Post on 27-Jan-2020
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Sara Cecilia Cesca
TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E A PRODUÇÃO ARTÍSTICA EM DIFERENTES CONTEXTOS
EDUCATIVOS
Campinas 2015
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Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Artes
Sara Cecilia Cesca
TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E A PRODUÇÃO ARTÍSTICA EM DIFERENTES CONTEXTOS
EDUCATIVOS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Música, na área de concentração: Música: Teoria, criação e Prática.
Orientador: Jorge Luiz Schroeder
Este exemplar corresponde à versão final de Dissertação defendida pela aluna Sara Cecília Cesca, e orientada pelo Prof. Dr. Jorge Luiz Schroeder. __________________________________
Campinas 2015
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RESUMO
A presente dissertação consiste numa proposta reflexiva em torno da invenção e da produção
artística em diferentes contextos educativos mediante a apropriação teórica da estética da
formatividade. Elaborada pelo filósofo Luigi Pareyson, os estudos da teoria da formatividade
desvelam os problemas estéticos que circundam o processo inventivo e realizativo da obra de
arte enquanto matéria formante. Para efetuar essa reflexão, apropriar-me-ei das observações
concretas de L. Pareyson com o intuito de compreender e conceber de forma legítima o
processo de produção artística presente nas práticas educativas musicais.
Palavras-chave. Educação musical. Educação estética. Experiência estética. Estética da
formatividade.
ABSTRACT
This essay consists in a reflexive proposal about the artistic invention and production in
different educational contexts in coherence with the theorical appropriation of formativeness
of aesthetics (teoria della formatività). The studies of the formativeness of aesthetics,
elaborated by philosopher Luigi Pareyson, reveal the aesthetic problems involving the
inventive process of art production in development. To make this reflection, I am going to use
Pareyson’s concrete observations to understand and conceive the process of artistic production
found in music educational practices properly.
Keywords: Musical education. Aesthetic education. Aesthetic experience. Formativeness of
aesthetics.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................................1
CAPÍTULO 1: DA FILOSOFIA PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL ........................................... 35
1.1 Estética pareysoniana: experiência artística e filosofia ........................................ 39
1.2 A arte como fazer, como conhecer e como exprimir: considerações de
uma proposta estético-educativa ................................................................................................ 43
1.3 Poética, estética e crítica. Uma reflexão didática dos conceitos ................ 46
CAPÍTULO 2: TEORIA DA FORMATIVIDADE: UM TAL FAZER QUE SE DEFINE
ENQUANTO FAZ ........................................................................................................................................ 55
2.1 Teoria da formatividade: uma estética da invenção ............................................. 58
2.2 Reflexões sobre a formatividade em atividades coletivas ................................. 61
CAPÍTULO 3: CRIAÇÃO MUSICAL: O PROCESSO INVENTIVO DO INSIGHT ATÉ O
COMPLEXO CAMPO DA INTERPRETAÇÃO ................................................................................. 65
3.1 Primeiro cenário: Sinfonia poética .................................................................................. 68
3.1.1 Reflexões a partir do relato de experiência .................................................... 82
3.1.2 O insight .................................................................................................................................. 87
3.1.3 O ato de perguntar: a chave para uma educação estética ................ 90
3.2 Quando nos inspiramos nas respostas... .................................................................. 94
x
3.3 Segundo cenário: Solo para violino .............................................................................. 104
3.4 Terceiro cenário: construindo um dicionário de música ................................. 110
3.5 Quarto cenário: reflexões sobre a prática ............................................................... 131
3.5.1 Considerações sobre o exercício como atividade imprescindível da
produção.................................................................................................................................... .....................143
CAPÍTULO 4: DIÁLOGOS ENTRE AUTOR E MATÉRIA ........................................................ 147
4. Energia formante e matéria. Diálogos entre autor e matéria ......................... 144
4.1 Da forma a execução: as possibilidades interpretativas dos alunos ...... 155
CAPÍTULO 5: EDUCADOR MUSICAL: UM ESTETA EM SALA DE AULA ................... 161
CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 169
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................... 171
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Às minhas alunas e alunos. Meus grandes guias.
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AGRADECIMENTOS
À minha mãe Edith pelo amor incondicional e sensibilidade artística.
Ao meu companheiro Lucas Eduardo da Silva Galon pelas leituras e conversas sobre
estética; por todo amor que tem por mim e por tudo que faço.
Ao meu orientador Jorge Luiz Schroeder pelo apoio, pelos diálogos e incentivo aos meus
projetos e reflexões estéticas; minha gratidão, respeito e admiração.
À professora e amiga Sílvia Cordeiro Nassif grande incentivadora da minha jornada
acadêmica.
À professora Maria Flávia Silveira Barbosa pelas orientações e instruções acadêmicas deste
trabalho.
Aos meus queridos professores de violino Jonas Mafra, Elina Suris e Eliane Tokeshi, o meu
apreço e gratidão.
À minha amiga Ana Luiza Gentil, parceira das minhas invenções em sala de aula; sem ela
muitos dos registros que trago aqui não seriam possíveis.
Aos queridos pais dos meus alunos que sempre apoiaram e acreditaram neste trabalho, os
meus sinceros agradecimentos.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 01.....................................................................................................................72
Figura 02.....................................................................................................................72
Figura 03.....................................................................................................................76
Figura 04.....................................................................................................................76
Figura 05.....................................................................................................................77
Figura 06.....................................................................................................................77
Figura 07.....................................................................................................................78
Figura 08.....................................................................................................................78
Figura 09.....................................................................................................................79
Figura 10.....................................................................................................................80
Figura 11.....................................................................................................................86
Figura 12.....................................................................................................................100
Figura 13.....................................................................................................................101
Figura 14.....................................................................................................................101
Figura 15.....................................................................................................................102
Figura 16.....................................................................................................................102
Figura 17.....................................................................................................................103
Figura 18.....................................................................................................................103
Figura 19.....................................................................................................................107
Figura 20.....................................................................................................................119
Figura 21.....................................................................................................................123
xvi
Figura 22.....................................................................................................................126
Figura 23.....................................................................................................................127
Figura 24.....................................................................................................................129
Figura 25.....................................................................................................................130
Figura 26.....................................................................................................................135
Figura 27.....................................................................................................................136
Figura 28.....................................................................................................................137
Figura 29.....................................................................................................................138
Figura 30.....................................................................................................................139
Figura 31.....................................................................................................................140
Figura 32.....................................................................................................................141
Figura 33.....................................................................................................................142
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INTRODUÇÃO
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3
INTRODUÇÃO
Professora encantadora de alunos,
Para isso nem precisa de violino.
Basta percussionar,
Basta chegar.
Professora encantadora de alunos,
Para isso pode precisar do violino
Basta tocar,
Basta chegar.
Professora encantadora de alunos,
Para isso basta chegar1.
Assim como o processo inventivo e realizativo da produção artística em qualquer
contexto educativo percorre um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer, a elaboração
deste trabalho também se constitui como um feito inventivo e formativo decorrente das minhas
experiências e reflexões profissionais. Estas primeiras linhas consistem num pequeno introito
que desvela a partir de recordações e memórias as raízes que originaram a presente pesquisa.
Apresentarei de maneira sucinta fragmentos significativos que marcaram a trajetória deste
trabalho e que possibilitaram as reflexões e o direcionamento desta pesquisa.
Considero como fonte primária deste estudo os encontros com cada uma das pessoas
que vivenciaram comigo as reflexões que aqui serão apresentadas, cada qual me influenciando
com sua maneira de pensar as coisas e o mundo; são estes: alunos que hoje seguem suas vidas
adultas, mas que durante a infância me ensinaram a olhar a arte, especificamente, a música de
maneira diferente da minha; amigos que através de suas experiências profissionais e
acadêmicas me proporcionaram reflexões a respeito das muitas possibilidades educativas;
profissionais e colegas de trabalho que exerceram diariamente grande influência na temática
que proponho.
1Este poema foi escrito carinhosamente pela professora e escritora Ana Luíza Gentil, grande amiga que estimo e
admiro. Incentivadora e parceira das minhas ideias e pesquisas, Ana e eu trabalhamos juntas durante quatro anos.
Certa vez conversávamos por e-mail sobre as reflexões dos nossos alunos e ao término daquele diálogo fui
presenteada com este lindo poema.
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Deixo registrado essas considerações, pois acredito que esta pesquisa resulta de uma
intensa atividade de imaginação e construção que pressupõe uma trajetória socialmente
compartilhada, tornando-se possível devido aos muitos encontros com que fui agraciada até o
presente momento, afinal, “só me torno eu entre outros eus. Mas o sujeito, ainda que se defina
a partir do outro, ao mesmo tempo o define, é o 'outro' do outro: eis o não acabamento
constitutivo do Ser, tão rico de ressonâncias filosóficas, discursivas e outras” (BRAIT, 2013,
p.22). Portanto, dedico esta pequena apresentação acadêmica a todos aqueles que compuseram
o auditório social das minhas reflexões, em especial meu pai e meu irmão (in memoriam),
presentes em cada etapa deste trabalho através de fortes lembranças.
Tomo como ponto de partida meus 16 anos, idade que comecei a dedicar-me ao
ensino de violino para jovens e crianças; tão nova, porém responsável. Com essa idade fui
emancipada legalmente pelos meus pais para efetuar com tranquilidade os trâmites
burocráticos das viagens que realizava para os diversos festivais de música no Brasil, e assim,
com seriedade e responsabilidade conduzia meu trabalho e meus estudos como se fossem
atividades que já realizava há anos. Nessa caminhada de quinze anos pude conviver com uma
incrível variedade de alunos de faixas etárias distintas. Durante esse percurso fui aprendendo
com eles não somente os meios para ensiná-los, mas, sobretudo, admiração, integridade e
respeito mútuo. Crescemos juntos e confesso que aprendi mais do que ensinei.
Ao longo do meu trabalho como educadora musical, pude vivenciar esteticamente ao
lado destes pequenos músicos a beleza existente em cada gesto do fazer musical. Seja
realizando exercícios, compondo, executando ou interpretando, aprendi a apreciar as
grandezas do processo de elaboração artística destes alunos mesmo nas mínimas proporções,
e descobri que são tão belas e valiosas quanto qualquer outra produção artística monumental.
Foi a partir de bons encontros que as reflexões estéticas que trago nesta pesquisa
começaram a surgir e o primeiro deles ocorreu quando ingressei na Universidade aos 20
anos. Dedicada ao estudo do violino e ao trabalho que realizava nas escolas de música da
minha cidade - Ribeirão Preto/SP - entrei na Universidade, ingenuamente, como quem já
fosse um profissional do ensino e foi a partir deste contexto que comecei a compreender em
profundidade o trabalho missionário de um educador musical.
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O primeiro impulso da temática desta pesquisa nasceu no decorrer da disciplina de
Estética que cursei no primeiro semestre da graduação em música na Universidade de São
Paulo no ano de 2003. Ministrada pelo musicólogo e pesquisador Régis Duprat a
apresentação dos conceitos do filósofo Luigi Pareyson despertou em mim grande entusiasmo
para buscar em profundidade as possibilidades de um diálogo entre estética e educação
musical, e desde então, esse ímpeto vigora concretizando-se, parcialmente, neste trabalho.
Cada capítulo da obra “Os problemas da estética” escrito por Luigi Pareyson que eu estudava
proporcionava ao meu trabalho como educadora musical inúmeras reflexões acerca dos
problemas que permeiam a atividade de invenção, execução e leitura da obra de arte. Hoje,
quando recordo esse primeiro contato com a filosofia pareysoniana observo que os aspectos
reflexivos mais marcantes das minhas primeiras leituras se voltavam para os problemas de
execução e interpretação instrumental. Essa lembrança desvela o quanto o meu trabalho
estava centrado na prática do instrumento, no entanto, foi dialogando sobre os problemas da
estética com os meus alunos que descobri as possibilidades de um pensamento reflexivo para
além das possibilidades técnico-musicais. Recordo-me da primeira tentativa ao lançar um
questionamento estético a um aluno de violino na época com doze anos. Segurando as
partituras do concerto que estava estudando perguntei a ele se poderíamos considerar aquelas
páginas (referindo-me aos papéis) como música, e rapidamente, respondeu-me que era
preciso tocar para se fazer música. Foi assim que iniciamos um diálogo sobre o processo de
execução e a importância do intérprete como co-autor frente ao trabalho do compositor.
Gosto muito da seguinte frase de José Saramago: “Tudo no mundo está dando respostas, o
que demora é o tempo das perguntas” (1994, p.225).
A partir desses primeiros insights estéticos que ousei experimentar em sala de aula,
pude observar que por mais complexa que uma reflexão pudesse parecer para mim, talvez
não o fosse para os alunos. Tinha a impressão de que alguns problemas de natureza estética
já haviam sido pensados por eles; foi quando percebi que o que faltava na minha prática
docente era uma abordagem mediada por perguntas, pois as respostas já existiam, e nas
palavras de João Wanderley Geraldi pude encontrar as afirmações de que necessitava: “Creio
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que o ensino tem dado respostas a alunos que não conhecem as perguntas. Temos aprendido
respostas sem sabermos as perguntas que a elas conduziram” (2010, p.96).
É comum que alunos em diferentes contextos educativos adquiram forte identificação
com determinados professores ou disciplinas mais do que outras, e posso afirmar que, a
temática da disciplina de Estética que cursei durante o período de graduação, bem como as
reflexões levantadas pelo professor Régis Duprat foram responsáveis por despertar em mim a
vontade de ir além como profissional da música. O curso de estética de um semestre foi um
presente para mim.
No decorrer do curso de bacharelado em violino comecei a atuar na Orquestra
Sinfônica de Ribeirão Preto; embora eu ficasse dividida entre os ensaios, a Universidade e o
trabalho que exercia como professora minhas reflexões sobre educação musical e minha
atuação docente se constituíam sempre de maneira visceral. Ao aproximar o término do
curso fiquei em dúvida quanto aos rumos da temática do meu trabalho de conclusão de curso,
pois uma análise reflexiva acerca das peças que comporia o meu recital me interessava,
porém levantar reflexões estéticas em torno do trabalho musical em sala de aula também
consistia num assunto do meu interesse, afinal, eu já vinha observando algumas experiências
de natureza estética e colhendo registros e anotações de campo, mesmo sem ter
conhecimento da importância que estes poderiam proporcionar-me como material de
pesquisa acadêmica. Por fim, optei por um trabalho voltado para a área do ensino baseado no
meu trabalho como educadora, malgrado o meu perfil de bacharelanda. Sob o incentivo e
orientação da professora Dra. Sílvia Cordeiro Nassif, a realização do trabalho de conclusão
de curso intitulado “Abordagem Triangular: uma proposta aplicada ao ensino de violino”
possibilitou-me plantar a certeza dos primeiros passos desse caminho.
Após a conclusão do curso de graduação fui convidada a participar de um grupo de
estudos composto por pedagogos e educadores da área de música. Realizados na Faculdade
de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo sob a orientação da professora que havia
me orientado no trabalho de conclusão de curso, os encontros tinham como objetivo
promover estudos dialógicos e reflexivos em torno de teóricos e pensadores referenciais para
a área de educação. Além de ministrar aulas no departamento de música dessa mesma
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Universidade, a professora Dra. Sílvia Cordeiro Nassif, também atuava como docente no
departamento de Educação (local onde realizávamos as reuniões). Ao longo de quatro anos
os encontros ocorreram sistematicamente, o que me levaram ao conhecimento de autores,
tais como: Pierre Bourdieu (O amor pela arte, 2003, e Escritos de educação, 2001);
Dermeval Saviani (Escola e democracia, 2007); Mikhail Bakhtin (Estética da criação
verbal,2000, e Marxismo e Filosofia da Linguagem, 2002); Eduardo Seincman (Estética da
comunicação verbal, 2008); Bernard Lahire (Homem plural: os determinantes da ação,
2002); Donald A. Schön (Formar professores como profissionais reflexivos, 1992); Antonio
Zabala (A prática educativa: como ensinar, 1998); Carlos Rodrigues Brandão (Educação,
1987); Luigi Pareyson (Os problemas da estética, 1997); Vigotski (A formação social da
mente, 2009 e Imaginação e criação na infância, 2009); João Wanderley Geraldi (A aula
como acontecimento, 2010); mediante essas leituras tive a oportunidade de refletir
profundamente com meus companheiros de pesquisa sobre metodologias, conceitos e
possibilidades educativas a partir de cada um desses autores. Nesses encontros,
compartilhávamos muitas das nossas experiências positivas e dificuldades encontradas no
dia-a-dia em sala de aula, bem como projetos pessoais e anseios acadêmicos. Foi ao lado
desses amigos e parceiros de pesquisa que meu trabalho ganhou forças e profundidade
acadêmica.
A partir do contexto universitário, entre ensaios e concertos da orquestra, aulas em
projetos sociais, escolas da rede básica de ensino, escolas de curso livre, conservatórios de
música, dentre todos os alunos particulares que chegavam até mim, fui aos poucos
construindo também ao lado de amigos e professores as bases desta pesquisa. Portanto, a
realização deste trabalho é um ato de tentar compartilhar entre os educadores que trabalham
com arte, especificamente educadores musicais, reflexões sobre estética e educação musical
homenageando também meus queridos alunos em todos esses anos de experiências estéticas
compartilhadas; exprimo aqui a minha honra e gratidão aos pais e demais responsáveis que
acompanharam e acreditaram no meu trabalho ao longo dessa jornada.
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Problemáticas estéticas
Tomo como ponto de partida as reflexões estéticas levantadas por Gabriel Perissé que
atinam diretamente com a proposta desta dissertação, com destaque para algumas que
impulsionaram a elaboração deste trabalho: “A interpretação de obras de arte contribui para o
nosso aperfeiçoamento ético? Ajuda-nos a repensar nossa maneira de viver e conviver? Pode
nos fazer dimensionar o quanto é perigoso ser livre e saber que o somos? Pode ser, em
resumo uma interpretação educadora?” (PERISSÉ, 2009, p.36). Desde o momento em que
me deparei com indagações dessa natureza enquanto profissional responsável diretamente
pela formação de todos aqueles que chegavam até mim, minhas preocupações pedagógicas se
voltavam para um modelo educativo que pudesse ser transcendente ao processo artístico;
pensava eu: “de que maneira a arte musical pode contribuir de forma significativa aos meus
alunos para além do fazer musical?”. A partir do contato com a produção literária de Luigi
Pareyson pude encontrar um caminho possível para conduzir minhas reflexões tanto como
pesquisadora, como educadora musical.
Outra questão que me fez refletir sobre a necessidade de um pensamento que pudesse
conectar estética e educação musical diz respeito à afirmação da autora Lia Tomás:
no conjunto do ensino da Estética, é muito raro encontrar autores que
examinem os conceitos no campo da música, pois de modo geral é nas Artes
Plásticas que essas investigações são realizadas. A consequência deste fato,
caso senão seja o total desconhecimento sobre o que seja a Estética Musical,
é um conjunto de ideias errôneas ou mesmo a desconfiança de que seja
possível haver alguma discussão estética com relação à Música (TOMAS,
2005, p.7).
Ao levantar questões em torno da estética musical a autora procura revelar certa
incipiência no estudo desta disciplina, principalmente quando a estética da música é
comparada com a das outras artes. De antemão, trago esta observação para elucidar a escolha
do presente tema: se uma estética da música tomada como disciplina que pode proporcionar
uma análise mais geral (em âmbito filosófico) dos fenômenos musicais esbarra nesta
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incipiência, que problemas então poderão ser encontrados quando se observa a necessidade de
propostas pedagógicas fundamentadas na estética no âmbito da educação musical, apenas um
dos muitos braços da ciência musical?
Com base nos relatos de experiência em diferentes contextos educativos que se
prestaram a esta pesquisa como objeto de estudo e de verificação in loco, é possível observar
as contribuições que trazem atividades que contemplam a criação musical, a prática de
execução e de interpretação como proposta educativa voltada para o aperfeiçoamento ético,
para a reflexão sobre a dinâmica do viver e do conviver; considerando também os atos de
responsabilidade e respeito entre os pares no convívio em sociedade. Nesse sentido, acredito
que uma proposta estética que se presta a reflexões sobre arte passível também dessas
considerações se constitui como um veículo estético-educativo. Assim como Luigi Pareyson
pôde colher e perscrutar as delicadezas e as complicações que envolvem o ato criador através
de sua convivência com artistas, críticos e apreciadores de arte, penso também que através
dessa mesma abordagem o educador musical possa além de apreciar as belezas que há no
percurso da inventividade, observar também as marcas pessoais que são impressas no fazer de
cada um dos seus alunos.
Isto posto, objetivo com este trabalho examinar e refletir a partir da teoria da
formatividade os problemas estéticos inerentes ao processo de invenção e produção artística
em práticas educativas que vão desde o insight da composição até o complexo campo da
leitura da obra de arte, de modo que se possa através dessas observações e reflexões olhar em
profundidade as grandezas decorrentes desse fazer, desvelando também o humano por trás de
cada ato criativo e realizativo; refletir sobre a diversidade humana por meio de atividades
artísticas com o intuito de instaurar entre os sujeitos respeito e valores pautados numa ética
íntegra e solidária; demonstrar de que forma a teoria da formatividade pode contribuir
enquanto proposta educativa voltada para a formação do ser como um todo; difundir um modo
de operar o pensamento voltado para as práticas educativas, visando à conscientização de
professores e alunos da complexa e operante elaboração do pensar e do fazer enquanto
inventores de arte e de suas próprias vidas.
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Com base na revisão bibliográfica2 realizada como etapa inicial desta pesquisa, do
ponto de vista de uma educação estética, especificamente, sob a ótica da teoria da
formatividade, pude constatar que o campo da educação musical carece de uma filosofia
profunda e abrangente em torno dos princípios que substanciam o percurso da produção e da
inventividade artística no contexto escolar. A revisão bibliográfica consiste num procedimento
acadêmico complementar a todo tipo de pesquisa e como etapa imprescindível para a
realização desta dissertação de mestrado o intuito dessa revisão esteve centrado na busca por
propostas pedagógicas estético-educativas à luz da filosofia pareysoniana, especificamente,
ancoradas em sua teoria da formatividade. Justifico, portanto, a importância desta pesquisa
diante da necessidade de modelos educacionais estético-filosóficos que residam no campo da
educação musical, possibilitando um olhar abrangente e significativo voltado para o processo
de invenção e produção artística dos nossos alunos em diferentes contextos educativos.
De acordo com o panorama de publicações consultadas na etapa de revisão
bibliográfica, pude verificar também a pregnância estética oriunda da concepção idealista
crociana como preceito filosófico que há em muitas pesquisas em educação musical,
fomentando como experiência estética apenas uma visão contemplativa, sensitiva e expressiva
da arte. Embora Pareyson considere legitimamente os princípios fundantes desse pensamento,
aponta na concepção estética crociana determinada carência especulativa em torno do percurso
complexo e operantemente humano do fazer artístico. Em vista disso, fazem-se necessárias
intervenções reflexivas sobre estética e educação musical - enquanto processo de invenção e
produção artística - seja em projetos sociais, escolas de nível técnico ou cursos livres de
música, considerando atividades que contemplem o exercício de criação, de execução, de
apreciação, entre outros, tanto no âmbito do ensino individual como no ensino coletivo.
Portanto, é importante ressaltar mais uma vez a necessidade de compartilhar possibilidades
reflexivas em torno dos fenômenos que precedem a arte enquanto matéria formante e formada.
Não pretendo com esta proposta desqualificar qualquer outro modo de apropriação
estética, no entanto, difundir um pensamento conscientizador e reflexivo do complexo e
2Como orientação da presente investigação, tomei como fonte de revisão bibliográfica revistas brasileiras que
contemplam artigos científicos da área de educação musical, são elas: Revista e anais da ABEM e revista OPUS.
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aventuroso itinerário pelo qual percorre a obra nas mãos dos nossos alunos antes de ser
matéria formada, apresentando suas contribuições num plano educativo transcendente à
própria produção artística.
Friso também que, o intuito do trabalho, embora dialogue com os pressupostos
canônicos da arte, não consiste em estabelecer definições para obras que sejam ou não arte,
muito menos conferir o título de arte com “A” maiúsculo digno de galerias, museus ou
concertos destinados a salas de espetáculo ao trabalho que é realizado em sala de aula, como
poderiam confrontar os críticos de arte da área3. Aproprio-me do conceito de arte no sentido
de que o ato de formar por formar, pensar, executar ou apreciar aspectos artísticos faz menção
à tradição grega, fortemente sedimentada na nossa cultura ocidental. Segundo o teórico e
musicólogo Roland Candé,
É na Grécia que aparecerão pela primeira vez, no nível de uma consciência
musical, a ambição de criar e o gosto de escutar. Há milênios a música visava
a eficácia; religiosa, mágica, terapêutica, lisonjeira, militar, ele se dirigia aos
deuses e aos reis, às forças invisíveis e visíveis. Entre os gregos, ela se torna
arte, maneira de ser e de pensar, revela sua beleza ao primeiro público
socialmente consciente (CANDÉ, 2001, p.66).
Embora minha pesquisa esteja imersa nos paradigmas oriundos da tradição grega,
tenho como principal objetivo reflexões sobre os fenômenos artísticos que circundam a
processo de invenção a partir de práticas artísticas em diferentes contextos de educação, para
tanto, faço uso de reflexões estéticas com o intuito de compartilhar uma proposta que se
realiza com arte, porém sem a pretensão de se igualar aos moldes canônicos de se fazer arte
com “A” maiúsculo. De acordo com Luigi Pareyson,
3Do ponto de vista do historiador e pesquisador Ernst Gombrich, “nada existe realmente a que se possa dar o
nome de Arte. Existem somente artistas [...] não prejudica ninguém dar o nome de arte a todas essas atividades,
desde que se conserve em mente que tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares
diferentes, e que Arte com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo como
um bicho-papão, como um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer pode
ser excelente ao seu modo, só que não é ‘Arte’. E podemos desconcertar qualquer pessoa que esteja
contemplando com deleite uma tela, declarando que aquilo que ela tanto aprecia não é Arte mas uma coisa muito
diferente” (GOMBRICH, 1999, p.15); ou conforme nos traz o filósofo Dino Formaggio no primeiro parágrafo da
introdução de seus escritos sobre arte e estética, “Arte es todo aquello a que los hombres llaman arte”
(FORMAGGIO, 1976, p.11).
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Precisa-se de “arte” para fazer qualquer coisa, e nada se pode fazer bem
sem “arte”: não existe ocupação humana, por humilde, singela e
insignificante que pareça, que não exija, de quem a ela se dedica, alguma
“arte”, ou seja, a capacidade de inventar o modo de fazer fazendo, e de
fazer sabendo fazer, e em nada se obtém um bom resultado se o fazer não se
faz inventivo além de produtivo, tentativa e figurativo, além de executivo e
realizador (PAREYSON, 1993, p.64).
Proponho, portanto, a formatividade pareysoniana como um modus operandi voltado
para a observação da produção e da invenção artística entre os educadores musicais e seus
educandos em diferentes práticas do ensino de música.
Segundo Lauand, autor do prefácio da obra “Estética e Educação” de Gabriel Perissé,
um dos fatores que limitam o educador a pensar a prática educativa sob a ótica da estética,
justifica-se pelo simples fato do próprio professor não contemplar experiências estéticas
significativas. Vejamos nas palavras do escritor:
É que nós, professores, carecemos de experiências estéticas significativas,
pois nossa formação para a beleza, para a arte, para a criação é deficiente.
Daí que, em consequência, seja deficiente, nesse aspecto, nossa prática
educativa. Um dos méritos deste livro, talvez o seu maior mérito, consiste em
acreditar e levar à crença de que refletir e agir esteticamente são formas de
aperfeiçoar-nos como educadores (LAUAND, cf. PERISSÉ, 2009, p.7).
Em se tratando de um trabalho que contempla estética e educação musical, posso
afirmar que foi por meio não só do meu conhecimento musical, mas também da minha prática
artística que pude colher respectivas reflexões cujo objetivo está para além dos manifestos
poéticos, do domínio exclusivamente técnico e dos saberes sobre arte como mero
conhecimento. Através dessa abordagem esteticamente filosófica, compartilho reflexões que
prezem por um ensino que possa contemplar as belezas de um fazer artístico para além da
própria arte - a vida como um todo -, pois “a atenção ao acontecimento é a atenção ao humano
e a sua complexidade” (GERALDI, 2010, p.100). Se eu tivesse que definir a função da arte no
campo ao qual pertenço tomaria as seguintes palavras do escritor e poeta Ferreira Gullar:
13
no presente como no passado, diria que seu papel mais importante é nos
ajudar a viver, a criar alegria. Parto deste princípio: se a arte existe, é porque
a vida não basta. A arte deve enriquecer nossa vida, e isso não tem a ver com
cubismo, com vídeo ou com instalações. Não me interessa saber que escola
ou tendência uma obra representa, só me importa seu poder de enriquecer
minha existência, de torná-la possível. Imagine dois mendigos conversando
na rua, como vi outro dia na frente da minha casa. Um desses sujeitos sujos e
malvestidos, diz ao outro: “Me respeita!”. E é claro que, debaixo daqueles
trapos sujos, há um ser humano que quer ser respeitado, porque o sentido da
vida quem nos dá é o “outro”, sem ele não existimos. Jean-Paul Sartre dizia
que o inferno são os outros, mas não é verdade, os outros são nossa salvação,
sem eles não somos nada (GULLAR, 2013, p.237[itálico meu]).
O ponto de partida das minhas reflexões e verificações serão fundamentadas
inteiramente na teoria estética da formatividade de Luigi Pareyson, diante disso, reitero: a
proposta deste trabalho consiste em difundir no campo das artes mediante a teoria estética da
formatividade, especificamente na área de educação musical, possibilidades estético-
educativas em torno da produção e da invenção artística - composição, execução,
interpretação, apreciação - em diferentes contextos educativos contribuindo, especialmente,
para vivências educativas transcendentes à própria natureza artística.
Perspectiva Teórica
Elaborada pelo filósofo Luigi Pareyson, a teoria da formatividade resulta de uma
ampla investigação acerca da invenção e da produção humana enquanto processo artístico.
Com ênfase na observação dos problemas filosóficos que permeiam a elaboração da obra em
seu estado formativo o autor desloca o conceito de estética, até então responsável por estudar
os fenômenos sensitivos do belo na arte, instaurando um olhar especulativo às causas artísticas
enquanto matéria formante. Ao invés de se deter aos preceitos estéticos de seu contemporâneo
Benedetto Croce (1866-1952) responsável por exercer grande influência entre artistas e
filósofos do início do século XX na Itália, Luigi Pareyson afirma que “era mais que tempo, na
arte, de pôr ênfase no fazer mais que simplesmente contemplar” (PAREYSON, 1993, p.9). Por
intermédio do conhecimento e dos estudos dessa abordagem filosófica pude encontrar uma
14
maneira de olhar mais consciente e atenta ao processo de invenção e produção artística dos
meus alunos.
Oriunda de uma tradição filosófica do Ottocento, a concepção estética
tradicionalmente em voga entre os estetas italianos no início do século XX consistia numa
abordagem estruturada apriorísticamente em parâmetros sensitivos e expressivos do belo na
arte. Em detrimento dessa percepção idealista de arte que privilegia a visão, a estética crociana
ignora qualquer reflexão em torno do aspecto fabril da obra, voltando-se apenas para seu
estado macro, isto é, sua concretude acabada. Ao se opor a essa abordagem, Luigi Pareyson
inaugura a estética da arte como forma, concebendo-a como “organismo, fisicidade formada,
dotada de vida autônoma, harmonicamente dimensionada e regida por leis próprias; e a um
conceito de expressão, opõe o de produção, acção [sic.] formante” (ECO, 1972, p.14), no
entanto, não deixa de considerar a arte também como um meio de expressão, se ocupando em
apresentar três definições tradicionais que compõem a sua natureza, são elas: a arte enquanto
fazer, enquanto conhecer e exprimir. Apresentarei essas definições com maiores detalhes no
capítulo seguinte.
Retomando ao aspecto impessoal e sensível determinante na estética crociana, a
teoria estética da formatividade se opõe precisamente por seu caráter pessoalista e dialógico.
O conceito de pessoalidade que remete o autor e a dialogicidade que aqui proponho, dizem
respeito à essência do operar humano que se caracteriza por sua singularidade em confluência
com seu constante desenvolvimento social e cultural. Para exemplificar essa concepção
pessoalista na estética pareysoniana, abaixo nas palavras do próprio autor destaco a seguinte
afirmação:
Na pessoa se podem encontrar dois aspectos: a totalidade e o
desenvolvimento. Por um lado, com efeito, a pessoa é, cada um de seus
instantes, uma totalidade infinita e definida, fixa em uma forma
singularíssima e inconfundível dotada de uma validade concluída e
reconhecível; e, por outro, é um variar contínuo, aberto à possibilidade de
contestações e reelaborações, de revisões e enriquecimentos, de repetições de
velhos motivos e novos atos. De um lado a pessoa é a obra que eu faço de
mim mesmo, concluída e definida e a cada instante, e de outro, é a obra de
desenvolvimento, aberta e exigindo sempre novos atos e novos
desenvolvimentos (PAREYSON, 1993, p.176[itálico meu]).
15
Discorrerei sobre o conceito de pessoalidade pareysoniano mais adiante, mas, por
hora, é importante compreender que, no bojo desse conceito há de se considerar os fenômenos
sociais que substanciam o fazer daquele que produz a obra, pois de acordo com Luigi
Pareyson,
A obra de arte tem como conteúdo a pessoa do artista, não no sentido de
tomá-la como seu objeto próprio, fazendo dela o seu “tema” ou assunto ou
argumento, mas no sentido de que o “modo” como esta foi tomada é o modo
próprio de quem tem aquela determinada e irrepetível espiritualidade: entre a
espiritualidade do artista e seu modo de formar existe um vínculo tão estreito
e uma correspondência tão precisa, que um dos dois termos não pode
substituir sem o outro, e variar um significa necessariamente variar também o
outro (PAREYSON, 1993, p.31).
Em oposição aos parâmetros crocianos, Pareyson difunde uma filosofia voltada para
o fazer e ressalta dentre vários outros problemas deste aventuroso percurso inventivo a
atividade do sujeito dotado de possibilidades imaginativas e criativas, responsáveis pelo fôlego
do ato de criar, enfatizando, pois, que a pessoalidade na atividade artística não pode ser
ignorada, primeiro porque o caráter pessoalista “é inerente a toda atividade humana em geral”
(PAREYSON, 2001, p.106) e em segundo, porque:
se refere à arte como atividade formativa, isto é, inventiva, original, criadora
e consiste numa presença, ao mesmo tempo tríplice e única, da pessoa na
arte: como energia formante, como modo de formar, como obra formada.
Colocada sob o signo da arte, a pessoa se torna vontade e iniciativa de arte,
assume inteiramente uma direção artística, traz, de per si, uma vocação
formal, torna-se uma carga de energia formante (PAREYSON, 1997,
p.107[itálico do autor]).
Considerados sob a perspectiva de uma estética especulativa e reconhecedora do fazer
artístico, a filosofia pareysoniana lida com o conceito de formatividade também como um
fenômeno presente em toda operosidade humana, para tanto, postula cuidadosamente as
diferenças que caracterizam o fazer artístico de um fazer típico do cotidiano. Umberto Eco em
sua obra “A definição de arte”, reflete sobre a estética da formatividade pareysoniana
16
descrevendo de maneira objetiva o aspecto essencial que difere a formatividade artística de
qualquer outra atividade “comum”. Vejamos nas palavras do autor:
Dada pois, a presença conjunta de actividades [sic passim] na pessoa que age
inteiramente, o que distingue a arte das outras iniciativas pessoais é o facto
[sic] de naquela todas as actividades da pessoa terem uma intenção
puramente formativa: “Na arte, esta formatividade, que investe toda a vida
espiritual, e torna possível todas as outras actividades específicas, especifica-
se por sua vez, acentua-se numa preponderância que faz depender de si todas
as outras actividades, apresenta uma tendência autônoma... Na arte, a pessoa
forma simplesmente por formar, e pensa e age para formar e poder formar”
(ECO, 1972, p.16, aspas do autor).
Diante da reflexão trazida pelo autor, na arte todo o processo de elaboração constitui-
se como intento de puro êxito; é no diálogo com a matéria que tanto autor como o intérprete
interagem com as leis ditadas por ela e que nascem conforme as necessidades reclamadas por
aqueles que a confrontam, portanto, é na implícita dialogicidade desse processo inventivo que
a formatividade se define num tal fazer que, enquanto faz inventa o modo de fazer. Essa
afirmação, diga-se de passagem, sintetiza a presente teoria estética. Ela também nos convida a
refletir sobre o fazer que se faz no próprio ato do fazer em diferentes situações da vida, por
essa razão, tomo-a como um pensamento estético-educativo passível de ser revisitado no
campo da educação musical, pois conceber as práticas educativas também como
acontecimentos formativos “é eleger o fluxo do movimento como inspiração, rejeitando a
permanência do mesmo e a fixidez mórbida do passado” (GERALDI, 2010, p.100).
Em se tratando da operosidade formativa nas produções do cotidiano (utensílios e
artefatos), é importante ressaltar que ela também se caracteriza por esse tal fazer que se
reinventa fazendo, porém se constitui como trabalho realizado intencionalmente para cumprir
uma função e o resultado já é sabido de antemão. Assim sendo, é possível afirmar que uma
produção não-artística é aquela cujo intento formativo é suprimido. De acordo com Pareyson,
“a arte propriamente dita é a especificação da formatividade, exercida, não mais tendo em
vista outros fins, mas por si mesma” (1997 p.32-33). Propus-me a destacar no gráfico a seguir
algumas considerações relevantes ao leitor quanto a essa problemática. Ao refletir sobre os
17
aspectos que se assemelham enquanto produção artística e produção do cotidiano, Pareyson
apresenta as seguintes observações:
De acordo com Pareyso
No processo artístico...
fazemos com arte;
há formatividade;
nada se sabe, e só resta esperar o resultado atuando e fazendo (PAREYSON, 1993, p.63).
a obra satisfaz uma legalidade e a uma finalidade instaurada por ela mesma.
o modo como se deve fazer a obra é apenas o único modo em que ela mesma, que tem que ser inventada e ao mesmo tempo feita, se deixe fazer (PAREYSON, 1993, p.67).
Nas demais operosidades humanas...
também podemos realizar com arte;
também pode haver formatividade;
o resultado obtido é sabido de antemão, conforme certas leis e certos fins;
obra satisfaz a uma legalidade e a uma finalidade imposta pela atividade que nela se concretiza.
o único modo em que a obra se deixa fazer é precisamente aquele em que, conforme as leis da atividade exercida, se deve fazê-la (PAREYSON, 1993, p.67).
18
Vejamos outro excerto a esse respeito:
Entre a arte assim especificada e a arte que se estende a toda atividade do
homem não há um abismo qualitativo ou uma solução de continuidade: há
antes, uma passagem gradual que, dos primeiros esboços oferecidos por
aquele tanto de inventividade que é exigido pela atividade mais regulada e
uniforme, alcança as mais altas e desinteressadas realizações da arte [...] A
arte, verdadeira e propriamente dita, não teria mais lugar se toda a
operosidade humana não tivesse já um caráter “artístico”, que ela prolonga,
aprimora e exalta (PAREYSON, 1997, p.33).
Considerando os aspectos que ao mesmo tempo distinguem e compõem a arte
especificada e a produção artística nas demais atividades humanas, conforme elucida o autor,
lanço minhas observações filosóficas para também refletir sobre a própria formatividade como
um instrumento educativo e conscientizador dos problemas estéticos presentes nas práticas
musicais, fazendo uso também desta observação para instaurar um olhar atento às
possibilidades inventivas do humano para além da arte.
O ato operativo de cada ser humano resulta em diversos tipos de ações e cada uma
dessas ações, abstratas ou concretas, traz consigo marcas que desvelam por alguns instantes o
auditório social do sujeito; por alguns instantes porque o viver de cada um pressupõe um
contínuo e inacabável processo de formação, até que este se finde quando o fôlego da vida é
esvaído, mas enquanto há fôlego, há processo de criação, há formatividade e novas formas de
produção; sua capacidade criadora é o que nutre sua condição histórica e social. De acordo
com o autor:
O operar da pessoa é plasmador de formas. Com efeito, se a pessoa é uma
totalidade infinita mas definida, cada ato seu tende por sua vez a concluir-se
em obras por sua vez também definidas e acabadas, que vivem vida própria e
por sua própria conta podem desenvolver-se e gerar novos desenvolvimentos
e suscitar novos avanços [...] Justamente por ser a pessoa autor-obra, e
portanto forma, justamente por isso as obras que são o resultado do seu
operar são por sua vez formas, acabadas, singulares, exemplares
(PAREYSON, 1993, p.177).
19
Diante disso, é possível afirmar que, tanto na dimensão artística como nas demais
operosidades do cotidiano, o processo de formatividade consiste numa conditio perene do
sujeito que vive, e é por essa razão que proponho um olhar cuidadoso ao fazer dos nossos
alunos que todos os dias produzem mediante o filtro das nossas lentes como educadores
musicais.
Ao examinar as possibilidades do uso da teoria estética da formatividade como
instrumento filosófico investigativo da produção e invenção artística realizada por jovens e
crianças em diferentes espaços educativos, deparei-me com a necessidade de uma perspectiva
científica histórico-social que pudesse amparar a presente abordagem estética, considerando a
complexa rede historicista que compõe o auditório social de todos aqueles que vivenciam uma
experiência estética, cuja produção emerge de suas bagagens simbólicas. Assim sendo, em se
tratando de uma proposta teórica de cunho fenomenológico tomarei cuidado para não incorrer
numa reflexão teórica apressada e eclética, reservando novos diálogos em torno dessa
abordagem para uma próxima etapa acadêmica, de modo a complementar as reflexões
pareysonianas a outras fontes teóricas de cunho histórico-social; por hora, as considerações
que forem levantadas nesta dissertação e que necessitem de uma epistemologia do ser
enquanto indivíduo social serão mediadas pelas próprias reflexões do autor, entre outros
teóricos cujas propostas apresentem diálogos semelhantes4.
De acordo com a experiência estética vivenciada por Luigi Pareyson a formatividade
consiste num “tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer”
(PAREYSON, 1997, p.26). Segundo a ótica pareysoniana o que alimenta o processo formativo
inventivo e produtivo provém da energia formante do sujeito que a realiza, isto é, da sua
4Aos olhares mais apressados, ou mesmo descuidados, a conexão dessa abordagem aos estudos de cunho social
poderia ser questionada devido à divergência histórico-filosófica que há em torno dos extensos estudos entre
estética e sociologia, porém é importante refletir (mesmo que rapidamente) que a segmentação categórica
comumente que se faz entre arte (cultura) e vida, conteúdo e forma, significação e tema, elaboração teórica e
materialidade concreta, ser no mundo e categorização do mundo, repetibilidade e irrepetibilidade não são
possíveis quando consideramos o autor ou todo aquele que se presta à produção ou à invenção como indivíduo
socialmente constituído. Essas deduções poderão ser aprofundadas e explicitadas num período mais longo de
minha pesquisa, podendo resultar na ampliação desta proposta educacional que tem por objetivo levantar novas
reflexões estéticas para o campo de educação musical.
20
possibilidade de criar e imaginar, portanto, a presente teoria estética valoriza e reconhece não
só as marcas pessoais que delineiam qualquer tipo de produção, mas a inteireza socialmente
humana implícita na pessoalidade daquele que faz, tanto no processo inventivo quanto
executivo ou apreciativo, pois “este insuprimível caráter pessoal da arte prolonga-se ainda na
característica comunicabilidade da forma, que é universal somente enquanto pessoal e vice-
versa, porque fala a todos, mas fala a cada um no seu modo” (PAREYSON, 1997, p.108);
assim sendo, é possível afirmar que o conceito de pessoalidade trazido pelo esteta pode ser
compreendido aqui como tudo aquilo que consubstancia a natureza vivente daquele que cria
(ou daquele que executa ou aprecia) em sua relação face ao processo inventivo enquanto ser
social. Verifica-se em seus escritos uma preocupação latente do caráter histórico-social que a
estética não deve ignorar, pois, “Eis aí o mistério da arte: a obra de arte se faz por si mesma, e
no entanto é o artista quem a faz” (PAREYSON, 1993, p.78). Diante dessa afirmação, não se
pode descartar experiências outrora vivenciadas socialmente pelo indivíduo em suas
considerações estéticas, pois são esses acontecimentos histórico-sociais que nutrem e
abastecem a invenção e o percurso formativo daquele que faz. De acordo com Eco,
Só uma filosofia da pessoa está à altura de resolver o problema da unidade e
diversidade das actividades [sic passim], pois só ela explica, com base na
indivisibilidade e na iniciativa da pessoa, por que razão todas as operações
solicitam sempre conjuntamente a especificação de uma actividade e a
concentração de todas as outras: se acção [sic passim] fosse do espírito
absoluto, não existiriam diferenças entre as actividades e todas estariam
reduzidas a uma só (PAREYSON, apud ECO, 1972, p.15).
Outro conceito que possibilita uma interpretação de cunho mais sociológico diz
respeito à unitotalidade da pessoa, conceito esse que se volta para a singularidade humana,
por assim dizer, responsável também pelo resultado ímpar da produção artística.
A necessidade da concentração de todas as atividades em uma operação
específica é garantida pela unitotalidade da pessoa, e esta, como autora da
própria operação, coloca-se nela por inteiro, com todas as suas possibilidades
e atitudes próprias. Só uma filosofia da pessoa tem condições para resolver o
problema da unidade e distinção das atividades, por explicar, com base na
21
indivisibilidade e na iniciativa da pessoa, como é que toda operação exige
sempre simultaneamente a especificação de uma atividade e a concentração
de todas as outras. Se o operar fosse do espírito absoluto, não haveria motivo
para distinção entre as atividades, e todas se reduziriam a uma (PAREYSON,
1993, p.24[itálico meu]).
Em continuidade às reflexões que foram tecidas em torno das considerações sociais
imersas na filosofia pareysoniana, em sua obra "Teoria della formatività" (1993) o autor
declara, além da necessidade de uma estética voltada para a invenção da obra de arte, que sua
teoria não toma como parâmetro uma “definição de arte considerada abstratamente em si
mesma, mas um estudo do homem enquanto autor da arte e no ato de fazer arte” (PAREYSON,
1993, p.11). Faço uso de suas palavras na citação abaixo para ressaltar outra afirmação
significativa em torno dessa temática:
a arte pode ser, ela mesma fundadora de socialidade. Não esqueçamos aqui o
quanto a arte enobrece e eleva o ânimo e os costumes, a ponto de ser
considerada, na sua pura qualidade de arte, como condição indispensável de
civilização e fator importantíssimo da educação [...] Além disso, a arte tem
um caráter eminentemente comunicativo [...] Ainda, a arte realiza o mais
difícil conceito de socialidade, porque ela fala a todos, mas a cada um de seu
modo, e assim assegura uma universalidade através da individualidade e
institui uma comunidade através da singularidade [...] Que a arte é fundadora
de socialidade fica testemunhado pelo fato de que ela não pode passar sem o
público, não tanto no sentido de que dele dependa ou tire sua norma e
conselho, mas antes no sentido de que o prevê e o invoca, o suscita e o arrasta
(PAREYSON, 1997, p.122[itálico do autor]).
Humberto Eco em sua coletânea de ensaios intitulada “A definição de arte” é
responsável por tecer em seus primeiros escritos sobre estética, considerações reflexivas sobre
a filosofia pareysoniana que atinam para uma abertura interpretativa mais sociológica do
fenômeno formativo. Observe:
Assim, aquele que se volta para esta estética para nela encontrar a descrição
dos processos de formação e a interpretação das formas no âmbito da
intersubjetividade humana, encontra-se (por assim dizer) livre do
compromisso metafísico, que o autor assume pessoalmente a um nível
ulterior da sua investigação; e este facto [sic] explica a influência exercida
pela estética de Pareyson, inclusivamente naqueles que apenas estavam
22
interessados numa teoria das formas vistas como produtos de cultura. Quer
dizer: esta estética que, nos seus limites, põe por conta própria o problema da
fundamentação “natural” de uma experiência “cultural”, funciona também
como guia para quem quiser mover-se simplesmente ao nível das relações
culturais (ECO, 1972, p.27).
O autor ressalta também que,
Perante as mais actualizadas [sic] tendências sociológicas (que consideram o
dado sociológico não como já como categoria de juízo estético, mas como
antecedente útil à análise da obra, inadequado para fundamentar o valor
estético, que é valor da organicidade), a doutrina pareysoniana da
interpretação permite ao crítico que procure concentrar a sua atenção nos
valores socioambientais da obra uma abordagem do âmbito histórico
situacional através da personalidade do formador (e, portanto, através dos
valores orgânicos da obra): e servir-se por outro lado, dos dados sociológicos
para explicar razões, características e resultados da obra, observando sempre
o modo como os dados preliminares se forem tornando constitutivos da obra
através da acção [sic] formativa que os transformou em seus aspectos
internos (ECO, 1972, p.30).
Embora Pareyson apresente a possibilidade de sua teoria ser lida a partir de outras
áreas do conhecimento, o próprio autor salienta que a essência dialógica aberta e especulativa
de sua teoria deve ser conduzida sempre por uma determinada experiência seguida da reflexão
sobre o fenômeno, por essa razão, me envolvi com os estudos filosóficos de Pareyson
considerando tanto a minha experiência artística, quanto a dos meus alunos como objeto de
estudo e de verificação dessa abordagem estético-educativa. Segundo as considerações de Eco:
nesta oscilação contínua entre uma fenomenologia da formatividade humana
e a fundação metafísica desta mesma actividade [sic], o pensamento estético
de Pareyson permite ao leitor apropriações pessoais que não o traem mesmo
quando lhe revelam um único ponto de vista: o que equivale a dizer que
também a doutrina estética aqui proposta é uma forma que se apresenta como
ponto de partida de interpretações complementares e exaustivas ao mesmo
tempo (ECO, 1972,1976, p.27).
Assim sendo, por meio dos relatos de experiência ilustrarei face ao processo de
invenção e produção artística dos alunos, as vicissitudes imagéticas e criadoras do sujeito no
23
diálogo com a matéria, bem como no diálogo que se prolonga enquanto sujeito que se propõe
ao exercício interpretativo da obra.
As observações pareysonianas sobre a produção da obra enquanto matéria formante
pontuam aspectos operativos que vão desde o insight5 até o complexo campo da interpretação.
A experiência estética obtida pelo autor ao lado de artistas durante anos o levou a refletir sobre
o complexo e singular processo de inventividade que dá origem à obra de arte, através das
mãos de sujeitos dotados de um viver único e repleto de possibilidades criadoras.
Malgrado as constantes apropriações da estética pareysoniana aplicadas ao âmbito de
todas as artes, inclusive da música, principalmente devido à sua originalidade e aplicabilidade
como teoria estética, a minha proposta se concentra na realização de uma apropriação das
reflexões estético-filosóficas intrínsecas ao conceito de formatividade, de modo que, a partir
das distinções e conceitos filosóficos elaborados por Pareyson, se possa propor um olhar mais
cuidadoso e atento voltado para o percurso inventivo da composição, execução e interpretação
que diariamente realizam os nossos alunos como prática educativa. Em outras palavras, trata-
se de uma busca para, a partir da teoria da formatividade, o lançamento de reflexões cujo
alcance se estenda da obra ao sujeito, ou mesmo da obra ao universo circundante da obra, o
que inclui o processo de ensino da arte, mais especificamente da música.
Segundo está previsto na teoria pareysoniana a essência do processo de criação é
composta pela união inseparável entre produção e invenção; é nesse ínterim que precede a
obra acabada que se encontra o fenômeno da formatividade, ou seja, “‘formar’ significa aqui
‘fazer’ inventando ao mesmo tempo ‘o modo de fazer’, ou seja, ‘realizar’ só procedendo por
ensaio em direção ao resultado e produzindo deste modo obras que são ‘formas’”
(PAREYSON, 1993, p.12). Esse tal fazer que se desenvolve fazendo a cada momento do
fazer, se estende a toda operosidade humana; assim sendo, é possível afirmar que além de
tornar visíveis as nuances da produção e da invenção artística tanto na composição como na
execução e na interpretação, o conceito de formatividade reflete também a inexaurível
5 De acordo com a doutrina pareysoniana, o insight se constitui “antes do advento da forma, algo existe que a
anuncia e faz pressagiar, que tende a ela e cria a expectativa em torno dela, que dirige e orienta o artista em sua
produção. E esse é o ‘insight’ no qual a forma, que também só existirá quando o processo terminar, já atua e age
guiando aquele mesmo processo de onde emergirá na sua totalidade” (PAREYSON, 1993, p.73).
24
capacidade do sujeito de transformar; uma conditio daquele que produz, resultando na
singularidade da atividade artística. De acordo com Pareyson, “a mobilidade indefinida e a
histórica desenvolvibilidade do homem não passam de plasticidade, que tende a plasmar-se em
formas e a plasmar formas: mobilidade que é esforço de formação, ímpeto de plasmação, elã
de figuração” (PAREYSON, 1993, p.177).
A partir da citação acima verifica-se que a estética pareysoniana, especificamente, a
teoria da formatividade aqui proposta, é passível de ser compreendida e associada ao contexto
de práticas educativas, entre educadores do campo das artes; afinal, esse é o espaço onde nós
educadores nos prestamos atentos às realizações didáticas e ao desenvolvimento do humano.
Através da formatividade é possível que o educador observe, além das experiências estéticas
de seus alunos, experiências de diferentes naturezas vivenciadas outrora pelos mesmos.
O mecanismo que possibilita a criação e que orienta todo o percurso da inventividade
artística se configura como uma atividade humanamente possível tanto entre adultos como
crianças. Em vista disso, penso que, o processo investigativo que deu origem a teoria da
formatividade, também possa ser observado entre jovens e crianças, pois o ato de criar não
existe somente entre os grandes mestres da arte ou somente entre adultos, mas em diferentes
espaços educativos composto por jovens ou crianças.
Isto posto, postulo que a consciência do processo formativo - enquanto processo
presente em toda a operosidade humana - além de proporcionar aos profissionais no campo
das artes uma compreensão mais atenta e zelosa às marcas históricas que se desvelam no fazer
artístico dos alunos e de seu próprio, se prestam também a uma observação educativa
integrada aos fenômenos de invenção e de construção da própria vida.
Processos metodológicos
O processo metodológico desta pesquisa implica numa observação filosófica em
torno dos processos de produção e invenção artística. A atividade de observação se deu
mediante a minha prática e atuação como educadora musical em diferentes contextos
educativos. É importante ressaltar que os contextos educativos de onde trago as reflexões não
25
serão nomeados. As descrições físicas e estruturais de cada cenário se configuram apenas
como pano de fundo para as respectivas atividades que serão apresentadas ao leitor como
exemplo de uma abordagem estética de ensino.
Oriunda das experiências estéticas vivenciadas por Luigi Pareyson a teoria da
formatividade nasceu do seu contato direto com artistas em pleno ato criador. Essa
investigação foi decisiva para que o autor pudesse compreender o itinerário do processo
inventivo caracterizado por um fazer que se reinventa a cada instante em que se faz, por ele
assim definido.
O percurso metodológico dessas observações estéticas baseia-se na própria
abordagem fenomenológica e especulativa do autor, considerando, pois que:
uma estética, tratada a nível puramente especulativo, pretende, antes de mais,
abrir uma possibilidade de justificação para cada tipo de abordagem crítica,
através de uma fenomenologia das estruturas formais e da definição do seu
campo de possibilidades (ECO, 1972, p.32).
Sob a fundamentação dos pressupostos filosóficos acima, minhas considerações
estéticas foram verificadas e extraídas a partir de atividades educacionais que venho
desenvolvendo como educadora musical em diferentes espaços do ensino de música. A coleta
de dados inclui materiais resultantes de produção literária, composição musical, ferramentas
didáticas e reflexões dos próprios alunos. Algumas atividades que contemplam produções
didáticas foram publicadas anteriormente aos escritos desta dissertação com o objetivo não só
da publicação em si, mas também com o intuito de divulgação da presente pesquisa.
Os apontamentos de cada atividade, bem como a catalogação e preservação do
material foram realizados por mim com o apoio e orientação de outros parceiros de trabalho.
Para compor os cenários ilustrativos desta pesquisa selecionei apenas quatro relatos de
experiência que julguei serem fortes exemplos de uma proposta de educação estética. Acredito
que o processo de investigação e observação in loco imbuído das considerações pareysonianas
somados à minha experiência como educadora e musicista, proporcionaram às minhas
indagações e problemáticas acadêmicas não resultados estanques, mas uma maior capacidade
especulativa acerca dos problemas que circundam o processo inventivo e realizativo do fazer
26
enquanto atividade que se presta a serviço da educação. Penso também que, a todo educador
que lida com o ensino de arte seja possível a apropriação dessa mesma premissa estética como
ferramenta investigativa do processo de invenção e produção que diariamente vivencia em sala
de aula com seus alunos.
Como fundamentação metodológica desta pesquisa, apropriar-me-ei dos conceitos
filosóficos expressivo e revelativo delineados pelo próprio autor em sua obra “Verdade e
interpretação” (2005) que contempla uma coletânea de ensaios escritos periodicamente em
atas entre 1965 e 1970. Conforme os referidos conceitos como ferramenta metodológica e
investigativa deste trabalho, considerei os aspectos descritivos e normativos de espaço e lugar
como elementos históricos e de contextualização, configurando-se como um fator expressivo e
temporal de cada evento. O conceito revelativo sustenta um modus operandi e investigativo
frente às considerações e interpretações que colhi mediante os acontecimentos, ou seja, um
procedimento especulativo imerso na dinâmica e inconclusa rede das relações sociais. É
importante frisar que estes dois modelos de observação, segundo Pareyson, “não se trata de
dois métodos exclusivos que se disputam toda a história da filosofia, mas de dois métodos
coexistentes que têm a mesma tarefa de dividi-la entre si” (PAREYSON, 2005, p.8). A
abordagem metodológica de caráter especulativo deste trabalho compartilha da
inseparabilidade entre revelativo e expressivo, pois “o aspecto revelativo não pode passar sem
o expressivo histórico, porque da verdade não se dá manifestação objetiva, mas trata-se
sempre de colhê-la dentro de uma perspectiva histórica, isto é, de uma interpretação pessoal”
(PAREYSON, 2005, p.12).
Embora os relatos de experiência vivenciados se constituam apenas como fragmentos
ilustrativos de uma proposta de educação estética, almejo que os elementos históricos possam
não embaçar as lentes do leitor para o mais importante deste trabalho que consiste nos
fenômenos revelativos, fazendo menção às observações inventivas e realizativas do processo
artístico em diferentes contextos de aprendizagem; que tais considerações historicistas possam
também ser compreendidas apenas como um cenário para a apresentação dos fenômenos
revelativos do humano face ao processo de invenção, pois conforme apresenta Pareyson,
27
A situação histórica, longe de ser um obstáculo para o conhecimento da
verdade, como se pudesse deformá-la, historicizando-a e multiplicando-a, é o
único veículo para ela, conquanto se saiba recuperar a sua originária abertura
ontológica (PAREYSON, 2005, p.10).
Creio que pesquisas em educação musical cujo objeto de análise apresente aspectos
práticos (pesquisas de campo) e teóricos, não sejam possíveis sem as duas perspectivas, pois
“o pensamento revelativo sempre é, ao mesmo tempo, expressivo, porque a verdade só se
oferece no interior de cada perspectiva singular” (PAREYSON, 2005, p.10). Considerando,
pois, a prática educativa como um fenômeno socialmente expressivo e revelativo, através dos
relatos destacarei situações que possam revelar a individualidade de cada pensamento e seus
desdobramentos na dialogicidade do trabalho coletivo, pois se “por um lado todos dizem a
mesma coisa”, por outro, “cada um diz uma única coisa [...] do modo que solum é seu”
(PAREYSON, 2005, p.11).
É importante ressaltar também que, embora a pesquisa acadêmico-científica se
proponha a realizar estudos imparciais, qualquer observação especulativa traz à tona as marcas
do olhar daquele que observa. De acordo com as reflexões levantadas por Eduardo Seincman
em sua obra “Estética da Comunicação Musical”,
Não existe neutralidade. Qualquer que seja nosso papel - observador,
analista, crítico, ouvinte, intérprete ou criador -, somos parte integrante do
fenômeno da comunicação musical. Debruçarmo-nos, pois, a posteriori,
sobre os acontecimentos é uma tentativa de trazer à luz um processo
comunicacional que já se deu, de fato, na experiência estética, é efetuar, no
campo da estética, o que Karl Popper, no campo da filosofia, chamou de
reflexão à segunda potência: refletir a reflexão, interpretar a interpretação,
através do que poderemos analiticamente com maior consciência ampliando
nossa capacidade de criar, de efetuar sinapses e de aprofundar nossos
horizontes (SEINCMAN, 2008, p.9).
Assim sendo, do ponto de vista histórico da minha trajetória como educadora
musical, concebo este trabalho como uma produção expressiva, no entanto, mediante as
reflexões estéticas que serão aqui apresentadas, espero que este possa também, apesar do filtro
das minhas lentes, se prestar como um trabalho revelativo a todos os leitores. Em outras
28
palavras, considero esta dissertação como um trabalho aberto e ao mesmo tempo fechado.
Aberto por suas possibilidades interpretativas passíveis de gerar outras reflexões estéticas em
educação musical e fechado devido à pequena mostra de exemplos que substanciam a proposta
de estética e educação específica deste trabalho.
Através dos elementos históricos trazidos em cada relato, bem como a “verdade”
revelativa que trago em cada uma das minhas reflexões, compartilho com os leitores mostras
dessa abordagem prático-educativa pautada pelo viés estético, pois nas palavras de Luigi
Pareyson “a verdade reside mais como fonte e origem do que como objeto de descoberta”
(2005, p.11).
A partir da obra “Teoria della formatività” de Luigi Pareyson que se constitui como
teoria central desta pesquisa, destacarei três categorias com o intuito de organizar os conceitos
e problemas de natureza estética que circundam o arcabouço filosófico do autor. As categorias
foram dispostas da seguinte maneira:
Cada uma delas é composta por diferentes problemas filosóficos abstratos que serão
tomados no constructo dos capítulos. Apesar da organização categórica que proponho os
problemas estéticos dialogarão com os relatos de forma especulativa e não sistemática.
Antes de desenvolver as categorias ao longo do texto, no capítulo primeiro
apresentarei aos leitores que pela primeira vez se deparam com filosofia pareysoniana, uma
prévia dos conceitos mais relevantes para a compreensão dessa abordagem estética; são eles: o
caráter especulativo da estética, distinção entre poética, estética e crítica e o problema de
estetismo em suas diversas formas. No decorrer dos capítulos subsequentes retomarei os
O processo de invenção e
produção da obra
A obra de arte enquanto forma
Execução e leitura da obra
29
respectivos conceitos juntamente com os problemas estéticos destacados nos itens da primeira,
segunda e terceira categoria.
Incutida no decorrer dos relatos a primeira categoria contempla o estágio da obra
enquanto matéria formante, isto é, o processo inventivo, assim sendo, destacarei os seguintes
problemas estéticos: o insight como passo inicial da invenção; o diálogo entre autor e matéria,
pontuando os limites da fisicidade do material, bem como o empenho do autor ao tentar dar
forma ao objeto, cujas leis próprias em consonância com o intento humano resultam na
formatividade; o aventuroso ato de tentar, corrigir, exercitar, experimentar em busca do puro
êxito de formar por formar; as relações entre os problemas e limites técnicos e os conteúdos
espirituais que se desvelam nesse percurso; a complexa rede de habilidades herdadas
socialmente que se configuram no discurso musical; o artista versus a biografia, de um lado a
dinâmica diacrônica da vida e de outro uma abordagem sincrônica do artista.
A segunda categoria engloba problemas que deflagram a obra enquanto forma, ou
seja, objeto acabado. Nessa etapa da atividade artística apresento problemas que dizem
respeito às escolas, os estilos, os gêneros, a tradição e a possibilidade da história da arte; a
pessoalidade do artista tal qual se revela na “forma” e que compreendemos por estilo; a
possibilidade da aprendizagem, das normas práticas e da imitação, e seus resultados positivos
e negativos; o confronto entre os problemas dinâmicos da própria realidade versus
historicidade da obra de arte; a divisão e a distinção das artes; a possibilidade das traduções,
transcrições, reduções, reproduções; a multiplicidade das poéticas e dos programas de arte; a
formação do artista através do ensino da técnica, a orientação através das regras e a imitação
de modelos.
A terceira categoria diz respeito ao caráter social e comunicativo da arte. Através dos
relatos apresentarei as possibilidades interpretativas do trabalho artístico; a relação entre
interpretação pessoal e o juízo quanto ao valor artístico; o problema da crítica e da igual
admissibilidade de qualquer método crítico; suas relações com a natureza e com as diversas
atividades do homem, como as relações entre arte e moral; o interesse profundamente humano
suscitado pela arte; a “fidelidade” ou “liberdade” da execução; a execução pública da obra de
arte.
30
Nos gráficos a seguir pode-se conferir de maneira esquemática a temática das três
categorias, bem como os problemas estéticos que abarcam cada uma delas.
Processo de invenção e produção
O complexo e aventuroso itinerário através do qual o
artista, tentando e corrigindo e refazendo,
produz a obra: inspiração, o exercício e a composição.
O diálogo com a matéria e o domínio sobre ela
conseguido justamente através da obediência que ela
reclama.
O processo artístico tal como se desenrola desde o “tema” ou “assunto” até ao
“esboço” e à obra terminada.
Artista versus biografia. Uma relação diacrônica e
sincrônica entre a dinâmica da vida e os fatos históricos.
A relação entre os
problemas técnicos e os conteúdos espirituais.
A formação do artista através do ensino da técnica, a orientação
através das regras e a imitação de modelos.
31
A obra de arte enquanto
forma
O “mundo” do artista tal qual
se revela na “forma”.
A correspondência entre o estilo e a humanidade
histórica e pessoal que aí ganha existência artística e
histórica.
A própria possibilidade da aprendizagem, das normas
práticas e da imitação, e seus resultados positivos e
negativos.
As escolas, os estilos, os gêneros, a tradição, e a
possibilidade da história da arte.
A distinção entre poética e estética e a multiplicidade
das poéticas e dos programas de arte.
A possibilidade das traduções, transcrições, reduções,
reproduções.
32
Execução e leitura da obra (interpretação)
O caráter social e comunicativo da arte.
Suas relações com a natureza e com as diversas atividades do
homem, como as relações entre arte e moral e entre arte e
filosofia.
O interesse profundamente humano suscitado pela arte.
A “fidelidade” ou “liberdade” da execução;
A possibilidade da interpretação da obra artística.
A execução pública da obra de arte.
A relação entre interpretação pessoal e o juízo quanto ao
valor artístico.
O problema da crítica e da igual admissibilidade de qualquer
método crítico; o caráter simultaneamente histórico e
especulativo da estética.
33
As categorias especificadas nas páginas anteriores, bem como aspectos filosóficos
que as compõem, poderão ser observadas de forma concreta e não sistemática a partir dos
relatos de experiência apresentados como objeto de estudo deste trabalho.
Alguns dos relatos que serão abordados neste trabalho consistem em experiências
musicais publicadas outrora em anais de congressos de educação musical. Baseados em
atividades musicais em diferentes contextos educacionais os relatos trazem propostas voltadas
para um modelo de educação estética, pois conforme nos traz Nogueira em seu artigo “Arte e
Experiência Estética: o assombro aproximando crianças e adultos”,
O fato é que não apenas quando entramos em museu ou em uma sala de
concerto estamos em contato com obras de arte; nesses espaços, sem dúvida,
há uma intencionalidade, um desejo formal de se ter uma experiência estética
definida, no entanto, mais do que podemos perceber, estamos imersos em um
caldo cultural em que escolhas estéticas e artísticas se formam e nos formam
a todo momento (NOGUEIRA, 2013, p.120).
Por essa razão, considero cada um dos encontros que tenho com meus alunos como
momentos propícios aos assombros estéticos não só para mim como também para eles.
Devo ressaltar que os nomes que forem aqui mencionados serão fictícios e não haverá
imagem dos alunos ou qualquer de espaço institucional. As figuras que ilustram a abertura de
cada capítulo consistem em "presentes" que recebi dos meus alunos e a adoção desses
desenhos para compor esta dissertação é uma forma de agradecimento e reconhecimento.
O critério de seleção para os quatro cenários educativos foi definido mediante a
relevância do tema e dos materiais. Apropriar-me-ei desses registros para ilustrar os problemas
estético-filosóficos presentes na invenção e na produção artística em diferentes espaços de
aprendizagem, como também compartilhar um modelo prático-educativo pautado numa
abordagem estética.
Cada relato será apresentado como um cenário e a descrição detalhada do espaço
educativo, bem como do trabalho musical desenvolvido constará em cada um dos capítulos
separadamente.
As reflexões estéticas que lançarei a partir das experiências musicais descritas nesses
registros, não possuem o intento de firmar-se objetivamente numa proposta estanque ou numa
34
abordagem única de estética, mas como uma leitura revelativa acerca dos fenômenos
educativos que circundam o processo inventivo em diferentes práticas do ensino artístico.
35
Capítulo 1
Da Filosofia para a Educação Musical
36
37
1. Da Filosofia para a Educação Musical
Por fim, a arte pode ser, ela mesma, fundadora de socialidade. Não
esqueçamos aqui o quanto a arte enobrece e eleva o ânimo e os
costumes, a ponto de ser considerada, na sua pura qualidade de
arte, como condição indispensável de civilização e fator
importantíssimo da educação, porque, livre da feroz rede de
necessidades e dos interesses, dispõe o ânimo para o desinteresse,
para a contemplação, para o reconhecimento, para a atenção, e o
introduz nos altos cumes da vida espiritual (PAREYSON, 2001, p.122).
Embora minha graduação não tenha sido em filosofia, como educadora musical, fiz
uso da concepção estética do filósofo Luigi Pareyson devido à sua ampla reflexão acerca dos
problemas da arte enquanto processo formativo, e principalmente, por ser um tema que diz
respeito aos profissionais que lidam com atividades artísticas. A preocupação e o cuidado com
o trânsito entre as áreas do conhecimento devem ser considerados, mas penso que não deva ser
impedido. O compositor e pesquisador Lucas Galon em sua dissertação de mestrado intitulada
“Nacionalismo, neofolclorismo e neoclassicismo em Villa-Lobos: uma estética dos conceitos”
lida de forma dialética com amplos conceitos tanto do campo da música como da filosofia e
levanta essa problemática com a seguinte indagação:
E, na estética musical, em específico, há ainda outra questão que permanece
aberta: a condição de um músico leitor de filosofia pode ser julgada a priori
inferior àquela de um filósofo ouvinte de música? Em ambos os casos não
haveria sempre um lado mais amador e outro mais profissional em cada um?
(GALON, 2011, p.12 [itálico do autor]).
Embora consciente da minha condição apenas como estudiosa da filosofia
pareysoniana me recuso a abdicar de suas considerações estético-filosóficas enquanto
ferramentas passíveis de contribuições significativas para o campo da educação musical, assim
também como não abdicam tantos outros pesquisadores que se apropriaram e ainda se
apropriam do pensamento de grandes sociólogos, antropólogos ou mesmo autores da
psicologia para investigarem aspectos da área de educação (musical), sem necessariamente
precisarem ser sociólogos ou psicólogos de formação.
38
No que consiste uma educação estética sob a ótica da formatividade? Vejamos: Uma
prática artística e educacional pautada segundo os princípios teóricos da formatividade
pareysoniana, pressupõe um trabalho artístico-pedagógico consciente e valorativo voltado para
o processo inventivo do nascimento do insight até o complexo campo de leitura da obra. A
conscientização dos problemas de ordem estética que permeiam o itinerário pelo qual percorre
os artistas (e também nossos alunos) em seu processo de invenção contribui para um modus
operandi mais humano e sintonizado com a vida. O viver é incerto e o processo artístico
enquanto dinâmica inventiva traz-nos considerações significativas e palpáveis desse evento
operantemente inconcluso. É importante que o educador esteja ciente de que uma proposta
educacional que tome como modelo estético-filosófico ferramentas especulativas como
mecanismo investigativo do processo inventivo acarrete na impossibilidade de qualquer tipo
de controle. Pareyson cita os filósofos Platão e Schelling com o objetivo de reforçar as agruras
do ofício filosófico. Vejamos:
Quando Platão exaltava a beleza do risco, aludia ao fato de que a filosofia
requer audácia e coragem; e é quando, em tempos mais recentes, recorda
Schelling: “Quem verdadeiramente quer filosofar, deve renunciar a toda
esperança, a todo desejo, a toda nostalgia, não deve querer nada nem saber
nada, sentir-se pobre e só, abandonar tudo para ganhar tudo” (PAREYSON,
2005, p.6).
O caminho da educação estética pode se tornar arriscado e perigoso se carecer de uma
orientação estético-filosófica; é preciso ter cautela de forma a não incorrer no risco de uma
proposta vazia e à crédito, pois o maior objetivo desta proposta reside no seu alcance
transcendente à própria arte. Nas palavras do autor Gabriel Perissé,
A arte educa na medida em que, atraindo nossa visão, encantando nossa
audição, agindo sobre nossa imaginação, dialoga com a nossa consciência.
Mais do que nos fazer reagir à melodia, à rima, à composição pictórica, às
cenas do filme, esses estímulos que nos chegam pela arte criam um espaço de
liberdade, de beleza, no qual nos sentimos convidados a agir criativamente
(PERISSÉ, 2009, p.36).
39
Na medida em que os alunos reagem e dialogam com os fenômenos artísticos, na
medida em que descobrem que as dificuldades que lhe aparecem nesse percurso de criação
muitas vezes são da mesma natureza daquelas que um dia fizeram (e fazem) parte do trabalho
de grandes artistas e inventores, a atividade pedagógica toma fôlego mediante a compreensão
que se adquire enquanto atividade humana construída de labor e dedicação.
1.1 Estética pareysoniana: experiência artística e filosofia
Dizer que a prática filosófica ou estética seja um mérito reservado somente aos
estudiosos que dela se debruçam é um equívoco. A disciplina de estética é fruto dos mesmos
princípios que regem a experiência filosófica, assim sendo, se a filosofia pode ser considerada
um caminho possível para amadores, a experiência estética também pode ser creditada a todos
aqueles que dela souberem se apropriar. Para elucidar esse assunto faço uso dos escritos do
filósofo italiano Antonio Gramsci e do próprio Pareyson no intuito de mostrar que tanto a
filosofia como a estética são caminhos possíveis para todos aqueles que souberem conectar
experiência e reflexão sobre a mesma. Vejamos:
É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo
muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma
determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos
profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente
que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características
desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia
que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de
conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente
vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião
popular e, consequentemente, em todo sistema de crenças, superstições,
opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente
se conhece por “folclore” (GRAMSCI, 1999, p.93).
De acordo com Pareyson,
40
Todos se encontram na estética, cada um trazendo, na tarefa comum, a
particular sensibilidade e competência que deriva de sua proveniência pessoal
e mentalidade. A estética torna-se assim um frutífero ponto de encontro, um
campo no qual têm direito de falar os artistas, os críticos, os amadores, os
historiadores, os psicólogos, os sociólogos, os técnicos, os pedagogos, os
filósofos, os metafísicos, com a condição de que todos prestem atenção ao
ponto em que experiência e filosofia se tocam, a experiência para estimular e
verificar a filosofia, e a filosofia para explicar e fundamentar a experiência
(PAREYSON, 1997, p.9-10).
O ponto comum entre filosofia e estética reside na experiência e na verificação
filosófica que consubstancia a experiência, diferindo apenas em seus objetos de estudos. A
estética, por exemplo, tem por objeto de estudo a reflexão em torno dos fenômenos da arte.
Assim sendo, desde que experiência e a reflexão sobre a própria coisa se tocam, ou seja, a
experiência para estimular e verificar a filosofia, e a filosofia para explicar e fundamentar a
experiência é possível afirmar que há experiência filosófica ou estética. Verifica-se então um
processo de inseparabilidade entre experiência e reflexão “e o círculo que entre ambas se
estabelece não é vicioso, mas extremamente fecundo, e condição essencial para a validade do
pensamento filosófico” (PAREYSON, 1993, p.10-11), o que caracteriza esses campos por sua
condição especulativa e aberta a novas considerações. Segundo Pareyson,
A estética se constitui por este duplo apelo ao caráter especulativo da
reflexão filosófica e ao seu vital contato com a experiência. Não é estética
uma reflexão que, não alimentada pela experiência da arte e do belo, se
reduza a mero jogo de palavras, nem aquela experiência de arte ou de beleza
que, não elaborada num plano especulativo, se limita a uma descrição
(PAREYSON, 1993, p.19).
De acordo com esse pensamento, é imprescindível ao educador musical que queira
trilhar seu trabalho pela ótica da estética pareysoniana adotar uma conduta mediada pela
especulação, pois a filosofia assim como a estética “só tem valor quando são o resultado de
uma reflexão sobre a experiência e somente se, quando nascidas precisamente no contato com
a experiência, conseguem fornecer esquemas para interpretá-la e critérios para avaliá-la”
(PAREYSON, 1993, p.10-11). Uma abordagem estético-educativa, segundo as considerações
aqui propostas requer do educador uma prática dialógica conduzida por questionamentos em
41
torno de experiências que contemplem fenômenos artísticos concretos, para que desse contato
possa extrair juntamente com seus alunos diferentes considerações, pois a experiência estética
não reside em experiências unívocas. Para exemplificar melhor esse posicionamento relativo à
pluralidade da experiência estética, é possível tomar como mostra um excerto reflexivo em
torno do processo de interpretação (uma das etapas constituintes do processo de invenção)
que será apresentado cuidadosamente mais adiante; vejamos uma prévia desse assunto.
De fato, a interpretação é o encontro de uma pessoa com uma forma; e se
pensarmos que tanto a pessoa como a forma não são realidades simples, mas
não um infinito encerrado em algo de definido, teremos, de pronto, a ideia do
quanto é positiva a infinidade da interpretação, a ser considerada antes como
inexaurível riqueza do que como o reino da imprecisão e da arbitrariedade
(PAREYSON, 1997, p.225-226[itálico do autor]).
É importante frisar também que, diante dessa abordagem estética como proposta
reflexiva voltada para o trabalho de educação musical, não é possível considerar como
experiência estética práticas educativas artísticas que caiam em determinado círculo de
considerações viciosas. Nesse sentido, perante uma experiência artística coletiva, cabe ao
educador proporcionar um ambiente propício à especulação filosófica, lançando diferentes
questionamentos para que junto com seus alunos possa refletir sobre esse encontro com a arte.
Imbuídos dessa prática dialógica, professores e alunos podem extrair do objeto artístico
aspectos transcendentes ao próprio elemento coisal, por exemplo, tecer reflexões no âmbito do
sujeito que a produziu, pois reitero: o estudo dessa teoria não se trata de uma reflexão aplicada
à “metafísica da arte, mas uma análise da experiência estética: não uma definição da arte
considerada abstratamente em si mesma, mas um estudo do homem enquanto autor da obra e
no ato de fazer arte” (PAREYSON, 1993, p.11).
Em suma, a estética pareysoniana, pressupõe a priori, experiências artísticas somadas
a filosofias especulativas como verificação da própria experiência. Calcado numa experiência
filosófica que funda e verifica a prática do pensamento dos filósofos acerca de diversos
assuntos, o conceito de estética é compreendido pelo autor como um instrumento investigativo
e especulativo não só da produção, mas também da sua fruição. No entanto, para adentrar aos
42
parâmetros que designam a referida filosofia é de fundamental importância compreender
também que, além da experiência ela necessita de um diálogo especulativo com a obra. A
apreciação estética de uma obra de arte, por exemplo, não quer dizer postular qualquer
impressão sobre ela, segundo o autor:
a experiência estética não quer dizer cair um círculo vicioso, pois a estética
parte da experiência integral e esta, se devidamente questionada, há de
mostrar, ela mesma, e destacar no seu imenso âmbito os aspectos ou as
regiões que têm um caráter estético artístico (PAREYSON, 1993, p.20).
Portanto, creio que essa abordagem possa ser não somente um caminho especulativo
e significativo para apreciar as nuances da invenção e da produção artística em diferentes
situações do ensino de música, mas também um mecanismo de investigação para compreender
as relações e aquisições simbólicas do humano enquanto produz, pois, de acordo com
Pareyson, na formatividade há de se considerar a “dinâmica da obra de arte no seu emergir de
um humus histórico, e nas suas ligações com outras em um contexto histórico do qual se pode,
certamente e com utilidade, traçar a linha” (PAREYSON, 1993, p.58). Para corroborar a
presente justificativa de cunho sociológico incutida nesta teoria, e que nos incita a olhar o
processo formativo pelo viés valorativo da atuação do sujeito ao dar forma à obra de arte
segundo suas potencialidades humanas, apresento a seguinte reflexão de Umberto Eco:
de acordo com a estética da formatividade, o artista, formando, inventa
efectivamente [sic] leis e ritmos totalmente novos, mas esta novidade não
surge do nada, surge, como uma livre resolução de um conjunto de sugestões,
que a tradição cultural e o mundo físico propuseram ao artista sob a forma
inicial de resistência e passividade codificada (1972, p.18).
Eduardo Seincman em suas reflexões sobre estética chama também a atenção para a
experiência enquanto atividade capaz de desvelar o auditório social do sujeito.
Toda e qualquer experiência estética traz à tona um arsenal cultural,
simbólico, histórico sem o qual ela não seria possível. Ela é, portanto, um
aglutinador de sentidos que se encontram dispersos ou em repouso à espera
de um gatilho (SEINCMAN, 2008, p.8)
43
Tendo como perspectiva a experiência estética como recurso reflexivo e investigativo
do humano para além da atividade artística, verifica-se a importância de um modelo estético-
educativo voltado para práticas educacionais em música.
1.2 A arte como fazer, como conhecer e como exprimir. Considerações de
uma proposta estético-educativa
O intuito deste capítulo é apresentar ao leitor que entra em contato pela primeira vez
com a estética de Luigi Pareyson as três definições tradicionais de arte elaboradas pelo
filósofo. No capítulo II de sua obra “Os problemas da estética”, Pareyson se dedica à reflexão
das formas mais comuns que foram atribuídas à arte ao longo da história, são elas: a arte como
um fazer, ora como um conhecer e ora como um exprimir. Embora a afirmação de uma ou de
outra definição atribuída à arte possa ter tido um peso diferenciado dependendo da época ou
de qualquer obra posta em questão, o autor ressalta que essas “diversas concepções ora se
contrapõem e se excluem umas às outras, ora, pelo contrário, aliam-se e se combinam de
várias maneiras. Mas permanecem, em definitivo, as três principais definições da arte”
(PAREYSON, 1997, p.21). Ao invés de deter sua concepção sobre arte em torno de uma ou
outra dessas definições, o filósofo incorpora ao campo da estética a ideia de arte enquanto
forma e o processo artístico como formatividade.
Assim como proponho por meio deste trabalho um olhar estético-educativo sob a
ótica da formatividade pareysoniana, penso também que o conhecimento dessas três definições
pode contribuir de maneira significativa para o trabalho do educador musical6. É nesse
exercício de reconhecimento da arte ora como um fazer, como um conhecer ou exprimir que
as bases críticas e reflexivas dos alunos em torno do processo artístico aos poucos vão se
sedimentando.
Pareyson remete ao período da Antiguidade a atribuição valorativa da arte como um
fazer onde seu “aspecto executivo, fabril, manual” acentuou-se mediante a pouca teorização
6 Meu trabalho de conclusão de curso como bacharel em música pela Universidade de São Paulo teve como tema
central essa temática em consonância com a proposta triangular da autora Ana Mae Barbosa trazendo o título
“Proposta triangular: uma abordagem aplicada ao ensino de violino”.
44
entre a arte específica e a produção técnica do artesão (PAREYSON, 1997, p.21). Em
consonância com as definições apresentadas por Pareyson, o escritor Alfredo Bosi discorre de
maneira bastante específica a respeito dessas três concepções artísticas em sua obra
“Reflexões sobre arte”. No primeiro capítulo de sua obra, Bosi apresenta o processo artístico
enquanto forma de produção reforçando o período da Antiguidade como sendo um momento
histórico de exaltação à techné.
Em contraponto ao valor executivo e manual característico da arte na Antiguidade,
Luigi Pareyson destaca o período do Romantismo como cenário onde a arte foi fortemente
difundida enquanto forma de expressão. A definição de arte enquanto expressão é identificada
por Bosi como atividade que nasce da expressividade humana, afirmação que atina com o
pensamento pareysoniano. De acordo com o autor:
Em toda atividade artística impõem-se a presença de uma forte motivação. As
formas expressivas são geradas no bojo de uma intecionalidade que as torna
momento integrante ou resultante do pathos. A dissociação posterior de uma
forma e força interior só se cumpre historicamente quando os motivos iniciais
da união já se apagaram com a rotina das convenções, o esquecimento, a lima
do tempo e a morte da cultura que os produziu (BOSI, 1986, p.52).
No que diz respeito à arte como conhecimento, Bosi destaca as raízes dessa
concepção como sendo decorrentes do pensamento científico ocidental. No primeiro parágrafo
do capítulo II o autor previamente apresenta considerações de uma arte imersa no propósito do
conhecimento. Vejamos:
Que a obra de arte deite raízes profundas no que se convencionou chamar
“realidade” (natural, psíquica, histórica), constitui uma dessas evidências
fulgurantes que deveriam dispensar qualquer discurso demonstrativo,
bastando-lhe a constatação a olho nu (BOSI, 1986, p.27).
Como mostra de uma arte concebida enquanto forma de conhecimento, Pareyson traz
como exemplo especulativo a poética de Leonardo da Vinci como meio de conhecimento
próprio, de interpretação do mundo e até de fazer ciência (PAREYSON, 1997, p.23).
45
A partir de uma observação reflexiva e dialética desses aspectos que por muito tempo
definiram a arte no seio da cultura ocidental, Luigi Pareyson dedica parte dos seus escritos
para demonstrar como as definições estão incutidas umas às outras.
Estas diversas concepções colhem caracteres essenciais da arte, conquanto
não sejam isoladas entre si e absolutizadas. Certamente, a arte é expressão.
Mas é necessário não esquecer que há um sentido em que todas as operações
humanas são expressivas. Toda operação humana contém a espiritualidade e
personalidade de quem toma a iniciativa de fazê-la e a ela se dedica com
empenho; por isso, toda obra humana é como o retrato da pessoa que a
realizou [...] Dizer, por exemplo, que a arte é “expressão dos sentimentos”
pode ter importância no plano da poética, mas é uma perigosa asserção no
plano da estética (PAREYSON, 1997, p.22).
Em se tratando de uma proposta de educação estética, julgo esse exercício de tentar
identificar e colher os caracteres essenciais do fenômeno artístico também como prática
fundamental do educador musical, pois como mediador de processos educativos em arte,
torna-se responsável por apresentar essas especificações a partir do métier dos seus próprios
alunos.
Todas essas definições são passíveis de serem trabalhadas de maneira educativa, por
exemplo, por meio de uma atividade de composição o educador pode conduzir de forma
valorativa o processo de invenção e produção desde o seu nascimento - denominado como
insight ou tema condutor - e ao mesmo tempo propor uma reflexão sobre sua condição
expressiva, considerando o ato da inventividade como sendo fruto da expressividade daquele
que possui o intento de formar, pois toda operação humana externa a espiritualidade e
personalidade do sujeito que se dedica a produzir com empenho (PAREYSON, 1997); no que
diz respeito à arte enquanto forma de conhecimento, pode ser proposta uma atividade de
criação musical que tenha por objetivo a comunicação de algum estudo ou análise científica.
46
1.3 Poética, estética e crítica: uma reflexão didática dos conceitos
A apropriação teórica que faço da estética pareysoniana para a área de educação
musical pode ser considerada uma forma de estetismo fora do campo da estética. Para tanto, os
conceitos apresentados foram analisados cuidadosamente com o intuito de não promover uma
apropriação indevida, incorrendo no perigo de estetizar qualquer situação sem prestar atenção
à complexa doutrina pareysoniana. Nas palavras de Pareyson,
A admissão de leis gerais do pensamento nas atividades não artísticas não
compromete em nada o caráter formativo da operosidade humana: a
normatividade, embora seja interna ao resultado, não se reduz a este, mas lhe
condiciona o valor, ainda que não condicione sua existência. Já na arte não
existe outra normatividade senão a do resultado, nem outra regra senão a
instaurada pela própria obra singular a fazer. Assim, transferir esse tipo de
legalidade às outras operações é, no fundo, uma nova e refinada forma de
estetismo (PAREYSON, 1993, p.68).
Assim sendo, justifico o estetismo da minha pesquisa no sentido de que ao educador
compete o exercício da reflexão estética justamente por ser a arte uma atividade humana
intimamente ligada à vida como um todo.
Em se tratando de uma nova e refinada forma de estetismo voltada para o campo da
educação musical, é necessário reconhecer no âmbito da filosofia pareysoniana a distinção de
três conceitos fundamentais que compõem sua abordagem, são eles: a poética, a estética e a
crítica. Abaixo alguns excertos elucidativos dos respectivos conceitos:
A poética é programa de arte, declarado num manifesto, numa retórica ou
mesmo implícito no próprio exercício da atividade artística; ela traduz em
termos normativos e operativos um determinado gosto, que, por sua vez, é
toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da
arte (PAREYSON, 1997, p.11[itálico meu]).
A estética é constituída deste dúplice recâmbio ao caráter especulativo da
reflexão filosófica e ao seu vital e vivificante contato com a experiência: não
47
é estética aquela reflexão que, não alimentada pela experiência da arte e do
belo, cai na abstração estéril, nem aquela experiência de arte ou de beleza
que, não elaborada sobre um plano decididamente especulativo, permanece
simples descrição (PAREYSON, 1997, p.8[itálico meu]).
a reflexão da crítica não tem caráter filosófico: o crítico, enquanto tal, não é
filósofo, mas leitor e avaliador, intérprete e juiz [...] O trabalho do crítico
nem se inclui no do filósofo, nem se alinha ao seu lado, como se fossem dois
modos paralelos de considerar a arte. Antes, põe-se ao lado do artista e
ambos são objeto da estética, um enquanto produz arte, o outro enquanto a
aprecia e julga (PAREYSON, 1997, p.12[itálico meu]).
No que diz respeito a uma reflexão em torno da poética da obra, conforme aponta o
primeiro dos excertos acima, leva-se em consideração aspectos normativos relativos à sua
construção como também à técnica, à sua narrativa e concepção estilística; uma atividade de
apreciação que tenha como alvo a poética da obra consiste numa reflexão que denota o ofício e
ideário poético do autor. Assim sendo, é possível realizar também uma observação técnica
enquanto análise poética do seu trabalho, proporcionando uma apreciação contemplativa de
traços únicos e valorativos que resultam da sua pessoalidade, pois:
À atividade artística é indispensável uma poética, explícita ou implícita, já
que o artista pode passar sem um conceito de arte, mas não sem um ideal,
expresso ou inexpresso, de arte. Embora em linha de princípio todas as
poéticas sejam equivalentes, uma poética é eficaz somente se adere à
espiritualidade do artista e traduz seu gosto em termos normativos e
operativos (PAREYSON, 1997, p.18).
Na suposição a seguir, demonstrarei de que maneira um educador musical pode atuar
como mediador de uma proposta que tenha por objetivo uma reflexão em torno da poética da
obra.
48
Professor: Eis a obra do pintor Vincent Van Gogh (1853-1890) criada em meados de 1887na
cidade de Stedelijk como parte integrante de sua série sapatos. Este conjunto de obras
apresenta diferentes versões de calçados gastos e desvelam por meio da ilustração desse
simples apetrecho a realidade dos campos e dos camponeses da lavoura. De acordo com a
reflexão do filósofo Martin Heidegger (1889-1976) em sua obra “A origem da obra de arte” -
permeada por sua concepção filosófica que implica na abordagem da autonomia da obra de
arte - é possível guiar nossos olhos mediante as reflexões trazidas pelo filósofo no sentido da
obra enquanto ser apetrecho responsável por desvelar o ente; vejamos nas palavras do
49
filósofo: “O que se passa aqui? Que é que está em obra na obra? A pintura de Van Gogh
constituía abertura do que o apetrecho, o par de sapatos da camponesa, na verdade é. Este
ente emerge no desvelamento do seu ser. Ao desvelamento do ente chamavam os gregos
άλήνεια. Nós dizemos verdade e pensamos bastante pouco com essa palavra. Na obra, se nela
acontece uma abertura do ente, no que é e no modo como é, está em obra um acontecer da
verdade”. Nesse sentido, “a essência da arte seria então o pôr-se-em-obra da verdade do ente
[...] Até aqui, a arte tinha a ver com o Belo e a Beleza, e não com a verdade” (HEIDEGGER,
2005, p.27).
Diante das considerações supostamente apresentadas pelo educador7 observa-se que a
experiência artística perante uma atividade de apreciação ocorre segundo suas considerações,
análise e problemas levantados previamente no âmbito da poética, ao contrário de uma fruição
estética, pois ressalto que, a experiência estética enquanto ferramenta especulativa, “não tem
caráter normativo nem valorativo: ela não define nem normas para o artista nem critérios para
o crítico. Como filosofia, ela tem um caráter exclusivamente teórico: a filosofia especula, não
legisla” (PAREYSON, 1997, p.11). No que diz respeito à proximidade existente entre os
conceitos de poética e crítica, em síntese, é possível afirmar que, o primeiro cumpre a tarefa
de regular e instaurar um programa de arte à obra feita e o segundo de analisar e julgar seus
resultados.
Caso a proposta pedagógica do educador em determinado momento seja uma
apreciação de cunho especulativo em torno da obra, torna-se fundamental ao trabalho
pedagógico uma mediação conduzida por reflexões que atinam com problemas de ordem
estética, propiciando diálogos transcendentes a uma apreciação apressada e sensitiva da obra;
essa afirmação não tem o intuito de descartar reflexões estéticas circundantes no âmbito da
catarse, mas é importante não perder de vista que “não é estética aquela reflexão que, não
alimentada pela experiência da arte e do belo, cai na abstração estéril, nem elaborada sobre um
plano decididamente especulativo, permanece simples descrição” (PAREYSON, 1997, p.8).
7 Considerando também as notas explicativas que acompanham as peças de concerto e os quadros em galerias de
arte.
50
Nesse sentido, para contrapor o exemplo anterior, suponho abaixo um modelo estético-
educativo referente à mesma ilustração enquanto proposta de apreciação estética.
Professor: É possível dialogarmos com a obra que está na obra? Que tipo de diálogo é
possível ter com as cores, ideias, formas e gestos que a compõem? A respectiva obra
comunica algo? É possível identificar em seus traços as marcas daquele que a fez? É possível
alcançar algum tipo de leitura ou interpretação mais legítima que outra?A comunicação de
uma obra de arte depende de um leitor (alguém para executá-la mediante o ato de olhar)? Ou
ela independe de qualquer olhar para dissipar vida própria?
51
Indagações dessa natureza aberta à inexaurível possibilidade reflexiva conferem à
experiência artística uma atividade estética. Para elucidar e complementar a exemplaridade
didática dos conceitos acima trago mais uma citação do autor destacando a distinção desses
conceitos:
A distinção entre estética e poética é particularmente importante e representa,
entre outras coisas, uma precaução metodológica cuja negligência conduz a
resultados lamentáveis. Se nos lembrarmos que a estética tem um caráter
filosófico e especulativo enquanto que a poética, pelo contrário, tem um
caráter programático e operativo, não deveremos tomar como estética uma
doutrina que é, essencialmente, uma poética, isto é, tomar como conceito de
arte aquilo que não quer ou não pode ser senão um determinado programa de
arte (PAREYSON, 1997, p.15).
Em se tratando de uma atividade concernente à crítica como proposta pedagógica,
cabe ao educador discernir os pontos que qualificam essa tomada analítica. De acordo com a
respectiva distinção já citada “o crítico, enquanto tal, não é filósofo, mas leitor e avaliador,
intérprete e juiz” e sua atuação é indispensável como um todo concernente à vida da obra,
porque nem o artista consegue produzir arte sem uma poética declarada ou
implícita, nem o leitor consegue avaliar a obra sem um método de leitura
mais ou menos consciente, mesmo que não seja necessário que se traduzam
em termos explícitos, isto é, que a poética seja consignada num código de
normas e preceitos ou a crítica governada por um método declarado. A obra
requer tanto a poética quanto a crítica, na medida em que exige ser feita e
avaliada [...] (PAREYSON, 1997, p.10-11).
Tendo em vista que o trabalho de educação musical (artes em geral) engloba ora
encontros de apreciação estética da obra, ora atividades de análise poética ou mesmo
observações críticas, cumpre o educador o papel fundamental de conhecê-los para saber
transitar didaticamente através de preceitos tão caros e vivos que pululam suas práticas
educativas; é imprescindível que o mesmo disponha do conhecimento desses problemas
estéticos para extrair de cada uma dessas etapas que substanciam a produção artística
experiências significativas para a vida de seus alunos como um todo e também para a sua
52
própria. Milena Guerson, autora do artigo “Ana Mae Barbosa e Luigi Pareyson: um diálogo
em prol de ‘re-significações’ sobre ensino/aprendizagem de artes visuais” apresenta um
panorama sobre as três definições de arte pareysoniana (abordadas no capítulo anterior), como
também da teoria do formatividade em consonância com a proposta triangular da arte-
educadora Ana Mae Barbosa, postulando a importância desses saberes conceituais ao
educador que lida com as artes pontuando a seguinte afirmação:
É relevante que o professor de Arte, em sua formação, compreenda as
pertinências das áreas aqui explicitadas, adquirindo a capacidade de conferir
ao fazer, à contextualização, à leitura da obra de Arte, o que de maneira
diferencial for pertencente à Técnica, à Poética, à Crítica, à História, à
Estética (GUERSON, 2010, p.6).
Considerando a multiplicidade de experiências estéticas que ocorrem em diferentes
contextos educativos, é imprescindível ao educador consciência e postura reflexiva às
diferentes formas de encontro de seus alunos com a arte.
Com base em sua extensa pesquisa ao lado de artistas, críticos e leitores de arte,
verifico que os problemas de natureza estética identificados por Pareyson são de extrema
relevância para o educador que lida com os problemas da arte em suas práticas educativas
devido ao seu alto nível reflexivo em torno das nuances e dos problemas que permeiam o
amplo percurso da inventividade.
A teoria pareysoniana se caracteriza por ser uma doutrina sistemática e ao mesmo
tempo aberta ao diálogo mediante outras propostas teóricas, não no sentido de “se deixar
envolver pelas teorias que se apresentarem diante dela, mas antes de utilizá-las como estímulo
para se consolidar ainda melhor” (PAREYSON, 1993, p.11), assim sendo, almejo que os
respectivos problemas estéticos tratados no âmbito da educação musical possam contribuir
com a sua teoria não no sentido de confrontá-la, mas reforçando-a e consolidando-a ainda
mais por meio de outros campos de pesquisa.
Irene Tourinho, autora de um dos primeiros textos publicados pela Revista da Abem
traz uma interessante e atual reflexão baseada num diálogo entre compositor e educador
musical em seu artigo “Um compositor, uma educadora, muitas perguntas e algumas reflexões
53
sobre prática de ensino de música”. A autora aborda, dentre outros aspectos, a necessidade
contínua de formação que requer o ofício de um educador musical, afirmando que as bases de
um trabalho educacionalmente artístico exigem intenso aprimoramento e pesquisa nos campos
da musicologia, estética, performance, bem como da pedagogia. A autora chama a atenção
para a responsabilidade que carregam os artistas, especificamente, compositores no que diz
respeito às contribuições que poderiam oferecer ao campo educacional. Vejamos:
todos os compositores – se quisessem – poderiam contribuir para a nossa
compreensão sobre, por exemplo, criatividade. A explicitação de suas
“crenças” e duvidas, juntamente com algumas descrições de seus processos
de trabalho já iniciaria uma discussão valiosa (TOURINHO, 1996, p.72).
A reflexão apresentada por Tourinho é bastante atual e identifico-me com sua
afirmação no sentido de que muitas contribuições poderiam ser difundidas pelos próprios
artistas a partir de um diálogo entre autores e educadores, mas carecemos desses encontros
dialógicos; por essa razão, faço uso da doutrina pareysoniana - respeitando seus limites - com
o intuito de apropriar-me de suas considerações advindas do contato com artistas experientes
para investigar a produção artística em diferentes contextos educativos.
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55
Capítulo 2
Teoria da formatividade:
um tal fazer que se reinventa enquanto faz
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57
2. Teoria da formatividade: um tal fazer que se reinventa enquanto faz
Nasce o poema
há quem pense
que sabe
como deveria ser o poema
eu mal sei como gostaria
que ele fosse
porque eu mudo
o mundo muda
e a poesia irrompe
donde menos se espera
às vezes cheirando a flor
às vezes desatada no olor
da fruta podre
que no podre se abisma
(quanto mais perto da noite mais grita o aroma)
às vezes num moer de silêncio
num pequeno armarinho no Estácio
de tarde
Assim me fui
E o poema ficou
inaturo
parte no ar da loja
parte como poeira
em meus cabelos.
Ferreira Gullar
58
A epígrafe que abre este capítulo consiste no poema intitulado “Nasce o poema” de
Ferreira Gullar e ilustra poeticamente o diálogo do poeta com uma pessoa que teve a
curiosidade de lhe perguntar o modo como fazia para escrever seus poemas. Nas palavras do
autor, “comecei a explicar-lhe como fazia, e à medida que ia explicando me dei conta de que
estava fazendo um poema. Então pedi desculpas, parei a conversa e voltei pra casa a fim de
escrevê-lo” (GULLAR, 2013, p.223). De acordo com esse depoimento pode-se verificar uma
experiência artística de puro êxito, onde se forma por formar mediante o ímpeto e estímulo de
um simples encontro do cotidiano.
Perante as inúmeras atividades que realizam nossos alunos como afazeres artísticos,
embora se almeje determinado propósito pedagógico, é importante observar que para o aluno
que ainda não tem a maturidade de reconhecer os benefícios advindos das propostas
educativas que o cercam, ele muitas vezes produz por produzir, isto é, forma por formar, mas,
formar por formar em arte requer um amplo conjunto de saberes que ele certamente não sabe
que sabe. É por essa razão que tomo como modelo teórico-filosófico a formatividade de
Pareyson para compreender e valorizar todos os aspectos que circundam o processo de
invenção e produção artística, de modo também a servir como reflexão para a formatividade
perdurável do viver.
2.1 Teoria da formatividade: uma estética da invenção
Toda a vida humana é, para Pareyson, invenção, produção de formas;
toda a atividade humana, tanto, no campo moral como no
pensamento e da arte, origina formas, criações orgânicas e perfeitas,
dotadas de compreensibilidade e autonomia próprias: são formas
produzidas pela ação humana os edifícios teoréticos ou as
instituições civis, as realizações quotidianas ou os empreendimentos
técnicos, um quadro e uma poesia (ECO, 1972, p.15).
Viver é um ato de invenção e toda produção humana pressupõe uma prática executiva
e realizativa, podendo ser compreendida mediante os princípios da formatividade. De acordo
59
com Pareyson, “todos os aspectos da operatividade humana, desde os mais simples aos mais
articulados, têm um caráter, ineliminável e essencial, de formatividade” (1993, p.20). Segundo
essa premissa, somente através do ímpeto humano de formar por formar, de se alcançar puro
êxito diante daquilo que se forma é possível postular uma distinção entre a singularidade
artística do feitio das meras coisas. Considerando, pois, a essência do fazer como uma
atividade construtiva que emerge das mãos de um sujeito também em pleno processo
formativo, é possível compreender as origens que substanciam a singularidade que reside na
produção artística.
A singularidade da obra é fruto da individualidade e pessoalidade de cada autor. A
pessoalidade do artista (nesse caso do aluno) delineia seu modo de pensar, inventar e de fazer;
portanto, a obra de arte enquanto forma acabada resulta de um constructo relativo ao contexto
histórico-social daquele que a faz. Embora Pareyson não desenvolva em profundidade uma
filosofia do sujeito-autor, sua narrativa destaca ações oriundas da natureza humana. Vejamos:
se as obras são sempre singulares, pode-se afirmar que é impossível fazê-las
sem que ao fazê-las se invente o modo de fazê-las. Seja qual for a atividade
que se pense em exercer, sempre se trata de colocar problemas, constituindo-
os originalmente dos dados informes da experiência, e de encontrar,
descobrir, ou melhor, inventar as soluções desses problemas. Sempre se trata
de concluir e levar a cabo operações, ou seja, de produzir, realizando,
efetivamente, executando e de concluir o movimento de invenção em uma
obra que se esboça e se constrói com base numa lei interna de organização.
Sempre se trata de fazer, inventando ao mesmo tempo o modo de fazer, de
sorte que a execução seja a aplicação da regra individual da obra no próprio
ato que é a sua descoberta, e a obra “saia bem feita” enquanto, no fazê-la, se
encontrou o modo como se deve fazer (PAREYSON, 1993, p.21).
Nesse caso, o modo de fazer, inventar, e até mesmo descobrir, provém do autor, cuja
própria vida consiste em pleno processo de constituição singular. Mediante o diálogo com a
matéria é o autor quem encontra, descobre, e inventa soluções para os problemas da arte
enquanto forma nascente. A concepção de formatividade como um certo modo de fazer que ao
fazer vai inventando o modo de fazer deflagra a dinâmica dialógica entre autor e matéria,
assim sendo, somente
60
fazendo-se forma é que a obra chega a ser tal, em sua individua e irrepetível
realidade, enfim separada de seu autor e vivendo vida própria, concluída na
indivisível unidade de sua coerência, aberta ao reconhecimento de seu valor e
capaz de exigi-lo e obtê-lo. Nenhuma atividade é operar se não for também
formar, e não há obra acabada que não seja forma (PAREYSON, 1993, p.20).
Mesmo dotada de leis internas que em essência caracterizam sua individua e
irrepetível realidade (matéria transformada em obra), o viver próprio da obra se prolonga no
campo da execução e das inexauríveis possibilidades interpretativas do humano, denotando
mais uma vez a inesgotável possibilidade dialógica que a cerca proveniente da energia
formante daquele que ouve ou que vê. A esse respeito Seincman traz a seguinte afirmação:
Uma obra de arte só é um objeto finito quando isolada do fenômeno
comunicacional, pois, em sua relação com os sujeitos cria-se um terceiro
lugar, o lugar da transcendência e da polissemia. Assim, a comunicação
artística transcende a mera relação sujeito-objeto e, depois de lapidada, a
matéria bruta das obras, com sua quantidade finita de elementos, passa a ser
um meio de conteúdo inesgotável (SEINCMAN, 2008, p.25).
Retomando a temática em torno do caráter formativo da obra, embora tenha sido essa
uma reflexão corrente entre filósofos e teóricos como Goethe, Schelling, Dewey, Whitehead e
Augusto Guzzo, conforme pontua Pareyson, será ele próprio o esteta que irá teorizar uma
estética da formatividade. Em síntese, o autor atribui à arte a definição de forma. Por que a
arte é forma? Porque nasce de um processo formativo. Diante dessa premissa é que o filósofo
direcionou seus estudos sobre estética ao processo de invenção que precede a forma (arte).
Ao refletir sobre a forma de viver de cada pessoa, verifica-se que cada um só é o que
é mediante o processo formativo que o conduziu até ali, sem perder de vista que esse tipo de
reflexão é apenas uma nova e refinada forma de estetismo voltada para o campo maior que a
própria arte, isto é, a vida. Doravante atrevo-me a passar por caminhos dessa natureza pelo
fato de que o próprio filósofo, mesmo ao conceber “as obras de arte como organismos vivendo
de vida própria e dotados de legalidade interna” (2001, p.27), não desconsiderou o sujeito por
detrás de sua estética; acredito que, mesmo dialogando no âmbito de uma estética que possa
abrir caminhos para uma filosofia que postule valores em torno da autonomia da obra, seus
61
escritos também abrem portas que possibilitam leituras também sob perspectivas histórico-
sociais.
2.2 Reflexões sobre a formatividade na coletividade
Toda e qualquer experiência só pode se dar em plena atividade, em
plena atenção, comunhão, participação e troca (SEINCMAN, 2008,
p.28).
Partindo do pressuposto de que toda operação humana é sempre formativa,
considerando inclusive o ato de pensar, é possível afirmar que a prática educativa através da
arte expõe diariamente o educador à complexa malha polifônica de pensamentos e atos
formativos de seus alunos. Como considerar a individualidade e promover um consenso a
partir da pluralidade artística que nasce no trabalho coletivo? Como legitimar e ao mesmo
tempo ponderar entre tantos, os valores práticos e morais que se manifestam através do ato de
criar de cada aluno? Primeiramente, é importante compreender que qualquer tipo de
construção pressupõe não só a invenção, mas também a imitação, ou seja, “uma pessoa só
aprende a ser ela mesma descobrindo-se nos outros, e não existe outro caminho para a
originalidade senão a imitação (PAREYSON, 1993, p.152). Isto posto, conclui-se que toda e
qualquer atividade individual pressupõe a participação de um auditório social e perante a
conscientização desse espírito de troca é possível iniciar um trabalho pautado no respeito e na
legítima contribuição de um para com o outro.
No que diz respeito ao exercício de humanidade em torno de valores práticos e
morais, diante das palavras de Pareyson verifica-se que a produção artística em qualquer
instância ou contexto requer decisões práticas e morais, ou seja,
A obra de arte implica, por conseguinte, um compromisso prático e uma
decisão moral, a tal ponto que se faltar ao artista qualquer uma decisão moral,
a tal ponto que se faltar ao artista qualquer uma dessas condições, e não
considerar a arte como uma tarefa a cumprir de modo devido, realiza, ao
mesmo tempo que um desvalor artístico, igualmente um desvalor moral
(PAREYSON,1993, p.28).
62
Ainda nas palavras do autor, vejamos outros excertos a acerca desse propósito:
Também o exercício do pensamento e a atividade moral exigem um “fazer”,
sem o que não se concretizariam em atos práticos ou de pensamento. Não se
pode pensar a não ser efetuando movimentos de pensamento com que se
passa de juízo a juízo e de raciocínio a raciocínio, sempre ligando e
sistematizando, isto é, realizando uma totalidade completa e, sobretudo,
formulando explicitamente os pensamentos, isto é, realizando-os em
proposições [...] de sorte que tanto o pensamento como a vida moral exigem
o exercício daquela atividade realizadora e produtiva sem a qual nenhuma
obra é possível (PAREYSON, 1993 p.20).
A vida moral exige um vivaz e incessante exercício de formatividade, como
se evidencia claramente assim que se pensa na necessária capacidade de
inventar a ação exigida pela lei moral em cada situação determinada, e de
realizá-la inventando o modo de lhe traduzir a intenção em atos convenientes,
submetendo as circunstâncias para que acolham as obras assim realizadas e
vigiando para que se mantenha e preserve o seu originário valor moral
(PAREYSON, 1993, p.283).
Segundo os pressupostos pareysonianos, pensamento e moralidade são frutos de uma
realidade única e irrepetível que ocorre de maneira distinta na vida de cada pessoa. Ao tomar
essa reflexão como parâmetro para olhar a diversidade que reside entre todos aqueles que
compõem um grupo de pessoas, penso na importância de uma proposta estético-educativa que
possa considerar o sujeito em seu contexto histórico-social, ponderando também a expressão
de seus costumes diante do convívio entre seus pares. Uma vez conscientes de que processo
inventivo percorre esse tal faz que vai se transformando na medida que se faz, torna-se
possível compreender a dinâmica formativa que também reside no viver de cada um; para
tanto, é necessário que o educador estabeleça em sua prática uma relação dialógica que
conduza ao respeito e à responsabilidade que se propaga a partir da atividade criadora de cada
um dos alunos. O reconhecimento que se instaura perante as diferenças e a dignificação
pessoal que resulta da produção individual abre portas para a construção de um trabalho
coletivo artístico e humano, gerando experiências estéticas cordiais e amistosas, pois “um
campo, embora formado de individualidades, é maior que a soma destas, pois o individual e o
coletivo se retroalimentam continuamente” (SEINCMAN, 2008, p.14); mediante essa
63
afirmação é possível concluir que, a atividade estético-educativa enquanto ferramenta
especulativa destinada ao campo de educação musical possibilita além do exercício crítico,
reflexivo e criativo ações de solidariedade e cidadania, pois:
O interesse despertado pela arte não é só questão de gosto estético, mas
também e sobretudo de humanidade; ou melhor, justamente por ser questão
de gosto se pode dizer que seja também questão de humanidade, porque
como nas obras um espírito se torna estilo e um mundo se torna forma [...]
(PAREYSON, 1993, p.276-277).
Isto posto, cabe ao educador conscientizar-se de que a produção e a invenção da
pessoa tratam-se sempre de ações concretas e intencionais. Diante dessa abordagem, pode-se
verificar através da estética da formatividade uma proposta conscientizadora das diferentes
formas de criação, e, por conseguinte um caminho para alcançar o respeito mútuo entre os
pequenos artistas.
Anseio que, por meio dessas reflexões, possa o educador musical identificar que os
elementos que nutrem a imaginação e a criação na infância não diferem em essência dos
elementos que orientam a imaginação e a inventividade artística que ocorre na vida adulta. De
acordo com esta proposta, torna-se possível atingir o objetivo principal que consiste numa
prática educativa que almeja instaurar no sujeito uma relação de legítima aceitação de um para
com o outro através da arte, afinal, “as diferenças e divergências podem acarretar
indiferença!”, no entanto, “O encontro torna as diferenças produtivas. A aula como um texto
construído por todos” (PERISSÉ, 2009, p.86). O espírito construtivo, de descoberta ou de
criação quando partilhado coletivamente possibilita, além de ricas trocas de experiências que
alimentam a inventividade artística, a invenção da própria vida em sociedade. Nas palavras de
Perissé,
A palavra criativa é o melhor recurso de que o professor dispõe. Essa palavra
abre espaço para a verdade do encontro, indo em direção ao outro ao mesmo
tempo que se encoraja o outro a assumir seu papel no jogo do aprender-
ensinar. A aula poética inventa a verdade. Não se pode mentir em poesia,
porque tudo o que se inventa, esteticamente falando, é verdade. A arte
inventa a vida, e essa vida não é mentirosa, tal como entendemos a mentira
em seu significado cotidiano (PERISSÉ, 2009, p.87).
64
Essas afirmações significam que, uma abordagem estético-educativa que tenha por
princípio a valoração do processo inventivo e realizativo da arte em prol de uma
conscientização artística e humana do fazer, implica num tipo de experiência estética
transcendente à própria arte. Embora os conceitos abordados nesta dissertação, bem como o
próprio referencial teórico possam causar no leitor uma impressão intelectualizada do ensino
de música mediada por propostas que possam sugerir atividades filosoficamente complexas, é
importante esclarecer que a adoção da presente concepção estética oferece ao educador
sensibilidade para olhar a produção artística de seus alunos assim como olha um esteta para a
arte (seu objeto de estudo e reflexão); dialogar com nossos alunos no âmbito dos problemas
estéticos de suas produções fomenta a valorização do trabalho individual e coletivo, o
autoconhecimento, o respeito para com o processo formativo do próximo, consciência e
responsabilidade artística enquanto autor, intérprete e leitor. Afinal, a estética como
ferramenta de ensino reside mais na forma de conceber e mediar o trabalho artístico perante o
seu processo do que exatamente na coisa ou no resultado concreto em si. Para Seincman,
O sentido de uma experiência dependerá de nossa capacidade de estabelecer
relações de causalidade, continuidade e finalidade a partir dos elementos que
nos cercam. Havendo troca, comunicação, compartilhamento, nós e mundo
nos tornamos dotados de sentido: todos os atores saem de uma experiência
transformados (SEINCMAN, 2008, p.32).
Considerando, pois, o convívio como uma prática imbuída de trocas e experiências
mútuas, confirma-se a importância de uma filosofia estética que facilite o trânsito do educador
musical perante a dinâmica e plural conduta socializadora que envolvem as atividades
artísticas em diferentes contextos do ensino de música. Cada um constrói a sua maneira,
porém, a individualidade de cada autor ou a construção do seu “mundo” - conforme o conceito
utilizado por Pareyson - pressupõe a colaboração de outrem. Nas palavras do autor, “o que
caracteriza um mundo é a sua personalidade, mas isso não implica que não seja um mundo,
uma visão coletiva da vida, pois também nesse caso se trata sempre de concepções pessoais”
(PARESYON, 1993, p.273).
65
Capítulo 3
Criação musical: o processo inventivo do insight até
o complexo campo da leitura da obra
66
67
3. Criação8 musical: o processo inventivo do insight até o complexo campo
da leitura da obra
Os escritos que compõem este capítulo consistem nos relatos de experiência
vivenciados por mim em diferentes contextos educativos. Todos eles acompanharão materiais
ilustrativos produzidos pelos próprios alunos. A partir das reflexões elaboradas por Pareyson
em torno da sua teoria da formatividade, demonstrarei as contribuições dessa filosofia voltada
para o campo da educação musical com o intuito de compartilhar possibilidades práticas e
teóricas dessa abordagem estética em diferentes situações do ensino de música.
Mediante os recortes que serão apresentados em cada cenário, discorrerei sobre
aspectos substanciais do processo formativo observados a partir de atividades realizadas pelos
meus pequenos artistas. Considerando os relatos de experiências como perspectiva prática
desta pesquisa, compartilharei os exemplos pedagógicos com a intenção de ampliar a
compreensão desta proposta. Ao tomar o processo de criação em suas principais etapas
realizativas (a obra enquanto formatividade, forma e seu campo interpretativo), cada exemplo
representará um cenário educativo entremeado por reflexões estéticas, destacando aspectos do
insight até o complexo campo da leitura da obra.
As figuras ilustrativas serão postas em evidência proporcionado aos leitores uma
apreciação detalhada do registro de cada atividade. É importante frisar que, os nomes que
serão aqui mencionados são fictícios e os espaços institucionais mantidos em sigilo. Tanto o
8Embora Luigi Pareyson conceba o conceito de criação diferentemente do conceito de formatividade, faço uso
dos seguintes conceitos ciente do não comprometimento da sua abordagem. Pareyson estabelece como criação
uma atividade divina como um ato absoluto e Para situar o leitor sobre a diferenciação dos conceitos acima,
transcrevo a seguinte distinção firmada pelo autor: “De resto, convém lembra que a ‘formatividade’ não pode ser
confundida com a ‘criatividade’, pois o homem certamente cria, ‘com infinita diferença, porém, do criar do
próprio Deus’, pois enquanto a criação é atividade no sentido absoluto, como tal impensável no homem, a
formatividade é uma atividade que tem caráter receptivo e tentativo, de sorte que não opera a não ser começando
como insight e não termina a não ser culminando em um resultado, o que certamente é impensável em Deus”
(PAREYSON, 1993, p.267).
68
cenário educativo como a descrição dessas atividades têm como principal objetivo demonstrar
possibilidades práticas dessa filosofia estética enquanto caminho educativo.
Ao longo desta pesquisa, alguns dos relatos foram transformados em artigos e em
parceria com outros autores publicados e apresentados outrora em encontros e congressos de
educação musical de âmbito nacional e internacional.
Concebo os cenários aqui apresentados como “obras” no sentido pareysoniano, ou
seja, em seu estágio de obra acabada, e como autora desses relatos declaro estar consciente de
que a forma uma vez concluída, só pode ser vista na sua perfeição considerada
dinamicamente (ECO, 1972, p.20), no entanto, embora esses registros enquanto forma
acabada contenham as marcas do meu olhar e das minhas reflexões, disponibilizo-os aos
leitores como uma porta de entrada reflexiva passível de interpretação desta proposta estética e
educação musical. Como complemento teórico farei uso das reflexões do autor Gabriel Perissé
que em consonância com esta proposta amenizam o uso exaustivo dos conceitos
pareysonianos.
3.1 Primeiro cenário: Compondo a Sinfonia Poética
Este primeiro cenário traz reflexões sobre o complexo itinerário do processo de
criação musical vivenciado por crianças entre oito e treze anos num contexto educativo que
designarei como projeto social.
Direcionado ao atendimento de jovens e crianças o presente espaço comporta além da
modalidade de música, cursos de artes plásticas, literatura, tecnologia inclusiva, dança e
línguas estrangeiras. Em se tratando do curso de música, são oferecidos aos alunos aulas de
instrumento9, canto coral, prática em conjunto, fundamentos teóricos, percepção e apreciação
musical.
Composta por duas unidades de ensino instaladas na cidade de Sertãozinho, o projeto
social comporta atualmente no curso de música mais de cinquenta jovens e crianças entre sete
9Violino, viola, violoncelo, contrabaixo, saxofone (alto e tenor), clarineta, trompete, trompa, trombone, flauta e
percussão.
69
e dezenove anos. De acordo com o plano de ensino institucional, o projeto contempla uma
proposta de ensino que se divide em três modalidades: formação de público, ensino
profissionalizante e inclusão social. Os conteúdos paulatinamente se voltam,
intencionalmente, para abordagens pedagógicas que possam passar por uma compreensão da
música a partir de seu fenômeno eminentemente artístico: a obra de arte, as possibilidades de
acesso a ela e suas contribuições para a vida como um todo. Com o intuito de proporcionar
vivências significativas, os conteúdos são desenvolvidos de maneira transversal, envolvendo
todas as práticas musicais - do solitário estudo da técnica de um instrumento às teorias,
percepções e apreciações musicais -, de modo a culminar na execução de obras musicais e na
reflexão da música em geral. Assim, pode-se afirmar que o plano pedagógico de ensino se
resume a práxis (performance no instrumento), a theoria (estudo e aprofundamento no
universo da obra em vários níveis) em completa associação com a poiésis (composição da obra
de arte), possibilitando também experiências sociais transcendentes ao fazer artístico.
Como se apropriar de uma abordagem filosófica, de modo que seja possível
transformá-la num diálogo acessível entre jovens e crianças num contexto de ensino como
esse? De onde extrair reflexões acerca dos problemas da produção e da invenção artística com
o intuito de propor uma conscientização da formatividade como fenômeno da arte e da vida?
Pautado no diálogo e na experiência artística compartilhada entre jovens e crianças a
partir dos sete anos, trago como modelo desta proposta estética o relato de experiência
“Criação musical: um processo filosófico da imagem ao registro da obra”10
publicado nos
anais de 2013 da III Jornada de Estudos em Educação Musical (UFSCar), onde apresento
juntamente com outros dois autores uma atividade de criação musical11
.
Como professora de prática de orquestra iniciei o presente trabalho coletivo
perguntando aos alunos se naquele início de semestre eles gostariam de produzir um trabalho
autoral, além de executar obras de outros compositores. A resposta se concretizou com um
10CESCA, Sara. PEREIRA, Guilherme C. GALON, Lucas E. S. Criação musical: um processo filosófico da
imagem ao registro da obra. III Jornada de Estudos em Educação Musical. Anais da III JEEM, p.106-113, 2013.
Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/207189540/Anais-Da-III-Jeem-2013 Data de acesso: 27/03/2014. 11
Ao tomar o presente artigo como material desta dissertação revisei as técnicas de escrita adaptando-o a uma
nova edição.
70
suspense no ar e olhares desconfiados. Talvez estivessem pensando: “Nossa própria música?
Como assim? Será que a professora está falando sério?” Aos poucos as crianças foram se
manifestando timidamente interessados na tal composição autoral. Uma vez decididos pela
proposta de compor, lancei a seguinte reflexão: “Antes de qualquer coisa, é preciso encontrar
uma ideia que possa inspirar a composição; algo que sirva de guia”. Deixá-los livres para
imaginar e tomar como orientação qualquer coisa poderia ser uma possibilidade pedagógica,
mas o intuito da proposta consistia em mostrar aos alunos o quanto a arte de outros artistas
poderia ajudá-los nessa atividade de invenção. Segundo Gabriel Perissé,
A arte educa, influenciando nossa maneira de sentir e pensar, de imaginar e
avaliar. Influência forte e sutil. E renovadora. Para o bem ou para o mal, não
saímos incólumes de uma experiência estética verdadeira. Os artistas são
educadores, perturbadores, levam-nos aos extremos de nós mesmos.
Educadores provocadores, desestabilizadores (PERISSÉ, 2009, p.38).
Com o intuito de proporcionar às crianças uma atividade de invenção e produção
musical, conduzi o trabalho através de reflexões estéticas, partindo da apreciação musical
como fonte para o despertar da inventividade. Nessa etapa de fruição e contemplação,
disponibilizei aos alunos obras descritivas e de caráter programático, como por exemplo, as
obras em estilo madrigalesco do compositor Gilberto Mendes (1922) sob a influência do
movimento literário Noigrandes, como Motet em Ré Menor (Beba Coca-Cola), Vai e Vem e
Nascemorre e Asthmatour. Foi dispondo de obras musicais deste gênero teatral que lancei as
primeiras especulações estéticas acerca da relação música e texto no cenário musical, e a partir
dessas influências as crianças vislumbraram seus primeiros passos inventivos; como
espectador e agente participativo deste trabalho, pude observar atentamente a variedade de
insights que na nasciam entre as crianças. Apropriei-me da arte de outros autores com o intuito
de compartilhar entre as crianças diferentes formas composicionais. Nas palavras de Perissé, a
arte dos poetas, dos compositores, dos escultores, dos artistas plásticos,
educa na medida em que, atraindo nossa visão, encantando nossa audição,
agindo sobre nossa imaginação, dialoga com a nossa consciência. Mais do
que nos fazer reagir à melodia, à rima, à composição pictórica, às cenas do
filme, esses estímulos que nos chegam pela arte criam um espaço de
71
liberdade, de beleza, no qual nos sentimos convidados a agir criativamente
(PERISSÉ, 2009, p.36).
De acordo com Luigi Pareyson,
O vínculo entre exemplaridade e imitação, com a possibilidade ainda de um
preceituário operativo e de uma imitação transformadora, serve para explicar
antes de mais nada, a formação do artista, formação que de outra maneira
seria processo misterioso e incompreensível, pois nenhum artista consegue
fazer arte a não ser passando pela imitação entendida como reconhecimento
operativo da exemplaridade (PAREYSON, 1993, p.149).
Após trilharem este percurso em busca de um “começo”, os alunos decidiram dar
início a composição partindo de uma poesia. Alguns alunos que diziam serem "bons" na
escrita de poemas se dispuseram a escrevê-los, e assim vários alunos o fizeram. Através de
uma seleção o grupo escolheu quatro poesias para compor o trabalho. Para ajudá-los na
estruturação do trabalho e no aproveitamento do material (poesias), sugeri que elaborassem
uma composição em quatro partes, de modo que cada poema pudesse ser desenvolvido
separadamente. Foi assim que iniciamos a construção do primeiro movimento da composição,
tendo a poesia como um guia temático e orientador desse processo de criação; segundo a ótica
pareysoniana, a criação consiste em puro tentar, no entanto, é importante frisar que não é um
tentar destituído de imagens prévias. De acordo com L. Pareyson,
Tentar não é nem andar às cegas nem caminhar com plena segurança; nem
vaguear no escuro até o momento da súbita iluminação, nem seguir um
caminho todo iluminado. O tentar não é tão incerto que signifique puro tatear,
nem tão seguro que siga pela estrada principal, mas antes se constitui de um
misto de incerteza e segurança, onde enquanto durar a busca, o risco não
instaura o reino do acaso e a esperança não se torna ainda certeza. A tentativa
tem algo de ordem e desordem ao mesmo tempo, de sorte que a norma que a
guia nunca é assim tão evidente que indique de antemão a sua descoberta, e a
série dos fracassos não é nunca tão desastrosa que não se converta em alguma
sugestão do resultado feliz (PAREYSON, 1993, p.73).
Nas ilustrações a seguir destaco o manuscrito de dois poemas selecionados como
tema do primeiro e do segundo movimento deste trabalho de composição:
72
Figura1– Poema que inspirou o primeiro movimento da composição.
Figura 2– Poema selecionado para o segundo movimento da obra.
Dediquei inteiramente uma de nossas aulas somente para o exercício de apreciação
destes poemas e a cada leitura que se fazia, vivenciávamos o surgimento de novas impressões.
Pensando na proposta da composição, as crianças começaram a compartilhar ideias musicais e
a partir do diálogo que naquele momento nascia entre insight (poema) e matéria (seus próprios
instrumentos), a proposta composicional aos poucos foi ganhando formas e gestos sonoros.
Com o intuito de proporcionar às crianças reflexões voltadas para os problemas que
permeiam a inventividade artística, conduzi a presente proposta através perguntas e
questionamentos, propiciando um trabalho de imersão e conscientização do processo
73
formativo da obra, bem como de outros problemas que ela traz em sua condição “acabada”,
isto é, o campo da recepção.
Para conscientizá-las deste fenômeno tão presente na operosidade humana, enquanto
trocavam ideias e mudavam o que já estava pronto em busca de novas ideias sonoras, julguei
ser oportuno interrompê-las com a seguinte indagação:
Professor: Vocês estão percebendo que as ideias parecem não ter fim? Por que isso
acontece?
Alunos: São muitas pessoas criando, respondeu uma aluna.
Professor: Você tem razão... são várias ‘cabecinhas’ criativas funcionando ao
mesmo tempo. É isso que acontece quando começamos a inventar. Parece que nossa
imaginação não tem fim. Mas vamos continuar e ver onde essas ideias nos levarão!
Em meio aos diálogos que realizávamos acercada nossa capacidade imaginativa e das
infinitas possibilidades de criação, procurei destacar também as possibilidades interpretativas
que a obra de arte suscita em seu estágio acabado, sua variedade de transcrições e traduções,
seu caráter comunicativo, a importância do seu registro e do domínio técnico na fase de
execução. Diante das considerações estético-filosóficas que aos poucos foram se
intensificando através dos diálogos, pude verificar a importância e as contribuições do
exercício especulativo enquanto atividade coletiva voltada para a formação social e humana
dos alunos, pois acredito que, “somente quem aprende percorrer caminhos inexististes, porque
eles se fazem no percurso, será capaz de compreender as respostas e os caminhos antes
percorridos” (GERALDI, 2010, p.96).
As ideias fervilhavam na construção de cada detalhe da obra que se reinventava no
processo formativo, e foi assim, que a composição foi se materializando sonoramente passo a
passo no bojo da inventividade.
74
É nesse estágio de invenções, tentativas e erros, que o formar pareysoniano pressupõe
o ato de buscar, pois conforme suas palavras "‘formar significa aqui ‘fazer’ inventando ao
mesmo tempo ‘o modo de fazer’, ou seja, ‘realizar’ só procedendo por ensaio em direção ao
resultado e produzindo deste modo obras que são ‘formas’” (PAREYSON, 1993, p.12). A
cada nova fase do trabalho eu convidava as crianças a refletir sobre a permanência deste
“tentar” que acompanha não somente o artista no ato da criação, mas as ações de cada um em
seu viver; de acordo com o autor, o ato de tentar,
se estende a toda a vida espiritual, e abrange todos os campos da operosidade
humana, o que confirma que seu âmbito coincide com o da formatividade,
pois toda a vida espiritual é formativa. E certamente este destino do homem,
de não poder atuar a não ser procedendo por tentativas, é sinal de sua miséria
e grandeza ao mesmo tempo: o homem não encontra sem procurar e não pode
procurar a não ser tentando, mas ao tentar figura e inventa, de modo que
encontra, de certo modo já fora, propriamente, inventado (PAREYSON,
1993, p.61[itálico do autor]).
Ao término da construção do primeiro movimento da Sinfonia Poética, assim
denominada pelos alunos, tínhamos em nossas mãos o esboço gráfico da composição, no
entanto, sugeri que transcrevêssemos todos aqueles “desenhos” e “rascunhos” inventados para
a notação musical convencional. A escrita original poderia ter sido mantida, afinal, todos
aqueles símbolos faziam sentido para as crianças, porém, como a grafia tradicional
basicamente era uma ferramenta dominada por todos os presentes, optei por este caminho
pedagógico conscientizando-as para a importância do conhecimento teórico e da escrita na
prática composicional; cada criança se dedicou ao registro do seu respectivo instrumento.
Mesmo nesse procedimento técnico voltado para a escrita da obra, propus inúmeros
questionamentos até conclusão do trabalho, afinal, é perguntando que o educador demonstra
que não só participa, mas também aprende convivendo com seus alunos. Confiramos outro
olhar dessa abordagem no diálogo a seguir.
Ao término de uma das aulas do teórico e pesquisador Humberto Maturana cuja
temática enfocava “O que ensinar? Quem é um professor?”, um ouvinte interroga-o com a
pergunta central: “Quem é o professor”. A resposta de Maturana desvela: “Alguém que se
aceita como guia na criação deste espaço de convivência. No momento em que eu digo a
75
vocês: ‘perguntem’, e aceito que vocês me guiem com suas perguntas, eu estou aceitando
vocês como professores, no sentido de que vocês me estão mostrando espaços de reflexão
onde eu devo ir” (MATURANA, 1990) 12
. Considerando que tanto o ensino como a
aprendizagem são frutos da convivência, concluo que o professor é aquele que se posiciona
também como aprendiz nesse espaço que se compartilha. A reflexão trazida pelo autor
corrobora com uma proposta estético-educativa no sentido interativo das experiências e
considerações pessoais entre todos; encontros marcados por uma prática dialógica desvelam
aos alunos a legitimidade de suas contribuições para a construção do trabalho em conjunto.
Nas ilustrações da página a seguir é possível conferir alguns registros deste trabalho.
12 Transcrito do trecho final da aula de encerramento de Humberto Maturana no curso de Biologia Del Conocer,
Faculdad de Ciencias, Universidad de Chile, Santiago, em 27/07/90. Gravado por Cristina Magro; transcrito por
Nelson Vaz.
76
Figura 3– Partitura do violino I.
Figura 4 – Partitura de violino I.
77
Figura 5 – Partitura de violino I.
Figura 6 – Partitura de viola.
78
Figura 7 – Partitura de viola.
Figura 8 - Partitura de contrabaixo
79
Figura 9 – Partitura de violoncelo
Da descoberta das armaduras de clave (considerando cada instrumento da orquestra)
até as dinâmicas, foram muitas indagações e questionamentos. Cada criança escreveu sua
partitura de acordo com a clave do seu instrumento e após a conclusão do registro executamos
e contemplamos a sensação de dever cumprido, mas mesmo com o trabalho concluso, o
espírito inventivo ainda se fazia presente e outros palpites não queriam silenciar. Diante de
observações como essas, verifica-se que a essência do processo inventivo reside na eterna
novidade do fazer.
A primeira edição do material foi realizada e entregue às crianças, de maneira que
pudessem visualizar o primeiro movimento da composição com todos os instrumentos. A
edição gráfica deste trabalho pode ser conferida na página seguinte.
80
Figura 10 - Partitura da obra Sinfonia Poética. 1ª Edição.
81
Diante dessa partitura impressa, perguntei às crianças a respeito de alguns aspectos
problemáticos inerentes ao material. Segue baixo um recorte desse diálogo:
Professor: Aqui está a composição de vocês. O que faremos com ela agora?
Alunos: Temos que tocar!
Professor: Mas isso - (referindo-se ao papel) - não é uma música?
Alunos: Não professor, é uma partitura!
Nesse momento, nossa conversa caminhou no sentido de compreender a necessidade
da execução da obra e a importância daqueles que a executam, isto é, os intérpretes.
Professor: Daqui há alguns anos, vocês estarão trabalhando, cursando uma
universidade e talvez até morando em outra cidade, mas a composição de vocês continuará
fazendo parte do repertório da Instituição e outras crianças a executarão. Então, gostaríamos
de saber de vocês o seguinte: e se estes novos alunos resolverem dar outra interpretação para
a música?
Alunos: Não, isso não pode acontecer, professor! É errado! Uma resposta quase
unânime entre as crianças.
Professor: Nós já interpretamos de formas diferentes músicas de outros
compositores! Por que eles não poderiam também?
Alunos: Porque fomos nós que fizemos!
E assim conversamos por muito tempo a respeito dos problemas que circundam a
execução da obra, como também a possibilidade das múltiplas interpretações que recaem
sobre ela e também do contínuo ato de re-significação que nasce da capacidade imaginativa
82
daqueles que a apreciam. Consensualmente, chegamos à conclusão de que a obra quando
“acabada” não mais pertence ao autor, mas sim ao mundo das interpretações e da imaginação
daqueles que a encontram. Conforme as reflexões elaboradas por Seincman,
A obra musical só se efetiva, de fato, na performance, em sua relação com os
ouvintes. Quando um compositor finaliza uma obra, ela já não mais lhe
“pertence”, passando a fazer parte de um “campo estético”: é nesse palco que
irá se consubstanciar seu “jogo”. A despeito de o senso comum acreditar que
o compositor teria mais condições de “explicar” a obra, ele passou à condição
de mais um de seus ouvintes e, devido à transcendência da experiência
estética, jamais poderá dar conta da infinitude de questões que ela suscita
(SEINCMAN, 2008, p.25).
Ao lado de outras grandes obras, hoje a Sinfonia Poética compõe o acervo de peças
dessa instituição, possibilitando aos alunos dizerem ao público: “nós compusemos”.
3.1.1 Reflexões a partir do relato de experiência
Ensina-me que eu esquecerei
Conta-me que eu lembrarei
Envolve-me que eu aprenderei.
Benjamin Franklin
O breve relato acima descrito tem por objetivo mostrar através da prática dialógica
reflexões estéticas e valorativas da produção artística enquanto atividade coletiva. Quando
conduzimos um trabalho por meio de perguntas, rompemos com os modelos tradicionais de
ensino que promovem um suposto saber legítimo e único dominado somente pelo professor,
em prol de uma concepção de ensino que valoriza e dignifica as experiências estéticas de cada
um, proporcionando entre todos os participantes atos solidários e respeitosos diante das
contribuições do próximo.
Como educadora musical, pude vivenciar algumas adversidades passíveis de
inviabilizar o trabalho de qualquer educador musical em espaços institucionais, situações
83
muitas vezes incontornáveis; em quadros dessa natureza, procuro direcionar minha conduta
exclusivamente para os alunos respeitando-os acima de qualquer instância burocrática, pois
destinam total confiança ao meu trabalho como educadora. Considerando a premissa de que
um aprendizado fecundo pressupõe experiências significativas, penso que a qualidade desses
encontros entre educadores e educandos pressupõe respeito ao tempo de aprendizagem de cada
um.
Numa atividade de invenção, conforme pôde ser observado no relato do capítulo
anterior, como educadora e co-autora deste trabalho entre as crianças posso afirmar que, as
conquistas aqui descritas foram possíveis devido à quantidade de tempo que pude dispor para
realizar essa atividade. A partir das reflexões sobre o ato da experiência levantadas por Jorge
Larrosa Bondia, procurei desenvolver este trabalho sem a pressa da conclusão e do resultado
enquanto produto, vivenciando juntamente com meus alunos as dificuldades e conquistas
processuais deste trabalho inventivo; a obra em seu estágio acabado, ou seja, enquanto forma,
representaria apenas uma etapa desse processo realizativo. É no ato do fazer que o tentar, criar,
recriar, compartilhar, acertar, errar, modificar, aceitar, respeitar capacita o aluno para o
exercício da formatividade em cada ato do viver. De acordo com o referenciado autor,
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça, ou nos toque, requer
um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDIA, 2002, p.24).
A realização de sinapses ou o estabelecimento de conexões significativas de
aprendizagem precede um espaço dialógico e amistoso entre aqueles que compartilham as
mesmas experiências, como também respeito ao ritmo individual da aprendizagem. Muitas
vezes a falta de tempo em determinadas situações do ensino assalta o trabalho do educador
fazendo com que experiências que deveriam chegar, tocar e acontecer de forma significativa
entre alunos e educadores tornem-se cada vez mais escassas. Bondia afirma também que:
84
a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa
passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz
o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo
ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera (BONDIA, 2002, p.23).
Dando continuidade aos desdobramentos da atividade de composição relatada
anteriormente, apresento a seguir um exemplo que ilustra as contribuições de uma atividade
vivenciada com a calma e sem a pressa descrita por Bondia. A ilustração em destaque ao
término desses escritos traz três poemas cada um deles acompanhado de uma pequena
composição criado por Carlos, aluno de nove anos que participou dessa atividade.
Próximo ao término das aulas letivas a Sinfonia Poética foi parcialmente finalizada e
como encerramento do semestre e antes do recesso escolar13
realizou-se um concerto
destinado somente às famílias e dirigentes da instituição. Ao retornar as atividades um mês
após o concerto fui surpreendida no primeiro dia de aula com o trabalho de Carlos.
Ao entrar na sala de aula preparado para o retorno de suas aulas individuais de
violino, Carlos motivado pelo simples prazer de criar, apresentou-me uma composição que
havia realizado sozinho durante o período de recesso escolar. Diante desse acontecimento
comecei a refletir sobre o que havia levado ele a compor; teria encontrado prazer no processo
criativo? Apenas como reflexão complementar, rememoro a narrativa inicial do capítulo três,
onde apresento o nascimento dos primeiros insights da atividade de composição, sob a
influência da atividade de apreciação musical em que as crianças puderam conhecer e
desfrutar da poética do compositor Gilberto Mendes. A meu ver, as obras puderam inspirar os
alunos no processo inicial de criação, mas é importante observar também que, antes de se
encantarem pelas obras, já havia um professor encantado por elas, assim sendo, proponho a
seguinte especulação estética: “Que significados residem no objeto artístico senão forem
aqueles atribuídos a quem lhes dirige o olhar?” Reconheço que além do fenômeno “coisal”, a
obra pressupõe em sua concretude feitos carregados de histórias daquele que a fez, no entanto,
em se tratando de espaços educativos, deparamo-nos com mais um fator a ser considerado: a
13 Nessa instituição de ensino o recesso escolar ocorre no mês de julho.
85
relação do professor com aquilo que compartilha. Assim sendo, é importante ponderar também
o seguinte aspecto:
As qualidades de uma obra de arte inspiram e educam o professor. Em
consequência, o professor torna-se inspirador para o aluno, indicando-lhe
portas para aquelas qualidades. E essas qualidades, impregnadas de valor,
influenciam a sensibilidade do aluno, incentivando-o a ver-se como ser
criativo (PERISSÉ, 2009, p.55).
Apreciei sua obra e conversamos sobre as ideias que o levaram a compor e em
seguida executamos. Carlos me disse que suas pequenas obras haviam sido inspiradas na
atividade de composição realizada em conjunto na disciplina de orquestra. Sua produção foi
composta por três poemas no estilo de Haikai, cada um acompanhado de um pequeno discurso
musical. Os poemas foram escritos numa folha sulfite e a escrita musical numa folha pautada14
recortada e colada abaixo dos poemas. Esse acontecimento demonstra o quão significativo foi
para ele (e também para mim) a experiência composicional vivenciada naquela atividade de
criação (descrita no capítulo anterior). Assim sendo, acredito que, a transformação resultante
de feitos do passado possibilita que:
cada sujeito – professor e alunos – se torne autor: refletindo sobre o seu
vivido, escrevendo seus textos e estabelecendo novas relações com o já
produzido. Isto exige repensar o ensino como projeto, e para dar conta de um
projeto não se pode esporadicamente conceder lugar ao acontecimento. O
projeto como um todo tem de estar sempre voltado para as questões do
vivido, dos acontecimentos da vida, para sobre eles construir compreensões,
caminhos necessários da expansão da própria vida (GERALDI, 2010, p.100).
Penso que o envolvimento de Carlos com a atividade de criação musical possibilitou-
lhe uma experiência estética significativa que de fato tocou-lhe, proporcionando ações
autônomas e criativas longe do espaço institucional. A seguir, a ilustração da sua produção
artística para a apreciação.
14 Pentagrama musical.
86
Figura 11. Três poemas e composições.
87
3.1.2 O insight
Retomando o conceito de insight, é possível defini-lo como fase embrionária da ideia,
isto é, um esboço difuso e total dos primeiros passos da atividade inventiva. Os insights
trazem consigo experiências vividas socialmente por cada indivíduo e enquanto memória
carregada de significados constitui-se como guia responsável por agregar novas formas
criativas ao processo inventivo.
A plural e dinâmica rede de pensamentos que emerge das atividades conjuntas
desestabiliza propostas educativas que tenham como princípio um modelo normativo e
controlador em qualquer ação pedagógica, assim sendo, cabe ao educador uma conduta
reflexiva, cuidadosa e respeitosa frente às diferenças, com o objetivo de promover entre todos
os presentes dinâmicas saudáveis, amigáveis e construtivas para o trabalho em conjunto. De
acordo com as reflexões de Seincman,
Essa maneira de proceder, tão atual, toma como base o fato de que as
significações surgem a partir das relações em que operam “linhas de força”
que nós, observadores, analistas e intérpretes, costuramos dentro de um
determinado campo. É uma concepção polifônica da realidade (SEINCMAN,
2008, p.13).
Compreendo, pois, que é humanamente compreensível que o educador fique confuso
diante da variedade de insights que nascem num trabalho coletivo, assim sendo, ao propor uma
atividade musical que pressupõe o ato de criar, interpretar ou mesmo refletir, é importante
estar atento às relações que fazem os alunos, pois através delas é possível compreender
fragmentos de suas experiências vividas.
Atento às primeiras manifestações desses insights o educador musical atua como
mediador dessas ideias que despontam como os primeiros passos da invenção. Outro aspecto
importante que o educador deve orientar nesse percurso da inventividade consiste na prática
de produzir esboços e rascunhos, de modo que se possa preservar e registrar os “primeiros”
insights, uma ação essencialmente favorável ao trabalho de criação em contextos coletivos. O
comprometimento com o trabalho, a concentração e a dedicação, são observações que
88
geralmente fazemos aos alunos justamente para não perder de vista “sementes aladas” do
pensar. De acordo com Pareyson:
É evidente que o insight é algo incompleto, não é preciso insistir neste ponto,
tamanha a distância que o separa da obra, a tal ponto que insights fecundos
são por vezes negligenciados por artistas apressados ou ocupados em outra
coisa (PAREYSON, 1993, p.123).
Nesse sentido, acredito que o educador possa contribuir com o grupo ou
individualmente com cada aluno através de perguntas esteticamente elaboradas a buscarem por
imagens e significados vagantes no mundo das ideias.
A todo segundo imaginamos e concebemos formas inventivas para o viver, doravante,
seria possível no bojo da formulação imagética identificar um insight artístico? Uma
lembrança, um sentimento, uma experiência de vida ou um costume podem suscitar insights
significativos passíveis de promover a inventividade de uma obra de arte? Segundo Pareyson,
sim, pois os aspectos comuns vivenciados pelo sujeito no cotidiano não se constituem como
insights artísticos, mas podem se tornar “quando se fazem vontade de forma e solicitam a
definição de sua vocação formal e reclamam uma matéria para manipular de certa maneira, e
impõem problemas artísticos, propondo ao mesmo tempo a solução para eles”
(PAREYSON,1993, p.127-128).
No momento em que os insights começam a ser manifestos entre os alunos -
conforme apresenta o relato descrito no capítulo anterior - é importante que o educador pontue
que o processo inventivo já começou. Nesse primeiro estágio da inventividade, por exemplo, é
possível valorizar o trabalho dos alunos, mesmo que ainda incipiente (em fase de esboço),
dando mostras de outras produções artísticas que resultaram em grandes obras que marcaram a
nossa história (na arte, na ciência, na astronomia, na biologia).
Embora esteja eu considerando o insight como o começo de uma invenção artística, é
importante compreender que estas fagulhas do pensamento estão presentes em toda
operosidade humana, caracterizada por sua completude e incompletude no processo de
realização de um trabalho artístico. Do ponto de vista da obra, enquanto matéria formante, o
insight reside em sua completude, pois insight e esboço conduzem a força motriz da
89
formatividade e são completos por conterem os fragmentos do devir da forma. Por outro lado,
do ponto de vista da obra, enquanto matéria formada (acabada), o insight expõe a sua
incompletude, pois consiste apenas como imagem contendo tudo quanto a obra deve conter,
porém memorável e destituída de fisicidade. Nas palavras de Pareyson, os insights são
“incompletos, quando vistos como ‘momentos’ do processo de formação; e completos, se
considerados como este mesmo processo em ‘movimento’” (PAREYSON, 1993, p.121).
É importante ressaltar que a concepção pessoalista que fundamenta o pensamento
pareysoniano em voga nesta dissertação, possibilita a outras correntes filosóficas possíveis
interpretações do ponto de vista da metafísica, no entanto, a apropriação desse conceito de
acordo com a leitura e necessidade desta pesquisa, atribui ao conceito de pessoalidade tudo
quanto possa pertencer ao cultivo social e histórico de uma pessoa. Segundo Eco,
Uma pincelada, uma frase musical, um verso [...] são pontos de partida de
formação que, pelo simples facto [sic] de o serem e de consistirem numa
espécie de premissas de uma possível figuração, pressupõem um crescimento
orgânico segundo regras de coerência; mas estes pontos de partida só se
tornam fecundos quando o artista os segura e os faz seus – e faz da coerência
postulada pelo ponto de partida, a sua própria coerência, e, das várias
direcções [sic] a que pode aspirar, escolhe a que lhe é congenial e que, por
isso, será a única realizável (ECO, 1972, p.19).
Assim sendo, as primeiras manifestações de confusão que se apresentam numa
atividade de criação requerem atenção e respeito para que se fortaleçam e se desenvolvam,
pois trazem consigo a singularidade das marcas socialmente vivenciadas por cada indivíduo.
90
3.1.3 O ato de perguntar: a chave para uma educação estética
Dá-me um ponto de apoio e erguerei um mundo.
Arquimedes15
A porta de entrada para uma relação dialógica e conscientizadora dos problemas
filosóficos que circundam o fazer artístico, depende da postura do educador em saber
perguntar e abrir-se para o inesperado das respostas, podendo de fato vivenciar a
formatividade nos atos operosamente humanos. Nas palavras do escritor e poeta José
Saramago, “tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas”
(1994, p.225). O princípio de uma abordagem educacionalmente estética reside na prática
reflexiva entre alunos e professores, sendo o professor o principal responsável por suscitar um
diálogo de caráter especulativo. De acordo com Seincman,
Um campo de relações é um campo de vivências, de experiências estéticas,
do qual partem e para o qual convergem inúmeros atores, materiais ou não.
Neste contexto, o papel de um trabalho teórico não é “explicar”, mas levantar
questões e provocar centelhas que poderão iluminar, ao menos, uma parcela
desse infinito campo de relações (SEINCMAN, 2008, p.14).
Numa atividade artística que envolva invenção e produção a imaginação opera como
ferramenta essencial do ato criativo, porém, se a resposta de outrem tende a orientar o
processo ela será responsável por cercear e cristalizar o pensamento definindo verdades e
limitando o processo criativo, promovendo sua metamorfose em pura ideologia; em
contrapartida, se houver tempo para perguntas e especulações para que se possa refletir sobre
as respostas, é possível que se conquiste uma prática educativa reflexiva que transcenda os
limites impostos pelo trabalho unicamente definido pelos ideais do professor.
João Wanderley Geraldi em sua obra "A Aula Como Acontecimento" concebe o
exercício de formular perguntas como uma prática socialmente dialógica, capaz de transformar
15Arquimedes, Siracusa, 287 a.C. – 212 a.C.
91
as experiências e os saberes que cada pessoa carrega em novas formas de conhecimento,
prática essa sustentada por tudo àquilo que se compartilha mutuamente através do discurso.
Segundo o autor, “aprender não é se tornar um depósito de respostas já dadas. Saber não é
dispor de um repertório de respostas. Saber é ser capaz de compreender problemas, formular
perguntas e saber caminhos para construir respostas” (GERALDI, 2010, p.96). Portanto,
formular perguntas e estar aberto ao encontro de respostas não esperadas promove aberturas
para acontecimentos que possibilitam a elaboração de novos pensamentos, propícios ao
enriquecimento da produção e reflexão sobre arte como um todo.
“É com as mãos cheias de perguntas que melhor nos orientamos no manuseio da
herança cultural” (GERALDI, 2010, p.96) que se desvela na formatividade segundo o ato
criativo de cada aluno. Quando se propõe uma atividade de composição musical, por exemplo,
é importante que os alunos tenham consciência de que as ideias que vão surgindo e se
transformando indicam a formatividade em operação e que este processo ocorrerá de maneira
distinta e única no trabalho de cada pessoa. Conduzir o trabalho através de perguntas traz à
tona significados e relações subjetivas que vão se materializando no formar; assim sendo, o
diálogo recíproco que se estabelece coletivamente encoraja e legitima a criação e a imaginação
de todos aqueles que estão imersos na formatividade artística.
É importante frisar que as nuances do processo formativo não se definem em
categorias precisas. Segundo a abordagem pareysoniana, a formatividade consiste num estágio
da obra em que o insight tenta ganhar formas no esboço. De acordo com o capítulo anterior, é
durante esse momento nebuloso de confusão e incertezas que o educador tende a atuar com
cuidado e atenção, pois as possibilidades revelativas que o processo formante proporciona se
evidenciam somente enquanto se forma.
Lembremo-nos sempre que a capacidade criadora transborda na confusão. Para
abrandar a inquieta, plural e complexa rede de pensamentos é importante que educador dê voz
à confusão dos alunos, de modo a compartilhar as dúvidas de um com a certeza de outros,
proporcionando-lhes sempre novas considerações, esclarecimentos e força criativa para o
próprio pensar. De acordo com Seincman:
92
o conhecimento não provém do mero acúmulo de fatos, mas da qualidade de
relações que estabelecemos entre os fatos. Conhecer é realizar sinapses,
vínculos significativos, estabelecer conexões e nexos a fim de dotar o mundo
de experiências significativas. Os fatos estão aí, à espera de conexões que os
despertem. Não há fatos puramente “objetivos”, pois seu ser depende de
nossas interpretações. Resgatamos certos fatos do passado, que são
vivenciados no presente, e arquitetamos seu futuro a fim de que, neste
movimento errático e tentativo, dotemos o mundo de sentido (SEINCMAN,
2008, p.12[itálico meu]).
Nesse sentido, penso que os grandes feitos também são capazes de serem despertos
no bojo da confusão, e por meio de perguntas e do próprio diálogo as conexões e sentidos vão
se engendrando umas às outras.
O breve diálogo apresentado no primeiro cenário deste capítulo é um exemplo de
como as perguntas podem abrir portas para especulações estéticas em torno dos problemas
inventivos da arte, proporcionando também reflexões transcendentes da arte para a vida como
um todo. Usando o mesmo recorte apresentado no relato de experiência do capítulo anterior, é
possível verificar como uma simples pergunta pode revelar o fenômeno formativo presente no
processo de criação. Com base na resposta do professor, observa-se a ênfase que é dada ao ato
formativo e a conscientização do seu aventuroso percurso. Eis o diálogo novamente:
Professor: Vocês estão percebendo que as ideias parecem não ter fim? Porque isso
acontece?
Aluno: São muitas pessoas criando!
Professor: Você tem razão... são várias ‘cabecinhas’ criativas funcionando ao
mesmo tempo. É isso que acontece quando começamos a inventar. Parece que nossa
imaginação não tem fim. Mas vamos continuar e ver onde essas ideias nos levarão...
Através desse exemplo, é possível averiguar como uma simples pergunta pode levar a
respostas objetivas e pontuais, como também a caminhos amplos e subjetivos, possibilitando
93
reflexões acerca da incapacidade humana de controlar os eventos da vida e a lida com a
inexaurível novidade dos acontecimentos para além da invenção artística.
Nize Maria Campos Pellanda apresenta em seu artigo “A música como
reencantamento: um novo papel para a educação”, um panorama das transformações ocorridas
na sociedade moderna que culminaram em modelos educacionais formalizados e divorciados
da vida. Segundo a autora,
A vida é pura virtualidade. Nós estamos continuamente atualizando nossos
potenciais de ser. Tudo é devir, tudo é vir a ser. Nossa vida depende de
nossas ações concretas. Com isso, podemos ir empurrando cada vez mais as
fronteiras da realidade. Não há limites para a construção pessoal e para o
conhecimento (PELLANDA, 2004, p.18).
Em continuidade ao pensamento da autora, afirmo também que, o ato de viver é
substancialmente pura formatividade, pois a todo o momento praticamos nossa capacidade de
inventariar a vida.
O processo de invenção e produção artística que compõem os exemplos desta
dissertação demonstra uma ínfima parte do complexo percurso da operação artística enquanto
fruto do ato de criar do humano; creio não ser possível dissociar a formatividade artística da
formatividade que dita as leis inventivas do viver. Tudo é devir, tudo é vir a ser. Em certos
momentos direcionamos nossas potencialidades para formar por formar, isto é, vivenciar a
produção artística - conforme a premissa pareysoniana - e quando essa produção se finda, tudo
continua vir a ser; a inventividade que nos move continua empurrando o indivíduo para outras
realizações criativas necessárias e fundamentais para a vida.
No mesmo texto, Pellanda propõe o seguinte questionamento: “Como criar uma
escola onde se aprenda a viver e a amar? Uma escola onde se invente a vida, onde possamos
fazer da vida de cada um de nós uma obra de arte?” Elaborar um modelo escolar de acordo
com os aspectos apontados pela autora talvez seja uma missão quase impossível mediante as
atuais estruturas burocratizantes das instituições de ensino públicas, por exemplo, mas acredito
na força do trabalho do educador como um sujeito ativo e ciente da operosidade formativa da
vida, conduzindo de maneira análoga atividades artísticas que emergem da motriz capacidade
94
humana. Nas palavras de Geraldi, “o que importa é aprender a aprender, para construir
conhecimentos. Ensinar não é mais transmitir e informar, ensinar é ensinar o sujeito
aprendente a construir respostas, portanto só se pode partir de perguntas” (2010, p.100).
3.2. Quando nos inspiramos nas respostas...
Todos os dias sou influenciada de diversas maneiras pelos meus pequenos mestres, e
neste breve recorte contarei como algumas perguntas e respostas despertaram em mim ideais
inovadoras incorporadas hoje ao meu trabalho como educadora musical.
Venho desenvolvendo na cidade de Ribeirão Preto/SP um trabalho com crianças do
3º ano do fundamental I numa escola regular privada. Nesse contexto educativo, a prática do
ensino de violino se estabelece enquanto disciplina complementar da grade curricular. Além
das aulas de violino, as crianças do 3º ano dessa escola recebem semanalmente outras duas
aulas voltadas para variados tipos de vivências musicais.
Nesse espaço escolar a vivência artística (música, escultura, pintura, arquitetura,
trabalhos manuais, teatro, dança, ginástica artística) consiste no carro chefe da proposta
pedagógica que ali se propõe; seu espaço físico possui ampla estrutura para a realização de
eventos e atividades artísticas, composta por duas amplas salas de música e um teatro de
arena. A sala de música na qual pude vivenciar o breve relato que aqui será descrito, dispõe de
um piano de armário, vários instrumentos percussivos, estantes para partitura e amplo espaço
para a realização de atividades que contemplam movimentos corporais. Os instrumentos de
cordas são acomodados adequadamente na sala do 3º ano, são eles: quinze violinos16
específicos para crianças menores de nove anos (doze violinos tamanhos ¾, um ½, um ¼ e um
violino tamanho adulto) e o único instrumento tamanho adulto é destinado ao professor. Além
dos violinos a escola também possui dois violoncelos tamanhos ¾.
Geralmente, a turma do 3º ano do fundamental I é composta por no máximo trinta
crianças e para viabilizar a utilização dos instrumentos o grupo é dividido pela professora
16A posse desses instrumentos ocorreu mediante doações realizadas pela comunidade de pais e professores ao
longo dos últimos quinze anos e através de compras realizadas pela própria escola.
95
tutora17
em duas pequenas turmas. Classificados como turma A e B, cada uma das turmas
recebem aulas com duração de 50 minutos.
As primeiras aulas de violino acontecem com as duas turmas juntas. Nesses primeiros
encontros realizo a distribuição dos violinos, observando a compleição física de cada um com
o objetivo de adaptá-los aos instrumentos; nesse primeiro encontro apresento o instrumento
executando algumas músicas e em seguida procuro mostrar algumas de suas peças, bem como
a função de cada uma delas. Um tipo de aula que praticamente sempre conduzi com a mesma
abordagem.
Durante essa fase de iniciação ao instrumento procuro sempre enfatizar
(demonstrando a partir do meu instrumento) os cuidados básicos e formas de manutenção do
instrumento, como também as peças que o compõem chamando a atenção para a fragilidade de
algumas delas, especificamente, cavalete e “alma’ 18
que se sustentam pela pressão das cordas
e dos tampos superiores e inferiores. Quando apresento a alma, assim como as outras peças
que constituem a parte interna do instrumento peço sempre para que os alunos observem-nas
através dos furos em “f”19
e certa vez, num momento como esse, um aluno me questionou em
tom de frustração porque eu não desmontava o violino para mostrar mais de perto os detalhes
internos. Ele queria conhecer melhor o interior do instrumento, olhar através dos furos em “f”
não bastava. Eu respondi ao aluno que não era possível, pois se descolássemos os tampos
romperíamos com a construção do instrumento. Uma vez descolado seria preciso ter pleno
conhecimento técnico para reparar os estragos, e também ferramentas específicas de lutheria20
.
Foi a partir desse momento que o aluno então propôs que construíssemos um violino para que
pudessem conhecer melhor o instrumento.
Conhecer um violino que não “desmontava” já estava se tornando algo frustrante para
aquele aluno, nesse sentido, com o intuito de levar aquele brilhante ideia avante perguntei a
17 Professora responsável pelas disciplinas de língua portuguesa e matemática.
18 Nos instrumentos da família das cordas, pequeno cilindro de madeira colocado verticalmente entre o tampo e o
fundo, um pouco atrás do pé do cavalete, e cuja função é transmitir as vibrações sonoras à caixa de ressonância, e
sustentar o tampo do lado direito, para que ele resista à pressão das cordas sob o cavalete (cf. AURÉLIO, 1975,
p.71). 19
Abertura artificial no tampo superior dos instrumentos de cordas com o formato da letra “f”. 20
Oficina especializada na construção e no reparo de instrumentos de cordas.
96
todas às crianças como poderíamos realizar um trabalho como aquele. Sempre me surpreendo
com suas respostas criativas e inspiradoras. Alguns falaram da possibilidade de criar um
violino que desmonta usando papel, outros sugeriram como material a própria madeira. Diante
dos vários insights que nasciam daquela proposta, eu pensava que de uma forma ou de outra
haveria um jeito, afinal, se é possível construir é possível desconstruir! Um dos alunos sugeriu
que toda a sala fosse até a marcenaria da escola buscar pedaços de madeiras e cada um se
encarregaria de “recortar” uma peça. O tempo da aula já estava se esgotando e antes de
despedir-me das crianças, disse a elas que iria pesquisar sobre todas as possibilidades que
havíamos discutido naquela manhã sobre a criação de um violino que desmonta.
Esse acontecimento demonstra como o ato de perguntar vindo diretamente dos alunos
também pode desestabilizar e inspirar caminhos não previstos pelo professor, assim sendo,
verifico mais uma vez a importância da pergunta no diálogo entre alunos e educadores, pois
conforme pode ser conferido através da fala de Perissé, “estudar é praticar a arte da pergunta.
E ensinar nossos alunos a perguntarem” (2009, p.78).
Foi através dessa experiência que pude vivenciar com os alunos daquele 3º ano que
tanto insistiram na possibilidade de criar um violino desmontável, que fiquei motivada e
inspirada na realização desse projeto. A primeira etapa consistiu em encontrar um luthier que
pudesse desconstruir um violino e criar um novo a partir de algum mecanismo de encaixe. Por
fim, levou muito tempo até que eu conseguisse concretizar essa primeira etapa, e assim, não
pude compartilhar com as crianças os desdobramentos desse projeto tão demorado, porém
realizado! No ano seguinte mostrei o violino às crianças autoras deste projeto. A turma me
recebeu com brilho nos olhos e a reação de todos foi de grande satisfação. Não posso afirmar o
que de fato sentiram ao ver o projeto concluído, mas posso afirmar que as aulas iniciais das
turmas seguintes nunca mais foram as mesmas.
Diante desse exemplo, considero que, um ensino criativo independe dos recursos
materiais dispostos no ambiente da sala de aula, pois a criatividade nasce do encontro entre os
seres que buscam partilhar suas experiências num ato de coragem e respeito. Segundo as
reflexões levantadas por Perissé:
97
o ensino nasce do encontro, desse influxo mútuo e desse enriquecimento
entre duas ou mais realidades. A sala de aula como espaço físico ainda não é
um âmbito. Podemos colocar móveis lá dentro, e até “encher” de gente. Mas
ainda não constitui um campo de jogo, um “tabuleiro” em que alunos e
professores dialoguem verdadeiramente e caminhem para uma unidade
dinâmica. Professores e alunos precisam tomar iniciativas para que a sala de
aula seja uma fonte de possibilidades criativas (PERISSÉ, 2009, p.86).
E foi assim, dando voz às perguntas e respostas das crianças que eu pude
compreender a importância de construir um violino desmontável. Confesso que a parte mais
difícil deste trabalho foi encontrar um profissional que aceitasse “estragar” um violino em
função de uma proposta como esta. E foi na cidade de Pirassununga/SP que encontrei um
jovem luthier que se dispôs a realizar este trabalho e para que o instrumento ficasse completo
era necessário adquirir suas peças. A partir de alguns acessórios quebrados ou sem uso, “restos
de lutheria” e doação de amigos consegui montar o “kit” do violino desmontável. Atualmente,
possuo mais peças do que preciso inclusive peças de violoncelo; falta-me apenas um
violoncelo desmontável (risos).
E assim, graças ao impulso do fazer e da ânsia por descobertas que marcam o
comportamento das crianças nessa fase nasceu o violino que desmonta, mas o espírito da
formatividade não parou por aí...
O violino didático foi tão bem recebido entre as crianças que continuei motivada a
criar outras ferramentas lúdicas voltadas para o ensino do instrumento, como o violino em
quebra-cabeças (figuras 15 e 16) e os “arquinhos” reciclados (figuras 17 e 18). Com a ajuda do
professor e artesão que ministra aulas de marcenaria nessa escola pude concretizar esses
projetos.
Elaborei o quebra-cabeça a partir de um desenho baseado nas proporções de um
violino tamanho ½ com os respectivos recortes de encaixe e entreguei ao professor como
modelo; o projeto ainda se encontra em fase de experimentação e acabamento, mas já vem
enriquecendo grandemente as aulas coletivas de violino. Hoje, as aulas iniciais são muito mais
interessantes, pois as crianças manuseiam os quebra-cabeças e conversam entre elas
98
mencionando o nome de cada uma das peças, enquanto outras montam e desmontam o violino
didático.
Os “arquinhos” reciclados nasceram a partir de vários arcos quebrados que eu
guardava com o objetivo de transformá-los em algo a qualquer momento. E foi nessa fase
inspiradora que a ideia dos “arquinhos” reciclados nasceu.
O manuseio do arco na fase inicial do aprendizado do violino é bastante delicado e
requer habilidades motoras finas. Nesse momento de familiarização dos movimentos é comum
as crianças deixarem o arco cair no chão causando trincos ou danos irreparáveis; em
decorrência desses pequenos acidentes (em vários contextos educativos em que lido com o
violino) fui acumulando esses arcos danificados. Alguns dos arcos danificados encontravam-
se com a ponta quebrada, com o talão sem funcionamento, muito empenados ou quebrados ao
meio. Levei todos ao professor artesão e pedi para que complementasse um ao outro
encaixando a ponta de um no talão de outro, deixando-os pequenos e sem crina21
. E assim foi
feito. Mas para o quê eles servem?
A partir da confecção dos “arquinhos” didáticos posso desenvolver inúmeras
atividades de fortalecimento para os dedos entre outros exercícios técnicos de adaptação e de
fôrma da mão direita, sem a preocupação de caírem no chão e quebrar. Portanto, uma aula de
música sob a ótica de uma abordagem estética pressupõe as mais diversas experiências como
criar, executar, apreciar, refletir sobre música, escrever sobre música e porque não inventar
materiais didáticos? A produção desse material já ilustrou várias de minhas palestras e oficinas
em escolas e universidades, e o meu intuito consiste em cada vez mais poder demonstrar como
uma abordagem estético-educativa pode contribuir para um trabalho passível não só de
reflexão, mas também de cunho prático, no sentido de transformar materiais velhos em
materiais novos.
21 Fios extraídos do pescoço do cavalo responsáveis por causar atrito com as cordas do instrumento a fim de
produzir som.
99
E aí está a função do professor, que sozinho não precisa dar conta dos
sentidos todos de cada um dos elementos constituintes da resposta à pergunta
formulada, mas é seu dever organizar com os alunos mais perguntas e buscar
em colegas, em profissionais, nas fontes, na herança cultural, os
esclarecimentos disponíveis; é aqui que a pesquisa começa, é aqui que o
caminho começa a ser construído e ele somente passa a ter existência depois
de percorrido, na narrativa que se escreve deste processo de produção. Enfim,
trata-se de pensar o ensino não como aprendizagem do conhecimento, mas
como produção de conhecimentos, que resultam, de modo geral, de novas
articulações entre conhecimentos disponíveis (GERALDI, 2010, p.97-98).
Em se tratando de um ensino que prima pelo desenvolvimento do aluno para além da
arte, postulo que “se a música for apenas uma matéria escolar entre outras, uma obrigação a
mais em nossa tão desejada ‘formação integral’, deixará de humanizar. Será obstáculo”
(PERISSÉ, 2009, p.74) e esse não é o objetivo da abordagem de estética e educação que aqui
proponho.
100
Figura 12. Violino que desmonta I.
101
Figura 13. Interior do tampo superior e inferior.
Figura14.Violino que desmonta montado!
102
Figura 15. Quebra-cabeça I.
Figura 16. Quebra-cabeça II.
103
Figura 17. Arquinhos reciclados
Figura 18. Material didático para o ensino de violino
104
3.3 Segundo cenário: Solo para violino
Este relato traz considerações estéticas a partir de uma atividade realizada num
conservatório de nível técnico22
conhecido também por oferecer aulas de curso livre23
na
cidade de Ribeirão Preto/SP. Como professora responsável pelas aulas direcionadas ao público
infantil, pude vivenciar ao lado de muitos desses pequenos intérpretes-compositores incríveis
trabalhos de criação musical como este que vou aqui apresentar. Mas o leitor pode estar se
perguntando: “Atividade de criação musical numa aula de violino de curso livre? Onde entra a
abordagem estética”. Sim, reflexões estéticas são possíveis e necessárias num contexto como
esse e podem ser trabalhadas todos os dias!
Em se tratando de um curso voltado para atender famílias que primam por um ensino
musical de excelência para seus filhos, as aulas têm como enfoque conteúdos técnicos,
orientações de estudo diário, execução de peças de diferentes estilos e períodos (escritas
especificamente para o instrumento) e conhecimentos gerais sobre o instrumento, no entanto,
procuro não perder de vista atividades que contemplam a inventividade, pois a meu ver, ser
um bom violinista não pressupõe somente tocar afinado e ter bom domínio técnico, como
intérprete é preciso saber pensar sobre música e ser criativo para além da arte musical.
Além da ampla abordagem técnica que direciono a este trabalho como professora de
violino, sempre procuro dialogar com meus alunos no intuito de conscientizá-los sobre o
processo formativo da prática musical, como também a reflexão do seu próprio fazer; nesse
aspecto faço uso das palavras de Regis Duprat no seguinte sentido:
os que fazem as coisas bem seriam justamente os que refletem bem sobre o
que fazem; porque se não souberem refletir sobre o que fazem jamais se
tornarão bons no fazer. Insisto em que não há fazer sem a reflexão sobre esse
fazer; que existe uma instância pragmática em toda reflexiva, e uma instância
reflexiva em toda tarefa pragmática. O homem culturalizado de hoje não
pode mais abdicar dessa verdade. E toda vez que o faz ou que é constrangido
a fazê-lo, se robotiza. E essa ameaça de robotização, universalmente presente
em nossa civilização pós-industrial, tida como pós-moderna, constitui, talvez,
22Emite certificado de técnico em música com reconhecimento do MEC.
23Cursos que não emitem certificado reconhecido pelo MEC.
105
o maior obstáculo para a livre expansão das potencialidades humanas e,
portanto, da liberdade. Diríamos, também, que essa robotização constitui uma
sobrevivência da modernidade, porque mecânica, no período da pós-
modernidade (DUPRAT, 2001, p.29).
Como mostra dessa abordagem, contarei a história da pequena Maria de sete anos,
aluna de violino desde os seis. Seu relato traz os desdobramentos de uma atividade de criação
musical solicitada como tarefa de casa. Vários recursos técnicos já faziam parte da sua
bagagem violinística.
Com o intuito de que ela pudesse explorar seus conhecimentos musicais e produzir
novos sons por meio deles sugeri como tarefa da semana uma atividade de criação musical. É
importante ressaltar que, Maria já possuía uma rica bagagem técnica violinística, embora seu
tempo de estudo ainda não tivesse completado um ano. Ao perceber seu desconforto por não
saber por onde começar, como ponto de partida pedi então que observasse os sons de sua casa,
de sua escola, das ruas ou dos parques de maneira que pudesse encontrar alguma ideia
inspiradora para a sua obra, ou seja, um
insight. A proposta consistia numa obra para violino solo. Combinados que a invenção poderia
ou não ser baseada em alguma cena do cotidiano, ficando a cargo dela os critérios de escrita e
registro da obra.
Na aula seguinte recebo Maria com as mãos ocupadas além do seu violino. De um
lado o instrumento e de outro uma bolsa e um papel escorregando pelas mãos. Esse papel era a
composição. Deixei-a à vontade para que apresentasse a composição como quisesse, e assim
preferiu pegar seu violino e tocar. Após a execução aplaudi e parabenizei-a pelo trabalho, em
seguida, Maria quis explicar-me cada detalhe. Enquanto narrava seu processo de criação e
escrita pude apreciar o percurso de sua inventividade observando cada detalhe do seu processo
de formatividade. Conforme afirma Pareyson:
o processo artístico pode ser ao mesmo tempo criação e descoberta, liberdade
e obediência, tentativa e organização, escolha e coadjuvação, construção e
desenvolvimento, composição e crescimento, fabricação e maturação. O que
caracteriza o processo artístico é precisamente esta misteriosa e complexa co-
possibilidade, que, no fundo, consiste numa dialética entre a livre iniciativa
106
do artista e a teleologia interna do êxito [...] (PAREYSON, 1997,
p.192[itálico do autor]).
Da escolha do tema até a execução da obra, quanta coisa Maria desbravou sozinha!
Ela alçou voos por meio do diálogo implícito que corria entre suas ideias e o material (seu
instrumento) que impunha suas leis e normas internas de manipulação; foi tentando que
chegou a organização de sua obra e na escolha de cada elemento imprimiu suas marcas
deflagrando estilo próprio; no processo de construção explorou novas técnicas violinísticas; ao
alinhavar todas as ideias que brotavam a cada instante descobriu que sabia muita coisa que
achava que não sabia e a partir da complexidade desses instantes Maria percebeu-se como
violinista capaz de criar. Dando continuidade à essa atividade inventiva decidimos inscrever
sua composição na apresentação didático-semestral que aconteceria no auditório da escola no
próximo mês. Maria foi aplaudida de pé! A seguir o registro de sua obra.
107
Figura 19. Registro da obra Solo para violino.
A temática da composição descreve um momento de banho inspirado no cotidiano da
própria aluna. O primeiro compasso apresenta sons de porta se fechando com a indicação de
batidas leves no tampo inferior do violino descritos pela autora como “bater atrás do violino”.
No segundo compasso a autora registra a seguinte frase: “tirar a roupa” e nesse momento a
execução é realizada com um movimento de detaché24
na madeira lateral do violino,
produzindo um som levemente “raspado”. No seguinte compasso produz-se o som da torneira
24Técnica de arco onde é realizado movimentos para cima e para baixo com o arco.
108
indicando uma execução atrás da ponte25
resultando num som ríspido e com poucos
harmônicos26
. No quarto compasso a água do chuveiro que cai é representada mediante o uso
da técnica sul ponticello27
descrito pela autora como “tocar na ponte na corda sol e cantar”. O
cantar faz menção àqueles que gostam de “cantarolar no chuveiro”. No compasso cinco e seis
as gotas do chuveiro caem enquanto se fecha a torneira (novamente representada pelos sons
expressos atrás do cavalete). Nos compassos sete e oito o movimento de detaché na madeira
lateral do instrumento mais uma vez remete aos sons deslizantes da toalha e das roupas secas.
Ao término da obra, no compasso nove, a porta se fecha representada por batidas no tampo
inferior do instrumento conforme sua abertura.
A atividade de invenção foi um caminho para que Maria pudesse explorar não
somente sua musicalidade e processo criativo, mas também os conhecimentos técnicos do seu
instrumento adquiridos ao longo de sua rotina de estudos. Segundo as reflexões de Pareyson,
A habilidade de quem domina o ofício é a resultante da simples routine
(rotina, em francês no original): repertório de soluções, depósito de truques e
catálogo de “macetes”. Mas se a habilidade se alimenta das obras-primas e
faz seu ninho em uma memória operativa em que os modos de fazer,
entrelaçando-se organicamente entre si em uma progressiva acumulação,
enriquecem a própria energia formante da personalidade do artista,
manifesta-se então como a habilidade de quem, possuindo o domínio do
ofício, possui igualmente o próprio estilo (PAREYSON, 1993, p.157).
O contínuo exercício de uma memória operativa contribui positivamente para um
viver criativo cujas habilidades transcendem às realizações artísticas, ajudando-nos a refletir
sobre nossas condutas e convivência social.
A abertura da obra "A dança do universo" escrita pelo físico Marcelo Gleiser,
consiste num exemplo significativo acerca da importância da inventividade para a vida, como
25Designado também por cavalete consiste numa peça ornamentada cuja função é sustentar o peso das cordas e
transmitir suas vibrações para o interior do instrumento. 26
“Cada um dos sons produzidos numa série harmônica” (Novo Dicionário Aurélio). 27
Técnica que consiste na execução do arco sob o cavalete, resultado numa sonoridade ríspida e com poucos
harmônicos.
109
por exemplo, na prática de um pensador da área das ciências naturais. Abaixo um trecho dessa
abertura.
Muitos pensam que a pesquisa científica é uma atividade puramente racional,
na qual o objetivismo lógico é o único mecanismo capaz de gerar
conhecimento. Como resultado, os cientistas são vistos como insensíveis e
limitados, um grupo de pessoas que corrompe a beleza da Natureza ao
analisá-la matematicamente [...] A ciência vai muito além da sua mera
prática. Por trás das fórmulas complicadas, das tabelas de dados
experimentais e da linguagem técnica, encontra-se uma pessoa tentando
transcender as barreiras imediatas da vida diária, guiada por um insaciável
desejo de adquirir um nível mais profundo de conhecimento e de realização
própria. Sob esse prisma, o processo criativo científico não é assim tão
diferente do processo criativo nas artes, isto é, um veículo de autodescoberta
que se manifesta a tentarmos capturar a nossa essência e lugar no Universo
(GLEISER, 1997, p.17[itálico meu]).
Por meio de atividades como essa é possível despertar mudanças de conduta muitas
vezes imperceptíveis aos olhos do educador, no entanto, quando o processo criativo é
reconhecido e valorizado pelo próprio aluno as fronteiras da arte se rompem para os mais
diversos campos do saber; nesse sentido, penso que atividades reflexivas em torno dos
problemas da estética contribuem significativamente para uma formação consciente e reflexiva
do próprio fazer.
Quando a aluna me entregou a cópia do material para compor as ilustrações desta
dissertação notei que haviam manchas que poderiam comprometer a leitura da sua obra, e logo
chamei a atenção para os problemas estéticos em torno das mutilações, do desgaste do
material, ou da pátina do tempo; fatos que não podem ser descartados por aqueles que lidam
com produções grafadas em registros manuais.
Do processo de realização dessa atividade até a produção desse relato muito tempo se
passou e a obra que nascera para ser executada encontrava-se na gaveta, o que na doutrina
pareysoniana também se configura como um problema de natureza estética, podendo ser
definido como “esquecimento do homem”. No ato em que esse parágrafo nascia pude
observar que o trabalho de invenção ainda continuava, mas por meio dos desses escritos.
Embora o registro de Maria traga consigo a pátina do tempo apresentando deformidade ao
110
colorido dos seus desenhos, bem como nos textos explicativos da partitura, o presente capítulo
contribui para que sua obra seja lembrada por todos os leitores que por aqui passarem,
adquirindo novos olhares e novas interpretações, pois de acordo com Pareyson “a mutilação da
forma lhe compromete o perfil e a extensão, sem todavia destruir lhe a integridade” (1993,
p.108).
3.4 Terceiro cenário: Construindo um dicionário de música
Este cenário diz respeito a mais uma possibilidade educativa que suponho segundo os
conceitos estéticos que apresento nesta dissertação. Baseado numa atividade escolar
vivenciada por mim num contexto escolar privado de ensino fundamental I e II na cidade de
Ribeirão Preto/SP, o presente artigo descreve o processo de invenção e construção de um
material literário de música.
O relato que será aqui descrito foi apresentado no IV Encontro de Educação Musical
promovido pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
porém com poucas ilustrações dessa atividade. Nesta edição compartilharei todos os registros
dessa produção e detalhadamente as reflexões estéticas orientadoras desse processo. Antes de
relatar o percurso dessa caminhada pedagógica apresentarei ao leitor o presente cenário
escolar.
Como professora de música ministrei nessa instituição de ensino as disciplinas de
violino, prática de orquestra e apreciação musical. Caracterizado por seu ambiente familiar e
acolhedor o espaço físico dessa escola é conhecido pela comunidade de pais e alunos por fazer
menção a uma grande casa. O ensino fundamental é composto por três amplas salas
denominadas nível I, II e III. Em cada um dos níveis são agrupadas crianças com faixas etárias
distintas, possibilitando experiências significativas entre os mais velhos e mais novos. O nível
I recebe crianças dos seis aos oito anos; o nível II crianças dos nove aos onze anos; e o nível
III dos treze aos quatorze anos.
A principal filosofia por detrás deste trabalho reside na valorização das distintas
formas de pensar, tomando como princípio formativo a participação do outro como fonte do
111
próprio aprendizado. Institucionalmente, esse modelo composicional de sala de aula recebe o
nome de salas de auxílio mútuo ou salas multi-seriadas. O mobiliário interior compõe-se por
quatro mesas redondas de quatro a seis lugares, prateleiras e armários disponíveis para o uso
de todos, inclusive os materiais escolares expostos sobre elas (lápis grafite, borrachas, lápis de
cor, giz de cera, entre outros utensílios). Além dessas três salas de aula o espaço escolar dispõe
também de secretaria, sala de professores, cozinha, refeitório, banheiros, quadra poliesportiva,
marcenaria, oficina de artes, sala de música, biblioteca, almoxarifado, amplo espaço de
convivência e apresentações em geral (teatro, saraus, concertos e formaturas), além das
repartições e instalações que comportam a educação infantil.
A sala de música, cenário onde essa atividade pôde ser desenvolvida, caracteriza-se
por seu amplo espaço físico propício para desenvolver atividades de roda e dança, possuindo
lousa pautada28
, giz, cadeiras, um piano de armário, dez violinos (tamanhos variados), um
violoncelo, uma bateria, instrumentos percussivos (alguns produzidos pelos próprios alunos da
escola), oito flautas doces, sendo cinco sopranos e três altos.
Imerso na proposta pedagógica deste contexto educativo, o relato trará possibilidades
de uma proposta estética de educação considerando a estrutura pedagógica da referida
instituição. É importante frisar que algumas especificidades aqui propostas se enquadram no
bojo temático e interdisciplinar dessa estrutura pedagógica.
Denominados unidades de trabalho os projetos interdisciplinares dessa instituição de
ensino têm como principal característica o uso de metáforas como fio condutor das atividades
a serem realizadas por cada uma das disciplinas. Nesse contexto, a metáfora se dispõe como
uma porta de entrada especulativa, possibilitando às diferentes áreas de conhecimento uma
relação dialógica entre os conteúdos; assim sendo, a abertura das aulas de todas as disciplinas
se dá sempre através da mesma metáfora. Segundo a educadora e pesquisadora Balieiro, “as
metáforas nos ajudam a compreender uma ideia recorrendo à outra ideia, sustentando a rede de
relações que configura nosso espaço vivencial, ou seja, nossa cognição” (BALIEIRO, 2004,
p.1).
28 Pauta ou pentagrama musical.
112
O conteúdo em foco não é apresentado a princípio, mas aos poucos, com a
contribuição da metáfora e das demais áreas do conhecimento sua essência vai sendo
desvelada. Baseado nas reflexões de Balieiro, no contexto escolar “as metáforas deveriam
sugerir, de forma velada e implícita, os conteúdos, que deveriam ser descobertos, buscados e
compreendidos pelos alunos nos recorrentes períodos de conversações que aconteciam nas
salas de aula” (BALIEIRO, 2006, p.36).
A partir das práticas educativas interdisciplinares que pude vivenciar e desenvolver
em parceria com outros educadores nesse específico contexto educativo compartilharei mais
uma pequena uma mostra desta proposta estética de educação musical através da construção
de um dicionário de música.
Oh! Abre alas! Rumo ao dicionário de música
Antes dessa unidade de trabalho ser desenvolvida as crianças de nível I, isto é,
crianças entre seis e oito anos, haviam vivenciado estudos correspondentes aos aspectos
sociais e culturais do Brasil no período do Segundo Reinado enfocando a cidade do Rio de
Janeiro. Com o intuito de dar continuidade aos estudos desse contexto que haviam sido
trabalhados na unidade anterior a professora responsável29
apresentou aos docentes da escola
uma nova unidade de trabalho a ser desenvolvida com a sala do nível I. Visando aprofundar
aspectos artísticos em voga nessa época, como também a possibilidade de realizar um trabalho
inventivo e executivo, a professora responsável elegeu como conteúdo daquela unidade a arte
e a vida da compositora Chiquinha Gonzaga e como metáfora da unidade apresentou a
seguinte frase exclamativa: Oh! Abre alas!
Como professora de música e parceira deste projeto interdisciplinar apresentei aos
docentes uma proposta que pudesse integrar atividades de criação, execução e produção
literária fundamentado na temática central da unidade de trabalho que seria desenvolvida.
29 Designada como tutora é também responsável pelas disciplinas de língua portuguesa e estudos sociais.
113
Como atividade literária e de criação seria proposto a construção de um dicionário de música e
como atividade de prática a vivência de cada um dos verbetes que ali fossem elencados.
Os primeiros passos da minha aula foram dados com atividades de apreciação a partir
de algumas obras da compositora; em seguida lancei às crianças algumas perguntas acerca das
profissões desempenhadas pela artista ao longo de sua carreira a partir de informações trazidas
pela biografia que há alguns dias já vinha sendo utilizada pelos professores de outras
disciplinas. Propus aos alunos então, que recriássemos em nossa aula um dos trabalhos da
artista para que pudéssemos compreender na prática alguns dos seus ofícios e por meio dessa
vivência elaborar definições que pudessem substanciar o dicionário de música que
construiríamos, assim sendo, regência foi o primeiro tema eleito como primeiro passo dessa
aventura. É no próprio ato de invenção e produção, conforme apresenta a formatividade
pareysoniana, que o fazer gera outros fazeres; de acordo com as reflexões de Luigi Pareyson
que fundamentam esses escritos de estética e educação:
Seja qual for a atividade que se pense em exercer, sempre se trata de colocar
problemas, constituindo-os originalmente dos dados informes da experiência,
e de encontrar, descobrir, ou melhor, inventar as soluções desses problemas.
Sempre se trata de concluir e levar a cabo operações, ou seja, de produzir,
realizando, efetivamente, executando e de concluir o movimento de invenção
em uma obra que se esboça e se constrói com base numa lei interna de
organização. Sempre se trata de fazer, inventando ao mesmo tempo o modo
de fazer, de sorte que a execução seja a aplicação da regra individual da obra
no próprio ato que é a sua descoberta, e a obra “saia bem feita” enquanto, no
fazê-la, se encontrou o modo como se deve fazer (PAREYSON, 1993, p.21).
Diante dessa abordagem filosófica enquanto processo educativo, organizamos um
pequeno grupo e chamamos de orquestra com o objetivo de vivenciá-la enquanto um fazer,
pois somente no ato do fazer é possível encontrar outros modos significativos de fazer, como
por exemplo, redigir sobre.
Como repertório inicial as crianças pediram para executar a marchinha Oh! Abre
alas! Uma das obras da compositora que há alguns dias já vinha fazendo parte do repertório
daquela sala.
114
A nossa orquestra experimental foi composta por apenas dois naipes - percussão e
madeiras - e aos músicos foi proposto um revezamento para que todos pudessem vivenciar a
prática da regência. Todos tiveram a oportunidade de conduzir a orquestra; as crianças
observavam que cada um que se propunha a reger trazia estilos e gestuais bastante diferentes.
Em se tratando de uma abordagem estético-educativa, durante a atividade eu perguntava para
os membros da orquestra quais dentre os regentes estavam atuando com maior clareza em seus
movimentos, de maneira que pudesse estimulá-los a dialogar sobre a importância dos gestos e
interpretações musicais. Em duas aulas todos puderem vivenciar a prática de regência e assim
desenvolveu-se a práxis musical dessa atividade.
Em continuidade ao trabalho o grupo optou por eleger um regente oficial que pudesse
dar conta de conduzir o trabalho caso viessem a se apresentar. Enquanto ouvíamos os regentes
falarem sobre suas considerações musicais, apreciávamos suas reflexões estéticas sobre a obra;
naquele contexto, enquanto condutores, suas interpretações confluíam com as dos outros
alunos - na posição de intérpretes - que também propunham ideias sobre outras possibilidades
interpretativas.
Faço uma observação interessante: ao propor o exercício de regência todos quiseram
reger mesmo sem nenhuma explicação a priori. Em se tratando de um espaço educativo onde
a vivência musical é tida como prática diária dos estudos, determinadas explicações podem ser
desnecessárias, podendo ser observado na reação das crianças ao se disporem a reger sem
nunca antes terem regido.
Prosseguindo, procurei conduzir a atividade levantando questões de modo que o
grupo pudesse dialogar sobre o melhor caminho para a execução, tanto do ponto de vista da
interpretação dos músicos como do regente.
No início da atividade o ato de reger resumia-se apenas na movimentação dos braços,
mas aos poucos os alunos foram se deparando com as dificuldades que encontram um
“ensaiador” em seu ofício. Dinâmicas solicitadas através de gestos e não atendidas, cortes não
respeitados, andamentos sem sincronia, foram algumas das dificuldades observadas por eles.
Em contrapartida, os músicos também se depararam com a problemática de conceber um
115
acabamento musical em equipe, no entanto, o diálogo com outro e a aceitação das propostas
alheias legitimavam o trabalho que ali era realizado por todos. Segundo Pareyson,
Um modo de formar se torna comum sobretudo pela participação em uma
mesma situação histórica e no ambiente cultural em que estão igualmente
imersos os vários autores, por um lado ligados a seu tempo e, por outro,
capazes de reagir livre e originalmente à sua época. De tal sorte que, assim
como um semelhante modo de pensar, viver, sentir liga os espíritos de um
determinado tempo, da mesma forma os vincula um modo semelhante de
formar (PAREYSON,1993, p.36).
Ao tomar os pressupostos estéticos da formatividade pareysoniana como fundamento
do trabalho artístico em diferentes espaços de educação, pude observar que o processo
formativo das crianças cria vínculos significativos com o processo umas das outras.
Considerando a inventividade e a formatividade como fenômeno humano carregado pela
historicidade de cada pessoa, verifica-se a importância e a influência que exercem o fazer de
cada um na constituição social do outro.
No comentário a seguir, destaco uma observação feita por aluna durante o ensaio:
“Você (dirigindo-se ao regente) precisa esperar a gente terminar de tocar as notas da melodia
(frase), senão vai ficar tudo pela metade”! Questionei os regentes se era adequado ou não
cortes no meio das frases musicais; para facilitar a compreensão pedi aos alunos que
imaginassem como soaria se fosse um coral cantando com frases cortadas ao meio. E assim
prosseguimos com o ensaio na tentativa de executar cada um dos ritmos e frases em conjunto.
Na terceira aula foi escolhido um regente titular e um assistente, bem como um spalla
para a orquestra com o objetivo de organizar um concerto a todos da comunidade escolar.
Ao fim dessa etapa prática procuramos pontuar os aspectos característicos desse
ofício e a partir das considerações que cada criança trazia mediante a vivência de orquestra foi
possível dar os primeiros passos na elaboração do dicionário de música. A lousa nos serviu
como esboço provisório para o desenvolvimento conjunto de tais conceitos.
116
Para finalizar a construção deste material a colaboração do professor tutor30
foi de
grande importância. A revisão gramatical foi orientada pelo mesmo e em seguida o esboço foi
transcrito na aula de língua portuguesa para as páginas originais por algumas das crianças.
Passível de revisão ou novas edições o dicionário encontra-se disponível a todas as
crianças da escola e sempre que surgem dúvidas referentes aos temas por elas vivenciados
procuram recorrer a ele. Através dessa mesma abordagem foi possível construir mais quatro
verbetes, entre eles estão: música, ritmo, pulso e melodia, todos extraídos dessa mesma
unidade de trabalho.
Na tentativa de criar uma memória para o trabalho de produção e pesquisa musical
realizado pelas próprias crianças organizou-se na nossa sala de música um acervo contendo
além do dicionário, composições (escritas), áudios das apresentações e instrumentos também
confeccionados por elas.
Ações dessa natureza legitimam não somente a atuação prática das crianças em
concertos e demais apresentações, mas também suas produções literárias fomentando um
ambiente reflexivo, de produção e pesquisa. Neste caso, o registro escrito torna-se tão
relevante quanto o registro sonoro. Aproprio-me dos pressupostos pareysonianos para o campo
da educação musical no sentido de que:
Seja qual for a atividade que se pense em exercer, sempre se trata de colocar
problemas, constituindo-os originalmente dos dados informes da experiência,
e de encontrar, descobrir, ou melhor, inventar as soluções desses problemas.
Sempre se trata de concluir e levar a cabo operações, ou seja, de produzir,
realizando, efetivamente, executando e de concluir o movimento de invenção
em uma obra que se esboça e se constrói com base numa lei interna de
organização. Sempre se trata de fazer, inventando ao mesmo tempo o modo
de fazer, de sorte que a execução seja a aplicação da regra individual da obra
no próprio ato que é a sua descoberta, e a obra “saia bem feita” enquanto, no
fazê-la, se encontrou o modo como se deve fazer (PAREYSON, 1993, p.21).
Partindo do pressuposto de que a ciência nunca deve se estancar, porém manter-se
sempre aberta para novas investigações, penso que as atividades que desenvolvemos com
30 Nesta instituição escolar o professor tutor consiste num profissional da área de Letras que acompanha as
atividades diárias das crianças. Além de orientador, ministra também as disciplinas da língua portuguesa.
117
nossos alunos deveriam consubstanciar-se também enquanto fonte de pesquisa contribuindo
para o desenvolvimento reflexivo, criativo e social. Assim sendo, é possível tornar a sala de
aula num campo de cientistas, estetas, criadores e pesquisadores.
Acredito que experiências como esta é de extrema importância para a formação da
criança, e um dos papéis que considero fundamental a ser desempenhado pelos educadores
musicais é o de proporcionar aos alunos vivências colaborativas e de auxílio mútuo,
promovendo também respeito às propostas artísticas de cada um. O fomento ao registro de
determinadas atividades, bem como sua preservação e compartilhamento adequado
contribuem também como mostra valorativa de produções coletivas.
Se por um lado as ferramentas tecnológicas têm garantido o registro de importantes
atividades escolares – no sentido de preservar a história do trabalho artístico nas instituições –
por outro, quando se trata de diálogos estéticos sobre música ou arte em geral, muito pouco do
que é experienciado é registrado (no aspecto da escrita). Todas as formas de registro
possibilitam o fortalecimento da memória do trabalho dos alunos, como também das
instituições às quais estão inseridos.
Baseado nas reflexões de Marisa Ramos Barbieri, os registros escolares constituem-se
como fonte de pesquisa e os laboratórios se consubstanciam como espaços de verificação e
materialização das reflexões científicas. Tomando como exemplo o campo da ciência e suas
tecnologias - cujo registro é essencial - como modelo comparativo ao campo das práticas
educativas em música, como educadora musical certifico-me através de todos esses anos de
trabalho, o quanto somos agraciados por poder vivenciar ao lado dos nossos alunos
verdadeiros experimentos artísticos, porém, é importante lembrar que para que nossa
disciplina possa ter desdobramentos relativos aos das áreas científicas, é preciso fazer história,
afinal, quantas observações estéticas são abandonadas e esquecidas ao longo de uma aula?
Quantas observações que nos levam a respostas - Eureca! - e que no dia seguinte esquecemos.
Pois bem, como profissional responsável pela formação de cada criança que a mim é confiada,
sei que é quase impossível registrar tudo, pois se trata do dinamismo da vida que corre em sala
de aula, no entanto, o mais importante é não perder de vista ações educativas legitimadoras de
saberes individuais em confluência com o do próximo.
118
A ilustração a seguir apresenta a página do dicionário de música elaborado pelas
crianças contendo definições do ofício que possibilitou a artista Chiquinha Gonzaga difundir a
sua arte enquanto regente.
119
Figura 20. Regente.
“O regente é a pessoa que ajuda os músicos a tocar juntos; às vezes, o regente
rege apenas alguns músicos”.
“O instrumento do maestro é a batuta que serve para ajudar os músicos”.
“O regente usa gestos para ajudar os músicos com sons mais altos ou mais
baixos. Quando ele abre muito os braços eles tocam forte e quando não abre
muito eles tocam fraco”.
120
Quando o educador musical se propõe a conduzir suas atividades por meio de
perguntas e diálogos especulativos, é importante estar consciente dos caminhos inusitados que
o curso das respostas poderá conduzi-lo; as reflexões de Perissé confirmam essa premissa:
Abrir caminhos, dedicar-se à arte de ensinar, é atividade repleta de incertezas
quanto ao desenrolar dos acontecimentos, à reação dos alunos, aos resultados.
Incertezas não assustam o artista. A vida é incerta, a despeito dos nossos
esforços e conjecturas. O relacionamento humano é incerto. A arte nos ensina
que a vida é uma obra de arte em andamento, repleta de surpresas (PERISSÉ,
2003, p.88).
A descrição do processo de elaboração do verbete que compartilho a seguir é um
exemplo desses momentos de incerteza e surpresa vivenciado no decorrer desse trabalho.
Durante a atividade de regência desenvolvida na unidade de trabalho que teve como
base a biografia da compositora Chiquinha Gonzaga, falou-se muito sobre aspectos de
andamento e rítmico. Baseado nos diálogos que realizamos acerca dos andamentos achamos
oportuno levar também para o dicionário o verbete da palavra “pulso”.
Diante dos diálogos em torno da palavra “pulso” houve um fato que marcou essa
atividade. Como responsável pelas aulas de música dessa turma, estava eu acostumada a
mencionar “pulso” como “tempo” e somente no decorrer dessa atividade atentei-me para as
complicações desse hábito. Quando começaram a esboçar definições para a palavra “tempo” e
não pulso, percebi que a confusão já estava instalada. Ouvi respostas incríveis, mas nenhuma
delas relacionadas à prática musical. Uma delas dizia: “Professora, o tempo é assim.... olha já
passou!” e outra que muito me chamou atenção dizia o seguinte: “Eu sei o que é, mas se você
me pergunta eu já não sei”. Imediatamente após a aula comentei com a professora responsável
pelo grupo sobre a frase que me chamara atenção e para a minha surpresa, a professora disse
que havia mais de um mês que o professor de matemática havia proposto como metáfora de
uma unidade de matemática a seguinte frase do filósofo Santo Agostinho: “Que é, pois, o
121
tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicar a quem me pergunta, não sei” (cf.
AGOSTINHO, 1973)31
.
Esse exemplo dá mostras de uma experiência profundamente significativa vivenciada
outrora pelas crianças que desabrocharam na aula de música. Dias depois comentei com o
professor de matemática que ficou surpreso com a lembrança dos alunos.
A partir desse exemplo chamo a atenção para aspectos que vão além da música. Na
tentativa de corrigir a minha falha poderia eu ter ignorado todas as reflexões conduzindo os
alunos a uma nova compreensão da palavra “pulso”, mas a discussão já estava instalada e eu
preferi dar continuidade às reflexões sobre tempo, e por que não dizer estéticas?
Diante desse exemplo pude observar a importância de um trabalho significativo para
a vida dos alunos como um todo, pois a capacidade de imaginar e costurar experiências do
passado com o presente vislumbrando desdobramentos futuros só é possível mediante as
marcas daquilo que foi vivido. Carregado de sua historicidade e formulações oriundas do
diálogo ou da fala de outrem, em sendo o educador um esteta em sala de aula é possível
observar fagulhas e fragmentos dessa complexa trama humanamente inconclusa em sua
31
Ao anoitecer recebi da professora o seguinte e-mail dizendo:
Sara, boa noite,
professor de matemática, quando trabalhamos Unidades passadas, ele comentou sobre essa frase, não me lembro
como era nem de onde ele tirou, mas impressiona nossa aluna ter guardado o conhecimento para usar no
momento adequado. Perceber que crianças tão jovens fazem isso é um ganho do trabalho que passa pela
imaginação e não só de conteúdos ‘formais’. Você pode investir nisso, pois é observadora e sensível. Fiz para
você pela sua capacidade de trabalho. Pelo seu entusiasmo hoje na hora do almoço. Nem dei acabamento, fiz e
pronto:
Professora encantadora de alunos,
Para isso nem precisa de violino.
Basta percussionar,
Basta chegar.
Professora encantadora de alunos,
Para isso pode precisar do violino
Basta tocar,
Basta chegar.
Professora encantadora de alunos,
Para isso basta chegar.
122
realidade e dinâmica social. Na ilustração da página seguinte segue o material contendo a
definição de “pulso” em música
Figura 21. Pulso.
“O pulso sempre se mantém. Pode ser lento ou rápido”.
123
O verbete de música nasceu a pedido das próprias crianças, afinal de contas, como
elaborar um dicionário de música sem a principal definição que seria música? Nesse sentido, a
partir das considerações que as próprias crianças formulavam pude apreciar o conceito de
música de uma forma simples e enriquecedora.
O tempo de vida e as experiências que adquirimos ao longo desse viver consistem no
principal aspecto que nos diferencia desses pequenos enquanto indivíduos criativos.
Conceituar música trata-se de compreender aspectos altamente complexos, e por alguns
instantes fiquei pensando: “Como eu definiria música? Música em qual contexto social e
cultural? Música enquanto processo inventivo ou executivo? Música do ponto de vista de
quem faz ou de quem ouve?” Concluí rapidamente minhas reflexões convicta de que precisaria
escrever uma tese a respeito, portanto, o melhor caminho seria considerar somente as
definições que fossem elaboradas por elas. E não demorou para que essas elaborações
“conceituais” começassem a fluir, pois nesse contexto educativo a vivência musical é
complementar à rotina de estudos. Penso que atividades que proporcionem aos alunos o
desenvolvimento de seus espíritos criativos e especulativos “é uma questão de sobrevivência,
na medida em que integre um projeto de humanização” (PERISSÉ, 2009, p.90).
Vivenciar música por meio da imitação, improvisação, dança, criação, interpretação,
produções literárias ou do ato contemplativo proporciona ao humano experiências
significativas para além dos próprios fenômenos artísticos. Conforme as reflexões do autor:
O dinamismo criador não pertence exclusivamente ao artista. A experiência
que tenho ao ler uma obra literária de qualidade, ao ouvir uma canção
comovente, ao deter meu olhar sobre um desenho engenhoso, ao assistir a um
filme bem feito, ao acompanhar os diálogos de uma peça teatral... pode levar-
me a uma nova compreensão da realidade e de mim mesmo, a uma
compreensão lúdica, isto é, a uma interpretação que supera reducionismos,
calculismos e outros “ismos” limitantes. Pode até, despertar em mim o artista
que eu não acreditava ser (PERISSÉ, 2009, p.37).
As definições que foram sendo atribuídas ao verbete de música pelas crianças,
desvelaram significados dessa arte em suas vidas, tanto como disciplina escolar quanto
124
experiência ligada à vida conforme pode ser observado nas seguintes frases que integram o
verbete: “É uma aula onde tocamos, ouvimos e imaginamos música. Pode servir de consolo na
tristeza”. Na ilustração da página seguinte em destaque as frases que compõem esse verbete.
125
Figura 22. Música.
“É uma aula onde tocamos, cantamos, imaginamos e ouvimos música”.
“É ter imaginação e atenção”.
“Pode ter muitos estilos a sua frente. Pode ser calma e agitada”.
“Pode ser criada a partir do silêncio e da audição”.
“Pode servir de consolo na tristeza”.
126
Figura 23. Música.
“Pode nos fazer sentir alegria, tristeza, raiva, medo, susto”.
“Nasce a partir dos sons dos instrumentos musicais, das notas musicais com
diferentes durações, do jeito que se ouve, dos estilos e das ideias do compositor”.
“É o tempo que passa”.
127
Inspirando outras crianças...
A produção do dicionário inspirou outras crianças a produzirem novos materiais
literários. Com a justificativa de poder orientar aqueles que chegassem à escola sem nunca
terem praticado o violino32
, os alunos do nível II decidiram escrever um livro didático voltado
para a técnica do instrumento. Expliquei a eles que a produção do dicionário de música que
havia sido construído pelas crianças do nível I fora elaborada segundo experiências práticas.
Sugeri então que, observassem a partir de suas aulas práticas de violino aspectos técnicos
relevantes que pudessem ser transcritos em forma de orientação aos alunos iniciantes.
No decorrer das aulas de instrumento entre um exercício, uma escala ou uma peça
que o grupo executava conversávamos sobre informações técnicas que pudessem servir como
conteúdo do livro que seria destinado aos alunos ingressantes. Discutimos também sobre a
qualidade do texto, de modo a proporcionar a todos uma leitura fluída e compreensível do
assunto. Embora a produção literária do livro tivesse o apoio da professora de língua
portuguesa, como também da professora responsável pelos trabalhos manuais (auxiliando no
acabamento e confecção do livro), a atividade precisou ser interrompida para que outra
envolvendo um maior número de alunos pudesse ser desenvolvida em conjunto. A seguir os
resultados parciais deste trabalho.
32 A aula de violino compõe a grade curricular dessa escola a partir do nível II.
128
Figura 24. Detaché.
“Detaché. É o movimento de arco para baixo e para cima. O detaché pode ser
tocado com o arco inteiro ou meio arco. Geralmente, é a primeira técnica que
aprendemos e, muitas vezes, a aprendemos sem saber o seu nome”.
129
Figura 25. Pizzicato, Trêmulo e Martellé
“Pizzicato. O pizzicato é uma técnica que usamos sem arco. Puxamos a corda com
o dedo indicador direito”.
“Trêmulo. É uma técnica em que o violinista toca rápido usando pouco arco
próximo à ponta”.
“Martellé. É uma técnica na qual utilizamos a parte do meio do arco. Ao movimentar
o arco para cima e para baixo, é preciso inserir uma pausa entre cada movimento
do arco. É importante tocar com pressão e velocidade”.
130
3.5 Quarto cenário: Reflexões sobre a prática
Neste cenário apresento reflexões sobre a prática musical - envolvendo a técnica -e a
importância do seu registro; esse relato poderia ser questionado no seguinte sentido: Como
que uma atividade técnica pode-se configurar numa proposta estético-educativa? Aliás, é
possível a aplicação de uma abordagem estética segundo os fundamentos apresentados nesta
dissertação numa aula individual de instrumento?
A realização dessa atividade se deu na cidade de Sertãozinho no mesmo contexto
educativo descrito no primeiro cenário33
deste capítulo. Resultante das aulas individuais de
instrumento (nesse caso de violino) as figuras ilustrativas que serão aqui apresentadas trazem a
produção do livro intitulado “Dicas para violinistas” produzido pela aluna Juliana de oito anos.
Juliana é aluna de violino desde os sete anos nessa instituição de ensino e iniciou seus estudos
de música sob o incentivo da família e de sua irmã mais velha, também violinista desde os sete
anos de idade.
Durante uma de suas aulas (individual) de instrumento, enquanto executava o
repertório, chamaram-me a atenção alguns detalhes técnicos que cuidadosamente Juliana
operava. Com o intuito de que ela se conscientizasse de tal habilidade de forma a engrandecer
ainda mais a sua aptidão lancei uma pergunta: “Nossa! Como o som está bonito! O que você
fez para conseguir esse resultado?” Baseado numa abordagem estética de educação penso
também que, “a admiração pode e deve deflagrar o pensamento, provocar perguntas, sacudir
inércias” (PERISSÉ, 2009, p.26); diante disso, a pergunta pegou-a de surpresa, pois ela mesma
parecia não estar atenta para seus movimentos técnicos, apenas tocava demonstrando de
maneira fluída seu domínio instrumental. O meu intuito era que ela pudesse sedimentar seus
conhecimentos técnicos também no âmbito do pensar. Após ser indagada, Juliana retomou os
mesmos movimentos violinísticos e começou a formular suas explicações. A partir das
reflexões que elaborava para responder minhas perguntas pude apreciar a forma com que
articulava suas bases teóricas, verificando também a formatividade do seu pensamento
conectado a fala.
33 Conferir maiores detalhes na página 40.
131
Em virtude da reação positiva que apresentava Juliana diante das conversas que
tínhamos sobre aspectos técnicos do instrumento, procurei conduzir as aulas pelo mesmo
caminho das perguntas até que um dia disse a ela: “Você bem que poderia me ajudar a ensinar
outras crianças com todas essas formas que você encontrou para tocar!” Motivada por suas
conquistas e cheia de criatividade, respondeu-me: “Claro que posso professora! Você quer que
eu venha na aula das outras crianças?” Respondi a ela que seria enriquecedor para todos, mas
devido à restrição dos seus horários (considerando atividades escolares e outros afazeres)
sugeri a produção de um livro e no mesmo instante ela providenciou folhas e sem
impedimento algum começou a escrever. E assim, nasceu o livro “Dicas para violinistas”.
Conforme suas habilidades técnicas se desenvolviam dialogávamos sobre os
caminhos tomados, procurando sempre trazer reflexões sobre os resultados obtidos. Numa
proposta de educação estética e valorativa do pensamento de outrem, dispor de tempo é
essencial para que o diálogo e o trabalho fluam com respeito e dignidade, tanto para o
educador como para o educando. Segundo Perissé,
A aula é encontro se houver espírito de infância, criação de situações que
detém o tempo. Quando nos encontramos numa situação criadora, ambital,
lúdica, o tempo não passa. Paramos de envelhecer. Deixamos de ser adultos
adulterados e reencontramos a alegria de pensar, imaginar, fabular
(PERISSÉ, 2009, p 87).
Em vista disso, posso afirmar que a realização de trabalhos como esses, além de
proporcionarem a mim a alegria de pensar e fabular junto com meus alunos, vivificam o meu
trabalho fortalecendo também os laços de respeito e admiração entre eu meus verdadeiros
mestres.
Porque refletir sobre a prática instrumental? Acredito que toda operação humana
pressupõe um fazer acompanhado do pensar, além disso, afirmo também que, mesmo não
sendo o pensar tão evidente em algumas instâncias do fazer, não deixa de ter menos valor que
a realização prática. Acerca do ato de pensar, Pareyson traz a seguinte reflexão:
Também o exercício do pensamento e a atividade moral exigem um “fazer”,
sem o que não se concretizariam em atos práticos ou de pensamento. Não se
132
pode pensar a não ser efetuando movimentos de pensamento com que se
passa de juízo a juízo e de raciocínio a raciocínio, sempre ligando e
sistematizando, isto é, realizando uma totalidade completa e, sobretudo,
formulando explicitamente os pensamentos, isto é, realizando-os em
proposições [...] De sorte que tanto o pensamento como a vida moral exigem
o exercício daquela atividade realizadora e produtiva sem a qual nenhuma
obra é possível (PAREYSON, 1993, p.21).
Assim sendo, através de diálogos e perguntas pude realizar em parceria com minha
aluna o presente livro. Com o objetivo de registrar e refletir esteticamente aspectos técnicos do
instrumento, a cada aula eu procurava levantar questões acerca da sua produção.
Todas as “dicas” foram elaboradas e redigidas num período de dois meses. Durante
esse período trabalhamos por meio de um esboço onde as correções ortográficas e gramaticais
também foram realizadas. A escolha do material para a coloração de fundo das páginas, bem
como margens e escritos foram escolhidos e realizados pela própria autora. Minha parcela no
acabamento do livro se deu em alguns contornos e na produção da capa, produzida
artesanalmente com materiais reaproveitados com intuito de valorizar e preservar a edição
final deste trabalho.
Ao término de sua produção o livro foi disponibilizado na biblioteca da instituição
para todas as crianças de todos os cursos e para a nossa surpresa um aluno do curso de música,
também estudante de artes plásticas, ao ler o livro se ofereceu para ilustrá-lo, pois havia um
amplo espaço abaixo dos textos de cada página; a parceria foi aceita e o resultado
comemorado entre todos.
Nas páginas seguintes a produção desse trabalho poderá ser apreciada na íntegra sem
a intervenção de parágrafos explicativos. Atualmente, o livro encontra-se disponível a todos os
alunos que frequentam essa instituição de ensino. Com base nas reflexões pareysonianas,
penso que o exercício prático também pode ser abordado de forma significativa via perguntas,
permeando de forma reflexiva o fazer de cada um. Nas palavras do autor:
não se pode pensar sem ao mesmo tempo agir e formar, nem agir sem ao
mesmo tempo pensar e formar, nem formar sem ao mesmo tempo pensar e
agir. Conforme a posição que assumem dentro de uma determinada operação,
as atividades humanas se fazem, portanto, a cada vez, específicas ou comuns,
133
predominantes ou subordinadas, intencionais ou constitutivas. (PAREYSON,
1993, p.24).
Após a conclusão do livro pude observar o quão significativo fora esse trabalho para
Juliana. Todas as vezes que vivenciávamos algumas das questões em destaque no livro com
outras crianças, ela dizia: “Lembra da dica professora? Mostra no livro!”, assim sendo,
verificar-se que “o conhecimento sistematizado deve fazer parte do percurso e não ser o fim do
percurso” (GERALDI, 2010, p.101). Através da produção desse material que se presta como
livro de consulta pedagógica a tantas outras crianças, Juliana passou a demonstrar mais
confiança em relação à sua prática como violinista, dando mostras também de orgulho e
satisfação perante a construção do seu próprio trabalho.
Em suma, diante desse relato destaco possibilidades de uma abordagem estética em
uma aula individual de violino, pois penso que todo estudo é passível de experiências belas e
criativas. Segundo Perissé,
A experiência estética (todo o estudo pode converter-se em experiência de
beleza) torna-nos mais confiantes no poder criativo do ser humano, em nossa
capacidade para admirar belezas, ansiar verdades, realizar coisas boas. E,
pensando bem, até mesmo reconhecer o que há de perverso na vida humana
(perversão é a pior versão) desperta nosso desejo de perfeição, outro
“impossível necessário” (PERISSÉ, 2009, p.94).
Como mostra desse relato, segue cada uma das páginas que compõem essa bela
experiência de produção literária e editoração vivenciada numa aula de instrumento.
134
Figura 26. Capa do livro34
34 O nome da autora foi apagado para preservar sua identificação.
135
Figura 27.Dica 1.
“Como fazer um som suave: Para fazer um som suave você precisa tocar
relaxadamente e com o arco muito leve”.
136
Figura 28. Dica 2.
“Como tocar sem esbarrar: preste muita atenção no arco e no violino para não
esbarrar nas cordas”.
137
Figura 29. Dica 3.
“Quando você errar não pare de tocar; continue tocando”.
138
Figura 30. Dica 4.
“Como tocar forte. Aperte um pouco a crina na corda e não se preocupe”.
139
Figura 31. Dica 5.
“Quando você se perder tocando na orquestra fique calmo e tente continuar”.
140
Figura 32. Dica 6.
“Quando não souber as notas pergunte para a professora ou professor”.
141
Figura 33.Dica 7.
“Quando você errar muito peça para a professora colocar marquinhas”.
142
3.5.1 Considerações sobre o exercício como atividade imprescindível
da produção
No percurso inventivo de qualquer atividade artística o exercício se consubstancia
como um aspecto vital da formatividade; um modus operandi que deve ser compreendido pelo
educador musical como uma necessidade intrínseca do fazer e não somente como um mero
manuseio técnico despido de qualquer valor. Por trás do exercício que reside na busca
incessante pela forma é possível extrair exemplos significativos transcendentes a destreza
mecânica. Conforme nos apresenta Pareyson,
Certamente o momento da obediência exige paciência e assiduidade: no
mundo humano só há conquista com esforço, facilidade com suor, domínio
com submissão; não há dom sem merecimento, nem graça sem pesquisa, nem
pícaro que não seja um prêmio [...] Lançar-se a “fazer” ainda que somente
aplicando regras e repetindo modelos, é o melhor modo para alcançar aquela
aptidão operativa e facilidade executiva que poderão ajudar, um dia, a
reinventar as regras transformando-as em modos de fazer e assimilar o estilo
dos modelos, convertendo-o no próprio modo de formar. Nem sempre a
inventividade e a originalidade brotam de que não poderão surgir a não ser
emergindo com a letra para aí saber ler e manifestar o espírito; é mister saber
aceitar as formas para se pôr em condição de inventá-las. Somente o já feito
pode ser caminho para quilo que se há de fazer (PAREYSON, 1993, p.155).
No percurso da formatividade o exercício se apresenta como uma atividade ambígua,
pois consiste numa tarefa que faz, mas que ainda não consegue fazer; é a busca pelo esmero do
traço e dos delineamentos que caracterizam a obra; é o tatear da matéria que ainda não
consegue ser forma; é a busca pelo estilo enquanto se forma; para tanto, exige paciência e
assiduidade daquele que faz. Segundo a ótica pareysoniana, “é uma fase de pesquisa e teste,
em que se examinam as próprias possibilidades e as da matéria”, consistindo num único
caminho para que se possa alcançar o êxito da concretude artística; de acordo com o próprio
autor:
143
no exercício a disciplina pode tornar-se criadora, a assiduidade pode fazer-se
invenção, o esforço pode traduzir-se em descoberta, e a matéria ser sugestiva;
tudo isso é claro, logo que se pensa no conceito de uma “espera” que é por si
mesma atrativa e suscitadora, fértil e evocativa (PAREYSON, 1993, p.84-
85).
Em vista disso, acredito que olhar para o exercício como sendo uma atividade de
disciplina e obediência como virtude a ser alcançada por meio da produção, resulta numa
proposta educativa que ultrapassa os objetivos do fazer artístico, dado que o êxito do trabalho
só se alcança via tentativa e erro perante uma conduta criativa e perseverante.
A formatividade se alimenta de um tentar que se aprimora tentando, refazendo e
corrigindo. É um tentar que tenta através do diálogo com a matéria, do exercício, da
composição e do aperfeiçoamento atingir puro êxito; em essência, podemos encontrar essa
mesma forma de tentar em outras instâncias operativas do viver. Conforme já foi demonstrado
em capítulos anteriores, na vida cotidiana a invenção muitas vezes está associada a uma
finalidade, na arte o artista forma por formar e a obra resulta em forma porque deriva de sua
formatividade.
Através desse pensamento, podemos rever os valores implícitos do exercício
enquanto mecanismo que viabiliza a forma formada, como também único caminho de
realização, produção e aprimoramento. Para produzir qualquer coisa necessitamos
constantemente de uma prática assídua e rotineira para se alcançar resultados significativos.
Nas palavras de Pareyson,
A habilidade de quem domina o ofício é a resultante da simples routine
(rotina, em francês no original): repertório de soluções, depósito de truques e
catálogo de “macetes”. Mas se a habilidade se alimenta das obras-primas e
faz seu ninho em uma memória operativa em que os modos de fazer,
entrelaçando-se organicamente entre si em uma progressiva acumulação,
enriquecem a própria energia formante da personalidade do artista,
manifesta-se então como a habilidade de quem, possuindo o domínio do
ofício, possui igualmente o próprio estilo (PAREYSON, 1993, 157).
144
Toda atividade artística pressupõe a experimentação e a manipulação; sistemática ou
pouco sistemática as tentativas se estabelecem como exercícios técnicos. Segundo Humberto
Eco,
E é precisamente este caráter aventuroso e interrogante da acção [sic]
formativa que vai permitir a Pareyson escrever páginas densas e acutilantes
sobre o valor da improvisação e do exercício como pesquisas da virtualidade
contida na ‘matéria’, e lhe abre um caminho para a remeditação do problema
da inspiração, fora dos esquemas românticos e dionisíacos (ECO, 1972,
p.19).
Diante dessas reflexões, penso que o educador musical possa enriquecer e exaltar o
trabalho técnico de seus alunos enfatizando conquistas virtuosas no sentido da paciência e
constância no ato de operar; “A técnica não pode ser um fim em si, mas um meio de se
alcançar determinado resultado” (SEINCMAN, 2008, p.28), e aqui postulo que tais resultados
possam contemplar não somente a produção de arte como um todo, mas também aprendizados
para uma vida equilibrada com labor, perseverança e conquistas.
145
Capítulo 4
Diálogos entre autor e obra
146
147
4. Energia formante e matéria. Diálogos entre autor e obra
O diálogo entre autor e matéria trata-se da relação entre a energia formante que
emerge das mãos daquele que produz e da fisicidade do material escolhido para a realização de
determinado trabalho. Em vista da escolha do material para dele extrair determinado
propósito, a matéria através da qual a obra será formada passa a revelar suas leis internas, mas
é importante recordar que antes de ser reclamada para uma finalidade específica repousa em
sua essência coisal.
Mediante o diálogo entre a fisicidade da matéria e a intenção com a qual o autor
pretende dela formular, a legalidade interna da matéria se manifesta por meio de seus limites
em confronto com as ideias do autor que perpassam de um lado para o outro em busca da
forma. Vejamos num exemplo hipotético possibilidades de examinar esse problema estético
numa dada proposta de invenção e produção artística: digamos que os alunos escolham como
material para realizarem uma composição musical baseada em algum tipo de programa de
arte35
dois violinos, três flautas doces sopranos e suas próprias vozes. Dado esse propósito o
primeiro passo consiste na manipulação dos instrumentos, bem como sua experimentação
sonora; assim sendo, de tentativas em tentativas os alunos (autores) deparar-se-ão com os
limites impostos pela matéria (e seus) no percurso de tal operação, isto é, a busca pela forma.
Nesse tipo de atividade é comum os alunos manifestarem dificuldades para
inventarem e produzirem malgrado o confronto entre suas intenções e os limites do material
escolhido. Diante de uma situação como essa, como educadora, procuro encorajá-los
enfatizando que o que eles vivenciam naquele momento consiste no difícil diálogo com a
matéria pelo qual artistas e inventores de qualquer outra natureza também passam.
35A música de programa ou descritiva estrutura-se mediante a intenção descritiva de um texto ou qualquer
programa de arte. Embora tenha se constituído como uma forma composicional fortemente exercida durante o
século XIX, o musicólogo e esteta Enrico Fubini ressalta em sua obra “La estética musical desde la Antiguedad
hasta el siglo XX” que essa prática “no se trataba de uma novedad absoluta; dentro de la historia de la música, ya
habia do intentos de decribir, sin la ayuda de um texto literário, alguno que outro sucesso o fenômeno natural; em
este sentido, basta recordar La batalla de Andrea Gabrieli, Las historias bíblicas de Kuhnau, Las estaciones de
Vivaldi y, finalmente, la Pastoral de Beethoven, citándo-se tan solo ejemplos más ilustres” (FUBINI, 2002,
p.304).
148
É preciso reconhecer que no trânsito formativo a matéria dita suas próprias leis em
confronto com as intenções do autor, no entanto,
é precisamente o artista quem a constitui como tal, imprimindo-lhe uma
disposição fértil de possibilidades e dela liberando uma multidão de
sugestões criativas e de iniciativas de obras. Sem o olhar fecundador do
artista, a matéria é inerte e muda: apenas aquele olhar formativo desperta-a
para a vida da arte (PAREYSON, 1997, p.163).
Dada a afirmação acima é lícito considerar também que, no trabalho dos nossos
alunos a matéria é “uma espécie de obstáculo sobre o qual se exerce a atividade inventiva, que
transforma as necessidades do obstáculo em leis da obra” (ECO, 1972, p.18); com base nesses
obstáculos vivenciados de maneiras diferentes por cada aluno, procuro mostrar como esses
problemas artísticos podem ajudá-los a encontrar cada vez mais soluções criativas para o dia-
a-dia, visto que nas palavras de Perissé “desenvolver nossa sensibilidade para o artístico é uma
questão de sobrevivência, na medida em que integre um projeto de humanização” (2009,
p.90).
A dificuldade dialógica entre autor e matéria não consiste na incapacidade do autor
produzir ou inventariar, mas na habilidade de transpor e transformar os obstáculos ditados por
ela mesma. Segundo a ótica de Eco, Luigi Pareyson integra no bojo conceitual da matéria os
“‘meios expressivos’, as técnicas de transmissão, os preceitos codificados, as várias
‘linguagens’ tradicionais, os próprios instrumentos da arte. Tudo isto está contido na categoria
geral da ‘matéria’, realidade externa sobre a qual o artista trabalha” (ECO, 1976, p.18);
portanto, aspectos como estes são essenciais aos olhos do educador enquanto orientador de um
projeto inventivo e criativo no campo das artes.
Diante do confronto entre o dinamismo da vida do autor e a coisidade da matéria é
possível tornar legítimo o esforço único e irrepetível que nasce das mãos de cada aluno, já que
“separar a obra da sua matéria é impossível: a obra nasce como adoção de uma matéria e
triunfa como matéria formada” (PAREYSON, 1997, p.165[itálico do autor]).
Cecília Cavaliere França é autora de uma vasta produção didática e acadêmica
voltada para aspectos educacionais em torno da prática de criação musical. Num dos seus
149
artigos nomeado “Engajando-se na conversação: considerações sobre a técnica e compreensão
musical”, França destaca possibilidades educativas em torno do pensar e agir musicalmente
por meio do desenvolvimento da compreensão crítica e de competências técnicas e funcionais.
Embora fundamentado por outras fontes teórico-filosóficas, as reflexões apresentadas pela
autora nesse texto trazem situações que dialogam com a presente proposta estética. O
exercício da composição, por exemplo, além de possibilitar a expansão dos recursos técnicos
dos alunos ampliando seus recursos expressivos em torno do discurso musical, capacitam
tomadas de decisões significativas para além da criação musical. Na citação abaixo trago uma
citação da autora que atina como respectivo diálogo entre autor e matéria.
Este exercício exploratório é guiado por um ouvir cuidadoso e uma
capacidade de julgamento, escolha e rejeição de possibilidades. Quando um
aluno pesquisa como usar as baquetas para produzir um fortíssimo, é a sua
concepção musical que o leva a explorar as maneiras diversas de abordar um
instrumento (ibid.). Assim, ele percebe que o propósito da técnica é atender
suas necessidades expressivas imediatas. Da mesma forma, articulações,
alternância de toques, legato e staccatto, pianíssimos e crescendos são
empregados naturalmente, contribuindo para a fluência do discurso musical
(FRANÇA, 2001, p.38).
É possível realizar uma leitura desse parágrafo via a concepção da formatividade;
além do exercício guiado por um ouvir exploratório ilustrar o diálogo pareysoniano entre
autor e matéria que vem sendo abordado, o ouvir cuidadoso, a capacidade de julgamento e a
escolha ou rejeição de possibilidades revelam também um fazer que se faz fazendo conforme
as leis que vão sendo ditadas pela matéria no momento em que o autor reclama por suas
intenções. A escolha do material pelo aluno - conforme o exemplo acima - pode desvelar ao
educador atento, suas concepções específicas de música.
A busca pela forma formada consiste numa operação esteticamente complexa não
distante (em essência) de um trabalho realizado por um adulto. As evidências extraídas desse
pequeno recorte revelam a complexa operação de adoção e manipulação da matéria através de
uma atividade de invenção artística no contexto escolar. Conforme as palavras de Pareyson,
150
Assim como a intenção formativa escolhe e adota a matéria em consonância
com as próprias exigências, e só então começa e ser tal e a definir os próprios
objetivos, assim também a matéria é adotada e escolhida justamente porque
sua natureza e suas características se prolongam em inúmeras possibilidades
reclamadas, para a própria realização, pela intenção formativa (PAREYSON,
1993, p.47).
Após a fase de adoção da matéria somado a intencionalidade do autor a matéria exibe
seus limites. A escolha do material e a pesquisa no sentido da manipulação do mesmo revelam
fragmentos intencionais do autor, como pôde ser observado no exemplo de França, quando o
aluno estuda por meio de suas baquetas possibilidades sonoras para conseguir um fortíssimo;
no entanto, “assim como a matéria resiste ao trabalho do artista”, domando-o segundo suas
leis, o artista também não é impedido de domá-la com respeito aos seus limites (PAREYSON,
1993, p.48-49). De acordo com França, as atividades de invenção e improvisação,
são usadas como canais para os alunos exercerem a capacidade de
julgamento e decisão criativa dentro de uma atmosfera de confiança. Estes
são encorajados a realizarem sua interpretação pessoal das obras, trazendo à
tona elementos afetivos; assim, a comunicação e expressão pessoais ganham
autenticidade. Iniciativas desta natureza demonstram que, mesmo na
educação musical especialista, há espaço para um fazer musical mais criativo,
exploratório, espontâneo e com sentimento de aventura (FRANÇA, 2001,
p.37).
Doravante, acredito que a invenção e a produção artística se constituem como
ferramentas pedagógicas que contribuem significativamente para o exercício de julgamento e
decisão não só dos alunos, mas também dos educadores musicais, pois a conscientização dos
problemas estéticos que circundam o curso da formatividade (como o diálogo entre autor e
matéria) capacita-os para uma observação cautelosa e atenta à complexa trajetória da produção
e da invenção de arte entre seus alunos. Ciente do aventuroso curso da inventividade cabe ao
educador musical orientar e motivar de forma consciente e crítica a produção dos seus, seja
compondo, executando ou interpretando.
Outro aspecto importante também levantado pela autora ressalta que, pensar sobre
música também é fazer música. Segundo França, “qualquer que seja o conteúdo e o nível de
151
complexidade, música é pensamento articulado, podendo ser uma fonte de significados
revelados em ideias sonoras” (2001, p.36), e para complementar essa afirmação segundo a
ótica pareysoniana trago a seguinte afirmação: a arte “é constituída pelo pensamento porque a
pura formatividade só consegue efetivar a própria específica operação quando mantida e
controlada pelo vigilante exercício do pensamento crítico” (PAREYSON, 1993, p.27). Isto
posto, constata-se mais uma vez a importância do pensamento enquanto reflexão operativa e
formativa da produção artística.
Embora os alunos passem por vários obstáculos durante o processo inventivo
confrontando, por exemplo, a infinitude do ato criativo com as limitações físicas que a matéria
impõe enquanto consubstanciação do objeto para o qual foi escolhida, por meio dessas
observações confirma-se a legitimidade de seus trabalhos artísticos, deflagrando o estilo do
autor que aos poucos vai se materializando na obra enquanto forma formada, pois segundo
Eco, “a pessoa que forma é declarada pela obra formante como estilo, modo de formar”. Das
inspirações abstratas até a concretude da forma, nossos alunos persistem trabalhando segundo
as leis impostas pela matéria em confronto com seus interesses.
Com base nas considerações acima, uma abordagem estético-educativa também
pressupõe uma conduta reflexiva em torno dos problemas que residem na obra enquanto forma
acabada, isto é, seu estágio concreto, que resulta desse embate entre autor e matéria. Ponderar
os fenômenos que circundam a obra enquanto forma, pressupõe tomadas analíticas no âmbito
da crítica, da poética e da estética enquanto especulação filosófica (conforme apresentado no
capítulo 1). A obra em sua concretude presta-se à prática educativa “como narração definida
daquilo que foi o trabalho da sua própria feitura”, pois nas palavras de Eco:
‘a forma é o próprio processo em forma conclusiva e inclusiva, logo é algo
que não se pode separar do processo de que é a perfeição, a conclusão e a
totalidade’. É ‘memória actual [sic]’ e ‘permanente reevocação’ do momento
produtivo que lhe deu vida (ECO, 1972, p.20).
Dessarte, a produção artística enquanto forma presta-se ao educador como ferramenta
investigativa não sentido de desvelar aspectos metafísicos, mas como reevocação e memória
152
do processo produtivo dos alunos, capacitando o educador para observações pontuais do
trajeto até ali percorrido por cada um deles
153
4.1Da forma a execução: as possibilidades interpretativas dos alunos
Concerto
o pedinte ouve
o não-lúdico sonoro
do bater de panelas;
contramão, corrente
latido
formicídio
saceio de seio
alumínico
Há um espanto
Código gemido
Ganido de instinto
Tropeço de dentes;
Um degustar audível
Coaxos de estômago
Relinchos de ossos – e no canto
Entrelábios
Escorre azedo
Coagulando
um consoante
suco
esverdeado
o maestro és tu
Luiz Frazon
154
O maestro és tu! A síntese desse poema denota o que pretendo considerar neste
capítulo como abordagem estética no âmbito da apreciação, tanto no que diz respeito a àqueles
que atuam com mestria na produção da obra, como também aqueles que como leitores também
apreciam seus resultados; esse trânsito que o processo artístico oferece a todos que dela
queiram se envolver, segundo Eco, é o que fundamenta “a permanência da obra na infinidade
das interpretações”, pois:
Ao dar vida a uma forma, o artista torna-se acessível às infinitas
interpretações possíveis. Possíveis, frisando bem, porque a “obra vive apenas
nas interpretações que dela se fazem”; e infinitas não só pela característica de
fecundidade própria da forma, mas porque perante ela se coloca a infinidade
das personalidades interpretantes, cada uma delas com o seu modo de ver, de
pensar, de ser (1972, p.31[itálico do autor]).
A atividade de interpretação consiste numa forma legítima de conhecimento em que
receptividade e atividade tornam-se indissociáveis. Nas palavras de Pareyson:
o conceito de interpretação resulta da aplicação ao conhecimento de dois
princípios fundamentais para a filosofia do homem: em primeiro lugar, o
princípio graças ao qual todo agir humano é sempre e ao mesmo tempo
receptividade e atividade e, em segundo lugar, o princípio segundo o qual
todo agir humano é sempre de caráter pessoal (PAREYSON, 1993, p.172).
Noutras palavras,
Em primeiro lugar, no agir humano só se dá receptividade junto com
atividade. Não agir humano que não pressuponha uma ocasião, um insight ou
intuição, um estímulo ou uma proposta: toda iniciativa deve ser proposta,
sugerida, desencadeada. Mas esse pressupor, por sua vez, não deve ser
entendido como uma determinação de fora, um condicionamento externo,
uma relação, pois aproveitar uma ocasião é já valer-se dela, aproveitar um
insight é já desenvolvê-lo, acolher uma proposta é já dar-lhe uma resposta,
receber um estímulo é já reagir: a própria forma da receptividade é a
atividade [...] O que constitui a receptividade como tal, e impede que se torne
determinista passividade, é a própria atividade que a acolhe e a desenvolve:
só é receptividade aquela que se prolonga em atividade (PAREYSON, 1993,
p.173[itálico meu]).
155
Considerando a pessoalidade do agir de cada leitor ou intérprete, a função do
educador em face da plural rede de interpretações em dadas situações do ensino coletivo,
reside numa conduta que possa gerar um trânsito respeitoso e legítimo em torno das diferentes
leituras compartilhadas. A atividade de interpretação traz em seu curso a seguinte
problemática: “na interpretação é sempre uma pessoa que vê e observa. E observa e vê do
particular ponto de vista em que atualmente se acha ou se coloca e com o singular modo de ver
que formou ao longo da vida [...]” e, por conseguinte, “na interpretação é sempre uma forma
que se vê e observa” (PAREYSON, 1993, p.180). Para exemplificar a atividade de
interpretação o autor faz a seguinte analogia:
Pode-se, então, comparar a interpretação a um diálogo entre pessoas, feito de
perguntas e de respostas, em que se trata não só de saber escutar, mas
também de saber fazer falar, isto é, de formular as perguntas do modo mais
compreensível ao próprio interlocutor de forma a dele obter as respostas mais
acessíveis ao ponto de vista em que nos encontramos. E, uma vez iniciado
este colóquio, não tem mais fim: quem acreditasse ter compreendido
definitivamente uma obra de arte, no fundo, não fez outra coisa senão
interromper um colóquio [...] pretender ter compreendido definitivamente
uma obra seria como que desconhecer sua inexauribilidade (1997, p.228-
229[itálico do autor]).
A atividade de interpretação, incluindo também a execução, é complementar a
formatividade; uma vez que a obra musical é concluída, ou seja, quando repousa em sua forma
acabada, necessita de execução, e simultâneo ao processo executivo a obra acaba quando
exposta ao campo da leitura; embora entregue a multiplicidade das interpretações a obra “uma
vez formada, a forma não continua a ser realidade impessoal, mas configura-se como memória
concreta não só do processo formante, mas da própria personalidade formadora” (ECO, 1972,
p.29).
Os problemas estéticos que permeiam o campo da execução e da interpretação são
fundamentais à abordagem estético-educativa aqui proposta. A partir de formulações simples é
possível instigar nossos alunos-inventores a refletirem na continuidade do fenômeno formativo
após sua concretização. Vejamos um exemplo: “Finalizamos a composição musical. A obra de
arte está acabada. O que devemos fazer agora? Guardar a partitura na gaveta”? É provável que
respondam, em outras palavras, que o próximo passo consiste na execução.
156
Tomando a execução como a música em seu estado concreto, constata-se que
somente por meio de sua etapa executiva é possível fruir de sua concretude sonora. Segundo
Pareyson, toda obra de arte deve ser executada, pois nasce de um processo executivo e
realizativo conferindo à obra a sequência do seu intento formativo, mas pelas mãos e pela
escuta36
de outrem. Segundo Pareyson,
A execução é a atividade que uma realidade, por sua vez ativa, dinâmica e
eficaz exige para ser comunicada e reconhecida como tal, de modo que só
uma realidade viva está em condições de solicitar uma operação tão ativa
quanto a execução (1997, p.218).
Conforme apresenta Seincman a esse respeito,
A obra musical só se efetiva, de fato, na performance, em sua relação com os
ouvintes. Quando um compositor finaliza uma obra, ela já mais lhe
“pertence”, passando a fazer parte de um campo “campo estético”: é nesse
palco que irá se consubstanciar seu “jogo” (SEINCMAN, 2008, p.25).
No que se refere aos problemas estéticos que envolvem a atividade de execução
chamo a atenção para alterações físicas que podem comprometer sua execução, tais como: o
desgaste do material, a possibilidade das traduções, das transcrições, reduções e reproduções,
no entanto, quanto ao desgaste do material, Pareyson apresenta a seguinte reflexão: “a pátina
do tempo [...] enquanto perde certas características, adquire outras, novas e não previstas
36 Aqui me refiro às obras musicais, no entanto, a execução é também imprescindível às obras pictóricas ou
esculturais; nesse caso podem ser executadas e apreciadas pelo mesmo espectador sem necessitarem de
mediadores, muito embora seja considerado como mediador o responsável pela iluminação direcionando o olhar
do espectador para determinado ângulo das telas e esculturas em galerias e museus. De acordo com Eco, “antes
do mais, Pareyson - precisamente com base no princípio crociano da unidade das arte - observou que o conceito
de execução devia estender-se a todas as artes, porque execução era também a leitura de uma página de versos, a
iluminação correcta [sic] de uma estátua, a representação de um drama; é verdade que a analogia era recoberta
por comportamentos diferentes que toca ao ponto de partida dos signos e pela distinção entre artes que se
entregam a uma escrita convencional e artes totalmente presentes na sua fisicidade; mas todas estas ‘aparências’
não pareciam a Pareyson definitivas, porque cada tipo de obra pede uma execução - também puramente interior -
que a faça reviver na experiência de quem a frui. E estas observações punham já em evidência a exigência
dinâmica acima referida” (ECO, 1972, p.22).
157
originalmente. Mas aderem de tal sorte à obra que dela já não é mais possível separá-las”
(1993, p.111).
Diante da problemática desses aspectos o educador que se posiciona de maneira
atenta e cuidadosa aos problemas da obra de arte enquanto forma, tende a orientar o aluno de
que, uma vez acabada, a obra de arte passa a pertencer ao inexaurível campo das
interpretações.
Além dos problemas físicos da matéria que podem ou não comprometer a sua
execução, observo que a formatividade se volta para a obra de arte atuando no dinâmico e
inconcluso campo interpretativo. Se considerarmos que a multiplicidade é das execuções e não
da obra mais uma vez nos depararemos com a formatividade enquanto fruto das
possibilidades imagéticas e criativas do humano. Portanto,
Cada pessoa, interpretando e contemplando uma obra de arte, faz dela uma
nova edição; no caso da tradução ou redução ou transcrição se trata,
precisamente, de uma nova edição desse gênero, ou seja, de uma
interpretação, em que, todavia o aspecto formativo e produtivo, essencial a
todo processo de interpretação, se intensificou e externou em nova matéria
(PAREYSON, 1993, p.53).
E o que dizer sobre os problemas da fidelidade ou liberdade da execução e da
interpretação? Devemos orientar nossos alunos em qual sentido? Uma vez cientes dessa
problemática como proceder de forma ponderada perante as interpretações? Para tanto, tomo
como referência excertos da obra "Os Limites da Interpretação" escrita por Eco, destacando a
seguinte reflexão:
Nem sempre o privilégio conferido à intenção do leitor é garantia da
infinidade de leituras. Se privilegiarmos a intenção do leitor, será mister
também prevermos um leitor que decida ler um texto de modo absolutamente
unívoco e opte pela busca, quiçá infinita, dessa univocidade (ECO, 2012,
p.8).
Para tanto, Pareyson não deixa de atentar para os riscos interpretativos que circundam
a obra. Vejamos:
158
Não tem sentido nem a unicidade nem a definitividade da interpretação.
Colocada a interpretabilidade, ipso facto se põe também a possibilidade de
infinitas interpretações e de um infinito processo de interpretação: a
interpretação é infinita em seu número e em seu processo, caracteriza-se por
uma infinidade quantitativa e qualitativa. Como caráter específico da
interpretação, pode-se dizer que ela visa a compreensão somente através de
um processo que corre sempre o risco da incompreensão (PAREYSON,
1993, p.179).
Em sendo a obra de arte forma que deriva de uma atividade formativa, penso que se
houver acuidade reflexiva por parte do educador musical a construção artística pode revelar
além da capacidade humana de combinar e transformar suas próprias experiências com outras
novas, a descoberta do outro como um agente ativo e legitimamente diferente, mas ao mesmo
tempo fonte essencial da constituição criativa de cada um.
159
Capítulo5
Educador musical:
um esteta em sala de aula
160
161
5. Educador musical: um esteta em sala de aula
Para navegar por um mar de possibilidades, se deleitar com a viagem e
usufruir as descobertas que ela pode proporcionar, é preciso ter olhos e
ouvidos apurados. Saber ler tanto as estrelas quanto quaisquer
instrumentos de que se puder dispor, para não perder o sentido de
direção; mas poder observar os detalhes, as mudanças de paisagem, seus
sons e silêncios, dando tempo e lugar às explorações, transformações e
devires (ROCHA, 2011, p.20).
Apreciar os afazeres do cotidiano como operações imbuídas da formatividade
consiste num exercício significativo enquanto reflexão do processo criativo, pois a invenção
não é um atributo específico da arte, mas um ato inteiramente humano. A preparação de uma
aula, uma atividade ou qualquer tipo de proposta didática requer organização e estruturação
pedagógica, no entanto, a essência formativa há de ser considerada em todas as etapas
construtivas, do insight didático até a interpretação dos alunos. Por mais que o educador esteja
munido de ferramentas educativas, é importante compreender que a recepção das atividades é
apreendida de maneira diferente entre cada um dos alunos. Compartilhar da pluralidade
interpretativa trazida por esses pequenos é vivenciar o dinamismo formativo que percorre a
aprendizagem como um todo.
O processo de construção pressupõe tentativas, erros, descobertas, trocas,
compartilhamentos, revisão, transformação, interação entre outras formas de pensar e agir;
diante desse princípio, ao conceber a formatividade em situações cotidianas enquanto reflexão
diária para tudo aquilo que formamos e que se forma ao nosso redor, desde os nossos atos até
o trabalho educacional-artístico, enriquecemos nossa visão social perante os encontros e
desencontros, tanto na arte como na vida. Nas palavras de Ana Cristina Rossetto Rocha,
autora da dissertação intitulada “Educação musical e experiência estética: encontros e
possibilidades”,
162
A configuração do professor-artista, a pedagogia do encontro e a integração
de linguagens não acontecem separadas umas das outras. Acontecem no
fluxo da experiência, entre linguagens, entre lugares, pelas brechas e desvios,
pelo inesperado, entre o artístico e o pedagógico - navegando no campo da
experiência estética (ROCHA, 2011, p.30).
Nesse fluxo de encontros e experiências coletivas não é possível separar a
individualidade do educador da sua atuação como profissional, pois sua essência enquanto
educador-artista deriva de sua própria realidade histórico-social em contínuo processo de
construção com a realidade de todos aqueles que o cercam; assim sendo, cumpre o educador
nesse espaço de encontro o papel de cultivar o respeito, como também,
investigar os princípios e os valores que (em tese) devem orientar as ações
humanas, descobrindo formas de suscitar essa reflexão entre os alunos.
Esteticamente, cabe ao docente despertar em si e nos demais a reflexão sobre
a arte, relacionando-a com tantos outros temas - a história, a mitologia, a
política, a censura, a psicanálise, a cultura, a tecnologia, etc. (Est) eticamente,
cabe ao docente inventar formas belas-boas de pensar e agir, formas atraentes
e inesquecíveis de atuar em sala de aula (PERISSÉ, 2009, p.83).
Numa proposta de atividade artística que envolva a composição musical, por
exemplo, é importante que o educador apresente a atividade de invenção como uma tarefa que
se conduz de tentativas em tentativas, esclarecendo aos alunos que só se formará formando,
isto é, compor compondo. Este é o primeiro passo de um trabalho que tem como princípio uma
estética da formatividade. Guiados por algum tema proposto pelo educador musical ou à
vontade para encontrar um propósito ou um assunto que servirá como o insight da
composição, o educador atua como um esteta ao mediar as ideias que vão surgindo, dando voz
a experiência artística de cada aluno, mesmo numa turma com trinta crianças.
Acompanhar com atenção e cuidado as ideias que aos poucos vão ganhando formas
nas mãos dos alunos consiste em compreender também que, o fragmentado esboço não é a
obra acabada, no entanto, já contém em essência tudo quanto ela (a obra) deve conter.
O perfil do educador-esteta em sala de aula pode ser identificado como aquele
profissional que não se inibe com as mudanças repentinas e alterações que ocorrem no
percurso do trabalho, pois considera e sabe apreciar a força da formatividade humana; o esteta
163
em sala de aula é aquele educador sensível e atento para as belezas artísticas dos seus alunos,
mesmo que em fase de construção, pois para o educador esteta a obra enquanto forma formada
é apenas uma etapa desse incrível trajeto da inventividade; é um profissional consciente de que
a obra dos seus alunos enquanto matéria formante ainda aguarda por seu êxito, pois somente
“operando e fazendo, ou seja, escrevendo ou pintando ou cantando o artista encontra e inventa
a forma. Enquanto não se encerra este processo, não há forma, e tudo ainda está em jogo”
(PAREYSON, 1993, p.69); o educador esteta concebe o seu trabalho como atividade filosófica
e transformadora, indo ao encontro dos seus alunos com ânsia de apreendê-los e de aprender
com eles.
Penso que a estética pareysoniana sobressai, enquanto abordagem estético-educativa,
por sua clareza e sistematismo didático-filosófico, como também pelas observações
concernentes a inseparabilidade entre arte e vida como pôde ser observado nos diálogos entre
obra e autor, obra e receptor e autor(s) e autor(s) em diferentes contextos educativos. A
doutrina pareysoniana abre portas para o diálogo com outras áreas e saberes fora do campo da
estética, como por exemplo, a atribuição da inventividade artística como sendo a mesma
inventividade orientadora do viver (conforme foi traçado nos capítulos anteriores), afinal, a
natureza humana devido ao seu constante estado de formação e criação, também pode ser
compreendida como forma formante; de acordo com Pareyson,
A pessoa é uma forma. Com efeito, a pessoa, fixa em um de seus instantes,
fechada em seu incessante processo de desenvolvimento, individuada em um
de seus atos, que recolhe e condensa, é o resultado encerrado de todo um
operar: é uma obra acabada e definida, com seu caráter singular e
inconfundível; não uma entre muitas, mas individual, única, não parte de um
todo, algo particular, mas sim uma integralidade. (PAREYSON, 1993,
p.176).
É importante que o esteta em sala de aula reconheça que é preciso “arte” para realizar
qualquer tarefa, ou seja, se arte é um processo de invenção que se materializa somente por
meio da capacidade humana de formar, conclui-se também que através do exemplo educativo
que a prática artística oferece, é possível conquistar ainda mais sensibilidade, criatividade e
beleza para o percurso do viver em sociedade, pois de acordo com o esteta:
164
Precisa-se de “arte” para fazer qualquer coisa, e nada se pode fazer bem sem
“arte”: não existe ocupação humana, por humilde, singela e insignificante que
pareça, que não exija, de quem a ela se dedica, alguma “arte”, ou seja, a
capacidade de inventar o modo de fazer fazendo, e de fazer sabendo fazer, e
em nada se obtém um bom resultado se o fazer não se faz inventivo além de
produtivo, tentativa e figurativo, além de executivo e realizador
(PAREYSON, 1993, p.64).
Posicionar-se como um educador-esteta é, portanto, acreditar que a obra de arte
enquanto formatividade pode revelar mediante o diálogo filosófico o “mundo” do artista (do
aluno) tal qual se apresenta no ato do formar, e um educador
esteticamente mais bem formado cultivará (eis um pressuposto somado à
esperança) um comportamento especial no cotidiano escolar, porque olhará
de modo especial os seus alunos, verá neles artistas em potencial, respeitando
essa possibilidade, acreditando nela como realidade alcançável (PERISSÉ,
2009, p.54).
Além de toda observação voltada para o desenvolvimento cognitivo e social de cada
aluno, cabe ao docente investigar os princípios e os valores que o fazer artístico podem
suscitar enquanto veículo para a formação humana, assim sendo, o cultivo do respeito e a
legitimidade para com a produção do próximo - considerando suas experiências e limites
individuais - proporciona ações solidárias e mutuamente respeitosas.
Creio que um dos problemas que impedem o profissional a uma atuação mais
profunda e atenta aos problemas da arte manifestos em diferentes espaços educativos, se
propaga pelo fato do próprio educador não compreender amplamente a importância do seu
papel e da sua área de atuação para a formação humana como um todo. É importante que o
profissional vivencie as grandezas do seu campo, tentando extrair do seu vasto repertório de
experiências estéticas a importância do fazer artístico para a vida do ser humano.
A formação estética do professor requer atividades que extrapolem a leitura
teórica. Por exemplo: frequentar exposições de pinturas, expondo-se o
próprio observador àqueles quadros. Dupla exposição, em que a pessoa
mergulha no quadro e o quadro mergulha naquele que o contempla. Outro
exemplo: conhecer programas populares de teatro em sua cidade, para ver
165
como os atores, expondo-se, expõem-se a nós mesmos. Cada qual deverá
cuidar da sua agenda cultural, da sua agenda artística (PERISSÉ, 2009, p.49).
A experiência estética possibilita que o mesmo examine e reveja na prática suas
concepções de ensino e de arte em geral, proporcionando a si mesmo novas formas de contato
com o novo. Exercícios como esses geram estranhezas e incompreensões, levando o educador
- enquanto receptor - a um tipo de “distanciamento” necessário para que possa reviver a
mesma sensação de estranheza que confrontam seus alunos diante de novas experiências
artísticas, que para o educador já familiarizado, fluem como sendo “naturais”. Assim como
defendo uma proposta de educação estética que postula valores transcendentes da arte para a
vida, acredito também que, a vida do educador musical deva se movimentar pelo campo das
artes no sentido de trazer combustível para suas experiências profissionais, ou seja, da vida
para o trabalho, pois:
O professor é mediador do encontro entre alunos a arte, mas obviamente
precisa ter intimidade necessária (ou seja, bastante intimidade!) com a arte
que pretende apresentar, quase corrigia o verbo- com que pretende presentear
seus alunos. Apresentar, tornar presentes, atuais e relevantes, para os alunos
até mesmo as obras de arte mais antigas ou mais herméticas. Enfatizando,
porém, que esse encontro será sempre uma experiência única e intransferível.
A mediação do professor jamais substituirá o diálogo, fácil ou problemático,
entre um indivíduo e a obra de arte (PERISSÉ, 2009, p.48).
Mesmo entremeando diariamente diferentes tipos de experiências estéticas o
educador jamais poderá clarificar a complexidade que reside no encontro entre seus alunos e a
obra. A mesma estranheza que assola um adulto perante uma experiência artística, bem como
a possibilidade de uma não compreensão, deve ser considerada também entre seus alunos.
Dessa forma, o educador cumpre o papel como de quem presenteia os seus com diferentes
situações estéticas, porém ciente de que a apropriação que cada um fará está fora do seu
controle, e esse fenômeno de caráter incerto e fugidio já é sabido pelo educador esteta.
166
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Conclusão e Considerações finais
Neste trabalho procurei enfatizar as contribuições de um ensino de música permeado
pela estética da formatividade. A partir da conscientização dos problemas estéticos que
circundam o processo de invenção e produção artística em diferentes contextos educativos,
compartilho possibilidades educativas para que alunos e professores vivenciem de forma
profunda, humana e reflexiva a atividades de criação, transcendendo-as para os atos de suas
próprias vidas, tomando o processo formativo da arte como espelho para a formatividade do
mundo.
Através da estética pareysoniana procurei demonstrar também a importância do outro
para a construção do novo que vai além da produção de arte. Considerando o fato de que
aprendemos e inventamos mediante o convívio, a estética pareysoniana permite compreender
que por traz do tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer existe um diálogo mútuo entre
sujeito e as várias vozes que compõem o seu cenário social, pois conforme Pareyson,
Já se viu, por um lado, que toda a vida espiritual prepara a arte, no sentido de
haver sempre um caráter formativo inerente a todas as suas manifestações, e
justamente por esse presságio de arte, que mesmo a vida do dia-a-dia traz
consigo, a arte se pode especificar como operação determinada. E, por outro
lado, justamente no ato em que a arte se especifica como operação distinta,
toda a vida penetra dentro dela, e é este o motivo pelo qual a arte pode tornar-
se a razão de vida para o homem que a exerce e a contempla (PAREYSON,
1993, p.263).
O intuito das minhas reflexões não foi invalidar qualquer outro tipo de abordagem
estética, mas demonstrar de que maneira a estética pareysoniana pode contribuir
significativamente para o ensino de música. A apropriação filosófica deste trabalho não
pressupõe que o educador tenha que desconsiderar seus princípios pedagógicos em prol dessa
concepção estética, ao contrário disso, considero os estudos reflexivos aqui apresentados como
parte de uma formação.
Com o objetivo de familiarizar o leitor aos principais conceitos e problemáticas
pareysonianas que substanciaram este trabalho, propus uma metodologia sistemática os
problemas centrais dessa abordagem, no entanto, o caráter especulativo dessa temática
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propiciou uma condução pouco sistematizada e mais especulativa; no decorrer da apresentação
de cada um dos cenários é possível observar como minhas observações, somadas as
fundamentações teóricas frente aos objetos de análise se imiscuem numa proposta reflexiva.
Procurei demonstrar também os diferentes papéis de atuação do educador, ora como
mediador, ora como inventor ou receptor em torno do trabalho artístico de seus alunos; como
educadores musicais atuamos de formas diferentes e nas palavras de Seincman,
Não importa de que lado estejamos, quer do palco quer da plateia, a constante
troca de papéis é permanente e fundamental: não há comunicação e
experiência estética sem desdobramento, pois só sendo um duplo para obter
alternar as posições. Só me faço entender por ouvinte quando, ao mesmo
tempo em que falo (ou toco, interpreto, crio), coloco-me como ouvinte de
meu próprio discurso; o mesmo vale para quaisquer das posições assumidas
(SEINCMAN, 2008, p.23).
Assim sendo, compartilho esses escritos como sugestão para futuras pesquisas no
campo de educação musical, especificamente pelo viés da estética. Acredito também que, este
trabalho possa servir não só como instrumento de reflexão aos educadores musicais, mas a
todos os educadores que lidam com as artes de um modo geral.
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