Post on 07-Dec-2020
Teatro Documentário: Lugares da Memória na Pedagogia da Não-Ficção
DANIEL MARTINS ALVES PEREIRA1
RESUMO
O Teatro Documentário encontra suas raízes nas mais diversas fontes. Pode ter um antepassado
direto nos primeiros experimentos cênicos realistas e naturalistas. Ou talvez no "agitprop" de
Erwin Piscator. As aproximações com Peter Weiss e Augusto Boal ainda parecem os pontos de
contato mais evidentes. Não obstante a rara bibliografia no Brasil, a prática documental tem
inspirado as mais recentes e bem-sucedidas incursões no circuito teatral brasileiro da atualidade.
O chamado Teatro Documentário (diferente de práticas cênicas anteriores que já flertavam com
o terreno do real) promove uma investigação das fontes por meio de registros imagéticos,
textuais e sonoros, bem como da coleta de dados da cultura oral. Há em sua tessitura um
posicionamento político patente, além de uma forte relação identitária entre a pesquisa e o
coletivo. São essas proposições iniciais que convidam, dentro do já consagrado "Teatro-
Educação", a uma maior imersão nos caminhos e possibilidades de um "Teatro-Documentário-
Educação". O trato investigativo da realidade (na busca por outros olhares e vozes) e o resgate
da memória em cena tornam-se instrumentos de potente reverberação dentro da sala de aula.
Palavras-Chave: Teatro Documentário; Educação; Memória.
1. INTRODUÇÃO
Venho anotando – não sem alguma perplexidade – a maneira como, ao longo dos anos, nos
espetáculos teatrais que dirigi, a dramaturgia reverbera a voz dos próprios atores. Os textos
literários se apropriam de nós tanto quanto nós nos apropriamos deles. O fenômeno é intuitivo,
mas cada vez mais visível no trabalho que realizo com jovens intérpretes no Teatro Escola,
espaço que coordeno na cidade de Limeira, interior de São Paulo. A memorável experiência do
espetáculo A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, por exemplo, trouxe ao
elenco – à época adolescente – a pauta da fúria e da incompreensão de um mundo que, pela
primeira vez, se desvelava a eles. A estória rosiana sobre violência e redenção, aos olhos
daqueles jovens, palpitava os anseios em face de um comportamento hostil que, muitas vezes,
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Rio Claro/SP.
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se materializava no âmbito escolar, familiar e social. Quando o grupo, anos depois, se sentiu
motivado pelas discussões acerca da caverna platônica e o conceito de realidade, A vida é sonho,
de Calderón de la Barca, veio em nosso socorro. E quando nossos encontros foram dominados
pelas questões do ofício artístico e a forma como o mesmo é (des) valorizado na sociedade,
Franz Kafka surgiu com “Um artista da fome”, conto presente na coletânea homônima, de modo
a dar suporte a um coletivo que atinge a maioridade e busca profissionalização. Como já anotei
em estudo anterior, se nos dias atuais ainda consentimos o texto clássico, isso ocorre porque o
seu conteúdo se faz emergente (PEREIRA, 2006: 83). Não cabe mais a mera encenação purista
do texto. Já não é mais possível pensar em um fazer teatral descolado da realidade.
Penso que aqui há mais mistério que ciência. A essa operação secreta, que estranhamente
materializa a literatura nos palcos para dar voz aos anseios identitários do intérprete, devo meu
último espetáculo, um monólogo. A princípio, deveria ser um trabalho de maturidade baseado
integralmente em Paulo Freire. Por fim, tornou-se uma compilação de encontros entre
opressores e oprimidos extraídos de excertos de Fiódor Dostoiévski, de Jorge Luis Borges e até
do relato documental de Flávio de Carvalho. Na qualidade de intérprete, não perdi ocasião de
inserir, nas entrelinhas da dramaturgia, casos reais de minha juventude e vida de professor e,
quando dei por mim, Monumento ao prisioneiro político desconhecido era um espetáculo sobre
o Brasil polarizado de 2018 e as relações humanas destroçadas durante e após o período eleitoral
daquele ano. De uma maneira muito sutil – e ainda não plenamente digerida –, percebi
gradativamente que aquele estranho processo criativo, composto não só por textos literários,
mas também dados biográficos e leituras sócio-políticas, era um princípio ou esboço daquilo
que hoje se costuma chamar nos círculos de artes cênicas de Teatro Documentário.
Não foi exatamente essa a minha intenção. Durante os ensaios, me ancorei mais em Grotowski
(2013) e na concepção de um teatro que seja, nos dizeres de Renato Ferracini, a “arte de não
interpretar” (2003), posto que trabalha com verdades. Se cada “diretor deve buscar encontros
que se ajustam à sua própria natureza” (GROTOWSKI, 2013: 45), penso que minha reunião
com Borges, Freire, Carvalho e Dostoiévski preparava um encontro maior, subterrâneo: o
confronto de meus anseios com uma realidade atroz que se desnudava aos meus olhos. O
polonês Jerzy Grotowski, a exemplo do atleta afetivo de Artaud, defende que o ator deve
trabalhar com emoções legítimas – a sua performance deve ser autêntica e nunca baseada em
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fingimentos ou fórmulas prontas, como se vê em recursos do teatro caricato e canastrão. Há
algum tempo já foi derrubada a ideia de que a função do professor-diretor teatral seria oferecer
ao aluno-ator “um cinturão de utilidades para que ele consiga se virar nos palcos” (SOLER,
2010: 76). Para Grotowski, trata-se mais de uma operação de subtração (perda de vícios) do que
de adição (aquisição de habilidades). O teatro não é um conjunto de regras e receitas, mas sim
um “mergulho no mistério, no desconhecido” (ANTUNES FILHO, 2000: 5), e este mergulho é
que faz da arte dramática algo genuíno. Quando inseri, quase acidentalmente e por meio de
textos literários, vivências pessoais e experiências sócio-políticas em minha partitura cênica,
sublinhei aquela antiga verdade que aponta o teatro como território do real, e não um mero
exercício de lavra ficcional e fantasiosa. Feita essa primeira consideração, podemos nos
debruçar mais detalhadamente no território documental, na compreensão de suas engrenagens,
partículas e especificidades. Sobretudo, cumpre investigar a forma como esse fenômeno
documentário – na eterna fronteira entre a ficção e a realidade – se apresenta sob uma
perspectiva pedagógica, “deixando entrever a forte analogia existente entre o aspecto formativo
presente tanto no trabalho do diretor como no do professor” (BETTI, 2010: 15).
Até hoje, penso, a educação ainda não assimilou o teatro em todas as suas potencialidades; e
isso se deve, em partes, pela lógica de mercado que conduz muitas instituições de ensino. No
ambiente escolar, onde a experimentação deveria nortear as atividades de artes cênicas, o
professor teatral ainda é bombardeado pela demanda de apresentações comemorativas. Torna-
se, portanto, refém de uma exigência chamada “peça de teatro”. A escola vê o teatro como
cartão postal ou cinturão de utilidades, mas nunca como espaço de descoberta, aprendizagem e
vivências. A escola ressoa um pensamento que, na verdade, é social: teatro, na acepção popular,
é lugar de ficção, mas nunca de realidade. Ora, a simples existência de um gênero chamado
teatro documentário refuta essa ideia. Uma manifestação teatral que se ocupe da verdade – seja
ela histórica ou confessional –, que se incline às interpretações do real e às diferentes visões de
mundo nele contidas, que se comprometa com o factual mesmo quando sua matéria-prima é
literária, só pode contribuir com as perspectivas das artes cênicas na educação.
Antes de qualquer inferência inevitável, encerro esta abertura com aquilo que me é mais caro
no gênero do teatro documentário: a profunda relação identitária que se estabelece entre os
atores e a pesquisa cênica, no manejo do passado e no vislumbre de um futuro repleto de
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possibilidades. Lá atrás, no meu debute como professor teatral, quando anotei pela primeira vez
a forma mágica como os textos milagrosamente se alinhavam às perspectivas do elenco, quase
por acidente evoquei a forma documental. Sim, havia ali um dado real valiosíssimo, ainda que
a matéria-prima dos ensaios fosse a literatura. Afinal, como pretendo defender na sequência, o
teatro documental não é aquele que propõe a versão mais fidedigna e definitiva da realidade,
mas o que melhor conversa com as vozes plurais de seu entorno – e a literária é uma delas –, de
modo a (re) pensar e (re) construir a nossa história. Lembrar é resistir. Ora, não percamos mais
tempo: sejamos todos documentais!
2. A CENA DOCUMENTAL: ORIGENS E DESTINOS
A prática documental tem ampla representatividade na História global das artes dramáticas, mas
sua fortuna crítica e reflexão teórico-acadêmica ainda carecem – ao menos no Brasil – de
estudos que não só se ocupem de cercar um conceito, mas de compreender a natureza de seu
fenômeno. Noutras palavras, fala-se pouco de Teatro Documentário em solo brasileiro, ainda
que o mesmo seja endossado por uma larga experiência prática que remonta ao início do século
XX. Alguns estudos acadêmicos procuraram reverter este cenário nos últimos anos, dentre os
quais destaco a publicação de Marcelo Soler, Teatro Documentário: a pedagogia da não ficção
(2010). O divisor de águas no Brasil, no entanto, não foi bibliográfico, mas teatral: a peça Luís
Antônio Gabriela, de Nelson Baskerville, em 2011, catalisou as atenções do universo
dramatúrgico brasileiro da última década. Baskerville assina a direção da montagem que narra
a história do próprio irmão, Luís Antônio, que, nos anos 1960, durante o estado de exceção,
assume sua transexualidade à família, ante a figura opressora do pai. A trama de preconceito
familiar e social é ancorada por cartas, certidões, cartões postais e fragmentos de vídeos que
são projetados a todo o instante no cenário. A esses recursos, tão frequentes no teatro épico,
somam-se uma ampla gama de textos escritos e comentários do diretor que terminam por revelar
o intento daquela montagem: a peça é um pedido de desculpas. Gabriela morreu de
encefalopatia em 2006, na Espanha (GIORDANO, 2014: 149), completamente esquecida pela
família. Foi vítima da incompreensão de seu tempo e legatária daquela solidão com que se pune
o que é diferente. A História de sua vida, quando vem a público em forma de peça, torna
universal o particular, reverberando em outras “Gabrielas” e reabastecendo as considerações
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sobre a luta contra o preconceito transgênero.
A exemplo de Gabriela, o documentário cênico recupera as circunstâncias de indivíduos
anônimos, socialmente desajustados, rotulados pelo discurso vigente e sem qualquer
representatividade: busca o retrato daqueles que foram vencidos, oprimidos e calados pela
História oficial. Desse modo, cumpre assinalar que as intenções do drama documental, para
além da comprovação de uma realidade autêntica, residem também na conservação ou resgate
de uma experiência vivida – ou, para aplicar os dizeres de Marcelo Soler, o “documento, entre
outros tantos, é um objeto que alimenta nossa memória sobre o mundo em que vivemos, não
correspondendo a apenas uma simples prova material sobre a autenticidade de um fato, de uma
pessoa ou época” (2010: 27). Tratamos, portanto, menos de um dossiê que atesta evidências
do que de um recurso de libertação e preservação de vozes, histórias e culturas. A cena
documental é um instrumento pedagógico contra o esquecimento. Para o escritor argentino
Jorge Luis Borges, “o propósito de abolir o passado já aconteceu no passado e – paradoxalmente
– é uma das provas de que o passado não pode ser abolido. O passado é indestrutível; cedo ou
tarde todas as coisas voltam, e uma das coisas que voltam é o projeto de abolir o passado”
(2007: 82-83). A ideia de uma percepção do passado alterada é uma questão borgiana por
excelência. Borges mostra o homem diante das forças do esquecimento, interpretando e
reinterpretando a História conforme os lugares que ocupa no tempo. Ainda que sua literatura
deslize pelo sarcasmo do artifício ilusório – a fluidez do registro, a efemeridade da
representação e a falácia da linguagem –, sua preocupação encontra ecos nessa singularidade
documental: a literatura “modifica nossa concepção do passado, assim como há de modificar o
futuro” (BORGES, 2007: 130).
O Teatro Documentário trata, portanto, de uma interseção com o real, orientada pela pesquisa
e busca de fontes. Diferente de seu ancestral direto, o Drama Histórico, o gênero documentário
não se contenta com uma representação ficcional do real, mas sim com o recorte da própria
realidade posta em cena (e interpretada pelos seus interlocutores). Já o Drama Histórico, de
origem burguesa, seria em última análise uma narrativa da intimidade de personagens que se
localiza em determinado período. O particular, desse modo, teria como pano de fundo uma
ambientação histórica. O naturalismo de André Antoine e o realismo de Constantin Stanislavski
foram os responsáveis pelas mais radicais experiências de simulação do real no limiar do século
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XX, dado o impacto que as descobertas de recursos técnicos da iluminação elétrica e da
sonoplastia contribuíram para ambientações cenográficas cada vez mais “fiéis” à realidade. De
acordo com Jean-Jacques Roubine, todo o debate teatral da virada do século, “a tentação da
representação figurativa do real (naturalismo) e a do irrealismo (simbolismo), não seria tão
intenso nem tão fecundo, sem dúvida, se não fosse sustentado por uma revolução tecnológica
baseada na eletricidade” (ROUBINE, 1998: 23). Roubine também aponta que a chegada desses
recursos cenotécnicos denota um novo comportamento teatral – ou seja, em contraponto ao
século anterior, que desdenhou a veracidade histórica em cena em nome de uma pretensa
glamourização do palco (1998: 123), o crítico francês sustenta que o Drama Histórico, que abre
as cortinas do século XX, cria um espaço que não é meramente ilusionista, mas semântico
(1998: 41). O espaço da cena naturalista traduz um meio social.
Ainda assim, não obstante os recursos tecnológicos do Drama Histórico – que visam “tornar
verossímil a imagem cênica” (1998: 120) –, falta-lhes o ingrediente central daquilo que
chamamos documental: seu caráter fundamentalmente político. Outra não é a credencial desta
modalidade do teatro. Seu diferencial reside, portanto, não só na investigação de registros,
certidões, fotografias – e toda a possibilidade de acervo que venha sustentar a pesquisa
documentária –, mas na manifestação de um engajamento contundente e preciso perante a
realidade2. Mais do que isso, o Teatro Documental torna patente uma espécie de relação
identitária entre a pesquisa e o elenco – o que me traz de volta à minha inquietação inicial. Não
se trata somente do texto, mas do contexto. O teatro lê o silêncio à nossa volta, capta o grito
inaudito de um grupo social e, na dinâmica do trabalho coletivo, corporifica a situação opressora
por meio de visualidades cênicas. Não por acaso, a coleta de depoimentos em entrevistas, bem
como o resgate da memória na História Oral, são instrumentos de primeira importância no
campo documentário. Talvez o teatro documentário exista para contar a História dos vencidos.
Talvez ele exista para denunciar e reverter a condição do oprimido.
O brasileiro Augusto Boal, já nos anos 1960, deu início à sua cena documental com o Teatro
Jornal, prática pedagógica que buscava a encenação de notícias jornalísticas de modo a exercitar
2 Guillermo Calderón, diretor e dramaturgo chileno, costuma dizer que o mais importante em um elenco não é o
virtuosismo técnico ou o talento dramático, mas a existência de um posicionamento político que caracteriza o
conjunto e cada um de seus componentes.
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a reflexão dos fatos e a análise crítica das contradições e interesses por trás do discurso da mídia
impressa. Boal certamente se inspirou no Living Newspaper, cuja teatralização do cotidiano,
tomando como base reportagens da época, visava a mobilização política e social da plateia nova
iorquina e elenco. Tanto um como outro têm um antepassado direto: Erwin Piscator, para muitos
o pai da esfera documental no teatro. Durante os anos 1920 e 1930, ele organizou peças de
cunho político e dialógico – o chamado agitprop – com ênfase na realidade circundante. O uso
de recursos e dispositivos tecnológicos da época (leia-se projeções e gravações) foi
determinante na dramaturgia de Piscator, e servia como comprovação documental da realidade
apresentada:
O trabalho com o documentário em Piscator origina-se com a necessidade do
encenador de criar um teatro político que discutisse sua época. Nada mais pertinente,
no começo do século XX, em plena euforia das novas tecnologias da imagem com
destaque, sobretudo, para o cinema, do que utilizar esses recursos para que a noção
de realidade fosse comprovada em cena. [...] Os dados de não ficção não se limitavam
a depoimentos e documentos constituintes das falas dos personagens, mas eles
surgiam projetados em cena sob a forma de imagens fotográficas, trechos de filmes,
dados estatísticos, reportagens de jornal. (SOLER, 2010: 59-61)
Essa visão jornalística e, ao mesmo tempo, didática que a dramaturgia incorpora, ancorando-se
na arqueologia das memórias e nos recursos técnicos, torna patente o parentesco inegável desta
vertente teatral com a cinematografia documentária. A exemplo do documentarista, o
dramaturgo assume aqui o “ato responsável” de sua produção, colocando-se na posição singular
de quem, sem o escudo de álibis, assina as suas ações de modo responsivo – inquietação
bakhtiniana (2010) que, neste relato, deve reverberar na figura do professor.
Por fim, neste breve e seleto apanhado teórico, o documentário cênico encontra um de seus mais
notáveis representantes na figura de Peter Weiss, dramaturgo que acompanhou o processo que
julgou os criminosos de Auschwitz. A partir desta experiência, escreveu a peça O
interrogatório, onde narra detalhes dos autos do processo. O mesmo Weiss garantiu seu lugar
na História do Teatro com Marat/Sade, que trata do conhecido episódio do Marquês de Sade,
no sanatório de Charenton, encenando juntamente com os demais internos a perseguição e o
assassinato de Jean-Paul Marat, um dos líderes da Revolução Francesa. Marat/Sade é uma peça
dentro de uma peça e, isto posto, é também metateatro, uma vez que remete indiretamente a si
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própria. Tanto O interrogatório quanto Marat/Sade, em suas respectivas proposituras, vão além
do mero evento teatral e se constituem enquanto documentos cênicos. Weiss, contudo, em sua
apresentação histórica, não tem a intenção de trazer uma “pretensa verdade do que ocorreu”,
pois sua dramaturgia visa explicitar “vários pontos de vista de um mesmo acontecimento” e, no
diálogo dessas diferentes perspectivas, convida o público a construir a sua própria visão de
mundo (SOLER, 2010: 56).
E quando “visões de mundo” entram em cena, tratamos finalmente de um aspecto de suma
importância nesta partícula teatral: o protagonismo do público, que sai de sua condição passiva
e letárgica de mero espectador (BRECHT, 1967: 124) para construir, juntamente com a
dramaturgia documental, uma interpretação crítica de seu entorno. Nesse sentido, o “Teatro
Documentário não se distingue somente pelo fato de ter como base a realidade como fonte de
veracidade, mas também pela sua poderosa capacidade de interpretar a realidade [...]”
(GIORDANO, 2014: 37). No trato investigativo das múltiplas camadas entre arte, vida e
educação – tríptico que baliza o legado de artistas como Boal, Piscator, Brecht, Baskerville e
Weiss –, o teatro documentário prepara, à sua maneira, um terreno oportuno para o diálogo com
e entre professores e alunos, de modo a costurar relatos, experiências e pesquisas que visam
enriquecer a prática pedagógica. Na sequência, com base em meu caderno de anotações,
desenvolvo um breve relato de prática documentária com meus alunos de teatro, a fim de
delinear algumas das possibilidades, desafios e potências das artes cênicas em sala de aula.3
3. O MENDIGO OU O CACHORRO MORTO
Leciono aulas de teatro particulares, em espaço próprio, para jovens e adolescentes do
município de Limeira. Os alunos têm faixa etária entre 17 e 22 anos – e trazem diferentes
experiências e expectativas em relação às artes dramáticas (desde a busca pela
profissionalização até a prática do teatro enquanto atividade de desinibição e socialização). O
relato que compartilho abaixo é feito com base em meus registros pessoais das atividades
3 O tópico seguinte visa socializar uma experiência minha como professor teatral. Para contextualizar a vivência, apresentarei trechos de escritas registradas no meu diário de bordo. A experiência relatada, em si, não corresponde à minha pesquisa de doutorado, ainda que trafegue pelo mesmo tema: o teatro documentário.
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desenvolvidas junto a este corpo discente durante os meses de maio e junho de 2019. Cito trecho
extraído do Diário:
Hoje no Teatro Escola tivemos uma primeira experiência documental. Já havíamos
trabalhado [anteriormente] cenas com notícias de jornal, relatos pessoais ou
partituras corporais sobre ações do nosso cotidiano, mas [essas práticas envolvendo
a matéria do real estavam] apenas tangenciando o campo documentário, que em sua
essência é eminentemente político. (Diário de Bordo, 25-05-19)
O exercício supracitado fez parte do projeto de montagem atual, chamado O apanhador de
desperdícios, baseado no poema homônimo de Manoel de Barros. Motivados pelo autor mato-
grossense, nos lançamos a uma nova proposta cênica em maio deste ano: trata-se de uma
rapsódia que converte, em um mesmo exercício, excertos literários de Cecília, Millôr,
Leminski, Quintana, entre outros. “Uso a palavra para compor meus silêncios”, provoca o poeta
em suas Memórias inventadas (BARROS, 2008: 45). A ideia era compor um espetáculo
mutante, fluído, que nunca seja igual – nem mesmo em duas apresentações –, fazendo
consonância com os pressupostos da arte contemporânea em suas poéticas de pluralidade e
inacabamento: “um exercício em perene transformação, que fuja das armadilhas de uma arte
determinada e canônica, cristalizada em suas resoluções”, observei (Diário de Bordo, 25-05-
19). Chamamos este processo criativo de “O Livro de Areia”, pois ele nasceu após a leitura
deste conto de Borges que trata de um livro infinito. Em meio a tantos textos que já vieram à
baila neste labirinto sem fim – Clarice, Hilda Hilst, Neruda, Torquato Neto –, eis que o Livro
de Areia nos trouxe certo dia a obra de Bertolt Brecht.
Gostei do tema, pois vi que seria uma boa oportunidade de introduzir aos alunos o conceito de
teatro épico. Ainda não havia compreendido a potencialidade documentária que a ocasião abria.
Lemos juntos a peça curta intitulada “O mendigo ou o cachorro morto”, história de um
imperador que, em cortejo, comemorando a vitória sobre o seu pior inimigo, se depara com um
morador de rua que, na sarjeta, lamenta a morte de seu cão. Ao longo do diálogo dramático,
percebe-se como o encontro entre opressor e oprimido ganha contornos um tanto incomuns: o
mendigo trata de forma bastante insolente e agressiva o monarca que, surpreso com a atitude,
decide dar-lhe atenção e ouvi-lo. Sem filtros ou autocensura, o mísero plebeu expõe na extensão
de poucas páginas a vida vazia e mesquinha do seu interlocutor. A reflexão que sua fala suscita,
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contudo, permite que o imperador, consternado, poupe a vida do indigente: “Você estragou o
dia mais belo da minha vida. Eu não devia ter parado. Piedade não leva a nada” (BRECHT,
1986: 172), declara. Ao final, sozinho, o mendigo se levanta e anuncia a sua saída: vai procurar
um lugar para lamentar a morte de seu cachorro. Ao fazê-lo, revela um desfecho surpreendente:
enquanto caminha para fora de cena, nota-se pela primeira vez que o personagem é cego.
As leituras e discussões deram sequência ao processo habitual de montagem. Debatemos a
estrutura do texto a fim de permitir que as ideias iniciais de uma dramaturgia fluam e se
fortaleçam. Depois, sozinhos, eles desenham com o corpo, pelo espaço, os primeiros esboços
de cena, sempre utilizando os elementos trabalhados na aula do dia, conforme orientação – na
ocasião, partituras corporais criadas a partir de quadros do austríaco Egon Schiele. A
expressividade das telas de Schiele, aliada ao poderoso texto de Brecht, ditou o tom dessa
primeira versão, corporificada de forma espontânea, sem a minha intervenção, com Mariana4
no papel de imperador e Ivan como mendigo, além de alunos que compunham o séquito. Num
determinado momento ajustei questões de ordem técnica (projeção vocal, marcação, sincronia),
mas notei, aos poucos, a maneira como esse movimento dramatúrgico havia lançado luz a um
olhar mais crítico, sem perder de vista a poética da cena. O documental batia à nossa porta.
Os primeiros comentários dos alunos, ao final deste encontro, já anunciavam a atualidade do
texto. A impressão me pareceu unânime e aproveitei a deixa. No encontro seguinte, depois do
intervalo, coloquei vários jornais à disposição da turma: o montante variava desde a edição do
dia até algumas de dois anos atrás ou mais. Pedi que encontrassem ali uma via onde “O mendigo
ou o cachorro morto” pudesse trilhar; que fizessem uma seleção inicial de notícias. Deixei claro
que os jornais deveriam servir de estímulo inicial, mas que nada impediria a posterior consulta
de novas fontes, sobretudo na internet. Não demorou muito para que o nome do ex-prefeito de
São Paulo, João Dória, viesse à tona. O aluno Luís socializou uma notícia sobre os cobertores
dos moradores de rua que foram extraviados durante sua gestão5. As conexões me pareceram
4 Todos os nomes dos alunos são fictícios. 5 Em janeiro de 2017, os jornais noticiaram que João Dória, então prefeito da cidade de São Paulo, havia assinado decreto que permitia à Guarda Civil Metropolitana a retirada de cobertores, mantas, travesseiros, lençóis e barracas dos moradores de rua, bem como outros itens portáteis de sobrevivência que, agora ilegais, caracterizam permanência em espaço público. O novo texto, publicado no Diário Oficial, derrubou o decreto do prefeito anterior, Fernando Haddad, que proibia esse tipo de apreensão.
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bastante evidentes. Alex, logo na sequência, se lembrou do episódio dos jatos de água nos
moradores que dormiam na Praça da Sé6. Ivan já emendou, de memória, uma citação do texto
brechtiano: “você deve ser cego, surdo e ignorante. Ou é maldade sua.” (BRECHT, 1986: 168),
disse referindo-se ao ex-prefeito. Natália compartilhou outra notícia, de lavra mais recente: o
caso das mentiras de Witzel sobre sua formação acadêmica7. A figura do governador do Rio de
Janeiro, revestindo-se de Harvard enquanto segue com sua política de barbárie contra as favelas,
alimentou a discussão com novas camadas e vínculos precisos com o personagem do imperador.
“Mente no currículo, mas não se preocupa com as pessoas”, apontou Natália, “Que prioridades
são essas?”. Ivan assomou: “Não havia nenhuma necessidade de mentir ali. Eles divulgam
formação para passar credibilidade ao povo. E, ironicamente, fazem a caça às bruxas nas
universidades brasileiras”. Luís ainda insistiu na questão de Dória e o jato de água: “o morador
de rua, no entendimento dele [Dória], dorme em um lugar que ‘fica feio’, ofende as vistas”.
Alguém lembrou dos outdoors que, durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro, tapavam a visão
das favelas. Citei o profético Brazil, de Terry Gilliam, que já antecipava essa postura. Natália
reforçou o quão nociva é essa cultura da vergonha que a elite alimenta em relação à imagem da
favela, mas Mariana levantou, em oposição, um ângulo igualmente problemático que encara a
mesma favela enquanto elemento exótico e turístico, ignorando a dor e a miséria entre suas
paredes. Luís lembrou que, em São Paulo, há espetos de concreto debaixo das pontes, a fim de
impedir a permanência de moradores de rua. Disseram, em suma, que as políticas públicas
deveriam minimizar essa situação – e, no entanto, com essa lógica segregacionista, tudo o que
fazem é intensificar ainda mais a desigualdade. Perguntei se a cultura deve integrar; se é esse o
seu papel. Disseram que sim. Provoquei um pouco mais: lembrei de um caso conhecido em
Limeira, quando a Secretaria de Cultura ficava próxima à zona do meretrício, e que a revolta
de pais de alunos (crianças e adolescentes) fez com que a pasta se mudasse para outro prédio,
6 Publicações como a Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo noticiaram, em julho de 2017, a forma como moradores de rua da Praça da Sé foram acordados e expulsos com jatos de água, por uma empresa de limpeza terceirizada, na madrugada mais fria do ano na capital. A assessoria do prefeito se defendeu dizendo que o serviço terceirizado não atirou a água diretamente nos mendigos e alegou a falta de provas nas acusações. 7 Em maio de 2019 as mídias digitais informaram que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, incluiu em seu currículo um doutorado com intercâmbio em Harvard – mesmo nunca tendo cursado a Universidade. O governador se defendeu dizendo que pretendia realizar o intercâmbio, mas que a candidatura ao governo do Estado frustrou seus planos.
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longe das prostitutas e travestis. Hesitaram por um segundo. Se dividiram quanto a questão das
crianças, mas sustentaram resolutamente a importância da integração dos excluídos. Perguntei
novamente qual era a função da Cultura. “Nos ensinar sobre a nossa identidade. Nossa riqueza
imaterial”, disseram. “Dito isso, ela pertence a um só segmento da sociedade?”, tornei a
perguntar. “Não!”, responderam. Parei de fazer perguntas. Meu método estava socrático
demais. Deixei que problematizassem por conta própria: “A cultura muda a vida das pessoas.
Eles [os moradores de rua] não têm nada!”, bradou Mariana. “Quanto mais você se distancia,
mais é degradado”, arrematou Luís. A discussão ainda enveredou sobre os nossos preconceitos
sociais e a forma como tratamos as diferenças sumariamente com desdém ou com medo:
“Integrar é muito mais profundo. Não é permitir simplesmente a convivência no mesmo espaço.
É cuidar. É se importar. É se indignar com o estado em que vivem”, anotei no meu caderno.
Alguém leu no celular que, naquela semana, um morador de rua havia morrido de frio, no sul
do país, abraçado ao seu cão. Outra pessoa perguntou se não era fake news. Não houve tempo
de checar. Entusiasmados na discussão, perdemos completamente a noção do tempo. Nosso
Brecht ficaria para o próximo encontro (todas as falas deste parágrafo estão em Diário de Bordo,
01-06-19).
4. BRECHT ENTRE O DOCUMENTAL E O LITERÁRIO
Finalizamos a seleção do material jornalístico na semana seguinte. Muitas outras notícias
interessantes ficaram de fora, à força de uma curadoria necessária. E, municiados pela nossa
última discussão, iniciamos o processo criativo das cenas. Dois materiais valiosos se colocavam
diante de nós: o nosso exercício cênico de Brecht, já montado há duas semanas, e a leitura
aberta que fizemos das notícias selecionadas – discutindo, evidentemente, o caráter muitas
vezes tendencioso de algumas delas. Sobretudo a matéria sobre os jatos de água nos moradores
de rua incitou muitas discussões: “Não tem a fala da empresa aqui”, “A ação é suspeita”, “Está
mal explicado” ou “A declaração do prefeito é incongruente” foram alguns dos comentários
anotados. “As manchetes eram tendenciosas e as informações amenizadas. Mesmo sem provas
[e com anotações desencontradas], a sandice higienista da gestão Dória estava escancarada.
Parecia uma varredura para baixo do tapete.” (Diário de bordo, 08-06-19). Foi um momento
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valioso para entender não só a importância de um distanciamento crítico em relação ao discurso
da imprensa, como também a natureza do campo documental, que não se apresenta enquanto
versão definitiva dos fatos, mas como uma interpretação possível da realidade.
O desafio agora era inserir os dados documentais na ficção proposta pelo dramaturgo alemão,
criando um espaço de interseção entre o documental e o fantástico. Nosso exercício cênico
deveria gerar esse distanciamento crítico – a que Brecht, muitas vezes, chamou estranhamento
– e se aproximar deste território limítrofe entre o real e a ficção, de modo a estimular o
pensamento reflexivo. A primeira alteração em relação à proposta original foi em um objeto
cênico. Agora o imperador, quando entrava em cena em meio ao corredor de soldados, ao invés
de segurar um cetro, carregava uma enorme e espessa mangueira de jato de água. Suspensa na
extremidade contrária, a mangueira jamais saia das mãos do imperador, de modo que sua
movimentação, entre os demais personagens, criava uma espécie de cama de gato, um labirinto
compatível com os caminhos tortuosos pelos quais se enveredou nossa discussão. A ideia da
“teia humana” precisou ser atenuada para não prejudicar algumas resoluções cênicas anteriores,
mas foi aproveitada, assim como a sugestão de Mariana de trocar as armas de fogo, do exército
do imperador, por vassouras. Um esquadrão de limpeza. Isso, claro, gerou algumas alterações
nas marcações originais e trabalhamos nisso de modo a não perder a vitalidade da cena anterior.
Para além dessas inserções – bem como projeções de matérias de jornal e outras sugestões de
ordem cenotécnica –, o trato documentário agiu diretamente nas intenções do elenco. Ivan, por
exemplo, no papel do mendigo, propôs a sensação de frio no seu personagem e a dramaturgia
incorporou falas originais dos depoimentos, como a declaração de Witzel acerca de seus
projetos acadêmicos. Os cenários e objetos de cena foram amplificados com jornais, cobertores,
marmitas e um guarda-chuva. O início da cena, ainda no blecaute, com o áudio de uma chamada
da vitória de João Dória sobre Fernando Haddad na disputa eleitoral, foi bastante emblemático,
visto que as luzes se acendem com a entrada do imperador dando a sua primeira fala: “No
momento em que vou celebrar o meu triunfo sobre o meu maior inimigo [...] há um mendigo
sentado diante da minha porta fedendo a miséria” (BRECHT, 1986: 167). O resultado transitava
entre a literatura e o documento. A tessitura dramática mantinha a linha narrativa de Brecht,
mas os dados inseridos propunham novas camadas de compreensão. Difícil dizer se a cena
pendia mais para a realidade ou para a ficção – mas inegavelmente o material produzido
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convidava a uma nova discussão acerca da carência de políticas públicas para pessoas em
situação de exclusão social, realimentando as considerações do encenador alemão sobre as
relações entre opressores e oprimidos. O imperador saía de cena ao som de mais uma manchete,
do programa Seu Jornal, da rede TVT, que anunciava:
Numa das noites mais frias dos últimos quatro anos na capital paulista, pessoas em
situação de rua foram acordadas com jatos d’água pela gestão do prefeito tucano
João Dória A denúncia é da rádio CBN, que flagrou o momento em que a empresa,
contratada pela prefeitura para fazer a limpeza da Praça da Sé, utilizou jatos d’água
para que moradores de rua se retirassem do local.8
5. NARRATIVA, IMAGEM E CONSIDERAÇÕES
Este breve relato de uma experiência pedagógica buscou tecer algumas considerações sobre a
presença do documental e do imaginário em cena. Este jogo interseccional, na fronteira entre o
real e a ficção, pode realimentar os argumentos que cercam a prática do teatro documentário e
suas possíveis contribuições no âmbito da educação. A “aproximação detectada entre o
documental e o pedagógico” e a “presença de elementos de cunho educacional na estética do
Teatro Documentário e em suas práticas cênicas” (BETTI, 2010: 14-15) norteou os passos
deste exercício teatral e reflexivo com os alunos do Teatro Escola onde leciono. A utilização de
um texto literário e dramático, pertencente ao campo da ficção, notadamente contribuiu para a
discussão, trocas e compreensões acerca da questão das políticas públicas e da responsabilidade
social no que tange à situação dos moradores de rua. Este enriquecimento de camadas, no
interstício entre a realidade e a ficção, é pontuado por Maria Sílvia Betti, que fala sobre o
[...] papel da imagem dentro do mundo atual e da cultura mercantilizada. Se no
campo do Teatro Documental a imagem liga-se ao caráter de “não ficção” inerente
ao material documentado, o ato de “documentar”, mediado que é pela subjetividade
dos artistas envolvidos, revela-se perturbadoramente próximo ao território dos
conteúdos ficcionais. (BETTI, 2010: 14)
Se pensar “o fenômeno cênico sob uma perspectiva pedagógica” (SOLER, 2010: 20) já denota
um importante avanço na prática do teatro documentário, compreendê-lo – segundo a fala de
8 Cf. “Gestão Dória usa jatos de água contra pessoas em situação de rua”. Programa Seu Jornal. Rede TVT. In: Youtube. https://youtu.be/STjTiiMz7nw Acesso em 19 jun. 2019.
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Betti – nessa perturbadora imagem, campo limítrofe entre a ficcionalidade e o real, pode ser um
caminho para ativar novos lugares, na convergência entre o registro factual e o exercício
imaginário. A preocupação com o papel da imagem também é a tônica de Italo Calvino, que
em “Visibilidade” questiona: “que futuro estará reservado à imaginação individual nessa que
se convencionou chamar a ‘civilização da imagem’?”. O autor italiano se interroga sobre o
futuro de nossa capacidade imaginativa em um mundo cada vez mais povoado por “imagens
pré-fabricadas”. Noutros tempos, a “memória visiva” de um indivíduo estava intimamente
ligada às suas experiências diretas, mas hoje somos bombardeados por imagens fragmentárias,
estilhaços “semelhantes a um depósito de lixo” que inibem nossa capacidade de dar forma a
mitos pessoais oriundos de nossas próprias vivências (CALVINO, 1990: 107).
Calvino, por meio da imagem, alude à mesma crise enunciada por Dario Fo em relação à
corporalidade (FO, 2011: 189-190) ou por Benjamin, com vistas à arte de narrar (BENJAMIN,
1994: 197-198). Tais autores, cada um à sua maneira, postulam a necessidade de intercambiar
experiências para que, diante deste “excesso de produções midiáticas” e sequente sensação de
esgotamento gerada (GIORDANO, 2014: 69), se busque novas formas de subverter, recriar ou
ressignificar as imagens e narrativas. A sociedade contemporânea elevou essa questão a um
novo patamar: num mundo em que a experiência direta concorre com as redes sociais e o
jornalismo é soterrado pelas fake news, os acontecimentos do nosso dia a dia são
espetacularizados “e se transformam em bens de consumo que, como tais, devem ser palatáveis,
criados para agradar a quem os adquire. Inúmeras imagens são fabricadas para atender à
demanda de espetáculos cada vez mais preocupados em encantar o consumidor-alvo [...]”, ou
seja, a “experiência vivida é abandonada em favor da representação” (SOLER, 2010: 134).
Nesse sentido, o exercício reflexivo realizado com alunos do Teatro Escola sobre a notícia
jornalística, elevada não somente ao campo da palavra e da intelecção, mas também ao espaço
da materialidade cênica, à compreensão por meio da corporalidade e das possibilidades de
interpretação do real, revelou potências significativas do documentário no uso de novas formas
de compreensão da realidade por meio da ficção. Como bem disse Dario Fo,
Mesmo que lentamente, o poder não poupa esforços para fazer com que o público se
desacostume ao uso da imaginação, que evite o esforço de interpretar criticamente
os fatos que lhe são apresentados diariamente pelos meios de comunicação de massa,
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que cesse de desenvolver o prazer do contraditório, que abandone o vicioso hábito de
buscar o distanciamento ponderado das coisas imediatas, sem a tendência de resumi-
las, revê-las e, principalmente, apresentá-las com síntese e formas diferentes. (FO,
2011: 199)
Fo advoga o uso da imaginação contra a força do discurso fatalista – o que pode ser aplicado,
segundo as roupagens deste artigo, aos domínios literário e teatral enquanto saberes de
fundamental importância para um trabalho documental de orientação pedagógica. Por meio da
obra de Brecht, navegamos por uma via de mão dupla, entre a ficção e o documental,
desmistificando aquela ideia do gênero documentário enquanto reflexo de uma verdade singular
e histórica. Seja através do embate com o texto jornalístico ou na partilha de memórias e
experiências pessoais, a construção cênica aqui mediada propôs outras camadas ao universo
assustadoramente monossêmico da informação. “A educação tem papel importante na
valorização da memória como fonte de conhecimento, principalmente quando se amplia o
conceito de documento”, alerta Soler a respeito do valor pedagógico da memória e do
distanciamento crítico como forma de desvelamento de novas camadas para além da História
oficial (SOLER, 2010: 29). A visão do mundo em construção, de uma poética do inacabamento,
da recepção ativa, fluída e mutante em sua essência autorizam o encontro do documentário com
a literatura, de modo a buscar junto aos alunos novas compreensões acerca da realidade.
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