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Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais: para um Entendimento
Arquivístico Comum da Formação da Memória em um Mundo Pós-
Moderno*
Terry Cook
O presente artigo explora uma questão fundamental da teoria arquivística: os princípios
e conceitos arquivísticos tradicionais, que foram desenvolvidos para os documentos de instituições, são
também relevantes para os arquivos de indivíduos, famílias e grupos? Em caso afirmativo, como isso
afeta a tarefa do arquivista? Desta análise emergirão também algumas reflexões sobre a perspectiva
metodológica que o arquivista deve adotar hoje, especialmente na avaliação de documentos para a
inclusão em instituições de arquivo, e na sua descrição. Este texto é essencialmente teórico, não prático
— uma tentativa de obter uma perspectiva atualizada dos princípios arquivísticos básicos válida para o
final do século XX. Diante da natureza interdisciplinar do Seminário Internacional sobre Arquivos
Pessoais, do qual este trabalho fez parte e, agora, com a publicação dos trabalhos ali apresentados,
talvez seja importante lidar primeiro com conceitos e princípios, e não com metodologias específicas,
para que os não arquivistas possam participar do diálogo no nível do "por que" os arquivistas adotam
certas estratégias, em vez de "o que" eles realmente fazem no dia-a-dia e "como" o fazem. O argumento
deste trabalho é bastante radical, mas, espero, não porque eu esteja sendo desnecessariamente
provocador, e sim porque estou já há muitos anos lidando com arquivos eletrônicos e,
* Nota: Este trabalho é a versão revista de uma palestra proferida duas vezes durante o Seminário Internacional sobreArquivos Pessoais, realizado no Rio de Janeiro (17-18 de novembro de 1997) e em São Paulo (20-21 de novembro de1997). O seminário teve o patrocínio do CPDOC-FGV e do IEB-USP. Além desses patrocinadores, quero agradecer, porsuas muitas gentilezas durante minha visita ao Brasil e por sua calorosa hospitalidade, a: Ana Maria de AlmeidaCamargo, Heloísa Liberalli Bellotto, Dirce de Paula e Silva Mendes, Célia Costa, Priscila Fraiz e Luciana Heymann.Esta tradução é de Paulo M. Garchet, revista por Luciana Heymann e Priscila Fraiz.
conseqüentemente, estou vislumbrando o tipo de futuro que os arquivistas logo estarão enfrentando em
todas as partes do mundo.1
Entre esses dois tipos de arquivos, o público e o pessoal, o oficial e o individual, existe
em muitos países uma divisão incômoda, ou mesmo uma tensão. Em grande parte da literatura
arquivística dos Estados Unidos, por exemplo, há referências a duas partes distintas da profissão: a
tradição dos manuscritos históricos versus a tradição dos arquivos públicos.2 Na Austrália, é revelador
o título do periódico nacional dos arquivistas: Archives and Manuscripts, que ressalta a nítida
dualidade que lá encontrei, com alguns arquivistas de arquivos públicos na verdade ignorando seus
colegas que coletam manuscritos, não os considerando arquivistas, e sim profissionais mais próximos,
em seu trabalho e em sua visão dos documentos, dos bibliotecários ou dos curadores de museus. Em
boa parte da Europa e em muitas de suas antigas colônias, os arquivos nacionais, via de regra, não
recolhem papéis pessoais de indivíduos particulares (exceto de políticos e burocratas) em bases iguais
às dos documentos oficiais do governo nacional. Esse padrão se repete nos níveis dos governos e
arquivos estaduais, provinciais, regionais e locais ou municipais. Quanto ao destino dos arquivos
pessoais ou dos manuscritos privados, na maioria dos países são adquiridos pela biblioteca nacional,
pelas bibliotecas regionais, ou pelas principais universidades e até mesmo por museus e por institutos de
pesquisa ou documentação temáticos ou especializados. Assim é que os diversos domicílios
institucionais dos arquivos públicos e pessoais reforçam suas diferenças, tanto quanto o fazem suas
distintas origens e estruturas legislativas.
1 A argumentação apresentada neste trabalho segue, em parte, a de dois outros de minha autoria: "Electronic records,paper minds: the revolution in information management and archives in the postcustodial and postmodernist era",Archives and Manuscripts 22 (nov. 1994), p. 300-29; e "What is past is prologue: a history of archival ideas since1898, and the future paradigm shift", Archivaria 43 (primavera de 1997), p. 17-63. Esses ensaios são extensivamentedocumentados, e os leitores são a eles remetidos para referências mais completas. As notas que acompanham opresente texto pretendem sugerir as melhores leituras sobre os argumentos apresentados, e não formar uma listaexaustiva de todas as fontes possíveis.
2 A melhor visão geral está em Richard C. Berner, Archival theory and practice in the United States: a historicalanalysis (Seattle e Londres, 1983).
Uma exceção marcante nessa situação geral é o Canadá, com seu conceito, há muito
implantado, de "arquivos totais"3. De acordo com essa abordagem de "arquivos totais", virtualmente
todas as instituições arquivísticas do país, com a única e lógica exceção dos arquivos de empresas ou
corporações privadas, mas incluindo o arquivo nacional, os arquivos provinciais, regionais, os arquivos
das cidades, das universidades e das igrejas, todos adquiriram, em proporções basicamente iguais de
capital próprio e de recursos alocados, os arquivos oficiais de seus organismos produtores e os
manuscritos ou outras mídias pessoais de indivíduos, famílias e grupos particulares. Enquanto em alguns
países os arquivos nacionais ou institucionais oficiais servem, às vezes, como repositórios passivos de
certas categorias de papéis pessoais que estariam de outra forma ameaçados de perda ou destruição,
no Canadá tais papéis pessoais são ativa e agressivamente procurados pelos arquivistas, além dos
documentos ou arquivos oficiais.
O documento-proposta do Seminário Internacional sobre Arquivos Pessoais reconhece duas
similaridades importantes entre os arquivos pessoais e os públicos. Primeiro, ambos são artefatos de
registro derivados de uma atividade; os arquivos são evidências das transações da vida humana, seja ela
organizacional, e por conseguinte oficial, seja individual, e portanto pessoal. Diversamente de livros,
programas de televisão ou obras de arte, eles não são intencionalmente criados por motivos próprios,
com a possível exceção dos textos autobiográficos, mas surgem, antes, dentro de um contexto, como
parte de alguma outra atividade ou necessidade, seja pessoal, seja institucional. Em segundo lugar, os
arquivistas, tanto nos arquivos públicos quanto nos pessoais, freqüentemente usam procedimentos
técnicos e métodos práticos semelhantes, em termos de como acessam, descrevem, armazenam
fisicamente e conservam os arquivos e os colocam à disposição para fins de pesquisa.
Contudo, no nível mais profundo dos princípios e conceitos da ciência arquivística, bem como
3 A melhor análise é a de Wilfred I. Smith, "Total archives': the canadian experience" (texto de 1986), in Tom Nesmith,Canadian archival studies and the rediscovery of provenance (Metuchen, N. J., 1993), p. 133-50. Para uma visão deapoio, mas crítica, do conceito de implantação, ver Terry Cook, "The tyranny of the medium: a comment on 'totalarchives'", Archivaria 9 (inverno de 1979-80), p. 141-49. Ver também Shirley Spragge, "The abdication crisis: arearchivists giving up their cultural responsibility?", Archivaria 40, (outono 1995), p. 173-81.
no âmbito dos diversos tipos de instituições de arquivos públicos e pessoais e, por conseguinte, das
diferentes tradições históricas a que me referi acima, essas similaridades técnicas parecem se dissolver
em divergências mais fundamentais de perspectiva. O documento-proposta do Seminário pergunta, por
exemplo, "até que ponto pode a acumulação de documentos de um indivíduo ser comparada com a
acumulação por uma instituição como resultado natural e necessário de suas atividades?" O simples fato
de essa pergunta ser colocada indica que existem dúvidas sobre sua resposta — e, portanto, sobre a
possibilidade de uma estrutura conceitual comum para arquivos públicos e arquivos pessoais. O
documento do Seminário afirma também que os arquivos públicos, ou institucionais, ou oficiais, são
acumulações "naturais e necessárias", subprodutos orgânicos da atividade administrativa, enquanto os
arquivos pessoais, conquanto possam ter tal qualidade, freqüentemente são — de novo nas palavras do
documento do Seminário — "produtos de um desejo de perpetuar intencionalmente uma certa imagem",
um "(propósito) concebido que, na verdade, se destina à 'monumentalização' do próprio indivíduo..."
Essa idéia da diferença fundamental entre arquivos públicos e arquivos pessoais é muito
difundida no pensamento arquivístico tradicional e na maior parte da literatura sobre o assunto. Os
arquivos públicos ou institucionais são apresentados (e seus defensores sempre afirmam que é isso o
que acontece) como acumulações naturais, orgânicas, inocentes, transparentes, que o arquivista
preserva de modo imparcial, neutro e objetivo. Essa é a teoria arquivística clássica. No mundo
anglófono, ela é representada por Sir Hilary Jenkinson e seus muitos discípulos. Em contraste, os
arquivos pessoais são apresentados (e os arquivistas públicos, seus detratores, enfatizam isso) como
mais artificiais, antinaturais, arbitrários, parciais, algo realmente mais próximo de um material de
biblioteca, publicado, como as autobiografias e as memórias, do que de documentos de arquivos oficiais
e públicos. Na verdade, os arquivistas que trabalham com arquivos pessoais são vistos como mais
próximos dos bibliotecários, documentalistas e historiadores do que do clássico encarregado de
registros públicos jenkinsoniano. Essa disparidade de perspectivas, verdadeira ou não, é largamente
assumida como verdadeira pelos arquivistas do mundo inteiro, o que é um problema, pois essas
diferenças percebidas levaram, na melhor das hipóteses, a uma divisão passiva e, na pior, a um acirrado
debate entre arquivistas das duas tradições.
Meu propósito neste trabalho é sugerir que essas afirmativas fundamentais da ciência
arquivística tradicional, com suas dicotomias resultantes, são falsas. Na verdade, da maneira como
foram articuladas, nunca foram completamente verdadeiras — mesmo no caso dos arquivos públicos
— dentro do contexto de seu próprio tempo, e agora, no final do século XX, são extremamente
enganosas. Baseado nas mudanças fundamentais na natureza das instituições governamentais e
empresariais, nos meios dos registros e na natureza dos processos de geração e manutenção de
arquivos; e considerando, ainda, o contexto pós-moderno em que vivemos e os novos conhecimentos
que estão sendo desenvolvidos sobre a história e o caráter da memória, irei contestar neste trabalho a
idéia tradicional de arquivos públicos, ou do arquivista institucional como encarregado neutro, objetivo e
passivo dos arquivos, especialmente devido às novas exigências, tanto para a avaliação quanto para a
organização e descrição de arquivos institucionais, que agora surgem para lidar com os registros
eletrônicos, ou gerados por computadores. Meu argumento é que a própria natureza dessas mudanças
conceituais transforma a tarefa dos arquivistas, tanto dos arquivos institucionais quanto dos pessoais, e
oferece uma perspectiva compartilhada sobre arquivos que, por sua vez, pode levar a uma nova
unidade nos esforços da arquivística, centrada na formação da memória da sociedade.
Da maneira como foram articulados, há exatos cem anos, no famoso manual holandês de 1898
— que subseqüentemente influenciou os livros-marcos sobre teoria e metodologia arquivísticas de Sir
Hilary Jenkinson, Eugenio Casanova e Theodore Schellenberg, na primeira metade do século XX —, os
princípios tradicionais da arquivística derivaram quase que exclusivamente das experiências pessoais
dos autores como custodiadores de arquivos institucionais de governos, e dos problemas com que se
defrontaram na organização e descrição de tais documentos. Os arquivos eram tradicionalmente criados
pelo Estado, para servir ao Estado, como parte da estrutura hierárquica e da cultura organizacional do
Estado. Assim, a teoria, os princípios e as metodologias arquivísticas popularizadas ao redor do mundo
por esses autores pioneiros (e por seus inúmeros seguidores) refletiram de modo nada surpreendente a
natureza inerente dos documentos governamentais e de seus criadores institucionais oficiais, com os
quais os autores estavam intimamente familiarizados. Com exceção, em parte, de Schellemberg, os
arquivos pessoais foram, conseqüentemente, largamente ignorados por esses autores.
O professor de arquivística italiano Oddo Bucci comentou recentemente, com muita
sensibilidade, o trabalho de Eugenio Casanova, cujo grande livro sobre arquivística foi lançado em
1928. Os comentários de Bucci são igualmente aplicáveis a Jenkinson, que escreveu seis anos antes, ou
aos três autores do manual holandês ou, na verdade, a seus predecessores franceses e alemães4. Todos
esses pioneiros da arquivística refletiram em seus trabalhos as correntes intelectuais do século XIX e do
início do século XX e, por isso, Bucci diz que eles "deram à disciplina (arquivística) sua abordagem
empírica, construíram-na como uma ciência descritiva e a ela aplicaram o imperativo da historiografia
positivista, que visava à acumulação de fatos em vez da elaboração de conceitos..." Mas a historiografia
positivista e o empirismo "factual" estão há muito desacreditados neste final do século XX. Bucci
observa que novas mudanças estruturais da sociedade "solapam", fundamentalmente, "os hábitos e
normas de conduta, acarretando uma quebra dos princípios que há muito governavam os processos
pelos quais os registros arquivísticos são criados, transmitidos, conservados e explorados. Está claro"
— continua ele — "que inovações radicais na prática arquivística estão se tornando cada vez mais
incompatíveis com a persistência de uma doutrina que tenta permanecer fechada por trás dos bastiões
de seus princípios tradicionais". Resumindo, Bucci está dizendo que os princípios arquivísticos não
foram estabelecidos para sempre, e sim, como a visão da própria história, ou da literatura e da filosofia,
refletem o espírito de seu tempo, sendo reinterpretados pelas sucessivas gerações. A ciência
arquivística, ou a teoria tradicional da arquivística não são, apesar do que alguns arquivistas de
4 Para o contexto italiano e o trabalho de Casanova, ver Oddo Bucci, ed., Archival science on the threshold of theyear 2000 (Macerata, Itália, 1992), p. 17-43. As citações são das p. 34-35 e de sua "Introduction", p. 11.
documentos públicos ainda gostam de afirmar, nem verdade universal, nem realidade fundamental
aplicável a todas as circunstâncias e meios arquivísticos em qualquer tempo e lugar.
Voltemos cem anos no tempo para revisitar o clássico manual holandês5. Lembremo-nos de que
o título do livro holandês era Manual for the arrangement and description of archives. Os autores
holandeses escreveram que o arranjo dos arquivos sob custódia da instituição arquivística "tem de ser
baseado na organização original da coleção arquivística, que corresponde, de modo geral, à
organização do órgão administrativo que a produziu". Observem o tempo passado de "produziu", um
ponto ao qual irei retornar. Os autores holandeses consideravam essa recriação da ordem original, ou o
respeito por ela, "a mais importante de todas as regras ... da qual todas as outras derivam".
Acreditavam que respeitando, ou recriando, a organização dos sistemas originais de registro dos
documentos, o arquivista poderia deixar claro para os pesquisadores o contexto administrativo em que
os documentos foram originariamente criados. E, se o contexto administrativo fosse assim esclarecido,
as funções e atividades desse órgão seriam também evidenciadas na descrição da proveniência de tal
órgão ou agência, pois, nesse mundo weberiano mais simples, a coincidência entre função e estrutura
hierárquica (ou organizacional) era quase completa.
Do mesmo modo, atentemos cuidadosamente para o uso similar que Jenkinson fez do tempo
pretérito quando definiu seu grupo de arquivos como a totalidade dos registros "do trabalho de uma
administração que foi um todo orgânico", ilustrando que seu foco, quando escreveu 24 anos mais tarde,
em 1922, assim como o do trio holandês, estava em documentos da Idade Média e do início da
modernidade, com suas séries completas e fechadas, seus criadores estabelecidos e há muito falecidos,
5 S. Muller, J. A. Feith e R. Fruin, Manual for the arrangement and description of archives (1898), tradução (1940) da2ª ed. por Arthur H. Leavitt (Nova Iorque, reeditada em 1968), p. 13-20, 33-35, 52-59. A melhor história do manual eminglês está em Marjorie Rabe Barritt, "Coming to America: dutch archivistiek and american archival practice", ArchivalIssues 18 (1993), p. 43-54. Mais recentemente, ver Cornelis Dekker, "La Bible archivistique néerlandaise et ce qu'il enest advenu", in Bucci, Archival science on the threshold, p. 69-79. A melhor fonte de informações biográficas sobre otrio holandês, inclusive suas relações interpessoais não inteiramente agradáveis, é Eric Ketelaar, "Muller, Freith andFruin", Archives et Bibliothèques de Belgique 57 (n° 1-2, 1986), p. 255-68.
e seu status de documentos herdados do passado6.
Essa correlação próxima ou, na verdade, exata, feita pelos autores holandeses e por Jenkinson,
entre estrutura organizacional e sistema de registro de documentos não é mais verdadeira na maioria das
organizações modernas. Hoje existem numerosos sistemas de armazenamento de informações, em
muitos meios, em muitas subseções ou subsubseções de uma mesma instituição, que não mais
"correspondem" de perto à organização estrutural interna e às múltiplas funções do órgão criador que,
por sua vez, é cada vez mais complexo, desorganizado, descentralizado, transitório e, até mesmo, de
caráter virtual, quando coopera, compartilhando funcionários, com outras organizações na realização de
um trabalho. Tampouco os arquivistas lidam mais primordialmente com séries fechadas completas de
documentos antigos, e sim com acréscimos de documentos vindos de séries correntes, abertas. As
revoluções da informática e das telecomunicações da última década aceleraram radicalmente essa
descentralização, difusão e desorganização, a um ponto tal que as ligações entre uma série fechada ou
fixa de cocumentos, como tradicionalmente se compreende, e uma estrutura administrativa particular,
estável, estão freqüentemente apagadas. As funções operacionais, os processos empresariais e as
atividades de trabalho das agências cruzam, hoje, todos os tipos de fronteiras estruturais ou
organizacionais, gerando documentos na medida em que o fazem. O trabalho é feito, agora, tanto
horizontalmente quanto verticalmente nas organizações, e os documentos são, por conseqüência,
criados e mantidos de formas diferentes. Infelizmente, a ciência arquivística apenas lentamente está
reconhecendo o impacto fundamental dessas mudanças sobre os princípios tradicionais, que foram
desenvolvidos para documentos e organizações em uma época bem mais simples. Podemos certamente
acreditar no "respeito aos fundos", mas qual é o "fundo" que deveremos respeitar neste novo mundo?
Há um quarto de século, Peter Scott, da Austrália, demonstrou convincentemente que a
premissa arquivística tradicional de uma relação um-para-um entre um registro e a administração que o
6 Hilary Jenkinson, A manual of archive administration (Londres, 1968, reedição da 2ª ed. revista de 1937), p. 149-55,190.
cria não era mais válida como base para a descrição arquivística, mas poucos arquivistas fora de seu
país lhe deram ouvidos até recentemente7. Scott demonstrou claramente que as próprias administrações
não eram mais, em estrutura ou função, weberianas, ou mono-hierárquicas, e sim complexos dinâmicos
sempre em mutação, assim como seus sistemas de arquivos. A solução de Scott (ampliada por
sucessores tais como Chris Hurley) foi se afastar da descrição dos registros arquivísticos organizados
em um único grupo, ou fundo, para um criador único de documentos, e passar, ao invés, a uma
descrição das múltiplas inter-relações entre numerosos criadores e várias séries de documentos, suas
motivações funcionais e seus contextos mais amplos. Tais inter-relações não são relações fixas, de um-
para-um, como nas abordagens arquivísticas tradicionais de arranjo e descrição; elas são, antes,
relações de muitos-para-um, um-para-muitos e muitos-para-muitos: são, por exemplo, relações entre
várias séries e um criador, entre vários criadores e uma série, entre muitos criadores e muitas séries,
entre criadores e outros criadores, entre séries e outras séries e entre séries e criadores para funções e
vice-versa, entre funções correntes e suas predecessoras ou sucessoras, entre agências mais antigas e
documentos de suas sucessoras — uma infinita riqueza de quase todo tipo concebível de inter-
relacionamento contextual entre documentos, criadores e funções. O que os australianos fizeram foi
levar a descrição arquivística, da catalogação estática, para um sistema de inter-relacionamentos
dinâmicos. Fizeram-no com a intenção explícita de enfatizar o princípio da proveniência, isto é,
enriquecendo a compreensão do complexo contexto da criação de documentos. Os insights de Scott
estão sendo ressuscitados agora, tanto para o mundo dos documentos eletrônicos quanto para a
7 A melhor exposição do Sistema Australiano de Séries (incluindo uma relevante reconceituação e atualização dasidéias de Scott) pode ser encontrada em Sue McKemmish e Michael Piggott, eds., The records continuum: IanMaclean and Australian Archives first 50 years (Clayton, 1994), especialmente nos ensaios de Sue McKemmish eChris Hurley. Para o núcleo de suas idéias, ver Peter Scott, "The record group concept: a case for abandonment",American Archivist 29 (out 1996), p. 493-504; e sua série em cinco capítulos com diversos co-autores: "Archives andadministrative change — some methods and approaches", Archives and Manuscripts 7 (ago 1978), p.115-27; 7 (abr1979), p. 151-65; 7 (mai 1980), p. 41-54; 8 (dez 1980), p. 51-69; e 9 (set 1981), p. 3-17. Para uma importante expansãoaustraliana da posição de Scott, ver Chris Hurley, "What, if anything, is a function", Archives and Manuscripts 21(nov 1993), p. 208-20; e seu "Ambient functions: abandoned children to zoos", Archivaria 40 (outono de 1995), p. 21-39.
descrição arquivística de hipertextos interligados aos sites da Internet. Em um nível mais profundo da
teoria arquivística, a abordagem australiana abala a visão clássica do arranjo e descrição arquivísticos e
deve, portanto, fazer-nos questionar também a santidade de vários outros conceitos arquivísticos
tradicionais para arquivos públicos que se basearam nessas abordagens mais antigas.
A teoria moderna de avaliação também reforça os insights de Scott sobre o mundo da
descrição e reflete igualmente o impacto dos documentos eletrônicos sobre o pensamento arquivístico.
Como há agora bilhões de documentos de multimídia para avaliar; como tal avaliação deve,
freqüentemente, ser feita no estágio de desenho do sistema de computador, antes que um único
documento tenha sido criado; como as organizações criadoras de documentos são fluidas, instáveis,
poli-hierárquicas e interligadas horizontalmente em rede; e como os registros das unidades de serviço
agora duplicados ou armazenados em um arquivo do servidor central (ou computador centralizado) não
têm, geralmente, nenhuma divisão interna significativa por estrutura, função, assunto ou atividade
empresarial, as abordagens de avaliação mais recentes estão centradas na apreciação das funções,
programas e atividades do criador de documentos e daqueles que com ele interagem, em vez de enfocar
os documentos individuais ou grupos de documentos e seus possíveis usos, codificando então os
resultados da avaliação diretamente nos sistemas de operação e softwares do computador, para
classificar os registros arquivísticos, separando-os dos demais, que podem ser destruídos. A nova
estrutura analítica para a avaliação rejeita, assim, os princípios arquivísticos tradicionais de arranjo e
descrição, que preconizam uma congruência exata entre a função criadora, a estrutura criadora e seu
sistema de armazenamento de informações. Ao invés, a nova abordagem reconhece que as funções
agora são multi-institucionais e que dentro de cada instituição há numerosos sistemas de armazenamento
de informações, com uso de vários meios8.
8 Para a reconceituação canadense da teoria e da metodologia da avaliação, os principais trabalhos são: Terry Cook,"Mind over matter: towards a new theory of archival appraisal", in Barbara L. Craig, The archival imagination: essaysin honour of Hugh A. Taylor (Ottawa, 1992), p. 38-70; e Terry Cook, The archival appraisal of records containingpersonal information: a RAMP study with guidelines (Paris, 1991). Para a abordagem em si, ver Terry Cook, "Anappraisal methodology: guidelines for performing an archival appraisal", (dez 1991); e Terry Cook, "Government-wideplan for the disposition of records 1991-1996" (out 1990), ambos relatórios para os National Archives. Para uma
A nova macroavaliação funcional-estrutural de que o Canadá foi pioneiro, e que está agora
sendo implantada em vários países, enfatiza o valor arquivístico da posição, local ou funcionalidade da
criação de documentos, em lugar do valor dos documentos por eles mesmos. Permitam-me explicar
isso em detalhe. Os documentos seguem funções; são criados como produto do trabalho em várias
atividades ou transações. No antigo, e muito mais simples, mundo dos arquivos de papéis, uma
subseção particular dentro de uma instituição tinha a si atribuída a competência total para a execução de
alguma função, subfunção ou atividade, e seus arquivos refletiam a totalidade dessa função. Agora, nas
complexas e instáveis burocracias de nossos dias, especialmente com seus sistemas eletrônicos
computadorizados, não há "arquivos" criados naturalmente nesses computadores para os inúmeros
trabalhadores que estejam contribuindo para uma determinada atividade, ou "arquivo". Os “arquivos”,
portanto, têm de ser "gerados". Como? A abordagem sugerida ao arquivista é que faça uma pesquisa
cuidadosa sobre a funcionalidade de uma instituição (isto é, que identifique suas funções, subfunções ou
subsubfunções, seus programas e atividades, tanto os rotineiros quanto os especiais, e a natureza de
suas transações, de sua clientela e de suas (mutantes) estruturas internas); que analise, então, quais
funções, programas, atividades, transações ou tipos de clientes, ou de interações com os clientes etc.,
sofisticação proposta para essas metodologias, embora ainda necessitando estratégias de implantação maiscompletas, ver o trabalho feito pelo colega de Cook, Richard Brown, "Records acquisition strategy and its theoreticalfoundation: the case for a concept of archival hermeneutics", Archivaria 33 (inverno de 1991-92), p. 34-56; e RichardBrown, "Macro-appraisal theory and the context of the public records creator", Archivaria 40 (outono de 1995), p.121-72. Inspirações anteriores da abordagem canadense são encontradas, em um nível conceitual e até filosófico, emHans Booms, "Society and the formation of a documentary heritage: issues in the appraisal of archival sources",Archivaria 24 (verão de 1987), (original de 1972: tradução de Hermina Joldersma e Richard Klumpenhouwer); e naestratégia de documentação desenvolvida nos Estados Unidos por Helen Samuels: ver seu "Who controls the past",American Archivist 49 (primavera de 1986), p. 109-24. Um artigo posterior atualiza o tema e contém referênciascruzadas adicionais; ver Richard J. Cox e Helen W. Samuels, "The archivist's first responsibility: a research agenda toimprove the identification and retention of records of enduring value", American Archivist 51 (inverno-primavera de1988), p. 28-42. Uma importante revisão do pensamento de Samuels, que se afasta das bases "temáticas", ou "porassunto" da estratégia de documentação e se aproxima da posição "funcional", ou de "proveniência-transação" daabordagem de macroavaliação canadense, está em Helen Willa Samuels, Varsity letters: documenting moderncolleges and universitites (Metuchen, N. J., e Londres, 1992), p. 15 e passim. Ver também sua panorâmica dasestratégias de documentação e das análises funcionais in Helen W. Samuels, "Improving our disposition:documentation strategy", Archivaria 33 (inverno de 1991-92), p. 125-40. Para a crítica da própria estratégia dedocumentação, ver David Bearman, Archival methods (Pittsburgh, 1989), p. 13-15; e Terry Cook, "Documentationstrategy", Archivaria 34 (verão de 1992), p. 181-91.
têm significância arquivística; que trabalhe, então, com os programadores de computador para elaborar
instruções de software que levem os computadores a criar arquivos virtuais para as funções e
atividades que julgue de valor permanente, de modo tal que o computador passe automaticamente a
salvar esses registros (e-mails, correspondência, relatórios, tabelas, gráficos etc.) como "arquivos" que
são organizados, auto-indexados e auto-separados para preservação arquivística. Espera-se, é claro,
que a instituição que cria os arquivos aplique a lógica dessa metodologia a todos os seus registros, e não
apenas àqueles com valor arquivístico, gerando assim eficiência administrativa e memória corporativa.
Essa nova abordagem da avaliação, ou macroavaliação, como a descrevi, requer,
evidentemente, que os arquivistas pesquisem esses fenômenos com extremo cuidado, de modo a
assegurar às instituições (ou a seus segmentos funcionais) a capacidade de criar registros de valor
arquivístico de uma forma global, em vez de tentar avaliar diretamente, uma por uma, as dezenas de
milhares de séries de documentos, bases de dados e coleções de mídia que qualquer jurisdição de porte
conterá e, muito menos, os bilhões de arquivos, documentos ou imagens, ou seus ainda mais
impalpáveis equivalentes ou substitutos eletrônicos. No novo mundo dos documentos eletrônicos, essa
análise funcional e as decisões de avaliação dela resultantes devem ser incorporadas desde cedo ao
processo de criação de documentos, idealmente no estágio de desenho do sistema de computador,
antes mesmo que o primeiro documento tenha sido criado, e não tempos depois da criação e uso do
documento, quando pode haver o benefício de uma visão retrospectiva e de uma perspectiva histórica
ao se decidir sobre a avaliação. Porque, no caso dos registros eletrônicos, com seus documentos
transitórios e virtuais, suas bases de dados relacionais e de propósitos múltiplos, e suas redes de
comunicação informais, e não hierarquizadas, que englobam várias instituições, nenhum registro
confiável chegará sequer a sobreviver para ficar à espera de que o arquivista o preserve "após o
fato" — a menos que o arquivista intervenha na vida ativa do documento, de modo semelhante ao que
sugeri acima, influenciando assim o comportamento organizacional dos criadores de registros, suas
culturas de trabalho e o desenho de seus sistemas de computadores ou estratégias de implementação,
preferivelmente antes que o primeiro documento tenha sido de fato criado9.
É importante lembrar que a própria avaliação é uma mudança importante no cerne do
pensamento arquivístico ocorrida depois de 1898 ou, na verdade, a partir de Jenkinson, em 1922. O
manual holandês virtualmente silencia sobre esse assunto. O próprio Jenkinson disse que, uma vez que
os documentos eram os subprodutos naturais da administração, nenhuma interferência do arquivista
após sua criação poderia ser admitida, sob pena de ver-se abalado seu caráter de evidência imparcial.
Desejando-se preservar as alegadas inocência e transparência dos documentos, em um contexto
9 É imensa a literatura sobre documentos e arquivos eletrônicos, na qual muitos dos conceitos que mencionei nestaspáginas são elaborados. O principal pensador mundial é David Bearman; dez de seus melhores ensaios estão agoracoligidos em David Bearman, Electronic evidence: strategies for managing records in contemporary organizations(Pittsburgh, 1994); e uma larga gama de seus comentários e análises aparece através de todos os números de Archivesand Museum Informatics, que editou durante uma década (até 1996). A outra voz principal tem sido MargaretHedstrom: ver seu desbravador manual SAA, Archives and manuscripts: machine-readable records (Chicago, 1984);e, mais recentemente "Understanding electronic incunabula: a framework for research on electronic records",American Archivist 54 (verão de 1991), p. 334-54; "Descriptive practices for electronic record: deciding what isessential and imagining what is possible", Archivaria 36 (outono de 1993), 53-62; e, com David Bearman "Reinventingarchives for electronic records: alternative service delivery options", in Margaret Hedstrom, ed., Electronic recordsmanagement program strategies (Pittsburgh, 1993), p. 82-98. Um antigo pioneiro do arquivamento eletrônico foiCharles M. Dollar; ver um resumo feito em um ponto avançado de sua carreira em seus Archival theory andinformation technologies: the impact of information technologies on archival principles and methods (Macerata,Itália, 1992); e "Archival theory and practices and informatics. Some considerations", in Bucci, Archival science onthe threshold, p. 311-28. Uma das primeiras vozes canadenses foi Harold Naugler, The archival appraisal of machine-readable records: a RAMP study with guidelines (Paris, 1984). Os dois ensaios de Terry Cook mencionados na nota 1acima são também relevantes para o tema do arquivamento de registros eletrônicos; ver, ainda, Terry Cook, "Keepingour electronic memory: approaches for securing computer generated records", South African Archives Journal 37(1995), p. 79-95. Para uma crítica detalhada dos desvios no arquivamento de registros eletrônicos à medida que estãose desenvolvendo, bem como para uma análise de seus pontos positivos na afirmação da relevância da arquivísticana proteção da evidência em contexto na Era da Informação, ver Terry Cook, "The impact of David Bearman onmodern archival thinking: an essay of personal reflection and critique", Archives and Museum Informatics 11 (1997),p. 15-37.
Várias estratégias evoluíram ou, pelo menos, estão sendo recomendadas aos arquivistas, para lidar com osdocumentos eletrônicos, o que não significa dizer que essas metodologias — bem como a estrutura conceitual em quese baseiam — não gerem suas próprias controvérsias, tais como sobre se os arquivos precisam adquirir fisicamentetodos os documentos eletrônicos para assegurar sua autenticidade, ou sobre a conexão apropriada com o gerador dosmetadados e arquivos de autoridade arquivística contextualizados. A melhor fonte singular para abordagensestratégicas dos documentos eletrônicos continua sendo Hedstrom, ed., Electronic records management programstrategies, que apresenta estudos de casos com análises de fatores críticos para o sucesso e o fracasso dosprogramas de documentos eletrônicos em níveis internacional (2), nacional (4), estadual (4) e de universidades (1),com uma avaliação global e uma extensa (59 páginas) bibliografia anotada, compilada por Richard Cox para que osleitores prossigam com suas explorações. Ver também David Bearman, "Archival strategies", trabalho discutido naconferência SAA de 1994, e a ser publicado brevemente no American Archivist.
arquivístico, qualquer avaliação do arquivista seria, para Jenkinson, totalmente inadequada. Um tal
exercício de "julgamento pessoal" pelo arquivista, que Jenkinson sabia estar inevitavelmente envolvido,
macularia a imparcialidade da evidência dos arquivos, como o faria também, é claro, qualquer
consideração de preservar os arquivos de um modo que atendesse às necessidades, reais ou
projetadas, de seu uso pelos pesquisadores. Para Jenkinson, o papel do arquivista seria manter, não
selecionar arquivos. Essa visão, conquanto compreensível quando aplicada a pequenos volumes de
documentos raros da Idade Média e do início da Era Moderna, que tinham, primordialmente, uma
natureza legal ou de titularidade, é completamente inadequada ao mundo moderno. É até
irresponsabilidade do arquivista adotar tal posição diante dos grandes volumes e da frágil natureza
eletrônica dos documentos deste final do século XX. A própria avaliação, especialmente nas novas
formas com vem sendo atualmente concebida, desafia, assim, fundamentalmente, a teoria arquivística
tradicional10.
Essas mudanças que estão ocorrendo nos conceitos e metodologias arquivísticas para trato com
documentos públicos e institucionais (que são os únicos com que lidei até o momento) indicam uma
importante alteração na fonte da teoria arquivística. Há um século, os princípios arquivísticos derivavam
de uma análise de documentos individuais baseada na diplomática ou, como já vimos, das regras criadas
pelos autores holandeses, por Jenkinson, Casanova e outros, para o arranjo e descrição de séries
fechadas de documentos oficiais recebidos por arquivos, oriundos de instituições governamentais
estáveis e mono-hierárquicas. Nenhuma seleção ou redução da totalidade dos documentos
originariamente criados era bem-vinda, e ficava por conta do criador ou, nas palavras de Jenkinson,
10 Para Jenkinson sobre isto, ver nota 6 acima. F. Gerald Ham, Selecting and appraising archives and manuscripts(Chicago, 1993), p. 9 e, em seus outros trabalhos, a melhor crítica moderna de Jenkinson, acompanhando a visão dosanos 50 de T. R. Schellemberg. Mesmo os arquivistas que se inclinam para Jenkinson (o que não é o caso deSchellemberg!) se opuseram a seus pontos de vista sobre avaliação; em um festchrift [coletânea] em sua homenagem,o principal arquivista do Canadá e da Austrália à época enfatizou as dificuldades da abordagem de Jenkinson: ver W.Kaye Lamb, "The fine art of destruction", p. 50-56, e Ian Maclean, "An analysis of Jenkinson's 'Manual of archiveadministration' in the light of australian experience", p. 150-51, ambos in Albert E. J. Hollaender, ed., Essays in memoryof Sir Hilary Jenkinson (Chichester, 1962).
"administrador", sendo feita muito antes de os documentos chegarem à instituição arquivística, sem
qualquer envolvimento de um arquivista na avaliação. O que se precisa agora é de uma perspectiva
teórica bem diferente: já que, como acabamos de observar, existem bilhões de séries correntes de
registros em multimídia a serem avaliadas dentro de organizações instáveis; já que a avaliação,
freqüentemente, deve ocorrer no estágio de desenho do sistema de computador, antes que um único
documento tenha sido sequer criado, e já que a descrição, cada vez mais, reflete ou incorpora
metadados de sistemas de computador que atravessam antigas fronteiras estruturais ou de "séries" e, na
verdade, antes inter-relaciona de várias maneiras do que cataloga suas informações, o enfoque da teoria
arquivística deslocou-se, por conseguinte, do próprio registro para seu contexto, ou processo funcional
de criação; do artefato físico para a "a ação e o ato em si mesmos" que fizeram com que aquele artefato
fosse criado. A teoria arquivística se inspira agora, portanto, mais na análise dos processos de criação
de documentos do que no arranjo e descrição de produtos documentados em arquivos. Como concluiu
Eric Ketelaar, que até este ano foi diretor do Arquivo Nacional da Holanda, "a ciência arquivística
funcional substitui a ciência arquivística descritiva, ... é apenas através de uma interpretação funcional do
contexto que cerca a criação de documentos que se pode entender a integridade do fundo e as funções
dos documentos arquivísticos em seu contexto original"11.
Todas essas mudanças fundamentais no mundo real das organizações e dos sistemas de
armazenamento de documentos têm um impacto significativo sobre as tarefas e responsabilidades do
arquivista. Como sua intervenção ativa nos processos de manutenção de documentos é agora exigida
para que fique assegurado que as propriedades de evidência confiável existam para os documentos,
como disso resulta, na base da moderna avaliação (e posterior descrição), a necessidade de que o
arquivista investigue e compreenda a natureza complexa de funções, estruturas, processos e contextos,
e interprete sua importância relativa, por tudo isso, a idéia tradicional da imparcialidade do arquivista
não é mais aceitável — se é que algum dia o foi. Os arquivistas, inevitavelmente, injetarão seus próprios
11 Eric Ketelaar, "Archival theory and the Dutch Manual", Archivaria 41 (primavera de 1996), p. 36.
valores em todas essas atividades, bem como na própria escolha que terão de fazer, nesta era de
recursos limitados, sobre quais criadores, quais sistemas, quais funções, quais programas, quais
atividades, quais documentos, na verdade, irão receber atenção arquivística parcial ou total e quais
serão simplesmente abandonados. Assim, os arquivistas mudaram no último século, passando, dos
custodiadores jenkinsonianos passivos da totalidade dos resíduos documentais deixados por seus
criadores, a ativos conformadores da herança arquivística. Evoluíram de uma suposta posição de
guardiães imparciais de pequenas coleções de documentos herdados da Idade Média, para tornarem-se
agentes intervenientes que estabelecem os padrões de arquivamento e deliberam sobre qual pequena
fração do universo de informações registradas será selecionada para a preservação arquivística.
Tornaram-se, assim, construtores muito ativos da memória social. Na verdade, afirmaria até que se
tornaram o principal agente de formação da memória, sem esquecer das importantes contribuições,
nessa tarefa, de seus colegas dos museus, bibliotecas, e cultura material.
Essa perspectiva que venho desenvolvendo é conscientemente, embora implicitamente, pós-
moderna, assim como os princípios arquivísticos tradicionais que estou questionando estão
profundamente enraizados no modernismo, ou até no pré-modernismo. Permitam-me esboçar mais
explicitamente algumas formulações pós-modernistas, visando, é claro, suas implicações documentais e,
por conseguinte, arquivísticas12.
12 Muito poucos arquivistas no mundo têm discutido de forma sustentada as implicações do ethos pós-moderno (quevem dominando o pensamento acadêmico desde os anos 70, pelo menos) no que concerne à teoria e à práticaarquivísticas e, curiosamente, todos que o fizeram são, quase sem exceção, canadenses.
Para uma análise bastante provocadora dos entendimentos e premissas dos arquivistas — muitas das quaisfalsas e desorientadoras — sobre "ordem" e sobre a natureza de seu próprio trabalho de estabelecimento, recriação edefesa das "ordens", originais e outras, bem como da primeira análise pós-modernista importante do empreendimentoarquivista, ver Brien Brothman, "Orders of value: probing the theroretical terms of archival practice", Archivaria 32(verão de 1991), p. 78-100. Outras análises pós-modernas são: "The limits of limits: derridean deconstruction and thearchival institution", Archivaria 36 (outono de 1993), p. 205-20; Richard Brown, "Records acquisition strategy and itstheoretical foundation: the case for a concept of archival hermeneutics", Archivaria 32 (verão de 1991), p. 152-56; eJoan M. Schwartz, "'We make our tools and our tools make us': lessons from photographs for the practice, politics andpoetics of diplomatics", Archivaria 40 (outono de 1995), p. 40-74. Minhas próprias análises sobre o pós-modernismoanteriores a este artigo estão restritas a partes de "Mind over matter: towards a new theory of archival appraisal", e de"Electronic records, paper minds: the revolution in information management and archives in the postcustodial andpostmodernist era", ambos citados anteriormente. Para uma importante voz pós-moderna australiana, ver o trabalho deFrank Sue McKemmish e Frank Upward, eds., Archival documents: providing accountability through recordkeeping
O pós-moderno desconfia da idéia de verdade absoluta baseada no racionalismo e no método
científicos13. O contexto por trás do texto, as relações de poder que conformam a herança documental
lhe dizem tanto, se não mais, que o próprio assunto que é o conteúdo do texto. Nada é neutro. Nada é
imparcial. Tudo é conformado, apresentado, representado, simbolizado, significado, assinado, por
aquele que fala, fotografa, escreve, ou pelo burocrata governamental, com um propósito definido,
dirigido a uma determinada audiência. Nenhum texto é um mero subproduto, e sim um produto
consciente para criar uma persona ou servir a um propósito, embora essa consciência, ou persona, ou
propósito — esse contexto por trás do texto — possa ser transformado, ou perdido, em padrões
inconscientes de comportamento social, em discurso institucional e em fórmulas padronizadas de
apresentação de informações. Os pós-modernistas procuram desnaturalizar o que presumimos natural,
o que, por gerações, talvez séculos, aceitamos como normal, natural, racional, provado —
simplesmente, o jeito de ser das coisas. O pós-modernista toma tais fenômenos "naturais" — seja o
patriarcalismo, o capitalismo, a religião ou, poderia eu acrescentar, a ciência arquivística tradicional — e
afirma que são "antinaturais", ou "culturais" ou, no mínimo, "construções sociais" de um tempo, lugar,
(Melbourne, 1993), p. 41-54; e seu “Structuring the records continuum. Part two: Structuration theory andrRecordkeeping”, Archives and Manuscripts 25, (maio de 1997), p. 10-35.
13 Não parece de utilidade citar aqui toda uma prateleira de livros pós-modernos. Contudo, além das próprias análise emetodologia históricas de Michel Foucault, minha compreensão dos conceitos pós-modernos se devem, em grandeparte, ao trabalho da acadêmica canadense Linda Hutcheon, The politics of postmodernism (Londres, 1989) e Apoetics of postmodernism: history, theory, fiction (Nova York, 1988). Uma seleção dos melhores trabalhos em váriasdisciplinas é apresentada em Charles Jecks, ed., The post-modern reader (Londres, 1992). Em Foucault, os trabalhosessenciais para os arquivistas são The order of things: an archaelogy of the human sciences (Nova York, 1970,originalmente em francês, 1966); e The archaeology of knowledge (Nova York, 1972, originalmente em francês, 1969).Uma boa introdução a seu pensamento é Gary Gutting, Michel Foucault's archaeology of scientific reason(Cambridge, 1989); ler especialmente p. 231-44 para a análise de Foucault sobre documentos. Para um exemplo pioneiroda aplicação de alguns dos insights pós-modernistas a registros documentários, ver J. B. Harley, "Deconstructing themap", Cartographica 26 (verão de 1989), p. 1-20. Harley explora o poderoso contexto social por trás do mapa, bemcomo observa os elementos metafóricos e retóricos do mapa, onde, antes, os acadêmicos viam apenas topografia emensuração. Ele demonstra que a cartografia é menos "científica" do que se presumia e reflete as predileçõesfuncionais de seus patrocinadores, tanto quanto a superfície da Terra. Para uma análise e conclusão similares sobre omesmo meio, ver Terry Cook, "'A reconstruction of the world': George R. Parkin's British Empire map of 1893",Cartographica 21 (1984), p. 53-64.
classe, gênero, raça etc. específicos. Mais ainda, os pós-modernistas vêem explicitamente os arquivos
como fragmentos de universos de documentos agora perdidos ou destruídos. Encaram os próprios
documentos como espelhos distorcidos que alteram os fatos e realidades passados, mas, ironicamente,
consideram que servem como "sinais ... dentro de contextos já semioticamente construídos, contextos
que são, eles mesmos, dependentes de instituições (no caso de registros oficiais) ou indivíduos (se
forem relatos de testemunhas oculares)”14.
Se o modernista do século XX criticava a idéia de fato ou verdade histórica, o pós-
modernista critica a idéia de documento. Jacques Le Goff observa que "o documento não é matéria-
prima objetiva, inocente, mas expressa o poder da sociedade do passado (ou da atual) sobre a
memória e o futuro: documento é o que fica". O que vale para cada documento vale também,
coletivamente, para os arquivos. Não é por coincidência que os primeiros arquivos foram os arquivos
reais da Mesopotâmia, do Egito, da China e da América pré-colombiana. A capital torna-se, nas
palavras de Le Goff, "o centro de uma política de memória" onde "o rei desenvolve pessoalmente, por
todo o território sobre o qual tem controle, um programa de recordação do qual ele próprio é o centro".
Primeiro a criação, depois o controle da memória levam ao controle da história, daí à mitologia e, por
último, ao poder15. Essa ênfase inicial persistiu. Os arquivos medievais, como o descobrem agora os
acadêmicos, foram coligidos — e com freqüência posteriormente re-selecionados e reconstruídos —
não apenas para conservar a evidência das transações legais e comerciais, como também,
explicitamente, para servir a propósitos históricos e sacro/simbólicos — mas apenas para os
personagens e eventos julgados merecedores de celebração, ou memorialização, no contexto de seus
tempos16. Colocando-se em um ponto de vista oposto, o daqueles que foram marginalizados pelo
14 Hutcheon, Poetics of postmodernism, p. 122.
15 Jacques Le Goff, History and memory, traduzido por Steven Randall e Elizabeth Claman (Nova Iorque, 1992), p. xvi-xvii, 59-60, e passim.
16 Sobre arquivos medievais e seus propósitos, ver Patrick J. Geary, Phantoms of remembrance: memory and oblivionat the end of the first millennium (Princeton, 1994), p. 86-87, 177 e especialmente capítulo 3: "Archival memory and thedestruction of the past" e passim;
empreendimento arquivístico, a historiadora feminista americana Gerda Lerner acompanhou
convincentemente, da Idade Média ao nosso século, a exclusão sistemática das mulheres dos
instrumentos e instituições de memória da sociedade, dos arquivos inclusive17. Revela-se agora que os
arquivos da Primeira Guerra Mundial sofreram manipulações e alterações importantes para fazer que o
marechal de campo Sir Douglas Haig parecesse menos culpado pelo massacre do front ocidental sob
seu comando e no qual teve grande responsabilidade18. E ainda de outro ponto de vista, os arquivistas
dos países em desenvolvimento estão agora questionando seriamente se os conceitos clássicos da
arquivística, originados na cultura escrita das burocracias européias, são adequados para a preservação
das memórias de culturas orais. Em resumo, os pós-modernistas entendem que todos os atos de
recordação da sociedade são subordinados à cultura e têm implicações ligadas ao seu tempo.
Que significado tem qualquer dessas questões para os arquivistas? Em um certo nível, o pós-
modernismo é tranqüilizador para os arquivistas: sua preocupação com "os contextos semioticamente
construídos" de criação de documentos espelha claramente a preocupação com a contextualidade há
muito manifestada pela arquivística no mapeamento das inter-relações de proveniência entre o criador e
o documento, na determinação do contexto pela leitura através e por trás do texto. Contudo, em um
nível ainda mais profundo, o pós-modernismo (e a nova historiografia correlata sobre construção da
memória social) deveria incomodar os arquivistas, levando-os a questionar cinco mitos centrais, ou
tradições, de sua profissão: 1) o de que os arquivistas são guardiães neutros, imparciais da "Verdade",
para usar as próprias palavras de Jenkinson; 2) o de que os arquivos, como documentos e como
17 As acadêmicas feministas estão bem cônscias dos modos como os sistemas de linguagem, escrita e registro deinformações, e de preservação de tais informações uma vez registradas, são baseados na sociedade e no poder, e nãoneutros, tanto agora quanto em todos os milênios anteriores. Como exemplo, ver Gerda Lerner, The creation ofpatriarchy (Nova York, 1986), p. 6-7, 57, 151, 200 e passim; e Riane Eisler The chalice & the blade (São Francisco,1987), p. 71-73, 91-93. O último livro de Lerner, The creation of feminist consciousness: from the Middle Ages toeigtheen-seventy (Nova York e Oxford, 1993), detalha cuidadosamente a exclusão sistemática das mulheres dosarquivos e da história, e as tentativas das mulheres, a partir do final do século XIX, para corrigir essa situação atravésda criação de arquivos de mulheres: ver especialmente o capítulo 11, "The search for women's history".
18 Ver Denis Winter, Haig's command: a reassessment (Harmondsworth, 1991), especialmente a seção final:"Falsifying the record".
instituições, são subprodutos desinteressados das ações e administrações; 3) o de que a proveniência
tem raízes em um único órgão de origem ou transmissão, em vez de em um processo de criação; 4) o
de que a "ordem" imposta aos arquivos por meio do arranjo e descrição arquivísticos — para não
falarmos da avaliação! — é uma recriação isenta de valores de alguma realidade genuína anterior; e 5) o
de que a arquivística é uma ciência — pelo menos uma "ciência" como esse termo é tradicionalmente
concebido e utilizado pelos arquivistas, produto da idade do racionalismo científico. Restam questões
mais profundas, como Le Goff, Lerner e outros historiadores da memória indicam. Quem estamos nós,
como arquivistas, memorializando agora? E quem, hoje, marginalizamos e excluímos da memória social
por nossas ações e omissões?
Desde que Thomas Kuhn escreveu, em 1962, sobre paradigmas científicos — e vários autores
desde então, especialmente as críticas feministas —, o conceito de ciência foi radicalmente modificado
por um reconhecimento de sua natureza subjetiva, onde antes a ciência fora caracterizada como
objetiva, neutra, impessoal e desinteressada19. A ciência arquivística, em minha opinião, não é diferente.
Em qualquer ciência, as opções de projetos, métodos e praticantes, os padrões de excelência e
aceitação, e as razões para exclusões e reprovações, as escolhas que faz ao alocar os recursos que tem
e treinar seus profissionais, tudo reflete necessidades e interesses atuais e disputas mais profundas de
poder social, lingüístico, ideológico, de gênero, de classe, racial, étnico e de padrões emocionais.
Há aqui uma importante lição para os arquivistas. Assim como os cientistas, os arquivistas são
(e sempre foram) parte importante do processo histórico em que se encontram — e parte importante,
também, do legado do racionalismo científico criticado por Foucault e outros pós-modernistas. Minha
recomendação é que os arquivistas deveriam aceitar, em vez de negar, sua própria historicidade, ou
19 Evelyn Fox Keller, Reflections on gender and science (Nova York, 1985), p. 11-12, 5-9, 130, e passim. O trabalhopioneiro de ligação dos métodos, teoria e descobertas científicos "puros", com seus bem "impuros" contextos sociaise intelectuais, foi o de T. S. Kuhn, The structure of Scientific Revolution, que em 1962 demonstrou que a supostaneutralidade da ciência era mais produto de ideologia que realidade. Ver também Carolyn Merchant, The death ofnature: women, ecology and the Scientific Revolution (Nova York, 1980, 1990), p. xvii-xviii. Ela demonstra que asnovas teorias da termodinâmica e do caos também sustentam conclusões similares do pensamento contextual,interdependente, baseado em processo.
seja, deveriam reconhecer, ao invés de negar, sua própria participação no processo histórico. Não são
historiadores, mas fazem parte do processo histórico, em vez de dele estarem distanciados. Deveriam,
portanto, reintegrar o subjetivo (isto é, a mente, o processo, a função) com o objetivo (isto é, a matéria,
o produto documentado, o sistema de informações) em seus constructos teóricos e em suas
metodologias estratégicas. Então, uma vez livres dos mitos da objetividade e imparcialidade
jenksionianas, deixarão de ter motivos para não integrar os arquivos públicos e os pessoais dentro de
um enfoque teórico comum centrado na construção da memória social e coletiva. Perceberão, então,
que os arquivistas de arquivos públicos ou institucionais têm tantas dificuldades e escolhas
discricionárias a fazer quanto os arquivistas de arquivos pessoais. Ambos são igualmente arbitrários e
artificiais, ao menos de uma perspectiva jenkinsoniana. Ambos, ativamente, criam e conformam, filtram
e distorcem arquivos, em vez de, passivamente, preservarem arquivos que lhes teriam sido entregues de
alguma maneira impossivelmente neutra ou objetiva. Por conseguinte, rompamos as barreiras artificiais
— ao menos no nível da teoria e dos conceitos profissionais básicos — que por tempo
demasiadamente longo vêm dividindo as tradições de arquivos pessoais e arquivos públicos.
Consideremos, ao invés, uma perspectiva de "arquivos totais" — se não dentro de cada instituição
arquivística no Brasil, devido talvez a restrições legislativas e de mandato, então, pelo menos, dentro da
malha arquivística global brasileira.
O conceito canadense de "arquivos totais" pode servir de modelo aqui, pois integra, em quase
todos os tipos de arquivos por todo o país, o papel oficial dos arquivos, como guardiães da contínua
demanda corporativa de seus patrocinadores pela evidência documentada de suas transações, e o papel
cultural dos arquivos, como preservadores da memória social e da identidade histórica, dando a suas
coleções, em ambos os casos, um equilíbrio entre os arquivos oficiais e pessoais em todas as formas de
mídia. Os "arquivos totais" refletem, assim, uma visão mais ampla dos arquivos, sancionada pela
sociedade como um todo e reflexo dela, em vez de uma visão conformada a priori, ou por poderosos
grupos de interesse dos usuários, ou pelo Estado. No Canadá, os arquivos pessoais são vistos como
complemento e suplemento dos fundos de arquivos oficiais ou públicos. Em resumo, a tradição dos
"arquivos totais" canadenses está mais voltada para os arquivos de governança que para os arquivos
de governo. Arquivos "de governança" incluem os documentos que refletem a interação dos cidadãos
com o Estado, o impacto do Estado sobre a sociedade e as funções ou atividades da própria
sociedade, tanto quanto incluem os documentos das estruturas do governo e de seus burocratas
voltados para dentro. A tarefa arquivística coletiva no Canadá é preservar a evidência documentada da
governança da sociedade, não apenas da atividade governante dos governos20.
Os arquivos são templos modernos— templos da memória. Como instituições, tanto como
coleções, os arquivos servem como monumentos às pessoas e instituições julgadas merecedoras de
serem lembradas. Igualmente, as que são rejeitadas por serem julgadas não merecedoras, têm seu
acesso negado a esses templos da memória e estão fadadas, assim, ao esquecimento de nossas histórias
e de nossa consciência social. Isso é de vital importância, pois o novelista tcheco Milan Kundera nos
lembra que "a luta contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento". O controle do passado,
e o controle sobre a criação e preservação do passado pelos arquivos, reflete as lutas de poder do
presente e, na verdade, sempre as refletiram. Isso tem implicações relevantes para os arquivistas, tanto
de arquivos pessoais quanto de arquivos institucionais, e para a profissão arquivística.
Há mil anos, quando a sociedade passou do registro oral para o escrito, o enfoque dos
arquivistas também mudou, da lembrança da ação para o cuidado dos artefatos escritos que davam
testemunho da ação. Agora, à medida que a sociedade passa, junto com um novo milênio, dos
documentos escritos fixos para documentos eletrônicos virtuais, e de organizações estáveis para outras,
transitórias, os arquivistas também precisam mudar o foco primordial de sua atenção, deixando o
cuidado daqueles artefatos físicos (os documentos) para passar à pesquisa e ao entendimento das
funções e atividades dos criadores de documentos, e dos processos correlatos de geração de registros,
20 Sobre governança, ver Ian E. Wilson, "Reflections on archival strategies", American Archivist 58 (outono de 1995),p. 414, 29.
para que os arquivos possam efetivamente ser criados. Se, ao fazerem essa reorientação que lhes é
exigida, vierem também a aceitar, em vez de negar, sua própria historicidade e seu papel ativo na
construção da memória social, os arquivistas reconhecerão, então, no nível mais essencial, a natureza
comum dos arquivos públicos e pessoais. Ironicamente, essa nova unidade de propósitos não virá se
perguntarmos, como os arquivistas tendem a fazê-lo, se os arquivos pessoais podem se conformar aos
tradicionais e sagrados princípios há muito usados para os arquivos públicos e institucionais, e sim se as
instituições arquivísticas e seus arquivistas conseguirem reconhecer a necessidade de modificar vários de
seus princípios tradicionais de modo a adotar a mesma perspectiva em relação aos arquivos, à história e
à memória que adotam seus colegas dos arquivos pessoais21.
Nessa idéia da construção da memória coletiva e na necessidade atual de um entendimento mais
profundo dos processos funcionais da sociedade e de suas instituições para se empreenderem as novas
metodologias de avaliação e descrição, há, parece-me, alguns férteis conceitos, enfoques estratégicos e
inspirações comuns para arquivistas tanto de arquivos institucionais quanto de pessoais. "Recordar",
para o indivíduo é, afinal, tanto pessoal quanto social, tanto interno quanto externo, tanto privado
quanto público. Assim também deve sê-lo, coletivamente, para os arquivos que são criados para ajudar
21 Pode-se argumentar, na verdade, que os arquivistas pessoais ou de arquivos privados não enfrentam acomplexidade de criadores organizacionais variáveis, nem da computadorização extensiva do arquivamento, nem dosimensos volumes que caracterizam os modernos arquivos institucionais. Isso pode ser verdadeiro, em parte, mas nãoderruba meu argumento de que as mudanças na estratégia arquivística se aplicam com igual força aos arquivistaspessoais e institucionais. Nos Arquivos Nacionais do Canadá, por exemplo, há cerca de 600 fundos para osdocumentos do governo canadense e 14.000 fundos para criadores pessoais de arquivos. No Brasil, conquanto possahaver milhares de fundos governamentais e corporativos sob a responsabilidade de instituições arquivísticas, há,potencialmente, 105.000.000 de fundos pessoais a recolher. A complexidade para os arquivistas pessoais está nadecisão sobre quais poucos milhares de fundos, dentre as dezenas de milhões que existem, vale a pena preservar;para os arquivistas institucionais, está na decisão sobre quais dentre os milhões de documentos complexos de umfundo merecem ser preservados. Ambos necessitam abordagens estratégicas baseadas na análise funcional para darconta desses imensos desafios. Em termos de documentos eletrônicos, os criadores do setor privado estãorapidamente alcançando seus correspondentes institucionais na geração eletrônica de registros, dos rascunhos denovelas de escritores de renome às agendas e aos diários pessoais, que já existem em forma exclusivamente eletrônica,e mais, cerca de 50 milhões de usuários individuais da Internet (que crescem aos milhares todos os dias) que utilizamcorrespondência eletrônica, abrem web sites pessoais (a declaração autobiográfica de nossos dias?) e se engajam emformas eletrônicas de discussões para criar grupos virtuais de lobbying para todas as causas imagináveis. O desafio,para o arquivista pessoal, de lidar com esse mumdo “internético” de registros é pelo menos tão difícil quanto o queesbocei para o arquivista institucional.
a sociedade a lembrar-se de seu passado, de suas raízes, de sua história, que, por definição, combina o
público e o pessoal. Esta é uma visão que poderá ser alcançada no século XXI, se os arquivistas
deixarem de ser mantidos prisioneiros pelo pesado jugo de suas próprias tradições ultrapassadas.
(Recebido para publicação em novembro de 1997)