Post on 11-Aug-2015
UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
QUILOMBO IVAPORUNDUVA: evolução
histórica e organização territorial e social
MÁRCIA CRISTINA AMÉRICO
Piracicaba-SP
(2010)
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QUILOMBO IVAPORUNDUVA: evolução
histórica e organização territorial e social
Márcia Cristina Américo
Orientadora: Profª. Drª. Anna Maria Lunardi Padilha
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Universidade Metodista de Piracicaba, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em Educação, sob a orientação da Professora
Doutora Anna Maria Lunardi Padilha
Piracicaba, SP (2010)
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BANCA EXAMINADORA
Profª. Dra. Anna Maria Lunardi Padilha (Orientadora)
Profª. Drª. Luiz Fernando Fonseca Silveira - UNIP
Profª. Drª. Márcia Aparecida Lima Vieira - UNIMEP
Profª. Drª. Denise Maria Botelho – UNB
Profº. Dr. José Maria de Paiva - UNIMEP
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AGRADECIMENTOS
O meu percurso até aqui tem sido fruto da convivência com muitas pessoas que
acreditaram neste trabalho, contribuíram para que ele se tornasse possível e que eu
pudesse me constituir como pesquisadora. Temo correr o risco de esquecer de
agradecer a todos.
À minha orientadora Profa. Dra. Anna Maria Lunardi Padilha, que me escolheu e me
incentivou, pela confiança em mim depositada e pela liberdade sempre concedida. Não
mediu esforços para compartilhar seus conhecimentos, experiências e vivências.
Ensinou-me a buscar respostas, a fazer perguntas, a questionar. Nessa relação, a
cada encontro eu fui me constituindo, mudando, transformando. Não tenho palavras
para agradecer e reconhecer o seu trabalho, profissionalismo, seriedade e dedicação.
Ao apoio da Agência de Fomento - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNP´q, pela concessão da bolsa de estudo, sem a qual teria sido
impossível a realização desta pesquisa.
Ao programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba
que acolheu meu projeto. Rendo meu agradecimento às Professoras do Núcleo de
Práticas Educativas e Processos de Interação do PPGE-UNIMEP: Anna Maria L.
Padilha, Maria Guiomar Carneiro Tomazello , Maria Cecília Rafael de Góes e Maria
Inês Bacellar Monteiro. Aos Professores e Professoras de outros núcleos do
PPGE/UNIMEP que tive como mestres: José Maria de Paiva, Cleiton de Oliveira, Elias
Boaventura, Selma Borghi Venço.
Aos professores que fizeram parte da Banca de Qualificação: Prof. Dr. Luiz Fernando
Fonseca Silveira, Profª. Drª. Márcia Aparecida Lima Vieira,, Profº. Dr. José Maria
de Paiva; Profª. Drª. Denise Maria Botelho. A eles agradeço as contribuições,
generosidade e a abertura para interlocução sobre o meu trabalho.
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À Neusa Cezar da Silva, pela revisão do texto da dissertação, pelo carinho e os
momentos que se dedicou aos meus textos, pelas experiências compartilhadas de sua
vivência, pela sua referência de liderança e militância como mulher negra.
À Lara Padilha Carneiro, que realizou o trabalho de revisão dos primeiros textos
sempre dialogando comigo e atenta à construção do conhecimento.
À Angelina Garcia, que deu continuidade ao trabalho de revisão da dissertação, pelo
seu dispor e cuidado com a minha proposta.
À minha psicóloga Silvia Regina Filhinho que me acompanhou nesse processo de
construção do meu “eu”.
Aos amigos: Leandro Eliel Pereira de Morais e Karina Garcia Mollo que não mediram
esforços para partilhar seus conhecimentos sobre o Materialismo Histórico e
Dialético. Como foi bom aprender com vocês, no grupo de estudo, no café, no
corredor, à distância. Obrigada pela partilha, pelas sugestões, por sentar comigo e
contribuir para que esse trabalho fosse tomando forma - conheci em vocês grandes
educadores.
À minha família: aos meus pais que sonharam comigo, incentivaram-me e acolheram-
me nos momentos difíceis, desdobrando-se para que eu chegassem até essa etapa dos
estudos. À Amanda, minha filha, pela compreensão de sempre, cujo tempo de
dedicação aos estudos me privou muitas vezes da sua alegria, carinho e companhia. Às
minhas irmãs Ana e Tânia pelo carinho, apoio, torcida e o acolhimento nas minhas idas
e vindas. Edwilson e Hannah são vocês que me motivam a contar a outra história. Aos
agregados Marquinhos e Cristiano com carinho especial pelas conversas.
Ao Silas, meu companheiro e amigo que me possibilitou realizar alguns sonhos; um
deles foi me apresentar aos meus irmãos quilombolas de Ivaporunduva. Estar entre
eles na “terra de preto”, foi tornar essa caminhada possível. Quantas conversas,
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quantas constelações, quantas passagens pelo movimento negro que foram nos
constituindo. Não tenho palavras para expressar quantas transformações ocorreram
em mim a partir do nosso encontro e vivência. Sem isso não seria possível
compartilhar a história do nosso povo. Minha gratidão a você.
À Viviane Luiz (Vivi), minha grande amiga. Tantas conversas, estudos, trabalhos
realizados juntas. Agradeço o seu apoio, paciência e dedicação desde o início dos
estudos, os quais foram fundamentais para que eu atravessasse os momentos de
crises. A ponte tem sido construída coletivamente.
Às amigas do núcleo, em especial a Elânia Maria Marques Bergamaschi, Claudia Regina
Viera, Ozânea Santana, Cristiane e Elisângela. Conseguimos transformar nossos
momentos de estudo no mestrado em momentos de trocas.
Aos amigos/as, lideranças e militantes que encontrei nas discussões do “movimento
negro” porque muito me ensinaram e contribuíram para que eu me arriscasse a
escrever sobre a nossa história.
De forma muito especial agradeço aos meus amigos quilombolas de Ivaporunduva,
entre os mais especiais, que me acolheram e me ensinaram. Obrigada pelo apoio e pela
troca, sem o qual teria sido realmente impossível realizar esta pesquisa.
Aos membros descendentes dos troncos familiares que originaram Ivaporunduva:
Furquim, Pupo, Marinho, Pedroso, Meira, Rodrigues e Moraes. À pessoa do Ditão –
Benedito Alves - que tanto me ensinou e sua esposa Zilda por quem tenho grande
estima e admiração. Aos filhos: Élson Alves da Silva – o meu primeiro contato com a
comunidade - obrigada por propiciar o acesso a sua família que é tão especial para
mim; à Zica, por tantas conversas e trocas; à Paula, Nhonhozão e família; Neire
(Nhanha) e família e Daniele. Aos Rodrigues, Zé Rodrigues, Maria da Guia, e os filhos
e netos, pela luta, liderança do dia-a-dia. Ao Oriel Rodrigues de Moraes pelo grande
carinho, por não medir esforços para que eu compreendesse o movimento quilombola –
o ser quilombola e por partilhar comigo suas experiências e discussões do Movimento
6
Nacional Quilombola e outros movimentos. Pelo abrigo que me deu em seu lar. À
Silvana, sua esposa, com carinho e admiração e ao herdeiro Aquim. Ao Denildo
Rodrigues de Morais – Bico, que não mediu esforços nessa caminhada para
compartilhar todo movimento contra a construção das barragens nos movimentos
sociais - MOAB – MAB. Ao Olavinho, pelo carinho e por estar sempre pronto a nos
receber, pelo seu trabalho e dedicação ao Ecoetnicoturismo. Às jovens mulheres
quilombolas: Jeniffer, Erica, Elvira, Jardeth , Sirley, Clarinha. À família Pupo, Sr Levi
e Dona Senhoria por tanta sabedoria compartilhada, aos filhos: Paulo Pupo – Paulão
pelas muitas conversas, pela acolhida, pela paciência e humildade em nos ensinar a
filosofia quilombola. À Maria Lúcia, quantas caminhadas dentro do quilombo! Agradeço
a família Furquim, na pessoa do Vô Gaspar e Vó Celina que compartilharam comigo a
sua família, seus filhos, netos, seu tempo, histórias e estórias, o carinho e o dispor
para me ajudar a compreender a dinâmica das famílias do bocó. Não tenho palavras
para expressar o que sinto por vocês. Ao Cristiano Furquim por quem tenho muito
carinho e admiração. Ao Toiço que tem me ensinou a alegria de ser uma criança
quilombola quando cheguei pela primeira vez na comunidade. Aos Marinho, que alegria
adentrar nessa família! Quantas conversas, quantas histórias, as noites inesquecíveis
em torno da taipa escutando as história da Dona Cacilda – grande mulher. Ao Sr.
Aparício por quem tenho carinho, aos filhos Laudessandro (Destrói), Laudenes (Pinga),
Laudessandra, Alexandra (Turréis), Alexandre – (Cacá), Setembrino , Leonardo e
Willian. Agradeço a hospedagem e os ensinamentos quilombolas de vocês.
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DEDICO ESTE TRABALHO
À minha mãe,
Cujo apoio e desdobramento foram necessários para que eu concluísse os estudos,
pela referência de sabedoria e encanto, por sua força e determinação.
À minha filha Amanda Naíná
A sua delicadeza, as suas perguntas em busca de entender a sua história, têm sido a
razão de todo esse meu movimento. Nessa experiência fomos nos transformando e
nos constituindo enquanto sujeitos da história.
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RESUMO
Este estudo, em forma de textos, pretende caracterizar a vida da Comunidade Negra
Agroflorestal Quilombo Ivaporunduva, localizada no Vale do Ribeira, no Estado de São
Paulo, focando a evolução histórica e a organização social e territorial dessa
população inserida num contexto rural, em condições de subdesenvolvimento no que
diz respeito ao acesso/ou dificuldade de acesso aos direitos sociais. Com elementos
que caracterizam a pesquisa etnográfica, a investigação traz fragmentos do processo
histórico, narrados pelos próprios quilombolas, acerca da constituição de
Ivaporunduva e descreve como a comunidade tem se articulado para enfrentar
questões políticas, sociais e econômicas que permitam avanços do desenvolvimento
local. Concluiu-se que as relações que os quilombolas de Ivaporunduva mantêm com
outras organizações sociais e o modo como se articulam em defesa de seu território
são ações que os constituem como sujeitos de sua história junto com o outro, e essas
práticas são compreendidas como práticas educativas.
Palavras-Chave: Quilombo – Território – Organização Social
ABSTRACT
This study, in text, aims to characterize the life of the Black Agroforestry
Community Quilombo Ivaporunduva, it is located in Vale Ribeira, São Paulo State,
focusing historical evolution and social and territorial organization of this population
inserted in the rural context, in conditions of underdevelopment, with regard to
access or difficulty of access to social rights. With elements that characterize
ethnographic research brings fragments of the historical process, narrated by their
own, about the constitution of Ivaporunduva and describes how the community has
been articulated to confront the political, social and economic questions that allow
advances of local development. It was concluded that the relations of maroon of
Ivaporunduva keep with other social organizations and how they articulate in defense
their territory are actions that constitute them as subjects of their history along
with the other and these practices are understood as educational practices.
Keywords: Quilombo - Territory - Social Organization
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O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNICA
É assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como
somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão.
É impossível falar sobre uma única história sem falar sobre poder.Há uma
palavra, na tribo Igbo, que eu lembro sempre, eu penso sobre a estrutura de
poder do mundo, e a palavra é “nkali”. É um substantivo que livremente se
traduz: “ser maior do que o outro.”
Como nossos mundos econômico e político, história também são definidas pelo
principio de “nkali”. Como são contadas, quem as conta quando e quantas
histórias são contadas, tudo realmente depende do poder.
Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de
fazê-la a história definitiva daquela
Pessoa
O poeta palestino Mourid Barghouti escreve, que se você quer destruir uma
pessoa, o jeito mais simples é contar sua historia, e começar com “em segundo
lugar”.
Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação
colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente.
A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que
eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história
tornar-se a única história.
A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua
dignidade.Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada
difícil.Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos
semelhantes.
Histórias importam.
Histórias tem sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas história
podem ser usadas para humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um
povo. Mas história também podem reparar essa dignidade perdida.
[...] Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca
há apenas uma história, sobre nenhum lugar, nos reconquistamos um tipo de
paraíso.
CHIMAMANDA ADICHIE
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...........................................................................................................................14
A Vida .............................................................................................................................................15
A Proposta..................................................................................................................................... 27
Primeiro Texto. VIM DE LONGE, VOU MAIS LONGE..................................................... 44
Breve histórico do desenvolvimento capitalista....................................................................47
Formação da População Negra no Brasil...................................................................................51
Relações entre a sociedade escravocrata e a população negra escravizada..................52
População Negra escravizada: rurais e urbanas.....................................................................57
Revoltas e Rebeliões.....................................................................................................................59
Conceituação e Histórico de Quilombo....................................................................................61
Palmares..........................................................................................................................................66
Zumbi - O Mártir da abolição da escravatura do Brasil e Patrono Cívico da negritude
brasileira..........................................................................................................................................71
Abolição...........................................................................................................................................73
Referências Bibliográficas........................................................................................................ 79
11
Segundo Texto. QUILOMBO DE IVAPORUNDUVA: LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA,
ATIVIDADES E CONFLITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E
POLÍTICOS................................................................................................................................... 81
Conflitos econômicos e sociais e políticos...............................................................................89
Referências Bibliográficas........................................................................................................101
Terceiro Texto. COMUNIDADE, TERRITÓRIO E MODOS DE VIDA.........................102
Tradição Oral no Quilombo de Ivaporunduva........................................................................112
Referências Bibliográficas........................................................................................................123
Quarto Texto. “SOU NASCIDO E CRIADO AQUI: QUE AS PESSOAS, TANTO
BRANCO QUANTO PRETO, CONHEÇA A HISTÓRIA DESSE
POVO”............................................................................................................................................124
Isolamento....................................................................................................................................134
A Transição e o Incômodo.........................................................................................................142
As Contradições...........................................................................................................................156
Referências Bibliográficas........................................................................................................164
Quinto Texto. “EU ACHO QUE DÁ PARA VIVER AQUI”...............................................166
O Trabalho no Quilombo de Ivaporunduva.............................................................................171
Referências Bibliográficas........................................................................................................189
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................190
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APRESENTAÇÃO
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A Vida
Nasci no bairro Monte Alegre, na cidade de Piracicaba, estado de São Paulo – uma vila
ocupada pelos trabalhadores da usina de açúcar e fábrica de papel1, em cuja linha de
produção meu pai, que era operário, trabalhou até a aposentadoria. Apesar do baixo
salário, meu pai garantia a alimentação dos cinco filhos e minha mãe trabalhava como
diarista (passando e lavando roupa) para complementar a renda.
Em 1981, após a aposentadoria, foi necessário sairmos da casa em que morávamos, que
estava cedida pela fábrica durante os 25 anos trabalhados. Aos meus nove anos de
idade, mudamos para um bairro periférico na zona oeste de Piracicaba, uma das três
localidades periféricas habitadas majoritariamente pela população negra. Brinco
sempre dizendo que morávamos no “centro” da Vila Cristina, rodeado por cinco pontos
de ocupação irregular, que, assim, iniciaram processos de formação de favelas.
A localidade é ainda caracterizada por péssimas condições de moradia, precariedade
de saneamento básico e segurança, com alto índice de periculosidade decorrente da
marginalização, descaso e abandono dos moradores da comunidade referida.
Presenciei e convivi com o desemprego, miséria, assassinatos, drogas, tráficos,
prostituição e abuso de poder de policiais e autoridades políticas. Considerando a
história da população negra no Brasil, o racismo institucionalizado faz com que os
policiais, invés de promoverem a segurança dos moradores, sejam por eles temidos,
devido a atitudes que denotam preconceito racial, tais como blitz policiais com foco
nos jovens afrodescendentes, por serem estes mais vulneráveis. Em contrapartida, as
autoridades políticas que têm o papel de promover o bem-estar do indivíduo, como
assegurar os direitos constitucionais, mascaram suas responsabilidades com ações
assistencialistas pontuais, geralmente em época de eleição.
Estudei em escolas públicas do bairro onde, em consequência da realidade
socioeconômica e cultural brasileira, a expectativa dos alunos em relação ao futuro
1 Refinadora Paulista e Álcool S/A Paulista e Refinadora Paulista S/A Celulose e Papel
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era e ainda é baixa. Reconheço a importância da instituição escolar para a população,
porém ela não consegue abarcar as inúmeras demandas que são de competência de
outros órgãos.
Uma das formas de socialização da família nesse bairro foi o encaminhamento dos
filhos para o contexto da fé evangélica e de seus princípios, os quais foram relevantes
na nossa criação. Porém, a igreja que eu frequentava, especificamente, era
acentuadamente conservadora e limitadora, portanto alienante2, principalmente no
que se refere às questões sociais, econômicas, políticas, de gênero e raça. O
silenciamento dessas questões não promove transformações sociais no sentido de
ultrapassar os limites, tampouco o desenvolvimento do senso crítico para provocar
mudanças e/ou a emancipação dos indivíduos.
Nesse contexto, tivemos dois trágicos e inevitáveis acontecimentos: a perda, por
assassinato, de dois irmãos num período de seis meses. Essa história não é a que eu
gostaria de contar, mas penso que tem relevância compartilhar uma realidade que é
vivenciada pela maioria da comunidade negra; acontecimentos da vida concreta e que
devem fazer parte dos estudos na Academia que, via de regra, pensa a educação
ocidentalizada, modelada e padronizada, por vezes abordando apenas tangencialmente
tais questões (raciais, sociais, econômicas) em função da invisibilidade ou do
silenciamento frente à estrutura de classes da sociedade capitalista, desde sua fase
inicial.
No ano de 1999, diante da necessidade de um projeto que fizesse sentido na vida de
um grupo de jovens negros/as3 na periferia da zona oeste de Piracicaba, foi criado o
Coral Yahwéh, composto por 25 integrantes negros/as, que, além de cantar, passa a
trabalhar com o resgate da identidade negra e com a possibilidade de mudança
2 Utilizo, aqui, o conceito de alienação dado por Marx, ou seja, ação pela qual um indivíduo se torna ou
permanece alheio ao resultado ou produto de sua própria atividade e à atividade ela mesma; à natureza
na qual vive, bem como a outros seres humanos e a si mesmo. (BOTTOMORE, T. Dicionário do
Pensamento Marxista Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.5). 3 O objetivo é de não incorrer no preconceito de gênero supostamente contido na regra gramatical em
que o masculino inclui tanto o masculino como o feminino. Quando uso os substantivos no masculino
refere-se a ambos os gêneros
15
transformadora na comunidade, em relação aos jovens expostos às desvantagens da
desigualdade social, política e econômica. O objetivo inicial do grupo era o
fortalecimento da identidade e da autoestima dos próprios membros, considerando
que alguns dos jovens estavam inseridos num contexto de situação de risco e
vulnerabilidade social. Até então o grupo não tinha alcançado uma consciência crítica
sobre o sistema no qual estava inserido, para questionar e propor mudanças.
Em 02 de julho de 2001, o Coral Yahwéh fez uma participação cultural, no I Simpósio
de Educação Inclusão Afrodescendência de Piracicaba, realizado pelo Grupo de
Educação da “Sociedade Beneficente 13 de Maio” e por lideranças negras de
Piracicaba. O objetivo desse evento foi apresentar e discutir as desvantagens e
possibilidades da população negra nos vários segmentos da sociedade: política,
mercado de trabalho, educação, saúde, cultura etc. O simpósio contou com a
participação de pesquisadores/as, representantes de ONG – Organizações não
Governamentais sem fins lucrativos e representantes do setor privado.4
A partir desse evento, o Coral Yahwéh começa a ser identificado como um dos
projetos sociais e populares que genuinamente nasce de um movimento contrário e de
enfrentamento, propondo mudanças à comunidade: vinte e cinco jovens, saindo da
inviabilidade da periferia e tornando-se protagonistas, pela referência positiva, para
outros grupos. Representantes do grupo de Educação passaram a frequentar nossos
encontros, com propostas de discussão de mudanças, por meio do acesso à educação
de nível superior. E o coral caminha na direção de buscar compreender o universo em
que seus integrantes estavam inseridos.
4 Palestrantes do I Simpósio de Educação Inclusão Afrodescendência de Piracicaba: Izildinha B.
Nogueira (USP e Instituto Psique AMMA – Tema: Complexos, Traumas e Bloqueios Psíquicos como
barreira ao desenvolvimento pessoal e social; Ricardo Henriques (Instituto IPEA no Rio de Janeiro e
Universidade Federal Fluminense) – Tema: Exclusão, Afrodescendência e Educação; Representante da
Fundação Palmares – Tema: Educação para cidadania plena; Profª. Dra. Eliane Cavalleiro – Tema:
Requisitos de uma educação traumatizante; Profº Noedi Monteiro – Tema: Afrodescendência no Brasil e
Piracicaba; Dra. Berenice Kikuchi (Associação Anemia Falciforme de São Paulo) – Tema: Educação,
Exclusão e Saúde; Dr. Cláudio Oliveira (CENA-USP) – Tema: Educação, Exclusão e Ciências Exatas.
16
Em 2001, ano da Mobilização contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata e da Conferência Mundial realizada na África do Sul, na cidade
de Durban, promovida pela ONU (Organização das Nações Unidas), ocorreu uma
articulação tanto em nível nacional como internacional (da qual o Brasil fez parte). A
intenção era preparar lideranças da comunidade negra para encaminhamentos de
propostas de políticas reparatórias, ou seja, as chamadas Ações Afirmativas. O Coral
participou, junto com o GT de Educação de Piracicaba, das aberturas de vários
simpósios, conferências e encontros que ocorreram em São Paulo e região durante
aquele ano.
Nesse movimento, a participação do grupo junto aos pesquisadores e estudiosos sobre
a temática da população negra teve relevância no aspecto de desvelar a nossa
realidade. Fortalecia em nós uma resistência contra o status quo que tem sido
mantido com o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, o que manteve as
desvantagens quanto ao acesso à escolarização e ao mercado de trabalho, visando à
manutenção de classes, limitando e delimitando o espaço de ascensão da população
negra.
Interessante notar que as estatísticas do IPEA – Instituto de Estatística Econômica
Aplicada – e do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – apontam
que, mesmo após 121 anos da abolição da população negra no Brasil, ocorrida em 1888,
as desvantagens do grupo negro só têm aumentado em relação ao grupo branco, o que
se reflete nos índices de desenvolvimento humano.
No início do ano de 2002, setenta por cento dos coralistas do Yahwéh iniciam curso na
graduação; inclusive eu, que sou fruto desse movimento de lideranças negras de
Piracicaba. Nesse mesmo ano, ingressei no curso de Licenciatura Habilitação em
Química na UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba. Em meados de julho de
2002, participei da construção do Núcleo AUÊ – Programa de Apoio aos Estudantes
Universitários/as Negros/as de Piracicaba, que realizou encontros, conferências e
grupo de estudos, visando ao suporte à juventude negra universitária, à compreensão
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das consequências do mito da democracia racial brasileira, à invisibilidade dos
problemas do racismo e seus impactos para a população negra e para a sociedade em
geral.
Em agosto de 2003, com base no censo étnico-racial, foi realizado pelo AUÊ-
Levantamento Estatístico e Mapeamento dos/as Universitários/as Negros/as
(LEMUN) nas Universidades e Faculdades públicas e privadas do município de
Piracicaba, que teve como objetivo o mapeamento dos universitários com base na
identidade étnico-racial, origem familiar, trajetória e rendimento escolar, e a
compreensão deles sobre a política de ação afirmativa, cota para a população negra na
universidade e no mercado de trabalho.
Os resultados desse levantamento5 evidenciaram a restrita presença das pessoas
negras nos cursos superiores e a grande maioria está nos cursos considerados, por
alguns setores da sociedade, de menos prestígio e menor possibilidade de ascensão
social. A comunidade estudantil universitária negra era oriunda de escolas públicas,
apresentavam defasagem educacional, a renda familiar e o nível de escolaridade dos
pais eram mais baixos que dos pais dos universitários brancos. Havia um alto índice de
evasão dos cursos por falta de recursos financeiros que subsidiassem as mensalidades
e os custos mínimos para a manutenção dos cursos de tempo integral.
O grupo mobilizou-se no sentido de promover ações emergentes e encaminhar
propostas que tornassem viáveis a inserção e a permanência de alunos
afrodescendentes na universidade. Tais ações, por meio de um programa de apoio,
5Levantamento realizado durante o mês de agosto de 2003 pelo grupo AUÊ-LEMUM, com o objetivo de
quantificar os universitários negros/as em cinco Instituições Educacionais: três universidades e duas
faculdades do município de Piracicaba. Aponto a quantidade geral de alunos matriculados, e especifico o
número total de universitários/as negros/as matriculados: (1) Faculdade de Odontologia - FOP-
UNICAMP - 320 matriculados - zero aluno/a negro/a; (2) Escola Superior de Agricultura Luiz de
Queiroz, Universidade de São Paulo - USP - 1639 matriculados - seis negros/as; (3) Escola de Engenharia
de Piracicaba - EEP de 1877 matriculados, 11 negros/as; (4) Universidade Metodista de Piracicaba-
UNIMEP de 9590 matriculados, 278 negros/as; (5) Faculdade Integrada Maria Imaculada – FMI, 322
matriculados, 24 negros/as.
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buscavam a tomada de consciência dos determinantes da baixa autoestima, da
defasagem educacional, do despreparo profissional e psicológico ocasionados pelos
estigmas e estereótipos atribuídos socialmente.
Em 2004, ainda como graduanda, participei do Núcleo de Estudos e Programas em
Educação Popular (NEPEP/UNIMEP) na Universidade Metodista de Piracicaba, a
convite da Profa. Dra. Márcia Aparecida Lima Vieira - Coordenação Do ALFASOL. O
núcleo propiciava um espaço de leituras, estudos e discussões de temas relacionados à
Educação Popular de Jovens e Adultos, Alfabetização, entre outros. Pautávamos no
referencial teórico de Paulo Freire e autores que discutiam educação libertária e
emancipadora. Num segundo momento, tive a oportunidade de ser bolsista e realizar
estudos, escrever artigos e apresentá-los em simpósios, encontros e congressos
sobre as nossas práticas pedagógicas, a partir da extensão universitária no projeto
ALFASOL-Alfabetização Solidária Nacional, sob a Coordenação Pedagógica da
professora Aurora Joly Penna Mariotti e Coordenação Geral do professor Francisco
Negrini Romero. Na função de coordenação setorial do programa, realizava o
acompanhamento e formação continuada nas visitas mensais em municípios do Estado
do Piauí e Espírito Santo, junto aos alfabetizadores, coordenadores e monitores do
ALFASOL. Eram momentos de reflexões e discussões de textos variados acerca dos
temas: Alfabetização, Educação e Sociedade e Práticas Pedagógicas.
O contexto social nos municípios do Estado do Piauí e do Espírito Santo, nos quais
desenvolvi o trabalho de avaliação e acompanhamento pedagógico, é notadamente
marcado pela pobreza e marginalização social, principalmente referindo-se aos
municípios do Piauí. Foi possível a troca de conhecimento e a discussão sobre a
importância do saber popular. No contato com a realidade social das comunidades do
nordeste, tive consciência de que alfabetizandos e alfabetizadores estavam inseridos
num contexto social, e são dotados de história, cultura e de um modo próprio de viver.
Em 2005, participei do grupo de estudo vinculado à Faculdade de Ciências Humanas da
UNIMEP, denominado África e Educação Popular, sob a Orientação e Coordenação da
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Profa. Dra. Márcia Aparecida Lima Vieira, realizando leitura analítica das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira. Os estudos culminaram em apresentação de artigo
na 3ª Mostra Acadêmica com o tema: “Uma reflexão sobre as implicações das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira” e palestra para o Curso de Letras da
mesma universidade com o tema: “A Educação e as Relações Étnico-Raciais”.
Ainda no ano de 2006, tive os primeiros contatos com as Comunidades Tradicionais
Quilombolas do Vale do Ribeira, em especial com o Quilombo de Ivaporunduva, que me
recebeu e me acolheu como participante das suas lutas e conquistas. Na primeira
visita, vivenciei importantes discussões e decisões sobre o projeto da construção de
uma ponte que provavelmente mudará a vida da comunidade, processo que abordarei
mais adiante.
Em 2007, com a presença constante na comunidade de Ivaporunduva, deparei-me com
uma das preocupações das mulheres negras quilombolas rurais, partilhada pelas
mulheres urbanas, conforme pudemos comprovar em outros estudos6, qual seja,
atender ao padrão de beleza imposto pela mídia por meio da televisão (novelas,
comerciais, filmes etc.), revistas e outros meios de comunicação que assessoram o
interesse das empresas de incentivarem o consumo, sem compromisso com a
responsabilidade social.
Observamos nesses estudos que as mulheres negras contemporâneas rurais e urbanas
carregam as implicações psicológicas decorrentes da dominação do colonizador.
Segundo Gomes, “Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que,
historicamente, ensina o negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso
6Em maio de 2010 – Oficina: Beleza na cabeça com saúde integral: a naturalidade da beleza negra – III-
Encontro do ministério AA- Afro Cristão 2010 – 3ª região – Tema: Gênero e Negritude. Em agosto de
2008, participei da Oficina Educação, Identidade, Autoestima e Responsabilidade Social com mulheres
negras de São Paulo. Parceria com a liderança feminina do ministério AA-Afro-Ações Afirmativas na
Faculdade Metodista localizada no bairro Liberdade – São Paulo-SP. Em julho/2006 e janeiro/2007,
ministrei, como facilitadora da Oficina, o tema: Identidade, Autoestima e Responsabilidade Social com
mulheres – Espaço BIA – Beleza Identidade e Autoestima – Piracicaba.
20
negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros.” (2003; p.
171). Esses estereótipos, historicamente construídos, podem ser desconstruídos. A
educação é uma forte aliada para a efetivação da valorização da diversidade cultural,
por meio de discussões acerca das distorções históricas, às quais a população negra
esteve submetida em função da discriminação racial, bem como no resgate da
contribuição da população africana e descendentes, para as áreas social, econômica e
política, na História do Brasil. É fundamental o entendimento de que a pessoa negra
não foi escrava, mas escravizada, explicitando assim a condição do opressor, ou do
colonizador. Gomes atesta que:
O negro é o ponto de referência para a construção de identidade do
branco. Juntamente com o índio, o negro concretiza a nossa
sociedade, a nossa cultura, as nossas relações sociais, políticas e
econômica. A educação pode desenvolver uma pedagogia corporal que
destaque a riqueza da cultura negra inscrita no corpo, nas técnicas
corporais, nos estilos de penteados e nas vestimentas, as quais
também são transmitidas oralmente. São aprendizados da infância e
das adolescências. O corpo negro pode ser tomado como símbolo de
beleza, e não de inferioridade. Ele pode ser visto como corpo
guerreiro, belo, atuante presente na história do negro da diáspora, e
não como o corpo do escravo, servil, doente e acorrentado como
lamentavelmente nos é apresentado em muitos manuais didáticos do
ensino fundamental.
(GOMES, 2003, p. 6-7).
Em julho de 2007, realizei, em parceria com a liderança feminina do Quilombo de
Ivaporunduva no município de Eldorado-SP, uma Oficina de Penteados para as
mulheres da comunidade, tendo como fio condutor a temática: Educação, Identidade e
Autoestima da Mulher Quilombola. Essa oficina foi coordenada por três educadoras,
sendo duas pedagogas e uma química7. Utilizamos o tema Educação entendendo que,
objetivando o trabalho primordial da promoção cultural e construindo estratégias de
autoestima, estaríamos contemplando as diferenças grupais, desenvolvendo, assim, as
potencialidades humanas e culturais existentes no grupo de mulheres negras
quilombolas. Realizar esse trabalho teve uma função política, visto que negritude é
7 Educadoras: Viviane Luiz e Tânia Aparecida Américo – Pedagogas, e Márcia Cristina Américo –
licenciada em Química.
21
posicionamento. O corpo e o cabelo expressam a identidade étnica, valores e
posicionamento político-ideológico.
Nesse mesmo ano participei da construção coletiva da entidade CEPCE – Centro de
Educação, Profissionalização e Cultura Empreendedora, uma organização não
governamental sem fins lucrativos, junto com lideranças da Comunidade Quilombo de
Ivaporunduva. Minha participação na comunidade foi mais intensa, passei a trabalhar
na implantação e na regularização do projeto Educação, que envolveu a implantação
dos cursos de graduação - EAD (Educação a Distância) da Universidade Metodista de
São Paulo. Após a implantação do CEPCE e do Polo EAD-Eldorado, criamos o núcleo
PAUQ – Programa de Apoio aos Universitários Quilombolas do Vale do Ribeira, de cuja
gestão sou colaboradora. O PAUQ tem como foco criar meios de valorizar os
conhecimentos tradicionais quilombolas, contribuindo com a formação profissional e a
interação entre pessoas das áreas rurais e urbanas. Objetiva-se evitar o êxodo rural.
A partir de então, não deixei de participar da vida desta comunidade.
O discurso do colonizador ainda prevalece. Um dos posicionamentos políticos da
comunidade negra é o de não abrir mão de sua própria cultura e identidade étnica.
Essa população é provida de conhecimento sobre sua formação e as transformações
do seu processo histórico. No entanto, durante muito tempo a história da formação
do povo brasileiro foi descrita por uma única visão, em função de uma classe e seus
interesses e valores, atrelada à relação de poder. Essa história “única” criou
estereótipos e subjugou a dignidade, história, cultura e identidade de um povo. Ainda
nos dias atuais, encontramos histórias em que comunidade negra não se reconhece na
própria história, problema ocasionado pela história única.
Por muito tempo o população negra observou a história de seus antepassados contada
de forma equivocada, e a escravização da população negra e indígena foi sendo
naturalizada. Esses povos têm sido retratados nas seguintes condições: amarrados,
presos em cordas, submissos e espancados e, quando muito, o povo africano vem
associado a uma conotação deturpada e exótica da África e dos africanos. Começar a
22
história da população negra brasileira pela sua origem, sem dúvida alguma é dar o
direito à infância negra e à população brasileira de conhecer o outro lado da história,
que mostre tanto a luta e a resistência desse povo ao sistema escravista, como suas
contribuições à produção cultural, artística e econômica do nosso país. Falar da
origem desse povo é considerar as várias áfricas e suas riquezas, corrigindo a
homogeneidade e unificação – forma como os manuais didáticos apresentam o
continente Africano.
Nesta pesquisa, o meu olhar se voltará às descrições e narrativas da história vista
debaixo, ou seja, a história narrada a partir do ponto de vista de homens e mulheres
que compõem a população negra brasileira – a comunidade quilombola de Ivaporunduva.
O que faço neste trabalho, portanto, é transitar pelos espaços da comunidade
Ivaporunduva e escrever a sua história a partir das narrativas dos membros que a
compõem, e que fazem parte integrante de um contexto fundamental da história da
população negra brasileira. Busco articular a discussão dessa comunidade de forma
mais ampla, por essa comunidade se inserir na luta e reivindicações do movimento
negro brasileiro, e, de certa forma, dar origem a ela.
Sharpe (1992, p. 40) em seu ensaio, A História Vista “de baixo”, pontua que “O
interesse na história social e econômica mais ampla desenvolveu-se no século
dezenove, mas o principal tema da história continuou sendo a revelação das opiniões
políticas da elite.” O conceito da história vista “de baixo”8 tem sido utilizado durante
as duas ultimas décadas por historiadores de diferentes países, posição ideológica,
tradições intelectuais também diversas; abrangendo variados períodos, países e
8 A história vista “de baixo” teve origem com os historiadores marxistas ingleses “que escreveram
dentro da tradição marxista ou tradicional da história britânica do trabalho”. (SHARPE, 1992, p. 44). A
fundamentação histórica para essa linha de pensamento foi descrita por Eric Hobsbawm (tornou-se
aparente, em torno de 1789), que ele chamou de “história das pessoas comuns”, declarando que a história
das pessoas comuns como um campo especial de estudo, “tem início com a história dos movimentos sociais
de massa no século dezoito [...]. Para o marxista, ou comumente, o socialista, o interesse na história das
pessoas comuns desenvolveu-se com o crescimento do movimento trabalhista.” (SHARPE, 1992, p. 45).
23
histórias. Na formação desse conceito, foram buscadas as contribuições da tecnologia
e das teorias antropológicas, porém
A importância da história vista “de baixo” é mais profunda do que
apenas propiciar aos historiadores uma oportunidade para mostrar
que eles podem ser imaginativos e inovadores. Ela proporciona
também um meio para reintegrar sua própria história aos grupos
sociais que podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham
conhecimento da existência de sua história.
(Ibid, p. 59).
Ao trazer a história de vida da comunidade tradicional quilombola nesses textos, a
partir de narrativas das pessoas que a compõem, pretendo apresentar as
“experiências históricas” de “homens e mulheres, frequentemente ignorada(s),
tacitamente aceita(s) ou mencionada(s) apenas de passagem na principal corrente
histórica.” (SHARPE, 1992, p. 41). Esse mesmo autor menciona que grande parte da
história ensinada nas universidades, em toda parte do mundo, “ainda considera a
experiência da massa do povo no passado como inacessível ou sem importância; não a
considera um problema histórico; ou, no máximo, considera as pessoas comuns como
„um dos problemas com que o governo tinha que lidar‟.” (Ibid, p. 41).
A história vista “de baixo” é compreendida por dois pontos fundamentais: primeiro,
“servir como um corretivo à história da elite”, e o segundo ponto é que sua abordagem
alternativa “abre possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão histórica, de
uma fusão da história de experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos
tipos mais tradicionais de história.” (Ibid, p. 53-54).
A partir da história vista “de baixo”, comprova-se que as histórias de certos setores
da população, nesse caso os marginalizados, inferiorizados pelo sistema econômico,
político e social no qual estão inseridos, podem ser descobertas. Para trazer à tona
essas histórias, podem ser utilizados documentos oficiais, semioficiais, oriundos da
oralidade, na construção das memórias para :
24
[...] Prover aqueles que a(s) escrevem ou lêem de um sentido de
identidade, de um sentido de sua origem. Em um nível mais amplo, este
pode tomar a forma do papel da história, embora fazendo parte da
cultura nacional, na formação de uma identidade nacional. A história
vista “de baixo” pode desempenhar um papel importante neste
processo, recordando-nos que nossa identidade não foi estruturada
apenas por monarcas, primeiros-ministros ou generais.
(SHARPE, 1992, p. 60).
Reconstruir a história da Comunidade Tradicional Quilombo de Ivaporunduva a partir
das memórias dos quilombolas sobre seu passado, seu trabalho, seus confrontos e
resistências para permanecerem no território, sua organização familiar, seus modos
de pensar, suas críticas em relação ao sistema econômico, político e social no qual
foram e continuam inseridos, implica em não dissociar todo esse contexto, da
estrutura e poder social mais amplos. Sharpe (1992) conclui que “a história vista “de
baixo” deve ser ajustada às concepções mais amplas da história” e ao se “ignorar esse
ponto, ao se tratar da história vista “de baixo” ou de qualquer tipo de história social,
é arriscar a emergência de uma intensa fragmentação da escrita da história.” (, p.54).
***
25
A proposta
Em 2008, novos rumos na vida: sem me afastar da Comunidade de Ivaporunduva,
comecei a me preparar para cursar o mestrado. O desejo era conhecer a história
dessa população com a qual tenho convivido desde 2006, agora de um modo
sistematizado, o que implicou em cada volta ao quilombo, buscar outros estudos.
Delinear os objetivos destes textos colocou-me diante dos impasses da escolha. O
estudo que tenho realizado sobre a história da construção e fixação da população
negra escravizada no Brasil aponta que essa população e gerações pós-abolição,
estavam em desvantagens com relação aos outros grupos sociais. Ao fim do regime
escravocrata, pós-abolição, a sociedade entra em transição, submetida às relações
sociais de produção do capitalismo, porém, a estrutura social racista só contribuiu
para aumentar as desvantagens sociais, políticas e econômicas historicamente
acumuladas. Nos dias atuais, os estudos baseados nos levantamentos do IBGE -
Instituto Brasileiro de Geografia e Estáticas e pesquisas do IPEA - Instituto de
Estatística Econômica Aplicada 9 apontam que a população negra vive um ciclo vicioso
de acúmulos de desvantagens.
Alguns pressupostos foram se delineando durante os estudos. A tentativa de nomeá-
los mostrou que as relações entre eles são indissociáveis: a) o processo de
aquilombamento é histórico e dialético, há um ciclo de desvantagens acumulado
durante o processo histórico da formação da população negra brasileira, e é nesse
contexto que a comunidade negra rural agroflorestal Quilombo de Ivaporunduva está
inserida; b) continuar a viver no território supõe constantes embates, no passado com
o poder dos fazendeiros, atualmente com os grandes empreendimentos de barragens
para as hidroelétricas e c) a luta pela sobrevivência e pela posse da terra, por meio da
9 Ler em: THEODORO, Mário (Org.), JACCOUD, Luciana; OSÓRIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei.
As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição.Brasília IPEA-
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2008. HENRIQUES, Ricardo. "Desigualdade Racial no Brasil:
Evolução das Condições de Vida na Década de 90". Texto para Discussão, nº 807, Brasília, IPEA, 2001.
HASENBALG, Carlos e SILVA, Nelson do Valle. Relações Raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de
Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992.
26
participação no Movimento Nacional Quilombola e de outros movimentos sociais
rurais, assim como as relações que mantêm com outras organizações que os apoiam em
iniciativas e propostas de geração de renda e de desenvolvimento social e econômicos,
são processos educativos.
Assumo o termo “Educação” como um conceito amplo. Tomo os dizeres de Paiva (2011)
para justificar a inserção desses textos na esfera da Educação. Para o autor, a
educação ocorre nas relações com os outros, e é nessas relações que nós nos
constituímos, ocorrendo, assim, “o desenvolvimento do ser homem”. O outro entra nas
relações, “enquanto elemento constitutivo do ser do aprendiz, que é ser com”. E não
como “agente externo” (Ibid, p. 1). Assumo o termo educação no âmbito do
“desenvolvimento do ser homem”. O desenvolvimento não pode ser compreendido como
“objeto de uma instituição particular, mas consequência de todas as relações, de todo
tipo de relações.” (Ibid, p. 2).
As relações que os quilombolas mantêm com outras organizações sociais e suas ações
sociais, políticas e econômicas, compreendidas como luta pela sobrevivência, são
práticas que os coloca em contato com sua história e os constituem como sujeitos
dessa história junto com o outro, e são compreendidas como práticas educativas.
Paiva (2011) explica que “ao estar em contato com o outro ocorre uma transformação
do nosso eu.” (Ibid, p. 4). Nestes termos, educação tem que ser tomada como um
processo essencialmente vital, a vida se pondo através dos contatos. Defino a
educação como “aprendizagem da forma de ser” (Ibid, p. 3). Sendo assim, utilizo
educação neste texto como a “primeira e fundamentalmente, ato do
educando/aprendiz” (Ibid, p. 4) nas relações com o outro.
Meu convívio com a comunidade negra quilombola de Ivaporunduva me permitiu colher
relatos de fontes genuínas, os descendentes de Africanos no Brasil, que a partir do
cultivo das memórias de seu povo, ao revisitarem a história do passado, vão
reconstruindo uma identidade. Pude, então, enquanto pesquisadora, evidenciar a
história da formação dessa população negra, que me remeteu ao movimento negro
27
brasileiro e me possibilitou entender o papel desses quilombolas e a relações que eles
têm estabelecido com a discussão mais ampla desse movimento social. Busquei nas
obras de autores negros e não negros, compreender a realidade das relações entre
etnias em nosso país. Portanto, a relevância desta pesquisa na esfera da educação,
como diz a autora Petronilha:
Se configura como interesse e esforço para travar conhecimento, na
perspectiva dos afro-brasileiros, da problemática sócio-econômica ,
étnico-racial que enfrentam, bem como de sua história, a partir das
vivências que têm sofrido e construído ao longo da participação dos
antepassados escravizados e de seus descendentes na vida da
sociedade brasileira.
(PETRONILHA, 2001, p. 165).
O que faço junto aos quilombolas é voltar ao passado e trazê-los como parte da
população brasileira, como um dos povos que constituem a nossa nação. Entendo que:
Ignorar a história dos povos indígenas, do povo negro, é estudar de
forma incompleta a história brasileira (...). Se a história ensinada na
escola souber contemplar também a vida vivida no dia-a-dia dos
grupos menosprezados pela sociedade, então estaremos ensinando e
aprendendo a história brasileira integralmente realizada.
(Ibid, p. 161).
Consciente de que não daria conta de abordar todos os aspectos com a profundidade
que merecem, fiz uma escolha entre muitas outras que poderiam ser realizadas.
Correndo o risco de fragmentar uma discussão muito mais ampla sobre a realidade da
população negra e da comunidade de Ivaporunduva, optei por começar. Todo começo
já é continuidade – não somos os primeiros a dizer, outros disseram. E ao final de um
texto há muito mais. Vamos ocupando lugares e construindo saberes, em um processo
histórico que é, portanto, movimento contínuo.
Ao me propor estudar, o que me parecia tão familiar se torna estranho. E é preciso
entranhar para que nasçam questões. Se por um lado, estar entre os quilombolas,
participar com eles de muitas das atividades que lhes pertencem, por tradição, não
me faz um deles, porque ocupamos lugares diferentes; por outro, reconheço que não é
28
possível um afastamento tal, que me isente da subjetividade no momento em que me
proponho a escrever sobre a vida deles, sobre sua história e suas lutas. Além disso,
reconheço que é impossível parar o tempo, portanto, qualquer texto representa
sempre um recorte no tempo, no espaço, na história, e nunca uma verdade estagnada.
O passado se encontra no presente que já é o começo do futuro.
O autor Vagner Gonçalves da Silva (2000), no seu livro, resultado de sua tese de
doutorado, “O antropólogo e sua Magia”, desenvolveu pesquisas etnográficas em
comunidades religiosas afro-brasileiras, a partir da observação participante. Ele
descreve seus diálogos com vários antropólogos que o auxiliam na reflexão sobre o
olhar deles para além do que foi registrado em suas etnografias, nas pesquisas de
campo realizadas e concluídas: os caminhos que percorreram as experiências e
expectativas frustradas que se dão no trabalho etnográfico
Sendo necessário o distanciamento para transformar as experiências e memórias
compartilhadas em “dados objetivos” ou “depoimentos citáveis”, o autor aponta que no
trabalho de campo é fundamental ao pesquisador, mais do que se “aproximar” para
entender o discurso dos interlocutores ou observar suas ações, “distanciar-se” para
estranhá-los e também se estranhar para ter uma visão externa, do “ponto de vista
antropológico” (Ibid, p. 71, aspas nossas). Não somos só observadores. Somos
observados.
Na observação participante é importante considerar, enfim, que o
antropólogo é observado também pelo grupo, que geralmente procura
“socializá-lo” ensinando-lhe os códigos de conduta e a forma mais
adequada, do ponto de vista do grupo, de realizar dessa participação e
observação.
(Ibid, p. 71, aspas do autor).
Não me pareceu coerente escrever esta dissertação cujos capítulos tivessem que ser
lidos rigorosamente em uma sequência para que o leitor tivesse acesso aos meus
estudos, com certeza, inconclusos. Mas é preciso que cada um dos textos responda a
uma questão: o que não responde a nenhuma questão é desprovido de sentido, ensina
29
Bakhtin (1992). Mas ele não fala de perguntas cujas respostas estejam prontas e
definitivas; para esse autor, não há possibilidade de estabelecer de uma vez por
todas, todos os sentidos da vida, na temporalidade.
No Primeiro Texto apresento o Quilombo de Ivaporunduva: os conflitos econômicos e
sociopolíticos em defesa do território para a manutenção da vida. O Segundo Texto
aborda os modos de vida dos membros dessa comunidade e as relações que se dão no
cotidiano. Já o Terceiro Texto traz fragmentos da história dessa comunidade nas
vozes dos próprios quilombolas. Os quilombolas do Quilombo de Ivaporunduva estão,
neste momento histórico, em fase de reorganização social, política e econômica e o
Quarto Texto refere-se a esse processo. O Quinto e último Texto é uma revisão
bibliográfica - tenho consciência de que ainda restrita e incompleta - da formação da
população negra no Brasil. De certo que muitos autores importantes deixaram de ser
contemplados.
***
A forma de organização dos quilombolas que podemos apreender através da história e
dos conflitos por nós captados na convivência com essa comunidade, diz respeito às
relações sociais construídas. E, para o pensamento marxista, esta materialidade
histórica pode ser compreendida a partir das análises empreendidas sobre uma
categoria considerada central: o trabalho como atividade vital - tipo de atividade
exercida, ou seja, a atividade pela qual a vida é garantida.
Um primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de
toda história (...) [é] que os homens devem estar em condições de
poder viver a fim de “fazer a história”. Mas, para viver, é necessário,
antes de mais nada, beber, comer, ter um teto onde se abrigar,
vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios
que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria
vida material; trata-se de um fato histórico; de uma condição
fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como há
milhares de anos, executar, dia a dia, hora a hora, a fim de manter os
homens vivos.
(MARX; ENGELS, 1984, p. 33).
30
A contribuição do Método Materialismo Histórico e Dialético, na tarefa de
compreender o modo como os quilombolas dessa comunidade significam as suas
relações com o trabalho e a renda nas condições concretas de vida social, para o
desenvolvimento local, diz respeito à necessidade de descobrir, nos fenômenos, na
realidade empírica o elemento mais simples (o empírico) para chegar à categoria
síntese de múltiplas determinações (concreto pensado). Significa que é possível
apreender a realidade, partindo das mais simples manifestações, debruçamo-nos
sobre elas e elaborarmos abstrações.
Para reconhecer o movimento da história de uma comunidade quilombola, seus
conflitos e problemas teóricos e práticos, foi e é necessário manter contato regular e
bem próximo. O que faço é acompanhar de perto suas atividades, absorver valores e
sentimentos, observando, registrando e videogravando o que fazem e dizem, em uma
atitude que pretende ser de quem lá está, mas de lá não é.
Em sua obra “Nos bastidores da pesquisa de Campo”, o antropólogo Gonçalves da Silva
(1997) esclarece que:
[...] na antropologia brasileira, o fato de os antropólogos pesquisarem
grupos pertencentes a sua própria sociedade coloca questões
específicas para a relação entre pesquisador e pesquisado, pois se,
por um lado, „pesquisamos a nós mesmos‟, por outro, não se pode
esquecer a distância que muitas vezes separa as camadas
intelectualizadas dos grupos socialmente excluídos que a antropologia
tem estudado: índios, negros, populações rurais10.
Acima falei dos impasses da escolha. Foi preciso que fosse previsto um tempo – que o
programa exige; um modo de olhar para o problema – as questões teóricas; a opção
por um caminho que eu não desejava que fosse outro - a pesquisa de campo, estar
na/com a comunidade; realizar observações menos espontâneas e mais planejadas;
organizar entrevistas, providenciar os instrumentos das observações e das
10 SILVA, Vagner Gonçalves. Nos Bastidores da Pesquisa de Campo, 1997. In: NAU-Núcleo de
Antropologia Urbana da USP. Disponível em: <http://www.n-a-u.org/nomedoarquivo.html>. Acesso em: 08
ago. 2010.
31
entrevistas: o caderno de campo, o vídeo e audiogravadas e transcritas, as
fotografias, as visitas com horas marcadas; a participação atenta nos eventos, festas,
comemorações, manifestações políticas. Não se trata de simplesmente olhar e
descrever – não basta, mas destacar aspectos do que se olha, prestar atenção para
captar as contradições, as relações, o movimento de acordo com o objetivo da
pesquisa.
As observações e entrevistas a membros de comunidades quilombolas apontaram a
significação e resignificação dos fatos históricos que constituíram a comunidade. A
convivência nela e com ela possibilitou o desenvolvimento das anotações em caderno
de campo e entrevistas com as lideranças da comunidade, famílias e jovens, políticos,
sobre os indícios dos significados que seus membros dão às relações em suas
condições concretas de vida social, para identificar: a) as relações políticas,
econômicas e sociais na qual a população quilombola está inserida.
Nas transcrições das entrevistas foram mantidos os nomes originais dos quilombolas
entrevistados, uma vez obtida a autorização para divulgação. Procurou-se, também,
transcrever as falas com a maior fidelidade possível aos modos de falar das pessoas.
Trazer para os textos a história da formação do quilombo de Ivaporunduva, a partir
das vozes e memórias dos próprios quilombolas, exigiu recorrer às contribuições de
Marcuschi (2001) no que ele diz sobre a retextualização, que se refere, no caso deste
texto, à passagem da oralidade para a escrita. O autor coloca que: “para se dizer de
outro modo, em outra modalidade ou em outro gênero, o que foi dito ou escrito por
alguém, devo inevitavelmente compreender o que esse alguém disse ou quis dizer”
(Ibid, p. 47), caso contrário, afirma o autor, é provável ocorrer muitos problemas no
plano da coerência no processo de retextualização. Para ele, a retextualização não é
um processo mecânico nem natural. Refere-se a um trabalho complexo “que interfere
tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem
compreendidos da relação oralidade-escrita” (Ibid, p. 46).
32
De acordo com o autor, a proposta deste trabalho não seria propor “uma passagem de
um texto supostamente „descontrolado e caótico‟ (o texto falado) para outro
„controlado e bem-formatado‟ (o texto escrito).” (Ibid, p. 47, grifos do autor). Ele
pontua que o texto oral se encontra em ordem em sua formulação, sem problemas de
compreensão, e na passagem do texto oral para a escrita ele receberá interferências
“mais ou menos acentuadas”, porém não significa que a fala está desorganizada.
“Portanto, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é
a passagem de uma ordem para outra ordem.“ (Ibid, p. 47, itálico do autor).
Para se utilizar a retextualização com maior fidelidade possível aos modos de falar,
Marcuschi (2001) nos ensina que “entre oralidade e escrita não existe diferenças
quanto aos conhecimentos que podem ser por elas transmitidos ou gerados” (Ibid, p.
47). Portanto, ao entrarmos em contato com a população quilombola de Ivaporunduva e
suas expressões culturais, foi fundamental a compreensão de que a “fala e escrita não
são dois modos qualitativamente diversos de conhecer ou dar a conhecer.” (Ibid, p.
47).
Toda transcrição é uma espécie de adaptação, e, nesse processo, ocorrem perdas,
como a perda ou substituição de palavras. Os aspectos gestuais e mímicos também
desaparecem. Existem, porém, transcrições que podem ser consideradas um primeiro
formato de retextualização, ao se observar que introduzem pontuações e eliminam
hesitações, apresentam interferência “que podemos designar como uma idealização da
língua pelo molde da escrita. Por trás desta atitude acha-se a ideia de que não se
escreve como se pronuncia.” (Ibid, p. 52).
Ainda esclarecendo do que se trata a retextualização, Marcuschi (2001) coloca que “a
transcodificação é a passagem do sonoro para o gráfico e a adaptação já é uma
transformação na perspectiva de uma das modalidades e que aqui chamaremos
sistematicamente de retextualização.” (Ibid, p. 52, grifo do autor).
33
O fluxo dos processos de retextualização adotado nesta pesquisa passa por um
conjunto de ações, considerado pelo autor como Fluxo de ações11, que inicia na
produção oral original – texto base perpassando pela simples transcrição – texto
transcodificado (aqui ainda não ocorre uma transformação com base em operações
mais complexas), que é chamado de retextualização num segundo momento. A
transcrição não deve interferir na produção, deve evitar pontuação, inserções,
qualquer tipo de eliminação ou idealização até onde for possível, por outro lado,
deveriam ser indicados os movimentos do corpo, as marcas do sorriso etc.. Sabemos,
porém, que nesse processo ocorrem várias mudanças, incluindo as perdas em relação
ao texto original. Ao se chegar à produção escrita – texto final - as transformações
deverão ter menos interferência possível em todo o processo. A compreensão está
situada na passagem da representação oral para a transcodificação, que repercute
diretamente no texto final. O autor alerta que “o fato é que sempre transcrevemos
uma compreensão situada, pois não existe uma compreensão natural” (Ibid, p. 73).
Para os leitores interessados em ter acesso à fala original dos quilombolas foram
selecionados trechos vídeo e audiogravados, que se encontram em um CD ROM anexo
a este texto. Com isso, tento diminuir as perdas que sem dúvida ocorreram no
processo de retextualização, entre elas: os silêncios, as marcas do sorriso, os gestos
e os movimentos corporais dos entrevistados que não aparecem nos textos.
Para realizar o trabalho de campo permaneci no Quilombo de Ivaporunduva entre
Março de 2009 e Julho de 2010, por oito períodos de tempo, aproximadamente 15
dias em cada um deles. Para compor os registros e posteriormente organizá-los foram
realizadas visitas a 15 famílias, com as quais realizei entrevistas semiestruturadas12.
Todas foram gravadas em vídeo ou audiogravadas e transcritas. Fiz uma escolha para
tais entrevistas:
11 Ver o Fluxo de Processos de retextualização no Diagrama 1: Fluxo das ações (MARCUSCHI, 2001,
p.72) 12 Foram entrevistados: as três pessoas mais idosas; dois líderes mais antigos; cinco líderes jovens; sete
famílias, no total de 22 entrevistas.
34
a) as pessoas mais velhas do quilombo que participaram por mais tempo da história
dele e das relações que os constituíram no passado – constituição da subjetividade na
situação concreta de vida no quilombo. Destaco aqui Dona Arcília Antônia da Silva, a
senhora mais velha do quilombo, agora com 92 anos, moradora do Corgo Grande;
b) os dois líderes mais antigos do Quilombo de Ivaporunduva: atuantes e influentes
nas discussões das políticas nacional, regional e local. Iniciaram na militância e
discussão sobre a temática quilombola no Brasil desde anos 8013. A escolha por essas
duas lideranças foi no sentido de entender a história em movimento da formação
política social da comunidade até os dias atuais;
c) os líderes jovens14, membros descendentes dos principais troncos familiares que
originaram Ivaporunduva. São eles: Furquim, Pupo, Marinho, Pedroso, Meira, Rodrigues
e Moraes. As entrevistas com a liderança jovem tiveram o objetivo de captar indícios
das relações históricas estabelecidas no território, e que continuam em movimento.
Por exemplo, os significados que os jovens atribuem ao trabalho para geração de
renda no território. Essa é uma questão em constante transformação.
Algumas entrevistas foram realizadas nas roças, quando então acompanhei o dia de
trabalho de algumas famílias. Outras entrevistas foram feitas nas casas dos
moradores. Trago relatos de uma palestra proferida pelos quilombolas para
professores visitantes, que foi seguida por um debate no programa do
Ecoetnoturismo que é uma atividade de base comunitária desenvolvida no quilombo
13 Benedito Alves - Liderança Quilombola; Vice Presidente do Comitê de Bacia Geográfica do Rio Ribeira
de Iguape, representantes do MAB e do Comitê Nacional Quilombola, José Rodrigues – Liderança
Quilombola; Vereador Municipal de Eldorado-SP e Representante do MAB e do Comitê Nacional
Quilombo. 14Oriel Rodrigues Moraes – Liderança quilombola - Conselheiro - Conselho Nacional Desenvolvimento Rural
Sustentável– (CONDRAF), Membro - Conselho Curador da Fundação Cultural Palmares; Membro – Comitê
Permanente de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF); Membro Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas - (CONAQ), Denildo Rodrigues – Liderança
quilombola- representante da direção do MAB e do Comitê Nacional Quilombo, as famílias que vivem na
comunidade, (idosos, adultos e jovens), Laudessandro Marinho Silva – Associação Quilombo de
Ivaporunduva; Ivonete Alves da Silva Pupo - Liderança feminina – Associação Quilombo de Ivaporunduva,
Cristiano Furquim- Associação Quilombo de Ivaporunduva
35
como alternativa de geração de renda à população quilombola, essa atividade é voltada
para grupos específicos de turistas: alunos de escola pública e privada, professores
etc. Em uma vivência de um grupo de professores na comunidade foi gravada a
palestra do Benedito Alves – Ditão e Denildo Rodrigues de Moraes – Bico, que
relataram a história e modo de vida dos quilombola nessa região. Esses relatos
estarão principalmente no Texto “Sou nascido e criado Aqui”.
Alguns membros da comunidade foram entrevistados apenas uma vez. Com outras
pessoas realizei mais de uma entrevista. No momento das transcrições das
entrevistas com os mais jovens, percebi a necessidade de buscar novamente
informações com as pessoas mais idosas da família, no sentido de acrescentar
informações ou mesmo, entendê-las melhor.
Na minha convivência com a comunidade Quilombo de Ivaporunduva por um período de
aproximadamente quatro anos, foi possível constituir relações de mútua confiança e
de certa intimidade, por meio de um processo lento e gradativo com as famílias –
muito antes do início desta etapa de hoje, como pesquisadora: nas festas, nas
reuniões de famílias, nos encontros religiosos, na praça no final da tarde, nos passeios
e caminhadas coletivas na mata e cachoeiras. Participação também em algumas das
ações externas conjuntas com movimentos sociais: discussões e reivindicações em
defesa do território das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, contra as
desapropriações de suas terras para dar lugar às barragens das hidroelétricas
visando a produção de energia para gerar riqueza às indústrias15.
Estar entre eles e com eles supõe um olhar mais cauteloso, um respeito ainda maior no
que se refere às tradições e regras formais e informais estabelecidas. Não ser
15 As manifestações ocorreram em diferentes lugares tais quais: no Ministério Público de São Paulo (27
de julho de 2007); no Ginásio Poli Esportivo Municipal Félix Balois Pupo - Eldorado-SP (09 de julho
2007); na Rodovia Régis Bittencourt-BR-116 (18/08/2009). Essas manifestações acontecem com
comunidades ameaçadas pelas barragens (caiçaras, indígenas, quilombolas e ribeirinhos) e organizações
que apóiam o movimento social, sendo eles: Partido dos Trabalhadores, Movimento dos Sem Terra,
Movimento Social Quilombola, EACONE - Equipe de Articulação das Comunidades Negras, MOAB -
Movimento dos Ameaçados por Barragens do Vale do Ribeira, MAB - Movimento dos Atingidos por
Barragens, ISA - Instituto Socioambiental, e Ambientalistas.
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estranha à comunidade, pelo contrário, manter com ela uma relação mais próxima, foi
elemento constitutivo do caminho percorrido; dessa proximidade dependeu o tipo de
relação entre a pesquisadora e os moradores da comunidade.
A cerimônia de passagem com a liderança é o ponto de partida para tudo. Digo tudo,
porque sem autorização da liderança quem não é quilombola não consegue realizar
nada dentro da comunidade (não tira foto, não faz entrevista, não tem travessia - de
barco do Rio Ribeira de Iguape que dá acesso ao quilombo) e muito menos consegue
realizar pesquisas no ambiente interno do Quilombo de Ivaporunduva.
Contar o tempo de espera de pesquisadores que lá chegaram de surpresa para que
conseguissem uma conversa rápida de quinze minutos com uma liderança quilombola
era um dos entretenimentos principalmente da pequena juventude universitária da
comunidade. Lá, num dos bancos da praça da Vila, universitários observavam e
cronometravam o tempo de espera e a ansiedade do grupo de pesquisa para conseguir
um contato com as lideranças quilombolas e compor a pesquisa de campo, na grande
maioria dos casos, uma tentativa frustrada. Não conseguimos ser observadores sem
sermos observados. Não há um olhar sem ser olhado. “A compreensão não é lugar de
transparência e saturação do sentido, mas lugar de mediação. Compreende-se sempre
sob a forma do processo da palavra, reconstruindo, traduzindo o texto do outro”
(AMORIN, 2004, p. 48). Eu também sou o outro das pessoas com que convivo na
comunidade Ivaporanduva.
Observei um momento de grande frustração e desânimo de um grupo pesquisadores
que após seis horas de viagem, chegando ao Quilombo de Ivaporunduva lá não
encontraram a liderança. E afinal, contar com um retorno para aprovação da pesquisa
de campo ou para conseguir a entrevista não é algo nada animador16.
16 Não existe uma estrutura dentro da comunidade, com restaurantes, pensão, postos de cartões
telefônicos, espaço de acesso à Internet, farmácia, lojas, supermercados etc.. A política da pousada é
focada no atendimento de grupos numerosos, agendados com antecedência. A viagem até o quilombo é
cansativa, dependendo da distância do lugar de origem.
37
A autorização para realizar minha pesquisa foi concedida em Março de 2009 pelo
coordenador e vice-coordenador daquela gestão da Associação Quilombo de
Ivaporunduva: Ditão e Zé Rodrigues. Foram eles que deram início à discussão sobre a
posse legal do território do Quilombo de Ivaporunduva e dos quilombos do Vale do
Ribeira. Poder ouvir deles: “Você é da casa”, foi para mim uma declaração de quase
pertencimento à comunidade – de permissão. Olhar e ser olhado, presente. Senti
nessas palavras o peso da responsabilidade.
Surgiu novo desafio no momento em que me apresentei como pesquisadora: ter que me
distanciar de toda relação construída para uma reaproximação das pessoas e famílias
que são minhas amigas, que me recebem em suas casas e dividem os seus espaços e
intimidades comigo, na hora de dormir e de comer ao redor da taipa para escutar
muitas histórias e estórias. A mesma intimidade, mútua e recíproca, com que alguns
quilombolas foram recebidos em minha casa, em várias ocasiões.
Ao voltar para o quilombo em outro momento, agora como pesquisadora, para analisar
as relações que as pessoas quilombolas estabelecem com o território, fui tomada por
certo sentimento de culpa e forte constrangimento, pois eles haviam compartilhado
suas intimidades a uma pessoa amiga e não a uma pesquisadora, e eu sei muito bem
como eles se sentem quando são tratados como objetos/sujeitos de pesquisa - eu não
gosto de ser tratado como rato de laboratório – me disseram um dia. E afinal, de
fato, o assédio de pesquisadores só tem aumentado nos últimos anos.
Pareceu-me mais ético elaborar o tema abertamente com a liderança e as famílias, de
forma a deixar clara a convergência entre o interesse de meu trabalho e o da para
com o interesse da comunidade Quilombo de Ivaporunduva, que é: tornar a causa da
luta quilombola conhecida e respeitada no meio acadêmico.
As entrevistas são, na maioria das vezes, realizadas com as lideranças da associação
do Quilombo ou por indicação deles ou de outras pessoas responsáveis mais
diretamente pelas áreas específicas tais como: barragem, posse de terra, turismo,
agricultura comercial, artesanato, educação, saúde etc. A formação de lideranças se
38
dá no processo ao longo tempo aproveitando a vocação política de cada um na
interação com as atividades sociais e políticas, internas e externas, como os
movimentos pela defesa ao território.
Na verdade, esse projeto de formação de liderança, isso daí é um
processo, quando você vai pra um encontro assim, não vai só uma
pessoa tipo esses encontros essas caminhadas não vai só os adultos,
vai pai, vai mãe, vai criança, criança de colo, vai todo mundo, então ali
você está aprendendo e vai passando qual objetivo daquilo que a gente
está fazendo, a criança que está ali está sabendo o que está fazendo.
LAUDESSANDRO MARINHO DA SILVA – 26 anos. Palestra
realizada em 16 de janeiro de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
A liderança na comunidade Quilombo de Ivaporunduva é organizada, hierarquizada e
constituída pela dinâmica das relações entre seus membros. É bastante perceptível o
respeito das pessoas da comunidade com essa ordem hierárquica, principalmente em
momentos decisórios. O coordenador e vice-coordenador da Associação Quilombo de
Ivaporunduva respondem, junto à mesa diretora e esta junto à Assembléia, pelas
interferências que podem e não podem ocorrer na comunidade. Não é possível realizar
qualquer atividade sem o consentimento deles. Somos observadores e observados.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Paulo: Musa, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
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2001, p. 5.
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Revista Educação e Pesquisa, v. 29, n. 1. São Paulo, 2003.
GOMES, Nilma L. Cultura negra e educação. In: Revista Brasileira de Educação, n.
23, Rio de Janeiro, 2003.
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ed. São Paulo: Editora Cortez, 2001.
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Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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brasileiras. In: Kabenguele Munanga (org.). 2ª ed. Superando o racismo na escola.
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, Brasília, 2005.
40
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história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992.
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Núcleo de Antropologia Urbana da USP. Disponível via WWW no URL http://www.n-
a-u.org/nomedoarquivo.html. Capturado em 08/08/2010
SILVA, Vagner G. O antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e Texto
Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religiões Afro-Brasileiras. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
41
O presente estudo, em forma de textos, pretende caracterizar a
vida dessa comunidade, sua evolução histórica e as suas práticas
sociais, captando e organizando os dados sobre a história e a
organização social/territorial desse quilombo. A tentativa é a de,
estando presente na comunidade e com a comunidade, buscar
indícios dos significados que seus membros dão às relações em suas
condições concretas de vida social. Tais indícios nos aproximam de
ações que essa população desenvolve por meio das lideranças ali
estabelecidas. Considero-as educativas.
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PRIMEIRO TEXTO
VIM DE LONGE, VOU MAIS LONGE
43
Vim de longe vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta
Pra junto a gente cobrar
No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar
Noite e dia vem de longe
Branco e preto a trabalhar
E o dono senhor de tudo
Sentado mandando dar
E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar
Marinheiro, marinheiro
Quero ver você no mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei governar
Madeira de dar em doido
Vai descer até quebrar
É a volta do cipó de arueira
No lombo de quem mandou dar
Vim de longo vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta
Pra junto a gente cobrar
No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar
Noite e dia vem de longe
Branco e preto a trabalhar
E o dono senhor de tudo
Sentado mandando dar
E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar
Marinheiro, marinheiro
Quero ver você no mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei governar
Madeira de dar em doido
Vai descer até quebrar
É a volta do cipó de arueira
No lombo de quem mandou dar
Arueira - Geraldo Vandré (1967)
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O objetivo deste texto é a discussão mesmo de forma breve, desde a origem do
capitalismo europeu que subordinou o continente africano e o americano ao
escravismo, passando pelas características da escravidão oficializada no Brasil.
Passamos pela sociedade escravocrata e a relação de poder entre os senhores e a
população negra escravizada, apresentamos as estratégias de resistência negra por
meio das revoltas e rebeliões da população africana escravizada e seus descendentes.
O ponto fundamental da nossa apresentação é o processo de resistência negra que se
deu através do aquilombamento durante a escravidão até o evento da abolição,
período no qual o sistema econômico brasileiro está saindo do escravismo e
subordinando-se ao capitalismo monopolista e imperialista.
***
Uma questão pode ser levantada pelo leitor: por que um texto sobre o
desenvolvimento histórico do capitalismo e a formação da população negra no Brasil?
Por, pelo menos três motivos que, nesse momento, consigo vislumbrar. O primeiro diz
respeito à minha intenção de que esta dissertação seja material de estudo de alunos
das escolas brasileiras que não conhecem a história da formação das comunidades
quilombolas – um motivo pedagógico. O segundo motivo é a responsabilidade assumida
de entregar esta dissertação aos líderes da comunidade estudada e, a
contextualização histórica é sempre lembrada por eles – um motivo ético. O ultimo e
terceiro motivo refere-se à contextualização histórica – exigência do método,
portanto. Perceber que viemos de longe pode nos levar mais longe ainda,
parafraseando Geraldo Vandré.
***
45
Inicialmente, podemos dizer que o Quilombo de Ivaporunduva vive um dilema: tratar a
questão do desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, a manutenção das
tradições quilombolas. Dito de outra forma, num exemplo atual, o Quilombo se
beneficia da construção da Ponte sobre o Rio Ribeira de Iguape, que auxiliará no
escoamento de sua produção agrícola e, concomitantemente, é ameaçado pela
construção de quatro barragens (Hidrelétricas de Tijuco Alto, Funil, Batatal e Itaoca
ao longo do Rio Ribeira de Iguape), processos complexos de reconhecimento oficial e
posse da terra, pautada na Constituição Federal de 1988, nos artigos 68, 215 e 21617.
Essas questões são específicas do Quilombo Ivaporonduva? É possível encontrar
experiências semelhantes em outros locais? É possível tirar lições da história que
auxiliem uma compreensão mais ampla do processo deste Quilombo, com suas
especificidades? Para responder essa questão, acreditamos que um breve histórico do
desenvolvimento da sociedade capitalista nos auxilie.
Breve histórico do desenvolvimento capitalista
O modo de produção capitalista desenvolveu-se no interior do sistema feudal através
da chamada acumulação primitiva de capitais, “processo histórico que dissocia o
trabalhador dos meios de produção” (MARX, 2002, p. 828). Para que o capitalismo se
desenvolvesse foi preciso que houvesse um proprietário dos meios de produção
disposto a comprar a força de trabalho livre. Liberdade que se refere à libertação
dos vínculos com outras formas de produção seja escravista, servil ou mesmo artesã e
camponesa. A economia política burguesa afirma que esse processo se deu pela
capacidade de trabalho e de economia que parte da sociedade foi capaz, enquanto que
17 Artigo 68: “Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Garante
também os direitos culturais, definindo como responsabilidade do Estado a proteção das
“manifestações das culturas populares, indígenas e afrodescendentes”. O artigo 215 prevê que “o
Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O Artigo 216, estabelece: “Ficam
tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos”. Estes artigos representam avanço na História do país, no que se refere aos aspectos de
reconhecimento dos direitos culturais (art. 215 e 216) e direitos fundiários (art. 68) (MALCHER,
2006, p. 17).
46
a maior parte, desprovida dessa qualidade, ficou relegada a pobreza. Mas, a história
desse processo “foi inscrita a sangue e fogo nos anais da humanidade” (Ibid, p. 829),
Com o desenvolvimento do mercado mundial, por volta do século XIV e XV, a demanda
por produtos europeus cresceu sem que a capacidade de produção artesanal fosse
suficiente para supri-la. A burguesia mercantil estava diante de um dilema. Ou
destravava as amarras do mercantilismo ou definhar-se-ia. As revoluções burguesas
foram as respostas que essa contradição produziu, colocando em marcha o
desenvolvimento de novas forças produtivas. A burguesia comercial, que já detinha um
poder econômico considerável, passou a controlar o poder político e a liberar todas as
travas para o pleno desenvolvimento capitalista. Tomando como exemplo a Inglaterra,
Marx (2002) descreve o processo histórico original dessa acumulação primitiva.
Desde o fim do século XIV a servidão havia desaparecido enquanto relação social
predominante, preponderando no campo a pequena propriedade camponesa. Além da
expropriação das propriedades da Igreja Católica, dos senhores feudais e das
respectivas monarquias a nova massa de trabalhadores camponeses, servos e artesãos
precisavam se transformar em trabalhadores livres. A expulsão dos camponeses das
terras e o seu cercamento para pastagens para ovelhas, tendo a lã como principal
matéria prima da nascente indústria têxtil, foi o primeiro passo; a proibição das
corporações de ofício dos artesãos completou o processo, que durou alguns séculos.
Na medida em que esses trabalhadores eram expulsos do campo e chegavam às
cidades, eram recebidos com inúmeras leis que puniam a vadiagem, a desocupação e a
pobreza. Eram responsabilizados individualmente por um processo social que não
detinham o controle, como podemos ver nas palavras de Bernard de Mandeville,
filósofo e inspirador de Adam Smith.
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Nos países onde a propriedade está bem protegida é mais fácil viver
sem dinheiro do que sem os pobres, pois quem faria o trabalho? [...]
Se não se deve deixar os pobres morrerem de fome, não se lhes deve
dar coisa alguma que lhes permita economizarem. Se esporadicamente
um indivíduo, à custa do trabalho e de privações, se eleva acima das
condições em que nasceu, ninguém lhe deve criar obstáculos: é
inegável que, para todo o indivíduo, para toda a família, o mais sábio é
praticar a frugalidade; mas é interesse de todas as nações ricas que a
maior parte dos pobres nunca fique desocupada e que, ao mesmo
tempo, gaste sempre tudo o que ganha. [...] Os que ganham sua vida
com o trabalho cotidiano só têm como estímulo, para prestar seus
serviços, suas necessidades. Por isso, é prudente mitigá-las, mas seria
loucura curá-las. A única coisa que pode tornar ativo o trabalhador é
um salário moderado. Um salário demasiadamente pequeno, segundo
temperamento do trabalhador, deprime-o ou desespera-o; um
demasiadamente grande torna-o insolente e preguiçoso. [...] Numa
nação livre onde se proíbe a escravatura, a riqueza mais segura é
constituída por um grande número de pobres laboriosos. Constituem
fonte inesgotável para o recrutamento da marinha e do exército; sem
eles, nada se poderia fruir nem poderiam ser explorados os produtos
de um país. Para tornar feliz a sociedade [isto é, os que não
trabalham] e para que o povo viva contente, mesmo em condições
miseráveis, é necessário que a maioria permaneça ignorante e pobre.
O saber aumenta e multiplica nossos desejos, e, quanto menos um
homem deseje, mais fácil é satisfazer suas necessidades.
(MANDEVILLE, 1728, p. 212, 213 e 328 apud MARX, 2002, p. 717-
718).
Nesse momento, e nessas condições descritas acima, esses trabalhadores, livres de
seus meios de produção de suas sobrevivências e proprietários somente de suas
forças de trabalho estavam à disposição da burguesia, agora, proprietária exclusiva
de novos meios de produção, a nascente indústria.
Não basta que haja, de um lado, condições de trabalho sob a forma de
capital e, de outro, seres humanos que nada têm para vender além de
sua força de trabalho. Tampouco basta forçá-los a se venderem
livremente. Ao progredir a produção capitalista, desenvolve-se uma
classe trabalhadora que, por educação, tradição e costume, aceita as
exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes
(Ibid, 2002, p. 851).
Dessa forma, todo um processo histórico naturaliza-se e a burguesia encontra
condições de explicar sua expropriação violenta como “direito natural” a propriedade,
a liberdade como valor supremo, a democracia (censitária, evidentemente) como
48
melhor forma de organização política, a igualdade perante as leis que elas mesmas
formulam, e, não menos importante, o indivíduo como centro do universo.
Evidentemente que esse processo produziu contradições, a nova classe operária
reage, organizando-se cada vez mais, seja através das associações de ajuda mútua,
nas greves, nos sindicatos, nos partidos políticos operários, chegando até mesmo a
uma organização internacional como foi a Associação Internacional dos Trabalhadores
– AIT.
Outro elemento fundamental da acumulação primitiva de capitais foi o processo de
colonização exercido diretamente pela Inglaterra, para ficarmos no exemplo
utilizado, como também pela dominação política sobre outros países. O Império
português foi um modelo disso, na medida em que ficou preso à velha concepção de
que a riqueza era sinônimo de acumulação de metais, não desenvolvendo a produção
real de riqueza através da exploração do trabalho, se submeteu ao desenvolvimento
capitalista inglês. A colonização foi fundamental sob diversos aspectos, propiciando o
controle sobre fontes de matérias primas, mercado consumidor e, através do domínio
sobre o continente africano, do mercado de tráfico negreiro.
A colonização do território brasileiro pelo Império português foi parte desse
processo. A escravização de indígenas e de africanos atendeu as necessidades da
acumulação primitiva de capitais, fornecendo produtos como pau-brasil, açúcar,
metais. Depois que a produção capitalista européia ampliou-se, houve necessidade de
transformar as fontes de matérias primas em mercados consumidores, o que
provocou, com todo apoio inglês, os processos de independência na América Latina.
De forma distinta, o capitalismo provocou, no Brasil e na África, um processo
semelhante ao europeu, a completa transformação da vida social dos povos originários,
que de distintas formas foram submetidos à dinâmica do capital. Os povos indígenas
no Brasil, após a escravização, foram praticamente dizimados, restando apenas
aldeias dispersas lutando por seus territórios. Os africanos foram submetidos a mais
cruel das conseqüências do desenvolvimento capitalista, tendo seu território
49
partilhado pelas potências européias, suas riquezas saqueadas e seu povo submetido a
inúmeras formas de exploração. No Brasil, a resistência indígena e negra a esse
processo se deu sob diversas formas, como por exemplo, no caso dos africanos, na
organização dos quilombos, que veremos a seguir.
Sociedade escravocrata e a população negra escravizada
Os muitos conflitos gerados no processo de formação e consolidação social, política e
econômica das comunidades tradicionais quilombolas na região do Vale do Ribeira –
considerada região de APA (Área de Preservação Ambiental), os quilombos da média
Ribeira (Eldorado e Iporanga) no Estado de São Paulo – vêm se arrastando há séculos
por causa das decisões políticas e econômicas tanto do século XVI – sistema colonial
escravista – quanto do século XXI – com o modelo econômico capitalista.
O autor Clóvis Moura, em suas obras Os quilombos e a rebelião negra (1981), A
História do Negro no Brasil e Resistência ao Escravismo (1993), faz uma abordagem
sobre da população negra escravizada na formação do regime escravista, e as
diversas resistências e revoltas em forma de aquilombamento, evidenciando uma
tendência política e estratégica por meio da tática de guerrilhas envolvidas com
outros movimentos políticos. Define a resistência negra como a negação do regime
escravocrata. A presença histórica da população negra no Brasil acompanhou e
participou ativamente da evolução histórica e social da nação brasileira. Trazidos nas
condições de pessoas escravizadas, os grupos étnicos africanos, durante quatro
séculos, construíram a economia e riqueza do Brasil que estava em desenvolvimento.
No entanto, a população negra africana e seus descendentes foram sumariamente
“excluídos” da divisão dessa riqueza18 uma vez que as pessoas negras escravizadas
eram vistas e reconhecidas apenas como força produtiva, sem participação dos
benefícios oriundos da produção.
Esta pesquisa não tem pretensão de aprofundar a temática da escravização indígena
18 MOURA, Clovis. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 7.
50
na colonização do Brasil, o que demandaria uma extensa discussão, no entanto penso
ser relevante esclarecer que as comunidades indígenas passaram por processos
semelhantes ao da população africana no que se refere à colonização e dominação
européia19. Nesse caso, devemos considerar que a resistência bem como a refutação
da naturalização das formas de exploração de um povo sobre outro no regime de
escravização não se descola do processo histórico dessas comunidades.
Martinez (1992), em seu livro “África Brasil: Uma ponte para o Atlântico” discute que,
na exploração da África e das Américas, foram introduzidas trocas comerciais,
religiões monoteístas e também a escravização dos índios e dos africanos.
Conseqüências disso foram o extermínio físico e a desfiguração da cultura e da
história desses povos. Esse sistema, que perdurou por três séculos, foi justificado
por meio das teorias racistas, classificatórias e hierarquizadas que definiam os povos
africanos e indígenas como: primitivos, bárbaros, pagãos e de raças inferiores. A
religião – o cristianismo e o islamismo – com as ações evangelizadoras, tratavam de
justificar a escravização dos indígenas e africanos que deveriam receber a ação
civilizatória das “raças brancas superiores”.
Para facilitar essa obra escravizadora e justificar todos os crimes
inerentes ao estatuto servil, os colonizadores esforçavam-se para
apagar da memória dos cativos as tradições, os valores, as crenças;
reprimiam com ferocidade as manifestações de identidade própria,
até o uso dos nomes pessoais e dos idiomas tribais, incutiam à força
de castigos corporais e de sermões jesuíticos os dogmas de
obediência ao senhor. No auge dessa degradação humana, os próprios
cristãos chegaram a negar que os índios americanos e os negros
africanos pertencessem à condição humana e tivessem uma alma igual
à deles.
(Ibid, p. 15)
Segundo Peregalli (1988), o maior número de pessoas negras escravizadas ficava
concentrado na região do nordeste do Brasil, mas o tráfico negreiro se generalizou
em quase todo o território brasileiro. Os escravos movimentaram engenhos, fazendas,
19 A história da escravização indígena e a colonização do Brasil poderão ser pesquisadas em: RIBEIRO,
Berta Gleizer. O Índio na Historia do Brasil. São Paulo: Ed. Global, 1983.
51
minas, cidades, plantações e fábricas. Com a força do trabalho deles e de seus
descendentes, a riqueza do país foi constituída por quase quatrocentos anos. “Os
escravos são as mãos e os pés do senhor de Engenho, porque sem eles no Brasil não é
possível conservar e aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente [...]” (SILVA e
BASTOS apud ANTONIL, 1979, p. 38).
Discutir e entender a sociedade que estava sendo construída no Brasil Colônia nos dá
condições para compreender que a escravização negra a partir do tráfico comercial
de negreiros passa a ser um negócio que movimentaria a economia gerando lucro para
África, Brasil e Europa, envolvendo agentes da costa da África tais como:
exportadores, armadores, transportadores, seguradores, importadores, atacadistas e
traficantes. A venda de escravos africanos era um negócio rentável. “[...] a escravidão
moderna foi a forma ideal que o capitalismo comercial encontrou para a exploração da
periferia, isto é, para a exploração das colônias. Logo, o escravismo moderno é um
escravismo capitalista” (SILVA e BASTOS, 1979, p. 144).
Desde o início da produção escravista, houve a resistência da população negra
escravizada. Diante disso, seria pertinente perguntar: por que então a escravização
negra no Brasil durou mais do que a indígena? Devemos considerar que as populações
negras do continente africano representavam, à época, um estoque populacional muito
maior do que a do Brasil. E, ao serem arrancados à força de suas comunidades e
transplantados “a ferros para outro continente, outras terras, águas, frutos, animais
todos desconhecidos, as pessoas negras escravizadas tinham muito menos, no início,
opções para fugir e para sobreviver” (POMAR, 2009, p. 32). Desse modo, para a
grande massa negra escravizada nesse território havia muito menos alternativas, pelo
menos no início de sua chegada nesse continente. Sobrava a alternativa de morrer ou
adaptar-se dentro das condições de vigilância, disciplina e coerção severas do sistema
escravista.20
A autora Kátia M. de Queirós Mattoso, no livro Ser Escravo no Brasil (1988), discute
20 Cf. POMAR, 2009, p.32.
52
as formas de organização política, econômica e social dos países do continente
africano que foram explorados pelo tráfico de escravos para o desenvolvimento das
Américas. “Do século XVI ao XIX, a população negra africana tornado mercadoria
indispensável para o Brasil não vem de um continente desorganizado, sem cultura, sem
tradição, sem passado, o cativo africano destinado a servir o desenvolvimento das
Américas remotas tem personalidade e história” (Ibid, p. 24). Apesar disso,
encontramos pensamento, conceitos e teorias – verbais e escritas – de
contemporâneos europeus contraditórias para justificar a escravidão desses que,
infelizmente, ainda são utilizados para legitimar a superioridade de um sobre o outro.
Em 1549, em São Vicente, desembarcou o primeiro contingente de pessoas negras
africanas escravizadas. D. João III concede aos colonos a autorização para a
importação de até 120 pessoas negras para suas propriedades21. Entre 1549 e 1850,
estima-se que mais 40% dos 15.000.000 de africanos escravizados na África foram
trazidos ao Brasil. O tráfico de pessoas negras africanas através do Atlântico, além
de ter sido um crime contra a humanidade, foi considerado também um dos grandes
empreendimentos comerciais e culturais que marcaram a formação do mundo moderno
e a criação de um sistema econômico mundial.
Associando a produção e articulação, o escravo africano foi a solução
ideal, do ponto de vista do capital mercantil europeu, para a questão
da mão-de-obra nas áreas coloniais. Mãos negras cortariam cana,
trabalhariam nos campos de algodão, produziriam tabaco, extrairiam
ouro, colheriam café, serviriam na Casa Grande, desempenhariam
tarefas nas cidades coloniais... nenhuma atividade seria sequer
pensada sem contar com as mãos negras dos escravos.
(PEREGALLI, 1988, p. 57).
O tráfico de homens e mulheres negras iniciava-se na própria África22 quando eram
21 Alguns historiadores apontam que antes dessa data já se encontravam negros/as no Brasil (MOURA,
1992, p. 7). 22 Os africanos trazidos ao Brasil vieram pela rota transatlântica, e as capturas ocorreram em povos de
três regiões geográficas: África ocidental, de onde foram trazidos homens e mulheres dos atuais
Senegal, Mali, Níger, Gana, Togo, Benim, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo
Verde, Guiné e Camarões; África centro-ocidental, envolvendo povos do Gabão, Angola, República do
53
caçados como animais, batizados e marcados a fogo com uma cruz no peito,
aprisionados, transformados em mercadorias e classificados nas alfândegas como
objeto de utilidade para pagamento de imposto e exportação. Amontoados em porões
de navios negreiros, eram enviados ao Brasil. Há uma estimativa de que a cada 200
pessoas negras embarcadas, 40 morriam durante a viagem23, devido às péssimas
condições do navio onde eram transportados. “Sangue, vômitos, água salgada, urina,
homens mortos, calor insuportável, escuridão, frio... este era o retrato de um navio
negreiro.” (PEREGALLI, 1988, p. 48).
Segundo esse mesmo autor, ao chegar aos portos brasileiros, as pessoas negras
africanas escravizadas eram colocadas em grandes barracões para engorda e, quando
considerados prontos, homens e mulheres eram expostos nus em praça pública para
avaliação e compra pelos senhores de engenho. Os sinais de depressão e apatia eram
solucionados momentaneamente com estimulantes à base de pimenta, gengibre e
tabaco ou eles eram forçados a dançar aparentando alegria durante avaliação do
exame físico na hora da venda. Os que não atendessem às ordens recebidas tinham
como castigos: socos, tapas, pontapés e ameaças de chicoteamento.
Os laços familiares e tribais eram desfeitos no momento da distribuição aos seus
novos donos. Negros e negras eram levados para os engenhos. Sua nova moradia
passava a ser a senzala, onde ficavam alojados, além de serem mudados os seus nomes
e sobrenomes. Eram marcados a fogo pela segunda vez com as iniciais dos nomes e
sobrenomes dos seus proprietários, o que facilitava o reconhecimento do vínculo de
propriedade e reapropriação no caso de fuga; eram acorrentados, castigados
fisicamente, restritos brutalmente em suas expressões culturais (religião, rituais,
canto, dança, alimento, ética etc.) e em sua língua, pois eram obrigados a aprender e a
se comunicar em língua portuguesa.
Nos domínios rurais, enfrentavam trabalhos exaustivos de até 16 horas por dia, sob
Congo, República Democrática do Congo (ex-Zaire) e República centro-africana, e África austral,
envolvendo povos de Moçambique, da África do Sul e da Namíbia. (MUNANGA, 2009, p. 86). 23 Cf. GENNARI, 2009, p.9.
54
violência contínua do chicote dos feitores; o tempo de sobrevivência das pessoas
negras após a chegada ao Brasil era de oito anos apenas. De cada 100 crianças que
nasciam vivas, 80 morriam. Das 20 sobreviventes, a chance de chegar à fase adulta
era inexistente. As crianças eram submetidas às mesmas condições de maus tratos
dos cativos da senzala, e a possibilidade de contraírem doenças que as levavam ao
óbito era muito grande. Gennari (2009) detalha os tratamentos recebidos pelos
escravizados quando estavam doentes:
Cativos doentes, cegos ou inválidos são forçados à mendicância tanto
para juntar dinheiro para seus senhores como para obter o próprio
sustento. Em caso de doença terminal, incapacidade total ou morte, são
jogados porta a fora para evitar que os seus amos tenham que arcar
com os gastos do funeral. No Rio de Janeiro, por exemplo, é comum
encontrar o cadáver de alguns escravos pelas ruas da cidade. Quando
isso acontece, um soldado se posiciona sobre ele com uma caixa na qual
recolhe a contribuição dos passantes e o corpo só é removido do local
quando nela se encontra a quantia suficiente para custear as despesas
do enterro.
(Ibid, p. 9). 24
Na senzala, a fome era uma regra e nunca uma exceção: a alimentação dependia das
regras dos proprietários. Alguns forneciam um pedaço de terra para que as pessoas
negras escravizadas trabalhassem aos domingos e, dali, extraíssem seus alimentos;
outros forneciam farinha e carne seca em pouquíssima quantidade em relação ao
número de cativos; não era concedido dia livre. Os considerados mais “generosos”
acrescentavam a comida e um dia livre por semana. Sem contar a reprodução em
24 A população negra escravizada tinha interesse em participar, no séc. XVIII, da Irmandade da Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos por causa da garantia de ser tratada com dignidade na cerimônia
fúnebre, uma vez que não a teve em vida. Muitos deles foram enterrados em covas rasas sendo
facilmente desenterrados por cachorros que espalhavam os ossos pelas ruas; corpos eram jogados ao rio
com uma pedra amarrada em torno do pescoço e ainda, no interior de São Paulo, encontravam-se corpos
em frente ao colégio religioso ou deixados nas ruas. As pessoas negras acreditavam que após a morte,
para penetrar no mundo dos seus ancestrais, era necessário cumprir com a cerimônia fúnebre dada pela
Irmandade. Esse descaso com os corpos após a morte era um assombro na vida da pessoa negra
escravizados, pois acreditavam que o desrespeito dos senhores na hora do enterro não lhes permitiria a
continuidade e o acesso às terras dos seus ancestrais. (QUINTÃO, 2009). Ver também: QUINTÃO,
Antonia Aparecida. Lá vêm os meus parentes: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em
Pernambuco (séc. XVIII). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2002 (p.73-108). Para pesquisar sobre
religiosidade tradicional africana ver em: SERRANO, Carlos, Maurício Waldman. Memórias D’Africa: A
temática Africana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007. Capítulo 4 A África Tradicional – A
religiosidade Tradicional (p. 136-145).
55
cativeiro, que era utilizada de forma empresarial nos Estados Unidos, e foi adotada
pelo sistema escravista no Brasil.25
Daí a resistência ao escravismo e a busca de liberdade que se dava por meio de
manifestações como incêndio nas plantações, agressão física aos senhores e feitores,
rebelando-se individual ou coletivamente, além de suicídios, assassinatos, revoltas e a
busca desesperada por liberdade através da fuga.
A resistência negra ocorria desde o navio negreiro, quando se jogavam no mar em
protesto à escravidão: tentavam o enforcamento com as próprias correntes, deixavam
de comer ou se entregavam à doença do banzo26, ou seja, depressão por nostalgia.
População Negra escravizada: rurais e urbanas
Os tipos de trabalhos exercidos pelas pessoas negras eram muitos. Não podemos nos
esquecer de que a relação entre os senhores e a pessoa negra escravizada se dava de
forma abusiva sem escrúpulo algum: como mercadoria, o/a negr/a poderia ser vendido,
alugado, penhorado e morto.
Escravos eram um patrimônio contabilizável, um ativo a ser explorado
ao máximo em busca de retorno. (...) todos que conseguissem adquirir
uma meia dúzia de escravos passavam a viver na mais completa
ociosidade, explorando os rendimentos do trabalho dos seus negros, e
a caminhar na rua solenemente com grande empatia.
(GOMES, 2007. p. 247).
As denúncias de crimes contra as pessoas negras escravizadas sempre eram
sentenciadas pelos tribunais como acidentes ou suicídios. A lei não permitia o direito
aos donos dos cativos de tirar-lhes a vida, porém, é fato que os senhores e feitores27
assassinos de pessoas negras escravizadas nem sequer eram incomodados pela justiça
25 Ver: MARTINEZ (1996, p. 31). 26 Morte decorrente da apatia. No dialeto africano significa doença da tristeza, doença da saudade. 27 Segundo Reis e Gomes (1996), os feitores, também conhecidos como capitães-do-mato, nascem como
produto do medo das rebeliões escravas da sociedade escravista. Ocupavam cargos que se expandiram ao
longo do século XVIII. Sua figura é associada à escravidão e sobreviveu até o final desta em todo o
Brasil.
56
que se preocupava em manter a ordem escravista e não a segurança dos africanos
escravizados. Lembremos que a sociedade colonial brasileira estava enraizada na
violência, ela era rígida, hierarquizada e toda crueldade era direcionada à população
negra escravizada – torturas físicas e psicológicas, estupros, abusos, assassinatos.
Como conseqüência, a taxa de mortalidade era muito alta.
As técnicas concernentes à agropecuária, ao artesanato e à fundição de metais eram
conhecimentos que a população negra africana já tinham desenvolvido anteriormente
em suas terras, embora a experiência deles não fosse aproveitada, pois o trabalho na
agricultura se dava de forma primitiva, significando retrocesso para eles.
A partir da função do trabalho e da localidade, nascem também diferentes classes da
população negra escravizada: urbana e rural. Assim que chegaram aos Brasil, os
negros rurais foram destinados ao campo para plantação de cana, de algodão ou de
café; produção de tabaco, extração de ouro ou para trabalhar como serviçais da casa
grande. A partir do século XVII, teremos a população negra das zonas urbanas que
são chamados de “negros de ganho”, homens e mulheres escravizados que exerciam
algum trabalho nos centros urbanos como: barqueiros, carregadores, oleiros,
marinheiros, ferreiros, carpinteiros, sapateiros, carregadores de lixo, portadores de
recados, acompanhantes etc. As negras escravas eram prestadoras de serviços
domésticos, amas-de-leite, eram utilizadas para satisfazer sexualmente os seus
senhores, e as mais atraentes foram forçadas ao comércio de rua como prostitutas
em tempo parcial ou integral. Os negros entregavam aos seus donos parte do dinheiro
estipulado pelo trabalho realizado, ficando com o mínimo para a sua própria
manutenção; caso não atingissem a meta, seriam castigados e, se ultrapassem a meta
estipulada, poderia ser possível ao negro a compra de sua liberdade. Existia também
no comércio uma espécie de agência de empregos, que alugava os negros para
terceiros e o dinheiro ia direto para a mão do proprietário.
57
Revoltas e Rebeliões
Pouco se divulga, mas um dos aspectos interessantes, porém quase ignorado na
história da escravidão no Brasil, foi a participação da população negra escrava e livre
na vida política nacional. De acordo com Moura (1992), as pessoas negras contribuíram
ativamente em quase todos os movimentos sociopolíticos que aconteceram no Brasil no
decorrer de seu trajeto social e histórico. Ainda não considerando os quilombos como
movimento independente, com poderosa atuação, a população negra marcou presença
(às vezes majoritariamente e outras com menor participação) nos movimentos
insurrecionais travados ou projetados na Colônia e no Império, desde o fim do século
XIX até a contemporaneidade tais como: as lutas pela expulsão dos holandeses; luta
pela Independência; Revolução Farroupilha; movimentos radicais da plebe rebelde,
como a cabanagem do Pará, o Movimento Cabano em Alagoas, Inconfidência Mineira e
Inconfidência Baiana. Depois da abolição, a população negra incorporou-se aos
movimentos da plebe, como em Canudos, na comunidade de beato Lourenço e na
revolta de João Candido28. A população negra (escrava ou livre) foi mobilizada pelos
senhores e pelo governo geral para fazer parte dessas lutas, principalmente quando
existia a necessidade de formar núcleos militares. Sua participação se deu das
seguintes formas: o/a escravo/a podia a) aproveitar dessa necessidade e confusão e
fugir para as matas, abandonando os seus senhores e juntando-se a algum quilombo
existente; b) aderir à independência para tentar com isto conseguir a sua alforria
como fora prometida muitas vezes; c) lutar por obediência aos seus senhores ou d)
participar ao lado do português29.
Em sete de setembro de 1822, foi proclamada a Independência do Brasil em relação a
Portugal; no entanto, a situação não mudou muito para a plebe e os escravizados e as
revoltas continuaram, tendo a população negra participado ainda das seguintes
revoltas:
28 Ver: MOURA, 1992, p. 39.
29 Ver: MOURA, 1992. Capítulo V – O negro e sua participação política (p. 39-54).
58
Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Alfaiates, em 1798;
Revolta da Cabanagem, no Pará, no período de 1833-1836;
Revolta dos Balaios, no Maranhão, de 1838 a 1841;
Revolta dos Malês, em Salvador-Bahia, em 1835;
Revolta dos Canudos, na Bahia, no período de 1893 a 1897;
Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, em 1910.
Desde as primeiras lutas sociais no Brasil que o negro, ao delas
participar, conseguiu ampliá-las e transformá-las em lutas sócio-
raciais. Isto é: colocou um componente novo, abriu o leque de
participação e reivindicações de etnia negra, que além de explorada
era discriminada racialmente.
(MOURA, 1992, p. 40).
A sociedade escravocrata enfrentou um difícil e persistente problema desde o
começo do período imperial, que foram as revoltas na fazenda, as rebeliões e a fuga
das pessoas negras escravizadas. Enquanto elas se rebelavam, mesmo ameaçadas e
castigadas, incendiando plantações, agredindo e matando senhores e feitores,
assassinando e suicidando-se como forma de resistência ao escravismo; os ex-
escravos se organizaram secretamente; além das revoltas, as fugas isoladas ou
coletivas das pessoas negras assenzalados eram constantes. As recusas, as rejeições,
a fuga e a formação de grupos de negros escravizados fugidos deram origem à
formação dos quilombos, a forma mais consequente de resistência negra à escravidão.
Conceituação e Histórico de Quilombo
Segundo Munanga (2004), a palavra “quilombo” tem origem africana, nascida de
línguas regionais faladas em Angola e na República Democrática do Congo, no dialeto
“umbundo”, e significa “um agrupamento militar composto pelos jaga ou imbagala (de
Angola) e os lunda (do Zaire) no século XVII”.
De acordo com Moura (1985, p.15), em 02 de dezembro de 1740, na consulta do
Conselho Ultramarino, o rei de Portugal definiu quilombo como “toda habitação de
59
negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham
ranchos levantados nem se achem pilões neles”.
Munanga (2004) traz as seguintes contribuições: Quilombo não era só um local onde
os negros se refugiavam, mas, tratava-se de local democrático e fraterno conquistado
através da fuga de negros escravizados que se organizavam em busca de uma
sociedade livre e digna, que se negavam a viver sob o regime escravocrata se
rebelando e lutando contra o sistema.
Segundos alguns antropólogos, na África, a palavra quilombo refere-se
a uma associação de homens aberta a todo. Os membros dessa
associação eram submetidos a rituais de iniciação que os integravam
como co-guerreiros num regimento de super-homens invulneráveis as
armas inimigas. Existem muitas semelhanças entre o quilombo africano
e o brasileiro, formados mais o menos na mesma época. Sendo assim, os
quilombos brasileiros podem ser considerados como uma inspiração
africana, reconstruída pelos escravizados para se opor a uma estrutura
escravocrata, pela implantação de uma outra forma de vida, de uma
outra estrutura política, na qual se encontram todos os tipos de
oprimidos.
(Ibid, p.71).30
Sua conceituação foi modificada ao longo dos séculos e, atualmente, a palavra
quilombo tem outra definição.
(...) uma comunidade negra rural habitada por descendentes de
africanos escravizados, com laços de parentesco, que vivem da
agricultura de subsistência, em terra doada, comprada ou secularmente
ocupada por seus antepassados, os quais mantém suas tradições
culturais e as vivenciam no presente, como suas histórias e seu código
de ética, que são transmitidos oralmente de geração a geração.
(ISA apud MOURA, 2008, p. 10).
Os quilombos foram considerados a mais típica forma de resistência à escravidão,
30 Os quilombos estavam sujeitos às invasões periódicas das forças de repressão que agiam contra eles.
A necessidade real dos quilombos era de ter uma organização fortalecida para combater os senhores de
escravos que se municiavam de recursos: militares, políticos, jurídicos e terroristas para combatê-los. As
estratégias dos senhores eram apoiadas nas leis da metrópole aplicadas na Colônia, alvarás e outros
estatutos repressivos, promovendo a formação de milícias de capitães-do-mato, e a fabricação e
utilização de aparelhos de suplício e outras formas de repressão não-institucionalizadas, o que se
transformou em costumes (MOURA, 1992, p. 24).
60
causando preocupação à sociedade escravocrata, pois, conforme aumentava o trabalho
escravista, aumentavam as resistências em forma de aquilombamento. “Onde houve
escravidão houve resistência”, diz Reis e Gomes (1996, p. 9).
Tais quilombos se organizavam por meio da fuga e formação de grupos de negros
escravizados fugidos, também em lugares de difícil acesso tais como serras,
florestas, matas ou selvas. Tendo como objetivo a liberdade, da população negra
refugiada criavam aldeias prósperas e se organizavam socialmente em comunidade aos
moldes africanos, dedicavam-se à economia de subsistência e até ao comércio.
Reis, no livro Liberdade por um fio, no capítulo “Escravos e Coiteiros no Quilombo do
Oitizeiro”, nos ensina que a formação de quilombos e as relações deles com a
sociedade que os cercava é um assunto ainda pouco estudado no Brasil. Ele chama a
atenção dos leitores para o fato de que muitos especialistas têm uma única visão de
todos os quilombos, a partir de uma concepção palmarina – já que o único quilombo
conhecido na história do Brasil é o Quilombo de Palmares, que foi liderado pelo líder
negro Zumbi, na Serra da Barriga, em Pernambuco, atual Estado de Alagoas, no ano de
1678 – imaginando que se tratava de uma sociedade alternativa, de difícil acesso,
isolado da sociedade para reproduzir uma comunidade africana em liberdade. O autor
afirma que
Um grande número de quilombos, talvez a maioria, não foi assim. Os
fugitivos eram poucos, se estabeleciam próximos a povoações,
fazendas, engenhos, lavras, às vezes nas imediações de importantes
centros urbanos, e mantinham relações ora conflituosas, ora
amistosas, com diferentes membros da sociedade envolvente.
Sociedade envolvente e também absorvente, no sentindo de que os
quilombolas circulavam com freqüência entre seus quilombos e os
espaços “legítimos” da escravidão.
(REIS e GOMES, 1996, 332).
Nos quilombos, a organização não era fechada em si mesma, os quilombolas mantinham
relações e se aliavam às outras pessoas também excluídas e oprimidas na sociedade
escravista como: negros fugitivos, índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas
perseguidas pela policia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do
61
serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas, de acordo com
Moura (1992, p. 15). O autor afirma também que os quilombos, além de grupos
defensivos, ligavam-se frequentemente com contrabandistas de diamantes e ouro e
faiscadores, mantendo com eles um comércio clandestino. Além dessas ligações, os
aquilombados mantinham contatos com alguns segmentos e núcleos oprimidos pela
sociedade escravista: pequenos proprietários, agricultores, comerciantes, regatões31
e mascates de modo geral, além dos assenzalados. A relação de trocas com esses
grupos sempre existiu: alimentos, armas, moedas entre outras coisas, com o intuito de
liquidar seus senhores, armar planos de fuga e receber informações de movimentos
de tropas, receber informações sobre as medidas tomadas pelo aparelho repressivo e
suprir suas necessidades para a sobrevivência.
[...] o quilombo era refúgio de muitos elementos marginalizados pela
sociedade escravista, independentemente de sua cor. Era o exemplo
da democracia racial de que tanto se fala, mas nunca existiu no Brasil,
fora das unidades quilombolas.
(MOURA, 1993, p. 37).
As autoridades tinham a preocupação de combater os quilombos; nesse sentido a
população quilombola precisava suprir as necessidades de sobrevivência (além de se
dedicarem à agricultura, caça, coleta, seqüestros de escravos, recrutamento,
mineração). Era primordial que estivessem politicamente estruturados e para isso
mantinham alianças com lideranças consagradas e com diversos setores sociais para
fugir do sistema opressor escravagista. “[...] os quilombos faziam uma política e
tinham projetos políticos próprios, uma tese na contramão dos estudiosos que
acentuam a reificação da gente escrava e sua incapacidade para pensar e agir
politicamente” (REIS e GOMES, 1996, p. 17).
O quilombo teve uma continuidade histórica que se estendeu desde o século XVI até
as vésperas da Abolição, expandindo-se geograficamente. O aquilombamento existiu
mesmo em regiões onde o número de escravos cativos era baixo. Floriram com viço
31 Regateio: Barganha, comprar por preço inferior (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda,
Minidicionário Aurélio de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993).
62
especial em todos os lugares onde a escravidão existiu, com exceção dos estados do
Acre, Distrito Federal e Roraima32.
Os quilombos eram organizados politicamente de diversas formas com proporções e
durações distintas. Havia quilombos com oito ou mais homens, assim como compostos
por 25 mil habitantes. Os objetivos primordiais das lideranças quilombolas eram a
defesa familiar, religiosa e especificamente econômica para garantir a sobrevivência.
O binômio economia-defesa era o eixo das preocupações mais
importantes dos dirigentes dos quilombos. Isso porque, se, de um
lado, tinham de manter em atividade permanente grande parte da
mão-de-obra ativa da comunidade na agricultura e em outras
atividades produtivas, de outro, tinham de manter um contingente de
defesa militar permanente, a fim de preservar sua integridade
territorial.
(MOURA, 1993, p. 35).
Moura aborda os sete tipos fundamentais de modelos econômicos para os quilombolas,
dependendo diretamente da área onde estavam organizados.
1. Agrícolas – em todas as partes do Brasil;
2. Extrativistas – característicos do Amazonas;
3. Mercantis – no Amazonas;
4. Mineradores – em Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso;
5. Pastoris – no Rio Grande do Sul;
6. Serviços – os quilombolas saíam do quilombo para trabalhar nos centros
urbanos33;
32 O autor cita os estados de Alagoas, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Pernambuco,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe. MOURA, Clóvis. Quilombos – Resistência ao
escravismo. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1993.
33 Moura nos esclarece que os quilombos periféricos de Salvador-BA permutavam com outras unidades da
população que eram produtivas, para prover munições e completar a economia interna com produtos
inexistentes no quilombo. Alguns membros quilombolas exerciam atividades na Capital da Província (como
se fossem livres) e investiam na economia quilombola. “Tinham mesmo em povoados, e até vilas, agentes
secretos que com eles especulavam, comprando-lhes o ouro, peles, poaia e mais coisas que podiam enviar,
fornecendo, em troca, munições e gêneros.” (MOURA, 1993, p. 26).
63
7. Predatórios – existiam em todas as partes e viviam da prática de furtos
contra os brancos.
Os quilombos não se limitavam às monoculturas; era necessário aproveitar os recursos
naturais regionais e os elementos retirados das fazendas e dos engenhos (sementes e
matérias primas); desenvolviam a policultura-comunitária para suprir as necessidades
dos quilombolas e precisavam produzir excedente para comercializar34. O país se
converteu em um conjunto de quilombos significativos para a compreensão da nossa
história social.
A singularidade dos quilombos era se libertar do sistema escravista, e o caráter
defensivo e a capacidade organizativa sociopolítica dos grupos quilombolas permitiam
a sobrevivência da comunidade; foram destruídas dezenas de vezes e reapareceram e
se reergueram em outros locais como reais focos de defesa contra os seus
perseguidores da sociedade escravista. Para a sociedade escravista os quilombos
“eram uma praga espalhada por todos os cantos e sem remédios. Eram como irmãos,
coligados todos em se tratando de defender o sertão, de sorte que não pudessem
penetrar nem mais aventureiros nem descobridores” (MOURA apud BARROS, 1993, p.
5).
Palmares
Quando falamos de comunidade tradicional quilombola, as pessoas se remetem às
ilustrações que os livros de história trazem: pessoas negras de pé no chão,
carregando uma cesta de mandioca sobre a cabeça, as mulheres com um pano branco
na cabeça, homens com calças de algodão estilo capoeirista, sem camisa com enxadas
na mão, com as roupas de saco de algodão sujas pelo trabalho da roça. Pouco se
34 As armas da República de Palmares eram constituídas de arcos, flechas, lanças, facas produzidas pelo
setor artesanal, as armas de fogo tomadas das expedições punitivas, dos moradores vizinhos ou
compradas daqueles grupos ou indivíduos com os quais os palmarinos mantinham relação de escambos.
(MOURA, 1992, 52).
64
divulga a existência de aproximadamente 3.50035 comunidades tracionais quilombolas
espalhadas por todo Brasil, de certa forma com acesso aos espaços urbanos, produtos
e serviços tecnológicos. Penso que situar o leitor sobre a importância de Palmares é
primordial para compreender a luta travada à época e o processo de transformação e
os entraves que estão atrelados há séculos, até a atualidade.
Palmares, por mais de um século, existiu resistindo às repressões dos senhores de
pessoas negras escravizada da capitania de Pernambuco e se organizava de forma
vigorosa, aos moldes africanos, construindo ali um real Estado Negro dirigido por uma
oligarquia e cujos partidários regravam-se pela supremacia de um líder. “Palmares, por
sua organização política, econômica, social e cultural, constituiu-se num verdadeiro
„Brasil negro‟ dentro de um „Brasil branco‟” (SILVA e BASTOS, 1976, p. 45).
O quilombo dos Palmares, em uma área de 27 mil quilômetros quadrados, teve sua
formação no final do século XVI, em aproximadamente 1597, iniciando com um número
de 40 negros escravizados fugitivos36. No ano de 1597, durante a noite, um grupo de
escravos fugiu de um engenho do sul de Pernambuco, atual estado de Alagoas.
Armados de foices, chuços e cacetes, sendo perseguidos e restando-lhes somente a
fuga, caminharam vários dias. Conseguiram chegar a um local montanhoso e de difícil
acesso, onde se sentiram mais seguros. Nesse local, em uma das serras, podiam
observar toda a região – um local com muitas palmeiras conhecidas na África. Nasce o
Quilombo de Palmares. Pressionados pela necessidade de manter a sobrevivência, os
quilombolas se organizaram e realizaram incursões nas fazendas e engenhos mais
próximos para “seqüestrar escravos, mulheres, se abastecer de armas, pólvoras,
ferramentas de trabalho, e além de, não poucas vezes, exercer vinganças ateando
fogo nas plantações e matando os feitores.” (GENNARI, 2006, p. 13).
O crescimento demográfico de Palmares é atribuído aos novos membros foragidos que
aumentava de forma ininterrupta (os índios “salteadores”, fugitivos da Justiça de
35 Estimam-se entre 2.800 a 3.500 comunidades, poucas reconhecidas oficialmente – Dados do
Movimento Quilombola Nacional, 2007.
36 Cf. MOURA, 1993, p. 40
65
modo geral e elementos de todas as demais etnias ou camadas que se sentiam
oprimidas, compreendendo homens e mulheres brancas37) e aos nascimentos no
interior do quilombo. Entre 1630 e 1635, quando se deu a ocupação holandesa em
Pernambuco, com o enfraquecimento da dominação portuguesa, houve condições para
novas fugas das pessoas negras escravizadas a Palmares.
Em meados de 1670, a população oscilava entre 20 a 25 mil habitantes, entre homens,
mulheres e crianças38. Os palmarinos viviam da agricultura de subsistência, e ali
produziam milho, feijão, mandioca, batata-doce, banana, cana-de-açúcar, além da caça
e da pesca; praticavam também o artesanato e mantinham um pequeno comércio com
populações vizinhas. A palmeira foi uma forma importante de produção extrativa, já
conhecida na África. Com o aumento da população em Palmares, criaram-se diversos
núcleos de povoamento como:
Macaco: o mais importante e o maior povoamento de Palmares. Possuía 1.500
habitações e uma população com aproximadamente oito mil habitantes;
Amaro: habitava ali uma população com aproximadamente cinco mil pessoas em
mil casas;
Subupira: com aproximadamente 800 moradias, centralizava as atividades
militares. Outras povoações palmarinas registradas são: Osenga, Zumbi,
Acotirene, Tabocas, Danbrabanga e Andalaquituche.
Segundo Moura (1993), a comunidade quilombola se aliava a todos os perseguidos e
deserdados da sociedade colonial. No entanto, dentro da comunidade, havia um
governo mantido por um líder eleito e as decisões eram tomadas juntamente com um
conselho em assembléia da qual participavam todos os habitantes adultos,
prevalecendo o igualitarismo .
As regras palmarinas apresentavam um regime rigoroso, através de um tipo de
37 Ver MOURA, 1993, p. 40 38 Idem, 1993, p. 43
66
“Direito Consuetudinário (costumes)”39; o roubo, o adultério, o homicídio eram pagos
com pena de morte. Em Palmares, tudo era comum aos seus habitantes; sendo assim, o
roubo individual era compreendido como uma lesão do patrimônio de todos. Eram os
líderes que delegavam esse poder aos militares, conforme o seu prestígio. Os mais
conhecidos líderes negros da história de Palmares foram Ganga Zumba e seu
sobrinho, Zumbi.
Vale lembrar que, apesar de os palmarinos viverem em liberdade, as perseguições e
ameaças das autoridades coloniais de uma sociedade escravista nunca cessaram:
Em 1612 se inicia a primeira expedição portuguesa a Palmares que
sobreviveu aos ataques, se intensificou e continuou a crescer.
Palmares foi alvo e resistiu a 27 guerras e destruição de investidas
holandesas e portuguesas que pretendiam tomar e destruir suas terras40.
Em 1654 é o fim da guerra contra os holandeses no Brasil – os holandeses
assinam a rendição e a economia açucareira volta a crescer, assim como o
comércio de escravos e também as fugas para Palmares. Na década seguinte,
Palmares atingiu o seu auge.
Entre o ano de 1654 e 1659, as autoridades coloniais requerem o prejuízo
que a guerra contra os holandeses lhes causou, pedem a recuperação dos
negros escravizados fugidos e organizam várias expedições militares para
capturá-los. No entanto, suas investidas armadas foram fracassadas, pois além
de derrotados, o número de negros escravizados capturados era muito inferior
ao que se esperava e tais negros já não aceitavam ser subalternos e fugiam
39 Idem, 1993, p. 54
40 Com as invasões holandesas em Pernambuco, em 1630, inicia a desintegração da economia nordestina, o
que preocupa as autoridades luso-brasileiras: a fuga das autoridades portuguesas, a emigração dos
senhores de engenho para o sul e a convocação dos militares para o ataque holandês a Pernambuco
geraram uma confusão na organização do sistema de vigilância da população negra escravizada,
oportunizando fugas rumo a Palmares, munidos de armas de fogo, facões, chuços e lanças de seus ex-
senhores. Graças a essa ação holandesa, a massa de pessoas negras escravizadas refugiadas se ampliou,
superlotando o quilombo dos Palmares.
67
novamente, retornando a Palmares.
A mando do governador D. Pedro de Almeida, em 1677, Palmares foi atacado
e derrotado pela tropa do sertanista Fernão Carrilho, que recebeu a patente
de “capitão-mor da guerra dos Palmares”. Durante esse ataque, a expedição de
Carrilho, além de destruir o povoamento de Amaro, capturou dezenas de
negros, autoridades locais e dois filhos de Ganga Zumba. A população
palmarina, descontente, acusa seu líder Ganga Zumba de incapacidade de
liderança e irresponsabilidade por ter comandado embriagado um dos mais
importantes combates contra as tropas coloniais, levando-o a assembléia, que
pediu sua destituição, porém esta proposta é derrotada pelas manobras
políticas internas de Ganga Zumba.
Em 1678, Ganga Zumba, depois de várias batalhas travadas contra Palmares
e, sentindo-se ameaçado, aceita o pacto de paz com os portugueses que
promete a liberdade dos quilombolas nascidos no interior de Palmares. Isso
implica na recondução dos demais ao cativeiro, concessão de terra para cultivo
e moradia, liberdade de comercialização dos próprios produtos com povoados
vizinhos e a concessão de título de vassalo da coroa ao líder Ganga Zumba.
Discordando do pacto feito por Ganga Zumba com as autoridades coloniais,
Zumbi e outros companheiros saem contra o líder que perde seu cargo e
retira-se com seus seguidores para Cacaú, terra doada pelo governo português
aos negros que aceitassem o acordo de paz. Zumbi assume o posto que antes
pertencia a Ganga-Zumba. Em Cacaú, Ganga Zumba é abandonado pelas forças
coloniais, traído e morto por seus seguidores que retornam a Palmares.
Em 1680, o capitão-mor André Dias é incumbido pelo governador de
desarmar o quilombo de Palmares, e em troca foi oferecido a Zumbi o perdão e
a liberdade. Zumbi não cedeu, gerando novos conflitos.
Em 1694, Palmares é vencido com o uso de canhões pelas tropas de
Domingos Jorge Velho e do exército. O ataque foi violento, atingindo a todos
68
os mocambos palmarinos, 510 pessoas negras foram capturados e as mulheres
e crianças foram capturadas para serem vendidas como escravas – “grande
parte se deixa morrer de fome ou mata os próprios filhos para não vê-los
submetidos ao cativo”. Zumbi escapou com vida e fugiu com 2.000 homens41.
Em 1694, Zumbi reaparece e lidera um ataque à Vila de São Francisco.
No início de 1695, a presença de Zumbi em várias áreas do quilombo antigo é
registrada; em uma dessas investidas de Zumbi, Antonio Soares, homem de
confiança de Zumbi, foi capturado e torturado e acaba declarando onde Zumbi
estava escondido – Serra de Dois Irmãos.
Em 20 de novembro de 1695, Soares chega a Serra de Dois Irmãos, Zumbi
vai ao seu encontro para recebê-lo e é apunhalado. Quando ele cai, os invasores
abrem fogo assassinando os companheiros de Zumbi. Mesmo ferido, Zumbi
morre combatendo até morrer, “matando um homem, ferindo outros e jamais
se rendendo”. A morte de Zumbi, apresentada como uma vitória, é também a
maior das derrotas. O poder colonial consegue a cabeça do líder palmarino, mas
não o que mais queria: a sua submissão (GENNARI, 2006, p.21).
Zumbi - O Mártir da abolição da escravatura do Brasil e Patrono Cívico
da negritude brasileira
Zumbi nasceu em “terra de preto” 42, ou seja, em terras palmarinas, em 1655. Nesse
mesmo ano, na primeira expedição que o Governo de Pernambuco enviou a Palmares,
comandada por Brás da Rocha Cardoso, Zumbi foi capturado e dado de presente a um
41 Ver em MUNANGA, 2004.
42 “Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias destes grupos, uma
denominação também possível para estes agrupamentos identificados como remanescentes de quilombo
seria a de „Terra de preto‟ ou „território negro‟, tal como é utilizada por vários autores, que enfatizam a
sua condição de coletividade camponesa, definida pelo compartilhamento de um território de uma
identidade” (SCHMITT, Alessandra; TURATTI Maria Cecília Manzoli; CARVALHO, Maria Celina Pereira
de. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Ambient. soc. [http://www.scielo.br/pdf/asoc/n10/16889.pdf]. 2002). Ver também: ANDRADE (1988), GUSMÃO
(1995).
69
padre português chamado Antônio de Melo que habitava em Porto Calvo, nas
proximidades de Palmares. O padre batizou-o com o nome de Francisco, alfabetizou-o
e criou-o, o fez coroinha e nunca lhe tratou como escravo.
Em 1670, quando Zumbi completou 15 anos de idade, para a surpresa do padre Antônio
de Melo, o garoto fugiu para o Quilombo de Palmares, onde recebeu esse nome de
origem africana e se torna sobrinho de Ganga Zumba pela concepção Africana de
família43. Poucos anos após, torna-se líder político e militar. Quando se torna chefe do
quilombo, por seu valor guerreiro, Zumbi volta várias vezes a visitar o padre que o
acolheu e o criou.
No ano de 1671, Zumbi se destacou como líder ao combater heroicamente as
expedições do Capitão André da Rocha e do Tenente Antônio Jacome Bezerra.
Com apenas 17 anos de idade, Zumbi foi eleito Maioral, no ano de 1672, e aos 18 anos
de idade, em 1673, se torna Cabo-de-guerra, após derrotar a tropa de José Bezerra.
Em l676, a tropa do Coronel Bezerra foi combatida por Zumbi, então com 21 anos, e
seus guerreiros resultando em mortes, massacre da expedição e deserções.
Foi em 1678, aos 23 anos de idade, após liderar a revolta contra seu tio e líder Ganga
Zumba, que havia aceitado o fim da guerra com a condição de liberdade restrita
apenas aos nascidos no quilombo – que Zumbi assumiu a liderança e se tornou Rei do
Quilombo de Palmares. Zumbi continuou sua luta por liberdade dos quilombolas
nascidos ou não em terras palmarinas e pelo fim da escravidão.
O rei Zumbi era o maior herói negro da população palmarina. Sua história se espalhou
por todas as senzalas de Pernambuco e Alagoas.
43 Quintão toma emprestada uma constatação da referência do estudo de José Reis sobre “a redefinição
da palavra parente, que passa a incluir todos os africanos da mesma etnia. O africano inventou aqui o
conceito de parente de nação” (QUINTÃO, 2002, p.91 apud REIS, João Jose. A morte é uma festa: ritos
fúnebres e revolta popular no Brasil no século XIX, São Paulo, Editora Schwarcz. Ltda., 1991, p. 55).
70
A sua coragem e o seu espírito de liderança impressionam também as
autoridades coloniais. Numa crônica encomendada ao governador
Pedro Almeida, Zumbi é descrito como “negro de singular valor,
grande ânimo e constância rara cuja capacidade de ação, juízo e
fortaleza aos nossos serve de embaraço e aos seus de exemplo.
(GENNARI apud FREITAS, 2006, p. 19).
Zumbi, atualmente, é reconhecido como guerreiro, herói, organizador e líder da
resistência armada negra. Lutou bravamente até a morte e hoje é a grande referência
nacional da luta negra no Brasil que busca justiça, trabalho, igualdade e a vida.
Simboliza a luta do negro, a conquista pela liberdade e o fortalecimento da
consciência da identidade negra. A partir de 1971, no dia 20 de novembro, se dá o
primeiro ato evocativo pela população negra brasileira que comemora o Dia Nacional
da Consciência Negra44. O Professor Oliveira Silveira traz uma breve definição:
A Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro
da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa
de sua atuação – a negritude de sua pele – e de agir como um grupo, a
fim de se libertarem das correntes que os prendem em uma servidão
perpétua.
( STEVE BIKO apud SILVEIRA).45
Abolição
Desde l758, quando o Brasil ainda era colonizado por Portugal, já surgiram idéias,
também entre os não-escravos, contra o tráfico da população negra africana e o
cativeiro e pela extinção do elemento servil. “Na campanha pela extinção da
escravidão, alguns intelectuais se destacaram, como Castro Alves, que afirmava ser a
escravidão uma mancha na honra nacional a ser lavada sem perda de tempo”
44 A homenagem a Palmares em 20 de novembro de 1971 foi o primeiro ato evocativo até a sua
implantação oficial, sete anos mais tarde, quando passaria a ser considerada como dia nacional da
consciência negra. Essa data foi lançada nacionalmente em 1971 pelo grupo Palmares, de Porto Alegre, no
Rio Grande do Sul. Para o movimento negro, não havia por que comemorar a data Treze de maio. A
abolição só havia ocorrido no papel, a lei não determinara medidas concretas, práticas, palpáveis a favor
da população negra. Ao retomar a história do Brasil, o Quilombo dos Palmares logo desponta sobre os
fatos históricos. Ver: <http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-e-suas-lutas/origens-do-vinte-de-
novembro.html>. Acesso em: 25 mai. 2010. 45 Disponível em: <http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-e-suas-lutas/origens-do-vinte-de-
novembro.html>. Acesso em: 25 maio 2010.
71
(VICENTINO, 1998, p. 67).
A abolição no Brasil aconteceu depois de um demorado processo. Nas primeiras
décadas do século XIX, as indústrias inglesas avançavam nos mercados em todo
território mundial e a expansão do capitalismo e do trabalho assalariado pedia pela
extinção do trabalho escravo para a ampliação do mercado, o que levou a Inglaterra a
iniciar uma campanha nacional para abolir a escravidão nos países colonizados
trazendo como resultado um duro golpe sobre a sociedade escravocrata. No ano de
1850, o tráfico de escravos da África para o Brasil é extinto, lembrando que o
escravo ao chegar ao Brasil vivia em média de sete a 10 anos. A tendência da
população negra era decrescer, sem condições de se recompor a partir do índice de
natalidade. Inicia aí a crise dos grandes proprietários nordestinos de lavouras de
açúcar que era mercadoria próspera de exportação, sustentada unicamente pelo
trabalho escravo no nordeste. A decadência no mercado mundial teve como
conseqüência, nos anos seguintes, o declínio do sistema escravocrata, decorrente de
alguns fatores: o enfraquecimento do subsolo exaurido pela plantação de cana por
dois séculos, mais as fugas e rebeldias dos escravos e a campanha da Inglaterra para
abolição da escravatura.
Por outro lado, no sudeste se dá inicio à plantação de uma nova cultura: o café. Os
proprietários de café do sudeste – São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais –, diante
da necessidade de mão-de-obra intensa e na impossibilidade de importação de
africanos, inicia o comércio de pessoas negras escravizadas excedíveis (do nordeste
para o sudeste) com proprietários das fazendas e engenhos de açúcar das províncias
de Pernambuco, Bahia e Ceará que está em decadência.
Moura, no livro História do Negro no Brasil (1992), aponta que durante o sistema do
Brasil-Colônia, a escravização estava completamente estruturada. A população
escrava aumentava, nesse momento, por um baixo preço por meio do tráfico, e
simultaneamente a produção para exportação não tinha concorrência significativa no
mercado mundial, o que colocava o sistema escravagista em vantagem; a pessoa negra
72
escravizada era a trabalhadora e ao mesmo tempo a mercadoria que podia ser vendida
a qualquer momento e muitas vezes com lucro compensador, e quando morria, a
reposição poderia ser feita por um preço baixo e quase sem ônus para os senhores.
Essa situação se inverte em meados de 1870, com as pressões pela libertação dos
escravos no Brasil. O senhor, na economia cafeeira, entrava em um novo universo: o
escravo deixa de ser uma mercadoria barata e fácil de ser substituída. Tal fato foi
motivo de preocupação dos proprietários que passam a ter que protegê-los, pela lógica
do capital, pois, caso contrário, teriam custos e prejuízos na produção. Por outro lado,
aumenta a procura internacional pelo café. O sistema europeu capitalista pressiona as
autoridades do Brasil colônia para que se dê a abolição da escravatura. Apresentam-
se, então, as conveniências de uma abolição gradual para assegurar sua economia,
surgindo as primeiras “leis protetoras” dos escravos. Como denuncia Moura: “de
perseguidos a protegidos”.
A Lei do Ventre Livre custou ao seu idealizador, José Maria da Silva Paranhos,
Visconde de Rio Branco, 41 discursos no senado federal para conseguir sua aprovação,
em 28 de setembro de 1871. Na Lei do Ventre Livre, todos os filhos de escravos
nascidos após essa data eram considerados livres, no entanto, a criança continuaria
sob a tutela do proprietário de sua mãe até os 21 anos de idade, permanecendo
escravizado até então. Essa lei foi promulgada pela Princesa Isabel, que ocupava a
regência em virtude de viagem do imperador, D. Pedro II, ao exterior.
Em 1885, foi decretada a Lei dos Sexagenários, que declarava livres os escravos com
mais de 65 anos, mediante indenizações pagas pelo governo; porém, a lei não paralisou
o processo abolicionista brasileiro, pois um grupo minoritário de pessoas negras
escravizadas se beneficiaria dessa lei, visto que a grande maioria morria antes de
completar 65 anos de idade.
Equivocadamente, essas leis não protegiam os escravos, mas sim os senhores de
escravo. Moura (1993) considera que a Lei do Sexagenário teve uma única função: a
de descartar a população negra escrava não produtiva, que já não tinha condições de
73
trabalho e saúde e dava despesas aos seus senhores. Já a Lei do Ventre Livre era uma
forma de condicionar a pessoa negra a viver até os 21 anos numa escravidão
disfarçada, trabalhando para o seu senhor.
O sistema capitalista europeu, mais desenvolvido, estava investindo no Brasil em
áreas fundamentais (transporte, iluminação, portos e bancos) para movimentar o
sistema econômico, criando uma contradição no sistema político, econômico e social do
país, pois para o desenvolvimento capitalista precisava-se de trabalho livre e não do
trabalho escravo, para gerar consumo. É bom situar o leitor que nessa época irá
culminar a Guerra do Paraguai, entre 1864 a 1870, e a população negra foi envolvida,
sendo a maioria das pessoas negras convocadas. Nessa guerra morreram cerca de
90.000 pessoas e logo em seguida muitos dos sobreviventes negros foram
reescravizados46. O grande contingente de negros mortos nessa guerra propiciou uma
abertura maior para a imigração; o país precisava mudar rapidamente para relações
sociais de produção de acordo com as regras do sistema capitalista e, para isso,
necessitava de mão-de-obra livre. O novo trabalhador passa a ser o imigrante, que vai
sendo inserido na sociedade brasileira com o “mito de superioridade do trabalhador
branco, importado, que traria consigo os elementos culturais capazes de civilizar o
Brasil” (MOURA, 1992, p.56). Esse autor pontua que foi estratégica a promessa de
liberdade e o envio dos negros à guerra do Paraguai, pois serviu para justificar a
política imigracionista financiada “por parcelas significativas do capitalismo nativo e
pelo governo de D. Pedro II” e também serviu como tentativa para branquear a
população brasileira.
Nesse período temos duas situações demográficas da população negra, escrava e
livre: diminuição da população como consequência da guerra, do envelhecimento e
falecimento de grande parte de seus membros e concentração da população negra nas
províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Em outras províncias, a
economia está estagnada e a população negra vai ser incorporado aos tipos de
46 Ver MOURA (1992, p. 56).
74
trabalhos regionais de exploração camponesa e da agricultura de subsistência – os
senhores de engenho precisavam de recursos monetárias para investir na dinâmica da
economia em decadência. “O negro é, assim, naquelas áreas, incorporado [...] a uma
economia de miséria.” (Ibid, p. 58).
Começa a fase do escravismo tardio: as fugas em massa das pessoas negras
escravizadas, a impossibilidade do tráfico da população negra escravizada, a pressão
dos capitalistas europeus para a implantação de um novo modelo de “trabalho livre”
desestabilizavam a classe senhoril ou das camadas sociais em desenvolvimento, o que
os fez procurar formas mais seguras de investimento. “O dilema se apresentava
diante dos fazendeiros: ou aceitavam a Abolição compromissada, como o Trono queria,
ou aceitavam a Abolição feita pelos próprios escravos, através de medidas radicais,
com a divisão de terras senhoriais” (Ibid, p. 62).
A Abolição sem reformas foi feita, o ministro conservador João Alfredo promove a
votação de uma lei que determina a extinção definitiva da escravidão no Brasil,
assinada em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel: a chamada Lei Áurea.
A Princesa-Regente Isabel, em 13 de maio de 1888, em nome do imperador D. Pedro
II, fez saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e
aprovou a Lei Áurea 3.353/88, com o texto mais curto de todos os tempos em nossa
história: “Declara extinta a escravidão no Brasil”:
Artigo 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no
Brasil.
Artigo 2º: Revogam-se as disposições em contrário. Manda portanto a
todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida
lei pertencer, que cumpram e façam cumprir e guardar tão
inteiramente como ela se contém.
(IBGE, 2010)47
Em virtude do jogo de interesse entre o reino e os latifundiários, o Brasil foi o último
país escravocrata a abolir a escravidão. A aprovação da lei desagradou setores da
47 Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/104052/lei-3353-88>. Acesso em 25 maio
2010.
75
aristocracia rural, levando-os a demandar, em vão, altas quantias de indenizações pela
perda do capital investido. As críticas ao Império fortaleceram o movimento
republicano, que perdeu sua última coluna de sustentação política.
Para Moura (1992, p. 62), “o ideal de branqueamento das elites seria satisfeito, e as
estruturas arcaicas de propriedades continuariam intocadas” quando se substitui a
mão-de-obra escrava negra por milhares de imigrantes. A economia se voltou cada vez
mais para a produção do café, enquanto a grande parte do trabalhador nacional
descendente da população africana ficou marginalizada e estigmatizada, juntando-se
ao contingente de homens libertos e livres se dedicando à economia de subsistência.
As qualificações da população negra escrava, liberta ou livre não foram reconhecidas
nem valorizadas.
Os negros, ao serem “libertos”, foram marginalizados e, com isso, relegados à miséria,
ao subemprego, ao desemprego e demais situações de marginalização. A população
negra, ex-escrava é atirada “como sobra na periferia do sistema de trabalho livre, o
racismo é remanipulado, criando mecanismo de barragens para o negro em todos os
níveis da sociedade, e o modelo de capitalismo dependente é implantado, perdurando
até hoje.” (Ibid, p. 62).
A estrutura social, política e econômica pós-abolição não favoreceu a população negra
para que pudessem diminuir as desvantagens acumuladas no período da escravatura,
pelo contrário, ao considerar uma estrutura social racista, só contribuiu para
aumentar as desvantagens que a população negra tinha enquanto grupo, na saída da
escravização, inviabilizando, assim, as condições favoráveis à sobrevivência e
fortalecendo a sua desvantagem histórica acumulada. A população negra foi exposta a
uma situação de marginalidade social no que se refere à inacessibilidade aos bens
materiais e culturais, considerando-se, ainda, o processo de enfavelamento e a nova
composição territorial que compreenderá as favelas como o local da moradia das
pessoas negras “livres”.
76
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78
SEGUNDO TEXTO
O QUILOMBO DE IVAPORUNDUVA:
LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA, ATIVIDADE ECONÔMICA E CONFLITOS
ECONÔMICOS E SOCIAIS E POLÍTICOS
Figura 2: Ivaporunduva, na língua tupi significa “rio de
muitos frutos”, vaporu significa fruto, afirma Pinto
(2007)
Fonte Própria (2010)
79
Este texto pretende apontar a realidade da comunidade negra Quilombo
Ivaporunduva - localizada na região do Vale do Ribeira, município de Eldorado, no
estado de São Paulo. A população quilombola está inserida num contexto rural, nas
condições de subdesenvolvimento, no que diz respeito de acesso/ou dificuldade de
acesso aos direitos sociais. Com uma história de vida constituída pela/na escravidão,
tem vivenciado os entraves políticos atrelados aos seus direitos fundamentados na
Constituição Federal, os artigos 215, 216 e 68, que lhes garante a posse das terras,
porém, tem enfrentado o problema da expropriação de terras para dar lugar às
barragens. A comunidade vem discutindo e confrontando esses problemas pela/na
articulação política para avanço do desenvolvimento local, mostrando um processo de
conscientização, autovalorização e de reposicionamento da população negra
quilombola na sociedade brasileira. Buscamos compreender os mecanismos que
interferem no desenvolvimento social, político e econômico e as tentativas/caminhos
de superação percorridos nas condições concretas de vida social da população. Tais
caminhos constituem movimentos sociais e desenvolvem ações políticas relacionadas
às perspectivas de garantir a formação das comunidades, contra o processo de
construção do modo capitalista de produção.
***
O Vale do Ribeira está localizado entre a região sul do estado de São Paulo e norte do
estado do Paraná. O acesso à região é pela Rodovia Régis Bittercourt (BR-116).
Abrangendo a Bacia hidrográfica do rio Ribeira de Iguape e o complexo Esturino
Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá está subdividido em: Alto, Médio e Baixo
Ribeira com uma área de 2.830.666 hectares, com 481.224 habitantes. É uma região
com imenso valor cultural e ambiental, devido a seus recursos naturais, habitada por
pequenos agricultores familiares e comunidades indígenas, caiçaras e quilombolas.
.
80
Na região existem 57 comunidades quilombolas, considerado o maior número do
Estado de São Paulo48. A formação dessas comunidades teve origem com a exploração
de minérios no século XVII. Com o declínio da exploração da mineração na região, no
século XVIII, os fazendeiros brancos abandonaram suas terras no Vale do Ribeira e
os quilombolas se apropriaram da terra conseguindo manter seus laços históricos e de
parentesco com as comunidades vizinhas da região de Eldorado e Iporanga. Antes da
abolição da escravatura em 1888, as comunidades quilombolas já viviam “livres”.
Segundo o Instituto Socioambiental, “Ivaporunduva é a comunidade mais antiga do
Vale do Ribeira”, anterior até a fundação de Eldorado e da qual se originaram outras
comunidades como o quilombo de São Pedro, Pilões, Maria Rosa e Nhunguara (ISA,
2008, p. 93). O quilombola escreveu49:
48A Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, mapeou 3.524 comunidades quilombolas no
Brasil. A SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial) aponta que de acordo com
outras fontes esse numero pode chegar até 5000 comunidades no Brasil. Disponível em:
<http://www.palmares.gov.br/; http://www.portaldaigualdade.gov.br/copy_of_acoes/Principal.2007-11-
18.5002>. Acesso em 13 ago. 2010 49 SILVA, Laudessandro Marinho. Proposta de Implantação do Cooperativismo para a venda de produtos
orgânicos no Quilombo de Ivaporunduva. Trabalho de Conclusão de Curso em Administração de Empresas.
Universidade São Francisco. Itatiba, 2008.
Figura 3: Localização do Vale do Ribeira
Fonte: Instituto Socioambiental –ISA (2010)
81
(...) uma comunidade rural composta por 80 famílias e uma população
estimada de 300 pessoas. (...). Alguns registros citam a origem de
Ivaporunduva ainda no século XVI. Um deles fala de uma antiga
proprietária de terras e de escravos, dona Maria Joana, que teria
adoecido e morrido enquanto se tratava no exterior. Antes de vir a
falecer essa senhora doou suas terras à Igreja construída no local
por seus escravos para que esses escravos pudessem plantar, colher e
cuidar das terras. Sendo viúva e não tendo parentes, os escravos que
ali habitavam ficaram como os únicos herdeiros dessas terras. Esse
fato teria estimulado também a vinda de escravos fugidos de outras
partes do país que resistiram à captura dos capitães do mato por
volta de 1690, formando o Quilombo de Ivaporunduva. O meio de
sustento dessa Comunidade é a produção e venda de banana orgânica,
da cultura de subsistência, ou seja, a plantação para consumo das
famílias.
(SILVA, 2008, p. 10).
O quilombo de Ivaporunduva localiza-se na região do Médio Ribeira, na rodovia SP 165,
que liga Eldorado a Iporanga, ocupando uma área de 2.800 hectares no município de
Eldorado no estado de São Paulo. Encontra-se a 55 km do centro do município à
margem esquerda do rio Ribeira de Iguape que o separa da rodovia. A travessia do rio
Ribeira de Iguape, pode ser feita por pedestres por meio de barco a motor ou pela
balsa. A balsa também é utilizada para travessia de veículo, pelos três quilômetros
que separam o quilombo de Ivaporunduva, da vila, aportando-se próximo ao quilombo
Galvão.
As casas no quilombo não têm cercas e muros; encontram-se ainda, muitas casas
edificadas tradicionalmente com pau-a-pique, as crianças circulam livremente, as
famílias se banham nas nascentes do rio. A comunidade está isolada dos bairros e
quilombos que estão separados pela ribeira (rio Ribeira de Iguape). A presença de
visitantes na comunidade é identificada e controlada pelos balseiros e barqueiros na
travessia. Esses trabalhadores são moradores do quilombo e das comunidades
vizinhas, conhecem os moradores do local pelo nome, sobrenome e pela família com
que geralmente mantêm um grau de parentesco (primo, irmão, compadre, comadre, tio,
tia, primo etc.). Os visitantes são questionados na travessia sobre quem vai visitar, o
que vai fazer e por qual motivo está na comunidade. Após subir as escadarias à
82
margem do rio, que dará acesso à igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos, outros moradores recebem os visitante com novos questionamentos. Essa
forma de recepção traz certa tranqüilidade às famílias da comunidade: sempre tem
alguém observando e cuidando do território desde a travessia.
.
Figura 6: Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, padroeira da comunidade quilombola de
Ivaporunduva. Tombada em 1972 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico e
Artístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) e restaurada em 2001.
Fonte própria (2009)
Figura 4: Travessia de Barco
A comunidade passa a ter barco a mortor a partir de 2000 –
Parceria entre a Associação Quilombo Ivaporunduva com Instituto
Socioambiental (ISA).
Fonte Própria (2008)
Figura 5: Porto: Travessia de Balsa
A balsa foi inaugurada em Ivaporunduva em 2006.
Parceria entre: Associação Quilombo de Ivaporunduva com o
Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP).
Fonte Própria (2008)
83
A principal atividade econômica e fonte de renda da comunidade são a produção e
comercialização de banana que é exercida predominantemente por todas as famílias, o
artesanato, o turismo, ainda em fase de estruturação, porém já é uma atividade que
tem gerado renda as famílias, o manejo de plantas medicinais e recuperação do
palmito juçara, galpão de embalagem e climatização da banana são investimentos que
estão em desenvolvimento para futuras fontes de renda do quilombo de Ivaporunduva.
Essas atividades são projetos da associação do quilombo de Ivaporunduva junto com a
OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e ISA – Instituto
Socioambiental. Outras formas de geração de renda são os programas do governo,
tais como: Bolsa-Família, Renda-Cidadã, além de benefícios, como Pensão e
Aposentadoria. O setor de transporte do município é responsável pela manutenção do
barco e da balsa, e também pelo pagamento dos balseiros e barqueiros. Outros
setores da prefeitura são responsáveis por empregar moradores como funcionários
públicos na área administrativa, no transporte, nos serviços gerais, na educação etc.
Figura 7: Procissão Festa de São João
Fonte própria (2009)
Figura 8: Missa afro
Fonte própria (2007)
84
Figura 13: Galpão de Processamento de Ervas
Medicinal - Construído em 2003 – Parceria com
Fundação Florestal/ISA/ Associação Quilombo
Ivaporunduva)
Fonte Própria (2008)
Figura 9: Galpão de Embalagem de Banana
Construída em fev/2003
Fonte própria (2008)
Figura 11: Casa do Artesanato - Construída
em 2005.
Fonte Própria (2008)
Figura 12: Artesãs de Ivaporunduva
Fonte: ISA (2005)
Figura 10: Agricultores de Bananas
Fonte própria (2008)
Figura 15: Pousada
Construída em 2005 pelo governo do Estado de
São Paulo.Parceria entre Associação Quilombo de
Ivaporunduva ISA/ITESP e Petrobras
Fonte própria (2008)
85
Há uma Escola de Ensino Fundamental Rural (E.E.F.M.) do Quilombo de Ivaporunduva
fundada em 1982 com duas salas de aula. Uma delas atende alunos entre quatro e
cinco anos na pré-escola mantida pelo município. E a outra sala atende alunos de
primeira a quarta série do ensino fundamental mantida pela rede estadual. As salas
são multisseriadas, atendendo alunos que estão em diferentes momentos de
aprendizagem escolar.
.
O quilombo conta com um posto de saúde mantido pelo
governo municipal desde 2006, que atende
semanalmente a população pelo Programa de Saúde de
Família (PSF); mantém uma agente de saúde que visita
as famílias de segunda a sexta-feira, um médico e
enfermeiros que realizam atendimentos na comunidade
uma vez por semana
O Quilombo de Ivaporunduva tem preservado parte da cultura trazida pelos africanos
escravizados para essa região. Com eles vieram objetos como o pilão, a vasilha de
barro ou madeira; a taipa (fogão a lenha) e a gamela; o conhecimento de ervas que são
Figura 16: Ensino Fundamental – 4ª série
Fonte Própria (2008)
Figura 18: Interior do Posto de Saúde
Fonte Própria (2008)
Figura 17: Escola de Ivaporunduva
Fonte Própria (2008)
86
utilizadas como remédios; simpatias; a reza do responso50 – bastante respeitada pelos
membros da comunidade; o mutirão; a roça; e casa de pau-a-pique com o chão de barro
socado e cobertura de sapé.
Conflitos econômicos e sociais e políticos
O legado dos líderes quilombolas e da comunidade de quilombos é a politização ,
expressa na coletividade, compreendendo crianças, jovens e idosos, e que se
manifesta no enfrentamento e na efetiva participação política no sentido de legitimar
e garantir o direito constitucional da titulação da terra de quilombos, cujo posse é,
desde a origem, símbolo de resistência.
Em meados de 1980, as comunidades do Vale do Ribeira contaram com a presença da
Comissão da Pastoral da Terra – CPT, que articulou, junto às lideranças, propostas de
criação de organizações político-sociais para fortalecimento das lideranças regional,
estadual e nacional de comunidades quilombolas. Desse movimento resultou a
consciência e luta política, luta esta que hoje está inserida na Constituição Federal de
1988, nos artigos 68, 215 e 21651.
A partir de 1990 criam-se outras organizações52 para fortalecimento desse
movimento, inclusive na luta que essas comunidades têm enfrentado com os projetos
de barragens que foram aprovados na década de noventa do século XX, pelo estudo de
50 Trata-se de uma oração feita por uma pessoa indicada, dotada do dom, a favor de alguém que perdeu
algum objeto. Após a realização da reza é só aguardar os dias determinados pelo orador que o objeto
aparece no exato lugar de onde sumiu, mas tudo depende da fé da pessoa a ser favorecida.
51 Artigo 68: “Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Garante
também os direitos culturais, definindo como responsabilidade do Estado a proteção das
“manifestações das culturas populares, indígenas e afrodescendentes”. O artigo 215 prevê que “o
Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O Artigo 216, estabelece: “Ficam
tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos”. Estes artigos representam avanço na História do país, no que se refere aos aspectos de
reconhecimento dos direitos culturais (art. 215 e 216) e direitos fundiários (art. 68) (MALCHER,
2006, p. 17). 52 EAACONE – Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira e MOAB –
Movimento Atingidos por Barragens (Integrantes da Igreja Católica, ambientalistas, sindicatos,
lideranças quilombolas, indígenas e caiçaras e comunidades rurais).
87
inventário hidrelétrico que prevê a construção de quatro barragens (Hidrelétricas de
Tijuco Alto, Funil, Batatal e Itaoca)53 no Rio Ribeira de Iguape com o objetivo de
geração de energia. Com as construções das barragens, aproximadamente 11 mil
hectares de área serão inundados e o desaparecimento das cavernas, unidades de
conservação, cidades, terras de quilombos e de pequenos agricultores será inevitável.
As comunidades quilombolas da região têm se manifestado contra a construção das
barragens ao longo de 20 anos, o que podemos identificar nos relatos de líderes
quilombolas do Quilombo de Ivaporunduva:
53 Ver o mapa: Impacto das barragens proposta no Rio Ribeira sobre o território quilombolas localizado
na porção paulista da Bacia Hidrográfica do Rio Ribeira de Iguape.
Fonte:http:<//www.socioambiental.org/inst/camp/tijuco/mapas/mapa_ribeira_impacto_quilombos_zoom.
gif> acesso: 02/07/2010
Figura 19: Mapa da localização dos territórios quilombolas ameaçados pela proposta da
construção das barragens para o Rio Ribeira de Iguape
Fonte: ISA-Instituto socioambiental (2010)
88
Nóis comemoramo esse ano que passou agora, 20
anos luta, e acho que isso foi uma coisa que é
real. Nóis não dexamo abate, já tivemo duas
licencia que nóis caçamo, quando falo nós não
falo nóis Ivaporunduva, é nóis do social. Aí vem
gente de são Paulo, de Brasília do Paraná, muita
gente envolvida nessa luta. Lógico que nós samo
o que embasa por meio legal, tem lei que defende
o quilombo. E quilombo é patrimônio histórico.
Todas as luta onde nóis tamo, nóis somos usado
como uma barra de ferro, num palanque, memo
que não pode ser arrancado de jeito nenhum.
Nem envergá não pode.
BENEDITO ALVES – DITÃO. 55 anos. Palestra
realizada em 16 de janeiro de 2010, no Quilombo
de Ivaporunduva54.
Algumas das 57 comunidades quilombolas, identificadas no Vale do Ribeira, estão
envolvidas em processos complexos de reconhecimento oficial e posse da terra que
envolvem instâncias do governo estadual, como o ITESP (Instituto de Terras do
Estado de São Paulo) e do governo federal, como a Fundação Palmares, SEPPIR
(Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial) e MDA (Ministério
do Desenvolvimento Agrário).
54 A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto (UHE Tijuco Alto) é um empreendimento planejado pela Companhia
Brasileira de Alumínio (CBA), uma das empresas do Grupo Votorantim, para aumentar a oferta de energia
elétrica para seu complexo metalúrgico localizado na cidade de Alumínio, antiga Mairinque, no interior de
São Paulo. A localização da UHE Tijuco Alto está prevista para o alto curso do rio Ribeira de Iguape, na
divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, cerca de 10 quilômetros a montante da cidade de Ribeira (SP)
e Adrianópolis (PR), e a aproximadamente 333 km de sua foz, no complexo Estuarino-Lagunar de Iguape-
Cananéia-Paranaguá.
Figura 20: Manifestação Contra as barragens
Rod. Régis Bittencourt-BR-116
Fonte Própria (18/08/2009)
89
Os relatos dos líderes Benedito e José Rodrigues denunciam a negação do direito a
terra, na medida em que as construções de barragens tornariam inviável a garantia do
direito constitucional de quilombolas, indígenas e caiçaras, à permanência em suas
terras, desconsiderando que a preservação ambiental se dá em função dessas
comunidades agro-florestais que não apenas subsistem da terra, mas a preservam. O
Quilombo de Ivaporunduva obteve o reconhecimento de suas terras pelo ITESP, em
1997 e, em 2000, obteve esse mesmo reconhecimento pela Fundação Palmares. Em
2003, a comunidade recebeu do ITESP o título de parte de suas terras. Segundo o
ISA, até 2008 essas terras não haviam sido registradas em cartório, em função de
algumas medidas que deveriam ser tomadas pelo Estado. Em 2009, regularizou-se a
documentação, finalizando-se esse processo de reconhecimento. Em 01 de julho de
2010, a Associação Quilombo de Ivaporunduva, após um longo processo e por meio de
ação judicial, conseguiu que a terra fosse registrada em cartório como propriedade
coletiva.
Posições contrárias à preservação dessas terras, pelas comunidades, usam do
discurso do desenvolvimento econômico da região do Vale do Ribeira para validar suas
ações, especialmente no que se refere à construção de barragens. As lideranças
quilombolas, bem como a população das comunidades, reconhecem a necessidade de
desenvolvimento da região do Vale. Sua articulação política, portanto, caminha no
sentido de que não haja apenas uma direção de desenvolvimento econômico, a que
privilegia aqueles que têm interesse na construção de barragens, em detrimento da
cultura, do meio ambiente, da sustentabilidade e, sobretudo, do direito constitucional
que responsabiliza o Estado pela proteção às manifestações culturais populares.
90
A população do Vale do Ribeira são contra o projeto do Iguape. Maior
parte da população ribeira, o pessoal que vai perder a terra, nós dos
quilombos, todo mundo é contra. Nós ficamos muito descontente com
isso, porque deveria ser uma avaliação do povo. Já foi muito protesto
pro IBAMA dizendo que não queremos a barragem; e uma coisa muito
esquisita que aconteceu ali, é que me chamaram pra mesa
representando o movimento, uma vez que não chamaram nós pra nada.
Começaram o projeto, o estudo, e não chamaram a população pra
participar do estudo ou pra dar uma opinião, e agora, na audiência
pública, pra justificar algumas coisas que eles querem, então eles estão
chamando nós pro movimento. Eu já falei que eu até saí da mesa, porque
eu não consigo entender esse processo dessa maneira que vem
conduzindo. Uma coisa que eu fiquei muito preocupado e o que o
IBAMA não respondeu: a quantidade de hectares de mata ciliar que vai
ser retirado por causa do lago, o que acontece que enquanto um
agricultor faz uma pequena roçinha pra plantar o seu milho e o seu
feijão ele é barrado, é multado, e isso o IBAMA não soube responder.
Essa região é uma região que não é adequada pra esse tipo de projeto,
enquanto o povo está pedindo desenvolvimento sustentável de acordo
com a região, eles estão aumentando projeto deles.
(JOSÉ RODRIGUES, 2007)55
O depoimento do líder quilombola, José Rodrigues, tem um caráter denunciativo em
relação à incoerência dos órgãos que multam um agricultor familiar que depende de
sua roça para subsistência, porém aprovam ações desfavoráveis ao patrimônio cultural
e às riquezas naturais que as comunidades agroflorestais têm se empenhado em
preservar.
Em 2006 foi aprovado o Projeto da Construção da Ponte na Comunidade Quilombo de
Ivaporunduva proposta pela Associação Quilombo de Ivaporunduva em parceria com a
Secretaria de Política de Promoção de Igualdade Racial. O projeto está sendo
financiado pelo Governo Federal. A ponte, que terá 128 metros de extensão, dará
acessibilidade à rodovia municipal IPG-20 ligando os municípios vizinhos de Eldorado e
Iporanga. As obras realizadas pelo 10° Batalhão de Engenharia de Construção do
Exército tiveram início em 2008 e o término estava previsto para o final de 2009. O
portão da comunidade será aberto para todos, com implicações importantes,
55 Transcrição de entrevista com José Rodrigues, gravada em 2007. Extraída do vídeo da Audiência
pública – Vale do Ribeira. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>.
Acesso em: 02/07/2010.
91
mudanças e rupturas na maneira de viver da população. Com a construção da ponte, a
comunidade conquista o direito de ir e vir não tendo a restrições do acesso a outras
localidades.
Houve cautela na discussão acerca da construção da ponte. Uma preocupação da
liderança quilombola foi quanto às implicações e mudanças que poderão ocorrer em
função do desenvolvimento, podendo comprometer o resguardo do espaço e do
território. Questionou-se: Como manter a segurança e preservar as relações
construídas dentro de um espaço que envolve a ancestralidade, os costumes, o valor a
terra, a vida? Como preservar e viver em uma comunidade que seja sustentável?
As visitas de diferentes grupos à comunidade promovem intercâmbios culturais, que
representam tanto aspectos positivos como negativos para os membros da
comunidade. Está sendo considerado o fato de que, após a inauguração da ponte, os
portões do quilombo terão passagem livre para ônibus, carros, ciclistas, pedestres,
atravessadores na busca de comercialização palmitos e de animais, entre outras
coisas que possam extrair da natureza. O modelo de preservação na comunidade terá
que ser repensado.
O ser humano tem consciência do passado, ou seja, do período imediatamente anterior
aos eventos registrados na memória, em virtude de viver com as pessoas mais velhas.
Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado. “O
passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um
componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade
humana.” (HOBSBAWM, 1998, p. 23).
O não desprendimento total ao passado excluiria as mudanças e inovações legítimas.
Se o presente não pode ser uma cópia do passado, traçar a evolução histórica para
conhecer o povo de uma comunidade suscita questões relevantes para o estudo de um
povo ou de uma comunidade. Para Hobsbawm (1998), é necessário reconhecer
semelhanças e diferenças entre o passado e o presente porque o mundo se defronta
sempre com essas duas forças porque a história é previsão do futuro – atividade
92
necessária. “Toda previsão sobre o mundo real repousa em grande parte em algum tipo
de inferência sobre o futuro a partir daquilo que aconteceu no passado, ou seja, a
partir da história” (Ibid, p. 49-50).
O sentido de preservação da comunidade Quilombo de Ivaporunduva é notório tanto
nas relações internas e externas, com a natureza. Hoje são utilizados, para cultivo,
30% de toda área do território, nas roças de: arroz, feijão, mandioca, batata-doce,
cará, milho, maracujá e, em maior quantidade, de banana; o que garante um
desenvolvimento local sustentável, e cujo conceito é agregar valor ao produto e ao
serviço, concomitante à preocupação com a manutenção tanto da dimensão ambiental e
territorial, como com a produção natural e com o produto com valores agregados para
a geração de renda.
Para a comunidade se tornar independente dos programas assistencialistas e dos
projetos de ONG, a ponte será uma conquista importante, pois facilitará o
desenvolvimento local sustentável. Nas reuniões, as falas dos membros, lideranças e
produtores de bananas revelaram que a ponte significa, para a comunidade, a
concretização do direito constitucional de ir e vir. Essas falas revelaram, também,
que a comunidade tem consciência de outras implicações, não tão positivas, que o
desenvolvimento lhe trará.
A luta pela sobrevivência tem gerado um novo posicionamento e re-significação do
quilombola contemporâneo, a partir das transformações da sua história, no decorrer
dos séculos que sucederam ao fato de seus antepassados terem sido arrancados da
África e deportados para o Brasil. Por razões históricas e contemporâneas, essas
comunidades tradicionais do Vale do Ribeira são vítimas de um persistente e perverso
ciclo vicioso de abandono, marginalização, pobreza, despreparo, desqualificação,
desemprego, e consequente dependência de programas assistenciais.
Com Índices de Desenvolvimento Humano dos mais baixos do Brasil, e comparáveis
somente a algumas regiões críticas do nordeste brasileiro, o Vale do Ribeira é citado
duas vezes na lista dos 60 Territórios da Cidadania – regiões críticas de pobreza,
93
eleitas pelo Governo Federal como prioritárias para programas e investimentos de
desenvolvimento socioeconômico. O que falta, de fato, são iniciativas capazes de
interromper esse ciclo vicioso e iniciar um ciclo de ações de desenvolvimento social,
cultural, político e econômico para a população dessas comunidades. São frágeis e
lentos os benefícios efetivos à comunidade quilombola, trazidos pelos programas
governamentais, tais como o dos “Territórios da Cidadania” e o das “Meso-Regiões
Nacionais”, do Ministério da Integração Nacional, “Luz para Todos”, entre outros, os
quais visam promover ações para a redução da pobreza e das desigualdades regionais.
A experiência de expropriação da terra, vivenciada pelas comunidades ribeirinhas,
quilombolas, indígenas, caiçaras, camponeses, gera concomitantemente o êxodo rural
para os grandes centros urbanos, como também o enfraquecimento dos meios de
produção (agricultura familiar e de subsistência), em função de empreendimentos da
usina para geração de riqueza a partir de energia, desconsiderando o trabalho como
princípio de meio de produção da vida, bem como a preservação socioambiental,
cultural, econômica e política da comunidade. Para Gehlen (1991 apud PESSOA, 1999,
p. 80): “A expropriação dos camponeses significa igualmente a expropriação de seu
saber, do exercício de sua profissão, de sua gestão, de sua cultura, de seus valores de
referência, de suas relações afetivas [...]”.
Muitas regiões do Brasil têm vivenciado o problema da expropriação de terras, para
dar lugar às barragens. As comunidades quilombolas da região do Vale do Ribeira têm
se manifestado contra a construção das barragens ao longo de vinte anos. A luta e
resistência quilombola se dão na articulação política que consiste no legado dos
líderes quilombolas e dos moradores de quilombos à população mais jovem. É
perceptível a articulação política que faz parte do cotidiano da comunidade
quilombola. Para Denildo Rodrigues, liderança jovem quilombola do Movimento de
Atingidos por Barragens – MOAB:
94
Nós não somo contra gerar energia, mas nós temos que perguntar
energia pra que? Nosso povo vai ser beneficiada por essa energia?
Quem vai ser beneficiado por essa energia? [...]. Nóis aqui no Vale do
Ribeira a vinte anos tamo questionando, tamo lutando, já ocupamo o
prédio da Votorantim, já ocupamo o IBAMA em São Paulo, já ocupamo
o Ministério Minas energia em Brasília, já ocupamo vários canteiro de
obra de usinas hidrelétrica pra reparação tanto dos atingido que já
perderam suas terras, e que até hoje. Nóis somos contra essa forma
de gerar energia, nóis não somos contra em gerar energia, mas assim,
nóis somos contra essa energia que vai ser construída vai ser gerada
na idéia de tijuco alto, ela é uma energia duma empresa chamada
CBA- Companhia Brasileira de Alumínio, do Grupo Votorantim de
Erminio de Morais, esta energia gerada dessa empresa, não vai
acender uma lâmpada pra ninguém, vai se gerada energia pra produzi
alumínio pra competir no mercado internacional.
DENILDO RODRIGUES – BICO. Palestra realizada em 16 de janeiro
de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
A discussão e as propostas de ações estão presentes no espaço físico da igreja, e
ocorrem em reuniões e em informativos sobre os encaminhamentos de titulações de
terras de quilombos e de projetos que abordam questões relativas à: saúde, educação,
produção e comércio de bananas para o desenvolvimento local. Acontece uma
participação ativa da comunidade quilombola, que envolve crianças, adultos e idosos
em manifestações, como por exemplo, contra barragens, ou no ingresso de líder
quilombola na carreira política como vereador. Essas são ações, entre outras, que
legitimam a politização dos quilombolas no enfrentamento às posições contrárias que
se levantam para impedir a legalização de suas terras, bem como a preservação da
identidade cultural quilombola, que está intimamente ligada à agricultura familiar.
Para José Rodrigues, líder quilombola:
95
Os jovens quilombolas por si eles....tem a formação política, porque
assim, a luta do nosso povo é uma luta em todos os sentidos: luta por
educação, luta por saúde, luta por moradia, luta por terra né? Então
dentro dessas luta, nóis, mais velhos, vamos trabalhando e os mais
jovens vão continuando, então eles vão aprendendo a questão política,
porque tudo depende da política né? Essa questão de conseguir esse
objetivo, a questão da política do povo quilombola, já aprende na luta
né? Porque a gente luta por terra, a gente procura saber quem
resolve esses pobrema, quais são as política voltada, então a questão
da formação política, ele aprende logo na caminhada junto com os mais
velhos. Então os jovens quilombolas têm um pouco mais de formação
política porque eles participam da luta pela vida, né? Em todos os
sentidos: saúde, educação. Então isso, a formação, já vem da própria
luta né? [...] O futuro é o seguinte que nóis seja um povo reconhecido
como povo negro que tem o memo direto né? Cumprindo a constituição
brasileira , nóis somos um povo ainda discriminado né? Não somo bem
reconhecidos pela sociedade com...ter direito que todo mundo tem né?
Nós lutamos por melhoramento na educação por outro seguimento
tamém que precisamos, então quer dizer, o nosso povo, é.....nosso povo
tem uma luta em todos os sentidos né?, então eu acho que, por
questão política ele aprende na luta, privilégios, tamém...precisa lutar
pra conseguir alguma coisa. Então nosso povo é na luta ele aprende
tudo, porque ele tem que lutar pra sobrevivência num país desse
racista, que discrimina nosso povo né? Então né, nós temos que agir
dessa maneira, nosso jovens, nosso povo vai aprendendo tudo dentro
dessa luta. Então no futuro nóis queremos que essa sociedade, que
reconheça a nossa gente, como tamém brasileiro que tem direito que
nem tem todo mundo [...] Então eu acho que se nóis continuarmo
lutando nós vamos alcançar esse objetivo que é ter o direito pela vida
em todos os sentido como os outros tem.
JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE. Conversa realizada em 20
Agosto de 2008. Conversa no Quilombo Ivaporunduva56
2008 apud AMÉRICO, 2008 p. 47).
A comunidade está em um momento de transição frente às expectativas no que se
referem às possibilidades de acesso aos bens comuns; o que implica um movimento de
transitoriedade em busca de emprego visto que o trabalho da agricultura familiar não
tem gerado renda suficiente para atender as demandas básicas de consumo. As
evidencias apontam para a falta de acesso aos bens materiais e tecnológicas em
56 A gravação dessa entrevista foi realizada pela Tânia Américo em 2008 quando realizando a pesquisa de campo para
compor o trabalho de Conclusão de Curso em Pedagogia. Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba,
2008. O material foi cedido e retextualizado por mim. Ver em: AMÉRICO, Tânia A. Cultura e Educação
na Comunidade Quilombola de Ivaporunduva no Vale do Ribeira. Trabalho de Conclusão de Curso em
Pedagogia. Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, 2008.
96
decorrência da marginalização oriunda da lógica do sistema capitalista. Por outro lado,
o sistema que está disponível para atender as comunidades é contraditório, pois a
população depende totalmente dos órgãos públicos: o Estado e a Prefeitura Municipal;
duas instituições geradoras de empregos e prestadoras de serviços nas áreas da
saúde, educação e transporte.
A influência do poder público local é marcante nessas comunidades. Há fortes
resquícios de coronelismo, também chamado caciquismo57, por conta do que, ainda nos
deparamos com situações, como, por exemplo, a sonegação de socorro e de assistência
médica às pessoas de partidos políticos opostos aos dos governantes locais, entre
outros absurdos. Existe uma inter-relação de dependência entre os programas
assistencialistas financiados pelo Governo, projetos de ONG e mesmo de
Universidades, e as comunidades quilombolas. As comunidades têm sido peças
estratégicas para captação de recursos para pesquisa ou para estudos acadêmicos,
cujos projetos apontam como objetivo central a geração de renda para determinada
comunidade. Porém, o recurso não fica para os membros da comunidade, não são deles
os conhecimentos; os técnicos contratados são de fora ou ligados a ONG e
Universidades e, ao término dos projetos a comunidade volta a ser dependente de
outros projetos – não se concretiza a autonomia desejada; o que me leva a questionar
se a partir do acesso aos conhecimentos, das especializações de nível superior
adquiridas nas universidades, os quilombolas poderiam contribuir com a comunidade.
Se a especialização, nas mais variadas áreas, garantiria o trabalho e a renda a partir
dos recursos naturais disponíveis no território, o que faria com que a população
quilombola não necessitasse procurar os grandes centros urbanos como única opção
em busca de renda. Faz-se necessária uma análise sobre os riscos que uma
57 Esse fenômeno é personificação mais acabada do poder privado no Brasil. Surgido em 1831, com a
criação da Guarda Nacional no Brasil, é identificado com o Brasil de passado agrário, rústico e arcaico,
mas ainda sobrevive em certos estados do Nordeste, como o poderoso “mandão local”. É ele que compra
terras, emprega pessoas, abusa sexualmente de menores, tem amantes em outros locais e domina o poder
local com mãos de ferro.
97
comunidade quilombola tem diante de uma sociabilidade altamente complexa (a
capitalista) que subjuga todas as demais.
[...] Nós temos várias fonte de geração de renda, agricultura de
subsistência, aquilo que a gente pranta pro próprio consumo, mas
também levando em consideração porque se nós fosse pensar
simplesmente, puramente na questão do dinheiro não na questão da
agregação do valor aos seus produto, toda essa mata que a gente vê
aqui taria tudo no chão, ou plantado eucalipto, ou prantado pinos,
outra monocultura que dá dinheiro, mas nóis não queremos isso, o que
nóis queremos é conciliar o desenvolvimento humano e com a
preservação ambiental, nós não queremos dinheiro pra nós se...nós
queremos condições pra nóis dá aquilo que o Ditão falou, dá estudo
pros nossos jovens, dá oportunidade pro nossos jovens pra eles tá
formando na cidade e voltando pra comunidade pra contribuir cada
vez mais, não só com desenvolvimento da nossa comunidade, mas
tamém com o desenvolvimento das outras comunidades em volta. Isso
é importante.
DENILDO RODRIGUES – BICO. - 28 anos. Palestra realizada em 16
de janeiro 2010, no Quilombo de Ivaporunduva .
As ações das lideranças quilombolas são pela inserção dos seus jovens no ensino
superior e em cursos profissionalizantes, para que se apropriem dos avanços
tecnológicos na área de ensino, pesquisa, informática, formação de lideranças
quilombolas nas diversas áreas, com o objetivo de encerrar o ciclo de dependência de
programas assistencialistas e de projetos de ONG e mesmo de universidades.
Seguindo a linha de pensamento marxista de Heller (2008, p. 16), se a interferência e
mudanças de valores é resultado das relações e situações sociais – “a própria
produção humana pode ser universal, livre, consciente ou, ao contrário, como ocorre
na alienação especializada, mecânica, escravizada ao salário”.
Na comunidade, pensar sustentabilidade está ainda ligado ao desenvolvimento
coletivo, não se descola dos laços da tradição passada. Existe uma luta constante na
comunidade para manter os jovens na terra. Entendo que a terra provê o sustento e
constitui o homem pelo trabalho ao transformar a natureza, e essa é uma atividade
consciente.
98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMÉRICO, Tânia A. Cultura e Educação na Comunidade Quilombola de
Ivaporunduva no Vale do Ribeira. Trabalho de Conclusão de Curso em Pedagogia.
Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, 2008.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História; tradução de Carlos Nelson Coutinho e
Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
HOBSBAWM, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
ISA – Instituto Socioambiental. Campanha contra barragens no Ribeira: Audiência
Tijuco Alto, 2007. Disponível em:
<http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>. Acesso em: 02 jul. 2010.
ISA - Instituto Socioambiental. Campanha contra barragens no Ribeira, 2007.
Disponível em: <http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>. Acesso
em: 02 jul. 2010.
ISA - Instituto Socioambiental. Campanha contra barragens no Ribeira: O que
dizem os movimentos sociais e associações do Vale do Ribeira, 2007.
PESSOA, Jadir de M. Aprender e ensinar no cotidiano de assentados rurais em Goiás.
Revista Brasileira de Educação. 1999, n. 10, p. 79-89.
SILVA, Laudessandro Marinho. Proposta de Implantação do Cooperativismo para a
venda de produtos orgânicos no Quilombo de Ivaporunduva. Trabalho de Conclusão
de Curso em Administração de Empresas. Universidade São Francisco. Itatiba, 2008.
99
TERCEIRO TEXTO
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E MODOS DE VIDA
100
A forma como a comunidade quilombola e, em especial, a comunidade de Ivaporunduva
lida com o passado e enfrenta os embates do presente têm características bastante
peculiares, que são constituintes da própria formação sociocultural desse povo. As
relações que os quilombolas estabelecem com seus antepassados estão presentes nas
suas relações cotidianas, não como cópia, mas como continuidade renovada. Na
continuação deste estudo, busco articular a relação que a população da comunidade
Quilombo de Ivaporunduva estabelece com o território, a partir dos seus modos de
vida, e como compreendem o território e a própria relação com a terra e a floresta,
com a etnicidade e a história da formação da comunidade, contada pelos próprios
quilombolas de geração a geração.
***
Parece-me importante trazer a contribuição do geógrafo brasileiro Milton Santos
(2007), para que se possa esclarecer o conceito de territorialidade. Para esse autor,
o território não pode ser visto unicamente como uma superposição do construído pelo
“homem” sobre o “natural”. O território é o chão, mais a população que nele habita. Aí
os homens constroem o sentimento de pertencimento. “O território é a base do
trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais
ele influi” (p. 96). O autor se refere ainda ao “território usado”, utilizado por uma
população e, como tal, é um campo de batalha, uma arena de luta entre interesses;
mas, diz ele, também é o lócus de possibilidades de solidariedade.
Tenho consciência de que a história que trago, os depoimentos, os relatos, as
fotografias, as memórias e a minha vivência entre os quilombolas – meus
interlocutores – sofrem, enquanto lido com eles, “redução brutal das inúmeras
possibilidades de interpretação da experiência de campo e do difícil exercício de
alteridade realizado” – tomando emprestadas as palavras de Silva (2000, p. 118).
101
Em 1994, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) divulgou um documento
elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, com a definição
do termo “remanescente de quilombo”, a partir da resolução do Artigo 68 dos Atos
Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal (CF) de 1988.
Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou
resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação
biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população
estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram
constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas,
sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de
resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida
característicos num determinado lugar58.
Comunidades remanescentes de quilombo são grupos sociais, e o que os caracterizam
é a identidade étnica, que os distingue do restante da sociedade. Identidade étnica é
um processo de autoidentificação, dinâmico e que não se reduz a elementos materiais
ou traços biológicos distintivos.
A identidade étnica de um grupo é a base para sua forma de
organização, de sua relação com os demais grupos e de sua ação
política. A maneira pela qual os grupos sociais definem a própria
identidade é resultado de uma confluência de fatores, escolhidos por
eles mesmos: de uma ancestralidade comum, formas de organização
política e social a elementos lingüísticos e religiosos59.
Na convivência com os quilombolas de Ivaporunduva, para compreender as relações ali
estabelecidas entre os membros da comunidade, observei: as discussões das famílias
em busca de soluções para manter a sobrevivência no território; a maneira como os
quilombolas organizam-se para defender sua terra; o trabalho das famílias na
agricultura de subsistência; as divisões de terra entre os membros da comunidade; as
discussões dos grupos de trabalhos ali estabelecidos; as reuniões, assembléias e
eleições da coordenação da associação quilombo Ivaporunduva; as relações com outras
entidades etc.. Pude perceber que essas relações não ocorrem de forma harmoniosa;
elas são conflituosas. Utilizo aqui uma fala do Zé Rodrigues: “A nossa luta do dia-a-dia
58Ver em: Comissão ProIndio. Disponível em: <http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/i_oque.html> Acesso em: 28 out. 2010. 59 Ver referência n. 27
102
vai tê que continuar. Aí nós vamos tê que, cada vez mais, se organizar melhor. Pra ter
uma qualidade de vida boa, geração de renda boa, manter os laços culturais de
amizade e de irmão. Mas eu acho que nós temos mais luta.”
Para Bauman (2001), a palavra “comunidade”, na sociedade moderna, passa por
diversas interpretações e entendimentos. Esse conceito está carregado de sensações
agradáveis e associado à segurança, aconchego e bem-estar no interior de uma
determinada comunidade. O autor pontua, porém, que o conceito de comunidade, como
entendimento comum, só é possível de ser alcançado a partir de uma “longa e tortuosa
argumentação e persuasão”, o que compreende também inúmeras discussões para
solucionar os problemas da vida. Ele acrescenta que:
O acordo comum nunca estará livre da memória dessas lutas passadas
e das escolhas feitas no curso delas. Por mais firme que seja
estabelecido, portanto, nenhum acordo parecerá tão “natural” e
“evidente” [...] Nunca será imune à reflexão, contestação e discussão,
quando muito atingirá o status de um “contrato preliminar”, um acordo
que precisa ser periodicamente renovado, sem que qualquer renovação
garanta a renovação seguinte. A comunidade de entendimento comum,
mesmo alcançada, permanecerá, portanto, frágil e vulnerável,
precisando para sempre de vigilância, reforço e defesa.
(Ibid, p. 19).
Busco compreender o conceito de comunidade para os membros do Quilombo de
Ivaporunduva, a partir de uma fala que retomo da Zica:
[...] Primeiro é pensar na família; na verdade, é pensar na família pra
trabalhar para as famílias. E como quilombo, como comunidade tudo
mundo é família, tudo mundo é sangue de uma forma e de outra, então
você pensa em todo mundo. As pessoas as vezes podem olhar, não
existe união ali ou aqui, mas em quilombo, de uma forma ou de
outra sempre vai existir a união, porque o sangue fala mais alto e as
pessoas na hora de trabalhar, de se unir pra ajudar o irmão, um ajuda
o outro e não fica pensado em querê crescer e deixar o outro pra
trás.
IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança
quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo
de Ivaporunduva
103
Ao dizer “as pessoas podem olhar, não existe união ali ou aqui”, Zica pontua que as
decisões e a convivência entre os membros, mesmo sendo famílias, não são
harmoniosas, porém, “de uma forma ou de outra sempre vai existir a união”, ou seja,
mesmo em meio aos conflitos, as tensões e os problemas serão solucionados, pois
existe uma interdependência nas relações para se garantir a sobrevivência.
Há basicamente cinco espaços dentro de Ivaporunduva, onde os grupos familiares
predominam diferenciadamente na ocupação da localidade. As famílias estão em
situações e posições também diferenciadas na comunidade e, muitas vezes, na
dinâmica das relações, elas divergem e convergem em aspectos e interesses
específicos. Está presente a contradição.
Vamos pensar geograficamente, você sabe que Ivaporunduva não é
uma só comunidade, né? Você percebeu? O quilombo são vários
quilombos, cada grupo desse, tem uma situação diferenciada dos
outros. Sim, analisando Bocó, analisando Córgo Grande, analisando
Cortesia, Reversa, analisando Vila você vai ver que são coisas
diferentes, são muito diferentes. Ivaporunduva são cinco grupos. Aí
você vai ver que o jeito de visão das coisas é diferente.
ORIEL RODRIGUES, 38 anos -Liderança Quilombola– Conversa
realizada em 13 de agosto de 2009, no Quilombo de Ivaporunduva.
O Quilombo de Ivaporunduva está vivenciando um profundo e dinâmico processo de
transformação, num momento em que a comunidade discute sua reorganização para um
novo estágio de busca de desenvolvimento e acesso aos bens materiais e outros
conhecimentos o que engloba os tecnológicos. Nesse sentido, minha atenção está
voltada para o fortalecimento das ações reivindicatórias com foco no atendimento das
demandas de acesso a saúde, transporte, educação, cultura e fortalecimento político,
social e econômico, nesse caso, a partir da comercialização dos produtos e serviços
ofertados pelas famílias da comunidade, visando a geração de renda.
O primeiro local que visitei foi a casa dos pais de Zilda60, os Furquim, que fica no
bairro Bocó, retirado da Vila central. As famílias do Bocó são predominantemente de
60 Zilda é a representação da típica mulher “nascida e criada no Quilombo de Ivaporunduva”. Mulher,
negra, mãe e avó, cuidadora dos filhos biológicos e dos vários filhos agregados que vivem com a família.
104
sobrenome Furquim. A demarcação do território estabelece os locais para agricultura
familiar, que geralmente são próximos da casa patriarcal. Os filhos, ao casarem-se,
fixam suas moradias em torno ou muito próximo da casa dos pais. Em locais mais
distantes da Vila, tais como Córrego Grande, Cortesia, Reversa e Bocó, encontramos
famílias vivendo em casas edificadas com estrutura tradicional, ou seja, em Capuova61,
como explica Ditão:
Aqui é Capoava, desta forma que era casa antigamente, veja bem, o
escravo saiu da escravidão ele não tinha assim nenhuma tecnologia
pra fazer casa, então óh, aqui tem quatro produto, quatro material.
Se você olhar bem só tem a madeira, o cipó, o barro e o capim esses
quatro produto, quatro material eles faziam a casa deles entendeu? O
cipó fazia o papel de parafuso, dos arame pra amarra, do prego, o
barro pra fazer parede, papel da parede, do broco, o capim o papel
da telha e madeira é a base da casa, do barganho aqui que seria aquela
viga que a gente faz o cimento pra começá a casa, aqui é capoava, ela
é uma casa térmica que na época de calor, igual agora se você entrar
aí dentro tá fresquinho e na época do frio ela é mais aquecida mas
quente não muito fria. Eu nasci numa casa dessa forma
BENEDITO ALVES – DITÃO. 55 anos. Passeio pela Trilha do Ouro -
realizado em 17 de janeiro de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva62.
Uma jovem senhora que traz consigo os costumes tradicionais das mulheres mais idosas da comunidade.
De olhar profundo e observador, ao mesmo tempo desconfiado, Zilda carrega consigo a tranquilidade e
sensibilidade da cura e da vida que vem da terra, da água, das ervas, do mato e das rezas que tanto
respeita. Mulher que aprendemos a respeitar desde o primeiro contato. Zilda me apresentou as famílias
de sobrenomes Furquim, Pupo, Rodrigues, Silva e Marinho, as quais compõem a comunidade. 61 Capuova é o espaço utilizado pelos quilombolas onde eles fazem as suas roças e constroem as suas
moradias - a casa de pau-a-pique que é chamada também por capuova. 62 O relato faz parte de uma explicação sobre os modos de vida dos quilombolas na comunidade
Ivaporunduva. Essa explicação se deu, durante uma atividade do Ecoetnoturismo para um grupo de
Professores – o passeio pela Trilha do Ouro, considerado a rota do trabalho da extração do ouro da
população negra na época da escravização.
105
Depois, Ditão conta que “o escravo saiu da escravidão ele não tinha, assim, nenhuma
tecnologia pra fazer casa”. Em algumas passagens da história ele narra sobre quando
o negro fugiu do trabalho escravo e fez a capuova com os materiais que encontrou na
natureza.
Há de se pensar o que seriam os quilombolas na sociedade brasileira, na época da
escravidão, ou seja, nesse contexto seriam pessoas negras fugidas do trabalho
escravo ou abandonados nesse local pelos donos de escravos. Não só a casa de pau-a-
pique, mas os seus meios de sobrevivência demonstram que foram as condições reais e
materiais que determinaram o tipo de moradia e as formas como os quilombolas se
organizaram para produzir a vida, dependendo exclusivamente do que encontraram na
natureza e transformaram. Utilizaram a técnica de produzir a vida com a geração que
os antecedeu, considerando sua força de trabalho que produziu e reproduz, ou seja,
transformando a partir da atividade que aprenderam com os próprios quilombolas. A
história desse povo mostra que ele se organizou para produzir a vida material e
Figura 1: Ditão: Explicando o que é uma Capuova, -
Trilha do Ouro - Quilombo Ivaporunduva
Fonte Própria (2010)
106
conservar suas crenças, unindo tradição com o novo que foram criando e
transformando, refletindo no que atualmente são. “Os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem, sob circunstancias de sua
escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente ligadas e transmitidas
pelo passado” (MARX, 1997, p. 21).
Nas localidades fora do centro da vila, como, por exemplo, no Bocó, é possível
observar e vivenciar características tradicionais na cultura praticada pelas famílias
quilombolas. No que se refere à estrutura das casas dessas famílias, a mudança não
foi tão brusca, mesmo com a recente chegada da energia elétrica. Tanto para
construir a casa quanto para produzir os móveis (cama, armário, bancos, mesa), são
utilizados as madeiras, tocos de árvores, cipós e bambu, todos eles produtos
reaproveitados da matéria prima advinda da mata.
Para a construção da capuova, o trabalho é realizado em mutirão, ou seja
coletivamente, portanto não carece de renda (ver figuras: 3 e 4). No entanto, os
moradores que estão na Vila, têm adotado gradativamente o modelo de construção de
casa de alvenaria, o que necessita de trabalho especializado e, portanto trabalho
remunerado.
A água do rio Bocó vem de várias nascentes é utilizada pelas famílias para beber e
cozinhar, pescar, banhar e lavar roupas. Ao longo do rio Bocó é comum encontrar as
mulheres lavando roupa dentro rio, enquanto a poucos metros de distância, as crianças
estão também ali nadando, brincando, pulando das pontes feitas com troncos e
saltando dos galhos das árvores (ver figuras: 5 e 6).
A taipa63 utilizada para preparar alimentos foi mantida, mesmo tendo o fogão a gás em
algumas casas (figura 7). A lenha consumida nas taipas é retirada dos galhos caídos na
mata, permitindo que as famílias economizem com a compra de gás (GLP), e diminuam
63
O fogão a lenha que é feito de barro e bambu é chamado pelos quilombolas de taipa. Taipa =
fogão a lenha feito de barro.
107
as dificuldades práticas em adquirir os bujões. A família patriarcal, no geral, é bem
numerosa, tendo em média nove filhos, mais os netos, bisnetos e os sobrinhos
agregados.
Figura 4: Barreação da casa de pau-a-pique da Maria
Furquim - Bocó
Fonte Própria (2007)
Figura 3: Preparo do Barro para revestir a casa - Maria Furquim - Bocó
Fonte Própria (2007)
Figura 5: Casa de Pau-a-pique pronta - Bocó
Fonte Própria (2007)
108
Tradição Oral no Quilombo de Ivaporunduva
No Quilombo de Ivaporunduva, a história cultural está fundamentada na oralidade,
que ocorre nas interações intra e entre famílias e comunidades quilombolas irmãs. As
rodas de conversa geralmente se iniciam no final da tarde e avançam noite adentro.
São momentos especiais de interação entre os idosos, adultos, jovens, adultos e
crianças, mulheres e homens, todos em torno do fogo, no terreiro das casas ou em
Figura 8: Casa Vó Celina – Bocó
Fonte própria (2009)
Figura 5: Rio Bocó
Fonte própria (2007) Figura 6: Rio Bocó – Vó Celina lavando Roupa Rio Bocó
Fonte própria (2010)
Figura 7: Taipa – Fogão de Barro
109
volta da taipa acesa, que aquece a casa de pau-a-pique, no inverno e no verão. Mesmo
em dias quentes de verão, a taipa é mantida acesa para esquentar água, preparar o
alimento e espantar insetos, como borrachudo, pernilongo e moscas. Em alguns
momentos, em meio a conversas, os mais idosos tomam a palavra e dão início à
contação de histórias, que normalmente são seguidas de uma rica discussão ou debate
de idéias, com livre participação de todos.
As mesmas histórias são contadas de diferentes maneiras ou enfoques, mas sempre
ouvidas atentamente como se fosse pela primeira vez. Os personagens recebem o
sobrenome do avô ou da avó de uma das famílias da comunidade. As histórias de vida
presentes nos contos sobre os antepassados, na tradição e nos mitos, são bem
carregadas de significados e valores, normalmente pintados por fatos ou fatores
sobrenaturais impressionantes e marcantes.
Contar história é uma arte que transforma um simples momento da vida em uma
situação mágica e poderosa. Alguns que chegam, espiam, escutam e por ali ficam. O
ensino e aprendizagem acontecem por meio da oralidade. Assim foi e continua sendo.
A história da comunidade quilombola de Ivaporunduva ainda tem sido transmitida de
pai para filho e de geração a geração. Como diz Setiloane, “A memória e a capacidade
de contar história são duas qualidades vitais [...].” (SETILOANE, 1992, p. 13).
Figura 10: Roda de Conversa no Bocó
Jardete, Nhá Neire, Vó Celina e Zica
Fonte Própria (2008)
Figura 9: Roda de Conversa na praça
Fonte própria (2009)
110
Ouvi várias vezes nas rodas de conversa, histórias contadas por diversos integrantes
da comunidade, que traziam mitos, por meio dos quais relatavam a formação da
população quilombola; dentre esses mitos, encontramos o da geração dos “neguinho
d‟água”, um dos favoritos dos mais velhos. Na primeira vez que tive oportunidade de
ouvi-la, não utilizei recursos de equipamentos de áudio e vídeo para realizar o
registro, considerando ser um dos contatos iniciais com a comunidade. Naquele
período, o que me saltava aos olhos era a riqueza das narrativas, histórias de vida e
cultura local até então desconhecidas por mim.
Quem me concedeu o relato desse conto foi o jovem Cristiano Furquim, morador do
Quilombo de Ivaporunduva (figura 9). Ao perguntar se ele conhecia a história do
neguinho d‟água, ele disse: “Eu conheço a história da nega d‟água, inclusive existe
descendente dela na comunidade, a Euzébia. Ela é minha parente, mora na
comunidade.” Eu me surpreendi, pois não conhecia essa versão, que na verdade era
inédita, uma vez que as várias versões da história que eu ouvira até então eram dos
“neguinhos d‟água”, mas nunca da “nega d‟água”, o que me fez questionar sobre o
dominante protagonismo masculino nas relações sociais, políticas e econômicas. O meu
olhar brilhou e me enchi de curiosidade: Nego d‟água ou Nega d‟água? Não é meu
objetivo, neste momento discutir questões de gênero.
Pude observar que a tradição oral é conhecida e dominada pelos mais jovens, e os
contos são relatados de várias formas, modificados e re-significados pelas pessoas
que as contam. Os mitos são carregados de histórias e simbologias, valores e fatos
impressionantes, os quais revelam a formação e a transformação da comunidade.
111
[...] Quem me contou a história foi meu Vô e a minha Vó. Tinha
gente que ia pescar de tarrafa na ribeira de canoa, os
quilombolas. Teve um dia lá, que eles conseguiram catar essa
nega d‟água na tarrafa. Eles foram catá peixe (risos), e aí eles
pegaram ela, daí falam que foi necessário mais ou menos uns
dez homens pra poder tirar ela da água, que ela era
pequenininha mais era forte que nem um burro (risos). Ela tinha
mais ou menos um setenta centímetros. Dizem que era
pretinha, de cabelo tão duro, sequinho que parecia que ela nem
tinha cabelo, com rosto de gente, normal, detalhes, o dedo dela
aqui (mostra a mão aberta) sabe como é dedo de pato? Têm
aquelas nadadeiras? O dedo dela tinha aquelas nadadeiras no pé
e na mão, eles pegaram ela, levaram pra terra, pra tentar fazer
ela se adaptar na terra, depois fizeram lá aqueles... Como posso
falar...fizeram um ritual deles, pra desencantar ela, chama
desencanto64, se não fizessem o ritual com o sal que jogam o sal
pra fazer com que ela desencantasse, se não fizesse esse ritual
ela desaparecia, fizeram e ela se manteve lá, ela casou com
negro do quilombo. O sobrenome dela agora é Euzébia, Maria
Euzébia dos Santos, ela é mãe, tem os netos descendentes dos
neguinhos da água.
CRISTIANO FURQUIM. 24 anos. Quilombola de Ivaporunduva.
Conversa realizada em 24 de abril de 2010.
Cristiano Furquim, ao relatar o conto da “nega d‟água”, quando enfatiza que “o pessoal
de lá dizem”, ele toma a posição de que precisa acreditar no que os seus avós lhe
contaram. A entrevista, no início, foi bastante pausada, cada palavra foi escolhida e
pensada por ele, cuidadosamente, antes de ser pronunciada. Ao dizer “eles disseram”,
não “eu", foi perceptível seu conflito e sua preocupação com o meu olhar de
pesquisadora, no sentido de um pensar a pesquisa e a crença como elementos
desarticulados, dissociados, como se a pesquisadora teria dificuldade em crer que ele
acredita nas histórias que os avós contaram.
64Cristiano explica a necessidade de realizar o desencanto na Neguinha D‟água para ela não desaparecer.
Para a comunidade: “O encanto lá pra nós é um seguinte, por exemplo, igual se eu achar uma pedra de
ouro lá no quilombo, o ouro ele é encantado segundo (levanta as duas mãos e faz o gesto como se fosse
entre aspas) as pessoas de lá, sim, porque a gente não tem poder sobre ele, se eu pegar um ouro e
colocar em cima da mesa, segundo o pessoal lá, amanhã eu vou chegar aqui ele não vai estar aqui, ele vai
desaparecer, e aí tem que fazer aquele ritual, como ouro, tem que fazer xixi no ouro (risos) ou cortar o
dedo e pingar sangue”. (Conversa realizada em 24/04/2010).
Figura 9: Cristiano Furquim.
Fonte Própria (2008)
112
No silêncio das pausas e no entrecruzamento de olhares durante a entrevista, percebi
que havia uma preocupação de Cristiano em assumir que acreditava nos contos do seu
avô. Em alguns momentos, ele conta o mito evidenciando claramente que acredita na
existência dos descendentes da nega d‟água e do nego d‟água que circulam ali por
perto da Ribeira. Em outros momentos, ele deixa dúvida se acredita ou não Ao final da
entrevista, convicto, Cristiano Furquim afirma:
Pesq.: Você acredita que existem os descendentes dos neguinhos
d‟água no quilombo?
Cristiano Furquim: Ah – (fica em silêncio pensativo) – assim, (faz um
novo silêncio) eu acredito;
Pesq.: Pergunto tentando entender: Por que acredita?
Cristiano Furquim: responde convicto – Acredito, porque acredito.
Setiloane (1992), em seu livro “Teologia Africana uma introdução”, explica que:
No seu mito sobre a “gênese” das coisas, é significativo o fato de que
os africanos invariavelmente ensinam que o primeiro aparecimento de
pessoas se deu em grupo, em companhia. Nesses mitos, quer as
primeiras pessoas tenham saído de “um campo de caniços”, quer
tenham saído de “um buraco no chão”, foi como uma comunidade de
homens e mulheres, crianças e animais que vieram [...].
(Ibid, p. 23).
Cristiano Furquim, quando fala dos descendentes da nega d‟água: “Maria Euzébia dos
Santos é mãe de um tio meu que é casado com a minha tia, ela tem os netos
descendentes dos neguinhos da água”, traz uma especificidade da comunidade. Entre
os membros da comunidade existem laços familiares muito próximos; as pessoas são
parentes ou são agregados, que se tornam parentes ao se casarem com alguém da
família. Portanto, primos e primas de primeiro, segundo e terceiro grau casam-se e se
reproduzem entre si. Setiloane (1992) reforça que essa forma de organização social
de instinto gregário é uma característica africana.
113
[...] A família africana ampliada é uma expressão proverbial. Num
vilarejo ou cidade segregada africana onde as pessoas tenham podido
estabelecer sem sofrerem a ruptura de remoções forçadas, verifica-
se que um ambiente de grande família se encontra por toda a parte:
toda pessoa é parente de outra. Esses relacionamentos de sangue,
casamento ou por mera associação são baseadas na emoção e tratada
com muito carinho.
(Ibid, p. 23).
A partir dos mitos, o trabalho da preservação do território é abordada e transmitida
aos mais jovens pelos mais velhos. Desde a tenra idade as crianças aprendem sobre os
impactos ambientais: desmatamento das florestas e matas ciliares, assoreamento dos
rios e a extinção de diversas espécies de peixes, inclusive a extinção dos/as
neguinhos/as d‟água que fazem parte da cultura local. No entanto a partir do mito a
criança elabora o trabalho de caça, da pesca e da roça.
Dizem que tinha bastante (Aqui ele está se referindo ao Neguinho
d‟água) e também falam que eles estão sumindo (do Rio Ribeira de
Iguape) pelo fato do desmatamento está sendo muito, e não tem onde
eles se esconderem o rio está diminuindo o nível d‟água, enfim o
impacto ambiental que está fazendo com que eles desapareçam.
CRISTIANO FURQUIM, 24 anos. Conversa realizada em 24 de abril
de 2010.
Na formação e existência do que compõe a natureza, o que é inexplicável é respeitado
e o incompreendido pode se tornar encantado. É notável que a relação dos quilombolas
com a terra seja compreendida por meio das histórias, quer seja dos descendentes da
“neguinha d‟água”, quer seja por crença, como por exemplo, a de que não se deve levar
dinheiro ao acompanhar um grupo que sai para caçar na mata. Segundo a explicação
dada por eles, levar dinheiro é um impedimento para a caça farta, pois os bichos
somem. Nesse caso, cabe ressaltar a analogia: o dinheiro associado à idéia de
consumo. A mata e a terra, estando articuladas à sobrevivência e à sustentabilidade,
pertencem-lhes, porém, tal pertencimento parte de uma relação que vai além da
posse, por indicar uma interdependência entre as pessoas, a terra e a mata. Se as
pessoas dependem da terra e da mata, preservam-na, e isso traz implicações
indissociáveis entre sobrevivência, sustentabilidade e preservação ambiental.
114
Cristiano diz: “Se eu achar uma pedra de ouro lá no quilombo, o ouro ele é encantado
segundo as pessoas de lá, porque nós não temos poder sobre ele”, ainda reforça
dizendo que o que existe no território o homem não tem total domínio para controlar,
caso não o preserve.
Setiloane (1992) discute as fontes do conhecimento na tradição africana, no livro
“Teologia Africana uma introdução”. Trata-se de um trabalho apresentado
especificamente à juventude da África do Sul (moderna e urbanizada), que foi
“engolida” pelo mundo ocidental “civilizado”, o qual defende a idéia de progresso,
desenvolvimento, valores e espiritualidade como que inerente à cultura de consumo, o
que, inevitavelmente, gera conflitos e o distanciamento das tradições e da idéia de
constituição de um povo como grupo humano
O processo de internalização de uma visão de mundo ocidental sob o paradigma do
consumo traz consigo um distanciamento histórico, no que se refere aos jovens
mencionados pelo autor. Esquece-se que antes de os exploradores tomarem seus
territórios, havia nas sociedades e comunidades um sistema e uma ordem que
regulavam a vida em conjunto e tornavam possível a realização do indivíduo na vida
pessoal e comunitária. Para o autor, “o analfabetismo nas primeiras comunidades não
significava embotamento nem ignorância, muito menos a incapacidade de desenvolver
as artes” (Ibid, p. 13). Foi possível, assim, que a tradição oral acompanhasse a história
dos povos africanos e de seus descendentes com objetividade.
Tradição oral não é algo que estava lá só pra entreter e afastar o
tédio das longas noitadas. Era um meio de Educar. Os métodos
africanos de educação, o modo como as pessoas eram preparadas para
a vida e a sobrevivência, como a consequente preservação da espécie,
e seus valores e normas, eram tão prosaicos e despretensiosos em
comparação com os modos ocidentais, sofisticados, que têm sido
frequentemente postos de lado como inexistentes ou irrelevantes.
Essas Ditshomô, Dinôôlwane, Iintsomo (histórias populares) continham
invariavelmente um ensinamento moral, com objetivos de formar o
caráter, a fim de criar uma vida comunitária harmoniosa.
(SETILOANE, 1992, p. 14).
115
Tendo em vista o declínio da tradição oral na África do Sul pelo desenvolvimento dos
moldes da cultura ocidental, talvez possamos pensar ou prever o que poderá
acontecer com as relações estabelecidas entre as pessoas da comunidade Quilombo
de Ivaporunduva
A história da comunidade Quilombo de Ivaporunduva vem sendo construída por meio
da relação desse povo com a história de seus antepassados africanos escravizados
naquela localidade. História que é passada principalmente pela oralidade, de geração a
geração, e vai sendo transmitida, apreendida, modificada e significada, perdurando
dialeticamente há mais de quatrocentos e cinquenta anos.
A partir do mito da nega d‟água, observamos que a tradição oral está presente no
cotidiano dos idosos, adultos, jovens, adolescentes e crianças da comunidade, como
constatamos no relato de Cristiano.
Zica, uma liderança jovem quilombola me concedeu uma entrevista e explicou sua
concepção de comunidade sustentável, que se contrapõe ao modelo de
desenvolvimento capitalista dominante. Vejamos:
116
As pessoas que tem poder, vamos dizer assim, tão
desmatando, construindo indústria e fazendo mundo e
indústria e poluição e aí? O que nóis vamo comê? Na onde
tinha terra e tinha fertilidade nóis fizemo indústria, nóis
poluímos. E aí? Vamos comê nossas empresas? Vamos comê
nossa fumaça ? (ela ri) não, é bem grosso isso aí. Mas é
uma refrexão. Aí vão ficá loco pra vim em cima de nóis que
preservamo isso aqui, que eles achavam que era errado
que nóis deveríamos ter prantado eucalipto feito
pastagem de gado, vamos dizer assim. Aí nóis tamo aqui
sossegadinho, fazendo o nosso fogão a lenha, comida no
fogão a lenha, colhendo aquilo que nóis plantamo e
comendo. E eles lá doido pra viver isso que vivemo aqui
hoje. Aí eles vão viver tudo esse tempo inteiro aí, a vida
inteira e entendê que tudo que eles fizero foi em vão. E
nóis tamo aqui sossegado. Que eles correro, cansaro e não
alcançaro nada, correro, correro, correro, cansaro e não
alcançaro nada, porque não tem o que comê, vai vivê do
que? E nóis? tamo aqui, vivendo sossegado não corremo,
fomo de um passo de cada veiz, é engraçado isso né? (ela
ri). E nóis tamo aqui no nosso pedacinho de terra do
mesmo jeito que era antes, comeno e bebeno, respeitano o
meio ambiente, comeno o nosso peixinho, que se Deus
quiser a barragem não vai saí pra atrapalhá de ter nosso
peixinho de forma artesanal aqui, respeitano a época de
desova, comendo ele na época que pode. Nós não queremos
esse desenvolvimento não. Nós não queremos prantá
eucalipto, eucalipto, eucalipto aqui, pra criá gado, gado,
gado e saí queimano tudo atráis de boi. Pra nóis que somo
da associação num é interessante.
IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos -
Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo
de Ivaporunduva.
Devemos considerar que a comunidade está vivendo e discutindo um processo de
transformação e mudança a partir das propostas de desenvolvimento e acesso aos
bens materiais e culturais do mundo globalizado. Ainda encontramos muito “de
comunidade quilombola” nas relações, mas, de forma gradual, a comunidade quilombola
está sendo pressionada, cada vez com mais força, a entrar no sistema de
Figura 10: Ivonete Alves da Silva Pupo –
Zica e Paulo Silvio Pupo
Fonte Própria (2010)
117
desenvolvimento capitalista, cujos valores (cultura do consumo e tecnologia), aos
poucos, estão sendo apreendidos pela comunidade, interferindo em seus costumes, na
sua tradição e na sua espiritualidade.
Para o quilombola Bico, o desenvolvimento da comunidade está interligado à
preservação do território, sem deixar, entretanto, de priorizar o desenvolvimento
humano da população. Ele entende como necessária a apropriação de outros
conhecimentos, principalmente os tecnológicos, no sentido de manter a comunidade de
forma sustentável.
Essa consciência é uma coisa que o povo desenvolveu,
isso aí não é consciência de lá de fora o que eu acho mais
importante que é um aprendizado pensando a 100, 200
anos pra gerações futura, o que caracteriza uma
comunidade quilombola além de todos os laços culturais
e o espaço geográfico. [...] o que nóis queremos é
conciliar o desenvolvimento humano e com a preservação
ambiental, nós não queremos dinheiro pra nós, nós
queremos condições pra nóis dá estudo pros nossos
jovens, dá oportunidade pro nossos jovens pra eles ta
formando na cidade e voltando pra comunidade pra
contribuir cada vez mais, não só com desenvolvimento da
nossa comunidade mas tamém com o desenvolvimento
das outras comunidades em volta. Isso é importante.
DENILDO RODRIGUES - BICO, Palestra realizada em
16 de janeiro de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
A entrada da energia na comunidade e do uso da TV, da Internet, da leitura de
revistas, da chegada de turistas etc. acaba gerando outras necessidades em relação à
apropriação de novos saberes. Os quilombolas querem ter atendimento à saúde;
desejam transportes que supram suas necessidades; exigem educação para suas
crianças e jovens. Voltemos ao que diz Bico: o que nóis queremos é conciliar o
desenvolvimento humano e com a preservação ambiental. A reflexão sobre as
contradições explicitam a dificuldade de se pensar em ética, direitos, igualdade,
acesso aos bens culturais materiais e imateriais quando imersos na lógica do capital.
Digo no Quarto Texto que as necessidades materiais básicas já estão mascaradas
Figura 11: Denildo Rodrigues –
Bico
Palestra 16/01/2010
118
pelas necessidades manipuladas pelo sistema capitalista, ou seja, eles estão
capturados por essa lógica.
Gusmão (1992) explica que as comunidades negras, estando em contato com a
expansão da sociedade nacional, passam por um período de confronto e de transição.
O trabalho e seus instrumentos, a alimentação, a vestimenta e a forma de viver até
então desenvolvida para subsistência, estão sendo questionados em resposta à
desagregadora expansão capitalista. A autora ressalta que: “suas terras, tanto quanto
sua força de trabalho, cada vez mais se transformam em mercadorias e perdem a
condição de bens úteis a si e à família”, com isso podemos entender que também
“perdem a condição de bens simbólicos conformadores do universo de sentido e de
significado que permitiu desde sempre, ser, pertencer e se pensar como parte de um
grupo particular.” (p. 118).
As crenças aprendidas com os mais velhos começam a ser questionadas pelos jovens e
adolescentes, dando indícios acerca dos conflitos e distanciamento das tradições que
os jovens e adolescentes estão e continuarão vivenciando. Toiço, um adolescente de
13 anos, morador da comunidade diz:
Aqui os mai véio costuma guarda a quaresma,
sem corta cabelo, sem fazê a barba e sem dançá.
Os mai véio acredita quem desobedecê a essa
regra cria um rabo entre as perna. Eu num
acredito nisso não, porque se for verdade, em
São Paulo tudo mundo ia tê rabo, porque em
cidade grande as pessoa dança, corta cabelo e
faiz a barba na quaresma. Eles obriga nóis a fazê
isso, a gente faiz, por respeito, mas não porque
nóis acredita.
Luciano Furquim – Toiço. 13 anos. Conversa
realizada em 14 de fevereiro de 2007, no
Quilombo de Ivaporunduva65
65 Conversa realizada em 14 de fevereiro em 2007, com Luciano Furquim – Toiço. Contou também com a
participação de Tânia Aparecida Américo, que realizava a pesquisa no quilombo de Ivaporunduva, que
cedeu o material original (áudio) para a transcrição da fala do entrevistado para o presente trabalho.
Figura 12: Luciano Furquim – Toiço
Trilha do Ouro
Fonte Própria (2007)
119
Fica uma questão para a continuidade dos estudos. O modelo que os quilombolas
apontam, explicitado tanto na fala do Bico como na da Zica é um modelo articulado à
qualidade de vida para uma comunidade sustentável? A contradição e transição estão
colocadas. Quais serão os próximos passos para uma comunidade sustentável às
futuras gerações?
120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GUSMÃO, Neusa. M. M. . Negro e camponês: cultura política e identidade no meio
rural brasileiro. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 6, n. 3, 1992.
MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Tradução de Leandro Konder e
Renato Guimarães. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: EDUSP, 2007.
SETILOANE, Gabriel M. Teologia Africana uma introdução. São Paulo: EDITEO,
1992.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e
Texto Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religiões Afro-Brasileiras. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
121
QUARTO TEXTO
“SOU NASCIDO E CRIADO AQUI”
“QUE AS PESSOAS, TANTO BRANCO QUANTO PRETO, CONHEÇA
A HISTÓRIA DESSE POVO”
122
Esse texto está marcado por dois objetivos. Um deles é trazer fragmentos da
história da formação do Quilombo de Ivaporunduva pelas palavras do Ditão66. Mas não
é só ele quem narra. Outras vozes se ouvem: de quilombolas mais jovens; adultos;
velhos, bem como de autores que abordam a temática quilombola. Verá o leitor, que
passado e presente não estão separados como querem os adeptos da lógica formal,
nem seguem uma linearidade rigorosa. O outro objetivo é explicitar o que o
“ecoetnoturismo ” representa para os quilombolas de Ivapuranduva. O que poderia ser
apenas uma fonte de renda, e é, não fica a ela restrito. O ecoetnoturismo trata-se de
um trabalho educativo – uma prática pedagógica. Ressalto que as falas dos
quilombolas aqui apresentadas ocorreram em diferentes situações: ora em momentos
de conversas/entrevistas entre mim e eles; ora em palestras proferidas por eles a
grupos de turistas em visita ao quilombo.
***
O conceito de polifonia de Bakhtin (1992) fundamenta o que digo sobre as outras
vozes presentes nas falas do Ditão e dos outros quilombolas que ouvi. Na interlocução
com suas falas estão as de alguns autores. Esse filósofo da linguagem explica que
cada um dos locutores não são os primeiros que:
Rompem pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e
pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas
também a existência dos enunciados anteriores – emanentes dele
mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado
por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles),
pura e simplesmente ele já os supõe conhecido do ouvinte. Cada
enunciado é um elo na cadeia muito complexa de outros enunciados.
(BAKHTIN, 1992, p. 297).
Para a legitimação e legalização do território – uma luta contínua desse povo - os
quilombolas precisaram revisitar/retomar o processo histórico dos seus
antepassados. Rememorar o passado é tomar consciência das implicações da
66 Ditão - Benedito Alves é um líder quilombola que atua na sua comunidade e é respeitado na liderança
quilombola nacional. Atualmente é vice-presidente do Comitê de Bacia Geográfica do Rio Ribeira de
Iguape, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
123
escravização da população negra no Brasil. “O passado é, portanto, uma dimensão
permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores
e outros padrões da sociedade humana.” (HOBSBAWM, 2010, p. 22). O sentido do
passado possibilita uma análise das mudanças na sociedade que está em
transformação e movimento constantes e contraditórios.
Diante da complexidade da temática da escravização da população negra, que ocorreu
durante séculos, bem como das suas múltiplas implicações (econômicas, sociais,
psicológicas) na vida das vítimas do escravismo, SCHAFF (1991), em sua obra
“História e Verdade”, menciona as diferentes visões que os historiadores apresentam
de um mesmo acontecimento, segundo os diversos sistemas de valores nos quais se
baseiam, cujos interesses de classes são muitas vezes opostos e as concepções de
mundo divergentes.
É importante nos atermos ao fato de que a história desse processo de escravidão foi
contada sob a ótica de quem escravizou, e não da de quem foi escravizado, portanto,
sob uma perspectiva eurocêntrica, em função de uma ideologia, de sistemas de valores
expressos no interesse de classes opostas, e privilegiando uma classe em detrimento
a outra. “Toda escolha e todo encadeamento de fatos pertencentes a um grande
domínio da história, história local ou mundial, história de uma raça ou de uma classe,
são inexoravelmente controladas por um sistema de referência no espírito daquele
que reúne os fatos.” (SCHAFF, 1991, p. 69).
Com o objetivo de receber grupos de alunos de escolas públicas e privadas,
pesquisadores, professores e grupos de turistas, É possível considerar o
ecoetnoturismo uma atividade formativa também para os quilombolas, pela maneira
como eles trabalham a História da Cultura Afro-brasileira ao oferecerem a rica base
de informações de que disponibilizam. A programação normalmente conta com:
palestras proferidas pelos líderes do Quilombo; “trilha do ouro”, uma caminhada na
mata pela antiga trilha da extração e transporte de ouro, por onde passava a
população negra escravizada – essa caminhada pode ser estendida até o cemitério
124
velho; visitas a cachoeiras; oficinas de artesanato; barreação; sessão de contos e
causos; apreciação da comida típica etc.
Em uma das visitas de um grupo de professores, após o almoço e um breve descanso, o
grupo se reuniu na varanda da pousada para o primeiro contato com a história da
formação da comunidade Quilombo de Ivaporunduva, contada pelo Ditão:
Eu sou nascido e criado aqui [...] comecei minha luta, o
que me colocou dentro dessa luta, né, a dificuldade
daqui (pausa) há bastante tempo atrás, na época era
isolado, não tinha estrada, não tinha nada, nada, nada. O
jornal quando a gente lia uma notícia, já tinha nove anos
na cidade já tinha acontecido. Então a dificuldade era
muito grande [...].
BENEDITO ALVES – DITÃO – 55 anos. Palestra
realizada em 16 de janeiro de 2010, no Quilombo de
Ivaporunduva (figura 1).67
Certa tarde, eu pedi ao Vô Gaspar para compartilhar comigo a sua história de vida no
território quilombola. Ele iniciou me dizendo:
67 Dialogo realizado no dia 16.01.2010, no Quilombo do Ivaporunduva, durante uma palestra proferida a
um grupo de educadores de Campinas (Alunos da pós-graduação do curso de Educação de Jovens e
Adultos-EJA-UNICAMP) que estava participando de uma vivência no quilombo.
Figura 1: Benedito Alves- Ditão
Fonte Própria (janeiro/2010)
125
Eu fui nascido e criado aqui. Não era quilombo nesse tempo ainda. Meu
pai era daqui memo, morreu cum 70, minha mãe morreu cum 80 ano, e
depoi ficô o nosso familiar daqui. Intão eu sô fio daqui memo do
quilombo. E aqui num tem perigo de morrê de fome. Eu fui em poca
cidade desse mundo. Fui só em dois Estado fora do estado de São
Paulo e no lugar qui eu passei num vi lugar gostoso de vivê qui nem
aqui. Aqui, se tem vontade comê um peixe ocê come. Quarqué coisa qui
quiser comê, um parmito, quarqué coisa. Ocê entra nesse mato tem
cipó, tem uma madeira, uma lenha si ocê qué fazê um fogo no fogão de
lenha e quarqué coisa qui ocê quisé, ocê entra nesse mato e acha e
pega. Ninguém curpa a pessoa, porque é nosso, né. Ninguém briga um
co outro, porque é nosso e tem. A água boa que nem essa nossa daqui
eu nunca encontrei, limpa e boa água, nascente memo da mata[...]
Então o tipo da gente viver aqui eu me sinto muito feliz.
GASPAR FURQUIM, quilombola, 72 anos - Conversa realizada em 03
de agosto de 2009, no Quilombo de Ivaporunduva.
Quando Vô Gaspar se apresenta, dizendo: “Eu fui nascido e criado aqui”, ele mostra
sua relação com a terra, e ainda nos dá mais um dado “não era quilombo nesse tempo
ainda”, ou seja, informa que está aqui antes mesmo dessa terra ser reconhecida como
terra de quilombo. Vô Gaspar continua afirmando sobre o quanto ele pertence e está
enraizado nesse território, quando diz: “meu pai era daqui memo, morreu cum 70,
minha mãe morreu cum 80 ano, e depoi ficô o nosso familiar daqui” não deixa dúvidas
da sua relação com esse território, como no trecho “então sou fio daqui mesmo”, ou
seja: eu tenho uma identidade quilombola.
Ele continua provando o quanto conhece e pertence a sua terra: “quarqué coisa qui ocê
quisé, ocê entra nesse mato e acha e pega”; e encerra dizendo: “E ninguém curpa a
pessoa, porque é nosso, né. Ninguém briga um com o outro, porque é nosso e tem ”.
Consegue finalizar a conversa, afirmando sua relação de pertencimento coletivo a
essa terra abundante que também lhe pertence, que lhe dá água e alimento todos os
dias, seu sustento e a sua vida - ”é só entrar e pegar”. Essa afirmação da identidade
quilombola atrelada a território está presente também nas falas de outros membros
da comunidade.
126
Num início de noite no Quilombo de Ivaporunduva, pedi à Dona Cacilda que me
concedesse uma entrevista e contasse como era o trabalho do Puxirão68 na
comunidade, ela também inicia assim: “Eu sou nascida e criada aqui. Antigamente o
trabalho o povo fazia bastante roça e tinha a sobrevivência deles era a roça [...].”
A certeza da descendência é um fator fundamental para a identificação quilombola. É
bem possível que a insistência em reafirmar o pertencimento ao território quilombola
ocorra devido à necessidade de fortalecer essa identidade e, assim, firmar um
posicionamento no histórico e contemporâneo trabalho de defesa do próprio
território. Duas falas marcam a posição desses quilombolas:
Meus pais morava aqui e num foro escravo, e do pai do
meu pai pra frente é perigoso que eles fossem.
Conheci meu avô muito male má. Ele num era escravo
ainda, mai o pai do meu avô pra lá já era escravo. Eu
num sei quanto ano foi a escravatura, faiz muito
tempo isso, uns quatrocento ano mai ou meno e nem os
mai véio nosso num conhecero isso aí. Nói só tem a
maior certeza que nascemo aqui memo nesse lugar.
GASPAR FURQUIM, quilombola - 72 anos.
Conversa realizada em 03 de agosto de 2009 no
Quilombo de Ivaporunduva (figura 2).
68 A população de Ivaporunduva utiliza a palavra puxirão para se referir ao mutirão, que se refere ao
grupo de pessoas trabalhando juntas na realização de determinado serviço – que, no caso, é o trabalho
coletivo de plantação de arroz, feijão entre outros produtos.
Figura 2: Vô Gaspar
Fonte Própria (2010)
127
Meu antepassado foi escravo, e o povo daqui, né, os escravos que veio
pra qui foram trazido de Moçambique, então somo descendente do
povo moçambicano, chegou por volta de 1539, trazido pra explorar o
ouro em pó aqui no rio, Rio Bocó, afluente do Rio Ribeira. Desde essa
época, por volta de 1650, Ivaporunduva é quilombo. Difícil, né, pela
história do próprio Brasil que começou por Porto Seguro, Cananéia e
São Vicente. Cananéia é vizinho aqui de Iguape, né, e aí foi
exatamente por Iguape que subiram rio acima e aqui onde nóis tamo
aqui (ele está na frente da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos)
se acamparam, Maria Joana que era dona dos escravos trouxe a
negrada, aqui se acampou, aqui, pra explorar ouro no Rio boco
(BENEDITO ALVES, 2007).69
De acordo com Munanga, os africanos trazidos para o Brasil, pela rota transatlântica,
são povos de três regiões geográficas: África ocidental, África centro-ocidental e
África austral. Da África Ocidental foram trazidos homens e mulheres dos atuais
Senegal, Mali, Níger, Gana, Togo, Benim, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, São Tomé e
Príncipe, Cabo Verde, Guiné e Camarões; da África centro-ocidental vieram os povos
Gabão, Angola, República do Congo, República Democrática do Congo (ex-Zaire) e
República centro-africana, e da África austral, temos os povos de Moçambique, da
África do Sul e da Namíbia. (MUNANGA, 2009, p. 80).
69 Disponível em <http://www.youtube.com/comment_servlet?all_comments=1&v=dDP7rwfbq0w> .Acesso
em 31.07.2010. Vídeo produzido por Dácio Bicudo,2007.
Figura 3- Mapa da rota transatlântica da população negra
escravizada no Brasil
Fonte: T.P. África (2008)
128
Foi possível identificar a origem étnica das populações de africanos-descendentes no
Brasil, por meio das “resistências linguísticas e culturais que caracterizam as
contribuições africanas na cultura brasileira contemporânea.” (Ibid, p.92). Os
elementos encontrados foram fundamentais para distingui-las, a partir do trabalho de
comparação “com suas áreas regionais e étnicas da África Tradicional”. (Ibid, p. 92).
Ditão nos explica:
Aqui nóis consiguimos chegar a Moçambique, né. O pessoal daqui
veio de Moçambique, mas a gente sabe que não veio só de lá, veio de
outros países tamém, de outras aldeias africana e que misturo, né.
Aqui é que tá aqui no nosso meio, não dá pra identificá hoje. O que deu
pra se aproximá, isso foi pesquisado. Essa aproximação ela saiu
através da forma de falá, do formato do rústico, do formato de corpo
dus objeto de uso, arquitetura da casa. Tudo isso aí foi juntado do
que se aproximô-se, foi com eles, moçambicanos. Então a gente fica
satisfeito, chegô perto, ficô perto de alguma coisa. Eu, pelo menos eu,
eu me falo, eu sou moçambicano. A gente não sabe do que veio. O
negro devido a história, o pessoal que estuda história sabe, que no
navio ali já extrapolava tudo, acabava com tudo nossa identidade; era
quando vendia de um dono pra outro, vendia pra você tira meu nome e
meu sobrenome, já metia um ferrão na minha costas pra marcar o seu
nome. De repente você vendia pra outro e pra outro. Não quero o
nome dela, eu quero o meu nome dela agora e tornava a marcar o
nome, entendeu? Mema coisa de colocar nome num animal, né. E
quando hoje se aproxima a verdadeira origem, eu fico contente falar
a verdade.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de 2010, no
Quilombo de Ivaporunduva.
129
Voltemos ao que disse Ditão:
[...] chegou por volta de 1539, trazido pra explorar o ouro em pó aqui
no rio, Rio Bocó, afluente do Rio Ribeira. Desde essa época, por volta
de 1650, Ivaporunduva é quilombo. Difícil, né, pela história do próprio
Brasil que começou por Porto Seguro, Cananéia e São Vicente,
Cananéia é vizinho aqui de Iguape, né, e aí foi exatamente por Iguape
que subiram rio acima e aqui onde nóis tamo aqui ele está na frente da
Igreja Nossa Senhora do Homens Pretos) se acamparam, Maria
Joana, que era dona dos escravos, trouxe a negrada, aqui se acampou
aqui, pra explorar ouro no Rio Bocó
(BENEDITO ALVES, 2007).70
No século XVI, chegaram os primeiros europeus no Vale do Ribeira, em busca de ouro,
e com eles foram trazidos os primeiros africanos escravizados para trabalhar nos
garimpos, na exploração de ouro71. Ivaporunduva surge no século XVII, antes da
fundação do município Xiririxa, posteriormente denominado Eldorado. Sua origem se
deu a partir da atividade mineradora de dois irmãos: Domingos Rodrigues Cunha e
Antonio Rodrigues Cunha, com seu grupo de negros escravizados. Ivaporunduva é a
primeira e mais antiga comunidade quilombola do Vale do Ribeira. Ela dá origem a
outras comunidades: São Pedro, Pilões, Maria Rosa e Nhunguara. No mesmo período, a
mineira Maria Joana72 também chega e se instala em Ivaporunduva para a extração do
ouro nessa localidade; o que acontecia por meio da exploração do trabalho dos
africanos-descendentes escravizados. (ISA, 2008).
Em meados de 1791, a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
(tombada como patrimônio histórico, em 1972) foi construída em Ivaporunduva com o
trabalho da população negra escravizada. Com o declínio da extração de ouro na
70 Disponível em <http://www.youtube.com/comment_servlet?all_comments=1&v=dDP7rwfbq0w> .Acesso
em 31.07.2010. Vídeo produzido por Dacio Bicudo. 71“Na época do descobrimento do Brasil, o Vale do Ribeira foi um dos primeiros locais explorados pelos
colonizadores, pois era em Cananéia que terminava o domínio português e começa o espanhol,
determinado pelo Tratado de Tordesilhas. Ainda hoje, em Cananéia pode ser visto sobre uma pedra o
marco “Linha de Tordesilhas”. Alguns historiadores sustentam que nesta região já havia europeus antes
de 1500” ISA. 2007, p. 9 72 Nos documentos do ISA (2008), encontramos o nome da mineira dona das terras e das pessoas negras
escravizadas de Ivaporunduva como Joana Maria, porém vou utilizar Maria Joana, que é o nome pelo qual
os quilombolas a identificam.
130
região, a população branca desloca-se para outras localidades, especialmente para o
estado de Minas Gerais. Em 1802, Maria Joana liberta seus escravos e doa-lhes suas
terras.
Por outro lado, a parcela da população negra sob escravidão e a outra parcela fugitiva
- deixadas pelos donos de escravos na região -, estabelecem residência e área de
cultivo, que se inicia com a agricultura de subsistência. Esses negros recebem outros,
vindos de diferentes localidades, fugidos do trabalho escravo, procurando, então,
manter sua sobrevivência nessa área. (ISA, 2008, p.93).
Ao dar continuidade à história, Ditão problematiza a liberdade concebida por Maria
Joana aos seus escravos, da forma como tem sido contada em alguns documentos:
A chegar uma época depôs que Maria Joana morreu, que quilombo ficou
feito dono da terra. [...] o quilombo tinha um aliado forte que era
ouro. No primeiro momento quando ficaram livre do trabalho escravo,
mas não eram livre porque não tinham carta de alforria, eles
conseguiam fazer amizade com algumas pessoas, em troca daquilo que
eles precisavam, tirava ouro abaterava. [...]. O quilombo naquela época
foi escravo, ficou num local muito longe, pra podê fazer o registro de
nascimento tinha que ir lá Iguape. Daqui em Iguape, pelo rio, é quinze
dia de viagem, pra ir e voltar, tem que contá com o bom tempo. Se
chegá lá na beira do mar, o mar tivé agitado, tem que esperá o mar
tranquilizar pra entrar dentro do mar com a canoa e dar a volta e
entrar. E veja bem, imagine a situação, negros que não tinha a carta de
alforria quinze dia dentro do rio, ele tava numa situação bastante fácil
para o predador. Então, dessa forma, o que é que aconteceu, ele não ia,
porque se ele fosse, ele corria esse risco. Mas ele tinha o cemitério. Ele
tinha a semente. Ele tinha o ouro, certo? E esse foi os aliado dele, essa
organização que eles fizeram foi muito forte nesse sentido.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Silveira (2000) analisou as Cartas de Alforria Escritas no Brasil do Século XIX. O
autor explica que houve uma época na história em que a liberdade das pessoas negras
escravizadas só poderia ser concebida em algumas circunstâncias por morte natural
do cativo, por concessão de alforria ou manumissão, ou por disposição de um diploma
legal. Silveira afirma que a concessão da liberdade pelos senhores de escravos jamais
131
poderá ser entendida como do cativo, pois esta dependia da benevolência do Senhor
de escravo, nesse sentido “não podia ser encarada como uma conquista dos negros
escravizados” (Ibid, p.41). As cartas eram registradas em cartórios na presença de
testemunhas; entre a concessão e o registro poderia demorar anos a ser
concretizada. No caso de ingratidão da pessoa negra escravizada essa concessão
poderia ser revogada pelo dono de escravo. “Vale registrar que o negro escravizado,
não gozava dos direitos comuns aos homens livres” e “estava sujeito às condições
ditadas pelo senhor” (Ibid, p. 41 - itálico meu).
Assim sendo, cabe ressaltar que, no período entre 1539 a 1802, ou seja, por mais de
260 anos, houve a exploração intensiva do trabalho forçado não remunerado da
população negra africana e de seus descendentes, no Ivaporunduva; trabalho que
gerou riqueza advinda da extração do ouro, que não foi dividida com os trabalhadores
negros ali escravizados.
ISOLAMENTO
Após 1802, com a morte de Maria Joana, a comunidade quilombola de Ivaporunduva
não experimentou a liberdade de fato, pois esses quilombolas estavam expostos aos
fazendeiros e aos seus capangas, que caçavam pessoas negras fugitivas, para
reescravizá-las em outras localidades. Além da caçada aos negros, a comunidade
quilombola recebia frequentes agressões e ataques de coronéis e de grupos
organizados, que tentavam tomar dos quilombolas o território de Ivaporunduva.
132
Nóis conseguimo um documento que relata um pouco dessa história, né.
Ele fala assim: que o rei de Portugal, ele mandou algumas pessoas pro
Brasil e desceu na bacia do Paraná, saindo por Iguape alguns
companheiros e um dessas pessoas ficou no arraial de Ivaporunduva,
marcando do arraial cinco dia e ele marcou. Assim que ele assistiu,
quando alguém veio, né, pra tentar capturar alguns negro, eles já tinha
a organização deles, eles meteram o cacete nesses caras, né, e não se
entrega.
[...] ele dizia assim: “esses negros, ninguém mete a cara com eles
porque ninguém conseguiu. Eles dizia assim: bota rédea! Botar rédea, no
que eu penso na minha linguagem mais simples é assim: adomá um burro,
adomá um cavalo, botar rédea, bota arreio, muntá. O cara é xucro. Os
negro daqui ele cumparô com animal xucro, porque não conseguiu adomá
e pra nós foi bom, pelo menos ele não muntô ne nóis. Ele respeitô.
[...] Além dessas história aqui que aconteceu, além das brigas, questão
que tiveram pra podê ficar aqui, muita briga, muita confusão, muita
gente tentou na mão grande é tomar a terra deles. Quando não deu na
mão grande, foram pro judicial.
[...] Mas a briga era tão forte contra os coronel que eles tava tomando
a terra do pessoal daqui dos Cueio, e aí, chegou uma época, né, que
prendeu daqui da família alguns na cadeia em Eldorado, qui era chamada
de Xiririca, na época, né [...]. Naquele tempo quem mandava, até hoje é
assim, quem manda na cidade pequena é o padre, o juiz e o delegado. O
que eles falá tá perfeito. A decisão que ele tomá é sequência. Hoje
inclui o prefeito tamém. [...] aí eles conseguiram então, do juiz, a
sentença a favor de Ivaporunduva, e os coronel não, não ganharam a
terra. O coronel que ia ganhar a terra era Coronel de Eldorado, que era
Xiririca.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Os relatos do Ditão mostram a resistência da população de Ivaporunduva às
constantes ameaças, e os enfrentamentos que tiveram que fazer para permanecer em
seu território. Esses embates pela sobrevivência e pela posse do território
aconteceram em diversos momentos, de formas diferentes ao longo da história, e
permanecem até os dias atuais. Os desafios que vêm sendo enfrentados e as
conquistas realizadas pelos quilombolas estão ligados ao profundo sentido de
identidade, resistência e pertencimento ao território.
133
A autora Gusmão (1992) explica que, para as comunidades negras contemporâneas, a
terra não é uma realidade física, uma “coisa”, ela é entendida como um “ente vivo” da
vida coletiva. A terra representa, no interior do universo negro, um patrimônio comum
das comunidades “de fatores étnicos, da lógica endogâmica, casamento preferencial,
regras de sucessão e outras disposições”, as condições que a posse da terra foi
conquistada – na coletividade – sendo ela indivisível pela própria história. “A terra
torna-se território” e sobre ele a comunidade negra vai construir sua territorialidade.
(Ibid, p. 119).
A territorialidade supõe identificação e defesa por parte do grupo;
supõe tradição histórica e cultural construída através do tempo.
Supõe uma relação espaço/tempo particular de constituição da
comunidade negra e de sua vivência. Resulta da apropriação exclusiva
do solo via seu ordenamento simbólico, e engendra o conjunto de
relações vividas como passado, como presente
(Ibid, p. 119).
Entre outras, algumas das práticas de subsistência foram mantidas pelas famílias
quilombolas, como, por exemplo: o cultivo das roças, a pesca, a caça, a extração do
palmito (para a alimentação); o uso de plantas medicinais (para a cura), e a extração
da madeira e do cipó (para a construção de moradias). Essas práticas vieram
garantindo o sustento e a proteção da comunidade até os dias atuais.
134
Aí então, o desenvolvimento tamém da técnica de sobrevivência,
ninguém sabia lê e ninguém sabia escrevê, mas sabia certinho qual era
a lua de pescá de pegá pexe, qual era a lua de prantá o arroz e o
feijão. Não é o mesmo tempo, a época de prantá arroz não é a mesma
época de prantá fejão, entendeu? Então são épocas diferente. A
gente sabe que o almanaque tá indicando, tem os técnicos agrícola,
tem um monte de profissionais que indica certinho, compra um cartão
de semente de qualquer pranta, tá marcando ali qual o tempo
direitinho de prantá. Naquele tempo, não existia isso. Qual era o
indicativo deles: a lua, o relógio deles. O sol e o galo, né, o galo
cantava madrugada, sabiam que era hora de levantar. À tarde, na
roça, a corujinha cantava. Tem uma corujinha que só canta de
tardezinha, óia lá, tenho que ir embora. Quando em janeiro, eles
chamava a contagem de Salomão, (Ditão conta no dedo) um, dós, três,
quatro, cinco, sês, através desses sês dias, eles sabia até junho o que
qui ia acontecer na questão crimática. Eles sabiam: liam o tempo, se
chove, se não ia chovê, se ia dá seca, é, e se era bom pra prantá de
acordo com o dia, né, dia um significa janeiro, dós fevereiro, daí por
diante, até dia seis, quando era em julho começava a contagem, de
julho ia até dezembro. Isso pra eles era um livro de suma importância,
porque direcionava a vivência deles com a terra. Isso era um ponto.
Outra questão era assim, eles não era agrônomo, mas sabe, aqui no
Vale do Ribeira, a terra não é igual como é igual pra produtor de São
Paulo, é bom pra cana em toda parte, aqui não, aqui é pedaço de chão,
uma parte é bom pra fejão e outra parte já é bom pra milho, às veis a
parte que é bom pra milho não é bom pra fejão, outra parte é bom pra
arroz, eles sabiam certinho, roçavam, faziam a roça nesses local,
serviu pra nóis, porque hoje, com a lei, a gente não pode fazer novas
abertura, então aquelas abertura que eles fizeram é o que nós tamo,
está servindo pra nóis hoje, eles sabiam certinho; a gente fica
admirado ao começar a pensar isso aí.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Houve a necessidade do trabalho coletivo para manter a subsistência individual e da
comunidade; e desse trabalho, cheio de significados, deu-se a “produção da vida”.
Dona Cacilda explica como era o trabalho no Puxirão na comunidade. Ela inicia assim:
135
Então de antigamente o trabalho era, o povo fazia bastante
roça e tinha a sobrevivência deles, era a roça. Então, esse
negócio de fazenda não tinha, não existia esse negócio de
fazenda que tem hoje em dia pra pessoa trabaiá, compra uma
roupa, um sapado, se mantê, não tinha. A gente coia muita
pranta de arroiz e fejão, daquele que tinha que comprá as veste
da gente. Comprá ropa, comprá sapato, comprá coberta, comprá
loça, comprá tudo é com aquilo. Então, quando dava o mês de
agosto a gente já não tinha arroiz mais. Aí, acaba comendo
fejão com farinha e carne, só. Nóis tinha nossa roça e todo
mundo tinha, e quando precisava de fazer puxirão todo mundo
se ajudava e ia fazer a roça do outro. Mutirão é ajuntar as
pessoas, vamos dizer, eu saia daqui da minha casa e ia lá no
Ivaporunduva. Falava assim: óia, amanhã eu vou fazer um
ditório73. Mutirão? Era o baile de noite, forró de noite, e
quando era ditório era dias pagos. Eu ia lá e eu pagava o dia pro
cê, por exempro, a gente não tinha dinheiro pra pagá os dia das
pessoa e tudo mundo precisa, eu ia lá eu trocava com a minha
quarta de faria, e o meu dia eu trabaiava pro cê, eu trocava com
a minha quarta de faria. O otro trocava com dôs quilo de carne
de porco, outro com a minha quarta de fejão. Era assim, a gente
fazia meio troca com troca. A gente fazia assim: quando o otro
ia fazê a roça dele era assim, a mesma coisa. O dono do puxirão
[...] secava daquele memo arroz quatro o cinco arquere de
arroiz, ponhava no sór, secava, depoi juntava naquele pilão que
tem aí, ficava socando arroiz, un quinze dias socando arroz.
Quando tinha um cinquenta quilo de arroiz pilado, chamava as
pessoa pro puxirão. Quando era cedo não tinha esse negócio de
pão, bolacha, não tinha. Era arroiz e fejão, pra pessoa comê e i
pra roça. Ia armoçado, bem dizê. Primero ia roça. Aí depois, se
quisesse fazê de prantação, era a mema coisa. Se quisesse fazê
de coieita, a mesma coisa. [...] Eu trabaiava aqui na minha roça,
trabaiei com quinze-vinte pessoa, chamava tudo as turma das
Cortesia. Daqui, os mai veio. Chamava ali de Ivaporunduva,
vinham trabaiá pra gente. Ali era coiê arroiz que fica acamado
de arroiz coído. Correndinho, à tarde a gente ajuntava aquele
monte de arroiz, deixava aqueles cupinzão de arroz tudo
muntuado, pra outro dia começá tudo de novo, coei muito arroiz,
muié, cheguei a coiê oitenta airquere de arroiz. [...] Eu tinha um
sonho de vê os meu fio vê o que eu vi.
DONA CACILDA DA SILVA MARINHO - 63 anos. Conversa
realizada em 20 de julho de 2010, no Quilombo de
Ivaporunduva.
73 Dona Cacilda explica que ditório era a troca de mão de obra, em dia de trabalho: para limpar uma roça,
plantar, derrubar o mato, colher, ou troca de um dia de trabalho por alimento.
Figura 4: Dona Cacilda –
Socando café
Fonte própria (2010)
136
O trabalho na agricultura de subsistência (principalmente na lavoura de arroz), do
preparo da terra até a colheita, esteve fundamentado nas trocas recíprocas de
trabalho e de produtos, entre laços de parentesco intracomunidade e entre
comunidades irmãs. A prática da troca de trabalho era conhecida pela comunidade
como “ditório”. Para Gusmão (1992, p. 119), essa forma comunal é sem dúvida terra-
território, entendida como um universo particular e único, o que constitui a memória e
a tradição.
Em uma manhã, Dona Cacilda me levou para conhecer a sua mãe, Dona Arcília Antônia
da Silva, uma das senhoras mais idosas de Ivaporunduva, moradora do Corgo Grande.
Nessa localidade, os moradores são predominantemente do tronco familiar do
Marinho. Ao redor da casa matriarcal estão as famílias da primeira, segunda e
terceira gerações, isto é: filhos, netos e bisnetos. Os dois irmãos, Claudio e Vandir,
agricultores, lembram, saudosos, de como ocorria o puxirão na roça do seu pai:
Figura 6: Dona Cacilda – Travessia
de Canoa no Rio ribeira de Iguape
– Indo ao Trabalho na roça
Fonte Própria (2010)
Figura 5: Família da Sr. Aparício e Dona Cacilda
Ao redor da Taipa
Fonte Própria (2010)
137
Um tempo aqui nóis cuía muito mais arqueire de arroiz. Antigamente,
nóis fazia por que não tinha otro jeito, era só o arroz e o milho e era
bastante roça. Agora nóis temo a orde pra fazê só dois hectar por ano
por famia. Papai fez puxirão aqui e veio gente de Nhunguara, São
Pedro, Sapatu, Batatal e Pilões, era cem ou cento e poucas pessoa
aqui.
VANDIR RODRIGUES DA SILVA – Quilombola - Agricultor familiar.
Conversa realizada em 21 julho de 2010, no Quilombo de
Ivaporunduva.
Claudio, irmão de Vandir, completa:
Fazia roça grande porque tudo dependia daquela roça. Era pra comprá
ropa, carçado, era tudo daquele arroiz, fejão e mio.
CLAUDIO RODRIGUES DA SILVA - Quilombola - Agricultor familiar.
Conversa realizada em 21 de julho de 2010 no Quilombo de
Ivaporunduva.
A produção de arroz, feijão e milho era negociada na base de troca, com um o único
comerciante, próximo de Ivaporunduva. Vandir explica: “[...] Levada no Imael ali, eu ia
com papai daqui pra lá. Nós levava na canoa vinte saco74 de arroiz na canoa e trinta
mão de mio”.
74 Um saco de arroz equivale a 50 quilos.
Figura 7: Dona Arcília Antonia da Silva e os Filhos: Vandir Rodrigues da Silva
e Claudio Rodrigues da Silva
Fonte Própria (julho/2010)
138
Perguntei para Cláudio e Vandir: O que seria uma mão? É uma medida?
É um tipo de medida, só que em espiga, o mio em
espiga. Quatro espiga é um atílio, 16 é uma mão.
Aquele é um preço. Daí, nóis levava no Imael,
chegava lá, era uma carça pra mim, outra pra ele,
uma botina pro pai. Nóis não carçava não, nóis
era pé no chão. Nós ia em casa de Imael, a fia
dele que fazia a carça pra nóis. O memo preço do
pano era o preço que ela cobrava pra faze as
carça. O dinhero ficava tudo ali. Tudo comprava
com o arroi. Nói aguentemo uns poco de escravo.
Antigamente ele não dava valor nas coisa que se
tinha, porque não tinha outro pra comprá. Então,
você entrega pro preço que eles queria. Era só
chegá e entregá. Se não levasse, lá ficava
encaiado e quando coia, cê já tava deveno.
VANDIR RODRIGUES DA SILVA – Quilombola -
Agricultor familiar. Conversa realizada em 21 de
julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Assim sendo, entre 1802 e aproximadamente 1960-70, a população negra do Quilombo
de Ivaporunduva viveu isolada, mas não menos ameaçada e explorada. Explorada, por
um lado, pelo comerciante do qual se tornou dependente, sobrevivendo da produção
Figura 8: Fonte Própria (julho/2010)
Figura 9: Sra. Arcília Antonio da Silva. 15 anos e Dona Cacilda Socando arroz no pilão
Quilombo Ivaporunduva- Reversa
Fonte própria (julho/ 2010)
139
fruto do seu trabalho coletivo na agricultura, assim como das práticas de escambo e
de outras formas de trabalho coletivo, como: construção de moradias, pesca, caça e
defesa do território. Dessa forma, pelas experiências e aprendizados ao longo dos
anos, a agricultura tem sido entendida pela comunidade quilombola de Ivaporunduva
como estratégia crítica do passado, do presente e para as gerações futuras. No
entanto, para isso, precisam garantir a posse definitiva das suas terras, ter acesso a
técnicas atualizadas de agricultura sustentável e obter espaço para a comercialização
de seus produtos e serviços.
TRANSIÇÃO E O INCÔMODO
Retomo à fala de Ditão, do início deste texto, quando ele se apresenta ao grupo:
Eu sou nascido e criado aqui [...] comecei minha luta, o que me colocou
dentro dessa luta, né, há bastante tempo atrás a dificuldade daqui
(pausa) há bastante tempo atrás na época era isolado, não tinha
estrada, não tinha nada, nada, nada, o jornal quando a gente lia uma
notícia já tinha nove anos na cidade, já tinha acontecido, então, a
dificuldade era muito grande [...]
Quando Ditão relata que uma notícia publicada na cidade demorava nove anos para
chegar à comunidade, pretende demonstrar a dimensão do isolamento em que eles se
encontravam. Sem estrada ou ferrovia, todo transporte de pessoas ou da produção
precisava, necessariamente, ser feito por canoas, no remo, através do caudaloso e
perigoso Rio Ribeira e seus afluentes. Na comunidade não chegava luz elétrica,
telefone, escolas e quaisquer serviços públicos de saúde e segurança, que pudesse
lhes garantir os direitos da cidadania brasileira. Sua terra coletiva, donde chegaram e
viveram por séculos, não era reconhecida como tal no âmbito jurídico-político. Então,
ao dizer “eu comecei minha luta, o que me colocou dentro dessa luta”, Ditão se vê
numa caminhada para uma nova etapa, uma etapa de transição da comunidade para a
inevitável franca interação com a desagregadora expansão e desenvolvimento
capitalista.
140
Como explica Gusmão: as ações coletivas surgem pela experiência vivenciada pela
população negra na escravidão. Os atos grupais coletivos advêm do enfrentamento da
austeridade do branco. Mobilizada pela escravização, ocorreu a construção das ações
coletivas pelas famílias negras com base na sustentação individual e grupal. Porém,
tais famílias enfrentam os problemas da economia relacionada a pequenos agricultores
(baseada na subsistência) e de parentesco e propriedade. Esses problemas, tanto no
passado como no presente, caminham sempre juntos, atrelados “à realidade mais
ampla em termos de trabalho e do mercado de terras” e “o negro rural é produtor de
bens de subsistência e, ao mesmo tempo, é força de trabalho à disposição do capital,
mas também é um negro”. Essa relação com o sistema envolve a transformação da
realidade histórica no tempo. (GUSMÃO, 1992, p. 117).
A coleta do palmito da mata para consumo alimentar das famílias, assim como o uso de
outras plantas e de animais, era uma prática absolutamente normal, antiga e
sustentável. Quanto ao palmito, a coleta acontecia em ínfimas proporções e eram
cumpridas as taxas de renovação natural do palmito Juçara. No entanto, a partir dos
anos 1960-70, iniciou-se uma forte e crescente pressão de demanda por consumo e,
consequentemente, por coleta de palmito, promovida por interesses lucrativos de
setores empresariais, os quais, com apoio dos órgãos públicos e políticas
governamentais, promoviam a coleta. Aos quilombolas, por um lado limitados a uma
mínima área agriculturável em suas próprias terras no trabalho de cultivo de
coivara75, por imposição de uma legislação ambientalista e, por outro, sob pressão dos
intermediários e indústrias de palmito, restou a única alternativa do árduo trabalho
de extração do palmito nativo da Mata Atlântica, para que, assim, pudessem obter
alguma renda e, com ela, comprar alguns bens necessários, sem sair do seu território.
É nesse momento que surge a circulação da moeda na comunidade. As famílias
começam a entrar no mercado de consumo, e a partir daí tem início uma crescente
75 Agricultura de coivara, na qual acontecia com a plantação de arroz, derruba-se uma área de vegetação
e depois queimada para preparar a terra para a roça, seguida de uma rotação de culturas e de local para
descanso da terra. Ver em BORNIA (2006, p. 34).
141
degradação de alguns valores, princípios e práticas coletivas fundamentais, as quais
vinham garantindo, até os dias de hoje, a sobrevivência digna da comunidade.
Se, por um lado, com a extração do palmito e a circulação da moeda, as famílias
quilombolas entram para o mercado de consumo; por outro lado, e contraditoriamente,
com as leis de proteção ambiental76 proibindo e criminalizando as atividades do
extrativismo do palmito Juçara77 e limitando os espaços para agricultura de
subsistência dentro do território, a comunidade fica desprovida de outros meios de
renda.
76 Ver em: Legislação do Meio Ambiente e Lei Federal (nº 4.771, de 15 de setembro de 1965) das APAS –
Áreas de Preservação Ambiental. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/inst/leg/amb.shtm>.
Acesso em: 23 ago. 2010. 77 A área do Quilombo de Ivaporunduva ficou restrita a um espaço dentro Área de Preservação
Ambiental (APA), conforme determinou a legislação, limitando as atividades produtivas dentro do
Quilombo Ivaporunduva.
142
Nos quilombo, eu sei a realidade. Por exemplo, eu sei a realidade nossa
aqui, por que acabou o palmito da Mata Atlântica? Quem cortou o
palmito? Foi nossos pais. Por que ele cortou o palmito? Pra garanti o
fejão na mesa. O governo, na época, fez uma política voltada pras
empresas contra o pobre. Que ele queria? Tirá o povo pobre do mato
e levá pra cidade pra cria as área de preservação pra recebe dinheiro
da Alemanha. E o que paga o verde desse país que são o maior
investimento, é o alemão, né? Quanto mais o estado tivé mata verde
contínua, mais recebe. E aí o que aconteceu, pra tirá a riqueza do
mato ele incentivô fábrica de processamento de palmito na cidade. E a
fábrica era legal. Produzia produto ilegal. Qué dizê, processava
produto ilegal, mas ela era legal. Quem é que ia preso? Quem levava
chibatada da policia? O parmitero. Bom, fez a fábrica, os dono, a
maioria era cara de São Paulo, de Santos, Sorocaba, empresário rico.
Fábrica bonita, feito bem caprichado. Você vinha do mato, carga no
burro de palmito. Você tinha que tomá muito cuidado, escondê o
palmito, passá em local pelado onde o helicóptero não pode passá,
muito cuidado, é mema coisa do traficando de droga. Escondido. Aí,
quando você ponhá o palmito no caminhão do dono da fábrica, acabô o
pobrema[...] Hoje o povo de Ivaporunduva tá dando exempro, nós tamo
levando pro mato, repovoando a mata com aquilo que foi responsável,
foi colocado na mesa pra nóis come. Nós temos aqui 250 alquere de
palmito prantado de uma veis. E a ideia é prantá mais. Então nóis
tiramos a semente desses palmito do quintal, oh , porque no mato não
tinha mais matriz entendeu? Isso é uma consciência que nóis
adquirimo através da nossa luta, da nossa organização. Olha, pessoal
lá traís (ele fala do tempo dos seus pais) o nosso quilombo tava
lascado, precisô i prô mato tirá palmito ilegal pra colocá comida na
mesa. Agora não, nóis temo otra alternativa de renda pra economia
das famia, pra podê ganhá.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Conversa realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Portanto, Trabalhadores: mulheres, homens, jovens dignos e responsáveis por algumas
dezenas de anos, justamente aqueles que não abandonaram suas famílias e sua
comunidade, para buscar trabalho – emprego nas grandes cidades, tornam-se
criminosos e perversos inimigos da natureza. A contradição está posta.
A grave consequência é que foi necessária a busca de trabalho por muitas pessoas do
Quilombo de Ivaporunduva em outras localidades, inicialmente em Eldorado e, em
seguida, nos grandes centros urbanos, como São Paulo-capital, Santos, São Vicente,
Iguape, Curitiba-PR. Nesses locais, os homens são empregados como trabalhadores
143
temporários: na construção civil, como bóia-fria, diaristas; e as mulheres quilombolas
dedicaram-se ao trabalho na produção doméstica. Algumas pessoas constituíram
família e por lá ficaram.
E naquele tempo, né, eu saí daqui e fui trabalhar na rodovia dos
bandeirantes São Paulo a Campinas, na construção da estrada [...] Aí o
Zé Rodrigues,78 tio dele aqui (aponta o Bico), também deu uma saída
pra São Paulo. Essa saída foi boa, foi muito bom pra adquirir
experiência, nós era caipira, até pra pegar ônibus em São Paulo tinha
dificuldade, caipira mesmo aqui do sítio [...] aí, é, mas foi legal porque
é desse tempo que eu comecei, por conta da dificuldade. Em São Paulo
já tinha grupo de consciência negra79 que já trabalhava, e aí, a igreja
católica conduziu algumas pessoas daqui pra acompanhar esse grupo
pra compreender o porque a situação estava desse nível, e a gente não
podia sair, é, dessa situação. A gente percebeu que tinha gente
lutando, pra vê se a situação do povo negro melhorava, tanto negro
urbano como (Ditão, faz círculos gesticulando com as mãos, como se
quisesse se incluir, “nós quilombolas”, porém ele, à época, não sabia a
definição de quilombolas, mas sim como negros rurais) nós
quilombolas, nem falava quilombo, nós nem sabia o que era quilombo, aí
com a constituição federal nós aprendemos a falar quilombo, nós
falava nós somos de Ivaporunduva. É só isso, né. Ivaporunduva é uma
comunidade histórica, antiga, que foi, é escravo, uma comunidade
habitada com muito escravo, com descendentes de muitos escravos e
continua até hoje.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Conversa realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Estudos realizados na década de 80 apontam que o bairro de Ivaporunduva era
ocupado por caipiras negros, sem ter vinculo com as Terras de Quilombos80. A partir
78 José Rodrigues – conhecido como Zé Rodrigues, é liderança quilombola, hoje vereador do município de
Eldorado. Zé Rodrigues e Ditão são articuladores políticos desde o início dos movimentos sociais, cujas
discussões contribuíram para a formação e fortalecimento do movimento quilombola consciente e a
formação política dos quilombolas. 79 “Para Joel Rufino dos Santos, movimento negro é: (...) todas as entidades, de qualquer natureza, e
todas as ações de qualquer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa física e
cultural do negro], fundadas e promovidas por pretos e negros (...), entidades religiosas [como terreiros
de candomblé, por exemplo], assistenciais [como as confrarias coloniais], recreativas [como „clubes de
negros‟] e políticas [ como o Movimento Negro Unificado]; e ações de mobilização política, de protesto
anti-discriminatório, de aquilombamento, de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e
folclóricos – toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui
movimento negro” (Santos, 1994,p.154 apud PETRÔNIO, 2007,p.102). 80 Ver em: QUEIROZ, R. S. Caipiras negros no Vale do Ribeira: um estudo de antropologia econômica.
São Paulo: FFCH/USP, 1983.
144
dos anos 80, os dois líderes de Ivaporunduva (Benedito Alves e José Rodrigues)
entram em contato com o Movimento Negro em São Paulo.
Eu lembro que nós comecemos nos anos 80 a civilizar aqui, até época
86 a 88 pra tentar fazer que o território dos quilombos descendentes
de escravos tivesse direito à constituição. Aqui tinha um grupo que
sempre a gente viajava pra São Paulo em 86, que a gente se reunia no
Ipiranga, discutindo leis que beneficiasse o povo negro brasileiro, né.
Nós era aquele negro que entendia pouco disso, mas a gente tava
sempre ajudando, tentando, entende. E hoje entedemo a importância
disso. Que foi através daquelas coisas, que hoje nós temos a
constituição, temos algum direito, tivemos que brigar por ele, pelas
leis. Mas tendo uma brecha nós vamos brigar.
JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE – Líder Quilombola. Conversa
realizada em 09 de julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Nesse momento o movimento negro estava numa postura de enfrentamento ao
racismo, e traz à tona o pressionamento político em uma crescente mobilização nos
espaços públicos. A partir da pressão política e mobilização social da população negra,
ocorreu o reconhecimento da manutenção e o aumento das desigualdades raciais da
população negra no Brasil principalmente por estudiosos e pesquisadores como
Octavio Ianni (1987); Oracy Nogueira (1998); Fernando Henrique Cardoso (2000);
Florestan Fernandes (2007) e Hasenbalg, Carlos. A. (2005). Foram apresentadas
demandas e debates “à necessidade de formulação de políticas publicas específicas e
setoriais que se deve a mudança observada.” (THEODORO, 2008, p. 15) 81.
81 “Reconhecida a injustificável desigualdade racial que, ao longo do século, marca a trajetória dos grupos
negros e brancos, assim como sua estabilidade ao correr do tempo, a discussão passa progressivamente a
se concentrar nas iniciativas necessárias, em termos de ação pública, para o seu enfrentamento. Nesse
sentido, o avanço é expressivo. Ele se explica, em parte, pelo avanço observado nos diagnósticos,
pesquisas e análises sobre a temática no país, herdeiras dos estudos pioneiros sobre as desigualdades
raciais no final da década 1970. Mas, sobretudo, pela progressiva mobilização e atuação do Movimento
Negro e de sua crescente presença no espaço público, apresentando demandas e debatendo a
necessidade de formulação de políticas públicas especificas e setoriais, que se deve a mudança
observada.” (THEODORO, 2008, p.15).
145
(...) foi muito importante no final dos anos 80, nós corremo atrás dos
direitos, e a gente não conseguiu ninguém pra apoiá a não ser o bispo.
Ele já morreu, morreu lá no nordeste, nem sei que estado, o Dom
Aparecido. Só ele, e o repúdio do poder político do Vale do Ribeira
que agrega 23 município, então que é ligado a Metodiocesana de
Registro (Mitra Diocesana - de Registro) e aí ninguém mais a favor. O
prefeito metendo nóis no jornal tuda semana, judiando memo de nóis.
E o governo não tinha parâmetro na lei do estado que pudesse. [...] O
que a gente fez, isso eu achei que foi uma força muito forte nossa, é,
sento com o bispo, fizemos um projetinho, porque precisava de um
profissional pra juntar tuda essa fala que tô falando no papel e
pesquisá, onde tinha alguma coisa que falasse de Ivaporunduva,
museu, igreja, onde tivesse qualqué coisa pra juntá, porque pra pegá
pela árvore geológica não existia em Ivaporunduva. Ficamos quase 200
anos sem história, sem registro no papel, porque como o cara ia
registrar óbito, essas coisas. Naquele tempo não existia essas coisas,
o cara nascia, juntava com mulher, produzia filho, crescia, morria, e
governo não sabia. Então, por esse caminho não dava pra reconhecê
Ivaporunduva. Tinha que entrar por outro caminho, essa
característica, esses indicativos que pudesse ajudá foi importante.
Mas como pagava? Tivemo que busca dinheiro, conseguimo então que
as cartas francesas arrumou uma verbas pra pagar.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Conversa realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Ditão faz menção à participação da Igreja Católica82 na formação da liderança
quilombola e à participação dos quilombolas nas discussões levantadas pelo movimento
negro. Ivaporunduva é uma comunidade de forte tradição católica. É vedado qualquer
tipo de participação de igrejas evangélicas em Ivaporunduva. Na década de 1980, a
presença da igreja católica local, com forte vínculo com o movimento político da
82 As Irmãs Pastorinhas, Maria Sueli Berlanga e Ângela Biagioni, iniciaram estudos bíblicos com as
mulheres quilombolas de Ivaporunduva. Os trechos bíblicos estudados pelo grupo, relatavam a “força da
mulher” para superar momentos de dificuldades, no sentido de despertar o potencial político entre elas.
Mais tarde, os homens passam a se integrar nesses estudos. Começa, então, um processo de mudança na
dinâmica da comunidade, dando início à organização política da Comunidade de Ivaporunduva. A advogada
Dra. Michael Mary Nolan, é reconhecida pela comunidade como referência jurídico-política. Ela conseguiu
realizar os acordos entre os órgãos governamentais - na Justiça Federal de São Paulo, envolvidos na ação
judicial pela posse legal da terra do Quilombo de Ivaporunduva. Mais sobre o trabalho da formação
política da comunidade, ver: PAZ, M. R. P. Identidade Quilombola e Políticas Públicas. 2001.
(Dissertação) Mestrado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. São
Paulo, 2001, p. 69-91.
146
esquerda, realizou trabalho de formação política na região e em Ivaporunduva,
resultando em mudanças social, política e econômica na dinâmica da comunidade.
Vô Gaspar, na mesma entrevista em que relata que não existe lugar melhor que o
quilombo para se viver, não descarta as dificuldades enfrentadas pelos quilombolas
para ficar no território:
[...] naquela época o povo era mai simpre, quase num
intendia de lei, a lei passava por lá, nói num fazia conta,
o grandão qui ficava deitano e rolano em riba do povo,
sabe? E saiu uns par de esperto qui entendia das coisa,
saiu pra fora pra intendê e procurá o direito e colocá no
papel. Intão foi ino assim, ia, andava quase o Brasil
intero, aí um cansava e vortava, otro entrava, e assim
foi ino com o documento até agora. E agora tá bem
movimentado, bem organizado o quilombo.
GASPAR FURQUIM, quilombola, 72 anos. Conversa
realizada em 03 de agosto de 2009, no Quilombo de
Ivaporunduva
O incômodo das lideranças com as condições que a população quilombola estava
vivendo (a invisibilidade, o isolamento, as ameaças dos fazendeiros para que os
quilombolas deixassem aquela terra, a falta de acesso aos direitos constitucionais,
como: escola, saúde, transporte etc.) transforma-se em prática social, e se constitui
em luta pela terra, pela sobrevivência de seus membros em condições de
aquilombamento. Essa prática é compreendida por eles como um trabalho político, de
ação e movimento, que busca organizar e reivindicar melhorias locais.
A obtenção e canalização da água, que antes era retirada de várias nascentes que
cortam a região, foi um acontecimento muito importante para a comunidade, embora o
processo de negociação com os órgãos da prefeitura tenha sido demorado. A
prefeitura prometeu os materiais para a canalização (canos e caixas d‟água), porém só
cumpriu a promessa depois que os quilombolas ocuparam a sede da prefeitura. Todo o
trabalho de mão-de-obra foi realizado pelos membros da comunidade, organizados em
Figura 10: Vô Gaspar
Fonte Própria (agosto 2010)
147
mutirão. Ao final da obra, a comunidade comemorou, de acordo com a tradição
quilombola (uma celebração que se inicia com as pessoas na igreja, e depois elas
seguem em procissão pelo caminho da água canalizada). Essa celebração termina com
um baile. O Prefeito de Eldorado compareceu “para inaugurar mais uma das suas
obras.” (PAZ, 2001, p. 83)83.
Antes da canalização, a comunidade dependia de buscar água no rio para uso
doméstico, utilizando-se de baldes e outros utensílios; enquanto o banho e a lavagem
da roupa aconteciam no próprio rio. Em algumas localidades aonde a canalização não
chegou, a população ainda faz uso dessas práticas, as quais dificultam a vida das
famílias. Outra questão importante a salientar diz respeito ao saneamento. No
quilombo de Ivaporunduva, por exemplo, não há programa de saneamento básico,
algumas casas dispõem de fossa, mas a maioria não. As casas distantes da vila são
desprovidas de banheiro, obrigando as pessoas a fazerem suas necessidades
fisiológicas na mata, ou a alguns metros da sua casa. Supõe-se que seja potável a água
que vem da serra, utilizada para beber e na preparação alimentos, porém não foram
submetidas a testes, nem se conhece estudos ou pesquisas sobre a qualidade dessa
água e nem sobre o tratamento de esgoto local.
Como já foi dito, cada conquista das comunidades quilombolas só foi conseguida depois
de longo processo reivindicatório, como, por exemplo, a mencionada Escola de Ensino
Fundamental Rural (E.E.F.M.) do Quilombo de Ivaporunduva, fundada em 1982. A
reivindicação, em seguida, foi relativa ao transporte: pediu-se que o ônibus que
transporta as crianças fizesse uma parada mais perto do porto (rio) para embarque e
desembarque dos alunos do ensino médio, moradores em localidades mais distantes da
escola.
As reivindicações continuaram, principalmente ao vigorar a carta magna, que
caracteriza a discriminação como crime. O crescente envolvimento e luta da população
negra brasileira também pressiona o governo para a aprovação do artigo 68, dos atos
83 Ver em: PAZ (2001, p. 83).
148
das disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que dispõe sobre o direito da
posse da terra por remanescentes de quilombos84.
Depois qui saiu a lei pra formá o quilombo, intão nóis aceitemo e
trabaiemo em cima pra formá o quilombo. I nói fiquemo lá na Vila
quatro noite cum advogada expricano pra nóis como qui funcionava o
quilombo. Intão nói trabaiemo em cima desse projeto de quilombo,
fumo, fumo trabaiano e intão se formô o quilombo.
GASPAR FURQUIM, 72 anos. Conversa realizada em 03 de agosto de
2009, no Quilombo de Ivaporunduva.
Em 1989, a Advogada Dra. Michael Mary Nolan, junto com a comunidade, planejou o
processo jurídico de regularização da terra e também a criação da Associação
Quilombo de Ivaporunduva, fundada em 14 de julho de 1994. Revisitar a história dos
seus antepassados e provar que eram descendentes das pessoas negras escravizadas,
e estavam na terra há mais de 400 anos, foi um processo longo para os quilombolas.
84 Artigo 68: “Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Garante
também os direitos culturais, definindo como responsabilidade do Estado a proteção das
“manifestações das culturas populares, indígenas e afrodescendentes”. O artigo 215 prevê que “o
Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O Artigo 216 estabelece: “Ficam
tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos”. Estes artigos representam avanço na História do país, no que se refere aos aspectos de
reconhecimento dos direitos culturais (art. 215 e 216) e direitos fundiários (art. 68). (MALCHER,
2006, p. 17).
149
Conseguimo contratá um etnólogo da Bahia, um baiano, e um topógrafo
daqui de Registro pra fazer a demarcação; naquele tempo não tinha
GPS, tinha que marcá naquele aparelho de topografia, pra marcar de
pedacinho a pedacinho, entendeu, e nosso povo concordou: vamo mete
a cara no mato todo mundo, aí quem que vai sabe onde que é a divisa
hoje? Aí o afinado Benjamim que já morreu, Silvestre tá vivo, o pai do
Destrói, o mais antigo, a divisa era aqui, o meu avô dizia que daqui
desse morro ia até nessa barra de corgo; dessa barra de corgo ia até
no pé de jequitibá lá em cima; de jequitibá descia no pé de figueira
branca; da figueira branca ia até no pé de cedro, e ali nóis fomo
naquela direção e foi ohhh... um mês, nóis conseguimo fazê entrar aqui
na beira da Ribeira, dá toda volta aqui pelo mato, lá onde tá aquele
último espigão lá, e desce pra lá daquele primeiro pastos ali, bem no
canto do pasto tá nossa divisa e fizemo a demarcação terra. A medida
da condição que ele dava aí dós mês, três mês, ele troxe pra nós, ele
termino o mapa da área. [...] O trabalho do etnólogo demorô um poco,
mais ele pesquisô aqui, pesquisô nas cidade do Vale do Ribeira,
pesquisô em São Paulo, foi buscá em todo lugar que ele podia achá o
que falasse de Ivaporunduva, ele pesquiso, né, aí saiu então o
documento antropológico de Ivaporunduva. Nós com a posse desse
documento, nós fomos até São Paulo, né, com o advogado e
protocolamo. Lá, exigindo do governo então reconhecesse
Ivaporunduva uma comunidade quilombola, e titulasse nossa
comunidade. Foi uma confusão da desgraça, puta que pariu. O primeiro
em São Paulo que chegou, né, e aí houve uma confusão danada, a
associação da antropologia questionou por essa falta de registro.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
As leis referentes ao reconhecimento das terras não eram bem definidas. Ditão
aponta as dificuldades em provar a história:
150
Mario Covas criô então naquela época lei e que ordena o ITESP pra
reconhecê e titulá as terras de quilombo, porém só área de conduta,
área que não tivé pobrema. Isso foi a coisa ruim que ele fez no
documento. Área que tivé probrema não resolve. E agora imagina
vocês, quilombo 400 anos, qual o quilombo que não tem pobrema? Tô
falando de ocupação, tô falando de ocupação de terceiro, qual é o
quilombo que não foi ocupado? É preto, tudo analfabeto, o que não
sabe lê e escrevê, contando a letra é alvo fácil, pra quem qué adquiri a
terra, adquiri a terra de graça, baratinha a troco de banana, então
aqui aconteceu muito isso nos quilombos, então foi a parte difícil pra
nós aqui[...]. Aí precisou bons advogados pra defendê, até que, em 97,
um acordo, né, que houve em Brasília, e assim voltaram, saiu
Ivaporunduva, Rãs, Conceição das Criolas, alguns quilombos no Brasil
reconhecido nesse pacote, e Ivaporunduva foi junto, e aí fui pra
Brasília e voltei, voltei alegre pra caramba, aí contemo pra
comunidade, foi uma alegria, né.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
No dia primeiro de julho de 2010, o Quilombo de Ivaporunduva entra mais uma vez na
história de luta, resistência e conquista pela terra, sendo a primeira comunidade
quilombola no Brasil a ter o registro da terra, como explica José Rodrigues:
Pelo que vejo no Brasil, nós somos um dos pioneiros
do registro de terra coletiva, o juiz não tinha
modelo pra se basear. Foi criado pelas leis, foi
criado um modelo, eles tiveram dificuldade. Aqui no
Brasil, pela lei da terra, o dono é um, é aquele ou
aquele; quer dizer, quando se fala em coisa coletiva,
fica difícil, porque não é moda, nunca ninguém fez.
Então pra nós é, foi muito importante esse
conhecimento em ter direito a registrar. Espero
que isso seja muito modelo pro resto do Brasil, que
outras comunidades do Brasil eles usem isso pra se
legalizar legalmente na terra, pra ter seu direito ao
registro de sua propriedade.
JOSÉ RODRIGUES - ZÉ RODRIGUE. Conversa
realizada em 18 de julho de 2010, no Quilombo de
Ivaporunduva.
No dia 09 de julho de 2010, a Associação Quilombo de Ivaporunduva realizou uma
assembléia geral com os membros da comunidade, para celebrar o registro da terra.
Figura 11: Zé Rodrigue – Quilombola -
Vereador Município do Eldorado-SP
Fonte Própria (julho/2010)
151
Maria da Guia85, Coordenadora da Associação, iniciou a assembléia dizendo que
estavam reunidos para comemorar um momento de vitória da comunidade. Em seguida,
ela pediu um minuto de silêncio em reverência aos quilombolas mortos nos embates em
defesa da vida no território. Lembrou que aquele momento de celebração só foi
possível pela continuidade do trabalho de luta e resistência que teve início há mais de
400 anos, pelos seus antepassados, e continuidade pelos seus descendentes, por meio
do trabalho e ações políticas em 24 anos de luta no processo político-jurídico de
reconhecimento, titulação e, naquele momento, o registro da terra (figura 8).86
Esses mais velhos, uma coisa muito importante que foi lembrado aqui,
foi esse povo que morreu. Eles não tinham interesse de sair daqui,
sempre eles queriam prantar seu arroz seu fejão, e queriam que seus
filhos, seus netos seguisse a mesma viagem. Quer dizer, isso deu
força para nós tá aqui hoje, porque têm muitos, aqui, que devia estar
fora hoje. Mas eles reconhecem seus ancestrais e tão aqui, a luta, a
cultura dos seu antepassado, e isso é pra nós, e muito importante, e
nós temos que passar pros mais novos. Eu tô com 50 anos, tem muito
da minha idade, nós vamos daqui um dia tá mais velho e até morrendo,
esse valor tem que acompanhar a viagem.
JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE – Líder Quilombola – Assembléia
da Associação Quilombo de Ivaporunduva. Realizada em 09 de julho
de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Na celebração do registro do titulo da terra, a Dra. Michael, advogada da Associação
Quilombo de Ivaporunduva, comemora: “A terra é de vocês e ninguém pode tirar, ela
está registrada definitivamente no cartório. Eu prometi mais de vinte anos atrás, que
a gente lutaria para fazer isso, agora eu terminei minha tarefa, vocês são donos”.
85 Em 12 de julho de 2009, a comunidade, em assembléia da Associação Quilombo de Ivaporunduva,
decide pela primeira vez, em votação, por uma liderança feminina - Maria da Guia – Coordenadora da
Associação por um período de dois anos (até julho/2011). Ela reconhece e tem acompanhado o percurso
das lideranças quilombolas que antecederam à dela, inclusive a de seu marido, José Rodrigues, nas ações
que foram primordiais para a comunidade, voltadas para: as necessidades de defesa, posse e
regularização das terras; processo de articulações políticas contra as barragens; as parcerias de
desenvolvimento sustentável para os avanços da comunidade. 86 Em 1997, deu-se o primeiro reconhecimento de suas terras pelo ITESP; em 2000, a comunidade
obteve o reconhecimento pela Fundação Palmares e, em 2003, recebeu, do ITESP, o título de parte de
suas terras; Em 02 de julho de 2009, finalizou-se o processo de reconhecimento, regularizando-se a
documentação.
152
Zé Rodrigue, também expressa a alegria pela conquista da titulação da terra:
[...] As leis, tem as leis, e você tem às vezes que brigar pra que ela
seja cumprida. Eu lembro que aqui, essa comunidade, nós somos
titulado, contemplado com o titulo de direito, direito nosso. E ficamos
aí quase 15 anos sem registrar o titulo, 16 anos atrás nós entramos na
justiça e hoje o juiz deu a sentença que os cartórios tem que
registrar. E ganhamo através de uma ação pública, ganhamo o direito
de registro da nossa terra. Então hoje nós fomo no cartório junto
com o pessoal do INCRA, né? É, registramos o título. E uma coisa que
o Estado é réu, o Estado foi réu. Porque nós tivemos que brigar
contra o Estado, entendeu? Pra que o Estado nos liberasse o registro
da titulação, entendeu? Então quer dizer que não tem mérito nenhum
de governo, se você for ver, de Estado nenhum. É mérito da nossa luta
com a justiça. A justiça foi feita. Nós tivemos o registro registrado.
É claro que depois do registro registrado, tem que trabalhar as ações,
aí a dever do estado de trabalhar desenvolvimento, melhorar essa
coisa das ações que já vem sendo feita, mas tem que melhorar mais. A
luta pelo registro do titulo foi nossa com a justiça. Nós agradecemos
muito os nossos companheiros jurista que nos deram a sentença ao
nosso favor, nossos advogados, a Dra. Michael, que foi uma pessoa
muito legal com a gente, dês do começo ela estava lá com ação, muitos
procuradores públicos que nos ajudaram, então, nós devemos muito a
isso. E hoje nós temos o título registrado. Nós podemos bater no chão
e dizer: essa terra é minha, essa terra é nossa, do nosso povo, e aqui
podemos sobreviver nossas gerações, sem risco de podê perder um
dia.
JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE. Conversa realizada em 18 de
julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Figura 12: Assembléia Geral da Associação Quilombo de Ivaporunduva –
Quilombo Ivaporunduva - Celebração pelo Registro da Terra
Fonte própria: 09 de julho de 2010
153
AS CONTRADIÇÕES
O Líder Zé Rodrigue exprimiu algumas preocupações ao falar que a comunidade está
entrando em uma nova fase, com novos problemas e com novas discussões:
[...] A luta não acabô. A nossa luta do dia-a-dia vai tê continuar. Aí nos
vamos tê que cada vez mais, se organizar melhor. Pra ter uma
qualidade de vida boa, geração de renda boa, manter os laços
culturais de amizade e de irmão. Mas eu acho que nós temos mais luta
[...] mudou o tempo, organizou muita coisa, mas aí assim, começou
tamém aumentar os problemas, como vem a cada vez mais, e pra
manter essa coisa que aquele pessoal que nós lembremos deles aqui,
queria que nós mantesse, nós vamos ter que fazer muita luta ainda.
Nós temos uma ponte aí, daqui a pouco nós vamos ter que colocar uma
guarita pra não mudar nossa cultura, nossos modos de vida.
JOSÉ RODRIGUES – Zé Rodrigue -Líder Quilombola – Assembléia da
Associação Quilombo de Ivaporunduva, realizada em 09 de julho de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Observa-se na fala de Zé Rodrigue vários tipos de preocupação com: a organização
quilombola, a construção das barragens, a qualidade de vida, a geração de renda, a
manutenção dos laços culturais, que significa a coletividade, e também a ponte que foi
construída na comunidade e seria inaugurada, em 23 de agosto 2010, pelo Presidente
do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. Essa ponte, como já foi apontado, tem múltiplos
significados para essa comunidade.
Para entendermos melhor essas preocupações de José Rodrigues, comecemos pela
construção das barragens. No decorrer da história da formação da comunidade
Quilombo de Ivaporunduva, foi possível acompanharmos o empenho da população
quilombola para manter a sobrevivência dentro do seu território. Ela precisou
trabalhar e se organizar de forma individual e coletiva. Ao iniciar a luta pela posse da
terra, há 20 anos, simultaneamente se iniciou também o trabalho da comunidade nas
ações e movimentos políticos contra a construção das barragens, como já foi
abordado em texto anterior; porém, a problemática da barragem não termina com o
154
registro da terra. Jose Rodrigues fala sobre a posição que a população quilombola
deverá assumir contra a construção das barragens87 nessa nova fase:
A região é um potencial econômico muito grande, nós temos mina de
ouro, nós temos muitos minérios, ns temos muita água, aqui tem
grande potencial hídrico´, né. Existe uma lei que diz que quilombo é
patrimônio nacional. Então não pode depredar. Se tiver algum projeto
que vai atingir de qualquer maneira, não positivo pra esse território,
não pode ser feito. Por exemplo, no caso da barragem, vai pegar de
cheio o quilombo, é claro que não é viável. Não tô falando que não é
viável o recurso hídrico no Brasil, eu tô falando que, em lugar onde vai
causar o impacto, com patrimônio cultural e impacto muito grande com
a questão ambiental, não é viável. No caso aqui, vai ser mais difícil pro
setor de energia pranejar uma coisa de aproveitamento hídrico aqui.
Porque tem os patrimônio cultural nacional que, no caso do quilombo,
que tem que ser preservado. Então vai ser mais difícil. Isso pra nós
ganhá fôlego pra nós tentá, é, melhorar a luta.[...] E até forçar uma
nova discussão na questão energética brasileira, que tamém não pode
viver só de recurso hídrico, aquilo que a gente fala, a questão
energética tem que ter mais pesquisas, mais estudo e outra forma de
gerar energia que não seja só recurso hídrico, porque nóis vamo perde
rio, todos os rios brasileiro, vamos perder nossas matas, né? Então
quer dizer, nós não podemos pagar muito caro o nosso
desenvolvimento. Nós temos que achar maneira de minimizar o mínimo
possível o custo, principalmente ambiental e social desses projetos de
desenvolvimento. [...] nós temos que pensar no desenvolvimento,
desde que ele não atrapalhe. O que nos temos que fazer, por exempro.
[...] Tem muitos países aí na Europa que tem suas leis que protege e
são bem desenvolvidos, eles criam alternativa de energia de vários
tipos de desenvolvimento que não agride o meio ambiente. [...]
Criatividade nós temos, falta pensá. Capacidade nós temos, falta fazê.
Falta vontade política de fazer. Nós temos feito a nossa parte, né,
tanto é que essa comunidade aqui, desde 1539 que nós vivemos aqui, e
as matas tá do mesmo jeito, não tem degradação nenhuma.
JOSÉ RODRIGUES – Conversa realizada em 18 de julho de 2010, no
Quilombo de Ivaporunduva.88
87 Na década de noventa do século XX, o governo federal aprovou o estudo de inventário hidrelétrico que
prevê a construção de quatro barragens: Tijuco Alto, Funil, Itaoca e Batatal ao longo do rio Ribeira de
Iguape.A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto (UHE Tijuco Alto) é um empreendimento planejado pela
Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), uma das empresas do Grupo Votorantim, para aumentar a oferta
de energia elétrica para seu complexo metalúrgico localizado na cidade de Alumínio, antiga Mairinque, no
interior de São Paulo. A localização da UHE Tijuco Alto está prevista para o alto curso do rio Ribeira de
Iguape, na divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, cerca de 10 quilômetros a montante da cidade de
Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR), e a aproximadamente 333 km de sua foz, no complexo Estuarino-
Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá.Com as construções das barragens, aproximadamente 11 mil
hectares de área serão inundados, será inevitável o desaparecimento das terras de quilombos e pequenos
agricultores, cavernas, unidades de conservação e cidades.
155
Ditão discute os impactos que a construção das barragens poderá causar à
comunidade, dando exemplos das interferências ocorridas na organização social do
quilombo, durante o período de construção da ponte89.
Temos barrageiro90 no Brasil que vive disso, igual quem faz estrada,
né? Taqui acabô o serviço, vai pra outro lugar. Muitos desses
barragero quando vem prum lugar que nem igual a esse aqui, esses
lugar ele fica, e os municípios não está preparado pra receber na
questão de educação, na questão de saúde é principal, não tem,
nós aqui, quando dá esse negócio de uma epidemia de gripe, aí entope
o hospital de gente e fica nego distribuído lá pro corredor, porque
não tem lugar. Imagine mais uma quantidade de gente na região, então
isso são preocupação tamém que traiz, e outra questão é filho: oi, foi
feito uma ponte ali; oi, tem uma criança em Ivaporunduva que é
resultado da ponte. Imagine umas duas mil pessoas aqui [...].
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
A obra de construção da ponte foi realizada por 50 trabalhadores91, vindos de
diversos estados do Brasil, que ficaram em um alojamento improvisado pela
construtora responsável pela obra, próximo à comunidade (do outro lado do rio, fora
do quilombo). Poucos trabalhadores quilombolas (das comunidades de Eldorado e
Iporanga/SP) foram contratados para esse trabalho, o que de fato contribuiria para
que se mantivesse a segurança das famílias e se preservasse a dinâmica e os costumes
dos quilombolas.
88 Ver a entrevista do Zé Rodrigue sobre a discussão das barragens, gravada em 2007. Vídeo da
Audiência pública – Vale do Ribeira. Disponível em:
<http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>. Acesso em: 02 jul. 2010.
89 Dados retirados do diário de Campo na data de 20.07.2010 – A obra da construção da ponte deu inicio
em outubro de 2008 com a previsão de terminar em agosto de 2010. No mês de junho de 2010 os 50
trabalhadores finalizaram o trabalho da construção da ponte e deixaram o alojamento localizado ao lado
do Rio Ribeira de Iguape no Quilombo de Ivaporunduva, vieram outros trabalhadores (esses são
funcionários da prefeitura do município Eldorado) para trabalhar na estrada. A inauguração da ponte
estava marcada para o dia 16 de julho 2010 – com a presença do Presidente do Brasil - Luiz Inácio Lula
da Silva, foi adiada devido à chuva constante que interrompeu a finalização do trabalho; a inauguração
será re-marcada para agosto/2010.
90 Barrageiros – são os trabalhadores (contratados pela construtora responsável pela obra da construção
das barragens) – identificados dessa maneira pelos quilombolas.
91 A construção da Ponte foi financiada com recursos do Governo Federal; aprovada em 06 de outubro de
2006; realizada pelo Exército Brasileiro. Concedente: Ministério da Integração Nacional; executor: 10º
Batalhão de Engenharia de Construção; empresa Contratada: Consórcio Etama/Arvek. A construção da
obra teve início em novembro de 2008 e foi até julho de 2010.
156
A preocupação trazida pelo líder Ditão é com as famílias e com a estrutura social da
comunidade, uma vez que os trabalhadores, vindos de fora, não têm vínculo com a
terra nem respeito à ancestralidade, ou relação de irmandade com membros da
comunidade, podendo, assim, interferir e desestabilizar a sua organização social92.
No município, os serviços que atendem à população nas áreas da saúde, educação,
transporte, segurança, emprego, moradia etc. são municipalizados, e os serviços para
atender às necessidades da população nessas áreas têm sido precários e/ou
inacessíveis93. Muitos motivos de preocupação vêm ocorrendo na comunidade,
principalmente, em relação a: controle (ou descontrole) da taxa de natalidade;
aumento acelerado de usuários e/ou dependentes de drogas (licitas e ilícitas) e uso
abusivo do álcool. O crescimento excessivo de usuários de álcool entre mulheres,
jovens e adolescentes tem aumentado a violência doméstica (a agressão física e
psicológica), causando mudanças no convívio social da comunidade. Parecem
pertinentes as preocupações dos quilombolas, caso a construção das barragens seja
aprovada: a violência velada que começa a fazer parte do cotidiano dessa população
tende a se tornar explícita, por falta de ações políticas em diversos setores da
sociedade. Um exemplo seria a própria construção de barragens, que levaria à
expropriação das terras dos quilombolas, fazendo com que eles perdessem o seu
vínculo com o território e com os seus meios de produção.
Os quilombolas de Ivaporunduva têm resistido à violência simbólica e mesmo à real
(poderíamos dizer), que tem sido imposta pela expansão desenvolvimentista do
capitalismo. Essa resistência está presente nas ações políticas, na história de vida dos
quilombolas de Ivaporunduva, construída em meio aos conflitos diante de um sistema
que lhes tem negado os direitos como parte integrante que são da população
brasileira. Os avanços (mesmo limitados e lentos) na passagem dos quilombolas de um
92 As interferências dos ponteiros92 ocorreram a partir das entradas deles no quilombo para compra de
produtos nos bares, uso de orelhão e, aos poucos, passaram a frequentar os espaços de lazer da
comunidade. Com alguns desses trabalhadores entram, na comunidade, as drogas (lícitas e ilícitas) e
também acontece de esses trabalhadores buscarem relacionamentos “rápidos ou enquanto estiverem
empregados no local”, sexo (muitas vezes sem prevenção contra DST‟s e gravidez) com adolescentes,
jovens e adultos, sem levar em consideração compromissos de relacionamentos já estabelecidos no local,
além das consequências desses atos às gerações futuras. 93 A estrutura do tratamento de saúde no município (atendimento médico para a população,
acompanhamento na gestação, epidemia, odontológico etc.) é quase inexistente. Há falta de equipe
médica e de estrutura física para atendimento das necessidades básicas da saúde da população do
município. Os quilombolas estão em locais isolados, a 55 km do hospital de Eldorado-SP (que geralmente
faz o encaminhamento para a cidade de Pariquera-açu-SP, a 35 km de Eldorado). No caso de violência,
agressão física, assassinato, atropelamento, desaparecimento de pessoas, entre outras denúncias de
agressões, o setor de segurança pública não tem tomado as providências para assegurar os direitos da
comunidade, principalmente dos quilombolas que estão isolados, literalmente, do centro urbano.
157
sistema de escambo para o de renda, no sentido de produzirem a vida, têm se dado a
partir de ações políticas.
Manter a sobrevivência tem sido um embate constante dos quilombolas com os
setores públicos da sociedade brasileira. Esses embates têm sinalizado que tudo o que
foi sendo construído nesse território quilombola tem sido reivindicado e arrancado
dos ministérios públicos com o poder das ações dos movimentos políticos e sociais
dessa população.
Nesse sentido é pertinente a preocupação do José Rodrigues, quando ele diz que: [...]
A luta não acabô. A nossa luta do dia-a-dia vai tê que continuar [...] Nós temos uma
ponte aí [...]. A preocupação com a ponte se remete à entrada do desenvolvimento, que
tanto pode ser pautado no conceito de uma comunidade sustentável como no de
desenvolvimento sustentável.
Para Diegues, no seu texto “Sociedade e comunidades sustentáveis”, o termo
desenvolvimento sustentável “acabou sendo transformado, no Brasil, numa dessas
porções mágicas destinadas a curar todas as enfermidades crônicas de que sofre a
sociedade moderna.” (DIEGUES, 2003, p. 1). Desse modo, tornou-se preocupante o
consenso sobre o significado do termo “desenvolvimento sustentável”, que tem sido
distorcido quando utilizado por diferentes grupos sociais.
Desenvolvimento sustentável, para alguns setores do movimento ambientalista,
significa a proteção do verde, independe da realidade social envolvida; para os
empresários, significa o desenvolvimento que garante a sustentabilidade da taxa de
lucro, baseada na criação e venda de equipamentos e produtos contra a poluição; para
setores governamentais, pode significar empréstimos internacionais a organismos
financeiros obrigados a projetos socioambientais em seus critérios de aprovação de
projetos no item ambiental; no âmbito internacional, o conceito é utilizado de forma
mais ampla, para se referir às causas sociais e econômicas da degradação ambiental e
da rápida e crescente marginalização das áreas de preservações ambientais dos
países.
Mesmo com a ambiguidade de várias propostas de desenvolvimento sustentável
formuladas pelas elites, Diegues (2003) nos convida a resgatar o conceito que melhor
exprime o sentido de sustentabilidade, o qual está atrelado “ao de bem-estar e
158
qualidade de vida das comunidades e sociedades humanas. Nesse sentido, a
sustentabilidade [...] é um conceito plurifacetado que envolve as dimensões sociais,
econômicas e políticas” (Ibid, p. 1).
A noção de sociedade sustentável está baseada na noção expressa por Chambers
(1986 apud DIEGUES, 2003), que entende que os grupos e pessoas, sobretudo os mais
empobrecidos, devem ser considerados sujeitos e não objeto do “desenvolvimento”.
Para esse autor, o meio ambiente e o desenvolvimento “são meios e não fins em si
mesmos”. O autor se refere, ainda, à sustentabilidade dos modos de vida, para a qual,
a prioridade das políticas públicas deve ser a qualidade de vida, e não o crescimento
econômico. Desse modo, é importante se pensar em “comunidades ou sociedades
sustentáveis” e não desenvolvimento sustentável.
É necessário que as comunidades pensem e se estruturem em termos
de sustentabilidade própria segundo as suas tradições culturais, seus
parâmetros próprios e sua composição étnica específica. Isso não
invalida as conquistas universais hoje consolidadas nos princípios da
Declaração dos Direitos Humanos e outras declarações e acordos mais
universais que devem estar na base da sustentabilidade, sob o prisma
da participação democrática na construção das sociedades
sustentáveis. (DIEGUES, 2003, p. 4).
Robinson (1990) entende que o conceito de “sociedades sustentáveis” é mais
apropriado, por ser mais amplo do que desenvolvimento sustentável. O autor define
sustentabilidade “como a persistência, por um longo período, de certas
características necessárias e desejáveis de um sistema sociopolítico e seu ambiente
natural” (ROBINSON, 1990 apud DIEGUES, 2003, p. 5).
A sustentabilidade é um princípio ético, normativo, e não existe apenas uma única
definição de sistema sustentável. Não existe sociedade sustentável sem a
sustentabilidade ambiental, social e política; portanto, trata-se de um processo e não
de um estágio final, que pressupõe um sistema sociopolítico sempre em
transformação.
159
O autor também faz menção ao valor intrínseco do mundo natural e suas formas de
vida, incluindo a humana. Para ele, os princípios sociopolíticos estão atrelados à
distribuição equitativa da riqueza gerada, à participação política da população nas
decisões, às liberdades democráticas e à satisfação das necessidades básicas.
Pergunto sobre o significado da abertura dos “portões” do quilombo para o
desenvolvimento. Qual modelo de desenvolvimento? A custa de qual sustentabilidade?
O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL CAPITALISTA?
160
Figura 16: Ponte de Ivaporunduva
Fonte Própria (julho/2010)
Figura 14:
Sr. Aparício –
Travessia de canoa
Fonte Própria (2010)
Figura 13: Travessia de
barco motor
Fonte Própria (2008)
Figura 15: Travessia
de balsa
Fonte Própria (2006)
161
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163
QUINTO TEXTO
“EU ACHO QUE DÁ PARA VIVER AQUI”
164
O processo da formação histórica da comunidade Quilombo Ivaporunduva esteve
fundamentado pelas/nas ações socioeconômicas e políticas em movimento e em
transformação. Em um primeiro momento como pessoas escravizadas, num segundo
momento pela resistência e luta para manter a sobrevivência no território. Nesse
movimento, as terras de preto são uma realidade agrária brasileira, são áreas que
passam a ser reconhecidas no âmbito jurídico-político por meio de lutas sociais. O
nosso movimento é no sentido de entender como a população quilombola tem
significado as suas relações com o território para manter a sobrevivência em suas
terras. Ivaporunduva tem enfrentando um crítico dilema entre desenvolvimento e
preservação do patrimônio natural e cultural, um modelo conservador-tradicional onde
as forças se organizam de forma bipolar e enfrentam-se de forma antagônica, tais
como: urbano x rural, desenvolvimento econômico x preservação ambiental,
fazendeiros x ambientalistas, e ainda tem sofrido com o projeto de construção de
barragens ao longo do rio Ribeira de Iguape. Esse texto é continuidade do anterior.
Trazendo os relatos das famílias, jovens e lideranças, pontua um novo momento de
reorganização socioeconômica e política em busca de uma comunidade sustentável
***
165
Uma coisa especifica minha são as minhas comunidades são os meu
povo, que nós precisamos fazer com que a sociedade pague um pouco
dessa dívida social, que o estado, o Brasil deve pra nós, e que ela
sempre se enrola, se enrola e cada vez mais, eles tentam, a sociedade
mesmo, as leis tentam nos diminuir algumas coisas, mas nós temos que
brigar pra que essa dívida seja paga. É uma dívida muito grande que
não tem dinheiro que pague, mas tem que fazer alguma coisa pra
melhorar isso, nosso povo tem que ter qualidade de vida, tem que ter
chão pra sobreviver, tem que ter terra pra sobreviver, pra prantá,
pra colhê, pra criá seu desenvolvimento, tem que ter uma boa
educação e saúde.
JOSÉ RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE. Conversa realizada em 18 de
julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
A comunidade discute uma reorganização socioeconômica e política que envolve a luta
pelos direitos sociais de: comunidade sustentável (que eles se sustentem na própria
terra) e conhecimento. As lutas sociais dos quilombolas são originárias na formação
histórica da população negra no Brasil, uma vez que vivem em “uma sociedade plural,
mas não resolvida a nível de direitos.” (GUSMÃO, 1992, p. 120).
No seu relato, o quilombola Zé Rodrigue se remete às experiências vividas
historicamente pelos seus antepassados, nas quais se orienta a luta no presente. Para
a autora Gusmão, esse processo surge como confronto com o „outro‟, seja empresa
mineradora, o fazendeiro, empreendimento turístico, empresa privada,
empreendimento público, terceiro setor etc., sendo “então moldada pelo „tempo de
agora‟ – „tempo de luta‟, mas encontra subsídio no „tempo de antes‟, naquilo que foi a
vida coletiva, a vida no grupo.” (GUSMÃO, 1992, p. 119).
Toda essa formação de Ivaporunduva que teve vários estágio, eu só
resumo em três estágio: Primeiro estágio: o estágio que nóis era
escravo; segundo estágio: o estágio de resistência, e terceiro estágio:
agora nóis estamos lutando por direito e desenvolvimento. E dentro
desse estágio de lutar por direito e desenvolvimento, o conhecimento
é muito importante.
DENILDO RODRIGUES DE MORAES - BICO. Palestra realizada em
16 de janeiro de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Nos últimos 10 anos, tem crescido o reconhecimento sociopolítico e a legitimidade da
luta dos quilombolas pela posse da terra; simultaneamente vem ocorrendo o
166
fortalecimento político da liderança quilombola e a sua busca por uma comunidade
sustentável.
A partir de 1960, a bananicultura94 veio aos poucos se estabelecendo como a principal
atividade econômica da comunidade, cuja produção passa a ser realizada em regime de
agricultura familiar. A venda desse produto não era diferente das experiências do
passado, vivenciadas pelos quilombolas com a produção do arroz e da carga do palmito;
pois as bananas eram também vendidas para os atravessadores, e o ganho pela
atividade de todo trabalho dos quilombolas era limitado. Mais uma vez, seu trabalho
era marginalizado e seus produtos submetidos à negociação injusta.
Era o único meio que os quilombolas tinham para vender suas
mercadorias. Para não perder seus produtos, essa comunidade
submeteu-se a trabalhar como uma mão-de-obra barata, ou seja,
produzia muito com um lucro pequeno.
(SILVA, 2008 p.20).95
A comunidade passa pelo período de politização dos membros e lideranças quilombola,
por meio da interação com o movimento da esquerda socialista, com membros da
Igreja Católica (de forte vínculo com o movimento político da esquerda) e com outros
movimentos sociais. O envolvimento dos membros da comunidade com os movimentos
sociais (que garantiu a politização das crianças e adolescentes) foi fundamental para
94 A região do Vale do Ribeira se destacou como principal região produtora de banana do país. Por volta
de 1960, a bananicultura se estabelece como atividade econômica na Comunidade Ivaporunduva, porém
sua produção, como as de outras populações tradicionais e de agricultura familiar, era sempre
marginalizada, se limitava às possibilidades de ganho desvalorizadas e dependentes dos atravessadores
para a venda de suas produções, limitando, de forma injusta, o ganho com essa atividade. A partir de
2002, com a aprovação de projetos para organizações financiadoras, que previam recursos para
melhorias na produção e comercialização da bananicultura, essa atividade passa a ser o foco principal da
economia da comunidade. (ISA, 2007, p. 16). 95 Laudessandro Marinho da Silva – quilombola morador do Quilombo de Ivaporunduva.
SILVA, Laudessandro Marinho. Proposta de Implantação do Cooperativismo para a venda de produtos
orgânicos no quilombo Ivaporunduva. Trabalho de Conclusão de Curso em Administração de Empresas.
Universidade São Francisco. Itatiba, 2008.
167
tornar os jovens adultos deste momento mais politizados, o que nos remete à fala de
Bico sobre o terceiro estágio: o “de lutar por direito e desenvolvimento (para o que) o
conhecimento é muito importante”.
Entrou a molecada aí correndo pra estudá, a comunidade começou a
incentivá a educação, que os jovens fosse formá, tem os resultado tá
aqui [aponta o Laudessandro], fio do cumpadre Aparecio, que foi pra
replanejá o quilombo, né, e como tinha que repranejá o quilombo,
aproveitá certo o potencial existente daqui, tinha muita, tinha e ainda
tem até hoje muito aproveitamento por pessoas de fora, mas quem
tinha que aproveitá isso era nóis.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no quilombo Ivaporunduva.
Com a fundação da Associação Quilombo Ivaporunduva, em 1994, a comunidade entra
em uma nova fase, a de buscar direitos político e socioeconômico à população
quilombola. Com exceção da agricultura de subsistência do cultivo de arroz, feijão,
mandioca, batata doce, milho e do cultivo de vegetais, as outras atividades foram
sendo introduzidas na comunidade por meio de mútuos esforços e investimentos dos
setores públicos, do terceiro setor e da comunidade quilombola. Dessa forma,
procurou-se valorizar os recursos naturais disponíveis no território, com a proposta
de geração de renda à comunidade. O que se espera desses investimentos é que tais
programas sejam direcionados à sustentabilidade da comunidade.
Associação quilombo Ivaporunduva tem como missão lutar pelos
interesses de direitos sociais, culturais e territoriais, assegurados às
comunidades remanescentes de quilombo através da constituição 96Federal de 1998. Desenvolve, autonomamente, ou com apoio de
parceiros, ações e iniciativas voltadas à manutenção e valorização de
identidade cultural, à conservação ambiental e ao desenvolvimento
sustentável das comunidades do Vale do Ribeira.
(PUPO, 2009, p. 18.)97
97 Paulo Pupo – é uma liderança jovem morador do Quilombo de Ivaporunduva. Ver esse artigo em: PUPO,
PAULO. Comunidade quilombola do Vale do Ribeira. In. Promovendo os direitos de Mulheres, crianças e
jovens de comunidades anfitriãs de turismo do Vale do Ribeira. Alessandra Blengini Mastrocinque;
Martins, Alessandro de Oliveira dos Santos e Vera Paiva São Paulo: Instituto Ing_ de Planejamento
Socioambiental, 2009.
168
O Trabalho no Quilombo de Ivaporunduva
Os trabalhos que movimentam a economia de Ivaporunduva, hoje, são: a produção e
comercialização de banana orgânica e convencional (principal atividade econômica na
comunidade, realizada por quase todas as famílias); o artesanato da palha de
bananeira e o Ecoetnoturismo. As duas últimas estão sendo implantadas. Mesmo em
fase de reajustes, essas atividades têm gerado renda às famílias da comunidade. A
agricultura de subsistência (arroz, feijão, mandioca, cará, frutas, verduras etc.), a
partir deste ano de 2010, passa a ser geradora de renda para as famílias que mantêm
esse tipo de agricultura98. O manejo de plantas medicinais, a recuperação do palmito
juçara e a fábrica de processamento de banana são investimentos que estão em
desenvolvimento. A expectativa é de que esses produtos se tornem futuras fontes de
renda para o quilombo Ivaporunduva.
Em relação à agricultura comercial, as famílias trabalham em suas roças pelo regime
de agricultura familiar, especialmente na bananicultura orgânica e na convencional99.
Esses produtos são necessariamente vendidos coletivamente, via associação, gerando
uma interdependência nas relações entre as famílias produtoras de banana, podemos
dizer que, em nome do mesmo interesse: a venda do produto para a geração de renda.
98 As comunidades do Vale do Ribeira, a partir de 2010, passam a comercializar os alimentos produzidos
na agricultura familiar, por meio de sua Associação ou Cooperativa, com Prefeituras dos Municípios da
região do Vale do Ribeira-São Paulo. A partir de políticas públicas e da publicação da Lei Federal n.
11.947/2009, artigo 14, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) transfere os recursos
financeiros às prefeituras dos estados, para alimentação escolar dos alunos da educação básica das
escolas públicas e filantrópicas. As prefeituras, por sua vez, utilizarão 30% do recurso na compra dos
produtos da agricultura familiar das comunidades tradicionais: indígenas e quilombolas, assentamentos
de reforma agrária. Disponível em: <htpp://www.mda.gov.br/portal/saf/programas/alimentacaoescolar>.
Acesso em: 19 ago. 2010.
169
No quilombo, o importante é a unidade, a gente trabalha meio que
unido, entendeu? Igual, por exemplo, pra vender a banana, a gente
precisa um do outro, porque a gente não tem uma produção total pra
fornecer. Pra colocar 300 caixas de banana, digamos, pra colocar em
cima do caminhão pra vender em São Paulo nós não temos. Por isso que
eu preciso unir, 100 caixas sua, 100 dela, 100 minha, pra manter,
depois vai revezando. Lá, na realidade a gente não tem muita disputa
pra trabalhar, a gente necessita mais de união do que disputa.
CRISTIANO FURQUIM. 23 anos. Conversa realizada em 24 de abril
de 2010.
A população quilombola, desde seus antepassados, vem produzindo artesanalmente
seus objetos (esteiras, abanadores, pilões, tipitis, peneiras e colheres de pau) para o
uso doméstico diário, e não como decoração. Para isso, utilizam matéria-prima (cipós,
madeira e taquara) extraída da mata. Ainda hoje encontramos esses objetos rústicos
sendo produzidos na comunidade e vendidos para turistas e visitantes. O artesanato
da palha de bananeira, por exemplo, é uma das atividades desenvolvidas para a
geração de renda, realizada predominantemente pelas mulheres artesãs100 (figura 1,
2, 3 e 4).
100 Esse projeto foi realizado por dois anos (2007 e 2008) entre a Associação Quilombo Ivaporunduva,
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) e ISA.
Figura 1: Palha de Bananeira – Matéria
prima do artesanato
Fonte própria (2010)
170
As mulheres quilombolas estão em todos os espaços: na agricultura familiar de
subsistência e comercial; na produção artesanal; como cuidadoras do lar, responsáveis
pela educação dos filhos, pela limpeza da casa e pela criação de galinha caipira e do
porco; no Grupo de Trabalho da pousada, exercendo função de cozinheiras, auxiliares
de cozinha e faxineiras. A liderança feminina é percebida na produção e venda de
artesanato. As mulheres destacam-se predominantemente nos espaços privado e
doméstico associados à assistência do tipo social. Estão presentes, ainda, na
Figura 4: Casa do artesanato
Fonte própria (2010)
Figura 3: Laudessandra – Artesã
Fonte própria (2010)
Figura 2: Dona Cacilda preparando a fibra da bananeira – Artesã
Fonte própria (2010)
171
exploração sustentável da natureza, efetuada na mata e na água dos rios, pela caça e
a pesca, desenvolvidas desde seus antepassados para prover o sustento das famílias.
Em 12 de julho de 2009, a assembléia da Associação Quilombo de Ivaporunduva
decide, por voto, pela primeira vez, por uma coordenadora feminina, Maria da Guia,
que passa a exercer o cargo de Coordenadora da Associação, por um período de dois
anos. Ela reconhece e tem acompanhado o percurso das lideranças quilombolas que a
antecederam, inclusive a de seu marido, José Rodrigues.
Em 2005, Maria da Guia disse, em uma entrevista, o que as mulheres quilombolas têm
dito e com o que têm se preocupado: “Queremos formar as crianças dentro dos
nossos costumes, uma educação voltada para o trabalho que fazemos para que, no
futuro, eles possam administrar a comunidade”. (Relato da quilombola Maria da Guia
In: BITTENCOURT, 2005, p. 35).
Em 2009, na nova fase após a eleição, em uma conversa no banco da praça, Maria da
Guia me disse que os homens lutaram muito pela questão da terra, as crianças: elas
cresceram, a comunidade precisa fazer algo para que elas possam valorizar todo o
trabalho que foi feito por eles até agora101.
Existe o trabalho da liderança que está fundamentado nas ações reivindicatórias do
grupo, para que haja fortalecimento econômico, político e social da comunidade, em
diferentes espaços sociais. Esse é um trabalho que visa à formação da população
jovem na comunidade.
101 Conversa realizada em 17 de agosto de 2009, no Quilombo de Ivaporunduva.
172
Antigamente, sabe, nós ia pros encontros pra São Paulo, pra outros
estado, ia eu e Zé Rodrigue, e não tinha mais ninguém que fosse, hoje
não, nós temos gente da comunidade pra ir pra qualquer estado e
qualquer país, pra discutir a política pra nóis, então a gente percebeu
que tem bastante gente na comunidade, tanto jovem quanto menina,
que tão preparado pra discutir a política.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Ditão define o que é o trabalho de uma liderança na comunidade:
Nós temos aqui, um pouco mais, um pouco mais de 400, 410 pessoas, e
a liderança a gente não elege, a gente elege coordenação de
comunidade, isso elege. Liderança é aquela pessoa que se destaca. O
que eu entendo como líder. Não sei se vocês entende da mesma forma,
é aquela pessoa que defende o povo, que luta por um ideal, esse é um
líder. Independentemente se ele teve em coordenação da associação,
da cultura, do governo, ou seja, mas em todos os espaços que ele
ocupar ele defende uma causa, quanto pra um, como pra todo. Uma
causa legal, legítima e outra, sem exigir remuneração.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 24 de julho de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
O Ecoetnoturismo é um programa de geração de renda na comunidade, coordenado e
administrado pela associação. O turismo étnico trabalha com grupos específicos:
alunos de escolas públicas e privadas, professores, pesquisadores. Nesse programa,
todo trabalho é desenvolvido pelos próprios quilombolas em funções como: artesanato,
monitoria ou guia turístico, cozinha, limpeza, palestra de boas-vindas, plantação e
colheita dos alimentos oriundos da agricultura familiar etc. Toda renda gerada pelo
programa é fruto do trabalho dos quilombolas.
Paulo Pupo explica que a Associação Quilombo Ivaporunduva espera que com as
atividades de ecoetnoturismo, a comunidade possa alcançar:
173
Melhorais da qualidade de vida das famílias quilombolas, através do
aprimoramento e potencialização das atividades econômicas locais;
geração de novos postos de trabalho na comunidade, através da
diversificação das atividades econômicas locais; diminuição do êxodo
da população quilombola, em função do aumento das oportunidades de
trabalho e renda, bem como da autoestima das pessoas da comunidade
e maior autonomia e independência da comunidade na sua relação
como o mercado mais justo, e rentáveis economicamente, para os
produtos das atividades econômicas locais.
(PAULO PUPO, 2009)102
O Ecoetnoturismo realizado pela comunidade tem características específicas de
participação, cooperação e autogestão dos membros da comunidade, e procura
valorizar o modo de vida e a cultura tradicional quilombola, por meio de passeios,
compartilhando e apresentando a história desse povo. Ditão tem assumido que se
trata de uma prática educativa. Ele diz:
O turismo tamém era uma coisa assim estranha pra nóis, buscou
informação, correu atrás, hoje o turismo étnico no quilombo é
realidade. Uma das coisa aqui importante no turismo é essa questão
que a gente tá colocando assim, resumindo um pouco aqui a historia,
né, que é interesse das escolas. Vocês são grupos de educadores, a
gente recebe aqui, além de professores, bastante escolas de São
Paulo. Infelizmente as escolas públicas não tá vindo mais, as
particulares estão saindo na frente, e tão saindo na frente. Eu fiquei
contente quando você que falou (aponta uma das professores) que é
grupo de educador, porque esse é a nossa intenção, nós não temos
mecanismo de divulgação de multiplicação da nossa história, que as
pessoas tanto preto como branco conheça a história desse povo103.
E vocês são multiplicadores disso aí. Vocês vão contribuir de uma
outra forma. Vocês vão se apossar de outra coisa, e eu entendo; como
professor, vocês vão distribuir isso aí. Isso pra nós é importante, é
muito importante mesmo.
BENEDITO ALVES – DITÃO. Palestra realizada em 16 de janeiro de
2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
102 Ver em: Mastrocinque, Alessandra Blengini; Martins, Alessandro de Oliveira dos Santos; Paiva, Vera.
Promovendo os direitos de Mulheres, crianças e jovens de comunidades anfitriãs de turismo do Vale
do Ribeira. São Paulo: Instituto Ing_ de Planejamento Socioambiental, 2009.
103 “...que as pessoas tanto preto como branco conheça a história desse povo” compõe parte do titulo
do terceiro texto.
174
Ao pontuar, no terceiro texto, que o trabalho com o “ecoetnoturismo ” no quilombo de
Ivapuranduva não fica restrito a uma atividade de geração de renda, entendo esse
trabalho como um processo educativo – uma prática pedagógica. Quando Ditão fala
com os profissionais da área de educação que participaram de uma vivência no
Quilombo Ivaporunduva, assim se expressa: “Eu fiquei contente quando você que falou
(aponta uma das professores) que é grupo de educador, porque esse é a nossa
intenção, nós não temos mecanismo de divulgação, de multiplicação da nossa história,
que as pessoas tanto preto como branco conheça a história desse povo”. Ele mostra
com isso que a proposta dos quilombolas é a de compartilhar sua história com alunos
de escolas públicas e particulares, professores, pesquisadores etc., como uma forma
de trazer a discussão da população negra brasileira e sua formação para o meio
acadêmico, tornar a história da formação da população negra brasileira viva, de modo
a podermos criticar o nosso sistema social, político e econômico.
Figura 6: Ditão. – Caminhada pela Trilha do Ouro
– Quilombo Ivaporunduva
Fonte própria (2010)
Figura 5: Denildo Rodrigues de Moraes – Bico –
Palestra para o Grupo de Professores
Fonte Própria (2010)
175
Ficou evidenciada, em minha pesquisa, a relevância do trabalho de interesse coletivo
para a consolidação das relações e laços sociais do povo quilombola, ao longo de
séculos. Esse foi e continua sendo um compromisso assumido individualmente e pelas
famílias do quilombo Ivaporunduva, quando juntam esforços no trabalho cooperativo
da defesa do território, construção das casas, na agricultura, na caça e na pesca. Vale
considerar o que os quilombolas falam sobre o trabalho que realizam. Zica diz:
Figura 7: Olavinho – Caverna do Diabo
Fonte Própria (2010)
Figura 8: Cachoeira do Meu Deus
Fonte Própria (2010)
176
Eu vejo um trabalho coletivo, um trabalho é... que possa organizar
todo mundo, pensar junto e desenvolver aquilo que já existe, não
introduzir nada, mas desenvolver o que já existe pra chegar num
ponto final. Hoje, hoje além das roças né, que a gente trabalha na
forma de lavoura, pras famílias pra geração de produtos assim
internos, também tem a questão da banana, que pessoal trabalha
orgânico, que as famílias trabalham. Hoje o desenvolvimento
sustentável aqui está sendo basicamente a banana, que é trabalhado
nas famílias; que todo mundo tem um pouquinho, e aí a associação
entra com a parte burocrática pra conseguir comércio pras
famílias da comunidade, que é pra quem ela defende, que somos
nós também a associação. Então a forma de desenvolvimento ela
traça aí, via associação, ela pega todos, faz com que tudo aquilo que as
pessoas produzam vendam um pouquinho, além de outras fontes
também de venda que tá tendo agora que é de outros produtos além
da banana, que são as hortaliças, leguminosas, tubérculos, né? Que
são coisas que tá tendo outras fontes de venda nas escolas, na
prefeitura, tudo também via uma organização que tem, que a
associação também está tentando trazer isso pra nós aqui, pra
também, além da banana, pegar esses produtos que a comunidade já
produz pra sua sustentabilidade, no caso né [...].
IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança
quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo
de Ivaporunduva.
A fala de Zica chama nossa atenção para pensarmos o trabalho na comunidade como
“coletivo”; que supõe atividade consciente e é organizador da vida social - pensar
junto e desenvolver a partir do que já existe. Pois, assim é que o homem se constitui
cotidianamente no processo de hominização. Zica pontua que “não introduzir nada,
desenvolver o que já existe pra chegar no ponto final”. Ao pensar na relação homem e
natureza, o sentido do trabalho é a sobrevivência, diferentemente de como o trabalho
se apresenta no capitalismo: “pervertido e depauperado, cuja finalidade vem a ser a
produção de mercadoria.” (ANTUNES, 1995, p. 123-124).
Esse sociólogo do trabalho, no livro “Adeus ao trabalho?”, enfatiza que o homem ao
produzir e reproduzir a sua existência a partir do trabalho se constitui como ser
social. Esse processo se desenvolve por meio da cooperação social na produção
177
material. Sendo assim, a partir do trabalho é que, cotidianamente, o homem se
constitui como humano e se distingue de todas as formas não humanas.
O trabalho consciente permite ao homem, no contato com a natureza, transformar a
matéria em objeto pensado. Sobre o trabalho, Marx enfatiza que:
Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por
isso, uma condição de existência do homem, independentemente de
todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de
mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida
humana.
(MARX, 1983, p. 50 apud ANTUNES, 1995, p. 123).
A definição dada por Marx nos permite entender “o trabalho como a única lei objetiva
e ultra universal do ser social; ou seja, trata-se também de uma lei histórica, à
medida que nasce simultaneamente com o ser social, mas que permanece ativa apenas
enquanto esse existir.” (LUKACS, 1979, p. 99 apud ANTUNES, 1995, p. 123). Por meio
do trabalho, observa-se a dupla transformação. O homem que trabalha é
transformado pelo seu próprio trabalho; ele atua e domina a natureza, ele subordina,
transforma e exerce o seu poder sobre ela. Por outro lado, os objetos e as forças da
natureza são transformados em objetos de trabalho, em matérias primas etc., como
meio de obter o poder sobre outras coisas, de acordo com a finalidade. (ANTUNES,
1995, p.123).
“Se na formulação marxiana, o trabalho é o ponto de partida do processo de
humanização do ser social”, na sociedade capitalista “o trabalho é degradado e
aviltado. Torna-se estranhamento” 104. O sentido do trabalho seria a realização do
individuo, porém, no capitalismo, ele se reduz à única possibilidade de subsistência do
despossuído; assumindo as palavras de Marx: “a precariedade e perversidade do
trabalho na sociedade capitalista”. Desfigurado, o trabalho torna-se meio e não
104 Antunes (1995, p. 132, nota 14) utiliza a expressão “trabalho estranhado” e não “alienado”. O
estranhamento refere-se à existência de barreiras sociais que se opõem ao desenvolvimento da
personalidade humana.
178
“primeira necessidade” de realização humana. (MARX, 1983, p. 147/158 apud
ANTUNES, 1995, p. 123-124).
A comunidade Quilombo Ivaporunduva tem discutido e buscado o conceito mais amplo
de „desenvolvimento‟ para uma „comunidade sustentável‟; passando, evidentemente,
pelas políticas públicas, no sentido de que a comunidade possa alcançar a desejada
qualidade de vida. A sociedade precisa admitir que essa população é constituída, em
especial, “[de] sujeitos sociais organizados, possuidores de um bem fundamental como
a terra, e que hoje lutam para preservar as bases essenciais de sua existência”
(GUSMÃO, 1992, p. 121) o que exige de todos nós um olhar atento, que reconheça “a
não-uniformidade do meio rural e da sua própria questão negra brasileira.” (Ibid, p.
121). A necessidade de organização e inserção nos movimentos mais globais das lutas
sociais, no campo, permitiu à comunidade negra quilombola o apoio de entidades e
partidos, o que foi necessário para que ela pudesse utilizar dos instrumentos de
embates frente ao Estado “que historicamente (lhe) tem sido adverso.” (Ibid, p. 121).
Para José Rodrigues:
Cultura desenvolvimentista quilombola tem que ter investimento, tem
que ter estudo, né; o que a comunidade faz, o que a comunidade tem,
pra melhorar, tentar melhorar aquilo que já tem, respeitando a
cultura e respeitando o sustentável. Nós temos condições de ter toda
estrutura dentro do prano do desenvolvimento sustentável. E um tipo
de políticas pública que estamos discutindo faz tempo, precisamos
mais de apoio nisso. Nós trabalhamos agricultura orgânica, pra fazer
com que isso tenha uma boa produção, melhor qualidade, dentro do
sustentável tem que ter investimento [...]
JOSE RODRIGUES – ZÉ RODRIGUE. Conversa realizada em 18 de
julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.105
Em uma conversa com a Zica, perguntei como ela pensa o desenvolvimento sustentável
para a comunidade, no que tanto insistem:
105 Ver a entrevista do Zé Rodrigue sobre a discussão das barragens, gravada em 2007. Vídeo da
Audiência pública – Vale do Ribeira. Disponível em:
<http://www.socioambiental.org/inst/camp/Ribeira/videos>. Acesso em: 02 jul. 2010.
179
O desenvolvimento sustentável pra mim é isso: trabalhar todo mundo
junto, num querer ultrapassar ninguém em nada, deixar ninguém pra
trás e desenvolver sozinho. Aqui na comunidade, como eu vejo, todo
mundo vê de uma forma, né. Pra aqui em Ivaporunduva, todo mundo
trabalha junto, pensando num só objetivo, melhorar aquilo que a
comunidade tem, pra vender com qualidade, e pra não perder também
a essência nossa, que é cultivo da lavora, o trabalhar na roça também
pra ter a nossas produções pro consumo interno também, que é uma
segurança alimentar que a gente não vai ter em lugar nenhum se
perder isso né, porque as nossas condições, não dá pra disputar,
deixar de plantar na terra o que a gente pode colher e comprar no
mercado, comprar lá fora achando que é melhor que é viável sendo que
pra nós não tem fundamente nenhuma.
[...] Primeiro é pensar na família, na verdade, é pensar na família pra
trabalhar para as famílias. E como quilombo, como comunidade tudo
mundo é família, tudo mundo é sangue de uma forma e de outra, então
você pensa em todo mundo.As pessoas as vezes podem olhar, não
existe união ali ou aqui, mas em quilombo, de uma forma ou de outra
sempre vai existir a união, porque o sangue fala mais alto e as pessoas
na hora de trabalhar, de se unir pra ajudar o irmão, um ajuda o outro
e não fica pensado em quere crescer e deixar o outro pra trás.
IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança
quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo
de Ivaporunduva.
Na comunidade, pensar sustentabilidade está ainda ligado ao desenvolvimento
coletivo, não se descola dos laços da tradição passada. Acompanhei o dia de trabalho
na roça, do jovem Laudines, junto aos seus pais. Ele é filho de Dona Cacilda e Sr.
Aparício. Pedi para ele falar um pouco como era viver em Ivaporunduva, e se dava para
viver de forma sustentável. Ele iniciou dizendo:
180
Trabalho aqui mesmo em Ivaporunduva, pra mim mesmo, com minha
mãe e com o meu pai, e eu mesmo pranto. [...] trabalho com meu
palmito, com cultivo da banana, ajudo minha mãe prantá fejão. Sou
universitário, faço meu curso de Gestão de Pequenas e Médias
Empresa. [...] Dá pra vivê, sim, aqui, porque eu memo tô aqui vivendo,
cultivando e vendendo minhas coisas, palmito, mandioca, banana, taiá,
batata, todo tipo de legume e verdura [...]. Viver aqui é sustentável,
sim, porque a gente também coleta o que a gente mesmo pranta, não
precisa trabalhar pros outros pra pegar dinheiro pra se fazer
compra. Então a gente mesmo faz nossa prantação pra não precisar
comprar na cidade, no mercado, que a alimentação vem com veneno,
agrotóxico. Aqui você sabe o que você pranta, a terra é bem adubada.
A gente pranta o que nossa mãe, pai, bisavô ensinou. Dá pra vivê
sossegado.
LAUDINES MARINHO DA SILVA, 23 anos. Conversa realizada 17 de
julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.
Acompanhar a vida do jovem quilombola, Laudines, levou-me a compreender que existe
uma luta constante na comunidade para manter os jovens na terra. Entendo que a
terra provê o sustento e constitui o homem, pelo trabalho ao transformar a natureza,
e essa é uma atividade consciente. A apropriação de outros conhecimentos tem sido
uma estratégia da comunidade para manter a sua sobrevivência no território. Muito
forte a convicção de que “não precisa trabalhar pros outros pra pegar dinheiro pra se
fazer”. Produzir para a própria comunidade, na própria comunidade. Parece-me ser
assim que os quilombolas conceituam ser “sustentável”. Algo como: é possível que nos
sustentemos em nossa terra. (Eu acrescentaria, “com o que nela podemos produzir”).
181
Figura 9: Laudines – Indo ao Trabalho
Fonte própria (julho/2010)
Figura 12: Sr. Aparício – Roçando o Bananal
Fonte própria (julho/2010)
Figura 10: Laudines, com os pais: Sr. Aparício e Dona Cacilda
Trabalho Agricultura Familiar
Fonte própria (julho/2010)
Figura 11: Laudines – Tirando mandioca
Fonte própria (julho/2010)
Figura 13: Laudines
Fonte própria (julho/2010)
182
Zica me explica o retorno dos universitários para a comunidade. Eles nomeiam esses
universitários106 como „técnicos‟:
Esses técnicos são pessoas que são nossos, como posso dizer... eles
vão se formar mas pra entender a nossa causa, a nossa luta e voltar
pra ajudar a nós a defender isso. No caso um...um... professor na área
de educação, vai ajudar a defender nossos filhos, nossos irmãos, até
nós mesmo, a partir do aprendizado da educação básica. Por que? pra
quando chegar no ensino médio tá preparado pra prestar o vestibular
e ter igualdade com o outro. Então nós vamos discutir aqui com a
Secretaria de município, de Estado, pra melhorar a qualidade da
educação dos nossos pequenininhos aqui na nossa comunidade. Quando
se pensa em técnico agrônomo, é pra nós tê qualidade na nossa
produção e também eliminar essas pessoas que vêm de fora assim, não
que são negativa pra nós, elas são boas até certo ponto, mas tem um
momento que a gente tem que fazer sozinho. A partir do momento que
tem gente aqui dentro, vamos deixar os nossos fazerem pra nós. Não
precisamos contratar alguém de fora. A gente faz um projeto, o
governo quer investimento em alguma coisa aqui pra desenvolver a
comunidade, contrata pessoas de fora, e se a gente tem eles aqui
dentro, o trabalho é melhor, a gente conhece, a gente convive, e eles
conhecem e convive, e eles conhecem o dia-a-dia, a forma de viver de
cada um, então eles vão respeitar isso, com certeza o trabalho vai ser
melhor. Então os nossos técnicos são os nossos olhos, os nossos
ouvidos pra entender aquilo que a nossa comunidade, em alguns
pontos, não tem estudos e não entende, a nossa boca pra falar porque
sabe nosso sofrimento também, endenteu?. E ajuda a nóis a
desenvolver aquilo que a gente tem, pra nóis correr atrás do mercado
que seja acessível pra nóis também, que esteja dentro da nossa linha
de trabalho, pra desenvolver a comunidade no sentido coletivo. Então
ele, pra nóis, eles significam isso, significam mudança pra comunidade
de forma coletiva [...] eles também são pessoas da nossa comunidade e
tem visão social de trabalhar esse lado pela comunidade,
independente da vida particular deles, já tem isso como consciência,
como forma de luta, pra devolver aquele ensinamento que ele teve na
comunidade.
IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança
quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo
de Ivaporunduva.
O momento é de reorganização social, econômica e política da comunidade, o que
implica em dar continuidade às atividades em processo de geração de renda, pelos
próprios membros da comunidade, inclusive retomando algumas dessas atividades, as
106
Os Jovens Graduados, Pós-graduados e Universitários estão na figura da capa desse texto.
183
quais, no final do prazo estipulado perderam o recurso financeiro de iniciativas e
investimentos do terceiro setor ou de empresas públicas e privadas. Termino este
texto trazendo, mais uma vez, a voz de Zica. Quando lhe pergunto se é possível viver
na comunidade e conciliar o modo de vida quilombola de hoje com o das futuras
gerações, escuto:
Eu acho que dá pra viver aqui107 tranquilamente, sem pensar em sair
pra outro lugar, porque... você tem a terra, a terra, ela é fonte de
vida, tudo que você pranta você vai colher. Mas é lógico que tudo tem
um tempo você vai pranta feijão, por exemplo, de final de julho a
novembro, então você vai colher ele nesse período no máximo até
dezembro cê vai colher[...] mas você tem várias outras coisas que você
pode produzir na terra também, além do feijão, arroz, o milho, batata
e mandioca, também pode trocar, aquilo que você tem mais, com
aquela outra qualidade que a outra pessoa e ou até mesmo outra
comunidade tem mais, que funciona muito bem. Basta ter uma linha de
comunicação que isso também funciona. Então, você pranta, você
colhe, você se alimenta, e pra necessidade que você precisa de
dinheiro, que não tem como, precisa comprar um remédio de repente
que você toma seus medicinais no fundo de casa, caseiro não funciona,
precisa comprar um sal, óleo por exemplo, aí entra, essa questão
desse dinheiro extra da banana, que que é um complemento pra
pessoa tentar melhorar a qualidade de vida e viver bem, mais não quer
dizer que precisa mudar a forma de viver, e sim complementar só
aquilo que falta [...] Peixe você pesca artesanalmente, galinha você
cria, porco você cria. Só pensar, põe a cabeça pra pensar e vamos
voltar. Porque nossos antigos viveram assim, eram muito mais
saudáveis do que nóis, não tinha câncer, não tinham tuberculose[...]
IVONETE ALVES DA SILVA PUPO – ZICA, 26 anos - Liderança
quilombola. Conversa realizada em 25 de julho de 2010, no Quilombo
de Ivaporunduva.
Se no primeiro momento, o da escravização, o trabalho da população negra de
Ivaporunduva foi covardemente aviltado pelo sistema escravista brasileiro, o qual
perdurou, nessa localidade, por aproximadamente 263 anos, numa segunda etapa,
caracterizada pelo isolamento ou abandono, por aproximadamente 168 anos, o
trabalho dessa população teve os seguintes desdobramentos: a) Produção e
reprodução da existência, por meio do trabalho cooperativo, para atender aos
107 “Eu acho que dá pra viver aqui” compõe o titulo do Quarto texto.
184
interesses da coletividade e b) Trabalho para produção de excedentes agrícolas, para
troca com mercadorias básicas necessárias à sobrevivência. No segundo momento,
despreparada para o capitalismo, a comunidade quilombola precisou exercitar práticas
de produção de excedentes para troca com outros produtos básicos que não existiam
na comunidade. Sem condições de negociação, tornou-se refém do único comerciante
local.
Numa terceira fase, já caracterizada por uma maior interação com a sociedade de
consumo, a partir dos anos 1960-70, com as limitações da legislação ambiental à
produção agrícola e coleta de palmito, a vida ficou difícil e quase inviável para muitas
pessoas na comunidade. Muitos quilombolas foram para as cidades em busca de vender
sua força de trabalho para construtoras - no caso dos homens -, e para famílias da
classe média, como domésticas ou faxineiras - no caso das mulheres. Eles deixam de
produzir o que é deles, no lugar que é deles. Seria muito forte dizer que estariam em
processo de enfavelamento?
Já no contexto mais contemporâneo, nos últimos 10 anos, a desilusão com cidades
para onde foram e com o sistema capitalista traz de volta muitas pessoas ao quilombo.
Por outro lado, alguns jovens, agora formados em cursos superiores, retornam à
comunidade, ávidos no sentido de trabalhar no território, conciliando os
conhecimentos adquiridos à prática da agricultura, da educação, da administração, à
implantação de um sistema de produção de banana para comércio, em áreas produtivas
individualizadas bem definidas.
Configuram-se modos diferentes de vida na comunidade. Basta que nos lembremos: a
ponte sobre o Rio Ribeira facilitará o transporte de pessoas e viabilizará o
escoamento da produção, mas também vai trazer outro modelo econômico e social. A
chegada da energia elétrica dá à comunidade acesso à tecnologia, mas pode corrompê-
la também. Crescem os dilemas, os conflitos de idéias e a ansiedade diante da
chegada do modelo de sociedade capitalista, baseado no mercado de trabalho e no
mercado de consumo.
185
Ficam minhas indagações para os próximos estudos: nesse sistema, as necessidades
materiais básicas estarão mascaradas pelas necessidades manipuladas pelo sistema
capitalista e, consequentemente, a força de trabalho da comunidade voltar-se-á para
formas de conquistar o dinheiro (capital/renda) para a compra ou troca por produtos
ou serviços. E nesse processo, a comunidade estará, enfim, refém, como o estão
milhões de trabalhadores manipulados e inconscientes na sociedade capitalista.
Há uma multiplicidade de fios ideológicos entrelaçados. Contraditoriamente uma
Ponte e muitas pontes. Para onde?
186
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, RICARDO. Adeus ao trabalho? 3. ed. São Paulo: Cortez; Campinas,
SP.: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995.
BITTENCOURT, AnaCris. Ivaporunduva, terra de lideranças e conquistas. In: Meio
Ambiente e Democracia. Revista Democracia. Rio de Janeiro: Editora Ibase, 2005.
BORNIA, Fátima B. B. L. Turismo etnocultural no quilombo Ivaporunduva: uma
contribuição ao planejamento participativo. Centro Universitário SENAC – Campus
Francisco Matarazzo. Trabalho de conclusão de Curso – Pós-Graduação em
Planejamento e Marketing de Destinos e Produtos Turísticos. São Paulo, 2006.
GUSMÃO, Neusa. M. M. Negro e camponês: cultura política e identidade no meio
rural brasileiro. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 6, n. 3, 1992.
ISA - Instituto Sócio Ambiental. Banana Orgânica no quilombo de Ivaporunduva:
uma experiência para o desenvolvimento sustentável. São Paulo, 2007.
1 PUPO, PAULO. Comunidade quilombola do Vale do Ribeira. In. Alessandra Blengini
Mastrocinque; Martins, Alessandro de Oliveira dos Santos e Vera Paiva Promovendo
os direitos de Mulheres, crianças e jovens de comunidades anfitriãs de turismo do
Vale do Ribeira. 1ed. São Paulo: Instituto Ing_ de Planejamento Socioambiental,
2009.
SILVA, Laudessandro Marinho. Proposta de Implantação do Cooperativismo para a
venda de produtos orgânicos no quilombo Ivaporunduva. Trabalho de Conclusão de
Curso em Administração de Empresas. Universidade São Francisco. Itatiba, 2008.
187
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[..] a escravidão nem sempre existiu e algumas sociedades
humanas não tiveram escravos. Em suma, a escravidão não foi
universalmente difundida, ao contrário do que diziam alguns
escravagistas. Portanto, não deriva de uma espécie de constante
antropológica, no sentido de que não está automaticamente
ligada à presença do homem.
(PÉTRE-GRENOUILLEAU, 2009, p. 55)
188
O presente estudo, em forma de textos, pretendeu caracterizar a vida da
comunidade Quilombo de Ivaporunduva, sua evolução histórica e as suas práticas
sociais, captando e organizando os dados sobre a história e a organização
social/territorial desse quilombo. A tentativa foi de, estando presente na comunidade
e com a comunidade, buscar indícios dos significados que seus membros dão às
relações, em suas condições concretas de vida social. Tais indícios nos aproximam de
ações que essa população desenvolve por meio das lideranças ali estabelecidas.
Ao revisitar a história da formação da população negra no Brasil, parti do princípio de
que não há justificativas para qualquer forma de escravização, e que ela nunca existiu
em algumas sociedades humanas; o que não nos permite considerá-la uma prática
natural e nem universal.
As diversas formas de resistência dos africanos e seus descendentes escravizados no
Brasil mostram que também eles não consideravam a escravização natural, nem
universal. Nesse sentido, os quilombos presentes na sociedade brasileira são prova
viva de que esse povo não se permitiu no passado e seus descendentes continuam não
se permitindo aceitar o sistema escravagista opressor.
Ao se abrirem os portões das senzalas, possibilitando às pessoas negras iniciarem a
corrida por mobilização social junto aos outros grupos, comprovou-se que o grupo
branco já estava a quilômetros adiante, política e economicamente, do grupo negro.
Essa era a condição inicial da população negra liberta.
Toda discussão trazida pelos quilombolas, por meio de seus relatos, mostra o caminho
percorrido por esse povo em direção à superação das desvantagens provocadas pela
desigualdade que os afeta, tanto no sentido socioeconômico quanto no político. Os
relatos também mostram que essa superação ocorre em cada ação individual e coletiva
direcionada à luta política para fazer valer seus direitos constitucionais à: terra,
educação, saúde, moradia, trabalho e a tantos outros aspectos que constituem o
homem.
189
Muitos estudiosos e pesquisadores contemporâneos assumem que a superação da
desigualdade social e a diminuição das desvantagens socioeconômica e política
impostas pelo sistema econômico brasileiro, que transitava do sistema escravagista
para o capitalismo, significaria que com a abolição e com o desenvolvimento econômico
previsto ao país, ocorreria a mobilização e status socioeconômico da população
brasileira de todas as cores. Nesse processo, a população negra que estava em
desvantagem total com relação ao grupo branco, transitaria, ascendendo para as
camadas médias. Com o tempo a tendência seria o desaparecimento da estratificação
social, as barreiras e desvantagens que a escravização impôs ao grupo negro.
Prova-se que isso não ocorreu e que as desigualdades raciais, socioeconômicas e
políticas só têm aumentado nos últimos anos para a população negra.
Toda ação, discussão e reivindicação confrontada pelo movimento negro com o poder
público a partir das décadas de 1980-90, foi no sentido de que a sociedade brasileira
reconhecesse o ciclo cumulativo de reprodução das desigualdades raciais entre a
população branca e negra, herdada pelo sistema escravagista. Esse reconhecimento,
com o aumento da pressão política negra e as contribuições das muitas pesquisas
acadêmicas a partir dos estudos sobre a temática racial tomadas por base os dados
PNDA/IBGE, comprovam as reivindicações do movimento negro. E sob pressão
política, esse movimento deu contribuições importantes para a população negra e não
negra como a efetivação de políticas de combate às desigualdades raciais em alguns
setores da sociedade brasileira: educação, saúde, posse de terra, trabalho das
instituições públicas (que têm sido adotadas timidamente pelas organizações
privadas).
Provou-se que a redução dessas desvantagens acumuladas só será possível por meio de
luta política e da efetivação de políticas públicas para a mobilidade socioeconômica da
população negra brasileira.
190
As discussões sobre a Reparação Histórica da população negra brasileira,
descendente da população africana que foi escravizada no Brasil, têm vindo à tona por
meio das Políticas de Ações Afirmativas que se justificam como uma solução
emergente para a desmistificação do discurso da falsa democracia racial.
Todo movimento da população negra perpassa, também, pelo reconhecimento da
sociedade brasileira que admite a contribuição histórica da cultura negra que compõe
a nação, além do direito às suas diferentes raízes culturais. Inclui-se, nesse caso, a
história da cultura africana, encarada nos bancos escolares, muitas vezes, de forma
preconceituosa, discriminatória e apolítica, ou seja, a partir da visão da classe
dominante, focada em um sistema de valor.
Observamos que o processo de aquilombamento é histórico e está em transformação
e em movimento, portanto é dialético. Ao revisitar a história da comunidade Quilombo
de Ivaporunduva, um fragmento da população negra brasileira, identificamos que há
um ciclo de desvantagens acumulado durante o processo histórico da formação dessa
população, iniciada no sistema escravagista. É nesse contexto que a comunidade negra
rural agroflorestal Quilombo de Ivaporunduva está inserida.
Parte dos relatos dos quilombolas foi trazida para os textos com o objetivo de se
compreender melhor que o fato de a comunidade Quilombo de Ivaporunduva continuar
a viver no território supõe constantes embates: no passado, no sistema escravagista,
por meio de fugas; em um segundo período, com o poder dos fazendeiros; atualmente
a luta tem sido com o poder público, por direito à posse da terra e contra os grandes
empreendimentos de barragens para a construção de hidrelétricas.
As desvantagens acumuladas pelos quilombolas durante a escravização e o
“esquecimento” dos nossos governantes, pós-abolição, só têm provado que a luta desse
povo por direito e sobrevivência tem sido uma constante contradição nesse sistema,
ou seja, na lógica do capital. Nesse movimento de confrontos e resistências contra o
Estado e seus empreendimentos capitalistas, no sentido de gerar energia para obter
riqueza e lucro, as reivindicações dos quilombolas por saúde, escola, terra,
191
transporte, moradia e pelo direito de ir e vir acontecem por meio da participação no
Movimento Nacional Quilombola e de movimentos sociais rurais, ribeirinhos, indígenas,
caiçaras, MST, MOAB, MAB, entidades ambientalistas, entre outras organizações,
com as quais eles estabelecem relações. Tais organizações os apóiam em iniciativas e
propostas de geração de renda e de desenvolvimento político, social e econômico.
Compreendo esses movimentos como processos educativos, e são nessas relações que
a comunidade se constitui como sujeito social de direitos.
192
Para que os leitores possam acompanhar alguns dos textos falados sem perder a estrutura da
narrativa, um CD- ROM acompanha a dissertação. Os conteúdos estão sequenciados da
seguinte ordem:
01. Documentário do Quilombo Ivaporunduva – Eldorado – SP. Nesse documentário
utilizamos a fala do Ditão – Benedito Alves, utilizada no texto das paginas: 130 e 132;
02. Explicação do Ditão – Benedito Alves - sobre os modos de vida dos quilombolas na
comunidade Ivaporunduva, durante uma atividade do Ecoetnoturismo para um grupo de
Professores – utilizada no texto da pagina 107;
03. Conversa com a Zica – Ivonete Alves – a fala utilizada no texto está inserida na pagina
119;
04. Conversa com a Zica – Ivonete Alves – foi utilizada fragmento da fala dessa conversa
em vários textos, inseridas nas paginas: 105, 179, 182, 185 e 186;
05. Conversa com Dona Cacilda – a fala utilizada no texto está inserida na pagina 138;
06. Conversa com Zé Rodrigue - a fala utilizada no texto está inserida na pagina 155;
07. Conversa com Zé Rodrigue - a fala utilizada no texto está inserida na pagina 157;
08. Conversa com Zé Rodrigue - a fala utilizada no texto está inserida na pagina 181.