Post on 10-Mar-2016
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TítuloTambém elas eram inocentes!
AutorCarlos Moreira Araújo
Director EditorialEduardo Amarante
RevisãoIsabel Nunes
Grafismo, Paginação e Arte finalDivalmeida Atelier Gráficowww.divalmeida.com
Técnica da capa(Ilustração fornecida pelo Autor)Divalmeida Atelier Gráficowww.divalmeida.com
1ª edição – Junho 2012
ISBN 978-989-8447-21-0Depósito Legal nº 345294/12
© Carlos Moreira Araújo & Apeiron Edições
Reservados todos os direitos de reprodução, total ou parcial, por qualquer meio, seja mecânico, electrónico ou fotográfico sem a prévia autorização do editor.
Projecto Apeiron, Lda.www.projectoapeiron.blogspot.comprojecto.apeiron@gmail.com
apeirone d i ç õ e s
Carlos Moreira Araújo
Esta história faz parte de um imaginário que espero nunca chegue a ser real. Para tal tenho esperança nos homens livres e também nos outros que, por um outro motivo, pensam que a vingança é uma moeda de troca.
Todas as pessoas são inocentes até se provar a sua culpabilidade; assim rezam os manuais de justiça. Façamos todos para que não se tenha de provar a culpabilidade de ninguém.
Também elas eram inocentes!
Apeiron Edições | 9
1º CAPÍTULO _________________
A gordura escorria suavemente da espetada que, pendurada no ferro à minha
frente, aguardava que eu iniciasse a repartição dos apetitosos pedaços de lulas. O restaurante era acolhedor, pequeno e asseado, e a companhia tinha todos os
ingredientes para que a refeição se tornasse minimamente agradável e interessante. Olhei a minha companheira, olhei-a nos olhos, aqueles olhos escuros e expressi-
vos. Aliás, a Leonilde era uma pessoa até certo ponto extrovertida, de pequena esta-tura, ligeiramente entroncada, cabelo preto e ondulado; por vezes brincava com ela perguntando se não haveria na família alguém de raça negra, mas a companhia era interessante depois de termos passado por tantas coisas.
Eram tempos difíceis. O mundo parecia ter enlouquecido. Estava mergulhado num exasperante caos; a droga dominava tudo e todos.
– Filipe! Do que é que estás à espera, serve as lulas que acabam por arrefecer.
* * * A gordura já não caía na base do porta-espetadas, deixando agora longos fios que
iam ligando as várias componentes da espetada. Servi com lentidão, tentando não galardoar o meu coçado blusão com mais algumas nódoas. A Leonilde gracejava:
– Tem cuidado, não sujes o “smoking”! Sorri e olhei-a novamente. Não estava melhor do que eu. Vestia um casaco de
homem com o forro a espreitar pela manga esquerda. Do mesmo lado o casaco não assentava minimamente. O volume do imenso “bacamarte” que ela usava fazia alarde às suas dimensões.
– Sabes! continuou ela afastando o cabelo dos olhos – estou a ficar farta desta vida, sempre mal vestida e com toda a gente a olhar-me de lado e, pior do que tudo, com muito poucas perspectivas de mudança.
– Alguém tem de fazer o trabalho sujo, respondi-lhe. – Está bem, mas escuso de ser eu, não achas? – O problema quanto a mim, ainda é o caso de estarmos a lutar contra duas forças! – Está bem, mas isso também há-de acabar um dia, mas deixa-te disso e vamos
às lulas! Tirei os pedaços do ferro e bebi um pouco de vinho branco. A minha companhei-
ra não falou e mastigava os pedaços da comida com sofreguidão. Uma melancolia invadiu-me. Como as nossas vidas tinham mudado num ano…
365 dias e uma viragem total na vida de tantas pessoas.
Carlos Moreira Araújo
10 | Apeiron Edições
A comida entrava-me na boca, mas não lhe sentia o sabor. Estava desejoso de lhe contar o motivo do jantar. Não estava certo de coisa alguma, mas bem no meu ínti-mo algo me dizia que finalmente a nossa vida iria mudar.
– Leo… e se por acaso tivesse uma grande notícia? A Leonilde parou de mastigar e olhou-me como se não tivesse percebido o que
eu acabara de dizer, e com a delicadeza que o nosso recente modo de vida lhe gravara no espírito respondeu-me:
– Ainda agora começaste a beber e já estás bêbado! Não ouvi mais nada. Se ela acrescentou algo àquele mimo já não ouvi, já estava
muito longe, os meus pensamentos transportavam-me no tempo recuando meses e meses.
* * *
– Filipe! Filipe! – O que é? – Já são horas! – Já?! – A Clarinha já se está a remexer toda, levanta-te enquanto eu trato da menina! Levantei-me cambaleante e olhei para o relógio, 6.30 AM, o malvado relógio, era
todos os dias a mesma coisa. Àquela hora entrava a telefonia a tocar e então que músicas, ou folclore ou um sujeito qualquer a palrar qualquer coisa.
Fui à cozinha acender o esquentador tropeçando em tudo o que encontrava pelo caminho. Não sei porquê àquela hora os espaços para passarmos sofrem qualquer encolhimento nocturno.
A Clara começava a chorar rabugenta, mas a Justina com uma paciência a quem só a ela conheço foi-lhe falando e a miúda acabou por se calar.
Era um dia como os outros, a única diferença era que a Justina levava a Clarinha ao Tribunal onde trabalhava, queria que as colegas vissem a menina... coisas de colegas.
* * *
Preparei-me e saí para o quintal. O orvalho nocturno deixava os passeios molha-
dos ao que eu correspondia com um pôr de pé muito cuidadoso para evitar escorre-gadelas.
O Tejo, o nosso cão olhava-me abanando a cauda, não sei se feliz por me ver se feliz na expectativa de assistir a qualquer trambolhão da minha parte.
Entrei no carro. Estávamos em Janeiro, tudo estava gelado, os próprios bancos tornavam-se incómodos e frios. Fiz uma primeira tentativa de pôr o motor em mar-cha, mas não resultou. Voltei a sair do carro. O Tejo continuava a fitar-me, talvez agora com um abanar de cauda menos amplo perdendo as esperanças de me ver cair vítima de alguma poça com mais humidade.