 79.
43 Revista Cívica, Bahia, nº 12, 02 de julho 1911.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 60
tivera. Em uma das inúmeras considerações sobre o tema produzidas no período,
registrou-se o seguinte na revista Bahia Ilustrada:
Como se sabe, a Bahia teve a parte mais gloriosa e mais decisiva, de lutas cruentas, e de heroismo sem par, nas campanhas nortistas e sanguinolentas pela consolidação da Independencia Brasileira. Já estava concluido o movimento de emancipação no Sul, e a Bahia era ainda uma luta accêsa, armada, terrivel, quasi ininterrupta contra os elementos revolucionarios da Metropole que alli preponderavam, pela anarchia, contra a nossa soberania de povo autonomo. [...] Com effeito, em muitas provincias ou partes do Brasil, no Rio, em S. Paulo, em Minas Gerais, em Pernambuco, Pará, Maranhão, houve agitação, choques, conciliabulos, motins, perseguições e represalias, mas em parte nenhuma do Brasil tiveram as lutas pela Independencia a feição de luta armada, o aspecto e o caracter de uma guerra separatista, levada a feliz e glorioso termino depois de numerosas batalhas terra marique [por terra e por mar]. Este grande sacrificio de sangue foi reservado à Bahia, que com elle sellou a conquista definitiva da nossa Independencia [...].44
A origem do trecho transcrito foi uma matéria que se orientou numa entrevista
concedida pelo escritor Xavier Marques45 à revista, no ano de 1921, num momento em
que ocupava a função de deputado pela Bahia. O primeiro parágrafo traz uma
explicação sobre assunto da entrevista, enquanto o seguinte reproduz uma fala do
escritor. A estrutura do texto pode gerar algumas dúvidas, se não for realizada uma
leitura bastante cuidadosa do mesmo.
Pelo que se lê em inúmeros textos da época, produzidos nas décadas de 1910 e
1920, a Bahia era apontada como o único lugar em que o movimento assumira feição
de guerra. E não foi Braz do Amaral o único a difundir tal “verdade”, as falas que a
repetiam são encontradas em abundância. Para acentuar a questão, muito
freqüentemente se comparava a forma como se processou a independência no Sul e no
Norte do Brasil, sendo que, nesta parte do país, teria cabido à Bahia o maior destaque.
Miguel Calmon, em conferência no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em
novembro de 1922, anunciava: “a Independência que se proclamou no sul do paiz entre
justas expansões de enthusiasmo, como resultado de natural evolução, chegada a
termo feliz depois de passos sucessivos [...], recebeu na Bahia o baptismo de sangue,
que a transformou na causa sagrada de todos os brasileiros”. E prosseguindo no seu
discurso, afirmava mais: “foi na Bahia, ‘do Brasil a mãe primeira’, na phrase do poeta,
que os fados destinaram a ser a mater dolorosa, de cujos sacrifícios e dores havia de
nascer integra e immortal a nossa grande pátria”.46 Sangue, sacrifício e dor — eis
44 “A Bahia no Centenario da Independência”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 38, mai./1921. 45 Ver o perfil biográfico de Xavier Marques no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Marques”). 46ALMEIDA, Miguel Calmon du Pin e. “A Batalha de Pirajá (Conferência no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, aos 8 de Novembro de 1922)”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, p. p. 223-262, nº 49, 192, p. 223. Ver o perfil biográfico de Miguel Calmon du Pin e Almeida no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Almeida”).
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 61
algumas palavras centrais do discurso de Calmon, as quais introduzem certos aspectos
dramáticos que teriam caracterizado o acontecimento.
Recorro mais uma vez a Braz do Amaral, que, em discurso profundamente
irônico e ressentido, extremava os contrastes com relação à Bahia, desqualificando e,
pode-se dizer, ridicularizando os modos como os episódios da Independência
transcorreram no Sul. Utilizava-se de um subterfúgio comparativo que parecia tornar
imprescindível realçar as glórias de um com base no menosprezo de outros:
No Rio de Janeiro e em S.Paulo a independência se fez no theatro ou no curso pacifico de uma viagem de principe, trazendo os protagonistas legendas no braço e proferindo o povo gritos de enthusiasmo, o que inspirou ao presidente do Instituto da Ordem dos Advogados, [...] em um discurso notavel, a expressão verdadeira e feliz de que esta havia sido a parte dramática da independência. Realmente, um dos episódios citados como de mais effeito no scenario da Independência nacional é o grito do Ypiranga, proferido com o exagerado gesto que as gravuras representam, e o dito do Fico é outro episódio, este pronunciado no Rio, em resposta preparada a um discurso, seguindo-se os papeis, decretos, proclamações e promessas que os governos recentes sentem necessidade de produzir.47
Ou seja, Rio de Janeiro e São Paulo — dois importantes centros políticos e
econômicos brasileiros na República — colhiam “fructos sem esforço”, enquanto o povo
baiano, no qual se encontravam “pobres e ricos, orgulhosos e humildes, devia, pelo
martyrio de uma província, produzir a victoria da causa liberal para todo um povo”, com
“tantos prantos das mulheres, e tantos golpes, ferimentos e mortes entre os homens”.48
Outro trecho interessante, localizado na Revista Cívica, datada de 7 de setembro
de 1923, aproveita inclusive para reiterar a idéia da condição baiana de “primogênita de
Cabral”, além de listar alguns fatos marcantes que antecederam a independência,
reafirma a questão:
O sul era alacridade por aquelles tempos de Setembro de 1822. Mas o norte, a Bahia, a primogênita de Cabral, donde partiu todo o progresso para o regímen que foi elevando as classes; donde partiu a abertura dos portos para as nações amigas, onde Picanço plantou a semente que grelou, elevou-se, florou e fructificou-se em pomo santo para a saúde, não tomou parte nas folganças de S. Paulo e Rio de Janeiro. [...] A Bahia não dançava ao som das charangas alegres dos bailados populares. A Bahia estava em arma. Luctara denodamente pela sua soberania, que era de todo o Paiz. Enfrentava as hostes aguerridas, com um punhado de homens, que, em sua maioria, não conheciam os preceitos militares, não foram treinados para o combate. Camponezes, índios, artistas ou praeiros de Iataparica, todos se uniam na mesma idea, se inflammavam no mesmo sentimento, resistindo, avançando, indo de victoria em victoria, indo até a
47 AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre Finanças da Bahia..., p. 62. Os grifos são do
original. 48 Idem, ibidem, p. 62.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 62
última estrophe do sagrado hymno, que foi cantado em 2 de Julho de 1823. Foi a custo do sangue bahiano que a nação entrou na posse do seu direito, de viver por si — sem a tuturia de leis deshumanas.49
Afrânio Peixoto — à época profissional respeitado na sua área de formação, a
medicina, além de renomado educador e escritor dos mais lidos — era outro que
reforçava as profundas diferenças entre o ocorrido no norte e no sul:
O momento mesmo em que ides apagar as luzes da festa internacional com que celebrastes a Independência, chegamos nós... A Bahia vem ao centenário da nossa emancipação política com anno quasi de atraso... É que vós fizestes uma evolução; nós tivemos de fazer uma revolução. No Rio, em S. Paulo, em Minas foi um movimento do Governo conta a Metrópole distante; o Norte era então o melhor do Brasil, o que os Portuguezes mais guardavam: tivemos de os combater, na nossa tradicional fidelidade. Aqui houve proclamação e paradas, flores e fitas, applausos e hymnos... na Bahia sitio e trincheiras, fome e peste, sangue e morticínio... aqui a adhesão; lá a guerra... Perdoe-nos se por isso chegamos fora da hora. Antes disso nos foi preciso lutar e vencer... Também, vos aseguramos, só depois dessa victoria que vos offerecemos, desse 2 de Julho de 1823, é que o Brasil é realmente livre.50
O trecho fez parte de um discurso pronunciado por Peixoto em 2 de Julho 1923,
no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sediado na capital federal — mesmo local
em que Miguel Calmon pronunciara uma conferência alguns meses antes, como citei
acima, algo que é bastante significativo por revelar a tentativa de difusão do discurso
em ambiente que representa o centro da vida política nacional, que reunia, portanto,
brasileiros vindos das mais diversas partes do país. Mas, voltando a Peixoto, o primeiro
parágrafo da citação revela que ele falava a partir das comemorações do centenário da
Independência, em 7 de Setembro de 1922, que fora bastante festejado no Rio de
Janeiro e em São Paulo. Reatualizando o passado e ritualizando o seu culto, apresenta a
Bahia chegando atrasada na comemoração de tão importante efeméride, que só podia
se dar com maior entusiasmo atravessados quase cem ano.51 Justificando o atraso,
Peixoto produz uma curiosa manipulação do tempo, ao tomar o seu momento presente
como se fosse uma prorrogação do passado, e o passado como se fosse a representação
das lutas de seu momento presente.
49 Revista Cívica, Bahia, nºs 46-Bis/47, 7 de Setembro de 1923. 50 PEIXOTO, Afrânio. “2 de Julho de 1923 (Conferência no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aos 2 de
Julho de 1923)”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 48, p. 107-127, 1923, p. 107. Ver o perfil biográfico de Afrânio Peixoto no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Peixoto”).
51 Sobre as comemorações do centenário da Independência no Rio de Janeiro e São Paulo, ver MOTTA, Marly Silva da, op. cit.; e FERREIRA, Antonio Celso, op. cit. Sobre a participação da Bahia nas comemorações do centenário de 7 de Setembro, não temos informações consistentes; mas sobre as comemorações do 2 de Julho, ver ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de, op. cit., P. 112-123.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 63
Fiz questão de manter a referência tanto pela intricada lógica temporal que ela
apresenta quanto pela razão de ser bastante sugestiva em termo de explicação para o
fato de a Bahia comemorar com tanta efusividade o Dois de Julho. É que, cem anos
antes, estando em luta nos dias que sucederam o Sete de Setembro, correndo o risco
de ver frustrado os seus próprios anseios de liberdade e por extensão de todo o país,
não podia participar das atividades festivas em louvor à data. Somente dez meses
depois, portanto, quase um ano após a proclamação oficial — “com o dito e o grito do
Ipiranga”, como nos diriam os sujeitos da época — puderam os baianos se regozijar do
feito. E, logo partir do ano seguinte, assim passaria a ser: os baianos sempre dedicados
a comemorar o Dois de Julho (data da Independência da Bahia) e colocando-o, no
mínimo, em pé de igualdade ao Sete de Setembro (data da Independência do Brasil), se
não fosse mesmo em patamar superior. Cem anos depois, entre 1922 e 1923, a Bahia
via-se envolvida em novos embates reais e simbólicos. Preferia, por isso, enfatizar o seu
centenário em detrimento do nacional — sem deixar, contudo, de se ausentar dos
festejos oficiais —, como que indicando, mais uma vez, estar chegando atrasada à festa
por conta de reveses que necessitava enfrentar. Essa questão dos novos embates,
agora nos tempos republicanos, sem dúvida, será melhor esclarecido na próxima parte
do trabalho. Por ora, peço a paciência do leitor para acompanhar esta narrativa.
A duplicidade de datas comemorativas da Independência ocasionava sérias
dúvidas entre os baianos a cerca de qual delas era a mais relevante: se a data baiana
devia ser reconhecida ou não como uma data nacional; e, mais explicitamente, se a
data baiana não deveria sobrepujar a data nacional, sendo admitida como o verdadeiro
e mais importante marco da Independência. Argumentos em prol desse preceito não
faltaram. Exemplificando-os, eis as tão caracteristicamente enérgicas palavras de Braz
do Amaral, na sua intransigente defesa do nome da Bahia:
A data que deve ser celebrada commemorando a independência do Brasil, para bem da honra e do decoro desta nação, deve ser assignalada pela sua primeira campanha, pelo esforço que o seu povo empenhou numa luta, entremeiada de triumphos e de revezes, na qual há lances capazes de memoração, factos de valor e de coragem, combates que se podem contar sem pejo, pois taes são as cousas nobilitantes que dão honra e gloria a um povo, o que somente se deu a 2 de Julho de 1823 [...].52
Em Braz do Amaral era notória a radicalidade da idéias, mas outros, também,
comungavam da sua a opinião, que colocava em relevo o Dois de Julho. Num típico
discurso do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Francisco Hermano Santana
colocou a questão de forma bastante semelhante:
52 AMARAL, Braz do, Ação da Bahia na Obra da Independencia Nacional.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 64
É data vera de nossa emancipação, é a mais brilhante de quantas ponteiam o pleito separatista, porque nella se escalda a rutilancia do sangue vertido, pela redempção geral. Por isso é que devemos vislumbrar no 2 de Julho, não a data regional, a ephemeride do jubilo local, restricto, porem a mais nacional, a mais geral, a mais brasileira de nossas datas, pela sua significação e relevância históricas! É por isso que do regosijo bahiano devem participar o Brasil inteiro, todos os que, nestas paragens nasceram, nellas vivem ou as amam, irmanados na commemoração do dia máximo do Brasil!53
Outros relativizariam a posição, ainda que fizesse isso ambiguamente. Segundo
se escrevia na revista A Voz do Povo, por exemplo, considerava-se que “o 2 de Julho de
1823 não deveria ser somente uma data bahiana, sendo uma data festejada por todo o
paiz, assim como o é, em França, o 14 de Julho”. Entretanto, a defesa dessa causa pela
revista vinha acompanhada de um lamento, pois aquela “grandiosa lembrança só é e
será guardada por este grande povo, cujos avós foram os heróes da luminosa jornada,
que esculpiram, nas paginas de suas historia, em caracteres impagáveis, as brilhantes
passagens, que constituem o nosso orgulho e a nossa glória”.54 O motivo para a restrita
difusão/abrangência dessa memória se localizava, talvez, no fato de “que há muito[s]
quem, fora da Bahia, ignore os feitos dos [seus] heróes”.55 Aparentemente, a revista
apenas tratava em apelar para o reconhecimento da relevância da data, não sendo
manifestada explicitamente nenhuma intenção de colocá-la em concorrência com a data
nacional.
Lemos Britto, em matéria publicada na Bahia Ilustrada, em junho de 1918, foi
mais claro em seu posicionamento, ao mostrar-se contrário à idéia do “Dois de Julho”
substituir o “Sete de Setembro”. Ele pensava que “a Bahia foi a só provincia que,
devéras, combateu pela independência”, em perfeita concordância com o juízo de tantos
outros. Entretanto, argumentava que “em todas as nações que porfiaram pela sua
liberdade [...] a data nacional da commemoração de tal conquista não foi aquella em
que se sellou a campanha com as fanfarras da victoria, sim a do dia em que um pugillo
de grandes patriotas se concertou para romper com o jugo das metrópoles, e desfechar
o raio vingador das reacções nacionalistas”. E como apoio aos seus argumentos,
apresentava os exemplos do 4 de Julho para os Estados Unidos e o 5 de Julho para a
Venezuela, que marcam a decisão do rompimento com a metrópole — a mesma
significação assumida pelo Sete de Setembro para o Brasil —, e não a coroação ou
53 SANTANA, Francisco Hermano. “Heroes e Redemptores”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, Bahia, nº 53, p. 323-339, 1927, p. 335-336. 54 “2 de Julho”. Revista A Voz do Povo, Bahia, nº 1, 02 de Julho de 1920. 55 FONSECA, Dionysio Caio. “O Passado”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 11, out./1918.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 65
consolidação do processo de emancipatório pela guerra — a significação da data
baiana.56
As considerações de Lemos Britto parece ratificar a impressão de que havia de
fato um intenso debate em torno da maior ou menor importância do Dois de Julho entre
os baianos. Mas, para ele, o mais determinante era a necessidade do reconhecimento
do feito, estabelecido na certeza de que “se a Bahia não resistisse [...], a independência
teria sido adiada para mais tarde, ou custaria ao Brasil rios de sangue”. E
complementando sua idéia, afirmava que “a Bahia aparou, pois, o golpe, em seu largo
peito”. Desta forma, considerava que “a pátria deve-lhe este serviço, cujo único premio
será o da gratidão nacional, pelo seu relevo indispensável de seus feitos na Historia da
nossa emancipação política”.57
Concorrendo ou não com o Sete de Setembro, sobrepujando-o ou não, uma coisa
era certa: a força da representação que punha os episódios da Bahia em destaque era
tão poderosa que as comemorações da Independência brasileira jamais poderiam se
encerrar, para os baianos em geral, exclusivamente naquele que foi oficializado como
dia em que se alcançou a emancipação. O Dois de Julho de 1823 (Independência da
Bahia) e outras datas, também expressivas, deveriam ser memoradas, a exemplo do 25
de junho de 1822 (aclamação, na cidade de Cachoeira, de D. Pedro de Alcântara por
Regente e Perpétuo defensor e protetor do Brasil), apontada como antecedente inicial
da campanha da independência. Pelo que patenteavam de heroísmo e patriotismo, tais
datas mereciam ser tratadas com a devida importância, tanto quanto aquela consagrada
nos anais históricos:
O seu pujante 2 de julho e o seu fulgurante 25 de junho são as duas inscripções mais bellas, pela potencialidade do denodo e patriotismo, que se podem gravar a ouro, no pedestal da estatua, que se erga em 1922, à Independência Brasileira. Esses dois immensos feitos da Bahia heroica, da Bahia triumphante, da Bahia tradicional, obrigam, moralmente, a Bahia de hoje a despedir os mesmos fulgores de sua heroicidade no passado.58
56 BRITTO, Lemos. “O papel da Bahia na Independência Nacional”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 8,
jul./1918. Ver o perfil biográfico de Lemos Britto no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Britto”). 57 Idem, ibidem. 58 A. de C. “Chronica”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 37, abr./1921. Além destas datas (o 25 de Junho
de 1822 e 2 de Julho de 1823), havia outras tantas associadas às vaidades heróicas locais de vilas ou municípios baianos. Um bom exemplo era o 7 de Janeiro de 1823, quando a esquadra naval portuguesa desencadeou um ataque a Itaparica, a famosa ilha na entrada da baía de Todos os Santos, visando apossar-se dela. Fora repelida, no entanto, pelos nacionais. A vitória obtida nesta data ficou marcada como a Independência de Itaparica, passando a ser comemorada todos os anos. A respeito do seu significado, o escritor Xavier Marques, um autêntico filho da Ilha, emitiu uma opinião, e viu no acontecimento a realização de uma “obra hercúlea [...], preparatória do 2 de Julho e, como esta, complementar da de 7 de Setembro”. Ver, MARQUES, Xavier. “Memoria do 7 de Janeiro de 1823”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 20-21, jul.-ago./1919. Sobre a importância da data, ver, também, “7 de Setembro”. Revista A Voz do Povo, Bahia, nº 1, 02 de Julho de 1920; para uma breve descrição dos fatos ocorridos na data, ver AMARAL, Braz do. “A Bahia na Independência Nacional”. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do Centenário, p. 3-10, 2 de julho de 1923.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 66
É interessante notar a proposta de reatualização da ação heróica. Tratava-se, de
algum modo, da operação de um “mito” em prol da afirmação de uma identidade
baiana, além de servir como exortação ao retorno a uma condição gloriosa. Vale
compreender, no entanto, o significado das duas datas mencionadas, conhecendo um
pouco, obviamente, os fatos e desdobramentos que nelas se assinalaram.
O dia 25 de junho de 1822 teria marcado o início da resistência à autoridade
portuguesa, mas é necessário voltar alguns meses para entendê-lo melhor. Com a
Revolução Liberal do Porto de 1820, os baianos designaram uma junta governativa para
cuidar da administração em substituição ao antigo vice-rei. Em janeiro de 1822, o
brigadeiro português Ignácio Luiz Madeira de Mello foi designado pelas Cortes, sediada
em Lisboa, governador das Armas para a Bahia, em substituição ao brasileiro Manoel
Pedro de Freitas Guimarães. Esse ato significou uma tentativa portuguesa de
restabelecer os laços coloniais em sua plenitude, afrouxados desde a chegada da família
real ao Brasil em 1808. A resistência ao brigadeiro e o desencadeamento de uma série
de incidentes entre brasileiros e portugueses obrigaram a Madeira de Mello ao uso da
força para fazer valer sua autoridade, ocupando militarmente Salvador. Sentido-se
enfraquecidos, muitos habitantes da cidade foram se refugiar no Recôncavo,
especialmente os “homens bons”, passando a criar núcleos de resistência aos
portugueses. Em 25 de Junho de 1822, na cidade de Cachoeira, a Câmara fez a
aclamação do príncipe Pedro de Alcântara como Regente e Perpétuo Defensor e Protetor
do Reino do Brasil, iniciando um movimento que se estendeu a outras cidades do
Recôncavo nos dias seguintes e estimulou o agrupamento de força para resistir à
hostilidade militar de Madeira de Melo. Nesse mesmo dia, Cachoeira foi bombardeada
por uma embarcação militar portuguesa, resistindo “bravamente”.59
Braz do Amaral, traçando uma abordagem comparativa, indica que, “conferindo
as datas, se verifica ter sido o grito do Ypiranga em 7 de Setembro, quando já antes
disto se havia dado começo às hostilidades em Cachoeira, no dia 25 de Junho, e se
havia já constituído também na Bahia um governo provisório do Recôncavo, em 17 de
Agosto, para dirigir a resistência contra as tropas portuguezas, governo composto de
deputados eleitos pelas villas sublevadas da província”.60 Ele define, portanto, a partir
de uma perspectiva cronológica, a anterioridade da recusa ao jugo português por parte
do povo baiano, em relação à proclamação da Independência pelo Príncipe D. Pedro.
Nesse sentido, é como se dissesse que, embora não tivesse proclamado o solene grito
de “Independência ou Morte”, a Bahia já seguia a risca o que ele determinava — e isso
mais de dois meses antes dele ser de fato proferido. Em junho de 1822, a Bahia já
59 Ver TAVARES, Luís Henrique Dias, História da Bahia, p. 229-242; e ARAÚJO, Ubiratan Castro, A Guerra da
Bahia. Salvador, CEAO / UFBA, 2001. 60 AMARAL, Braz do, Ação da Bahia na Obra da Independencia Nacional, p. 6.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 67
havia se declarado autônoma da metrópole portuguesa, elevando D. Pedro a defensor e
regente do Brasil, e, desde então, expunha a vida de milhares de homens na luta pela
concretização da causa emancipacionista. E estes fatos os baianos queriam ressaltar
muito, para o bem do que eles consideravam ser a verdade histórica. Na lógica dos
apologistas da Independência da Bahia, mais uma vez revelava-se a primazia da região
nos principais eventos da história nacional.
O “Dois de Julho” é um pouco mais fácil de explicar, pois representa a
culminância do processo. Marcava a derrota final dos portugueses, ou, invertendo a
ordem para melhor colocar a questão, significava a vitória dos baianos sobre os
portugueses. “Foi nesse memorável dia, com a entrada do exército libertador na cidade,
que ficou consolidada a Independência do Brasil”. Coube à Bahia, portanto, “a terra de
titânicos seios, sempre nobre, sempre forte e heróica, a ventura de consolidar o feito de
7 de Setembro”.61
Nas considerações produzidas no período, o norte era destacado como o pólo
mais rico do Brasil, sendo que a província baiana ocupava posição estratégica,62 tanto
por exercer preponderância econômica, quanto por estar localizada no centro do país, a
meio caminho das distâncias que cobriam do norte ao sul. Manter o controle da Bahia
significaria para os portugueses suas melhores chances de permanecer exercendo o
poder colonial sobre todo o Brasil, ou, na pior das hipóteses, assegurar a posse sobre a
porção mais rica do país no caso da impossibilidade de conservar a unidade da colônia.
Por conta de tais condicionantes, “a evacuação da Bahia pelas tropas portuguesas, em 2
de Julho de 1823, é [considerado] o facto militar de maior importância na
Independência”. Caso fosse “perdida a Bahia, devia ficar, como ficou, irremissivelmente
perdido este domínio” [colonial português sobre o Brasil].63
E assim, no amanhecer do dia Dois de Julho de 1823, a população baiana,
tomada de profundo júbilo, fortemente comovida, saiu às ruas para comemorar a
definitiva retirada dos portugueses e saudar a entrada das tropas libertadoras na cidade
do Salvador reconquistada.
Se nos apegarmos à potência e constância dos argumentos apresentados até
aqui, talvez sejamos levados a imaginar que a Bahia havia sido o único lugar em que
ocorreram confrontos entre portugueses e brasileiros, o que já foi desmentido em
citação acima da revista Bahia Ilustrada — conquanto para ela somente aí os confrontos
tenham assumido o caráter de lutas sangrentas; ao passo que nos outros lugares, como
61 PIN, Alan, Revista Cívica, Bahia, nº 46, 02 de julho 1923. 62 PEIXOTO, Afrânio. “2 de Julho de 1923 (Conferência no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aos 2 de
Julho de 1923)”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 48, p. 107-127, 1923, p. 107.
63 AMARAL, Braz do. “Uma carta do Dr. Braz do Amaral sobre o 2 de Julho”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 8, jul./1918.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 68
“no Rio, em S. Paulo, em Minas Gerais, em Pernambuco, Pará, Maranhão, houve
[acrescento, apenas] agitação, choques, conciliabulos, motins, perseguições e
represálias”. Talvez sejamos levados, também, a acreditar que os portugueses tenham
nela mantido o último bastião de resistência à independência, e após essa derrota se
retiram definitivamente do Brasil — o que é negado por Manoel Querino. Segundo nos
informa este autor, “só a 27 de julho de 1823, capitulou a capital do Maranhão, a 31 do
mesmo mez rendeu-se o governador do Piauhy e a 15 de Agosto a tropa portugueza da
guarnição de Belém do Pará entregou-se às forças legaes”. E completa, “em 18 de
Novembro de 1823, ao sul, D. Álvaro da Costa sitiado, em Montevidéo, com quatro mil
homens, capitulou e partiu para o Reino. A Bahia, porém foi a única província que sellou
com sangue dos seus filhos heróicos a victoria da liberdade da pátria”.64 A informação
contida na última frase — resumindo, ter sido o único lugar em que a vitória foi selada
com sangue — definia o aspecto que revelava o caráter peculiar assumidos pelos
episódios de luta pela independência localmente.
Conclui-se, portanto, que mesmo ao reconhecer a ocorrência de lutas, no
processo de independência em outras partes do país, o exemplo baiano produz maior
efeito de gravidade, traduzido em lances que impuseram coragem, tenacidade,
abnegação, dor, dentre outros — que são todas as melhores qualidades dos heróis. E
assim, as narrativas que superdimensionavam a heroicidade baiana demonstravam uma
inequívoca predileção por ressaltar as contas pagas em sangue pelos conterrâneos do
passado, a fim de assegurar a preservação da integralidade da pátria. Escrever a
história com linhas vermelhas parecia ser uma estratégia para reforçar a dramaticidade
desses eventos e, conseqüentemente, destacar o denodo com que a Bahia — numa
atitude não só heróica, mas também materna, pelo sacrifício revelado no cuidado e
defesa dos seus filhos — assumia suas responsabilidades e se lançava aos objetivos a
que se propunha. Já tivemos a oportunidade de observar o início de um discurso
proferido por Afrânio Peixoto, não nos custará muito atentar agora para alguns trechos
da conclusão do mesmo, onde muito bem se ilustra o drama, descrito em linhas
carregadas do vermelho sangue e do drama:
Os povos das capitanias do sul teriam apenas de adherir ao movimento, que foi feito de succesivas acclamações... Os povos da Bahia tiveram de luctar contra e dentro de si mesmos; a campanha da Independência teve ao norte um aspecto doloroso de guerra civil... Eram irmãos contra irmãos, Paes contra filhos que luctavam [...]. Como nos custaria a nós esse drama pungente da Independência! [...] Derramamos sangue, o nosso sangue... Só por isso nos atrazamos no caminho, só por isso chegamos tarde à festa... Mas também, Brasileiros do Brasil inteiro que me ouvis, mas também só depois de 2 de Julho de
64 QUERINO, Manoel. “Noticia historica sobre 2 de Julho de 1823 e sua comemoração na Bahia”. Revista do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 48, p. 77-105, 1923, p. 84-85.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 69
1823 é que sois livres... completamente, realmente livres... E isto, isto foi a dádiva da Bahia à Independência do Brasil.65
Pincelando o cenário com sangue... Foi dessa forma que se resgatou a memória
das invasões holandesas, das lutas da independência e, também, como demonstrarei
mais adiante, da participação dos baianos na Guerra do Paraguai.
A carga de dramaticidade se acentuava quando se cotejava o poderio e a
qualidade das forças militares envolvidas no embate. Mas, a narrativa do terrível drama
transmudava-se em epopéia, quando discorriam sobre a demonstração de tenacidade
dos baianos na intenção de vencer os portugueses, a despeito da inferioridade em
termos de poderio bélico e da nítida desvantagem na formação dos quadros, ainda que
em termos numéricos as duas força praticamente se equiparassem.
Comparando o “exército pacificador, nome que havia tomado o dos revoltosos
bahianos” e o exército português, Braz do Amaral informa que o primeiro possuía em
torno de 10 mil homens, além de pouco mais de três mil praças, assentados na Ilha de
Itaparica, e 710 marinheiros. Em maio de 1823, a força naval foi reforçada pela
esquadra de lorde Cochrane, contratado na Inglaterra justamente com esse objetivo. Já
os portugueses possuíam “vinte navios e mais uma flotilha de canhoneiras, oppondo ao
inimigo 404 boccas de fogo e 5000 marinheiros”, e seu exército contava com uma
“respeitável cavallaria, [...] vários batalhões de infantaria, uma brigada de artilharia,
uma legião de caçadores” e quatro batalhões de segunda linha.66
Diante de tais circunstâncias, não podiam deixar de considerar como atos de
bravura e heroísmo os de que deram provas os baianos. Foram eles praticados ao custo
do sofrimento causado pela escassez de alimentos, pela inadequação das vestimentas,
pelas adversidades temporais e pelas doenças, as quais proliferavam por conta das
péssimas condições em que se travavam as lutas. Braz do Amaral, após comentar em
dos seus escritos sobre as dificuldades dos portugueses, que precisaram improvisar
hospitais para atender aos seus doentes, descreveu do seguinte modo o estado dos
nacionais:
Quanto ao exército pacificador ainda era peior a sua situação, porque investia e atacava, não tendo equipamento de campanha, pelo que, não somente perdia mais gente nos combates, como tinha uma quantidade espantosa de doentes, principalmente victimas de impaludismo e das intemperies, a que estavam expostos os soldados, do que resultava uma enorme quantidade de baixas aos hospitaes, factos que indicam a importância das operações dos dois exércitos e os seus soffrimentoss.67
65 PEIXOTO, Afrânio, op. cit., p. 126-127. 66 AMARAL, Braz do, Ação da Bahia na Obra da Independencia Nacional, p. 8. 67 Idem, ibidem.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 70
Se a desvantagem no tocante ao poderio bélico era flagrante, que associada às
condições insalubres ocasionaram as baixas mencionadas por Braz do Amaral, alguns
comentários deixam trasparecer que não menos preocupante era a qualidade dos
soldados que formavam a maior parte do exército brasileiro. Eles eram,
majoritariamente, homens que jamais foram treinados para as lides militares. O
exército, nos seus quadros inferiores, compunha-se de uma massa de escravos,
libertos, índios, sertanejos e tantos outros indivíduos oriundos das camadas pobres
urbanas e rurais. Conforme as palavras de Alan Pin, eram “em sua quasi maioria as
nossas hostes, composta de soldados bisonhos e não affeitos as luctas de campanha”.
Alan Pin caracterizou melhor “nossas hostes” quando descreveu o assombro de que
teria sido acometido o comandante das armas português, Madeira de Mello, diante
delas, repletas de homens em roupa de algodão, couro ou simplesmente maltrapilhas:
Admirou-se vendo o batalhão dos Ceroulas, que foi formado em Jaguaripe e que vestia ceroula e camisa de algodão da terra, por falta de outra roupa; o batalhão commandado pelo frei José Maria Brayner, chamado dos couraças, porque trajava couro, como os campeiros do sertão costumavam vaquejar o gado; e outras praças rotas, maltrapilhas, com a cabeça ao tempo, sem barraca, dispondo, apenas, muitos delles de chinelos, foces [sic] e outras armas incapazes para uma lucta seria.68
O termo “bisonho” tornou-se o mais freqüentemente utilizado pelos nossos
ilustres informantes para adjetivar o exército brasileiro. Contrapondo as qualidades
“aguerridas” dos portugueses à inexperiência e indisciplina dos nacionais, acentuava-se
tal caráter:
Os exércitos que se defrontavam alli sommavam, ambos, vinte e três mil homens, dos quaes onze mil dos portuguezes e doze mil dos nossos irmãos. Dos primeiros, a maior porção era de tropas aguerridas, que haviam brigado na Península Ibérica e na França; dos últimos, gente sem linha, quase tudo bisonhos recrutas, sem conhecimentos das armas e ainda menos da disciplina, salvo alguma tropa de melhor quilate [...].69
Diante dessa realidade, perguntou-se o sujeito que assinava com pseudônimo
de Ala Pin: “quem nos diria que [com esses soldados bisonhos] seriamos os
vencedores”? Cabe a interrogação porque o termo “bisonho” é bastante sugestivo, pois,
se por um lado, ele pode assumir a acepção de soldado inexperiente e inábil, ou seja,
um recruta, o que a maior parte dos soldados baianos era, por outro lado, pode
significar, no uso informal, um sujeito mal vestido ou esquisito, o que eles não
deixavam de ser, sobretudo quando se considera que, mesmo para o início do século
68 Pin, Alan, Revista Cívica, Bahia, nº 46, 02 de julho 1923. 69 LEMOS BRITTO. “O papel da Bahia na Independência Nacional”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 8,
jul./1918 (grifo meu).
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 71
XIX, as tropas militares de diversos países já eram profissionalizadas. Embora o elogio
timidamente escondido à participação popular nas lutas, a caracterização que se fez dos
soldados soa como um comentário preconceituoso, que diminui o papel dos elementos
populares. De qualquer modo, o que se comentava era que os fatos fizeram, nas
palavras de Miguel Calmon, de “bisonhos recrutas heroes invencíveis”, inspirados por
uma fé sublime que emanara da madre Joana Angélica.70
O que teria faltado em preparo aos baianos, teria sobrado em obstinação,
destemor e desprendimento, tornando possível a superação e a vitória contra
circunstâncias adversas. Mas, no conjunto dos participantes das guerras de
Independência, poucos tiveram os nomes preservados no panteão dos heróis e foram,
na sua maioria, aqueles que cumpriram papel de lideranças, um bom número deles
agraciados com títulos de nobreza após o término das lutas ― da maioria anônima não
cuidaram os homens da época de guardar a memória dos seus nomes. Dentre os heróis
ilustres, estavam os irmãos Pires de Carvalho e Albuquerque71 — o tenente-coronel
Antonio Joaquim (Barão e depois Visconde da Torre de Garcia D’Avila), o brigadeiro José
(Visconde de Pirajá), que foram os primeiros a comandar tropas para se opor aos
portugueses, e Francisco Elesbão (Barão de Jaguaripe) —, todos proprietários de terras;
o general Pedro Labatut, responsável pela organização do exército nacional e durante a
maior parte da guerra seu comandante-chefe; o almirante inglês lorde Cochrane,
comandante da força naval, que chegou para participar do conflito quase ao seu final e
recebeu o título de duque do Maranhão; o coronel Joaquim José de Lima e Silva,
enviado pelo imperador e depois comandante-chefe do exército em substituição a
Labatut; o corneteiro Luiz Lopes, português de nascimento, embora participasse do
exercito nacional, que numa batalha na qual os brasileiros estavam em franca
desvantagem, em lugar de executar o toque de recolher, entoou o toque de avançar
tropa, afugentando os portugueses e permitindo a vitória dos brasileiros; o tenente João
Francisco de Oliveira Botas, que, comandando embarcações leves, levou os brasileiros à
vitória na tentativa de invasão à ilha de Itaparica pelos portugueses em 7 de Janeiro de
1823; e o tenente-coronel Antonio de Souza Lima, que participou dos fatos heróicos de
Itaparica. Todos os sujeitos citados atuaram em funções militares, excetuando Francisco
Elesbão Albuquerque, que foi presidente da Junta do Governo. Entre as lideranças civis, 70 Ver ALAN, Pin. [sem título]. Revista Cívica, Bahia, nº 46, 02 de julho 1923. ALMEIDA, Miguel Calmon du Pin
e. “A Batalha de Pirajá (Conferência no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aos 8 de Novembro de 1922)”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 49, p. 223-262, 1924, p. 223. Sobre os significados do termo bisonho, os dicionários modernos da linha portuguesa apresenta-o como recruta, na função gramatical de substantivo, e inexperiente, novato, acanhado ou malvestido, na função gramatical de adjetivo. Ver, por exemplo, o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, Versão 1.0, Ed. Objetiva, 2001. Não saberia dizer ao certo se se trata de um regionalismo, somente os lingüistas poderiam afirmá-lo convictamente, mas cresci ouvindo o emprego da palavra “bisonho” no sentido do “esquisito”, do anormal, do diferente que provoca espanto desagrádavel.
71 A respeito desses personagens, ver “Os três irmãos Pires e Albuquerque”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 8, jul./1918, pequena matéria que prestava homenagem e resgatava a memória dos três heróis da Independência da Bahia.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 72
além do referido membro da família Pires e Albuquerque, destacou-se Francisco Gê
Acaiaba de Montezuma (futuro Visconde de Jequitinhonha), participante do Conselho de
Governo da Bahia quando do conflito (ver fig. 13).72
Havia espaço, também, para louvores heróicos à mulher baiana, que deu prova
de seu “patriotismo immaculado [...], ora enviando [...] à Princesa Leopoldina, depois
Imperatriz do Brasil, as suas jóias para auxiliar as despesas oriundas da guerra, ora
surgindo em meio dos soldados, empenhando também uma carabina e uma espada, na
defesa do sarado ideal da Independência”.73 A terra que deu origem a Catarina
Paraguaçu, espécie de mãe originária da “raça” brasileira, primeira figura feminina de
destaque na história pátria, viu, durante as lutas da Independência, desabrochar os
gestos inequívocos de defesa da causa nacional de duas “sublimes” mulheres. Astério de
Campos descreve essa participação em palavras eloqüentes:
[...] aquelas terras que perlongam a Bahia de Todos os Santos — são a viva moldura das duas sublimes e varonis mulheres, que, com o sangue e a bravura, a pureza e o denodo, alevantaram as primeiras, inexpugnáveis muralhas aos invasores da Independência. A martyr e a heroína são, igualmente, duas divindades do heroísmo bahiano. As duas auroras da Restauração; duas santas: uma, pelo trespasse no peito da baioneta dos bárbaros de Madeira, transfigurada na Virgem das Dores; outra, pela destemerosa desenvoltura de sua virgindade heróica: sóror Joanna Angélica, a madre abadeça purificada dos cilícios, e do esquecimento do mundo; e de Maria Quitéria de Jesus Medeiros, a filha do colono do Rio do Peixe.74
Foi pegando em armas que se destacou “a mais gloriosa de todas”: Maria
Quitéria. Sobre ela escreveu Bernardino de Campos:
[...] violentando o destino sublime e pacifico do seu sexo, ao influxo de injecções superiores da vida, inspirada por ideaes alevantados, abandona o ninho do seu honrado lar e, qual Judith renascida, brande a arma libertadora de sna [sic] patria. Immortalizou-se pelo heroismo: por isso mesmo o seu nome esta sempre presente na justa retentiva dos posteros e merece relembrado [sic], com a uncção do nosso agradecimento.75
72 É interessante saber os “heróis” que tiveram seus nomes gravados no monumento comemorativo ao 2 de
Julho inaugurado em 1895, são eles: “[Domingos] Borges de Barros [Visconde de Pedra Branca], Lino Coutinho, Cypriano Barata, Gomes Ferrão, Pedro Bandeira, [Francisco Gê Acaiaba de] Montezuma, [Visconde de Jequitinhonha], Visconde de Pirajá [Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque]; [José Joaquim] Carneiro de Campos [Marquês de Caravelas], Garcia Pacheco, Rodrigo Brandão, [Joaquim Ignácio} Siqueira Bulcão, [Antonio] Pereira Rebouças, brigadeiro Manoel Pedro [de Freitas Guimarães], general Pedro Labatut, tenente-coronel [Antonio de] Souza Lima, coronel [José Joaquim] Lima e Silva, major Silva Castro, corneta Luiz Lopes, tenente José Pinheiros de Lemos, tenente Jacome Dorea, tenente Silva Lisboa, capitão Cypriano Siqueira, e almirante Cockrane”. Ver, “Descrição do monumento 2 de Julho”. Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do Centenário, p. 11-12, 2 de julho de 1923, p. 11.
73 SOUZA, Bernardino de. “Uma Heroína da Independência”. Revista da Bahia, Bahia, nº 19, 7 de setembro de 1922.
74 CAMPOS, Astério de. “Chronia do mês”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 8, jul./1918. 75 SOUZA, Bernardino de. “Uma Heroína da Independência”. Revista da Bahia, Bahia, nº 19, 7 de setembro
de 1922.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 73
Filha de um lavrador que, segundo a crença, lamentava-se de não ter gerado
filhos homens para servir à causa da Independência, resolveu ela mesma fugir de casa
para cumprir essa missão. Cortou os cabelos, tomou emprestada a farda de um
cunhado e alistou-se no Regimento de Infantaria de Cachoeira, sob a alcunha de
soldado Medeiros. Depois de descoberto o disfarce, ela não foi desligada das forças
patrióticas, apenas viu acrescentada à sua farda um saiote que a distinguia como
mulher.76
Também no rol de heroínas despontava o nome da madre Joana Angélica,
abadessa do Convento da Lapa, em Salvador. No dia 19 de fevereiro de 1822, após
terem promovido diversos saques a outros lugares, soldados da tropa portuguesa
tentaram invadir o interior do Convento, quando a freira se interpôs entre eles e brandiu
que somente por cima do seu cadáver conseguiriam efetuar o intento. Ela terminou
recebendo um golpe que lhe acarretou a morte. Seria Joana Angélica tomada como
“symbolo da Bahia martyr”, segundo Miguel Calmon, que, comentando a respeito do seu
papel, assinalava:
Quis Deus morresse de começo, afim de tornar justa e santa a nobre aspiração nacional e granjear-nos a Victoria com a força irresistível desses dous attributos divinos! Honra a ti, que foste o anjo da guarda dos nossos exércitos e que os guiastes de Victoria em Victoria, inspirando-lhes a fé sublime que fez de bisonhos recrutas heroes invencíveis!77
Em muitos escritos, a madre Joana Angélica era apresentada como a mártir da
Independência e apontada como inspiradora da elevação do sentimento de diferença
dos baianos para com os portugueses. A sua morte desencadeou uma intensa revolta na
população brasileira local, acirrando os ânimos e precipitando os embates entre as
partes em conflito.
Quando se acompanham as narrativas que tratam de eventos fundadores da
história da nação (guerras de independência ou expansão, revoluções, etc.),
observamos como toda causa considerada legítima costuma produzir sua galeria de
patriarcas, mártires e/ou heróis. Como argumenta José Murilo de Carvalho, “heróis [e
outras figuras do gênero] são símbolos poderosos, encarnações de idéias e aspirações,
pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São por isso, instrumentos
eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de
regimes políticos”.78 E como ele mesmo demonstra, os embates para solidificar os
76 Idem, ibidem; e SOUZA, Bernardino de, Heroínas Baianas, Rio de Janeiro, José Olympio, 1936, p. 26. 77 ALMEIDA, Miguel Calmon du Pin e. “A Batalha de Pirajá (Conferência no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, aos 8 de Novembro de 1922)”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 49, p. 223-262, 1924, p. 223.
78 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 55.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 74
papéis de certos indivíduos enquanto heróis interpõem os interesses das diversas
facções que almejam exercer proeminência nas instâncias de poder. Os baianos
travavam uma disputa pela hegemonia simbólica nos fatos referentes ao processo de
emancipação política do Brasil — o que poderia também lhes render frutos mais
concretos, como uma hegemonia política mais efetiva.
Voltando, então, para a questão do discurso, se José Bonifácio era reconhecido,
inclusive pelos baianos, como principal mentor da Independência, parecia que somente
nos episódios ocorridos na Bahia foi possível identificar personagens que tenham
cumprindo plenamente os papéis outros de mártir, na figura religiosa de Joana Angélica,
e heróis. Estes eram representados, em especial, pelos líderes militares e também por
alguns civis, pela figura feminina de Maria Quitéria e, ainda que assinalado com certas
ressalvas e embaraços, pelo grande personagem coletivo incorporado no povo. Este
personagem coletivo tinha, no imaginário popular, sua personificação, desde 1826, no
caboclo e, a partir de 1840, também na cabocla, numa alusão ao componente indígena
do povo brasileiro, sendo a cabocla a representação da famosa Catarina Paraguassu. O
caboclo e a cabocla possuíam um forte apelo popular, atraindo um enorme grupo de
seguidores, que os acompanhavam em desfiles, e outro tanto de observadores que se
postavam nas calçadas ou se penduravam nas janelas e sacadas para saudá-los. Diga-
se de passagem que esses símbolos que percorriam as ruas da cidade, nas
comemorações anuais do Dois de Julho, nunca foram totalmente assimilados pelas
elites, pelo menos até a década de 1930, justamente pelo forte apelo popular que
produziam. Mas ao falar em dificuldades de absorção, não quero dizer que não fossem
reconhecidos pelas elites, tanto o eram que não deixaram de se referir a eles (ver fig.
03).79
Fecha-se, assim, o enredo de drama e epopéia, sangue e dor dos episódios que
teriam consolidado, segundo a percepção das elites baianas, a independência brasileira.
Este enredo aspirava constituir-se em versão oficial da fundação da nacionalidade
brasileira, em concorrência com as narrativas que centravam o foco no grito do
Ipiranga, cujos desdobramentos estiveram concentrados entre o Rio de Janeiro e São
Paulo. Enquanto uma das inúmeras versões dos mitos de fundação da nacionalidade, o
Dois de Julho não conseguiu produzir, em nível nacional, uma repercussão mais
duradoura, a exemplo do que até os nossos dias representa o Grito do Ipiranga ou
imagem de Tiradentes — embora toda a campanha desenvolvida em prol da data nos
mais diversos contextos históricos.80 Permaneceria, assim, uma data baiana... Os
79 Sobre a dificuldade de assimilação dos caboclos, ver ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de, op. cit., p. 89-107.
Sobre as referências que os respeitavam, ver a sugestão de uns em torná-los símbolo da Bahia, questão tratada no terceiro capítulo deste trabalho.
80 Idem, ibidem, p. 115. A autora cita propostas encaminhadas ao Congresso Nacional solicitando a colocação do Dois de Julho como data nacional.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 75
sentidos que lhe foram imputados serviram, seguramente, para reforçar os
fundamentos de uma identidade regional baiana, instituindo um mito que hoje ainda
perdura.81
Um pouco mais de heroicidade
No século XIX, transcorreu outro episódio em que se revelou o sacrifício
acentuado, onde os atos de heroísmo de jovens e anônimos baianos, motivados por
profundos sentimentos patrióticos, foram dignos de elogio. Este episódio foi a Guerra do
Paraguai, que teve lugar entre anos de 1864 e 1870. Mas, embora tenha contado com a
contribuição relevante dos baianos e fosse lembrada por alguns, seus diversos lances
não criaram referências tão profundas quanto aqueles relacionados às lutas de
independência. Isto ocorreu, talvez, em razão dos fatos que a marcaram terem
assumido, à primeira vista, um cunho predominantemente militar e diplomático, bem
como terem se desenrolado em um cenário muito distante, tirando a Bahia do centro
dos acontecimentos, o que acabava por lhe esvaziar o necessário caráter de drama
social, como tivera outros eventos. Com isso impôs-se uma desfavorável barreira ao
resgate da sua memória (que era a principal característica das narrativas elaboradas
então) — faltou a vivência mais direta da dura realidade da guerra e dos sofrimentos
que ela gerava. Acrescente-se que a falta de vivência e o distanciamento dificultaram
sobremodo o surgimento de narradores capazes da elaboração de “mitos” sobre a “raça”
baiana. Há de se considerar ainda outro problema: a guerra foi um evento que produziu
uma intensa mobilização nacional, contando com o envolvimento de gente de todas as 81 “2 de Julho”. Revista A Voz do Povo, Bahia nº 1, 02 de Julho de 1920. Pensando nos leitores de outras
partes, considero interessante fazer alguns comentários a respeito desta importante data histórica baiana, cujo culto se prolonga até os tempos atuais. Feriado estadual, todos os anos, no dia 2 de Julho, um cortejo acompanhado de milhares de populares refaz o trajeto que fora percorrido pelas tropas libertadoras naquela data do ano de 1823, quando se deu a expulsão (ou fuga) dos portugueses da Bahia. Esta tradição foi iniciada logo no ano seguinte ao acontecimento. As comemorações cívicas desta data costumam atrair muito mais participantes do que as festividades do Sete de Setembro. Essa declaração pessoal pode ser confirmada com qualquer assíduo participante da festa; ou o interessado pode, também, verificar in loco a procedência da afirmação. Outro exemplo de importância simbólica da data localiza-se no embate pela designação do Aeroporto Internacional de Salvador, que até meados de 1998, tinha o nome de Aeroporto Dois de Julho. Com a morte do deputado federal pela Bahia Luís Eduardo Magalhães, filho do então senador Antonio Carlos Magalhães (duas vezes governador do Estado), um projeto aprovado pela Assembléia Nacional alterou o nome do Aeroporto, que passou a ser designado pelo nome do falecido deputado. E desde esse momento, algumas tentativas para reverter tal mudança vêm sendo empreendidas. Em maio e junho de 2003, o movimento retomou força e uma campanha colhendo assinaturas para encaminhar projeto popular foi implementado. A justificativa apresentada pelos organizadores é que a data é um marco na história da Bahia, representando a vitória de um povo pela sua emancipação. Não consideram justo, portanto, que um homem possa representar mais do que a saga coletiva de um povo. Ver o jornal A Tarde, mai.-jun./2003. Outros exemplos recentes são o uso do tema em produções audiovisuais, como a obra cinematográfica Três História da Bahia (2001), direção de Edyala Yglesias, José Araripe Jr. e Sérgio Machado, que traz três narrativas independentes entre si, uma delas dedicada à madre Joana Angélica, abadessa do convento da Lapa, morta pelos portugueses na invasão do convento, e considerada mártir a partir de então; e o média-metragem o Corneteiro Lopes (2003), direção de Lázaro Faria, um soldado do exército brasileiro, que numa batalha tocara o toque de avançar em lugar do toque de recolher, tendo com isso afugentando os portugueses e permitido aos nacionais a conquista de alguns territórios. Esteve em cartaz, entre junho e setembro de 2003, uma peça designada “Maria Quitéria”, direção de Deolindo Checcuci e texto de Ida Vicenzia, que reconstituía certos aspectos da trajetória desta heroína da independência. O fato concreto é que o Dois de Julho ainda marca muito a memória coletiva da Bahia.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 76
partes do Império — dessa maneira ficava mais difícil enfatizar a participação baiana em
maior escala que a de outras regiões.
De qualquer modo, segundo alguns relatos, um enorme número de voluntários
seguiu para os campos de batalha integrados às companhias e esquadras, num cálculo
estimado que alcançava o total de 20 mil homens. Contavam que tal fora a contribuição
da Bahia que o próprio Imperador D. Pedro II, ao ver os batalhões de voluntários
baianos desfilando, teria, numa frase que lhe é atribuído, exclamado: “A Bahia! Sempre
a Bahia!”.82 Essa exclamação será o principal “mito” da participação baiana na Guerra,
expressando ela um reconhecimento pelo imperador da grande fidelidade da terra a
tudo que representasse os interesses nacionais. E esse aspecto era reforçado pela
citação do desempenho dos grandes estadistas naturais da província durante a guerra,
atuantes nos plano político e diplomático, como foram o Barão de Cotegipe, o Barão (e
ao final da guerra, Visconde) do Rio Branco, o conselheiro José Antonio Saraiva e o
conselheiro Zacarias Góes e Vasconcelos.83
Em meio a esses relatos, mencionava-se um caso ou outro de heróis baianos.
Nesse sentido, um bom exemplo foi Ranulpho Antunes dos Santos, que, compondo “um
patriótico batalhão de 300 bravos” organizado no interior da província, “partiu, com 17
annos incompletos, voluntariamente, para a guerra do Paraguay, em março de 1865”.
Conquanto os ferimentos sofridos, serviu durante os cinco anos que durou o conflito,
distinguindo-se por “bravura e dênodo” nos diversos combates em que tomou parte. Por
seus méritos, ascendeu de cadete a tenente, além de receber medalhas, condecorações
e atestados que testemunhavam a favor das suas qualidades. Faleceu pouco tempo
depois do final da guerra, em sua vila natal, “sendo consequencia [sic] de sua morte
prematura as muitas fadigas, unidas a nenhum conforto naquelas inhospitas paragens
do Paraguay”. Eis o perfil de um homem, que, ao custo do comprometimento da própria
saúde, demonstrou em vida uma das principais virtudes da Bahia e dos baianos: “que é
o heroísmo a condição mesma daquella terra em que mais se pelejou pela nossa
emancipação de civilizados”.84
Após a Guerra do Paraguai, parece não ter ocorrido acontecimentos tão
grandiosos, gloriosos, dramáticos ou traumáticos, que tivessem contado com a
concorrência da Bahia. Mas uma síntese interessante acerca de boa parte das coisas
que se disse até aqui está localizada na Polyanthéa, que faz referência clara a uma série
de eventos:
82 Ver AMARAL, Braz do, História da Bahia, p. 249-253. A exclamação do Imperador é citada em “Nossas
Glórias”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 35, fev./1921. 83 Falaremos mais detidamente sobre esses personagens no próximo capítulo, “Atenas Brasileira”. 84 "Um Heróe Bahiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 27-28, fev.-mar./1920.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 77
Quando procuramos na historia o Brasil nos seus dias de esplendor, ahi vemos a Bahia; ella é a primeira que nos surge altiva e heróica. Quando as sombras das grandes noites se adensam nos horisontes pátrios, turbando-os, na imminencia das tempestades, dos abalos, das convulsões titânicas, vemol-a ainda, no seu posto de avançada e de sacrifícios, inabalável, dominadora, viril e estóica, saltando aos mares, vadeando os rios, percorrendo os campos, quebrando o sonho de conquista aos almirantes batavos, salvando o grito do Ypiranga, nas planícies, immoredouras de Pirajá e Cabrito, sonhando a Republica como idela dos povos livres em 37, sustentando o Império na jornada sanguinolenta de cinco annos nas terras do Paraguay para onde mandou, ella só, centenas e centenas de seus filhos, valentes na desaffronta dos brios nacionaes.85
No que tange à simbologia da mãe e heroína, um ponto final tem que ser dado
na Guerra do Paraguai, porque somente quase trinta anos depois, no final do período
imperial, sucederam-se fatos tidos como de grande proporção na história brasileira.
Foram eles a emancipação dos escravos e a proclamação do novo regime. De qualquer
modo, a falta de eventos mais dramáticos não impediu que a Bahia continuasse
desempenhado um papel fundamental na nação, visto que seus estadistas, metidos no
núcleo do poder nacional, não deixaram de advogar causas cruciais para o progresso do
país. Um bom exemplo é a atuação em prol do fim da escravidão, que antes de ter se
tornado um fato foi uma importante causa. O mesmo não poderia ser falado em relação
à causa republicana, pelos menos tão freqüente e enfaticamente quanto teria se dado
em outros episódios, visto que os baianos não estiveram entre os seus mais ardorosos
defensores. Mas ainda assim, houve tentativas de estabelecer certas conexões entre
personagens nascidos ou episódios ocorridos na Bahia e o ideal republicano ou a própria
a instalação do novo regime, dos quais são exemplo os movimentos federalistas na
antiga província, já comentados, e a ação de Rui Barbosa na república, o que será
discutido no próximo capítulo.
A “Rainha do Norte”
Já afirmei que as representações pretendidas para Bahia eram habitualmente
acentuadas por meio dos epítetos. E foi assim que ela acabou se tornando mãe e
heroína, quando lembradas as suas supostas experiências primazes e intervenções
magnânimas nos eventos da história pátria. Uma vez feita a recapitulação dos eventos
em que se acentuavam as primordialidades, a materrnidade e a heroicidade, devo voltar
a atenção para um novo aspecto das grandezas baianas passadas.
Fiéis à prática da referência a epítetos, os atuantes propagandistas das glórias
baianas se referiram a um no qual se percebe uma nítida evocação à idéia de majestade
e hegemonia: “Princesa” ou, muito especialmente, “Rainha”, designações que assumiam 85 “Ave Bahia”. In Polyanthea (sem referências).
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 78
significações muito adequadas para demarcar outro importante campo de representação
simbólica para a Bahia. Nos termos precisos da época, ela era a “Princesa do Norte” ou,
mais freqüentemente, a “Rainha Norte”, título este que parecia se ajustar
harmoniosamente ao contexto histórico em que a proeminência baiana se revelara no
mais elevado grau, ou seja, os tempos do Império.
“O esplendor do seu renome de Rainha do Norte”,86 como alguém fez questão de
declarar, justificava-se pela certeza, compartilhada por muitos, de uma preponderância
nos campos econômico e político durante o século XIX. Era corrente o pensamento de
que a Bahia manteve por um longo período a liderança nas atividades econômicas — e
ainda que se tenha visto despojada da liderança, permaneceu contibuído de forma
relevante para a renda nacional. No cenário político, por sua vez, não apenas produziu
figuras de expressivo destaque, mas exerceu, também, um amplo domínio nos
principais cargos administrativos do país por praticamente todo o Império, em particular
no segundo reinado.
Seria relevante, portanto, focalizar as situações consideradas ilustrativas desse
que foi um outro modo de acentuar as grandezas baianas.
Hegemonia econômica
Algumas páginas atrás tive a oportunidade de salientar o papel proeminente que
a cidade do Salvador exerceu na era colonial. Pode-se argumentar que, criada para ser
a capital da colônia, ela teria sido núcleo catalisador de uma intensa atividade
econômica, chegando a ocupar o posto de maior e mais importante cidade do Novo
Mundo. Ao cumprir o encargo de sede administrativa e centro comercial criaram-se as
condições para que se começasse a esboçar a hegemonia econômica da então capitania
e, muito especialmente, da capital colonial que nela estava instalada.87 Nas décadas
finais do século XVIII, por exemplo, o porto de Salvador ocupava posição realçada no
tocante ao volume monetário de comércio, muitas vezes superando o porto do Rio de
Janeiro, a nova capital da Colônia, que possuía a exclusividade de remessa para a
metrópole do ouro proveniente da região das minas. Com o decréscimo da produção
aurífera, pôde, no início do século XIX, ultrapassar o Rio em algumas oportunidades.88
86 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 20-21, jul.-ago./1919. 87 MATTOSO, Kátia Maria de Queirós. Bahia opulenta: uma capital portuguesa no Novo Mundo. Da Revolução
dos Alfaiates à Riqueza dos Baianos no Século XIX: itinerário de uma historiadora. Salvador, Corrupio, 2004, p. 281-297, apresenta uma boa síntese sobre papel da Bahia nos primeiros séculos da colonização, focando especialmente Salvador, a primeira capital colonial, que de certo modo corrobora algumas falas dos sujeitos do início do século XX.
88 SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil (1500-1820). São Paulo, Ed. Nacional, 1976, p. 361-367.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 79
Muitos baianos se empenharam em resgatar a lembrança da antiga hegemonia
econômica, sobretudo aqueles que olhavam os fatos históricos com a pretensão de
encará-los como “estudioso”. A hegemonia econômica não foi freqüentemente
relembrada e discutida nos veículos da imprensa que mais comumente têm sido citados
aqui — ou seja, a maior parte dos periódicos — na mesma proporção notada para
outros assuntos relativos às grandezas da Bahia, a exemplo das idéias de Atenas e
célula-mater ou dos seus inigualáveis estadistas. Em síntese, era muito mais fruto da
pesquisa histórica, não obstante a falta do rigor exigido pela posterior profissionalização
da atividade, do que uma reserva de memória. Uma justificativa para isso talvez se
encontre na razoável distância de tempo que separava os fatos econômicos passados
dos agentes republicanos aqui evocados (aproximadamente, cem anos), ao passo que
havia uma tendência de se rememorar fatos um pouco mais próximos. Talvez porque à
riqueza, embora considerada muito importante e desejada, não fosse atribuída a mesma
relevância consagrada a outros aspectos. A partir de um determinado momento, os
baianos parecem ter se apegado, muito mais fortemente, aos atributos que
constituíssem um “capital” simbólico do que aos monetários — atitude que se
assemelhava, em características, à de sociedades ou grupos sociais acentuadamente
aristocráticos, em que, mesmo num ambiente de escassez de recursos materiais,
monetários ou financeiros, não se perdia a nobreza no sangue, nos títulos e no status.
Talvez isso representasse uma estratégia de compensação pelas perdas, ou seja, se a
riqueza material era limitada, abundavam os bens simbólicos e espirituais.
Para falar sobre a primazia econômica baiana, recorro às palavras de Francisco
Marques de Góes Calmon, personagem oriundo profissionalmente de setor ligado às
atividades econômico-financeiras e que teve a experiência de governador do Estado,
entre 1924 e 1928. Dizia ele:
Por motivo de ordem política [...] mudára a metrópole a capital do Brasil colônia para o Rio de Janeiro, (1763), [sic] não obstante, mantinha-se a superioridade econômica do norte, que, no começo do século XIX, continuava a ter o sceptro das riquezas e da maior intensidade e efficiencia no trabalho e actividade agrícolas. Segundo “Adrien Balbi, Estatistique de Portugal”, em 1806, as exportações do Brasil fôram para o sul do paiz, do Rio de Janeiro, porto por onde tinham sahida todos os productos das capitanias de Minas Geraes, S. Paulo, Rio de Janeiro, Goyaz e das demais meridionaes, de Rs. 4.670:310$810, e para o norte, Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão e Pará, de Rs. 9.483:445$081, sendo o contigente da Bahia, isoladamente, de Rs. 3.284:684$868. Índice tão elevado, no confronto da capacidade productiva, não tinha paridade nas demais capitanias, conseguia-o pelo encarniçado labôr e uberdade do solo, pelo apparelhamento, relativamente melhor, na industria de canna de assucar, do fumo e do algodão. Causas geographicas, sociaes e políticas, concorriam, simultaneamente, para taes effeitos. [...] Assim, a Bahia deveria ter sido o que foi, centro Maximo de attracção, em um passado em que as actividades humanas se cegavam pela lei do menor esforço, ante perspectivas de fáceis possibilidades, convencidas de
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 80
que mais valia a seducção de immediatas realisações do que o proprio coefficiente individual no trabalho effectivo.89
Segundo Góes Calmon, eram bastante vultuosas as exportações da Bahia,
critério por ele selecionado como sinal de pujança econômica. Deve-se atentar para as
sutilezas da sua análise, quando afirmava não haver capitania alguma com que pudesse
ser comparada. Embora registrasse valores superiores para o porto do Rio de Janeiro,
deixava bem claro que este concentrava todos os produtos exportáveis do Centro-Sul,
totalizando, portanto, a soma das riquezas geradas por uma vasta zona do território
brasileiro. Para o Norte, são citados cinco portos, os quais escoavam as respectivas
produções locais e, no máximo, das regiões mais próximas. Deste modo, a Bahia,
mantendo a primazia no Norte, destacava-se como a maior geradora de riquezas do
Brasil, visto que remetia pelo seu porto artigos produzidos, predominantemente, por si
própria. De acordo com os números citados por Calmon, saía da Bahia, em termos
percentuais, pouco mais de trinta e três por cento das exportações de todo o Norte e
aproximadamente vinte e três por cento das exportações da colônia brasileira.
O caráter mais especializado do estudo de Góes Calmon revela-se no fato de
fornecer informações apoiadas em certas fontes de pesquisa. O excerto transcrito acima
foi retirado de um artigo que fez parte, originalmente, do Diário Oficial do Estado
comemorativo dos cem anos de Independência da Bahia, o “Ensaio de retrospecto sobre
o commercio e a vida econômica e commercial na Bahia de 1823 a 1900 — Contribuição
para Estudo”. Neste trabalho, ele procurou traçar um painel da vida econômica e
comercial da Bahia ao longo do século XIX, objetivo explicitamente anunciado no título,
e apresentou um quadro sinóptico, década a década, das iniciativas governamentais e
particulares em prol dos negócios. Considerando a aparente inexistência, na época, de
qualquer outro material do tipo, pode-se afirmar que as vinte páginas do seu estudo
trouxeram dados bastante substanciosos.
Por outro lado, o menor rigor do trabalho revela-se no tratamento que confere a
certos dados e na falta de maior consistência de algumas afirmações, fruto de uma
pesquisa não tão exaustiva e de uma opção metodológica que, seguindo a tendência da
época, demonstrava certas limitações. Um bom exemplo encontra-se no fato de
sustentar a argumentação acerca da primazia econômica da Bahia tomando como
referência apenas um ano do movimento dos portos, no caso 1806. Não é que se trate
de conclusão completamente equivocada ou mesmo pouco plausível, mas, sem dúvida,
89 CALMON, Francisco Marques de Góes. “Ensaio de retrospecto sobre o commercio e a vida econômica e
commercial na Bahia de 1823 a 1900 — Contribuição para Estudo”. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do Centenário, p. 376-396, 2 de julho de 1923, p. 376. Ver o perfil biográfico de Góes Calmon no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Calmon”).
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 81
seria mais sólida se tivesse apresentado os números referentes a outros anos.90 Esee
detalhe parece ser um indicativo de que, embora se propusesse a fazer um trabalho
com as características de uma pesquisa histórica, ele também estava “contaminado”
pela idéia da pujança baiana de outras épocas, valendo-se de poucos indícios para
chegar a uma verdade conhecida a priori.
Conquanto não fosse tão freqüentemente reportada, houve, na atmosfera mental
das elites das décadas de 1910 e 1920, algum espaço para a manifestação da crença na
hegemonia econômica baiana. Afrânio Peixoto, comentando a respeito do movimento da
Independência, explicava, em termos econômicos, os motivos dos portugueses oporem
grande resistência à tentativa de rompimento com a metrópole, levada a efeito na então
capitania. Segundo ele, “em 1822, o norte era o principal do Brasil, dous terços da sua
actividade útil... e a Bahia era a primaz do Norte: seu commercio exterior era maior que
o do Rio, onde Minas vinha ter, e dez vezes superior a São Paulo, que ainda esperaria o
fim do segundo Império para a ascendência”.91 Depreende-se do seu argumento que a
concentração dos esforços portugueses no Norte, em particular na Bahia, demonstrava
a consciência da metrópole de que essa era a região mais rica do vasto território
brasileiro. Por isso, aquela que deveria ser a todo custo preservada, caso se mostrasse
inviável conservar o Brasil como um todo.
Peixoto não afirmava algo de novo, tampouco se expressava em termos
completamente originais. Apenas repetia idéias, quase copiando as palavras, formuladas
anteriormente pelo político Miguel Calmon — por sinal, irmão mais novo do supracitado
Góes Calmon. Em novembro de 1922, na conferência que recordou a Batalha de Pirajá,
episódio marcante das lutas da independência baiana, Miguel Calmon explicou a
hegemonia econômica nas primeiras décadas do século XIX:
A despeito da mudança da sede do governo para o Rio de Janeiro, achava-se a Bahia, nessa epoca, em todo o esplendor da sua prosperidade commercial e da sua vida social. Spix e Martius, que a visitaram em 1817, consideravam-na “a mais rica e activa praça do paiz”, e Tollenare não cala o enthusiamo pelo fausto em que viviam os seus habitantes e pelo progresso que alli se notava em todos os ramos de actividade.
90 SIMONSEN, Roberto C., op. cit., p. 365, cita que, “entre 1795 e 1815, o Rio de Janeiro conseguiu a primazia
como porto exportador”, mas não devemos esquecer o argumento de Góes Calmon sobre a concentração dos produtos do centro-sul nesse porto. Ainda segundo Simonsen, “em 1815, 1816 e 1817, a Bahia ultrapassou ligeiramente o Rio”, enquanto “Pernambuco, que se conservava habitualmente em terceiro lugar, conseguiu, em 1805, 1815, 1816, 1818 e 1819, ultrapassar o Rio e a Bahia”. O citado estudo de Góes Calmon, publicado pela primeira vez na edição especial do Diário Oficial de 2 de Julho de 1923, foi reunido, posteriormente, a mais um texto, designado “Contribuição para o estudo da vida economico-financeira da Bahia no começo do seculo XIX,” que foi, originalmente, um prefácio escrito para consta na obra de outrem, e editado em livro com o título de Vida econômico-financeira da Bahia: elementos para a História de 1808 a 1899, Bahia, Imprensa Official do Estado, 1925.
91 PEIXOTO, Afrânio. “2 de Julho de 1923 (Conferência no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aos 2 de Julho de 1923)”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 48, p. 107-127, 1923, p. 107.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 82
Os algarismos conhecidos do commercio exterior, em 1816-17, dão à maior cifra de importações e exportações do que o Rio de Janeiro e dez vezes mais do que S. Paulo, cabendo às províncias do norte, englobadamente, dous terços do movimento total do paiz.92
Calmon e Peixoto pincelaram breves lembranças a respeito dessa primazia em
espaços particularmente dedicados ao resgate da memória histórica: no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, onde, primeiramente, proferiram suas conferências e
talvez tenham publicado o texto (essa informação não procurei confirmar); e na revista
do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, na qual viram publicados, em números
distintos, os respectivos textos. Quero demonstrar, com isso, que foram nos espaços
mais restritos de homens “especializados” ou “conhecedores” de história onde mais
comumente se difundiu a memória da antiga hegemonia econômica.
Teodoro Sampaio também compartilhou do pensamento de que a transferência
da capital não teria afetado tão profundamente a capitania. Na sua visão, “em 1763,
quando se transferiu a sede do governo do Estado para o Rio de Janeiro [...], a Bahia
não perdeu, com tudo isso, a primazia de centro da maior riqueza econômica do paiz”. E
complementando, “a sua população, o seu desenvolvimento econômico conservaram-lhe
a primazia no Brazil, primazia que só veiu a perder muitos annos depois da
independência nacional”.93
A aplicação no trabalho, o espírito de iniciativa e inovação, a inteligência e o
preparo dos homens foram, segundo os argumentos da época, os fatores determinantes
para se alcançar esta condição econômica. A Bahia das duas primeiras décadas do
século XIX, ou seja, dos anos precedentes à independência, teria conhecido a energia
de baianos e brasileiros “que vinham predestinados a ser os pioneiros da actividade
productora, creando e ensinando methodos novos de trabalho, iniciando industrias,
guiando e aconselhando verdadeiras realizações, que deveriam estimular as energias
latentes”. Como prática corriqueira, que não podia faltar nos momentos em que se
discorria sobre as preponderâncias baianas, Góes Calmon fez questão de lembrar os
nomes de alguns empreendedores, a exemplo dos mineiros Felisberto Caldeira Brant,
futuro marquês de Barbacena e casado com a filha de um comerciante estabelecido na
capitania, e Manoel Ferreira da Câmara Bittencourt Sá ― homens que, embora não
fossem naturais da terra, vieram aproveitar os recursos e as riquezas que somente ela
proporcionava. Isso significava que as oportunidades engendradas por ela terminavam
92 ALMEIDA, Miguel Calmon du Pin e. “A Batalha de Pirajá” (Conferência no Instituto Histórico e Geographico
Brasileiro, aos 8 de Novembro de 1922). Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 49, p. 223-262, 1924, p. 224. Tanto Calmon quanto Peixoto vangloriavam-se da Bahia ter um movimento portuário-comercial maior que o Rio Janeiro. Mas se voltarmos à nota 5 para rever os dados de Simonsen, constataremos que nos anos citados, 1815-1816, a liderança foi de Pernambuco, ficando a Bahia em segundo lugar e o Rio em terceiro.
93 SAMPAIO, Teodoro, O Estado da Bahia, p. 5-6.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 83
atraindo gente de fora, que vinha nela se estabelecer. De qualquer modo, não deixou o
estudioso de mencionar as iniciativas de legítimos baianos, dentre os quais se
evidenciava o nome de Francisco Agostinho Gomes. Todos foram apontados como
respeitáveis impulsionadores da vida econômica baiana por conta do conjunto de
inovações tecnológicas e novos conhecimentos que introduziram. Góes Calmon também
não esqueceu de aludir à ação laboriosa de alguns governantes da capitania, nomeados
pela coroa portuguesa, como foram o conde da Ponte e, especialmente, o Conde dos
Arcos, que incentivaram e realizaram obras que teriam favorecido os progressos
verificados então.94
Foi nesse ambiente de grande efervescência que despontou a figura de um
baiano que muito orgulhava a terra: José da Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairú,
considerado o grande nome do pensamento econômico brasileiro do século XIX.
Segundo Góes Calmon, era “o maior de todos pelo poder illuminado de sua intelligência
e pela força persuasiva de sua palavra, era o economista fadado a ser o factor máximo
das nossas definitivas realizações de liberdade e trabalho”. Para Bernardino José de
Souza, ele era um “dos píncaros que dominam inattingidos a intelligência nacional”,
ocupando o lugar de “nosso primeiro e até hoje não excedido commercialista”.95 Pelo
que se subentende nas entrelinhas das palavras dedicadas a este “ícone”, parecia que a
capacidade por ele desenvolvida e na prática demonstrada só poderia ter sido aflorada
no profícuo meio baiano.
Muito freqüentemente, José da Silva Lisboa foi apontado, como o inspirador da
obra da independência nacional, por ter aconselhado, conforme afirmavam muitos
baianos, o príncipe-regente D. João a promover a abertura dos portos, em 1808,
momento inaugural de uma liberdade econômica que conferiu à colônia uma posição
muito vantajosa nos tratos comerciais com outros países e, em especial, as regiões
mais envolvidas nos negócios de importação e exportação de produtos, lugar em que se
enquadrava a Bahia. E mais do que a liberdade econômica, a abertura do portos teria
sido a porta de entrada para um sentimento mais amplo de liberdade, tendo
impulsionado os brasileiros a aspirarem, natural e paulatinamente, à emancipação
política. A respeito do ato de 1808, Góes Calmon sentenciou: “este é o facto concreto,
que serviu de epílogo ao largo movimento de iniciativas creadoras, sob as quaes parecia
querer renascer o esforço do trabalho intelligente, que fôra a nossa grandeza nos
séculos antecedentes, e impuzêra dest’arte a carta da nossa alforria economica”.96
94 Ver CALMON, Francisco Marques de Góes, Vida econômico-financeira da Bahia. 95 Idem, ibidem, p. 10; e SOUZA, Bernardino José de, A Bahia, p. 30. 96 CALMON, Francisco Marques de Góes, Vida econômico-financeira da Bahia, p. 10. Outro que destaca o
papel de Lisboa como precursor do Ato da Abertura dos Portos de 1808, e, em conseqüência, como da Independência, é AMaral, Braz do, Ação da Bahia na Obra da Independencia Nacional, p. 4. José da Silva Lisboa foi a agraciado com o título de Visconde de Cayrú após a Independência.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 84
Era um consenso que as lutas da independência, vivenciadas intensamente na
capitania e depois província da Bahia, ocasionaram um grave abalo na atividade
econômica. Por conta delas, houve uma forte retração da produção e dos negócios,
visto que exigiram um grande desvio de recursos financeiros, materiais e humanos.
Góes Calmon comentou as duras consequências da guerra: “o golpe soffrido foi terrível
para a vida econômico-financeira. Esta desconjuntou-se e, desde então, começa a serie
infindável das desgraças que nos perseguiram durante todo o século XIX”.97
A Bahia levaria alguns anos para se recuperar, mas a tendência, a partir deste
acontecimento, foi de crescente dificuldade, alternando períodos de breve recuperação
com outros mais freqüentes de estagnação e declínio. Principiou-se, deste modo, um
processo que a faria ser, paulatinamente, superada por outras províncias ao longo das
décadas seguintes. O próprio Góes Calmon procurou demonstrar, no citado “Ensaio de
retrospecto sobre o commercio e a vida econômica e commercial na Bahia de 1823 a
1900 — Contribuição para Estudo”, as vicissitudes que caracterizaram a atividade
econômico-financeira baiana após a Independência. Nesse trabalho descreveu as
diversas iniciativas despontadas e o outro tanto de fatos ocorridos que criaram
expectativas promissoras, que se fizeram acompanhados, porém, de outros tantos
empecilhos e reveses.
Apesar de tudo, e ainda que não do mesmo modo observado nas décadas
antecedentes à independência, conseguiu manter, até meados do século XIX e um
pouco além, uma importante posição econômica, com “tudo a justificar a fama de ser
Bahia a mais rica e importante cidade do império depois da corte”.98
Hegemonia política
Se a Bahia conheceu, por um lado, um gradativo declínio econômico, à medida
que o Império avançava, por outro lado, conseguiu dispor de uma influência estável e
inquestionável na esfera de poder. Quanto mais se via privada das suas riquezas,
enredando-se numa crise econômico-financeira de contornos crônicos, mais força e
autoridade política parecia ir retendo e acumulando — fato político este
contraditoriamente concomitante àquele fato econômico. Como escreveu Braz do
Amaral, “a Bahia foi a terra dos estadistas e tinha o primado na organisação política do
paiz”.99 Daí advinha uma das suas maiores glórias — talvez se possa dizer, mesmo, que
a sua maior glória, aquela que era a mais intensamente valorizada. Tornou-se, por isso,
97 CALMON, Francisco Marques de Góes, Vida econômico-financeira da Bahia, p. 27. 98 AZEVEDO, Thales Olímpio Góes de. A Economia baiana em torno de 1850. Revista Planejamento, Salvador,
v. 5, n. 4, p. 7-18, out/dez. 1977, p. 18. 99 AMARAL, Braz do, História da Bahia, p. 182.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 85
motivo de um arraigado orgulho das suas elites, que resguardavam frescamente na
memória os acontecimentos relacionados à intensa presença de baianos nos altos
postos do Estado imperial.
Embora muitos deles tenham constituído um grupo significativamente importante
nas estruturas de poder nas fases do governo de D. Pedro I e da regência, foi no
segundo reinado que eles alcançaram proeminência incontestável. O curto tempo que
separava o fim do próprio regime em que essa ascendência se fez sentir (ou seja, o
Império) e a ainda nova época republicana, obviamente, facilitava a rápida recuperação
de lembranças desse período mais recente. Lembranças que pareciam inolvidáveis
diante do trauma representado pelas perdas políticas substanciosas que se seguiram às
mudanças nas instituições de poder. Some-se a isso os incontáveis graus das relações
de parentesco, apadrinhamento e afinidade afetiva, social ou política entre um grande
número de sujeitos republicanos e personagens imperiais.
Foram muitas as menções feitas à hegemonia política baiana, num claro sinal de
quanto a ela se agregava um alto e precioso valor simbólico. Uma das formas de fazê-la
se dava pela recordação dos nomes dos grandes estadistas, o que veremos mais
detalhadamente no próximo capítulo. Entretanto, falar apenas de nomes nem sempre
dimensionava suficientemente o tamanho que a referida hegemonia alcançou. Por isso,
talvez, era imperioso afirmá-la em tons claros e configurá-la na sua forma. Nesta
perspectiva, as palavras de Filinto Bastos são exemplares, pois não somente consigna a
proeminência política baiana como descreve a naturalidade com que a mesma teria sido
imposta e aceita pelas demais províncias:
Proclamado o Império, na Constituinte, os seus representantes se mantêm firmes na altura da confiança que mereceram; e depois, pouco a pouco, a Bahia, gloriosa entre as gloriosas províncias, que desde o alto norte, onde são assombro e maravilha as grandezas do Amazonas, até ao extremo sul, onde, às rajadas do minuano se tem levantado mais de um Cid triumphante, e onde, na expressão feliz do nosso Castro Alves,
não treme o livro de hombrear com o sabre nem cora o sabre de chamar-lhe irmão,
A Bahia, meus Senhores, conquistou a hegemonia na direcção suprema do governo. Essa hegemonia não lhe foi contestada pelas notabilidades superiores das demais províncias brasileiras, porque era galardão do seu reconhecido mérito, visto como, na phrase do eminente representante do Ceará, o illustrado senador Pompeu, «quasi todos os nossos homens de estado, que haviam fulgurado na política, eram filhos da Bahia.»100
As palavras de Bastos devem ser analisadas muito mais enquanto uma
interpretação idealizada da hegemonia política baiana do que como uma expressão
100 BASTOS, Filinto. “Discurso”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 31, p. 35-
47, 1905, p. 39.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 86
realística da feição por ela assumida. Lizir Arcanjo, por exemplo, demonstra, com suas
pesquisas em jornais publicados na Corte e outras províncias, em meados do século
XIX, a grande rejeição sofrida pelos políticos baianos em diversas partes do país,
justamente pelo fato de ocuparem espaço nas funções públicas que outros pretendiam.
Políticos de origem baiana foram, muito freqüentemente, nomeados presidentes, bem
como se fizeram eleitos deputados e senadores de províncias com as quais não
mantinham nenhum vínculo, angariando por isso enorme aversão.101
Retomando a linha de abordagem, Teodoro Sampaio, por sua vez, deu exemplo
de vaidade ao referir-se aos antigos estadistas. Em 1917, ele fazia um discurso em
homenagem ao Visconde do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos, no qual lembrava
o papel dos baianos em dois gabinetes específicos, ambos com a participação do ilustre
personagem. A forma como Sampaio desenvolveu o discurso não deixa claro quais
foram os gabinetes, mas parece que se tratam do quarto presidido pelo Marquês de
Olinda (Pedro de Araújo Lima), de 1865-66, e do terceiro presidido por Zacarias de
Góes e Vasconcelos, de 1866-68. Vejamos suas palavras:
Eram três os representantes da Bahia no novo ministério, como três eram os que a representavam no ministério decahido. Já desse tempo nenhum gabinete se organizava sem que à nossa Bahia, meus senhores, coubesse ou a presidência do Conselho ou duas e mais pastas na publica e superior administração do paiz, taes a força e prestígio de sua representação nessa época. Já então, na imprensa e nos corrilhos, dizia-se como muito humorismo, de referência à Bahia e à sua indefectível presença no governo: — “ministério sem pimenta não se agüenta...” A Bahia attingira de facto ao apôgeo da sua ascendência na politica do paiz.102
Para que se entenda o quanto significava exercer as “duas ou mais pastas na
publica e superior administração do paiz”, é bom registrar que durante o Segundo
Reinado o número de ministérios a serem preenchidos perfaziam o total de seis ou
sete.103
Ainda em relação à presença de baianos no ministério, havia outro critério que
ajudava a reforçar o papel que desempenharam no governo: a presidência do Conselho
de Ministros. Na revista Bahia Ilustrada, em 1918, publicou-se uma matéria intitulada
“O Estado da Bahia”, assinada por Paschoal de Moraes, cujo propósito era divulgar
informações sobre as condições climáticas, a geografia e alguns eventos históricos que
101 ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., v. 2, p. 291-299. 102 SAMPAIO, Teodoro. “Discurso”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 43, p.
150-173, 1917, p. 165. 103 Com base em informações de CARVALHO, José Murilo de, A construção da ordem: a elite política imperial;
O teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ / Relume-Dumará, 1996, p. 198-199, tem-se que para o período de 1840 a 1859 e mais 1875 a 1878, foram seis pastas, exceção feita ao gabinete de 1845 que contou apenas com quatro; para o período de 1861 a 1875 e 1878 1889, foram sete pastas. Houve, também, um bom número de gabinetes em que a Bahia contou com apenas uma pasta.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 87
elevavam o nome do Estado. Nos últimos parágrafos da mesma, o autor quantificou o
exercício da presidência do citado Conselho, com base na origem provincial dos seus
titulares. E, assim, provou-se mais uma vez a nossa hegemonia:
A antiga influencia política da Bahia no Segundo Império foi muito decisiva e notável. Assim foi que de 1840 até 15 de novembro de 1889, em quase meio século, pois, foram organizados no Brasil 34 ministérios, tendo sido o primeiro de Antônio Carlos de Andrade e Silva (o da menoridade de D. Pedro II) e o último do Sr. de Ouro Preto. Destes ministérios foram presididos: 12 por baianos, 5 por mineiros, 5 por fluminenses, 4 por pernambucanos (o Sr. marquês de Olinda, que ocupou por 4 vezes a curul de presidente do conselho), 3 por paulistas, 1 por maranhense, 1 por alagoano e 1 por piauiense. Como se vê, a representação da Bahia, equivale a mais de uma terço da totalidade, é superior ao duplo de Minas e do Rio de Janeiro, igual ao triplo da de Pernambuco, ao quadruplo de São Paulo e do Maranhão, Alagoas e Piauí reunidas. Na República essa influencia se deixou de sentir, mas em equivalência ainda o maior luzeiro do país é Ruy Barbosa, e o seu mais notável estadista é Miguel Calmon.104
Pressente-se, na maior parte do trecho, um indisfarçável envanecimento por tal
predominância, mas o final se caracteriza pela adoção de um novo tom, que mistura
certa dose de humildade, tristeza e consolação. Datado de 1918, o último parágrafo do
excerto é revelador do tipo de preocupação que perpassava a memória da antiga
influência: o fato de que na República o prestígio político se situava em nível
substancialmente abaixo daquele gozado até trinta anos antes. Nos novos tempos,
apenas dois nomes baianos, segundo as considerações de Moraes, desempenhavam
papel sobranceiro no cenário nacional.105 Parece-me que seria justo acrescentar o nome
de José Joaquim Seabra como outro político baiano influente. Mas esquecer de citá-lo
talvez fosse uma atitude deliberada e que demonstrava as cisões que demarcavam a
política estadual, opondo os ruístas e outros grupos aos seabristas. Não me
aprofundarei, por ora, nessas questões, visto que será objeto de uma abordagem mais
detalhada na próxima parte do trabalho.
O essencial, nesse momento, é atentar para os números que demonstram as
disparidades existentes no total de presidentes do Conselho de Ministros oriundos de
cada província. Ali se constatava a flagrante vantagem daqueles nascidos na Bahia. Os
políticos locais dominaram sozinhos mais de um terço do referido cargo, muito acima de
qualquer outra província. A proporção de domínio foi superior à contribuição dada para
a riqueza nacional, que foi, aproximadamente, e num certo momento, de vinte e três
por cento, conforme nos foi indicado por Góes Calmon. E tendo exercido por mais vezes
104 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 10, set./1918. 105 Ver SAMPAIO, Consuelo Novais. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma política de
acomodação. Salvador, Núcleo de Publicação do Centro Editorial e Didático da UFBA, 1978.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 88
a presidência do Conselho, destacou-se ainda pela longevidade do gabinete chefiado por
José Maria da Silva Paranhos, o Visconde de Rio Branco, entre 1871 e 1875, o mais
duradouro em todo o Segundo Reinado. João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe,
também liderou um dos gabinetes mais longos entre 1885 e 1889.
Fato histórico profundamente relevante para as elites baianas, tal
preponderância já foi objeto de algumas análises na historiografia. Sérgio Buarque de
Holanda, por exemplo, comentou sobre o “baianismo”106 (expressão utilizada pelo
próprio historiador) reinante na política do Império. Para o intervalo situado entre 1847,
quando foi criado o cargo, e 1889, fim da monarquia, ele sinaliza a mesma terça parte
da presidência do conselho como sendo dominada pelos representantes da província,
confirmando o depoimento de Paschoal de Moraes. E evidencia, ainda, o quase
monopólio que detiveram no exercício da função nos últimos dez anos do regime (um
pouco menos do que isso na verdade), quando, mesmo que não tenha sido
consecutivamente, controlaram o importante cargo por mais de sete anos.107
No que diz respeito à simples ocupação de cargos ministeriais, Kátia Mattoso
apresentou uma outra informação reveladora: “entre 1840 e 1889, exatamente 1/4 dos
228 ministros de Estado tinham origem na Bahia, que só não esteve representada em
cinco gabinetes”, dentre os trinta e seis que foram organizados. José Murilo de
Carvalho, por sua vez, apresentou números menos eloqüentes, contudo, mais
abrangentes, por serem relativos a todo o Império (desde a sua constituição, em 1822,
até o seu fim, em 1889). Seus dados revelam que, ao longo de todo esse período, a
parcela de ministros de origem baiana totalizou 19,18%. Esta marca era superior em
quase um ponto ao segundo colocado, o Rio de Janeiro/Corte, com 18,27%,108 que tinha
a vantagem de ser o centro da vida e administração imperial, cujas elites estavam,
portanto, muito mais próximas do poder, dispondo, teoricamente, de condições mais
favoráveis para disputá-lo.
Buarque de Holanda salientou, também, a significativa quantidade de membros
baianos no Conselho de Estado (órgão consultivo do imperador, criado em 1841), no
qual perfaziam cerca da quarta parte do total. Esta informação ajuda a compreender
106 “Baianismo”, palavra apropriada por Holanda, ou “dias de baianismo” foi uma “expressão usada por
Francisco Otaviano em carta dirigida a Gaspar da Silveira Martins, ambos políticos do Império”, segundo consta em SANTOS, Mario Augusto da Silva. O movimento republicano na Bahia. Salvador, Centro de Estudos Baianos-UFBA, 1990, p. 30, nota 34.
107 HOLANDA, Sérgio Buarque de, O Brasil Monárquico: do Império à República, São Paulo, DIFEL, 1983, p. 271-272. Kátia Mattoso e José Murilo de Carvalho também calcularam a predominância baiana na presidência do ministério, e informam que nas trinta vezes em que o cargo foi ocupado, a partir de 1847, os baianos foram ocupantes da função em onze ocasiões, o que representou em termos proporcionais 36,66%. Ver, MATTOSO, Kátia Maria de Queirós, Bahia, século XIX: uma província do Império. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p. 288-289; e CARVALHO, José Murilo de, A construção da ordem, p. 198-199, que traz um quadro de todos os gabinetes, com a indicação do número de representantes de cada província e a origem dos presidentes.
108 MATTOSO, Kátia Maria de Queirós, Bahia, século XIX, p. 288-289; e em CARVALHO, José Murilo de, A construção da ordem, p. 120, ver o quadro 21.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 89
melhor a decantada hegemonia, mas, registre-se, nem uma vez sequer foi mencionada
pelos nossos testemunhos nos documentos que tive a chance de consultar. Kátia
Mattoso, buscando ampliar o grau de envolvimento dos baianos com o alto poder de
Estado, afirmou que muitos deles “seguiam carreira na administração, como presidentes
de província[s] ou como altos funcionários nos ministérios e na magistratura”. E
concluiu o argumento de modo categórico: “o peso da Bahia na construção do Estado
nacional foi enorme e essencial”.109 A fim de reforçar o grande imbricamento dos
baianos nas estruturas do poder imperial, não custa lembrar que muitos alcançaram
altos postos e se embrenharam na carreira política atuando muito pouco na província
natal. Por exemplo, alguns, para serem eleitos senadores, tiveram suas indicações aos
pleitos como representantes de outras províncias, visto que seus serviços eram
necessários na Corte, mas tinham que enfrentar uma enorme concorrência com outros
nomes expressivos na própria terra.110
O que significava tanto poder?
Dados tabulados por José Murilo de Carvalho expõem as relações existentes
entre a representação nos ministérios, a bancada de deputados, a população e a riqueza
gerada pelas províncias, considerando para tanto dois períodos distintos. Quero fazer
uso dos mesmos para situar o lugar da Bahia no contexto geral da nação brasileira.
Devo, antes, fazer dois esclarecimentos. Primeiro, dentre os quatro parâmetros
utilizados por Carvalho, ficarei restrito às variáveis ligadas à riqueza e ao número de
ministros. Segundo, Carvalho restringe sua análise a seis das principais províncias, que
são Rio de Janeiro (incluindo a Corte), Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e
Rio Grande do Sul — o conjunto das restantes fica indicado sob o rótulo de “outras
províncias”. Logo, irei centrar o foco nas seis mais destacadas, aquelas que tiveram
maior proeminência durante o Império ou que teriam maior influência na Republica.
No primeiro período, correspondente ao momento inicial do Segundo Reinado, os
principais geradores de riqueza, em ordem crescente, foram o Rio (17,76%), a Bahia
(17,42%), Pernambuco (14,34%), Minas Gerais (8,91%), São Paulo (5,83%) e Rio
Grande do Sul (2,85). No tocante à ocupação de ministérios, a Bahia assumia a
primazia (26,09%), seguida das províncias de Minas Gerais e São Paulo (ambas com
21,75%), Rio (17,39%) e Pernambuco (4,34%) — os gaúchos não conseguiram fazer
109 HOLANDA, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 271; MATTOSO, Kátia Maria de Queirós, Bahia, século XIX, p.
289. 110 CARVALHO, José Murilo de, A construção da ordem, p. 122, cita que certos senadores eleitos fora do seu
lugar de origem tiveram a candidatura imposta às pequenas províncias, referindo-se, dentre eles, a Miguel Calmon (o Marquês de Abrantes) e Silva Paranhos (o Visconde de Rio Branco). Ver, também, o Barão de São Francisco (Joaquim Ignácio de Siqueira Bulcão). “A Bahia no Senado do Imperio”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 28, p. 157-165, 1902, que recapitula todos os senadores eleitos pela Bahia, mencionando, também, alguns dos que assumiram por outras províncias, como o Marquês de Inhampube e o Barão de Itapoan, dentre outros.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 90
nenhum ministro. Neste momento, a Bahia ocupava o segundo lugar em riqueza, porém
a dianteira no critério político, estando bem próxima ao primeiro colocado. Os números
demonstram a existência de certas distorções entre a riqueza gerada e a ocupação do
importante cargo político-administrativo por cada província, que seria, hipoteticamente,
revelador de pressões e interesses econômicos regionais. A Bahia, Minas e São Paulo
foram super-representadas em relação às suas riquezas. Pernambuco foi sub-
representada, enquanto o Rio teria mantido posição mais condizente na relação entre os
dois critérios.111
No segundo período, relacionado ao final do Império, o Rio liderava a geração de
riqueza (13,28%), seguido de São Paulo (12,53%), Minas (10,49%), a Bahia (9,7%),
que passou a ocupar a quarta posição, Rio Grande do Sul (8,55%) e Pernambuco
(8,52%), que caiu para sexto, embora estivesse, tecnicamente falando, empatada com
os gaúchos. No quadro político, o Rio aparecia na frente (16,66%), seguido de perto
pelas províncias da Bahia e Pernambuco (empatadas com 15,16%), Minas (13,63%) e
Rio Grande do Sul (12,12%) — São Paulo (9,09%) caiu, então, para o sexto lugar.
Nesta nova conjuntura, as disparidades entre províncias diminuíram, ocorrendo uma
distribuição mais eqüitativa dos cargos, ainda que apresentando pequenas distorções,
entre as seis maiores. Nota-se, entretanto, que mesmo reduzindo a porcentagem de
representantes, a Bahia continuou mantendo papel de destaque na ocupação de
ministérios — e isso ocorreu embora tenha visto diminuída sua importância econômica. 111 É preciso considerar que no critério da avaliação de riqueza José Murilo utilizou apenas os dados referentes
à receita provincial de 1840-41; enquanto os números relativos aos ministros, envolvem o período de 1840-1853. A partir do Segundo Reinado, o papel econômico da Bahia conheceu uma curva tendencialmente decrescente. As suas contribuições à riqueza nacional na década de 1850 eram, portanto, inferiores, proporcionalmente falando, àquela do início da década anterior. É bom comparar os números percentuais de cargo ministeriais ocupados pelos representantes de cada província com o percentual da bancada de deputados na Assembléia Geral. A Bahia, por exemplo, que teve, 26,06% dos ministros, contava com 13,33% dos deputados da Assembléia instalada na Corte. Para um melhor acompanhamento dos números apresentados em ambos os períodos, ver a tabela abaixo, montada a partir dos dados trabalhados por José Murilo de Carvalho. Desprezei uma variável por ele considerada, que foi a população provincial.
QUADRO COMPARATIVO: RIQUEZA X Nº DE MINISTROS X Nº DE DEPUTADOS (%)
Províncias Riq.* Min.** Dep. Riq.* Min.** Dep.
No Início do Segundo Império No Final do Segundo Império
Bahia 17,42 26,09 13,33 09,7 15,16 11,2
Rio/Corte 17,76 17,39 09,52 13,28 16,66 09,6
Minas Gerais 08,91 21,75 19,05 10,49 13,63 16,0
Pernambuco 14,34 04,34 12,38 08,52 15,16 10,4
São Paulo 05,83 21,75 08,57 12,53 09,09 07,2
Rio G. do Sul 04,57 00 02,85 08,55 12,12 04,8
Outras 31,17 08,68 34,3 36,93 18,18 40,8
Total
100***
100 (N = 23)
100 (N = 105)
100***
100 (N = 66)
100 (N = 125)
*Respectivamente, Receita Provincial de 1840-1841 e Receita Provincial de 1888-1889. **Respectivamente, para o período de 1840-1853 e 1871-1889. *** Os valores totais em moeda foram, respectivamente, R$ 4.980.895 e R$ 33.110.876. Fonte: CARVALHO, José Murilo de, A construção da ordem, p 120 e 122.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 91
Constata-se que fez a mesma quantidade de titulares que os pernambucanos, e
somente um pouco menos que aqueles oriundos da Corte e província do Rio de
Janeiro.112 Em compensação, relembremos essa informação, nos últimos dez anos
imperiais esteve com a presidência do Conselho por mais de sete.
Essas comparações pretendem relativizar os argumentos associados a um
possível determinismo do poder econômico sobre o desempenho privilegiado do poder
político. Só não quero dizer com isso, tampouco, que se deva desacreditar de hipóteses
que buscam relacioná-los, mesmo porque muitos acontecimentos históricos já
demonstraram as reais e inextricáveis conexões que se estabelecem entre ambos. A
intenção aqui é apenas, repito, de relativizá-los, visto que, por vezes, não constituem a
mais precisa explicação para os fatos, dando margem, desta forma, ao surgimento de
novos elementos que podem nos ajudar a melhor interpretar as experiências históricas.
Em ambos os períodos considerados, os números demonstram que nem sempre
uma maior riqueza correspondeu a um maior espaço na administração imperial. Isso
ficava mais evidente sobretudo nos anos finais do Império, quando se compara as
situações econômicas e políticas da Bahia e de São Paulo. Enquanto a primeira província
detinha grande influência, apesar da estagnação econômica, a segunda não obteve, no
plano político, a devida importância que passou a cumprir no plano econômico. Sobre a
questão, a historiadora Consuelo Novais considerou que “apesar de tais evidências
estatísticas, e a despeito do substancial poder exercido pelos baianos nos últimos e
mais importantes Gabinetes da Monarquia, o prestígio político da Bahia era pouco mais
que uma projeção residual de sua antiga riqueza e poder”.113
O caráter e o ideário político da elites provinciais — se mais ou menos liberais, se
mais ou menos conservadores — em associação com uma maior ou menor fidelidade ao
projeto político monárquico pareciam ser fatores mais influentes que as condições
econômicas de cada elite. Acrescente-se o indispensável preparo intelectual e
profissional que caracterizou as elites imperiais, formadas nos bancos universitários
portugueses ou brasileiros — condição esta que os nascidos nas províncias mais ricas
atingiam mais facilmente, dado os elevados custos para se manter os estudos até o
nível superior.114
Nesse sentido, a Bahia pôde se destacar bastante. As riquezas geradas pelo
açúcar, pelo comércio e por outros produtos engendraram o surgimento de uma
poderosa elite econômica, detentora dos necessários recursos que permitiram, em finais
112 Para melhor visualizar os dados, ver a tabela colocada na nota anterior. 113 SAMPAIO (de Quadros), Consuelo Novais, Formação do regionalismo no Brasil: Bahia e São Paulo no
século XIX. Salvador, Centro de Estudos Baianos / UFBA, 1977, p. 13. 114 Sobre a elite imperial, ver CARVALHO, José Murilo de, A construção da ordem, sobretudo a primeira a
parte da obra, designada “A construção da ordem: a elite política imperial”.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 92
do século XVIII e primeiras décadas do século XIX, instruir seus filhos e enviá-los para
cursar as universidades portuguesas. Após a criação dos cursos superiores no Brasil,
elas puderam sustentá-los nas cidades que possuíam faculdades — especialmente, em
Recife, e secundariamente São Paulo, onde eram oferecidos cursos de Direito, formação
acadêmico-intelectual que oferecia as maiores oportunidades para o ingresso nas
carreiras da administração pública e da magistratura. Havia na Bahia, portanto, uma
expressiva quantidade de homens bem educados e preparados, numa sociedade — a
brasileira como um todo —, que carecia de um maior número de pessoas com nível
elevado de instrução.
Ao analisar a elite política imperial, José Murilo de Carvalho afirma que ela
formava “uma ilha de letrados num mar de analfabetos”, o que dá a dimensão de como
a instrução encurtava o acesso ao núcleo do poder. Também, demonstra, num quadro
comparativo entre as províncias, que a Bahia teve 25,93% dos estudantes brasileiros
matriculados na Universidade de Coimbra para o período de 1772-1872, mantendo-se
muito próxima do Rio de Janeiro (26,81%). Esse número se sobressai quando
contraposto à população total da província, que representava 15,44% do total nacional,
considerando dados relativos a 1823 — o Rio de Janeiro tinha 10,70% da população.
Excetuando o Maranhão, que também teve grande número de alunos em relação à
população (8,78% para 2,41%), todas as outras províncias mantiveram alunos em
números percentuais próximos ou inferiores à grandeza da sua população.115
Penso ser essa uma forte justificativa para o grande número de baianos
aferrados ao âmago do poder político. Mas isso consistia em apenas um lado da
questão.
Outro aspecto que assumia importância igualmente significativa — e quiçá
mesmo, um grau superiormente significativo — diz respeito ao que suponho ter sido
uma extremada identificação da maior parte das elites baianas com o projeto político
imperial e, conseqüentemente, uma sólida fidelidade à figura do Imperador, que de
algum modo parecia ser recíproca e reconhecida. Também, a vocação e o gosto dos
baianos em praticar a centralidade do poder, assim como o caráter fortemente
conservador do ideário político da maior parte das elites se inscrevem entre os possíveis
fatores para tanta influência e para tanta colaboração com o regime.116
115 CARVALHO, José Murilo de, A construção da ordem, p. 55 e 63. 116 A respeito da fidelidade ao projeto político imperial, Kátia faz uma breve mas incisiva consideração acerca
do assunto, op. cit., p. 289 e 651. A respeito da centralidade do poder, segundo alguns historiadores, durante muito tempo os baianos não conseguiram digerir a perda com a transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763. Por conta disso, fico imaginando que ao se imiscuírem nas entranhas do regime imperial, logo após a Independência, talvez julgassem estar recuperando um pouco do poder político perdido.
Capítulo 1 – “Mater Heróica” e “Rainha do Norte” 93
As elites da época republicana tinham plena consciência da hegemonia que seus
antepassados retiveram. O imaginário representado pela idéia da Bahia como a “Atenas
Brasileira”, que será discutido logo mais, apontava a lúcida visão de que uma formação
intelectual sólida foi elemento deveras preponderante para a posição política que os
baianos ocuparam no Império. Quanto à fidelidade ao regime, considero que isso pode
ser observado, por um lado, na tibieza do movimento republicano na Bahia e na
hesitação em aderir à nova ordem.117 Porém, a ênfase na existência de tal fidelidade
não deve obscurecer o fato de que ela deve ser pensada como tendência predominante,
mas não única; tampouco significa que os leais seguidores baianos da coroa fossem
completamente desprovidos de críticas às imperfeições do regime e aos problemas que
vinham afetando a monarquia.
117 Sobre esse tema terei a oportunidade de tratar na próxima parte do trabalho. De qualquer modo, ver como
referência as discussões de SANTOS, Mario Augusto da Silva, op. cit.; e ARAÚJO, Dilton Oliveira de. Republicanismo e classe média em Salvador, 1870-1989. Salvador, 1992. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — FFCH, UFBA, 1992; numa perspectiva de síntese histórica, ver Luís TAVARES, Henrique Dias, História da Bahia. São Paulo, Editora UNESP; Salvador, Editora da UFBA, 2001, p. 294-298; além de uma espécie de testemunho de AMARAL, Braz do, História da Bahia, p. 315-379.
Capítulo 2 – “Atenas Brasileira”: o talento intelectual, a centralidade cultural e os estadistas baianos
Em tempos de calmaria, a Bahia procurou se destacar pela proeminência de sua
cultura, que fazia dela um lugar reservado para o surgimento de gênios nas mais
diversas áreas (intelectuais, artísticos, literários, políticos, etc). Assim, quando não
cumpria sua função de mater heróica, imbuída dos valores de Esparta com sua verve
guerreira, contaminava positivamente a atmosfera cultural e política do país assumindo
ares de Atenas Brasileira... Recorrendo a uma alegoria inspirada na cultura clássica
grega, afirmou-se o duplo papel da Bahia: “tem sido Sparta e Athenas — o heroismo
que nunca se desmentiu, a intelligencia que nunca morreu, o braço forte para a defeza
das instituições e da integridade pátrias, o verbo possante para ditar o direito, para
proclamar a justiça, para glorificar a liberdade”!1
De fato, nas primeiras décadas do séc. XX — e até mesmo além de seus meados,
se quisermos avançar um pouco mais — a maior parte dos baianos compartilhavam
uma vaidade que parecia irrefreável, qual seja a posse de um talento intelectual
superior, manifestado no especial amor que dedicavam às letras, artes e ciências.
Nestes misteres abundavam exemplos de conterrâneos que teriam se destacado, todos
eles sempre iluminados pelas suas altas capacidades intelectuais. Essa profusão de
grandes e respeitáveis artistas, oradores e homens de ciência (jurídica, médica, outras)
orgulhava profundamente os baianos. Dentre eles, muitos se dedicaram à vida pública,
atuando como políticos ou propagandistas de causas sociais, econômicas, políticas, etc,
promovendo ações de elevado sentido patriótico e alcançando alguns o porte de
verdadeiros estadistas, segundo as percepções da época. Como nos dizia Teodoro
Sampaio, “bahianos, desde os tempos coloniaes, distinguiram-se nas lettras, nas artes e
nas industrias. Escriptores, poetas, oradores, homens de Estado, dos mais illustres que
tem tido o Brasil, são filhos da Bahia”.2
A alta capacidade intelectiva e artística manifestada pelos conterrâneos do
passado mantinha-se como um valor altamente prestigiado pelas elites baianas da era
republicana, que, conseqüentemente, buscavam reproduzi-lo. Em volumosa publicação
inglesa sobre o país, designada Impressões do Brasil, datada de 1913, há um
comentário sobre a Bahia que corrobora o que foi dito até aqui. Nela se diz ser algo
1 “Ave Bahia”. In Polyanthea. [sem referências] 2 SAMPAIO, Teodoro, O Estado da Bahia, p. 6.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 95
certo que o povo bahiano procura salientar-se pelo seu progresso nas lettras, artes e sciencias; e d’ahi a explicação do facto, não observado em outros Estados, de estarem os seus estabelecimentos de ensino sempre cheios. Entre as populações do Brazil nenhuma alimenta tanto a presumpção de superioridade intellectual, como a gente bahiana; e d’ahi o esforço que faz cada um, menino, rapaz ou homem, por se exceder aos seus concidadãos. E em nenhuma outra parte mais se honra o nome dos grandes homens do que naquelle pedaço do território que se extende do rio Real ao rio Mucury. Não há, na Bahia, quem não venere os nomes dos grandes conterrâneos, taes como o Barão de Cotegipe e o Conselheiro Zacharias, astros de primeira grandeza do tempo do Império; Ruy Barbosa, Manoel Victorino e J. J. Seabra, eminentes personagens da República. E, convencidos de que é pelo saber e pela illustração do espírito que um homem se póde destacar dos outros, os bahianos dão especial attenção aos seus estabelecimentos de ensino.3
Nas Impressões do Brazil foram descritos aspectos da história e geografia,
população, sociedade e economia do país, bem como as oportunidades de negócio que
oferecia. Nela incluía-se também uma apresentação do mesmo tipo, relativamente
densa, considerando-se o propósito da obra, sobre cada Estado da federação. Para os
seus editores, as conseqüências da inclinação intelectual dos baianos eram os
estabelecimentos de ensino cheios e a especial atenção devotada a eles. Conclusão essa
que me parece muito generosa, fruto de uma apreciação ligeira que teve por base, de
certo, o acesso a informações precárias ou o arroubo em justificar uma premissa que já
havia muito tempo estava em voga. Embora não haja nenhum estudo aprofundado
sobre a questão, as evidências demonstram as dificuldades da instrução no Estado. A
quantidade dos estabelecimentos de ensino públicos era insuficiente para o total da
população baiana, uma das maiores do país. Além disso, era desconfortável a situação
da maior parte do professorado, sempre às voltas com atrasos no pagamento de
salários. Seria demais pedir que dispusessem dos dados produzidos por estudos que
vieram à luz muitas décadas depois, mas, mesmo no período, esses problemas já eram
fartamente discutidos nos órgãos de imprensa e em documentos governamentais. O que
se pode dizer é que pelos menos em relação aos estabelecimentos oficiais de ensino a
atenção dispensada não era tanta, basta argumentar que a política de educação pública
era deficiente. Talvez os editores das Impressões do Brasil tenham se referindo apenas
aos estabelecimentos particulares, onde se formava a maior parte das elites, a mesma
que reclamava o legado das tradições imperiais da Bahia. Quanto ao fato das escolas
estarem sempre cheias, conquanto possa se admitir que era motivada pelo especial
apego dos baianos às letras, arte e ciências, talvez seja mais plausível considerar que
derivasse da tão limitada oportunidade de acessá-las, em meio a uma demanda que
seria normal, se existissem em maior quantidade.
3 Impressões do Brazil no Século Vinte. Sua História, Seo Povo, Commercio, Industrias e Recursos.
Lloyds Greater Britain Publishing Company Ltd. 1913.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 96
Deixando de lado a crítica, para retomar o fio das representações, elaboradas
nas primeiras décadas do século XX, tem-se que as observações feitas pelas Impressões
do Brazil em torno da “presunção de superioridade intelectual”, o culto ao nome dos
grandes homens, a aspiração de superarem uns aos outros se afinam plenamente com o
que informam outros documentos produzidos no período. Os sujeitos dessa nossa
história, ou seja, as elites baianas, consideravam-se os legítimos herdeiros — e diga-se
mais, herdeiros vaidosos e orgulhosos — dos atributos demonstrados pelos figurões
intelectuais e estadistas/políticos baianos de uma época relativamente recente, como
foram para eles os anos imperiais, momento em que puderam exercer todos esses
atributos superiores, dir-se-ia, na mais plena fulgurância e, talvez, máxima capacidade.
Um exemplo da expressão de orgulho por esses “ascendentes” quem nos dá é o ainda
jovem Wanderley Pinho, que se tornou, posteriormente, um afamado historiador. Pinho
era neto do Barão de Cotegipe, prócer do Império, tantas vezes ministro e um dos mais
longevos chefes de gabinete e, para completar suas credenciais, filho de um governador
do Estado (Araújo Pinho, 1907-1911). Em discurso pronunciado no Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia, no ano de 1918, ele comentava acerca do assunto:
O orgulho de nossa prosápia bahiense, a vaidade dessa estirpe de heróes, de oradores, de estadistas, de homens de sciencia, de poetas, que dominaram da Bahia todo o paiz no passado e hoje sahem della para triumphar onde quer que acampem e exercitem as armas com que os sabe aperceber a Bahia; a memória dos feitos de que fomos theatro ou protagonistas; esse santo orgulho [...]. Outro orgulho não é, nem outro sentimento, o estimulo que nos revigora a nós do Instituto e que nos leva a todos a meditar, em solemnidades como esta, na grandeza do nosso valor e no valor de nossa grandeza, na magnitude do nosso passado e nas incertezas de nosso futuro. Esse orgulho é alma da Bahia [...].4
Notamos, neste trecho de Wanderley Pinho, como se tornou mais conhecido o
personagem, a preocupação básica das elites baianas da época republicana, qual seja “a
incerteza” quanto ao lugar que elas poderiam ocupar no cenário nacional futuramente,
sobretudo quando se contemplavam as “dificuldades” do seu presente em relação à
“fulgurância” que as caracterizaram no passado imperial.
A idéia de Atenas Brasileira
A posse de tanta gente de gênio (heróis, oradores, estadistas, cientistas, homens
de ciência e poetas) fez com que em algum momento muitos passassem a se referir à
4 PINHO, José Wanderley de Araújo. “Discurso” (Pronunciado no dia 2 de Fevereiro de 1918). Revista do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 44, p. 323-329, 1918, p. 327. Ver o perfil biográfico de Wanderley Pinho no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Pinho”).
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 97
Bahia como a Atenas Brasileira, título esse que ensoberbecia profundamente as suas
elites. De certo esse título englobava as realizações nas diversas formas de arte (a
pintura, a escultura, a arquitetura, o teatro e a música). Entretanto, enfatizava-se mais
freqüentemente as atividades que pressupunham maior talento intelectual (no sentido
estrito do termo), em detrimento daquelas mais associadas às habilidades motoras ou
manuais dos indivíduos, como vinha a ser o caso de algumas formas de arte.
A cidade-Estado grega foi o núcleo catalisador e dominante de uma civilização
que fincou raízes, constituindo-se num importante — talvez o mais importante — berço
cultural do mundo ocidental. Envoltos num ambiente sócio-cultural que valorizava
sobremaneira os fundamentos clássicos da cultura de origem greco-romana, base de
toda uma educação filosófica e histórica transmitida aos jovens estudantes do século
XIX e princípio do século XX, os homens da época, de certo, tentaram estabelecer
possíveis similitudes entre a Bahia e a cidade-Estado de Atenas. A designação
procurava, portanto, firmar um paralelo entre o pressuposto papel de centralidade
exercido pela Bahia, no vasto plano político e cultural brasileiro, e a função semelhante
que tivera Atenas, na Grécia Antiga. Mas era Salvador, até poucas décadas atrás,
comumente referida como Cidade da Bahia, que parecia ocupar a princípio a função de
Atenas Brasileira, embora muitos dos nomes que tenham sustentado o “mito” não
fossem originários e sequer tenham vivido durante muito tempo na cidade.
Já tive a oportunidade de demonstrar, no capítulo anterior, que a Bahia, segundo
as representações elaboradas, não foi apenas terra mater, mas também alma mater da
civilização brasileira. Por isso, ao se produzir a identificação entre ela e Atenas estava se
configurando uma feição do seu próprio espírito. Nesse sentido, “a alma Bahiana, a
geretriz das maiores individualidades políticas, literárias e scientiificas do segundo
reinado, aquella que, na bocca de oiro do Chrysostomo brasileiro, José Bonifácio o
Moço, era a ‘a heroína hercúlea dos seios titânicos, essa que trazia do exilio as sombras
dos desterrados para coroal-as de luz’”, pretendia ver a sua imagem impregnada de
qualidades artísticas, intelectivas e políticas. E como esse espírito era tido como
imutável, cumpria a Bahia o papel de “eterna metrópole da intellectualidade brasileira”.5
A origem desse título é difícil precisar, mas certamente ele advinha do próprio
século XIX, tempo em que os grandes personagens que justificaram o recebimento de
tal honraria exibiram seus dons. A Bahia Ilustrada traz, em um número lançado em
junho de 1921, cuja capa é dedicada a Castro Alves, um desses nomes que
engrandeceram a terra, uma breve descrição de como o afamado poeta dos escravos foi
apresentado, no Rio, por um grande escritor oitocentista, José de Alencar, a aquele que
5 “O Dois de Julho”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 31, jun./1920.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 98
seria o maior escritor nacional, Machado de Assis. Nessa apresentação, indica-se o
sentido do termo Atenas Brasileira, bem como a sua aplicação no século XIX:
José de Alencar, apresentando Castro Alves a Machado de Assis, advertiu logo que o immortal condoreiro da Espumas fluctuantes “nasceu na Bahia, a pátria de tão bellos talentos; a Athenas brasileira que não cança [sic] de produzir estadistas, oradores, poetas e guerreiros”.6 [negrito no original]
A veracidade do fato envolvendo Castro Alves, José de Alencar e Machado de
Assis é algo que não posso provar. De qualquer modo, se não foi exatamente desse
modo que a coisa transcorreu, a força do mito tratou de tranformá-lo em verdade
continuamente repetida pelos baianos. Dezoito anos antes do relato ser publicado na
Bahia Ilustrada, precisamente, em 1903, na edição número 5 da Revista do Grêmio
Literário da Bahia, o baiano Mello Moraes Filho, estudioso das festas e tradições
populares, escrevendo sobre Castro Alves, relembrara o ocorrido: “A Bahia, que no dizer
do famoso escriptor do Guarany é a Athenas do Brasil, pela quantidade de grandes
homens que continuamente apresenta na política e na guerra, na poesia e nas artes,
com os olhos humidos de pranto, guarda-lhe orgulhosa o tumulo”.7
Dois aspectos sobressaem nos exemplos citados. O primeiro diz respeito a
autoria do título ― e nos fixemos nele inicialmente. A memória histórica das
apresentações envolvendo Castro Alves, José de Alencar e Machado, conforme
demonstra os trechos transcritos, parece sugerir que Alencar teve alguma
responsabilidade na criação do mesmo. Os encontros relatados ocorreram em fevereiro
de 1868, quando Castro Alves partiu de Salvador para São Paulo, onde pretendia
retomar os estudos de Direito, passando antes, porém, pelo Rio Janeiro, cidade em que
conheceu primeiro a José de Alencar e, depois, a Machado de Assis.8 Mas esta
impressão inicial pode ser desfeita se considerarmos que três anos antes, em 1865,
Francisco Moniz Barreto, o afamado poeta-repentista, do qual falarei mais adiante,
produziu versos elogiosos à Bahia que traziam uma referência ao título, envolto, por
sinal, num repertório de conteúdos simbólicos muito próximos às citações supracitadas:
Eu te saúdo, majestosa e bela Princesa das montanhas, pátria minha, Bahia heróica, brasileira Atenas!
6 “Castro Alves e Ruy Barbosa”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 39, jun./1921. 7 FILHO, Mello Moraes. “Castro Alves”. Revista do Grêmio Literário da Bahia, nº 5, mar./1903, p. 261, Usei
a edição fac-similar da publicação, cuja referência completa é Revista do Grêmio Literário da Bahia: 1901-1904. Salvador, Academia de Letras da Bahia / Artes Gráficas e Industria Ltda., 1988. Todas as próximas citações da revista terão por base essa edição fac-similar; as referências de página seguem também a numeração constante na mesma.
8 MARQUES, Xavier. Vida de Castro Alves. Rio de Janeiro, Topbooks; Salvador, UCSAL/Academia Baiana de Letras, 1997, p. 82-85.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 99
Eu te saúdo, ó mãe d’heróis famosos, Berço ilustre de sábios e guerreiros, Fada d’ inspirações, terra de livres!9
(grifo meu)
Estes versos possuem, também, a utilidade de demonstrar que as louvações à
Bahia era uma prática comum desde o Império.
No que diz respeito à origem autoral e, conseqüentemente, ao momento inicial
do seu uso, não se pode aprofundar, pois não foi localizada nenhuma informação. Não
sei se nossos informantes queriam relacionar José de Alencar à criação do título. Talvez
intencionassem acentuar a legitimidade do mesmo, afinal foi repetido por um dos mais
importantes escritores e intelectuais brasileiros da época, que, ao aplicá-lo no contexto
descrito, o da apresentação de Castro Alves a Machado de Assis, reconhecia a
propriedade da associação entre Atenas e Bahia.
O segundo aspecto a ser destacado — e para mim o mais relevante — é que
ambas citações demonstram com clareza o sentido mais estrito que o epíteto assumia,
distiguindo a Bahia como um lugar que, tal como a antiga Atenas, produzia estadistas,
oradores, poetas, sábios e também guerreiros.
Embora tenhamos visto as referências a Esparta para definir o caráter guerreiro
dos baianos, ser Atenas não deixava de englobar um pouco desse elemento. Esse
arranjo se apresentava, de certo, mais engrandecedor, pois juntava força e inteligência,
contrariamente à citação a Esparta que significaria, tal como se cristalizou no
conhecimento histórico, apenas força. Daí, o uso mais freqüente de referências que
situavam a Bahia como a Atenas Brasileira, um título que lhe marcaria por muito tempo,
sendo citado abundantemente nos textos. Já a comparação com Esparta foi encontrada
apenas circunstancialmente e sempre relacionada à defesa do território brasileiro nas
guerras. Sendo a guerra um tipo de episódio certamente bem menos comum que as
manifestações de cunho artístico, intelectual, científico e cultural — posto que aquela se
dava esporadicamente, enquanto estas eram vivenciadas cotidianamente —, tem-se,
possivelmente, un fator que fazia recair a ênfase nas qualidades atenienses.
Em razão da curiosidade que encerra, é interessante acrescentar um
desdobramento da questão: não bastando ser a Atenas Brasileira, houve quem, no
início do século XX, estendesse a influência da Bahia para a dimensão continental,
transformando-a na “Athenas da América Latina”. Com isso justificava-se a instalação
no Grêmio Literário da Bahia (1860-1944) — importante instituição sediada em
Salvador que reuniu os cultores da letras locais e produziu uma revista expressiva entre
novembro de 1901 e outubro de 1904 — do Comitê Central Brasileiro da “Societá
9 Apud ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., v. 2, p. 284.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 100
Internazionale Elleno-Latina”, fundada por um professor da Universidade de Roma,
conde Angelo de Gubernatis, que teria sido o responsável pela elevação da Bahia na sua
função de Atenas do Brasil para da América Latina.10
O título sob esta última fórmula não chegou a fazer maiores adeptos, mas se
revelou, nesse fato, quanto poderia ser simbolicamente vantajoso redimensionar para
mais a “influência” da Bahia nos tratos que atingiam amplitudes internacionais. O
fundamental, entretanto, era que, uma vez “abroquelada no seu orgulho de Bahia-
Mater”, repetindo as palavras do poeta Costa e Silva11, subia degraus e reforçava seu
papel preponderante na história do país assumindo a condição de Atenas Brasileira.
A tradição das atividades culturais baianas
Não há dúvida de que o termo se refere com maior precisão ao século XIX,
especialmente ao período do Segundo Reinado, quando, do ponto de vista da nação
independente, os baianos mais se destacaram no cenário nacional. Mas, pelo que
acenam nossos informantes do passado, a germinação das condições e dos talentos que
fariam da Bahia reconhecida por tão honroso epíteto pode ser localizada, sem dúvida,
em tempos mais remotos. Para isso, basta-nos acompanhar o que se dizia em ralação à
atividade cultura nos séculos que antecedem a Independência. Tratadas como o lado
reverso das guerras a que era impingida em certos momentos, as preocupações
artísticas, intelectuais e culturais pareciam definir a condição natural do lugar em
tempos de paz:
São bem conhecidos os fastos da nossa vida colonial. Si durante as guerras que teve de enfrentar se mostrou a cidade do Salvador capaz de lucrar e resistir, como na expulsão dos hollandezes, no remanso da paz cultiva carinhosamente as sciencias, as letras e as artes, enviando à metrópole homens superiores pelos talentos e pelo saber. Distingue-se entre os clássicos da língua um padre Francisco de Souza; assombra às cortes a satyra inexcedível de um Gregório de Mattos; admiram-se a paciência e os estudos de Fr. Vicente do Salvador e de Sebastião da Rocha Pitta; brilham nas cathedras da Universidade de Coimbra, entre outros, José da Silva Lisboa e Alexandre Rodrigues Ferreira; e por toda a parte, e sempre, ostenta a Bahia os magníficos brazões da alta mentalidade e do real merecimento de filhos gloriosos.12
10 O dr. Egas Muniz Barreto de Aragão, médico e poeta, escrevia sob a alcunha de Pethion de Vilar, foi o
organizador do Comitê Brasileiro da “Societá”. Revista do Grêmio Literário da Bahia, nº 10, ago./1903, p. 362.
11 Revista do Grêmio Literário da Bahia, nº 7, mai./1902, p. 103. 12 BASTOS, Filinto. “Discurso”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 31, p. 35-
47, 1905, p. 38.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 101
Nota-se, nesse recuo ao período colonial, que na Bahia despontaram, segundo os
discursos então produzidos, os primeiros sinais de elevação cultural e intelectual do
Brasil. Teria cumprido, de algum modo, desde de então, certas funções que tanto
enobreceram a verdadeira Atenas. Faltou-lhe, nesse primeiro instante o elemento
político, limitado pela própria condição de subalternidade à metrópole portuguesa, que
impedia o exercício pleno e independente desse tipo de prerrogativa pelos brasileiros.
De qualquer forma, não me parece inadequado principiar a apresentação dos homens e
instituições que conferiram à Bahia o título de Atenas Brasileiras pelos fatos coloniais.
Além do mais, tendo sido, como largamente se pressupunha, o berço do território, o
berço da religião cristã, o berço da população brasileira, o berço da nacionalidade,
dentre tantas outras coisas, nada mais natural que fosse designada também como
“berço de illustração e de civismo”.13 E foi enquanto tal que veio a projetar inúmeros
sujeitos de dotes artísticos e intelectuais, assim como diversos estadistas — estes
últimos, porém, surgidos em épocas bem posteriores, somente quando a nação
começava a se preparar para a independência.
Atividades e vocações literárias
No plano da cultura literária, é interessante acompanhar o pensamento de
Almachio Diniz, literato, crítico, advogado e professor da Faculdade Livre de Direito da
Bahia. Em 1911, ele publicou um opúsculo com pouco mais de 65 páginas designado
Cultura Literária da Bahia Contemporânea, onde, longe de se restringir exclusivamente
aos anos mais recentes da produção literária regional, como aparentemente indica o
título, buscava resgatar os nossos antecedentes nos tempos coloniais. Nesse trabalho, o
autor distinguia três fases na história da literatura nacional: o primeiro referia-se ao
próprio período colonial; o segundo teve início com a emancipação política e
correspondia ao período imperial; o terceiro coincidia com a proclamação do regime
republicano e se estendia até o momento da escrita do autor. Avaliando o desempenho
da Bahia, em cada fase, concluía que ela “fulgurou muito no primeiro período, que
triumphou, por vezes, no segundo, [e] não perdeu a sua notoriedade no terceiro”,
sendo que estava interessado, sobretudo, em demonstrar a pertinência da afirmação
que fazia a respeito do último momento.
Observa-se Diniz a assinalar que, no campo literário, foi na época colonial que
mais se manifestou o papel de destaque, centralidade e primazia da Bahia. Tal
percepção desenvolve-se um pouco na contramão do que tenho dito até aqui a respeito
da proeminência cultural baiana localizada sobretudo nos anos oitocentistas, como
13 AZEVEDO, Leôncio. “Data Bahiana”. A Voz do Povo, Bahia, nº 11, jul./1920.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 102
geralmente nos falam os documentos. No tocante ao século XIX, apenas “por vezes” ele
percebe a ocorrência de “triunfos”. A respeito da fase inicial, fica patente o seu
entusiasmo:
É notória a importância literária da Bahia, não só atravez de formação nacional, mas também em relação ao desenvolvimento da literatura no mundo extrangeiro. Como núcleo de civilização sul-americana, fartamente protegida pelo acaso, durante todo o tempo colonial, foi o centro, incontestavelmente, da cultura brazileira. Da Bahia irradiou-se, por todas as outras capitanias em que esteve desigualmente dividida a vasta possessão luzitana, o fulgôr das letras portuguêsas e espanholas [...]. Innegavelmente foi a Bahia o empório intellectual do novo continente, não só pela sua posição geographica, como também pela condição de centro político da apreciada colônia. Em virtude disto, nenhum Estado brazileiro possúe uma maior historia literária. E o estudo da evolução intellectual do Brazil tem na Bahia o maior manancial histórico, tanto quanto era ella a recipiente, de primeira mão, da civilisação européa, e no seu seio se revelaram, reproduzindo perfeitamente o estado evolutivo da intellectualidade lusitana, os primeiros talentos literários e os mais pujantes belletristas da possessão portentosa. De certo modo, pois, traçar-se a trajectoria evolutiva da literatura bahiana é delinear-se em suas verdadeiras dimensões a historia literária de todo o Paiz. O engrandecimento de uma reflecte sobre a outra, cabendo, incontestavelmente, à Bahia toda a gloria na prioridade evolucional, pela fôrma e pelo arranjo nacional, de que foi dotada.14
Diniz defende a idéia de que os fundamentos da literatura nacional foram
germinados na Bahia, a partir da assimilação de padrões e valores, ou, se preferir,
como reflexo daquilo que era produzido na metrópole portuguesa — posicionava-se,
assim, quanto a um problema muito discutido no seu contexto de produção e que, mais
recentemente, ainda tem persistido nos estudos do tema: a existência ou não de uma
literatura tipicamente nacional na época da colonização. Retornando, contudo, à
questão dos pendores literários, o argumento inicial de Almachio Diniz em prol da
existência de uma vida cultural e de uma significativa expressão literária na Bahia
colonial abria espaço para a enumeração — não somente por ele, mas também por
outros estudiosos locais — de alguns nomes e instituições que, seguindo os modelos
vigentes no outro lado do Atlântico, conferiam relevo à Bahia na história nacional,
quando colocada em comparação às demais partes do país. A função de desbravadora,
de generatriz, de marco-lugar inaugural ou, simplesmente, de inspiradora (esta última
para o caso dos nomes que não haviam nascido nela, mas fizera da mesma o local das
suas produções literárias ou intelectuais) tantas vezes atribuída ao lugar, como tivemos
oportunidade de verificar, era, na circunstância, novamente evocada.
Julio Barbuda, filólogo e professor de português na Escola Normal da Bahia,
também fez questão de demonstrar os antecedentes coloniais da elevação cultural
baiana. Em artigo constante no Diário Oficial (Edição Especial do Centenário, 1923), ele 14 DINIZ, Almachio. Cultura Literária da Bahia Contemporânea, Bahia Typographia Baiana, 1911, p.01-06.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 103
se propõe a fazer uma apresentação acerca da “Evolução das Letras na Bahia”,
descrevendo século a século o desenvolvimento da cultura letrada e da atividade
intelectual. Para o século XVI, salienta a atuação dos jesuítas em prol da educação,
citando, dentre outros, Manuel da Nóbrega, João de Aspilcueta de Navarro e José de
Anchieta (em sua breve passagem pela terra). É quando comenta o século XVII, no
entanto, que reforçava a imagem de pioneira, a partir do pressuposto do surgimento na
Bahia de uma raça e cultura nacionais:
Dois foram os campos de acção de atividade intellectual d’esse século: a oratória e a poesia. Foi o principal theatro da expansão d’essa atividade, a Bahia, para onde convergiu a maior somma dos elementos ethnicos que entraram em conflicto, no território nacional, e onde mais depressa se amalgamaram, pelo cruzamento, no brasileiro, que já então se ia tornando um typo definido, em seus caracteres physicos, moraes e intellectuaes. E a Bahia é o scenario em que mais avulta o genuíno typo do nacional, e em que, portanto, mais amplamente se desdobra a actividade intellectual do paiz, ornamentada com os lavores da cor local, ninho caroável, em que o nativismo começou a ensaiar seus primeiros carmes. Antonio Vieira e Gregório de Mattos são os dois heróes de mais vulto, no aquilatamento do valor literário.15
Aloísio de Carvalho Filho, por sua vez, referindo-se ao período colonial, procurou
decantar, além da primazia, as qualidades superiores dos nomes que então
despontaram, muitos deles ainda pouco conhecidos (ou mesmo desconhecidos), porém
merecedores de reverência e lembrança. No método por ele empregado para apresentar
a grandeza cultural da Bahia, fica notória, assim como sucede com Julio Barbuda, nas
palavras transcritas acima, a repetição de velhos argumentos e de velhas abordagens —
basta lembrarmos do capítulo anterior deste trabalho — em torno de um novo tema:
É estudo necessário, que ainda está por se fazer, para a affirmação definitiva da nossa fama, à altura do nosso valor, é este de mostrar, minuciosamente, século a século, nome a nome, com os documentos da historia e os testemunhos da critica, o modo brilhantissimo por que a terra bahiana contribuiu, e nunca cessou de concorrer, para o fulgor das letras brasileiras, de que, excepção feita ao romance e da crítica, são seus os maiores nomes. Basta, em realidade, uma rápida consulta aos livros de historia da nossa literatura, ou às varias anthologias nacionaes, para o conhecimento dessa verdade incontroversa. Pertence-nos o primeiro nome brasileiro da literatura, GREGÓRIO DE MATTOS, bahiano, filho, já, da risonha terra americana, primeiro rebento da nova gente que nella começava a florir, e cujas qualidades e defeitos se reflectiram, todos, na sua individualidade inconfundível. [...] Na terra bahiana resôa, a esse mesmo tempo, a eloqüência prodigiosa de VIEIRA, de cuja palavra guardam, ainda, as nossas egrejas, Cathedral e da Ajuda, os echos inextinguíveis. Desta cidade, assim por todos os aspectos lendária, elevou-se aquella voz grandiosa, na maior das orações sacras
15 BARBUDA, Julio. “Evolução das Letras na Bahia”. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador,
Edição Especial do Centenário, p. 80-90, 2 de julho de 1923, p. 81.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 104
que já se proferiram em púlpitos do mundo, como está hoje consagrado o celebre sermão da deprecação, pelo bom sucesso das armas lusitanas
contra os hollandêses.16
Sem dúvida, Gregório de Matos e Antonio Vieira foram os nomes que mereceram
maior destaque nas citações ao período colonial, algo que fica exemplificado tanto pelo
excerto de Júlio Barbuda quanto pelo de Aloísio de Carvalho Filho. E tomando os dois
ilustres sujeitos como referência, pode-se elucidar a dualidade da forma de contribuição
da Bahia às letras e à cultura nacional. Ora serviu de berço natal para figuras
expressivas, como era o caso de Gregório, com quem “a Bahia, talvez mais se exalçou”
e que foi “o primeiro poeta brasileiro de verdadeira inspiração”. Ora serviu de espaço
para a propagação dos dons de outros, que, tendo nascido em lugares distantes, aqui se
fizeram reconhecidos, aqui iniciaram sua produção, aqui encontraram inspiração para
sua obra, como teria sido o caso de Vieira, que “ainda que tivesse nascido em Portugal,
prestou relevantes serviços ao Brasil, e viveu na Bahia, sua segunda pátria, onde
aprendera e conquistara tudo quanto foi”.17
As poesias de Gregório de Matos e os sermões de Antonio Vieira constituíram as
grandes obras literárias que foram dadas ao Brasil pela Bahia na época da Colônia. Mas
eles não foram os seus únicos representantes dignos de menção. Como salientara
Aloísio de Carvalho Filho, outros, menos conhecidos, também mereciam receber suas
respectivas partes do crédito. Fazendo um apanhado das citações de vários
informantes, pode-se mencionar: o poeta e orador sacro Eusébio de Matos, irmão de
Gregório; o poeta Bernardo Vieira Ravasco, irmão de Antonio de Vieira; os poetas
Manoel Botelho de Oliveira (“o primeiro poeta brasileiro que deu, em livro, obra sua, à
luz da publicidade, em 1705”, com a de Música de Parnaso), Frei Manuel de Santa Maria
Itaparica (também orador sagrado) e João de Brito Lima, todos baianos; os cronistas
Frei Vicente do Salvador (autor da História da Custódia do Brasil, “primeira história do
Brasil”), padre Francisco de Sousa, Nuno Marques Pereira (autor de O Peregrino da
América) e Sebastião da Rocha Pita (“autor do importante livro História da América
Portuguesa”). Estes são, a bem da verdade, apenas alguns dentre outros nomes
citados.18
Há de se mencionar ainda o surgimento de duas academias literárias, no século
XVIII, as quais teriam inserido a Bahia no movimento das Arcádias. A primeira, a
16 CARVALHO FILHO, Aloísio de. “A Bahia no Romance Brasileiro”. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade
do Salvador, Edição Especial do Centenário, p. 99-101, 2 de julho de 1923, p. 100. O estudo pedido por Aloísio de Carvalho Filho, ao que tudo indica, só veio a ser realizado pouco mais de 25 anos depois, em 1949, pelo historiador baiano Calmon, Pedro. História da literatura baiana. s / l, Publicação da Prefeitura Municipal do Salvador, 1949. Embora Calmon seja, em diversos momentos, um apologista da Bahia, nessa obra ele põe em dúvida a qualidade de diversos literatos baianos.
17 BARBUDA, Julio, op. cit., p. 81. 18 Idem, ibidem; DINIZ, Almachio, op. cit. Para informações mais detalhadas, ver CALMON, Pedro, op. cit.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 105
Academia Brasílica dos Esquecidos, foi instalada em março de 1724, com o concurso do
vice-rei, D. Vasco Fernandes César de Menezes, futuro conde Sabugosa. Dela tomaram
parte os supracitados Sebastião da Rocha Pitta e João Brito de Lima. Quase um ano
depois da criação (fevereiro de 1725), seus membros deixaram de se reunir,
determinando o fim da instituição. A segunda, a Academia dos Renascidos, foi fundada
em junho de 1759. Durante a sua breve existência, “teve quarenta e seis sócios
effectivos e setenta e seis supranumerarios”. Extinguiu-se após a ocorrência de
quatorze ou quinze sessões, que eram realizadas quinzenalmente, em conseqüência da
prisão do seu fundador, José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Mello, nascido
português mas de pai baiano, que se desentendera com o Marquês de Pombal por conta
de ser acusado de inconfidência.19
De um modo geral, os nomes que lustram o período colonial foram citados muito
mais em textos especializados (livros, folhetos e artigos mais extensos de revista
“científicas” ou especiais), e menos em outros meios de circulação (as revistas
mundanas e de variedades). Quando se desloca a atenção para século o XIX, além de
serem tratados mais exaustivamente nos textos especializados, observa-se uma
freqüência maior de citações aos grandes poetas e escritores nas revistas voltadas para
um público mais ampliado — alimentando a pretensão de fazerem uma espécie de
propaganda da Bahia, essas revistas buscavam resgatar a memória dos ídolos e heróis
das letras como quem estava justificando a preservação de tal virtude. Por conta disso
as referências ao período eram inequivocamente mais costumeiras.
Por outro lado, haviam certas considerações de cunho histórico que assinalavam
a passagem do Brasil da condição de colônia para o de país independente como crucial
para o surgimento de novos talentos intelectuais baianos. Nos termos empregados por
Pedro Calmon, “a geração que fez a Independência do Brasil deu à Bahia grandes
homens. Nunca a fama de terra nutriz de gênios tanto se justificou, para a Bahia, como
na primeira metade do século XIX, quando, em todos os rumos da actividade mental, se
distinguiam preclaros filhos da província”.20
A partir deste momento, em que autenticamente poderia ser reconhecida
enquanto a Atenas brasileira, os tipos de intelectuais mais revelados pelas Bahia foram
os poetas e oradores. E, conforme faziam questão de afirmar, aqueles que teriam sido
os principais expoentes em cada uma dessas áreas chamavam-se, respectivamente,
19 Sobre as Academias, ver BARBUDA, Julio, op. cit., p. 82, que citam as mesmas em trabalho produzido no
contexto histórico em que se situa as discussões deste trabalho, sendo referenciado, por isso, enquanto fonte. Ver, também, CALMON, Pedro, op. cit., p. 58-66, que apresenta informações mais detalhadas a respeito das mesmas, indicando que Academia dos Renascidos funcionou apenas de fevereiro a novembro de 1759. Calmon publicou seu livro já no final da década de 1940, período que escapa aos marcos iniciais definidos para esse trabalho, servindo, portanto, como apoio.
20 CALMON, Pedro. História da Bahia: das origens à actualidade. Bahia, Livraria Editora Leite Ribeiro, 1927, p. 211. Ver o perfil biográfico de Pedro Calmon no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Bittencourt”).
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 106
Castro Alves e Rui Barbosa. Mas não foi exclusivamente nesses dois campos da
produção literária-intelectual que a Bahia produziu figuras de destaque — houve outras
modalidades em que os nomes de expressão se multiplicaram, conquanto tenham
recebido menor ou mesmo nenhum reconhecimento em nível nacional.
Não se podia negar, porém, a fragilidade da contribuição baiana em certos
domínios literários e o melhor exemplo disso era o romance, gênero que, no próprio
século XIX, foi assumindo grande importância. Como afirmava Aloísio de Carvalho Filho,
“as influências que tiveram intellectuaes bahianos na formação e evolução do romance
no Brasil [foram] [...] talvez diminúta, si a confrotarmos com o que deu de si a Bahia,
para a grandeza das letras nacionaes, nos seus outros domínios. Effeito, porém, da
mingua de romancistas no Brasil, onde poetas e oradores teem existido muito maiores,
e infinitamente mais numerosos”. E essa sua decepção — “no particular da nossa
pobreza de romancistas” — acentuava-se porquanto considerava “que nenhuma outra
região, no Brasil, se prestaria tão bem a scenarios de livros”, tal as possibilidades de
variações em torno de temas históricos, heróicos, lendários, indígenas, sociais, de tipos
e costumes, e outros tantos existentes em profusão. De qualquer modo, em dado
momento da sua argumentação, gabou-se: “ainda bem, para nossa honra e nossa
gloria, que insuperável foi a nossa acção nas outras modalidades de literatura”.21
A “plêiade” intelectual baiana
O modelo algumas vezes escolhido para apresentar as “nossas glórias” literárias,
sobretudo em trabalhos mais especializados, era o de reuni-los pelas atividades em que
mais demonstraram competência.22 E assim, em lugar de lamentar-se pelo que não
conseguiu oferecer ao país, uma atitude adotada apenas circunstancialmente, parecia
melhor trazer à lembrança os poetas, dramaturgos e romancistas, pedagogos,
vernaculistas, filósofos e historiadores, jornalistas e polígrafos, médicos, engenheiros e
juristas, e, por fim, os oradores (políticos e sacros) que a terra gerou — essa “floração
de talentos” que desfilou sua inteligência ao longo do século XIX. Todos os principais
representantes destes tipos diversos de cultores das palavras (escritas ou orais)
mereciam ser saudados enquanto intelectuais, visto a intensa atividade criativa,
elaborativa e cerebral que acompanhava as suas produções, reveladoras, ademais, do
alto cabedal de conhecimento da língua, do domínio acerca de uma vasta literatura
estrangeira, bem como a posse de outros tantos saberes. A maior parte deles, inclusive,
21 CARVALHO FILHO, Aloísio de, op. cit. 22 É desta forma que apresentam os letrados e intelectuais baianos do século XIX autores como BARBUDA,
Julio, op. cit.; e CALMON, Pedro, História da Bahia, p. 211-216. DINIZ, Almachio, op. cit., também apresenta uma extensa lista de letrados e intelectuais de todos os tipos, mas evita fazer qualquer tipo de classificação que não seja a cronológica.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 107
poderia se orgulhar de ter passado pelos bancos universitários de Portugal ou do próprio
país, onde desenvolveram suas capacidades. Apenas um número relativamente
pequeno, não alcançou tal estágio, mas não podiam deixar de ser reconhecidos como
sujeitos afortunados, que demonstraram o poder de superação pelo autodidatismo,
fazendo-se letrados em um meio cuja oferta de educação era bastante exígua.23
Seria interessante fazer uma revisão, ainda que breve, dos principais nomes que
compunham a “plêiade” intelectual baiana. Recorro para tanto a Pedro Calmon, que,
seguindo uma classificação por atividade própria, nos apresenta alguns homens de
grande talento intelectual. Primeiramente, ele lista aqueles que “fizeram a
Independência”:
A creação do parlamento (geral e provincial) proporciona o aparecimento de oradores brilhantes, deixando assim a rhetorica [sic] de ser uma dependência e uma serva do pensamento religioso. Surgem os tribunos políticos. Foram entre os maiores, o visconde de Jequitinhonha (1791-1870), o marquez de Abrantes (1794-1965) [sic; na verdade, m. 1865], Antonio Pereira Rebouças (1789-1880), José Lino Coutinho [1874-1736]. Na tribuna sagrada o primeiro vulto é o de Frei Francisco Xavier de Santa Rita Bastos Baraúna (1778-1846), que realisou com Mont’Alverne. Seguem-se o cônego Antonio Joaquim das Mercês (1788-1854), o padre Francisco dos Santos Almeida (1786-1837), Monsenhor Joaquim de Almeida (1796-1852), o padre João Querino Gomes (1793-1859). Mestre de sciencia econômica e de direito commercial, em Portugal e no Brasil, foi o sábio bahiano José da Silva Lisboa, visconde de Cayrú (1756-1835). Seu irmão, Balthazar da Silva Lisboa (1761-1840) notabilizou-se como historiador. Homens de Estado, filhos da Bahia, que se salientaram singurlamente no primeiro Reinado, foram os marquezes de Caravellas (1768-1863), de Nazareth (m. 1826), de Santo Amaro (1677-1831) [sic], o visconde de Inhampube, o visconde de Cachoeira, ministros de D. Pedro I. Nas bellas letras fulguram os poetas Domingos Borges de Barros (1779-1855) [Visconde de Pedra Branca]; Ladislas [sic; na verdade Ladislau] dos Santos Titára, Francisco Muniz Barreto, extraordinário repentista (1801-1868), Manoel Alves Branco (Visconde de Cachoeira), José Francisco Cardoso de Moraes (1761-1842), que escrevia em latim e foi traduzido por Bocage. Escriptores, cumpre destacar Miguel Calmon (Márquez de Abrantes), autor das “Cartas de Americus” (1825), os dous Silva Lisboa, que figuram na primeira plana, José Lino Coutinho, Caetano José de Moura, fecundo publicista (1780-1860).24
23 Embora esteja focalizando aqui o tratamento conferido à produção artístico-intelectual baiana do século XIX
por sujeitos que viveram nas três primeiras décadas do século seguinte, é interessante constatar a sobrevivências de algumas perspectivas por eles assumidas mais de sessenta anos depois, em 1990. Refiro-me à abordagem de MENEZES, Jayme de Sá. “A intelectualidade baiana oitocentista”. Revista da Academia de Letras da Bahia, Salvador, (36): 147-169, jan./1990, de quem tomei de empréstimo as categorias de intelectuais citadas no parágrafo, bem como a expressão “floração de talentos”. Esse autor reproduz, literalmente, a idéia comum no início do século XX de que a Bahia era um berço de intelectuais e artistas das letras portadores de capacidades elevadas e diferenciadas.
24 CALMON, Pedro, História da Bahia, p. 211-213. Algumas datas de nascimento e morte indicadas pelo autor com certeza apresentam erros. Se as compararmos com algumas outras assinaladas em um segundo texto de sua autoria, a História da literatura baiana (1949), constata-se facilmente certas imprecisões. Como a diferença, na maior parte das vezes, é apenas de um ano, não considero que as falhas comprometem os propósito deste trabalho.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 108
Comentando a síntese apresentada por Calmon, poucos dos nomes citados nessa
primeira fase — que se confunde mais ou menos com o Primeiro Reinado e a Regência,
e indica sujeitos nascidos quando o país ainda era colônia — mantiveram fama para
além do seu tempo. Noutros termos, poucos conseguiram se inscrever entre os cânones
literários. E pode se acrescentar que poucos tiveram fama para além das fronteiras
provinciais. Somente os que tinham títulos de nobreza lograram obter maior
reconhecimento nacional, justamente porque como políticos do Império tinham
penetração na capital — reconhecimento que se dava sobretudo entre os pares. Aliás,
nesse primeiro momento, existe uma nítida identificação entre intelectuais e homens
políticos, o que ficará mais fácil de constatar quando os oradores e os estadistas
imperiais forem abordados. O Visconde de Pedra Branca, Domingos Borges de Barros,
citado por Calmon, foi tido em sua época como um bom poeta — e foi uma figura
exemplar desse misto de político, literato e orador. Devo somar aos seus dados
biográficos o fato de ter se formado em Direito pela Universidade de Coimbra e ser um
grande proprietário de terras — era, portanto, um típico representante da elite
imperial.25 De qualquer modo, adjetivos como “brilhante” e “extraórdinário”
costumavam servir para qualificavam os talentos baianos, não apenas na percepção de
Pedro Calmon, mas também de outros muitos contemporâneos desse historiador.
Do ponto vista local, porém, dentre todos os citados desta fase, Francisco Moniz
Barreto foi o mais aclamado em vida e o mais lembrado pelos pósteros. Suas poesias
eram criadas predominante na base do improviso, por isso, ele se tornou conhecido
como poeta-repentista (ver fig. 07). A partir de um mote sugerido nas manifestações,
festas, reuniões e ocasiões de diversos tipos (fossem elas políticas, cívicas, religiosas,
familiares, etc.) de que participava, ele declamava versos inspirados. A repercussão dos
seus improvisos o tornou extremamente popular — popularidade que obteve não
apenas pela sua capacidade de versejador (excluído o sentido pejorativo do termo)
rápido, mas também por conseguir traduzir sentimentos comuns, compartilhados pela
maior parte das pessoas, de matizes sociais as mais diversas. Na Bahia, ele transitava
com tranqüilidade tanto nos meios mais populares quanto nos meios mais nobres.
Regionalmente, portanto, foi bastante celebrado e sua presença era tida como
imprescindível nos mais variados gêneros de eventos. E, pelo que sugere Lizir Arcanjo
Alves,26 era reconhecido também em outras províncias do Norte, especialmente em
25 Sobre Domingos Borges de Barros, ver SISSON, S. A. (editor). Galeria dos Brasileiros Ilustres, Vol. II.
Brasília, Senado Federal, 1999, p. 405-410, livro esse publicado originalmente entre 1859-1861. 26 Todas as informações sobre Francisco Moniz Barreto citadas neste e nos próximos parágrafos foram
baseadas em ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., v. 1, p. 156-169 e passim. Uma observação: Pedro Calmon escreve o nome do poeta como sendo Muniz, e não Moniz. No entanto, esta segunda forma parece a correta, pois é assim que seu nome aparece na capa do livro lançado em 1855, segundo ilustração existente no trabalho de Lizir Arcanjo.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 109
Pernambuco, de onde a autora extraiu de jornais diversos exemplos da publicação da
sua poesia, bem como de elogios aos seus dons poéticos e espírito político liberal.
Mas diferentemente dos poetas e escritores que receberam título de nobreza
e/ou tiveram postos políticos no Estado imperial, quase todos com passagem pelos
bancos da faculdade, Moniz Barreto era homem de uma classe média pauperizada,
embora tivesse parentes bem posicionados socialmente. Iniciou os estudos de direito
em Coimbra, mas o interrompeu durante as lutas de independência na Bahia, da qual
foi um combatente e veterano.27 Era, como vimos, homem de expressão popular e do
ponto de vista do engajamento político, um liberal, aspecto este muito relevante. Uma
das principais características dos seus improvisos era a temática cívica e política, em
que os ecos do forte sentimento de liberdade inspirado pelo movimento de
independência, localmente experimentado e anualmente reanimado nas comemorações
do 2 de Julho, impregnavam a mentalidade da sua época — acrescente-se, ainda, que o
próprio poeta era um veterano das guerras de independência na Bahia.
Lizir Arcanjo descreve a frustração de Moniz Barreto na tentativa de ver seu
nome reconhecido nacionalmente, quando resolveu publicar, na forma de livro, os seus
poemas, os Clássicos e Românticos: exercícios poéticos, no ano de 1855. A obra,
inicialmente projetada para ser composta por quatro volumes, ficou resumida a apenas
dois, ao que parece, em decorrência do desâmino que lhe abateu após as severas
críticas que recebeu de Manuel Antônio de Almeida, autor das Memórias de um
Sargento de Milícias, que escrevia no jornal Correio Mercantil, editado no Rio de Janeiro.
Desde o lançamento do primeiro volume, sua obra não teve o acolhimento que
esperava. Com a publicação do segundo volume, alimentou a esperança de ver seu
trabalho avaliado mais positivamente. Diante da recepção novamente severa, e mais do
que isso, a atitude de desprezo que o crítico manifestou em relação ao mesmo, o poeta
perdeu o ânimo em publicar os demais volumes.
As críticas teriam sido motivadas por uma concepção elitista e pelo rigor dos
critérios estéticos que condicionaram a análise de Manuel Antônio de Almeida, médico e
jornalista, com trânsito pelos palácios imperiais, sendo um típico homem da corte. O
tipo de poesia praticada por Moniz Barreto e tantos outros poetas baianos do mesmo
período ainda era modelado no estilo clássico, tanto em forma quanto em conteúdo,
num contexto em que o romantismo impunha-se como hegemônico. A natureza popular
e o caráter político da obra de Moniz Barreto também interpuseram barreiras para sua
aceitação pelos “bons” críticos e historiadores da literatura, visto que os cânones
literários, então vigentes, além de diferenciados do ponto de vista estético, eram
27 Ver SOUZA, Antonio de Loureiro. Baianos Ilustres, Bahia, Governo do Estado da Bahia, 1973, p. 79-80.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 110
orientados por um projeto político bem definido: a construção de uma identidade
nacional, a qual era estimulada pelo próprio Império.
O exemplo de Moniz Barreto revela, portanto, que nem sempre os nomes mais
exaltados pelos baianos tiveram reconhecimento no restante do país, ou, pelo menos
nos centros hegemônicos, o que demonstra a existência de graves tensões entre o
regional e o nacional.28
Retomemos a descrição de Pedro Calmon sobre os intelectuais e artistas,
dirigindo a atenção agora à sua segunda parte, referente ao período que se confunde
com o Segundo Reinado, momento de maior proeminência dos intelectuais baianos, e
que se estende para um pouco além dele. É interessante notar aqui que ele esmiúça os
diversos campos de atuação desses intelectuais (literatura, história, gramática,
jornalismo, etc.). E atente-se, também, para o fato de que sistematicamente considerou
um conterrâneo baiano como o maior, o melhor, o primeiro em cada modalidade
apresentada. Como descreve o próprio:
Ao meiado e segundo quartel do século XIX, quando a literatura obedecia inteiramente ao gosto romântico, e grandemente evoluíram as sciencias e as idéas [...] pertencem os poetas-gigantes, São Luiz José Junqueira Freira [sic, na verdade Freire] (1832-1855), depois de Castro Alves o mais inspirado versejador bahiano, e Antonio Castro Alves (1847-1871), reputado o maior poeta brasileiro de todos os tempos, e que, como aquelle, morreu na mais verde adolescência. Franklin Dorea (1836-1888) [Barão de Loreto], Agrário de Menezes (1831-1863), Castro Rebello (n. 1853), Francisco Mangabeira (1879-1901), Egas Moniz (1873-1925), foram outros illustres poetas. Prosadores, teve a Bahia o gênio omnimodo de Ruy Barbosa (1849-1923), de quem pode dizer-se ensinou o Brasil a bem escrever, Luiz Gama (1830-1882), também primoroso poeta, Mello Moraes Filho (1841-1912), César Zama, J. P. Xavier Pinheiro, traductor de Dante. Embora nascido em Portugal, como Vieira, à Bahia pertence Ignácio Accioly de Cerqueira e Silva, seu paciente chronista (1808-1865). Manoel Querino foi o historiador da arte bahiana. [...] O maior educador brasileiro era natural desta província: o barão de Macahubas [Abílio Cezar Borges]. O primeiro jurisconsulto do paiz: Antonio Teixeira de Freitas. O mais sábio médico: Francisco de Castro. Um grande grammatico: Ernesto Carneiro Ribeiro. Um philosopho: Leovigildo Filgueiras. Um diccionarista e bibliographo: Sacramento Blake. Orador: Manoel Victorino Pereira. No jornalismo brilhavam, Bellarmino Barreto, Augusto Alves de Guimarães, Lelis Piedade, Eduardo Carigé. No theatro: Cunha Valle, Pinto Pacca... Nas artes: os esculptores, continuadores aprimorados dos mestres oitocentistas, Domingos Pereira Baião (1825-1871), Antonio Machado Peçanha (n. 1835), Araújo Lopes, Rocha Barros... Os pintores, de uma educação artística mais moderna, impressionista, clássica, José Rodrigues Nunes (1880-1881), Rocha Bastos, Olympio Pereira da Matta (1810-1887), os dous Lopes Rodrigues, o mais moço dos quaes tido por primeiro entre todos, Francisco da Silva Romão, Bento Capinam (1791-1874) e seu
28 Segundo ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., p. 11, Francisco Moniz Barreto não mereceu da parte de José
Veríssimo, na clássica História da Literatura Brasileira (cuja primeira edição é datada de 1916), uma análise criteriosa de sua obra, mas apenas uma rápida menção, com o fim de criticá-la.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 111
filho Tito (1822-1856), José Pereira Rebouças, Domingos da Rocha Mussurunga, Francisco Muniz Barreto Filho, Miguel Torres.29
Nessa segunda parte do elenco de intelectuais baianos, uma porção expressiva
dos nomes citados atravessou o Império, estendendo sua produção para anos bem
avançados da República. Analisando-os em sua totalidade, sabe-se que alguns, sem
dúvida, produziram obras relevantes, nem sempre literárias (stricto sensu), mas todas
de cunho intelectual, que ainda repercutem, sendo acompanhadas de um maior ou
menor reconhecimento nacional. Os exemplos: o jurista Augusto Teixeira de Freitas
(1816-1883), considerado pai do direito civil brasileiro, trabalhou na Consolidação das
Leis Civis; Ernesto Carneiro Ribeiro (1839-1920), foi considerado um dos maiores
conhecedores da língua brasileiro, participou de uma acirrada polêmica com Rui
Barbosa, um ex-aluno de ginásio, por causa da revisão estilística do texto do Código
Civil de 1902, que deu origem à famosa Réplica de Rui, um verdadeiro tratado da língua
portuguesa; Augusto Alves Victorino Sacramento-Blake (1827-1903) dedicou-se à
literatura, mas se tornou conhecido, sobretudo, como autor de um importante dicionário
biobibliográfico, o Dicionário Bibliográfico Brasileiro, publicado em vários volumes,
referência imprescindível quando se deseja pesquisar a respeito de intelectuais e
literatos de todas as espécies que viveram no século XIX; Alexandre José Mello Moraes
Filho (1844-1919) foi poeta e autor de estudos que abrangem diversos campos
(literatura, história, etnografia), sua obra mais conhecida é um livro de crônicas e
costumes populares, as Festas e Tradições Populares no Brasil; Manoel Victorino Pereira
(1854-1903), vice-presidente no primeiro governo republicano civil, qual seja, de
Prudente Moraes, 1894-1898, aparece como grande orador, para alguns rivalizava com
Rui Barbosa; Luiz Gama (1830-1882) foi não somente jornalista, mas também poeta,
atuando em ambos os segmentos como um fervoroso militante da causa abolicionista.
Pedro Calmon termina citando ainda nomes do teatro, da escultura e da Pintura.
Mas os nomes mais expressivos em sua lista eram o poeta Castro Alves e o
“gênio” Rui Barbosa. O consenso entre os baianos acerca da grandiosidade dos dois é
inequívoca. Na Bahia Ilustrada, por exemplo, declarou-se que “quando algum
historiador literário traçar, algum dia, o quadro geral da evolução poética na Bahia, não
poderá deixar de estabelecer um período áureo e característico, dentro do qual
emoldurará as duas figuras mais brilhantes de toda a cultura mental brasileira”. E
prosseguindo na consideração, dizia que “essa phase será denominada, certamente, de
Ruy Barbosa e Castro Alves. Surgindo ambos, simultaneamente, para a vida das letras,
29 CALMON, Pedro, História da Bahia, p. 213-216.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 112
como insignes companheiros e irmãos em gênio, nasceram predestinados a erguer bem
alto o renome da terra natal”.30
Enquanto Castro Alves e Rui Barbosa eram apresentados como marcos literários
nacionais, não me parece injusto afirmar que uma boa parte dos demais nomes citados
por Calmon, daqueles ligados à literatura propriamente dita, tiveram apenas maior
expressividade em nível estadual, sendo considerados homens portentosos sobretudo
pelos seus conterrâneos. Esse é o caso, por exemplo, de Junqueira Freire apontado por
muitos baianos como um de seus melhores poetas, que teria se aproximado de Castro
Alves em capacidade, e, como este, morto muito jovem, aos 22 anos, em 1855. Ele foi
contemporâneo de Francisco Moniz Barreto, mas não chegou a ser tão popular quanto o
poeta-repentista. Conquanto a qualidade da sua poesia, não logrou ser tão reconhecido
no plano nacional, ainda que alguns poemas seus tenham circulado para além do
ambiente local ao serem publicados na imprensa de outras províncias. Da crítica
especializada nacional, entretanto, parece não ter recebido uma apreciação cuidadosa,
que considerasse as vertentes do seu trabalho (uma mais religiosa e intimista, outra
mais patriótica). Resultou daí um quase “desprezo” pela sua obra, sendo poucas as
considerações que mereceu dos historiadores e críticos literários.31
Castro Alves: “O maior poeta de todos os tempos no Brasil”
Se muitos não foram devidamente valorizados, houve um poeta baiano que
recebeu em vida amplo reconhecimento: Castro Alves. Entre os baianos, não havia
dúvida sobre o fato de ele ter sido a nossa maior expressão literária.32 Foi um autor que
30 “Castro Alves e Rui Barbosa”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 39, jun./1921. 31 A respeito da representatividade sobretudo regional alcançada pela maior parte dos intelectuais citada por
Calmon, quero informar que não cumpria nesse trabalho aprofundar a pesquisa em torno de cada um dos nomes, a fim de provar qual fora a dimensão exata do impacto das suas respectivas obras. Sigo as indicações de ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., v. 1, p. 9, que se refere a Francisco Moniz Barreto, Junqueira Freire e Castro Alves como os únicos autores baianos citados (e mais nenhum outro) por José Veríssimo, na História da Literatura Brasileira, no tocante ao século XIX. Os dois primeiros “foram apenas citados [...], mas para serem criticados” — assinala que em Junqueira Freire “só vê defeitos” e em relação “Moniz Barreto” mostra como reduziu o impacto da sua obra, qualificando-a como datada no tempo. Já em relação a Castro Alves, afirma Lizir, Veríssimo “declara exacerbada paixão”. Em contraponto às análises de Veríssimo, a autora destaca o papel cumprido por Silvio Romero, que valorizou no seu trabalho a produção literária baiana do período, procedendo a uma cuidadosa abordagem sobre ela, que levava em consideração as condições nas quais os autores baianos elaboraram sua sobra. Para uma análise de alguns aspectos da obra de Junqueira Freire, ver ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., p. 310-328 e passim. De qualquer modo, Junqueira Freire foi escolhido patrono da Academia Brasileira de Letras, quando da sua fundação, que teve como primeiro titular da sua cadeira o baiano Franklin Dorea, o Barão de Loreto, um dos fundadores da Academia.
32 Castro Alves nasceu em março de 1847, em terras então pertencentes à comarca de Cachoeira. Fez estudos iniciais primeiro em São Félix e depois em Salvador. No começo de 1862, antes de completar 15 anos, seguiu para a cidade de Recife, acompanhando o irmão José Antônio, onde complementaria a preparação visando ingressar na Faculdade de Direito, o que faria em 1864. Em 1867, retorna à Bahia, sem ter concluído o curso, onde permaneceu até o início do ano seguinte, quando parte para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo, cidade na qual retomou o Direito. No final de 1868, sofreu o tiro acidental no pé, que o obrigou a retornar à Bahia, passando antes pelo Rio de Janeiro, onde faria a amputação do mesmo. Faleceu em julho de 1871, aos vinte e quatro anos, debilitado pelas conseqüências do acidente sofrido e
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 113
se fizera famoso no cenário nacional e a quem muitos reputavam, na época, como o
grande poeta brasileiro de todos os tempos. Rui Barbosa, freqüentemente colocado a
seu lado como parceiro/concorrente na atividade literária, nunca foi um literato num
sentido mais estrito do termo, ainda que sistematicamente fosse apontado como tal —
tornou-se objeto de culto por razões que verificaremos oportunamente. Deste modo,
Castro Alves se constituiu no maior orgulho literário dos seus conterrâneos. E se
quisermos alargar seu poder de influência, talvez se possa afirmar que, dentre todos os
baianos mortos até o início da década de 1920, quando faleceria Rui, e considerando-se
os representantes de todos os outros ramos das letras e das atividades intelectuais e/ou
políticas, foi aquele que mais mereceu incensamento — somente Rui Barbosa o
suplantaria, em vida e na morte, em termo de louvações.
Já observamos, em alguns trechos documentais transcritos acima, a posição
grandiosa que foi conferida a Castro Alves na literatura, não apenas baiana, mas
nacional. Pode-se acompanhar o que falou sobre ele o crítico Almachio Diniz, para quem
“deante delle e de sua obra festejadissima, toda a literatura contemporânea
desapparece”. E acreditava que
nem poderia de outro modo passar-se, pois que CASTRO ALVES teve a mais evidente acção social que um artista póde lograr no seu tempo. A sua obra, sobre a escravidão, foi um factor dos mais activos na subseuqente transformação política do Brazil. A alma nacional orientou-se para diversas soluções de política positiva no enthusiasmo fremente da obra immorredoura do grande poeta. CASTRO ALVES foi, em conclusão, um reformador social. Pena foi que a sua existência durasse tão pouco, para que o seu verso heróico não lograsse outros muitos triumphos [...]. O aspecto da poesia brazileira mudou, realmente, depois da publicação das Espumas Fluctuantes. O patriotismo teve uma entrada luzida no verso nacional no verso nacional. No entanto, ninguém logrou como o poeta bahiano, atiçar o fogo da consciência humana para movimentos mais decididos em favor do progresso social. E, então, a escravatura aboliu-se, a monarchia depôz-se, o Brazil mudou a sua crise evolucional. Definiu-se um paiz livre.33
Nas palavras de Diniz, encontram-se muito bem indicados os motivos que
tornaram Castro Alves e a sua “obra festejadissima” objetos tão caros aos baianos.
Toda a aclamação que fazia a ele era fruto tanto da qualidade dos seus versos quanto
da temática heróica e militante que os compunham, do patriotismo que enunciavam, do
apelo à justiça e consciência humana que pregavam, da intenção de transformações que
conferissem aos homens (em especial, os escravos) maior dignidade, enfim, do caráter
eminentemente social que os impregnavam — conforme indica a análise de Almachio
Diniz. E como escreveram em uma oportunidade os editores da Bahia Ilustrada,
pela tuberculose. Em vida publicou unicamente as Espumas Flutuantes (1870) e viu encenada, em Salvador, a peça teatral de sua autoria Gonzaga ou A Revolução de Minas (1867). Ver MARQUES, Xavier, Vida de Castro Alves.
33 DINIZ, Almachio, op. cit.; p. 17.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 114
preocupados em reafirmar tais aspectos, “que vimos chamar aqui a attenção do país por
que se não esqueça de Castro Alves, o maior poeta de todos os tempos no Brasil, foi, e
ainda é hoje o mais social de nossos poetas”. Em função desse compromisso do poeta
com a causa social, sua obra teria adquirindo uma dimensão revolucionária. Lamentava-
se, em conseqüência, sua curta existência, que privou involutariamente a todos de
embeber-se com outras doses do seu gênio poético, cívico e patriótico, os traços mais
destacados por todos em sua obra. A brevidade dos anos vividos e a grandeza com que
se distinguiu levaram alguns, a exemplo de Julio Barbuda, a defini-lo como “um
verdadeiro meteoro”.34
Acentuar o caráter cívico e social da sua obra parecia uma forma de compactuar
os baianos que o sucedera com o ideal por ele representado. Significava estabelecer
certos laços de identidade regional, sobretudo entre os membros das elites baianas que
reinvidicavam maior espaço no cenário nacional. Pretendiam elas fixar uma imagem do
que seria o modelo de atuação política e social dos baianos em geral.
A respeito de Castro Alves, é interessante assinalar que o seu engajamento
social — aspecto freqüentemente assinalado como um dos elementos centrais da sua
obra e destacado pelos seus entusiastas — fora assimilado pelos críticos nacionais. Já o
engajamento político dos outros poetas liberais baianos fora firmemente repelido, visto
que reproduzia voz de oposição aos poderes constituídos. Talvez pudesse ser indicado
como fator relevante para essa distinção a feição estética da obra de cada um dos
lados, pois, enquanto a maior parte dos poetas baianos moldavam-se no estilo clássico,
Castro Alves foi um romântico, estilo que era aceito nos meios literários mais elevados.
De qualquer modo, ainda que social, sua poesia parece não ter adquirido um caráter
político no sentido mais estrito do termo, sendo, na realidade, definida como patriótica
— embora tenha participado de manifestações pró-republicanas, suas poesias não
refletiam uma oposição ou uma crítica mais contundente à monarquia.35 Por outro lado,
o fato de ter estudado nas duas faculdades de Direito do país colocou-o em contato com
pessoas ligadas às elites das mais diversas províncias, facilitando a sua penetração em
nível nacional.
Definir em que medida ainda ecoava a poesia de Castro Alves no Brasil como um
todo seria uma tarefa acima das minhas intenções, mas asseguro que na Bahia a sua
memória era intensamente cultivada e muitos sinais revelam isso. Subscrições para a
construção, no seu Estado natal, de um monumento ou escultura que lhe rendesse
homenagem vinham sendo organizadas desde a sua morte. Em 1919, por exemplo,
uma comissão formada pelo escritor Xavier Marques, o historiador Braz do Amaral, o dr.
34 “Castro Alves e o Centenário da Independência”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 18, mai./1919;
BARBUDA, Julio, op. cit., p. 85. 35 Sobre a rejeição à produção literária baiana de natureza liberal, ver ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 115
Anísio Circundes de Carvalho e o jornalista Aloísio de Carvalho (também conhecido com
Lulu Parola) mobilizaram-se junto ao governo estadual a fim de conseguir verbas para o
monumento. Por outro lado, diante da inexistência de um objeto do tipo na Bahia, não
deixavam de zelar pela memória do poeta onde eles existissem. Segundo relata a Bahia
Ilustrada, no Passeio Público da Capital Federal, o Rio de Janeiro, havia um busto do
poeta, atestando a admiração nacional a ele conferida. No entanto, entristecia o fato
daquele busto não representar fidedignamente a imagem do “prodigioso poeta”,
distorcendo por completo as feições do seu rosto. Indignados, os baianos do Rio até
pretendiam encomendar um novo busto, “a fim de substituir a figura desconhecida que
puzeram” no recanto carioca.36
Houve, ainda, a elaboração de biografias, as referências elogiosas em trabalhos
especializados, citações e matérias em revistas de variedades, a continua difusão de
seus poemas, sem contar as homenagens recebidas sob a forma de discursos e
conferências — representavam juntas um substancial indicativo dos tributos que lhe
rendiam. O escritor Xavier Marques, que chegou a membro da Academia Brasileira de
Letras, foi um dos seus biógrafos — primeiro publicou, em 1910, alguns capítulos sobre
sua vida no Jornal de Notícias (Salvador), que ampliados e complementados saiu logo
depois em livro com o título de Vida de Castro Alves (1911), com reedição em 1924.
Afrânio Peixoto, por sua vez, proferiu conferência sobre o poeta na Biblioteca Nacional,
em 1917, a qual foi integralmente publicada pela revista Bahia Ilustrada. Além disso,
organizou suas Obras Completas, lançada em 1921, e divulgou, no ano seguinte, o livro
Castro Alves, o poeta e o poema.
O exemplo da divulgação do nome do poeta em revistas de variedade nos é dado
pelo periódico mensal que tantas vezes citei aqui, a Bahia Ilustrada, que lhe dedicou
diversas notas e matérias nas páginas internas, além de tê-lo feito objeto de três capas
dentre os quarenta e três números da primeira fase (1917-1921) — duas delas traziam
“retratos” seus a tomar toda a estampa da capa (as edições de número 17 e 39),
enquanto a terceira, numa composição mais elaborada, contendo as imagens de um farol,
um litoral e uma figura feminina, apresentava um retrato menor do poeta (ver fig. 04 e
08). Outro exemplo encontra-se em artigos da revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, como alguns assinados por Xavier Marques e Homero Pires.37
36 Sobre o monumento na Bahia, ver “Homenagem à memória de Castro Alves”. Bahia Ilustrada, Rio de
Janeiro, nº 19, jun./1919; sobre o busto no Rio de Janeiro, “O busto de Castro Alves no Passeio Publico”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 1, dez./1917.
37 Ver MARQUES, Xavier, Vida de Castro Alves, a mesma obra citada acima, mas na sua edição mais recente; ver, também, PEIXOTO, Afrânio, Obras Completas de Castro Alves, Rio de Janeiro, Nacional, 1944, 2 vol., e, do mesmo autor, Castro Alves, o poeta e o poema, São Paulo, Nacional, Brasília, MEC/INL, 1976. Sobre a conferência de Afrânio, ver Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 1, dez./1917. Sobre as capas dedicadas a Castro Alves pela Bahia Ilustrada, é bom assinalar que em três oportunidades a revista foi editada como número duplo (21-22, 22-23 e 27-28), perfazendo, na verdade, em lugar de quarenta e três, quarenta edições da mesma, o que confere a Castro Alves 7,5% do total das suas capas. Todos os outros
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 116
Eis, portanto, alguns dos sinais que enunciavam a admiração e o orgulho por
Castro Alves, o nosso mais importante literato. No território das letras, não houve até
então o surgimento de nenhuma outra personalidade que se comparasse a ele, que se
tornou com isso um dos mais significativos representantes da Atenas Brasileira, como
pudemos verificar nas palavras com que a ele se refere José de Alencar. Daí ter se
tornado um mito tão ardorosamente cultuado, e, ao mesmo tempo, um paradigma a ser
perseguido pelos intelectuais baianos que manifestavam certas veleidades literárias.
Com um exemplar de tal envergadura, a forma poética sempre foi, mesmo após a
passagem do século, o estilo literário mais praticado pelos baianos, que, se não
conseguiram superá-lo, tal como as Impressões do Brasil avaliou acerca das pretensões
dos nascidos na terra, procuravam imitá-lo em alguma medida.
O Teatro baiano em sua “Idade do ouro”
Mas Castro Alves foi somente o expoente máximo de uma época de pujança na
vida literária, situada por Xavier Marques entre os anos de 1850 e 1870.38 Por isso,
permanecendo no campo das atividades culturais, deve-se comentar a respeito do
teatro, o qual parece ter assumido um papel de destaque para a solidificação da aura de
Atenas com que a Bahia se pretendia envolta.
O teatro, enquanto espaço de espetáculo, era o principal meio de entretenimento
público no século XIX. E na Bahia, a sua principal casa, o Teatro São João, inaugurado
em 1812, sempre manteve em pauta a apresentação de companhias líricas, dramáticas
e de ópera nacionais ou estrangeiras. Era utilizado, também, para as encenações e
outras manifestações artística locais, bem como para comemorações cívicas e festivas.
O que me interessa, no entanto, é examinar o teatro como uma forma especial de
expressão artística, caracterizado pelo trabalho intelectual de elaboração de textos que
visam ser representados — ou seja, como um campo literário —, possibilitando com isso
a revelação do talento de autores e atores.
Nesse sentido, segundo diversas afirmativas, houve um momento em que a arte
teatral na Bahia conheceu intensa produção endógena. Sílio Boccanera Jr. — autor de
peças e principal estudioso do desenvolvimento local dessa forma de arte nas primeiras
décadas do séc. XX — afirmou a respeito que “nosso Theatro teve o seu dia de
personagens históricos que ilustraram as capas da revista apareceram somente uma vez, exceção feita ao Márquez de Caravelas, retratado em duas oportunidades. Revendo as referências tiradas da Bahia Ilustrada sobre Castro Alves nesta e nas notas imediatamente anteriores, tem-se uma amostragem das muitas menções que recebeu. Sobre a Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, MARQUES, Xavier. “Castro Alves no decênio de sua morte”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 54, p. 185-191, 1928; também, PIRES, Homero “Castro Alves”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 37-39, p. 203-220, 1911-13.
38 MARQUES, Xavier, Vida de Castro Alves, p. 38.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 117
nascimento, teve florescência, evolução e glorificação; teve vida própria, chegou a se
cobrir de honras e de louros que lhe deram — não somente elementos exóticos — mas,
também, as nossas grandes capacidades literários e artísticas”. E complementaria sua
argumentação com uma imagem sobre o teatro que é bastante ilustrativa do olhar que
se lançava sobre diversos aspectos e elementos da Bahia do século XIX, qual seja a
idéia de uma “idade do ouro”. Nas suas próprias palavras: “nossa dramaturgia, e o
nosso palco, já tiveram sua idade de oiro, entre os annos de 1860-1875, mais ou menos
durante o segundo momênto de criação romântica”. E diria mais, “nosso Theatro
[sempre iniciado com letra maiúscula e grifado em Itálico] já assumiu proporções
gloriosas; muitos foram, e notáveis, os nomes, registados [sic], de escriptôres
dramáticos; muitos, também, illuminaram a Scêna Bahiana, que também illuminaram a
Scêna Brasileira; já tivemos vida própria nos domínios da dramaturgia e da
interpretação artística, e não somente importada; essa vida foi longa, e não de rápida
duração; valioso é o patriotismo que possúe nossa Literatura dramática”. Boccanera Jr.
não se furtaria a apelar para a autoridade de Silvio Romero:
Houve uma época de grande rebrilhamento para o Theatro, sendo a Bahia o centro irradiante da Literatura dramática, disse-o, algures, o dr. Sylvio Roméro. Essa época, que o illustre e abalisado autor da Literatura Nacional não indica, póde ser assinalada entre os annos acima aludidos, de triumphamentos inusitados para a arte de Thália, nesta nossa terra, orgulhoso berço dos mais culminantes Artistas do seu tempo — ISMÊNIA DOS
SANTOS e XISTO BAHIA, que, ainda hoje, não tiveram quem lhes preenchesse os claros abertos no Theatro Nacional.39
Manoel Querino compartilhou da mesma idéia, afirmando que “o theatro
dramático já teve, entre nós, a sua época de florescencia, despertando a emulação de
intellectuaes, como Cintra Valle, Rodrigues da Costa, Castro Alves, Amaral Tavares,
João de Britto e, sobre todos, Agrário de Menezes”.40
Como era normal nas circunstâncias em que se falava do brilho de alguma
modalidade cultural, Silio Boccanera Jr. elencou uma série de nomes que teriam feito as
glórias da dramaturgia. Inicia isto citando autores nacionais, entre os quais,
“Magalhães, Penna, Macedo, Alencar, Bocayuva, Machado de Assis”, etc. Em seguida,
referiu-se aos “nossos conterraneos, de saudosissima memória, Agrário de Menezes,
39 BOCCANERA JR., Silio “O Theatro na Bahia”. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador,
Edição Especial do Centenário, p. 65-69, 2 de julho de 1923, p. 65. Ver o perfil biográfico de Silio Boccanera Jr. no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Boccanera Jr.”).
40 QUERINO, Manoel. “Theatros da Bahia”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 35, p. 117-133, 1909, p. 117. É bom registrar que tanto as considerações de Querino quanto as de Boccanera Jr., no trabalho já citado, têm um duplo viés: o saudosista, na perspectiva de afirma sobre a antiga glória do teatro baiano, e o moralista, pois constituem críticas ao que eles apontam como as más influências de novos hábitos (o futebol e outros esportes, o cinema, etc.) e à “degeneração” do próprio teatro (no qual se introduziram estilos reprováveis), que se passaram a observar nos anos republicanos. Aspectos esses que ficaram melhor demonstrados no próximo capítulo.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 118
Cunha Valle, Amaral Tavares, Rodrigues da Costa, Filgueiras Sobrinho, Cesar Leal, Pinto
Pacca, João de Brito, Castro Alves”. É interessante assinalar que a maior parte deles era
formada por médicos e advogados, demonstrando-se com isso quanto na atividade
artística-literária-intelectual, o nível elevado de escolarização e a boa condição social
dos autores estavam intimamente imbricadas.41
Voltando àqueles nomes, pode-se afirmar com plena certeza — e em
conformidade com que realçou Querino — que o mais destacado entre todos foi Agrário
de Menezes (1834-1863), um protótipo do homem multitalentoso que caracterizava os
intelectuais baianos. Advogado, bacharel em Direito pela Faculdade do Recife, deputado
provincial diversas vezes, literato polivalente (dramaturgo, poeta e orador), teve
diversos dramas e comédias de sua autoria encenados nos palcos locais. Um fato
curioso diz respeito à sua morte, ocorrida aos 29 anos de idade num camarote do
Teatro São João, quando assistia a um espetáculo — o que talvez seja significativo da
profunda dedicação que consagrou ao teatro. O trabalho de maior destaque que
produziu foi o drama em versos Calabar, inspirado nesse polêmico personagem da
história nacional.42
Para completar o quadro, após citar os autores, Boccanera Jr. prossegue listando
uma série de artistas masculinos e femininos que fizeram o esplendor teatral.
Inicialmente apresenta os artistas nacionais, ou seja, aqueles nascidos em outras partes
do país; em seguida, refere-se aos “refulgentes talentos bahianos”, sobre os quais
afirmava serem “todos, igualmente, brasileiros, muito dos quais glórias máximas do
Theatro Brasileiro”. Não reproduzirei aqui todos os nomes indicados por ele. Entretanto,
é necessário assinalar que, dentre todos os artistas nacionais e locais mencionados,
havia dois a quem conferia maior destaque: Ismênia dos Santos e Xisto Bahia — ambos
baianos e a respeito dos quais, como se vê num trecho de sua autoria transcrito linhas
acima, declarava serem “os mais culminantes Artistas do seu tempo”. E diria mais sobre
eles: “si houvessem representado na língua de Racine, teriam deixado alto renome,
notoriedade universal”.
41 As referências do parágrafo anterior e de parte deste são de BOCCANERA JR., Silio, op. cit., p. 65-69. Sobre a
formação acadêmica dos autores teatrais, RUY, Affonso. História do Teatro na Bahia. Salvador, Livraria Progresso, 1959, p. 76-77, informa que, entre 1840-1890, 8 advogados e 12 médicos tiveram textos encenados nos teatros de Salvador. A partir de informações prestadas por Ruy, é possível classificar os autores listados por Boccanera Jr.: Agrário de Menezes, Filgueiras Sobrinho e Pinto Pacca eram advogados; Cunha Valle e Rodrigues da Costa eram médicos. Sobre os outros três não obtive dados a respeito do nível de escolarização, descobri apenas que Amaral Tavares foi oficial da Marinha, enquanto Cesar Leal e João de Brito foram funcionários públicos, segundo informa BOCCANERA JR., Sílio. Autores e actores dramáticos bahianos, Bahia, Imprensa Official do Estado, 1923. Castro Alves, como vimos, fez o curso de Direito, mas não chegou a concluí-lo.
42 Além do Calabar, foi autor dos dramas Mathilde, Bartholomeu de Gusmão, São Thomé, O Dia da Independência, e das comédias Os Contribuintes, O Príncipe, O Voto Livre, A Festa do Bomfim e Dona Forte. Ver DINIZ, Almachio, op. cit., p. 18; e BARBUDA, Julio, op. cit., p. 87.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 119
Um fato que parece ter favorecido a atividade teatral foi a criação, em 1857, do
Conservatório Dramático da Bahia. Suas intenções foram, segundo Lizir Arcanjo,
“‘regenerar’ o teatro [decadente e corrompido moralmente] e desenvolver a literatura
pátria”.43 Na sua composição tinha 50 sócios, fiéis representantes das elites da época,
na maior parte doutores e bacharéis, além de alguns homens da Igreja. O primeiro
presidente do Conservatório, por exemplo, foi o desembargador José Joaquim Silva, que
se tornou, posteriormente, Visconde de Monte Serrat. Entre os seus sócios estiveram o
supracitado advogado/dramaturgo Agrário de Menezes e Silio Boccanera, o pai do Silio
Boccanera Jr. (o próprio informante de que tenho me valido para tratar sobre o
teatro).44
As reuniões do Conservatório eram realizadas semanalmente, nas dependências
do Teatro São João, ocorrendo aí a leitura de obras que postulavam ser encenada, e a
conseqüente elaboração de pareceres favoráveis ou desfavoráveis aos textos
submetidos a analise. O texto do Gonzaga de Castro Alves, por exemplo, foi submetido
a diversas apreciações dos sócios do Conservatório até que teve a representação
autorizada. O mesmo ocorreu com o Calabar e outras produções de Agrário de Menezes.
A temática mais bem acolhida pelos seus sócios era indubitavelmente aquela de feição
histórica, daí a profusão de peças com títulos como Dois de Julho, O Dia da
Independência, Os Tempos da Independência, Calabar, Gonzaga ou a Revolução de
Minas, Cabral, Caramuru, dentre outros. Temas religiosos e as críticas políticas e de
costumes, também, foram incentivados.45
Segundo Affonso Ruy, o Conservatório desapareceu em 1874, mas não
apresenta os motivos para o seu fim. O mesmo autor afirma que dez anos depois, em
1884, antigos remanescentes e novos elementos tentaram reorganizá-lo, sem
esclarecer se foi bem sucedida a empreitada — a impressão é de que não o foi. Há de se
observar que o intervalo de sua existência (1857-1874/84) coincide, aproximadamente,
com o período que Sílio Boccanera Jr. designou como sendo da “idade do ouro” do
teatro na Bahia, situada entre 1860 e 1875.46
43 ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., v. 2, p. 303. 44 O José Joaquim da Silva citado aqui é o mesmo Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, o Visconde de
Montserrat, que citarei mais adiante. A referência sobre a presidência do Conservatório é originalmente de RUY, Affonso, op. cit., e repetida por ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit. As únicas referências ao Visconde de Montserrat na primeira forma do nome encontrei nesses autores. Em outros livros e nos documentos, seu nome aparece sempre da segunda forma.
45 ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., v. 2, p. 303-309; Ver, também, RUY, Affonso, op. cit., p. 69-80. 46 RUY, Affonso, op. cit., p. 77-78. Ver o perfil biográfico de Affonso Ruy no “Anexo” deste trabalho (entrada
por “Sousa”).
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 120
As outras artes
Enquanto nas letras revelou talentos em profusão, parece que a Atenas Brasileira
não conseguiu repetir a mesma grandiosidade em outros campos das artes, como a
pintura, a escultura, a música. As razões apontadas para o descompasso entre o
desenvolvimento das letras na Bahia e as outras modalidades artísticas se associavam
ao fato dos portugueses em geral não terem demonstrado grande aptidão em relação às
segundas, tampouco criarem qualquer tradição significativa para as mesmas. Como já
tive a oportunidade de comentar a respeito da produção literária, as análises que
indicavam ter sido durante muito tempo a cultura artística “nacional”47 mero reflexo do
que se produzia em Portugal se estendiam aos demais segmentos da arte.
Resumidamente, pode-se afirmar que, no Brasil, elas não revelaram nenhuma grande
originalidade, conseqüência natural da pouca expressividade que tiveram em Portugal.
Desse modo, aquilo que na Bahia aparecia como uma deficiência artística era,
prontamente, estendido para o Brasil e apontado como resultado dos próprios limites de
expressão artística portuguesa na área em questão. Não foi, exatamente, a Bahia, no
conjunto da nação, que não desenvolveu a sensibilidade para tal ou qual forma de arte,
mas o próprio Brasil que não pode desenvolvê-la por ela ser inexpressiva em Portugal.
Nesse sentido, quem nos fornece um exemplo interessante é Acácio França, que,
escrevendo sobre a pintura, demonstra uma certa preocupação com o “descaso e
desamor às artes”, e explica essa pouca afeição pela “simples razão de não serem [os
portugueses] raça de artistas”.
Abrindo um parêntese, pode-se dizer que tanto em Portugal quanto na Bahia as
artes figurativas, em especial, sofreram a marcante influência do sentido religioso,
manifestando nessa tendência o melhor que puderam apresentar — e conquanto todo a
religiosidade da época, este aspecto não parecia suficiente para lhes conferir maior
grandiosidade.
Essas são as justificativas das nossas testemunhas do passado. Em minha
interpretação, a menor ênfase em tais modalidades de artes e as leituras em torno da
pouca expressividade “artística” (no sentido de qualidade positiva de uma obra) por elas
alcançadas podem estar relacionadas também ao fato de serem tipicamente manuais ou
— como era mais usual se falar na época — mecânicas. Não exigiam, necessariamente,
uma formação intelectualizada, sendo aprendidas comumente no exercício manual. Esse
aspecto tornava-as acessíveis a indivíduos sem maior grau ou mesmo sem nenhuma
escolaridade, adquirindo, portanto, um caráter muito menos elitizado.
47 As aspas são em razão de utilizar-se o termo nacional quando ainda não havia a nação propriamente dita,
por referir-se à era colonial.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 121
Pode-se, de qualquer modo, fundamentar melhor esta conclusão se recorrermos
a algumas outras evidências da própria época. Por exemplo, Affonso de Macedo,
responsável pela coluna “Idéas e Factos” da revista Renascença, comentou certa vez
que “uma das causas determinantes do atrazo das artes e officios e da industria, no
paiz, é a aristocracia de classe, que reina no espirito do povo”. Explicaria isso enquanto
preconceito ao trabalho, ainda em vigor, nas primeiras décadas do século XX,
considerado uma espécie de “castigo de Deus”, e acentuado pela experiência da
escravidão, que opunha os trabalhadores (os próprios escravos) e os senhores.
Amparando-se em tais preconceitos, muitos pais acabavam torcendo “a vocação a seus
filhos; fazendo, assim, de maestros, gravadores, esculptores, e outros gênios talhados
para o esplendor das artes [...] essa cohorte de titulares e empregados públicos, que,
finalmente, com honrosas excepções, não veem a ser, com êxito, nem uma nem outra
cousa”. Para Macedo, somente a música tinha “melhor aceitação em nosso meio” ― mas
ainda assim, não deixou de lembrar algumas das suas dificuldades.48
Consultando-se o livro Artistas Bahianos, edição de 1911, da autoria de Manoel
Querino, é possível reunir novas evidências. Nos dados biográficos que apresenta sobre
os artistas locais, ele demonstra quantos dos que praticaram a pintura, a escultura e a
música tinham origem humilde, sendo muitos deles negros e mestiços. Alguns
chegaram a professores do Liceu de Artes e Ofícios ou da Escola de Belas Artes, como
se deu com o próprio Querino. Mas não desfrutavam, obviamente, do mesmo status de
um professor da Faculdade ou de um ginásio gabaritado. Na verdade, a maior parte
destes artistas eram confundidos com trabalhadores especializados, portadores de
habilidades manuais especiais. Deste modo, por mais apreciados que pudessem ser, as
demais formas de arte não angariavam a mesma atenção recebida pelos praticantes das
letras; nem mesmo quando elas eram praticadas por integrantes das elites se conferia
maior prestígio pessoal aos seus seguidores.49
A música é uma modalidade artística que pode ilustrar algumas das questões
aqui pontuadas. Nesse caso, foram as mulheres que mais receberam educação musical,
sendo incentivadas no aprimoramento do canto e alguns instrumentos (principalmente o
piano, é óbvio, embora aparecessem tocando violino ou violoncelo eventualmente), com
os quais entretinham os participantes dos saraus, reuniões e festas domésticas, ou que
permitia a algumas delas se apresentarem em teatros como concertistas. Note-se que,
enquanto nas letras não se fazia uma referência sequer a nomes femininos, na música
48 MACEDO, Affonso de. “Idéas e factos”. Renascença, Bahia, nº 02, 1 de agosto de 1916. 49 QUERINO, Manoel Raimundo. Artistas Bahianos. Introduções Biographicas. Bahia, Officinas da Empreza “A
Bahia”, 1911 (2a. Edição).
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 122
muitas mulheres se destacaram, inclusive integrando os quadros de professores do
Conservatório de Música, criado em 1897.50
Existia uma notável diferença entre os nobres representantes das letras, uma
forma de arte intelectualizada, “masculinizada” (não no sentido de que as mulheres não
escreviam, mas no sentido de que sua capacidade era muito pouca reconhecida) e
bastante elitizada, e os representantes das demais formas de arte, que exigiam
sobretudo propensões manuais, sendo, portanto, mais aberta a outros tipos de
indivíduos do que as artes mais intelectualiazadas, que de certo modo pressupunha a
passagem pelos bancos de uma faculdade ou um elevado grau de estudo. De toda
sorte, não quero dizer com isso que certos sujeitos orgulhosos dos seus dons
intelectuais não pudessem manifestar outros talentos. O cerne da questão é o seguinte:
em termos hierárquicos, o uso do intelecto se colocava à frente do uso de habilidades
manuais/mecânicas, sobretudo porque era através dele que se ofereciam oportunidades
de profissionalização tanto mais respeitada socialmente quanto mais rendosa
financeiramente.
Assim, embora para a Atenas grega pudessem se referir às diversas artes, na
Atenas Brasileira ganhava maior proeminência aquela que estava mais intimamente
relacionada a uma intensa atividade intelectual.
Num depoimento datado de 1923, Sylvio Deolino Fróes exemplifica, com o seu
perfil, o que tenho dito aqui. Ele havia estudado engenharia no Rio de Janeiro, porém,
não chegou a concluir o curso. Passou algum tempo na Europa e após voltar à Bahia,
em 1898, matriculou-se na Escola Politécnica, objetivando concluir o curso de
Engenharia. Logo foi convidado para fazer parte do Conservatório de Música, hesitando
muito em aceitar. Nas suas próprias palavras:
Essa idea não me era precisamente symphatica. É claro que muito pouco vantajosa se me antolhava a posição de professor de musica em comparação com uma carta de engenheiro. Tinha acabado de prestar exames na Polytechnica e muitíssimo feliz para pensar em ser professor da Escola de Bellas Artes, sem futuro prestigioso, num meio artístico tão acanhado. É fácil ao leitor acceitar que, tendo vivido no Rio e na Europa, podesse estabelecer comparações entre o prestigio das artes nos logares de onde
50 O Conservatório de Música foi criado como anexo da Escola de Belas Artes, em 1897, sendo transformado
em Instituto de Música vinte anos depois, quando conseguiu obter a separação da Escola de Artes. É fato, também, que estamos falando da presença feminina num determinado campo da arte, quando a Bahia, aparentemente, já não podia se arvorar ao título da Atenas Brasileira em sua plenitude. Mas não deixa de ser significativa essa participação, tendo em vista que até décadas avançadas do século XX pouquíssimas conseguiram obter, em sua própria época, algum tipo de destaque nas letras. Ver FRÓES, S. Deolino. “A música na Bahia”. Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do Centenário, p. 107-117, 2 de julho de 1923, p. 113-114, que traz a relação de nomes femininos de destaque na música baiana e de tantas outras que integraram os quadros do Conservatório de Música. Sobre a escrita literária feminina, na Bahia, ver LEITE, Márcia Maria da Silva Barreiros. Entre a tinta e o papel: memórias de leituras e escritas femininas na Bahia (1870-1920). São Paulo, 2004. Tese (Doutorado em História) — PUC-SP, 2004, especialmente, o capítulo 3, “O fazer literário das baianas: práticas de escrita”.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 123
viéra e na minha terra natal e dahi ver que foi muito a contragosto e sómente cedendo a instantissimas sollicitações é que me decidi a fazer parte do corpo do Conservatório, para onde aliás já me acenavam com as honras de director technico. Penso que alguns dos meus futuros companheiros partilhavam dos meus sentimentos. [...] Cedi, porém, infelizmente a esses pedidos, do que amarissimamente [sic] me arrependo hoje, como sempre inutilmente me arrependi e sempre cedendo a motivos de ordem sentimental e pouco práticos para mim.51
O arrependimento demonstrado por Deolino Fróes em relação à escolha
profissional que fizera é sintomático da tristeza com o tipo de valorização que se dava
às artes. O gosto existia e alguns até se dedicavam a elas, embora amadoristicamente.
No caso daqueles indivíduos que vinham de uma formação mais elevada, porém,
mostrava-se inviável a profissionalização, pois era baixo o reconhecimento social,
diminuta a recompensa monetária e impraticável a compatibilização com outras
atividades. No caso das letras, dava-se algo totalmente contrário, ou seja, alto
reconhecimento social e grande compatibilidade com outras atividades — até mesmo
porque muitas vezes parecia se fazer uma associação direta entre competência na
escrita e competência profissional. Daí a profusão de médicos, bacharéis e engenheiros
“belas-letristas”.
De qualquer modo, a admissão dos problemas assinalados não diminuía de todo
o papel da Bahia no desempenho de congênere nacional da antiga cidade-Estado grega.
É possível provar a pertinência deste argumento acompanhando um comentário sobre a
música, no qual se introduz a seguinte afirmação: “o Brasil tem, também, a sua
deslumbradora Thracia: a Bahia. Nesta terra, que até já apellidaram de Athenas do
Norte, tem surgido artistas de valor real para a musica”.52 Avançando para outros
campos, Acácio França foi mais um a encontrar motivos para regozijos, pois acreditava
que, “capital política nos tempos da Colônia, centro da sua intellectualidade, póde a
Bahia ufanar-se de ser o berço das bellas artes no Brasil. Contam as artes plásticas aqui
um sem numero de amostras, que attestam o mérito de seus cultores durante cerca de
trezentos e muitos annos. Ahi estão os templos e conventos da Capital e do interior do
Estado”.53
51 FRÓES, S. Deolino, op. cit., p. 113-114. Segundo Fróes, outro professor que ingressou no Conservatório de
Música, chamado Alberto Muylaert, “que estava em vias de concluir seus estudos academicos”, também lhe teria manifestado sentimentos semelhantes.
52 “A arte triumphadora de um bahiano, no Theatro Municipal”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 38, mai./1921.
53 FRANÇA, Acácio. “A Pintura na Bahia”. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do Centenário, p. 144-151, 2 de julho de 1923, p. 144-145. Retornando ao problema da pouca aptidão para certas formas de arte em conseqüência da própria inaptidão portuguesa, esse mesmo autor insinua que as mesmas só se desenvolveram posteriormente e em alguns poucos lugares, sob o influxo dos estrangeiros que imigraram sobretudo para as regiões mais ao sul do país. Nas suas próprias palavras: “Não somos povo de artistas. Ao contrario, um dos maiores defeitos nossos está justamente no descaso e desamor para com as artes. Isso não se passa exclusivamente na Bahia, mas em todo Brasil, salvante o Rio e S. Paulo, graças a elementos estranhos e regeneradores do gosto, ali abundantes de longa data”. Saliente-
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 124
Essa digressão acerca das artes tem a intenção de demonstrar qual era o foco
principal de nossos testemunhos quando se referiam à gloriosa Atenas Brasileira.
Intencionavam eles, sobretudo, salientar o preparo intelectual de um certo grupo de
baianos, aqueles que se voltavam para as letras. Não teria certeza em afirmar que isso
se desse em detrimento total dos outros artistas, mas no mínimo com uma certa dose
de indiferença, sem a devida valorização dos seus talentos artísticos — talentos estes
que quando assumidos por nossos homens de “inteligência” elevada tinham sobretudo
um caráter diletante.54 Por isso, a maior ênfase nas letras, onde as virtudes do intelecto
podiam se manifestar plenamente.
Faculdade de Medicina: ciência, civismo e o culto às belas-letras
Nesse sentido, quem melhor cumpria na Bahia a função de depurar e aprimorar o
espírito intelectivo das elites, tão logo se concluía o ensino fundamental, era a
Faculdade de Medicina (ver fig. 14). Como teve a oportunidade de afirmar a respeito,
em 1918, Belmiro Valverde, médico da instituição “as glória da Bahia têm sido
apresentadas sob todos os aspectos da intelligencia humana, graças ao valor real e às
extraordinárias qualidades dos seus filhos dilectos”. E prosseguindo sua argumentação,
com vista a resguardar o lugar de honra dos discípulos de Esculápio, dizia que “essa
verdade, insculpida na consciência nacional, dispensa comprovações, sendo, entretanto,
se, que ele fala das suas percepções no início da década de 1920, a “longa data” a que se refere, numa perspectiva realista, não podia ser tão longa assim. Para o Rio de Janeiro talvez fosse um pouco mais distante, visto que era o centro cultural do país desde o Império, mas para S. Paulo, remetia, no máximo, ao final do século XIX. Para um rápido painel das artes na Bahia ao longo da sua história, ver, também, FRÓES, S. Deolino, op. cit., que lamenta o estado da música, narra sinteticamente o seu percurso histórico na Bahia e cita o nome de diversos musicistas; ALLIONNI, José. “Arquitectura e esculptura na Bahia”. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do Centenário, p. 119-123, 2 de julho de 1923, que se detém sobretudo na arquitetura, arrolando edifícios e monumentos históricos, além de alguns mais recentes; QUERINO, Manoel R.. As Artes na Bahia: escorço de uma contribuição historica. Bahia, Typ. e Encad. Do Lyceu de Artes e Officios, 1909, e, do mesmo autor, Artistas Bahianos, que faz um detalhado painel das artes na Bahia ao longo da história, citando artistas locais e de fora que ajudaram a desenvolvê-la. Manoel Querino foi referência bibliográfica de todos os outros autores citados nesta nota. Seus traços biográficos são interessantes para assinalar as nuances de valorização da arte. Querino foi um homem negro nascido em Santo Amaro, no Recôncavo baiano, em 1951. Foi educado por um tutor, o professor Manuel Correia Garcia, que o introduziu nas letras. Aos 17 anos alistou-se no exercito, pretendendo combater no Paraguai, mas ficou no Rio de Janeiro fazendo trabalho de escrita no quartel. Trabalhou como pintor e decorador, estudou francês e português, tirou o curso de desenho e arquitetura na Escola de Belas-Artes. Em seguida tornou-se professor do Liceu de Artes e Ofícios e do Colégio dos Órfãos de São Joaquim, que mantinham cursos profissionalizantes. Atuou no movimento republicano e abolicionista; depois atuou em prol da causa operária. Contribuiu na imprensa com inúmeros artigos. Foi associado do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Escreveu diversos trabalhos que foram publicados em vida ou postumamente, muitos deles dedicados aos negros e as suas heranças. Parece que uma das suas maiores decepções foi não obter promoções como funcionário público, sendo sistematicamente preterido e vítima de humilhações. Manoel Querino, negro e homem socialmente remediado, era uma figura que servia para tipificar os artistas baianos. Sobre Querino, ver RAMOS, Artur. Prefácio. In QUERINO, Manoel. Costumes Africanos no Brasil. Recife, FUNDAJ / Editora Massangana / FUNARTE, 1988, p. 13-18. Ver o perfil biográfico de Manoel Querino no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Querino”).
54 Um exemplo é Francisco Moniz Barreto de Aragão, professor da Faculdade de Medicina, respeitado homem da sociedade baiana, pai do poeta Pethion de Villar (ou Egas Muniz Barreto de Aragão), que se ofereceu para ensinar violino gratuitamente no Conservatório de Música da Escola de Belas Artes, embora tenham lhe arranjado uma pequena remuneração por isso. Ver FRÓES, S. Deolino, op. cit., p. 115.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 125
justo que se destaquem os immensos serviços prestados ao renome da Bahia pelos seus
filhos médicos”.55
Criada como Escola de Cirurgia, em 1808, passou por sucessivas reformas no
ensino e na sua designação até ser transformada em faculdade com um decreto da
Assembléia Geral no ano de 1832. Os cursos da Faculdade de Medicina permaneceram
os únicos de nível superior oferecidos na Bahia durante todo o Império.56 Somente na
República surgiram novos cursos, com a criação da Faculdade Livre de Direito (1891) e
o Instituto Politécnico (1896/1897), completando o trio das profissões mais elevadas,
formadoras das elites intelectuais da época.
Embora devesse ser um espaço científico, a Faculdade era integrada por homens
de sólida formação humanista, educados desde jovens dentro de uma tradição que
valorizava sobremaneira as letras, as línguas, a história e áreas de conhecimentos afins,
em prejuízo das ciências físicas e naturais. Ingressando nos estudos superiores, esses
homens levavam para a faculdade um tipo de conhecimento apoiado muito mais nas
ciências do espírito que nas ciências experimentais. Somando-se a isso a herança
legada por Portugal na formação médica (pouco empírica e mais teórica), tinha-se uma
equação cujo resultado era, por um lado, um ensino cuja prática se equilibrava entre o
experimentalismo e a retórica e, por outro lado, um elenco de profissionais que oscilava
ou se dividia entre a vocação cientifica e o talento para a literatura, a oratória e,
também, a política. O Dr. Gonçalo Muniz, em artigo que escreveu para a edição
comemorativa da independência do Diário Oficial do Estado, sobre a evolução da
Medicina na Bahia, falou em dado momento do amplo raio de atuação dos médicos que
saíam da instituição:
E como muito bem diz o Dr. Malaquias Álvares dos Santos, na sua memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia, relativa ao anno de 1854, a primeira escripta, referindo-se à nossa Escola de Cirurgia: “Era tambem então quase geral o habito de irem os alumnos para a Europa aperfeiçoarem-se na sciencia que haviam começado a aprender. Houve, portanto, para essa escola ao menos uma palma de gloria: era preparar homens que servissem na gloriosa lucta da independência, médicos e publicistas. Ella concorria com a franqueza dos Portos, e com a libertação da industria para dar aos Brasileiros o conhecimento da sua soberania, e para dar à nação o reconhecimento de sua nacionalidade”. Eis ahi incontestavelmente outra utilidade, e não pequena, do estabelecimento do ensino superior em nosso paiz, no tocante à sua evolução em geral, scientifica, política e social.
55 VALVERDE, Belmiro. “Instituto Nina Rodrigues”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 06, mai./1918. 56 Do ponto de vista historiográfico, para uma breve informação sobre o processo de criação e
desenvolvimento da Faculdade de Medicina da Bahia ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 189-218. Históricos sobre as três instituições elaborados por integrantes delas próprias são os artigos: MUNIZ, Dr. Gonçalo. “A Medicina e sua evolução na Bahia”, p. 401-436; BOMFIM, Dr. Agenor. “Faculdade de Medicina da Bahia”, p. 464-472; “Faculdade de Direito da Bahia”, p. 360; “Escola Polytechnica e Instituto Polytechnico da Bahia”, p. 462-463 — todos no Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do Centenário, 2 de julho de 1923.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 126
Illustres filhos do nosso primeiro instituto de estudos médicos tomaram, de facto, parte saliente no movimento emancipador da nossa pátria e, mais tarde, no Brasil independente, collaboraram valiosamente na política e governo incipiente da nação, prestando relevantes serviços, à obra da sua consolidação e engrandecimento. No que concerne especialmente à Bahia, não negar o benéfico influxo que sobre o seu desenvolvimento moral e material exerceu a instituição de que tratamos, nella em boa hora fundada. As faculdades ou academias são, em verdade, centros de onde se reúnem as maiores e melhores intelligencias do paiz, instinctivamente attrahidas à busca de sciencia, esse pabulum spiriti, tão necessário à vida psychica das grandes mentalidades quanto o são à vida do corpo os alimentos materiaes. E essa concentração de energias intellectuaes há de fatalmente, como as vibrações ethereas de um foco luminoso, irradiar, em todas as direcções do espaço, no meio social em que se fórma, a sua alma e poderosa influencia, clareando em torno della os antros tenebrosos da ignorância e do erro, descobrindo e divulgando verdades úteis ao florescimento fecundo de todas as faculdades humanas, e suscitando dest’arte o progresso individual e collectivo em suas multíplices modalidades. Vem a pêlo notar que os Estados brasileiros mais adeantados são justamente os que primeiro tiveram institutos de ensino superior.57
Gonçalo Muniz descreve o que parece ser um verdadeiro e um necessário
engajamento político, social e intelectual dos médicos baianos na vida nacional. Não é
de estranhar, portanto, que um punhado de literatos, oradores e políticos que fizeram
as glórias da Bahia tenham passado pela Faculdade de Medicina como professor e/ou
aluno. Exemplos de médicos professores que tiveram uma intensa atividade política —
como deputado provincial ou geral, conselheiros, presidentes de província, etc. — foram
José Lino Coutinho (1784-1836), Antonio Ferreira França (1771-1848), o conselheiro
José Luiz de Almeida Couto (1833-1895), Manoel Victorino (1853-1902), Demetrio
Cyriaco Tourinho (1826-1888), Virgilio Clímaco Damásio (1838-1913), Jeronymo Sodré
Pereira (1840-1909), dentre outros menos ilustres.58 Foram médicos também Francisco
Sabino Álvares da Rocha Vieira (1797-1846), líder da Sabinada, revolta separatista
baiana de 1837; Francisco Gomes Brandão (1794-1870), que adotou o nome de
Francisco Gê de Acaiaba e Montezuma após a Independência, nobilitado Visconde de
Jequitinhonha e formado, também, em Direito por Coimbra; e Aristides Cesar Spinola
Zama.
Intimamente relacionada à politização que caracterizou muitos médicos, esteve a
crença num forte sentimento cívico e patriótico ligando-os ao país, crença que apurou a
idéia de que o destino da faculdade sempre cruzou com os imperativos históricos
vivenciados pela nação. Como disse Pacífico Pereira, o emérito professor da faculdade
baiana, no longo título com que designou um artigo publicado na Bahia Ilustrada, “a
tradição histórica da Faculdade de Medicina da Bahia é um traço luminoso e indelével de
57 MUNIZ, Dr. Gonçalo, op. cit., p. 407. 58 Idem, ibidem, p. 424-432.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 127
patriotismo desde sua fundação até os nossos dias”. E no texto do artigo, acrescentou
que ela era um “templo augusto que guarda em perenne culto o talisman da virtude
immoredoura do patriotismo, e da intemerata coragem com que os antepassados
conquistaram nossa liberdade”. Nas considerações de Pacífico Pereira, a faculdade teria
desempenhado um papel relevante na vida nacional, isso desde os fatos que
antecederam e preparam a Independência. Professores da instituição, quando ainda
somente uma Escola, foram bastante atuantes nos primeiros momentos do Estado
brasileiro, fazendo-se eleitos para a Assembléia na capital do Império. Nessa fase, Lino
Coutinho foi o nome mais ilustre, tendo inclusive ocupado pasta ministerial.59
O amor cívico e patriótico, bem como o sentimento de abnegação teriam se
manifestado ainda em diversas outras ocasiões, visto que muito “fiéis a este culto a
Faculdade de Medicina e a corporação acadêmica da Bahia foram sempre promptas a
acudir o apello da humanidade e da pátria nas crises angustiosas de formidáveis
epidemias e de lutas sangrentas que afligiram e abalaram o paiz”. Pacífico Pereira não
deixaria de citar fatos que comprovavam o pretenso altruísmo dos médicos,
especialmente nos momentos mais graves da febre amarela (em 1849-1850) e da
cólera morbus (1855), onde foram enaltecidos pela bravura e pelo desprendimento. Na
Guerra do Paraguai (1865-1870), 15 professores e 40 alunos “expunham suas vidas em
defeza da honra e da integridade nacional” — assinale-se que na época a faculdade
tinha o total de 33 professores em exercício. Algo semelhante teria ocorrido na era
republicana quando os médicos da Faculdade foram para os campos de batalha no
sertão de Canudos prestar socorro aos combatentes ou viram seus trabalhos redobrados
para atender os feridos que chegavam aos hospitais de Salvador.60
Políticos, cívicos, patrióticos, altruístas e, também, cultores das letras. Uma
rápida olhada nos escritores baianos, nas diversas modalidades de escritas, revela essa
verdade. Muitos dramaturgos locais saíram da Faculdade de Medicina. Affonso Ruy
informa que, entre 1840-1890, doze médicos tiveram textos encenados nos teatros de
Salvador, número superior ao de advogados, que foram oito. Exemplos deles foram
João Pedro da Cunha Valle e Rodrigues da Costa. Outros tantos foram poetas ou
prosadores. David Salles demonstra a existência de um jornal literário, O Crepúsculo,
que circulou entre 1845-1847, cuja lista de colaboradores contava com quatorze
graduados ou graduandos de medicina em um total de 22. A trajetória de dois destes
59 PEREIRA, Pacífico. “A tradição histórica da Faculdade de Medicina da Bahia é um traço luminoso e indelével
de patriotismo desde sua fundação até os nossos dias”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 39, jun./1921. 60 Idem, ibidem. Wanderley Pinho relata um caso da dedicação dos médicos aos princípios da profissão que
sugere esse desprendimento; ocorrido durante a epidemia do cólera, teve no dr. Cypriano Barbosa Betomio o seu protagonista. Estabelecido em Santo Amaro, o médico em nenhum instante teria temido atender os doentes vivos e mortos da cólera, morrendo, em conseqüência, vítima da doença que tanto procurou combater. PINHO, José Wanderley de Araújo. “A Cholera Morbus de 1855 (e o papel de Cypriano Betomio)”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 46, p. 141-153, 1920.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 128
colaboradores revela o quanto a formação médica imbricava-se com outras atividades
intelectuais, que não apenas a medicina. Isso aparentava ser uma flagrante
contradição, pois a medicina, embora possa estar revestida de um caráter intelectual,
deveria possuir, supõe-se, maior espírito científico e estimular menos vocações de
outros tipos. O primeiro exemplo, Abílio César Borges, tornou-se o mais aclamado
educador baiano do século XIX e de um bom período do século XX. Foi criador do
Ginásio Baiano, onde estudaram Castro Alves e Rui Barbosa, instituição que ficou
famosa pela revolução dos métodos pedagógicos implementados. Estabelecendo-se no
Rio de Janeiro, angariou a mesma fama, chegando a receber o título de Barão de
Macaúbas. O segundo, Demetrio Cyriaco Tourinho, já citado na categoria de médico-
político, foi professor da faculdade e do ensino fundamental, além de expressivo
jornalista, fundador de um dos mais importantes jornais — se não foi o mais importante
— que circulou na Bahia durante o século XIX, o Diário da Bahia (1856), onde Rui
Barbosa atuou.61
Sacramento-Blake também foi médico, participou de periódicos científicos e
literários, traduziu obras estrangeiras, bem como se aventurou na ficção em prosa
(como o romance). Mello Moraes Filho foi outro egresso da Faculdade, investindo na
poesia. A medicina revelou também grandes oradores, como Demétrio Tourinho, o
Visconde de Jequitinhonha, Lino Coutinho, Manoel Victorino, César Zama, dentre outros.
Aliás, o domínio da oratória foi uma qualidade que se mostrou muitas vezes
imprescindível, não somente na vida pública, mas também, no próprio exercício
profissional, especialmente nos cursos e concursos da Faculdade, em que a capacidade
retórica se tornava um poderoso instrumento para provar a “competência” e o
“conhecimento” dos médicos.
As vocações outras manifestadas por muitos médicos baianos não passaram
incólumes às críticas, fossem de contemporâneos, inclusive e especialmente dos
próprios colegas médicos, fossem de estudiosos de épocas posteriores. O argumento
central das críticas acusava os médicos de preterirem o estudo científico da medicina,
ao valorizarem práticas e teorias antiquadas, ou ao se dedicarem a atividades que nada
acrescentavam ao desenvolvimento da ciência médica. Não foram poucos os que se
preocuparam em apontar esse “prejudicial” contra-senso. E, por isso, não deixaram de
sofrer conseqüências danosas aqueles que, sendo da instituição, recusavam as tradições
dos nossos médicos e compartilhavam de um pensamento crítico em relação a eles.
Nina Rodrigues, por exemplo, foi vítima de retaliação. Quando incumbido, em 1895, de
61 A informação sobre os médicos dramaturgos já foi registrada algumas notas atrás. De qualquer modo, rever
RUY, Affonso, op. cit., p. 76-77. Ver, ainda, SALLES, David. “O Crepúsculo — Bahia, 1845-1847, ou os médicos praticam literatura”. Universitas — Revista de Cultura da UFBA, Salvador, (5): 161-169, jan-abr / 1970. Sobre Abílio, publicou-se um bom número de coisas em jornais e revistas. Sobre Demétrio Tourinho, ver MUNIZ, Gonçalo, op. cit., p. 428-429.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 129
elaborar a Memória Histórica da Faculdade de Medicina da Bahia, teve seu trabalho
recusado pela maior parte dos professores da Congregação em razão da severidade com
que julgou os atos acadêmicos dos colegas. Luiz Anselmo da Fonseca, outro professor
da faculdade, fez antes, na “Memória Histórica” de 1891, críticas à “verbosidade”, aos
“requintes do classismo gramátical” e ao “gosto teatral” (referindo-se aqui,
provavelmente, ao jogo de cena dos professores) que caracterizavam o ensino.62
Gilberto Freyre, por sua vez, fez implacável avaliação sobre a questão. Para ele a
tendência demonstrada pelos médicos baianos era um claro sinal da mentalidade
conservadora e tradicionalista que caracterizava toda a cultura e sociedade local,
refratária, portanto, aos imperativos modernos do ensino e do conhecimento, à
penetração de novas idéias filosóficas e aos novos métodos científicos. No particular ao
gosto pelas letras, Freyre afirma que a Faculdade de Medicina era “uma escola
científica, na qual a Medicina científica propriamente dita se viu, por vezes, em situação
de estudo ou de culto quase ancilar do da Literatura clássica; do da Oratória; do da
Retórica; do da elegância de dizer; do da correção no escrever; do da pureza no falar;
do da graça no debater questões às vezes mais de Gramática que de Fisiologia; ou
problemas mais de patologia de estilo literário que de Anatomia Patológica”. E
prosseguiu sua apreciação a respeito do assunto afirmando “ter a Bahia chegado a
pleno fim do século XIX, com uma Academia de Medicina mais notável no seu conjunto,
por ser ‘Academia’ à moda antiga do que ‘de Medicina’ em estilo moderno”.63
Não se pode negar a pertinência das considerações de Freyre. No entanto,
lançando um olhar retrospectivo, interpretativo e, em alguma medida, até mesmo
condescendente para com o problema, colocaria a vocação dos médicos — e das elites
locais em geral — no plano das presunções de poder e de alta cultura que alimentavam
muitos baianos. Perdoem-me as conjecturas não apropriadas a um historiador, mas fico
pensando, que se houvessem fundado, na Bahia, uma Faculdade de Direito, em lugar de
uma Faculdade de Medicina, talvez as aspirações dos baianos tivessem se ajustado com
maior perfeição às possibilidades geradas pelo curso (obviamente, o de direito).
Enquanto ciência, a medicina estava voltada para o estudo dos fenômenos químicos,
biológicos e naturais, gerando um campo de atuação, teoricamente, mais restrito. O
direito, por sua vez, formando especialistas em ciências jurídicas e sociais abria um
campo mais extensivo de atuação, pertinentes às pretensões que configuravam o
próprio ideal da Atenas Brasileira, bem como as diversas aspirações das elites baianas.
62 Sobre Nina Rodrigues, ver CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a
antropologia no Brasil, Bragança Paulista, EDUSF, 1998, p. 137. A mesma autora informa que sua “Memória Histórica” ficaria inédita até 1976. Luiz Anselmo da Fonseca é citado por FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Rio de Janeiro, Record, 1990, p. 204.
63 FREYRE, Glberto, op. cit., p. 199-212. As análises sobre a cultura, a sociedade e, em especial, a Faculdade de Medicinica ocupam algumas páginas em Freyre, mas as duas citações encontram-se, respectivamente, nas páginas 199-200 e 208.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 130
Essas elites não tinham, aparentemente, a intenção de produzir cientistas.
Queriam sim, por um lado, produzir homens públicos, que se engajassem na alta
administração e no alto poder de Estado, ambição alimentada por uma história que
registrava uma elevada integração dos baianos ao núcleo central do poder político
nacional. Por outro lado, desejavam que esses homens públicos fossem exemplares
vivos de elevadas qualidades intelectivas e culturais, com as quais poderiam iluminar os
destinos da nação. E, nessa perspectiva, somente a Faculdade de Medicina podia
preparar esse tipo de homem público localmente. Do ponto de vista prático, as
Faculdades de Direito estavam melhor instrumentalizadas para produzir tal modelo de
sujeitos, mas, durante o Império, somente Recife e São Paulo tiveram a sorte de vê-las
instaladas. Não foram poucos os baianos que passaram por elas, sobretudo em Recife,
dado a proximidade. Mas tenho para mim que muitos outros procurariam o curso de
Direito caso houvesse um no Estado, o que só veio ocorrer em 1891. Como cultores da
tradição, mesmo após a instalação da Faculdade Livre de Direito, seria preciso um lento
movimento até que os doutores da Faculdade de Medicina fossem adquirindo um perfil
mais científico, abrindo mão do espírito teórico e/ou retórico — este último de enorme
utilidade na vida pública ou para quem experimentava as artes literárias —, próprio de
uma grande maioria dos seus mestres.
De outro modo, se o meu argumento parecer inadequado, pode-se, também,
acompanhar as palavras de David Salles, para quem, longe de ser uma “uma
peculiaridade dos médicos-literatos baianos, [...] o cultivo das letras era, por todo o
Séc. XIX, uma forma de nobilitação científica e profissional em todas as áreas de
saber”.64
Oradores e estadistas: os políticos baianos do império
À parte as especulações incorporadas ao argumento de que os baianos talvez se
adequassem melhor a uma formação em Direito, tenho certos indícios documentais que
servem para sustentar a minha interpretação. E eles se encontram particularmente nas
homenagens e honrarias, nos elogios e louvores, nas tantas formas de apologia
dirigidas aos estadistas baianos do Império. Como indicava o título de uma matéria da
Bahia Ilustrada, eram esses sujeitos inconfundíveis sinais das “nossas glórias”. São
abundantes as descrições sobre a atuação de expoentes homens públicos baianos na
vida nacional. Atuação que se assinalou durante todo o século XIX, máxime no Segundo
Reinado, onde personagens como “Rio Branco e Cotegipe, Dantas e Saraiva,
Vasconcelos e Abrantes, Nabuco de Araújo, Jequitinhonha e outros que o cercavam, são
64 SALLES, David, op. cit., p. 163.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 131
figuras que sombraneciam todo o scenario do imperio, assoberbam a politica
monarchica, nessa phase que separa a Regência da Republica”. Como se afirmava
então, “o segundo reinado irradia[va], na verdade, através da acção laboriosa, proficua
e energica, dos estadistas bahianos dessa época memoravel dos grandes cidadãos e dos
feitos immortaes”.65
Nota-se nos discursos em torno destas personagens que o mérito em serem
destacados como estadistas devia-se ao fato de conseguirem combinar capacidade de
decisão, firmeza na condução dos processos, lastro intelectual e saber especial para a
administração dos interesses do Estado, além de profunda entrega e dedicação às
causas nacionais — confundidas, nesse período, com os interesses do Império e do
Imperador, ou seja, o próprio poder instituído no Brasil. No amor que devotavam à
nação teriam demonstrado, inclusive, o total abandono a qualquer intenção do mero
engrandecimento da província, evitando que o regionalismo sobrepujasse. Pelo papel
proeminente que ocuparam, talvez fossem eles (os grandes estadistas do Império) que
mais conferiram à Bahia a aura de Atenas Brasileira, título tão sobranceiramente
assumido pelos seus concidadãos.
Esses estadistas constituíam mistos de lideranças políticas, homens públicos e
oradores, sendo quase sempre elogiados por reunir as três qualidades. Se retornarmos
ao quadro sinóptico dos intelectuais apresentado por Pedro Calmon, observa-se quantos
dos oradores foram políticos de prestígio. E como até décadas avançadas do século XX,
o orador sempre foi colocado como um tipo específico de literato. Conseqüentemente,
os políticos-oradores terminavam ocupando lugar nas histórias literárias. Júlio Barbuda,
após qualificar os oradores profanos em três tipos, teceu comentários sobre a sua
origem e inserção no movimento político:
Os oradores do Brasil, no século XIX, foram parlamentares, concionaes e acadêmicos. Os parlamentares appareceram com a independência; revigoraram-se com a regência; incendiaram-se, no segundo reinado, pela guerra do Paraguay e o abolicionismo da escravidão; e explodiram no regimen monarchico, condemnando os abusos do poder, e defendendo os princípios liberais que deviam, mais tarde, servir de base à instituição da republica. Da defesa da liberdade individual passou a eloqüência concional a tomar o caracter de parlamentar, levando às câmaras, a defesa da nacionalidade, da autocracia das facções políticas dominantes. E a Bahia teve grande parte, nas expansões do sentimento nacional que se effundiram, em todas as tribunas, em prol das idéas liberaes.66
65 Para ambas citações ver “Nossas Glórias”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 35, fev./1921. 66 BARBUDA, Julio, op. cit. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do
Centenário, p. 80-90, 2 de julho de 1923, p. 86. Fique claro que abundaram também os oradores sagrados, os quais jamais deixaram de ser lembrados, embora não tão enfatizados. Para os propósitos deste trabalho, não me parecem necessárias maiores referências sobre eles.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 132
Como se vê, o caráter patriótico e liberal teria sido a principal marca da
expressão desses oradores, que teve na Bahia um grande celeiro. “Dentre seu filhos,
destacaram-se verdadeiras notabilidades, na eloquencia tribunicia”, conforme afirma
Julio Barbuda, tais como: José Joaquim Carneiro de Campos; Francisco Gê de Acaiaba e
Montezuma (o Visconde de Jequitinhonha); Miguel Calmon du Pin e Almeida (o Marquês
de Abrantes); Antonio Pereira Rebouças; João Maurício Wanderley (o Barão de
Cotegipe); José Joaquim Landulpho da Rocha Medrado, bacharel por São Paulo,
deputado e poeta; Antonio Castro Alves; (conselheiro) Zacharias de Góes e
Vasconcellos; Rui Barbosa, sobrepujando todos.67 Se recorrermos a outras fontes, pode-
se acrescentar Nabuco de Araújo, José Antonio Saraiva, José Maria da Silva Paranhos (o
Visconde de Rio Branco), Ângelo Muniz da Silva Ferraz (o Barão de Uruguaiana),
Francisco Gonçalves Martins (o Barão e depois Visconde de S. Lourenço), para ficar nos
mais conhecidos.
No plano simbólico, os oradores-políticos (ou políticos-oradores — é difícil
estabelecer qualquer a melhor ordem das coisas) são algo facilmente explicável. No
caso da Bahia, então, basta relembrarmos o ideal de Atenas, a que presumidamente se
propunha “reencarnar”. Nas representações sobre a cidade-Estado grega, a arte da
política definia-se como sendo, em grande medida, a prática da persuasão pela palavra;
a retórica e a oratória assumiam, portanto, nesse exercício, uma função crucial, pois era
por meio delas que se travavam grandes embates. Outro aspecto relevante em tais
representações seria o alto grau de identificação dos líderes e liderados da assembléia
grega para com a cidade, naquilo que seja talvez uma das primeiras manifestações de
amor pátrio.
Como vimos, e segundo afirmavam os nossos interlocutores do passado, a Bahia,
fora uma província fértil na produção de homens que reuniam as qualidades dos
cidadãos atenienses: domínio da oratória e sentimento cívico-patriótico. Eis, portanto, a
Bahia, a Atenas Brasileira, sendo apresentada como a própria reencarnação da
verdadeira Atenas.
Mas quais fatos fizeram esses homens tão dignos de notas? Quais foram suas
participações na vida nacional que os tornaram personagens históricos recorrentes na
memória dos seus conterrâneos? Na percepção dos homens da época, quando se dirigia
a atenção em direção ao passado brasileiro sempre se observava nos acontecimentos
marcantes o concurso freqüente e decisivo dos baianos. “Nos postos da administração e
da eloquencia, da diplomacia e da política; [...] nas horas difficeis de tormenta, nas
longas horas de crise e de ancieade; [...] [na]s grandes reformas, [n]as grandes leis,
67 Idem, ibidem, p. 86. Sobre os nomes citados por Barbuda, fiz ou farei novas referências, excetuando Rocha
Medrado, de quem prestei breves informações tendo em vista que não será mais mencionado.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 133
[n]as grandes idéas”, os estadistas baianos sempre deixavam impregnada a sua
peculiar impressão. E, nesse sentido, para cada personagem assinalado na galeria da
Bahia Ilustrada, não faltaram episódios em que puderam exercer suas qualidades.
Assim, o Marquês de Abrantes salvou a honra brasileira na delicada Questão Christie,
contra a Inglaterra; o Visconde do Rio Branco foi apontado como um dos redentores dos
negros, em razão da sua iniciativa da Lei do Ventre Livre, medida transitória entre a
escravidão e a liberdade; na Guerra do Paraguai, Saraiva e, novamente, Rio Branco
defenderam o brio brasileiro; Cotegipe e, outra vez, Saraiva foram os responsáveis pela
liberdade dos escravos maiores de 65 anos.68 E os exemplos que envolviam “luminares”
baianos na defesa de causas de interesse nacional poderiam se multiplicar, tantas foram
as participações decisivas que tiveram. Por outro lado, nunca se mencionava qualquer
movimentação deles em prol de interesses exclusivamente provinciais; muito pelo
contrário, sempre era negado que tenham agido assim em uma circunstância sequer.
Quem oferece um elenco representativo de tais sujeitos é a revista Bahia
Ilustrada, que na sua edição de número 34, lançada em janeiro de 1921, estampou os
retratos de 18 estadistas baianos, distribuídos em duas páginas, nove em cada uma
delas (ver fig. 17 e 18). Anote-se que muitos deles foram listados acima entre os
grandes oradores. Talvez pareça maçante ao leitor, mas não deixa de ser reveladora e
esclarecedora dos sentidos implícitos, nesses discursos sobre as grandezas baianas no
passado, uma breve descrição a respeito de quem foi cada um desses dezoito
personagens. Seguindo a ordem e a grafia apresentada pela própria revista, são eles:
01. J. Joaquim Pinheiro de Vasconcelos [na verdade, Joaquim José Pinheiro de
Vasconcelos], Visconde de Montserrat, nasceu em 1788 e morreu aos 96
anos; formou-se em direito por Coimbra. Dedicou-se sobretudo à
magistratura, sendo juiz e ministro do Supremo Tribunal de Justiça, função
que lhe permitiu combater o tráfico. Teve, também, atuação marcante
durante o processo da independência da Bahia, sendo uma das lideranças
locais. Foi, ainda, presidente de província da Bahia, por duas vezes, e de
Pernambuco. Teria demonstrado, segundo os relatos, firmeza de caráter num
episódio ocorrido em 1878, quando era presidente do Supremo. Três
magistrados do seu órgão foram acusados de corrupção e, numa
orquestração do gabinete com o Imperador, visando “preservar” o Poder
Judiciário, definiu-se pela aposentadoria compulsória dos mesmos.
Vasconcelos se recusou a aplicar a “punição”, defendendo a idéia de que
68 Ver o discurso pronunciado por BRITO, Lemos em “As Homenagens da Bahia aos Ex-Imperantes”. Bahia
Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34, jan./1921, do qual foi retirado o trecho aspado. Para as ações dos estadistas baianos, ver, também, “Nossas Glórias”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 35, fev./1921; e Antonio Moniz. “A Bahia e o seu Papel Histórico na Evolução Política do Brazil”. Revista da Bahia, Bahia, nº 21, 15 de outubro de 1922.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 134
deveriam ser julgados e condenados pelo crime. Para não agir
contrariamente às suas convicções, abriu mão do próprio mandato. (Sisson)
02. Visconde de Jequitinhonha, nascido Francisco Gomes Brandão (1794-1870),
alterou seu nome após a independência para Francisco Gê de Acaiaba e
Montezuma. Formou-se em medicina na Bahia e em Direito por Coimbra, de
onde retornou em 1820 para se tornar um herói civil da nossa emancipação
política. Foi vereador, constituinte, deputado geral, senador, conselheiro do
Estado e presidente do Banco do Brasil. Atuou como jornalista e advogado,
além de ter sido poeta. Participou de diversas associações, entre as quais o
IHGB. Foi apontado como um dos primeiros abolicionistas. (Vainfas)
03. Marquês de Caravelas, José Joaquim Carneiro de Campos (1768-1836), era
filho de um proprietário rural português que virou comerciante na Bahia.
Estudou matemática, teologia e direito em Coimbra. Foi deputado
constituinte (1823), conselheiro de Estado, senador do Império, três vezes
ministro e membro da Regência Trina Provisória. Muitos o consideram o
principal redator da Constituição de 1824, embora alguns afirmem que teria
sido obra de seu irmão magistrado Francisco Carneiro de Campos. Foi poeta
e, além de marquês, recebeu diversos outros títulos. (Vainfas)
04. Visconde de Pedra Branca, Domingos Borges de Barros [?], formou-se em
Direito por Coimbra e era um homem de espírito bastante cultivado, sendo
considerado poeta de talento e um incentivador do progresso cultural
brasileiro. Nasceu em família nobre e abastada. Foi deputado brasileiro às
Cortes de Lisboa, representante do governo brasileiro na França (onde
negociou o reconhecimento da independência), senador e conselheiro do
Imperador. (Vainfas)
05. Barão de Muritiba, Manuel Vieira Tosta (1807-1896), concluiu o curso de
Direito em São Paulo, embora tenha estudado em Coimbra, exerceu, depois,
diversas funções. Foi nomeado juiz, chefe de polícia e desembargador,
elegeu-se deputado e senador, ocupou pastas ministeriais em diversas
ocasiões, assim como a presidência de diversas províncias. (Souza)
06. Visconde de Monte Alegre, José da Costa Carvalho (1796-1860), formado em
Direito por Coimbra, ocupou diversas funções. Atuou como juiz, foi deputado
em várias legislaturas (inclusive constituinte), membro da Regência Trina
Permanente, senador, presidente de província em São Paulo, ministro e
presidente do Conselho de Ministros (1849-1852), além de conselheiro.
Atuou, também, no jornalismo. Além do título de marquês, recebeu diversas
outras honrarias. Foi considerado um grande do Império. Interessante na sua
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 135
biografia é que viveu a maior parte da vida e faleceu em São Paulo, onde
fixou residência após casamento. (Vainfas)
07. Marquês de Abrantes, Miguel Calmon du Pin e Almeida (1794-1865), formado
em Coimbra, manteve intensa atividade política. Foi eleito deputado geral e
senador; indicado ministro em diversas ocasiões, desde o primeiro Reinado,
atuando sobretudo nas pastas da Fazenda e do Estrangeiro; e tornou-se,
ainda, conselheiro de Estado. Dedicava-se ao estudo dos problemas
econômicos brasileiros, escrevendo trabalhos sobre o tema; foi, por isso,
designado negociador em certos tratados comerciais, e, também, em
questões diplomáticas internacionais. A sua mais célebre atuação teria
ocorrido durante a delicada Questão Christie, que opôs Brasil e Inglaterra.
(Souza)
08. Barão da Vila da Barra, Francisco Bonifácio de Abreu, foi professor da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, deputado geral e duas vezes
presidente de província (Pará e Minas Gerais). Como integrante do corpo
médico do Exército prestou relevantes serviços à nação. (Mattoso, pp. 272 e
681)
09. [José Thomas] Nabuco de Araújo (1813-1872), nasceu em Salvador e
formou-se em direito por Recife. Foi promotor e juiz, atuou na advocacia,
elegeu-se deputado (por Pernambuco) e senador (pela Bahia), assumiu a
presidência da Província de São Paulo, além de ter sido conselheiro do
imperador e diversas vezes ministro da justiça. Foi defensor da emancipação
dos escravos, crítico do Poder Moderador e dedicou-se à elaboração do
Código Civil, que não pode concluir devido seu falecimento, ocorrido no Rio
de Janeiro. Tornou-se imortalizado pelo filho também famoso, Joaquim
Nabuco, que lhe dedicou o livro Um Estadista do Império. (Vainfas)
10. Barão de Cotegipe, João Maurício Wanderley (1815-1889), nasceu em terras
que pertenciam à época a Pernambuco, sendo filho de um grande
proprietário de terras. Seus opositores faziam questão de lembrar suas
feições mestiças, fruto da mistura de branco e negro. Cursou Direito em
Recife. Assumiu funções públicas como juiz e chefe de polícia; foi deputado
(provincial e geral), representando sempre a Bahia, senador, presidente de
província na Bahia, ministro em diversas ocasiões e presidente do Conselho
de Ministro (1885-88); também presidiu o Banco do Brasil. Participou de
diversas negociações na região do Prata e foi um dos responsáveis pela lei
dos sexagenários, a lei Saraiva-Cotegipe. Foi apontado como brilhante
orador. (Vainfas)
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 136
11. Visconde de Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos (1819-1880), era filho
de um negociante português. Cursou a Escola da Marinha e a Escola Militar,
onde foi professor, graduando-se em ciências matemáticas. Atuou no
Jornalismo. Foi deputado (provincial e geral) e senador, porém nunca pela
Bahia, conselheiro de Estado, ministro em diversos gabinetes e presidente do
Conselho de Ministros (1871-1875), atuando nessa função como um grande
reformista. Sua maior conquista foi a aprovação da Lei do Ventre Livre.
Faleceu no Rio de Janeiro. (Vainfas)
12. Marquês de Inhambupe, Antonio Luís Pereira da Cunha (1760-1837),
formou-se em direito por Coimbra. Iniciou suas atividades políticas e públicas
antes da Independência, atuando para o governo de Lisboa. Com a
Independência, foi eleito senador e nomeado conselheiro de Estado; ocupou
diversas pastas ministeriais durante o Primeiro Reinado. (Souza)
13. Cons. Zacarias de Góes e Vasconcellos (1815-1877), nascido na cidade de
Valença, formou-se em direito por Recife, onde foi professor. Presidiu três
províncias, elegeu-se deputado em diversas legislaturas até se torna senador,
ocupou postos ministeriais em diferentes gabinetes e foi por três vezes
presidente do Conselho de Ministros (1862, 1864 e 1866-68), tendo
administrado o país durante a guerra no Prata. Foi autor de importante obra
parlamentar, com destaque para Da natureza e limites do Poder Moderador.
Não recebeu título de nobreza, mas obteve outras honrarias. (Vainfas)
14. Cons. J. Saraiva, mais exatamente José Antonio Saraiva (1823-1895),
formou-se em Direito por São Paulo. Nascido num engenho, possuiu grande
extensão de terra. Foi deputado provincial e geral, presidente de diversas
províncias, ministros de várias pastas (como Império, Marinha, Negócios
Estrangeiros, Agricultura, Fazenda, Guerra e Justiça), presidente do Conselho
de Ministro em duas oportunidades (1880-81 e 1885). Duas leis levaram seu
nome, a Lei Saraiva (do censo, 1881) e a Lei Saraiva-Cotegipe (dos
sexagenários, 1885). Chegou a ser eleito senador republicano. (Vainfas)
15. [Antonio] Ferreira França (1771-1848) estudou matemática, filosofia e
medicina em Coimbra, formando-se em todas essas disciplinas. Foi professor
da Escola de Medicina da Bahia. No campo político, foi vereador, deputado
provincial e geral. Teve importante atuação durante as lutas de
independência na Bahia. Bastante acentuado foi o seu brilho intelectual.
(Souza)
16. Barão de Uruguaiana, Ângelo Muniz da Silva Ferraz (1812-1867), estudou
direito em Olinda. Exerceu diversas funções públicas, inclusive a
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 137
magistratura; foi deputado provincial e geral, senador, presidente de
província, conselheiro do Estado, ministro e presidente do conselho
ministerial (1859-1861). (Mattoso)
17. Visconde de Cairú, José da Silva Lisboa (1756-1835), formou-se em direito
canônico e filosofia por Coimbra. É apontado como o inspirador do ato da
Abertura dos Portos em 1808, sendo, por isso, considerado pelos baianos
como aquele que deu o primeiro passo em prol da nossa independência.
Ocupou várias funções públicas e foi deputado constituinte e senador. Foi um
introdutor da economia política, tema sobre a qual escreveu alguns trabalhos,
divulgando Adam Smith no Brasil. (Vainfas)
18. [Conselheiro] José Marcellino de Brito (1799-1879) formou-se em Direito por
Coimbra. Exerceu a magistratura como juiz, desembargador e ministro do
Supremo Tribunal de Justiça (a partir de 1855); foi eleito deputado geral
inúmeras vezes, por diferentes províncias do Norte, e indicado presidente de
província outras tantas; foi nomeado conselheiro e ocupou pastas
ministeriais. Durante a discussões sobre a maioridade do jovem imperador,
era presidente da Câmara.69 (Sousa)
Constata-se a partir desses breves traços biográficos quanto esses homens
estiveram embrenhados nas redes de poder da era imperial. Todos tiveram atuação
política, a maioria foi indicada ministro de Estado e alguns chegaram mesmo a chefes
de gabinetes. Constituiram-se, portanto, em lideranças políticas de grande
expressividade. Outro traço comum observado era os dotes intelectuais, apurados
durante a passagem, normalmente definida como brilhante, pelos bancos da faculdade,
quase sempre de Direito.
Além dos retratos estampados na edição 34, as páginas internas da Bahia
Ilustrada trouxeram, em inúmeras ocasiões, matérias dedicadas aos grandes estadistas
baianos, sempre enaltecedoras das suas qualidades e obras, por isso, às vezes, falhas na
apresentação coerente dos seus dados biográficos. Bons exemplos são as matérias com
títulos do tipo “Brasileiros Ilustres” (nº 35), onde dos setes nomes citados apenas um
não é baiano, e destes apenas um não teve título de nobreza, ou “Galeria Cachoeirana”
69 Os dezoitos nomes citados foram extraídos, como já foi dito, da Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34,
jan./1921. Mas para o perfil biográfico de cada nome da galeria de estadistas, ver VAINFAS, Ronaldo (dir.), Dicionário do Brasil Imperial (18822-1889), Rio de Janeiro, Objetiva, 2002; SOUZA, Antonio Loureiro de, op. cit.; SISSON, S. A. (org.), Galeria dos Brasileiros Ilustres, Brasília, Senado Federal, 1999, 2 v. (edição original de 159-1861); MATTOSO, Kátia Maria de Queirós, Bahia Século XIX. Os dados principais dos personagens foram retirados do autor assinalado entre parêntese ao final de cada um, complementando-os, quando necessário, com os demais autores. Sobre o Barão da Vila da Barra obtive as mais parcas informações, recolhidas em uma rápida menção no corpo do texto e em uma nota de fim do livro de Kátia Mattoso. Para os demais, Vainfas, Souza e Sisson trazem boas informações, ainda que resumidas. Diga-se, também, que muitos outros nomes foram lembrados e mencionados nas diversas edições da Bahia Ilustrada.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 138
(nº 37), onde são listados seis personagens. Além disso, foram muitas as notas e
matérias dedicadas exclusivamente a um ou outro indivíduo, incluídas na própria Bahia
Ilustrada ou na revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. E bastante
sintomática da relevância conferida a tais sujeitos foi a quantidade de capas da Bahia
Ilustrada, um espaço nobre por ser o primeiro chamariz de uma revista, em que tiveram
estampada suas imagens — eles figuraram, no mínimo, em dezenove delas (ver fig. 05
e 06).70
A reverência aos grandes estadistas do passado assumia ares de culto às
personalidades. Voltado o foco para os sujeitos, bastava o simples fato de terem
nascido na Bahia, em associação com a capacidade e o talento demonstrados, para lhes
conferir uma posição mais elevada — eram esses os aspectos mais relevantes nas
representações formuladas em torno deles. Pouco parecia importar se tinham feito
carreira, viveram e morreram na Bahia; terem nascido na província os tornavam, pelo
que parece, receptores de dons especiais, que pareciam ser exalados e transmitidos
pelo ar da “afortunada” terra baiana. E a partir daqueles grandes estadistas irradiava-se
por todo o país a força “espiritual” baiana...
Embora passasse por graves dificuldades na República, a Bahia, tal como
imaginada pelas suas elites, mantinha (ou desejava manter) intacta sua aura. Os
homens do período republicano queriam, desta forma, continuar representando o
melhor da estirpe baiana. Faltava a eles apenas terem o mesmo espaço nos círculos de
poder do novo regime, o que seus predecessores bem tiveram no Império. Esse parece
ser o sentido do resgate das tradições históricas baianas a partir dos seus grandes
estadistas. O culto das personalidades do passado estabelecia, portanto, um processo
de identificação entre o talento e capacidade dos homens do presente e daqueles
vultos; com a diferença que esses puderam potencializá-los ao máximo, enquanto
aqueles viam tolhidas as oportunidades de exercê-los plenamente.
70 Repetindo uma informação já prestada, a revista teve quarenta e três números, mas em três oportunidades
foi editada como número duplo (21-22, 22-23 e 27-28), perfazendo, em lugar de quarenta e três, quarenta edições da mesma. Destas temos 19 capas com personagens baianas da época do Império (a maioria dos que foram comentados no texto), 5 com poetas do século XIX (sendo 3 de Castro Alves, 1 de Moniz Barreto e 1 de Luiz Gama), 1 do educador Abílio Cezar Borges (Br. de Macaúbas) e 1 do pai de Rui Barbosa, todos representantes da idéia de Atenas Brasileira; houve, ainda, 1 capa com a imagem do Caboclo, símbolo da Independência Baiana, 2 com personagens proeminentes da era republicanas (Manoel Victorino e J. J. Seabra) e 2 com senhoras da sociedade baiana (as esposas de Octavio Mangabeira e Barreto de Araújo); também, 1 com D. Pedro II, 1 com o papa Leão XIII, 5 com figurações outras e, finalmente, 2 que não foi possível identificar (em um dos casos, o exemplar consultado não estava com capa; e noutro caso, não localizei exemplar da edição, a de nº 42, em nenhum acervo). Rui Barbosa, também, seria motivo de capa, mas somente em 1933, quando é retomada uma tentativa de veiculação da Bahia Ilustrada, que havia publicado o seu último número doze anos antes. Dois exemplos, para não ficar cansativo, de matérias sobre os estadistas baianos são: “José Thomas Nabuco de Araújo”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 14, jan./1919; “José Maria da Silva Paranhos”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 15, fev./1919.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 139
Rui Barbosa: “gênio brasileiro”
Mas não se esgotou na lembrança dos estadistas do Império o apologismo dos
grandes vultos... O culto fervoroso de personalidades, levado ao paroxismo, atingiu seu
ápice com Rui Barbosa, figura que manteve um posicionamento ambíguo em relação ao
lugar que ocupava na Atenas Brasileira. Ambíguo porque, por um lado, era filho da
época em que a Bahia assim se fizera reconhecida, por outro lado, atravessou esse
tempo e prolongou a sua existência para um momento considerado bem menos
glorioso, em que tal título já não lhe cabia com toda propriedade. Nesse sentido, pode
ser visto como elo a ligar um tempo perdido e um tempo que pretendia se reencontrar,
por uma certa perspectiva; ou, por outro ponto de vista, de um tempo que se manteve
contínuo, mas que conheceu/conhecia fases distintas de apogeu e adversidade. Ele era
a própria expressão da altivez, da cultura, dos ideais de civilização da Bahia; ele era a
prova viva, materializada e encarnada da sobrevivência do supremo tipo baiano:
inteligente, “libertário”, estadista, patriota, dotado de dons literários, grande orador,
dentre outras tantas qualidades — digo eu, o perfeito cidadão ateniense. Não foi à toa
que muitas vezes chamaram-no “maior gênio da raça latina, pelo seu talento, pela sua
erudição, pelo seu saber”, ou, ainda, “maior luzeiro do país”.71 É interessante observar
em que termos a Bahia Ilustrada se referiu a Rui Barbosa, em 1921, quando da sua
reeleição ao Senado Federal, após uma renúncia:
Não seria, mesmo, possível que o Parlamento se visse privado da cerebração que há tantos annos o illumina, da voz augusta que o universalizou para sempre. Não se podia compreender que esse vulto gigante, que encarna as energias supremas da nacionalidade, se recolhesse, ex-abruptamente, à vida interna, que, tanto aos nossos olhos, como aos olhos do mundo, Ruy Barbosa é propriamente o Brasil. Vemos com que sinceridade luminosa elle tem clamado pela integração da Republica, sua primogênita, em seus authenticos destinos de propaganda insigne e intemerata da democracia. Esse pensador profundo, esse jurisconsulto sem par, esse formidável evangelizador do direito e da liberdade, esse humanista maior da humanidade tem sido assim a columna de fogo de todos os nossos triumphos. O seu gênio dilatou as fronteiras da Pátria. Os seus seus sentimentos cívicos divinizaram o nosso heroísmo, a nossa cultura, a nossa obra e a nossa terra. Elle está sempre integro e presente em nossos corações, como o radioso nome da Pátria [...].72
Nota-se os tipos diversos de adjetivos que recebia, bem como o processo de
identificá-lo com a própria nação, da qual aparece como genitor na sua constituição
mais recente, a República. Foi por reunir tantas qualidades e despender tanto amor pela
pátria e pela justiça que se tornou admirado não só pelos seus conterrâneos, como
71 Respectivamente, DINIZ, Almachio, op. cit., p. 20, e MORAES, Paschoal de. “O Estado da Bahia”. Bahia
Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 10, set./1918. 72 “Ao grande Ruy Barbosa. A consagração da Bahia ao maior dos brasileiros”. Bahia Ilustrada, Rio de
Janeiro, nº 39, jun./1921.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 140
pelos Brasileiros em geral, além do prestígio angariado internacionalmente pela alta
capacidade demonstrada nas oportunidades em que esteve representando o país em
eventos ocorridos no exterior. Sendo objeto de tanto reconhecimento, entende-se
porque “a Bahia [...] diviniza[va] o maior cidadão da humanidade, que é[era] o mais
glorioso de seus filhos em todos os tempos”. Eis ao final da citação aquilo que de fato
Rui representava para Bahia, que não custa repetir: ele era simplesmente “o mais
glorioso dos seus filhos em todos os tempos” e o “maior cidadão da humanidade”.73
Parece, a priori, descabível citá-lo entre as glórias da Atenas Brasileira,
entretanto, o papel de ligação entre dois tempos coloca-o justamente numa posição
central, pois, como já citei anteriormente e poderei reforçar mais adiante, os sujeitos
que produziram os discursos aqui em análise se pretendiam herdeiros dos grandes
homens do século XIX. E nesse sentido, Rui Barbosa, enquanto sobrevivente da idade
de ouro, enquanto elemento de vínculo entre o passado e o presente, cumpria o papel
de “pai” e mentor dos baianos, além de símbolo de esperança e sinal de continuidade
dos preceitos que fizeram da Bahia a Atenas Brasileira. A legenda que acompanhava
uma foto de Rui, publicada na Bahia Ilustrada, em 1921, definia com clareza esse papel,
nela se lia o seguinte: “grande nos dois regimens” (ver fig. 15).74 E houve quem
dissesse mais: “se com a vida de Ruy Barbosa se confunde a história política do paiz
desde os últimos tempos do Império até os nossos dias [...] — é pueril pôr em dúvida a
actuação política desse brasileiro na vida nacional — desse Péricles americano, de quem
a Historia, [...] guardará o nome para com elle baptizar a época em que viveu”.75 Muito
interessante, também, foi a comparação que se fez entre o mesmo e Péricles, um
personagem importante da história da Atenas grega antiga.
O insigne baiano era, assim, tanto um vulto do Império quanto um vulto da
República. Poderia até especular aqui que alguns dos seus conterrâneos teriam se
empenhado na elaboração, em torno da figura de Rui Barbosa, de um mito de origem
do regime republicano, em que o colocava como sujeito central na mudança da forma
de governo do país e no estabelecimento de novas instituições: “a abolição, a
federação, a republica, todas as conquistas da nossa cultura jurídica e da nossa
educação democratica, se fizeram pelo esforço desse varão, que tem sido o estatutário
da nacionalidade”. Teodoro Sampaio, em discurso pronunciado diante do próprio
73 Para o trecho aspado, ver Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 17, abr./1919. Sobre o culto nacional e
reconhecimento internacional de Rui Barbosa, ver GONÇALVES, João Felipe. “As imponentes festas do sol: o jubileu cívico-literário de Rui Barbosa”. In LUSTOSA, Isabel et al. Estudos históricos sobre Rui Barbosa. Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 2000, p.150-204; e GONÇALVES, João Felipe. Rui Barbosa: pondo as idéias no lugar. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000.
74 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34, jan./1921. Quem tem interpretação semelhante sobre o papel de Rui Barbosa no ambiente baiano é João Felipe Gonçalves, no artigos “As imponentes festas do sol: o jubileu cívico-literário de Rui Barbosa”.
75 NUNES, Castro. “Uma Vida Histórica. A actuação política de Ruy Barbosa em meio século da historia nacional. O Péricles americano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 14, jan./1919. Os grifos são do original.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 141
personagem, durante sua passagem na Bahia para a campanha presidencial de 1919,
buscou reforçar tal imagem, destacando o papel prático que desempenhou na
configuração das novas instituições republicanas:
Na República fostes o verdadeiro constructor do futuro sobre os escombros das instituições derruídas, e, todavia, justiça seja feita, não era uma deshonra vossa o império substituído, como também não eram loucas as aspirações dos que combatiam. Fostes, então, e todos vo-lo reconhecemos o auctor do novo regímen na sua constituição poética, nas suas leis orgânicas, decretos, reformas substanciais, independência da igreja, código civil, tudo emfim quanto dizia com a liberdade do cidadão, e sua soberania foi o fruto do vosso saber, dada a imconparavel faculdade de acção, ou dependeu da vossa collaboaração indispensável.76
Passava, desse modo, a concorrer com personagens como Deodoro da Fonseca,
Floriano Peixoto, Benjamin Constant e Quintino Bocaiúva, apontados por outros grupos
de seguidores e simpatizantes os verdadeiros pais da República brasileira. O historiador
José Murilo de Carvalho analisa os embates entre os partidários destes personagens
históricos, nos quais cada grupo visava destacar o papel mais relevante que um ou
outro exercera nos acontecimentos que implementaram a república, fixando com isso
uma versão dos fatos e instituindo um mito de origem republicano. Demonstra, ainda,
como as estátuas e monumentos, erigidos em homenagem a eles, constituíam-se
objetos pelos quais se procurava realçar a presumida proeminência de cada um.77
Talvez Rui Barbosa pudesse ser incluído no rol dos fundadores da República, na
versão elaborada pelos seus seguidores baianos. Mas isso é algo que somente uma
outra pesquisa poderá revelar com maior clareza. Tenho apenas alguns indícios que me
sugerem tal interpretação. Ver, por exemplo, os discursos da “Visita à Terra Natal”,
proferidos quando de um retorno à Bahia, 1893, após atuação no governo republicano.
Os discursos foram recuperados pela Bahia Ilustrada, mais de 25 anos depois, no
número 25, datado de 1919, nos quais se enaltece o papel determinante de Rui no
recém criado regime republicano. Outros exemplos são os prórpios discursos que
buscavam identificá-lo com a própria nação, alguns deles transcritos parágrafos atrás.
Conquanto existisse um grande culto em torno da sua pessoa, havia um outro
lado que não se podia negar: não faltou quem apontasse os defeitos de Rui, além disso,
ele colheu diversas inimizades ao longo da sua carreira pública. Fato, entretanto, que,
aparentemente, não abalou o seu prestígio. Embora possa ter conhecido adversários
políticos na Bahia e no restante do país, quase sempre angariou o respeito de todos,
76 Para o primeiro trecho sobre o jurista baiano, no parágrafo que antecede a citação recuada, ver “Ruy, o
Grande”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 41, 30 de set./1921; para o discurso de Teodoro Samapaio, ver Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 17, abr./1919.
77 CARVALHO, José Murilo de, A formação das almas, p. 35-54.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 142
mesmo dos que não lhe seguia a orientação. João Felipe Gonçalves coloca que mesmo a
imprensa baiana simpática a José Joaquim Seabra — adversário do jurista e, abaixo
dele, político baiano com maior expressividade na Primeira República — reconheceu a
justiça das homenagens prestadas no jubileu cívico-literário, em 1918, evento sobre o
qual terei a oportunidade de tratar. Assim foi, também, quando o mesmo Seabra
defendeu, em 1921, a continuidade de Rui como senador federal, após uma renúncia.78
De certo, o fato de ser não apenas um vulto do passado, como todos os outros
nomes memorados, mas uma sumidade do presente, fez de Rui Barbosa uma
personalidade muito mais idolatrada do que qualquer outra, inclusive Castro Alves.
Também, diferentemente deste, teve uma existência bastante longa, sobretudo se
considerarmos a média de vida do período, alcançando a idade de setenta e três anos.
Com isso, ele pôde atuar ativamente na vida nacional e fazer ecoar seus brados de
“inigualável” orador por muito mais tempo que o poeta dos escravos (que se tivesse
logrado viver tanto quanto Rui, teria morrido apenas dois anos e meio antes, diferença
aproximada do nascimento entre os dois: o poeta nasceu em março de 1847, e Rui, em
novembro de 1849). Continuando na comparação, é interessante destacar que os dois
foram colegas nas Faculdades de Direto do Recife e de São Paulo, onde militaram pela
causa abolicionista. Essa experiência para além das fronteiras da Província natal
engendrou relações com pessoas das mais diversas partes do país, o que,
possivelmente, facilitou a penetração e a aceitação deles em termos nacionais,
distintamente daqueles outros intelectuais baianos antecessores ou contemporâneos de
ambos, no século XIX, que respiraram, exclusiva ou quase exclusivamente, apenas os
ares do ambiente local — excetuando aqui, obviamente, aqueles estadistas do Império,
que por força da suas atividades políticas residiram por muito tempo na capital do país,
onde a maior parte veio a falecer.79
Voltando, entretanto, à figura única de Rui, não era pouca a atenção que lhe
dedicavam nos jornais e revistas da época. O mensário Bahia Ilustrada, por exemplo,
chegou a ser caracterizado como “ruysta vermelho” por um de seus diretores,
Epaminondas Dutra, na época que esteve sob o controle de outras mãos, mais
exatamente do jornalista Anatólio Valladares (primeiro proprietário da revista) e do
78 GONÇALVES, João Felipe, “As imponentes festas do sol: o jubileu cívico-literário de Rui Barbosa”, p. 195 (nota
de fim nº 9); e também de GONÇALVES, João Felipe, Rui Barbosa, p. 151-152. Sobre as inimizades de Rui, ver “O pleito presidencial da Bahia ou os amigos de Camillo”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 27-28, fev-mar./1920.
79 Alguns dados biográficos: Rui Barbosa nasceu em novembro de 1849, em Salvador. E assim como Castro Alves, cursou a Faculdade de Direito em Recife e São Paulo. Acrescente-se, aliás, que os dois foram colegas em ambas instituições, militando pela causa abolicionista. Rui Barbosa desenvolveu pretensões literárias, mas nesse campo o máximo que conseguiu foi ser considerado o maior orador do país. Profissionalmente, destacou-se como grande jurista. Senador republicano, por quase todo tempo em esteve vivo, foi uma figura de enorme realce político na sua época, conquanto os inúmeros insucessos que sofreu, como as fracassadas tentativas de eleição à presidência da república. Faleceu em março de 1923, aos setenta e três anos. Ver GONÇALVES, João Felipe, Rui Barbosa. Ver o perfil biográfico de Rui Barbosa no “Anexo” deste trabalho (entrada por “Barbosa”).
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 143
deputado federal Otávio Mangabeira (presidente da Sociedade Anônima que a controlou
por algum tempo).80 De fato, na maior parte dos números do periódico há sempre
algumas coisas relativas a Rui — aliás, para não faltar com a verdade, por vezes não se
tratou de apenas algumas, mas de muitas coisas referentes a esse personagem. Não
raro, eram publicados, na íntegra, seus longos discursos. Embora não fosse objeto de
nenhuma capa — honra que seu pai, João Barbosa de Oliveira, logrou obter na edição
no. 09, em agosto de 1918 —, foram muito freqüentes as matérias e notas elogiosas à
sua pessoa. Elas davam conta das suas atividades públicas ou passagens pela Bahia,
assim como promoviam seu nome nos pleitos presidenciais — formas diretas e indiretas
de reforçar sua imagem, divulgar suas idéias e apontar suas virtudes.81
A grande homenagem, no entanto, recebida em vida por Rui Barbosa foi a(s)
Festa(s) do Sol, uma série de comemorações pelo seu jubileu cívico-literário, ocorrida
em agosto de 1918, que foram iniciadas na Bahia, sendo estendida com maior ou menor
intensidade para outros Estados. Festejou-se aí os cinqüenta anos de um discurso
pronunciado por Rui, quando ainda estudante na Faculdade de Direito em São Paulo.
Nesse discurso homenageou o deputado José Bonifácio, o moço, que defendera o
gabinete liberal do baiano Zacarias Góes e Vasconcelos, dissolvido por D. Pedro II e
substituído pelo do conservador Duque de Caxias. O significado associado a tal
acontecimento, bastante subjetivo e aleatório, foi o da sua estréia na vida pública.
Noutros termos, comemorou-se na Festa do Sol os cinqüenta anos de vida literária de
Rui, como queriam os organizadores, ou de vida cívica, como preferia o próprio
homenageado.
Fato interessante a ser assinalado acerca da promoção da Festa do Sol foi a
tentativa de relacioná-lo a tradições greco-romanas, num gesto típico da
intelectualidade baiana, tão pronta a resgatar e reforçar tais “identidades” simbólicas.
Como ficou registrado na Bahia Ilustrada, “nos tempos áureos da antiguidade hellenica
e romana, a sagração aos gênios tinham a majestade olympica das coroação”82 —
subentende-se, portanto, que as homenagens a Rui seriam a sagração, em moldes
pretensamente clássicos, desse grande gênio baiano e brasileiro.
As festividades, em Salvador, duraram seis dias, e consistiram de uma série de
conferências organizadas pelo jornalista e advogado Lemos Britto, um de seus fiéis
seguidores baianos, missa na Catedral, desfiles públicos, discursos, declamações de
80 “O pleito presidencial da Bahia ou os amigos de Camillo”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 27-28, fev-
mar./1920. 81 Ver, por exemplo, Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 9, ago./1918, dedicada à Festa do Sol, o jubileu
cívico-literário de Rui Barbosa na Bahia, do qual tratamos logo a frente; e as edições de nº 16 (mar./1919), 17 (abr./1919) e nº 39 (jun./1921). A edição de agosto de 1919 (nº 9), que teve seu pai como capa, foi especialmente voltado para a vida de Rui e as comemorações pelo seu jubileu cívico-literário.
82 “A Festa do Sol. A verdadeira expressão do espírito brasileiro”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 8, jul./1918.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 144
poemas e outras tantas atividades, que passaram em peregrinação por lugares
elegantes, clubes, instituições de letras e estabelecimentos de ensino, dentre outros
(ver fig. 16). Foi no Rio de Janeiro, entretanto, que a Festa do Sol — Sol este que se
referia ao próprio homenageado — ganhou maior imponência, atraindo toda a elite
política nacional (inclusive os titulares dos três poderes da República), a elite social e
intelectual, muitos representantes estrangeiros e, não nos esqueçamos dele, amplas
parcelas do povo, que correu para participar dos festejos intensivamente,
acompanhando na rua toda a movimentação festiva. O evento transcorreu durante três
dias, entre 11 e 13 de agosto de 1918. No primeiro dia, celebrou-se uma missa campal;
no segundo, promoveu-se uma cerimônia intelectual na Biblioteca Nacional; no terceiro,
o ápice, fez-se uma cerimônia cívica no Teatro São Pedro.83
O religioso, o literato/intelectual e o político/cidadão, constituíram as três
dimensões enaltecidas “no maior dos brasileiros”, a síntese perfeita da imagem que
cultivavam em Rui e por ele também cultivada. Imagem esta de homem representada
por Rui que — numa livre interpretação, baseada nas percepções e nos discursos
desenvolvidos pelos sujeitos de então — revelava um tipo de espírito e sensibilidade que
só poderia ter como fonte a alma mater baiana, a mesma que se apoiava na firme
tradição religiosa da sua gente, na força da elevação cultural dos seus individuos, no
fervor do sentimento cívico-patriótico dos seus cidadãos.
A continuidade da “Atenas Brasileira”
Rui Barbosa era, sem dúvida, o símbolo maior da continuidade da Atenas
Brasileira, mas não era o seu único ou último remanescente, pois ela, presunçosamente,
continuava a gerar herdeiros. Para melhor nos certificarmos disso, retornemos, então, a
Pedro Calmon, à época ainda um jovem aspirante às glórias que renderam renome aos
vultos baianos na história. Conectando passado e presente, no que parece uma explícita
defesa da conservação dos “nossos” dons intelectuais, ele cita — ainda que em nota de
rodapé do mesmo trabalho por mim utilizado em duas ocasiões deste capítulo como
ponto de partida para a apresentação dos mais expressivos intelectuais baianos do
século XIX — aqueles que, “nos nossos dias [seu livro é datado de 1927], representam
a intelligencia bahiana” nos mais diversos campos:
no governo, no parlamento e nos tribunaes: Miguel Calmon, Octavio Mangabeira, Francisco Marques de Góes Calmon, Vital Soares, Antonio Pires de Carvalho e Albuquerque, Pedro Francisco Rodrigues, José
83 Para uma descrição da Festa do Sol, ver GONÇALVES, João Felipe, “As imponentes festas do sol: o jubileu
cívico-literário de Rui Barbosa”.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 145
Wanderley de Araújo Pinho, Moniz Sodré, Pedro Ribeiro, João Santos, Newton de Lemos, Bulcao Vianna; nas letras, no magistério e na tribuna — Afrânio Peixoto, Xavier Marques, Constâncio Alves, Braz do Amaral, Theodoro Sampaio, Lemos Britto, Durval de Moraes, Arthur de Salles, Bernardino de Souza, Aloysio de Carvalho, Carlos Chiacchio, Affonso de Castro Rabello, Vianna Kelsch, Homero Pires, Acácio França, cônego Christiano Muller, Altamirando Requião, Padre Elpidio Tapyranga, Elpidio de Mesquita, Cônego Leôncio Galrão, Francellino de Andrade, Álvaro Reis, Julio Barbuda, Gelasio de Farias, Aristides Maltez, Simões Filho, Aristides Magalhães, Epaminondas Berbet de Castro, Salomão Dantas; na medicina — Juliano Moreira, Clementino Fraga, Prado Valladares, João Fróes, Pirajá da Silva, Pacheco Mendes, Couto Maia; na jurisprudência — Eduardo Spinola, Felinto Bastos, Vital Soares, Madureira Pinho, Carlos Spinola, Descartes de Magalhães, Demetrio Tourinho, Prisco Paraíso. Aurelino Leal, foi abalizado constitucionalista; na pintura — Presciliano Silva, de renome nacional, e Alberto Valença, Vieira Campos, Ozéas Santos. Na música — Deolindo Fróes...84
Nesse trecho de Pedro Calmon, localiza-se o nome de muitos sujeitos que vêm
sendo citados como autores das fontes históricas utilizadas ao longo deste trabalho —
fiz questão de sublinhá-los. Outros tantos serão aludidos à medida que forem
introduzidas as demais questões pertinentes a esta discussão.
Da leitura de tal lista, extrai-se uma conclusão: embora os espectros do declínio
e dos infortúnios parecessem se abater sobre a Bahia, na era republicana, eis que para
alguns, como o próprio Calmon, a Atenas Brasileira reapresentava-se rediviva, renovada
e rejuvenescida por um expressivo elenco novo de talentos baianos. Os dons da
inteligência, própria do espírito ateniense, manifestavam-se ainda sob as mais diversas
formas: na dedicação às causas de interesse nacional, pela atuação política; no talento
inexcedível para as letras; no engrandecimento das ciências; na defesa da moral e da
justiça; e, enfim, nas artes.
E se assim o era, o que faltava então a esses novos talentos baianos? Todos
tinham consciência de que a Bahia já não ocupava, na República, a mesma posição
destacada do Império. Assim, nada mais desejavam do que verem devidamente
reconhecidas suas capacidades por aqueles que centralizavam o poder nacional, como
se o exercício do poder fosse meramente fruto desse tipo de reconhecimento — o que
certamente eles bem sabiam que não era, conforme nos demonstra a análise de outros
elementos dos discursos que produziram. Mas a memória de que pais, avós e outros
84 CALMON, Pedro, História da Bahia, p. 215-216. Os nomes sublinhados são os daqueles que mencionei neste e
nos outros capítulos deste trabalho. Note-se que além da referência a inúmeros sujeitos que nos tem servido de informantes, há, também, a vários descendentes de homens de prestígio do Império, a exemplo dos dois Calmon, Miguel e Francisco (parentes do Marquês de Abrantes, Miguel Calmon), Pires de Carvalho e Albuquerque (parente dos três irmãos heróis da Independência da Bahia), Acácio França (família que deu inúmeros intelectuais e políticos do Império), José Wanderley de Araújo Pinho ou Wanderley Pinho (como já citado, neto do Barão de Cotegipe, João Maurício Wanderley). De certo, há outros nesse meio, dos quais eu, particularmente, não disponho de maiores conhecimentos a respeito das tradições familiares, embora pudesse ter consultado estudos geneológicos. O próprio Pedro Calmon era primo em grau afastado e afilhado do Miguel Calmon (ministro de Artur Bernardes e Washington Luís) que lhe era contemporâneo, o que significa que tinha relações de parentesco com o Miguel Calmon anterior, o Marquês de Abrantes, um estadista do império.
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 146
parentes próximos, de que amigos e conhecidos familiares, de que um panteão de
ilustres conterrâneos foram sujeitos influentes, despertou ambições semelhantes.
Aspiravam, portanto, exercer as antigas hegemonias que os baianos do passado
imperial um dia tiveram. Problemática essa que, sem dúvida, irá se tornar mais
evidente assim que adentramos na próxima parte do trabalho.
Considerando o modo como foram narradas as grandezas da Bahia, não parece
existir a menor dúvida acerca das representações para ela pretendidas por parte das
elites. Representações que, longe de procurarem se referir ao universo territorial,
populacional ou social baiano, desejavam difundir uma interpretação da história que
destacava os grandes nomes ou os grandes feitos liderados por elas. Em lugar, portanto,
de narrar a saga de um povo, a principal intenção era narrar a saga das elites baianas
durante os pressupostos “tempos de glória” ou, se preferir, a idealizada “idade do ouro”.
Nesse sentido, os “tempos de glória” designam um tempo mítico, não porque não
tenham existido, e sim por representarem o passado enfatizando apenas os
acontecimentos que parecessem convenientes resgatar da história, num processo
seletivo de ação da memória. Operava-se um resgate do passado que servisse em prol
de certas metas políticas (pensando-se esta palavra em sentido amplo). Por isso, ao
mesmo tempo que selecionavam fatos tidos como relevantes, ocultavam-se e, mais do
que isso, legavam-se ao esquecimento ocorrências consideradas desabonadoras,
negativas ou contraproducentes aos interesses em jogo.
Ao produzir discursos que oscilavam entre fatos e mitos, lembranças e
esquecimentos, história e memória, as elites baianas das primeiras décadas do século
XX apresentavam e buscavam impingir suas versões do passado baiano e, por
extensão, do brasileiro. Convencidos das suas assertivas históricas, pretendiam dobrar
aqueles que não compartilhavam delas, sobretudo as outras elites regionais. Dessa
forma, insurgiam-se contra versões produzidas alhures (em São Paulo ou Minas Gerais,
por exemplo), que aspiravam representar, e por vezes mais do que isso, proclamavam-
se as mais autênticas traduções dos valores nacionais. As elites baianas pregavam uma
alternativa para a construção da nacionalidade, colocando no cerne desta o
inquestionável trabalho que realizaram seus antecessores em prol da unidade nacional,
fosse exercendo ações, ou fosse germinando, advogando e implementando idéias.
No tocante ao plano interno, a necessidade das elites de impor suas versões da
história, se não foi inexistente, foi bastante diminuída. Nenhum indício apontou para a
formulação de uma narrativa alternativa. Isso nos leva a acreditar que, independente
das facções políticas às quais estivessem associadas, havia uma espécie de consenso
em torno da reprodução dos discursos sobre as grandezas da Bahia insinuados até
Capítulo 2 – Atenas Brasileira 147
aqui.85 Mas não se pode negar as tentativas internas de manipulação dos mitos. Isso se
dava, sobretudo, nas disputas entre as facções pela apropriação da herança
representada pela tradição baiana, uns acusando aos outros de não portarem as
virtudes que teriam feito as glórias da Bahia no passado. Ao mesmo tempo, cada qual
se autoproclamava os verdadeiros e legítimos “descendentes” dos grandes homens de
talento do Império.86
Rememorando os principais feitos, saudando os grandes personagens, cultuando
o gênio particular, reafirmando antigas hegemonias, as elites baianas construíram uma
epopéica, majestosa e, também, profundamente saudosa narrativa acerca das
grandezas da Bahia. Mas que, em última instância, tinha a árdua e complicada missão
de responder às demandas do que para elas era um penoso momento presente ― o que
deverá ocupar, finalmente, a nossa atenção nas próximas páginas, após ter brincado
tanto com as expectativas do leitor, insinuando, diversas vezes, fatos que só seriam
explicados oportunamente.
85 Quando se menciona aqui consenso entre elites, que isso fique bem claro, estou pensado naquelas
articuladas a partir de Salvador. Seus representantes poderiam ou não ter nascido na cidade, mas aí tiveram formação ou atividade profissional, funções públicas ou políticas, residência fixa ou temporária. Muitos são originários da própria capital, outros tantos das cidades do Recôncavo e um bom número vindo de lugares mais distantes do interior do Estado. Versões outras da identidade baiana — se assim puderem ser designadas, pois talvez mereçam nomes mais apropriados, como, por exemplo, identidade sertaneja ou qualquer coisa que o valha — possivelmente foram formuladas. Mas não tiveram formulação por essas elites, que, vivendo ou passando por Salvador, partiam para o Rio de Janeiro, capital federal, em busca de maior projeção e reconhecimento. Coligadas nos seus interesses, elas se afinavam no discurso a fim de alcançar os seus objetivos. Por outro lado, grupos oriundos do interior mais distante, que chegavam diretamente à capital federal, sem a intermediação de Salvador, talvez pensassem a Bahia numa perspectiva completamente diferente. Essa parecia ser a situação de um Geraldo Rocha, conforme cita PANG, Eul-Soo, Coronelismo e Oligarquias, 1889-1934: a Bahia na Primeira República Brasileira. Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1979, passim. De qualquer modo, há a necessidade de se proceder a um estudo cuidadoso sobre o tema.
86 Sobre os embates entre as facções político-partidárias baianas, tratarei no capítulo 4.
a) Bernardino de Souza (BI 03)
b) Braz do Amaral (BI 13)
c) Teodoro Sampaio (BI 03)
d) Wanderley Pinho (BI 03)
e) Lemos Britto (BI 03)
f) Xavier Marques (BI 11)
g) Silio Boccanera Jr. (BI 13)
h) Manoel Querino (BI 01)
i) Afrânio Peixoto (BI 01)
j) Miguel Calmon (BI 15)
l) Dr. Pacifico Pereira (BI 03)
m) F. M. Góes Calmon (BI 09)
n) Silvio D. Fróes (BI 38)
o) Antonio Moniz (BI 05)
p) Afonso Rui (BI 13)
q) Anatólio Valadares (BI 03)
Fig. 01 (a-m) ― Pequena amostra de intelectuais baianos que cantaram as “glórias” e lamentaram os “infortúnios” da Bahia na Primeira República. Em último, uma imagem do fundador da Bahia Ilustrada, Anatólio Valadares. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro (nessas e nas próximas fotografias a revista será indicada pelas iniciais BI, acompanhadas do número da edição em que foi obtida cada imagem).
Fig. 02 ― Capa do primeiro número da Bahia Ilustrada. Lê-se no texto: “Não se sabe onde mais reluz a opulencia do oiro fino e das gemmas raras, se nos veios do talento ou nos das minas inexhauriveis; onde mais se multiplicam as maravilhas, se nas obras directas da creação divina, se nas da applicação humana. (Discurso Ruy Barboza)”. Na parte inferior da capa: “Palavras de Ruy Barbosa Sobre a Bahia”. (BI 01, dez./1917)
Fig. 03 ― Capa com ilustração do Caboclo, símbolo da Independência da Bahia, na qual ele abate o dragão (que vinha a ser uma representação de Portugal). Cabrito, Pirajá, Funil e Engenho da Conceição indicam algumas batalhas decisivas ocorridas na Bahia. A Batalha de Pirajá foi tema da conferência proferida por Miguel Calmon no Instituto Histórico Brasileiro, em novembro de 1922. Um detalhe a ser acrescentado: havia, também, a versão feminina da figura, ou seja, a Cabocla. (BI 08, jul./1918)
Fig. 04 ― Capa alusiva à Bahia, trazendo uma efígie de Castro Alves e algumas palavras de Rui Barbosa. Lê-se no texto: “Aos primeiros sorrisos longiquos de minha terra na curva azul de sua enseada, emquanto o vapor me approximava rapidamente destas doces plagas, onde minha mãe me embalou o primeiro e os meus filhos velarão, talvez, o último somno, vendo perdurar-se do céu e estremecer para mim o ninho, onde cantou Castro Alves, verde ninho murmuroso de eterna poesia debruçado entre as ondas e os astros, parecia-me que a saudade, amado phantasma evocado pelo coração, me estendia o braço de toda parte, no longo amplexo do horizonte. Minha vida inteira, o remoto passado fugitivo recompunha-se n’alguns instantes, de uma infinita suavidade triste, como a das grandes affeições tenazes, que luctam contra a volubilidade dos successos, e procuram fixar-se à beira da corrente irresistível da vida, abraçando-se nos ramos immortais do ideal”. Na última linha, “Palavras do discurso de Ruy Barbosa na VISITA À MINHA TERRA NATAL”. (BI 17, abr./1919)
Fig. 05 — “Barão de Cotegipe”. Importante político do Império, último chefe de gabinete ministerial de origem baiana, e avô materno do historiador Wanderley Pinho. (BI 05, abr./1918)
Fig. 06 — “Visconde de Rio Branco”, expressivo político do Segundo Reinado nascido na Bahia. (BI 15, fev./1919). A nobreza, os políticos e os estadistas imperiais baianos ilustraram as capas de dezoito edições da revista.
Fig. 07 — “Francisco Moniz Barreto”, o poeta-repentista, o mais admirado na Bahia antes de Castro Alves. (BI 07, mai./1921)
Fig. 08 — “Castro Alves”, considerado, no campo literário, o nome mais insigne da Atenas Brasileira. (BI 10, set./1918)
Fig. 09 — “Manoel Victorino”. Único baiano a ocupar uma das mais altas funções republicanas, a vice-presidência no governo Prudente de Moraes (1894-1898) (BI 04, mar./1918)
Fig. 10 — “Pedro II”. Esta edição da revista foi lançada no mês seguinte ao repatriamento dos corpos do casal de ex-imperadores brasileiros. (BI 34, jan./1921)
Fig. 11 — “A BAHIA – A que cheguei...”. Em lágrimas, a mulher lê: “Está reconhecido senador federal pela Bahia o Sr. Antonio Moniz”. Era um reflexo das desavenças políticas estaduais. (BI, abr./1921)
Fig. 12 — “Dr. J. J. Seabra. Candidato do governo – da opposição da Bahia e dos grandes Estados – à vice presidência da Republica”. Na edição, apoiou-se o governador para o cargo. (BI 38, mai./1921)
Fig. 13 ― Sem negar a importância de indivíduos nascidos em outras regiões, como foram o Marquês de Caxias (natural da província do Rio de Janeiro) e José Bonifácio (de Santos-SP), a Bahia Ilustrada tratou de incluir baianos entre as figuras proeminentes da Independência, a exemplo do Marquês de Monte Alegre e do Visconde de Jequitinhonha. (BI
08, jul./1918)
Fig. 14 ― Fachada da Faculdade de Medicina, instituição formadora da elite intelectual baiana no séc. XIX e grande orgulho da Atenas Brasileira. (BI 01, dez./1917)
Fig. 15 ― Revelando nítidas intenções políticas, a legenda é o destaque maior desta foto: “Ruy Barbosa ― grande nos dois regimens”. (BI 34, jan./1921)
Fig. 16 ― Imagens das comemorações ocorridas na Bahia, em agosto de 1918, pelo jubileu cívico-literário de Rui Barbosa, que ficaram conhecidas como a “Festa do Sol”. Observe-se o detalhe da cabeça de Rui, envolta pela coroa solar. Lê-se na legenda: “1 ― Aspecto da festa dos Aprendizes Artífices; 2 ― Aspecto da passeata acadêmica; 3 ― Trabalho de Presciliano Alves, feito especialmente, para a festa da Escola dos Aprendizes Artífices; 4 ― Homenagem da Casa Clark numa das suas vitrines; 5 ― Aspecto da passeata acadêmica; 6 ― Corso de automóveis; 7 ― Corso de automóveis, promovido pel’O IMPARCIAL; 8 ― Grupo de sócios do Instituto Histórico após a sessão; 9 ― Corso de automóveis. (Clichês Arnulpho Campos)”. (BI 10, set./1918)
Fig. 17 ― Primeira galeria de personagens do Império. Lê-se na legenda: “Os estadistas bahianos: ― I. J. Joaquim Pinheiro de Vasconcelos. ― II. Visconde de Jequitinhonha. III. Márquez de Caravelas. ― IV. Visconde de Pedra Branca. ― V. Barão de Muritiba. ― VI. Visconde de Monte Alegre. ― VII. Marquez de Abrantes. ― VIII. Barão de Vila da Barra. ― XIX. Nabuco de Araújo”. (BI 34, jan./1921)
Fig. 18 ― Segunda galeria de personagens do Império. Lê-se na legenda: “OS ESTADISTAS BAHIANOS ― 1 ― Barão de Cotegipe. 2― Visconde do Rio Branco. 3 ― Márquez de Inhampube. 4 ― Cons. Zacharias de Góes e Vasconcelos. 5 ― Cons. J. Saraiva. 6 ― Fereira França. 7 ― Barão de Uruguayana. 8 ― Visconde de Cayru. 9 ― Jose Marcelino de Brito”. (BI 34, jan./1921)
Fig. 19 ― Cada uma das imagens é identificada pelos seguintes títulos: “Lavandeira ― Bahia”; “Ganhadores africanos ― Bahia”; “Caboclo Bahiano ― Bahia”. Em baixo, lê-se na legenda: “Os typos com que a photographia Lindermann representa a bahiana e os bahianos da TERRA DOS NEGROS”. (BI 39, jun./1921)
Fig. 20 ― Políticos e estadistas do Império, personagens de uma “entrevista espírita” inventada pelos editores da Bahia Ilustrada, na qual se recorria à “autoridade” dos mesmos para se fazer críticas à situação política estadual e nacional. (BI 38, mai./1921)
Fig. 21 ― Capa da edição especial do Diário Oficial do Estado da Bahia, de 2 de Julho de 1923, comemorativo da Independência da Bahia. A tradução da frase latina é “Pela dificuldade eu venço”, bastante significativa de certos valores cultivados pelos baianos, a exemplo da crença nas idéias de heroísmo, sacrifício e dor, que teriam sido algumas das características marcantes das intervenções da Bahia na história nacional.
Fig. 22 ― Pires e Albuquerque, Rui Barbosa, Miguel Calmon, Pacífico Pereira, Ernesto Carneiro Ribeiro e Aurelino Leal, haja vista o destaque que receberam, talvez fossem os mais ilustres colaboradores da Bahia Ilustrada. Já transcrevi as palavras de Rui, mas reproduzo-as de novo: “A Bahia Illustrada tem, ao nascer, os meus mais sinceros applausos. Aquella formosíssima terra, tão bem nascida quanto malfadada, precisava de uma galeria como essa, onde as bellezas e opulências da encantada Pérola do Norte refulgissem, com todos os primores e relevos d’arte, n’um escrínio de maravilhas constantemente renovado. O autor desta idea feliz bateu às portas de uma fada, cujos domínios de encantamento são tão sem limites como do Reino dos Sonhos. As regiões da magia e do deslumbramento vão approximar de nós os seus longos horizontes, povoados ao infinito de surpresas e graças. Oxalá que desse espectaculo não se escolha somente o gozo de se lhe sentir a doçura, de nos enfeitiçarmos no seu enlêvo, mas, sobretudo, o habito de amarmos essa mãe pátria de portentos, e concorremos com o melhor d’almas de todos os seus filhos, para dotar do espírito de vida e energia esse torrão previlegiado (Ruy Barbosa)". (BI 13, jan./1918)
Fig. 23 ― Galeria de colaboradores da Bahia Ilustrada. São eles: nos cantos superiores, Alvaro Moreyra e Asterio de Campos (redatores); na primeira linha, Afranio Peixoto, Juliano Moreira e Eduardo Ramos; na segunda linha, Constancio Alves, Arlindo Fragoso, Almachio Diniz, Belmiro Valverde e Bulcão Vianna; na terceira linha, Durval de Moraes, Ulisses Brandão, Castro Nunes e Paulo Fonseca; na última linha, Leonel Rocha, Ramiro Berbet de Castro, Eutychio Leal, Antonino Neves e Correia Dias (Desenhista) (BI 13, dez./1918)
Fig. 24 ― Outra galeria de colaboradores da Bahia Ilustrada. São eles: Na primeira linha, Xavier Marques, Lemos Britto, Prado Valladares, Bernardino de Souza e Fernando São Paulo; na segunda linha, Braz do Amaral, Góes Calmon e Vital Soares; na terceira linha, Silio Boccanera, Epaminondas Berbet de Castro, Filinto Bastos, Mauricio Pinho e Descartes de Magalhães; na quarta linha, Durval Chagas, Accacio França, Theodoro Sampaio, Roberto Correia e Sabino de Campos; na última linha, Arthur Salles, José Araujo Pinho, Padre Cabral e Presciliano Silva. (BI 13, dez./1918)
Fig. 25 ― As imagens e o texto estabelecem uma conexão entre passado e presente, deixando transparecer uma mistura de ufanismo com saudosismo. Lê-se no texto: “O solo da Bahia, erguido ao céo pelas montanhas, ligado ao mar pelos rios, com altas chapadas e as planícies extensas cobertas de vegetação e escondendo no seu mysterio ouro, prata, cobre, pedras preciosas, ― aquela suave e amoravel natureza guarda, dentro das ruínas que extaziam e do progresso que a transforma, a lembrança e o reflexo dos dias antigos, das velhas propriedades agrícolas, da faina rural, do trabalho pastoril, da existência dos senhores e dos escravos... As gravuras que emmolduram estas palavras mostram alguns aspectos desse passado da terra bahiana: as residências e engenhos do Visconde Ferreira Bandeira, do Barão do Rio de Contas e do Barão de Mataripe no rico município de Santo Amaro”. (BI 02, jan./1918)
Fig. 26 ― No mesmo número em que trouxe as imagens da Bahia Antiga (vistas na figura anterior), a Bahia Ilustrada apresentou, numa página cujo título era a “Bahia Actual”, as imagens de um lugar que incorporou aspectos modernos, as quais revelavam, supostamente, certas aproximações paisagísticas entre a Capital Federal e alguns ambientes de moradia das elites na capital do Estado. Lê-se no texto: “A velha cidade de S. Salvador já não é somente a terra classica, onde as recordações dos primeiros tempos da nossa pequena, mas movimentada historia, mais longamente se gravaram nas ruas estreitas e tortas, nos edificios coloniaes, nas numerosas egrejas, em todo um conjuncto pittoresco e original, que faz daquelle pedaço da Patria uma especie de museo do passado brasileiro. // A capital da Bahia tem, hoje, além das novas construcções do centro, na parte baixa e na parte alta, bairros elegantes, bem modernos, que se adornam de villas e palacetes, como os do Rio e São Paulo. // Graça e Victoria, Barra e Rio Vermelho são, tal qual Botafogo, Laranjeiras e Copacabana aqui, os lugares escolhidos para a residência da alta sociedade. Ao encanto natural, o homem juntou o seu gosto e o seu trabalho, dando uma vida mais viva a esses trechos de paisagem inconfundível.” Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 02, jan./1918)
Fig. 27 ― Conforme indica o título no topo da página do material em que foi obtida a foto, trata-se das “Riquezas Naturaes, no Interior do Estado” (talvez quisessem dizer “belezas naturais”). Lê-se nas legendas, por linha: “Vista de uma cascata durante a secca”; “Outro trecho de um rio, durante a secca”; “Trecho de um rio, durante a secca”; “Os banhos naturaes ao romper da aurora”. Álbum da Bahia, Edição Folgueira, 1930, p. 163.
Fig. 28 ― Registros das comemorações do Dois de Julho na sua faceta menos popular. Lê-se na legenda: “Nossos conterrâneos em visita ao Pavilhão; o jovem Adalicio Coelho Nogueira, do Grêmio Carneiro Ribeiro auctor da «Ode 2 de Julho», que publicaremos no próximo numero; o nosso colaborador professor Bernardino de Souza pronunciando o primoroso discurso que publicamos nesta edição; aspecto da missa celebrada pelo bispo do Ceará em coreto no Largo da Lapinha; o bispo do Ceará, nosso conterrâneo, autoridades militares, directoria do Instituto e o representante da Bahia Illustrada o Sr. Adriano Motta; os Exmos. Snrs. Drs. Antonio Moniz, governador do Estado, e Pedreira Franco, secretario da agricultura. Clichês de Arnulpho Campos, representante da Bahia Illustrada, na Capital”. (BI 08, jul./1918)
Fig. 29 ― Conforme indica o título no topo da página do material em que foi obtida a foto, foi registrada “A Extracção de Diamantes e Carbonados nas Lavras Diamantinas no Estado”, algumas das “riquezas” guardadas pelo solo baiano. Lê-se nas legendas, por linha: “Transporte de cascalho diamantino, em Carumbés, em Chique-Chique, Município de Andarahy”; “Trabalho de mineração no rio Paraguassu, em Piranhas, Município de Andarahy”; “Lavagem de cascalho diamantino, em veteias, em Chique-Chique, Município de Andarahy”; “Lavagem do cascalho diamantino em Piranhas, no rio Paraguassu”. Álbum da Bahia, Edição Folgueira, 1930, p. 203.
Fig. 30 ― Cenas da exploração do manganês, mais uma das riquezas baianas, nas terras pertencentes a Nazaré. As legendas indicam o seguinte: “1 ― Trabalho de mineração no «Rio Onha»; 2 ― minerio prompto, a embarcar, no caes de Nazareth; 3 ― Mina «Sapé», indo até ao leito da linha férrea de Nazareth”; “4 ― Trecho da cidade de Nazareth, em que se avista parte do Rio Jaguaripe”; “5 ― Mina «Pedras Pretas», vendo-se, no serviço de mineração, alguns trabalhadores. É propriedade da «International Corporation»”. (BI 02, jan./1918)
PARTE II ― TEMPOS DE INFORTÚNIO:
AS ELITES BAIANAS E AS SUAS PERCEPÇÕES SOBRE A ERA REPUBLICANA
Glória à Bahia
A ti, que sempre foste heróica e soberana,
Glória! Ter glória é ser assim: rainha e serva.
E, pelo orgulho teu, de sabia e de espartana,
Glória! Glória à Bahia em nome de Minerva!
Glória ao seio criador de onde a glória promana!
A vencer o desdém, e a calúmnia proterva!
A Glória é como a luz do sol, que esplende ufana
Sobre este verde mar que te proclama e observa.
As tuas maldições, os teus males partilho;
Banho-me no esplendor da glória em que te banhas,
E eu sou feliz assim, pois eu não sou teu filho?
Uma oração de gloria é sempre uma epopéa!
Salve! Terra de luz! Princeza das montanhas!
Pátria de Ruy Barbosa – o Adamastor da idea!
Sabino de Campos.1
1 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 21-22, set.-out./1919.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve”: a sensação de declínio nos tempos republicanos
Devo adentrar agora, de fato, nas questões que afligiam a Bahia em sua inserção
na ordem republicana. É chegado o momento de fazer alguns esforços para
compreender, ainda que parcialmente,1 quais motivações, objetivas e subjetivas,
induziram tantas referências aos ditosos tempos de glória. As lembranças das grandezas
da Bahia, no passado, que tão vividamente embebiam e embeveciam a memória das
elites baianas, encontravam sólidas motivações nas vicissitudes dos novos tempos. E
nesse sentido, é inevitável indicar o caráter um tanto ambivalente assumido pelas
recordações. Se eram, por um lado, sinais marcantes de um arraigado orgulho,
estavam, também, íntima e subjacentemente associadas a sensações de outro tipo, que
não podem ser consideradas tão enaltecedores, mas ainda assim sentidas em
intensidade semelhante à primeira. Estas eram a tristeza, a falta e a perda, sentimentos
corolários ao orgulho, e decorrentes das vicissitudes que levaram o Estado a ocupar
uma nova posição na era republicana.
O sentimento de perda
Amplas parcelas das elites baianas se ressentiam pelas transformações ocorridas
no país no intervalo de poucas décadas de instalação e consolidação da República —
mudanças estas que, na percepção das mesmas, afetaram as mais diversas dimensões
das suas experiências. No plano material, no econômico, cultural, no artístico e no
político não faltavam razões para lamentar a realidade tal como então ela se
apresentava. Remeter-se às glórias do passado podia ser na prática, também, uma
forma de reconhecer e denunciar as aflições do presente.
As tensões entre passado e presente, júbilos e dissabores, glórias e infortúnios
ficaram registradas num editorial do jornal Diário de Notícias, datado de 1915, o qual se
propôs a estabelecer um paralelo entre os dois momentos. O editorial tinha o sugestivo
título de “A terra do — já teve, o passado e o presente”. Dizia ele:
Um olhar retrospectivo para o passado, para a Bahia de tempos idos e a contemplação do seu estado hoje, ao invés de satisfazer, de encher de orgulho o espirito dos seus filhos, enluta-o de dor e de tristeza.
1 Falo aqui em produzir compreensões parciais, porque não alimento, por questões de princípio, a pretensão
de formular explicações totais e definitivas a respeito de qualquer assunto.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 150
Entretanto, num estribilho cantado pela voz interesseira de falsos crentes do seu progresso, ouve-se repetidamente: a Bahia civiliza-se. Como? em que consiste e de que modo se apresenta e como se manifesta essa civilização? Nas letras, nas artes, nas industrias, no comércio, em melhoramentos materiais úteis, nos meios de distrações para compensar os trabalhos e tristezas do povo? Em que consiste finalmente?
Este é apenas o primeiro trecho do longo editorial. Ele nos traz um balanço tão
revelador e sintomático do ânimo da época que se torna imprescindível acompanhá-lo
na sua integridade, a fim de que se possa aperceber nos detalhes como os novos
tempos foram sentidos. A partir das indagações formuladas, como se lê, delineou-se a
condição sob a qual se julgavam encontrar na realidade presente. E embora o autor
tenha se proposto à comparação, ele acabou enfatizando um conjunto de elementos
(coisas e pessoas) que fizeram a grandeza de outrora, enquanto o momento recente
descreveu sob o signo da ausência. Portanto, foi explorando a contradição existente
entre os haveres tidos e os haveres perdidos que se montou o cenário crítico da
situação baiana. E como o editorial alegava tudo faltar, daí o uso repetitivo do mote “a
Bahia — já teve” na extensão de todo o texto:
Se se lamenta o atraso da instrução, a falta de preparo e competência dos homens para ocupar, com saliente critério, os postos culminantes da política, o espirito baiano, na impossibilidade de uma afirmativa que o envaideça, mas, numa frase de triste consolo, voltando-se para o passado diz: "a Bahia já teve — homens notáveis na política, como Abrantes, Nabuco, Rio Branco, Zacharias, S. Lourenço, Cotegipe, Dantas, Junqueira, Saraiva, Muritiba, Fernandes da Cunha, e muitos outros; na poesia, Pedra Branca, Junqueira Freire, Muniz Barreto, Castro Alves; no jornalismo, Guedes Cabral, B. Barreto, Augusto Guimarães, Leão Velloso, Milton, Ruy e Victorino, e outros nomes citados hoje com orgulho das letras pátrias. De referencia ao cultivo das Belas Artes, hoje, está ele sem escolas e institutos que proporcionem o ensino, de modo que não mais se pode aqui apresentar os Gacingalupe, Adelermo Nascimento, M. Torres, João Bispo, Lopes Rodrigues; e, a respeito ouvimos: a Bahia — já teve, exímios maestros, hábeis pintores, distintos escultores; artistas e industriais inteligentes, dos quais se encontram, pôr toda a parte, traços honrosos da sua existência. Sim. A Bahia — já teve — excelentes amadores da musica, em sociedades como a "Euterpe" e a "Minerva"; — já teve — a satisfação de ouvir em bem organizadas companhias líricas e dramáticas, cantos e atores notáveis.
Este trecho não dizia muito do presente, apenas rememorava os expoentes da
Atenas Brasileira, aqueles sujeitos que elevaram o nome da Bahia nos campos da
política (os estadistas e oradores), nas letras e nas artes. Na continuidade do texto,
aspectos referentes à atividade econômica, aos serviços e aparelhos urbanos, à
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 151
probidade dos administradores públicos, às manifestações festivas patrióticas foram
abordados:
Um comércio prospero e feliz, com bancos de bolsa, a Bahia — já teve. Hipodromos para exercícios hípicos, companhias equestres e acrobáticas, com bons artistas, a Bahia — já teve. Praças arborizadas, ruas então calçadas, que hoje fazem aburacadas, a Bahia — já teve. Um aprazível Passeio Publico, onde ao esplendido golpe de vista sobre a formosa baía, túmulo da apaixonada Moema, se ostentavam vetustos e poderosos tipos da nossa flora que admiravam os estrangeiros, a Bahia — já teve. Até um Plano Inclinado que servia aos moradores da Rua do Paço e Santo Antônio, a Bahia — já teve. Festas publicas durante as quais a lama popular vibrava, altiva e cheia de patriotismo, a nota de contentamento, a Bahia — já teve. Administrações honestas e moralizadas... Bahia — já teve.
Diante do que se descrevia como um quadro de completa ausência, o
reconhecimento da tristeza e o lenitivo da memória de tempos esplendorosos:
Já teve — é pois a frase balsâmica e consolidara para alívio do desgosto produzido por tudo que falta à Bahia presentemente. Mas, triste consolo do — já teve — para este presente que só no passado pode encontrar alguma coisa que minore a vergonha das apreciações desabonadoras mas reais, que possa contrapor a deficiência que tem do que era motivo de orgulho e que lhe dava renome e glorias, nesta situação decadente a que foi arrasada pela incúria e desacerto dos atos daqueles a quem competia manter o seu renome, aumentando o patriotismo glorioso que vinha acumulando. O presente, se tudo não pôde derruir, aniquilar e fazer desaparecer, nada também de útil, de bem planejado e executado ha feito que, honrando as tradições, deixe em plano secundário o passado pelo gozo dos bens e dos confortos na presente fase, que atravessa a Bahia. Como na capital, pelo sertão em fora, reza a historia, estradas de rodagem, atualmente transformadas em estreitas vielas, lavouras ativamente trabalhadas, a Bahia — já teve. Navegação nos seus rios, facilitando as comunicações, a Bahia — já teve. Hoje, o espirito traquinas da remodelação transformou muita coisa a ruínas; temos a miséria e a fome, a desorganização de todos os serviços públicos, o desrespeito à moral e aos direitos de um modo ostensivamente escandaloso. Triste legado passará ao futuro! A Bahia hoje que tem?... Nada... Já teve!2
Interessante observar como, no afã crítico, apontaram até mesmo as vias de
comunicação e transporte de média e longa distância (as estradas e as vias hídricas),
que nunca foram tão desenvolvidas, entres os elementos havidos no passado imperial e
considerados “inexistentes” no presente, configurando-se uma miragem que
extrapolava os limites plausíveis. De qualquer modo, o que se deve subtrair do texto é a
2 “A Terra do — Já Teve. O passado e o presente”. Diário de Notícias, Salvador, 24/07/ 1915, p. 1.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 152
idéia e o sentimento de que se vivia uma época de grande desconforto, que contradizia
antigas e notáveis tradições.
É muito importante contextualizar o surgimento do editorial. Escrito em julho de
1915, buscou resgatar uma série de ocorrências consideradas positivas para tecer um
julgamento da administração estadual de José Joaquim Seabra — mais conhecido como
J. J. Seabra — que esteve à frente do governo entre 1912 e 1916. Tendo ocupado por
duas vezes cargos ministeriais na República, Seabra foi o mentor de um importante
projeto de modernização da cidade de Salvador; pretendia com isso colocá-la no mesmo
plano das mais importantes capitais estaduais brasileiras que passaram ou passavam
por processos de intervenções urbanas. As reformas deveriam preparar a capital baiana
para a sua inserção na nova ordem civilizada e progressista, visava-se ainda equipará-la
aos novos centros hegemônicos do país, notadamente o Rio de Janeiro, capital federal,
e São Paulo, recuperando através dos melhoramentos materiais algo da sua antiga
importância. Aparelhando-a, materialmente, estaria ela sendo dotada de melhores
condições para responder às recentes demandas e prosperar no futuro.3
As críticas foram uma conseqüência das frustrações com os empreendimentos
seabristas, que, nos seus primórdios, fez grandiosas promessas, gerando com isso
enormes expectativas. As dificuldades na implementação das obras, os dispendiosos
custos financeiros que produziu, as deficiências que não conseguiu sanar, os problemas
outros que ignorou não puderam passar despercebidos. Daí o porquê de se afirmar, nos
parágrafos finais do editorial, que a “remodelação transformou muita coisa em ruínas;
temos a miséria e a fome, a desorganização de todos os serviços públicos, o desrespeito
à moral e aos direitos de um modo ostensivamente escandaloso”. Não se podia negar
que foram muitas as falhas. Mas, também, as rivalidades políticas baianas, que
transformavam os jornais em veículos de facções partidárias, estimulavam,
inevitavelmente, juízos menos ou mais severos acerca de qualquer ação política
governamental — rivalidades sobre as quais tratarei oportunamente. Daí a acusação de
que os administradores de então eram incompetentes e sofriam de desvios morais,
desonrando as tradições de bons governantes baianos. Por outro lado, e volto à
remodelação, não se pode obscurecer o fato de que nem todos avaliaram as obras
enquanto uma iniciativa fracassada, houve aqueles que preferiram ressaltar as suas
virtudes e os seus efeitos benéficos.4
3 Seabra foi governador por uma segunda vez entre 1920 e 1924, mas seu primeiro governo foi marcado,
dentre outras coisas, pelos melhoramentos materiais e aparelhamento do estado com novos serviços públicos. Para conhecer as aspirações civilizadoras do período, ver LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia Civiliza-se...: ideais de civilização e cenas de anti-civilidade em um contexto de modernização urbana: Salvador, 1912-1916. Salvador, 1996. Dissertação (Mestrado em História) — FFCH, UFBA, 1996.
4 Idem, ibidem.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 153
Conquanto os detalhes há pouco destacados, era totalmente verdadeiro que,
para além das questões políticas estaduais, não poucas vezes indicadas como uma das
causas da situação, havia um sentimento generalizado de crise e declínio da Bahia na
cena nacional. Não me parece proporcional aos fatos a “fúria” crítica que a remodelação
urbana da capital despertou no autor da matéria, a ponto de fazê-lo colocar tantos e tão
diversos problemas no mesmo lugar, tratando-os como coisas iguais. Por isso, considero
que antes de significar uma crítica pontual a uma administração estadual, nosso
anônimo editorialista dava vazão a sentimentos nutridos relativamente à situação geral
da Bahia. Talvez, as reformas urbanas fossem, naquele exato momento, qual seja, o do
contexto de publicação do editorial, apenas a face mais evidente, o sintoma mais
alarmante dos infortúnios, da má sorte — sensações então sentidas — que afligiam o
Estado, pois a modernização era um fenômeno de dimensão nacional que, segundo o
entendimento da época, estava a colocar outros Estados e cidades no caminho do
progresso e da civilização. Deixando, por ora, as divergências políticas de lado, será o
teor dos sentimentos que tomaram as elites baianas que acompanharemos no decorrer
deste capítulo.
Atente-se que as faltas apontadas no editorial eram referentes tanto à perda de
uma série de elementos dos tempos de glória que, vinculados à tradição histórica
baiana, atiçava a saudade do que se teve um dia, quanto um sinal de desencanto em
relação aos passos lentos e atrasados que seguiam no caminho da modernização e do
progresso, um tipo de expectativa muito em voga nas primeiras décadas do século XX,
e que teve no ideal civilizador dos costumes e na reforma urbana os principais focos de
realização. Existia, portanto, um sentimento de falta ligada à noção de perda e outro
associado a idéia de ausência do novo. Daí porque a sensação de que à Bahia faltava
tudo misturava referências diversas do passado e do presente. Entretanto, tendo em
vista que a modernização não se constitui na principal preocupação deste trabalho,
volto a minha atenção para o estranhamento do presente por conta do que ficou
perdido no passado.5
Embora as críticas às reformas pudessem se sujeitar às variações do humor
político de um ou outro articulista, o mais relevante, neste momento, é perceber o
editorial — que tão insistentemente afirmava que a Bahia já teve tudo e agora não tinha
nada — enquanto sintoma de uma predisposição geral que assomava ao espírito de
significativas parcelas das elites baianas, sejam elas intelectual, política ou
socioeconômica. Estes eram os estratos mais susceptíveis à sensação de perdas que
5 Idem, ibidem. O problema da falta no tocante à modernização, que tenho a preferência em designar de ideal
civilizador, abordei na minha dissertação mestrado. Foi, aliás, durante as pesquisas para desenvolvê-la que tive a atenção despertada para o sentimento de perda em relação às coisas tidas no passado. O editorial “A Bahia ― Já Teve” recolhi quando realizava tais pesquisas e devo a ele algumas das minhas primeiras inquietações para com a temática ora trabalhada.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 154
impregnou tanto o editorial quanto os outros textos a serem citados mais à frente. O
sentimento de perdas decorria da percepção de que a Bahia passava por um processo
de “decadência” política, especialmente, artístico-cultural e quiçá, também, econômica,
no quadro geral da nação brasileira, no contexto republicano — questão essa (o
processo de “decadência”) que será devidamente matizada. Essas mudanças
diminuíram o status das elites para um patamar muito mais circunscrito ao âmbito local,
regional ou estadual, em contraposição ao reconhecimento em nível nacional que se
alegava ter ocorrido na época do Império.
A prática de comparar o passado e o presente só fazia acentuar o drama. Como
foi exposto por nossos testemunhos, “o que tem sido a Bahia na República, o que tem
ella feito, nas pessoas dos que aqui nasceram, diga-o a historia contemporanea”.6 E os
fatos recentes, para eles, não costumavam produzir muito entusiasmo, antes revelavam
a perda do prestígio e da influência de outrora. Comentando a respeito da questão, Braz
do Amaral escreveu, com todas as letras, que “em 1889, foi proclamada a Republica,
regimen no qual a Bahia não tem sido mais feliz”.7 Esta convicção foi reafirmada,
também, invertendo-se o ângulo da análise, ou seja, levando-se em consideração não o
que representou a emergência do novo regime, mas o significado do fim do antecessor.
Pensada (ou repensada) nesta outra perspectiva, falava-se em algo que se aproximava
da idéia de que com o fim do Império se extinguiu o antigo fulgor baiano: “a Bahia caiu,
com o regímen monárquico, a Bahia mãe fecunda de tanto pioneiros”.
Havia sólidas razões para que se sentisse muito mais profundamente as
conseqüências das transformações políticas ocorridas, pois, como se afirmava então,
“outros estados da União, mais felizes certamente do que nós, porém, não mais dignos,
outros estados da União, com menos recursos que a Bahia, floresceram, subiram no
conceito nacional, ditando as normas, boas os más, com que se há dirigido o povo
brasileiro”. Enquanto isto, a dita terra mater brasileira se via impossibilitada de cumprir
a sua pressuposta vocação para grandeza. A inconformidade no tocante à situação se
tornava acentuada porque era muito explicíto o clamor das elites, porque eram
indisfarçáveis as suas reais aspirações: a recuperação das glórias passadas. Nas
palavras dos sujeitos da época:
No envolver desses calamitosos tempos republicanos, que quer a Bahia, que vem pedindo a Bahia, pela voz angustiosa dos seus comerciantes, dos seus lavradores, dos seus sertanejos, pela voz revoltada dos seus estudantes, dos seus oradores livres, dos seus homens de imprensa independente? Que quer a Bahia? [...]
6 “Ave Bahia”. In Polyanthea (sem referências). 7 AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre Finanças da Bahia..., Bahia, p. 1-10 (5).
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 155
A Bahia quer paz, a Bahia quer luz, a Bahia quer trabalho, quer a expansão em todas as modalidades de sua tradicional vida laboriosa, quer moralidade e justiça, porque, na Federação Brasileira a Bahia quer a grandeza, a Bahia quer o valor, que já lhe foi apanágio, a Bahia quer a força, quer a liberdade e a glória!8 (grifo meu)
Uma vez atingido este ponto do estudo, tornar-se mais facil compreender o
motivo de tanta recorrência aos ideais, aos fatos, aos personagens que teriam feito as
glórias da Bahia, simbolicamente representados na profusão de títulos por ela
cultivados, como foram os exemplos da Mãe, Atenas e Rainha. Rememorar
intensamente os anos imperiais era, por um lado, uma fórmula de revivescência do que
se teve um dia, já que na realidade prática tudo se apresentava enquanto perda. Por
outro lado, ele acentuava o drama da Bahia, ou melhor, das elites baianas na República,
que sentiram os impactos das vicissitudes históricas como um imenso infortúnio.
Referenciando-se no passado, assinalava-se os problemas do presente, e, ao mesmo
tempo, indicava-se algumas das expectativas futuras, entre as quais se incluía o desejo
de recobrar o antigo estado de coisas. Como foi dito explicitamente no excerto acima, a
Bahia queria a grandeza, o valor e a glória que foram seus atributos.
Deixarei, entretanto, para tratar a respeito do saudosismo mais adiante,
somente após examinar com maior riqueza de detalhes as percepções desenvolvidas em
torno das vicissitudes experimentadas. Procedendo deste modo, ficará claro que
acompanhando os discursos sobre as grandezas da Bahia no passado vinha o
reconhecimento do seu “declínio” na conjuntura histórica de então. Por isso, muitas
vezes, nos mesmos textos nas quais se enalteciam as antigas glórias, escrevia-se sobre
os infortúnios, o desprestígio ou mesmo a decadência representada pelos novos
tempos. E assim, tal como foram elaborados discursos sobre as grandezas da Bahia,
houve a formulação de discursos sobre os seus infortúnios, ambos explorados,
relativamente, na mesma intensidade.
O próprio dito “a Bahia — já teve” era uma das formas que eles (os discursos
sobre os infortúnios) assumiam. Embora não o tenha encontrado repetidamente, o
referido dito não apareceu como um caso isolado. Numa crônica da revista Renascença,
em 1916, escreveu-se, em referência à Bahia, que “poderíamos chamal-a ‘a terra do Já
houve’, na certa definição popular”... Esta última fórmula se apresenta como uma
pequena variação da primeira, mantendo, porém, o mesmo sentido. Outra citação
escrita do ditado localiza-se no jornalista e poeta Aloísio de Carvalho — mais conhecido
do público como Lulu Parola, autor de versos humorados, críticos e satíricos sobre
temas do cotidiano político, social, urbano, etc., e publicados por anos ininterruptos no
8 “O Novo Governo” (Editorial). Diário de Noticias, Bahia, 29 de março de 1912, p. 01. O trecho aspado, no
parágrafo que antece essa transcrição destacada, também, foi retirado da fonte aqui citada.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 156
Jornal de Notícias, em Salvador — que mencionou em uma crônica, de 1934, que havia
uma noção generalizada de que a Bahia era a terra do “já houve”. Carvalho, entretanto,
tinha opinião contrária sobre a validade do dito, achando-o inadequado, posto que não
compatilhava do pessimismo prenunciado nele. Em sua opinião, haviam sido
preservadas, sim, diversas coisas positivas na “sua” Bahia, sobretudo no espírito dos
conterâneos e em certas tradições de longas datas, a exemplo do culto religioso do
Senhor do Bonfim, festejado anualmente em janeiro, que foi o tema central da sua
crônica.9
O Desconforto com a república
De qualquer modo, a idéia de que a Bahia conservava certos atributos, e sobre
isso terei a chance de discorrer, não deve encobrir o fato de que havia um forte
sentimento de perda de prestígio, que estimulava uma espécie de desconforto com a
condição atual. Lemos Britto, que algumas vezes já nos serviu de referência para
testemunhar a favor das glórias da Bahia, foi um dos descontentes, deixando declaradas
suas impressões da crise:
Não é possível esconder a obscuridade em que, para todos os cotejos e confrontos, vive submersa a Bahia. A insignificância de seu papel na actualidade republicana contrasta com a grandeza de seu passado e com os seus próprios valores actuaes. Por maior que tenha sido o seu esforço, e elle tem sido extraordinário; por mais viva que seja a sua fé nos destinos da pátria commum; por mais nobre que se apure a sua dedicação à causa da ordem e da legalidade; por melhor e mais bella que seja a contribuição de seu trabalho para o engrandecimento material da Republica; por mais radiosa que resplenda no firmamento nacional a constellação de seus talentos; por mais que lute, porfie e cresça em favor do direito e da liberdade; a Bahia vem, de há muito, cedendo ao peso de uma fatalidade que não direi histórica, escorraçoada e diminuída até ao ponto em que a defronto agora. Dir-se-ia que as sua fronteiras, terrestres e marítimas não permittem, não toleram que lhe transponham as linhas divisórias o eco das suas batalhas, o tinir do malho dos seus labores, o estrepito das suas machinas, o silvo das suas locomotivas, nem o immenso clarão que projetam no espaço os luzeiros de sua intelligencia. Um vasto, enormissimo abafador quebra a intensidade dos sons da orchestração de seu trabalho. Ella póde abarrotar os mercados com a sua producção; póde atulhar as arcas do erário nacional com a derrama de seus impostos; nem por isso a vêem ou a escutam. Tudo lhe negam; e tudo que é seu, para triumphar, hade [sic] levar o rotulo extrangeiro...
Neste trecho, Britto revelou não somente o seu descontentamento como acusou
a existência de um certo desprezo para com aquilo que a Bahia fazia pelo país, prática
nova esta que adquiria feição diametralmente oposta ao reconhecimento supostamente 9 Respectivamente, Mafaldo de Béja. “Chronica Mundana”. Renascença, Bahia, nº 07, 12 de dezembro de
1916, o negrito e as reticências são do original; e CARVALHO, Aloísio de Cantando e Rindo. Salvador, 1954.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 157
obtido em outros tempos. Por conta disso, podemos depreender agora que todos
aqueles discursos sobre as grandezas do passado eram, também, um brado de
cobrança contra as injustiças atuais, ou, noutros termos, seriam uma exigência de
respeito às antigas tradições baianas. Britto prossegue reafirmando:
Os que, como eu, a querem, de verdade, os que vivem a pugnar pelo seu direito de um logar ao sol republicano, soffrem no seu affecto e nos seus melindres com a grita e com o pregão de seu descrédito e do seu desvalor. A grande verdade é, porém, que a Bahia, sozinha, desprotegida, desamparada, muito tem feito dentro do seu isolamento. O registo dos emprehendimentos da sua iniciativa particular, e n [sic] conflicto com obstáculos de toda ordem, maravilha e surprehende a quem quer que lhe percuta a grande alma creadora e escute as resomancias [sic] das colméias de todos os centros onde palpita a grande energia nativa da sua raça. De longe, tendo gravada na retina a sua imagem querida, e guardando na memória, como se presentes me foram, as scenas e os scenarios de seu trabalho generoso, a mim me doe a injustiça com que a ferem, a desmoralizam e a matam.10
Quando se tratava de expor suas percepções da condição baiana, fosse
lembrando as glórias, fosse lamentando os infortúnios, Britto era sempre bastante
fecundo na criação de “imagens”. Em referência aos temas ora em discussão, soube
elaborar belas e tocantes descrições dos males que afligiam a sua terra natal,
conferindo-lhes um acentuado toque dramático. Aliás, foi enquanto um drama que
comumente se narrou os tempos de infortúnios, assim como foi na perspectiva de um
drama (tanto por sua natureza traumática, quanto por seu caráter fortemente
emocional) que foram narradas muitas passagens das intervenções da Bahia na história
nacional, especialmente nos momentos mais aflitivos de guerra. Eis mais uma das
considerações de Britto, nas quais todos estes elementos mais uma vez se reúnem:
A Bahia é hoje como um desses valles immensos, e frios, e mudos, que o sailêncio e a solidão enchem de indecifráveis mysterios. É como aquelas bacias esvasiadas, quietas, e esquecidas, do Ceará, em cujas areias, abundantes de fósseis curiosos, o mar derramou, um dia, suas águas azues, alegrando-as com o bulício de sua velhice milenar, que se desenfastia de longevidade cantando, e sorrindo às praias, que o sitiam, ou aos alcantis e penhas, que o cintam; e agora lembram, batidas, flagelladas do sol, ermas, nuas, escaldantes, sem ruídos, mudas, sem gente, e sem vegetação, sem asas, nem vida, os desertos esphingicos da Arábia, de cujas brancuras de morte a luz levanta, no phenomeno das miragens, os palácios phantasticos, e os oásis floridos, mas diaphanos...
Considero muito interessante a comparação da Bahia com as “bacias esvaziadas
do Ceará” e especialmente com “os desertos esphingicos da Arábia”. Revela a dor de
um isolamento que não era conseqüência da própria vontade, mas sim de um abandono
10 BRITTO, Lemos, [Editorial]. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 33, dez./1920.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 158
e de um desprezo que foram impostos, produzindo entre os baianos, que desejavam
muito mais, um vazio de sentido que adquiria por vezes ares enigmáticos ― enigmático
porque difícil de ser compreendido, aceito e assimilado. Perguntava-se por que ela vivia
tantos infortúnios... Indagava-se por que não reconheciam, na República, sua
importância e mérito, quando tantas foram as suas contribuições para a cultura e a
história nacionais; quando, nos novos tempos, não causava nenhum mal ao país, muito
pelo contrário, continuava oferecendo o melhor do que tinha, com os seus homens e os
seus recursos, para o engrandecimento da nação. Britto prosseguiria falando de solidão,
tristeza e de saudade, ânsia e indiferença como elementos que caracterizavam as
vicissitudes da Bahia, transformada em uma ave ― talvez uma pomba, que era uma das
suas formas de representação ― de asas aparadas:
Sente-se, alli, a tristeza de uma saudade, não se sabe de que, de quem... Domina-a uma ânsia infinita, e indefinida... Quer ascender, voar, em remígios poderosos, e sente que lhe apararam as asas, como às aves de cria, para que não transponham a cercadura dos quintais... Outras vezes, recompondo, e reanimando as scenas do passado, os vultos majestosos que a dignificaram, toda se imflamma, toda se exalta, toma dos copos de sua espada, perfila-se, em attitude de desafio, quer luctar... Mas reflecte que está murada, emparedada; que sua voz se estrangula no bronze dos fios telegraphicos, e quando enche o paiz, através de vossa palavra, cerram-se-lhe os ouvidos dos responsáveis, por que não oiçam, e, ouvindo, se não commovam às singulares desditas de seu formidável infortúnio. Ella pergunta, por isso mesmo, desalentada, rompida, alongada no rubor do seu pejo, qual seu crime, que faltas praticou, por que a desherda a União dos seus carinho maternais, e não atina com o fio desse mysterio, cuja realidade atroz humilha, e a desviriliza. Não veio de um passado de crimes, sim de luz; não pesou no activo dos favores federais, mas no passivo de suas dividas de honra não satisfeitas; não negou o sangue de seus filhos, para defende-la no campo razo das batalhas, ― deu-lhe o que de melhor tinha no valor, na força, na valentia e no denodo; não contra o acervo da nossa glória nacional, aprimorou-o, poliu-o, cinzelou-o. E se reconhece, agora, como essas filhas adoráveis que, sendo toda bondade e zêlo para os paes, atravessam a vida sepultadas na dôr de uma preterição inexplicável. Anda alli, de bôca em bôca, uma queixa dolorosissima. A Bahia está vivendo da esperança, e de nada mais. Ella desejaria transformar esse desaprêço, essa inferioridade, esse postergamento, que já correm o risco da chronicidade. Dia a dia cresce a imigração de seus filhos ilustres. Os que saem não retornam. Os que não vieram anseiam por vir... e seguramente virão. [...] a Bahia supplica aos que governam o paiz — a graça de a restituírem àquella invejavel posição a que ascendêra, no império, pelas mãos de seus homens de Estado, e a que tem direito de aspirar, quando mais não seja pelo facto de vos ter sido o berço.11 [...]
Lemos Britto queixava-se da injustiça cometida contra a Bahia, a quem restava a
esperança de superação do “desapreço”, da “inferioridade”, da “postergação”. E
acentuou a gravidade ao revelar o temor de que a situação estivesse assumindo um
11 “Discurso de Lemos Britto”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 13, dez./1918.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 159
caráter crônico. Por fim, restava-lhe implorar aos poderosos da república, mas em nome
da Bahia, que restaurassem o seu lugar de “direito”, ou seja, aquele onde pudesse
dispor de poder semelhante ao que tivera no regime imperial.
Vejamos outros discursos do mesmo gênero.
Rui Barbosa, embora fosse uma personalidade muito bem sucedida no plano
nacional ― a não ser pelo fato de nunca ter realizado o seu maior objetivo político, que era
ter alcançado a presidência da Republica ― também sentiu a fragilidade da Bahia nos novos
tempos, e fez questão de denunciá-la. Rui não tinha residência fixa no Estado havia muitos
anos, mas mantinha nele um importante reduto político, tendo sido seu representante no
Senado durante os longos e ininterruptos anos que teve assento no órgão. Não foi dado a
recusar sua origem, muito pelo contrário, sempre enfatizou a sua “identidade” baiana e
provocava exaltá-la. Nesse sentido, sendo um homem tão ilustre, considerado um gênio da
raça brasileira e o maior baiano de todas as eras, parecia associar seu fracasso na
conquista do supremo cargo republicano com o próprio desprestígio da Bahia. Em discurso
pronunciado para homenagear o batalhão de atiradores baianos, que foi desfilar nas
comemorações do 7 de Setembro, no Rio de Janeiro, participação esta que pode ser
compreendida como uma inequívoca prova de adesão do Estado aos princípios simbólicos
da nação, Rui Barbosa explicitou o modo como percebia o problema. Fazendo uso da
linguagem dos astrônomos, inquiriu-se como a Bahia passou de sol a satélite:
Porque seria que da condição de centro solar do systema desceu ella à de reflector de luz alheia, sendo humilde satélite, para gravitar subordinadamente numa deslutrosa inferioridade? Que singulares transmutações no seu destino a reduziram a girar, silenciosa e apagada, na órbita que outros lhe traçam? Donde as influencias, que a condenaram a esta opacidade, que accommodaram com esta subalternidade, que a paralysaram nesta instabilidade?
Descenso, inferioridade, subordinação, taciturnidade, apagamento, opacidade,
subartenidade, paralisia, instabilidade ― eis o conjunto de palavras ou idéias que usou
para exprimir a condição da Bahia. Expondo as suas dúvidas acerca das razões do
declínio, Rui recorreu à imagem da sua terra como geratriz e nutriz de gênios e gigantes
para inquirir se tão fértil mãe já não conseguia mais procriá-los:
Teria Deus, porventura, fulminado com a esterelidade aquellas entranhas poderosas e inesgotáveis, donde borbotava o gênio, a eloqüência, a actividade, a riqueza? Ter-se-á, por acaso, desilluminado o seu firmamento, desoxygenado o seu ambiente, desfertilizado o seu solo, desenervado o seu povo, dessangrado o seu brio, desvivido a sua honra? Dar-se-à que «a heroína dos seios titanicos» haja perdido a sua divina maternidade? que a genetriz de gigantes já não seja capaz senão de conceber pequenezas? que o leite donde se criaram patriotas, heróes e estadistas, degenerrasse das suas esplendidas virtudes, e perdesse as suas excelsas qualidades?
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 160
Enquanto defensor fiel das tradições baianas, Rui não acreditava que a fonte
houvesse secado. Desta forma, afirmou, convictamente, que “a atmosphera de hoje é a
mesma de outr’ora”. Assim como, dizia ser “a mesma, a terra”, e também “a gente, a
mesma”. Em sua opinião, os baianos continuavam sendo
um povo de uma sensibilidade extrema, de uma admirável presteza na assimilação das idéas, de uma accessibilidade extraordinária a todas as impressões generosas, um povo de idealistas e poetas, de oradores e escriptores, de missionários e aventureiros, de homens de combate e homens de trabalho renova todos os dias o antigo thesouro de privilégios creadores e brilhantes, que foram, noutros tempos, a base do seu primado, e são hoje o desespero da sua preterição.
Conquanto conservassem os dons e os talentos, não obstante se empenhassem
em gerar riquezas para o país pelo trabalho, conforme faziam questão de alegar
reiteradamente, as elites da Bahia não se percebiam convenientemente representadas,
devidamente reconhecidas, justamente recompensadas na cena nacional. Por isso, Rui
Barbosa definiu os infortúnios vividos como conseqüência de sua “preterição” pela
República. Para ele, a triste situação da Bahia nada mais era do que o resultado do
desprezo e abandono:
A BAHIA E A PRETERIÇÃO
Não há duvida que ella sente, que ella vê, que ella reconhece, que ella extranha, que ella a lastima, que ella a maldiz. Mas quem lh’a explicaria? E, se contra ella ainda é possível a reacção, quem lhe descobriria o seu segredo? Todos os dotes de que a prendou o Creador, ahi estão com ellas intactos, desenvolvidos, augmentados: na população, na industria, no ensino, na liberdade política, na expansão da cultura. Mas onde o seu antigo prestigio? Onde a sua culminância de outr’ora? Onde aquelle ascendente, de que, entre as suas irmãs, nenhuma se resentia, e que todas lhe acatavam? Onde a incógnita desta contradicção espantosa entre o seu valor da realidade e o seu valor de estima na política nacional? Por que não melhora ella, nem mesmo quando seu povo enriquece? Por que não se desassombram sequer as suas finanças, nem ainda quando as suas rendas avultam, quando as arcas do teshouro se enchem, quando os «deficits» se lhe substituem por saldos? Por que será que com o seu renascimento econômico há-de continuar em contraste a sua situação descendente no governo do paiz? Por que será que, nas alturas onde se dispões dos destinos do Brazil, ella se vai desgraduando todos os dias, ao passo que as suas antigas rivaes não cessam de ganhar na carreira ascensional? Estes graves problemas, quem os porá em equação pratica, e os acabará de resolver, restituindo o Estado da Bahia, neste regimen, ao lugar, à consideração, à dignidade, que, no regimen anterior, nunca cessou de ter a Província da Bahia?12
12 Rui Barbosa. “Discurso”. In LEMOS BRITTO, José Gabriel de & CATHARINO, Alberto Moraes Martins (orgs.),
Renascimento Cívico. O Batalhão de Atiradores Bahianos na Parada Nacional de 7 de Setembro. Bahia, Typ. Bahiana (Cincinnato Melchiades), 1917, p. 43-47. Um ano depois, Rui Barbosa descreveu mais uma vez os infortúnios da Bahia, empregando o mesmo tom na linguagem: “Tal a nossa Bahia de Hoje, a amada Bahia nossa, cujo nome não me aflora aos labios, sem que o coração me reveja lágrimas de saudade e ternura, a heroica titânica de José Bonifacio, em cujo regaço a natureza accumulou thesoiros de uma opulência incomparável entre as suas irmãs; sub-solo único na pompa dos seus veios, betas, jazidas e vieiros em quase todos os ramos da producção mineral, gente de escol no talento, na palavra, no brio; mas, por sobre todas essas prendas, a tristeza, o pesadume, o desalento de um valor que não conhece a si
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 161
Não pretendo avançar em algumas das respostas que Rui nos deu para as causas
e os meios de superação do crítico momento, visto que serão objeto de análise no
próximo capítulo, mas não posso deixar de mencionar que elas (as respostas) passavam
pela política. Algo que quero enfatizar é a imensa similaridade existente nos argumentos
de Rui Barbosa e Lemos Britto, os quais expõem o pronunciado desencanto das elites
baianas com as posições que elas ocupavam no novo regime. Desde homens de grande
projeção nacional, como Rui, que desejou se tornar presidente (o posto máximo da
República), passando por sujeitos como Britto (personagem que teve expressivo
reconhecimento profissional, como professor de Direito e criminologista, porém nada
que se comparasse a Rui), por outros de média envergadura, que não desejavam
chegar tão alto, mas que, de certo, almejavam mais do que lhes eram oferecidos, por
indivíduos reconhecidos sobretudo no plano local, até figuras quase anônimas ― todos
compartilhavam a dor do “ocaso” vivenciado pela Bahia no período republicano e que se
tornou muito mais evidente à sensibilidade dos mesmos, especialmente, a partir da
década de 1910. Somente a respeito das camadas populares não saberia emitir
qualquer opinião a respeito do que pensavam do “declínio” baiano, se é que sentiram a
ocorrência de algo do tipo.
“Ódio” contra a Bahia
A idéia do desprestígio incomodava, muito profundamente, ao médico, professor,
historiador e político Braz do Amaral, para quem chegava a ocorrer “um ódio, mais ou
menos disfarçado, porém, persistente, [...] contra a Bahia neste paiz”. Mas, Amaral não
explicitou com clareza os promotores do ódio, e, quando o fez, terminou por imputá-lo
aos seus próprios conterrâneos. Se existiram muitos baianos dispostos a anunciar as
virtudes locais, houve, também, se for lhe dado crédito, outros tantos que não perdiam
a oportunidade de deprimi-la. Taxou esses detratores como “inimigos”, que agiam
“justamente como [...] filhos desnaturados que despresam e maltratam as mães”. Para
que não parecesse leviano, ele procurou apresentar suas evidências:
Para a prova de que não estou a accusar falsamente, veja-se como refere esta vileza humana uma carta que acabo de receber de S. Paulo, escripta em 13 deste mez por um homem de muito mérito, que não é bahiano e ao qual eu pedi um favor para ajudar o monumento ao nosso glorioso Castro Alves. “De referência à sua anterior, [...] cumpre-nos informar-lhe que fomos menos felizes na obtenção de pessoas, mesmo patrícias, que se quizessem
mesmo, como esse fidalgos de antigas linhagens decaídas, em que a espada ainda tinia debaixo da capa, mas já não sabia saltar da bainha ao rosto dos atrevidos, nem conter os desdens da nobreza de aventureiros”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 9, ago./1918.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 162
interessar pela obra do nosso grande vate; os bahianos, chegados ao sul, em via de regra, esquecem até as amizades, e, o que é mais, quase sempre com o intuito lamentável de mostrarem-se desprendidos da terra que lhes deu vida, saber, talento e audácia, fazem uma campanha surda e sem tréguas para desprestigiar a 'mulata velha'. Afora Oscar Freire, cujo exemplo imito neste particular e poucos outros e de menos prestigio, estamos aqui sem elementos para cooperar na reconquista do antigo nome dessa terra sua de berço e minha de coração”.13
As provas trazidas por Amaral não me parecem tão contundentes quanto
pretendiam ser, pois não se tratam de depoimentos diretos dos detratores,
manifestando o teor exato da depreciação que promoviam, visto que todas
apresentadas tem por base depoimento de terceiros. Mas não será por isso que irei
invalidá-las totalmente. De qualquer modo, posso acrescentar mais uma declaração que
nos fornece, como uma tentativa de reforçar seu argumento. Desta feita, ele comenta a
respeito de alguns “infelizes” baianos residentes no Rio:
Leia-se ainda esta outra prova de como são os bahianos degenerados os peiores detractores de sua terra, fóra daqui. “Rio. 17 de Agosto de 1922. Presado Mestre e amigo Dr. Braz do Amaral. Li com grande satisfação o seu excellente discurso proferido em Junho na sessão do Conselho da Villa de São Francisco. É um brado de defesa pela Bahia gloriosa e faminta, espoliada e sacrificada pela maldade de seus inimigos, a maioria dos quaes constitue a madraçaria dos nossos próprios conterrâneos, contentes de maldizel-a, à falta de melhor occupação”. Esta missiva é firmada por distincto advogado, muito conhecido aqui. Foram sempre os renegados objecto do asco de todos aquelles de quem elles se aproximam. Não se desmente aqui a regra, pois, nos próprios termos das cartas acima, se percebe a repugnância que inspiram estes infelizes, filhos da Bahia que, desviados de um dos mais nobres sentimentos humanos, como é o respeito e amor pelo torrão natal, o andam a vilipenoiar [sic] e envergonhar por ahi fora.14
A observação de Amaral, sobre os detratores, foi anotada em texto datado de
1922. Nove anos depois, em 1931, Wanderley Pinho também se referiu à prática de
certos conterrâneos de maldizer a própria terra, e lamentou o fato de que “ao em vez
de arautos de virtudes e excellencias temos o masochismo de exagerar males e, o que é
peior para o nosso orgulho, nos submettermos expontanea e volutariamente a
comparações humilhantes quase sempre inexatas”. Daí manifestou a sua contrariedade:
“Quantas vezes, no Rio, me inflamava a justa rebeldia contra patricios nossos que
fallavam com pessimismo irritado ou desdem diminuidor de cousas, factos e homens da
13 Idem, ibidem. Oscar Freire, citado na transcrição, é o famoso médico baiano formado pela Faculdade de
Medicina da Bahia, que criou e dirigiu o Instituto de Medicina Legal de São Paulo, em 1918, depois designado Instituto Oscar Freire. Nascido em Salvador, no ano de 1882, morreu jovem, aos quarenta (ou quarenta e um) anos, em 1923.
14 Idem, ibidem.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 163
Bahia”? Na esperança de acabar com essa conduta, considerada prejudicial à imagem
do Estado, indicou a solução para corrigir o problema: o estímulo do bairrismo entre os
baianos — recomendação que soa esdruxulamente nos meus ouvidos, como se os
baianos já não fossem suficientemente bairristas, haja vista tudo que foi inicialmente
exposto neste trabalho. Escreveu Pinho: “sejamos bairristas, tenhamos mais orgulho da
nossa terra, e mais vaidade de nossa gente, sejamos mais enérgicos em reagir contra
os que nos maldizem ou nos não estimam”. E aparentando plena consciência dos
dissabores do tempo em que vivia, como se subentende nas suas palavras, sugeria que
“se não tirarmos no presente motivos de envaidecimento maior, relancemo-lhe a
história” — desculpem a quase repetição, mas ao fazer tal proposição ficava parecendo
que os baianos pouco recorriam às tradições passadas para jactarem-se, quando toda a
primeira parte do trabalho demonstra o vigor dos discursos que se remetiam aos
momentos tidos como gloriosos da história local.15
Braz do Amaral apontou, às vezes explicitamente, às vezes nas entrelinhas de
algumas das suas falas, no que consistia as manifestações do ódio, que vinham de
outras partes do país. O tratamento recebido do governo federal, que, segundo dizia,
não dava atenção à necessidade do Estado, era uma das formas que assumia. Como
pretendo discutir cuidadosamente o problema das relações de poder e a política
nacional no próximo capítulo, deixarei para o momento oportuno a aprofundamento
desse ponto. Examinemos, por ora, exemplos de outro tipo. Nesse sentido, talvez seja
possível localizar uma marca do tal “ódio” contra a Bahia num comentário feito por
Oliveira Vianna a respeito dos políticos baianos durante o regime monárquico ―
comentário este considerado injurioso por Braz do Amaral. No livro Populações
Meridionaes do Brasil, Vianna atribuiu “a influencia dos bahianos, no tempo do imperio,
à subserviência dos seus homens públicos para com o soberano”. Ver os compatrícios
do passado caracterizados de subservientes repercutiu como insulto à honra e à
sensibilidade de Amaral — um bairrista, muito bem ajustado aos moldes pregados por
Wanderley Pinho quase uma década depois do episódio ora comentado —, que
prontamente procurou defendê-los da acusação:
Além de nunca ter sido a subserviência, em tempo algum, característica dos bahianos e de não ser exacta a referencia, porque os Srs. França, Saraiva e muitos outros jamais se sujeitaram a vontades imperiaes, manda a justiça que se não insinue pejorativamente para os filhos de um território o que há de mau no comportamento de alguns delles. Tal a razão do período acima, porque não vamos lançar sobre o caracter dos paulistas o que há de irregular nos desejos da Domitilia, nem a razão do querer do Sr. Adolpho Gordo. A Bahia [...] não pode deixar aqui a presente resposta.16
15 PINHO, José Wanderley de Araújo. “Discurso [...] proferido na sessão magna de 3 de maio de 1931”.
Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 57, p. 445-493, 1931, p. 491. 16 AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre Finanças da Bahia..., p. 21.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 164
Braz do Amaral elaborou a defesa dos políticos imperiais baianos num artigo que
abordava sobre a censura à imprensa no ano do Centenário da Independência,
comemorado sob estado de sítio. Para tanto, aproveitou para dar uma pequena
alfinetada nos paulistas, que tinham entre os seus representantes o referido senador
Adolpho Gordo, autor de uma proposta de restrições à liberdade de imprensa. Do
mesmo modo, mas se remetendo a um fato histórico, relembrou quando a paulista Sra.
Domitilia de Castro, a marquesa de Santos, que privava de relações de intimidade com
o Imperador D. Pedro I, solicitou-lhe a participação de seus (dela) conterrâneos
provinciais nas forças organizadas para dissolver a Constituinte, no ano de 1823.
Argumentou, porém, em relação a ambos os casos que não se devia associar aos
paulistas em geral ações e idéias passíveis de condenação quando elas foram originadas
de apenas alguns deles. Para ele, ainda que paulistas tivessem co-participação nos dois
lamentáveis episódios, não se poderia jamais acusar a todos de pregarem contra a
liberdade ou demonstrarem subserviência aos mandatários do poder. Atualizando a
discussão em torno do modo de exercício da hegemonia política, formulou a seguinte
conclusão: “ninguém com imparcialidade e justiça, será capaz de affirmar que tem sido
pela flexibilidade de caracter que illustres paulistas e mineiros tem governado, quase
que exclusivamente, estes 33 annos de republica”! Se não era o caso de paulistas e
mineiros, novos detentores do poder, não fora o caso dos baianos, que antes
dominaram.17
Ainda no que tange a este possível “ódio” contra a Bahia no cenário nacional, não
me parece apropriado ratificá-lo nos mesmos termos de Amaral. Mas não se pode,
também, desacreditar do fato de que certos preconceitos, de que certas manifestações
de animosidade tenham se desenvolvido. Os exemplos citados comprovam de algum
modo tais ocorrências. O fortalecimento de sentimentos regionalistas, impulsionado
sobretudo pela disputa da hegemonia política, cultural e ideológica no seio da pátria,
fomentou a manifestação de atitudes e o engendramento de representações
preconceituosas de uma para com outra parte da nação.
No que concerne a esta questão, tenho um bom exemplo da resistência à Bahia e
aos baianos. Numa seção designa “Paginas femininas”, da revista Bahia Ilustrada,
mantida sob a responsabilidade de uma senhora baiana, segundo as informações da
própria revista, que assinava apenas como Y., a autora comentou com indignação o
17 Idem, ibidem, p. 21-22. Segundo CARONE, Edgar. A República Velha II: evolução política. São Paulo, Difel,
1977, p. 371, o senador paulista Adolfo Gordo elaborou “diversas leis de repressão ao movimento operário (1907, 1915, 1915)”, e, em relação ao caso comentado por Braz do Amaral, ele foi o responsável por encaminhar ao Senado a Lei de Imprensa, que, entre outros, trazia um artigo obrigando à assinatura pelo autor das matérias críticas, doutrinárias ou polêmicas publicadas nos órgãos da imprensa, o que punha fim ao anonimato.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 165
estribilho de uma “cantiga” que teria sido a mais repetida no carnaval carioca no ano de
1918. Talvez seus versos ― que diziam: “a Bahia é boa terra / ella lá e eu aqui...” ―
fossem uma forma humorada de indicar algo nível de rejeição aos baianos, embora não
parecessem exprimir exclusivamente isso. Aos ouvidos da nossa misteriosa senhora eles
soaram como uma afronta, consistindo numa asserção que muito feria aos sentimentos
de um verdadeiro baiano. Passadas algumas semanas dos festejos, ela comentou na
revista:
A Avenida andou cheia dessa affirmação mentirosa... E ainda agora, nas ruas dos bairros quietos, passam vozes repetindo:
A Bahia é boa terra, Ella lá e eu aqui...
Um bahiano não cantaria assim... Longe da boa terra, elle parece que está ao desamparo. A terra é boa, mas é melhor lá, no pequeno ponto onde nasceu [...]. A terra é boa para os que a pisaram em creança; para os que aprenderam a sentir ao lado della, nas claras montanhas da adolescência; para os que, ao lado della, lutaram e sofreram, sem a abandonar, amando-a cada vez mais, de um amor profundo e ingênuo, como o das arvores; para os que têm, guardados por ella, uns mortos nunca esquecidos...
A Bahia é boa terra,
e quem nos déra que todas as terras fossem boas como a Bahia!18
Como se lê nos últimos trechos, a Sra. Y. procurou fazer um manifesto de amor
à Bahia, desmentindo incisivamente as “afirmações mentirosas” dos versos da cantiga
carnavalesca.
Os versos sugerem duas conotações: no primeiro, insinua-se a idéia de que a
Bahia seria terra boa para os baianos somente à distância, visto que muitos, após
fixarem residência em outros lugares, não mais retornaram para ela, configurando-se,
aí, uma ironia em relação ao amor que teriam a sua própria terra, quando pareciam
preferir manter-se em outros lugares; no segundo, a Bahia, representada pela sua
gente, seria bem vista se ela se conformasse em ficar no seu próprio lugar, ou seja,
criticava-se o grande número de baianos residentes no Rio, e que, possivelmente,
ocupavam o espaço que deveriam ser dos cariocas. O interessante foi que vinte e nove
anos depois, exatamente em 1947, no Livro de Horas, Afrânio Peixoto continuava
ressentindo dos versos, que ele apresentou como se fosse uma quadra:
A Bahia é boa terra Como outra mais não há, Eu gosto dela de longe Eu aqui e ela lá...
18 Y. “Páginas femininas”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 04, mar./1918.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 166
Peixoto foi um desses baianos que, conquanto tenha desenvolvido toda a sua
carreira profissional e fixado residência no Rio de Janeiro, vivia professando grande
amor ao torrão natal, diferentemente, portanto, daqueles acusados por Braz de Amaral
de difamá-la. Assim, para ele, os versos expressavam “má vontade”, e, mais, eram
considerados “calúnia, de despeitados”. Declarou, ainda, que “vêm os baianos vencerem
em terra alheia, sem deixarem de louvar a própria”... Ao meu ver, tal afirmação
confirma o primeiro significado que pode ser associado aos versos. Mas não se
encerram aí as suas considerações, à inevitável indagação de saírem da Bahia se a
queriam tão bem, ele saiu com uma preciosidade, explicando que “lá todos são baianos
e há dificuldade de vantagem por isso mesmo: fora da Bahia, vitória de baiano é...
‘canja’! Daí o refrém que o despeito repete: ‘Eu aqui e ela lá’”... [Fechadas as aspas,
esclareço que as reticências são um empréstimo por mim tomado ao próprio Peixoto,
que as utiliza no texto original]. A explicação do médico e literato, concluída com as
sugestivas reticências, explicitam o segundo sentido deles como um todo, qual seja, a
que diz respeito à concorrência dos baianos instalados em outros Estados pela ocupação
de lugares.19
Ainda que tenha apresentado aqui tais exemplos, não se deve ignorar o reverso
da questão: se a Bahia foi vítima do preconceito de uns, houve alguns dos seus filhos
que estiveram contaminados por este costume. O próprio Amaral, nutrido por forte
ressentimento contra aqueles que julgava em parte responsáveis pelos males do seu
Estado natal, não escapou à lógicas das manifestações preconceituosas. De início, como
bairrista empedernido que era, fez questão de anunciar claramente sua identidade
regional: “Nasci baiano! Colono de paulista e carioca é que não posso ser”.20 Depois,
embora falasse em ódio contra a Bahia, ele mesmo demonstrou forte rancor em relação
a outras unidades hegemônicas da Federação. Para exemplificar tal atitude, cito uma
ocasião em que comparou a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, às
“decahidas de rua”.21 Ainda que fizesse tal comparação num impulso de desforra, estava
promovendo na prática algo que criticava, ou seja, estava pronunciando um tipo de
“ódio”.
Os teóricos dos estudos culturais dedicados ao problema da identidade coletiva,
em especial no que tange ao nacionalismo, explicam muito bem como ela é construída
com base no estabelecimento de oposições e na fixação de diferenças, caracterizando-
se por ser um tipo de ação que, no comum, não costuma respeitar e reconhecer
19 Ver PEIXOTO, Afrânio. Livro de Horas. Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1947, p. 304-305. 20 ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de, op. cit., p. 29. 21 Idem, ibidem, p. 29. Lembro que no capítulo 1, sobre o papel da Bahia na história nacional, transcrevi
trechos de Braz do Amaral nos quais ele fez críticas aos papéis desempenhados por Rio de Janeiro e São Paulo no processo da independência nacional, cujo tom refletia uma ironia mordaz, revelando certo desprezo por aqueles lugares, se não completamente, pois chegou a elogiar o progresso paulista, pelo menos em relação a alguns aspectos.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 167
qualquer sinal do que se constitua em alteridade.22 A complexidade da invenção da
nacionalidade no Brasil, país formado por uma diversidade de regiões, histórica e
culturalmente bastante distintas, punha no primeiro plano um embate de versões da
nação que freqüentemente se chocavam. Na república, que introduziu um regime de
governo descentralizado, a busca de maior representação ou do controle do poder
federal, bem como a intenção em assegurar proeminência ideológica e cultural
colocaram em campos opostos um punhado de elites regionais, com interesses
nitidamente conflitantes.
Essas elites possuíam históricos distintos de relações com o poder (no plano
político, ideológico e cultural): algumas tinham antecedentes de exercício da hegemonia
e estavam ansiosas por recuperá-la, como as baianas e pernambucanas; umas lutavam
para manter certa preponderância, pelo menos enquanto centro político e cultural,
situação daquelas do Rio de Janeiro; outras buscavam confirmar, solidificar e expandir a
recente a ascensão, caso típico das paulistas; havia ainda aquelas que buscavam galgá-
la de qualquer modo, reivindicando espaço e abrindo brechas no poder, condição das
elites gaúchas. Não esqueçamos das importantes elites mineiras, que, também,
participavam do jogo com destaque, porém de difícil enquadramento quanto às
caracterizações feitas há pouco, pois podiam ser incluídas em algumas delas.23
Imprimir impressões negativas acerca de outros Estados, ao mesmo tempo em
que se reforçava qualidades positivas em si próprios, era uma prática comum. Rio de
Janeiro e São Paulo sustentaram um tipo de rivalidade que exemplifica esta tendência.
Segmentos das elites paulistas, procurando firmar São Paulo como cabeça, alma e
modelo da nação, empreenderam uma campanha insistente de desvalorização dos
cariocas e do Rio de Janeiro, onde estava instalada a capital do país e que era o nosso
principal pólo político e cultural, além de cumprir importante papel econômico. São
Paulo, por um lado, apresentava-se como lugar moderno e progressista, dotado de uma
sociedade organizada e industrializada, firmemente assentado na ética do trabalho
produtivo e disciplinado, além de influenciado pela contribuição positiva do imigrante
italiano, constituindo-se por tudo isso no melhor espelho para a nação. Por outro lado,
esforçava-se para caracterizar o Rio de Janeiro como a sua antítese, taxando-o de lugar
decadente e ultrapassado, com uma economia parasitária, uma sociedade
22 Ver, HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença:
a perspectiva dos estudos culturais. Petropólis, Editora Vozes, 2000, p. 109-110; e, também, WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petropólis, Editora Vozes, 2000, p. 39-41.
23 Ver LOVE, Joseph. A República Brasileira: federalismo e regionalismo (1889-1937). In MOTA, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta: a experiência brasileira (1500-2000): a grande transação. São Paulo, Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 123-160; e SOUZA, Maria do Carmo Campello de. O processo político-partidário na Primeira República. In MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1987, p. 162-226.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 168
desorganizada, um povo indisciplinado e irresponsável, marcado pela forte presença de
negros e portugueses; enfim, descrevia-o como portador dos valores da anti-nação.24
Outro fato comum foi o desenvolvimento de percepções depreciativas em relação
aos Estados do Norte, e isto não somente por paulistas, mas pelos sulistas em geral.
Tais Estados foram comumente definidos como inferiores do ponto de vista econômico,
material, cultural e racial; e se tornaram, por isso, marcados por uma série de
estereótipos, que os colocavam como símbolo e espaço do atraso nacional.25 Aliás, a
grande atenção que as questões raciais mereceram na primeira fase da república
brasileira são reveladores dos preconceitos desenvolvidos em relação a esta parte do
país, que tinham uma população predominantemente mestiçada, conseqüência das
abundantes interseções raciais entre brancos, índios e negros que lhe fora peculiar. Este
fenômeno, em certas opiniões da época, teria dado origem a um povo degenerado,
muito freqüentemente apontado como uma das principais causas dos diversos males da
nação. Nesse sentido, o Norte como um todo ― e lembro que a noção de Nordeste
estava ainda sendo desenvolvida ― era tratado como um problema que impunha uma
resolução. O Sul do país, ao receber contínuas ondas de imigrantes brancos europeus,
impregnados dos valores civilizados, estaria conseguindo avançar nos caminhos do
progresso, libertando-se, com isso, dos estigmas de atraso, em todos os sentidos, que
uma população étnica e racialmente inferior deixava.
Abrindo um parêntese, mas prosseguindo no rastro desta discussão sobre as
idéias preconceituosas de uma região em relação a outra do país, acho que levantar os
discursos detratores formulados contra a Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em
Pernambuco, ou em outros lugares quaisquer, durante a época republicana, seria um
interessante trabalho. Ele ajudaria a compreender melhor os discursos sobre as
grandezas e mesmo sobre os infortúnios. Isso porque os discursos sobre as grandezas
podem ter sido tanto uma tentativa de responder às elites dos Estados, então,
hegemônicos, que buscavam impor suas concepções particulares da identidade
nacional, quanto uma reação aos discursos que detratavam a Bahia — ou, talvez, as
duas coisas ao mesmo tempo. Lizir Arcanjo, por exemplo, demonstra que no Império,
longe daqueles reconhecimentos e unânimes concordâncias em torno da hegemonia
política dos baianos, idéias tão propaladas nos discursos das elites, a Bahia foi muitas
vezes criticada nos jornais da Corte e pernambucanos. Críticas essas que recorreriam a
imagens que tinham a nítida intenção de diminuí-la e desprestigiá-la, como foram o
caso daquelas que a definia como a “terra do vatapá”, referindo-se ao que era
24 MOTTA, Marly Silva da, op. cit., p. 94-102. 25 Ver ALBUQUERQUE, Durval Muniz de, op. cit., p. 40-47.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 169
considerado, na época, algo profundamente estigmatizante para uma elite que se queria
branca: a influência africana.26
Se este trabalho puder ser o propositor de outros estudos, fico imaginando a
estimulante pesquisa que o problema do “preconceito” (ou não) contra a Bahia daria,
buscando-se na imprensa de outros Estados as representações dos baianos e sua terra.
“Mulata velha”: a renegação de um apelido
De certo, os efeitos das impressões negativas relacionadas ao aspecto étnico-
racial da população impactaram a Bahia. Por isso, talvez, a designação de “mulata
velha”, mais uma a ser incluída entre os “títulos” recebidos, pudesse ser interpretada
enquanto um dos sinais de preconceitos ou das imagens depreciativas que se tentava
impingir ao Estado. Essa forma de referência foi mencionada numa daquelas cartas
citadas por Braz do Amaral para atestar o desamor dos próprios baianos pela terra
natal. Não saberia dizer o quanto foi difundido, que dimensão alcançou o seu uso, mas,
certamente, o mesmo não era desconhecido dos baianos. Não saberia informar,
também, qualquer coisa acerca das suas origens, se vinha de longa data, o que é
provável, ou se tinha uso recente; se foi criado na própria terra ou fora dela.27 O que
não me parece impossível é pensar que se evitava repetir o tal “apelido” ― modo como
o definiu Afrânio Peixoto ―, em razão dele carregar uma conotação inequivocamente
pejorativa. De certo, ele mexia com a auto-estima das elites, que se pretendiam
etnicamente brancas; ou quando fosse impossível renegar completamente alguma
evidência da cor africana, serem consideradas brancas no tocante aos valores de que
eram portadoras, pois não se ignora que se pretendiam européias e civilizadas. Logo,
era muito melhor repetir e reafirmar os sentidos e reforçar o uso dos títulos
verdadeiramente dignificantes, a exemplo de Atenas Brasileira e Rainha do Norte, do
que lembrar o apelido depreciativo de “mulata velha”.
Acredito que “mulata velha” foi, por tais questões, um rótulo muito pouco
empregado na escrita ― suspeito e suponho que foi mais freqüentemente utilizado nas
formas de expressão oral. Para ser preciso em minha apreciação, informo que recolhi
apenas três únicas e breves referências à mesma (ou talvez somente em tais
oportunidades tive a minha atenção despertada para ele, mas deve ter ocorrido nos
escritos da época outras menções ao termo, ainda que isso não se desse, acredito, com
profusão). A primeira delas, localiza-se nos já citado Braz do Amaral (em texto datado
de 1922), que, transcrevendo uma carta recebida de um amigo (reproduzida acima), fez 26 Ver ALVES, Lizir Arcanjo, op. cit., p. 291-330. 27 Não saberia discorrer sobre as origens da expressão “mulata velha”. Mas tenho a impressão de que ela se
originou no século XIX. Só com o aprofundamento da pesquisa em fontes para esclarecer sobre a questão.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 170
em relação à expressão o favor único de mencioná-la, não deixando registrada uma
opinião ou um juízo de valor claro e mínimo a seu respeito, sendo o acréscimo de aspas
o único detalhe perceptível.
A segunda referência se encontra numa matéria da Revista Cívica (editada em
1923), na qual se realiza uma pequena descrição do que seria a tal da “mulata velha”,
apresentada nesta publicação como uma representação de Salvador antes de iniciadas
as primeiras grandes obras de remodelação urbana que a cidade conhecera, as quais
transcorreram a partir de 1912, com a condução do governador Seabra e seu grupo.
Segundo o relato, “usava barangandan, de ouro ou prata, na cintura, torço de cassa
custosa na cabeça e ia à lavagem do Senhor do Bomfim com as pernas a amostra, pote
pintado e cheio de fitinhas, cantando e requebrando-se toda". A imagem formulada
correspondia à figura de uma típica afro-descendente baiana, com todos os seus jeitos e
trejeitos.28 Esta descrição lembrava uma daquelas fotos de cartão postal da época, que
buscavam ilustrar um pouco da gente baiana. Constituía uma imagem oposta a da
Atenas, que na sua forma descritiva feminina, assumia as características de uma mulher
branca e robusta. Com base no que foi exposto, e desde quando já se conhece um
pouco da mentalidade racista das elites da época, não se deve estranhar o fato de que a
designação de “mulata velha” não fosse bem vista.
Encontrei a terceira e última referência em Afrânio Peixoto, que manifestou
criticamente seu desgosto com o uso da expressão. É o próprio, por sinal, que aponta
os motivos para a sua reprovação. Embora breves, suas observações a respeito são
muitíssimo esclarecedoras:
Sei que é velho outro apelido, de que também não gosto: “mulata velha”... Velha ou mais velha, pela primazia, vá... mas por que mulata? Se os tem, gente assim, as outras terras do Brasil são acaso isentas? Mulatas novas ou mais novas.29
Tais comentários fazem parte de uma crônica do Livro de Horas, publicado em
1947, um pouco além, portanto, do período que tem sido privilegiado neste estudo, mas
a indicar a persistência de uma insatisfação. As objeções que fazia tanto à designação
de “mulata velha” quanto aos supracitados versos carnavalescos (“a Bahia é terra boa...
eu aqui e ela lá”) revelam a força com que os conteúdos simbólicos de ambos
continuavam ecoando anos depois. Mas voltando ao primeiro, era em relação ao termo
28 PIN, Alan. “Igrejinha d´Ajuda”. Revista Cívica, Bahia, nº 46-Bis, 2 de Julho de 1923. Permitam-me uma
observação, embora tenha mencionado apenas estas três únicas referências não quero afirmar que não se possa localizá-la em maior quantidade. Na busca de títulos e imagens que descrevessem a Bahia consultei um vasto número de revistas, livros e folhetos, alguns mais detidamente, outros mais rapidamente. Contudo não atentei para o uso da expressão “mulata velha”, além das três vezes mencionadas. Desconfio que jamais foi utilizada na mesma proporção dos títulos que causavam orgulho aos baianos, sendo, talvez, mais difundida na tradição oral.
29 PEIXOTO, Afrânio, Livro de Horas, p. 274.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 171
“mulata”, e não ao “velha”, que Peixoto exteriorizava descontentamento, e se
subentende o porquê: a palavra mulata atribuía à Bahia uma característica que as
elites, como salientei antes, esforçavam-se em encobrir. Peixoto estava certo em alegar
que “mulatas”, essas legítimas e indisfarçáveis descendentes do sangue africano,
muitas outras partes do país as possuíam, mas parecia não querer admitir que poucos
as tinham tão abundantemente quanto a Bahia, o que talvez justificasse a
correspondência das mesmas ao Estado. Não se deve estranhar a posição de Peixoto,
afinal, como médico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, dedicou-se
a um ramo que foi intensamente contaminado por idéias racistas, qual seja a Medicina
Legal, tornada uma especialidade prestigiada desde o final do século XIX, por conta dos
trabalhos desenvolvidos por Nina Rodrigues.30
Posso destacar algumas evidências da recusa em aceitar que se associasse muito
explicitamente a Bahia a uma imagem predominantemente negra, e, por extensão,
mesmo mulata. Em junho de 1921, a Bahia Ilustrada estampou, nas suas páginas, um
conjunto de três fotografias na qual figuravam negros, cada uma delas com o seguinte
título: “Lavandeira”; “Ganhadores africanos”; “Caboclo Bahiano”. Consistiam-se, de
fato, em cartões postais, elaborados por uma loja especializada em fotografia, como
uma espécie de registro do povo da terra. As fotos, colocadas uma ao lado da outra,
estavam (intercaladas) por uma das palavras que compôs a frase senguinte:
“propaganda indigna”. Logo abaixo, havia uma legenda em que se lia: “os typos com
que a photographia Lindermann representa a bahiana e os bahianos da TERRA DOS
NEGROS” (as maiúsculas foram utilizadas no original da revista). Os personagens
retratados eram figuras com aspecto simples, vestidos com roupas que lembravam a
herança africana e a extinta escravidão; eram típicos representantes dos segmentos
mais pobres da população (ver fig. 19). Sendo uma “propaganda indigna”, estimularam
uma resposta da parte dos responsáveis pela edição da revista:
Muitos têm sido os invejosos da grandeza da Bahia que, procurando amesquinhal-a, a pintam, com as cores mais negras, à vista de quem verdadeiramente a não conhece. Desse modo são numerosos os que ignoram as bellezas naturaes de nossa terra e os prodígios de assimilação ethnica. Centro de maravilhosos sentimentos pelo culto da tradição, da arte e da religião, a Bahia sempre floresceu, sempre se mostrou digna de seus destinos de antiga metrópole brasileira. Sua pujança nativa não tem limites. A natureza, alli, encantadora e opulenta, variegada e rica, deslumbra pelo milagre ambiente de suas pompas eternas. A raça reflecte o esplendor da natureza. É vêr os seus typos fortes, morenos, bellos, ou brancos, ou mesmo trigueiros, todos elles se aperfeiçoam cada vez mais, e demonstram em suas feições os reflexos luminosos da sympathia, da lisura, da sociabilidade e da intelligencia.
30 Sobre a Medicina Legal e Afrânio Peixoto, ver Corrêa, Mariza, op. cit.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 172
A educação requintou na perfeição dos costumes, Temos na Bahia uma sociedade elegantíssima e culta. As famílias sobressaem, na sociedade e nas letras, pelas virtudes do coração e pelas bellas qualidades do espírito. O elemento afro, que se teima em querer dar como um typo característico do povo bahiano, tem apenas, sem nenhum desdém, a significação, aliás inestimável, de um factor efficacissimo de colonização, factor de progredimento pelo trabalho. Sem esse elemento de primeira ordem, o Brasil, como outros paizes, não teriam, certamente, prosperado tanto. Assim como esses, outros elementos ethnicos entraram no caldeamento brasileiro, consubstanciaram-lhe as energias em actividades profícuas, e fizeram crescer vertiginosamente a população. [...] Por isso não podemos deixar de levantar protesto contra a maneira indigna de propaganda com que se pretende menosprezar o typo legitimo do bahiano. Nossa indignação é tanto maior e mais justa, quando vemos esses numerosos “Bilhetes Postaes”, com que a “Photographia Lindemann”, da própria Bahia, enxameia as papeplarias e livrarias, divulgando no Brasil e no estrangeiro os remanescentes africanos da terra do Salvador como figuras bahianas... Nesta pagina reproduzimos, aos olhos de nossa terra, estes três postaes da casa Lindemann... A intenção do propagandista não póde deixar de ser censurável. Essas photogravuras de sus lavra pretendem mostrar um profundo retrocessa [sic] para a Bahia, quando a verdade é que esse glorioso Estado é hoje um dos mais bellos e populosos de todo o paiz.31 [os grifos são meus]
Produzidos por um estabelecimento local, que deveria zelar pelo renome e cuidar
do que fosse, supostamente, a boa imagem da Bahia, os postais provocaram indignação
e censura ao seu conteúdo, além de um profundo descontentamento com a sua
divulgação (distribuição), porque tanto descaracterizava quanto ameaçava ferir a boa
reputação e as maravilhas das terras baianas. As imagens dos postais contrariavam,
contradiziam diversas representações tradicionais. A tentativa de associação, que soou,
ao mesmo tempo, como afronta e inveja das grandezas baianas, remete-nos
imediatamente à idéia de ódio aventada por Braz do Amaral.
As elites, definitivamente, não queriam ver exposta a face negra da nossa
formação étnica e social como símbolo e imagem legítimos do Estado. Até se admitia a
importância do segmento africano na história do país, haja vista terem sido um “factor
de progredimento pelo trabalho”. Mas ele, conforme se fazia questão de ressaltar, não
foi exclusivo nem foi aquele considerado preponderante, teria constituído apenas um
elemento dentre os outros que ajudaram a construir o Brasil. Deste modo, tê-lo
apontado como o “typo característico do bahiano” só podia se configurar uma afronta à
senbilidade e à identidade branca e européia dos homens mais ilustrados da terra.
Embora se rejeitasse a representação africana, não se pode negar que a Bahia
Ilustrada preencheu suas páginas com a fotografia de autênticos afro-descendentes
baianos, que, no entanto, “não eram” exatamente tratados como negros, apareciam
sempre travestidos de peças oriundas do vestuário europeu, sendo, ainda, na maior
31 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 39, jun./1921.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 173
parte, homens embebidos de elementos da cultura branca européia.32 Theodoro
Sampaio, por exemplo, foi retratado diversas vezes nas páginas da revista, assim como
Manoel Querino e Affonso Ruy ― todos eles personagens citados ao longo deste
trabalho. Além destes, podem ser mencionados o conhecido médico Juliano Moreira, o
jornalista Durval Lima e Manuel Augusto, esse último reputado o maior pianista baiano
pelo próprio periódico. Também, alguns anônimos, como o chefe de restaurante Moisés,
uma personagem identificada como a preta da barca, e umas ilustrações com “tipos
primitivos”, apareceram nas páginas da revista. Devo salientar, no entanto, que estes
registros foram muito ocasionais, se compararmos com o grande número de imagens
estampadas nela. O evidente era que se evitava tomar os negros como um padrão do
povo baiano, esquivam-se de identificar ao Estado a presença deste segmento, tal como
argumentou Afrânio Peixoto na crítica ao “apelido” de “mulata velha”.33
Um símbolo para a Bahia
Se atentarmos para algumas propostas de representação da Bahia, elaboradas
um pouco antes dos fatos relativos aos cartões postais, teremos muito mais claro quais
eram as imagens valorizadas na época. Para compreendê-las, é necessário discutir os
desdobramentos de um episódio que teve início em janeiro de 1919, quando foi
endereçada ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia uma carta assinada pelo
arquiteto Roberto Etzel solicitando ao presidente da instituição, o sr. Antonio Carneiro
da Rocha, esclarecimentos a respeito do símbolo da Bahia. O autor da correspondência
pretendia concorrer com um projeto próprio à construção do monumento comemorativo
dos cem anos da independência brasileira, que seria erguido no parque do Ipiranga,
marco histórico da emancipação política, na cidade de São Paulo. Ele desejava colocar
na base do mesmo algo que simbolizasse cada um dos Estados da federação. São Paulo
já se fazia representado, havia muito tempo, pelo personagem do bandeirante, e o Rio
32 Lembro-me da letra de uma música, assinada por Caetano Veloso, incluída em álbum datado de 1992.
Chama-se ”Haiti”, na qual é mapeado, para um período mais recente, o caldeamento étnico-racial baiano, mais precisamente de Salvador, e as sutis formas sob a qual ele se expressa: entre brancos e negros, os “quase” brancos ou negros, a depender da posição de que se olha. Os negros baianos apresentados nas páginas da revista Bahia Ilustrada eram, quando muito, “quase negros”, preferencialmente, eram “quase brancos”.
33 Para os registros fotográficos de negros e mestiços, ver a Bahia Ilustrada, nºs 03, 08, 10, 13, 14, 17, 22-23, 37, 39 e, ainda, o nº 01 da segunda fase. No tocante às questões raciais, AZEVEDO, Thales de. As elites de cor numa cidade brasileira: um estudo de ascensão social & classe sociais e grupos de prestígio. Salvador, EGBa/EdUFBA, 1996, explorava bem as acomodações e as tensões sociais existentes por conta da convivência entre brancos, negros e todas as gamas de mestiços. Quanto a um certo tipo de tratamento dedicado aos negros pelos órgãos de imprensa na Bahia, sobretudo os jornais, ver o trabalho de REIS, Meire Lucia Alves dos. A cor da notícia: discursos sobre o negro na imprensa baiana (1888-1937). Salvador, 2000. Dissertação ( Mestrado em História) — FFCH, UFBA, 2000, que, mesmo demonstrando a existências de alguns discursos contra a discriminação racial, ressalta o predomínio na formulação de idéias preconceituosas ligadas aos negros e aos mais diversos aspectos que os lembrassem. Interessante para esclarecer a difícil relação das elites baianas para com os remanescentes africanos é o trabalho de BACELAR, Jéferson. A hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro, Pallas, 2001, especialmente o capítulo “Os últimos africanos em Salvador”, p. 17-39.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 174
Grande do Sul pela figura do gaúcho, como bem lembrou o próprio arquiteto. Imagens
estas que continuam, nos nossos dias, associadas aos referidos Estados. A Bahia
parecia não ter à época nenhuma imagem definidora da sua identidade, que, ao mesmo
tempo, fosse considerada positiva e estivesse fixada no imaginário coletivo nacional
como um símbolo do Estado.
Diante do impasse, foi solicitado aos sócios do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia que oferecessem sugestões de símbolos, dentre os quais três se propuseram a
formulá-las. Os resultados dos debates em torno da questão ficaram registrados no
parecer designado “A figura symbolica da Bahia”, assinado por Teodoro Sampaio, Pirajá
da Silva e Acácio de Campos França, integrantes da comissão designada para elaborar
parecer em torno das propostas apresentadas.34
A primeira idéia analisada foi da autoria de Eduardo Augusto Camará, que,
inspirado nos cultuados símbolos populares do Dois de Julho (a data da Independência
da Bahia), propôs o “typo caboclo”, ou seja, “o indio das selvas bahianas, [...], [que]
representa[va] a synthese de uma reivindicação regional”. A justificativa para tal
escolha se baseava nos fatos históricos das lutas travadas na então província, sendo o
caboclo considerado o elemento étnico que “personificou o expulsar do aventureiro
audaz” (o dominador português).
A segunda proposta veio do nosso já conhecido Silio Boccanera Junior, que
indicou por símbolo “uma indigena christianizada, semi-nua e genuflexa, aconchegando
ao seio uma cruz”. Esta sugestão nos remete de imediato para a famosa índia Catarina
Paraguaçu, como, aliás, admitia-se no próprio parecer da comissão julgadora. Tratava-
se, portanto, de reconhecer naquela personagem mítica e histórica a função simbólica
legítima para representar o Estado ― ela que foi, certa vez, apontada como a “mãe do
Brasil”, uma personagem autóctone convertida ao catolicismo, casada com o português
Diogo Álvares, o Caramuru, e lembrada como a responsável pelo erguimento de um dos
primeiros templos católicos em Salvador.
Nestes dois primeiros casos, enfatizava-se uma possível identidade indígena,
assinalando-se a mestiçagem em uma das situações, como transparecia na figura do
caboclo, e um tipo mais puro na outra, mas que, ao aludir à índia Catarina Paraguaçu,
terminava por colocar em primeiro plano a fundadora da raça de mestiços, provenientes
do cruzamento dos sangues nativo e português.
No parecer elaborado, a comissão julgadora das propostas não considerou
adequadas as idéias apresentadas por Câmara e Boccanera Junior. Segundo os 34 Sobre a solicitação de Etzel, ver SAMPAIO, Theodoro, SILVA, Pirajá da e FRANÇA, A. de Campos. “A figura
symbolica da Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 36, mar./1921. Toda a abordagem a ser desenvolvida nas próximas páginas, sobre as propostas encaminhadas e os pareceres em torno delas, estará baseada totalmente na fonte aqui citada.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 175
argumentos da mesma, já vinha “de antiga a clássica representação do Brasil, própria
ou impropriamente, pelo typo caboclo, não, porem especialmente a caracterizar a
Bahia”, o que desfazia as pretensões do primeiro. Quanto à índia, viram nela “um factor
de vulto na formação de nosso povo”, porém não a consideravam “caracteristica da
Bahia, onde, aliás, o elemento indigena não prepondera”. Para os avaliadores, “outros,
bem conhecidos, são os fatores prepoderantes”, os quais no transcorrer do documento
são identificados com os brancos europeus, mais precisamente, os portugueses.
Resta-nos, agora, observar a última das três propostas. O terceiro sócio,
Descartes de Magalhães, sugeriu representar a Bahia “pela ‘heroina dos seios titanicos’
ou [seja] pela Athenas Brasileira”. Esta era uma espécie de simbologia já tornada
clássica, mas, ao que parece, ainda não pensada nos seus detalhes enquanto uma
figura com traços físicos humanos, ou noutros termos, enquanto uma personagem ― no
máximo, ficava-se na vaga idéia da “heroína dos seios titânicos”. A figura simbólica
aparecia descrita como sendo uma guerreira a portar “couraça, capacete, escudo e
lança, [e com] o collo farto, os braços vigorosos, qual Minerva (Athené) que, sendo a
deusa grega da sabedoria, das sciencias e das artes, ostenta com a belleza de suas
formas soberanas um porte altivo, arrogante e majestoso de luctadora invicta”.
Esta representação foi mais facilmente admitida, mas a comissão apresentou
restrições em relação a esta figura, baseando-se em argumentos que assinalavam a
falta de elementos que a nacionalizasse, tornando-a menos provida das suas formas
gregas. Mas já afirmei, houve, de qualquer modo, um certo reconhecimento da sua
pertinência. Assumindo as prerrogativas recebidas de formalizar uma proposta simbólica
final em nome do IGHBA, a mesma comissão promoveu algumas alterações na proposta
da Atenas Brasileira, as quais buscaram adaptá-la ao que se pensava ser uma
expressão mais verdadeira da realidade baiana. Desta forma, incorporaram-lhe uma
feição branca européia, mas de características portuguesas, e um aspecto de mãe
vigorosa; adicionaram-lhe, ainda, certos emblemas da guerreira e alguns sinais, em sua
volta, que pretendiam se referir ao Estado. O símbolo da Bahia recebeu, na sua forma
final, a seguinte descrição:
Pela raça e por esse passado, que já vem de quatro seculos, essa estatua modelar-se-ia pela figura de uma mulher robusta, collo farto, seios tumidos, braços vigorosos, roupagem leve a envolver-lhe o tronco. É a heroina dos seios titanicos a que se dá attitude de uma mãe creadora, [...] a mão esquerda apoiando o seio nutriz e, agora a complementar, a direita estendida à guiza de quem protege a prole, lembrando assim a funcção da Bahia na História [...]. A completar esta figura symbolica e porque a Bahia era a força e o centro da resistencia naquelle periodo inicial, dê-se-lhe, à estatua, uma meia couraça sobre a roupagem leve e se lhe encoste ao quadril um escudo, onde na parte superior se figure em relevo o emblema da cidade do Salvador com o distico – sic illa ad arcam reversa est, e na parte inferior,
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 176
se denhe o Monte Paschoal, representando a primeira terra avistada do nosso paiz. No chão, a seus pés, um feixe de canna de assucar significará a riqueza agricola do solo bahiano.35
A historiadora Wlamyra Albuquerque, também, discutiu o parecer sobre “A figura
simbólica da Bahia”. Contudo ela tende a enxergar na imagem da Atenas a
representação da República, ou seja, a figura feminina de Marienne, originada do
imaginário francês, tal como é discutida por José Murilo de Carvalho, em A formação
das almas: o imaginário da República no Brasil, em que a referida personagem é
associada à propaganda positivista. Não se pode dizer que para o contexto abordado
seria de todo impertinente estabelecer as conexões levantadas pela autora ― e sou
mesmo capaz de acreditar que, para a descrição da imagem do símbolo baiano, tenham
se apropriado de alguns elementos dela. Mas sua abordagem ignora que a figura da
Atenas Brasileira era bem mais antiga do que ela supõe, podendo ser remetida, no
mínimo, à década de 1860, conforme tive a oportunidade de demonstrar. Para mim, a
idéia de Atenas se refere a tradições advindas do Império, e não a tradições
republicanas, que se pretendiam, no máximo, uma espécie de prolongamento daquela
época tão cara aos nossos testemunhos. Além disso, em se tratando de uma
representação a ser colocada num monumento celebrativo da Independência, que foi
também ato fundador do regime imperial brasileiro, momento este de proeminência
baiana, é muito mais plausível ver no símbolo uma espécie de miragem do passado,
respaldo por significativas tradições, do que uma comunhão com os valores do presente
republicano.36
A deusa Atenas abrasileirada e “baianizada” (ladeada de outros signos regionais,
como a cana, o Monte Pascoal e o emblema de Salvador), com a aparência de jovem
senhora, contrastava flagrantemente com a imagem da “velha mulata” e com os
registros fotográficos nos postais de Lindemann. Se aos indígenas e caboclos, grupos
genuinamente nativos do território baiano (e nacional), não se concedeu a licença para
que assumissem a função de símbolo oficial do Estado, embora tenham surgido como
uma hipótese plausível na visão de alguns, não seria em relação à presença negra que
reconheceriam o direito de exercer tal representatividade, ainda que na prática ela
35 Idem, ibidem. Enquanto parecer que respondia à indagação do arquiteto Roberto Etzel, provocadora das
três propostas dos consórcios do Instituto, esse documento foi originalmente publicado na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 45, p. 227-233, 1919. Contudo, meu primeiro contanto com ele se deu por meio da Bahia Ilustrada, quando comecei as pesquisas que iriam inspirar este trabalho. Num momento mais avançado, localizei em ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de, op. cit., p. 42-46, a utilização da mesma fonte, para discutir a mesma questão aqui enfocada. Tenho a impressão de que a divulgação do documento pela Bahia Ilustrada, após dois anos da sua elaboração, reflete um caráter importante da revista, a ser aprofundado num dos próximos capítulos, que se relacionava à intenção de promover a propaganda da Bahia, reforçando símbolos e buscando apresentá-la com as suas “melhores” características.
36 Ver ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de, op. cit., p. 42-46. Ver, também, para maior esclarecimento a respeito da figura da Marienne, CARVALHO, José Murilo de, A formação das almas, 1990, p. 75-96.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 177
constituísse um segmento majoritário. Os primeiros, porém, pelos menos tiveram a
chance de serem apresentados e defendidos como uma alternativa viável, mesmo que
ao final tenham sido descartados. Os segundos, por sua vez, não conheceram, pelo
menos nos escritos a que tive acesso, nenhuma defesa explícita para um cumprimento
de tal papel simbólico, muito pelo contrário, sempre se recusou vigorosamente qualquer
possibilidade do tipo. No parecer sobre a figura simbólica da Bahia eles sequer são
citados, um silêncio bastante elucidativo a respeito do lugar que ocupavam nas
idealizações identitárias das elites.
Nos tempos de infortúrnio que atravessa, a Bahia tinha ainda que administrar a
convivência com essa parcela do seu conjunto social, a qual foi apontada inúmeras
vezes como motivo de atraso. Diante desta realidade, a esperança era projetar para o
futuro o tipo étnico ideal do baiano. Para chegar a definir a imagem simbólica da Bahia,
os membros da comissão julgadora fizeram algumas digressões acerca do nosso perfil
fenotípico. E, nessa justificativa, encontra-se muito bem delineada a maneira como
encararam o delicado problema. Descaracterizando e diminuindo as contribuições
indígenas, tal como se fizera com os negros na crítica aos postais, esforçaram-se para
destacar a preponderância branca:
Pede o architecto ou esculptor que se lhe dê numa figura humana o typo carasteristico da Bahia. Ser-nos-á facil conseguil-o? [...] A propria caracteristica do Estado é muito duvidosa. O typo humano, caracteristicamente bahiano, não existe; não há dele uma figura accentuada e firme que, pela plastica, se tenha imposto ao conceito geral. No lento e initerrupto caldeamento das três raças que aqui convivem, o typo prevalecente ainda é do porvir e só o teremos definitivo quando a fusão se completar num todo seleccionado sob a acção desse meio tropico em que vivemos. [...] Teremos [...] que experimentar ainda por muito tempo o influxo de povos e raças [...] que se hão de fundir, no immenso cadinho, a constituirem a massa homogenea que, no futuro será propriamente a “gens brasilica”. Até lá, na plastica humana teremos que nos contentar com o typo que, pela tradição, pela historia, pelo prestigio maior entre as outras raças que aqui convivem, é de facto o preponderante. [...] [...] Não esqueçamos tampouco que o projectado monumento do Ypiranga é um marco centenario do nosso evolver como nação americana independente. É o Brasil civilisado e culto, o Brasil livre que não se esqueceu porém, as suas tradições, que ali se commemora, [...] um Brasil que evolve, affirmando-se na sua cultura de procedência européa e nos elevados idéaes da raça branca. Não é um Brasil índio ou Brasil catechumeno que se vae celebrar. Essas modalidades já passaram, há seculos, como formas transitorias de uma civilisação transplantada. O Brasil índio nunca existiu. Dizer Brasil já é dizer civilisação, christianismo, nas plagas da America pela aação dos portuguezes. A gente portugueza como evolveu na America do Sul, nesse meio tropico, mesclada mais ou menos com o indio e o africano é que dará o typo do brasileiro, typo que mais e mais se approxima do branco puro, pelo
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 178
estancar das outras raças, pelo fluxo constatemente renovado de europeus, pelo prestigio dos idéaes da raça branca. A figura representativa da nossa gente não será, portanto, a do indio. Não é o typo indio que aqui prevalece, como no Mexico e no Paraguay, mas sim o typo europeu [...]. É por isso que opinamos a que se não tome por figura representativa da Bahia o typo indio, que não é prevalecente, nem o do mestiço accentuado, que é a fórma transitoria, mas o da mulher bahiana dos nossos dias, de procedencia européa ou branca, com as feições expressivas do nosso meio ethnico.37
Estavam, portanto, definidas as percepções das elites da época, tensionadas pela
contradição de tentar conciliar o real (no sentido daquilo visível e vivenciado na prática
cotidiana, ou seja, as experiências de relações inter-raciais e multirraciais) e o desejado
(a superação das características multirraciais, por uma miscigenação com prevalência
branca). Desta forma, a presença negra e a simbologia mestiça pareciam se constituir
em mais uma fração dos infortúnios baianos. Embora não pudesse ser considerada coisa
nova o problema étnico-racial baiano, acabava por refletir de um modo bastante
diferente num contexto em que os elementos de positividade precisavam ser
reconstituídos. Não deixava de ser uma questão delicada, sobretudo quando se sabe
que, na atmosfera mental, cultural e social do país, respiravam-se, por um lado, idéias
racistas e eugenistas38 ― dirigidas contra amplos espectros da população nacional,
especialmente aqueles que habitavam mais ao norte ― e se assimilava, por outro lado,
os valores da cultura branco-européia, encarados como superiores. E mais delicada
ficava por se ter consciência de que era vivenciado um momento na qual certos
departamentos da federação brasileira conheciam o influxo tido como progressista e
civilizador do imigrante europeu. A Bahia não conheceu, no período, nenhuma onda de
migração estrangeira de grande proporção. Mas as elites clamaram pela introdução de
imigrantes, fizeram campanha de propaganda pretendendo estimulá-la e torceram
muito para que alguns daqueles que estavam de passagem pelo porto local, em direção
ao sul, resolvessem se estabelecer no Estado.
Façamos um balanço destas considerações em torno de símbolos, cotejando
passado e presente. Mudança dos tempos... Hoje, ironicamente, porém, de fato, desde
algum momento da década de 1930, associa-se comumente à Bahia a figura típica da
“baiana”, cuja aparência corresponde, na maior parte dos seus aspectos, à descrição da
“mulata velha” feita na Revista Cívica ― enquanto a idéia da Atenas Brasileira só é
conhecida pelos especialistas da história local. Nos dias atuais, a melhor expressão da
“mulata velha” são as vendedoras de acarajé. Mas deve-se destacar alguns detalhes:
37 SAMPAIO, Theodoro, SILVA, Pirajá da e FRANÇA, A. de Campos. “A figura symbolica da Bahia”. Bahia
Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 36, mar./1921. 38 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-
1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993; e SKINDMORE, Thomas E.. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 179
não são necessariamente velhas, podendo ter as mais diversas idades; não
necessariamente mulatas, podendo ter as mais diversas matizes de pele, embora as
mestiças e mulatas predominem, e curiosamente possuam, em pequena quantidade, o
seu correspondente masculino, que vou designar de “baianos do acarajé”.
A propósito do monumento da independência
O projeto de construção de um monumento dedicado à memória da
Independência nacional serviu de pretexto para discutir a formalização de um símbolo
para a Bahia, decorrendo daí considerações em torno da formação étnica do “povo”
baiano. A respeito da proposta de Roberto Etzel devo alguns breves esclarecimentos,
embora eles não venham a ser muito significativos. Não consegui dispor de informações
que elucidem se Etzel inscreveu o seu projeto no concurso. Contudo tenho uma certeza:
se o fez, não o teve selecionado para execução, pois o escolhido foi aquele elaborado
pelo artista italiano Ettorre Ximenes. E o projeto vencedor nos impele a refletir, mais
um pouco, sobre o lugar da Bahia no imaginário nacional, pelo menos no que tange à
memória da Independência.
Já foi descrito o esforço de incluir os fatos e as datas marcantes das lutas de
independência da Bahia no panteão histórico das glórias nacionais. Mas ainda assim, as
dificuldades nesse reconhecimento persistiram. No que tange ao projeto do monumento
comemorativo do centenário, vimos a preocupação do arquiteto Roberto Etzel em
identificar o símbolo do Estado para fazer representá-lo na obra. Entretanto, segundo se
depreende das informações do médico baiano Artur Neiva, o vencedor do concurso, o
escultor Ximenez, não teve o mesmo cuidado; tampouco a comissão de seleção do
projeto cobrou a inclusão no mesmo de imagens que lembrassem a contribuição de
outras regiões à independência nacional. Por isso, Artur Neiva teria levado ao diretor do
Museu Paulista, instituição instalada no parque do Ipiranga (na cidade de São Paulo), e
que tinha a incumbência de guardar a memória do 7 de setembro de 1882, sua
indignação “contra a extranha e total ausência de qualquer referencia aos decisivos
acontecimentos para a Indepedência brasileira, desenrolados na Bahia e que
culminaram com o 2 de Julho de 1823”. E prosseguindo na exposição do problema
colocou:
Se não fosse a efficiente intervenção de [Affonso] Taunay que chamou a attenção dos companheiros de Commissão e do esculptor que tenazmente se oppunha a qualquer alteração do original, para o papel desempenhado pela Bahia em pról da Independência Nacional, qualquer allusão à nossa terra teria deixado de figurar no soberbo Monumento erguido às margens do Ypiranga.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 180
Para Neiva, esta omissão não teve qualquer razão intencional, não se somaria,
portanto, às manifestações de ódio contra a Bahia. Na sua opinião, teria sido “apenas
esquecimento, phenomeno muito natural entre nós brasileiros”.39
Entretanto, o historiador Antonio Celso Ferreira demonstra como as
comemorações do centenário da Independência, com o foco voltado para a inauguração
do monumento no parque do Ipiranga, local na qual o jovem príncipe Pedro de
Alcântara proclamara o seu histórico grito, foi um evento montado para afirmar a
grandeza paulista. Desta forma, ele transcreve falas da época que apresentam São
Paulo liderando e promovendo as mais importantes ações desencadeadas ao longo da
história nacional. Sintetizando o discurso então proferido por Roberto Moreira, um
jovem político paulista, que afirmava que “o Brasil foi feito pelos brasileiros, ou melhor,
pelos paulistas”, Ferreira apresenta o teor de tal versão da história brasileira:
No encadeamento das estações da história nacional, uma a uma recebe do tribuno [ou seja, o próprio Roberto Moreira] a iluminação paulista necessária: os filhos da terra foram invariavelmente os protagonistas da conquista da orla marítima, do desbravamento dos sertões, da formação das primeiras instituições políticas e do surgimento dos ideários emancipacionistas, da vitória republicana e assim desde então. O fato de a independência ter se dado às margens do Ipiranga nada teria, dessa maneira, de fortuito: foi em São Paulo que vicejou a corrente libertadora ― liderada por personalidades marcantes, como os Andradas ―, que levou o príncipe regente lusitano a decidir-se pelo rompimento com Portugal.40
A interpretação dada ao evento comemorativo pelos paulistas da época, e
destacada pelo nosso citado historiador, leva-me a supor que o monumento projetado e
aprovado pela comissão julgadora, que, inicialmente, não fazia qualquer menção às
contribuições baianas para o movimento da emancipação política brasileira, buscava
fixar a centralidade de São Paulo no ato de proclamação de D. Pedro. E, nesse sentido,
discordando de Artur Neiva, não teria tanta certeza em afirmar que o lapso não passou
de um esquecimento, não configurando nenhuma intencionalidade.41 Se o fato não se
inscrevia nos parâmetros do “ódio” à Bahia, tal como nos falaria Braz do Amaral, ou da
sua preterição, tal como foi dito por Rui Barbosa, a omissão inicial podia estar
relacionada, e isto se trata somente de conjectura, a uma guerra simbólica em torno da
39 NEIVA, Artur. “Recepção do Dr. Arthur Neiva no Instituto. Discurso”. Revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, Bahia, nº 55, p. 239-265, 1929, p. 262. 40 FERREIRA, Antonio Celso, op. cit., p. 270-284, citação extraída da p. 276. 41 Idem, ibidem, p. 276, comenta a respeito de rumores que acusavam Ximenes de ter aproveitado um
projeto apresentado ao czar russo (não implementado por causa da revolução de 1917) e depois oferecido ao governo belga. Ao passar por algumas adaptações, terminou sendo selecionado como objeto comemorativo da Independência brasileira. Se estes fatos forem (ou fossem) verdadeiros, existiram argumentos para justificar a não inclusão dos personagens e acontecimentos baianos no monumento, visto que o escultor não teve o mesmo cuidado do seu concorrente, o arquiteto Etzel. Mas o autor cita, também, os boatos de que a escolha de tal obra foi conseqüência de “um nítido favorecimento político”, embora não explique qual e o porquê. Esse fato pode dar margem a uma série de especulações, inclusive do tipo que faço, mas sem a menor possibilidade, ao menos por ora, de serem comprovadas.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 181
proeminência em nossa nacionalidade. De algum modo, sinalizava para um prestígio
combalido, revelador de que na memória nacional os eventos passados no local não
integravam o conjunto das imagens e narrativas mais relevantes a respeito da
Independência, diferentemente, conforme pude ressaltar antes, das proposições
formuladas pelos baianos.
O sentimento de “decadência”
Abandono, ódio, preterição, perda... eram todas elas palavras que integravam
uma série de percepções negativas elaboradas pelas elites para se referir à Bahia. Além
disso, discutiam-se as tentativas de associá-las a símbolos que se contrapunham aos
seus antigos apanágios e tradições. Este conjunto de fatos terminou por configurar um
quadro de crise, perante o qual alguns chegaram a citar o termo decadência ou declínio
para descrever o processo que se abateu sobre a Bahia. Um dos aspectos em que mais
se sentia a sua chegada era no tocante aos apanágios da Atenas Brasileira. Manoel
Querino, por exemplo, comentando a respeito da participação do Estado na Exposição
Nacional no Rio de Janeiro, ocorrida no ano de 1908, deixou patente sua opinião sobre o
impacto da crise num determinado setor da arte:
Foi um certamen em que a Bahia mais uma vez testemunhou o seu actual abatimento, contrastando com o fulgor de outr’ora. Altiva, quanto aos productos naturaes do solo, que não constitue novidade; humilde, porem, nas exhibições artísticas e industriaes, o elemento progressivo do século. Pedras, plantas medicinaes e madeiras entupiram o pavilhão; brilharam pela ausência, as esculpturas, as telas e ornatos que assignalam a pujança do talento. Sirubim salgado, couro de giboia, chapéu de vaqueiro, colher de pau, jaca e outras futilidades occuparam o logar a que tinham direito o piano transpositor de Aquilino de Andrade, as esculpturas de Eroltides Lopes, as obras de marcineria, alfaiataria e sapataria, cujo progresso, nestes últimos tempos, tem sido admirável. [...] Não é preciso que se diga mais para justificar nossa decadência em materia de arte. Talento e applicação não nos faltam, sobra-nos, porém, o indifferentismo calculado, muito ao desprezo dos poderes públicos pela mais bella manifestação do espírito humano. Como, porém, não está tudo completamente perdido, é bem possível que appareça um homem a quem esteja reservado, no futuro, cobrir-se com os lauréis da benemerência, fazendo renascer as glorias perdidas na Bahia.42
Homem profundamente dedicado ao ensino e ao estudo das artes, professor do
Liceu de Artes e Ofícios, escola profissionalizante para jovens, e da Escola de Belas
Artes, voltada para o ensino superior, Querino tinha fortes motivos para lamentar o
pouco espaço obtido pelos objetos artísticos nos estandes baianos. Assinalado-os como
42 QUERINO, Manoel. “A Bahia na Exposição”. In As Artes na Bahia, p. 46-49.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 182
fatores do progresso de um povo, considerava a ausência deles uma prova irrefutável
da nossa decadência. Suas expectativas, projetadas para um futuro incerto, era de que
se fizesse “renascer as glórias perdidas".
Todavia, enquanto elemento relacionado ao espírito da Atenas, o tipo de arte que
Manoel Querino, em todos os sentidos, professava não era das mais valorizadas,
conforme vimos em discussões anteriores. Apenas para relembrar pouco, a
expressividade que elas alcançaram foi diminuta, tendo em vista o legado dos
portugueses na área, na qual jamais demonstraram grande brilho. Ademais, os seus
praticantes, na sua maior parte, não constituíam os melhores exemplares das
capacidades intelectivas das nossas elites ― não esqueçamos que muitos tinham origem
nos segmentos sociais menos abastados. E talvez tivéssemos aí um motivo para reduzir
o impacto das palavras de Querino. Entretanto, com maior ou menor intensidade,
outros reforçaram a idéia de decadência nas artes. Destarte, os discursos sobre os
infortúnios que iniciaram ligados às transformações políticas ocorridas no país,
estenderam-se para a esfera artístico-cultural. Cultores das artes, por meio das quais
conseguiam revelar uma parte dos seus pretensos e inatos talentos, muitos baianos
sentiram desolademente este “declínio”, que atingia as suas mais diversas formas de
manifestação, tais como o teatro, a pintura, a música e, em menor grau, as letras.
No final da década de 1910, Manoel Querino anunciou, e mais uma vez
taxativamente, que “a decadencia do theatro chegou entre nós”. Apresentava entre as
razões para isso a “perversão do gosto pelo foot-ball e outros exercicios phisicos”,
quando antes “o verdadeiro sport bahiano era o Theatro”. E prosseguia seus
argumentos acusando a queda na qualidade dos espetáculos, pois “as platéas de hoje
têm o bom gosto arruinado pelas vandevilles, pelas revistas de anno, pelas operas
brejeiras”, elas preferiam agora “os ditos burlescos, a pilheria veladamente
pornographica ou pontuada de gestos duvidosos”. Querino parecia assumir o papel de
apóstolo da decadência, tal o uso que fazia do termo e o nível de seu desencanto com a
perda de diversos hábitos e tradições do passado.43
Silio Boccanera Junior foi outro a lamentar a situação do nosso Teatro, que na
sua opinião havia se tornado “um paralytico”. Ele apontou motivos muito semelhantes
ao de Querino: por um lado, teria existido um fator externo, no caso a concorrência do
43 QUERINO, Manoel. “Theatros da Bahia”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº
35, p. 117-133, 1909, p. 117. Em livro publicado originalmente em 1916, designado A Bahia de Outrora, em que registrou as suas memórias dos costumes baianos do século XIX, Querino patenteou seu desajuste em relação aos novos tempos. Nascido em 1851, não se pode perder de vista que Querino adentrou o século XX às vésperas de completar cinqüenta anos. Suas referências de vida foram criadas, portanto, nos oitocentos, o que pode explicar o saudosismo do passado e o pessimismo com o presente. Sobre esse personagem e suas angútias, ver a biografia elaborada por LEAL, Maria das Graças Andrade. Manuel Querino: entre letras e lutas, Bahia 1851-1923. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado em História) — PUC-SP, 2004. Tenho utilizado a grafia do nome do personagem da forma que aparece nos seus escritos originais — faço essse esclarecimento para justificar a diferença em relação à grafia utilizada por sua biógrafa.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 183
cinema; por outro lado, o Teatro teria sido “profanado pelas revistas marafoneiras, e
pelos maxixes depravados, que inficionaram o país inteiro [...], mais e mais, dia a dia,
desde o em que foi [sic] proclamada a República”. Boccanera associava diretamente os
problemas do Teatro às mudanças introduzidas no país com o advento do novo regime,
demonstrando suas insatisfações para com ele. Reforçava, com isso, a idéia da
infelicidade que se abatera sobre a Bahia a partir de então.44
De qualquer modo, as impressões de ambos demonstram as dificuldades que
tiveram em assimilar novas práticas culturais (a exemplo dos esportes e do cinema),
bem como um certo tom moralista na crítica aos conteúdos e estilos em voga, deixando
transparecer tanto conservadorismo, quanto uma certa dose de elitismo, visto que o
futebol e o cinema vinham se apresentando, ultimamente, como manifestações muito
mais populares.
E o que dizer então das outras artes? Se durante os momentos de maior fausto
da Atenas Brasileira, a escultura, a pintura e a música não foram tão prestigiadas, as
sensações que dominavam os sujeitos daqueles tempos de infortúnio faziam-nos crer
que agora elas padeciam numa condição muito mais dramática. Manoel Querino, ao
discutir sobre a situação do teatro não perdeu de vista que as diversas formas de
expressão artística estavam envoltas num mesmo processo. Assim, afirmou: “sendo o
theatro uma das mais bellas manifestações da arte, fatalmente, acompanha, na Bahia,
o declinio da pintura, da escultura e da música”.45
Acácio França, por sua vez, realizou uma conferência no Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, em 1918, na qual fez uma avaliação histórica das belas-artes na
Bahia. Após expôs o movimento contínuo da nossa cultura artística, em alguns
momentos mais intensos, em outros menos, declarou: “a Baía [sic] chegou a ser
mortalha dos que se dedicam à nobre carreira das artes, as quais não merecem, para o
comum da nossa gente, as mais rudimentares manifestações de respeito, quanto mais o
culto da sua admiração dela” [sic]. França, que foi em sua época um dos maiores
estudiosos da pintura na Bahia, recriou numa imagem drástica a incômoda realidade
vivenciada pelas artes, que se encontraria num estado mortificante. De qualquer modo,
ele não parecia um sujeito acomodado diante dos fatos adversos, pelo contrário, em sua
44 BOCCANERA JR., Silio,“O Theatro na Bahia”, p. 66. Nascido em 1863, teve sua sensibilidade formada no
século XIX. Foi um escritor profícuo, produzindo diversos estudos sobre as tradições e a história da Bahia, bem como sobre a arte. Foi autor, também, de diversos dramas e revistas teatrais. Assumiu, ainda, a função de diretor do Teatro S. João, durante muito tempo, a mais importante casa teatral da Bahia.
45 QUERINO, Manoel. “Theatros da Bahia”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 35, p. 117-133, 1909, p. 117.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 184
conferência buscou promover uma instituição local que objetivava incentivar as artes e
fazê-las retomar algo do seu fulgor ― a Sociedade Propagadora das Belas Artes.46
E as queixas prosseguiam... Sobre a música e as suas dificuldades já tive a
oportunidade de comentar, mas não custa lembrar o arrependimento de Sylvio Deolino
Fróes, professor e diretor do Instituto de Música da Bahia, pela opção que fizera de
dedicar-lhe a vida profissional. Além disso, o estado sob o qual se encontrava o seu
principal estabelecimento de ensino, o segundo mais antigo em atividade no país,
exemplifica os problemas que a música enfrentava. Segundo o próprio Fróes, o
Instituto, “creado pelo governo, foi por elle quase abandonado e a vida que hoje tem é
devida a um conjunto de sacrifícios e desinteresses sem iguaes em parte alguma do
Brasil”.47
Silio Boccanera Jr., em artigo publicado na Bahia Ilustrada, em 1920, fez uma
síntese a respeito da condição sob a qual as artes se encontravam:
É o nosso intenso desejo, à vista da decadência das Bellas Artes em nossa terra infeliz, que, para sua completa desventura, abandonada, hoje, dos homens, só falta ser abandonada por Deus. A Esculptura e a Pintura, rainhas desthornadas, com as suas corôas, hoje, de papelão, substituindo as de oiro, primitivas, estão p’ra hi [sic] completamente relegadas ao desprezo. A Arte Dramática chocalha seus guisos transformada em arlequim do Theatro, para gáudio de pantomineiros e do zotismo. A Musica vive jugulada pelos que se não elevam acima dos interesses materiaes, ou pelos que rendem maior culto à lisonja ou às sympathias pessoais. E as Almas soffredoras, atormentadas, agônicas, dos artistas, victimas de sonhos iriados, do seu ideal, calcinado, vão, resignadamente, vivendo p’ra hi [sic] a vida dos condenados ao exílio; sem mais estímulos, sem mais crenças sem mais illusiões!...48
Affonso de Macedo fez, por sua vez, um depoimento bastante similar, embora
pareça estender o comentário para todo o país:
Procuramos deixar aqui bem patente é que a musica, assim como as demais bellas artes, que, com o maior cuidado, carinho, interesse e proteccção dos poderes públicos, florescem, cada vez mais, em outros paizes, entre nós ainda não gosam desse fervoroso culto, desse benéfico acolhimento
46 FRANÇA, Acácio de Campos. “Pela Propagadora das Belas Artes”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 10,
set./1918; o grifo na citação é meu. França foi autor do livro A Pintura na Bahia, que reuniu duas conferências pronunciadas no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
47 FRÓES, S. Deolino. “A música na Bahia”. Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do Centenário, p. 107-117, 2 de julho de 1923, p. 117. O testemunho de arrependimento do próprio Fróes pode ser revisto no capítulo 2, no tópico designado “As outras artes”.
48 BOCCANERA JR., Silio. “A música na Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 31, jun./1920. É necessário fazer um esclarecimento a respeito do trecho inicial da transcrição: Boccanera Jr. nos fala de um “intenso desejo”, que fica mal explicitado, podendo nos induzir a uma compreensão distorcida das suas palavras. Isso ocorreu porque foram subtraídos alguns parágrafos que no original antecedem o enxerto aqui transposto. O “intenso desejo” era de que o tempo, o qual chama de “grande mathematico que acha sempre solução para os mais intricados problemas da vida”, pudesse responder “satisfatoriamente”, ou seja, amenizar as dificuldades enfretadas pelas artes, talvez mesmo resgatar seus de dias de maior brilho.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 185
por parte dos governos, esforços e auxilio esses imprescindíveis para o seu maior desenvolvimento e perfeição.49
As impressões registradas por Boccanera Jr. não eram nada animadoras, muito
pelo contrário, elas revelavam um profundo desagrado, uma forte decepção para com o
declínio das tradições artísticas baianas. Isso fica claramente demonstrado quando
declara o temor de serem abonadas por Deus, após terem sido abandonas pelos
homens. A respeito das suas palavras é preciso, ainda, chamar a atenção para um
detalhe: ao modo como se referiu à escultura e a pintura, ou seja, enquanto “rainhas
destronadas”. Não pretendo agora discutir a questão, mas veremos, um pouco mais à
frente, novas referências a esta mesma expressão, associadas, também, à idéia de
declínio.
A falta de incentivos governamentais se constituía numa indiscutível evidência do
dito abandono e decadência das artes. Por isso, não foram raras as ocasiões em que os
seus cultores resgataram o passado imperial para relembrar o patrocínio oficial que elas
teriam recebido do próprio imperador e dos presidentes provinciais. Têm-se aí mais um
aspecto a reforçar a percepção de que a instalação da República acarretou danosas
conseqüências para a Bahia. Manoel Querino, esse operoso defensor das artes, e que
era, aparentemente, um dos mais sujeitos mais agastados com toda a situação, oferece
uma reflexão deste tipo:
No tempo do império, honra é confessar, os presidentes da Província não se desdenhavam de proteger e animar a cultura artística. Alli estão como exemplos, o Lyceu de Artes e Officios e a Escola de Bellas Artes, que contaram sempre com o auxilio pecuniário e de outra ordem, para o seu desenvolvimento. [...] No regimen republicano, divorciado o poder publico do elemento popular, tem-se reflectido nas artes o lamentável choque do desprezo. Como que assistimos ao espectaculo desdenhoso, em que o mando desorientado das conveniências pessoaes, desalojou o acendrado patriotismo de outras eras.50
De alguma forma, as estruturas simbólicas da Atenas Brasileira ficaram bastante
abaladas. A dinâmica cultural, intelectual e artística passou a ser sentida por muitos a
partir da lógica da decadência. E nesta perspectiva, novas associações começaram a ser
estabelecidas com o título, que era tão caro ao orgulho e à vaidade das elites baianas.
Em 1921, nas páginas da Renascença, o jornalista e historiador Affonso Ruy acentuou a
manutenção da identidade de Atenas Brasileira pela Bahia. Contudo, longe de reafirmar
a comparação entre a Bahia e a pólis grega com bases nos critérios positivos
49 MACEDO, Affonso de. “Idéas e factos”. Renascença, Bahia, nº 02, 1 de agosto de 1916. 50 QUERINO, Manoel, As Artes na Bahia, p. 6-7.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 186
normalmente anotados, ele o faria em referência ao processo de declínio que também
vitimou a famosa cidade-Estado:
nos últimos dias do século XIX, como se o seio da “Athenas brasileira” se fosse mirrando, e tal o destino das cidades antigas, o período de decadência se accentúa e, políticos, seus homens corrompem-se, artistas a inspiração já os não immortaliza, literatos emigram para vencer; e o fatal, o inútil, domina conclamando o culto da incompetência [...]. É fictícia a vida intellectual da Bahia; em volta dos vultos legados pelo passado, cobertos de glorias, resta a opulência de sua mumificencia taes como, das cidades antigas os monumentos de arte, de pé, roídos pela idade dos tempos, que os vae envelhecendo, mas guardando sempre linhas sagradas do seu valor primitivo.51
A Atenas Brasileira, também chamada de “heroína dos seios titânicos”, parecia
estar secando a sua fonte nutriz de gênios e gigantes, transformando-se, quiçá,
perdoem-me a liberdade tomada, na “heroína dos seios mirrados”. Essa é a leitura que
resulta após a análise das palavras de Affonso Ruy, aliás, bem distintas das palavras do
outro Ruy que citei, o Barbosa, para quem a fonte não havia secado de modo algum.
Invertido os sinais da identificação, mesmo ao redefini-la por uma perspectiva agora
negativa, Affonso Ruy reafirmava a validade do título, com a idéia de que bons tempos
passam, deixando os resquícios de sua existência. Esse parece ser o fundamento da
nova analogia: os elementos que constituíram as glórias da Bahia, tal como os objetos e
as marcas históricas da legítima Atenas, tornaram-se antiguidades, “monumentos” que
testemunhavam as grandezas do passado.
As observações de Manoel Querino, Acácio França e Affonso Ruy nos colocam
diante de uma inevitável indagação: o que dizer dos títulos que tanto orgulhavam a
Bahia, quando se reconhecia que nos novos tempos as coisas mudaram
substancialmente? Eles mantinham a validade? A resposta não é simples, mesmo
porque a questão não foi encarada de um único modo. De início, não se pode ignorar
que houve quem acreditasse na irrevogabilidade dos mesmos, já argumentei inclusive,
noutras passagens, que muitos afirmaram a manutenção das prerrogativas da Atenas
Brasileira e da Rainha do Norte. Foi por meio deles, afinal de contas, que as elites muito
freqüentemente reivindicaram o reconhecimento julgado necessário, bem como a
presença mais intensa nos postos de destaque da vida nacional. Por outro lado, diversos
sujeitos passaram a utilizá-los ambiguamente, ora empregando-os na forma original,
ora adaptando-os à realidade presente. Alguns procuraram ressignificá-los, atribuindo-
lhes sentidos que se ajustavam com maior precisão ao momento então vivido, conforme
o fez o supracitado Affonso Ruy. Por fim, houve aqueles que, tomados ocasionalmente
por fortes sentimentos pessimistas, pareciam considerar já não serem adequados
51 Alex (Affonso Ruy). “Chronica”. Renascença, Bahia, nº 72, 30 de abril de 1921.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 187
utilizá-los sob suas formas originais. Tenho dúvidas em determinar quanto ao grau de
pessimismo experimentado, se era algo muito extremado ou se era resultado de um
abatimento momentâneo, estimulado por um ou outro acontecimento. Desconfio que
para maioria o pessimismo era um sentimento oscilante, variando de acordo com as
circunstâncias. Ele se manifestava sobretudo em relação a certos fatos, a exemplo da
evidente perda de prestígio que acarretou na redução da influência do Estado na política
nacional. Entretanto, no tocante a outros aspectos não era estimulado ou sentido, por
isso a crença na preservação dos dotes intelectuais pelos baianos e todos os discursos
que buscavam resgatar na época republicana os elos de continuidade com as glórias
imperiais. Os sentimentos experimentados eram caracterizados, portanto, por uma série
de ambigüidades, dualidades, contradições.
Neste ponto, interessa-me observar as adaptações que os títulos sofreram,
adquirindo conotações que se tornaram a expressão do pessimismo. Deste modo, podia
ser adicionado aos mesmos ou o prefixo “ex” ou um adjetivo de qualidade negativa, que
tinha a intenção de sinalizar o rebaixamento sofrido por conta da condição presente.
Manoel Querino, criticando a falta de investimento nos estabelecimentos de ensino
público, um problema que afetava especialmente o desenvolvimento da instrução entre
as classes pobres, não titubeou em definir a Bahia como “a ex-Athenas Brasileira, no XX
século”.52 Em que medida o assunto abordado por Querino é pertinente para discutir a
recolocação do título é algo discutível. Afinal, aquilo que via como objeto de um
imprescindível cuidado, a educação popular, não se inscrevia entre as preocupações
prioritárias das elites baianas de então, visto que os recursos dirigidos pelos
administradores ao ensino público foram sempre insuficientes, se for levado em conta a
grande população do Estado. Querino, homem negro e de origem simples, que
ascendeu socialmente pelo estudo, talvez identificasse na sua própria trajetória o
resultado do espírito que alimentava a essência da Atenas Brasileira. Ao acusar as
deficiências do ensino, via, possivelmente, os grandes empecilhos colocados para que
indivíduos com origem semelhante à sua lograssem crescer. Para ele, tal realidade
acabava por descaracterizar o princípio do dote intelectual que marcava o título.
A fim de expressar a desafortunada situação da Bahia no contexto republicano, a
designação de Rainha, também, sofreu um tipo de adaptação. Rui Barbosa, por
exemplo, referiu-se à terra de nascimento como uma “rainha entre as rainhas do
espírito, da bravura e do poder, augusta desthronada, que se deixou despojar da sua
coroa” (grifo meu). Para ele, embora tivesse sido destrona, ainda permanecia rainha,
52 QUERINO, Manoel. “Monopolio no ensino”. In As Artes na Bahia, p. 53-54.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 188
pois como fez questão de afirmar “não perdeu os títulos do seu principado por haver
consentido que lh’os enterrassem numa dependência immerecida”.53
As palavras de Rui, que reconhece a Bahia como rainha ou “augusta
destronada”, porém mantendo os “títulos do seu principado”, lembra-me aquele famoso
adágio popular :“quem foi rei, nunca perde a majestade”, o qual parece se ajustar com
perfeição a certas percepções em relação ao status político do Estado. Numa das suas
acepções, majestade significa “aquele que exerce o poder supremo”, prerrogativa que
os baianos sabiam ter perdido ― daí a idéia da Bahia ter sido destronada. Mas
majestade possui, ainda, o sentido de imponência, sublimidade, nobreza e
transcedência, coisas que a Rainha do Norte se recusava a abrir mão, não admitindo
jamais tê-la perdido. Os baianos conservaram, na República, a presunção de serem
herdeiros perfeitos dos atributos da realeza, da heroicidade, da sapiência, do altruísmo,
da liderança, que, a priori, deviam caracterizar os verdadeiros monarcas. Eis o porquê
da Bahia não haver perdido, no dizer de Rui, “os títulos do seu principado”.
Noutro de seus discursos, Rui falou da Bahia enquanto “a decaída Rainha do
Norte”. Lemos Britto, por sua vez, criticando a intervenção militar sucedida no Estado
em finais de fevereiro de 1920, recorreu à formula da “rainha destronada” ― já referida
algumas páginas acima, porém relacionada à escultura e à pintura ― para assinalar a
experiência humilhante representada por esta ocorrência.54 No entanto, em todos os
casos citados, inclusive no tocante às artes, e em todas as formas apresentadas, as
significações assumidas pelo título (com suas variações e adaptações) apontavam para
uma mesma noção: o sentimento e a convicção do declínio, fosse ele político, como
ilustram os usos de Rui Barbosa e Lemos Britto, fosse ele artísitico-cultural, como
exemplifica o emprego dado por Silio Boccanera Jr.
É interessante anotar como esta forma do título foi sobrevivendo ao longo do
tempo. Kátia Mattoso, por exemplo, utilizou o termo ao relembrar suas impressões de
Salvador, no final da década de 1950, quando chegou à Bahia para fixar residência.
Sobre a cidade ela afirmou que, em dias “com o sol, era bela como uma rainha
destronada que não corresse atrás de riquezas perdidas e conservasse o porte altivo”.55
Referindo-se aos anos 50 do século XX, mas escrevendo no início da década de 1990,
não somente rememorou a expressão como recuperou seu sentido para descrever uma
percepção que lhe fora particular.
53 Barbosa, Rui. “Discurso”. In BRITTO, José Gabriel de Lemos & CATHARINO, Alberto Moraes Martins (orgs.),
Renascimento Cívico, p. 45. As acepções do termo majestade foram baseadas no Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, Versão 1.0, Ed. Objetiva, 2001.
54 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 9, ago./1918; LEMOS BRITTO, José Gabriel de. Na Barricada: Campanha da Libertação da Bahia. Bahia, Typ. Bahiana, 1920, p. 99. Comentarei sobre o episódio da intervenção militar na Bahia no próximo capítulo.
55 MATTOSO, Maria de Queirós, Bahia, século XIX, p. 17-18.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 189
Dos títulos mais freqüentemente identificados à Bahia, o de “mãe” (ou mater) foi
o único que, aparentemente, não sofreu adaptações. Mas isso não quer dizer que tenha
sido excluído, eventualmente, das discussões acerca dos infortúnios. O aspecto curioso
a esse respeito era a comparação com o sofrimento típico das mães amorosas.
Referindo-se ao papel da Bahia na história nacional, marcado pela participação em
acontecimento cruciais, Braz do Amaral recuperou a experiência/idealidade da
maternidade para lamentar o impacto do passado sobre a grave realidade presente:
Acontece à grande pobre Bahia o que a essas mulheres mães de famílias numerosa [sic], a quem cada facto notável, celebrado na casa com o ruído de uma festa, evoca sempre a lembrança de um soffrimento experimentado na data que se comemora, de alguma grande dor sentida e de que triumphou afinal o seu organsimo, mas que lhe enfraqueceu a vida e lhe diminuiu o vigor, collaborando com este sacrifício, quasi esquecido agora, para a vida e prosperidade dos que hoje são fortes, de modo que taes dias de alegria e festa na casa lhe fazem velar os olhos na tristeza daquella magua longínqua, na lembrança daquella dôr que annos conseguiram mitigar, mas que lhe deixou vestígios no sangue e concorreu para lhe estancar as fontes de vida. Esta melancólica impressão vem ao espírito de quem segue pelo pensamento o que se passou nesta cidade, há justamente oitenta e nove annos, isto é, no mez de junho de 1823.56
Datado de junho de 1912, Amaral discorreria no seu texto sobre os episódios da
independência na então província, sendo que o trecho transcrito traz apenas os dois
parágrafos iniciais. O curioso, nesta breve reflexão, é perceber que anuncia,
subjacentemente, a idéia da “mater dolorosa”, que foi mais uma das maneiras de
referência à Bahia. Pela interpretação dos usos desta forma designativa, nos contextos
textuais dos escritos da época, chega-se aos seus sentidos: a “mater dolorosa” seria
aquela mãe sempre predisposta a socorrer a extensa prole, que se atolava em
sofrimentos profundos quando se via envolvida nos problemas que afligiam seus filhos;
seria aquela mãe que se tornou vitimada pelos sacrifícios realizados e se debulhava em
lamentos por não se sentir devidamente reconhecida após incalculáveis esforços; enfim,
seria aquela mãe que se compungia com os feitos dramáticos e os heróicos, com as
dores e os júbilos, com as lembranças dos personagens e fatos que lhe permitiram
conhecer dias de melhor ventura.57 No presente republicano, a Bahia seria esta mãe
tomada pelas dores da perda, ocasionadas pela enorme dedicação aos filhos.
56 Ver AMARAL, Braz do. “1823”. In Recordações Históricas. Porto, Typographia Econômica, 1921, p. 212-
222. O artigo é datado como sendo de junho de 1912. 57 Para formular o sentido da “mater dolorosa” fiz um exercício de interpretação dos textos de ALMEIDA, Miguel
Calmon du Pin e. “A Batalha de Pirajá” (Conferência no Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, aos 8 de Novembro de 1922). Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, Imprensa Official do Estado, nº 49, p. 223-262, 1924, p. 223; e, também, AGUIAR, Arthur Mendes de. “O espírito humano e a intuição didactica”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 50, p. 13-41, 1925, p. 40.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 190
O sentimento de saudade
Tantos infortúnios suscitaram, naturalmente, diversas reações. As manifestações
críticas de descontentamento, que têm sido as mais exploradas até aqui, constituíram
uma das suas feições. Outra, dentre elas, foi a valorização das muitas qualidades,
conhecidas ou desconhecidas, que caracterizavam a Bahia, aspecto este que será
tratado em um dos próximos capítulos ― antecipei a menção ao fato somente para
deixar claro a variedade de tendências surgidas e a complexidade da questão. Porém,
uma reação condizente com o impacto dos problemas que vêm sendo abordados até
aqui, a qual se enquadrava na perspectiva da comparação entre o passado e o
presente, cujo editorial “A Bahia ― já teve” tão bem assinalou, foi a ocorrência de um
sentimento de saudade ― e não temo em afirmar que fora bastante intenso ― dos não
tão longínquos tempos de glória. Da crença de que no regime extinto foram mais bem
aquinhoados teve origem um tipo de saudosismo que terminou por caracterizar as elites
da época republicana. Buscavam no passado aquilo que julgavam ser devido no seu
presente.
Nesse sentido, a continuidade do respeito à figura do imperador mesmo após a
sua destituição me parece um importante indício desta saudade. Em torno deste
aspecto existem questões provocantes, os quais estão a merecer estudos aprofundados.
Impossibilitado de assumir aqui tal tarefa, quero ousar algumas breves conjecturas. Se
não fiz uma pesquisa que me permitisse confirmar os interesses comuns que ligavam as
elites baianas e o regime imperial,58 recolhi alguns dados que me permitem ventilar
sobre o assunto na era pós-monárquica. Durante os anos de infortúnio, foram tantos os
episódios a envolverem baianos em questões relacionadas ao imperador e tantas as
manifestações de estima para com ele pelo reconhecimento conferido à Bahia que não
devemos ignorá-los.
Inicio dizendo que não saberia informar quanto foi o engajamento de baianos nos
grupos pró-monarquistas surgidos depois das mudanças ocorridas nas instituições
governamentais. Confiando em certos indícios, posso falar apenas que, se não eram
monarquistas, inúmeras vezes não estiveram nem um pouco satisfeitos com a república
― aspecto este, aliás, bastante ilustrado acima. Além disso, mantiveram, muito
freqüentemente, o nome do imperador em alta consideração, não significando isso
necessariamente um comprometimento explícito com a monarquia, mas talvez somente
um reconhecimento ao personagem. Para exemplificar este tipo de atitude, é possível
recorrer a uma pequena matéria da Bahia Ilustrada, publicada na edição de fevereiro de 58 Em favor da validade dessa questão, recorro a MATTOSO, Kátia Maria de Queirós, Bahia, século XIX, p.
289, que afirma: a “enorme participação na chefia do governo central poderia ter sido particularmente benéfica aos negócios da Bahia, se os políticos tivessem lutado pelos interesses de sua província de origem. Mas, [...] parece que nunca foi o caso. No poder, os homens se identificavam rapidamente com o Estado Nacional, e essa era uma condição para sua permanência à frente dos negócios político-administrativos”.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 191
1921, na qual se dizia que “um investigador curioso apurou [...] que a primazia da
proposta da revogação do banimento dos ex-imperantes coube em parte à Bahia, com o
projecto apresentado pelos deputados Amphilophio de Carvalho [baiano] e Caetano
Albuquerque [mato-grossense]”, em agosto de 1891, portanto, menos de dois anos
após os eventos que introduziram o novo regime. A referida matéria foi publicada dois
meses após a transladação dos restos mortais dos ex-imperadores, ocorrida em
dezembro de 1920, e foi seguida da transcrição dos dois artigos do projeto, que teve a
sua apreciação recusada por cento e oito deputados presentes na Câmara, entre os
quais muitos baianos. Interessante, porém, é que, entre os dez deputados que votaram
favoravelmente, seis eram baianos.59
Um outro exemplo de iniciativa encaminhada por um baiano, pondo em destaque
o nome e a figura do imperador, foi dado por Wanderley Pinho. Em novembro de 1925,
anunciou-se um projeto da autoria do então jovem deputado na Câmara Federal, que
tinha o objetivo de preservar a “memória de Dom Pedro II por meio de gestos
simbólicos de reconhecimento da importância pública do monarca: a inauguração do
mausoléu em Petrópolis, a decretação do dia 2 de dezembro como dia de festa nacional,
a denominação da Estrada de Ferro Central do Brasil de Pedro II e a emissão de selos
postais com a efígie de Pedro II”.60
A impressão que se tem, por vezes, é que muitos dos indivíduos que compunham
as elites baianas tinham uma profunda saudade não só das glórias dos passado ― que,
hipoteticamente falando, talvez pudesse ser revivenciada em qualquer época ― mas da
própria e extinta monarquia: saudade inspirada pela memória da antiga influência e
pela dor das perdas de que se julgavam vítimas. Na verdade, essa idéia carece de
maiores elementos para sua confirmação. De concreto, repito, apenas alguns indícios
me sugerem cogitar tais proposições. Vejamos, então, alguns episódios que, para mim,
refletiam uma certa saudade...
O doutor Pacífico Pereira, prestigiado médico e professor da Faculdade de
Medicina da Bahia, teve muito a lamentar com a mudança do regime de governo. No
capítulo sobre a “Atenas Brasileira”, tive a oportunidade de relatar as opiniões do
médico acerca dos serviços patrióticos praticados pelos seus confrades ao longo da
historia nacional, registradas numa matéria publicada na Bahia Ilustrada, em 1921. E foi
justamente no tocante aos retornos obtidos por tais ações que ele avaliou as diferenças
existentes no tratamento recebido do imperador e dos governantes republicanos,
59 Ver “A Revogação do Banimento e a Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 35, fev./1921. Sobre esta
tentativa de revogação do banimento, é interessante consultar SANDES, Noé Freire, op. cit., p. 206-209. 60 SANDES, Noé Freire, op.cit., p. 199. Um detalhe merece ser acrescentado: Wanderley Pinho nem sequer
havia nascido quando teve fim o velho regime, mas, relembro, era neto de um grande estadista do Império, João Maurício Wanderley, o famoso Barão de Cotegipe, tantas vezes ministros e uma vez presidente de gabinete.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 192
citando como exemplo dois eventos militares que contaram com a participação dos
médicos baianos. O primeiro tratava-se da guerra do Paraguai (1864-1870), para onde
partiu quase metade do corpo docente da faculdade e diversos estudantes. Conforme
afirmou Pacífico Pereira, “o Governo Imperial soube reconhecer e retribuir os serviços
prestados pela classe médica e especialmente pela Faculdade” nesta campanha,
atribuindo aos participantes diversas vantagens profissionais, e conferiu, também, a
muitos deles, dignificantes condecorações, como a da Ordem de Christo ou da Rosa. O
segundo episódio referia-se às lutas em Canudos (1897), que contou com “uma
verdadeira legião de patriotas que a Faculdade de Medicina enviou aos sertões em
socorro às victimas”, acrescentando, ainda, todos os esforços efetuados, em condições
precárias e repleta de dificuldades, para atender os feridos chegados na capital baiana.
Desta feita, porém, acusou Pacífico Pereira, “o Governo Federal não recompensou nem
considerou devidamente os beneméritos serviçaes da Republica pelo acto meritório de
humanidade e de patriotismo”. Para arrematar a comparação entre as duas atitudes,
disse mais: “a República em 1897 na Campanha de Canudos não imitou o império em
1866 na guerra do Paraguay. [Não teve] Nem a magnanimidade do justo, nem a
cortezia do rei”.61
Os fatos comentados pelo médico lembram certas ponderações, citadas
anteriormente, de Manoel Querino, nas quais destaquei como foi se desenvolvendo um
sentimento de decadência nos novos tempos, mas que refletia, também, uma nostalgia
do passado imperial. Em Querino havia uma inquietude com a pouca importância
dirigida à educação, quando fora antes, conforme acreditava, bastante valorizada.
Pacífico, por sua vez, manifestava o desencanto com o que pensava ser o desprestígio
experimentado pela classe médica. Em ambos os casos, havia a ênfase na idéia de que
no Império se amparava, com o devido cuidado, as instituições educacionais,
promotoras da cultura e do intelecto, e os grupos sócio-profissionais de maior destaque.
Daí implicou a concepção de que aquele passado fora uma experiência histórica melhor,
o que redundava no saudosismo.
Nesse sentimento, Lemos Britto se excedeu e, em nome da Bahia, declarou uma
fidelidade ao ex-imperador que acentuava ainda mais a saudade. Manifestou seus
pensamentos em dezembro de 1920, quando, por conta do decreto que pôs fim ao
banimento da família monárquica, assinado três meses antes, os restos mortais de D.
Pedro II e esposa foram repatriados. Numa cerimônia em que se fez a entrega de uma
“rica e mimosa cruz de bronze da Bahia [...] aos representantes dos gloriosos
monarchas brasileiros”, Lemos Britto foi incumbido de pronunciar um discurso em nome
dos baianos. Percorrendo a vista no discurso, oito décadas depois de sua elaboração,
61 PEREIRA, Pacífico. “A tradição histórica da Faculdade de Medicina da Bahia é um traço luminoso e indelével
de patriotismo desde sua fundação até os nossos dias”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 39, jun./1921.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 193
tenho a impressão de que o autor realizou a leitura do mesmo naquele ato de uma
maneira muito emocionada, tornando-o, deste modo, bastante emocionante para todo o
público assistente que compartilhava das suas sensações. E se me permitem mais, fico
imaginando que o tenha feito reproduzindo um estilo altissonante, que parecia ter
caracterizado os oradores baianos do passado e do então presente, nos moldes típicos
de um digno representante da Atenas Brasileira. O discurso teve por teor uma mescla
de elementos, que expressou, em tom exaltado, deferência ao ex-imperador e
lembranças da participação dos estadistas baianos no Império, as quais resgatavam a
nossa antiga hegemonia. Além disso, cogitou (ou fantasiou) uma identidade para Bahia,
a qual se sustentava no reconhecimento coletivo do seu povo ao ex-imperador, tão bem
simbolizado nos lauréis prestados.
O texto do discurso de Lemos Britto é um pouco longo, mas ele merece uma
leitura completa pela sua singularidade. No início conta a homenagem e, de antemão,
pressupõe a fácil identificação pelo ex-imperador falecido da voz que fazia a saudação,
se aos mortos fosse possível a faculdade de reconhecer a fala dos vivos:
[...] O povo bahiano, esse grande e generoso povo, de quem o antigo imperador tão amigo e reconhecido fôra, mandou que eu aqui viesse para depor esta modesta cruz de bronze estrelaçada de louros e de flores... Obedeci-lhe; e, obedecendo-lhe, forçoso era que eu vos dissesse [...] a que vimos, e o que esta homenagem significa. Se a voz dos vivos despertar sóe do somno dos sepulchros os a quem nós nos dirigimos, certo que de sua urna o Imperador terá reconhecido já a voz de quem lhe fala... Não que elle algum dia a houvesse escutado de meus lábios. Quando o tufão Republica se desencadeou vertiginoso sobre o throno, e os reis, banidos, amanheceram no exílio, ainda me não havia Deus dado o entendimento para amar ou malquerer. Mas a voz que ora se alevanta, a voz que neste instante cáe de minha bocca não é, attendei bem, a voz de um homem, a voz de um grupo, a voz de uma confissão política.
Nascido em agosto de 1886, Lemos Britto tinha apenas três anos quando caiu a
monarquia brasileira. Não dispunha ainda de nenhuma capacidade de discernimento
para entender o significado dos fatos, tampouco estava na idade para se idealizar um
futuro postulante aos desígnios dos oradores, políticos e estadistas baianos que
abundaram no Império. Contudo, em 1920, aos trinta e quatro anos, demonstrava-se
um legítimo herdeiro das tradições baianas, a ponto de considerar seu discurso
expressivo do sentimento coletivo dos seus conterrâneos. Ao mesmo tempo, o discurso
pretendia ser portador de uma essência anímica baiana tão genuína e inequívoca que o
próprio ex-imperador reconheceria que ente especial inspirava suas eloqüentes
palavras. Abria-se, assim, a porta para que Britto se proclamasse não apenas a voz de
um sujeito, mas a voz de todo um povo, a autêntica voz da Bahia:
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 194
Não; essa voz é a voz de um povo... é a voz da Bahia, meus senhores!... Grande voz, na verdade!...Quando elle reinava, e o nome do Brasil crescia para a gloria como os píncaros da Serra dos Órgãos crescem para o azul, ella enchia o Império. Nos postos da administração e da eloqüência, da diplomacia e da política, a Bahia culminava, irradiava; e seu espírito projectava-se sobre a terra immensa da pátria como estranho santelmo baixado do céo. Nas horas difíceis de tormenta, nas longas horas de crise e anciedade, era ainda essa voz que commandava e assignalava o rumo à Monarchia. As grandes reformas, as grandes leis, as grandes idéas, levavam sempre o concurso dessa voz archipotente.
A Bahia se reconhecia nas glórias do Império, que foi também a sua própria
glória. Daí o esforço em demonstrar como nas principais iniciativas e decisões
implementadas na história da vida nacional houve a sua inescapável participação.
Mesmo sem citar os títulos, ele terminou se referenciando às virtude da mater heróica,
da Rainha do Norte e da Atenas Brasileira. Apresentar, portanto, os vossos estadistas e
suas ações era o desdobramento natural do discurso de Lemos Britto:
Ella, portanto, a que, nesta hora, se approxima do inanimado corpo do exímio compatriota, para lhe segredar, amiga e terna: — Ouve-me. Eu sou a Bahia. Quando o maior Império do Universo arremessou ao Brasil, no teu reinado, a luva de uma rude affronta, meu foi o gesto do supremo desaggravo, e então eu me chamei Abrantes. Quando déste à obra, que devia fazer da filha a feliz Redemptora de uma raça, o auspicioso início, libertando o ventre da mulher escrava, meu foi o pulso que impoz essa medida decisiva de transição entre o captiveiro e a liberdade, e eu me chamei Rio Branco. Quando no Prata, a felonia de um caudilho impoz aos nossos brios amargas provações, meu foi o tacto que conjurou as tempestades e de nós afastou o ódio do estrangeiro; e me chamei Saraiva, e fui ainda Rio Branco... Eu fui, Senhor, Zacharias de Góes e Pedra Branca, Caravelas, Dantas e Jequitinhonha, Nabuco de Araújo e Cotegipe! Eu sou a Bahia!
Conquanto Lemos Britto tenha pretendido ser a voz do povo baiano — termo
povo que assimilo numa acepção coletiva, mais identitária, sem qualquer sentido de
classe mais explícito, e faço isso somente pela preocupação de simplificar a nossa
análise —, suas referências são apenas os dos grandes personagens políticos. Não faz
uma menção sequer a alguma passagem em que elementos menos destacados ou
segmentos populares houvessem tomado parte. Por isso, sua voz exprime de fato as
percepções de mundo de parcelas das elites baianas.
Prosseguiu, no seu discurso, dizendo-se republicano, óbvio que não ele
exclusivamente, mas aquela Bahia que (re)constrói no seu discurso. Republicana,
porém zelosa das suas responsabilidades para com o ex-imperador, tanto que fora
levada a protegê-lo com o exílio. Pouco tempo depois, levantar-se-ia para solicitar o seu
retorno, e, após trinta anos, estava a “exalçar” o seu repatriamento. Tenho dúvidas
quanto às causas das “convicções” republicanas das elites que Lemos Britto
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 195
representava: se eram fruto de motivações ideológicas, ou se eram conseqüência das
injunções históricas, que obrigaram-nas a se curvar ao fato da instalação e da
consolidação do novo regime. Como não tenho respostas conclusivas a respeito,
deixemos a questão em aberto e acompanhemos o último trecho do discurso:
Vendo que voltavas à terra do Brasil, realizando na morte o doce sonho de tua vida, não quis que me pudesses crer descrida e ingrata. Não. Eu sou republicana, mas sou justa. E porque eu o sou, minha foi a voz que se ergueu para pedir, logo aos primeiros alvores do regimen, o teu repatriamento, e trinta anos mais tarde retiniu como um clarim para exalçar o grande gesto do governo que te abria as portas da nação e extinguia o decreto de exílio. Eu vinha, agora, da revolução de 89. Fora nella figura de relevo. No governo que irrompeu dessa rajada, eu era ainda o vice-chefe... Assignei, com esta mão, a sentença do expatriamento. Impunha-o a salvaguarda das instituições periclitantes no solo convulsionado da Republica... Mas assim os ódios resfriaram; assim o regimen se consollidou; assim a posteridade reclamou o seu logar nas reivindicações inexoráveis da Justiça, eu não tardei, eu não desertei, eu não fugi. Vim para proclamar, surdo à indignação dos insentatos, que havias sido bom, e digno; que havias estremecido a tua pátria; que em ti as virtudes foram maiores que os defeitos! Chamei-me, então, de Ruy Barbosa! E volta, magnânimo brasileiro, rei republicano, ao teu somno de justo. Já em demasia me escutaste e me reconheceste. O bronze ficará eternamente ao lado de teu esquife. Cumprindo o meu dever, dá que eu me aparte. Eu sou a Bahia! Adeus...62
Declarando-se a voz da Bahia, que, embora republicana, era justa com os feitos
realizados pelo ex-monarca falecido... Rememorando a ação de alguns dos grandes
estadistas baianos que lhe serviram, por meio do qual restabelece o passado de
relacionamentos íntimos entre a Bahia e a monarquia, bem como reaviva a antiga
hegemonia... Reivindicando o zelo pela integridade do personagem, que teria motivado
Rui Barbosa a assinar o expatriamento... Requerendo a primazia no pedido de extinção
do banimento... Lemos Britto refez a trajetória de um passado de glórias, que animou
respeito e reconhecimento mútuos. No desfecho do discurso, Lemos Britto inseriu uma
frase que poderia passar como irrelevante, mas que era a vigorosa expressão de algo
que parecia tomar a forma e o sentido simbólicos de uma lealdade indissolúvel: “o
bronze ficará eternamente ao lado de teu esquife”.63 Não se deve esquecer que o ato de
oferecimento da “rica e mimosa” cruz de bronze deu ensejo para o seu discurso. E este,
depois dos longos trechos em que buscou reconectar os vínculos entre a Bahia e o
Imperador, no passado e no presente, projetou, naquela curta frase, uma ligação que
havia de não se extinguir, pois ela se estenderia para a posteridade com a cruz de
62 “As homenagens da Bahia aos Ex-Imperantes”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34, jan./1921.
Segundo informações contidas na própria revista, as homenagens e a entrega da cruz foram uma iniciativa do jornal A Tarde, propriedade do político Ernesto Simões Filho.
63 Ibidem.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 196
bronze postada ao lado dos seus restos mortais (ver fig. 10, capa da edição da Bahia
Ilustrada em que saiu o discurso de Lemos Britto).
Agora, os últimos sinais da fidelidade ao Império... Mario Augusto da Silva
Santos, ao discutir historiografia baiana da primeira metade do século XX, recuperou a
opinião de cinco autores que abordaram a passagem da monarquia para a república,
alguns mais detidamente, outros ligeiramente. Em dois deles, Pedro Calmon (nascido
em dezembro de 1902) e Affonso Ruy, identifica traços de monarquismo. (Pedro
Calmon, por sinal, era descendente de uma família rica e influente no Império, da qual o
mais ilustre membro foi o Marquês de Abrantes, Miguel Calmon du Pin e Almeida). Na
obra do terceiro, nosso conhecido Braz do Amaral, analisa dois momentos: num escrito
datado de 1904, percebe a existência de “uma visão monarquista atenuada”; já em
texto publicado dezenove anos depois, considera que o autor acentuou nitidamente o
seu pensamento monarquista. Os dois últimos, João da Costa Pinto Dantas Jr. e Antonio
Ferrão Muniz de Aragão (ex-governador do Estado, 1916-1920), teriam demonstrado
simpatias republicanas.64
Braz do Amaral, na sua História da Bahia (Do Império à Republica), publicado em
1923, fez uma suposição (ou uma espécie de exercício de prospectiva regressiva) que é,
no mínimo, sugestiva da relação mantida por amplas parcelas das elites baianas com a
monarquia. Para ele, que muitas vezes não se colocou somente como historiador nos
próprios textos, mas também como testemunha dos fatos, o destino da república teria
sido outro, se o navio que conduziu a família imperial para o exílio houvesse aportado
em Salvador. Nesse caso, o Conde d’Eu poderia assumir a função de líder da
restauração, e, de certo, contaria, pelo que se depreende nas entrelinhas da sua
opinião, com a fidelidade e a colaboração dos “baianos” para resistir aos republicanos.65
Diante de tais evidências, não parece despropositado falar em saudade de um
tempo que se tinha como afortunado e de fidelidade ao personagem que teve a própria
imagem associada a esse tempo, visto o estatuto precípuo que usufruiu por quase meio
século em nível político e pessoal. De qualquer modo, seria interessante acompanhar
algumas colocações que fazem dois historiadores a respeito de alguns aspectos que
tocam essa discussão. São eles Durval Muniz de Albuquerque e Noé Freire Sandes.
Embora adotem perspectivas diferentes, as questões que levantam convergem para o
problema da “elaboração” de elementos identitários, mas enquanto um foca o regional,
o outro direciona a visão para o nacional. Essas duas direções, tomadas em comparação 64 Ver SANTOS, Mario Augusto da Silva, op. cit., p. 11-15. Esse historiador apresenta uma pequena, ainda que
representativa, amostra da historiografia baiana da primeira metade do séc. XX. Utiliza apenas um trabalho de cada autor referido (excetuando Braz do Amaral, de quem pega dois textos) para proceder a sua análise. Seria recomendável uma avaliação mais cuidadosa das obras e documentos produzidos pelos autores citados para se chegar a uma opinião mais conclusiva.
65 AMARAL, Braz do. História da Bahia. Ver, também, o que diz a respeito SANTOS, Mario Augusto da Silva, op. cit., p. 13.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 197
ao encaminhamento assumido neste trabalho, permitem situar melhor os dois
sentimentos de que tratei.
Durval Muniz de Albuquerque, no estudo A Invenção do Nordeste, demonstra
como a identidade desta região “foi fundada na saudade e na tradição”. Ele explica que
“o nordeste nasce da construção de uma totalidade político-cultural como reação à
sensação de perda de espaços econômicos e políticos por parte dos produtores
tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados. Lança-
se mão de topos, de símbolos, de tipos, de fatos para construir um todo que reagisse à
ameaça de dissolução, numa totalidade maior, agora não dominada por eles: a
nação”.66 O resgate e a valorização de diversos elementos e fatos que assinalaram as
glórias do passado, por um lado, e dos que subsistiam enquanto tradição, por outro
lado, eram o fundamento da identidade em formulação.
Albuquerque revela que a saudade, longe de ser uma experiência exclusivamente
baiana, vitimou amplas parcelas das elites do Nordeste como um todo — dado de
máxima importância que se extrai da sua pesquisa. Nas primeiras definições desta
porção do país, que era um fragmento do antigo e poderoso Norte, a Bahia, a dita
Rainha do Norte, não estava incluída. Pernambuco cumpria, então, o papel de principal
porta-voz e liderança da nova região, que englobava ainda o Ceará, o Rio Grande do
Norte, a Paraíba, as Alagoas e o Sergipe. Quero justificar com isso o porquê de estar
tratando a Bahia e o Nordeste como lugares distintos. O que ora se pretende destacar é
o substrato comum do sentimento que compartilhavam, pois estavam inseridos num
mesmo conjunto de “perdedores” e “excluídos”, que se formou com o definitivo
deslocamento do eixo econômico e do poder político na República.
Os autores nordestinos (escritores e diversos artistas) dos discursos que, por um
lado, propugnavam e, por outro, cristalizavam a idéia da existência de unidade
geográfica, sociológica e cultural nordestina, bem como de uma historicidade própria
tinham percepções claras das tensões provocadas pelo deslocamento do centro de
poder no país, processo acelerado após a instalação da República. As crescentes
dificuldades, vivenciadas pelos Estados nordestinos, e a consciência dos danos que
sofreram (e continuavam a sofrer) fizeram com emergisse, em finais da década de 1910
e início da década de 1920, um novo discurso em prol desta identidade regional e
cultural. A Bahia se ressentia dos mesmos problemas. Comparando ambas experiências,
percebe-se a importância que as lembranças dos tempos de fausto e o resgate das
tradições do passado assumiam para as regiões que foram, um dia, hegemônicas,
cumprindo a função fundamental de articuladores das duas identidades em elaboração:
a baiana e a nordestina.
66 ALBUQUERQUE, Durval Muniz de, op. cit., p. 65-68.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 198
O detalhe que se tem a acrescentar é que Albuquerque não evidenciou tanto as
relações possíveis entre as elites nordestinas e a memória do Império (ou seja, a
narrativa da série de acontecimentos passados a refletir a antiga hegemonia desta parte
do país), talvez porque não tenha sido um alvo mais direto de suas preocupações. Ele
explora, sobretudo, o que dizem as obras ensaísticas e, especialmente, as literárias (nos
seus diversos gêneros) e as artísticas (também, nos mais diversos gêneros) produzidas
por intelectuais, escritores e artistas nordestinos sobre a identidade da região e do seu
povo. Pouco o autor nos fala do que exatamente sentiam saudade, pois a preocupação
de reconstituir os discursos históricos sobre o Nordeste não adquire maior proeminência
no seu estudo, excetuando alguns momentos em que se refere ao discurso histórico-
sociológico de Gilberto Freyre. A saudade, para ele, fica demonstrada sobretudo pela
ênfase de elementos considerados arcaicos e tradicionais, oriundos do folclore e da
cultura popular, mas apropriados pela elite intelectual letrada.67
Se reorientarmos o olhar da análise, enquadrando-a na ambiência nacional, têm-
se a possibilidade de que as provas de fidelidade e reconhecimento que partes das elites
baianas votavam ao ex-imperador assumam um novo significado. Noé Freire Sandes,
que se dedica a discutir a Invenção da Nação, sugere existência de múltiplos sentidos,
tendencialmente opostos, no resgate da imagem de D. Pedro II e da monarquia,
movimento ocorrido desde o começo da década de 1920, e simbolizado pela revogação
do banimento e pelo ciclo de eventos comemorativos da memória do velho monarca.
Pôde, primeiramente, representar uma crítica aos rumos tomados pela república, que
produziu um sentimento extensivo de decepção. Relembrar positivamente a monarquia
seria uma forma de assinalar suas virtudes, ao mesmo tempo em que servia para
acusar os vícios adquiridos pelo novo regime. Com essa prática, inspirava-se uma
espécie de saudosismo que podia ou não ser anti-republicano.68
Esse aspecto, de crítica às promessas não cumpridas e de desencanto com a
república, ficou patente em diversos textos escritos por intelectuais do período. Nesta
perspectiva, a obra organizada por Vicente Licínio Cardoso, À Margem da História da
Republica, editada em 1924, possuiu um caráter exemplar. Esse trabalho se revela
repleto de dubiedades em suas significações, pois ao mesmo tempo em que os seus
diversos colaboradores se definiram republicanos, teceram avaliações muitas vezes
desvantajosas e rígidas para com o regime em curso. Dentre os participantes da
coletânea, estavam Gilberto Amado, Ronald de Carvalho, Tristão de Athayde e Oliveira
67 Idem, ibidem, p. 65-78. 68 SANDES, Noé Freire, op. cit., p. 193-234.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 199
Viana. Segundo Tereza Malatian, os diagnósticos elaborados resultaram na “construção
de um paradigma que seria apropriado por movimentos monarquistas posteriores”.69
De qualquer modo, retornando à discussão de Noé Sandes, a memória do
imperador adquiriu uma segunda orientação, que se prestava, por sua vez, totalmente
aos propósitos republicanos. Nesta perspectiva, buscava-se integrar a sua figura aos
fundamentos da nacionalidade brasileira, pelo que ele conseguia representar em termos
de conservação da unidade política para o país, tarefa em que fora muito bem sucedido,
debelando todas as tentativas separatistas que tiveram lugar no país à sua época. O
regime republicano, ao reconciliar-se com a memória da monarquia, pretendia
expressar a continuidade da nação una, num contexto tido como bastante perturbador,
pois havia uma grave dissonância entre as vozes das muitas forças políticas e sociais do
período, sendo grande o número daquelas que eram veementes questionadoras da
situação política em curso. Portanto, longe de sinalizar exclusivamente para uma
saudade do passado, o resgate da imagem do imperador cumpria assim uma função
bastante utilitária, quando procurava expressar a continuidade histórica de uma nação
indivisível. Além disso, Sandes menciona a apropriação do personagem como símbolo
de poder centralizado que produziu efeitos benéficos na vida política do país, o que
servia para justificar eventuais projetos autoritários de governo.70
Dentre os baianos, era certo que muitos tinham em mente o julgamento do
regime, em razão das suas suscetíveis sensibilidades políticas, afetadas pela certeza de
que estavam afastados ou de que eram, no mínimo, pouco valorizados nas entranhas do
poder. Em conseqüência, tenho dúvidas de que pudessem pensar o imperador como um
simples emblema da unidade política da nação, o que alguns ligados ao regime
republicano tentavam reforçar com o objetivo de atenuar as inconformidades. As elites
baianas podiam ver no Império um belo modelo de unidade, mas de certo lhe atribuindo
outras significações. Talvez querendo denunciar a manipulação do poder por uns poucos
Estados da federação, expondo aquilo que se pretendia uma unidade como sendo uma
subjugação.
Ao enxergar a dimensão nacional dos elogios ao Império, com base nos
argumentos de Sandes, recoloca-se em novo plano o que poderia parecer uma
manifestação meramente circunscrita à Bahia. Não há dúvida que estava em debate um
69 Ver MALATIAN, Teresa Maria. O Retorno do César Caricato. In BRESCIANI, Maria Estella; SAMARA, Eni de
Mesquita & LEWKOWICZ, Ida. Jogos da Política: imagens, representações e práticas. [S.l.], ANPUH/SP, Marco Zero, FAPESP, p. 171-181, [s.d.]; ver, também, MALATIAN, Teresa Maria. Nostalgia do antigo regime: a república em crise e a solução restauradora. Revista História, São Paulo, n. especial, p. 163-177, 1989.
70 SANDES, Noé Freire, op. cit., p. 193-234. O difícil contexto a que se refere o autor é aquele entre os governos presidenciais de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, ambos bastante conflituosos. Nesse momento, ocorreram as comemorações do centenário da Independência, efetuadas sob estado de sítio, a revolta do Forte de Copacabana, a emergência do tenentismo, mobilizações operárias, o levante dos coronéis no interior da Bahia, e tantos outros fatos de repercussão que colocaram a sociedade em ebulição e as autoridades políticas em constante estado de alerta.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 200
discurso que focava a nacionalidade. Por outro lado, quando se observa as
singularidades que caracterizavam os discursos regionalistas, tem-se clareza das
motivações particulares que motivavam o saudosismo. Ademais não se pode esquecer
que os discursos da nacionalidade eram influenciados por discursos regionalistas, e
esses muitos vezes aspiravam a ser o próprio discurso da nação.71
Como saldo dessa discussão, quero anotar que considero o saudosismo a atitude
mais condizente com as elites baianas, sem que isso necessariamente exprimisse o
desejo de restauração monárquica. Essa idéia pode ganhar maior sustentação caso seja
articulada ao descontentamento com os tempos republicanos, sentimento que acometia
boa parte das elites baianas. Isso era demonstrado tanto pelas críticas explícitas ao que
consideravam ser uma posição relegada da Bahia no quadro republicano, quanto nas
avaliações acerca do modelo de liderança política exercida pela então província, por
meio das quais se incorpora subjacentemente uma crítica ao modo como os Estados
republicanos mais fortes praticavam sua supremacia.
É preciso retornar aos nossos testemunhos diretos e observar o que têm a dizer
sobre o assunto.
Tendo em vista que um dos lados da saudade era a crítica do presente,
mostrava-se imprescindível ressaltar, distinguir, singularizar o modo como ela foi
desempenhada, aspecto que complementava as percepções sobre o caráter das
intervenções baianas na história brasileira. Segundo os argumentos de muitos, a
liderança baiana se dera tendo em vista, tão somente e sempre, os interesses
nacionais. Miguel Calmon, por exemplo, fez afirmação nesse sentido. Para ele, “no
Império, os estadistas bahianos zelaram mais pelo bem commum do que pelos
interesses particulares da Bahia, preoccupados com preservar a integridade do nosso
immenso território”.72 O escritor e político Xavier Marques compartilhava do mesmo
pensamento. Mas buscou ressaltar o fato de que o sentimento patriótico orientou todas
as condutas dos homens públicos baianos quando eles tiveram o gozo do poder:
Tendo predominado longos annos na politica do paiz, a Bahia não se aproveitou de sua hegemonia para engrandecer-se à custa das outras províncias. O espirito particularista, sob a feição egoistica e ciosa de bairrismo, nunca foi o movel dos seus homens publicos. Politicos e
71 Um bom exemplo de que os discursos regionais aspiravam a ser o discurso da nação nos é dado pelos fatos
que têm sido discutidos aqui, ou seja, as próprias representações que os baianos faziam da sua história, na qual apareciam como “fundadores” da cultura brasileira. LUCA, Tania Regina de, op. cit., passim, reforça o argumento quando indica que a proposta que a Revista do Brasil, editada em São Paulo, entre 1916 e 1925, tinha para o país estava referenciado, sobretudo, na experiência histórica paulista, no momento em que São Paulo exercia a hegemonia econômica e política, e disputava a hegemonia cultural do país. Era, na verdade, uma paulistanidade que buscava se apresentar como nacionalidade. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento, op. cit., 1990, do mesmo modo, mostra como os mineiros se pensaram os maiores representantes da nacionalidade.
72 “Discurso proferido pelo Dr. Miguel Calmon”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 17, abr./1919.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 201
estadistas [...] invariavelmente encarnavam principios e agiram em nome de interesses nacionaes. A liberdade de commercio com o mundo, a organisação da justiça, a instrucção pública, as relações internacionaes, a extincção do elemento servil, a verdade eleitoral, os meios de transporte, a federação das provincias, a abolição da escravatura, a defesa das instituições juradas, cada uma dessas grandes theses, questões ou conveniencias geraes evoca de prompto um nome illustre dentre os representativos da antiga metropole brasileira. Inspiração, no governo ou nos altos conselhos governamentaes, elles não a pediam ao campanario; este, contrariamente, foi sempre esquecido, sacrificado pela visão ampla dos Cayrús, Nabucos, Zacharias, Ferraz, Rio Branco, Saraiva, Cotegipe. A Bahia teve em todos os tempos viva consciencia da sua responsabilidade perante a historia, como precursora e directora da cultura nacional.
Na percepção de Xavier Marques, a opção de exercer uma liderança desprendida,
em que se abnegava qualquer interesse particularista, adquiriu contornos dramáticos.
As conseqüências de se colocar a nação em plano superior foram danosas para a
província, que não logrou obter qualquer vantagem do fato de ter vários dos seus
homens entre os mais importantes políticos e estadistas. O mais grave dos prejuízos
relacionava-se ao comprometimento do próprio futuro, do engrandecimento que poderia
ter conhecido, mas que foi frustrado:
Podia ser a terra mais adeantada do Brasil. A partilha, porém, que ella disputava com enexcedivel ardor era nos sacrificios que à nação se impunham. Este idealismo patriotico lhe acarretou consequencias desfavoraveis, principalmente sob o ponto de vista do progresso material; mas a sua mesma rotina attesta que longe de autorisar a fantasiosa legenda — «a Bahia é dos bahianos» — ella, como nenhuma outra porção da patria, tem sido dos brasileiros. Bello e cavalheiresco é, não há duvida, tal desprendimento. Os bahianos da actualidade miram-se com ufania no rijo crystal desses espelhos de virtude, e querem permanecer fiéis à tradição, cultivando esse typo superior de civismo. Apenas, devendo dar satisfação às necessidades da vida moderna, vêm applicando nestes ultimos annos parte dos seus esforço aos interesses locaes immediatos. O nosso progresso era unilateral, era o do espirito. O que hoje buscamos, orientados por outro conceito da politica, opportunamente realista, é uma formula mais completa de civilisação, dentro da qual se harmonise com a grandeza dos Estados-Unidos do Brasil uma Bahia progressista e avantajada, não só moral, mas tambem materialmente.73
Como afirmou Marques, por ter sido altruísta em lugar de egoísta, por ter sido
mais para os brasileiros do que para os próprios baianos, diferentemente do queria
como verdadeiro a frase — «a Bahia é dos bahianos» —, o Estado não tirou nenhum
proveito da privilegiada condição política que teve um dia. E padecia, nestes tempos
infortunados, as conseqüências desta prática. Nos argumentos do escritor, subentende-
se, claramente, a mensagem: a preponderância exercida pelos principais Estados na
República tinha nítida feição regionalista, pois colocava em primeiro plano sobretudo os
seus interesses particulares.
73 MARQUES, Xavier. “A Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 5, abr./1918.
Capítulo 3 – “A Bahia — Já Teve” 202
Diante de toda esta situação desfavorável, tornava-se um desfecho natural
resgatar a memória das grandezas dos passado. E a saudade aparecia, assim, e antes
de qualquer coisa, como uma importante reação às dificuldades vivenciadas.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada”: raízes de uma crise e episódios adversos na ordem republicana
Demonstrada a existência das falas que lamentavam a “decadência”, o “declínio”,
a “crise”, o “infortúnio”, ou, noutros termos, as diversas formas de expressão,
percepção e sensação das experiências vividas pelas elites baianas nas primeiras
décadas republicanas, torna-se imprescindível avançar em direção a novas questões,
fundamentais para o alinhavar da trama montada neste trabalho. Não basta apontar o
sentimento de crise, é necessário, também, examinar algumas das interpretações a
respeito dos motivos que teriam levado a Bahia a vivenciar o declínio. Devemos, então,
analisar alguns registros das primeiras versões elaboradas para explicar os problemas
baianos, localizados nos próprios escritos do período — escritos esses assinados por
sujeitos que se sentiram frontalmente atingidos pelos infortúnios. Conforme revela a
maior parte das falas da época, uma das faces mais visíveis da crise, na opinião das
elites, era aquela relacionada ao aspecto político. Assim, visando proceder a uma
análise mais substanciada do contexto, será muito importante narrar alguns dos
acontecimentos que ilustravam o desprestigio da Bahia na nova ordem republicana.
Enfim, é imprescindível promover o diálogo entre impressões, explicações e vicissitudes
da época para perceber com maior clareza as características dos “tempos de infortúnio”.
A idéia de “Rainha Destronada”
Como apreender as percepções do alegado “declínio”? Como esquadrinhar o seu
processo? Desde o início, tenho acentuado os epítetos, as fórmulas simbólicas e as
imagens que foram largamente utilizados para se referir a Bahia, e minha estratégia
tem sido a de procurar deslindá-los para penetrar mais densamente nos problemas que
interessam a este estudo. Parece-me, portanto, razoável que recorramos a mais uma de
tais representações, e assim se possa esclarecer a acerca das questões que serão
colocadas doravante.
No presente capítulo, recuperar a idéia da “rainha destronada”, que, algumas
páginas atrás, mereceu comentários mais ou menos ligeiros, possibilita reflexões
promissoras. Vimos tratava-se de um título que, ao se ver acrescido do adjetivo, re-
qualificava o Estado, e expunha a sua nova condição: uma rainha que mantinha a
altivez, mas destronada de posto e prestígio. Para discuti-la, recorro ao jornalista Lemos
Britto que, mais uma vez, nos proporciona a oportunidade de penetrar nas significações
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 204
mais íntimas, claras, objetivas que recobrem a adaptação do título. Além disso, quando
utilizou a designação de “rainha destronada” e dispôs-se a caracterizá-la, facultou-nos a
chance de elaborar interpretações particulares sobre certos sentidos subjetivos da
imagem. Dentre as possibilidades interpretativas, há uma em que se pode tomar a idéia
da “rainha destronada” enquanto um epítome perfeito dos acontecimentos e problemas
vividos pela Bahia na Primeira República, o que terei a oportunidade de explicitar. Para
levar avante a tarefa de compreensão das suas significações, devemos analisar o trecho
de uma crônica da autoria do jornalista Lemos Britto, designada “Ao Interventor, a
Bahia”, parte integrante de um livro-coletânea denominado Na Barricada, Campanha da
Libertação da Bahia, de 1920, mas publicada, originalmente, no jornal Diário da Bahia,
editado em Salvador.
Todavia, é recomendável, antes de qualquer coisa, alguns esclarecimentos a
respeito das circunstâncias da sua produção. Todos os textos que compõem o livro-
coletânea, inclusive a crônica selecionada, têm por temática central os desdobramentos
da chamada “revolução sertaneja”, que sublevou, nos meses iniciais de 1920, diversos
coronéis do sertão baiano contra o governo estadual. Lemos Britto colocou-se,
visivelmente, ao lado dos coronéis do sertão, a quem julgava libertadores. Não
aprofundarei mais sobre esse episódio porque ele merecerá uma abordagem mais
detalhada adiante. Por ora, o que foi colocado é suficiente para contextualizar a crônica,
e o importante é atentar para o que ela nos tem a dizer.
Britto construiu o seu texto imaginando um diálogo entre a Bahia, representada
pela figura de uma mulher, e o interventor federal no Estado. E foi exatamente pela voz
desta personagem feminina que o autor falou das suas próprias angústias, que não
deixavam de ser as mesmas de outros muitos baianos. Na maneira como descreveu
essa mulher, a própria “rainha destronada”, que identifico a insinuante riqueza
simbólica e imagética da representação. Eis parte da crônica:
Alguem pede ao sr. general uma entrevista. S. ex., cavalheiro e gentil, manda ao cabo de ordens que corra o respoteiro verde de seu gabinete e introduza no recinto a impetrante daquella graça. Imponente como uma rainha desthronada, assoma aos humbraes do gabinete um vulto de mulher. Cobre-lhe a majestosa figura manto negro, e de seus olhos, agora enxutos, mas vincados pelas lagrimas de amargura, fuzilam raios. [Grifo meu] O interventor, tocado dessa majestade, e commovido diante dessa expressão terrível de dor, perfila-se como em continência à bandeira da pátria. A visitante tudo domina com o seu olhar e com o seu donaire. O estado-maior acompanha o chefe no seu gesto de reverencia e de respeito. E a mulher fala: — Eu sou a Bahia... Talvez que já ouvísseis falar dessa princesa que descia de seus paços com a alvorada, a tocar com a ponta de suas sandálias a fimbria rumurosa das águas onde Moema pereceu de amor... Eu sou essa princesa, Senhor! De meu reinado, deponha por mim a nossa historia. «Bahia, mãe dos Grachos americanos», disseram. E ainda bem que o disseram. Quantos generaes,
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 205
como vós, quantos almirantes, quanto soldado e marujo dalmas intrépidas, gerei!... Virginia do Brasil, sentencearam de mim. E ainda bem que a justiça até ahi não falhou! Nestes seios, agora sem o liquida da vida, exgottados e sumidos, amamentaram-se os maiores estadistas do Brasil. Toda aquella plêiade luminosa, toda a constellação brilhantissima de astros dos céus do império, e ainda o maior dos maiores de uma e outra épocas, fui eu, Senhor, quem os gerou nestas entranhas, fui quem nestes seios os amamentou... A essa voz dominadora, ninguém se move, alli. Abandonados, voam pelo assoalho os mappas e os papeis da mobilização... — Eu sou, senhores, a Bahia... Não ajuizeis de mim pelos meus andrajos, não avalieis de meu valor pelo balbuciar de minha voz... Meu sceptro, arrebatou-m’o a horda de aventureiros que as fortalezas nacionaes cuspiram, um dia, sobre as eminências de onde eu regi os destinos do império, e lutava por me fazer digna dos altos destinos da Republica! A despeito de todos os amargores, eu sou ainda a Bahia que forneceu os batalhões gloriosos do Paraguay... O general atalhou: — E que desejaes de mim? — Uma só coisa. Senhor — que não derrameis o sangue de minha prole... Não vos agasteis comigo. Os que monopolizam a força, fazem-se intolerantes e inclementes. Sede, vós, general, discreto e generoso. Há oito dias que vagueio sem paz e sem somno. Ponho o ouvido a escuta, e a elle so me chega o cavo rumor das tropas em marcha, dos canhões que rodam, dos aviões que evoluem, roncando nos seus motores, das bellonaves que singram o oceano, com a artilharia ao sol. Indago, então, se a pátria perigou no seu território, na sua honra, na sua Bandeira... Se a Republica ameaça desabar.... Se o extrangeiro pisa as fronteiras nacionaes. Se assim fora, iria eu, como sempre, de terra em terra, de pousada em pousada, despertar os que gerei e a cada qual de meus filhos repetiria como outr’ora: — Surge et ambula! Levanta-te e caminha! Vae cumprir o teu dever. Fraterniza com a tropa. Sê brasileiro! Mas indago e respondem: — Desgraçada, essas legiões movem-se contra teus filhos! E então, Senhor, corri até aqui assombrada e em desvario, queimando as lágrimas nos olhos, estrangulando os soluços na garganta, apertando no peito o coração, para vos perguntar se isto é verdade, se é verdade [sic] Tanto horror perante o céo!...»1
[...]
Britto parece realizar a repetição de uma fórmula conhecida, na qual as suas
palavras procuravam traduzir o que seriam, supostamente, os sentimentos coletivos de
toda a Bahia diante de um fato encarado como relevante, quando estavam exprimindo,
no máximo, os sentimentos e percepções de um determinado grupo — grupo, aliás, que
nesse caso era ainda mais restrito, pois o acontecimento que motivou a crônica acabou
por dividir os próprios baianos. Reincidiu, também, na evocação das glórias e tradições
do passado, prática bastante costumeira tanto nas situações mais delicadas quanto nas
mais imponentes, sem não falar nas casuais. Foi exatamente desse modo que ele se
manifestou no episódio da repatriação dos restos mortais do casal de ex-imperadores
comentado no capítulo anterior (mas saliento que, cronologicamente falando, a
“revolução sertaneja” ocorreu antes, passando-se nos meses iniciais de 1920, enquanto
a “repatriação” aconteceu em dezembro do mesmo ano).
1 BRITTO, Lemos. “Ao Interventor, a Bahia”. In Na Barricada, p. 97-104.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 206
Como a crônica é um pouco longa, as partes transcritas acima constituem
apenas a sua primeira metade — trecho considerado por mim suficiente para assinalar
os aspectos que agora mais interessam. Mas informo, para conhecimento do leitor, que,
na continuação, o autor descreve a “Bahia” numa atitude de súplicas ao interventor,
detentor tanto de recursos bélicos quanto de efetivos militares superiores aos dos
sertanejos. Por isso, ela implorava-lhe para que não cometesse nenhuma “injustiça” ou
provocasse qualquer ato de “maldade” contra seus filhos.
Voltemos ao excerto... Nele nota-se traçadas as feições, as preocupações e,
também, a linhagem histórica da destronada rainha. Ao ordenar os detalhes revelados
sobre ela pelo autor, encontramos a descrição de uma mulher que mantinha ares
imponentes, majestosos, distintos e garbosos (palavras estas, as duas últimas,
sinônimas do “donaire” utilizado na crônica). Nesse sentido, podia não dispor de trono
nem de cetro, arrebatados, de acordo com a fala do texto, pela “horda de aventureiros”.
Mas ainda assim era uma rainha em posse completa da sua majestade. Na face
denotava amargura, reflexo de uma “terrível dor” — os olhos “enxutos, mas vincados
pelas lagrimas”, com que aparecera diante do interventor, deixavam transparecer os
sentimentos que lhe dominavam. No tocante à voz, até podia ser balbuciante, mas o
olhar, era capaz de dominar a todos, a ponto de “fuzilar raios”. Quanto às suas vestes,
não há indicações substanciais, lê-se apenas que tinha um manto negro a cobrir-lhe, e,
mais adiante, foi mencionada a trajar andrajos — o que parece insinuar a pobreza
material da rainha. A nota de orgulho foi ter gerado estadistas e militares de diversas
patentes, todos aptos para servir à nação. Já discuti exaustivamente sobre o assunto,
mas ainda assim merece um breve retorno, pois ao mantê-lo em evidência se recupera
dois epítetos até então desconhecidos: “Bahia, mãe dos Grachos americanos” e “Virginia
do Brasil”. Por fim, Britto apresentou uma rainha resoluta na defesa da própria
integridade e da sorte de seus filhos, ainda que pudesse estar humilhada com a
“desgraça” que lhe fora impingida.
Se for permitido pensar a designação de rainha — desacompanhada de qualquer
adjetivo — como metáfora da soberba dos baianos, os seus “andrajos” como metáfora
das limitações econômicas da terra, a perda do trono e do cetro como metáfora do
declínio político, o confronto com o interventor como metáfora de todas as
reivindicações por justiça, tem-se na idéia da “rainha destronada” — e agora sim,
tomando o substantivo acompanhado pelo adjetivo — aquilo que considero uma perfeita
síntese do estado de consciência de amplas parcelas das elites baianas no tocante às
suas vicissitudes. Dentre todos os títulos, epítetos, idéias e imagens utilizados para se
referir à Bahia, esta forma de designação é, para mim, a que melhor traduz as tensões
e contradições vivenciadas pelas elites na sua busca por um lugar ao sol republicano —
tensões e contradições inerentes às ações de idealizar o passado, padecer com o
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 207
presente e expectar o futuro (de preferência positivamente). E por estar convencido da
sua propriedade, tomei-a de empréstimo não apenas para denominar o capítulo, mas
também para dar título a este trabalho.
Ao utilizar a designação não quero avalizar os argumentos que, porventura,
pregavam a “decadência” da Bahia, desejo apenas acentuar o desconforto de alguns.
Esta consideração é extremamente necessária porque não acredito que na sociedade
escravista do Império a situação da Bahia fosse melhor para todos, era boa, no
máximo, para parcelas das elites, enquanto a maioria convivia com as dificuldades
típicas da época. Sob o novo regime, as coisas não mudaram muito para os que já
sofriam. Mas, segundo as sensações dos próprios envolvidos, tornaram-se mais árduas
para sujeitos oriundos de extratos sociais antes habituados a colher um pouco mais de
vantagens e benesses, fossem elas políticas ou de outras modalidades. Ao meu ver, se
algo ou alguém decaiu, sem dúvida foram as elites baianas, junto com todos aqueles
outros aspirantes a se constituírem em mais um dos seus integrantes, e não a Bahia,
mesmo porque esta, tal como apresentada aqui, não passava de pura imaginação.2
No que foi rainha, já pude expor extensiva e, quiçá, intensivamente, se não o fiz
não foi por falta de vontade. Quanto aos fatos que justificariam o qualificativo de
destronada bem como ser descrita enquanto uma figura andrajosa, quais sejam, a
diminuição do prestígio político e a condição delicada da sua vida econômica, começarei
a examiná-los. Mas desde já, informo que por opção particular, vinculada ao sentido da
trama que procurei construir no presente trabalho, minha preocupação se fixará muito
mais no aspecto político e menos no econômico.
As raízes da crise nas explicações de época
Se nos concentrarmos nas falas de época, distinguiremos variados níveis de
compreensão acerca das causas para as vicissitudes que acometeram a Bahia entre o
Império e a Republica. Algumas explicações eram bastante simplistas em suas
formulações, atendo-se à superficialidade da situação ou deixando-se motivar pela voz
do (res)sentimento, a qual produzia uma reposta mais imediata ao desconforto
experimentado. Outras delas evidenciavam uma percepção apurada dos fatos,
apresentando argumentos mais consistentes e baseados em razões históricas ou
estruturais. Entre os dois extremos, havia uma série de explicações que pendiam ora
para um lado ou ora para outro, revelando-se enquanto interpretações que oscilavam
entre o emocional e o racional, mesclando-os frequentemente. Entretanto, ao meu
modo de ver, todos se equivalem em importância, pois traduziram as múltiplas formas
2 Lembremos do conceito de “comunidade imaginada”, elaborado por ANDERSON, Benedict, op. cit.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 208
de vivenciar, sentir, significar e, por fim, re(a)presentar a experiência da “crise” ou do
“declínio”.
No capítulo anterior, reportei-me a um conjunto de opiniões que atribuíam os
problemas da Bahia à mudança de regime político, à falta de reconhecimento no cenário
nacional e ao “ódio” contra o Estado, dentre outras coisas do gênero. Braz do Amaral,
um dos personagens nesta minha narrativa, foi um dos que se referiram aos três
fatores aí assinalados. Contudo não se deve pensar que ele não tivesse explicações mais
elaboradas a oferecer, embora as mesmas nem sempre conseguissem ser
suficientemente convincentes. Não quero dizer, também, que sejam de todo
impertinentes, porém, na leitura que faço do autor, sinto a falta de dados mais
consistentes bem como a adoção de procedimentos metodológicos mais adequados para
tornar menos questionáveis as conclusões a que chegou.
Como cuidadoso historiador, sempre a cata de documentos para “comprovar” as
afirmações lançadas ao leitor, e observador atento dos problemas do seu tempo, Braz
do Amaral expôs entre os fatores para o “declínio” da Bahia tanto causas históricas,
retroativas ao século dezenove, quanto causas ligadas ao momento então vivido. Na
sua História da Bahia: do Império à Republica, por exemplo, livro lançado em 1923,
quando discorreu sobre a contribuição da Bahia para a campanha de guerra no
Paraguai, entre 1864 e 1870, ele ressaltou os impactos na produção econômica da
província ocasionados pelo deslocamento de um grande número de homens que foram
servir ao exército brasileiro. Assim argumentou que “especialmente para a Bahia a
guerra do Paraguay foi desastrosissima”, justificando o porquê:
A exploração feita da susceptibilidade nervosa do publico, a especie de febre ou delirio de patriotismo, que se manifestava num grande alistamento de grande parte da população valida, produziu o abandono do progresso que se ia verificando na provincia que se esgotou de homens. A gente que foi para a guerra era a mais moça, a mais forte, a mais activa, a mais capaz do trabalho, o que produz as searas e que ajuda as machinas. Esta gente foi morrer, pela maior parte, nos campos da Argentina e do Paraguay [...]. A gloria militar é ephemera em toda a parte e aqui a gloria da Bahia ainda o foi mais, porque o grande esforço dos baianos comprometteu o futuro da Bahia, deixou-a na miséria e no luto e o hoje os filhos dos Estados do Sul, por isso, nos olham com despreso, porque a nossa lavoura não é o que podia ser, o que não aconteceria se della não tivessemos tirado cerca de 40 mil braços, para fazer este sacrificio. A nossa industria ficou para traz, porque diminuindo a producção diminuiu a riqueza e lá ficaram sempre rudimentares os capitaes de que ella precisa para se organisar, cahindo tudo no circulo vicioso dos males que acarretam outros. A gratidão não é a caracteristica dos povos e a menção de que a Bahia muito serviu ao Brasil, para desagravar a sua bandeira, não produz nos brasileiros um sentimento que para esta terra se traduza em melhoramentos que correspondam a uma compensação aos sacrificios feitos.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 209
Os actos do poder publico, tão numerosos anteriormente à guerra, relativos a estradas, pontes, melhoramentos de toda a sorte das cousas que fazem prosperar e trazem o bem estar, e o conforto a todos, desappareceram ou diminuiram muito; o que quer dizer que os reaes interesses da vida da Bahia foram abandonados, para acudir ao interesse da nação que hoje não faz caso disto. Olhando para os algarismos que damos no correr deste livro se comprehende como foi desastrosa a retirada de perto de 40 mil braços validos do amanho da terra e como foi enorme o nosso infortunio, com a deploravel vaidade de fazer a Bahia figurar como a provincia que mais generosamente se dedicava pelo Brasil.3 (grifo meu)
Nesse trecho, Braz do Amaral realça os efeitos de seis anos de guerra para a
produção econômica baiana, que teria ficado desprovida da força de vinte mil indivíduos
(ou quarenta mil braços, como preferiu citar), jovens na sua maior parte, que, conforme
sua idealização, partiram motivados pelo desejo de servir à pátria. Lê-se que o setor
inicialmente mais afetado fora aquele ligado à atividade agrícola, o grande gerador de
riqueza para a província. Secundariamente, tal abalo acabou trazendo conseqüências
para a indústria, que se viu desprovida de maior volume de capitais. Esta tese não deixa
de ser interessante, no entanto, desconheço qualquer estudo histórico que confirme a
sua veracidade com dados mais substanciosos.
Para Amaral, as lutas no Paraguai causaram o arruinamento econômico da Bahia,
e seus efeitos foram ainda mais danosos porque não existiu o reconhecimento posterior,
bem como não se fez nenhuma compensação pelo sacrifício feito em prol da nação
brasileira. Se antes da guerra teria havido investimentos em setores que estimulavam a
prosperidade baiana, após o seu término ocorreram a diminuição e o desaparecimento
dos mesmos. Na avaliação de Braz do Amaral, o saldo resultante foi que “o grande
esforço dos baianos comprometteu o futuro da Bahia”, que acabou superada depois
pelos Estados (províncias, se pensarmos em termos de Império) do Sul. Se houver
preferência em pronunciar a coisa de outro modo, atentemos para as linhas que
finalizam a transcrição, nas quais foi usada uma palavra que ajuda muito a definir a
maneira como se enxergou a era republicana: “como foi enorme o nosso infortunio, com
a deploravel vaidade de fazer a Bahia figurar como a provincia que mais generosamente
se dedicava pelo Brasil”. (grifo meu)
Apenas um ano antes da publicação do livro citado há pouco, no qual enunciou
uma raiz histórica para os problemas vividos pelo Estado, Braz do Amaral registrou, no
artigo designado “Sobre as finanças da Bahia”, suas impressões a respeito de questões
mais recentes, procurando analisar o que constituía a “infelicidade” da Bahia na
República. No início do artigo, entretanto, revolveu o histórico da crise financeira que
abalava o Estado, um “mal” que, segundo ele, “não é dos nossos dias, pois tem nada
3 AMARAL, Braz do, História da Bahia, p. 249-250.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 210
menos de sessenta anos” — diga-se que o texto foi assinado em 1922. E fez nele,
dentre outras coisas, menção aos impactos gerados pela Guerra do Paraguai. Mas a
ênfase recaiu naquilo que consistia os influxos mais próximos no tempo. Assim, não se
intimidou em criticar as várias administrações baianas que se sucederam desde a
instalação da nova forma de governo, reputadas “incompetentes em matéria de
economia e finanças”, haja vista que por conta delas “jamais houve equilibrio
orçamentário e folgas de dinheiro”. Se tratou das dificuldades econômicas como algo
engendradado desde décadas anteriores, não deixou de penetrar no terreno delicado
dos fatos e influências da política como ocasionadores de graves conseqüências para a
própria vida política e a econômico-financeira da Bahia. Eis seus argumentos:
[...] [a] Bahia há cerca de 20 annos tem permanecido em opposição ao da republica, o que unido ao ódio, mais ou menos disfarçado, porém, persistente, que há contra a Bahia neste paiz tem privado o Estado das vantagens de muitas obras de utilidade, próprias a fomentar a producção, de que S. Paulo, Minas Gerais, Rio Grande e outros têm largamente aproveitado. Os productos do Estado, sujeitos às crises commerciaes, não têm encontrado salvação para elles nas valorizações artificiaes à custa da nação, que tem outros achado, e o mesmo acontece nas calamidades publicas, inundações e seccas.
Já discuti acerca do “ódio”. Não tratei, contudo, das suas implicações na relação
com o elemento político. Vejamos... Lê-se no trecho que, afastada da alta administração
nacional, a Bahia não tinha como obter vantagens ou proteção do governo federal, tal
como ocorria com São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul. Para Amaral, isso ficava
patente sobretudo nos momentos críticos. Para confirmar a sua asserção, citou como
exemplo a diferença de tratamento recebida pela enchente do Itapicuru, ocorrida na
Bahia, no ano de 1914, e pela geada nos cafezais de São Paulo em 1918. Na primeira
ocorrência, os danos sofridos teriam sido amenizados com recursos exclusivos do
próprio Estado; enquanto na segunda, a União teria socorrido os cafeicultores, cujos
prejuízos foram cobertos com milhares de contos.4
Mas Amaral não via esses casos apenas como descaso do Governo Federal,
responsabilizava, também, os representantes políticos baianos, que, por diversas
razões, não se mobilizavam em prol dos interesses do Estado:
É verdade que, em boa parte, cabe a responsabilidade disto à representação do Estado, sempre dividida por partidarismos, inapta para se unir, isentando-se delles em muitas das occasiões em que precisam os interesses da Bahia que ella se apresente compacta, para ter prestigio. Ninguém, de boa fé, poderá negar o inconveniente de serem muitos deputados da Bahia moradores no Rio de Janeiro, mudando-se para lá
4 Para as transcrições e as últimas referências, ver AMARAL, Braz do, Assumptos de Actualidade sobre
Finanças da Bahia..., p. 7.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 211
desde que obtêm uma cadeira na Câmara, do que resulta se tornarem muitos delles estranhos ao Estado, de cujas necessidades às vezes pouco ou nada sabem, salvo algumas honrosas excepções. Isto, e a circumstancia de não serem mudados os mandatos por muitas legislaturas, os torna, não raro, indifferentes para com a sorte da sua terra.5
As cisões partidárias, o afastamento do local de origem, a indiferença e a
acomodação (em seus múltiplos sentidos) nos cargos caracterizariam os deputados
baianos. Nesta fala, os próprios baianos eram, também, culpabilizados pela condição
adversa. As dissensões políticas foram tão acentuadas, e, por essa razão, tão fáceis de
demonstração, que merecerão um tópico à parte. Quanto às outras queixas, uma parte
é mais evidente, como a fixação de residência no Rio de Janeiro, o que se dava não
apenas com os políticos de nível nacional, pois muitos intelectuais e profissionais
baianos, em busca de melhores oportunidades, procuraram se estabelecer em outros
lugares do país, principalmente na capital federal.6 Por conta disso, chegaram a ser
designados de “invasores” por um jornal do Rio de Janeiro — aspecto a ser discutido
detidamente no próximo capítulo.
A outra parte, relacionada à acomodação e indiferença, conquanto possa ter
fundamento, é mais difícil de atestar. Posso acrescentar a respeito que a historiadora
Kátia Mattoso, quando comenta sobre os políticos baianos da fase imperial, e sem fazer
qualquer alusão aos do período republicano, tem opinião semelhante à de Braz do
Amaral. Para ela, “a enorme participação na chefia do governo central poderia ter sido
particularmente benéfica aos negócios da Bahia, se os políticos tivessem lutado pelos
interesses de sua província de origem”. Contudo, uma vez alocados “no poder, os
homens se identificavam rapidamente com o Estado Nacional”. E numa declaração mais
incisiva, considera que os “funcionários e políticos de alto bordo, uma vez no Rio de
Janeiro, cercados de honrarias, tendiam a esquecer que eram baianos”.7 Não saberia
informar com precisão que idéia Amaral tinha sobre os políticos imperiais no que
concerne à defesa dos interesses da terra de nascimento, mas, de acordo com o que
aduz Kátia Mattoso, o desleixo que acusava nos republicanos teve o seu precedente
naqueles estadistas tantas vezes louvados nas décadas imediatamente posteriores ao
fim da monarquia.
Mesmo criticando os deputados co-estaduanos, Amaral tendia a uma maior
incriminação dos agentes nacionais. Por isso, requeria ao governo federal que
5 Idem, ibidem, p. 7-8. 6 Se for analisado o local de falecimento de intelectuais, cientistas, profissionais e políticos baianos com
projeção nacional, constata-se que um grande número pereceu fora da Bahia, dentre eles: Rui Barbosa, Afrânio Peixoto, Lemos Britto e Wanderley Pinho. É interessante verificar o anexo com dados os bibliográficos de alguns sujeitos da época republicana que participam desta trama.
7 MATTOSO, Kátia Maria de Queirós, Bahia, século XIX, p. 289, 651 e passim.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 212
abandonasse “a insensata má vontade e a inqualificavel e injusta prevenção que mostra
pela Bahia e faça uma política larga, boa e honesta, praticando comnosco como tem
feito com outros Estados”. Daí, citaria investimentos, melhorias, obras de infra-
estrutura e ações a favor de núcleos de imigrantes como iniciativas necessárias. E como
uma espécie de arremate, escreveu: “quando isto se fizer, que é o que se tem feito nos
Estados do Sul, estará resolvido o problema”. Aos administradores estaduais, por seu
turno, a exigência foi para que demonstrassem abnegação na condução da coisa pública
baiana.8
Wanderley Pinho (1890-1967), mais um dos historiadores contemporâneos dos
“dramas” baianos nas primeiras décadas republicanas, também apresentou uma
exposição dos motivos que teriam provocado o declínio da Bahia. O texto-base de que
me utilizo foi publicado na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, sendo
ele o complemento de um discurso proferido na sessão magna de 3 de maio de 1931,
cuja temática central girou em torno do humor do seu falecido avô, o Barão de
Cotegipe. O complemento do discurso levou o título de “Porque a Bahia Perdeu a
Hegemonia Politica — Causas Econômicas”.9
Antes de prosseguir na análise do documento, devo assinalar que, em termos de
idade, Pinho, vinte e nove anos mais jovem, fez parte de uma geração posterior à de
Braz do Amaral (1861-1949). Do ponto de vista da datação, enquanto o seu texto veio
à luz em 1931, meses depois da chamada Revolução de 1930, o historiador mais velho
escreveu no início da década de 1920, contexto que teve suas particularidades próprias.
Mas as semelhantes preocupações compartilhadas por eles atestam como o sentimento
de perda foi passado de uma a outra geração das elites locais, por décadas mantidas
insatisfeitas com as mudanças ocorridas por conta da substituição do regime político. A
identidade entre ambos foi, de certo, facilitada pelo fato de serem sócios do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, o qual teve a função de ser um espaço para a
divulgação de loas ao Estado e a manifestação de desabafos contra a condição recente.
Voltemos, agora, ao texto de Wanderley Pinho. Embora insinue os fatores
econômicos como causa da perda de hegemonia política, ele não se restringiu a tal
aspecto da questão, tendo considerado outros elementos com os quais se imbricava. De
antemão, só se recusava a aceitar que a Bahia houvesse perdido a “raça de grandes
homens”, pois, para ele, “o nosso espírito se mantem o mesmo; é ainda a mesma a
vivacidade da intelligencia; a calma reflectida; a malicia honesta; a coragem quieta e a
bravura recôndita, capaz de ezplodir (sic) em heroismo nas grandes occasiões e na 8 AMARAL, Braz do, “Sobre as finanças da Bahia”, p. 9-10. 9 PINHO, José Wanderley de Araújo. “Discurso [...] proferido na sessão magna de 3 de maio de 1931”. Revista
do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 57, p. 445-493, 1931. O trecho que utilizo, “Porque a Bahia Perdeu a Hegemonia Politica — Causas Econômicas”, encontra-se entre as páginas 486 e 493.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 213
defeza das grandes causas da pátria; ainda é a mesma a educação, o atticismo mental
e moral” — ou seja, acreditava na preservação daquele talento especial que teria
talhado o baiano para o exercício das funções políticas. Sem aprofundar detalhes,
sugeriu que a Bahia já vinha “fraqueando”, “e com a entrada da republica cedemos o
sceptro a S. Paulo e a Minas, que nunca mais deixaram de mandar, e de explorar esse
mando em benefícios materiaes, com que cimentaram a sua prosperidade econômica, a
sua riqueza, o seu progresso”.
Pinho considerava como primeira causa para a perda de hegemonia a própria
mudança de regime político. Mas diferentemente daqueles que viram nesse
acontecimento um mal em si, o historiador vai elaborar um novo argumento para
justificar de que modo afetou a Bahia. Assim, traçou uma comparação entre a
Monarquia e a Republica no tocante às organizações partidárias e à forma de
recrutamento dos indivíduos para participar da administração do Estado nacional. Em
relação ao Império, afirmou que os partidos eram nacionais e a seleção se dava a partir
da qualidade demonstrada pelos homens públicos no parlamento e na administração das
províncias. Estas idéias se aproximam do que nos apresenta José Murilo de Carvalho,
para quem um certo tipo de formação intelectual, normalmente obtida nas faculdades
de Direito e Medicina, e a identificação com o projeto político imperial foram os
fundamentos de cristalização de uma elite política imperial. Sabe-se que as elites da
província baiana — que no século XIX ainda detinha um papel econômico importante —
puderam enviar muitos dos seus filhos para realizar estudos superiores em cidades
portuguesas ou do próprio país, instrumentalizando-os para os cargos imperiais.10
No que se refere à República, Pinho comentou o surgimento dos partidos de
dimensão estritamente estadual, com isto “creando, estimulando e alimentando os
regionalismos políticos”. Na sua visão, a fórmula descentralizada da república federativa
gerou as condições para a emergência dos interesses particularistas dos diversos
Estados. De algum modo julgou natural a preponderância inicial de São de Paulo, que
decorreu do fato de ocupar o centro da propaganda republicana. Chamou, também,
atenção para o fato de que, após duas presidências civis paulistas, Minas Gerais
começou a participar do jogo. Em suas próprias palavras, “dahi em diante com as
interrupções Hermes e Epitácio só paulistas e mineiros, revesando-se, disputando-se,
conxavando-se exerceram esse poder quase sem freios de um presidente da republica”.
Justificou o predomínio de Minas pelo “numero esmagante de uma bancada enorme”,
que representava o Estado com maior população no país; enquanto a supremacia de
São Paulo foi atribuída à “acção de sua economia crescente, da sua riqueza em
desenvolvimento mágico”. Ficou muito nítido, para ele, quanto o poder econômico
10 CARVALHO, José Murilo de, A construção da ordem, p. 55-63.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 214
condicionava o exercício do poder político. Pensando em termos comparativos entre o
Norte e o Sul, afirmou:
Desaparelhamo-nos para o desenvolvimento econômico que se fazia noutra progressão naquelles dois estados. Ao mesmo tempo se operava no paiz uma transformação enorme conseqüente à mudança de eixo da economia nacional. O norte que mantivera a hegemonia politica como uma alliada e uma decorrência da hegemonia econômica cedia esta ao sul. A civilisação e a politica do assucar era vencida pela civilisação e a politica do café. E já em pleno regimen monarchico essa transição se processava. Perdíamos a base econômica que é o cimento dos governos.11
Na continuidade da explicação, tocou ainda em outros elementos, tais como: a
perda do mercado externo do açúcar, a desestruturação da força de trabalho
ocasionada pela Abolição, além da mentalidade do trabalhador (que via no ócio um ideal
e no trabalho um aviltamento) enquanto fatores que afetaram os Estados do Norte. Por
outro lado, comentou que o Sul — ou para ser mais claro, São Paulo — vivenciou a
criação de um mercado externo para o seu principal produto, ou seja, o café, bem como
conheceu o estímulo para uma nova organização do trabalho, baseada na força dos
imigrantes. Assim, enquanto uma parte do país experimentava a pobreza, a outra parte
experimentava as possibilidades geradas pelo enriquecimento crescente.
O deslocamento do eixo econômico, que depauperou o Norte, trouxe, segundo
Wanderley Pinho, uma conseqüência para a atividade política, porque, como registrou,
“uma região pobre há de ter uma politica de pobres”:
E a pobreza faz apparecerem, sobrenadarem qualidades que a riqueza afoga mas não mata. Essa excessiva vitalidade política de que nos queixamos, o eterno descontentamento para com os governantes, a ancia de destruir para subir não são privilégios nossos, há por toda parte em nortistas ou sulistas em bahianos ou paulistas, em nós em maior gráo e em maior intensidade, effeito da nossa precariedade economica.12
O que ele propõe, portanto, é uma interpretação em que o aspecto político
aparece subordinado aos ditames econômicos, até mesmo no que diz respeito à
qualidade por ela assumida. Baseado em tais princípios, os quais relacionavam a prática
política ao nível da riqueza possuída, Pinho ofereceu uma explicação inusitada para as
dissidências políticas baianas, tratadas como “politiquice”. Se havia um acirramento das
disputas era porque, conforme explicava, “a base econômica de nossos partidos ou
faccções” estava assentada no “emprego publico”, assim “as luctas políticas” tinham
“muitas vezes o aspecto do combate pelo pão quotidiano”. Em sua opinião, o lado
11 Idem, ibidem. 12 Idem, ibidem.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 215
reverso seria a “plutocracia”, típica dos Estados do Sul, caracterizada por “a espera e a
acção menos instantanea e mais tenaz”, cujos ganhos chegariam como “proteção official
directa ou indirecta, paga ou estimulo pelos serviços partidários”.
O médico Braz do Amaral e o bacharel em direito Wanderley Pinho, que podem
ser considerados os dois mais importantes historiadores baianos das suas épocas (não
apenas por terem nascido na Bahia, mas também pelo modo como se dedicaram ao
estudo da sua história), elaboraram explicações que convergem em muitos pontos.
Fatores que remontavam ao passado, ao rearranjo provocado pela ascensão de novas
regiões na economia e na política nacionais, às acirradas desavenças entre as facções
políticas dentro do Estado e até falta de um apego maior à terra da parte de muitos
baianos foram os elementos julgados causadores do declínio.
O diferencial se encontra no tom empregado nos seus respectivos escritos, pois
enquanto Amaral deixava transparecer um inequívoco ressentimento, tal era a carga
emocional despejada nos textos que escrevia, Pinho, ainda que estivesse sensibilizado
com o “drama” baiano, adotava uma postura no mínimo comedida. Quais as razões para
isso? Embora ambos sejam tomados como testemunhas privilegiadas dos
acontecimentos aqui narrados, a grande diferença de idade a separá-los talvez seja a
mais plausível justificava para a atitude distinta. Amaral nasceu em pleno Império, no
ano de 1861 — cresceu, portanto, acompanhado a trajetória bem sucedida de muitos
dos políticos e intelectuais baianos que fizeram as pretensas glórias da Atenas
Brasileira. Ele contava vinte e oito anos quando a monarquia caiu e, talvez, pretendesse
trilhar o mesmo caminho ascendente dos ilustres conterrâneos, dos quais era
contemporâneo. E permitam-me especular, o desenvolver do regime republicano, que
acabou por frustrar as expectativas de muitos, teria significado, então, o abortamento
de algumas das suas aspirações.
Wanderley Pinho, por sua vez, nasceu em 1890, no ano seguinte à Proclamação
da Republica. Assim as referências mais diretas que trazia das grandezas baianas
pretéritas não fora uma experiência vivida pessoalmente, mas uma herança de família,
visto que seu pai, João Ferreira de Araújo Pinho, teve carreira de razoável relevância no
Império, chegando a ser nomeado presidente de província — na República chegou a
governador do Estado. Mais importante que o pai foi o seu avô materno, o barão de
Cotegipe, conforme já tive a oportunidade de comentar em algumas passagens do
texto. Pinho não chegou a conhecê-lo vivo, posto ter o barão morrido um ano antes que
ele tivesse nascido. Mas ainda assim, parecia ter o avô como um grande exemplo de
personalidade, o que lhe estimulou um intenso orgulho do falecido. Por isso, em
diversos momentos da sua trajetória de historiador dedicou-se a recuperar, direta ou
indiretamente, a memória e a história do famoso personagem imperial, em escritos
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 216
como Cotegipe e seu tempo, Política e Políticos no Império, Salões e Damas do Segundo
Reinado, etc.
Além das peculiaridades psicológicas que obviamente marcam a personalidade de
cada um dos indivíduos, a mim parece bastante provável que o fato de reter ou não
uma memória pessoal do Império — memória que tenha sido adquirida por uma
vivência concreta desse período, e não aquela baseada nos relatos de ascendentes ou
da memória social coletiva — ajudava a temperar os sentimentos, tornando-os mais ou
menos rancorosos. Braz do Amaral e Wanderley Pinho representariam, na prática, os
dois pólos extremos na escala das múltiplas gerações de indivíduos que muito tiveram
razões para lamentar os infortúnios da Bahia — um dos pólos a reunir os nascidos num
momento de solidez institucional do Segundo Reinado, o outro a agrupar os nascidos
mais para o final da monarquia ou no início da era republicana.
Em paralelo às lamentações, e talvez por elas estimuladas, sobrevieram as
tentativas de decifração dos motivos que levaram ao destronamento da tão vaidosa
Rainha do Norte. E foi aí que se destacaram os historiadores Braz do Amaral e
Wanderley Pinho. Apesar dos ressentimentos que acumulavam, não tenho dúvidas em
dizer que eles foram perspicazes formuladores de explicações para o declínio baiano,
mas, obviamente, precisa-se ter o cuidado de subtrair os “excessos” contidos nas
mesmas. Respaldo minha interpretação no fato das “explicações” de ambos terem sido
assimiladas e ganhado maior solidez analítica nos estudos de diversos historiadores que
lhes sucederam, conforme será visto a partir de agora, quando faço a passagem das
percepções da época para as abordagens historiográficas do assunto.
A Bahia na federação brasileira, a partir dos informes historiográficos
Tomando por base a exposição de Braz do Amaral e Wanderley Pinho, vejo dois
pontos a se sobressaírem, os quais ganharam inclusive maior aprofundamento dentro
da historiografia. O primeiro refere-se ao aspecto político e toca na relação entre os
Estados e o governo federal, sobretudo na capacidade de exercer e/ou influenciar no
poder nacional, bem como na dinâmica interna da política estadual. O segundo refere-se
aos problemas econômicos, cujas origens remontariam ao século XIX, e que passaram a
ser visto por muitos como um dos principais entraves a qualquer projeto de hegemonia.
Afora os elementos políticos e econômicos, os demais argumentos apresentados pelos
dois historiadores caracterizam-se por uma subjetividade difícil de ser atestada, e, por
isso, mais delicada em termos de abordagem para o pesquisador. Vejamos então as
considerações sobre o político e o econômico.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 217
Alguns historiadores já analisaram os mecanismos de assenhoreamento do
poder no regime republicano. E as descrições que elaboraram a respeito do assunto
confirmam a pertinência de diversas críticas feitas pelos contemporâneos do processo
político em curso nas primeiras décadas do século XX, das quais Amaral e Pinho servem
de exemplo. Maria do Carmo Campello de Souza, em artigo designado “O processo
político-partidário na Primeira República”, integrante do livro-coletânea Brasil em
perspectiva, publicado originalmente em 1968, sob a organização de Carlos Guilherme
Mota, é uma dos autores que reconstitui as tramas em torno das sucessões
presidenciais. Voltando o foco para as especificidades de uma unidade da federação,
Joseph Love faz o mesmo em O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de
1930, livro lançado em 1975, em que discute a política gaúcha em relação ao jogo
nacional, procurando fazer freqüentes comparações com a situação de outros Estados.
No ano 2000, o mesmo historiador teve publicado o artigo “A República Brasileira:
federalismo e regionalismo (1889-1937)”, como capítulo de mais um livro-coletânea
organizado por Carlos Guilherme Mota, a Viagem Incompleta: a experiência brasileira
(1500-2000): a grande transação. Nesse trabalho, desprendeu-se do estudo de caso —
a opção desenvolvida no estudo sobre os gaúchos — para avançar em direção a uma
abordagem de caráter mais abrangente; assim, acaba por analisar as articulações a
envolver os grandes (especialmente), os médios (secundariamente), e os pequenos
(quase obscuramente) Estados na política nacional, as quais deixavam manifestas as
tensões entre os princípios federalistas e os interesses regionalistas. Devo citar ainda o
capítulo “O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico”, assinado
por Maria Efigênia Lage de Resende, e localizado no primeiro volume da coleção O Brasil
Republicano, mais um estudo centrado no arranjo nacional.13 Inspiro-me e recorro às
formulações dos especialistas referidos para discutir sobre a ordem política no regime
federativo republicano.
Os preceitos instituídos pela Constituição republicana de 1891 criaram plenas
condições para o fortalecimento dos Estados mais fortes da federação. A
descentralização por ela estabelecida contribuiu bastante para isso, haja vista que em
conseqüência dela os Estados foram levados, a princípio, a andar com as suas próprias
pernas, enquanto a ajuda federal dependeria da capacidade de influenciar ou deter
(parcial ou totalmente) o controle desta esfera nacional do poder. No sistema
descentralizado que se criou, a forma de inserção das elites políticas estaduais no plano
mais elevado do poder nacional se fundamentava, por disposição constitucional, em
13 SOUZA, Maria do Carmo Campello de, op. cit., p. 162-226; LOVE, Joseph, O regionalismo gaúcho..., p.
118-119; LOVE, Joseph, “A República Brasileira: federalismo e regionalismo (1889-1937)”, p. 123-160; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico. In FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano, Vol. 1: o tempo do liberalismo excludente: da Proclamação a República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 89-120.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 218
elementos intimamente relacionados a certas particularidades políticas e demográficas
regionais. E quais seriam tais elementos? Cito em primeiro lugar, mas sem que isso
signifique uma hierarquização entre eles, o tamanho da população. Por se tratar de um
sistema político representativo, em que a bancada federal na Câmara foi fixada com
base na proporcionalidade da população, quanto maior esta fosse, maior seria, também,
o número de deputados no Congresso Nacional. Daí advinha uma das possibilidades dos
grandes Estados concentrarem uma força muito superior que a dos pequenos Estados.
Durante a Primeira República, Minas Gerais contava 37 deputados, São Paulo e
Bahia possuíam 22, Rio de Janeiro e Pernambuco tinham 17, o Rio Grande do Sul
computava 16. Os demais catorze Estados não passavam de 10 deputados e a maioria
deles (dez para ser exato) tinha apenas o número mínimo de representação, ou seja, 4
deputados.14 Teoricamente, a Bahia detinha uma situação privilegiada, dividindo com
São Paulo o posto de segunda bancada mais numerosa. Mas esta vantagem foi muito
parcamente utilizada, pois a ausência de coesão interna na deputação baiana,
caracterizada por intensas rivalidades, fragilizava a política do Estado — tratarei do
problema um pouco mais adiante. Na falta de partidos nacionais consolidados, os
partidos estaduais costumavam assumir a proeminência em todas as articulações
políticas. Natural, então, que os interesses regionais dessem a tônica das
orquestrações. São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, cujos partidos republicanos
locais conseguiam agir de modo harmônico no plano nacional, ainda que parcelas dos
seus filiados pudessem manifestar divergências regulares ou ocasionais no nível
estadual, foram os que mais souberam tirar proveito do arranjo político estabelecido no
país.
O segundo elemento a passar pelo crivo das particularidades estaduais diz
respeito ao tamanho do eleitorado habilitado ao voto. Deter um grande número de
habitantes não apenas possibilitava a posse de uma grande bancada, mas também uma
enorme influência nas eleições presidenciais, se o Estado dispusesse de uma população
com elevado — considerando os padrões da época — índice de alfabetização. Esta
última era o principal critério de habilitação do eleitor. Quanto maior a população,
(e/ou) quanto maior a sua parcela de alfabetizados, maior seria a importância assumida
pelo Estado. Tendo em vista que vigorava no país o sufrágio universal — masculino,
diga-se de passagem — e existia o controle e a manipulação do voto da maior parte dos
eleitores, decorrente das deformadas práticas oligárquicas e coronelistas do período (ou
seja, o famoso voto de cabresto e o “bico de pena”), fica fácil imaginar como os grandes
Estados podiam praticamente sozinhos definir as escolhas presidenciais.
14 RESENDE, Maria Efigênia Lage de, op. cit., p. 115.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 219
A Bahia aparecia, presumivelmente, mais uma vez, em posição favorável.
Entretanto, as fraturas político-partidárias, novamente, e o precário nível de
escolarização do seu povo comprometeram a inserção do Estado no grupo das principais
forças políticas nacionais. Com a vida econômica estagnada, a despeito das falas
contrárias elaboradas na época, em freqüentes dificuldades financeiras, atrelada a
padrões elitistas de educação formal, em que se notava um certo descaso para com a
ampliação do ensino público, a Bahia não conseguiu acompanhar São Paulo, Minas
Gerais e Rio Grande do Sul na função de protagonistas da política brasileira — e
acompanhando-lhe no desempenho de papel secundário (ou intermediário) estava
Pernambuco, que tivera grande importância no Império, e os demais Estados
nordestinos. Esta realidade pode ser descrita em números, pois “de 1873 a 1933 o
eleitorado de São Paulo cresce 389%, de Minas 83%, do Distrito Federal 236% e do Rio
Grande Sul 418%; em compensação, o eleitorado de Alagoas decresce 62%, da Bahia
51%, Ceará 65%, Pernambuco 37%, Paraíba 44%, Sergipe 26% e Rio Grande do Norte
37%”.15
Como há muito tempo descreveu Maria do Carmo Campello de Souza, “a
determinação do sufrágio universal e a proporcionalidade representativa proclamadas
pela Constituição brasileira, tornaram possível garantir a hegemonia dos Estados da
região Centro-Sul”. Tanto “a eleição presidencial direta pela maioria dos votos”, quanto
“a proporcionalidade de representação na Câmara Federal em relação à população de
cada Estado”, prossegue a historiadora, “firmava legalmente o controle do poder por
aqueles de maior peso econômico e demográfico”, ou seja, São Paulo e Minas Gerais. E
segundo a indicação de Souza, parece que desde cedo alguns se deram conta da
distribuição desigual do poder no novo regime e procuraram reformar a lei,
estabelecendo uma espécie de embate entre os favorecidos e os desfavorecidos com o
sistema em vigor. Ela comentou, a respeito da questão, “que o primeiro projeto de
legislação eleitoral que pretendia eleições indiretas dando a cada Estado no cômputo
final um voto, foi decididamente recusado pelos sulistas”.16
Pode-se dizer, de outro modo, que a riqueza econômica, a grandeza populacional
e educação eficiente eram coisas que caminhavam lado a lado. Como afirmou Joseph
Love, “os estados economicamente mais poderosos tendiam a ser aqueles com mais
população e com sistemas educacionais melhores”.17 Ao reunir as condições
favorecedoras, ao explorar as características do sistema político-eleitoral brasileiro, os
grandes estados, sobretudo São Paulo e Minas, detiveram o domínio do governo federal
15 DÓRIA, Carlos Alberto. Coronelismo e Oligarquias. In MENDES JR., Antonio & MARANHÃO, Ricardo (org.). Brasil
História. Texto e Consulta, Vol. 3: República Velha. São Paulo, Hucitec, 1989, p. 188-189. 16 SOUZA, Maria do Carmo Campello de, “O processo político-partidário na Primeira República”, p. 189. 17 LOVE, Joseph, “A República Brasileira: federalismo e regionalismo (1889-1937)”, p. 130.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 220
na maior parte da Primeira República, e passou a conduzi-lo com base nos seus
interesses regionalistas. Love consegue sintetizar com propriedade o significado do
exercício do poder nacional:
[...] à parte as oportunidades de patronato e a busca de poder para influir nos acontecimentos além de suas fronteiras, os três Estados tinham interesse direto em ganhar do controle da administração federal, a fim de amparar suas atividades econômicas. O controle Executivo era importante, além do mais, para assegurar a legislação econômica e financeira desejada, devido à grande influência do presidente no Congresso.18
Desse modo, a luta por um lugar no poder, especialmente na alta magistratura
do país, representava o controle sobre fundos que poderiam ser direcionados aos
interesses do Estado que alcançava a presidência. Daí o fato de São Paulo e Minas (e
Rio Grande do Sul, ocasionalmente) se beneficiarem com a alternância no poder. Sobre
isto, Love afirmou que “enquanto as lideranças paulistas se concentravam no controle
das políticas de câmbio, monetária e fiscal e de imigração, os mineiros tinham os olhos
voltados para grandes projetos de obras públicas (especialmente ferrovias) e a
obtenção de benesses políticas para os habitantes de seu estado”. Foram estas
unidades do país, portanto, que mais contaram com investimento federais,
favorecendo-se dos recursos gerados por todos. E como terceira força política, o Rio
Grande Sul também tirou seus proveito. Embora não tivesse feito presidente — Hermes
da Fonseca, gaúcho de nascimento, presidente entre 1910 e 1914, era muito mais um
homem do exército do que produto de interesses regionalistas —, tinha na coesão de
sua bancada — basta lembrar o papel de liderança exercido por Pinheiro Machado no
Congresso — um instrumento de pressão por benesses. Conseguiu obter proteção no
mercado interno para o seu produto, o charque, e a concessão de importantes
investimentos para obras públicas.19
Os Estados que hoje compõem a região do Nordeste brasileiro só se tornaram
objeto maior de preocupação do governo federal, vendo seus problemas e dificuldades
passarem à condição de merecedores de atenção, durante a presidência de Epitácio
Pessoa (1919-1922), único nordestino eleito para o maior cargo republicano. Esta
complexa situação só fazia agravar a disparidade entre os diversos Estados da
federação. Enquanto a riqueza e a grande expressividade eleitoral dos grandes Estados
facilitavam a conquista e a manutenção do poder nacional, o controle do mesmo
imprimia maior impulso ao desenvolvimento regional, produzindo um círculo vicioso que
alimentava o poder e a riqueza. Inversamente, as limitações econômicas e/ou a menor
18 LOVE, Joseph, O regionalismo gaúcho..., p. 118-119. 19 LOVE, Joseph, “A República Brasileira: federalismo e regionalismo (1889-1937)”, p. 137 e 140; para as
informações sobre o Rio Grande do Sul, ver, também, do mesmo autor, O regionalismo gaúcho..., 118-119.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 221
expressividade política-eleitoral dos outros Estados afastavam-nos do poder central,
impossibilitando o controle de um instrumento muito importante para a promoção do
desenvolvimento local/regional.20
Love faz uma avaliação muito pertinente acerca da Constituição de 1891, quando
argumenta que “falhou [...] ao estabelecer dispositivos adequados aos Estados mais
pobres”. As falhas se deram na acessibilidade aos principais cargos federais e, também,
na forma de repartição das fontes de receita entre a união e as suas unidades. Por
definição constitucional, as taxas de importação ficariam para a união, enquanto os
Estados ficariam com as taxas de exportação. Isto acabou penalizando os Estados
menores e mais pobres, que costumavam importar em quantidades razoáveis e
exportar em volume muito baixo em comparação a São Paulo e Minas, Estados bastante
beneficiados com a legislação. Por conta desta distribuição, sofreriam com a escassez de
recursos para financiar o seu próprio desenvolvimento. No Congresso Constituinte, bem
no início da era republicana, foram detectados os riscos desta armadilha, por isso, “os
deputados dos Estados nordestinos em depressão haviam-se debatido por conseguir
uma parte das rendas de importação, asseverando que nem as taxas de exportação
nem o imposto sobre a propriedade proveriam fundos suficientes para sustentar seus
governos”. E diz Love, “o tempo” — o qual vem sendo discutido ao longo desse texto —
“haveria de provar que esta preocupação se justificava”.21
Para explicar a nota colocada em meio aos travessões do final do parágrafo
acima, lembro que para desenvolver os meus argumentos tenho recorrido a materiais
que foram lançados, predominantemente, nas décadas de 1910 e 1920. Procurando,
então, conectar as impressões dos sujeitos históricos às análises historiográficas, diria
que, no referido contexto, o regime republicano brasileiro podia ser considerado uma
instituição consolidada, cuja lógica de funcionamento — moldada pela constituição de
1891, pelas leis e práticas políticas posteriores, gradualmente instituídas, a exemplo da
“política dos governadores” implementada por Campos Sales (1898-1902) — já era
passível de avaliações. Daí porque os descontentamentos, os juízos negativos sobre a
República, vindos de diversos cantos do país, assumidos por variados segmentos
políticos e sociais, terem engrossado naquele momento. Setores das classes médias
urbanas, dos militares e dos trabalhadores, bem como as elites regionais preteridas no
jogo de poder no âmbito estadual ou nacional estavam entre os descontentes.
Por se sentir uma das mais prejudicadas, as elites baianas acabaram por aderir
às críticas, o que se refletiu na documentação consultada. Mas não se deve perder de
20 LOVE, Joseph, “A República Brasileira: federalismo e regionalismo (1889-1937)”, p. 140-141. Segundo Love,
nesse mesmo trabalho, “o programa de desenvolvimento do Nordeste”, patrocinado pelo presidente paraibano, “foi abruptamente desativado” pelo sucessor Afonso Pena, presidente no quatriênio 1922-1926.
21 LOVE, Joseph, O regionalismo gaúcho..., p. 120-121.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 222
vista que, no plano político, as relações delicadas da Bahia com a República vinham de
mais longa data, talvez desde a sua instalação, e apenas foram acentuadas no decorrer
dos anos. No tocante a outros planos, como no nível econômico, as razões do “declínio”
baiano foram se formando desde o Império. De qualquer modo, as leituras imediatistas
da situação enxergavam o enfraquecimento da Bahia nas tramas políticas recentes, o
que serve, na minha opinião, para justificar o resgate idealizado da memória do
Império.
As críticas formuladas pelas elites baianas, nas décadas de 1910 e 1920, sobre o
jogo político republicano tiveram por motivação as suas dificuldades de inserção no
novo regime, o qual passou a ser dominado pelas máquinas partidárias de São Paulo, de
Minas Gerais e, posteriormente, também, do Rio Grande do Sul. Em tal contexto, os
problemas enfrentados pela Bahia foram mais ou menos semelhantes àqueles que
atingiram os outros Estados menores da federação brasileira. Incluíam-se dentre eles: o
pequeno ou nenhum acesso a determinados cargos da alta administração nacional; as
limitações para fazer prevalecer projetos de desenvolvimento especificamente regionais;
e a quase incapacidade de proteger ou promover os interesses econômicos que lhe
eram mais particulares. Deve-se, contudo, assinalar as distinções inevitavelmente
havidas entre os participantes desse conjunto, pois, no concerto político republicano, a
Bahia, ao lado de Pernambuco e Rio de Janeiro, compunha o grupo dos maiores entre
menores, tanto por serem herdeiros de antigas tradições, quanto por serem aqueles
com maiores condições de reivindicar um lugar ao céu republicano. Colocavam-se, desta
forma, numa situação intermediária em relação aos três Estados dominantes na nação,
que ficavam no topo, e outros Estados menores, que formavam a base. Noutros termos,
não seria demais afirmar que o Estado baiano se incluía no grupo dos intermediários, ou
seja, estava entre aqueles que detinham um mínimo poder de barganha, conquanto não
conseguissem usá-lo para tirar maiores proveitos. Resultava do incômodo de se situar
num lugar que não parecia muito bem definido um dos principais traumas das elites
baianas, especialmente porque esta dura realidade se apresentava sob a uma forma
que afetava penetrantemente a sensibilidade das mesmas, ou seja, manifestava-se com
os nítidos sinais do declínio político.
A Bahia e a instalação da República
Relembrando as palavras de Rui Barbosa sobre a Bahia ter passado “de centro
solar a satélite”22 e reconhecendo que elas encerram a descrição de uma realidade,
caberia inquirir a respeito dos passos desse processo. E para compreendê-lo desde suas 22 BARBOSA, Rui. “Discurso”. In LEMOS BRITTO, José Gabriel de & CATHARINO, Alberto Moraes Martins (orgs.).
Renascimento Cívico, p. 43-47.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 223
origens, penso que seria interessante recapitular sobre o movimento republicano e a
instalação do novo regime, relacionados às peculiaridades regionais baianas.
Diria a respeito da transição da monarquia para a república na Bahia que foi, no
mínimo, hesitante. E quais motivos teriam ocasionado isto? Por um lado, as evidências
demonstram que o movimento republicano na província caracterizou-se por uma certa
debilidade. Desde Braz do Amaral, um dos primeiros historiadores baianos a dedicar-se
ao tema e um testemunho dos eventos, até os historiadores mais atuais, não houve
quem negasse a dimensão restrita do movimento na antiga província. Aliás, Amaral vem
a ser a fonte matriz da maior parte das narrativas factuais e/ou interpretações feitas
sobre o assunto pela historiografia local.23 Por outro lado, os indícios sugerem uma forte
tendência monárquica entre os segmentos mais envolvidos com política na província, o
que se deduz pelo elevado envolvimento dos baianos com o governo imperial. O próprio
Rui Barbosa, que compôs o Governo Provisório republicano, foi adesista de última hora
do movimento que depôs o imperador. Antes disso, apenas defendeu a idéia de maior
autonomia para as províncias pelo estabelecimento de uma federação.24
Não se pode negar que clubes e jornais adeptos da idéia republicana tiveram
existência na Bahia, pelo menos, desde 1876, mas todos tiveram vida efêmera. Decorre
daí o suposto de que a repercussão obtida por eles não foi das mais significativas. Na
consulta à historiografia especializada constata-se a tendência de se enfatizar as
mobilizações ocorridas nos dois anos precedentes à implantação do novo regime,
quando o movimento ganhou maior vulto e continuidade. O principal marco foi o
surgimento do Clube Republicano Federal, em maio de 1888, sediado em Salvador, que
se transformou, entre dezembro do mesmo ano e janeiro do seguinte, no Partido
Republicano, com lançamento de seu próprio manifesto. O novo órgão partidário
inclusive apresentou o republicano histórico Silva Jardim como candidato próprio nas
eleições locais para o cargo de deputado geral. Quase na mesma época do Clube
Republicano Federal, surgiu, ainda, o Clube Centro Republicano da Bahia. No tocante ao
perfil, conquanto contasse com alguns homens maduros, a maior parte dos
participantes era formada de jovens estudantes e recém formados, muitos deles da
Faculdade de Medicina.
Em outras localidades, também, ocorreram a propaganda republicana e o
surgimento de clubes, mas não se encontram disponíveis muitas informações sobre os
fatos sucedidos em tais lugares. De modo geral, os historiadores demonstram que, além
23 Ver AMARAL, Braz do, História da Bahia, p. 315-379; SANTOS, Mario Augusto da Silva, op. cit., p. 05-09;
ARAÚJO, Dilton Oliveira de, op. cit., p. 32-87; e SAMPAIO, Consuelo Novais, O poder legislativo na Bahia: Primeira República (1889-1930). Salvador, Assembléia Legislativa / UFBA, 1985, p. 31-36; e TAVARES, Luís Henrique Dias, História da Bahia, p. 294-301.
24 Sobre o monarquismo dos baianos, ver ARAÚJO, Dilton Oliveira de op. cit., p. 39; Sobre Rui Barbosa, ver GONÇALVES, João Felipe, Rui Barbosa, p. 47-59.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 224
de poucos os grupos ligados à causa, era pequeno o número de militantes a eles
vinculados, que não raro se dividiam entre si por defender princípios e adotar
estratégias eleitorais distintas. Um exemplo foram os votos dados por muitos
republicanos num candidato liberal a deputado devido a intenção de derrotar um
conservador, o Barão de Guay (presidente da Associação Comercial da Bahia), embora
houvesse a candidatura patrocinada pelo próprio partido, repito, Silva Jardim.25
Ainda que não tenha reverberado em larga escala, o movimento republicano na
província não deixou de produzir um evento de feição dramática, o qual teve na figura
do afamado propagandista Silva Jardim o personagem central. Em 15 de junho, ele
aportou em Salvador para participar de manifestações pró-republicanas, mas chegou no
mesmo navio que trazia o conde D’ Eu. Como havia simpatizantes tanto do líder quanto
do príncipe na expectativa de recepcioná-los, desde o dia anterior foi se acentuando a
animosidade entre republicanos e monarquistas. Entretanto, o clímax do atrito entre os
dois grupos ocorreu algumas horas depois do desembarque, quando Silva Jardim e
muitos seguidores, na maior parte jovens, haviam acabado de participar de um
meeting. Foi então que os republicanos se tornaram, repentinamente, alvo de
provocações, ataques e perseguições, desencadeados pelos partidários monarquistas,
que se encontravam sob a liderança de um indivíduo chamado Macaco Beleza, segundo
dizem os livros, de origem africana. No desenrolar dos fatos, Silva Jardim e seus
seguidores se viram obrigados a um refúgio ou dentro das dependências da Faculdade
de Medicina, que quase foi invadida, ou de outros estabelecimentos situados nas
proximidades, onde se mantiveram durante horas ameaçados pelos opositores, cuja
ação agressiva pôs em risco a vida dos militantes republicanos, em especial do seu
líder. Somente após seguidos apelos pela intervenção da força policial, o conflito foi
controlado. Segundo revela Braz do Amaral, desde a década de 1920, assim como
atesta o historiador Dilton de Araújo, mais recentemente, foram políticos ligados ao
Império que estimularam o confronto, mandando reunir elementos acostumados a
promover arruaças para afrontar os republicanos.26
Nada mais de expressivo aconteceu na Bahia com relação ao movimento
republicano até a instalação do novo regime, ocorrido nas primeiras horas da manhã de
15 de novembro de 1889. Braz do Amaral comentou que até então “ninguem suspeitava
que se estivesse nas vésperas de uma republica”. Na sua descrição, “a cidade e
província tinham-se deitado a dormir nessa noite, tão absolutamente imperialistas,
homens e mulheres, políticos e não políticos como hontem se deitaram todos a dormir,
25 SANTOS, Mario Augusto da Silva, op. cit., p. 06-07. 26 AMARAL, Braz do, História da Bahia, p. 315-379; e ARAÚJO, Dilton Oliveira de, op. cit., p. 32-87.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 225
de republicanismo fechado”.27 Ao final do dia 15, começaram a circular rumores sobre
os acontecimentos no Rio de Janeiro, mas somente na manhã seguinte o fim da
monarquia foi realmente confirmado. José Luís de Almeida Couto, presidente provincial,
achou por bem convocar uma reunião com os liberais, que eram seus parceiros de
partido, e os conservadores para discutir a situação em curso. A decisão inicial tomada
foi recusar a república e alguém chegou a propor a organização de uma resistência.
Segundo Amaral, a tristeza e a incerteza impregnaram o espírito da maioria, e houve,
inclusive, quem chorasse.28
No final do dia 16, a republica foi proclamada na Bahia por oficiais do exército e
ativistas republicanos, entre os quais Virgilio Damásio, nomeado inicialmente
governador por se tratar de um defensor mais antigo da causa. No final da tarde do dia
seguinte, exatamente a 17 de novembro, realizou-se nova proclamação, desta feita
contando, também, com a presença de liberais e conservadores, que até então não
tinham reconhecido o regime instalado. Como integrante do governo provisório que era,
Rui Barbosa manifestou, desde o início, preferência pelo nome de Manoel Victorino
(professor de medicina e filiado do partido liberal) para assumir a função de governador.
Manoel Victorino recusou a nomeação por cinco dias, considerando que o cargo cabia
por legítimo direito a Virgilio Damásio. Entretanto, no dia 22 de novembro de 1889,
acabou acatando a vontade de Rui, tornando-se governador.
Foi, portanto, desta forma vacilante que a Bahia adentrou nos novos tempos: de
um lado, estavam liberais e conservadores, que compunham ampla maioria dos
elementos políticos baianos, amargurados pelas dúvidas em aderir ao novo regime; por
outro lado, ficaram as novas autoridades a divergir em torno de quem deveria receber
os despojos do “golpe” republicano, se os militantes históricos, como Virgilio Damásio,
de início apoiado pelo comandante militar da região, ou os convertidos de ocasião, como
Manoel Victorino, preferido por um alto membro civil do governo provisório. No final,
foram os antigos “monarquistas”, muitos deles conservadores, que assumiram o
controle da política estadual nos anos seguintes.
Em texto sugestivamente designado “Os conservadores no primeiro dia da
Republica”, publicado na Bahia Ilustrada, em 1918, Braz do Amaral relata a decepção,
as lamentações e as inseguranças sentidas pelos políticos ligados à antiga ordem — com
as quais se comovia e aparentava compartilhar os sentimentos —, que foram
manifestadas nas reuniões ocorridas ao longo do dia 16 para discutir a destituição do
imperador. Choros, tentativas de consolo mútuo, o conforto pelo “desastre” não ter se
dado “nas mãos do partido” conservador, mas sim com os liberais, deram a tônica dos
27 AMARAL, Braz do. “Os conservadores no primeiro dia da Republica”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 8,
jul./1918. 28 Idem, ibidem.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 226
primeiros instantes vividos pelos desamparados da autoridade imperial. Mas como já
afirmei, eles seriam alguns dos principais favorecidos com as mudanças processadas.
Impressiona porém a síntese feita por Amaral a respeito dos destinos que muitos deles
seguiram, descrição que acabou acentuando a quebra da comunhão política existentes
entre eles até a chegada da notícia da proclamação da República. Em poucas linhas, o
médico-historiador resumiu as profundas dissidências políticas que marcaram a Bahia
no novo regime, às voltas com o caráter personalista das lutas partidárias. E, desta
forma, comentou a respeito:
Não imaginavam que seriam elles os que haviam de ter os primeiros lugares e maior importância no Estado em o novo regimem que começava, e muito menos que fundos desgostos se haviam de dar, dilacerando-se, odiando-se, inimizando-se elles mesmos uns com os outros, os que até aquelle momento eram tão amigos.29
Avaliando a quase ausência de ativistas históricos entre os nomes de proa da
política baiana após a instalação da República, chego a duas conclusões. Na primeira,
reforço a idéia da tibieza do movimento na antiga província, que, a despeito dos
esforços realizados, não conseguiu produzir quadros políticos significativos, tanto em
termos quantitativos quanto qualitativos. Daí, não terem influência suficiente para
reivindicar o controle do poder no Estado, que caiu sob as mãos de antigos integrantes
da máquina estatal do Império. Isto, aliás, não foi uma peculiaridade baiana, pois, até
mesmo nos Estados em que o movimento republicano teve maior dimensão, velhos
políticos imperiais se apossaram ou se integraram ao poder. Na segunda, venho
salientar o quanto deve ter sido prejudicial para o futuro do próprio Estado o fato do
poder local ter ficado nas mãos dos políticos ligados à ordem imperial, haja vista que,
acomodados à lógica do regime, cuja centralização da autoridade permitia a intervenção
do Imperador para arbitrar e aplacar as querelas partidárias, eles pareciam estar
despreparados para a nova forma de interação política entre os Estados e poder central,
ajustados agora aos moldes de uma federação. A coesão política estadual assumiu na
República um papel determinante para a consolidação de uma influência no plano
nacional, o que as elites baianas tardaram em perceber. Ainda assim, quando
perceberam tal imperativo, não conseguiram praticá-lo. Além disso, parece ter lhes
faltado maior clareza a respeito das novas bases econômicas de sustentação do poder.
Contudo, pelos menos inicialmente, em lugar de buscarem meios eficazes para prover o
fortalecimento econômico do Estado, a fim de marcar uma posição proeminente no seio
da nação, ficaram apegadas aos princípios da tradição, como se esta fosse suficiente
para conferir legitimidade aos clamores políticos da Bahia.
29 Idem, ibidem. O artigo foi publicado em duas partes, a primeira em julho de 1918, como citado na nota 27,
e a segunda no mês de agosto seguinte, na edição de nº 9, como a constante nesta nota.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 227
Quais foram, então, os desdobramentos do “declínio” iniciado com a República?
Qual sua dimensão, os seus condicionantes e as suas conseqüência?
Os sinais do declínio político
Como já pude descrever, a idéia de um papel fundamentalmente importante
ocupado pelos políticos baianos na época imperial estava muito bem cravada na
memória das elites, sendo ela um dos mais relevantes elementos constitutivos das
grandezas do passado. O descontentamento com o novo regime decorria, em parte, do
fato dele ter significado um fim à rotina de exercício “contínuo” da hegemonia política.
Em termos mais diretos, se durante o Império a Bahia foi uma província poderosa, com
o avançar da República foi se tornando uma mera coadjuvante nas orquestrações
políticas — ao hábito de dominar sobreveio a tendência de ser dominada, realidade que
feriu duramente a orgulhosa sensibilidade das elites baianas.
Mas concretamente, no que consistiu o declínio político? Quais acontecimentos
decorridos na República revelam-no?
Já discorri longamente sobre a hegemonia política baiana no Império, a respeito
da qual Teodoro Sampaio comentou, com uma ponta de orgulho e outra ponta de
tristeza, que “nenhum gabinete se organizava sem que à nossa Bahia [...] coubesse ou
a presidência do Conselho ou duas e mais pastas”.30 Na República, porém, tal espaço foi
substancialmente reduzido, pois outros estados tomaram-lhe a dianteira. Adotei na
parte anterior deste trabalho a ocupação de ministérios como parâmetro de maior ou
menor influência política. Devo, portanto, prosseguir no critério, a fim de avaliar se a
Bahia conheceu ou não um declínio político. Vejamos...
Para o período que cobre de 1889 a 1930, é possível citar, se não todos, a maior
parte dos baianos integrantes de ministérios. Considerando aqueles que iniciaram uma
gestão presidencial, mas sem isto significar necessariamente tê-la concluído, foram
ministros Rui Barbosa (ministro da Fazenda nos governos provisório e constitucional de
Deodoro da Fonseca, entre 1889-1991), o Contra-Almirante Custódio José de Mello (da
Marinha, no governo Floriano Peixoto, 1891-1894), Severino Vieira (da Indústria, no
governo Campos Sales, 1898-1902), José Joaquim Seabra por duas vezes (da Justiça e
Negócios Interiores, no governo Rodrigues Alves, 1902-1906; e da Viação e Obras
Públicas, com Hermes da Fonseca, 1910-1914), Miguel Calmon, também, por duas
vezes (da Viação e Obras Públicas, no governo Afonso Pena, 1906-1910; e da
Agricultura, com Artur Bernardes, 1922-1926) e Otávio Mangabeira (ministro do
30 SAMPAIO, Teodoro. “Discurso”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 43, p.
150-173, 1917, p. 165.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 228
Exterior, no governo Washington Luís, 1926-1930).31 Com exceção dos governos de
Prudente de Moraes (1894-1898) e Wenceslau Braz (1914-1918), do breve mandato de
Delfim Moreira (1918-1919) e, por fim, da presidência de Epitácio Pessoa (1919-1922),
todos contaram com a presença de baianos.
Há de se considerar que o poder executivo no regime republicano era muito mais
estável que no sistema de governo imperial. Os chefes de gabinetes e ministros do
Segundo Reinado, responsáveis direto pela administração do país, sucediam-se com
relativa freqüência, resultando disso que uma grande quantidade de nomes baianos,
numa grande quantidade de vezes, houvesse ocupado pastas ministeriais. De outro
modo, todos os presidentes civis republicanos cumpriram integralmente os mandatos
para os quais foram eleitos, excetuando, obviamente, os falecidos antes ou durante o
exercício do cargo, mas que foram sempre sucedidos pelos substitutos legais, os vice-
presidentes eleitos. Esta característica conferia maior estabilidade aos governos
republicanos, que tendiam a manter seus ministérios por mais tempo. Portanto, a
simples comparação do número de ministros no Império e na República talvez não seja
a forma mais adequada de demonstrar o declínio político baiano.
Joseph Love adotou um procedimento que talvez esclareça melhor a respeito da
questão, pois se baseia numa estatística do tempo de ocupação em ministérios a partir
do estado de origem dos seus titulares. Embora se preocupe em destacar a situação do
Rio Grande do Sul em comparação com os demais Estados brasileiro, os dados que
trabalha revelam bastante sobre a Bahia. Dividindo o período republicano em duas
fases, ele demonstra que na primeira delas (entre 15 de novembro de 1889 e 14 de
novembro de 1910) políticos mineiros foram ministros por pouco mais de 12 anos e
meio, baianos por pouco mais de 9 anos e meio, e paulistas por pouco mais de 9 anos.
Em seguida vinham, em ordem decrescente de anos, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso,
Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e outros seis Estados, com um tempo situado entre
5 anos e meio e pouco mais de um ano — o Rio Grande do Sul compareceu, nesse
momento, em décimo segundo lugar. Restringindo-se aos três ministérios que considera
mais importantes, o da Fazenda, o da Viação e o da Justiça (os dois primeiros por
administrar os orçamentos mais elevados do Estado nacional e o último pelo poder de
influência nos assuntos eleitorais), a Bahia ficou com o primeiro posto, totalizando
quase 9 anos e meios, sucedida por Minas Gerais, com pouco mais de 7 anos e meio,
São Paulo com pouco menos de 7 anos e meio, e, abaixo, os demais.32
31 CARONE, Edgard, op. cit., passim. Desejo reforçar que nem todos os ministros baianos ficaram no cargo até
o final do período presidencial, exemplo disto é Seabra, que deixou o ministério em 1912 para assumir o governo baiano, em sua primeira experiência na direção do Estado, repetida oito anos depois.
32 LOVE, Joseph, O regionalismo gaúcho..., p. 128-130. Devo alguns esclarecimentos sobre os critérios adotados pelo autor para realizar as estatísticas. Ele tomou as seguintes decisões: 1) excluiu da contabilidade os oficiais militares profissionais; 2) não contou aqueles que ocuparam cargos por menos de três meses, por julgá-los interinos e impedidos, pela brevidade do tempo, de fazer uso da máquina estatal a
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 229
Com base nos dados apresentados, pode-se dizer que a Bahia ainda manteve
uma posição confortável nas duas décadas iniciais da República. No jogo político
nacional era uma peça importante pelo número de deputados que possuía na Câmara
Federal e pela quantidade de votos que arregimentava nas eleições presidenciais. Um
fato ilustra a influência da Bahia nos anos iniciais do novo regime. Depois de eleito, o
presidente Campos Sales (1898-1902) procurou nomear os seus ministros obedecendo
a um critério técnico, e não político, fiel a uma idéia que defendera e assinara em
manifesto. No entanto, abriu exceção em seus princípios, quando resolveu consultar o
governador baiano Luís Viana (1896-1900), a fim de que indicasse um nome de sua
preferência para compor o ministério. A escolha do governador recaiu sobre Severino
Vieira, que ocupou a pasta da Indústria, da qual saiu para suceder a Luís Viana no
governo estadual baiano.33
Prosseguindo na leitura de Joseph Love, agora visando analisar os dados
referentes à segunda fase da Primeira República (entre 15 de novembro de 1910 e 27
de outubro de 1930), constata-se uma alteração no quadro de distribuição dos
ministérios. Rio Grande do Sul passou à dianteira, ocupando pastas por mais de 18
anos, sucedido por Minas, em segundo, com pouco mais de 16 anos, São Paulo, em
terceiro, com quase 12 anos e meio, e, depois, Santa Catarina e Bahia com pouco mais
de 9 anos, Rio de Janeiro e Pernambuco com quase 7 anos, Rio Grande do Norte com
pouco mais de 6 anos, e, por fim, Ceará, Piauí e Pará com algo em torno de 4 anos.
Dentre os onzes Estados aqui citados, apenas o Piauí e o Pará não teve assento nas três
pastas principais (Fazenda, Viação e Justiça). Minas Gerais e o Rio Grande do Sul
ocuparam-nas por mais de 15 anos, enquanto São Paulo e Rio Grande do Norte por
mais de 6 anos. Dos restantes, a Bahia foi o Estado que menos tempo esteve nos
ministérios principais, apenas um pouco mais de um ano, ficando distante do penúltimo
colocado, o Rio de Janeiro, com os seus quase 3 anos.
Conquanto os índices da Bahia sejam, na comparação entre as duas fases, muito
próximos no tocante ao geral dos ministérios, a sua participação torna-se praticamente
insignificante quando se trata daqueles considerados principais. Por outro lado,
sobressai nos dados apresentados por Joseph Love o expressivo crescimento da
importância do Rio Grande do Sul na segunda fase. Muitos historiadores assinalam que
o fortalecimento do Estado gaúcho se deu na exata medida em que se processava o
declínio baiano. Love escreveu a respeito:
As máquinas de outros Estados tiveram de ajeitar um espaço para o PRR [Partido Republicano Rio-grandense] quando este exigiu seu lugar ao sol, e os principais perdedores foram os baianos; os gaúchos, efetivamente,
favor dos interesses que representava; 3) excluiu os provenientes do Distrito Federal. Ver a nota da Tabela 3, p 130-131.
33 CARONE, Edgard, op. cit., p. 190.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 230
substituíram os baianos na posição de terceiro grupo mais poderoso da política nacional. [...] Desde que a alfabetização se constituía em requisito para o sufrágio, a mudança deveu-se, em parte, ao crescimento mais rápido de alfabetizados no Rio Grande, do que na Bahia.34
Além do aumento da alfabetização ter proporcionado a ampliação do eleitorado,
cujos efeitos já discuti, a mão de ferro com que o chefe oligárquico Borges Medeiros, no
próprio Rio Grande do Sul, e o senador Pinheiro Machado, maior liderança do Estado na
Capital Federal, conduziam a política gaúcha amainava o potencial contestatório da
oposição local e conferia coesão aos representantes do Estado no nível nacional. O
modo de ação do Partido Republicano Rio-grandense era a síntese desse estilo político.
Assim, conquanto tivesse uma bancada menor que a Bahia (e, também, menor que
Pernambuco e Rio de Janeiro), o Rio Grande do Sul foi alçado à posição de terceira
maior força política nacional, em substituição ao tradicional Estado do Norte brasileiro.
Não tive a oportunidade de localizar fontes que informassem se as elites baianas
da época tiveram a clara percepção do fato de terem sido ultrapassadas pelos gaúchos
nas orquestrações e lutas pelo poder nacional. Caberia um novo mergulho na
documentação histórica para averiguar se foi desenvolvida a consciência, entre os
baianos, de terem sido os gaúchos os maiores beneficiados com as perdas baianas, o
que talvez os tornassem grandes rivais — e, caso a resposta fosse afirmativa, também
caberia verificar o nível de consciência alcançado. O certo é que uma parte da
historiografia assinala a ascensão do Rio Grande do Sul como um dos muitos elementos
envolvidos no processo complexo de declínio político da Bahia.
Observando a ocupação dos mais altos cargos administrativos do país, tem-se
outro critério que serve de parâmetro para detectar o nível de influência política da
Bahia. Para reavivar a memória, relembro que no Império o chefe de gabinete
ministerial era a principal autoridade político-administrativa da nação. E nisso os
representantes baianos se destacaram, liderando, como já discuti, mais de 1/3 do total
dos gabinetes organizados no Segundo Reinado, sendo expressivos ocupantes do mais
elevado cargo do regime. Na Republica, os baianos não lograram a sorte de exercer o
cargo máximo. Esse insucesso tinha tudo para ser muito sintomático, haja vista que o
grande poder concentrado na pessoa do presidente podia ser revertido em inúmeras
vantagens para o lugar de onde provinha. Como resumiu, em 1931, Wanderley Pinho,
no texto em que discorreu sobre as causas da perda da hegemonia pela Bahia:
Tivemos em mais de um governo ministros bahianos, auferimos desses benefícios de attenção e acção, mas entre o que pode fazer um ministro e o que quer fazer um presidente, vae grande distancia, e íamos e fomos
34 LOVE, Joseph, O regionalismo gaúcho..., p. 146-147.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 231
ficando sacrificados nos melhoramentos e benefícios que devíamos receber directa ou indirectamente do poder federal.35
As duas ocasiões em que as elites baianas estiveram mais próximas dos
principais postos do governo republicano se deram nos anos iniciais do novo regime. A
primeira foi logo após a instalação do Governo Provisório, presidido pelo Marechal
Deodoro da Fonseca, quando coube a Rui Barbosa, que já era o ministro da Fazenda,
exercer a vice-chefia. Rui se manteve na função entre dezembro de 1889 e agosto de
1890, quando foi substituído por Floriano Peixoto. Ficou, entretanto, na pasta da
Fazenda até janeiro de 1891, momento da queda do Ministério de que fazia parte.
A segunda ocasião nos remete à presidência de Prudente de Moraes (1894-
1898), o primeiro governante civil eleito na República, na qual o ex-governador do
Estado, Manoel Victorino, compôs na qualidade de vice (ver fig. 09). Victorino foi, de
fato, o único baiano a exercer a presidência, ainda que interinamente, pois durante
quase cinco meses, entre 10 de novembro de 1896 e 03 de março de 1897, foi
substituto de Prudente, licenciado em virtude de estar com a saúde bastante abalada.
Victorino, no entanto, fez uma administração conturbada. Por acreditar que Prudente
não conseguiria se recuperar para retornar ao cargo, pressionou pela renúncia do
mesmo e só sossegou quando conseguiu nomear seu próprio ministério. Diante dos
impasses que criou, e por representar ao mesmo tempo uma ameaça ao titular paulista,
Victorino foi levado a deixar a presidência em março de 1897, pois Prudente resolveu
reassumir o seu posto.36
Pelos menos para o interessado direto, os seus partidários e muitos dos seus
conterrâneos, acabou de modo frustrante a tentativa mais concreta de um baiano
conservar o poder no jovem regime republicano. Nos trinta e três anos seguintes da
chamada Primeira República, três políticos baianos se lançaram em investidas pela
presidência ou vice-presidência da República. No processo todo, só conseguiram colher
insucessos, isso inclusive quando o último deles parecia ter afinal rompido com a série
de derrotas.
Rui Barbosa foi o primeiro dos candidatos baianos malsucedidos. Já em 1905,
nas cogitações de nomes para a sucessão do presidente Rodrigues Alves (1902-1906), a
ocorrer no ano seguinte, foi indicado pelo governador baiano José Marcelino (1904-
1908), mas não conseguiu atrair muito apoio. Por isso, retirou-se da disputa e aderiu ao
candidato oficial Afonso Pena. Com efeito, Rui Barbosa só veio a concorrer na eleição de
1910, em oposição ao Marechal Hermes da Fonseca. Antes da oficialização do militar,
Rui fora citado mais uma vez entre os principais presidenciáveis, e desta feita acreditou
35 PINHO, José Wanderley de Araújo. “Discurso [...] proferido na sessão magna de 3 de maio de 1931”.
Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº 57, p. 445-493, 1931, p. 486-487. 36 CARONE, Edgard, op. cit., p. 166-167.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 232
verdadeiramente na viabilidade do seu nome. Contudo, viu-se preterido com a opção
por Hermes, que reuniu o apoio de militares, da maior parte das situações instaladas
nos Estados (incluindo Minas, Rio Grande do Sul e Pernambuco) e, também, de uma
boa parte do eleitorado. Se a candidatura militar de Hermes teve simpatizantes, não
deixou, também, de contar resistências. Assim, apoiado pela situação baiana e paulista,
bem como de elementos da oposição de diversos Estados, Rui Barbosa foi convencido a
fazer o papel de candidato da oposição, quando desenvolveu a tão famosa Campanha
Civilista. E daí resultou a sua primeira derrota numa eleição presidencial.
Para a sucessão de Hermes da Fonseca (1910-1914), Rui Barbosa se apresentou
mais uma vez como candidato de oposição, agora contra a indicação oficial do mineiro
Wenceslau Braz. Depois de iniciar a propaganda, parece ter se conscientizado do caráter
infrutífero do seu esforço, pois não conseguiu obter o menor amparo dos grandes
Estados (São Paulo, por exemplo, não o apoiou desta vez), o que o fez desistir da
candidatura dois meses antes da data marcada para a eleição.
Rui Barbosa só veio a concorrer de fato por uma segunda vez no ano de 1919.
Num pleito atípico, pois ocorreu em um ano e em condições incomuns, definiu-se o
substituto de Rodrigues Alves, eleito para o quatriênio 1918-1922 em substituição a
Wenceslau Braz. Adoecido, Alves não compareceu ao evento da posse, que foi dada ao
vice Delfim Moreira. Dois meses depois, faleceu o presidente Rodrigues Alves e por
disposição constitucional se promoveria uma nova eleição, pois o vice não tinha o
direito, nesse caso, de completar o mandato. O nome de Rui Barbosa foi aventado mais
uma vez, mas a preferência das oligarquias dominantes terminou recaindo no paraibano
Epitácio Pessoa. O senador baiano recusou-se a apoiar o indicado e lançou-se como
candidato da oposição, mas sem o apoio de nenhum grande estado, nem mesmo da
Bahia, então governada por Antonio Moniz, um coligado de J. J. Seabra, que era o maior
adversário de Rui na política estadual. No final do processo, nova derrota.
Rui Barbosa morreu em 1923 com a frustração de não ter realizado a sua maior
ambição política: ser eleito presidente da República. Tanto Edgar Carone, autor de um
estudo clássico na historiografia brasileira, quanto João Felipe Gonçalves, autor de uma
das biografias mais recentes do personagem, descrevem os insucessos de Rui como
conseqüência do caráter extremante crítico, diria até que dissidente, das suas idéias no
tocante às estruturas políticas e sociais brasileiras. Defensor incondicional da revisão
constitucional, seus princípios assustavam as oligarquias, que, conquanto o admirasse e
mesmo o cultuasse, temia o seu comportamento independente no caso de ser alçado à
mais alta magistratura do país. Por isso, com exceção da Campanha Civilista (1910),
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 233
em que teve a máquina partidária paulista ao seu lado, nunca conseguiu angariar o
apoio dos grupos oligárquicos dominantes.37
Certamente, o próprio Rui teve noção da existência de uma incompatibilidade
entre as idéias que defendia, de um lado, e as práticas políticas instituídas e o
pensamento social das elites dominantes, do outro. Por isso, sempre buscou em suas
campanhas mobilizar a opinião pública. Entretanto, algumas vezes apelou para o
discurso sentimental regionalista para justificar os malogros obtidos. Numa fala, durante
a campanha de 1919, afirmou: “Eis porque não querem bahianos na presidência da
Republica. Um bahiano incorreria na suspeita de amar em demasia a sua terra”.38 Ou
seja, associava o seu insucesso a uma espécie de resistência contra a Bahia no regime
republicano.
Sigamos adiante...
Na sucessão de Epitácio Pessoa criou-se o ensejo para José Joaquim Seabra,
governador do Estado pela segunda vez, pleitear um lugar no topo do poder
republicano. Definido o candidato oficial a presidente pelos grandes Estados, no caso o
político mineiro Artur Bernardes, estabeleceu-se uma concorrência pelo cargo de vice
entre o governador baiano e o pernambucano José Bezerra. Diante de um impasse,
visto que havia uma divisão do apoio entre ambos, Artur Bernardes escolheu um
terceiro nome: o maranhense Urbano dos Santos. Os opositores do candidato mineiro,
dentre os quais se inseriam os dois nordestinos preteridos, descontentes com o
processo de composição da chapa oficial, resolveram unir-se em torno de Nilo Peçanha
e J. J. Seabra, respectivamente, nas funções de presidente e vice, como os integrantes
de uma chapa alternativa.39
Configurou-se, então, a terceira derrota de um candidato baiano a um dos cargos
presidenciais. Em todas as oportunidades eles optaram por ficar do lado contrário às
forças hegemônicas
O último insucesso baiano havia se disfarçado, no início da seqüência de
acontecimentos em que se inseria, sob a forma de maior triunfo político desde a eleição
de Manoel Victorino para a vice-presidência (1894-1898). Talvez nem mereça visto ser
definido como insucesso, mas como uma fatalidade histórica, que acabou por derrubar o
otimismo reinante com a aparente vitória. Deixem-me explicar a ocorrência... Depois de
um longo interregno, que totalizava mais três de décadas, sem ocupar um dos dois
principais cargos republicanos, após colher uma série de fracassos no período, Vital
Soares, que era governador da Bahia desde 1928, elegeu-se vice-presidente como
37 Todas as informações sobre as pretensões e campanhas presidenciais de Rui Barbosa foram obtidas em
CARONE, Edgard, op. cit., p. 231-232, 247-258, 308-309 e 331-334; ver, também, GONÇALVES, João Felipe, Rui Barbosa, p. 115-160.
38 BARBOSA, Rui. “Conferência do Cons. Ruy Barbosa, na Bahia, no dia 11 de abril de 1919”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 18, mar./1919.
39 CARONE, Edgard, op. cit., p. 343-348.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 234
companheiro de chapa do paulista Julio Prestes no pleito sucessório de 1930.
Associando-se ao lado mais forte, parecia, finalmente, que a Bahia havia conseguido
reconquistar um posto de destaque no poder nacional. Mas o regozijo do início cedeu
lugar, alguns meses depois, a expressões de desgosto, pois todos nós bem conhecemos
sobre os desdobramentos desta eleição: Prestes e Soares foram impedidos de ocupar
seus cargos devido à eclosão, a menos de um mês da posse, do movimento
revolucionário de 1930, liderado pelo concorrente derrotado, o governador gaúcho
Getúlio Vargas.40
A fatalidade das vicissitudes históricas “subtraiu” da Bahia o que ela passou
décadas almejando. E assim, como demonstra Paulo Silva Santos, em Âncoras da
Tradição, nos anos seguintes à Revolução, importantes facções das elites baianas —
conservadas em seus ressentimentos e desgostosas com o lugar em que foram
obrigadas a permanecer; mantidas, portanto, no desejo de recuperar o status —
continuaram a repetir o que eu tenho chamado aqui de “discursos sobre as grandezas e
os infortúnios da Bahia”. Aliás, os fatos apresentados por esse historiador, a respeito do
resgate da memória e das tradições históricas baianas como forma de crítica e
resistência às imposições centralizadoras da “Revolução de 1930”, um acontecimento
que empatou certos projetos das elites políticas locais, não correspondiam a um
fenômeno totalmente inédito. Quando muito, diria que significaram apenas a reciclagem
de antigos temas e fórmulas. Antes, podem ser percebidos em sua relação de
continuidade com as demandas de um passado recente — aquelas demandas das
décadas de 1910 e 1920, que tenho procurado analisar —, e não como marcos de uma
experiência nova (de caráter inaugural).41
A favor destas minhas impressões acerca da continuidade de uma condição que
obrigava a reciclar (resgatar, recorrer, repetir) velhos modelos e argumentos, penso ser
muito interessante ressaltar um detalhe referente ao histórico da revista Bahia
Ilustrada. Como uma das principais porta-vozes dos discursos “sobre as grandezas e os
infortúnios” estaduais, foi relançada numa segunda fase, em novembro de 1933, após
ter encerrado sua circulação doze anos antes (em outubro de 1921). Na conjuntura
crítica do início dos anos 30, do século XX, parecia querer retomar um instrumento de
resistência.42 Entretanto, devo dizer que tanto na publicação original, inaugurada em
1917, quanto na segunda versão, surgida em 1933, o estilo, os conteúdos e muitos dos
participantes eram os mesmos — como quisesse dizer que havia uma semelhança entre
os dois contextos.
Retomando o fio da meada, os fracassos nas eleições presidenciais (fossem na
concorrência ao cargo de titular, fossem nas candidaturas ao cargo de vice), bem como 40 Idem, ibidem, op. cit., p. 417-438. 41 Ver SILVA, Paulo Santos, op. cit. 42 Analisarei com mais cuidado o programa da revista Bahia Ilustrada no próximo capítulo.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 235
o menor acesso aos postos ministeriais são expressivos sinais do declínio político.
Contudo não foram os únicos, somem-se a eles as intervenções federais sofridas, que
só podem ser melhor compreendidas quando se levar em consideração o grave
problema das dissensões.
Sobre as dissensões na política baiana
Em abril de 1921, o jornalista Boulanger Uchôa assinou uma pequena matéria na
revista Renascença, designada “Adeus à Bahia”. Como o próprio título explicita, tratava-
se de uma nota em que se despedia da Bahia e dos baianos, nela ressaltando as
saudades que sentiria da terra de tantas tradições e de filhos hospitaleiros. No decorrer
do relato de todas as suas saudades, Uchôa, que não era baiano, como fica
subentendido nas entrelinhas do texto, manifestou apenas um senão no meio delas, ao
revelar que da “Bahia sómente não se leva saudade da política, infelizmente única praga
dominante e destoante da completa confederação”.43
Assim como Boulanger Uchôa, muitas pessoas compartilhavam da opinião de que
a política na Bahia provocava imenso desgosto, porque conduzida com base numa
paixão desenfreada que cegava seus participantes. Não faltam exemplos para serem
citados a fim de confirmar a afirmação. Algumas páginas atrás, vimos Wanderley Pinho
referir-se à política na Bahia como “politiquice”, cuja característica principal seria a luta
pela sobrevivência econômico-material, o motor das rivalidades. Vimos, também, Braz
Amaral se referindo aos aliados do Partido Conservador reunidos a chorar a queda da
monarquia, quando anos depois — aliás, poucos anos depois — estavam a se digladiar.
No próximo capitulo, acentuarei as falas em prol da “elevação política” da Bahia, um
apelo pela comunhão dos seus políticos e, ao mesmo tempo, um atestado crítico sobre
as conseqüências danosas para o Estado que ocasionava a exacerbação das
desavenças. Mas Rui Barbosa foi o sujeito responsável por um das melhores
considerações sobre a questão. Num discurso dedicado à reflexão sobre a situação da
Bahia, realizado em 1917, teceu duras críticas às práticas políticas no Estado, as quais
definia como sendo o seu próprio “mal”:
O MAL DA BAHIA
O mal da Bahia, como, em geral, do Brasil todo, é isso a que, pela inconsciência do uso, vamos dando, com irrisão, o nome de política. Não há, no território brazileiro, zona mais esgotada por essa endemia depressora. Política, isso? Não. A política afina o espírito humano, educa os povos no conhecimento de si mesmo, desenvolve, nos indivíduos, actividade, coragem, nobreza, previsão, energia, cria, apura, eleva o merecimento. Não é esse jogo de intriga, da inveja e da incapacidade, a que entre nós se deu a alcunha de politicagem. Esta palavra não traduz
43 UCHOA, Boulanger. “Adeus à Bahia”. Renascença, Bahia, nº 71, abr./1921.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 236
ainda todo o desprezo do objecto significado. Não há duvida que rima bem com criadagem e parolagem, afilhadagem e ladroagem. Mas não tem o mesmo vigor de expressão que os seus consoantes. Quem lhe dará com o baptismo adequado? Politiquice? Politiquismo? Politicaria? Politicalha? Neste ultimo, sim, o sufixo pejorativo queima como um ferrete, e desperta ao ouvido certa consonância elucidativa.
POLÍTICA E POLITICALHA Política e politicalha não se confundem, nem se parecem, não se relacionam uma com a outra. Antes se negam, se excluem, se repulsam mutuamente. A política é a arte de gerir o Estado, segundo princípios definidos, regras moraes, leis escriptas, ou tradições respeitáveis. A politicalha é a industria de o explorar a beneficio de interesses pessoaes. Constitue a política uma funcção, ou o conjuncto das funcções do organismo nacional: é o exercício normal das forças de uma nação consciente e senhora de si mesma. A politicalha, pelo contrario, é o envenenamento chronico dos povos negligentes e viciosos pela contaminação de parasytas inexoráveis. A politica é a hygiene dos paizes moralmente sadios. A politicalha, a malaria dos povos de moralidade estragada. [...]44
A lição em torno do “verdadeiro” espírito da política— conforme assinalou, não
encontrado na Bahia (e tampouco no Brasil) — e a busca de uma expressão adequada
para designar as práticas ali identificadas — até decidir-se pelo uso de “politicalha” —
constituem a essência das críticas de Rui Barbosa. Lê-lo a fazer comentários tão ásperos
sobre a política, a condená-la por ser feita sob a forma da “politicalha”, cuja principal
característica seria a preocupação em desenvolver os interesses pessoais, em
detrimento dos interesses gerais, nos induz a acreditar que tivesse uma conduta
purista, plenamente concordante com as suas pregações. No entanto, ele mesmo foi um
praticante daquilo que tão veemente rejeitou em palavras, pois, não poucas vezes, agiu
impulsionado por motivações particulares, contribuindo para acirrar conflitos — alguns
fatos do gênero serão comentados adiante.
As manifestações críticas citadas acima são breves sintomas de um quadro muito
mais alarmante, pois as dissensões entre facções e as lutas renhidas pelo poder
constituíram a tônica da política baiana na maior parte da Primeira República. No fundo,
os embates eram ocasionados por ódios e antipatias pessoais, bem como pelo que se
considerava a quebra da hierarquia, da autoridade e dos elos de fidelidade político-
partidária. Como afirmou Consuelo Novais Sampaio, “a fidelidade existe não em relação
ao partido, mas ao chefe do partido, e, a depender do seu poder carismático, pode ser
incodicional e vitalícia”.45 Daí que na Bahia muitos foram identificados como “vianistas”
(ligados a Luiz Viana, governador entre 1896-1900), “severinistas” (seguidores de
Severino Vieira, governador entre 1900-1904), “marcelinistas” (adeptos de José
Marcelino, governador entre 1904-1908), “seabristas” (partidários de José Joaquim
Seabra, governador entre 1912-1916 e 1920-1924), “ruístas” (ligados a Rui Barbosa”),
44 BARBOSA, Rui “Discurso”. In BRITTO, José Gabriel de Lemos & CATHARINO, Alberto Moraes Martins (orgs.),
Renascimento Civico, p. 43-48. 45 SAMPAIO, Consuelo Novais, Os partidos políticos da Bahia na Primeira República, p. 19.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 237
dentre outros.46 Estas designações esclarecem, também, sobre o caráter muitíssimo
personalista da política baiana, pois os sujeitos nela atuantes mantinham-se muito mais
por gravitar na órbita de um mesmo líder do que por proximidade ideológica.
No bojo da discussão sobre as dissensões e o personalismo, devo acrescentar
que um dos principais instrumentos das rivalidades políticas baianas eram os jornais, a
maior parte deles vinculados a alguma facção partidária ou a algum dos líderes políticos
estaduais. Em 1923, Antonio Moniz, governador do Estado no quatriênio 1916-1920,
publicou um livro sobre os administradores estaduais republicanos, A Bahia e os seus
Governadores na República, no qual citou os vínculos de cinco periódicos que circulavam
na cidade de Salvador. A referência se deu quando historicizava a recepção ao seu
nome para concorrer a governador em substituição a Seabra. O Jornal de Noticias foi
citado como um “órgão inteiramente alheio às luctas partidárias, mesma condição do
Jornal Moderno, “também pertencente à chamada imprensa neutra”. O jornal A Tarde
foi apontado como um “vespertino dirigido pelo sr. Simões Filho, já então desavisado
com o governo do Estado” — Simões iniciou-se na política como correligionário de
Seabra, mas depois tornou-se um dos seus mais ferrenhos opositores. O Diário da Bahia
era “órgão do Partido Severianista” — Rui Barbosa trabalhou nesse jornal no início de
sua vida pública, e sempre teve nele um bastião político. E, por fim, O Estado foi
definido como “órgão dos marcellinistas”.47
Consuelo Novais Sampaio se refere aos jornais baianos, circulantes na capital,
nos seguintes termos:
se o Jornal de Noticias e o Diário de Noticias pretendem manter certa neutralidade no trato das questões partidárias, os demais periódicos, como o Diário da Bahia, a Gazeta do Povo, O Democrata, A Tarde, [...] não escondem suas vinculações político-partidárias.48
O Democrata foi órgão oficial do Partido Democrata, criado e liderado por J. J.
Seabra, e a Gazeta do Povo, também, era simpática a esse político. Mesmo revistas
como a Renascença e a Bahia Ilustrada, que não tinham o perfil partidário declarado,
deram provas de suas adesões e oposições. Uma das capas da Bahia Ilustrada, por
exemplo, registrou a figura de uma mulher em prantos pelo fato do ex-governador
Antonio Moniz, que se tornou um desafeto de Rui Barbosa, ter sido reconhecido senador
pelo Estado em 1921 — um nítido exemplo do modo como eram levadas as rivalidades
(ver fig. 11). E não devemos esquecer que a própria Bahia Ilustrada foi tachada certa
vez de “ruysta vermelho”.
46 Idem, ibidem. 47 ARAGÃO, Antonio F. Moniz de. A Bahia e os seus governadores na república. Bahia, Imprensa Oficial do
Estado, 1931, p. 556-559. 48 SAMPAIO, Consuelo Novais, Os partidos políticos da Bahia na Primeira República, p. 14.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 238
A historiadora Consuelo Sampaio, em Os Partidos Políticos da Bahia na Primeira
República, recorre à idéia de “política de acomodação”, que constitui o subtítulo do
estudo, para descrever a natureza dos tratos políticos no Estado. Ainda que chamando a
atenção para o fato de que acomodação não significava “quietismo”, nas suas análises
predomina a lógica da composição, pois, como descreve, “as lideranças rearticulam-se,
entabolam [sic — creio que quisesse dizer “entabulam”] acordos e arranjos, de modo a
evitar que sejam excluídos do poder”. Não há como negar a existência de tais formas de
ajustes político-partidários. Contudo, um aspecto que sobressai bastante no seu
trabalho, na minha leitura particular do seu texto, é a virulência das tensões, dos rachas
e dos confrontos a envolver os homens e os agrupamentos partidários, o que acaba por
contradizer a dita “acomodação”. Por sua vez, o brasilianista Eul-Soo Pang, um pioneiro
no tema, com o seu Coronelismo e Oligarquia, é mais explícito em apontar as
dissidências que marcaram a política baiana, não se constrangendo em utilizar um
adjetivo como “anarquia”, na acepção pejorativa da palavra, para caracterizá-la numa
determinada fase, mais precisamente os primeiros anos republicanos.49
Desde o início da nova era, acentuaram-se as dissensões. Como colocou Maria do
Carmo Campello de Souza a respeito do funcionamento do regime republicano, “se a
sedimentação de oligarquias garantira o fortalecimento do sistema político federativo,
também era responsável pela sua fraqueza: não permitia, diversamente do quadro
imperial, que os grupos estaduais se revesassem no poder”.50 De algum modo, as
rivalidades podiam ser explicadas nos termos aí expostos: a falta de um árbitro com
prerrogativas superiores para amainar os conflitos, como fora o Imperador, produziu
disputas muito acirradas, quase sempre “resolvidas” com o emprego da força e/ou
intervenções externas.
Mas existem outras explicações que merecem ser anotadas.
Consuelo Novais Sampaio explica as dissensões políticas pela ausência de um
setor oligárquico, ligado a alguma atividade econômica, que fosse preponderante no
Estado. Em suas próprias palavras:
A falta de supremacia efetiva de um setor agro-exportador sobre os demais não permitiu o surgimento na Bahia de um grupo oligárquico dominante, a exemplo do que ocorreu em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Permanbuco e outros estados da Federação. Aqui, as lutas pelo poder foram acirradas, posto que entre grupos de interesse equiparáveis, que se nivelavam mais pela debilidade do que pela força do poder econômico.51
49 Idem, ibidem; PANG, Eul-Soo, op. cit. 50 SOUZA, Maria do Carmo Campello de, “O processo político-partidário na Primeira República”, p. 203. 51 SAMPAIO, Consuelo Novais, O poder legislativo na Bahia, p. 40.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 239
Noutro trecho, Consuelo traz a seguinte afirmação:
a fraqueza da situação econômica baiana — caracterizada pela multiplicidade de pequenos núcleos de produção, internamente desarticulados e dependentes da intermediação externa — não permitiu o surgimento de uma oligarquia hegemônica, como ocorreu no Centro-Sul do País e em outros estados do Nordeste, a exemplo de Pernambuco. No plano político, esta situação se manifestou na debilidade e conseqüente instabilidade das instituições, permitindo que a competição política se revestisse de uma feição tulmutuada e cruenta.52
Os argumentos de Consuelo Sampaio têm sua coerência, mas merecem passar
por uma problematização. Fazendo um comparativo com o que dizem certos
historiadores a respeito da situação de outros estados brasileiros, é possível relativizar a
explicação. Minas, por exemplo, definido como um Estado controlado por uma
oligárquica dominante, conforme insinua Consuelo Novais, e suponho que fosse aquela
ligada à atividade cafeeira, o que em certa medida não deixar de corresponder a uma
verdade, parecia ser um Estado tão heterogêneo quanto a Bahia. Joseph Love o
considera “uma região política e não econômica”, enquanto o brasilianista John Wirth
definiu Minas como um “mosaico”. Tanto do ponto de vista econômico quanto da política
estadual existiam muitas diferenças dentro do Estado mineiro, tornando inválida a idéia
de homogeneidade ou hegemonia tranquila. Em seus trabalhos, os dois historiadores
fazem diversos cotejos entre os mineiros e os baianos, assinalando que, embora
apresentassem características comuns, seguiam condutas políticas diametralmente
opostas. Enquanto os primeiros sempre souberam conciliar suas desavenças dentro de
um partido forte (o Partido Republicano Mineiro, P. R. M.) em prol dos interesses
estaduais no plano nacional, os segundos nunca souberam apaziguar as diferenças para
promoverem uma luta comum a favor do próprio Estado. E digo mais, muitas vezes os
baianos buscaram mobilizar as forças políticas nacionais como peso e contrapeso nas
suas rivalidades, do que são exemplo as intervenções sofridas pela Bahia.53
Pernambuco, também, serve de comparativo, mas de um modo contrário a
Minas. O Estado nordestino tinha forte predominância da elite açucareira, que se
mantinha da atividade ainda preponderante na sua economia — a indústria do açúcar.
Essa homogeneidade de interesses econômicos, sem dúvida, facilitava um projeto
político comum das elites. Além disso, conseguia exercer forte influência sobre os seus
vizinhos — Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, muitas vezes tratados como
seus estados satélites. E tanto eram concretas as relações de proximidade entre
Pernambuco e os seus vizinhos que a idéia original de Nordeste, desenvolvida a partir
do final da década de 1910, da qual Gilberto Freyre foi o maior ideólogo, referia-se
52 Idem, ibidem, p. 49. 53 LOVE, Joseph L. “A República Brasileira: federalismo e regionalismo (1889-1937)”, p. 124.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 240
apenas ao grupo listado.54 Conquanto o domínio da oligarquia açucareira e a possível
ascendência sobre os Estados próximos, Pernambuco acompanhou a Bahia nos
infortúnios políticos e no declínio econômico ao longo da era republicana.
Para Pang, as rivalidades políticas baianas estavam associadas a uma disputa
entre es elites urbanas do litoral e as elites rurais do sertão, e teve raízes nas
características econômicas do Estado. Ele informa que o surgimento dos primeiros
grupos políticos rivais, “em meados da década de 1890, provava a falta de uma
economia estadual viável, que uniria o litoral e o sertão e propiciaria alianças entre os
setores urbano e rural”. E prosseguindo na suas considerações, coloca que, em lugar
disso, “a Bahia testemunhou a tribalização de liderança na política estadual, a
ossificação das oligarquias regionalizadas e o enfraquecimento de sua posição na
política federal”. Embora concorde com as suas conclusões no tocante às conseqüências
ocasionadas, tenho dúvidas em ratificar a tese de um embate entre o litoral e o sertão
como propulsora das lutas políticas. Sua interpretação não é de todo implausível, mas
carece de elementos analíticos mais consistentes para torná-la mais aceitável. Pang, por
exemplo, não se preocupou em fazer uma análise específica do perfil das elites baianas,
nal qual considerasse padrões sócio-econômicos, formação educacional, ideologia e
interesses políticos, atividades e principais interesses econômicos, dentre outros. Sem
isto, fica difícil detectar a existência de diferenças entre certos grupos — diferenças
estas que estivessem respaldadas numa espécie de identidade local/regional qualquer
(a exemplo de litoral e sertão, que, para mim, é uma divisão simplista).
Entre dissensões e intervenções federais
Um grande número de episódios da história política baiana na Primeira República
desenrolou-se com base nas tendências do uso da força e/ou intervenção. Por serem
tantos, fica difícil resumi-los todos nas próximas páginas. Num esforço de síntese, diria
que quase sempre as sucessões governamentais representaram oportunidades para que
irrompessem atritos, produzindo quebra de alianças e lançando os líderes uns contra os
outros. Primeiro isso se dava na disputa do nome a ser indicado; depois porque o
governador eleito, por pretender cumprir o papel de liderança que lhe cabia, quase
sempre assumia uma postura de autonomia em relação ao seu antecessor ou ao chefe
do partido, os maiores responsáveis pela sua indicação; por fim, porque começaram a
ocorrer o confronto entre facções adversárias. Outros focos de disputas ganharam corpo
em torno dos cargos eletivos de senador e deputado (em ambos os casos, para os
níveis estadual e federal), que além de estarem diretamente relacionados ao monopólio 54 Sobre esta questão do Nordeste, ver ALBUQUERQUE, Durval Muniz, op. cit.; ou FREYRE, Gilberto. Nordeste.
Rio de Janeiro, José Olympio, 1967.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 241
da hegemonia pelos governantes da ocasião, expressavam os embates e interesses
políticos num plano mais localizado, ou seja, nas cidades e nas regiões que compunham
a unidade maior representada pelo Estado.55
Por não querer ficar restrito a comentários tão abrangentes, visto não revelarem
nada a que se possa atribuir um caráter especificamente local, mas também impedido
de tratar de todas imbróglios da história política baiana, julgo importante discorrer,
mesmo brevemente, ao menos sobre dois episódios muito marcantes: o primeiro deles
deu-se em janeiro de 1912, ficando conhecido como o “bombardeio de Salvador”; o
segundo passou-se em 1920, recebendo a designação de “revolução sertaneja” (ou
“revolta sertaneja”, a depender da perspectiva assumida em relação aos fatos). As duas
ocorrências são, sem dúvida, muito significativas, tanto por demonstrarem os rumos
tomados pelas dissensões político-partidárias, quando estas eram levadas ao extremo,
quanto por se constituírem em nítidos sinais do declínio político da Bahia. Para
esclarecimento do leitor, devo informar que nenhum dos dois episódios mereceram, até
hoje, pesquisas aprofundadas da parte dos historiadores. Assim, apenas os seus fatos e
desdobramentos mais aparentes tem sido narrados nos textos especializados. E isso se
dá sempre em poucas páginas, em meio a trabalhos cujas temáticas centrais são
outras, aparecendo, portanto, como elementos secundários ou subordinados às tramas
principais de tais trabalhos.
A reconstituição do bombardeio de Salvador nos coloca diante da chamadas
“salvações hermistas”. Na eleição presidencial de 1910, o governador baiano João
Ferreira de Araújo Pinho (pai do tantas vezes citado historiador Wanderley Pinho)
posicionou-se ao lado do candidato derrotado Rui Barbosa. O marechal Hermes da
Fonseca, que saiu como vencedor, teve o apoio de várias lideranças locais baianas,
destacando-se dentre elas J. J. Seabra, que acabou empossado ministro. Em 1911,
começaram as especulações em torno do futuro governador baiano. Seabra, aliado
desde o início do governo federal, era aventado como um nome forte, mas sofria
enorme resistência da situação local e de muitos chefes políticos tradicionais, a exemplo
de Rui Barbosa. Como parte do seu plano de ascensão ao governo estadual, Seabra já
havia conseguido, neste mesmo ano, o reconhecimento de catorze deputados e um
senador do seu grupo para o legislativo estadual; por outro lado, um ano antes já havia
fundado um partido de oposição, o Partido Democrata.
A aproximação das eleições e o temor pela iminente vitória seabrista fizeram
com que os seus adversários articulassem uma série de artimanhas para conter o
avanço da candidatura do ministro de Hermes. Na falta de um concorrente potencial,
55 Os trabalhos de Consuelo Novais Sampaio e Eul-Soo Pang, citados em notas anteriores, revelam muito bem
tais problemas.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 242
pois os opositores de Seabra não conseguiram superar suas divergências para indicar
um nome de consenso, Rui Barbosa teria estimulado, segundo Consuelo Novais, a idéia
da transferência da capital para a cidade de Jequié, situada no interior do Estado, que
mantinha grande distância e sérias dificuldades de comunicação com Salvador. Também
arquitetou o adiamento da eleição estadual, para que ocorresse paralelamente à
retomada dos trabalhos no Congresso Federal, onde se poderia tentar alguma manobra
que evitasse a posse de Seabra. Não estaria Rui Barbosa talvez na prática da
“politicalha”, que cinco anos depois iria condenar? Recusando-se a participar da trama
urdida, o governador Araújo Pinho (1908-1911) renunciou no dia 22 de dezembro,
quando faltava apenas uma semana para a eleição. Com a recusa do primeiro, o
segundo substituto legal, o presidente da Câmara Estadual Aurélio Vianna, assumiu o
cargo e deu início ao plano elaborado. Além de assinar a transferência da capital, cujo
objetivo era tornar mais fácil proceder a degola de Seabra no caso de sua vitória,
mandou ocupar com tropas a Assembléia Legislativa e outros prédios públicos em
Salvador.
A reação dos aliados seabristas foi entrar com uma ação judicial. O juiz federal
Paulo Fontes concedeu habeas corpus aos postulantes, que reivindicavam o direito de se
reunirem no prédio da Assembléia, em Salvador, o que provocaria uma duplicata da
Câmara. A recusa do governador Aurélio Viana em atender à ordem da Justiça, fez o
juiz Paulo Fontes requisitar forças federais para fazer valer a decisão judicial tomada.
No dia 10 de janeiro de 1912, cumprido ordens da presidência e do ministro da Guerra,
o general Sotero Menezes, responsável pela comando militar na região, envia um
ultimatum ao governador para que cumpra a ordem judicial, e o ameaça de fazê-la
respeitada a força. Mas Aurélio Viana não aceitou o ultimatum. Assim, a partir das
catorze horas do mesmo dia, os canhões instalados nos fortes do Mar e do Barbalho
iniciaram o bombardeio do centro de Salvador, dirigindo tiros, principalmente, contra o
Palácio do Governo e a antiga Câmara Municipal, local de funcionamento da Assembléia
Legislativa. Também foram atingidos outros logradouros e edificações da cidade.
Do bombardeio resultaram diversos estragos materiais. Dentre eles, talvez o
mais entristecedor para quem tem paixão por livros e documentos antigos como nós
historiadores e estudiosos afins, esteve a destruição do acervo da Biblioteca Pública da
Bahia, criada em 1811, composto por mais de trinta mil volumes, nos quais se incluíam
obras, periódicos e diversos escritos raros. Do ponto de vista político, se assegurou a
candidatura de Seabra, eleito governador dezoito dias depois (28 de janeiro), e
empossado no final de março, repercutiu negativamente na capital federal, levando à
renúncia de alguns ministros que se opuseram a sua ocorrência. No plano estadual,
intensificou as rivalidades e deu origem a sólidos ressentimentos, muito bem
exemplificados pelo livro de José de Sá, O bombardeio da Bahia e seus efeitos,
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 243
publicado em 1918 e rodado na oficina do jornal Diário da Bahia, o supracitado “órgão
severinista”, que imputou toda a culpa pelo acontecido a J. J. Seabra.56
A “revolução sertaneja” também tem causa na conjunção de ódios pessoais,
incompatibilidade entre facções político-partidárias (inclusive entre coronéis do interior)
e acirrada concorrência pelo governo estadual. Na sucessão do governador Antonio
Moniz (1916-1920), que fez uma administração caracterizada por elevado índice de
rejeição, opuseram-se o ex-governador J. J. Seabra, como candidato da situação, e o
juiz Paulo Fontes, o mesmo que atuou no bombardeio de 1912, como candidato da
oposição. Na afirmação dos historiadores consultados, a verdadeira disputa se deu entre
Seabra e Rui Barbosa, o mentor da oposição, e não seria demais lembrar, candidato
derrotado na campanha presidencial no início do ano de 1919.
Conscientes de que a facção seabrista dominava a máquina eleitoral, em especial
o Senado Estadual, órgão responsável pela verificação dos votos e por reconhecer o
eleito, a oposição, sob liderança de Rui e outros chefes políticos, procurou estimular os
coronéis do sertão numa rixa contra o governador Moniz. Ao abastecer os coronéis com
armas e estimulá-los à desobediência, pensavam em justificar com o clima de “guerra
civil” — na qual se opunham forças policiais e jagunços — uma intervenção federal no
Estado, visando a derrubada do grupo oligárquico dominante. Os sertanejos, por sua
vez, alegaram o abandono em que viviam para fundamentar a revolta em curso.
Durante a contagem dos votos, em janeiro de 1920, cada parte proclamou-se
vitoriosa no pleito. Mas por controlar o processo de apuração eleitoral, a situação
reconheceu a vitória de Seabra, que foi prontamente questionada pela oposição. Nessa
conjunção crítica, o coronel Horácio de Matos, oriundo da região das Lavras
Diamantinas, principal líder da revolta no interior, ameaçou marchar em direção à
capital com o seu exército de jagunços, cujo efetivo era superior em número às forças
policiais — acrescente-se, contudo, que, além de Matos, outros importantes coronéis
participaram da revolta. Assumindo sua impotência diante dos coronéis sertanejos,
Moniz solicitou, em 17 de fevereiro de 1920, a intervenção federal, decretada seis dias
depois pelo presidente Epitácio Pessoa. Assim, o general Alberto Cardoso de Aguiar,
comandante da 5ª Região Militar, foi designado interventor na Bahia. Diferentemente
das pretensões da oposição, o presidente recomendou a preservação da ordem, o que
favoreceu a segunda posse de J. J. Seabra no governo baiano.
O general Cardoso — aquele a quem a figura da “rainha destronda” da crônica de
Lemos Britto se dirige em súplicas — teve como principal incumbência a negociação dos
56 Para discorrer sobre o bombardeio de Salvador, utilizei os seguintes trabalhos: Luís Henrique Dias Tavares,
História da Bahia, p. 322-327; SAMPAIO, Consuelo Novais, Os partidos políticos da Bahia na Primeira República, p. 72-76; PANG, Eul-Soo, op. cit., p. 108-111; e CARONE, Edgard, op. cit., p. 281-287. Ver, também, SÁ, José de. O bombardeio da Bahia e seus efeitos. Bahia, Diário da Bahia, 1918.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 244
termos para a deposição de armas pelos coronéis revoltosos, tarefa na qual foi bem
sucedido. Passando por cima do poder estadual, os coronéis obtiveram grandes
concessões nas negociações encetadas diretamente com a presidência, e conseguiram o
reconhecimento do direito de exercer completo controle político em suas regiões.
Horácio de Matos conseguiu, ainda, o direito de eleger um deputado e um senador
estaduais para representar seus interesses.57 O governo estadual foi o maior perdedor,
por ter sido obrigado a abrir mão do monopólio do poder em um vasto território.
Para os opositores do governo estadual, a “revolução sertaneja” foi considerada
um acontecimento totalmente legítimo. Como já comentei, Lemos Britto, fiel seguidor
de Rui Barbosa, escreveu diversos textos para publicação em jornais, nos quais
defendia aguerridamente a iniciativa tomada pelos coronéis do interior baiano e pela
gente sertaneja. Ao mesmo tempo, Britto responsabiliza diretamente a Antonio Moniz e
J. J. Seabra tanto pela mobilização dos coronéis quanto pela humilhante intervenção
federal na Bahia. A crônica “Ao Interventor, a Bahia”, por exemplo, a partir da qual
explorei a idéia da “rainha destronada”, reflete suas idéias a respeito do episódio. Numa
outra crônica, designada “Alma Sertaneja”, elaborou positivamente uma forma de
identidade sertaneja, para justificar a iniciativa tomada pelos homens do interior. Os
textos de Britto foram depois reunidos no livro Na Barricada, Campanha da Libertação
da Bahia.58
Por outro lado, houve quem tomasse a defesa do governo do estadual,
procurando responsabilizar, sobretudo, os políticos ambiciosos do poder, que, em prol
de seus interesses particulares, teriam estimulado a eclosão da violência no sertão.
Também, apoiariam a intervenção federal, por considerá-la o único recurso para conter
os revoltosos. A revista Renascença publicou matérias que seguiam esta direção, em
uma delas, editada em fevereiro de 1920, registrou os seguintes comentários:
Mais fácil é fazer brotar a urze a erva damninha, do que a boa planta. E o resultado ahi está: essa ambição incoercível de poderio, que se apóia em inconscientes hordas de fanáticos políticos (porque há fanáticos políticos, como os há religiosos) para anormalizar a vida laboriosa de populações sertanejas, entravando-lhes o progresso e attentando contra as autoridades legaes. Que males adviriam para todo o Estado da permanência dessa situação ruinosa que os adversários do governo crearam para seus coestaduanos, dos quaes se arvoraram em patronos nas terras por onde campeam os bandos assalariados! Todos sabemos, porem, como taes excessos de paixão partidária concorrem para atrophiar o trabalho rural e promover o descrédito da terra natal em outras cicumscripções da Republica e nos centros
57 Para a “Revolução Sertaneja”, utilizei os seguintes trabalhos: TAVARES, Luís Henrique Dias, História da
Bahia, p. 341-346; SAMPAIO, Consuelo Novais, Os partidos políticos da Bahia na Primeira República, p. 105-113; PANG, Eul-Soo, op. cit., p. 144-150; e CARONE, Edgard, op. cit., p. 339-343.
58 BRITTO, Lemos, Na Barricada. As duas crônicas citadas, “Alma Sertaneja” e “Ao Intervrentor, a Bahia”, estão respectivamente nas p. 79-90 e 97-104.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 245
estrangeiros que entreteem comnosco relações econômicas, financeiras e commerciaes. Felizmente o remédio constitucional vem a tempo de applacar esse delírio vermelho que succedeu à febre intensa de vencer a todo transe.59
O bombardeio de Salvador e a “revolução sertaneja” demonstram,
indubitavelmente, o nível elevado de atrito atingido pelas disputas políticas baianas.
Mas por que sinalizavam um declínio político? Por um lado, porque revela a fraqueza do
poder do Estado (a instituição de governo), incapaz de contornar por si só, com o
aparato legal e coercitivo que dispunha, os seus problemas internos. Daí, resultava a
necessidade de apelar para o poder federal a fim de se resolver certos conflitos. Por
outro lado, porque a Bahia vivenciou, na Primeira Republica, um tipo de experiência que
somente os Estados menos influentes da federação brasileira experimentaram, ou seja,
as intervenções federais com forças militares, situação esta que não atingiu nenhum dos
grandes Estados. Esses dispunham não apenas de poder político e econômico no seio da
federação, mas também de força policial-militar suficientemente numerosa e aparelhada
para se contrapor às tentativas de intervenção. Incapaz de se articular internamente e
com forças policiais mal-aparelhadas, restava à Bahia cumprir a sina dos pequenos,
sujeitando-se, por impotência e incompetência, às intempéries políticas de ocasião, tais
como os dois episódios narrados tão bem exemplificam.60
O “descontentamento” dos mortos
Resumidos a partir dos registros historiográficos, a percepção dos males
decorrentes dos fatos descritos no tópico anterior atingiu a consciência de alguns sujeitos
de um modo bastante curioso, em que seviu ícones e valores do passado se projetarem
sobre o presente. Na revista Bahia Ilustrada, edição de maio de 1921, os editores
simularam uma espécie de entrevistas com cinco vultos políticos baianos do passado
imperial, na designada “Entrevista d’Além Tumulo”. Foram eles: o visconde de Rio
Branco, o barão de Cotegipe, o conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcellos, o visconde
de Cayru e o conselheiro José Antonio Saraiva (ver fig. 20). Com isto, procuravam
59 “O momento político”. Renascença, Bahia, nº 52, 29 de fevereiro de 1920. 60 Sobre a força policial-militar dos diversos estados, ver LOVE, Joseph, O regionalismo gaúcho..., p. 122.
Outros episódios de intervenção direta ou indireta na política baiana podem ser citados. Um primeiro exemplo se encontra na sucessão estadual de 1908, quando o presidente Afonso Pena, violando uma regra básica da política dos governadores, interferiu no processo político-partidário local, ao apoiar explicitamente o candidato de uma das facções litigantes (“severinistas” e “marcelinistas”). Araújo Pinho, candidato “marcelinista”, e preferido do presidente, acabou vitorioso no pleito. O segundo exemplo localiza-se em março de 1924, quando o presidente Artur Bernardes decretou estado de sítio em todo território da Bahia. Apontado como político vingativo, sua intenção era retaliar J. J. Seabra pela ousadia de se lançar candidato à vice-presidência numa chapa de oposição dois anos antes. Assim garantiu a posse do governador eleito Francisco Marques de Góes Calmon, que embora tenha sido o nome inicialmente indicado por Seabra, tornou-se um candidato que agrupou todos os elementos contrários ao seabrismo, incluindo o presidente Bernardes. Ver, PANG, Eul-Soo, op. cit., p. 95 e 171-174.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 246
buscar na memória dos mortos uma espécie de autoridade que legitimasse as críticas
em relação às desavenças político-partidárias, que tantos prejuízos provocavam à
Bahia. E ao mesmo tempo, serviam-se desta estratégia para criticar a ordem política
nacional, ou, para ser mais claro, a própria instituição republicana, a quem se atribuía
grande responsabilidade pelos problemas dos Estados e da nação brasileira.
Esta forma de tratar determinadas questões é suficientemente conhecida, aqui
apenas se retomava a prática de recorrer-se às idealizações do passado para promover-
se uma reflexão em torno dos problemas políticos do presente. Em se tratando de um
assunto tão grave, como era o problema das dissensões na política baiana, não se deve
estranhar que fosse buscado um modo de enquadrá-lo nesta fórmula usual de relacionar
passado e presente. A justificativa apresentada pelos editores para a entrevista
“espírita” confirma o que acabo de dizer, pois ela alega que “a situação política deste
momento teve o extraordinário poder de fazer falar, sobre o que se passa agora, alguns
dos grandes espíritos que já foram luminares tanto das letras, como da política
nacional”. E prosseguiu afirmando que teria sido “na esperança de que nos dissessem
coisas sensacionaes, que fomos entrevistal-os em além tumulo...”.
E o que disseram os “luminares” baianos, fiéis representantes da Atenas
Brasileira? Para poupar a paciência do leitor, não reproduzirei por completo aquilo que
cada um pronunciou no simulacro de entrevista, mesmo porque é perceptível uma certa
repetição nas pseudofalas. Apenas transcreverei pequenas partes do que foi associado a
cada personagem pelos inventores da entrevista. Farei isto com o objetivo de
demonstrar como certos indivíduos que viveram o início da década de 1920 encararam
as dificuldades baianas na ordem republicana, bem como idealizaram os estadistas e a
política imperiais, tomados como símbolos de um tipo de conduta superior, não
encontrada na maior parte dos homens de então.
O visconde de Rio Branco foi colocado na posição de primeiro entrevistado. As
suas pretensas palavras acentuavam o peso de homens como ele para a construção da
memória histórica baiana, expressavam descontentamento com a política e
estimulavam a imitação de experiências bem sucedidas, como teriam sido aquelas
vividas antes:
— Não julguem que não mais existo, ou que só existo na memória dos homens. Estou presente, sempre, no coração de minha pátria. E lastimo profundamente que não haja, ainda, um espírito homogêneo na politica do meu paiz. Para que então se fez a Republica? Quaes os princípios da democracia? Uma nação não se dirige com paixões partidárias, nem com insinceridade politica. Em meu tempo, por felicidade inaudita, só appareciam à frente das altas posições os que eram dignos della. Eram personalidades illustres, humanistas, esclarecidas; ao passo que hoje nem saber ler é preciso para saber governar. Cumpre-me, no entanto, notar o caso de Pernambuco, excepção louvabilissima, onde se preparou uma
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 247
unidade politica, que será o êxito de sua hegemonia interna e externa. Por que não faz o mesmo a Bahia, minha terra natal, para cuja supremacia intellectual e politica sempre cooperei?
Pernambuco, nesse momento, parecia representar o modelo a ser seguido,
embora hoje estejamos informados, graças ao nosso olhar diacrônico, que a sua sorte
não foi muito distinta daquela da Bahia. O barão de Cotegipe veio em seguida e, na
parte que lhe coube na entrevista fictícia, atacou, diretamente, a falta de união entre os
políticos:
O que se trata é de endireitar a política, e o juízo de alguns políticos. A desunidade que reina, com especialidade quanto a Bahia, que vi crescer magistralmente nas posições e no conceito geral do Império, não se concebe por maneira alguma. [...] Se os homens actuaes me quisessem ouvir, com sincera attenção, eu lhes diria: — “Mudem de rumo. Não há terra feliz sem povo unido. Experimentem, unam-se, e vejam...”
Tal como ocorrera com Cotegipe, o conselheiro Zacarias e o visconde de Cayru
foram apresentados na entrevista a partilhar preocupações com o problema das
dissensões. Cabe, respectivamente, a cada um deles os dois trechos abaixo:
— Já me disseram outros brasileiros, que vivem no reino da luz, que a mesquinharia da desunião olygarchica de certos políticos ameaçam tornar o regimen em trevas apocacalypticas! Seria um castigo metuendo para o presente. Constrangido dessa triste realidade, apenas me limito a exclamar: — Por que os políticos do presente não imitam, pelo menos, os orientados e unidos políticos do passado?
— Entendo que essas dissidências estadoaes, esse desagregamento da politica, essa incomprehensão dos destinos verdadeiros da pátria, tudo isso só redunda em desprestigio e desamor à terra brasileira. A Bahia, que sempre teve preponderância nas letras e na politica, não deve ignorar que o triumpho inilludivel e certo de sua grandeza politica, de sua grandeza moral, só depende de sua unidade cívica e de sua fôrca econômica. [...]
Saraiva, o último dos entrevistados, fechou a série de pronunciamentos com um
apelo pela harmonização dos divergentes, visto os frutos que poderia render:
— [...] E é o que quero que diga aos bahianos, aos brasileiros, nessa curiosa entrevista para a publicidade curiosa: — A união faz a fôrça. E é disto que precisam os a quem mais cumpre trabalhar pela pátria, pela politica, pelo povo, pela nossa posição, pelo nosso renome, pelo nosso poderio, e pela nossa gloria, perante o universo contemporâneo...61
61 “Entrevista d’Alem Tumulo”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 38, mai./1921.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 248
Em todas as falas procurou-se destacar as diferenças entre os políticos imperiais
e os republicanos. Em relação aos primeiros acentuava-se a formação intelectual, a
capacitação moral, o sentimento patriótico e amor pela terra de origem — qualidades
consideradas adequadas ao bom exercício das funções públicas. (Não há mal em
reafirmar que isto não passava de meras idealizações). Em contraposição, nos segundos
predominaria a falta de tais qualidades. E teria sido por conta disto que se avolumaram
as crises políticas no Estado, nas quais as dissensões e as intervenções foram a face
mais visível.
Eis, então, um dos principais sentidos da evocação do passado nestas falas
espíritas inventadas, postas na boca de eminentes personagens históricos oriundos da
Bahia, mortos décadas antes: pressionar o presente, incitando os baianos a superar
todas as adversidades até aqui expostas e a trabalhar pelo estabelecimento de
condições que favorecessem um futuro mais promissor.
Sobre a condição econômica da Bahia
Ainda que não venha a me estender demasiadamente no assunto, preciso
comentar sobre alguns aspectos relacionados à vida econômica da Bahia. Embora não
fossem tão enfatizados quanto os fatores de ordem política, não faltaram sujeitos que
estivessem atentos aos condicionantes econômicos no processo de “crise” ou “declínio”
da Bahia na cena nacional. Braz do Amaral e Wanderley Pinho falaram a respeito,
conforme vimos. Todavia, a tendência mais comum ao se falar na questão, pelos menos
nos materiais por mim consultados, era por como foco central as possibilidades de
exploração dos inúmeros e potenciais recursos econômicos existentes no Estado,
possibilidades vistas, inclusive, como algo premente. Teodoro Sampaio e Góes Calmon,
por exemplo, reconheceram a necessidade de cuidar da produção econômica para
reerguer o Estado, no que foram seguidos por outros homens da época.62
Mas quais foram as características da economia baiana nos chamados “tempos
de infortúnio”? Em primeiro lugar devo destacar o seu caráter agro-exportador, sendo
os seus principais produtos o cacau, o fumo, o açúcar e o café. Além desses, uma
variedade de artigos (couro, peles, piaçava, borracha, madeiras, pedras preciosas,
dentre outros), comercializados em quantidades menores, ajudava a robustecer a pauta
das exportações. O segundo aspecto a ser enfatizado é a preponderância da atividade
comercial, que “desempenhou o papel central na economia baiana”. Toda a dinâmica
62 Tratarei mais detidamamente sobre a questão no próximo capítulo.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 249
local foi dominada por ela, pois “se, de um lado, o comércio representa o ponto sobre o
qual se pode perceber a conexão da Bahia com o mundo, via atividade de exportação-
importação, entre outras, de outro, ele constitui-se no elemento característico da
atividade econômica interna”. Daí resultou uma hegemonia da classe dos comerciantes
e da capital do Estado, a cidade de Salvador, que cumpria a função de maior centro
mercantil.63
Na República manteve-se, portanto, uma estrutura praticamente em tudo
semelhante àquela do século XIX. No intervalo situado entre as lutas de independência
e o final do Império, a Bahia viu iniciado e aprofundado o seu processo de declínio
econômico. Conquanto conhecesse breves lapsos de recuperação, os fatos provam que,
no desenrolar dos anos oitocentistas, passou da condição de principal centro econômico
a uma posição secundária. A diminuição do mercado do açúcar e a expansão do café
acabaram por deslocar o eixo econômico para a região sul do país. No regime
republicano, a Bahia atingiu uma certa estabilidade, paralisando a queda acentuada das
décadas anteriores, o que fez com que muitos historiadores definissem o período como
sendo de recuperação econômica e financeira, motivada, sempre, por uma maior
cotação nos preços internacionais dos seus produtos.
Kátia Mattoso distingue três fases da economia baiana no referido contexto. A
primeira fase, entre 1887/89 e 1897, de recuperação, foi favorecida pelos seguintes
fatores: a melhoria dos preços dos produtos agrícolas no mercado internacional; o
aumento do volume de exportação e do preço do cacau; a exportação de borracha de
maniçoba e de carbonados a preços compensadores; e a política econômica do
encilhamento, adotada por Rui Barbosa logo após a instalação do governo republicano.
A segunda fase, entre 1897 e 1905, foi de crise, para a qual contribuíram: as secas que
atingiram o litoral; a flutuação no preço do cacau; as restrições de crédito; as
dificuldades de produção e comercialização do açúcar; e os preços estagnados do fumo.
Na terceira fase, entre 1906 e 1928, observa-se nova recuperação, estimulada pelos
fatores seguintes: o restabelecimento dos preços dos produtos agrícolas; o incremento
da produção e da comercialização de novos produtos agrícolas, que alargou a pauta
exportada; e a Primeira Guerra Mundial.64 Daí verifica-se que o crescimento econômico
esteve sempre vinculado à expansão comercial, sobretudo de produtos agrícolas ou
63 Para o trecho aspado, ver FUNDAÇÃO CENTRO DE PESQUISAS E ESTUDOS — CPE (BAHIA). A inserção da Bahia na
evolução nacional, 2ª Etapa: 1890-1930. Salvador, 1980, p. 9. Ver, também, MATTOSO, Katia M. de Queirós, Bahia, Século XIX, p. 487.
64 MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia, a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: HUCITEC; Salvador: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978, p. 350-351. SANTOS, Mário Augusto da Silva. Sobrevivência e tensões sociais: Salvador, 1890-1930. São Paulo, 1982. Tese (Doutorado em Hstória) — USP, 1982, p. 33-37, corrobora a análise de Kátia Mattoso. Ele faz apenas um pequeno adendo, ao dividir em duas etapas o período de recuperação de 1906-1928: uma primeira sub-fase de recuperação lenta, entre 1906-1914; e uma segunda sub-fase de recuperação mais acelerada, entre 1914-1928.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 250
extrativos, em períodos favoráveis — o sentido agro-exportador continuava dando as
diretrizes da economia baiana.
No período de 1917-1926, por exemplo, a balança comercial sempre se manteve
superavitária para a Bahia. E o nível em que se deu o crescimento das exportações
impressionou tanto ao governador Góes Calmon que, na Mensagem de Governo de
1927, ele fez a seguinte declaração:
A expansão econômica do Estado [...] é muito lisonjeira, sobretudo quando se considera que só exportava para o exterior, no começo do segundo império, Rs. 6.444:000§000, e, no seu fim, Rs. 9.794:000§000, ao passo que dez anos depois, com a República, alcançava a 62.288:000§000, chegando em 1915 a 102.199: 000§000, e finalmente atingindo em 1924 o tresdobro.65
Com base na comparação estatística entre os dados econômico-financeiros da
segunda metade do século XIX e os da era republicana, não se poderia negar a
existência de bons motivos para se acreditar na recuperação da Bahia. No entanto, a
comparação foi realizada a partir de valores absolutos, desconsiderando-se a
desvalorização da moeda. De qualquer modo, acreditando na validade do critério
escolhido, alguns homens da época foram tomados por um pronunciado otimismo — a
exemplo de Mario Ferreira Barbosa, autor de diversos trabalhos ligados à questão.66
Penso, entretanto, que se forem observados dados de um outro tipo, ficará
evidente quão enganosa pode ser a idéia da Primeira República constituir, de fato, um
período de recuperação econômica. Isto porque pode nos levar a supor que a Bahia
tivesse uma participação na renda nacional em nível próximo ao mantido durante a
maior parte dos anos oitocentistas, em que costumou flutuar nas primeiras posições,
até decair nas últimas décadas do Império. No que consistiria então a dita recuperação?
Concretamente, significou apenas a contenção da tendência declinante, sendo
alcançada, quando muito, uma estabilidade em condição pouco melhor que a dos piores
momentos do séc. XIX. De forma alguma, significou a retomada dos padrões médios
das épocas mais faustosas.
Analisemos alguns dados...
A contribuição total baiana às exportações atingiu, no período republicano, o
índice médio de 6 a 7%, somados todos os seus produtos. Nesse momento histórico,
somente o café, que tinha em São Paulo, Minas e Rio de Janeiro os maiores
plantadores, representou, no mínimo, mais da metade das exportações nacionais em
65 Sobre o superávit, ver TAVARES, Luís Henrique Dias. O problema da involução industrial da Bahia.
Salvador, UFBA, 1966, p. 8-9, que, também, cita a fala de Góes Calmon transcrita no corpo do texto. 66 No próximo capítulo, “A ‘propaganda’ da Bahia”, comento a respeito de Mario Ferreira Barbosa.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 251
valores monetários. Por outro lado, os três principais produtos baianos tinham
participação bem menor. O cacau, cuja produção era hegemonicamente baiana (mais de
90% da produção nacional), atingiu 6% na década de 1920, mas na década anterior
representou apenas 3,5% do total das exportações. O fumo, cuja Bahia era o grande
produtor nacional, perfazia entre 2 e 2,5%, aproxidamente. O açúcar, por sua vez, teve
6,2% de participação nas exportações na primeira década da República, mas
representou apenas 1,9% nos anos 1920.67 Estas percentagens se referem aos números
gerais do país. Logo, não se deve pressupor que a Bahia fosse a única responsável por
elas, o que nos leva a concluir que sua parcela de contribuição se encontrava abaixo das
taxas apresentadas — no caso do açúcar, por exemplo, era mínima a contribuição, pois
Pernambuco dominava sua produção.
O volume das importações de longo curso, também, seguiu uma tendência
descrescente, “tanto no que toca à quantidade de bens importados quanto ao valor.
Entre 1904 e 1922, a participação do Estado no total do País cai de cerca de 5% para
menos 3% no que se refere à quantidade, revelando-se um quadro semelhante com
relação ao valor”.68
Como os produtos agrários e demais artigos voltados para exportação, maiores
sustentáculos da economia baiana, não dispunham de mercado tão abundante quanto o
café, acho muito importante fazer uma relativização em torno da idéia de recuperação
econômica da Bahia na Primeira República.
Uma atividade que talvez pudesse ter alavancado a economia baiana foi a
industrial, se houvesse conseguido dar prosseguimento ao impulso conhecido no século
XIX. Sabemos que na época não era o setor mais dinâmico da economia brasileira, nem
seria nas décadas iniciais do século XX. Entretanto, quando ainda era uma província, a
Bahia chegou a exercer a liderança industrial, sobretudo por causa das suas fábricas
têxteis. Com a chegada do regime republicano, “a inferioridade da Bahia se expressa
também no setor industrial. Ocupando o terceiro lugar no processo de crescimento
industrial do Brasil, em 1892, possuindo 142 indústrias, o Estado vê-se preterido no
processo de crescimento industrial, dez anos mais tarde, passando a ocupar o 12º lugar
entre os que possuíam ‘grandes estabelecimentos industriais’”.69 Manoel Pinto de Aguiar
pintou em cores mais forte a queda no ritmo de industrialização baiana. Após relacionar
o desenvolvimento do setor à intensidade da emigração estrangeira recebida, devido o
contingente de tecnologia, disciplina de trabalho e espírito de empresa que ela trazia,
situação da qual o Estado de São Paulo foi dos mais favorecidos, comentou: “não 67 Ver FUNDAÇÃO CENTRO DE PESQUISAS E ESTUDOS — CPE (BAHIA). A inserção da Bahia na evolução nacional,
2ª Etapa: 1890-1930, p. 17 e 22. 68 Idem, ibidem, p. 22. 69 Ver FUNDAÇÃO CENTRO DE PESQUISAS E ESTUDOS — CPE (BAHIA). A inserção da Bahia na evolução nacional,
2ª Etapa: 1890-1930, p. 29.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 252
admira pois que a Bahia, detendo em 1880 cerca de 50% das atividades industriais
brasileiras (incluindo-se a industria açucareira) passasse, em 1950, a representar
menos de 5% do número dos estabelecimentos industriais nacionais, e menos de 3% da
quantidade de trabalhadores na indústria do país”.70
Luís Henrique Dias Tavares tratou da questão como sendo “o problema da
involução industrial da Bahia”, título dado a um trabalho sobre o assunto, visto que, em
lugar de seguir progredindo, acabou vivenciando uma regressão. E quais teriam sido as
causas? Pinto de Aguiar, como citei há pouco, falou nos migrantes estrangeiros,
recebidos pela Bahia em baixíssimo número. Rômulo Almeida, por sua vez, referiu-se a
uma quantidade maior de fatores, dentre os quais, o “ritmo fraco de capitalização, a
decadência política da Bahia na República, efeito e novamente causa, as dificuldades de
transportes, e a carência de energia, que, para vencê-las, não encontravam recursos na
economia colonial bahiana, as quais terão sido também causa de outra carência, a
quase nula imigração”.71
Eis, então, um breve resumo da economia baiana nas primeiras décadas
republicanas: um Estado desprovido de produtos agrícolas que tivessem alta penetração
no mercado internacional (como era o café) e com uma industrialização débil. Os
reflexos desta situação incômoda eram observados, sobretudo, nas finanças do Estado,
sempre em condições precárias para cumprir os compromissos com credores e com o
funcionalismo público. Além disso, continuamente, com sérias limitações em realizar
investimentos em infra-estrutura (como transporte e vias de comunicação), na
expansão das atividades econômicas, na colonização do território (visto que a Bahia
tinha baixa densidade demográfica) e, também, na ampliação do ensino para
população, sem dúvida, um dos principais indicadores do grau de desenvolvimento
econômico de um país ou região. Todas essas dificuldades criavam um círculo vicioso,
pois terminavam por agravar a sua delicada condição econômico-financeira, visto não
conseguir contar com o favorecimento do governo federal.
Como já salientei, lastreando-me nas informações prestadas pelo livro de Paulo
Silva Santos, nas décadas posteriores à Revolução de 1930, as elites locais continuaram
a amargar, no concernente a suas ambições políticas, o dissabor de não conseguirem
reaver algo da antiga influência exercida, sendo levadas a permanecerem na luta contra
o declínio político ou, para aqueles entregues à “derrota”, a se conformarem com a
situação.72 No tocante à esfera econômica, também deu-se algo semelhante, pois não
70 AGUIAR, Manoel Pinto de. Notas sobre o “enigma baiano”. Revista Planejamento, Salvador, v. 5, n. 4, p.
123-136, out./dez. 1977, p. 129. 71 TAVARES, Luís Henrique Dias. O problema da involução industrial da Bahia. Salvador, UFBA, 1966;
ALMEIDA, Rômulo Barreto de. Traços da história econômica da Bahia no último século e meio. Revista Planejamento, Salvador, v. 5, n. 4, p. 19-54, out./dez. 1977, p. 43.
72 SILVA, Paulo Santos, op. cit.
Capítulo 4 – A “Rainha Destronada” 253
seria inapropriado dizer que a Bahia manteve a dificuldade em acertar o passo com o
desenvolvimento, muito especialmente na modernização econômica pela
industrialização. Tanto isto era verdade, e tanto era preocupante, que, em finais da
década de 1950, o problema passou a ser tratado sob a designação de “enigma baiano”.
Manoel Pinto de Aguiar fez um depoimento sobre a questão:
Os anseios generalizados das populações baianas e suas elites, pela obtenção de uma taxa de crescimento econômico mais satisfatória que a atual, encontram eco e apoio na imprensa local, que abre suas colunas aos debates sobre as possíveis causas e as soluções eventuais para este problema, o qual já foi denominado de “enigma baiano”.73
Fica patente, portanto, que os infortúnios baianos perduraram por mais tempo
do que o desejado. Na verdade, é caso de se perguntar se eles algum dia findaram,
afinal basta olhar dados estatísticos oficiais recentes, relacionados a indicadores sócio-
econômicos, para se constatar a continuidade do quadro de adversidades e pobreza
vivenciado na Bahia. Mas voltando às décadas iniciais do século XX, diria que
incapacitados de prever o devir histórico — que, bem sabemos hoje, prolongou os
“dramas” baianos —, restou aos homens de então alimentar expectativas para o futuro.
E mais: incitar o presente a iniciativas que tornassem possíveis a superação das
adversidades e a recolocação do Estado num patamar considerado condizente com as
suas antigas tradições. Será sobre isso que deverei tratar no próximo capítulo...
73 AGUIAR, Manoel Pinto de, op. cit., p. 124. Uma nota indica que o artigo de Pinto de Aguiar foi publicado
originalmente em 1958.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”...: a reconstituição da identidade e a promoção das qualidades baianas
Embora todas as considerações das elites sobre os infortúnios vividos pela Bahia
na época republicana, fonte de toda uma onda de lamúrias e pessimismo, a leitura dos
materiais indica que havia lugar para a manifestação de otimismo e esperança.
Sentimentos estes que alimentavam confiantes expectativas em torno do recobro das
antigas grandezas, e respaldados nos argumentos da continuidade de certas qualidades
e da existência de diversas potencialidades que podiam favorecer tal objetivo. Lamúrias
e esperanças, pessimismo e otimismo... Se era possível a convivência concomitante
entre sentimentos tão conflitantes e extremos, isso se dava porque não se pode perder
de vista a lógica intricada das percepções das elites sobre a “dramática” situação
baiana, pelas quais distintas camadas de consciência da temporalidade (passado,
presente e futuro) iam se combinando ou se sobrepondo umas às outras.
A exteriorização da esperança assumiu diversas formas. A própria revivescência
do passado, por meio da memória dos eventos históricos marcantes que contaram com
a intervenção da Bahia e dos grandes nomes da cultura, das artes, das ciências e da
política, remetia para algo além da saudade. Parece-me nítido que olhar o passado nem
sempre significou uma atitude de puro desvanecimento ou paralisia em relação às
premências do momento vivido, ainda que a saudade fosse um sentimento bastante
marcante. A revivescência do passado cumpriu, diversas vezes, a função estratégica de
(re)afirmação da força da terra, configurando-se, assim, numa espécie de fonte de
inspiração. Expressava, de algum modo, um modelo de ação para o presente, numa
vontade explícita de ressuscitar a história naquilo que trazia de mais emblemático das
pretensas qualidades baianas. Além disso, ao voltar-se para as glórias do passado,
desejava-se delinear uma (re)construção dos sentidos de ser “baiano” e de ser a Bahia”,
abrindo-se com isso perspectivas promissoras para um futuro mais próximo possível. A
introdução do volume especial do Diário Oficial do Estado da Bahia, de 2 de Julho de
1923, comemorativo do centenário da Independência baiana, denota essas
significações:
Ao decorrer de 1923, na celebração do centenário da Independência Política do Brasil na Bahia, donde, como um novo sol, surgiram e se distenderam, por todo o vastíssimo território do paiz, a Fé e o Amor, o Progresso e a Civilisação, não podia deixar a Imprensa Official do Estado de participar das grandes homenagens ao “2 de Julho” de 1823 ― scintilante fecho das victorias da nossa gente, pela sua coragem, pela sua tenacidade, pelo seu heroísmo, a salvar, na conseqüência inilludivel dos factos, o grito do Ypiranga, com o sacrifício do sangue e da vida [...].
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 255
Aqui, onde primeiro se abrigaram as caravellas de Cabral, [...] então simples riqueza abandonada, e hoje, após séculos de trabalho, colosso de realizações e prosperidade, devéras ostentativo na belleza das suas energias e dos seus lauréis, de toda a majestade do seu Presente, havia de ser, pelas leis soberanas do Destino, [...] a arena em que se feriria a peleja decisiva entre os interesses da política de Portugal e as esperanças, os ideaes e os anseios de um povo que, na defensiva dos seus foraes de autonomia, se levantava, forte e brioso, para luctar e vencer. E a Bahia, que, por esses feitos immorreidoros, se celebrisou como Sparta, também se tornou, para logo, Athenas renascida, de modo que ao seu reconhecido valor nos embates da guerra correspondia a sua intelligencia, no verbo inflammado dos seus filhos, para cantar a Liberdade e propugnar a Justiça, e a conquistar, na mais santa e doce harmonia do heroísmo com o gênio, as palmas e os louvores da Posteridade! [...] a Bahia, intelligencia que nunca fraqueou e braço que nunca tremeu, symbolisa, na tradição imperecível dos seus triumphos pela honra e pelo desenvolvimento do Brasil, o heroísmo na paz e na guerra, através o evoluir dos tempos, desde o mais trevoso e longinquo Passado ao engalamento de oiro das victorias do Presente, e sempre em marcha segura, firme e altiva para os esplendores da Fama, que o Porvir lhe reserva! Justamente, desses tropheus e affirmações que, num desenrolar incessante, nos vêm illuminando, especialmente dentro do ultimo século transcorrido, que assignala a nossa vida de Liberdade, que é que cabe à Imprensa Official, pelo seu órgão de publicidade, indicar, em nome do Governo, qual a fala possante do próprio Estado, numa obra de divulgação, pelos direitos e superioridades que lhe pertencem, nesta época em que dirigidos e dirigentes, não podendo viver senão irmanados na necessidade do bem geral, se preoccupam, de verdade, com as conquistas positivas da intelligencia e do trabalho que se irradiam dos gabinetes e laboratórios de estudos e analyses, e das tendas e campos da industria e cultura agrícola, a envolverem, nas suas múltiplas relações de interesses, todos os conhecimentos e actividades da agitada vida social hodierna. Eis, numa synthese de verdadeiro patriotismo, o programma deste número especial do Diário, [...] em tributo de amor à Bahia, o grande dia “2 de Julho”, num trabalho de exposição das nossas forças e capacidades, dos nossos valores e efficiencias, dos nossos progressos e energias, e a enaltecer, com a propaganda em prol dos dias que hão de vir, o brilho do Presente e a honra do Passado. É, talvez, do Futuro que mais estejamos a cuidar, para a obra grandiosa que a legendária Bahia há de fazer effectiva em phase, de certo, bem próxima. [...] Homenageando, assim, o Passado e trabalhando pelo Futuro desta querida Terra, o Diário Official foi pedir a illustres amigos e patrícios que dissessem [...] da nossa evolução moral, intellectual e material, principalmente de referencia aos derradeiros cem annos, sobre os progressos obtidos, os avanços feitos, as supremacias alcançadas, para desvanecimento e gáudio dos obreiros da actualidade e maior dignificação do renome da Bahia. Attentae, portanto, para as paginas deste Diário pois são ellas fidedignas informações do que fomos, do que significamos, do que havemos de ser, em todos os ramos da vida, na escala das classes sociaes que, embora diversificada nos seus misteres e aptidões, se entrelaçam para o conjuncto de progredimento e riqueza da nossa abençoada Terra, heroína na guerra e na paz, ídolo maior dos nossos deveres e affectos, synthetisados, na travessia deste mundo de maravilhas para o bem e para o mal, na mais bella imagem do nosso Destino, desde a educação pelo culto aos nossos antepassados até as verdadeiras raízes do coração, pelo nome que se liga, pela família que se fôrma e pela raça que se prepara, tudo, afinal, para a consciência do nosso próprio amor à Pátria, no nobre e profundo orgulho de bahianos!
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 256
E, depois, num gesto franco de sincero reconhecimento, qual um preito veraz de justiça, dizei comnosco, filhos daqui e de plagas outras do Brasil e do estrangeiro: Salve, Bahia! Salvè!1
Pretendendo dar conta dos mais diversos aspectos da vida baiana, durante as
comemorações do centenário do “Dois de Julho”, os artigos que compunham a
volumosa edição especial do Diário Oficial procuram estabelecer as continuidades entre
o passado e o presente, embora nem todos os autores tenham se contaminado, de fato,
pelo clima otimista que impregnava a sua introdução, pelo contrário, alguns pareciam
estar muito mais propensos ao saudosismo. De qualquer modo, o programa exposto
deixa muito explícito que uma das principais funções do resgate da memória do passado
era chancelar (referendar) as ações do presente e motivar os projetos futuros. Essa
busca pelo estabelecimento de relações inextricáveis entre passado, presente e futuro
pode ser facilmente compreendida como uma tentativa de instituir ou revigorar
tradições muito caras às elites.
Mas as crenças otimistas em relação à Bahia assumiram outras configurações.
Repetidas descrições sobre as enormes riquezas minerais escondidas no seu sub-solo,
bem como sobre a fertilidade da terra, que poderia gerar abundante produção agrícola,
por exemplo, tinham a função de chamar a atenção para as possibilidades de
restabelecimento do progresso econômico. A evocação das virtudes abstratas baianas e
as palavras laudatórias sobre as qualidades dos naturais da terra também tornaram-se
freqüentes.2 Ainda foram comuns as considerações elogiosas às potencialidades do
Estado, as quais despontavam tanto como uma forma da sua promoção quanto um
estímulo às ações que pudessem reavivá-lo. E tudo isso reunido constituía importantes
mecanismos simbólicos de reanimação espiritual dos baianos.
Havia, deste modo, uma espécie de discurso que era, ao mesmo tempo,
exortativo e propositivo, o qual, ao resgatar antigos e relacionar novos elementos das
grandezas baianas, introduzia este terceiro modo de encarar os problemas então
vivenciados, que se caracterizava pela confiança numa melhor ventura para a própria
terra. Assim, pode-se dizer que três discursos distintos (o primeiro sobre as grandezas;
o segundo sobre os infortúnios; e um terceiro que realçava os dons e as potencialidades
então existentes), voltados para três níveis de temporalidade distintas (um passado de
1 “A Bahia ― 1823-1923”. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Cidade do Salvador, Edição Especial do
Centenário, p. 1-2, 2 de julho de 1923. O texto foi transcrito quase na sua integridade total. 2 É interessante analisar o poema elaborado em 1897 pela escritora baiana Amélia Rodrigues: “Ó coração da
Bahia! / Coração largo, fecundo, / Mostra ao Brasil, mostra ao mundo / Que tu palpitas aqui! / E tu, pátria abençoada, / Visão de ideal magia, / Bendize, abraça a Bahia, / Põe-lhe na fronte um laurel! / Por teu progresso ela anseia, / Em teu socorro ela corre. / Por teu amor ela morre, / Sempre grande, sempre fiel”. Anotada por ALVES, Lizir Arcanjo (org.). Mulheres escritoras na Bahia: as poetisas, 1822-1918. Salvador, Étera Projetos Editoriais, 1999, p. 35.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 257
glória, um presente de crise, mas ajustado a ações e possibilidades promissoras, e um
futuro de redenção) articulavam-se em torno de um único objetivo: recuperar para a
Bahia um lugar de destaque na cena nacional. E se quisermos compreender a respeito
de como seria obtida tal recuperação, deve-se indagar sobre o modo como a Bahia e as
suas elites pretendiam se inserir na ordem republicana, bem como refletir sobre os
valores reunidos por ambos e que favoreceriam e justificariam o seu reerguimento. Será
necessário apontar algumas das estratégias pensadas para recolocar o Estado na
posição que suas elites julgavam ser de legítimo direito. Neste sentido, vários foram os
caminhos tomados, dentre eles incluíam-se: o reforço da identidade regional (em
complementaridade à identidade nacional, embora na prática isso pudesse ter um efeito
contrário); a propaganda da Bahia; e a incitação a práticas políticas e econômicas que
atendessem às necessidades imediatas. São estes aspectos que irão sobressair de agora
em diante.
A “propaganda” da Bahia
Numa conjuntura de tamanhas disputas simbólicas e práticas pelo exercício de
hegemonias do país ― fossem elas política, cultural, econômica e/ou pelos princípios
identitários da nacionalidade; e fortemente crivadas por múltiplas expressões do
regionalismo3 ―, era fundamentalmente importante criar espaços para a promoção do
Estado. Com isso, tornou-se premente divulgar as qualidades e as potencialidades da
terra e da sua gente (particularmente, das suas vaidosas elites). Muitas publicações,
surgidas nas décadas de 1910 e 1920, declararam seguir tal propósito, algumas vezes
explícita, em outras implicitamente.
Neste caso pode ser inscrito o Diário Oficial do Estado da Bahia de 2 de Julho de
1923, que pretende apresentar, vide o artigo introdutório transcrito acima, em suas
páginas, “fidedignas informações do que fomos, do que significamos, do que havemos
de ser, em todos os ramos da vida”. E muito mais foi dito em complemento... Por isso,
sugiro ao leitor que retorne ao excerto, sobretudo nos seus dois parágrafos finais, para
perceber o teor da autopromoção que as palavras ali expostas revelam, as quais estão
3 Esse termo é pensado aqui de um modo bastante aproximado à definição dos brasilianistas Love, Levine e
Wirth, como já foi citado na introdução deste trabalho. De qualquer modo, repetindo a definição, o regionalismo seria “um comportamento (político) caracterizado, de um lado, pela aceitação de uma unidade política mais abrangente, mas, de outro, pela busca de um certo favoritismo e de uma certa autonomia de decisão (em matéria de política e econômica), mesmo ao perigo de pôr em risco a legitimidade do sistema político”. Ver, LOVE, Joseph, A Locomotiva, p. 11; ou LEVINE, Robert M., op. cit., p. 23; ou, ainda, WIRTH, John D., op. cit., p. 31. O detalhe que acrescentaria à definição dos autores é que, sem prejuízo da sua essência eminentemente política, na acepção mais estrita da palavra, o regionalismo configura disputas que se passam no plano simbólico, ou seja, em torno de certas imagens e idéias, com marcante caráter ideológico. Nesse sentido, utilizo a expressão regionalismo com uma conotação distinta daquela que ela vai assumir em outros momentos, especialmente, em relação a uma determinada fase do movimento literário modernista.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 258
revestidas de um sentido altamente propagandístico, assim como, inevitavelmente, um
sentido ideológico. Lançado para comemorar o duplo centenário da independência, na
sua data nacional (o Sete de Setembro), com ênfase, porém, na data regional (o Dois
de Julho), a qual se atribuía uma peculiar significação, a edição especial do Diário
constituiu um esforço deliberado e planeado de difundir uma imagem engrandecedora
do Estado baiano (ver fig. 21).
Em cerca de 580 páginas, contendo mais de uma centena de artigos, além de
ilustrações e fotos, a publicação procura dar conta de uma intensa gama de assuntos:
história, geografia, cultura, artes, ciências, educação, política, economia, agricultura,
assistência social, instituições públicas e particulares, religiosidade, municípios e outros
tantos elementos da vida baiana. Para a empreitada, foi necessário contar com a
colaboração de inúmeros representantes das elites intelectual, política e social baianas.
Na parte em que tratei da memória das elites sobre as grandezas baianas, fiz intenso
uso de seus artigos, sendo que alguns levam a assinatura de Braz do Amaral, Silio
Boccanera Jr., Góes Calmon dentre outros sujeitos ilustres, em nível nacional, regional
ou local. Conquanto o seu tamanho colossal, uma nota explicativa, colocada no final,
lamenta que alguns convidados a tratar de outros temas (que não foram incluídos),
assim como os responsáveis por diversas administrações municipais, que deveriam
encaminhar imagens e informações sobre suas localidades, não tenham atendido ao
apelo ou tenham se atrasado em fazê-lo, o que impediu o maior alcance da obra . O
comentário do editor, a respeito desse ocorrido, sugere que os objetivos inicialmente
pretendidos para o número especial do Diário Oficial foram, no tocante à abrangência e
ao volume, superiores ao que de fato foi possível vir à luz.
Embora tivessem dimensões bem mais modestas, outros materiais publicados,
isoladamente, ao longo da década de 1920 (sobretudo na sua metade final),
engrossaram o gênero propagandístico, entre quais se encontravam certos periódicos.
Não poderia dizer que todos tivessem sido pensados originalmente com este tipo de
intenção, mas alguns deles deixaram-na muito bem caracterizada nos seus programas.
Independente de manifestar ou não o propósito propagandístico, todos eles acabavam
revelando-se enquanto tal ao assumirem uma tendência exaltante, ufana e, mesmo,
persuasória acerca dos muitos atributos da Bahia. Olhando-os conjuntamente, a maior
parte do material visava destacar as características geográficas e os potenciais
econômicos do Estado, uma parcela se preocupou em trazer informações de conteúdo
histórico, enquanto outra buscou introduzir, também, informações a respeito de
instituições, pessoas e tradições.
É necessário analisar, portanto, como tais materiais empreenderam a
propaganda da Bahia. Não pretendo aprofundar, neste ponto do trabalho, detalhes em
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 259
torno de todos eles, mas apenas comentá-los brevemente. Desde o início deste trabalho
venho fazendo uso dos mesmos ― alguns um pouco mais intensivamente, outros um
pouco menos ―, algo que de algum modo já nos fez penetrar nos seus substratos. Para
discorrer sobre os tão propalados atrativos, qualidades e riquezas reunidos pelo Estado
baiano, conforme indicam as falas das suas elites, continuarei a servir-me destes
materiais durante o desenvolvimento do presente capítulo. Alguns aspectos já foram
sinalizados, e mesmo detalhados. Deve-se aprofundar, então, a partir de uma nova
perspectiva, sobre quais fundamentos foi empreendida a ação divulgadora da Bahia...
Bernardino José de Souza e Teodoro Sampaio, ambos membros destacados do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, foram autores de escritos nos quais os intuitos
da propaganda estiveram claramente configurados. Bernardino de Souza publicou, em
1916, na revista do próprio instituto, um artigo designado “A Bahia”, na qual fazia uma
abordagem geral das diversas características geográficas (relevo, hidrografia, aspectos
geológicos, clima) e econômicas (agricultura, pecuária, industria, minas, comércio e
transportes) do Estado, ao tempo que aproveitou, também, para incursionar por
aspectos da sua história. Em 1928, ele foi lançado na forma de folheto independente
(opúsculo), contendo breves alterações redatoriais em passagens do texto, mas sem
qualquer prejuízo ao conteúdo, que, em linhas gerais, manteve-se inalterado.4 As
descrições que fazia quase sempre eram entremeadas por comentários orgulhosos, nos
quais sobressaía a idéia de que a Bahia detinha características inigualáveis,
imensamente favoráveis ao seu crescimento.
Do engenheiro Teodoro Sampaio identifiquei dois trabalhos, os quais seguiam
uma lógica semelhante àquela seguida pelo consócio, tanto na apresentação das
diversas qualidades e potencialidades regionais quanto no que se refere ao ufanismo. O
primeiro deles foi publicado na revista do IGHBA, em 1928, embora pareça ter sido
escrito quatro anos antes pois está datado como sendo de dezembro de 1924.
Chamava-se “A Bahia: actualidade e futuro”, e trazia logo abaixo do título uma espécie
de epígrafe que esclarecia o objetivo do texto, qual seja, apresentar “a incomparável
riqueza, as possibilidades illimitadas e o progresso actual do grande Estado do Norte”. À
medida que expunha números sobre a produção agrícola, o comércio, as receitas
estaduais, além de outros dados econômico-financeiros, Sampaio deixou transparecer
um acentuado grau de otimismo quanto ao destino da Bahia. Nesse sentido, suas
palavras acabaram por assumir, também, uma tonalidade exortativa inequívoca.5
4 SOUZA, Bernardino José de. “A Bahia”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, nº
42, p. 05-26, 1916; ou, do mesmo autor, A Bahia: palestra sobre o Estado da Bahia em 1928. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1928, 31 p. Tenho utilizado a versão em folheto desse trabalho.
5 SAMPAIO, Teodoro. “A Bahia: actualidade e futuro”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, nº 54, p. 147-172, 1928.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 260
O segundo trabalho de Teodoro, chamado O Estado da Bahia: Agricultura,
Criação de Gado, Industria e Commercio,6 e publicado em 1926 sob a forma de folheto,
seguiu um roteiro semelhante ao artigo divulgado na Revista do IGHBA. Embora as
páginas dedicadas a uma “breve noticia histórica sobre o Estado da Bahia”, a ênfase
estava nos aspectos ligados à atividade econômica, como fica muito bem explicitado no
título. O detalhe a mais diz respeito ao fato de constar na folha de rosto a informação
de que foi “mandado publicar no Governo do Dr. Francisco Marques de Góes Calmon
pelo Dr. Austricliano de Carvalho, Secretário da Agricultura”, o que revela as intenções
oficiais de promover o Estado. O Góes Calmon aí citado foi governador entre 1924 e
1928, e trata-se daquele mesmo sujeito tão preocupado em descrever a riqueza
econômica baiana no século XIX, que tive a oportunidade de citar no capítulo 1.
Sobre a riqueza econômica da Bahia, pensada agora, porém, no próprio contexto
para o qual volto a minha atenção, ou seja, as décadas de 1910 e 1920, havia muitos
que buscavam ressaltar quão importante era para o país a contribuição do Estado. E
neste sentido, um dos principais propagandistas de tais riquezas foi Mario Ferreira
Barbosa, que trabalhou durante anos como diretor do Serviço de Estatística do Estado,
e cuja percepção a respeito do tema era nitidamente otimista. Dentre os muitos textos
da sua autoria, cito A prosperidade econômica da Bahia (1927), A Bahia e Sua Riqueza
Econômica (1928), O Estado da Bahia: o seu valor e as sua possibilidades econômica
(1931).7 Todos eles marcados pela vontade de ressaltar o volume das atividades
econômicas, nas suas diversas áreas, e, especialmente, acentuar a posição ocupada por
cada uma delas em comparação com outros lugares. Como afirmou no primeiro dos três
escritos indicados:
Constitue o Estado da Bahia uma das mais positivas demonstrações de capacidade productora e energias fecundas da nacionalidade brasileira. O seu progresso, indiscutivelmente affirmado em números muito expressivos, e, em verdade, admirável e surprehendente, sob quasquer pontos de vista que o encaremos. Este grandioso Estado nortista, que o berço de nacionalidade ainda hoje é um centro irradiador de considerável força propulsora, uma fonte prodigiosa de seiva vital, que anima, fortalece e desenvolve a expansão econômica do Brasil.8
O Estado da Bahia (Obra de Propaganda Geral), que teve José Coelho como
responsável pela sua organização, revela no próprio subtítulo o objetivo com que foi
6 SAMPAIO, Theodoro. O Estado da Bahia: Agricultura, Criação de Gado, Industria e Commercio. Bahia,
Imprensa Official do Estado, 1926. 7 BARBOSA, Mario Ferreira. A prosperidade econômica da Bahia. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1927;
idem, A Bahia e Sua Riqueza Econômica, s.n., 1928; idem, O Estado da Bahia: o seu valor e as sua possibilidades econômicas. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1931.
8 BARBOSA, Mario Ferreira, A prosperidade econômica da Bahia, p. 1.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 261
elaborado.9 Os indícios que recolhi sobre o trabalho sugerem que não foi a iniciativa de
um baiano, embora tenha contado com pleno incentivo deles. A data da sua publicação
não foi apresentada, mas parece ter coincidido com a comemoração do centenário da
Independência baiana, ou seja, 1923. Anos antes do seu lançamento, exatamente em
julho de 1920, a Bahia Ilustrada anunciou a chegada de Coelho na capital baiana, que
veio para recolher elementos e alinhavar apoio para organizar um álbum sobre o
Estado. Segundo a nota, o editor já havia produzido um material do mesmo tipo para
Pernambuco. A revista ressaltou a importância da obra, que foi qualificada como “um
trabalho bom”, enquanto o responsável pela sua organização foi descrito como “um
verdadeiro propagandista das riquezas, do progresso e do desenvolvimento do nosso
paiz”. Apelou, ainda, para a colaboração dos conterrâneos ao projeto, visto que, na
definição do periódico, “o sr. José Coelho vai concorrer e muito para se tornarem mais
conhecidas as riquezas do grande Estado do Norte, que terá no formoso e rico álbum
um factor poderoso para propagar a sua industria, a sua lavoura, o seu commercio,
mostrar as suas fontes de producção, os innumeros productos resultantes da fertilidade
do seu solo”.10 Na sua forma final, O Estado da Bahia (Obra de Propaganda Geral)
apresentou muitos outros aspectos das “riquezas” baianas, pois acabou por ir além dos
elementos meramente econômicos referidos na nota, ao incluir referências históricas,
geográficas, institucionais e a personalidades.
Embora tenha focado produções mais relacionadas às décadas de 1910 e 1920,
não posso deixar de mencionar que, antes mesmo deste período, foram publicados
alguns trabalhos com os mesmos propósitos propagandísticos. Em 1893, por exemplo,
foram elaboradas, por José Carlos Ferreira, do Arquivo Público do Estado, as Memórias
sobre o Estado da Bahia, que se constituiu, dado o seu volume, e considerando os
limites da época, num rico inventário sobre as características do Estado.11 Em 1908,
Antonio Joaquim de Souza Carneiro, professor da Escola Politécnica, instituição de
ensino superior no Estado, publicou, na forma de folheto, as Riquezas Mineraes do
Estado da Bahia, na qual fazia uma detalhada apresentação dos inúmeros “tesouros”
guardados pelo seu solo. Carneiro afirmava, no final do seu texto, caber “a cada um de
nós fomentar, no seio immenso desse estado que, opulento de tão extraordinários
materiaes applicaveis a todas as artes, a todas as industrias, as todas as necessidades,
revela-se predestinado a occupar um lugar proeminentissimo, pela variedade de seus
9 COELHO, José (Editor). “O Estado da Bahia (Obra de Propaganda Geral)”. Rio de Janeiro, Empreza Brazil
Editora, s/d. 10 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 32, jul./1920. 11 FERREIRA, Jose Carlos. Memórias sobre o Estado da Bahia. Bahia, Typ. e Encadernação do "Diário da
Bahia", 1893.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 262
recursos naturaes e profusão delles, na grande Republica Brasileira, os meios precisos
de engrandecimento e prosperidade da mineração baiana”.12
Além dos livros e folhetos, devo salientar que os periódicos, ao darem vazão a
uma torrente de sentimentos, manifestações e expressões regionalistas, foram
relevantes veículos de propaganda. Por se tratar de um material mais facilmente
moldado às circunstâncias cotidianas da vida política, econômica, social e cultural, nas
quais, muitas vezes, as impressões mais imediatas são predominantes, os periódicos
permitem uma análise de conteúdos textuais que tendem a ser condicionados pelo
tempo acelerado das experiências do dia-a-dia. A periodicidade lhes confere maior
flexibilidade no tratamento dos diversos assuntos, visto que cada fato novo pode servir
para reafirmar, relativizar ou negar o modo de percepção das coisas e, logicamente, o
seu registro. De qualquer modo, é fundamental distinguir os periódicos científicos, que,
pelo seu caráter, demonstram-se menos sujeitos, mas não imunes, aos impactos dos
acontecimentos cotidianos daqueles voltados para as ocorrências mundanas.
A Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, por exemplo, tinha uma
feição científica, mas isso não impediu que refletisse o intuito de valorizar o Estado,
desejando destacar seus eventos e personagens mais notáveis, descrever as suas
características geográficas, além de promover estudos arqueológicos, etnográficos e
outros do gênero. Mas eram as revistas de variedade e mundanismo que melhor
assumiam a função propagandística, modalidade em que se sobressaem a Renascença,
origem de muitas passagens deste trabalho, e a Bahia Ilustrada, inequivocamente, a
fonte que tem sido utilizada aqui com maior freqüência.
A revista Bahia Ilustrada e a “propaganda” da Bahia
A revista Bahia Ilustrada ocupa um lugar especial na discussão da identidade
baiana e da propaganda do Estado, o que torna necessário discutir o seu projeto
específico com um pouco mais de cuidado. Isto nos ajudará a compreender melhor não
somente a proposta do periódico, mas, também, sobre algumas das motivações por
detrás de outros veículos, os quais, mesmo tendo propósitos similares, não deixaram a
vocação propagandística tão explicitamente registrada quanto ela.
A Bahia Ilustrada foi lançada em dezembro de 1917. Pertenceu, inicialmente, a
Anatolio Valladares, sobre o qual não consegui obter muitas informações, mas que,
segundo alguns indícios, parece ter nascido na Bahia, embora houvesse, assim como
outros tantos conterrâneos, estabelecido-se no Rio de Janeiro muitos anos antes. A
12 CARNEIRO, Antonio Joaquim de Souza. Riquezas Mineraes do Estado da Bahia. Bahia, Litho-Typ. e
Encadernação Reis & C., 1908. Para o trecho transcrito, ver a p. 16.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 263
propósito, o Rio de Janeiro apareceu como o local da edição de todos os seus volumes.
Esse fato talvez explique o porquê desta revista possuir qualidade gráfica bastante
superior àquelas publicadas na Bahia ― qualidade demonstrada no tipo de papel
empregado, nas suas dimensões (volume e tamanho), nas capas elaboradas, na
profusão de imagens (fotografias e ilustrações) que recheavam suas páginas, enfim, em
todo o seu próprio projeto gráfico. Numa iniciativa de auto-promoção, a edição nº 5
(abril de 1918) afirmou que ela era “julgada pela opinião unânime do público e dos
jornaes ― a mais bella revista que se publica no Brasil”.13
Foram lançados, ao todo, 43 números da Bahia Ilustrada, entre dezembro de
1917 e outubro de 1921. A revista procurou manter periodicidade mensal, embora
tenha passado por sucessivos momentos de descontinuidades. Ao longo da sua
trajetória de existência, sofreu, ainda, algumas mudanças de propriedade: deixou de
pertencer a Anatólio Valadares, passou pelo controle de uma sociedade anônima, que
chegou a ser presidida por Otávio Mangabeira, foi adquirida pelo fluminense
Epaminondas Dutra e retornou, depois, às mãos da Anatólio Valadares. Evidentemente,
tais mudanças implicaram, em certas alterações na sua linha editorial.14
Feita esta breve apresentação da trajetória da revista, interessa especialmente
analisar os seus objetivos. E no primeiro número, logo na página inicial, a Bahia
Ilustrada publicou um editorial que fazia as vezes de programa, o qual recebeu uma
designação que era bem significativa e, por si mesma, auto-explicativa dos fins que
pretendia cumprir ― a matéria recebeu o título de “A propaganda da Bahia” (ver fig. 02,
capa da edição de lançamento da revista). Para explicar as motivações da revista, os
13 “A Propaganda da Bahia. Nossa revista”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 5, abr./1918. 14 Dentre os quarenta e três números lançados, apenas a edição 42 não foi por mim localizada. Em 1933, a
revista foi reeditada, vivenciando uma segunda fase, a respeito da qual é preciso prestar um esclarecimento: em todos os acervos que tive a oportunidade de pesquisar, só localizei o primeiro volume da nova etapa, fazendo-me supor que sua vida foi brevíssima. A tentativa de regularidade mensal durou até a edição nº 39, enquanto entre os nº 40 e 43 parece ter ocorrido a intenção de periodicidade semanal, sem que tenha sido bem sucedida. No que diz respeito às dificuldades na edição, houve três oportunidades em que foram lançados números duplos, em volume único, para regularizar a publicação, no caso os números 20-21 (jul.-ago./1919), 22-23 (set.-out./1919) e 27-28 (fev.-mar./1920). Na prática, as edições duplas reduzem para quarenta a quantidade de volumes publicados. Além disso, entre os números 32 (jul./1920) e 33 (dez./1920) a revista sofreu uma interrupção de cinco meses; depois passou por uma nova interrupção de três meses, entre os números 39 (jun./1921) e 40 (23 de set./1921). Estes fatos demonstram as dificuldades enfrentadas pelos editores de periódicos para manter suas publicações circulando, fatalidade a que nossa revista não conseguiu escapar. Como não me dediquei a uma pesquisa mais sistemática sobre a história da revista, tenho dificuldade em explicar a razão da sua falência. Portanto, o máximo que posso fazer é conjecturar. Embora a publicidade garantisse parte da manutenção, parece-me que a dependência das vendas avulsas e das assinaturas era premente para a sobrevivência desse tipo de empreendimento. Num meio social como a Bahia, onde o índice de pessoas que não tinham acesso à instrução era elevado — principalmente se lembrarmos que o ensino público, no período da Primeira República, teve importância secundária na lista de prioridades dos governantes baianos, sendo comum a multiplicação de clamores por mais investimentos na área —, a possibilidade de ampliação da gama de leitores acabava por se reduzir. A efemeridade de tais veículos de comunicação, que tendiam a durar poucos números e alguns meses, tornava-se uma conseqüência comum. Esse problema não foi exclusivo da Bahia, embora desconfie ter sido mais acentuado nela. CRUZ, Heloísa de Faria, São Paulo em tinta e papel: periodismo e vida urbana — 1890-1915, São Paulo, Educ/Fapesb, 2000, por exemplo, demonstra como muitos periódicos que circularam na cidade paulistana tiveram dificuldades de se manterem vivos. Mas voltando à nossa realidade, a Bahia Ilustrada teve a duração de quatro anos, que se não chegava a ser muito, estava acima da média da maioria das publicações locais do período.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 264
editores argumentaram em torno da necessidade do Estado se fazer mais bem
articulado e de tornar o seu nome bem difundido no centro de poder da República
brasileira. Eles pensavam o Rio de Janeiro, a Capital Federal, como lugar para a
propagação das qualidades, das potencialidades e das grandezas do Estado, de modo a
salientar a sua importância e as suas contribuições para a nação. Para o(s) autor(es) do
manifesto, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e, principalmente, São Paulo já faziam no
Rio uma eficiente publicidade de seus valores, conscientes que eram da importância
desse mecanismo para se projetarem. Segundo eles, “nos tempos correntes, não há
como desistir da propaganda inteligente, sob pena de sofrer o menosprezo e a
consequente perda de valor econômico”. Precavidos contra este rico, aqueles Estados,
conforme se alegava, “não descura[va]m ― antes a incrementa[va]m de toda a
maneira ― da propaganda de um sólo, de seus homens, de suas cousa”.
Diante dos paulistas ― “rivais” dos baianos nas lutas políticas e simbólicas da
época, e criadores do Centro Paulista na capital do país ― e dos naturais de outros
Estados, a Bahia se encontrava, segundo a percepção dos sujeitos envolvidos com a
edição da revista, em posição de desvantagem. Este fato foi apresentado como a razão
maior para o surgimento da Bahia Ilustrada, que visava suprir, segundo seus editores, a
lacuna existente na divulgação do chamado “grande Estado do Norte”:
Dos grandes Estados brasileiros, só a Bahia, que não tem que[m] a suplante em importância, vive arredia deixando que se desconheçam, fóra do seu ambito territorial, o muito que ella vale! Mesmo na Bahia, a Bahia não é conhecida como deveria ser. Esta revista aparece para preencher essa funcção, hoje indispensavel, da propaganda pela palavra escripta, pela photographia, por todas as fórmas gráphicas, de tudo quanto interesse à Bahia e aos bahianos, seja levando os informes do Rio para o Estado, seja tranzendo-os deste para a vida agitada do meio carioca.
Convencida da importância supostamente incomparável do Estado na nação
brasileira e crente no espírito elevado de seus homens ilustres, uma parcela das elites
baianas fez da revista um instrumento para a promoção das grandezas regionais e por
meio do qual exigia maior reconhecimento para a Bahia, pretendendo dar a isso um
alcance nacional. Nesse empreendimento, acabaram por reafirmar alguns dos principais
pilares da identidade baiana então em voga. Editada na cidade do Rio de Janeiro,
voltada para a comunidade baiana estabelecida na capital federal e no Estado
fluminense, assim como para os conterrâneos residentes na própria Bahia, a revista
surgiu com o objetivo de fazer prevalecer de modo mais eficaz, em especial no que
tange a certas questões políticas, os pressupostos associados à idéia de grandeza
difundida pelas elites baianas. Ao fazer “a propaganda da Bahia”, fundavam um
movimento em via de duplo sentido, pela qual se estabelecia uma crucial estratégia de
troca de informações entre a Bahia e o centro da vida política nacional.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 265
Ainda no que se relaciona ao seu projeto, a Bahia Ilustrada se dizia uma
publicação cujos interesses possuíam, digamos, um caráter ecumênico, que atenderia
ao universo dos baianos que amavam sua terra e por ela aspiravam coisas melhores.
Desta forma, recusava-se formalmente, a ser o veículo particular das idéias de um
grupo específico, pois “não é [seria] orgam de nenhuma classe em especial, mas de
toda a Bahia que quer viver, progredir, triumphar”! De modo complementar, também se
negava a ter qualquer vinculação política ou partidária: “não é tambem — livre-nos
Deus! — uma revista partidaria ou de politicalha. Os factos politicos serão commentados
pelos nossos collaboradores, sob a sua responsabilidade”.15
Entretanto, o exame cuidadoso da revista revela-nos que muitas vezes a
pretendida despolitização tratava-se de um mito. A Bahia Ilustrada não escapou às
complexas tramas, já descritas, resumidamente, no capítulo anterior, que
caracterizaram a política baiana. Muitas vezes ela deixou patente o seu alinhamento, a
sua simpatia por um ou outro grupo. Se analisarmos com cuidado os nomes apontados
como sendo seus colaboradores, percebe-se que eram sujeitos particularmente
alinhados a Rui Barbosa, e opositores de José Joaquim Seabra, outro líder político
baiano do período.16 Mas isso não quer dizer que não tenha, em alguns momentos,
levantado a voz pela superação ou abrandamento das divergências em prol de um
interesse considerado superior, que era o próprio bem daquela espécie de entidade
chamada Bahia, como veremos mais adiante.
Ainda que se dissesse porta-voz do povo baiano em geral, a lista de
colaboradores colocada ao final do manifesto-programa revela quão imbricadas estavam
as propostas da revistas aos interesses e percepções de uma parcela muito especial de
indivíduos nascidos na Bahia. Entre eles encontravam-se políticos, intelectuais e
doutores; sujeitos acostumados a ocuparem as funções de dirigentes dos “destinos” do
estado, a exercerem atividades profissionais de prestígio e a serem influentes
formadores de opinião. São todos, portanto, representantes da mais “nobre estirpe”
baiana, os nomes citados como colaboradores dizem tudo, entre eles estão: os políticos
Rui Barbosa, Miguel Calmon, Aurelino Leal e os irmãos Mangabeira (Otávio e João); os
médicos Afrânio Peixoto, Prado Valladares, Belmiro Valverde, Arthur Neiva e Juliano
Moreira; o jornalista Aloysio de Carvalho (conhecido como Lulu Parola); os advogados
Bernardino de Souza e Lemos Britto. Foram esses homens das elites, conhecidos
regional e/ou nacionalmente, que respaldaram o empreendimento, fosse por
contribuição direta, publicando matérias, fosse com o simples empréstimo do nome ao
15 Para todas as últimas referências feitas, ver “A Propaganda da Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº
1, dez./1917. 16 Sobre a relação da revista Bahia Ilustrada com Rui Barbosa, rever, no capítulo 2, o tópico designado “Rui
Barbosa: ‘gênio brasileiro’”.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 266
quadro de colaboradores, fosse enquanto notáveis personalidades que poderiam
aparecer como notícias nas páginas dos volumes, ou ainda como seus acionistas ou
administradores (ver fig. 22, 23 e 24).17
A receptividade, a identificação e, mais do isso, o engajamento na proposta da
revista são atestados pelas “palavras” assinadas por figuras “eminentes”, as quais
ficaram registradas em suas páginas, de modo sistemático, nas primeiras edições. Logo
no número inaugural, Rui Barbosa veio tanto proclamar a sua relevância quanto lhe
atribuir um sentido:
A Bahia Illustrada tem, ao nascer, os meus mais sinceros applausos. Aquella formosíssima terra, tão bem nascida quanto malfadada, precisava de uma galeria como essa, onde as bellezas e opulências da encantada Pérola do Norte refulgissem, com todos os primores e relevos d’arte, n’um escrínio de maravilhas constantemente renovado. O autor desta idea feliz bateu às portas de uma fada, cujos domínios de encantamento são tão sem limites como do Reino dos Sonhos. As regiões da magia e do deslumbramento vão approximar de nós os seus longos horizontes, povoados ao infinito de surpresas e graças. Oxalá que desse espactaculo não se escolha somente o gozo de se lhe sentir a doçura, de nos enfeitiçarmos no seu enlêvo, mas, sobretudo, o habito de amarmos essa mãe pátria de portentos, e concorremos com o melhor d’almas de todos os seus filhos, para dotar do espírito de vida e energia esse torrão previlegiado.
Na segunda edição, em janeiro de 1918, saíram publicadas as palavras de
Antonio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, à época, ministro do Supremo
Tribunal Federal. Num trecho ele diria:
[...] Tornar conhecidos os elementos de que dispomos, revellar ao Paiz o que temos conseguido, desajudados de estranhos, nessas regiões do norte de que vivemos tão alheiados, evocar a lembrança do que realisaram os nossos maiores, isto é, fazer o inventario dos nossos recursos e dar-nos a consciencia do valor da nossa raça é o que de mais urgente e proveitoso se havia de tentar para habilitar-nos a resolver o problema de que está dependendo o nosso futuro. [...]
No quarto número da revista, em março de 1918, Pacífico Pereira, professor da
Faculdade de Medicina da Bahia, afirmava que a Bahia Ilustrada “era uma necessidade
17 Apresento aqui a lista completa, citada no final do editorial-programa da revista, publicado no primeiro
número: “Ruy Barbosa [dispensa apresentação], Pires e Albuquerque, Miguel Calmon [ministro de Estado de Afonso Pena e Artur Bernardes], Aurelino Leal [interventor na capital federal no governo Artur Bernardes], Afrânio Peixoto [médico, educador e escritor de renome nacional], Eduardo Ramos, Octavio Mangabeira [ministro de Estado de Washington Luís], Prado Valladares, Bernardino de Souza, Juliano Moreira [médico e professor], Sergio de Carvalho, Aloysio de Carvalho [jornalista e poeta que escrevia sob o pseudônimo de Lulu Parola], Belmiro Valverde, Vergne de Abreu, Lemos Britto [advogado], Diogenes Sampaio, Arlindo Fragoso, Frederico Pontes, Bulcão Vianna, Gonçalves Junior, Constancio Alves, Raul Alves, Abilio de Carvalho, Orlando Guerreiro de Castro, Eutichio Leal, Arthur Neiva, Cassiano Gomes, Gustavo Halssemann, João Mangabeira [político influente e irmão de Octavio Mangabeira], Pires Brandão e tantos outros”. Ver também, “A Propaganda da Bahia. Nossa revista”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 5, abr./1918, que tratou de elencar os colaboradores em cada uma das quatro edições iniciais, repetindo e acrescentando novos nomes à lista do primeiro número.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 267
para a família bahiana, unida neste Estado ou dispersa no vasto território do paiz”. E
dizia mais,
[...] A «Bahia Illustrada» relembra aos bahianos sua historia gloriosa, os feitos memoráveis de seus filhos illustres, seus heroes, seus historiadores, seus scientistas e litteratos, seus políticos, parlamentares e diplomatas, que lhe deram fama e lustro, todos os notáveis que fizeram sua passada grandeza, esse passado brilhante, de que vivemos ainda a vida espiritual, que é goso mais puro da humanidade. [...]18
As citações indicam preocupações em estabelecer um tipo de comunhão entre os
baianos, as quais buscavam, nitidamente, reforçar neles certos laços de identidade. E o
conteúdo que a revista procurou veicular tinha a função de dar forma, de incentivar a
consecução dos seus objetivos. Daí os artigos mais especializados, freqüentemente
reproduzidos de outras fontes, as notícias sobre fatos e personalidades, as crônicas
sobre acontecimentos do cotidiano, os textos poéticos e literários, as ilustrações e
fotografias de paisagens e pessoas, dentre outras tantas formas de informação que
preenchiam suas páginas.
Uma história da Bahia Ilustrada, que examine detidamente a sua trajetória, a
(con) seqüencialidade do projeto e as transformações sofridas, ainda está por ser feita.
O manuseio dos exemplares que constituem a coleção revela muito das suas
vicissitudes. Mas este não é o trabalho a que me propus aqui. Ao dedicar alguns
parágrafos para falar sobre revista, a intenção era tornar mais claro a natureza do seu
discurso. Descrevendo e analisando como certos temas relacionados ao Estado foram
abordados pela Bahia Ilustrada ― assim como pelos outros materiais comentados antes
dela ―, conseguiremos compreender como ela efetivamente realizava sua função
propagandística.
Há um detalhe relevante sobre todos os materiais consultados que deve ser
registrado (revistas, folhetos, livros, etc): embora o notório ufanismo que lhes eram
peculiar, nem sempre era possível viver apenas do enaltecimento da terra. Por isso,
circunstancialmente, deixavam de ser, na prática, meios de propaganda e se
transmudavam em veículos denunciadores dos seus problemas. Por sinal, O
cumprimento deste papel foi demonstrado profusamente nos capítulos anteriores desta
parte do estudo, haja vista que diversas fontes trabalhadas neles serão utilizadas aqui
também. Não poderia deixar escapar esta importante informação. De qualquer modo,
irei examiná-los adiante sobretudo pelo ângulo da divulgação positiva da Bahia,
atentando para aquilo que declaradamente pretendiam ser.
18 Ver, respectivamente, “Palavras de Ruy Barbosa”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 1, dez./1917 (o
negrito consta no original); “Palavras do Exmo. Sr. Ministro A. Pires e Albuquerque à Bahia Ilustrada”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 2, jan./1918; e “Palavras do Eminente Professor Pacífico Pereira à Bahia Ilustrada”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 4, mar./1918
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 268
Apoiando-me, preferencialmente, nos conteúdos da Bahia Ilustrada, que tinha,
como vimos, o propósito declarado de fazer a propaganda da Bahia, abordarei adiante
aspectos da identidade, das potencialidades existentes e das possibilidades futuras,
vividamente sentidos e convictamente sustentados pelos colaboradores da revista. Tal
opção pode ser justificada pelo fato do periódico funcionar como um difusor de idéias
(e/ou de escritos) que, na sua origem, foram divulgados antes em outros meios. O
aproveitamento de trechos de livros e a compilação de artigos de outros periódicos (a
exemplo da revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia), junto à veiculação de
textos inéditos, foram práticas bastante adotadas. Esta característica, na minha opinião,
confere à Bahia Ilustrada um papel significativamente representativo daquilo que
constituía uma parte da atmosfera mental, cultural, social, política e ideológica na qual
estavam inseridas as elites baianas das décadas de 1910 e 1920. De qualquer modo,
sempre que se mostrar necessário, recorrerei aos demais materiais pesquisados, seja
para reforçar aquilo que estiver a comentar, seja para alargar o período da análise
sobre um assunto qualquer, visto que a Bahia Ilustrada circulou apenas entre 1917 e
1921.
“Bemdita terra”!
Para descrever e qualificar a Bahia, os seus mais entusiasmados filhos
recorreram, muitas vezes, ao uso da expressão “bemdita terra”. Obviamente, ela não
aparecia em todas as ocasiões elogiosas — na realidade, conquanto a grande
freqüência, foi utilizada numa quantidade menor das fontes consultadas. Entretanto,
mesmo quando não se fazia referência a expressão, o seu peculiar e intrínseco sentido
simbólico podia ser identificado com facilidade em textos relacionados a uma
diversidade de assuntos. Quer rememorassem fragmentos da sua história, quer
tratassem das suas características e riquezas naturais, quer se referissem aos seus
subjetivos dons espirituais, sobressaía a percepção presunçosa de que a Bahia era um
território abençoado, como se houvesse sido contemplada com dádivas maravilhosas.
Em 1920, por exemplo, na Mensagem Apresentada à Assembléia Legislativa, o
governador José Joaquim Seabra introduziu palavras que traduzem muito bem tal forma
de alusão ao Estado:
[...] terra generosa e magnifica, repleta de esplendores legendarios, burilados no poderio da heraldica brasileira; ninho de onde se altanaram os brados das mais brilhantes campanhas de honra e de civismo; mansão de vividas tradições e impagaveis reminiscencias; solo privilegiado, onde
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 269
as mãos de Deus espargiram innumeras riquezas, qual mais util, qual mais opulenta [...]19
A Bahia Ilustrada, especialmente, e os outros tantos materiais então publicados
refletiram bastante esta forma de tratamento (ver fig. 25 e 26). Os inúmeros exemplos
citáveis, que se pode deles retirar, configuravam juntos um repetitivo discurso ufano, o
qual, para enaltecer a terra, aproveitava-se tanto de aspectos a que se atribuiria
importância secundária (ou, noutros termos, aspectos com nítidos valores subjetivos),
quanto de elementos assinalados como da mais extrema relevância (e, portanto, com
valores objetivos mais claro) — sendo que estes últimos, segundo as crenças, inclusive
permitiriam um futuro grandioso para o Estado.
Deste modo, conforme as indicações recolhidas, muitos seriam os motivos para
bendizer a Bahia: as belezas naturaes, decantadas nas suas “exaggeradas opulências”
(ver fig. 27); a fartura da terra, com seus frutos e frutas abundantes; “a riqueza e
pujança da sua flora”, com suas espécies variadas e adaptáveis, assim como a fauna
grandiosa em número de espécie; e, também, o clima, caracterizado como o “mais
uniformemente constante em temperatura, muito mitigado, salubre e amenissimo”,
dentre “todos do Brasil”, e que a dotava de “uma quasi primavera, deliciosa e eterna”.20
Ao ser apresentada com a posse de tais qualidades, não raro a Bahia era colocada como
uma espécie de microcosmo do Brasil, por reunir um pouco de tudo que existia nas
outras partes do país. Foi nesta condição, que a definiu D. Jeronymo Thomé da Silva,
porém, desta feita, na Revista da Bahia: “Se o Brasil, senhores, pelas suas riquezas,
pelos seus differentes climas, pelos seus productos, pode se chamar um pequeno
mundo, a Bahia é um pequeno Brasil”.21
Todos estes exemplos dados inicialmente dizem respeito a fenômenos naturais,
mas havia lugar para louvar certos traços coletivos associados à gente. Assim, Agenor
Chaves, em crônica publicada na Bahia Ilustrada, em dezembro de 1920, comentou a
função educativa da família no lar baiano como algo bastante positivo, pois resistia a
certas evoluções notadas então. Do mesmo modo, salientou a “tradição hospitaleira do
lar da Bahia”, que acolhia tanto aos estrangeiros, quanto os próprios membros da
família. Ao concluir seu texto, Agenor Chaves, envolvido pela fé na vigência de tais
19 MENSAGEM APRESENTADA À ASSEMBLÉIA GERAL LEGISLATIVA DO ESTADO DA BAHIA NA ABERTURA DA
2ª SESSÃO ORDINÁRIA DA 15ª LEGISLATURA PELO DR. JOSE JOAQUIM SEABRA GOVERNADOR DO ESTADO. Bahia, Imprensa Official do Estado, 1920, p. 28.
20 Respectivamente, “Bellezas naturaes da Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 10, set./1918; “Terra farta”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 35, fev./1921; “Flora e Fauna”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34, janeiro de 1921; e Paschoal de Moraes. “O Clima de São Salvador”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 05, abr./1918.
21 SILVA, D. Jeronymo Thomé da. “O 2 de Julho — a data verdadeira da independência”. Revista da Bahia, Bahia, nº 27, 1º de fevereiro de 1923.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 270
princípios, soltou a expressão exclamativa que dá título a este tópico do capítulo:
“Bemdita Terra”!
Poderia multiplicar os pequenos casos sombreados pelo espectro desta forma de
representação. Não seria viável, no entanto, que nos perdêssemos no largo montante
de exemplos existentes para ilustrar esta questão. Daí porque selecionei alguns temas
que me pareceram os mais sugestivos para aprofundar a caracterização da “bemdita
terra”. Mas que não escape à compreensão do leitor que diversas questões levantadas
pela documentação, e já analisadas anteriormente, sobretudo na primeira parte do
trabalho, estiveram influenciadas pela noção ora discutida. Dentre os temas que preferi
examinar mais detalhadamente, estão os atributos dos baianos, as festas e tradições e,
por fim, as riquezas da Bahia.
Os “invasores” baianos e seus atributos
Enquanto periódico que pretendia promover a propaganda da terra, a Bahia
Illustrada fez diversas e destacadas menções aos atributos especiais partilhados pelos
baianos. Logo no seu primeiro número, de dezembro de 1917, fez-se uma
caracterização pela qual eles apareciam como detentores de virtudes inigualáveis se
comparados aos naturais de outras partes do país. Na afirmação dos seus editores, “se
há, entre as diversas regiões brasileiras, povo de características invejaveis, esse é, sem
duvida, o bahiano. Intelligente até a maxima perspicacia, investigador, tenaz, operoso,
bravo, cavalheiresco e jovial, elle representa um reservatorio de preciosa energia
brasileira, sempre comprovada e que se tornou, com o tempo, proverbial”. E daí
advinha, segundo a revista, uma “originalidade regional” que tornava fácil distinguí-lo
em qualquer lugar que estivesse.22
Um interessante corolário parecia derivar das convicções expostas há pouco: por
reunir tantas peculiaridades os baianos tendiam a se notabilizar nas suas atividades.
Isto teria ocorrido desde épocas remotas, como já foi exposto nos discursos
relacionados aos tempos de glória, e, presunçosamente, continuavam a irradiar seus
dons no presente de então. Dando prosseguimento aos argumentos valorativos, eles
foram apontados enquanto sujeitos que teriam contribuído e permaneciam a contribuir
enormemente para o engrandecimento nacional, sobretudo por demonstrarem
“privilegiadas cerebrações”:
Na historia do nosso paiz rara é a pagina brilhante em que se não inscrevam nomes fulgentes de bahianos illustres. Na alta politica, na vanguarda das grandes iniciativas nacionaes, na dianteira dos estudos
22 “Nossos Patricios”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 1, dez./1917.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 271
scientificos, na primeira plana da imprensa, à frente do movimento literário do paiz – há sempre, mercê de Deus, privilegiadas cerebrações que tiveram o seu berço na abençoada terra bahiana. Ainda agora, sem falar dos que, no próprio Estado, dão o melhor de sua actividade ao progrésso e à riqueza do rincão natal, vemos que, na capital, scintillam, de primeira grandeza, nomes de bahianos eminentes, que, para os brasileiros, têm significação especial neste decisivo momento da nossa vida de nação.23 (grifo meu)
As palavras transcritas acima não deixam de ser a repetição de algo dito
anteriormente, mas não custa nada dizê-lo novamente: quando os sujeitos da era
republicana rememoravam os feitos e as obras de conterrâneos do passado, buscavam
restabelecer uma linha de continuidade e fixar uma relação de identidade entre todos
eles.
Na leitura das fontes, verificam-se curiosos argumentos a defender uma espécie
de onipresença do elemento baiano, pois, conforme se dizia, ele “tem, na terra, esse
attributo divino: está em toda parte”.24 Assim, mesmo muito longe do seu lugar de
origem, eles podiam surgir nos momentos mais inesperados para socorrer pessoas que
por alguma razão qualquer estivessem em apuros, numa ação verdadeiramente
providencial. Certos relatos, cujo grau de veracidade é difícil de atestar, apareceram na
revista Bahia Ilustrada com o propósito de comprovar este fato. Num deles, conta-se a
história de um baiano, o Monsenhor Victor Soledade, que se encontrava, em pleno
Japão, numa situação embaraçosa. Apreciador de charutos, o monsenhor percebeu que
os seus haviam acabado e entrou numa loja a fim de adquiri-los. Mas não sabendo
como se exprimir em japonês, teve a sorte, então, de ser reconhecido por um
compatrício, que, oportunamente, apareceu para acudi-lo tão logo pressentiu a intenção
do religioso.25
23 “O Brasil e a Guerra: bahianos que se destacam neste grande momento historico”. Bahia Ilustrada, Rio de
Janeiro, nº 1, dez./1917. O momento a que se refere o trecho é o da Primeira Guerra Mundial, e os baianos que cintilam, recebendo louvores da matéria, são Rui Barbosa, Miguel Calmon e Aurelino Leal.
24 “Nossos Patricios”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 1, dez./1917. 25 Ibidem. Transcrevo literalmente o ocorrido com o Monsenhor:
“Um episódio contado por Monsenhor Victor Soledade define bem essa adaptação do bahiano para dedicar-se a todas as honestas actividades humanas e para prosperar, intelligentemente, em todas os pontos em que decide residir. Chegando ao Japão, verificou que lhe tinham acabado os charutos de que se aprovisionara. Um fumante póde desistir de tudo, inclusive de viver, póde adiar tudo, inclusive a alimentação, mas não desiste de tragar as suas fumacinhas, nem adia as horas habituaes desse prazer. Um fumante bahiano, então, tem até o dever patriótico de proceder assim, maxime no estrangeiro. O monsenhor sahio por Tokio à procura de uma casa de fumos: encontrou-a. Mas, desde a porta, hesitou: como haveria de exprimir-se? E não ainda tomado a deliberação definitiva de dirigir-se ao balcão quando, do fundo da casa, surge um typo prazenteiro, de larga expressão hospitaleira no rosto franco, e foi logo perguntado: - Ó Monsenhor!Entre! Vossa Reverendissima quer charutos, não é verdade? Venha escolhel-os! - Ah! Então você é brasileiro? - Bahiano! Bahiano da gemma, meu querido amigo! Se abraçaram-se ambos commovidamente.”
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 272
Um outro relato, declaradamente uma anedota, ilustra de modo mais categórico,
pelo exagero da situação, o significado dessa presença de baianos nos mais diversos
recônditos. Há de se destacar que, diferentemente de outros episódios, onde os
elementos das elites estavam sempre a protagonizar os fatos, aqui serão os típicos
representantes dos segmentos mais populares que estarão no foco das ações. Este
aspecto reveste-se de uma certa estranheza, visto que normalmente, as elites
miravam-se em si mesmas para destacar as qualidades baianas. Vejamos a história:
Conta-se que um naturalista estrangeiro, descia, pachorrentamente, no lombo de um burro, a encosta de uma serra em Goyaz, quando, núma capoeira próxima, detonaram um tiro de espingarda, que assustou a alimaria. Esta deu um salto, e o naturalista, que não contava com o incidente, rolou da sella ao chão. Appareceu logo o caçador e, solícito, ajudou o viajante a retomar a montaria, pedindo-lhe mil desculpas. – « Seu » doutor, perdôe. Eu estava de caçada. – Mas quem é você? – João de Sant’Anna, natural da Bahia. – Onde posso arranjar pousada mais perto? – D’aqui a meia legua o senhor vae topar com o barracão do velho Tobias, um bahiano às direitas. Fale em meu nome, que elle não lhe nega nada. – E lá haverá quem possa ferrar o meu animal, que perdeu dois cravos de ferradura? – Não há, mas póde-se mandar chamar. O único ferrador dessa redondezas é o Damião, outro patricio bom mesmo... O estrangeiro, vendo que todos os habitantes referidos eram baianos, perguntou para desorientar o Sant’Anna: – E não encontrarei, em Goyaz, algum goyano? – Póde ser que encontre, sim senhor... respondeu tranquillamente o caçador, acendendo o cachimbo na pederneira.26
As últimas palavras do caçador baiano ― em seu tom meio ingênuo, meio
jocoso, meio irônico ― nos passam a impressão de que era menos difícil para um
indivíduo qualquer esbarrar-se com um dos seus conterrâneos, ainda que estes todos
estivessem longe do seu Estado, do que com algum natural do próprio lugar (neste
caso, Goiás, onde se passava a história).
Somente um estudo demográfico poderia confirmar se os baianos de fato
estavam tão dispersos assim pelo país. Mas, no início do século XX, era notório que
muitos profissionais qualificados, pertencentes às elites letradas, buscavam
oportunidades de trabalho e de revelar seus talentos no Rio de Janeiro. Também, já se
conhece a respeito da grande colônia baiana de elementos populares estabelecida nos
morros cariocas, da qual fazia parte a famosa Tia Ciata.27 Embora difícil de ser
dimensionada sem a recorrência a fontes mais pertinentes, a possível abundância de
baianos por diversas partes do país faria com eles fossem designados de “invasores”.
26 Ibidem. 27 Ver, por exemplo, MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 273
Deixarei, entretanto, para comentar esta questão logo, logo. Antes de entrar nela,
quero registrar que, além de providenciais, eles foram, eventualmente, apontados como
decisivos agentes civilizadores. Este tipo de ação foi exemplificada com a história de
uma baiana “inteligente e corajosa” que aproveitou a oportunidade de viver em meio a
tribos indígenas amazônicas para introduzir costumes “civilizados” entre os seus
integrantes:
Nas matas do Alto-Capim existe a tribu de indios amanagés. Vae já para mais de 20 annos que elles sequestraram a Damasia da Silva Ramos, natural do Estado da Bahia, bastante intelligente e corajosa. Pouco a pouco ella foi se impondo aos seus novos companheiros de vida, de tal modo que presentemente é a tuchaua da tribu, que ella tem civilisado e isto sem auxilio algum dos governos [...]. Os seus indios já andam de sapatos, vestem-se com roupas eguaes às nossas, já não usam o arco nem a flexa e já manejam o rifle com perfeição. Ella os instrue nas leis do paiz, fazendo-as respeitar e cumprir. Ultimamente levou um seu filho, Balbino João Bello, indio, bom tocador de violino, [...] à presença do supplente do juiz substituto da freguezia de Sant’Anna do Capim, para casar-se com uma india, de conformidade com a nossa legislação. [...] Ela tem feito baptizar muitos dos seus jurisdiccionados [...]. Por este motivo, digno por certo dos mais calorosos applausos, e pelos que mencionámos anteriormente, o nome da nossa patricia Damasia da Silva Ramos merece ser conhecido por toda a parte. Nós o repetimos com a maior satisfação, porquanto incontestavelmente ella é uma benemerita, a quem o governo deve prestar todos os auxilios.28
Com a pretensão de cumprir esse papel civilizador, o orgulho de ser baiano era,
assim, mais uma vez manifestado.
No capítulo 3, onde falei sobre os infortúnios, tive a oportunidade de comentar a
respeito dos versos de uma canção carnavalesca no Rio de Janeiro que dizia ser a Bahia
uma “terra boa” mas “eu aqui e ela lá”, a qual sugere uma forma de reação ao grande
número de baianos ali estabelecidos. Conquanto assuma, num certo aspecto, uma
significação contrária, visto que uma falava em “rejeição” enquanto a outra falará em
“aceitação”, o fato referido pode ficar mais bem esclarecido se atentarmos para o
conteúdo de uma reportagem publicada no jornal A Noite, que circulava no próprio Rio,
e comentada no sexto número da Bahia Ilustrada. A matéria designava os baianos de
“invasores”, devido o papel que “têm representado e continuam a representar nos
outros Estados do Brasil”. A expressão, que, em outro contexto, talvez soasse
pejorativa, foi facilmente assimilada pelos editores da Bahia Ilustrada, visto que tinha
uma conotação enaltecedora. A respeito dos “invasores” afirmava-se que “deixam, um
dia, a terra natal e vão, levados pela ancia de trabalhar, installar-se nas terras irmans,
onde logo se fazem amados, e onde, em pouco tempo, são confundidos com os que
28 “Uma bahiana”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 4, fev./1918. Inicialmente, a nota sobre Damasia foi
publicada na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Bahia, p. 231-232, nº 43, 1917.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 274
nellas nasceram”. Dizia-se, ainda, que a sua vontade “forte, realizadora, traz-lhes,
rapidamente, o mais natural dos prestígios; e eil-os, naturalmente, escolhidos para
altos cargos, com o applauso de todos”. Agindo deste modo, “ninguém se lembra de
reclamar contra elles”, e daí “uma geral gratidão os envolve e glorifica”.
As palavras em torno dos “invasores” em nada diferia do que era dito a respeito
dos estadistas imperiais. Aliás, às indagações sobre os motivos dos baianos terem tais
características e serem tão estimados, a revista respondeu com argumentos utilizados
décadas antes, mais exatamente em 1873, os quais assinalavam o papel de mãe e
heroína que a Bahia teria cumprido na vida nacional.29 Restabelecia-se, assim, e mais
uma vez, os vínculos essenciais entre as ações do passado e do presente republicano.
Reforçando tal idéia, um indivíduo da época, chamado dr. Raphael Pinheiro, arriscou
comparar, em 1919, segundo registro Bahia Ilustrada, “a alma bahiana à alma francesa,
dizendo que por toda a parte do Brasil havia bahianos, como por toda a parte do Mundo
havia franceses”. Dois anos depois, a mesma revista escreveu que “a Bahia numera
uma infinidade de filhos preclaros servindo com lustre às outras províncias coirmãs. No
Parlamento, no jornalismo, na magistratura, em todos os ramos da actividade e do
pensamento, os bahianos, emigrados um dia da terra natal, assumem, a golpe de
talento e de coragem as mais conspícuas posições”.30
As elites baianas voltavam a mirar-se em si mesmas, deixando de referir-se a
situações em que tipos mais populares estivessem em evidência, como fizeram nos dois
casos anteriormente comentados (sobre o caçador em Goiás e sobre aquela senhora
habitante de uma comunidade indígena amazônica, sendo que o primeiro relato, não
custa lembrar, tratava-se de uma anedota). Belmiro Valverde, médico e depois,
deputado federal pela Bahia, por exemplo, refez o convencional percurso de exaltação
dos pares. Para citar a existência de uma expressiva leva de políticos baianos que
atuavam em outros Estados, ele retomou, no terceiro número da Bahia Ilustrada (de
fevereiro de 1918), o tema dos “invasores”:
[...] os bahianos são os triumphadores do Brasil, como acaba de provar A Noite, numa interessante estatística, por onde se vem a saber que os «os bahianos» são os grandes invasores dos outros Estados», sendo que só governadores bahianos há, actualmente, os do Amazonas, Bahia e Estado do Rio, afora o de Santa Catharina, ainda não eleito, mas já indicado; sem
29 “Invasores”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 6, mai./1918. A nota terminava nos seguintes termos:
“Por que são assim os bahianos? E por que os filhos dos Estados invadidos por elles tanto os estimam e respeitam? Melhor resposta não encontraríamos do que estas palavras, escriptas em 1873, por Joaquim Manoel de Macedo: «A Bahia foi o seio que amammentou, a cabeça que dirigiu, o braço potente que defendeu todas as capitanias que formam hoje o Império do Brasil. A ella é de direito a veneração e o reconhecimento das actuaes províncias, no outro tempo suas amammentadas, dirigidas e tuteladas e defendidas. É uma mãe ennobrecida pelas bênçãos filliaes das gerações do passado.” (Grifo do original)
30 Ver, respectivamente, “Compatricios de Ruy Barbosa acclamam o seu nome à presidencia da republica”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 15, fev./1919; e Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34, jan./1921.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 275
falar nos deputados e senadores enxertados nas varias bancadas do congresso. E é o que todos dizem: fóra da Bahia vencem em toda linha...31
Mas não era somente isso... Pelo que se lê nas páginas da Bahia Ilustrada, além
de políticos, seria possível distinguir “triumphando na Capital Federal [outros] talentos
bahianos, que às lucilações da intelligencia alliam as mais enérgicas e perseverantes
capacidades de trabalho”, fazendo da sua “vontade, illuminada e fortalecida pelo talento
[...], [o] segredo maior de seu êxito”. O elogio aos conterrâneo teve, neste caso, a
intenção específica de destacar o desempenho dos jornalistas Eurycles Mattos, então
redator do jornal A Noite, e Paulo Filho, que integrava a redação de O Malho ― ambos
colaboradores de dois importantes periódicos que circulavam na capital da nação
brasileira.32
O mesmo dr. Belmiro Valverde, na seção de “Crônica Médica” da Bahia Ilustrada,
que foi por ele assinada nos primeiros números da revista, afirmou que “em quase
todos os estabelecimentos de cultura superior do Rio de Janeiro, nos vários
departamento da medicina, existem médicos bahianos”, encontrados em “consideravel
destaque”. Na Faculdade de Medicina, listou Rodrigues Lima, Afrânio Peixoto, Diógenes
Sampaio e Alfredo de Andrade; no Instituto Oswaldo Cruz, aparecia o nome de Arthur
Neiva; no Hospital Nacional de Alienados, sobressaía Juliano Moreira; na Escola Superior
de Agricultura, mencionou Cassiano Gomes e Gustavo Hasselman; no Exército e na
Marinha, relacionou o Gal. Dr. Ismael da Rocha, o Alm. Dr. Lopes Rodrigues, o Maj. Dr.
João Moniz de Aragão e o Cap. Dr. Alves de Cerqueira. A respeito de todos estes nomes
ele procurou tecer comentários. Ao concluir sua crônica disse que “quis, apenas, falar de
alguns, no intuito de mostrar aos leitores da «Bahia Ilustrada» que os filhos dessa
grande terra por cá existentes tratam, sempre, de honrar as tradições e de elevar bem
alto, no meio scientifico, o nome querido da carinhosa terra de seu berço”.33
Comentando a respeito do que seria esta disseminação dos baianos pelo Brasil,
Miguel Calmon aproveitaria o fato para estabelecer novas possibilidades de vínculos
31 VALVERDE, Belmiro. “Aspectos do Sertão Baiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 3, fev./1918. Sobre
os baianos que atuavam como administradores no Amazonas, a revista chegou a publicar uma matéria. O dr. Alcantara Bacellar era o governador do Estado, enquanto o dr. Rocha Leal era responsável pelo município de Rio Branco no mesmo Estado, que eram elogiados pelo trabalho progressista que desenvolviam naquele lugar, agindo “como se estivessem a zelar os do próprio berço”. Para maiores detalhes, ver “Bahianos no Amazonas”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 10, set./1918. No que se refere a deputados eleitos por outros estados, há o exemplo do Dr. Manoel Villaboin, advogado, que representava São Paulo na Câmara Federal. Para esse caso, ver Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34, janeiro./1921.
32 “Jornalistas bahianos no Rio”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 38, mai./1921. 33 VALVERDE, Belmiro. “Chronica medica”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 1, dez./1917. Um ano depois, a
revista noticiou uma “homenagem aos médicos baianos”, que se deslocaram de Salvador para o Rio de Janeiro, a fim de colaborararem no combate à gripe espanhola ― homenagem esta que fora prestada pelos colegas cariocas, capitaneados pelo dr. Carlos Chagas, diretor do Instituto Oswasldo Cruz. Apelando para a vaidade dos baianos, foi dito que “essa homenagem, ampliada pelo applauso do Rio de Janeiro em peso, deve encher de orgulho a Bahia, como de orgulho nos encheu a nós, conterrâneos dos illustres homenageados”. “Homenagem aos médicos baianos”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 13, dez./1918.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 276
entre a Bahia e Grécia Antiga. Como tive oportunidade de comentar, fora Esparta na
guerra, era Atenas na cultura e na política, e, neste caso, passava a ser identificada a
Corinto, cujos filhos teriam sido os difusores da influência helênica. Calmon recorria,
como baiano, mais uma vez à idéia do papel primaz e civilizador, tantas vezes
enfatizada, para acentuar o caráter das contribuições que os baianos tinham a oferecer
na sua dispersão por outras regiões:
[...] Houve um historiador, e dos maiores, que procurou explicar a fecundidade da intelligencia entre os nossos conterrâneos pela influencia do meio physico, tal a semelhança de configuração da nossa maravilhosa Bahia, semeada de ilhas e contornos apraziveis, com as formas graciosas das costas da antiga Hellade. Mas se assim é, não menos do que o gênio atheniense, herdou a Bahia a missão de Corintho, que enviava os seus filhos a plagas longiquas, para estender a todas as partes a influencia e o renome da Grécia. Nós, que primeiro tivemos contacto com a civilização europea, guardamos o poder de irradiação, que é próprio dos estados nascentes, e, até hoje, nos disseminamos pelo país em fora, propagando os restos de uma cultura, que não prima talvez por muito avançada, mas que foi e é o melhor cimento da nacionalidade brasileira.34
Não bastando asseverar a “invasão” dos conterrâneos com o uso de palavras, a
Bahia Ilustrada estampou suas páginas, em várias oportunidades, com as fotografias de
baianos que ocupavam funções relevantes em diversas partes do país, conquanto
houvesse uma predominância daqueles instalados no Rio de Janeiro.
Com base em tais rastos ― ainda que os mesmos tenham, por ora, apenas a
consistência das “verdades” discursivas muitas vezes repetidas ―, fica mais fácil
explicar a exacerbação de bairrismo de Afrânio Peixoto, que, em resposta aos citados
versos carnavalescos (ver o capítulo 3), falava na desvantagem de ser baiano na Bahia
porque ali todos o eram. De qualquer modo, o dito “triunfo” dos políticos, intelectuais e
profissionais baianos em outros Estados encerra alguns paradoxos difíceis. Embora todo
o talento que supostamente revelavam no exercício de diversas funções em outras
partes do país, as oportunidades de ocuparem os cargos administrativos mais
importantes do país vinham se mostrando restritas. Daí, é inevitável pensar que, ao
alegar acerca das suas próprias capacidades, as elites baianas queriam reivindicar maior
espaço de participação política na república brasileira.
A “terra de festas” e o “lar clássico das tradições”
Expostas aquelas que seriam as virtudes subjetivas dos baianos, vejamos alguns
discursos que conformaram certas qualidades subjetivas para o próprio Estado. Talvez a
34 “Palavras de Miguel Calmon à Bahia Ilustrada”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 3, fev./1918
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 277
principal destas qualidades se referisse à noção que o definia enquanto terra das
tradições. A maior parte das coisas que eram faladas sobre o papel da Bahia na história
e na cultura nacionais nos remete para o cumprimento de tal papel. A seleção de
elementos historicamente herdados ― heranças estas devidamente concernente às
percepções de mundo e aos interesses particulares das suas elites ― deu forma a um
princípio que se tornou corrente, servindo de apoio para diversas representações
formuladas para a Bahia. As pretensões em torno de uma tradição cultural, de uma
tradição intelectual, de uma tradição política, de uma tradição heróica, de uma tradição
cívico-patriótica, dentre outras, inscrevem-se entre os fatores que ajudaram a firmar as
imagens da Rainha, da Mãe e da Atenas, com os quais os baianos se apraziam em
apresentar o lugar de nascimento. Recuperar pequenos fragmentos do passado para
traçar os marcos da “tradição” era uma constante. O colaborador da Bahia Ilustrada,
que assinava com as iniciais A. H., em texto dedicado ao “patriotismo” da mocidade
baiana, exemplifica esta prática:
A mocidade da Bahia foi sempre enthusiasta, viril e patriótica. Terra das tradições mais nobres
e gloriosas da nossa grande terra
commum, população das mais densas das antigas províncias, sede de uma das duas faculdades de medicina do paiz, pátria de poetas, oradores e estadistas do Império, a cidade do Salvador conservou a sua physionomia mater. Outras cidades cresceram e excederam em importância, porem ella manteve sempre de uma velhice, [sic] digna do respeito e da veneração nacional. Tudo alli é evocação do passado. Foi num ponto da sua costa que aportou a civilisação com as naus de Cabral e o nosso Deus, na cruz e no altar de Frei Henrique. À vista dos seus montes e do seu arvoredo, basto e verdejante, foi traçada a primeira chronica da nossa vida e descriptos o encanto da terra, o vigor dos homens, a belleza e a innocencia das mulheres selvagens. Na «curva azul de uma das suas enseadas» no cimo da montanha, para ficar mais perto do céo, nasceu a Pátria Brasileira, com a fundação da Cidade. Baluarte de defesa contra as invasões inimigas, foi a Bahia, também, quem sagrou com o sangue dos seus filhos a nossa independência nascente e em todas as pugnas patrióticas e civilisadoras jamais foi excedida. Com o regimen novo, a Faculdade de Medicina cresceu e illustrou-se. A Faculdade de Direito nasceu e illustrou-se. A Faculdade de Direito nasceu e povoou-se. Mais tarde surgiu a Escola de Engenharia. A mocidade continuou a mesma, enthusiastica, viril e patriótica.35
Por meio da conexão entre as ocorrências passadas (fossem os fatos históricos,
fossem as práticas culturais) e sua memória/permanência no presente configurava-se as
tradições. E conforme tive a oportunidade de abordar (ver a parte I), as narrativas
produzidas pelos os baianos para representar o papel do próprio Estado na história
brasileira estavam repletas de acontecimentos tidos como expressivos e exemplares que
35 A. H.. “A mocidade bahiana”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 02, fev./1918.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 278
muito facilitavam a tarefa. Dentre eles, lembro os que o fizeram ser designado a “terra
e alma mater do Brasil”. Talvez, fosse por isso que dissessem, em 1918, que “não
perdeu, ainda, a Bahia a significação, que tão bem lhe assenta, de «o lar clássico das
tradições nacionais»”. O trecho da matéria publicada na Bahia Ilustrada prossegue em
termos bastante interessante:
Por cada anno que se renova o culto ao passado se revigora no coração de suas crenças, de seus lares, de sua gente. Os mesmos contentamentos da véspera, os mesmos regosijos populares, os mesmos presepes, as mesmas cantigas, as loas, que os chronistas souberam recolher com desvelado, respeitoso carinho. Essa unidade, na conservação das coisas sempre festejadas do antanho, demonstra que, em sua fé, na essência de si mesma não é vária a alma de nossa terra.36
A descrição aí feita sobre a conservação de hábitos tem como referência a
comemoração do Natal. Com isso se introduz um elemento que explicita um caráter
fundamental da “tradição baiana”: o sentido religioso que ela assumia. Aníbal Amorim
(1876-1935), militar baiano e colaborador de jornais e revistas, estabelecido no Rio de
Janeiro desde jovem, afirmou, em 1908, a Bahia “é capital catholica do Brasil”. Dez
anos depois, foi apontada pela Bahia Ilustrada como a “terra da religião”:
Não exaggeram os que ainda affirmam ser a Bahia a terra da religião. Quem conhece as suas cidades principais, como a formosíssima cidade do Salvador, ou a capital do grande Estado nortista, não ignora como é alli desenvolvido o sentimento religioso. Por toda a parte, em suas elevações mais pittorescas, ou em seus arrabaldes mais aprazíveis, offerece a Bahia aos que sabem contemplar as bellezas da arte e da religião os mais bellos templos.37
Na Bahia, o culto católico era a religião respeitada pelos indivíduos educados
dentro dos preceitos civilizatórios de origem ibérica. Ela foi a religião trazida com os
primeiros povoadores europeus, e a importância que manteve no ambiente sócio-
cultural baiano ao longo de toda a sua história ― demonstrada, conforme relatava
Amorim, “com as suas duzentas e tantas igrejas, com os seus conventos seculares e as
suas diversas ordens monasticas”, a torná-la, julgava o militar, “merece[do]ra [de que]
fosse consignada a Roma sul-americana” ― dava o sentido desta tradição.
Articulava-se à religiosidade católica, mas não exclusivamente a ela, pois as
manifestações cívicas também foram incorporadas, outra imagem imputada à Bahia:
aquela que a definia como “terra de festas”, frase prontamente convertida em novo
epíteto. Esta representação foi aproveitada inclusive para se exprimir a discordância em
36 “A Bahia no Natal. Bahia, o lar clássico das tradições...”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 13,
dez./1918. 37 AMORIM, Annibal. “Impressões da Bahia”. Gazeta do Povo, Bahia, 03 de Setembro de 1910; Bahia
Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 37, abr./1921.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 279
relação a um pensamento, então corrente, que caracterizava o brasileiro como um povo
“triste”. Um cronista anônimo da Bahia Ilustrada, contrário à validade da assertiva sobre
a “tristeza”, dizia perceber, “de norte a sul, o anno inteiro, em cada pedaço da patria, a
alegria do povo”. A respeito da Bahia, porém, seria mais categórico na sua avaliação, ao
considerar que nela “essa alegria não morre nunca”. Argumento este explicado nos
seguintes termos:
E em commemorações de datas gloriosas da sua historia nacional; nos dias em que a Igreja celebra os santos mais amados, e no Natal, no Anno Bom, nos Reis, no Carnaval, aquelle povo bom sabe divertir-se como nenhum outro, com a graça e a felicidade dos que trabalham e lutam, e que, se não acreditam seja a vida um jardim de delicias, também não querem concordar que ella seja apenas um valle de lagrimas.38
O cronista fez estas observações no trecho introdutório de um texto maior que,
no seu prosseguimento, abordou sobre duas festividades ocorridas na cidade do
Salvador, uma delas dedicada à chegada da primavera e outra que consistiu de um
evento em prol das famílias dos marinheiros em guerra na Europa (a edição da revista é
datada de outubro de 1918). Crédulo na veracidade das suas próprias palavras,
arrematou a parte inicial da crônica com uma exclamação que sugere orgulho e
encantamento: “Bahia, terra de festas, bemdita terra”!
Não foram poucas as vezes em que se recorreu à fórmula da “terra de festas” na
Bahia Ilustrada. Numa delas, logo após repetir o epíteto, fez-se uma caracterização do
espírito festivo do “povo baiano”, sobre o qual se dizia que “basta[va], em verdade, ter
a aproximação” dele, “para se ter a certeza de que não há, talvez, em toda a parte do
paiz, gente mais folgasan e das mais communicativas alegria”. Descortinando as
manifestações desta “alegria”, afirmava-se que “as festas de fim e de comêço de anno,
é quando mais se expande festiva a alma bahiana”, no período “do natal ao Carnaval,
não há quasi interrupção no contentamento das ruas, e dos bairros, que attingem, por
vezes, a maior exaltação de prazer”. Ao Comentar algumas festas situadas nesse
intervalo do ano, citou-se a de Reis, que “com os bailados, as cheganças, os ranchos, os
ternos, é caracterizada pela animação geral”, e a do Bonfim, que “se eleva ao delirio de
todos os corações, à febre de todas as almas”, além de ser assinalada como “a
festividade mais conhecida e estimada em todo o Brasil”.39
Na mesma revista, o jornalista Astério de Campos escreveu uma crônica que
ratificava tanto a imagem da Bahia como a “terra de festas”, quanto a idéia de que era
a “terra da Tradição e da Religião”, elaborando na mesma um interessante discurso
sobre o assunto. Em suas considerações, referiu-se a outros motivos celebrativos
38 “Bahia, terra de festas...”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 11, out./1918. 39 “Bahia, terra de festas...”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 26, jan./1920.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 280
seguidos, fielmente, pelos baianos ― fidelidade esta denotada pelas suas palavras.
Campos iniciou sua crônica com uma frase categórica: “maio é um mês de festas na
Bahia”. Com esta afirmação, acabou por alargar o calendário festivo para além do
período situado entre o final e o início do ano, discutido pela matéria citada no
parágrafo anterior. O tom empregado no texto revela um sujeito impregnado de
satisfação, orgulho e arroubo com a crença na imagem da Bahia que, também, ajudava
a vender. O jornalista não titubeou em afirmar:
Logo que o calendario preconiza o dia primeiro de maio, que sorridentes encantos para a terra do Salvador! Comquanto seja a mesma a natureza, trivial como nos dias passados, como nos dias correntes, nesse mês, no entanto, parece que o chão miraculosamente desabrocha em rosas, lirios e açucenas, e o sol refulge no espaço com um fulgor magnifico de lenda christã. Tudo se transmuda nas almas. Os olhos deslumbram-se da visão panoramica que os circunda. A bahia, inalteravelmente formosa, os rios, a rechã virgem, a pradaria aromatica, o casario modernizado, as elevações nemorosas do vasto e rico solo, tudo à vista da Bahia crente, da Bahia tradicional e esperançosa, da Bahia civica, tudo, pelos seus sentimentos religiosos e heroicos, palpita, e se alcandora, se enguirlanda, e resplandece, como se tudo rejuvenescesse momentaneamente, tivesse uma alma nova, uma exuberancia singular, uma belleza imponderavel e attrahente, milagre esse produzido pelo condão de uma varinha magica!
Tão profundo enlevo, demonstrado por Campos, pode ser justificado com suas
próprias palavras, quando argumentava que, no mês de maio, o “povo baiano” podia
revelar o quanto tinha a festa de “caracter sagrado, que se integra ou na Tradição, na
Religião, ou no Patriotismo”. Para ele, “o bahiano não se diverte apenas por se divertir”,
ainda que considerasse ser “congenito” o seu “humor”. Em sua opinião, a alegria que
manifestava “era a expressão de um enthusiamo puro, sincero, desbordante, febril, por
tudo o que nos eleva pelo espirito e pelo coração, qualidade essencial de um povo culto
e forte, e virtude que falta a muita outra gente das multiplas regiões indígenas”.
Era, portanto, no emaranhamento da festa, da tradição, da religiosidade e do
sentimento cívico-patriótico, de forma que tais elementos parecessem uma única coisa,
associados à intensa vividez com que todos eles teriam sido experimentados, que
Astério de Campos configurou uma idéia de Bahia dona de uma certa particularidade de
espírito discernível, presunçosamente, apenas nela. E, por isso, maio tinha, para ele,
importância emblemática, pois, por um lado, era definido como um mês divino, visto ser
o mês de culto a Maria, e, por outro lado, punha em destaque a Bahia cívica, pronta
para “homenegear as magnas datas do natalicio de nossa Patria e da Abolição”, que
seriam, na sua opinião, “incontestavelmente as mais fúlgidas de nossa história”.40
40 CAMPOS, Asterio de. “Chronica”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 38, mai./1921. A referência à
comemoração do 3 de Maio como data do Descobrimento do Brasil se justifica pelo fato de esta ser considerada, na época, a sua data oficial.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 281
Em nenhum momento encontrei alguma citação que mencionasse explicitamente
uma relação entre a comemoração e o epíteto, mas em se tratando de ser a Bahia uma
“terra de festas”, não se demonstraria inadequado, se nossos informantes quisessem,
acrescentar os festejos do Dois de Julho, data da Independência local, cujos principais
fatos, todos os anos, recheavam com textos e imagens as páginas da maior parte dos
periódicos, assim como de outros materiais avulsos. Por conseguinte, julgo bastante
possível que constituísse ― em razão da enorme significância que lhe era atribuída
como expressão maior do sentimento cívico baiano ― mais uma manifestação que
robustecia a imagem elaborada (ver fig. 28).
Embora tenha utilizado até aqui exemplos que remetem mais diretamente para a
religiosidade e o civismo, não se pode esquecer do papel do carnaval para a definição
do caráter festivo do “povo baiano”, que, segundo os comentadores, mesmo diante das
maiores dificuldades estava disposto a se alegrar com as folias de momo. Descreveria a
Bahia Ilustrada, em março de 1919:
Se há na terra povo que saiba metamorphosear as mesmas tristezas pela alegria e a graça, a belleza e espiritualidade do chiste, como rosas de todo o anno, esse é realmente o povo bahiano. Quem diria, na amaritude de ensombrados horizontes, travôres de angústias physicas e morais, sairia a Bahia de seus dissabores quotidianos por agitar com Momos os guizos do prazer... É que a alma bahiana é sempre a mesma, na complexidade inteira de suas mágoas, ou na expansão luminosa da sua alegria.41
No caso do Carnaval, atestava-se um espírito festivo de caráter civilizado, em
que o desfile dos carros alegóricos dos clubes de elites, o corso de automóveis, as
pranchas, os indivíduos fantasiados, os bailes em espaços privados (teatros, cinemas,
cafés) e coisas do gênero davam a tônica. No carnaval transformado em registro pelo
periódico, as “senhorinhas”, as famílias e a “fina flôr da sociedade bahiana” ocupavam
papel destacado, sendo tais sujeitos apresentados como os típicos, legítimos e,
aparentemente, únicos foliões das brincadeiras momescas.42
Se o carnaval aparecia, na época, como mais um acontecimento que expunha a
alegria do “povo baiano”, o tratamento a ele conferido é útil para deixar transparente a
nós, os leitores hodiernos, a feição e a cor assumida pela idéia da “Bahia, terra de
festas”. E aí se torna necessário pensar o sentido assumido pela palavra “povo”, nos
diversos textos da época republicana, analisados neste estudo. Assim, a expressão deve
ser compreendida numa acepção subjetiva, abstrata, generalizante e, por isso, vazia de
substância, incapaz, concretamente, de absorver a coletividade dos indivíduos nascidos
na Bahia; abarcava sim, quando muito, um grupo de pessoas que partilhavam um
41 “Momo nos festins baianos...”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 16, mar./1919. 42 Ibidem. Ver, também, “Carnaval na Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 27-28, fev.-mar. de 1919.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 282
mesmo conjunto de convicções. Portanto, este grupo reunia, no caso em apreciação,
aqueles que foram fiéis signatários dos princípios da identidade baiana ― mas saliente-
se, a identidade baiana harmonizada ao modelo até aqui exposto. Para ser mais claro, o
“povo” referido nos discursos que tive a oportunidade de reproduzir não era o
constituído pelo homem comum, tratava-se, sim, de uma auto-representação das elites
na sua tentativa de fixar valores e reivindicar um lugar para si mesmas na cena
nacional.
Tais considerações foram feitas para esclarecer que os relatos sobre os festejos,
que tanto inflamavam o espírito dos baianos, ignoravam e excluíam as formas
tipicamente populares de sua ocorrência (termo este, popular, agora citado em
referência à gente comum, mencionado, deste modo, em oposição às elites). Mais do
que excluídas das representações identitárias regionais, as celebrações populares
sofreram, durante os anos republicanos, intensas críticas e desaprovação por parte das
elites, assim como passaram por sucessivos ensaios de controle e, em alguns casos, até
tentativas de extinção. O carnaval de rua, por exemplo, teve, nos anos finais dos
oitocentos e iniciais dos novecentos, uma marcante presença negra, devido os clubes
que resgatavam as tradições e heranças africanas. Estas associações foram, no entanto,
tão duramente depreciadas nos jornais que a repressão a elas dirigidas conseguiu
proibi-las de desfilar por toda a Primeira República, pelo menos. Também, o culto aos
caboclos, a face mais popular das comemorações anuais do Dois de Julho, os quais
arrastavam uma multidão ao saírem para cumprir seu trajeto no desfile cívico, não era
algo do agrado das elites, que pretenderam substituir, certa vez, a devoção a eles pela
de um santo católico. E se quisermos lembrar outros hábitos, pode-se incluir os
posicionamentos contrários ao soltar de fogos nas festas juninas, assim como aos
batuques ouvidos nos diversos cantos da cidade, fosse em reuniões informais ou nas
cerimônias das religiões afro-brasileiras.43
Confrontada com este breve relato sobre os costumes populares e diante das
idéias que promovia, não há dúvidas de que a imagem da “terra de festas” divulgada
pela Bahia Ilustrada e outros órgãos reportava às práticas comemorativas tradicionais
(as cívicas, as religiosas ou as mundanas), seguidas, predominantemente, pelas elites.
43 Sobre a repressão ao carnaval com influência africana, ver FRY, Peter et alli. Negros e brancos no Carnaval
da República Velha. In REIS, João J. (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 232-263; sobre o Dois de Julho, ver ALBUQUERQUE, Wlamyra, op. cit.; sobre a crítica aos outros hábitos populares, ver LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento, op. cit., p. 110-141.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 283
“As riquezas da Bahia”
Uma face importante do otimismo com o futuro do Estado era a apologia em
torno dos seus potenciais. Mencionar as riquezas naturais, quase sempre ainda
inexploradas, tornou-se um discurso comum no período. Assim o fez Victor Viana, em
matéria publicada no segundo número da Bahia Illustrada (jan./1918), que dizia: “a
Bahia é das terras mais privilegiadas da terra privilegiada do Brazil. Dá tudo que dá nas
outras regiões brazileiras”. Lendo tais palavras, é inevitável não recordar da antiga frase
de Pero Vaz de Caminha: “nesta terra, em si plantando tudo dá”. E, também, não há
como não lembrar que, ao ter escrito tais palavras, Caminha fez uma observação a
respeito de terras pertencentes ao Estado da Bahia ― o que sugere uma espécie de
recriação, não sei se consciente ou inconscientemente, por Viana da famosa sentença
do escrivão português. Nos seus argumentos, Viana assegurava que a Bahia, dotada
como era de ampla variedade de recursos, tinha a vantagem de concentrar uma riqueza
que as outras partes do país só tinha em parte. Daí afirmava que “todos os Estados do
Brazil têm elementos para a mais variada polycultura, mas a Bahia pela sua posição
central participa de todos os dons das outras circumscripções brazileiras e assim
apresenta ainda maior variedade de producção”. E arrematava, “na Bahia há de tudo”.44
O artigo escrito por Viana assume, no seu desenvolvimento, a feição de um
pequeno inventário das riquezas baianas passíveis de exploração no solo, nas matas e
nas águas, cujo potencial econômico suscitava no autor, e também em outros indivíduos
da época, intenso entusiasmo. Segundo suas descrições, que apresentavam os bens
naturais como se fosse uma fortuna incomensurável, a Bahia tinha “explendidas
madeiras de construcção e tinturaria”, e “produz[ia] canna de assucar, café, tabaco,
cacáo, algodão, cocos, cravo, borracha, cereaes, legumes, e fructas maravilhosas, como
laranjas, mangas, uvas, araçás, bananas, biquibas, cajús, jandirobas, oitis e
maracujás”. No que diz respeito aos produtos minerais, tinha “minas de ouro, diamante,
chumbo, cobre, ferro, carvão de pedra, marmores, turfa”, e também “manganez, areia
monazitica, pedras preciosas, sobretudo abundantes amethistas e turmalinas”. Quanto
às suas florestas, estavam “cheias de animaes de caça e de valor commercial: onças
selvagens, veados, antas, tamanduás, caetetús, macacos, queixadas, capivaras, porcos,
cotias, tatús, raposas, guaximins, saugues, preguiças, jacarés, e o bando alegre de
passaros de todos os feitios e de todas as cores: mutuns, jacutingas, jacupemas,
chororons, turumús, papagaios, tucanos, aracaús, caruás, solfalás, garças, sabacús,
pegos”. Registrava, ainda, que, “no mar e nos rios, os peixes pollula[va]m e ao largo da
costa se pesca[va] a baleia”. Para completar o quadro, admirava-se dos seus “rios
44 VIANNA, Victor. “As riquezas da Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 2, jan./1918. Infelizmente, não
consegui obter dados biográficos mínimos sobre Victor Viana.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 284
navegáveis” e das “suas quedas de água formidáveis que são a garantia de força motriz
e barata e commoda”.45
Ao fazer o balanço do que era e do que poderia ser, Viana chegou a uma
conclusão que, considerando o encadeamento natural dos seus argumentos, parecia a
mais provável em si tratando de um lugar com a posse de tantos recursos: “a Bahia
dispõe de terras, de condições naturaes, de gente para emprehendimentos ainda
maiores do que os já realizou”. Ao citar a gente para o empreendimento, elogiaria a
resistência e a tenacidade do sertanejo, em quem via a disposição necessária para o
trabalho de exploração de tantas riquezas. E ao fazer isso, assumia uma postura
otimista em relação às populações do sertão, que, para ele, eram acusadas de
preguiçosas injustamente. Dessa forma, ía na contramão dos discursos preconceituosos
da época, demonstrando ter assimilado algumas idéias higienistas, que viam nas
condições deficientes de vida levadas pelos pobres, entre os quais os sertanejos se
incluíam, as causas de eventuais dificuldades de adaptação ao trabalho.46
Encontram-se, na Bahia Illustrada, outras tantas notas e matérias tratando do
tema, visto que, conforme a própria revista registrava, a “Bahia é[ra] uma terra
privilegiada por suas enormissimas riquezas”, sem “nada [a] lhe falta[r], nos productos
do solo e do subsolo”.47 E, nesse sentido, os produtos ligados à mineração eram
constantemente lembrados, havendo uma grande expectativa de que essa atividade
pudesse se tornar uma das mais rendosas para o Estado, capaz, inclusive, de permitir o
restabelecimento econômico. Daí toda a empolgação com a descoberta de novas minas
e os pedidos de registro. Em setembro de 1918, foram escritos os comentários
seguintes:
O prodígio dos minérios no solo bahiano está sendo desvendado, momento a momento, pelas mais recentes descobertas de opulentas minas. A Diretoria de Terras e Minas, e a imprensa baiana procedem a registos, quasi ininterruptamente, de minas de manganez, chromo e outros mineraes. Pela curiosa estatistica de janeiro a agosto, se deprehende que foram enviados à Directoria referida: 43 requerimentos, 28 para registo de minas e manganez, 5 para minas de salitre, 4 ferro, 2 cobre, um graphite, 1 zinco, 1 zinco, 1 chromo, 1 turfo, em varias regiões do Estado. Foram, mais ainda, registadas, este anno, naquella repartição, 20 minas, 16 managanez, 63 no municipio de Bomfim, 3 no de Jacobina, 3 no de Queimados, 4 no de Conceição de Coité, 2 no de Campo Formoso, Salitre 2, no Morro do Chapéo, 1 no de Juazeiro, Cobre, 1 no de Barreiros, 1 de chromo no de Saúde.48 [sic]
45 Idem, ibidem. 46 Idem, ibidem. 47 “O salitre bahiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34, jan./1921. 48 “Riquezas do solo bahiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 10, set./1918. O documento foi transcrito
do modo que aparece na revista. Daí porque, embora pareça estranho, o parágrafo com as estatísticas de minas aparece tal como apresentado.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 285
Não foi somente nas décadas de 1910 e 1920 que se fizeram menções à
pluralidade das riquezas baianas. Em 1897, nos finais do século XIX, portanto, Henrique
Praguer, sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, já fazia questão de afirmar
que “O Estado da Bahia é o único do Brazil que possue todos os metaes preciosos e
todos os mineraes conhecidos, e póde ser justamente considerado, debaixo d’este
aspecto, como uma das regiões mais favorecidas pela natureza”. Em 1908, Antonio
Joaquim de Souza Carneiro enumeraria, num folheto, muitos destes metais e minérios,
apontado em quais cidades ou regiões do Estado havia a ocorrência de alguns deles: o
diamante e as lavritas (ou carbonados), o grafito, na Chapada Diamantina; o antimônio,
em Rio de Contas; o ouro, em Jacobina, Itapicuru e Rio de Contas; o cobre, em Curaçá,
Campo Formoso e Caraíba; o mercúrio, em Nazaré; o chumbo, o estanho e a platina; o
ferro, no Brejo Grande e Serra da Conceição; o cadmo, o zinco e o sal; o quartzo,
especialmente em Caetité e Rio de Contas; o manganês, de Nazareth a Areia, mas
principalmente em Senhor do Bonfim e Jacobina; a calcita; a magnesita, em Conquista,
Campo Formoso e Piabas; os berilos; a turmalina, em Inhampube, Jacobina, Angico
Feira de Santana; o caolim, em Nazaré e no Rio Mucuri; as areias monazíticas; o
fosfato, em Brejo Grande e Monte Alto; o salitre e a alúmen; a wolframita, em Ituaçú; o
petróleo, o asfalto e outros.49
Dez anos a após a publicação do folheto de Carneiro, a Bahia Ilustrada citaria,
com base numa entrevista obtida de um engenheiro romeno, muitos destes minerais
para comparar o modo como eram encontrados no próprio Estado (ou seja, com a
variedade já assinalada) e em outros países sul-americanos (em cada um dos quais
predominava apenas um ou dois produtos):
Disse aquele technico [o romeno Badesco Dutza] que, por estudos e amostras, fornecidas pelos directores do Museu Archeologico, podia affirmar que a Bahia possue o sub-solo mais rico do mundo. O Chile tem salitre, a Bolívia tem ouro, o Peru tem ouro e «wolfram» (wolfonite), a Argentina tem, na Patagônia, minas de petróleo, porém, inderteminadas; outros paizes sul-americanos pouco fizeram com respeito à mineração, mas o Estado da Bahia, pelas amostras fidedignas, tem ouro, cobre, wolfonite, manganez, ferro metheorico, petróleo, carvão, asphalto betuminoso «fusivel», turfa, lignito, areias monazíticas, salitre, nitrato natural composto, graphite, etc., por conseguinte, tudo que há em todos os paizes sul-americanos está reunido no Estado da Bahia.50
A maneira de referir-se a certos minérios, tal como faziam os baianos ao tratar
de outros assuntos que lhes fossem muito caros, era caracterizado pelo orgulho e
soberba. Sobre o salitre (o nitrato de potássio), por exemplo, diziam que “abunda[va]
49 PRAGUER, Henrique. “A Riqueza Mineral do Estado da Bahia”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico
da Bahia, Bahia, v. 13, nº 8, p. 419-473, 1897; e CARNEIRO, Antonio Joaquim de Souza. Riquezas Mineraes do Estado da Bahia. Bahia, Litho-Typ. e Encadernação Reis & C., 1908.
50 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 04, mar./1918. O wolfronite é o mesmo que tugstênio.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 286
na Bahia de um modo espantoso”, a ponto de “surprehende[r] os mais
experimentados”, inclusive poderia “fazer a independência da Bahia em matéria de
pólvoras”.51 Em relação ao carbonato, apontava-se o Estado como único lugar do mundo
a possuí-lo (ver fig. 29). Um indivíduo que assinava pelo nome Desouza Dantas,
ressaltou, nas páginas da Bahia Ilustrada, a necessidade de fazer a propaganda deste
minério:
[...] é de interesse patriótico, por meio da imprensa, fazer-se a propaganda de nossas jazidas de diamante e de carbonato, attrahindo para o seio da zona diamantífera as vistas do governo, a fim de que, ao lado do manganez, que vai absorvendo a opinião publica, venham os capitalistas em busca das lavras das terras faiscantes dos mineraes, tão conhecidas já pelas suas riquezas, porém ainda não bem exploradas pela falta de capitães.52
O manganês era sempre tratado, nesta história, com uma atenção destacada,
recebendo o maior número de citações nos periódicos e demais escritos da época.
Animados em divulgar tais riquezas, os editores da Bahia Ilustrada publicaram, em
outubro de 1918, uma notícia, acompanhada de uma série de fotografias das minas de
manganês (ver fig. 30), na qual se dizia que “as riquezas do solo bahiano são tantas,
variadas e abundantes, que não é monotonia impertinente o salienta-las, no estimulo
aos que vêem nos problemas da lavoura e da industria, da exploração de minas, uma
perenne fonte de inexhauriveis thesouros”.53
Não posso dizer que a repetição das falas sobre as riquezas do solo baiano não
seja monótona para o leitor do presente. Mas, sem dúvida, ela foi muito necessária
aqui, visto o meu propósito de enfatizar a intensidade do discurso.
É muito interessante salientar o alargamento da idéia de Bahia realizado pelos
discursos sobre as riquezas do Estado. O trabalho de Carneiro e, também, os demais
textos que trataram do tema, inclusive as matérias da Bahia Ilustrada, ao mencionarem
as cidades e regiões em que os minérios se manifestavam, estabeleceram uma espécie
de geografia que incluía na Bahia zonas mais distanciadas de Salvador e seu Recôncavo,
que eram os lugares para os quais as elites mais voltavam o foco das suas falas. Com a
lembrança das abundantes riquezas da terra, cidades situadas na Chapada Diamantina,
no sudoeste e no norte do Estado serão citadas como pertencentes àquela idéia de
Bahia de decantadas grandezas que as elites de então se esforçavam em inventar.
Retomando algo dito antes sobre o caráter dos veículos de propaganda da Bahia,
devo mencionar o lado reverso do orgulho pela posse de tantas riquezas. Quando se 51 Ver, respectivamente, “O salitre bahiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 34, jan./1921. 52 DANTAS, Desouza. “A zona diamantifera. O carbonato é o rei dos mineraes. E a Bahia é o único ponto do
mundo que o possue”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 12, nov./1918. 53 “O manganez na Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 11, out./1918.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 287
tratava, na prática, de considerar a medida do aproveitamento das mesmas, alguns
eram levados a reconhecer que, “infelizmente, jazem essas riquezas preciosissimas, ou
mal exploradas ou em geral por completo ignotas e inaproveitadas”. Esta foi, por
exemplo, a opinião literal de Gonçalo de Athayde Pereira, em matéria publicada na
Bahia Ilustrada, em setembro de 1918, o qual se julgava um grande batalhador pela
mineração no Estado. Reclamando com veemência da situação, Pereira diria que
ninguém lhe “da[va] ouvidos”, chegando alguns “até [a] acha[re]m que phantasiamos
essas cousas para deleite do publico, so por ter ahi nascido e amar aquelle abençoado
torrão, onde a natureza é tão pródiga em dádivas e prodígios”. Tais palavras sugerem
que, conquanto a difusão da crença nas riquezas escondidas no subsolo, havia quem
parecesse descrer da possibilidade ou não envidassem maiores esforços, possivelmente
os sujeitos ligados à administração pública, para explorá-las. Por isso, não raramente se
falava em “atrahir o cuidado do governo” para as minas.54 Outra tendência era acusar a
falta de infra-estrutura e os baixos investimentos feitos na extração das matérias-
primas, assim como se falaria da carência de estudos mais detalhados sobre a
incidência dos minerais. Portanto, a precariedade das vias de transporte e comunicação
aparecia, nas falas da época, como um dos principais obstáculos para o escoamento e o
incremento da produção. Victor Viana, Antonio Joaquim Carneiro, Gonçalo Pereira e
Desouza Dantas, citados neste tópico do capítulo, fizeram comentários a respeito dos
problemas interpostos entre as ditas riquezas guardadas no sub-solo e a sua eficaz
exploração.
A respeito do problema, Bernardino de Souza fez, em 1928, algumas
considerações exemplares. Comentando sobre os potenciais econômicos, afirmou que as
“circumstancias geographicas vantajosas de posição, de clima, de solo, de sub-solo, de
relevo e hydrographia propiciam à Bahia dias de larga abundância”. Com isso suponha
não haver, “talvez [...] Estado do Brasil de maiores possibilidades econômicas pela
variedade de recursos naturaes que dispõe”. E apregoava que “um trabalho methodico,
persistente, technicamente realizado, tornará a Bahia um vasto empório de utilidades e
valores”. Mas esta era apenas a primeira parte dos seus argumentos. Ao falar da
agricultura do Estado, que, nas suas palavras, “produz quasi tudo o que o Brasil
assazona, impondo-lhe a variedade do meio uma polycultura opulenta”, sofria o prejuízo
da “usança retardia que não a suppre dos meios technicos imprescindíveis ao seu
progresso”. Prosseguindo, acusaria “a falta do conhecimento exacto da agrologia geral e
descriptiva” que “diminue-lhe em muito o monte da producção”. Ao falar da minas, usou
54 PEREIRA, Gonçalo de Athayde. “A mineração na Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 10, set./1918.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 288
da mesma explicação, indicando que “a falta de estudos methodicos e de fáceis meios
de transporte reduzem em muito a producção mineira do Estado”.55
A exortação e os argumentos em prol das atividades extrativas eram estimulados
pela percepção de que elas seriam cruciais para o restabelecimento do progresso
econômico da Bahia. Não escapou ao entendimento de muitos que a recolocação do
Estado em posição de destaque no cenário nacional passaria necessariamente pela
recuperação econômica. E ficou patente, nos discursos de então, a percepção de que as
condições para que isso ocorresse efetivamente existiam. Por isso, incentivar a
exploração das riquezas era uma aposta na sua prosperidade, pois, conforme
acreditavam muitos, “com toda essa opulência, [...] é para se colocar a Bahia entre os
maiores estados da União”.56
“Pela elevação política da Bahia”
Pensar o reerguimento da Bahia significava refletir sobre os meios eficazes de
alcançar tal objetivo. Assim, extrair maiores vantagens econômicas com os bens
naturais que possuía era apenas uma dentre as estratégias que deveria seguir. No
mesmo patamar de relevância, estava colocada a idéia de mobilizar os diversos
segmentos políticos baianos, a fim de preparar o Estado para obter uma nova “elevação
política” no cenário nacional. Parece-me evidente que a tentativa de elaboração de um
discurso identitário unificador visava construir uma espécie de comunhão geral de
sentidos e interesses que acenava para intenções relacionadas à conquista de poder. O
reforço de certas peculiaridades dos baianos, das qualidades subjetivas (ou espirituais)
da terra, das potencialidades e riquezas que guardava tinha fundamentos objetivos que
também eram políticos. Como vimos, a Bahia conhecia, na República, de acordo com a
percepção das suas próprias elites, uma fase de despretígio, embora conservasse
diversos dos dons que a fizeram grande no passado imperial.
Buscar formas de romper a lógica instituída de supremacia política então em
vigor, pela qual os baianos se sentiam marginalizados, resgatar algo que relembrasse a
antiga hegemonia e sugerir um modelo político com formato diferenciado eram os elos
de uma mesma corrente, a qual visava restabelecer a Bahia no cenário nacional. Por
isso não julgo impertinente interpretar que todas as “considerações” em torno daquilo
apontado como uma identidade baiana, que toda a promoção de um tipo de propaganda
tinham a finalidade da reconquista do antigo status, em especial no que tangia à esfera
política.
55 SOUZA, Bernardino José de, A Bahia, p. 19-20. 56 “Riquezas do solo bahiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 10, set./1918.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 289
Muitas vozes se levantaram para defender a necessidade de superação das
diferenças partidárias que opunham os principais nomes da vida política. No ponto de
vista dos indivíduos que partilhavam deste pensamento, equacionar as tensões
existentes nos planos regional e nacional se constituía uma premência. A Bahia
Ilustrada, em diversas ocasiões, esteve engajada nessa campanha, e sentia-se, com
isso, no direito de cobrar dos deputados baianos uma “cooperação útil, harmonisando
orientações pessoaes, abafando, muitas vezes, pequenas e grandes queixas, apagando
fundados e infundados ressentimentos, tudo no objectivo de uma esforço efficiente na
solução de varios problemas estadoaes dentro da vida na federação”. Esta
reivindicação, lançada logo na edição inaugural, era estimulada pela constatação de que
bancadas menores no Congresso, a exemplo da gaúcha, conseguiam ser mais fortes
que a baiana. A crônica política, de uma seção da revista designada “O que fazem os
deputados baianos no Monroe”, explicava a questão nos termos seguintes:
Quem acompanha o trabalho das representaçãoes estadoaes no Monroe, muitas vezes, terá sentido verdadeira admiração diante do prestigio de algumas bancadas singularmente redusidas, cujo voto, entretanto, requestado e computado como valioso que delibera de uma cooperação que não se dispensa, dentre os mais fortes, na votação de quantas e quantas medidas de interesse consideravel para a Federação e os Estados. Oh! A Bahia unida!... 22 votos quando, em media, as votações na Camara são feitas com a presença de 110 a 120 deputados! Acima da Bahia apenas Minas com 37 representantes. Ao lado della apenas São Paulo, egualmente com 22 representantes, abaixo della tudo o mais. [...] O Rio Grande do Sul, contandoa apenas 16 representantes, dois dos quaes opposicionistas, o Rio Grande do Sul pela efficiencia de 15 votos unidos, de quinze vontades disciplinadas, na posse da vice-presidencia dirige, de facto, há muitos annos, os serviços parlamentares no Monroe.57 [...]
Para esclarecimento do leitor, o Palácio Monroe, mencionado no excerto acima,
era a sede do Congresso Nacional, localizado na Capital do país.
Na mesma seção da Bahia Ilustrada, porém, desta feita, no seu décimo número,
de setembro de 1918, quando se fez a contagem da representação estadual na Câmara
Federal, apelou-se aos deputados baianos para que sempre tivessem em vista os
interesses gerais do Estado, de maneira que o mesmo pudesse cumprir o seu “grande
destino”, o que seria uma conseqüência da ação conjunta empreendida pelos próprios
deputados, em favor da resolução dos seus principais problemas. Por isso, a emissão da
mensagem:
Palavras que vamos dizer aos deputados bahianos...
57 “O que fazem os deputados bahianos no Monroe (Chronica do Congresso)”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro,
nº 01, dez./1917. O trecho que antecede a citação recuada, pedindo a “cooperação útil” dos deputados, foi extraída também da fonte indicada nesta nota.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 290
No conjunto de suas tão nobres representações, não percam de vista, um só momento, os grandes destinos de nossa terra, fadada a ser a primeira do paiz. Os assumptos, os grandes problemas bahianos, para ahi estão a sangrar da falta de solução. Sejamos todos por ella, nosso berço amado [...]. Sabemos que não será van a alma deste appelo, que encontrará da parte dos bahianos no Congresso o apoio à nossa terra. Mas, é necessario que todos o façam, irmanados num só ideal, por que a Bahia attinja aquella altitude, que lhe está destinada pela civilização.58
A aproximação de pleitos eleitorais costumava criar situações para que os
posicionamentos do tipo ora em discussão ganhassem maior evidência. Com freqüência,
nessas ocasiões, dava-se vazão a argumentos que deixavam transparecer,
articuladamente, a preocupação com as demandas do presente, a inspiração
representada pelo passado e a expectativa com o futuro. Às vésperas da sucessão
estadual de 1920, que opôs o ex-governador José Joaquim Seabra e o juiz federal Paulo
Fontes (candidato do grupo de Rui Barbosa), a revista Renascença afirmava que “a
Bahia sensata que pensa, observa e reflecte, vê nesse aparelhamento para o futuro
pleito político um signal característico de vida, de anhelo cálido de lutar pela reconquista
desse primado que a terra-mater exerceu em tempos idos e pela intensificação desse
progressismo iniciado hontem, proseguido hoje e, amanhã, praza ao Céo se generalize
victoriosamente a toda circumscripção bahiana”. E como para reforçar a extrema
significação que a política tinha para a sorte do Estado, tornava-se útil recorrer aos
pressupostos relacionados à idéia de Atenas Brasileira e às outras representações
elaboradas. Daí porque, em continuidade às palavras anteriores, a alegação de que “a
Bahia, terra clássica de intelligencia brasileira e berço da nossa nacionalidade, com um
passado de insuperável brilhantismo e tradições inolvidáveis nos feitos de maior
importância histórica, carece de reivindicar todos esses títulos de gloria em que se
firmou a sua fama de outr’ora”.59
Na eleição de 1920, J. J. Seabra saiu vitorioso, mantendo-se a frente do governo
estadual até 1924. Entretanto, muito antes do final do seu período, a Bahia Ilustrada
começou a discutir a sua sucessão. Na matéria que abriu o debate, publicada em maio
de 1921, é perceptível a exposição concomitante das particularidades que costumavam
orientar as reflexões sobre a questão política e a situação da Bahia na República, entre
eles: o desejo de reviver o status desfrutado em tempos antigos; as falas pela
superação das animosidades entre os contendedores partidários; o clamor pelo ideal da
união entre todos; a recorrência aos atributos dos baianos e da Bahia para justificar a
insatisfação com a condição de “inferioridade”. Vejamos alguns trechos:
58 “O que fazem os deputados bahianos no Monroe (Chronica do Congresso)”. Bahia Ilustrada, Rio de
Janeiro, nº 10, set./1918. 59 “A successão governamental”. Renascença, Bahia, nº 47, out./1919.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 291
O momento politico da Bahia não cogitou ainda da successão do actual dirigente dos destinos desse grande Estado nortista. Bom seria que já se fosse tratando da selecção de um nome, que em tudo se mostrasse capaz de condignamente succeder ao governo de hoje, para que no futuro, com a concretização dos mais nobres ideaes polticos, dos esforços mais homogeneos e patrioticos, vissemos a gloriosa Bahia, dos tempos aureos de seu fastigio na politica nacional, retomar sua posição de invejavel preponderancia entre os demais Estados da União. [...] Cremos ter chegado o instante em que, despidos os odios, de parte as animadversões tão prejudiciaes ao renome de um Estado, devemos cuidar, com maior imparcialidade e franqueza, da escolha do novo governador da Bahia. [...] As combinações neste sentido deverão resultar de um só principio; o da união forte, constructiva, authentica, de uma feliz maioria que tenha como ideal de realização politica vindoura a mesma grandeza moral e politica da Bahia. Seja uma escolha que o Brasil inteiro acate, louve, aspire por ella a elevação de nosso tradicional Estado, para que dahi tambem resulte o aprêço, a consideração pela preponderancia da Bahia na alta administração da Republica. Uma terra em que a fartura das riquezas naturaes não tem limite; onde o sentiimento civico é uma realidade venturosa; onde o heroismo foi sempre uma condição do temperamento dos filhos daquella natureza maravilhosamente rica em tudo, uma terra como a nossa, como a Bahia, não estará, de certo, destinada a uma attitude de inferiodade no scenario da politica nacional, quando assistimos, não raramente, à desenvoltura, à tactilidade e à coragem com que Estados menores avançam para a culminancia do supremo poder republicano.60
Tais preocupações não ficaram restritas meramente às eleições ocorridas no
plano regional. Quando se tratava de ponderar a posição a ser assumida pelas forças
políticas do Estado, no concernente às eleições nacionais, revigorava-se o discurso em
nome da unidade dos baianos. Para confirmar isto, recorro novamente à Bahia
Ilustrada. O periódico acompanhou todo o processo da sucessão presidencial de 1919,
no qual concorreram Epitácio Pessoa, candidato oficial, e o Rui Barbosa, que, ao ter seu
nome preterido pelas lideranças políticas nacionais, lançou-se como candidato da
oposição. A revista engajou-se completamente na campanha, divulgando os passos do
baiano na busca dos votos. Nas matérias que publicou sobre os acontecimentos revela-
se o quanto Rui apelou, na Bahia, para muitos dos enunciados da identidade baiana tal
qual expus ao longo deste trabalho, pretendendo conquistar, com isso, a unanimidade
dos eleitores do Estado. Entretanto, já pude relatar sobre isto, o candidato baiano não
foi bem sucedido nas suas pretensões, sofrendo uma derrota para Epitácio Pessoa.
A Bahia Ilustrada acompanhou, ainda, parte dos desdobramentos relativos a
sucessão presidencial de 1922. Mas, o que esteve em jogo, neste episódio, foi a
ambição de indicar o vice da chapa oficial, encabeçada por Artur Bernardes. O
governador do Estado, J. J. Seabra, apareceu, então, como um potencial concorrente à
60 Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 38, mai./1921. A preocupação com a sucessão de Seabra parecia estar
relacionada com sua indicação para a vice-presidência da República, visto que nesse mesmo número o assunto foi tratado.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 292
função, indicado pela bancada baiana. A revista produziu matérias muito interessantes
em defesa de Seabra (ver fig. 12). Numa delas, justamente nomeada “Pela elevação
política da Bahia”, elogiou a superação do partidarismo que a união em torno do nome
significava. Segundo o autor da matéria, que não se identificou, “a opportunidade dessa
candidatura toma[va] aspectos especiaes, pois o que esta[va] mais em jogo é[ra] [a]
propria dignidade da terra natal”. Ela teria despontado num momento adequado para a
Bahia “recobrar os direitos de sua posição de destaque no consenso unanime da politica
brasileira, com especialidade no mais elevado posto da Federação”. Em trecho mais
adiante, foi citado o deputado e escritor Xavier Marques, que teria explicado o “júbilo”
com a indicação “ante o afastamento em que tem estado a Bahia das culminantes
posições do governo da Republica”.61
Conquanto todas as exortações da revista Bahia Ilustrada pela unidade política,
não é difícil concluir que o seu alcance foi bastante limitado — basta relembrarmos o
capítulo anterior. Na sucessão estadual que opôs Seabra e Paulo Fontes, a vitória do
primeiro fez com que os aliados do segundo estimulassem um levante dos coronéis
sertanejos, situação que redundou na intervenção federal na Bahia. Na campanha
presidencial de Rui Barbosa, Seabra, na condição de governador, angariou grande
quantidade de votos para a candidatura oficial de Epitácio Pessoa. O apoio a Seabra
para vice de Artur Bernardes perdurou até a escolha de outro nome para compor a
chapa oficial. Quando lançou-se a vice na chapa oposicionista liderada por Nilo Peçanha,
Seabra viu desaparecer o apoio da maioria das lideranças políticas baianas, temerosas
de afrontar as preferências das lideranças políticas dominantes nacionalmente.
Não conseguindo realizar-se de fato, a pretendida unidade em favor da “elevação
política da Bahia” não passou de um ideal, pois somente o sufocamento de certos
grupos possibilitou uma ação mais coordenada, mas que reuniu apenas os vencedores.
Assim, em 1930, conseguiram indicar e eleger Vital Soares, governador baiano na época,
como vice do paulista Julio Prestes. Mas, ironicamente, como é do nosso conhecimento,
esta história — a eleição de um baiano para um alto cargo da Républica, trinta e seis anos
após de Manoel Victorino, vice de Prudente de Moraes (1894-1898) — não teve o final
feliz esperado, ao ser atropelada pelo movimento chefiado por Getulio Vargas.
A “ressureição” da história
Tenho utilizado tão profusamente a Bahia Ilustrada para introduzir as nossas
discussões que eu mesmo encaro com estranhamento recorrer agora a uma frase
localizada na revista Renascença com o objetivo de iniciar a abordagem do último tópico 61 “Pela Elevação Política da Bahia”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 38, mai./1921.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 293
deste capítulo. Mas foi numa matéria publicada nesse periódico, em abril de 1919, que
localizei o registro de uma frase deveras sugestiva: “a História é uma ressurreição”.62
Num sentido mais simples da frase, diria que ela sinaliza para a revivescência do
passado enquanto uma experiência da memória. Portanto, nesta interpretação, a
história seria o resultado das lembranças ou do trabalho de quem se dedica ao seu
estudo; e a ressurreição não passaria de uma torrente de sensações suscitadas pelo
esforço da memória. Noutros termos, insinua para uma definição aproximada daquilo
que constitui o ofício dos historiadores, sejam eles profissionais, como a grande maioria
dos hodiernos, sejam eles diletantes, como os da época aqui focalizada. A importância
conferida às tradições históricas baianas já foi suficientemente destacada, não existindo,
aparentemente, nenhuma dúvida de que o tratamento conferido aos principais
acontecimentos do passado refletia, de alguma forma, esta primeira significação de que
“a História é uma ressurreição” poderia se imbuir.
Num outro sentido, a frase exporia o desejo intenso de viver o passado, não
enquanto memória, mas como uma experiência rediviva, reatualizada na prática, o que
seria alcançado pela superação dos infortúnios e a recuperação, ao menos parcial, da
antiga preponderância. A história seria, nessa perspectiva, o conjunto dos fenômenos
históricos concretos, vivenciados no dia-a-dia pelos sujeitos deste relato, ou seja, as
elites; e a ressurreição não passaria de um retorno à vida de tudo aquilo que sentiam
falta. A frase se relacionaria, assim, aos verbos reconquistar, resgatar, recuperar,
recobrar e outros tantos similares iniciados com “re”, tantos vezes utilizados nos
documentos consultados. Enfim, relacionar-se-ia ao verbo renascer, tal como ocorria
com a Fênix, a famosa ave mitológica que conseguia restabelecer a vida a partir das
próprias cinzas, personagem, aliás, lembrada pelos autores de um material já citado, a
Polyanthea, para descrever um desses momentos em que se julgava haver readquirido
a vitalidade de antes.63
A expressão “a História é uma ressurreição” foi citada na revista Renascença com
base no segundo sentido apresentado, que seria assinalado pelos melhoramentos
materiais da capital baiana na década de 1910, além de outras iniciativas levadas
adiante pelos últimos governantes — que, para esclarecimento, cito terem sido José
Joaquim Seabra (1912-1916) e Antonio Moniz (1916-1920). No seu contexto original, a
idéia foi assim descrita:
Tem se dito e vezes mil repetido que a Historia é uma ressurreição. Cremos religiosamente na verdade do conceito, hoje mais do que nunca victorioso.
62 “O Estado da Bahia”. Renascença, Bahia, nº 41, 25 de abril de 1919. 63 “Ave Bahia”. In Polyanthea (sem referências).
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 294
A Bahia resurge ou melhor, tem agora a sua Renascença. A Bahia augmenta, cresce, prospéra, transfigura-se. Está em tudo o rápido progresso dos últimos annos e os melhoramentos materiaes da urbe [...].64
Não faltam referências da incontornável pretensão das elites em ver readquirido,
em alguma dose, o prestígio dos seus antecedentes de épocas pretéritas. Pretendiam,
também, recolocar a Bahia em posição mais destacada. Mas vejo isto enquanto
estratégia facilitadora da realização das suas próprias ambições, visto que seriam os
maiores beneficiados com a reconquista de uma posição de destaque. Francisco
Marques de Góes Calmon, governador no período de 1924 a 1928, embora não tivesse
atuação política regular, sendo um indivíduo dedicado por ofício à atividade econômico-
financeira, ilustrou com seus escritos uma preocupação especial com a vida econômica
do Estado, a qual se relacionava, íntima e notoriamente, com os seus interesses
profissionais. Ele escreveu, no prefácio de uma das suas obras, que “se no Império
culminamos pela palavra, pela intelligencia e pelo sacrifício em prol da causa nacional,
na República devemos reconquistar o nosso esplendor fortalecendo com o fasto de uma
eficiência econômica insophismavel a capacidade intellectual que sempre assignalou os
filhos da Bahia em todos os momentos da vida da nacionalidade brasileira”. Portanto, na
sua visão, a “ressurreição” da história passaria pela “ressurreição” da economia local. E
crente nesta possibilidade, senteciou na conclusão do primeiro estudo da obra: “está
reservado ao século XX restituir à Bahia o seu fulgor de outros séculos”.65
A idéia de ressurreição da história tinha o caráter de aposta num tempo
vindouro, mas cujo desejo era que chegasse brevemente. No fundo da alma, alguns se
sentiam impossibilitados de indicar quando ele chegaria, daí porque apenas intuíam a
sua ocorrência. Um editorial da Renascença, designado “Pelo futuro da Bahia”,
expressou-se mais ou menos nestes termos, ao assinalar que para “os espíritos
clarividentes a grandeza futura da Bahia, em época imprecisa, que se não pode
determinar, é visão constante”. O seu autor alegou, ainda, que “onde a razão possa
imperar ninguém haverá que descrêa de que ella logre essa prosperidade tão
almejada”, mas não deixou de insinuar o temor de que “se constitua excepção à regra,
entre todas unidades da Federação”.66
No trabalho designado A Bahia, Actuallidade e Futuro, sobre o qual já comentei,
Teodoro Sampaio discorreu sobre a situação do Estado, procurando fazer uma análise
64 “O Estado da Bahia”. Renascença, Bahia, nº 41, 25 de abril de 1919. 65 Francisco Marques de Góes Calmon, Vida econômico-financeira da Bahia, p. 2 e 29. Grifo meu. Já
comentei a respeito desta obra no primeiro capítulo, mas não custa lembrar que consiste da reunião de dois estudos publicados antes em separado. Os trechos trancritos são, respectivamente, do “Prefácio”, que abre a publicação, e do estudo inicial, nomeado “Contribuição para o estudo da vida economico-financeira da Bahia no começo do seculo XIX: subsidio para a historia”.
66 “Pelo futuro da Bahia”. Renascença, Bahia, nº 70, mar./1921.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 295
comedida acerca dos seus problemas e dos seus recentes acertos. Conquanto o
equilíbrio demonstrado, subentende-se, no transcorrer da leitura, a idéia de que a
“ressurreição” havia começado, deixando transparecer com isso uma boa dose de
otimismo. Ele acreditava que “por mais adversos que lhe tenham corrido os fados
nestes trinta e cinco annos da abolição e da republica, a Bahia ainda não descreu do seu
futuro e, no trabalho continuo, demonstra a verdade do lemma que adoptou – per árdua
surgo”. Traduzido do latim, o lema significa “pela dificuldade eu venço” — e vencer pela
dificuldade expressa, de alguma forma, um sentido de luta. Talvez, por isso, Sampaio
tenha afirmado que “a lucta ainda não terminou coroada por uma Victoria decisiva, qual
a que aspira a Bahia, confiada nos recursos inegualaveis do seu solo, confiada, no
trabalho e na orientação política dos responsáveis à altura dos graves problemas,
próprios dos paizes novos”.
O texto de Teodoro Sampaio foi produzido em 1924, quando da ascensão ao
governo do Estado do mesmo Góes Calmon citado poucos parágrafos acima. Nos
contextos de sucessão administrativa, tornavam-se comuns os pronunciamentos que
anunciavam expectativas favoráveis em relação aos novos governantes, o que se
refletiu nas palavras do nosso engenheiro. As suas considerações resumem bem as
dificuldades enfrentadas na era republicana, o otimismo quanto aos potenciais
econômicos e as esperanças de que houvessem superado as rivalidades políticas, estas
apontadas como uma das principais causas dos infortúnios baianos. Para Sampaio,
pareceu resultar, desta confluência de impressões, a crença na retomada dos rumos
perdidos, revelada, sobretudo, nos números que descreviam um suposto
desenvolvimento econômico do Estado, indicados no decorrer do texto. Por tudo isso,
suas idéias constituem uma síntese interessante para este momento em que nos
aproximamos da finalização deste capítulo. Nas palavras do próprio:
Que a Bahia ainda não acertou com o caminho que lhe aponta a republica, em trinta e cinco annos de regimen autônomo, diz-se por ahi commumente à vista de insuccessos políticos repetidos e do falar tendencioso de injustos detractores, mas a vida econômica do Estado, mercê de energias próprias, ahi está de anno para a anno a protestar contra a inverídica assertiva e a exigir dos seus accusadores mais escrúpulo no observar e affirmar. Erros políticos, tanto quanto podem elles influir na Economia do Estado, ninguém o nega; podem mesmo agir como um peso morto na marcha ascencional dessa economia; não lograram, porém, impedir jamais a alta progressiva do nosso trabalho commum. [...] Certo, não está conseguindo ainda o apparelhamento inteiro que nos há de conduzir à propesperidade maior; todas as energias de que somos capazes ainda se não conjugam e não agem na medida das nossas mais legitimas aspirações; mas já se sente nas alturas do poder, uma orientação nova; já se lhe reconhece um desígnio accentuado de realisação efficiente; deliberado intento de adoptar outros moldes na administração publica; soluções assentadas para os problemas que tangem pela economia e bem estar publico.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 296
A paz no terreno político, impossível até bem pouco tempo, já agora se accentúa promissora pela confiança na acção dos responsáveis, pela vontade firme de se trilhar no governo a senda da moderação, da justiça e da lealdade, a conseguir a pacificação de ânimos que se espera completa numa fraternidade sem sombras. Passado o período escuro de nossas dissenções; falando agora mais alto na consciência de todos, o patriotismo antes que a conveniência partidária; encerrando o cyclo de misérias onde se cevava a detractação do nosso credito na federação, licito é esperar agora que a Bahia encare o futuro dessassombrada e caminhe para a frente, segura de triumphar nas lides do trabalho.67
Vivenciado experiências que foram internalizadas com base em sentimentos
dispares e extremados, mas, de algum modo, complementares, como o desconforto
com o presente e a esperança no futuro, as elites exortavam pelo reerguimento da
Bahia, pela ressurreição da sua história. Há uma citação bastante representativa do
encorajamento dirigido aos “grandes homens” da “bemdita terra”. Retirei a mesma da
Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, edição lançada no ano de 1925,
onde foi publicado um longo artigo dedicado à memória de Abílio César Borges, o Barão
de Macaúbas, educador baiano do século XIX, mestre de Castro Alves e Rui Barbosa, e,
junto com estes, mais um ícone da idéia de Atenas Brasileira. O texto, assinado por
Arthur Mendes de Aguiar, foi resultado de uma conferência realizada na instituição. O
autor, como recomendava a praxe, fez nele os tradicionais exalçamentos à Bahia, pondo
a relembrar as glórias do seu passado. Mas foram seus parágrafos finais que mais me
chamaram a atenção, por soarem como um brado firme de incitação de todos, pontuado
por uma repetitiva exclamação: “Pela Bahia”! Recordar as grandezas do passado,
denunciar os infortúnios do presente, promover a propaganda das suas qualidades —
foram todas elas ações que as elites procuraram realizar “pela Bahia”, uma simples
ficcção de lugar, uma figuração retórica que remetia sobretudo às crenças, espaços e
experiências de vida típicas destes segmentos sociais, econômicos e/ou culturais
baianos. Persistentes, como eram, na crença de seu revigoramento, e convictos de seus
próprios méritos, como também eram, de certo, bradariam com Arthur Mendes de
Aguiar:
Pela Bahia! — nosso berço adorado e tumulo augusto de nossos maiores, onde vemos à luz do trabalho universal e ao concerto incessante da orchestra da vida! Pela Bahia! — primogênita de Cabral, fóco irradiante da formação da Bahia e da civilização brasileira, em cujas glórias immoredouras nos revemos desvanecidos! Pela Bahia — mater gloriosa — que nos seus dias de ventura extrema, acolheu sempre, nos éstos do mais santo orgulho, os defensores da ordem constitucional e da segurança e tranquilidade da communhão.
67 SAMPAIO, Teodoro. “A Bahia: actualidade e futuro”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, Bahia, nº 54, p. 147-172, 1928, p. 147-149. O texto, contudo, é datado de dezembro de 1924.
Capítulo 5 – “Pela Bahia”... 297
Pela Bahia — mater dolorosa – que, por iniciativa de seu illustre Governador, se apparelha para receber nas dobras de seu manto piedoso, os restos honrados dos que succumbiram na defesa do presente e do futuro da pátria! Pela Bahia, finalmente, — Athenas Brasileira — que há de recuperar o posto de honra que lhe cabe pelo talento fecundo de seus filhos, para o que o exemplo eviterno de excelsos extinctos, dentre os quais o Barão de Macahubas, será — enhamos odes a esperança viva — a scentelha que há de reanimar o fogo sagrado de sua cultura intensa e hegemonia mental. “Alma Bahia, vale!”68
Revigorados com tais crenças e esperanças, não parecia impossível, ao olhar de
muitos, que a Bahia pudesse recuperar seu antigo fausto, pois não faltou quem
defendesse que ela tivesse conservado as prerrogativas dos seus tradicionais títulos.
Anos antes das palavras de Arthur Aguiar, a Bahia Ilustrada, numa das edições de
1919, publicou uma nota em que se referia à idéia de Rainha do Norte. Eis a essência
do seu conteúdo: “a terra de hoje não desmentira a de hontem, e antes contribue para
sua grandeza moral no macrocosmo politico. Rainha do Norte fora, e se-lo-a sempre.
Não lhe abateram o throno, nem lhe tiraram a divina corôa do civismo”. Um ano depois,
na mesma revista, foi a vez de Henrique Autran, presidente do Centro Baiano, sediado
no Rio de Janeiro, pronunciar algo semelhante: “a Bahia, princeza do norte, foi, é, e
será sempre, pelo amor, e pelo civismo e pela predicação de seus filhos a heroína dos
seios titanicos, e brilhará, como astro de primeira grandeza, na constelação do Brasil”.69
Nos dois casos, manifestou-se a fé de que não perdera o espírito altivo.
Assim, a “ressurreição” da Bahia significava, em um nível mais profundo, tanto o
ideal da continuidade de uma condição quanto o da reconquista de uma posição, posto
que os seus dons tradicionais, a despeito do pessimismo muitas vezes manifestado,
teriam se mantido intocados.
68 AGUIAR, Arthur Mendes de. “O espírito humano e a intuição didactica”. Revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, Bahia, nº 50, p. 13-41, 1925, p. 40-41. 69 Respectivamente, “Scenas do Civismo Bahiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 17, Ano II, abr./1919;
e “Centro Bahiano”. Bahia Ilustrada, Rio de Janeiro, nº 32, Ano II, jul./1920.
Considerações Finais
Finalizados todos os capítulos, agora que dirijo um olhar retrospectivo a eles
mesmos, tenho a impressão de ter feito uma história política, porém procurando seguir
um novo tipo de roteiro, adotando uma perspectiva diferente ao realizá-la. Diria que fiz
uma história política desprendida da tendência de relatar a sucessão de fatos ligeiros
que costuma caracterizá-la, conquanto não tenha agido assim em alguns trechos, por
ter sido inevitável. A preocupação foi em pensá-la no tocante à construção de
representações simbólicas, à evocação de um imaginário, à criação e fixação de mitos.
Essas formulações iniciais são apenas para justificar uma parte dos encaminhamentos
das minhas últimas palavras neste texto.
As elites baianas passaram a maior parte da chamada primeira fase da era
republicana a rememorar os acontecimentos do passado, nos quais identificavam
orgulhosos sinais de “grandezas”. Daí a elaboração de narrativas de memória e de
história que mostravam a Bahia a desempenhar um papel decisivo nos momentos
cruciais da historia nacional; a exercer uma importante função econômica, contribuindo
regularmente — em certos contextos, inclusive com primazia — para a riqueza da
nação. Mostravam-na, também, como o local que recebera os primeiros elementos
civilizacionais, a defender com denodo e heroísmo a integridade do território, a revelar
líderes políticos que conduziram os negócios de Estado com sabedoria, a produzir
intelectuais, artistas e cientistas que iluminaram a cultura nacional.
A motivação para o resgate desse tipo de memória era dupla: por um lado, havia
a saudade de um tempo considerado glorioso, que se desejava repetir; por outro lado,
servia como referência comparativa em relação ao presente, que se desejava refazer.
Este segundo motivo se justificava pelo fato de que as elites baianas viam nos eventos
recentes motivos para lamentar, passando a denunciar os “infortúnios” que sentiam e
alegavam vivenciar. Essa idéia de “infortúnio” definia uma forma de percepção e
sensibilização aos fatos e apontava para uma espécie de sentimento de “crise”,
“declínio” ou “decadência”, cuja manifestação mais evidente seria a perda do prestígio
político. As lembranças da experiência relativamente próxima do extinto Império, no
qual teria fulgurado a participação dos estadistas baianos, detentores de uma parcela
significativa das principais funções políticas e administrativas na época, contrastava com
aquilo que ocorria no presente republicano. Sob o novo regime, a Bahia se viu
progressivamente afastada do exercício mais efetivo do poder, resultando disso a
tristeza por já não possuir influência comparável a que tivera no Império.
Considerações Finais 299
Desta forma, “os discursos sobre as grandezas” se constituíram uma tentativa
do estabelecimento de laços de identidade política e regional, com a qual se perfazia
um modo das elites se mostrarem positivamente à nação. Ao se apresentarem como
herdeiras legítimas dos homens do passado, que teriam prestado muitos serviços
patrióticos ao país, as elites pretendiam se auto-representar como continuadora de
uma estirpe de grandes estadistas baianos. Configurava-se, assim, um discurso que
reivindicava a inserção em condição mais prestigiosa na alta administração e na vida
política nacional, numa estatura considerada condizente com as tradições que
tornaram a Bahia, um dia, a orgulhosa Atenas Brasileira.
Com o respaldo de uma série de idealizações, abriu-se, visivelmente, um
campo de luta no plano das representações simbólicas, numa concorrência direta com
os principais Estados da nação, também às voltas com a necessidade de estabelecer
no plano simbólico a hegemonia consolidada (ou em consolidação) nos planos político
e econômico. Talvez nesse campo, o simbólico, as elites baianas se vissem melhor
preparadas para a batalha, pois na reprodução dos discursos que recuperavam as
grandezas pretéritas se comportavam como estivessem pisando num terreno mais
seguro, lastreadas como estavam em sólidas tradições históricas. No tocante às ações
que visassem o equacionamento dos seus principais problemas, as condições reais,
aparentemente, demonstravam-se mais complicadas, como estivessem postadas
diante de barreiras impenetráveis, ou seja, as dificuldades econômicas pareciam
instransponíveis e as dissensões partidárias pareciam irreconciliáveis — estes que
eram dois dos principais impedimentos para que tivesse uma posição mais relevante
na cena nacional. Como não conseguiam resolver seus problemas internos, e uma vez
que a Bahia ocupava a função de eterna Atenas Brasileira, não custava nada às elites
acreditarem que deveriam ter resguardado, aos menos minimamente, o direito de
governar os destinos da nação.
O reforço das tradições, das potencialidades e das qualidades baianas pretendia
constituir os elementos de uma identidade regional que, ao ser promovida, mostrava a
Bahia e os baianos como elementos imprescindíveis na construção da nacionalidade,
fosse na dimensão simbólica, fosse no efetivo exercício de influência e poder políticos.
Daí o surgimento dos materiais que se arrogavam o objetivo de fazer a propaganda da
Bahia. Divulgar as virtudes se tornou um meio de exortar os baianos a lutar pela
retomada da posição prestigiosa que conheceram um dia, assim como representava
uma cobrança aos detentores do poder republicano para que devolvessem a Bahia ao
lugar supostamente merecido.
O conjunto das percepções das elites sobre sua própria situação tinha a sua
complexidade, visto que parecia, às vezes, ambíguo e contraditório, por misturar falas
Considerações Finais 300
que cantavam as glórias passadas, lamentavam os infortúnios do presente e
reconheciam a permanência de atributos que estimulavam o sonho da recuperação
futura. E dentre as maiores expectativas alimentadas, repito, estava ambição da
reconquista do poder político. Entretanto, ao se lançar às tentativas de alcançar tal
objetivo, acabou colhendo uma série de insucessos, para os quais contribuíram
diretamente as disputas “fratricidas” que opunham as diversas facções políticas
regionais. Nesse sentido, é bastante interessante assinalar que os períodos mais
agitados em termos das dissensões políticas — aqueles em que estavam situados os
eventos de intervenção federal no Estado, bem como os fracassos de seus filhos nas
campanhas sucessórias processadas em nível nacional — coincidiram com os momentos
em que mais se acentuaram “os discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios
da Bahia”, ou seja, as décadas de 1910 e 1920.
Por não verem realizadas suas pretensões, tais discursos se manteriam nos anos
seguintes, avançando pela era getulista e, muito mais, estendendo-se para além desse
período, como atestam alguns depoimentos, visto que o Estado continuou a vivenciar
tanto as dificuldades de inserção política quanto uma paralisia econômica que parecia
irremovível. No que tange à política, nunca mais conseguiu produzir um alto governante
republicano, critério tomado como sinal de prestígio — exceção seja feita a Vital Soares,
em 1930, que ganhou mas não levou a vice-presidência. Esse longo vácuo de poder se
estendeu desde a vice-presidência de Manoel Victorino, ainda no início do regime
republicano, no primeiro governo civil eleito, e alcançou, citemos logo o limite extremo,
os dias atuais. No que se refere à sua economia, vivenciou, até o avançar da década de
1950, os efeitos do que muitos chamaram de “enigma baiano”, ou seja, a acentuada
retração das atividades produtivas no desenrolar da vida republicana.
Para não restringir os dramas baianos à mera impossibilidade de exercer o poder
político no nível nacional, devo destacar que as vicissitudes econômicas foram
determinantemente importantes para a configuração do quadro de crise, pois
inviabilizaram que os projetos de reconquista da posição de destaque no quadro geral
da nação brasileira pudessem de fato se realizar. Dentre estas vicissitudes, situa-se a
falta de recursos para investimentos que permitissem recuperar as antigas atividades
produtivas e/ou facilitassem a abertura de novas, além disso, as melhorias em infra-
estrutura ficavam bastante prejudicadas. Houve, também, um freqüente descaso em
cuidar do nível de instrução da população e das suas condições de existência. Isso
quando se sabe que os Estados brasileiros que investiram nestes setores colheram os
melhores resultados e viram, em conseqüência, aumentar suas chances de participar de
modo mais influente no jogo de poder político nacional.
Considerações Finais 301
Todavia, as elites baianas preferiam lembrar o passado e desejar a sua
ressurreição, ao invés de cuidar de promover os elementos necessários para
reerguimento do Estado. Muitos sabiam das necessidades de passar por um amplo
processo de modernização, mas daí a implementar ações que a tornassem um fato
havia uma grande distância. De qualquer modo, não se pode obscurecer que as elites
não foram as únicas responsáveis pelo “declínio” da Bahia, pois, como é do nosso
conhecimento, o Estado nacional estava assentado numa estrutura de poder e mantinha
mecanismos de apropriação e distribuição das riquezas que não favoreciam os Estados
mais fracos e menos influentes.
Há uma questão crucial para se examinar: qual a natureza da reconstituição da
memória histórica pelas elites? A favor de quê e contra quê operava? Ao recuperar o
passado e reforçar imagens que pretendiam valorizar a Bahia — tais como as idéias de
mater e heroína, além dos títulos de Rainha e Atenas bem representavam —, as elites
produziam uma flagrante idealização da história. Nos discursos então elaborados, o
passado aparecia praticamente desprovido de conflitos, como se todos o tivessem vivido
enquanto uma realidade unitária, como se as representações para ele formuladas
pudessem ser compartilhadas por todos, como se a maioria não estivesse excluída da
posse das virtudes e dos talentos que teriam feito da Bahia e dos baianos protagonistas
de um tempo de grandeza. Sabemos muito bem que o passado foi repleto de tensões,
as quais foram esquecidas porque fugiam aos propósitos e interesses então em jogo.
Não se falava, ou se comentava muito pouco, as revoltas escravas, porque elas sempre
foram encaradas como um fator de risco à estabilidade das elites. Quando se comentou
as rebeliões políticas, foi para identificar as gêneses de um sentimento republicano,
enquanto as guerras simbolizavam o sacrifício. O passado, tal como era apresentado,
consistia, portanto, numa construção da memória, disfarçado em discurso histórico
estruturado que re(a)presentava os fatos, inclusive positivando-os, se fossem úteis às
pretensões e aos projetos das elites. Por isso, o ato de se remeter ao passado constituía
uma operação que oscilava entre as lembranças de fatos previamente selecionados e
outros necessariamente esquecidos e silenciados, entre a identificação com o que era
apropriado ao modelo pretendido e o estranhamento ao que feria os padrões, entre a
aceitação do que se tinha como dignificante e o renegamento do que era desonroso.
Por outro lado, suas idealidades identitárias, pautadas em valores que negavam
reconhecimento aos elementos populares, predominantes na cultura local, tornaram-se
superadas ao longo do período, perdendo espaço como representação dominante da
identidade baiana. Não é que elas tenham desaparecido, conservaram-se dominando o
imaginário das próprias elites ou parcialmente amalgamadas a outras fontes, haja vista
a emergência de uma identidade que buscou inspiração nas contribuições, valores e
elementos culturais africanos (ou afro-brasileiros), antes tão renegados, tornados uma
Considerações Finais 302
concorrente de peso que foi ganhando cada vez mais espaço. A obra literária de Jorge
Amado, por exemplo, não somente representou como promoveu bastante esta nova
identidade. Não dispondo mais da maior parte das suas riquezas, não contando mais
com grande prestígio político, as elites começavam a perder, também, a hegemonia dos
referenciais simbólicos que descreviam a identidade baiana, tão fortemente enraizados
nos seus próprios modos de ser e estar, ver e pensar, imaginar e traduzir a Bahia.
Não consigo me voltar para o passado sem estabelecer relações com o meu
próprio presente, buscando verificar as continuidades e rupturas, as transformações e
as adaptações, as similaridades e as diferenças observáveis entre as experiências de
variados momentos. Pensando, então, no significado atual das elaborações identitárias,
observa-se a permanência de diversos valores cultivados nas primeiras décadas do
século XX, como as idéias de terra mãe (há poucos anos, por exemplo, circulou uma
campanha publicitária com o slogan “Bahia, o Brasil nasceu aqui”), da terra de festa e
felicidade (muitos, de certo, já ouviram o ditado “sorria, você está na Bahia!”), da
excepcionalidade dos baianos (retratada na frase “baiano não nasce, estréia”) — todas
ainda bastante aproveitadas para promover o Estado, turisticamente, pelo país e pelo
mundo afora. Além disso, preserva-se vivamente a celebração do Dois de julho, com
seu panteão de símbolos e heróis.
Mas agora, em lugar da valorização do saber e do poder das elites — tão
significativamente reforçada pelos cultos das instituições, dos grandes intelectuais e
artistas, dos estadistas, da nobreza imperial e sua herdeira republicana —, introduziu-se
os elementos populares. Hoje se define uma baianidade que remete, explicitamente, às
festividades populares, como o carnaval e manifestações semelhantes, à musicalidade
que mistura influências afro-brasileiras, à assimilação de elementos religiosos também
afro-brasileiros, à institucionalização da figura da baiana (a negra com suas roupas
típicas), dentre outros, como algumas das suas novas representações — todos
elementos que foram, comumente, postos à margem pelas elites nas primeiras décadas
republicanas. No entanto, essa identidade não deixa de ser tão ficcional quanto a
primeira, no sentido de querer falar de e por todos e impor um estereotipo que, muitas
vezes (ou na maior parte das vezes), não corresponde à realidade geral, deixando à
margem do seu conjunto simbólico e performático amplas parcelas de indivíduos — aqui
quero lembrar das minhas interpelações a respeito do pertencimento a esta identidade,
expostas nas “considerações iniciais” deste trabalho.
Estamos às voltas com novos dramas, novos discursos de grandeza, mas, desta
feita, sem a suficiente clareza se existiriam e quais seriam os nossos infortúnios. Como
são acoplados muitos elementos populares nas definições identitárias baianas atuais, e
como essas camadas são compostas, predominantemente, por mestiços e negros que
Considerações Finais 303
vivem, na sua maioria, em situação precária, talvez um dos focos esteja na luta por
uma inclusão mais justa desses indivíduos na sociedade baiana e brasileira — tema esse
candente nos debates sobre a sociedade brasileira atual. Talvez o foco esteja em
perceber quanto os remanescentes das antigas elites, associadas às elites emergentes
das últimas décadas, mais facilmente prontificadas a se identificarem com os que estão
acima, dispõem-se a assimilar os novos elementos. Mas somente o tempo saberá
esclarecer melhor sobre tais questões...
Meus últimos comentários...
Como historiador, sempre alimento a vontade de proceder compreensões do
passado que sejam de um tipo que reconheça as múltiplas possibilidades existentes na
análise dos acontecimentos que estão no centro da trama reconstituída com o trabalho
de pesquisa. Sinto-me seduzido pela idéia de ser um observador de problemas e
formulador de questões que, tendo analisado as injunções e as conjunções em torno
dos fatos, propõe, preferencialmente, algumas possibilidades de interpretação em torno
do que foi revelado pelos documentos. Desta forma, espero ter conseguido oferecer ao
leitor aquilo que prego, entretanto, se não obtive êxito em fazê-lo, espero, também,
que minha narrativa não seja tomada como a única ou a última versão dos fatos. Tenho
a certeza de que ela se legitima pelo uso recorrente que faço das fontes, que foram
constituídas, na verdade, somente por aquelas que pude ou optei em utilizar, o que dá
margem ao aparecimento de outras versões.
Penso do mesmo modo a respeito dessas considerações finais, as quais não
devem ser apreendidas como tendo o caráter de conclusão, tanto porque não quero vê-
las tomadas como se fossem sentenças (não pretendo fazer aqui uma defesa definitiva
e inquebrantável de qualquer causa) quanto porque jamais poderá pressupor a idéia de
que corresponde ao final de uma história, que, na minha opinião, nunca se acaba, posto
estarem as experiências humanas (no passado ou no presente, as dos sujeitos
históricos e a dos historiadores) em constante movimento.
Espero com este trabalho ter contribuindo para uma maior reflexão histórica,
bem como ter provocado o surgimento de inquietações que estimulem novos estudos.
Gosto de alimentar o pensamento de ser um proponente de interpretações que instigam
debates, levando os leitores à busca de argumentos para referendá-las ou questioná-las
(quiçá através de novas pesquisa), resultando em novas interpretações... engendrando,
enfim, um movimento contínuo de curiosidade pela História da Bahia e do Brasil, mas
muito especialmente, nesse momento, uma curiosidade naquilo que tange aos discursos
que formulam, instituem, inventam, fixam, etc. etc. etc. as nossas formas de identidade
(nacional, regional ou local).
Anexo
Perfis Biográficos de Intelectuais Baianos
Neste anexo, apresento os dados bigráficos de quinze intelectuais baianos que
viveram nas três primeiras décadas do século XX. A intenção era dar conta de uma
relação maior de indivíduos, contudo houve certa dificuldade em conseguir informações,
em quantidade razoável, de muitos nomes que compunham a lista inicial. Daí que
acabei me satisfazendo em apresentar o perfil daqueles que mais foram citados nas
páginas do presente trabalho, como, por exemplo, a “quadra de ouro”, digamos assim,
do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia — Braz do Amaral, Bernardino de Souza,
Teodoro Sampaio e Wanderley Pinho. Nome muito importante, também, é o de Lemos
Brito, bastante aproveitado nos capítulos. Os outros, embora tenham sido trabalhados
em menor volume, ajudam, com o resumo dos seus dados biográficos, a formar uma
idéia melhor do(s) tipo(s) de sujeito(s) que compunha(m) as elites baianas, a quem
tanto me referi.
Almeida, Miguel Calmon du Pin e (Miguel Calmon)
Nasceu em 18 de setembro de 1879, na cidade de Salvador (Bahia), e morreu no
dia 25 de fevereiro de 1935, na cidade do Rio de Janeiro. Era filho do Contra-Almirante
Antônio Calmon du Pin e Almeida e de Maria dos Prazeres de Góes Calmon, e irmão do
ex-governador do Estado Góes Calmon e do deputado Antonio Calmon; além de primo e
padrinho do historiador Pedro Calmon. Era, também, sobrinho-neto do marquês de
Abrantes, prócer do Império de quem herdou o nome. Formou-se em engenharia civil
pela Escola Nacional de Engenharia do Rio de Janeiro, em 1899, tornando-se
reconhecido, posteriormente, como especialista em agricultura. Foi professor da Escola
Politécnica da Bahia. Exerceu diversos cargos públicos, foi dentre eles: Secretário da
Agricultura, Viações e Obra Públicas do Estado da Bahia; Ministro da Indústria, Viação e
Obras Públicas, no governo Afonso Pena (1902-1906); e Ministro da Agricultura,
Comércio e Indústria, no governo Artur Bernardes (1922-1926). (Ver fig. 01, letra “j”)
Amaral, Braz Hermenegildo do (Braz do Amaral)
Nasceu no dia 02 de novembro de 1861, em Salvador (Bahia), e morreu em 02
de fevereiro de 1949, na mesma cidade. Seus pais eram o Capitão da Polícia Braz
Hermenegildo do Amaral e Josefina Virgínia do Amaral. Formou-se na Faculdade de
Anexo — Perfis Biográficos de Intelectuais Baianos 305
Medicina da Bahia em 1886. Foi professor desta mesma faculdade e de outros
estabelecimentos de ensino particulares. Atuou como deputado federal pela Bahia e
representante do Estado em diversas discussões sobre o problema do estabelecimento
de fronteiras com os Estados vizinhos. Esteve entre os membros fundadores do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, do qual foi orador oficial, e da Academia de Letras da
Bahia. Produziu uma vasta obra historiográfica, publicado sob a forma de livros e
artigos, merecendo citação: a História da Bahia, do Império à República, a História da
Independência da Bahia, A Conspiração Baiana (sobre A Revolta do Alfaiates),
Recordações Históricas, dentre outras de grande relevância. (Ver fig. 01, letra “b”)
Aragão, Antônio Ferrão Moniz de (Antonio Moniz)
Nasceu em 30 de maio de 1875, na cidade de Salvador (Bahia), e morreu no dia
5 de janeiro de 1931, no Rio de Janeiro. Era filho do Vice-Almirante Francisco Muniz
Ferrão de Aragão e Laurinda Augusta de Aragão. Formou-se pela Faculdade de Direito
da Bahia, em 1894. Foi advogado, professor da Escola Politécnica, redator de diversos
jornais e escritor. Exerceu os cargos de deputado estadual, deputado federal,
governador da Bahia e senador federal. Era membro da Academia de Letras da Bahia.
(Ver fig. 01, letra “o”)
Barbosa, Rui
Nasceu no dia 5 de novembro de 1849, em Salvador/Bahia, e morreu em 1º de
março de 1923, em Petrópolis (Estado do Rio de Janeiro). Sua biografia é muito rica,
por isso, me proponho a fazer a seu respeito um resumo similar aos demais que
apresentei aqui. Seus pais foram João José Barbosa de Oliveira, professor da Faculdade
de Medicina, e Maria Adélia de Almeida Barbosa de Oliveira. Formou-se em Direito,
iniciando seu curso, em 1866, na Faculdade de Direito de Recife, e concluindo-o na
Faculdade de Direito de São Paulo, em 1870. Exerceu as funções de advogado,
jornalista e escritor. Foi deputado provincial e Geral no Império, ministro da Fazenda no
início da República, senador federal e representante brasileiro em diversos organismos e
conferências internacionais. Teve papel muito influente na Primeira República, sendo
cogitado e tendo concorrido à presidência do Brasil várias vezes, sem nunca lograr
sucesso. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Publicou uma vasta obra
biográfica e jornalística, a exemplo da Oração aos moços, O papa e o concílio, Cartas da
Inglaterra, Réplica às defesas da redação no código civil, Páginas literárias, dentre
outras. ((Ver fig. 15)
Anexo — Perfis Biográficos de Intelectuais Baianos 306
Bittencourt, Pedro Calmon Muniz de (Pedro Calmon)
Nasceu em 23 de dezembro de 1902, em Amargosa (Bahia), e faleceu em 17 de
junho de 1985, Rio de Janeiro. Era filho de Pedro Calmon Freire Bittencourt e Maria
Romana Muniz de Aragão Bittencourt. Iniciou a Faculdade de Direito da Bahia, em 1920,
transferindo-se depois para a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, onde concluiu o
curso, em 1924. Exerceu as atividades de historiador e professor de Direito, além de
revelar pendores literários sendo autor de algumas obras. Teve uma vida acadêmica
bastante intensa, trabalhando em diversas instituições de ensino superior e chegando a
reitor da Universidade do Brasil. Dentro dos marcos temporais deste trabalho, foi
deputado estadual pela Bahia (1927-1930), depois ocupou, também, outras funções
públicas. Foi membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (a partir de 1931) e da Academia Brasileira de Letras (a partir de
1943). Escreveu uma vasta obra bibliográficos, na qual se destacam, dentre muitos
outros, os trabalhos historiográficos.
Boccanera Júnior, Sílio
Nasceu no dia 3 de fevereiro de 1863, em Salvador (Bahia), e morreu em 31 de
agosto de 1928, na Bahia. Era filho do Comendador Sílio Boccanera e de Emília
Rodrigues Vaz Boccanera. Formou-se na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Atuou
como diretor de Teatro, dramaturgo, jornalista e historiador. Trabalhou numa
companhia ferroviária de capital estrangeiro. Foi membro de instituições como o
conservatório Dramático da Bahia (no século XIX), da Academia Baiana de Letras e
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Publicou diversos livros sobre artes, cultura e
e história da Bahia, além de comédias e dramas para Teatro. (Ver fig. 01, letra “g”)
Britto, Jose Gabriel de Lemos (Lemos Britto)
Nasceu em 27 de agosto de 1886, na cidade de Salvador (Bahia), e morreu em
19 de dezembro de 1963, no Rio de Janeiro. Formou-se na Faculdade de Direito da
Bahia, em 1907, onde atuou como professor. Foi professor na Faculdade Nacional de
Direito, instalada no Rio de Janeiro, e presidente da Sociedade Brasileira de
Criminologia. Exerceu as atividades de escritor, sociólogo, historiador e criminologista.
Desempenhou, ainda, a função de jornalista, escrevendo em diversos periódicos. Teve,
no mínimo, uma experiência política, sendo deputado estadual (1911-1912). (Ver fig.
01, letra “e”)
Anexo — Perfis Biográficos de Intelectuais Baianos 307
Calmon, Francisco Marques de Góes (Góes Calmon)
Nasceu em 06 de novembro de 1874, em Salvador (Bahia), e morreu no dia 29
de janeiro de 1931, na mesma cidade. Era filho do Contra-Almirante Antônio Calmon du
Pin e Almeida e de Maria dos Prazeres de Góes Calmon, irmão do político Miguel Calmon
e do deputado Antonio Calmon. Formou-se bacharel pela Faculdade de Direito de Recife,
em 1894. No início da vida profissional, foi professor de História no Ginásio da Bahia;
trabalhou em órgãos de governo. Tornou-se funcionário do Banco Econômico, no qual
foi de advogado a presidente, por isso, especializou-se em economia e finanças. Com
relação a esse tema, produziu suas obras mais conhecidas. Foi governador do Estado,
entre 1924-1928, sem nunca ter levado uma carreira política profissional, tal como
ocorreu aos seus irmãos. Era sócio fundador do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia. (Ver fig. 01, letra “m”)
Marques, Francisco Xavier Ferreira (Xavier Marques)
Nasceu em 03 de dezembro de 1861, na Ilha de Itaparica (Bahia), e morreu em
30 de outubro de 1942, na cidade de Salvador. Era filho de Vicente Avelino Ferreira
Marques e Florinda Agripina Ferreira Marques. Fez o curso de humanidade no colégio do
Cônego Francisco Bernardino de Souza, mas não obteve curso superior. Atuou como
poeta, escritor, biográfo, ensaísta, redator, jornalista e funcionário público. Exerceu
mandato de deputado federal pela Bahia. Foi membro da Academia Brasileira de Letras,
da Academia de Letras da Bahia e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. A maior
parte de sua obra é literária, e talvez tenha sido o mais importante escritor baiano de
sua época, até o surgimento de Jorge Amado. (Ver fig. 01, letra “f”)
Peixoto, Júlio de Moraes Afrânio (Afrânio Peixoto)
Nasceu em 17 de dezembro de 1876, na cidade de Lençóis (Bahia), cravada no
meio da Chapada Diamantina, e morreu em 12 de Janeiro de 1947, no Rio de Janeiro.
Era filho de Francisco Afrânio Peixoto e Virgínia de Moraes Afrânio Peixoto. Formou-se
na Faculdade de Medicina da Bahia em 1897. Exerceu a atividade de professor na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e na
Universidade do Brasil, além de funções públicas ligadas a sua formação profissional. Foi
escritor, literato e historiador. No campo político, foi deputado federal pela Bahia.
Participou da Academia Brasileira de Letras, da Academia de Letras da Bahia, da
Academia Nacional de Medicina, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, e outras congêneres. Teve publicadas diversas
Anexo — Perfis Biográficos de Intelectuais Baianos 308
obras literárias, livros científicos e trabalhos ligados à cultura e história. (Ver fig. 01,
letra “i”)
Pinho, José Wanderley de Araújo (Wanderley Pinho)
Nasceu no dia 19 de março de 1890, em Santo Amaro (Bahia), e morreu em 08
de outubro de 1967, na cidade do Rio de Janeiro. Filho de João Ferreira de Araújo Pinho
e de Maria Luisa Wanderley de Araújo Pinho. Seu pai foi presidente da província de
Sergipe, no Império, e governador da Bahia (1908-1911), na Repúbluica; seu avô
materno foi João Maurício Wanderley, o barão de Cotegipe, chefe do Partido
Conservador no Império. Formou-se Bacharel na Faculdade de Direito da Bahia, em
1910. Ao longo de sua trajetória de vida, atuou como advogado, professor da Faculdade
de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, historiador, promotor público, ministro do
Tribunal de Contas do Estado da Bahia, deputado estadual e federal, prefeito de
Salvador. Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, da Academia de Letras da Bahia e outras instituições do
gênero existentes no Brasil. Foi autor de vasta obra historiográfica, como Política e
Políticos no Império, Cotegipe e Seu Tempo, História de um Engenho no Recôncavo,
Salões e Damas no Segundo Reinado, Cartas do Imperador D. Pedro II ao Barão de
Cotegipe, dentre outros. (Ver fig. 01, letra “d”)
Querino, Manoel Raimundo (Manoel Querino)
Nasceu no dia 28 de julho de 1851, em Santo Amaro (Bahia), e morreu em 14
de fevereiro de 1923, em Salvador. Os dados sobre suas origens são repletos de
lacunas. Era um homem negro. Formou-se na Escola de Belas Artes, em 1882. Atuou
como professor, jornalista, historiador, escritor, artista plástico, pintor e decorador. Foi
fundador da Liga Operária Baiana, sócio benemérito do Liceu de Artes e Ofício da Bahia,
membro da Sociedade Libertadora Baiana, e sócio-fundador do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia. Quando jovem, na época da Guerra do Paragaui, integrou o exercito
brasileiro, mas não partiu para o campo de batalha. Foi autor de vasta obra bibliográfica,
dedicada aos mais diversos temas, tais como desenho, artes, história e cultura baiana,
valendo citar: A Bahia de Outrora, As Artes na Bahia, Os Artistas Baianos, Teatros da
Bahia, Candomblé do Cabloco, O Dois de Julho e a sua Comemoração na Bahia,
Costumes Africanos no Brasil, dentre outras. (Ver fig. 01, letra “h”)
Anexo — Perfis Biográficos de Intelectuais Baianos 309
Sampaio, Teodoro Fernandes (Teodoro Sampaio)
Nasceu em 7 de janeiro de 1855, no Engenho Canabrava, Santo Amaro (Bahia),
e morreu em 15 de outubro de 1937, no Rio de Janeiro. Sua filiação é controversa:
nascido de uma escrava, alguns documentos registram Domingos da Paixão do Carmo
como seu pai, porém, muitos indicam que Francisco da Costa Pinto, pertencente a uma
família tradicional e proprietária de engenhos no Recôncavo baiano, era o seu
verdadeiro pai, embora nunca o tenha reconhecido. Era um mestiço, portanto. Formou-
se em Engenharia Civil pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1881. Foi
historiador, geógrafo e professor; mas atuou profissionalmente como engenheiro
(trabalhou nesta função na Comissão de Melhoramentos do Rio São Francisco e como
diretor e engenheiro-chefe do saneamento do Estado de São Paulo). No campo político,
foi eleito deputado federal pela Bahia. Foi fundador da Academia de Letras da Bahia,
sócio e orador oficial do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e participante de
diversas instituições semelhantes existentes no país. Escreveu e publicou diversos
trabalhos ligados à geografia, à história e à língua tupi. (Ver fig. 01, letra “c”)
Sousa, Affonso Ruy de (Affonso Ruy)
Nasceu no dia 28 de agosto de 1893, em Salvador (Bahia), e morreu em 27 de
julho de 1970. Era filho de Esmeraldo de Sousa e Líbia Enedina Bastos de Sousa. A
observação de sua foto revela traços mestiços marcantes. Formou-se na Faculdade de
Direito da Bahia, em 1915. Foi escritor teatral, autor, advogado, historiador, funcionário
público; ocupou a função de diretor do Arquivo Histórico da Prefeitura de Salvador. Fez
parte da Academia de Letras na Bahia, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e
outas instituições. Entre as sua obras de historiador destacam-se a História Política e
Administrativa da Cidade de Salvador, História da Câmara Municipal da Cidade do
Salvador, A Primeira Revolução Social do Brasil, a História do Teatro na Bahia, dentre
outras. (Ver fig. 01, letra “p”)
Souza, Bernadino José de (Bernardino de Souza)
Nasceu no dia 8 de fevereiro de 1884, no município de Vila Cristina (Sergipe), e
morreu no dia 11 de janeiro de 1949, na cidade do Rio de Janeiro. Seus pais, Otávio de
Souza Leite e Filomena Maciel de Faria, pertenciam à aristocracia sergipana. Formou-se
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Bahia, em 1904. Foi professor desta
mesma faculdade e de algumas escolas particulares em Salvador. Atuou com jornalista,
historiador e geógrafo. Foi um dos mais destacados membros do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, atuando como seu secretário pérpetuo, e fundador da Academia de
Anexo — Perfis Biográficos de Intelectuais Baianos 310
Letras da Bahia, em 1917; participou como sócio de diversas outras instituições do
gênero espalhadas pelo Brasil. Foi deputado estadual (1906) e secretário do Estado no
governo implantado com a Revolução de 1930. Escreveu e publicou diversos artigos e
livros sobre história e geografia da Bahia. (Ver fig. 01, letra “a”)
Bibliografia básica:
ABREU, Alzira Alves [et al.]. Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Rio
de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 2001.
ALVES, Marieta. Intelectuais e escitores baianos: breves biografias. [S.l.], Prefeitura
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