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Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto
1ª Edição — Março de 2001
?.000 exemplares
Traduzido do original em inglês:
Sola Scriptura and the Regulative Principle of Worship
de Brian M. Schwertley
Editado originalmente por Stephen Pribble e publicado por Southfield, MI: Reformed
Witness, s.d.
Salvo indicação em contrário, as citações bíblicas foram extraídas da versão Revista e
Atualizada (2a. edição, 1993) de João Ferreira de Almeida. © Sociedade Bíblica do Brasil.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, sem autorização por escrito dos
editores, exceto citações em resenhas.
Tradução:
Marcos Vasconcelos
Revisão:
Rev. Franklin Ferreira
Editora:
Os Puritanos
Telefax: (+11) 6957-3148
ospuritanos@uol.com.br
Impressão:
Facioli Gráfica e Editora Ltda
Rua Canguaretama, 181 - São Paulo - SP
Í N D I C E
Prefácio
Introdução
I. Sola Scriptura — O Que é?
1. Sola Scriptura — O Entendimento Confessional Reformado
2. Esclarecimentos
II. Sola Scriptura — Aspectos
1. A Autoridade da Escritura
2. A Suficiência e Perfeição da Escritura
3. A Completude e Finalidade da Escritura
III. Sola Scriptura — A Rejeição de Judeus e Católicos
IV. Inconsistências Protestantes
1. O Episcopalismo
2. O Luteranismo
3. O Evangelicalismo
4. O Declínio Reformado
V. Sola Scriptura — Alguma Objeções Contemporâneas no Âmbito do Culto
Consideradas e Refutadas
1. O Argumento da ―Falsa Compreensão da Ética e da Adiaforia‖
2. O Argumento de que ―Tudo na Vida é Culto‖
3. O Argumento de que ―O Princípio Regulador do Culto Aplica-se Apenas ao
Templo‖
4. O Argumento das ―Circunstâncias do Culto‖
5. O Argumento de que ―Jesus Aceitou e Participou de Tradições Humanas‖
6. O Argumento da ―Festa do Purim‖
7. O Argumento da ―Distorção do Princípio Regulador‖
Resumo e Conclusões
Apêndice A — João Calvino e o Princípio Regulador
Apêndice B — Uma Análise Bíblica do Livro de John Frame “Adoração em Espírito e
Verdade”
O cerceamento da liberdade dos discípulos de Cristo, pela
imposição de coisas que Ele não determinou, nem se fizeram
necessárias pelas circunstâncias que as antecederam, são claras
usurpações das suas consciências, destrutivas à liberdade que Ele
lhes adquiriu, às quais — se o dever deles é andar conforme a
ordenança do evangelho — submeter-se é pecaminoso.
John Owen
Foto de John Owen
Prefácio
―Ministros entram na onda para seduzir jovens, ligando a mensagem nos que se
desligaram do velho estilo de culto‖, anuncia a manchete de um dos principais jornais numa
grande cidade americana sobre a história dos recentes esforços para atrair as pessoas,
transformando a igreja numa boate. Bandas de rock, fachos de luz e vídeos que mostram
uma jovem falando de Deus estão entre os métodos experimentados pelos pastores
avançadinhos, com aparente sucesso.
Mas se o propósito da igreja é atrair multidões, por que não?
―É um lugar mais ajustado à nossa geração‖, disse uma jovem. ―O estilo do culto e
das pessoas é tudo que importa para mim‖.
Mas qual é o propósito da igreja? É atrair multidões a qualquer custo? Ou é
glorificar a Deus oferecendo-Lhe o culto que agrada o Seu coração?
O nosso Senhor afirmou: ―Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura
para seus adoradores‖ (Jo. 4:23). Não é o propósito da Igreja cultuar o nosso Trino Deus
em espírito e em verdade? Será que podemos realmente dizer que as palavras de nosso
Senhor tornaram-se obsoletas, de alguma maneira? O nosso Salvador não descreveu o
propósito da igreja para cada era? Tem os ministros de Cristo o direito de substituir os
elementos do culto espiritual apontados pelo próprio Deus, por elementos mais apelativos à
concupiscência da carne?
É triste dizer, mas se o culto centrado em Deus não apelar ao homem não-
regenerado, alguns sequer hesitam em centralizar o culto no homem.
Tem sido privilégio meu editar vários dos livros de Brian M. Schwertley, mas
nenhum deles é tão importante ou necessário hoje quanto os que tratam do culto — assunto
tão querido ao coração de Deus. Conquanto eu defenda algumas diferenças na aplicação (ao
crer que temos aprovação bíblica para o uso de hinos não-inspirados e acompanhamento
instrumental), estou completamente de acordo com o princípio básico de que a igreja só
pode adorar a Deus utilizando os elementos que Ele próprio assinalou: confissão de fé;
oração; leitura e pregação da Palavra de Deus; apresentação de dízimos e ofertas; cântico de
salmos, hinos e cânticos espirituais; e a observância do batismo e da Ceia do Senhor. Como
demonstra claramente Schwertley, o sola scriptura está tão diretamente relacionada com o
culto da igreja quanto com a sua teologia.
O papel da igreja não é ser inovadora, mas ser fiel, guardando o depósito da
verdade que lhe foi confiado pelo seu Senhor. Que esse livro possa gozar de ampla
publicação, contribuindo para a renovação do culto em nossos dias.
Pastor Stephen A Pribble.
Igreja Presbiteriana Ortodoxa da Graça.
Holt, Michigan, E.U.A.
Introdução
Sola scriptura é um dos princípios fundamentais da Reforma Protestante. Alguém
poderia até dizer que outras grandes doutrinas da Reforma (tais como sola gratia e sola
fide) são logicamente dependentes do sola scriptura. Ao fazer da Bíblia o único padrão e
autoridade para a fé e para a vida, os protestantes tornaram-se capazes de refutar todas as
doutrinas e práticas papistas originadas pela tradição humana. Os reformadores calvinistas
alcançaram uma reforma maior e mais completa na igreja porque aplicaram o sola scriptura
mais consistente, lógica e efetivamente à doutrina, governo da igreja e culto que os seus
congêneres anglicanos e luteranos.
A doutrina da sola scriptura, com seu ensinamento concernente à autoridade,
exatidão, perfeição e suficiência das Escrituras, precisa ser ensinada hoje com renovado
zelo e urgência. As razões para esse zelo renovado não se devem meramente a atual
popularidade do catolicismo, da ortodoxia oriental, do modernismo, da neo-ortodoxia, das
seitas, do movimento carismático e do movimento de crescimento de igrejas. A razão
principal é a decadência hoje em curso entre as denominações conservadoras reformadas e
presbiterianas, particularmente na área do culto. Muitas igrejas reformadas e presbiterianas
não estão só permitindo inovações humanas no culto, mas o princípio regulador da
Escritura — e a doutrina correlata à suficiência da Bíblia para todos os assuntos de fé,
inclusive do culto — é rejeitado francamente por muitos pastores e presbíteros. O princípio
regulador do culto (que é o sola scriptura aplicada à adoração praticada pela igreja) é uma
das maiores conquistas da reforma calvinista. E para firmarmos o alicerce do culto
Reformado precisamos retornar à doutrina do sola scriptura. Oramos para que este estudo
seja utilizado para a reforma da igreja.
Os crentes reformados de hoje precisam compreender o relacionamento teológico
que existe entre o sola scriptura e o princípio regulador do culto. São múltiplas as razões
pelas quais tal compreensão é necessária. Em primeiro lugar, o princípio regulador do culto
está diretamente relacionado às doutrinas do sola scriptura tais como a infalibilidade, a
autoridade absoluta, a suficiência e perfeição da Escritura. Os reformadores calvinistas e as
confissões Reformadas citavam com freqüência passagens referentes ao sola scriptura
(e.g., Dt. 4:2, Pv. 30:6) como textos de prova para o princípio regulador do culto. Quando o
sola scriptura é aplicado ao culto, com consistência, o resultado é um culto puritano e
reformado. Em segundo lugar, é comum os oponentes do princípio regulador contra-
argumentarem, tendo por base a similaridade entre os textos que provam o sola scriptura e
os que provam o princípio regulador. Este tipo de argumentação segue normalmente uma
ou duas linhas de pensamento. Alguns dizem que os textos de prova citados a favor do
princípio regulador (e.g., Dt. 12:32) estão realmente ensinando apenas o sola scriptura. Em
outras palavras, é exegeticamente ilegítimo usar tais passagens para a regulação rigorosa do
culto. Outros dizem que a natureza similar e até mesmo idêntica entre as passagens do sola
scriptura e do princípio regulador não provam uma regulamentação rigorosa do culto, mas,
na verdade, provam o contrário. Tal argumento baseia-se no seguinte silogismo. O sola
scriptura ensina que a Bíblia regula a vida em sua totalidade. Entretanto, a vida em sua
totalidade possui muitas atividades que não são estritamente reguladas (em outras palavras,
a Bíblia dá ao homem uma grande liberdade no trato das coisas indiferentes [adiaforia]).
Portanto, segue-se que o princípio regulador ou o sola scriptura no que concerne a
adoração dá ao homem uma grande liberdade na esfera do culto. Neste estudo
examinaremos o relacionamento entre o sola scriptura e o princípio regulador com o
objetivo de provar que o sola scriptura, entendida apropriadamente, conduz ao princípio
regulador. Iremos, então, refutar muitos dos argumentos populares usados hoje contra o
princípio regulador, incluindo o argumento baseado na similaridade entre os textos de
prova do sola scriptura e do princípio regulador.1
1 Muitos cristãos professos consideram hoje os assuntos teológicos como de pouca ou nenhuma importância.
Alguns até mesmo consideram o debate teológico e a refutação de falsos ensinos como desamor arrogante e
insultuoso aos irmãos de denominações teológicas diferentes. Alguns crentes fazem comentários como: ―será
que não deveríamos estar construindo pontes em vez de erigindo muralhas e fortalezas?‖ Conquanto seja
inquestionável que o debate teológico e a refutação têm de ser conduzidos em espírito de amor cristão e zelo
pelos cristãos professos de opiniões teológicas diferentes, a idéia de que a precisão teológica, o debate e a
refutação são de algum modo más ou de nenhum valor em nossos dias é clamorosamente contrária à Bíblia
por uma série de razões. Primeiro, todo crente, e especialmente todo ministro, tem a obrigação moral de
defender a verdade, de contender fervorosamente pela fé que uma vez foi dada aos santos (Judas 3) e de
convencer aos que contradizem (Tt. 1:9). Em um mundo cheio de heresia, apostasia e de lobos em pele de
ovelhas, a falta de precisão doutrinária e, da parte do ministro, a indisposição para defender a verdade é
atitude antipastoral e indesculpável. Segundo, uma das grandes lições da história da igreja é que Deus tem
utilizado a heresia e a controvérsia teológica para santificar corporativamente a Sua igreja. Inimigos da
verdade, heréticos e deturpadores teológicos têm se levantado e assaltado a igreja de dentro para fora. Deus,
entretanto, em Sua infinita bondade e sabedoria tem usado tais ocasiões para fazer avançar a Sua própria
causa e reino. Muitas doutrinas cruciais foram esclarecidas e purificadas nas chamas da controvérsia e da
perseguição. Deveríamos acaso esperar que fosse diferente em nossos dias? James Begg escreve (1875):
―Nossa própria era tem fornecido abundantes ilustrações da verdade geral, por assim dizer, embora o pior
esteja provavelmente por vir. O ponto de ataque varia de tempos em tempos, mas a luta incessante não
míngua. Quando os homens e mulheres cristãos têm, de algum modo, se acostumado a defender uma posição
verdadeira, o assalto é direcionado a outra posição, e talvez a partir de um novo local. Embora não devamos
nos arriscar a despojar a importância relativa de grandes princípios, pode-se afirmar seguramente que nada é
mais importante do que as questões associadas com o culto aceitável a Deus‖ (Anarchy in Worship
[Edinburgh: Lyon and Gemmel, 1875], 4). Em terceiro lugar, o único método e a única base para o verdadeiro
ecumenismo bíblico não é ignorar a verdade ou a teologia, mas estudá-la vigorosamente, abraçá-la, protegê-la
e defendê-la. Qualquer tipo de união ou cooperação ―cristã‖ que ignora, minimiza ou altera a verdade é
destrutiva à fé. Tal união surge não da rocha firme da Escritura, mas da areia movediça de burocratas
desviados e apóstatas.
1. O Que é Sola Scriptura?
Antes de considerarmos a relação que há entre sola scriptura e o princípio
regulador precisamos, primeiro, definir o que é sola scriptura. Após ser dada uma breve
definição desta doutrina voltaremos nossa atenção para as declarações confessionais
protestantes.
Dito resumidamente, a doutrina protestante de sola scriptura ensina que a Bíblia
(os 66 livros do Velho e do Novo Testamento) é a divina Palavra inspirada de Deus, e,
portanto, infalível e absolutamente autoritativa para todos os assuntos referentes à fé e à
vida. Como palavra escrita de Deus contém tudo o que existe da revelação sobrenatural de
Deus, e porque cessaram todas as formas de revelação direta (com a morte dos apóstolos e
o fechamento do cânon), apenas e somente a Bíblia é a autoridade da igreja. Por que a
Escritura é clara (i.é, todo ensino necessário à salvação, fé e vida, são facilmente
compreendidos pelas pessoas comuns) não há necessidade de quaisquer fontes adicionais
de autoridade para interpretar a Bíblia infalivelmente para a igreja. A igreja (sejam ou não
papas, cardeais, bispos, pais da igreja, concílios eclesiásticos, sínodos ou congregações) não
tem autoridade sobre a Bíblia, mas a Escritura auto-autenticada tem autoridade absoluta
sobre a igreja e sobre todos os homens. Por ser o que a Bíblia é (como já visto), o mister da
igreja é puramente ministerial e proclamador. Todos os homens são proibidos de
acrescentar ou subtrair algo das Sagradas Escrituras, seja pelas tradições humanas, ou pelas
assim chamadas novas revelações do Espírito, ou pelos decretos de concílios e sínodos. A
Bíblia é suficiente e perfeita e não necessita de quaisquer acréscimos humanos. Além do
que, apenas aquilo que é ensinado na Escritura pode ser usado para tornar cativas as
consciências dos homens.
1. O Entendimento Confessional Reformado do Sola Scriptura
As confissões Reformadas estão em total concordância quanto ao sola scriptura ou
ao princípio regulador da Escritura.
Primeira Confissão Helvética (1536)
Artigo 1. A Escritura. A Escritura Canônica, sendo a Palavra de Deus, concedida
pelo Espírito Santo, e proclamada ao mundo pelos profetas e apóstolos, sendo de
todas as outras a mais perfeita e antiga filosofia, contém perfeitamente toda a
piedade e boa ordenação da vida.2
Confissão Francesa (1559)
Artigo 5. Cremos que a palavra, contida nesses livros, procede de Deus; de quem
somente, e não de homens, depende portanto a autoridade. E vendo que é a suma
de toda a verdade, contendo tudo aquilo que se requer para a adoração a Deus e
nossa salvação, afirmamos que não é lícito ao homem, não, nem mesmo aos anjos,
acrescentar ou subtrair qualquer coisa a ou desta palavra, ou alterar nela o mínimo
que seja.3
2 Traduzido do latim por Peter Hall, The Harmony of Protestant Confessions (Edmonton, Canada: Still Waters
Revival Books, 1992 [1842]), 4. 3 Ibid., 8.
Confissão Belga (1561)
Artigo 7. A Suficiência das Sagradas Escrituras para Serem a Única Regra de Fé
Cremos que as Sagradas Escrituras contêm totalmente a vontade Deus, e que tudo
quanto o homem deve crer para a salvação é suficientemente ensinado nela.
Porquanto todo modo de adoração que Deus requer de nós está nela amplamente
escrito, é ilícito a quem quer que seja, mesmo um apóstolo, ensinar outra coisa
além do que agora somos ensinados nas Sagradas Escrituras: nem um anjo vindo
do céu, como disse o apóstolo Paulo. Pois desde que é proibido acrescentar ou
subtrair qualquer coisa da Palavra de Deus, fica, portanto, assim evidente, que a
sua doutrina é a mais perfeita e completa em todos os aspectos. Nem consideramos
de valor equivalente às divinas Escrituras qualquer escritura de homens, por mais
santos que tenha sido; nem devemos considerar costume, ou grande multidão, ou
antiguidade, ou sucessão de eras e pessoas, ou concílios, decretos, ou estatutos,
como de igual valor à verdade de Deus, pois a verdade está acima de tudo; porque
todos os homens são, em si mesmos, mentirosos e mais vãos que a própria
vaidade. Portanto rejeitamos de todo coração tudo que discordar dessa infalível
regra que nos foi ensinada pelos apóstolos, dizendo, provai os espíritos se
procedem de Deus. E, de semelhante modo, se alguém vem ter convosco e não traz
esta doutrina, não o recebais em casa, nem lhe deis as boas-vindas. 4
Segunda Confissão Helvética (1566)
I. Das Sagradas Escrituras Sendo a Verdadeira Palavra de Deus...
2. E nesta Santa Escritura, a Igreja universal de Cristo tem todas as coisas
referentes à fé salvadora plenamente expostas, e também os moldes de uma vida
aceitável a Deus; e quanto a isso é expressamente ordenado por Deus que nada
seja acrescentado ou retirado dela (Dt. 4:2; Ap. 22:18-19).
3. Julgamos, portanto, que deve-se derivar destas Escrituras a verdadeira sabedoria
e a piedade, a reforma e o governo das igrejas; como também a instrução para
todos os deveres de piedade; e, para ser breve, a confirmação de doutrinas e a
refutação de todos os erros, com todas as exortações; de acordo com as palavras do
apóstolo: ―Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a
repreensão...‖, etc. (2Tm. 3:16-17). Novamente, ―Escrevo-te estas cousas‖, diz o
apóstolo a Timóteo, ―... para que (...) fiques ciente de como se deve proceder na
casa de Deus‖, etc. (1Tm. 3:14-15).5
II. Da interpretação das Sagradas Escrituras; e dos Pais da igreja, Concílios e Tradições...
4. ... Portanto, nas controvérsias da religião ou de assuntos relativos à fé, não
podemos admitir nenhum outro juízo senão o de Deus mesmo, declarando pelas
Sagradas Escrituras o que é verdadeiro, o que é falso, o que deve ser seguido, ou o
que [deve] ser evitado. Por isso só nos apoiamos no juízo de homens espirituais,
tomados da Palavra de Deus. Certamente que Jeremias e outros profetas
condenaram com veemência as assembléias de sacerdotes reunidos contra a lei de
Deus e diligentemente advertiram-nos de antemão que não deveríamos dar ouvidos
4 Joel R. Beek e Sinclair B. Ferguson, eds., Reformed Confessions Harmonized (Grand Rapids: Baker, 1999),
14, 16. 5 Ibid., 10, 12.
nem andar nos caminhos dos antepassados que, seguindo a suas próprias
invencionices, apartaram-se da lei de Deus.
5. Semelhantemente rejeitamos as tradições humanas que, embora recebam títulos
piedosos como se fossem divinas e apostólicas, e dadas à igreja pela vívida voz
dos apóstolos; como se fossem dadas pelas mãos de homens apostólicos por meio
da sucessão de bispos, mas que comparadas às Escrituras discordam delas; e que
nessa discordância traem-se como não sendo, de modo nenhum, apostólicas. Como
os apóstolos não se contradisseram entre si quanto à doutrina, assim os homens
apostólicos não ensinaram nada contrário aos apóstolos. Não, pois seria blasfemo
asseverar que os apóstolos, de viva voz, proclamaram coisas antagônicas aos seus
escritos. Paulo afirma expressamente que ensinava a mesma coisa em todas as
igrejas (1Co. 4:17). E, novamente, diz ele: ―porque nenhuma outra coisa vos
escrevemos, além das que ledes e bem compreendeis‖ (2Co. 1:13). Também,
noutro lugar, testifica que ele mesmo e seus discípulos — isto é, homens
apostólicos — andavam do mesmo modo, e que juntamente pelo mesmo Espírito
faziam todas as coisas (2Co. 12:18). Os judeus também, no passado, tinham a
tradição de seus anciãos, mas tais tradições foram repudiadas severamente pelo
Senhor, ao demonstrar que guardá-las é um estorvo à lei de Deus, e de que assim
Deus é adorado em vão (Mt. 15:8-9; Mc. 7:6-7).6
Os Padrões de Westminster (1646-1648)
Breve Catecismo
P. 2. Que regra Deus nos deu para nos dirigir na maneira de O glorificar e
gozar?
R. A Palavra de Deus, que se acha nas Escrituras do Velho e do Novo Testamento,
é a única regra para nos dirigir na maneira de O glorificar e gozar.7
Catecismo Maior
P. 3. O que é a Palavra de Deus?
R. As Escrituras Sagradas – o Velho e o Novo Testamento – são a Palavra de
Deus, a única regra de fé e de obediência.
Confissão de Fé
I.II. Sob o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se
agora todos os livros do Velho e do Novo Testamento, que são os seguintes, todos
dados por inspiração de Deus para serem a regra de fé e de prática...
I.VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a
glória dEle e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado
na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se
acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por
6 Ibid., 14, 16.
7 A Confissão de Fé, O Catecismo Maior, O Breve Catecismo (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991).
Neste livro, todas citações da Confissão de Fé Westminster, Catecismo Maior e Breve Catecismo são retiradas
da referida edição. No texto original o autor fez uso da The Westminster Confession of Faith (Glasgow,
Scotland: Free Presbyterian Publications, 1976).
tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima
iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas
na Palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo
da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas
pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que
sempre devem ser observadas.
2. Esclarecimentos
Conforme as declarações confessionais reformadas, a Bíblia é uma regra de fé e de
vida completa e suficiente. Agora que o cânon está fechado e a revelação direta cessou, as
Escrituras inspiradas são a única regra de doutrina e prática. Embora a Bíblia seja a única
regra que Deus nos deu para nos conduzir na maneira de O adorar e gozar, há uma série de
questões que precisam ser esclarecidas antes de continuarmos.
Primeiro, a doutrina de sola scriptura não é a negação da revelação natural. A
Bíblia mesmo ensina que existem coisas que o homem pode aprender sobre Deus e sobre si
mesmo a partir da natureza (cf. Sl. 19; Rm. 1:20ss.). Precisamos, entretanto, observar que:
(1) A revelação natural não tem por objetivo ser usada independentemente da revelação
direta. Antes da queda Deus falou diretamente com Adão quanto à árvore da ciência do
bem e do mal. (2) Quando a humanidade caiu em Adão, tanto a terra quanto a raça humana
foram afetadas pela pecado. Por causa do pecado e da maldição a revelação natural tornou-
se uma forma não confiável de fonte de ética. (3) A Escritura ensina que embora a
revelação natural seja bastante para tornar a raça humana culpada e inescusável (Rm. 1:18),
ela não é suficiente para ensinar o homem quanto a salvação, a Cristo e a muitas outras
doutrinas cruciais. (4) Além disso, quaisquer doutrinas ou comportamento que pudessem
ser deduzidas da revelação natural não poderiam contradizer as Sagradas Escrituras — que
são claras e suficientes — mas seriam por elas julgadas.
Em segundo lugar, a doutrina de sola scriptura não é a negação da natureza
progressiva e dos diversos meios de revelação divina antes do fechamento do cânon. Um
ensino fundamental do princípio regulador da Escritura é que o homem nada pode
acrescentar ou subtrair da Palavra de Deus (Dt. 4:2). Conquanto anterior à conclusão da
Escritura, este mandamento não impedia o próprio Deus de acrescentar Seus pensamentos
àqueles que Seu povo já possuía. Proibia, entretanto, quem quer que fosse, de acrescentar
ou subtrair da revelação divina que tinham, fosse por falsa profecia, augúrio, tradição
humana ou negligência aos mandamentos de Deus. Além disso, como cristãos atentamos
para uma revelação completa e escrita. (Nos tempos antigos os homens recebiam visões,
sonhos e comunicações verbais de Deus, mas nem toda revelação era para ser escrita).
Observe que, se quisesse, Deus poderia ter preservado a revelação divina de maneira
sobrenatural que não fosse a forma escrita. Entretanto, em Seu bel-prazer e infinita
sabedoria, Deus consignou tudo que a Igreja e o mundo precisam na revelação escrita. Uma
vez que a revelação natural é insuficiente, cessou a revelação direta à igreja, e Deus
declarou-nos a Sua vontade ao ―fazê-la escrever toda‖, as Escrituras são nosso único padrão
para fé e para vida.
Terceiro, a doutrina do sola scriptura, ao afirmar que ―todo o conselho de Deus
concernente a todas as coisas necessárias para a glória dEle e para a salvação, fé e vida do
homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente
deduzido dela‖, não é uma negação de que existiam muitas revelações e eventos históricos
que não foram incluídos no cânon. A Escritura completa, que Deus deu à Igreja, é
exatamente aquela que Ele queria que nós tivéssemos. Ele poderia ter dado ao Seu povo
uma centena de volumes que contivessem mais casos relativos à lei, mais histórias
detalhadas dos patriarcas, Moisés, Israel, Jesus Cristo e os atos da Igreja Apostólica. Mas
Jeová deu-nos apenas os 66 livros, e este cânon completo e perfeito é totalmente suficiente
para alcançar o seu propósito. Deus tem muitas coisas ocultas que pertencem a Ele e à Sua
perfeição divina que são infinitas e jamais poderiam ser-nos reveladas total e
adequadamente, mesmo que existissem um milhão de volumes inspirados. Mas, em Sua
misericórdia, tudo o que precisamos saber para amá-Lo e servi-Lo foi-nos dado nas
Escrituras.
II. Sola Scriptura – Aspectos
1. A Autoridade da Escritura
O princípio regulador da Escritura alicerça-se no fato de que a Bíblia é única.
Somente a Bíblia é a Palavra de Deus. A Confissão de Westminster declara que ―a
autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende
do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o seu Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a Palavra de Deus‖
(i.iv). A Escritura é inspirada por Deus. É, portanto, a verdade, e tem a autoridade do
próprio Deus. Somente ela, entre todos os livros, possui absoluta autoridade.
Só há um Deus — a Trindade ontológica que é transcendente, que criou todas as
coisas e que dá sentido à realidade. Do mesmo modo, só existe hoje uma única direção
verbal ou fonte escrita da revelação divina. Só existe um único livro que nos declara a
mente e a vontade de Deus. Por ser inspirada pelo próprio Deus, a Escritura é auto-
autenticada e absoluta. A sua autoridade não depende da igreja, nem de provas empíricas ou
de filosofia humana. À igreja, e a todos os homens, exige-se que a ela se submetam sem
quaisquer reservas ou evasivas, pois ela é a própria voz do Onipotente.
Por ser a Palavra de Deus, a Escritura é a autoridade final e definitiva para todos
os assuntos de fé e de vida. A Bíblia é o único padrão absoluto e objetivo, pelo qual a ética,
a doutrina, o governo da igreja e a adoração devem ser julgados. A Confissão de
Westminster afirma que ―o Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de
ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as
opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz
Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo
falando na Escritura‖ (i.x). Homens pecadores e falíveis podem e recebem autoridade
delegada por Deus, mas somente Deus, que é o Soberano absoluto e Criador de todas as
coisas, tem o direito à sujeição da fé e da obediência dos homens.
2. A Suficiência e Perfeição da Escritura
A compreensão da suficiência, perfeição ou completude da Escritura (que é um
dos principais aspectos do entendimento reformado de sola scriptura) nos conduzirá a um
entendimento mais profundo da conexão inseparável que existe entre o princípio regulador
da Escritura e o princípio regulador do culto. Por perfeição da Escritura queremos dizer que
a Bíblia é completamente suficiente para aquilo que foi por Deus designada. ―Toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para
a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente
habilitado para toda boa obra‖ (2Tm. 3:16-17). Robert Shaw escreveu: ―A Escritura é
apresentada como perfeita, apropriada para atender a toda necessidade, Sl. 19:8, 9; é
suficiente para que ‗o homem de Deus seja perfeito‘, e pode tornar o crente ‗sábio para a
salvação pela fé em Cristo Jesus‘ (2Tm. 3:15-17). Tão completa é a Escritura que o seu
Autor proíbe peremptoriamente que a ela se acrescente ou se diminua qualquer coisa (Dt.
4:2; Ap. 22:18, 19)‖.8 A. A. Hodge escreveu: ―a Escritura ensina de fato um perfeito
sistema de doutrina e todos os princípios necessários à regulamentação prática das vidas
dos indivíduos, das comunidades, e das igrejas. Quanto mais diligentes forem os homens no
estudo da Bíblia, e mais freqüentemente puserem em pratica as suas instruções, tanto
8 Robert Shaw, Exposition of the Confession of Faith (Edmonton: Still Waters Revival Books, 1845), 16.
menos lhes será possível crerem que, qualquer item da regra perfeita, é incompleta quanto
àquilo que o homem deve crer a respeito de Deus, e dos deveres todos que Deus requer do
homem‖.9
Quando discutimos a Escritura como a revelação inspirada e final de Deus, que é
suficiente e completa para a salvação, servir a Deus, fé e prática, não queremos dizer que
não existam verdades que possam ser apreendidas fora dela. Dissemos anteriormente que
certas coisas sobre Deus e sobre nós mesmos são entendidas através da revelação natural.
Além disso, a Bíblia não é necessária para a prática da lógica elementar, da matemática
simples e de observações básicas e superficiais. As conquistas de cientistas, engenheiros,
artistas, arquitetos, médicos e de outros incrédulos no mundo são a prova disso. Entretanto,
até mesmo nestas áreas da vida chamadas de ―seculares‖, os não-crentes, para fazerem
alguma coisa, têm de conduzir os seus assuntos em conformidade com as pressuposições
bíblicas. Noutras palavras, a Bíblia não apenas nos ensina sobre Deus, sobre nós mesmos,
redenção e ética, ela é também o fundamento de todo o entendimento. Sem a revelação
divina o homem não pode realmente entender nem dar a explicação de nada. Van Til
escreveu: ―Assim, pois, a Bíblia, como a inspirada e infalível revelação de Deus ao homem
pecaminoso, está diante de nós como a luz em torno da qual todos os fatos do universo
criado precisam ser interpretados. Tudo relativo a existência finita, natural e redentiva,
funciona conforme um plano todo-inclusivo que está na mente de Deus. Nesse âmbito da
atividade de Deus, seja qual for a percepção que o homem venha a alcançar, ele só a obterá
observando todos os seus objetos de pesquisa à luz da Escritura. Para irradiarmos a
verdadeira religião precisaremos ter como nosso princípio que é necessário começar com o
ensinamento celestial e que é impossível ao homem obter a mínima porção que seja da justa
e sã doutrina sem ser um discípulo da Escritura‖.10
Alem disso não existe no universo uma
área de neutralidade ética. Até mesmo nas áreas que a Bíblia não trata diretamente, tal
como engenharia estrutural e construção de foguetes, ela fala indiretamente. Tudo o que há
na vida deve ser vivido para a glória de Deus, até mesmo as mais terrenas atividades devem
ser conduzidas de acordo com os princípios gerais da Palavra de Deus.
Por ―perfeição e suficiência‖ da Escritura as confissões reformadas querem dizer
que, para o homem, a Bíblia é um guia tão completo e perfeito quanto a tudo o que Deus
requer que creiamos (salvação, doutrina, estatutos, etc.) e façamos (ética, santificação,
ordenanças do culto, governo da igreja, etc.) que ela não precisa de nenhuma
complementação da parte do homem. As confissões reformadas enfatizam que a Bíblia não
é uma regra entre tantas nem a melhor ou principal delas. Ela é a única regra de fé e de
prática. A Primeira Confissão Helvética diz: ―A Escritura Canônica (...) contém
perfeitamente toda a piedade e boa ordenação da vida (Art. 1).11
A Confissão Belga afirma:
―Cremos que as Sagradas Escrituras contêm totalmente a vontade Deus (...) todo modo de
adoração que Deus requer de nós está nela amplamente escrito...‖ (Art. 7).12
A Segunda
Confissão Helvética declara: ―E nesta Santa Escritura, a Igreja universal de Cristo tem
todas as coisas referentes à fé salvadora plenamente expostas, e também os moldes de uma
vida aceitável a Deus…‖ (1:2). O Breve Catecismo de Westminster afirma: ―A Palavra de
9 A. A. Hodge, The Defense of the Faith (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1955), 124.
10 Cornelius Van Til, The Defense of the Faith (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1955), 124. Van Til
cita as Institutas I.VI.2, de João Calvino. 11
Harmony of Protestant Confessions, 4. 12
Reformed Confessions Harmonized, 14.
Deus, que se acha nas Escrituras do Velho e do Novo Testamento, é a única regra para nos
dirigir na maneira de O glorificar e gozar‖ (R. da P. 2). O Catecismo Maior ensina: ―As
Escrituras Sagradas – o Velho e o Novo Testamento – são a Palavra de Deus, a única regra
de fé e de obediência‖ (R. de P. 3). A Confissão de Fé diz: ―Todo o conselho de Deus
concernente a todas as coisas necessárias para a glória dEle e para a salvação, fé e vida do
homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente
deduzido dela...‖ (i.vi, ênfase acrescentada).
Falando positivamente, a Bíblia é a única regra de fé e obediência. Falando
negativamente, é expressamente proibido aos homens, em qualquer hipótese, acrescentarem
as suas próprias idéias, doutrinas e/ou preceitos à Escritura. A Confissão Francesa diz: ―E
vendo que é a suma de toda a verdade, contendo tudo aquilo que se requer para a adoração
a Deus e nossa salvação, afirmamos que não é lícito ao homem, não, nem mesmo aos anjos,
acrescentar ou subtrair qualquer coisa a ou desta palavra, ou alterar nela o mínimo que seja‖
(Art. 5).13
A Confissão Belga afirma: ―é ilícito a quem quer que seja, mesmo um apóstolo,
ensinar outra coisa além do que agora somos ensinados nas Sagradas Escrituras: nem um
anjo vindo do céu, como disse o apóstolo Paulo. Pois desde que é proibido acrescentar ou
subtrair qualquer coisa da Palavra de Deus, fica, portanto, assim evidente que a sua
doutrina é a mais perfeita e completa em todos os aspectos. Nem consideramos de valor
equivalente às divinas Escrituras qualquer escritura de homens, por mais santos que tenha
sido; nem devemos considerar costume, ou grande multidão, ou antiguidade, ou sucessão
de eras e pessoas, ou concílios, decretos, ou estatutos, como de igual valor à verdade de
Deus, pois a verdade está acima de tudo; porque todos os homens são, em si mesmos,
mentirosos e mais vãos que a própria vaidade. Portanto rejeitamos de todo coração tudo que
discordar dessa infalível regra que nos foi ensinada pelos apóstolos...‖ (Art. 7).14
A
Segunda Confissão Helvética assevera: ―e quanto a isso é expressamente ordenado por
Deus que nada seja acrescentado ou retirado dela [i.é, das Sagradas Escrituras] (Dt. 4:2, Ap.
22:18-19)‖.15
A Confissão de Fé de Westminster diz: ―À Escritura nada se acrescentará em
tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens‖ (i.vi).
O fato de a Bíblia ser suficiente, perfeita e completa torna em anti-bíblica e tola
todas as tentativas de complementar seus ensinamentos, quanto a fé e à ética, com idéias e
regras da mente do homem. Contra os entusiastas do espiritualismo, os carismáticos, os
adivinhos e todos os falsos profetas, a Confissão de Fé de Westminster declara que ―à
Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito‖.
Contra os papistas e todos os que intrometem tradições humanas nos preceitos, nas
ordenanças, no culto ou governo da igreja, as confissões reformadas condenam o acréscimo
―por tradições dos homens‖ à Palavra de Deus. A doutrina da perfeição e suficiência das
Escrituras protege os crentes da tirania das exigências humanas. A ninguém (seja bispo, pai
da igreja, sínodo ou concílio) é permitido subjugar a consciência dos homens com qualquer
doutrina ou exigência. Tudo deve estar embasado na Escritura, seja por um mandamento
direto, ou por boa e necessária inferência. Por isso a Confissão de Fé de Westminster
declara que ―só Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e
mandamentos humanos que, em qualquer coisa, sejam contrários à Sua Palavra, ou que, em
matéria de fé ou de culto, estejam fora dela. Assim, crer em tais doutrinas ou obedecer a
13
Harmony of Protestant Confessions, 8. 14
Reformed Confessions Harmonized, 14, 16. 15
Ibid., 10.
tais mandamentos, por motivo de consciência, é trair a verdadeira liberdade de
consciência...‖ (xx.ii). Quanto às boas obras, a Confissão diz: ―As boas obras são somente
aquelas que Deus ordena em sua santa Palavra, não as que, sem a autoridade dela, são
aconselhadas pelos homens movidos de um zelo cego, ou sob qualquer outro pretexto de
boa intenção‖ (xvi.i). Quanto ao culto, diz a Confissão, ―mas, o modo aceitável de adorar o
verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo, e é tão limitado pela Sua vontade revelada,
que Ele não pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens, ou
sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo
não prescrito nas Escrituras‖ (xxi.i).
3. A Completude e Finalidade da Escritura
Quando as confissões reformadas afirmam a perfeição e suficiência da Escritura, e
a Confissão de Westminster fala contra as ―novas revelações do Espírito‖, elas estão
ensinando a completude e fechamento da Escritura. Por Escritura queremos dizer o cânon
completo (os 66 livros do Velho e do Novo Testamento), a Palavra de Deus escrita. No
ponto atual da história da salvação (após a obra redentiva de Cristo ter sido concluída, após
a pessoa e obra de Cristo ter sido explicada pelos profetas e apóstolos do Novo Testamento
e o governo, culto e doutrina da igreja da nova aliança terem sido completamente definidos
pelo Espírito Santo na Escritura) o processo revelacional cessou. A Escritura não poderia
estar completa senão após Jesus ter concluído a Sua obra na terra. Tudo na Escritura está,
de algum modo, relacionado à pessoa e obra de Jesus Cristo. Ele é descrito como o ápice e
a conclusão de Deus falando ao homem (Hb. 1:1-2).
Nosso Senhor disse aos Seus discípulos que lhes seria conveniente que Ele fosse,
porque após a Sua ascensão Ele enviaria o Espírito Santo para guiá-los a toda verdade (Jo.
16:7, 13-15). Inspirados pelo Espírito Santo, os apóstolos e profetas do Novo Testamento
deram-nos o fundamento (o cânon do NT) sobre o qual construir as igrejas da nova aliança
(Ef. 2:20-21). Paulo disse que quando viesse o que era perfeito (i.é, o Novo Testamento
concluído), a profecia e os outros modos de revelação cessariam (1 Co.13:8-12). É fato
histórico que a revelação divina cessou com a morte do último apóstolo. Ao longo da
história, aqueles que afirmaram ter revelações diretas de Deus (por ex., os Montanistas, os
profetas de Zwickau,* os Irvingitas,
* os modernos carismáticos, etc.) foram sempre falsos
profetas. Cristo e os apóstolos predisseram o surgimento dos falsos profetas e advertiram-
nos para não seguirmos às suas revelações mentirosas (cf. Mt. 7:15-23; 24:11; 2Pd. 1ss;
2Ts. 2:9-11; etc).
O fato de que a revelação cessou e de que a Escritura foi criada por Deus como
totalmente suficiente às nossas necessidades (2Tm. 3:16-17) significa que se quisermos
conhecer a mente e a vontade de Deus, a nossa única fonte de conhecimento será a Bíblia.
* Grupo anabatista liderado por Thomas Müntzer, cujo objetivo era uma revolução social, assim como uma
revolução espiritual. Além de serem revolucionários eram ―espiritualistas‖, isto é, reivindicavam a inspiração
direta do Espírito Santo, em lugar de se submeterem à autoridade final das Escrituras. Estabeleceram-se na
Saxônia e depois mudaram-se para Wittenberg, onde se opuseram amargamente a Martinho Lutero. Em 1525,
Müntzer participou de um fracassado levante de camponeses, na Turíngia, ao fim do qual foi executado
(N.E.). * Seguidores do ministro presbiteriano escocês Edward Irving (1792-1834), fundador da Igreja Católica
Apostólica, que foi o precursor do movimento carismático na Igreja Reformada. Recentemente, certos
estudiosos têm entendido ser Irving um dos principais responsáveis pela crise que dividiu e enfraqueceu o
evangelicalismo inglês (N.E.).
John Murray escreveu:
Para nós a Escritura tem um lugar e uma função exclusivos como o único
modo de revelação que permanece existindo. Os que estão
particularmente envolvidos nessa discussão tem por certo que a Escritura
não continua a ser escrita, que ela é um cânon fechado. Admitindo-se isto,
precisamos então considerar aquilo que os nossos oponentes não estão
dispostos a admitir, isto é, que este é o conceito de Escritura ensinado e
pré-suposto por nosso Senhor e Seus apóstolos, e insistir que é essa
concepção que deve ser aplicada ao cânon da Escritura como um todo.
Como não temos mais profetas, nem o nosso Senhor está presente
conosco como com os discípulos, nem temos meios de revelação como
nos dias apostólicos, a Escritura em sua totalidade é, segundo o conceito
de nosso Senhor e Seus apóstolos, a única revelação da mente e da
vontade de Deus a nós disponível. É isso que significa o encerramento da
Escritura para nós; ela é a única Palavra revelacional de Deus que ainda
vigora.16
16
John Murray, ―The Finality and Sufficiency of Scripture‖ in Collected Writings (Carlisle, PA: Banner of
Truth, 1976), 1:19. As seitas (por ex. swedenborgianismo, mormonismo, Testemunhas de Jeová, Igreja da
Unificação, etc) são notórias por estabelecerem uma nova (falsa) revelação que é usada, então, como padrão
superior e absoluto para julgar e reinterpretar a Bíblia. Infalibilidade, autoridade absoluta e suficiência são
transferidas da Bíblia para a nova revelação. Isso dá ao líder, ou líderes, da seita poder absoluto sobre os seus
iludidos seguidores. O movimento carismático não-cessacionista crê na revelação direta e contínua de Deus.
Entretanto, línguas, palavra de conhecimento e profecia estão dando, inconsistentemente, à Bíblia uma
posição secundária. Não há (da parte dos carismáticos) tentativas para se acrescentar novas revelações ao
cânon da Escritura. Alguns intelectuais carismáticos até desenvolveram a idéia de que a profecia agora é
diferente da profecia do Velho Testamento — que imprecisões e erros são aceitáveis na profecia pós-
apostólica da nova aliança. Todos esses ensinamentos indicam a aceitação implícita da posição cessacionista e
do sola scriptura. Quando pregadores pentecostais insistem para que as suas ―profecias‖ sejam escritas e
tratadas mesmo como palavra de Deus, eles têm, não raro, se tornado líderes de seitas. Os carismáticos
modernos insistem que têm uma revelação direta de Deus, entretanto, na prática, tratam tais supostas
revelações como aquilo que realmente são: palavras de homem.
Foto de George Gillespie
Mas entre tais coisas — que têm sido os amaldiçoados instrumentos
da desolação da igreja, os quais para alguns de vocês talvez não
pareçam nada ferir nem causar o mínimo malefício — estão as
cerimônias de ajoelhar-se no ato de receber a Ceia do Senhor,
benzer ao batizar, episcopalianismo, dias santos, etc. que são
infligidas sob o nome de coisas indiferentes; entretanto se se
analisar cuidadosamente suas graves e variadas perturbações, ter-se-
á um pensamento bem ao contrário. As vãs aparências e sombras
dessas cerimônias têm escondido e obscurecido a substância da
religião; a verdadeira vida de piedade é extinguida e anulada pelo
fardo dessas invenções humanas; por causa disso muitos que são
tanto fiéis a Cristo quanto leais ao rei, sofrem ofensa, zombaria,
vergonha, ameaça, perturbação...
George Gillespie
III. Sola scriptura — A Rejeição de Judeus e Católicos
A Bíblia e todas as confissões Reformadas condenam o acréscimo de tradições
humanas à Palavra de Deus. Infelizmente o princípio do sola scriptura tem sido violado ao
longo da história da igreja. Dois exemplos básicos de acréscimo de tradições à Palavra de
Deus são o judaísmo rabínico e o catolicismo romano.
O judaísmo rabínico ensina que Moisés ao receber a lei escrita no monte Sinai
recebeu também uma longa revelação não-escrita (oral). Tal revelação, então, foi
supostamente passada para Josué, os setenta anciãos, os profetas e os grandes mestres
rabínicos, geração após geração até ser finalmente lavrada no Talmude. Conquanto não haja
dúvidas que Deus instruiu a igreja antes dos dias de Moisés com palavras não-escritas, nem
que a profecia continuou até o fechamento do cânon, a idéia da continuação de uma
tradição divina não-escrita após o fechamento do cânon é claramente não-bíblica. Até
mesmo a idéia dos fariseus de uma tradição não-escrita funcionando ao mesmo nível da
autoridade da revelação escrita, enquanto o cânon permanecia aberto, é condenada pela
Escritura de várias formas. Em primeiro lugar, quando os judeus são repetidamente
advertidos para nada acrescentarem nem retirarem da Palavra de Deus escrita (Dt. 4:2; Pv.
30:5-6; Js. 1:7-8), não há qualquer advertência nem observação quanto a uma tradição
revelacional não escrita. Em segundo lugar, mandamentos e advertências quanto à
obediência, quer fossem encontrados na lei (e.g., Ex. 19:7-8; Dt. 31:9, 12, 46-47) ou nos
profetas (Jr. 36:2,32) referiam-se ao que já estava escrito ou ao que tornou-se profecia
escrita. Não há, no Velho Testamento, a menor comprovação de uma tradição autoritativa.
O ensino bíblico comprova que não existe uma fonte independente de comunicação oral
que continue lado a lado com a revelação escrita. Em terceiro lugar, Jesus condenou os
judeus repetidas vezes por acrescentarem tradições e doutrinas humanas à palavra de Deus
(e.g., Mt. 15:1-3). Em quarto lugar, o Talmude (que na tradução inglesa chega a 34 grandes
volumes) é cheio de contradições, ensinamentos não-éticos e frívola blasfêmia, além de
contradizer muitos dos principais ensinamentos da Bíblia. O judaísmo moderno não é uma
religião do Velho Testamento, mas uma religião fundamentada na tradição humana. À
semelhança de várias seitas o judaísmo transferiu a infalibilidade, a autoridade absoluta e
suficiência da Escritura para uma coletânea de escritos humanos.
Quanto ao item autoridade, a Igreja Católica Romana é muito semelhante ao
judaísmo. Os romanistas ensinam que a interpretação da Igreja, quanto à Bíblia e a tradição,
é a palavra final e autoritativa em termos de religião. O Concílio de Trento declara: ―Vendo
claramente que esta verdade e disciplina estão contidas nos livros escritos e na tradição
não-escrita‖ (4ª Sessão; 1546).17
O Segundo Concílio Vaticano afirma:
Esta tradição que vem dos apóstolos desenvolve-se na igreja com o auxílio do
Espírito Santo. Porque há um crescimento na compreensão das realidades e das
palavras que têm sido dadas (...) Pois assim como os séculos se sucedem uns ao
outros, a Igreja move-se constantemente para a plenitude da verdade divina até que
as palavras de Deus se completem perfeitamente nela (Dei Verbum, 8; 1962-
1965).18
O Catecismo da Igreja Católica diz que a igreja ―não deriva a sua certeza a respeito de tudo
17
―The Canons and Decrees of the Council of Trent‖ in Phillip Schaff, ed., The Creeds of Christendom
(Grand Rapids: Baker, 1983 [1876, 1931]), 2:80. 18
Walter M. Abbot, ed., The Documents of Vatican II (New York: Herden and Herden, 1966), 116.
o que foi revelado somente da Sagrada Escritura. Por isso, Escritura e Tradição devem ser
aceitas e honradas com igual sentimento de piedade e reverência‖.19
A Igreja Católica
Romana ensina que a hierarquia (i.é., os Bispos e o Sumo Pontífice), com o auxílio do
Espírito Santo, seleciona, autoriza e acrescenta a sua própria tradição autoritativa à forma
escrita de revelação. Os romanistas não crêem que a hierarquia da igreja está produzindo
doutrina, mas que está simplesmente promulgando os ensinamentos orais de Jesus e dos
apóstolos que nunca foram postos em forma escrita. Tais ensinamentos foram dados aos
bispos como uma fonte paralela de autoridade.
O ensino romanista sobre a autoridade da tradição dá à hierarquia da igreja
autoridade acima da palavra de Deus escrita. Cristo condenou enfaticamente o uso da
tradição como fonte de autoridade (cf. Mc. 7:5-13), pois a tradição, sempre que é
equiparada à Escritura, termina colocada acima dela e é, por fim, usada para interpretá-la. A
tradição humana foi o motivo maior pelo qual tanto a nação de Israel nos dias de Cristo,
quanto a Igreja Católica Romana na Idade Média tornaram-se apóstatas. No decurso de sua
história, a igreja papal multiplicou as tradições até que o evangelho e o culto apostólico
foram soterrados sob o monturo da pretensa religiosidade e da falsa doutrina.
Por que não seria bíblica a doutrina católica de uma tradição não-escrita (de igual
autoridade com a Escritura e que tem sido, de algum modo, mantida pura pela hierarquia da
igreja e passada aos leigos no curso da história)? Muitas são as razões pelas quais a
doutrina católico-romana da tradição autoritativa tem de ser rejeitada. Primeiro, a doutrina
da perfeição, completude e suficiência da Escritura torna desnecessária uma tradição
autoritativa, ou revelações posteriores da parte de Deus. Segundo, a Palavra que Deus fez
escrever proíbe que ao cânon se acrescente ou se retire alguma coisa. Terceiro, muitas das
doutrinas católicas que foram acrescentadas como doutrinas e práticas autoritativas
contradizem explicitamente o claro ensino da Bíblia. Quarto, muitas tradições católico-
romanas são contraditórias entre si. Quinto, a maior parte das tradições da igreja papal
tiveram as suas origens muito depois da morte dos apóstolos. Sexto, a tradição humana
depende de homens pecadores e falíveis e por isso é obscura, carente de provas e
indefinida.20
A tradição humana ―autoritativa‖ exige fé nas instáveis opiniões pecaminosas
19
Cathecism of the Catholic Church (New York: Doubleday, 1994), 31. Na presente tradução usa-se o
Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Vozes & Loyola, 1993), 35. 20
Charles Hodge escreve: ―Sabe-se, é claro, que Cristo e os Seus discípulos disseram e fizeram muito mais do
que o que foi registrado nas Escrituras; e admite-se que, além disso, se conhecêssemos quaisquer dessas
instruções não registradas, elas teriam a mesma autoridade daquilo que está exarado nas Escrituras. Os
protestantes afirmam, entretanto, que elas não tinham por objetivo integrar-se permanentemente à regra de fé
da igreja. Elas se destinavam aos homens daquela geração. As torrentes derramadas mil anos atrás aguaram a
terra e fizeram-na frutífera para os homens que, na época, nela viviam. Elas agora não podem ser ajuntadas e
colocadas ao nosso dispor. Não constituíam uma reserva para o suprimento das gerações futuras. De
semelhante modo os ensinamentos de Cristo e Seus apóstolos fizeram a sua obra. Eles não se destinavam à
nossa instrução. É tão impossível entender o que eram quanto o é recolher as folhas que ornavam e
enriqueciam a terra quando Cristo andava pelo jardim do Getsêmani. Tal impossibilidade decorre das
limitações da nossa natureza, como também da corrupção decorrente da sua queda. O homem não tem a
clareza de percepção, a retenção de memória, ou o poder de preservação, que o capacite (sem auxílio
sobrenatural) a fazer um relato confiável de um discurso ouvido uma única vez há alguns anos, ou mesmo
meses, após pronunciado. E isso ser feito repetidamente de boca em boca por milhares de anos é uma
impossibilidade. Se a isso se acrescentar a dificuldade do meio de transmissão oral que procede da cegueira
dos homens para as coisas do Espírito e os impede de entende aquilo que ouvem, e da disposição de
perverterem e distorcerem a verdade para ajustá-la a seus próprios preconceitos e propósitos, é preciso admitir
que a tradição não pode ser uma fonte confiável de conhecimento da verdadeira religião. Isso é
dos homens. Só podemos direcionar a nossa fé à Escritura que é perfeita, completa,
suficiente e perspícua, pois é a palavra do próprio Cristo e dá-nos certeza absoluta. Sétimo,
a Bíblia mesma condena todas as doutrinas e práticas de culto que não são derivadas da
Escritura. ―E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens‖ (Mt.
15:9; Is. 29:13). Turrentin escreve:
Tampouco, pode-se argumentar que as tradições farisaicas, não-apostólicas, não
são rejeitadas. Todas as doutrinas ensinadas por homens que não estejam contidas
nas Escrituras são rejeitadas e é vão supor que exista qualquer tradição apostólica
fora da Escritura. Os crentes são chamados à lei e ao testemunho (Is. 8:20) e
aqueles que não falam de acordo com isso são claramente condenados. As
tradições também não podem ser justificadas pelo testemunho porque Deus as
rejeita em toda parte. Ou a própria lei (freqüentemente chamada de ―o
testemunho‖) é destinada para ser um testemunho de Deus, ou os escritos dos
profetas que foram acrescentados à lei.21
Os apologistas católico-romanos tentam justificar a sua doutrina da tradição
autoritativa apelando para certas passagens da Escritura. É preciso analisar brevemente
algumas dessas passagens para revelar seus verdadeiros sentidos. À medida que
considerarmos tais passagens precisamos ter em mente que os apóstolos eram detentores de
uma única e singular autoridade. O ensino oral dos apóstolos era autoritativo e não
facultativo. Por isso, aqueles homens e igrejas que se colocavam debaixo do ensino dos
apóstolos eram obrigados a obedecer às suas instruções inspiradas pelo Espírito como a
verdadeira palavra de Deus, a regra de fé e de prática. Entretanto o fato de que os apóstolos
podiam ensinar oralmente a verdade inspirada e autoritativa enquanto vivos (e que as
igrejas estavam moralmente obrigadas a obedecer seus ensinamentos) não prova que exista,
entre a hierarquia romanista, uma tradição oral autoritativa preservada, de alguma maneira,
ao longo da história. Somente a Escritura é que pode definir a frase ―tradição apostólica‖.
Além disso, por que iria o Deus de infinita sabedoria fazer escrever parcialmente a Sua
revelação deixando o resto para a tradição oral? Enquanto a revelação escrita é facilmente
preservada da corrupção, a tradição oral é facilmente corrompida e perdida. Também
quando um bispo ou papa surge com um novo ensinamento da (ou através da) suposta
tradição apostólica não-escrita, como poderemos determinar se ele simplesmente tirou ou
não tal doutrina da sua própria imaginação? Espera-se que simplesmente aceitemos a sua
própria palavra? Não seria isso uma fé cega nas palavras dos homens? O fundamento
romanista de uma tradição autoritativa firma-se na sua doutrina da autoridade especial da
igreja (i.é, a hierarquia sacerdotal). Esta é, em si mesma, uma doutrina totalmente contrária
à Bíblia. A única maneira de podermos saber com absoluta certeza o que os apóstolos
ensinaram é ler o que eles escreveram.
Em 1Coríntios 11:2 Paulo diz: ―De fato, eu vos louvo porque, em tudo, vos
lembrais de mim e retendes as tradições assim como vo-las entreguei‖. Será que nesse texto
Paulo está concordando com a doutrina papal referente a um conjunto de tradições não-
escritas transmitidas pela sucessão de bispos de geração em geração? Não, de modo
universalmente reconhecido e adotado, exceto pelos romanistas. Ninguém tem a pretensão de determinar o
que Lutero, Calvino, Latimer e Cranmer ensinaram, exceto a partir dos registros escritos à sua época. Muito
menos qualquer homem em são juízo pretender saber o que Moisés e os profetas ensinaram, exceto a partir de
seus próprios escritos‖ (Systematic Theology [Grand Rapids: Eerdmans, 1989], 1:21). 21
Frances Turrentin, Institues of Elenctic Theology, 1:139.
nenhum. Paulo está simplesmente instruindo os crentes corintianos a obedecerem à doutrina
e exortações que lhes deu quando estava pessoalmente entre eles. A palavra paradosis
traduzida como ―tradição‖ ou ―ordenança‖ (Bíblia inglesa versão do Rei Tiago) quando
usada em referência à regra de fé no Novo Testamento sempre refere-se à instrução
imediata de homens inspirados. ―Quando usada no sentido moderno da palavra tradição,
refere-se sempre àquilo que é humano e indigno de confiança (Gl. 1,14; Cl. 2,8) e nos
evangelhos refere-se amiúde às tradições dos presbíteros‖.22
Um dos textos de prova preferidos dos apologistas romanistas é 2Ts. 2:15: ―Assim,
pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas, seja por
palavra, seja por epístola nossa‖. Observe que Paulo refere-se tanto à doutrina oral ou
falada quanto ao ensino escrito. Será que esta passagem não cabe perfeitamente dentro da
doutrina papal de uma dúplice revelação: escrita e oral? Não, absolutamente não! Mais uma
vez Paulo está se referindo ao ensino inspirado dado pessoalmente. Esta passagem não dá
sustentação à idéia de um ensinamento secreto passado através dos séculos pelos bispos.
―Paulo não está encorajando os tessalonicenses a receberem alguma tradição que lhes foi
passada via uma segunda ou terceira mão. Antes, pelo contrário, lhes ordena que recebam
como verdade infalível apenas aquilo que ouviram diretamente de seus próprios lábios‖.23
Para demonstrar o absurdo da posição romanista, levemos em conta mais um
aspecto. Consideremos, por um momento, que a posição católico-romana seja verdadeira, e
que um grande depósito de doutrina apostólica foi dado oralmente à igreja para a sua
própria santificação. Consideremos que esta doutrina oralmente concedida é inspirada,
autoritativa e que, portanto, exige-se que todo crente a obedeça sem reservas. Se a igreja
recebeu tal depósito de ensino apostólico por que não exará-lo todo por escrito de modo a
que todos possam beneficiar-se imediatamente da sua divina sabedoria? Se este ensino é
autoritativo e obrigatório, por que então atirar as suas migalhas ao longo de um período de
quase dois mil anos? Por que não expô-lo todo abertamente para que todos possam se
beneficiar imediatamente dele? Por que foi que a igreja teve que esperar até 1089 para
aprender que Deus exigia o celibato do clero? Por que esperar até 1854 para aprender sobre
a imaculada conceição de Maria? É óbvio, pela comprovação tanto bíblica quanto histórica,
que a doutrina papal a respeito da tradição autoritativa é apenas uma astuta tentativa
humana de justificar os séculos de doutrinas e práticas criadas pelo homem. A doutrina
romanista da tradição autoritativa é uma mera invenção humana usada para transplantar a
autoridade da Bíblia para a hierarquia da igreja. A razão para que o papa e os bispos
ficassem atirando, aqui e ali, no decurso da história, as migalhas de uma suposta tradição
oral apostólica é que isso lhes concede um poder incrível. Quando se precisa de qualquer
doutrina ou prática para controlar o povo leigo e aumentar o poder da hierarquia, algum
burocrata da igreja simplesmente forja ou descobre uma nova doutrina e a impõe sobre o
laicato. Isso dá à hierarquia católico-romana poder, semelhante ao das seitas, sobre o seu
rebanho. O fato de que muitos bispos e papas católico-romanos podem ter sido sinceros em
suas crenças não minimiza a realidade de que a doutrina da tradição autoritativa é uma
doutrina de demônios. Acautelai-vos dos falsos profetas. A doutrina deles pode vos devorar
(cf. Mt. 7:15).
Como resultado de tal ensinamento quanto a autoridade, a Igreja Católica Romana
22
Charles Hodge, 1 and 2 Corinthians (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1958 [1857]), 206. 23
John MacArthur, ―The Sufficiency of the Written Word‖ in Don Kistler, ed., Sola scriptura (Morgan, PA:
Soli Deo Gloria, 1995), 177.
tem mais em comum com as seitas pagãs do que com o cristianismo apostólico. Turrentin
escreve:
Veja que [a Igreja Católica Romana] é apóstata e herética, tendo se apartado da fé
que uma vez foi dada aos santos ensinando várias heresias mortais, forçando a
crença nelas sob a pena de maldição. Tais são as doutrinas concernentes à
justificação por obras meritórias, satisfações humanas e indulgências,
transubstanciação, o sacrifício da missa, pecado e livre arbítrio, graça suficiente, a
possibilidade do cumprimento da lei, o pontífice ecumênico e a primazia do papa...
Ela é ao mesmo tempo idólatra e supersticiosa quanto ao objeto de sua adoração e
quanto à maneira que cultua. Quanto ao objeto, considerando que além de Deus
(que como único onisciente, onipotente e supremo deve ser o exclusivo objeto de
adoração e invocação) ela também venera e adora a criaturas que por natureza não
são deuses (Gl. 4:8): como a bendita virgem, os anjos, os santos defuntos, a hóstia
consagrada, os sacramentos, a cruz, o papa, as relíquias de Cristo e dos santos.
Quanto ao modo, na feitura, culto e adoração de efígies e imagens, tão
solenemente proibidas pela Lei de Deus. E tais coisas não surgem da opinião
particular de mestres, mas das sanções públicas e das práticas constantes.24
Se for para limpar a igreja papal das suas heresias malditas e da idolatria gritante e
blasfema, ela tem obrigatoriamente que retornar ao sola scriptura. É preciso curar em
primeiro lugar a raiz antes que o fruto doente e venenoso seja substituído.
24
Frances Turrentin, Institutes of Elenctic Theology, 3:123-125.
Foto de John Knox
A missa é idolatria. Toda adoração, veneração, ou culto inventado
pela mente humana na religião de Deus sem a Sua ordem expressa é
idolatria. A missa é inventada pelo cérebro do homem sem qualquer
mandamento expresso de Deus, portanto é idolatria.
John Knox
IV. Inconsistências Protestantes
Não obstante alguns protestantes, felizmente, afirmarem o sola scriptura, muitos
outros ensinam e praticam coisas que contradizem a doutrina de que a Escritura é o único
padrão para a fé e para a vida. A negação implícita do sola scriptura, seja pelo ensino ou
prática, pode ser encontrada em igrejas luteranas, episcopais, evangélicas e até mesmo
reformadas. Um breve exame de algumas dessas inconsistências nos auxiliará a entender
esse ensino crucial.
A doutrina do sola scriptura é ao mesmo tempo afirmada e implicitamente negada
nas declarações de fé da Igreja da Inglaterra (os Trinta e Nove Artigos da Religião [1563,
Revisão Americana de 1801) e dos luteranos (A Confissão de Augsburgo [1530] e a
Fórmula de Concórdia [1576, 1584]). O sexto artigo dos Trinta e Nove Artigos contém uma
boa declaração quanto à Bíblia. ―A Sagrada Escritura contém tudo o que é necessário à
salvação: portanto aquilo que não pode ser lido nela, nem por isso mesmo comprovado, não
pode ser exigido de qualquer homem como artigo de fé a ser crido, nem ensinado como
requisito necessário à salvação‖.25
A confissão luterana também contém uma forte afirmação do sola scriptura.
I. Nós cremos, confessamos, e ensinamos que a única regra e norma,
segundo a qual todos os dogmas e doutores devem ser considerados e julgados,
não é nenhuma outra senão as escrituras proféticas e apostólicas do Velho e do
Novo Testamento, como está escrito: ―Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e
luz, para os meus caminhos‖ (Sl. 119:105). E disse São Paulo: ―ainda que nós ou
mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos
pregado, seja anátema‖ (Gl. 1:8).
Dessa forma faz-se uma clara distinção entre as Sagradas Escrituras do
Velho e do Novo Testamento, e todos os outros escritos; e somente a Sagrada
Escritura é reconhecida como [único] juiz, norma e regra, segundo a qual, como
[única] pedra de toque, todas as doutrinas devem ser examinadas e julgadas,
quanto a se são piedosas ou ímpias, verdadeiras ou falsas.26
1. O Episcopalismo
Infelizmente, os símbolos luterano e episcopal contradizem o sola scriptura ao
discutirem sobre as cerimônias eclesiásticas, autoridade da igreja e tradição. Os Trinta e
Nove Artigos dão à igreja uma autoridade que é claramente incompatível com sola
scriptura. No Artigo 20 (Da Autoridade da Igreja), lê-se:
A Igreja tem o poder de decretar ritos ou cerimônias, e de autoridade em
controvérsias de fé; não lhe é legítimo, entretanto, ordenar qualquer coisa que seja
contrária à Palavra de Deus escrita, nem interpretar contraditoriamente uma parte
da Escritura em oposição a outra. Embora a Igreja seja testemunha e guardiã do
Texto Sagrado, nada pode ela decretar contrário à Escritura, nem nada impor além
dela como crença necessária à salvação.27
O Artigo 34 (Das Tradições da Igreja), declara:
25
Creeds of Christendom, 3:489. Todas as citações são da revisão americana de 1801. 26
Ibid., 3:93-94, 96. 27
Ibid., 3:500.
Não é necessário que as tradições e cerimônias sejam as mesmas em todos os
lugares, ou exatamente iguais; porque têm sido sempre diversificadas e podem ser
modificadas conforme a variedade de países, épocas, e modos dos homens,
contanto que nada seja contrário à Palavra de Deus.
Qualquer um que, pelo seu entendimento particular, voluntária e
intencionalmente, violar abertamente as tradições e cerimônias da Igreja que não
sejam conflitantes com a Palavra de Deus e ordenadas e aprovadas pela autoridade
comum, deve ser repreendido abertamente (para que os outros temam fazer o
mesmo) por ter ofendido a ordem comum da Igreja e ferido a autoridade do
Magistrado e as consciências dos irmãos mais fracos.
Toda Igreja, em particular ou nacional, tem autoridade para ordenar,
modificar e abolir cerimônias e rituais seus, apenas ordenados pela autoridade
humana, contanto que tudo seja feito para a edificação.28
Os Trinta e Nove Artigos dão à igreja um poder independente da Escritura. Os
líderes eclesiásticos não podem somente determinar ou abolir rituais ou cerimônias ao bel-
prazer da sua própria autoridade sem o consentimento da Escritura, eles também reservam
para si mesmos o poder de disciplinar o fiel que ―violar abertamente as Tradições e
Cerimônias da Igreja‖. Embora o seu próprio credo afirme que a igreja não pode ordenar
―qualquer coisa que seja contrária à Palavra de Deus escrita‖, ele, não obstante, dá à
hierarquia da igreja um poder que não depende da Escritura. Assim, ao passo que o sexto
artigo afirma a sola scriptura na teoria, os artigos 20 e 34 a negam na prática. Estes últimos
não dão à igreja apenas o poder de determinar ou abolir rituais ou cerimônias como lhe
aprouver, sem qualquer sanção da Escritura, dão também à igreja a autoridade de
disciplinar o crente que ―violar abertamente as tradições e cerimônias da Igreja‖. O artigo
20 declara que à igreja ―não... é legítimo... ordenar qualquer coisa que seja contrária à
Palavra de Deus escrita‖. Esta declaração (que segue a das confissões luteranas), entretanto,
pouco consolo deveria dar aos puritanos e pactuantes* que foram disciplinados e
perseguidos por se recusarem a se submeter aos rituais e cerimônias ordenadas pela igreja.
A posição episcopal quanto à autoridade da igreja e à tradição humana deriva de:
(1) uma visão deficiente da perfeição e suficiência da Escritura; (2) de uma falsa
compreensão quanto ao papel da razão humana em determinar as ordenanças da igreja;
(3) de um conceito falacioso sobre os régios direitos do Cristo ressurreto.
Quando o assunto é governo e culto da igreja, os teólogos e apologistas episcopais
admitem abertamente que a Escritura não é uma regra perfeita para a igreja, mas apenas
uma regra parcial. Os anglicanos (pelo menos nas áreas de culto e governo) vêm a Bíblia
como incompleta, vaga e genérica. Para eles a Bíblia é como um mapa defeituoso que
mostra algumas grandes estradas, mas sem os seus detalhes. Para que o mapa se faça
realmente útil é preciso que a liderança eclesiástica preencha as lacunas. A que detalhes se
precisa chegar? Os bispos usarão a inteligência para recolherem alguma coisa dentre as
tradições largadas no caminho pela igreja antiga, e acrescentarão mais algumas adoráveis
tradições inventadas por eles mesmos. Ignora-se o fato de Deus deixar mais do que claro o
seu desprezo pelas invenções humanas em termos de ética e de culto (cf. Gn. 4:3-5; Lv.
10:1-2; Dt. 4:2 e 12:32; Nm. 15:39-40; 2 Sm. 6:3-7; 1Cr. 15:13-15; 1Rs. 12:32-33; Jr.
28
Ibid., 3:508-509. * Em inglês, covenanters. Movimento presbiteriano escocês, que se reuniu na Aliança Nacional de 1683, e,
depois, na Liga e Pacto Solene de 1643, contrários às imposições eclesiásticas dos anglicanos ingleses (N.E.).
7:24,31; Is. 29:13; Cl. 2:20-23).
Há um grande contraste entre o entendimento anglicano e reformado de sola
scriptura e suficiência da Escritura. As confissões reformadas consideram que a perfeição e
suficiência da Bíblia é extensiva não apenas à doutrina, mas também ao culto e ao governo
da igreja. Se o culto e o governo que Deus instituiu na Sua Palavra forem suficientes, é
óbvio, então, que não é necessária qualquer suplementação. Davies diz que: ―o princípio
mais importante da autoridade absoluta da palavra de Deus nas Escrituras quanto a fé, ética,
e culto foi expresso pelos puritanos. Apartar-se disso é a maior das impertinências e
pretensões humanas, pois implica em conhecer a vontade de Deus mais do que o próprio
Deus, ou, que a fraqueza herdada do pecado original não cega o juízo humano por causa do
egocentrismo‖.29
O conceito episcopal quanto à autoridade da igreja e à tradição também se origina
do uso errôneo da razão humana. Os apologistas anglicanos do século dezesseis, na
tentativa de refutarem o que eles achavam um biblicismo dogmático dos puritanos, deram à
razão um papel autônomo da Escritura, ao determinar o culto e o governo da igreja. Os
puritanos não eram contra o uso da razão. Para eles, entretanto, a razão deveria se submeter
sempre à Escritura e ser utilizada para deduzir a doutrina e a prática da própria Bíblia. Não
deveria ser usada independentemente da Escritura. Os teólogos de Westminster referem-se
aos patentes ensinamentos da Escritura e aos logicamente deduzidos dela (i.vi). Os
apologistas anglicanos (especialmente Richard Hooker) usaram a razão para liberarem as
autoridades da igreja dos rígidos parâmetros da palavra a fim de justificar as suas tradições
humanas (a maioria delas era a continuação de práticas medievais católico-romanas).
Quanto a Richard Hooker (o maior dos apologistas anglicanos), disse Cook:
Na defesa do anglicanismo, publicada em oito livros entre 1594 e 1600, Hooker
identifica a natureza da igreja como o verdadeiro ponto de controvérsia entre
puritanos e anglicanos. Ele procura repudiar a posição de Cartwright de que a
Escritura provê um protótipo permanente para o governo da igreja. Esforçando-se
sobremaneira para deslocar o argumento para fora da Escritura, Hooker defende
que o princípio da razão natural tem a mesma validade que o princípio da
revelação divina. Ele segue numa abordagem essencialmente não-reformada sobre
a verdade, ensinando que algumas leis espirituais são conhecidas pela razão à parte
da Escritura. Aqui temos a mente católica em funcionamento, buscando a sua força
em Aquino, ela opera muito a vontade dentro da Igreja Inglesa de onde jamais fora
banida, criando, na verdade, a característica mentalidade anglicana que tem
controlado, desde então, a prática da Igreja da Inglaterra... Nada há de sola
scriptura na argumentação de Hooker que apele ao Novo Testamento, pois a
Constituição da igreja diz, com efeito, que ―Deus, ao entregar a Escritura à Sua
Igreja, deveria ter ab-rogado claramente entre eles a lei da natureza; a qual é um
saber infalível impresso nas mentes de todos os filhos dos homens‖ (Ecclesiastical
Polity, Livro II, capítulo 8, 6). Dá-se à razão a mesma validade da Escritura
―considerando que, assim como a lei está acima da razão, citar a razão serve tanto
quanto citar a Escritura; pois tudo aquilo que é razoável é da lei, seja quem for o
seu autor‖.30
29
Horton Davies, ―Worship and Theology‖ in England from Cranmer to Baxter and Fox, 1534-1690 (Grand
Rapids: Eerdmans, 1996 [1970]), 1:258. 30
Paul E. G. Cook, ―The Church‖ in Puritan and Anglican Thinking (Nothamptonshire, England: The
A errônea compreensão anglicana quanto ao pecado original segue passo a passo o
uso impróprio da razão humana. Davies escreve que: ―os Anglicanos entendem que o
homem é deficiente na sua capacidade espiritual; as suas outras capacidades foram
enfraquecidas, mas não desesperadamente feridas e carecendo de transfusões de sangue
redentor, como argumentavam os puritanos. Para os Anglicanos a razão do homem era
inigualável; ela possuía a capacidade de distinguir, numa ordem moral, entre o bem e o mal.
Cranmer defendia, por exemplo, que os homens poderiam escolher o bem sem o auxílio da
graça santificadora. Jewel afirmava que ‗a razão natural, mantida em seus limites, não é o
inimigo, mas a filha da verdade de Deus‘. Donne asseverava que a razão tinha de ser
empregada quando o sentido da Escritura não fosse claro, mas que, ‗embora a nossa
suprema corte... de apelação final seja a Fé, a Razão é o seu delegado‘‖.31
Como
conseqüência do entendimento falho quanto aos efeitos da queda, os Anglicanos não
entendem o perigo de permitirem que homens pecaminosos e caídos tenham o direito de
determinar os rituais e as cerimônias da igreja. Os puritanos reconheciam que a corrupção
do coração humano tornou o homem incapaz de estabelecer formas aceitáveis de culto ao
santo Deus trino. Não se pode confiar nem mesmo na mente regenerada para instituir
autonomamente ordenanças de culto, pois ela permanece em luta contra os efeitos
remanescentes da queda. A única coisa segura a ser feita sob tais circunstâncias é estudar e
seguir o que Deus diz. ―Confia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu
próprio entendimento‖ (Pv. 3:5). Bushell escreveu:
Portanto, de modo particular, o princípio regulador pode ser visto como uma
inferência natural da doutrina da depravação total. Uma está ligada à outra, como,
por exemplo, em Êxodo 20:25: ―Se me levantares um altar de pedras, não o farás
de pedras lavradas; pois, se sobre ele manejares a tua ferramenta, profaná-lo-ás‖.
Qualquer obra das mãos do próprio homem, que ele presume oferecer a Deus em
adoração, é poluída pelo pecado e é, por essa razão, totalmente inaceitável.32
Não há dúvida que os pais da igreja e os teólogos da era medieval, que
acrescentaram muitas tradições humanas ao culto a Deus, pensavam que estavam
inventando coisas que beneficiariam e edificariam a igreja. O resultado, entretanto, foi a
prostituta romanista, a igreja do Anticristo. É por isso que as Escrituras advertem
repetidamente ao povo da aliança para nada adicionarem nem subtraírem das leis, estatutos
e ordenanças que Jeová prescreveu. ―Quando o SENHOR, teu Deus, eliminar de diante de ti
as nações, para as quais vais para possuí-las, e as desapossares e habitares na sua terra,
guarda-te que não te enlaces com imitá-las, após terem sido destruídas diante de ti; e que
não indagues a cerca de seus deuses, dizendo: Assim como serviram estas nações aos seus
deuses, do mesmo modo também farei eu. Não farás assim ao SENHOR, teu Deus, porque
Westminster Conference, 1976), 26. 31
Horton Davies, Worship and Theology in England, 1:54. 32
Michael Bushell, The Songs of Zion: A Contemporary Case for Exclusive Psalmody, 120. William Young
escreveu: ―A total corrupção e engano do coração humano desqualifica o homem para julgar o que deve ser
admitido no culto a Deus. Pode ser que antes da queda nossos primeiro pais tivessem gravados em seus
corações a lei da adoração, e que ao olharem para o íntimo de seus próprios seres pudessem ler os
mandamentos de Deus. Mas, ainda assim, eles não possuíam uma comunicação externa direta da vontade
Daquele que passeava e conversava com eles no jardim. Entretanto, desde a queda, embora a consciência
humana permaneça testemunhando a todos os homens que a adoração é devida ao Ser supremo, não se pode
obter do coração do homem qualquer informação sobre como Deus deve ser adorado‖ (Frank J. Smith e
David C. Lachman, ed., Worship in the Presence of God [Greenville, SC: Greenville Seminary Press, 1992],
81).
tudo o que é abominável ao SENHOR e que ele odeia fizeram eles a seus deuses, pois até
seus filhos e suas filhas queimaram aos seus deuses. Tudo o eu te ordeno observarás; nada
lhe acrescentarás, nem diminuirás‖ (Dt. 12:29-32).
O conceito anglicano de autoridade e tradição da igreja é uma rejeição implícita
dos direitos régios de Jesus Cristo. Os teólogos episcopais não são obedientes à grande
comissão que Jesus ordenou à igreja: ―ensinando-os [as nações] a guardar todas as cousas
que vos tenho ordenado‖ (Mt. 28:20). A versão deles deveria ser: ―ensinando-os [as nações]
a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado e tudo que os bispos decidirem que é
edificante‖. Quando líderes eclesiásticos ou qualquer outra pessoa definem leis humanas,
ordenanças religiosas, cerimônias ou rituais paralelamente à vontade revelada de Deus, tais
homens, então, estão atribuindo a si mesmos uma autoridade que pertence apenas a Deus.
Somente Deus tem autoridade para declarar um ato como moral ou imoral. No entanto,
homens e mulheres foram disciplinados e perseguidos simplesmente por recusarem
submissão a ritos e cerimônias elaborados por homens. Todo uso de tradição humana no
culto a Jeová é implicitamente romanista e tirânico. Embora não seja permitido a
congregações evangélicas e igrejas reformadas desviadas praticarem a tortura, o
aprisionamento, o confisco de bens ou o banimento como forma de punirem os puritanos
modernos, elas usam muitas formas sutis, e outras nem tão sutis, de coerção, de disciplina e
de reprovação. Mesmo que muitas igrejas desaprovem o culto bíblico, jamais devemos
colocar a nossa fé nas ordenanças religiosas autônomas de homens finitos e pecadores.33
É
maligno e tolo considerar as tradições humanas no culto como se fossem parte da Palavra
de Deus. A fé bíblica deve ser direcionada apenas para Cristo e Sua Palavra, ―pois toda a
nossa obediência no culto a Deus é a obediência da fé. E se a Escritura é a regra de fé, a
nossa fé — com todo o seu zelo — não deve ir além dela, do mesmo modo que a coisa
regulamentada não pode ir além do regulamento‖.34
Só Jesus Cristo é o Rei e único legislador da igreja. Sempre que os homens
acrescentam leis humanas, ordenanças, rituais ou cerimônias ao que Cristo autorizou em
Sua Palavra, eles negam aos crentes a liberdade que têm em Cristo. Owen escreveu:
O cerceamento da liberdade dos discípulos de Cristo, pela imposição de coisas que
Ele não determinou, nem se fizeram necessárias pelas circunstâncias que as
antecederam, são claras usurpações das suas consciências, destrutivas à liberdade
que Ele lhes adquiriu, às quais — se o dever deles é andar conforme a ordenança
do evangelho — submeter-se é pecaminoso.35
Hoje, ironicamente, os oponentes ao sola scriptura aplicada ao culto (i.é, o
princípio regulador do culto) têm tentado virar a mesa contra os puritanos modernos
argumentando que são aqueles que querem regular o culto que cerceiam a liberdade dos
33
John Knox escreveu: ―Não basta ao homem inventar cerimônias conforme o seu querer e depois dar-lhes
um significado... Porém se alguma coisa procede da fé é preciso ter a Palavra de Deus como sanção, pois não
ignorais que ‗a fé vem pela pregação, e a pregação, pela Palavra de Cristo‘ [Rm. 10:17]. Agora, se provardes
que as vossas cerimônias procedem da fé e, de fato, agradam a Deus, devereis provar que Deus as ordenou
expressamente em palavras, caso contrário jamais comprovareis que procedem da fé e que agradam a Deus,
mas que são pecado e que O desagradam, conforme as palavras do apóstolo: ‗tudo o que não provém de fé é
pecado‘ [Rm. 14:23]‖ (William Croft Dickenson, ed., John Knox’s History of the Reformation in Scotland
[New York: Philosophical Library, 1950], 1:87. 34
John Owen, ―The Word of God the Sole Rule of Worship‖ in Works (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1967),
13:473. 35
John Owen, ―A Discourse Concerning Liturgies‖ in Works (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1965 [1850-
1853]), 15:55.
crentes, por não darem oportunidade aos outros de introduzirem inovações humanas no
culto a Deus. O problema com tal argumento é que liberdade, como definida pela Escritura,
jamais significa libertação da lei de Deus, ou autonomia para se criar as próprias
ordenanças ou cerimônias de culto à parte da Palavra de Deus. A liberdade bíblica refere-se
a: (1) nossa libertação de obedecer à lei como meio de justificação diante de Deus (e.g.,
Rm. 3:28); (2) nossa libertação do poder do pecado em nós (e.g., Rm. 6:6ss.); (3) anulação
da lei cerimonial, e, portanto, a nossa libertação dela; (4) nossa libertação em coisas que são
verdadeiramente adiafóricas, isto é, coisas indiferentes (e.g., Rm. 14:20). Liberdade cristã
jamais significa que nos é permitido fazer acréscimos aos preceitos morais de Deus ou ao
que Deus prescreveu para o culto. Considerar que a atividade mais importante e reverente
em que os cristãos se envolvem (no culto a Deus) está, de algum modo, dentro da esfera da
adiaforia é completamente antibíblico e absurdo.
A verdadeira liberdade advém do entendimento apropriado da doutrina reformada
de sola scriptura e da doutrina correlata da suficiência da Escritura. Rawlinson escreveu
dos puritanos:
Além disso, eles criam com Calvino que, se Deus havia mostrado à luz
esclarecedora de Sua Palavra como Ele deveria ser adorado, era presunção
desviante, fronteiriça à blasfêmia, que os homens fizessem acréscimos ao que
Deus havia revelado. Em 1605 William Bradshaw disse que os puritanos
‗declaravam e defendiam que a Palavra de Deus contida nos escritos dos profetas e
apóstolos é absolutamente perfeita e dada por Cristo, o Cabeça da Igreja, sendo
para a mesma o único Cânon e regra em todos os assuntos de religião, adoração e
culto. E é ilegítimo tudo que for realizado nessa mesma adoração e culto que não
puder ser justificado por esta palavra‘. Passagens bíblicas tais como 2Timóteo
3:15-17; 2Pedro 1:19-21; Mateus 15:9, 13 e Apocalipse 22:19 eram utilizadas para
justificar esta posição, ao passo que de passagens como Atos 2:41-42; 1Timóteo
2:1ss.; Efésios 5:19; Romanos 10:14-15; 2Timóteo 1:13 e Mateus 18:15-18,
argumentava-se que havia seis ordenanças de culto evangélico: Oração, Louvor,
Pregação, Batismo e Ceia do Senhor, Catequização, e Disciplina.36
Por não permitirem tradições humanas no culto, as igrejas reformadas consistentes
nunca disciplinam as pessoas por adotarem apenas o culto determinado na Escritura. É
somente nas igrejas que acrescentam as tradições humanas que os crentes são proscritos e
perseguidos, e os ministros demitidos, por se apegarem ao puro culto evangélico. Como é
possível acusar os puritanos modernos de negarem liberdade às pessoas quando toda culpa
deles está em seguirem as leis e as ordenanças da Escritura sem a mescla humana? ―O valor
de proporcionar sanção bíblica para todas as ordenanças do culto puritano era que isso dava
a tais ordenanças uma augusta autoridade por meio daqueles que as usavam, como faziam
os puritanos, na obediência da fé‖.37
Quem acrescenta invenções humanas no culto a Deus
jamais pode lidar adequadamente com o assunto da autoridade por causa de suas inovações
humanas. Não há autoridade divina que apóie as suas práticas nem a coerção envolvida na
implementação e continuidade delas. John Owen escreveu:
O princípio pelo qual a igreja tem o poder de instituir qualquer coisa, ou cerimônia
pertinente ao culto a Deus, tanto em conteúdo quanto em forma, além da
36
Leslie A. Rawlinson, ―Worship in Liturgy and Form‖ in Anglican and Puritan Thinking (Cambridge,
England: Westminster Conference, 1977), 74. 37
Horton Davies, Worship and Theology in England, 1:71.
obediência a essas circunstâncias como se elas atendessem a uma determinação do
próprio Cristo, está na raiz de toda horrível superstição e idolatria, de toda
confusão, sangue, perseguição e guerras, que têm por um bom tempo se espalhado
sobre a superfície do mundo cristão‖.38
Aqueles que não consideram a autoridade divina como um item importante para o
governo e culto da igreja, deveriam se lembrar dos 18.000 homens, mulheres e crianças —
dedicados presbiterianos escoceses (pactuantes) — que foram assassinados simplesmente
por recusarem submissão às ordenanças humanas da liderança eclesiástica anglicana.
Uma análise do culto ilegítimo criado pelo homem não apenas revela que ele, por
sua natureza, não possui aval divino, e é, portanto, não apenas tirânico, mas também,
antropocêntrico. Qual é o propósito de toda pompa, ostentação e espetáculo do culto
anglicano? Qual a razão de catedrais ostentosas? Qual a razão de vitrais, de dias santos
especiais, de gestos especiais e de especiais vestimentas sacerdotais? A razão não é que
Deus ordenou tais coisas, e que, por isso, se deleita nelas. Deus não se impressiona de
modo algum com catedrais fantásticas, sinos, incensos e vestimentas tolas. O propósito
geral dos vários adornos feitos pelo homem (exceto no alto-clero) é exercer algum efeito
psicológico no homem. A parafernália papista e os adereços medievais mantidos pelas
igrejas anglicanas eram considerados como auxílios à devoção. A intenção deles era
suscitar o espanto, a reverência e a inspiração dos adoradores. A catedral, com a sua pompa
e cerimônia, tinha função similar ao LSD, à maconha e aos efeitos de luz experimentados
por um roqueiro num show de rock. Eles dão o tom emocional e manipulam o coração. No
fundo todos esses tipos de recursos inventados pelo homem, para seu deleite e efeito
psicológico, revelam falta de fé no poder do Espírito Santo que acompanha o puro culto
evangélico. A pompa e a ostentação do culto anglicano é uma negação implícita de que o
culto autorizado e designado por Jesus Cristo seja adequado ao objetivo a que se destina.
George Gillespie adverte que as cerimônias humanas obscurecem a verdadeira religião. Ele
escreveu:
Mas entre tais coisas — que têm sido os amaldiçoados instrumentos da desolação
da igreja, os quais para alguns de vocês talvez não pareçam nada ferir nem causar
o mínimo malefício — estão as cerimônias de ajoelhar-se no ato de receber a Ceia
do Senhor, benzer ao batizar, episcopalianismo, dias santos, etc. que são infligidas
sob o nome de coisas indiferentes; entretanto se se analisar cuidadosamente suas
graves e variadas inconveniências, ter-se-á um pensamento bem ao contrário. As
vãs aparências e sombras dessas cerimônias têm escondido e obscurecido a
substância da religião; a verdadeira vida de piedade é extinguida e anulada pelo
fardo dessas invenções humanas; por causa disso muitos que são tanto fiéis a
Cristo quanto leais ao rei, sofrem ofensa, zombaria, vergonha, ameaça,
perturbação; por causa delas os irmãos cristãos são ofendidos, e os fracos
grandemente escandalizados; por causa delas os mais poderosos e sofridos
ministérios do país são banidos, ou ameaçados de serem banidos de suas vocações;
por causa delas os mais qualificados e esperançosos candidatos são impedidos de
abraçarem o ministério; por causa delas os seminários [teológicos] estão tão
corrompidos que pouca ou nenhuma boa planta pode nascer dali; por causa delas
muitos são admitidos no ministério sagrado, ou papista ou arminiano, que
38
Johw Owen, citado por William Cunning em ―The Reformers and the Regulative Principle‖ in The
Reformation of the Church (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1965), 40-41.
ministram veneno e não comida ao rebanho; ou tolos ignorantes que dispensam ao
faminto comida insalubre.39
Aos oponentes do princípio regulador do culto, que acusam o culto puritano de
―minimalismo nominalista‖ ou de ―iconoclastia daltônica‖, perguntamos o seguinte: que
melhorias humanas podem ser feitas ao cântico de salmos inspirados por Deus? Que
acréscimos humanos — auditivos, palatais e visuais* — são suplementos necessários ao
ouvir a Palavra de Deus lida e pregada, e contemplar e banquetear-se na carne e no sangue
do Filho de Deus? O que são edifícios deslumbrantes, tolas vestes papais, cerimônias e
pompa romanista comparadas às ordenanças que nos foram dadas pelo nosso bendito
Senhor e Salvador? Não seria suficiente colocar a nossa fé nas infalíveis palavras de
Cristo? Temos também que colocá-la nas palavras e invenções dos homens?40
2. O Luteranismo
As igrejas luteranas também se apartaram do sola scriptura na compreensão e
regulamentação do culto público. Lê-se na Confissão de Augsburgo (1530):
E para [alcançar] a verdadeira unidade da Igreja é bastante que se concorde
quanto à doutrina do evangelho e a administração dos sacramentos. Nem é
necessário que as tradições humanas, rituais, ou cerimônias instituídas pelos
homens devam ser iguais em toda parte, como disse São Paulo: ―uma só fé, um só
batismo; um só Deus e Pai de todos‖ (Artigo 7, Da Igreja).41
Quanto aos rituais eclesiásticos [criados pelos homens], eles ensinam que
39
George Gillespie, A Dispute Against the English Popish Ceremonies Obtruded on the Church of Scotland
(Dallas, TX: Naphtali, 1993 [1637]), xxx. * O autor usa aqui algumas alegorias do livro de John Bunyan, The Holy War (London, England: 1682) onde a
cidade de Mansoul (alma do homem) é tomada por Diabolus e depois reconquistada por Shaddai. Mansoul
tinha cinco portões que simbolizavam os sentidos humanos: audição, visão, paladar, olfato e tato,
respectivamente no livro: Ear-gate, Eye-gate, Mouth-gate, Nose-gate e Feel-gate (N.E.). 40
Uma dos entendimentos errôneos mais comuns quanto ao princípio regulador do culto é que ele foi
desenvolvido por acaso, como reação exacerbada aos abusos do catolicismo. Alguns até argumentam que ele
foi bom apenas para aquele período inicial da Reforma, quando muitas pessoas estavam saindo da igreja
papal; agora, entretanto, que o protestantismo está firmado e estabelecido, isso é muito extremado e não mais
necessário. Muitas são as razões pelas quais o cenário citado deve ser considerado como pura ficção. Em
primeiro lugar, a idéia de que Zwínglio, Calvino, Knox, Farel, Bucer e os primitivos puritanos eram todos
pragmáticos, dispostos a torcer a Escritura em prol de um bom propósito, é ridícula. Esses homens preferiam
ser torturados e mortos a comprometerem a verdade da Escritura. Por exemplo, João Calvino gastou toda a
sua vida pregando, escrevendo comentários e refinando as suas Institutas. O princípio regulador é claramente
ensinado do começo ao fim de seus escritos (vide Apêndice A). É óbvio a qualquer estudante de história que a
sua posição sobre o culto não foi adotada por acaso ou negligentemente. Em segundo lugar, os luteranos eram
também egressos do catolicismo, mas rejeitavam o princípio regulador. Se o pragmatismo estivesse envolvido
na adoção do princípio regulador isso não era demonstrado pelas igrejas e teólogos reformados.
Humanamente falando, as igrejas reformadas estariam fisicamente mais seguras contra os assaltos de Roma e
de seus lacaios se houvessem comprometido a sua compreensão de culto e se unido aos luteranos. Em terceiro
lugar, os teólogos do segundo período da Reforma, tanto na Inglaterra (e.g., John Owen) quanto na Escócia
(e.g., George Gillespie, Samuel Rutherford, James Durham), que estudaram a matéria do culto mais
detalhadamente até mesmo que Calvino e Knox, chegaram à mesma conclusão. Se há alguma diferença, é que
os homens da segunda Reforma eram mais consistentes e rigorosos que alguns dos teólogos anteriores. Em
quarto lugar, os princípios subjacentes que deram origem ao catolicismo em seu apogeu ainda estão entre nós
e representam uma ameaça aos protestantes. Embora os perigos físicos não estão mais entre nós em muitos
países, o perigo espiritual da doutrina papista é tão grande quanto sempre foi. 41
Creeds of Christendon, 3:12.
aqueles rituais devem ser obedecidos e observados sem pecado, e que são
proveitosos para a tranqüilidade e boa ordem na Igreja; assim como são
determinados dias santos, festivais e coisas semelhantes. Mas quanto a isso, deve-
se admoestar aos homens que não devem ter as consciências pesadas como se tais
serviços fossem necessários à salvação. Ensina-se, ademais, que todas as
ordenanças e tradições feitas pelo homem com o propósito de por elas reconciliar-
se a Deus e merecer graça são contrárias ao evangelho e à doutrina da fé em
Cristo. Portanto votos e tradições quanto a comidas e dias e coisas
semelhantemente instituídas para merecer graça e reparação pelo pecado são
inúteis e contrárias ao Evangelho (Artigo 15, Dos Rituais Eclesiásticos).42
Na Fórmula de Concórdia (1576 [1584]), Artigo 10, Das Cerimônias
Eclesiásticas, lê-se:
(As quais são comumente chamadas de adiafóricas, ou coisas indiferentes).
Surgiu também entre os teólogos da Confissão de Augsburgo uma controvérsia
quanto às cerimônias eclesiásticas ou rituais que não são ordenados nem proibidos
na Palavra de Deus, mas que foram introduzidos na Igreja meramente por causa da
ordem e da decência. (Sã doutrina e confissão referente a este Artigo). I. Para
melhor desembaraço dessa controvérsia nós cremos, ensinamos e confessamos,
com unânime consentimento, que cerimônias ou rituais eclesiásticos (que não são
ordenados nem proibidos na Palavra de Deus, mas foram instituídos apenas por
motivos de ordem e decência) não são em si mesmos culto divino, nem sequer
fazem parte dele. Pois está escrito, ―em vão me adoram, ensinando doutrinas que
são preceitos de homens‖ (Mt. 15:9). II. Nós cremos, ensinamos e confessamos
que é permito à Igreja de Deus em qualquer parte da terra, a qualquer tempo,
consoante a ocasião, modificar tais cerimônias, de modo que sejam julgadas mais
úteis para a Igreja de Deus e mais apropriadas à sua edificação... V. Nós cremos,
ensinamos e confessamos que uma igreja não deve condenar outra por ela observar
em maior ou menor grau as cerimônias externas, as quais o Senhor não instituiu,
desde que haja entre elas concordância quanto à doutrina e a todos os artigos
concernentes, e no verdadeiro uso dos sacramentos.43
Nós repudiamos e condenamos como antagônicos à Palavra de Deus os
seguintes falsos dogmas: I. Que as tradições e preceitos humanos de coisas
eclesiásticas devem, por si mesmos, ser considerados como culto divino ou pelo
menos como parte do culto divino. II. Quando cerimônias e preceitos desse tipo
são, por algum tipo de coerção, impostos à igreja como necessários, sendo isso
contrário à liberdade cristã que a igreja de Cristo tem em assuntos externos dessa
natureza.44
A posição luterana confessional sobre o culto é basicamente a de que os homens
podem fazer acréscimos ao culto a Deus conforme lhes for conveniente, uma vez que os
acréscimos humanos não são considerados como parte do culto. É permitido à igreja
acrescentar rituais e cerimônias uma vez que não sejam condenados pela palavra e sejam
considerados proveitosos. Entretanto, as tradições humanas que são acrescentadas ―não são
42
Ibid., 3:16. 43
Ibid., 3:160-163. 44
Ibid., 3:163-164.
em si mesmas culto divino, nem sequer fazem parte dele‖. De acordo com os teólogos
luteranos, os rituais e cerimônias criados pelos homens são meramente matérias externas e
não verdadeiramente culto; podem ser acrescentados e retirados à vontade; e não podem ser
impostos como compulsórios ao laicato.
O entendimento luterano sobre o culto foi desenvolvido cedo na Reforma e era
dirigido primariamente contra Roma. Para Lutero e Melanchthon o maior problema com os
ritos e cerimônias papais é que eram compulsórios e considerados necessários à salvação.
Lutero escreveu:
Sobre esta mesma base frágil os romanistas atribuíram ao sacramento da
ordenação um certo ―caráter‖ fictício, do qual se diz estar indelevelmente impresso
em um ordenando. Eu perguntaria donde surgiram tais idéias, com a autoridade de
quem e com que propósito foram estabelecidas? Não é que não queiramos que os
romanistas sejam livres para inventar, dizer ou asseverar o que bem quiserem. Mas
nós também insistimos na nossa própria liberdade, para que eles não se arroguem o
direito de criar artigos de fé da sua própria cabeça, como até agora têm se atrevido
a fazer. É suficiente que, por causa da concórdia, devemos nos acomodar às suas
cerimônias e idiossincrasias, mas recusamo-nos a ser forçados a aceitá-las como
necessárias à salvação, porque que elas não o são. Retirem eles o item de
obrigatoriedade de suas demandas arbitrárias, que concederemos livre obediência
aos seus desejos para que possamos viver em paz uns para com os outros. Porque é
indigno, iníquo, e servil para um homem cristão, em sua liberdade, ser submetido a
qualquer regra exceto à celestial e divina.45
Em sua Apologia, Melanchthon escreve: ―Pois a Escritura chama as tradições de
doutrinas de demônios, ao passo que ensina que os ritos religiosos são úteis para merecer
remissão de pecados e graça. Se os adversários defendem esses atos humanos como
merecedores de justificação, de graça e de remissão de pecados, eles estabelecem definitiva
e completamente o reino do Anticristo. Daniel indica que novos cultos humanos serão a
própria forma e preceito do Anticristo‖.46
As principais diferenças entre o culto reformado e o luterano resultam das
diferentes perspectivas teológicas de Lutero e Calvino. Pode-se dizer que Lutero, quanto à
prática da igreja, era bem conservador. Para ele, a justificação pela fé era a doutrina maior
sob a qual praticamente todos os outros ensinamentos tinham de ser consideramos para
serem entendidos. Era a doutrina principal pela qual a igreja se mantinha de pé ou caía. Por
isso, quando Lutero aplicou-se à reforma do estilo de culto medieval, ao qual estava
acostumado, ele usou um bisturi e não um machado. Embora Lutero fosse um ardente
defensor do sola scriptura, ele nunca fez a conexão entre a Escritura somente e a
necessidade da sanção divina para as ordenanças do culto, como fez Calvino. Quando
Lutero olhava a prática do culto, a sua principal preocupação era: Será que esta prática é
motivada por uma crença na justificação pela obras? Será que este ritual ou prática deprecia
de algum modo o perfeito, todo-suficiente sacrifício de Jesus Cristo? Com esse critério,
Lutero eliminou muitos abusos (e.g., a missa católico-romana, as peregrinações, a mediação
dos santos, a hierarquia clerical, etc.). Lutero ensinava também que qualquer prática de
45
Marin Luther, “The Pagan Servitude of the Church” in John Dillember, ed., Martin Luther: Selections from
His Writings Edited with an Introduction (New York: Anchor, 1961), 343-344. 46
Felipe Melanchthon, citado em J. L. Neve, Introduction to the Symbolical Books of the Luteran Church
(Columbus, OH: Lutheran Book Concern, 1926), 260-261.
culto que contradissesse o claro ensinamento da Escritura deveria ser evitada. Por isso, o
culto da igreja deveria ser inteligível para o povo. Deveria ser conduzido em sua própria
língua. A Comunhão deveria ser servida em ambos os elementos — o pão e o vinho. A
pregação deveria ser enfatizada para que o rebanho recebesse instrução e edificação em vez
de inútil algaravia em latim. Um outro importante aspecto em Lutero era a liberdade cristã.
As tradições humanas no culto eram adiafóricas e não deveriam ser impostas às pessoas.
Tal coerção cheirava a catolicismo e mercadejar de méritos.
Lutero tinha uma visão favorável das tradições da igreja. As tradições humanas na
igreja deveriam ser respeitadas e consideradas valiosas desde que não contradissessem a
Escritura. Esta visão das tradições é notada na doutrina das ―ordens‖ de Lutero. Escreve
Davies:
A implicação desta doutrina era que Deus havia ordenado o mundo de tal modo
que o homem não deveria viver como um mero indivíduo isolado da sociedade,
mas como um ser que compartilha certos relacionamentos comunais. Tais
comunidades ordenadas por Deus são a Igreja e o Estado. Desde que elas
dependem do divino assentimento para a sua continuidade, os homens deveriam
respeitá-las. Devem, portanto, ser obedecidas, exceto quando contradizem
definitivamente a vontade revelada de Deus. Essa doutrina concede à tradição um
valor excessivo e como tal deve ser considerada como a base religiosa do
conservadorismo de Lutero. Ajuda também a explicar porque os bispos têm um
papel tão importante na decisão de quais reformas litúrgicas são desejáveis.
Teoricamente Lutero deixa a escolha de aceitar ou rejeitar as suas reformas
litúrgicas aos cristãos das igrejas locais, mas na prática a decisão foi deixada a
critério do bispo.47
A confissão luterana reflete fielmente o ensino de Lutero quanto às cerimônias
humanas. As tradições da igreja (i.é, rituais humanamente imaginados e cerimônias não
ordenadas na Escritura) são permitidas se: (1) elas não tiverem tendências católicas (isto é,
nenhum mérito humano está ligado à cerimônia), (2) as cerimônias não violarem o
ensinamento das escrituras, (3) elas não forem superestimadas a ponto de os crentes
valorizarem menos os reais mandamentos bíblicos (e.g., a Ceia do Senhor), (4) elas não
forem compulsórias (isto é, não podem ser impostas sob pressão). Noutras palavras, não
devem ser considerados atos necessários de culto. (Um ato necessário de culto é aquele
ordenado pela Escritura, como, por exemplo, os sacramentos).
Os luteranos ensinam que é permitido à igreja acrescentar rituais e cerimônias
apenas dentro do âmbito da adiaforia (palavra grega que significa ―coisas indiferentes‖).
Allbeck escreve:
A Fórmula de Concórdia delimita primeiro as fronteiras da genuína adiaforia. A
genuína adiaforia não é contrária à Palavra de Deus, não cria facções, não
romaniza, não [cria] tolos e inúteis espetáculos, não constitui essencialmente o
culto a Deus. Quanto à sua situação diz-se que a adiaforia pode ser modificada
pela igreja no interesse da boa ordem, disciplina e edificação. Mas há sempre a
necessidade de uma clara confissão doutrinal em palavras e ações. A adiaforia é
um elemento de liberdade. Adiaforia compulsória é uma contradição de termos.
Quando deixa de ser livre deve ser resistida.48
47
Horton Davies, The Worship of the English Puritans (Morgan, PA: Soli Deo Gloria, 1997 [1948]), 17. 48
Willard Dow Allbeck, Studies in the Lutheran Confessions (Filadélfia, PA: Muhlenberg, 1952), 283.
O entendimento luterano de sola scriptura não permite à igreja acrescentar as suas
próprias doutrinas aos ensinamentos da Escritura, nem lhe permite acrescentar culto
―essencial‖ ou ―ordenado‖ (i.é, os sacramentos). Ele, no entanto, ao declarar simplesmente
que os acréscimos humanos estão no âmbito da adiaforia, dá à igreja um papel muito
amplo na determinação de ritos e cerimônias. Na teoria, as declarações luteranas referentes
ao culto são superiores aos ensinamentos episcopais. Pelo menos os luteranos não
consideram seus acréscimos humanos como parte real do culto. Eles também argumentam
que os rituais e cerimônias humanas não são compulsórios como as ordenanças de culto
prescritas pela Escritura. Na prática, entretanto, as igrejas luteranas não são melhores que as
suas similares episcopais. Ambas negam a suficiência das Escrituras no âmbito do culto.
Ambas são culpadas em permitir que a corrupção humana substitua o puro culto
evangélico. Ambas negam que o culto a Deus na era da nova aliança é fixado ou limitado
pelo cânon da Escritura. Em conseqüência disso, ambas entregam os parâmetros do culto
aceitável a uma alteração contínua. As fronteiras do culto estão em constante mudança
porque são determinadas, não pela Escritura somente, mas também pela tradição humana, e
há um número infinito de opções de culto à disposição do homem que não violam o
princípio luterano de permitir qualquer coisa que não seja expressamente proibida.
Há uma série de razões pelas quais o entendimento luterano do culto deve ser
rejeitado com não bíblico e irracional. Primeiro, não é bíblico a idéia de que ritos e
cerimônias externas são adiafóricas. Todo ato na esfera moral e religiosa é sempre bom ou
mal. As únicas atividades que podem ser consideradas adiafóricas são as matérias que são
realmente circunstanciais ou incidentais à cerimônia, tais como a disposição das cadeiras,
acender as luzes, etc. Atividades circunstanciais não necessitam de comprovação da
Escritura, entretanto precisam ser conduzidas conforme as regras gerais do mundo.
Williamson escreveu:
É preciso cuidado ao distinguir entre as circunstâncias do culto e o próprio culto.
Por exemplo, a Escritura não determina a que hora do dia o culto público
congregacional deve ocorrer. O Senhor também não determinou o formato, estilo
ou tamanho do local de culto. Conforme a natureza do caso, tais circunstâncias
poderão variar de país a país, entre as estação do ano, ou de um lugar para outro.
Há, entretanto, uma regra geral que determina que as congregações se reúnam em
algum lugar no dia do Senhor. A regra geral controla a situação particular,
conforme as circunstâncias. Mas, quando a congregação se reúne no local acertado
o culto, então, deve ser unicamente aquele que Deus ordenou.49
O estilo arquitetônico da igreja, a iluminação, a climatização, a organização da
bancada e a duração do serviço são circunstanciais no culto a Deus. Entretanto, aspergir
água-benta, fazer o sinal da cruz, proibir comer carne às sextas-feiras, usar sal e creme no
batismo infantil, Confirmação, celebração de Natal e de Páscoa, vestimentas sacerdotais,
cerimoniais especiais e ajoelhar-se para receber a Ceia do Senhor não são circunstanciais ao
culto, mas acréscimos a ele.
As inovações no culto criadas pelos homens são terminantemente proibidas pela
Escritura. A Bíblia ensina que os homens nada devem acrescentar ou subtrair dos preceitos
morais de Deus (cf. Dt. 4:2; Js. 1:7-8; Pv. 30:5-6) nem nada acrescentar ou subtrair ao culto
que Deus instituiu em Sua Palavra (cf. Dt. 13:32; Lv. 10:1-2; 2Sm. 6:3-7; Jr. 7:31,19:5). A
49
G. I. Williamson, The Westminster Confession of Faith for Study Classes (Phillipsburg, NJ: Presbyterian
and Reformed, 1964)), 164.
idéia luterana de que os rituais ou cerimônias criadas pelo homem não são culto é
antibíblica e totalmente arbitrária. Sabemos que Deus considera os rituais ou cerimônias
humanos adicionados ao culto como não autorizados, inaceitáveis e pecaminosos. Jeová
matou Nadabe e Abiú por realizarem uma cerimônia idealizada humanamente (a queima de
fogo estranho diante do Senhor, Lv. 10:1-2). Embora os teólogos luteranos não considerem
os atos de culto humanamente criados como culto real, Deus se refere a todas essas
invenções humanas como ―culto de si mesmo‖ (Cl. 2:20-23). Jesus repreendeu os fariseus
pela invenção humana do ritual religioso de lavar as mãos (Mt. 15:1-3). Os judeus foram
repreendidos pelo nosso Senhor não porque haja alguma coisa intrinsecamente imoral no
lavar as mãos, mas porque a igreja não tem autoridade para acrescentar as suas próprias
cerimônias religiosas àquilo que Deus autorizou em Sua Palavra. Alguns argumentam que
Jesus estava condenando apenas às más e não edificantes tradições humanas que estavam
sendo adicionadas ao que Deus ordenara. O problema dessa argumentação é que o lavar
religioso das mãos, numa perspectiva estritamente ética, não fere ninguém. Jesus pegou a
tradição religiosa humana mais inocente e inócua possível para deixar claro como a luz o
ponto de que nenhum acréscimo humano é aceitável a Deus, não importa quão pequeno ou
―inocente‖ ele seja.
Em segundo lugar, a afirmativa luterana de que os rituais e as cerimônias humanas
não são obrigatórias nem compulsórias não reflete a prática real nem dos luteranos nem de
ninguém. Por quê? Porque quando cerimônias humanas são introduzidas na adoração
pública a Deus elas são sempre praticadas debaixo de algum tipo de coerção humana. A
partir do momento em que elas são introduzidas no culto da igreja, as pessoas são forçadas
ou a saírem daquela igreja, para evitar os acréscimos humanos, ou a cometerem pecado, ao
participarem de cerimônias não autorizadas. Sempre que alguma igreja acrescenta
cerimônias humanamente elaboradas ao culto a Deus há sempre pressão eclesiástica e
social para submeter-se a elas. Espera-se que os membros, e a isso são motivados, sigam o
calendário da igreja, vão aos cultos de Páscoa e de Natal, cantem hinos não inspirados,
ouçam a grupos musicais, assistam ao coral infantil, participem dos apelos para irem ao
altar, etc. Até mesmo em igrejas ―reformadas‖ as pessoas sofrem pressão ou coerção para
se conformarem às variadas corrupções que se foram acumulando ao longo dos anos. As
pessoas têm sido disciplinadas por se recusarem a participar de invenções humanas tolas e
romanistas (e.g., hinos não inspirados, dias santos, culto infantil, etc.).50
O conceito luterano de tradições humanas não compulsórias pode, na teoria, soar
bem, mas na prática ele corrompe a igreja e destrói a liberdade cristã. A Bíblia ensina que
somente Deus falando em Sua Palavra infalível tem absoluta, inquestionável autoridade
sobre a consciência dos homens. Assim assevera a Confissão de Fé de Westminster: ―Só
Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e mandamentos humanos que,
em qualquer coisa, sejam contrários à Sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou de culto,
50
Gordon Clark escreve: ―A igreja do século XX na América parece ter caído numa curiosa contradição. A
cobiça pelo poder e controle de homens e organizações tem criado, por parte dos burocratas oficiais
eclesiásticos, uma reivindicação de autoridade quase papal. Quando a maioria fala (e os oficiais manipulam a
maioria) é a voz de Deus‖ (What do Presbyterians Believe? [Philadelphia, PA: Presbyterian and Reformed,
1965], 191). Tristemente, muitos presbíteros em denominações ―reformadas‖ consideram como seu ofício
manter o status quo ou o presente estado de apostasia de suas igrejas. Infelizmente isso significa muitas vezes
a aceitação inquestionável de toda sorte de tradições humanas. Significa também freqüentemente tratar os
cristãos comprometidos com a Reforma como se fossem excêntricos, como pessoas que precisam ser
neutralizadas, para se poder manter as defecções das gerações passadas.
estejam fora dela. Assim, crer em tais doutrinas ou obedecer a tais mandamentos, por
motivo de consciência, é trair a verdadeira liberdade de consciência; e requerer para eles fé
implícita e obediência cega e absoluta, é destruir a liberdade de consciência e a própria
razão‖ (xx.ii). Os crentes em Cristo são livres não apenas de doutrinas e mandamentos que
são contrários à Palavra de Deus, tais como confissão a um sacerdote, missa, celebração de
dias santos além do Dia do Senhor, etc., são também livres de doutrinas e mandamentos
que sejam acréscimos à Bíblia, isto é, que não contradizem à Escritura explicitamente mas
não são ensinados nela; eles derivam da autoridade humana. ―A qualquer doutrina ou
mandamento contrário ou além da Sua vontade, em assuntos religiosos, o cristão não
apenas pode, mas deve desobedecer. Liberdade de consciência significa a liberdade do
indivíduo obedecer a Deus e não ao homem‖.51
Embora os luteranos insistam (como já foi observado) que os seus acréscimos
humanos não são compulsórios (com o objetivo de se evitar a aparência de catolicismo),
eles o são de fato. Até mesmo o grande Martinho Lutero foi inconsistente. Davies escreve:
De modo semelhante, em assuntos litúrgicos, pode-se argumentar legitimamente
que a sua doutrina da Palavra de Deus não foi desenvolvida logicamente. Como
atenuante, deve-se lembrar, entretanto, que ele foi o primeiro dos reformadores e
que no tempo de Calvino a situação era mais estável e os homens tinham mais
tempo para refletir sobre tais assuntos. Entretanto, não se pode negar que nos
últimos anos de Lutero, o reformador demonstrou um crescente conservadorismo.
Ele desejava uma maior uniformidade tanto no uso das vestimentas eclesiásticas
quanto na forma litúrgica. Aquilo que anteriormente havia sido opcional tornou-se
obrigatório.52
Será que se espera que acreditemos que um ministro luterano e sua congregação
serão deixados à vontade pelas autoridades da igreja se eles decidirem descartar o
calendário eclesiástico, os dias santos extra-bíblicos, hinos, órgãos, cruzes e todas as outras
inovações humanas que carecem da sanção divina? É triste, mas espera-se que os
congregados luteranos, assim como seus similares anglicanos, se submetam às cerimônias e
aos mandamentos dos homens com fé implícita e obediência cega. Lembre-se, ―aquilo que
não é feito em fé, nem é acompanhado do convencimento pessoal da sua obrigação ou
legitimidade à vista de Deus, é declarado como pecado — Rm. 14:23‖.53
Hodge escreve: ―É
um grande pecado, que envolve ao mesmo tempo sacrilégio e traição à raça humana,
qualquer homem ou associação humana arrogar-se a prerrogativa de Deus e tentar subjugar
a consciência de seus semelhantes com qualquer obrigação certamente não imposta por
Deus e revelada em Sua Palavra‖.54
Além disso, quando as pessoas participam das
ordenanças de culto que brotaram da mente do homem — que se baseiam na autoridade
eclesiástica e não na Escritura — não estão honrando a Deus (que jamais ordenou tais ritos
ou cerimônias), mas ao homem. Estão em princípio curvando-se à autoridade autônoma de
homens pecadores. Adorar a Deus sem que haja uma determinação divina é um
reconhecimento implícito do papado e de uma liderança eclesiástica. ―Filhinhos, guardai-
vos dos ídolos‖ (1Jo. 5:21).
Em terceiro lugar, as posições luteranas sofrem de contradições internas
51
James Benjamim Green, Harmony of the Westminster Presbyterian Standards (Collins World, 1976), 155. 52
Horton Davies, The Worship of the English Puritans, 18. 53
Robert Shaw, Exposition of the Confession of Faith, 206. 54
A. A. Hodge, The Confession of Faith, 267.
irreconciliáveis. De acordo com as confissões luteranas é permitido aos homens
acrescentarem as suas próprias tradições, rituais ou cerimônias ao culto a Deus somente se
elas forem edificantes e consideradas não compulsórias. Tais qualidades levantam
importante questão. Se os homens têm a capacidade de imaginar uma tradição, ritual ou
cerimônia que verdadeiramente santifica os crentes, não deveria tal cerimônia — se
realmente edifica o povo de Deus — ser obrigatória? Os artigos anglicanos que determinam
que a igreja pode produzir e impor ao rebanho, se necessário, com disciplina eclesiástica,
ritos ou cerimônias que ela considera como edificantes são mais lógicos. Se uma tradição
humana, ritual ou cerimônia santifica, então deveria ser obrigatória. É importante observar,
entretanto, que o apóstolo Paulo ensina que mandamentos e ordenanças humanos não
edificam nem santificam a igreja. Ele escreve: ―Se morrestes com Cristo para os rudimentos
do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitas a ordenanças: não manuseies
isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos
homens? Pois que todas estas cousas, com o uso, destroem-se. Tais cousas, com efeito, têm
aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético;
todavia, não têm valor algum contra a sensualidade‖ (Cl. 2:20-23). Rituais e cerimônias
humanas são mandamentos de homens. Parecem ser sábios e edificantes, a verdade,
entretanto, é que elas nada santificam. O Espírito Santo não usa tradições humanas, rituais
ou cerimônias para edificar a igreja. Ele usa a Palavra de Deus. ―Santifica-os na verdade; a
Tua Palavra é a verdade‖ (Jo. 17:17). Se quisermos, portanto, receber edificação, devemos
seguir apenas as leis, estatutos e ordenanças religiosas de Deus. Legalismo papal, da
liderança eclesiástica e/ou fundamentalista não edifica.55
Em quarto lugar, a alegação luterana de que rituais ou cerimônias criadas pelo
homem não são culto é contra-senso fantasioso. Quando as autoridades eclesiásticas
inventam uma cerimônia religiosa e a introduzem no ato do culto público ao lado das
ordenanças de culto autorizadas na Escritura, eles estão ensinando implicitamente que as
cerimônias criadas pelo homem são do mesmo tipo e carregam autoridade igual às
ordenanças divinamente ordenadas. Quando os homens misturam cerimônias humanas com
ordenanças divinas no culto, será que eles esperam que os adoradores façam distinção entre
as duas (humana e divina) no desenrolar do ato de culto? Além disso, se as cerimônias
religiosas criadas pelo homem não são ato de culto, então, o que são elas? Qual o propósito
delas? Por que são elas conduzidas durante o culto? Por que são arroladas no boletim da
igreja como parte do culto público a Deus? Frank Smith escreve:
Observe cuidadosamente que o ato de culto é uma imposição, desde que se exige
que nos congreguemos com o povo de Deus para participarmos do culto público.
Portanto, qual é a posição legalista (e que se opõe à liberdade cristã) — a que
pensa que não é preciso aprovação bíblica para exigir que se faça isso ou aquilo no
culto, ou a que apela estritamente à Escritura e nada deseja impor ao precioso
rebanho de Deus que não se encontre em Sua Palavra? Poderíamos observar,
incidentalmente, que a fé reformada é ao mesmo tempo a mais rígida e estreita, e,
também, a mais larga e mais universal, devido à sua disposição de nada impor às
55
Gordon Clark escreve: ―É estranho dizer, mas evangélicos, fundamentalistas, pietistas ou pessoas de outros
grupos fervorosos, que ficariam horrorizados com o sinal da cruz ou com o curvar-se ante imagens, têm
inventado suas próprias exigências religiosas e tabus. Há uma certa escola bíblica que exige que as moças
usem seus cabelos presos, enrodilhados no alto da cabeça, pois usar o cabelo solto seria ‗mundano‘‖ (What
Do Presbyterians Believe? 192-193).
pessoas que não seja bíblico.56
A idéia luterana de que os acréscimos humanos ao ato de culto realmente não são
culto mostra quão enganoso é o coração do homem. Os homens são tão apaixonados por
suas tradições humanas não autorizadas que eles torcem o claro sentido das palavras e
recorrem a argumentos ilógicos e doentios e a malabarismos exegéticos para justificarem as
suas práticas pecaminosas. A concepção luterana é muito parecida com a absurda afirmação
católico-romana de que o culto aos santos e à Virgem Maria não é realmente culto. Alegam
que é um culto especial (latria) quando o romanista curvar-se diante de Deus. Mas quando
ele se curva para adorar os santos e a bendita virgem é doulia (ou, para Maria,
hyperdoulia). Precisamos reconhecer que todas estas distinções tipicamente farisaicas nada
mais são que desculpas espertas para desviar-se do culto que Deus tem determinado. Contra
toda usurpação tirânica e excesso da igreja, Cristo diz: ―E em vão me adoram, ensinando
doutrinas que são preceitos de homens‖ (Mt. 15:9; cf. Is. 29:13).
3. O Evangelicalismo
Os evangélicos também são culpados de restringir a aplicação da autoridade da
Bíblia. Quanto o assunto é culto, os evangélicos não crêem que a Escritura é suficiente.
Eles diriam que nada que seja pecaminoso deve fazer parte do culto. Entretanto crêem que
os homens têm autoridade para dar qualquer forma e conteúdo que acharem ser útil ao
culto. Infelizmente o entendimento de culto dos episcopais e luteranos tem sido adotado
pela grande maioria dos cristãos professos. Essa visão pragmática do culto tem,
previsivelmente, conduzido ao caos litúrgico nas igrejas evangélicas. Sempre que as igrejas
abandonam o sola scriptura na esfera do culto e abraçam o pragmatismo, o resultado é um
ato de culto que se torna crescentemente antropocêntrico e pagão.
Tal fato tem se tornado cada vez mais evidente nos últimos trinta anos, na medida
em que as igrejas têm adotado o paradigma de culto dos especialistas em crescimento de
igrejas. Estes ―especialistas‖ que buscam sua sabedoria em técnicas de comércio, na
psicologia, na sociologia e não na Bíblia, afirmam que a melhor maneira para se alcançar o
crescimento da igreja é torná-la mais amigável à clientela incrédula. Esta tática envolve
uma diminuição da ênfase na Palavra pregada e nos sacramentos em favor de uma ato de
culto que divirta e proporcione entretenimento. A ênfase dos mais modernos atos de culto
evangélicos está no entretenimento. Tais cultos não alimentam o intelecto, antes, pelo
contrário, estimulam as emoções. Os cultos modernos têm pouco em comum com o culto
apostólico, e muito em comum com Las Vegas, Hollywood e Broadway. Em muitas igrejas
as pessoas até aplaudem depois da apresentação, como se estivessem num teatro ou
concerto.
O resultado é que o culto evangélico moderno não glorifica Deus, mas o homem. É
basicamente um show do homem, voltado para o homem, com canções agradáveis ao
homem e montes de entretenimento: pastores comediantes, solistas musicais, grupos de
rock, bandas ―gospel‖, célebres oradores convidados, peças, esquetes, vídeos, cantores,
corais, dança litúrgica e assim por diante. O culto pragmático, centrado no homem, tem
influenciado até a arquitetura das igrejas. A característica principal de uma casa de reunião
puritana era o púlpito sobre o qual descansava uma grande Bíblia. O aspecto principal de
uma mega-igreja moderna é o palco. As pessoas que elaboraram o culto episcopal e
luterano, com todos aos seus desvios humanos, tentaram, pelo menos, ser reverentes e
56
Frank Smith, ―The Singing of Praise‖ in “Worship in the Presence of God”, 223.
majestosas. Geralmente o culto evangélico moderno não é, nada disso; é grosseiro, não-
nutritivo e insosso.
Quando nos aproximamos de um Deus três vezes santo, que é infinito em
perfeição, não deveria ser a nossa única preocupação aprender o que Ele tem ordenado e
concentrar nossa atenção naquilo que O agrada e não naquilo que nos agrada e nos faz
sentir bem? Quando aderimos consistentemente ao sola scriptura e, por causa disso,
dependemos apenas da suficiente e infalível Palavra de Deus para determinar o que é culto
aceitável, eliminamos a possibilidade de se introduzir na igreja o culto papal, pagão,
imposto por alguma liderança eclesiástica, ou o pragmático culto a si mesmo. A adoração é
possivelmente a mais importante atividade em que a igreja se envolve. Portanto, quando
buscamos direção quanto ao culto, não deveríamos colocar a nossa confiança em Deus e em
Sua infalível Palavra, em vez de buscarmos as opiniões do homem pecador? ―Relacionamo-
nos com um Deus que é muito zeloso; ou Ele é adorado como Ele quer ser, ou não é
adorado de modo algum. Nem podemos nos queixar. Se Deus for um Ser tal como nos
ensina a Escritura Sagrada, é Seu direito inalienável determinar e prescrever como será
servido‖.57
É arrogante e tola a idéia de que homens pecadores possam, com seus
acréscimos, melhorar e tornar mais suficiente o culto que Deus autorizou em Sua Palavra.
Young escreve:
O entendimento iluminado contenta-se em aprender os preceitos de Deus e [tem]
renovada a sua vontade de andar neles, entretanto, o coração regenerado não pode,
como tal, querer fazer o mais leve acréscimo aos mandamentos de Deus. Sempre
que crentes verdadeiros agiram inconsistentemente quanto a isso, eles
invariavelmente permitiram a introdução de grande corrupção no santuário de
Deus.58
4. O Declínio Reformado
Muitas igrejas reformadas também abandonaram a autoridade exclusiva da Bíblia
sobre o culto. Muitas denominações reformadas e presbiterianas permanecem oficialmente
apegadas à sola scriptura na esfera do culto. O papel da Escritura quanto ao culto é
denominado de princípio regulador do culto. Este princípio declara que todas as partes ou
elementos do culto tem que possuir sanção divina, isto é, toda parte do culto que possui
significado religioso (i.é, coisas e atos que não são circunstanciais) tem de ser autorizada ou
por um mandamento direto da Escritura (e.g., ―fazei isto em memória de mim‖, Lc. 22:19);
ou pela inferência lógica da Escritura (i.é, pode não ser um mandamento explícito, mas,
quando diversas passagens são comparadas elas ensinam ou delas deduze-se uma prática da
Escritura, e.g., batismo infantil); ou por um exemplo histórico bíblico (e.g., a mudança do
dia de culto público corporativo do sétimo para o primeiro dia da semana). Dito de modo
simplificado, toda prática de culto tem de ser comprovada pela Escritura. Tal princípio (se
seguido rigidamente) elimina do culto todas as invenções humanas, pragmatismo e
sincretismo pagão, e, portando, deixa a igreja no mesmo estado em que estava nos dias
apostólicos.
Hoje, infelizmente, a maioria das igrejas reformadas abandonaram o princípio
regulador, e por isso, permitem muitas práticas que não foram prescritas pela Bíblia (e.g.,
57
Samuel H. Kellogg, The Book od Leviticus (New York: Hodder and Stoughton, s.d.), 240. 58
William Young, ―The Second Commandment‖ in Frank Smith e David C. Lachman, eds., Worship in the
Presence of God, 81-82.
dias santos extra-bíblicos como Natal e Páscoa, hinos não inspirados, corais, musica
instrumental, etc.). Muitas igrejas reformadas estão seguindo os passos do arminianismo,
do reavivalismo, do carismatismo, e do culto no estilo do movimento de crescimento de
igrejas. Um excelente exemplo dessa deterioração é a Igreja Presbiteriana na América
(PCA). As estatísticas a seguir documentam a sua decadência. Há vinte e cinco anos atrás a
PCA tinha 2% de igrejas que cantavam exclusivamente salmos; 40% ―tradicionais‖ (e.g.,
usando o Trinity Hymnal, com piano e órgão); 50% ―tradicional‖ com alguns ―cânticos da
Escritura‖ e instrumentos musicais variados; e somente 8% tinha a mistura
―tradicional/contemporâneo‖. Hoje, aproximadamente 70% de suas igrejas têm a mistura
―tradicional/contemporâneo‖. Hurst escreve: ―Se [eles] não têm dança e teatro é porque não
há quem os dirija; mulheres e jovens podem dirigir o culto como orações individuais e
leitura da Escritura, o aplauso é aceitável para [um] ato bem feito; a música pode tomar a
forma de [uma] apresentação‖.59
Menos de 1% das igrejas da PCA aderem hoje
exclusivamente ao canto de salmos (i.é, culto bíblico).
Alguns conservadores dentro das denominações reformadas têm expressado
preocupação quanto a tendência de suas denominações de desviarem-se rapidamente do
culto ―tradicional‖ para o culto ―contemporâneo‖, ou ―celebrativo‖. Esses homens tentam
estancar a maré do culto ―moderninho‖ discutindo sobre como o culto tem de ser digno,
majestoso e reverente. Seu grito de batalha é: ―decentemente e em ordem‖. Não obstante
concordemos de coração com nossos irmãos quanto a necessidade de reverência, decência e
ordem no culto público a Deus, discordamos quanto ao problema fundamental que está
causando uma tão rápida decadência no culto. Para curar a doença é preciso fazer mais do
que tentar aliviar os sintomas, é necessário ir à raiz do problema. Como as denominações
reformadas rejeitaram ou redefiniram o princípio regulador do culto, tornando-o
virtualmente inútil, todos os esforços para uma séria reforma no culto serão derrotados.
Sem uma rígida interpretação do princípio regulador o debate sobre o culto deslocar-se-á da
discussão exegética sobre o que é sancionado pela Escritura para uma disputa primária
sobre as preferências humanas. A beleza e sabedoria do princípio regulador do culto é que
ele protege a igreja de nossos próprios corações pecaminosos. O culto que está firmemente
fundamentado na sólida rocha da Escritura é imune aos ventos e às ondas da opinião
humana, do modismo e da excentricidade.
59
Peter Hurst, ―Lesson 4: Congregational Worship‖ in Byron Snapp, ed., The Presbyterian Witness
(Hampton, VA: Calvary Reformed Presbyterian Church, verão 1997), XI.4, 13. Todas as estatísticas utilizadas
neste parágrafo foram retiradas do artigo de Hurst.
V. Sola scriptura — Algumas Objeções Contemporâneas no Âmbito do
Culto Consideradas e Refutadas
Hoje, a maior parte das vozes que criticam o sola scriptura aplicado no âmbito do
culto (i.é, o princípio regulador) são os que se consideram como ―verdadeiramente
reformados‖.60
Esses apologistas da decadência e da manutenção da situação dominante trazem
alguns argumentos interessantes que pensam justificar o abandono generalizado do
princípio regulador do culto em favor de uma concepção de culto luterana/episcopal. Com o
intuito de aguçar a nossa compreensão quanto ao relacionamento do sola scriptura com o
culto bíblico, iremos examinar e refutar tais argumentos.
1. O Argumento da “Falsa Compreensão da Ética e da Adiaforia”
O primeiro argumento utilizado contra o princípio regulador do culto baseia-se
numa falsa compreensão do sentido e relacionamento do sola scriptura, do princípio
regulador e da liberdade cristã ou adiaforia. Schlissel escreve:
Alguns regulativistas tentarão ampliar seu apelo ao ―princípio‖ encontrado em Dt.
12:32 afirmando que ele também se acha em Dt. 4:2. Mas esta passagem diz:
―Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os
cumprirdes, para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o SENHOR, Deus de
vossos pais, vos dá. Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem
diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que
eu vos mando‖. Se um regulativista apresentar tal passagem como respaldo à
60
Um dos maiores problemas que as denominações reformadas têm hoje é a existência de ministros e
presbíteros corruptos e desonestos. Há hoje um certo número de homens ordenados que, após terem jurado
fidelidade aos padrões de Westminster, trabalham para solapá-los em seus escritos e ensinamento. Há dos que
se consideram Reformados que atacam abertamente o princípio regulador, que é um dos pilares da reforma
calvinista. Há Conselhos que estão introduzindo muitas inovações no culto público. O objetivo, a longo prazo,
de alguns ministros e presbíteros, é uma igreja presbiteriana com culto episcopal construído sobre princípios
oriundos de uma liderança eclesiástica. Para tais homens, são apropriadas as palavras de James Begg. Ele
escreve: ―se for verdade, deve ser firmemente defendido, e deve ser resistido e descartado todo ato de culto
que não pode ser assegurado por divina sanção, e até que seja descartado, o mínimo que um ministro
presbiteriano pode fazer, é ser honesto em defesa disso. É pior, e completamente vão, abrir mão de nossas
obrigações solenes em favor de afirmações vagas e sem sentido. A posição assumida pela igreja presbiteriana
é uma ou outra, ou salutar ou doentia. ‗À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta maneira, jamais
verão a alva‘. E a única classe de homens mais inconsistentes e criminosos que os que deixam tal assunto em
dúvida, são aqueles que na aceitação do ofício professam defender e manter a doutrina da igreja presbiteriana,
mas que, posteriormente, tratam as suas solenes confissões e votos com perfídia e desrespeito... Estamos
agora provando isso [o princípio regulador do culto] por causa dos que são oficiais da igreja presbiteriana.
Todos eles juraram solenemente, conforme as suas convicções, que estes são os princípios da Escritura que
defenderão com o máximo de suas forças. Por causa disso, fazer qualquer outra coisa, fazer qualquer outra
profissão, sem abrir mão do ofício que receberam em conformidade com a sua prévia confissão, é
simplesmente perjúrio, próprio para trazer desgraça à Igreja Cristã, e para dar aos inimigos da causa motivo
de blasfêmia. Todo oficial presbiteriano está tão comprometido quanto nós em manter e fazer valer estes
princípios, e não em ser conivente, direta ou indiretamente, com a subversão deles. Vivemos, entretanto,
infelizmente, numa era onde ‗violar a trégua‘ não é raro; onde muitos, em vez de seguirem concordemente,
conforme os seus votos solenes, parecem fazer da promoção de inovações no culto a Deus uma de suas
ocupações favoritas. A Religião está ferida dentro da casa dos que dizem ser seus amigos. Nada mais
apropriado para corroer, como um cancro, a fé e a moral da comunidade‖ (Anarchy in Worship [Edinburgh:
Lyon and Gemmell, 1875], 10, 12-13.
questão do culto, ele se afasta ainda mais do caminho que conduz à luz. Pois essa
passagem refere-se a toda a Lei de Deus, não meramente às leis que governam o
culto. Muitos poucos regulativistas argumentariam seriamente que a intenção de
Deus aqui é proibir Israel de fazer qualquer tipo de coisa em qualquer área da vida
que não seja especificamente ordenada na Lei. Suponho que os amish*, que fogem
de botões eletrônicos por não os encontrar mencionados na Escritura, poderiam ver
mais ou menos favoravelmente esta interpretação, mas estariam totalmente sós ao
fazê-lo. Contudo, se 4:2 for citado como apoio para a leitura que os regulativistas
fazem de 12:32, é precisamente dessa conclusão que não se pode escapar.
Deuteronômio 4:2 é uma regra geral que exige vida conforme a vontade declarada
de Deus em sua inteireza. A nota da Bíblia de Estudo NVI (Nova Versão
Internacional) é relevante ao tema: ―A revelação de Deus é suficiente. Deve ser
obedecida em tudo que nela há e nada que a adultera ou contradiz pode ser
tolerado‖. Não era a intenção de Deus que os recipientes desse versículo (4:2) não
fizessem literalmente nada que não estivesse ali mencionado (i.é, não andar de
skate, usar eletricidade, dirigir automóveis, ou chupar picolé de limão). Assim 4:2,
tomado como um paralelo, demonstra que 12:32 não deve ser considerado em
sentido absoluto. Ao se encontrar frases semelhantes usadas pelo mesmo autor no
mesmo livro, é preciso uma explicação que justifique a aplicação de sentidos
radicalmente diferentes para cada uma delas. Ao se concordar que 4:2, referente a
toda a Lei, não deveria ser entendido sem restrições ao proibir acréscimos e
subtrações, assim também 12:32 não deve ser entendido como uma regra abstrata e
absoluta. Ambos devem ser interpretados nos termos de toda Palavra de Deus,
uma Palavra que simplesmente não ensina: se não é ordenado, é proibido.61
O discurso de Schlissel é talvez o argumento moderno mais popular contra o
princípio regulador. Ele raciocina que Dt. 4:2 refere-se a toda lei que regula tudo da vida.
Como na vida há muitas atividades que não são rigidamente regulamentadas, que são
deixadas à livre escolha do homem (e.g., ―devo usar uma calça azul ou uma cinza?‖),
assim, portanto, passagens praticamente idênticas que provam o princípio regulador, tais
como Dt. 12:32, devem também ser interpretadas de tal modo que permitam ao homem
ampla liberdade na esfera do culto.
O argumento de Schlissel contra o princípio regulador fundamenta-se numa
compreensão totalmente equivocada de Dt. 4:2, e deve por isso ser rejeitada como não-
bíblica. Sua falsa compreensão dessa passagem, e a aplicação dela a área de culto, baseia-se
no erro gritante em distinguir entre a ética dada por Deus e as áreas adiafóricas. A
afirmação de Schlissel de que Dt. 4:2 ―não deveria ser entendido sem restrições ao proibir
acréscimos e subtrações‖ é totalmente falsa. Deuteronômio 4:2 ensina que aos homens nada
é permitido acrescentar ou subtrair dos mandamentos de Deus. Noutras palavras, Deus é a
única fonte de ética para a vida pessoal, familiar, institucional e civil. Os homens não
possuem autonomia ética. Não possuem qualquer autoridade para criar absolutos éticos,
nem lhes é permitido ignorar ou subtrair da Lei de Deus de qualquer maneira. R. J.
* Grupo que se separou dos anabatistas menonitas em fins do século XVII, e ainda existe hoje nos estados
norte-americanos de Ohio e Pensilvânia. Na América do Sul concentra a sua maior colônia no interior do
Paraguai (N.E.). 61
Steve Schlissel, ―All I Really Need to Know About Worship I Don‘t Learn From the Regulative Principle‖
(Part IV), Messiah’s Mandate.
Rushdoony tem um claro entendimento sobre as implicações de passagens tais como Dt.
4:2. Ele escreve:
É preciso reconhecer que em qualquer cultura a fonte da lei é o deus daquela
sociedade. Se a lei tem a sua origem na razão do homem, então a razão é a lei
daquela sociedade. Se a fonte estiver numa oligarquia, ou numa corte, senado, ou
governante, então aquela fonte é o deus daquele sistema... O humanismo moderno,
a religião do estado, coloca a lei no estado e assim faz do estado, ou do povo
representado no estado, o deus do sistema... Nada é mais mortal e infiel que a
noção de que o cristão está livre quanto ao tipo de lei que pode ter... Tanto a lei
positiva quanto a lei natural nada podem refletir mais que o pecado e a apostasia
do homem: a lei revelada é necessidade e privilégio da sociedade cristã.62
Os homens não têm autoridade para dizer que qualquer pensamento, palavra ou obra seja
má ou pecaminosa sem o provar por mandamento ou dedução bíblica.
O fato de existir na vida muitos aspectos que sejam adiafóricos ou indiferentes63
(e.g., andar de skate, plantar tomates, passear de bicicleta, etc.) significa que Dt. 4:2 não
tinha o objetivo de ser rigorosamente entendido? Significa que é permitido aos homens
acrescentarem ou subtraírem da Lei de Deus? Não, absolutamente não! Da mesma forma,
no culto ordenado ou autorizado, os homens não têm liberdade para acrescentar ou retirar
uma vírgula do culto que Deus instituiu. Os homens, entretanto, têm uma grande liberdade
em áreas que são circunstanciais ou incidentais ao próprio culto. Os argumentos de
Schlissel fracassaram em reconhecer a distinção entre ética e adiaforia, entre as ordenanças
de culto e as suas circunstâncias.
Se os oponentes do princípio regulador do culto querem utilizar Dt. 4:2 como um
texto de prova contra o entendimento reformado de um culto rigorosamente regulado, eles
precisam demonstrar que as ordenanças de culto pertencem à esfera da adiaforia. Será que
as partes ou elementos do culto que estão delineados na Escritura acham-se na mesma
categoria de passear de bicicleta, ou de usar calças azuis em vez de calças cinza, ou plantar
tomate Floralou em lugar de tomate Floradel? A resposta é: obviamente não. A adiaforia
refere-se a assuntos que são indiferentes à ética (e.g., como fazer os ovos no desjejum,
cozidos ou mexidos?). Isto é, que envolvam atividades que não são ordenadas nem
62
R. J. Rushdoony, Institutes of Biblical Law (Philipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1977 [1973]), 4-
5, 9-10. 63
Quanto às áreas da vida que são eticamente indiferentes ou adiafóricas, existem pelo menos quatro
princípios bíblicos que precisam ser seguidos. Primeiro, tudo o que fazemos, não importa quão secular seja,
deve ser feito para a glória de Deus. ―Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei
tudo para a glória de Deus‖ (1Co. 10:31). ―Porque nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si.
Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou
morramos, somos do Senhor‖ (Rm. 14:7-8). Em segundo lugar, algo que normalmente seria indiferente deixa
de sê-lo se fizer pecar a um irmão mais fraco. ―É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer
outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar ou se ofender ou se enfraquecer‖ (Rm. 14:21). Terceiro,
qualquer atividade que em si mesma é indiferente deixa de sê-lo se não puder ser praticada em fé com uma
consciência limpa. ―Nenhuma coisa é de si mesma impura, salvo para aquele que assim a considera; para
esse é impura... Mas aquele que tem dúvidas é condenado se comer, porque o que faz não provém de fé; e
tudo o que não provém de fé é pecado‖ (Rm. 14:14, 23). Quarto, uma atividade que seja normalmente
adiafórica deixa de sê-lo se alguém fica escravizado a ela ou sob o seu poder ou controle. ―Todas as coisas
me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por
nenhuma delas” (1Co. 6:12). “Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem
todas edificam‖ (1Co. 10:23). Há muitas coisas lícitas, tais como tortas, Big Mac‘s, balas, Coca-Cola e bons
charutos, cujo abuso não edifica. Até mesmo o consumo inadequado de arroz integral pode ser pecaminoso.
proibidas, e que, portanto, a decisão para executá-las ou não, não envolve pecado nem
violação da Palavra de Deus. Desde que ajam conforme as regras gerais da Escritura, os
homens têm total liberdade para realizá-las ou não (i.é, é para a glória de Deus? [1Co.
10:31, Rm. 4:7-9]; Faz pecar o irmão mais fraco? [Rm. 14:21]; Pode ser feito em fé e de
consciência limpa? [Rm. 14:14, 23]; Posso me envolver nessa atividade sem me tornar seu
escravo, por exemplo, viciado em fumo? [1Co. 6:12, 10:23]).
As ordenanças de culto não envolvem a liberdade do indivíduo fazer o que deseja
e, portanto, não podem ser classificadas na categoria da adiaforia. Estão os cristãos livres
para omitir ou acrescentar algo aos elementos do culto religioso conforme lhes aprouver?
Pode alguma igreja eliminar legitimamente a Ceia do Senhor e substitui-la por um novo
sacramento? Seriam os presbíteros de uma igreja obedientes a Cristo caso substituíssem o
batismo em nome do Deus trino por um ritual criado pelo homem? É permitido excluir a
leitura da Escritura substituindo-a por um vídeo de Shakespeare ou rock? Seria pecaminoso
eliminar a pregação da Palavra de Deus trocando-a por filme, comédia, ou show de
variedades ―cristãos‖? É óbvia a resposta a tais questões (não, não, não e não). Se as
ordenanças de culto forem enquadradas na categoria da adiaforia, então tudo que se
relaciona ao culto público, e até o próprio culto público, é opcional. Além do que, poder-se-
ia ter um, nenhum ou vinte sacramentos.
Por serem requeridas pela Escritura, as ordenanças de culto jamais deveriam ser
tratadas como adiaforia. Deveriam, ao contrário, receber o mesmo tratamento da lei moral
de Deus. As áreas da vida que são adiafóricas não correspondem às ordenanças do culto,
mas às suas circunstâncias (e.g., Deveríamos começar o serviço de culto às 10h30 ou às
11h? O carpete do templo deve ser azul ou vermelho? Devemos usar bancada de madeira
ou cadeiras dobráveis? etc.). Ironicamente, Dt. 4:2, quando compreendido apropriadamente,
é um dos textos de prova mais fortes para o princípio regulador do culto, pois este segue
logicamente a sola scriptura. O reformador protestante John Knox é da mesma opinião:
A idolatria principal é quando defendemos as nossas próprias invenções como
justas à vista de Deus por achar que elas são boas, louváveis, e agradáveis. Não
devemos pensar que sejamos tão livres ou tão sábios que possamos fazer a Deus, e
à Sua glória, aquilo que pensamos que é apropriado. Não! Deus ordena o contrário,
dizendo: ―Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela,
para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu vos mando‖
(Dt. 4:2). Cujas palavras não devem ser entendidas apenas como o decálogo ou a
lei moral, mas [também] estatutos, ritos e cerimônias, pois Deus requer igual
obediência a todas as Suas Leis.64
2. Argumento de que “Tudo na Vida é Culto”.
Um argumento que está muito ligado ao de Dt. 4:2 é o que afirma que tudo na vida
é culto, e como na vida há muitas atividades que não estão rigidamente regulamentadas
pela Escritura, assim também o culto não está estritamente regulamentado. Embora, como
cristãos, tudo o que fazemos deve ser para a glória de Deus (1Co. 10:31), e assim devemos
viver para o Senhor (Rm. 14:7-8) e apresentar os nossos corpos como sacrifícios vivos a
Deus (Rm. 12:1), a idéia de que tudo na vida é culto e que não existe, portanto, distinção
64
John Knox, ―A Vindication of the Doctrine That the Sacrifice of the Mass Is Idolatry‖ in Works, David
Laing, ed. (Edinburgh: The Bannatyne Club, 1854), 3:37-38.
entre o culto público, e atividades como aparar a grama, é absurda. Há várias razões pelas
quais podemos considerar como não-bíblico o argumento de que ―tudo na vida é culto‖.
Em primeiro lugar, há, tanto no Velho quanto no Novo Testamento, diversas
passagens que ensinam e/ou supõem que o culto público é especial e à parte da vida diária.
Salmo 22:22, 25. ―A meus irmãos declararei o teu nome; cantar-te-ei louvores no
meio da congregação; ... De ti vem o meu louvor na grande congregação; cumprirei os
meus votos na presença dos que o temem‖.
Salmo 27:4. ―Uma coisa peço ao SENHOR, e a buscarei: que eu possa morar na
Casa do SENHOR todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do SENHOR e
meditar no seu templo‖. David Dickson escreve:
Um terceiro motivo de certeza é a consciência do seu propósito de estudar, para
obter, pelo uso dos meios [da graça], constante comunhão com Deus, e a
consciência do seu desejo mui fervoroso de gozar em companhia da igreja o total
benefício dos cultos públicos. Donde aprende-se: (1) A resolução sincera de
submetermo-nos a todos os estatutos de Deus e de seguirmos os meios designados
para manter comunhão com Ele é uma das marcas saudáveis da fé sólida, e essa
consciência serve tanto mais para confirmar a nossa confiança em Deus, se
pudermos dizer com o profeta: ―uma coisa peço ao SENHOR, etc‖; (2) O uso dos
meios e o culto da casa de Deus possibilita ver a glória do Senhor e obter conselho
e direção para todas as coisas, com consolo e deleite espiritual para as nossas
almas; pois nos cultos Davi deleitar-se-ia ao ―contemplar a beleza do SENHOR e
meditar no Seu templo‖; (3) O desejo sincero da comunhão com Deus e o amor às
Sua ordenanças deve ocupar o primeiro lugar no coração acima de todos os
desejos e deleites terrenos, sejam quais forem: ―uma coisa peço‖; (4) Não se deve
deixar escapar um desejo sincero, mas deve-se persegui-lo resolutamente e
recomendá-lo diariamente a Deus: ―e a buscarei‖, disse ele; e deve-se perseverar
nos meios de comunhão com Deus na convivência pública da igreja, ―todos os dias
da” nossa ―vida‖.65
Ao aplicar esta passagem aos crentes da nova aliança, Calvino escreveu: ―A Palavra, os
sacramentos, as orações em público, e outros auxílios de mesmo tipo, não podem ser
negligenciados sem que se despreze pecaminosamente a Deus, que Se manifesta a nós
nessas ordenanças como em um espelho ou imagem‖.66
Salmo 84:1-2. ―Quão amáveis são os teus tabernáculos, SENHOR dos Exércitos! A
minha alma suspira e desfalece pelos átrios do SENHOR; o meu coração e a minha carne
exultam pelo Deus vivo!‖. Calvino escreve:
Davi queixa-se de ter sido privado da liberdade de ir à Igreja de Deus, de lá
professar a sua fé, aperfeiçoar-se em piedade, e adorar a Deus (...) Ele sabia que
Deus não havia estabelecido as santas assembléias em vão, e que os piedosos —
peregrinos que são neste mundo — necessitam de tais auxílios.67
Plummer escreve: ―O culto ao verdadeiro Deus sempre teve, em todas a épocas, grandes
atrativos para o regenerado‖.68
Salmo 87:2. ―o SENHOR ama as portas de Sião mais do que as habitações todas de
65
David Dickson, Commentary on the Psalms (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1959 [1653-55]), 1:141-142. 66
John Calvin, Commentary on the Book of Psalms (Grand Rapids: Baker, 1980), 1:455. 67
Ibid., 3:353-354. 68
William S. Plummer, Psalms (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1975 [1867]), 794.
Jacó‖. David Clakson escreve:
Mas pode-se argumentar que o Senhor era adorado não apenas às portas de Sião,
no templo, mas também nas habitações de Jacó. Não podemos supor que toda a
posteridade de Jacó negligenciaria o culto a Deus em suas famílias; sem dúvida
alguma que os fiéis que havia entre eles decidiram com Josué: ―eu e a minha casa
serviremos ao Senhor‖. Portanto, desde que havia o culto a Deus tanto num quanto
noutro, como pode este culto ser a razão pela qual um deveria ser preferido ao
outro? Certamente por nenhuma outra razão a não ser esta: o culto a Deus, às
portas de Sião, era público, o culto nas habitações de Jacó era particular. Assim,
portanto, em conclusão, pode-se dizer que o Senhor ama as portas de Sião mais
que as habitações de Jacó, porque Ele prefere o culto público ao privado. Ele
amava a todas as habitações de Jacó, onde quer que fosse adorado em particular,
mas amava as portas de Sião mais que todas as habitações de Jacó, porque lá Ele
era adorado publicamente. Com base nisso temos uma razão óbvia para fazer a
seguinte observação: Deve-se preferir o culto público ao privado. Se é assim para
o Senhor, assim deveria ser para o Seu povo. Se assim era sob a lei, assim tem de
ser sob o evangelho. Não há dúvida de que existe uma diferença entre o culto
público sob a lei e o culto público sob o evangelho com respeito a uma
circunstância, a saber, o seu local. Sob a lei o lugar do culto público era sagrado,
mas sob o evangelho não temos nenhuma razão para assim considerar qualquer
lugar de culto público; e isto ficará claro se perguntarmos quais eram os motivos
para aquela santidade legal no tabernáculo ou templo, e se notarmos que nenhuma
delas pode ser aplicada a qualquer lugar de culto sob o evangelho.69
Eclesiastes 5:1-2. ―Guarda o pé, quando entrares na Casa de Deus; chegar-se para
ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal. Não te
precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante
de Deus; porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras‖.
Basta esta passagem para provar que o culto público é único e especial. Deve haver o
solene reconhecimento da presença especial de Deus no culto público e, portanto, muito
zelo em ser sincero, reverente, sossegado, consciente, e atento. Matthew Henry escreve:
Prepare-se para o culto a Deus com uma pausa solene, e gaste algum tempo em
sossegar-se, não se aplicando a ele com precipitação, como é dito: apressar-se com
os pés, Pv. 19:2. Não permita que a sua mente se disperse aleatoriamente,
afastando-se do ofício; não se disponha a gastar seus sentimentos com as coisas
erradas, porque no serviço da casa de Deus há trabalho suficiente para todos, e
poucos para serem usados... Quando estamos na casa de Deus, estamos de um
modo especial diante de Deus e na Sua presença, lá onde Ele prometeu encontrar-
se com seu povo, onde os Seus olhos estão sobre nós, e os nossos olhos voltados
para Ele.70
John Gill escreve:
Tudo o que pode denotar a conversação pura e casta dos verdadeiros adoradores de
Deus; porque, assim como os pés são os instrumentos para o caminhar, eles devem
ter em mente qual é a conduta e o comportamento dos santos na casa de Deus,
69
David Clarkson, “Public Worship to be Preferred Before Private” in The Blue Banner (Dallas, TX: First
Presbyterian Church Rowlett, julho/agosto, 1999), 1. 70
Matthew Henry, Commentary (McLean, VA: MacDonald, s.d.), 6:1006.
onde devem ter o cuidado de fazer tudo conforme a Sua palavra, a qual é lâmpada
para os pés e luz para o caminho.71
É óbvio, por estas e muitas outras passagens, que a participação no culto público deve ser
tratada pelo povo de Deus de modo bem diferente que uma competição esportiva ou um
churrasco. Frank Smith escreve:
Um dos privilégios do ofício de culto é o de vir à especial presença de Deus e à
comunhão com Ele. Tudo aquilo que divergir disso deveria ser claramente
proibido. Se estivéssemos na presença da rainha da Inglaterra, não seria próprio do
protocolo interromper a audiência com a monarca para conversarmos entre nós.
Quão mais importante é não interrompermos a nossa audiência com o Rei dos reis
com coisas fúteis centradas em nós mesmos.72
Levítico 23:3. ―Seis dias trabalhareis, mas o sétimo será o sábado do descanso
solene, santa convocação; nenhuma obra fareis; é sábado do SENHOR em todas as vossas
moradas‖. Depois que Israel foi estabelecido na terra, esta exigência de culto público
semanal só poderia ser posta em prática se existissem muitas congregações reunindo-se por
toda a terra de Israel. Esses cultos congregacionais descentralizados não conteriam,
obviamente, os elementos cerimoniais do culto do tabernáculo ou do templo (tais como o
sacrifício de animais). Matthew Henry escreve:
É uma santa convocação; isto é: ―se estiver ao vosso alcance, santificá-la-ás em
assembléia religiosa: não impedindo a tantos quantos possam vir à porta do
tabernáculo, nem impedindo que outros se congreguem alhures para oração,
louvor, e leitura da lei‖, como nas escolas dos profetas, enquanto continuava a
profecia, e posteriormente nas sinagogas. Cristo, ao reunir-se com seus discípulos
duas vezes (e talvez muitas outras vezes) no primeiro dia da semana, estatuiu o
sábado neotestamentário como uma santa convocação... Note que os sábados de
Deus devem ser observados religiosamente em cada casa em particular, por cada
família individualmente, como também por muitas famílias congregadas em santas
convocações.73
Atos 15:21. ―Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o
pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados‖ (cf. Sl. 74:8).
Hebreus 10:24-25. ―Consideremo-nos também uns aos outros, para nos
estimularmos ao amor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como é costume de
alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima‖.
Diferentemente das atividades quotidianas como andar de patins, cultivar o jardim e dirigir
um carro, o culto público, por não ser opcional, não é uma área que os crentes podem tratar
com indiferença. Aqueles que consideram que ―tudo na vida é culto‖ (à semelhança dos que
interpretam erroneamente Dt. 4:2) confundem completamente a diferença que há entre o
culto público, os elementos ordenados deste culto e os assuntos indiferentes ou comuns às
atividades humanas e às sociedades. Uma vez que certa atividade seja ordenada e separada
por Deus, não podemos tratá-la como opcional ou adiafórica. Cantar louvores a Deus está
numa categoria completamente diferente da de plantar tomates, mesmo que ambas sejam
feitas para a glória de Deus.
71
John Gill, Exposition of the Old Testament (Streamwood, IL: Primitive Baptist Library, 1979 [1810]),
4:579. 72
Frank Smith, ―An Introduction to the Elements of Worship‖ in Worship in the Presence of God, 135. 73
Matthew Henry, Commentary, 1:536.
Em segundo lugar, Cristo o rei e cabeça da igreja designou oficias com funções
que requerem um uso público especial. ―Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou
cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens... E ele mesmo concedeu uns para apóstolos,
outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas
ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do
corpo de Cristo‖ (Ef. 4:8, 11, 12). A Bíblia faz certas exigências para se pregar, ler as
Escrituras e se administrar os sacramentos no culto público. Tais elementos de culto só
devem levados a efeito por mestre ou pregador ordenados e não podem ser tratados como
atividades indiferentes da vida quotidiana. Se não há distinção entre o todo da vida e o culto
público, por que então as ordenanças públicas restringem-se apenas aos oficiais ordenados
na igreja? Se tudo na vida fosse culto, então tais regras e distinções seriam desnecessárias.
Em terceiro lugar, quando o apóstolo Paulo discute qual deve ser a conduta dos
crentes durante o culto público, ele estabelece regras que pressupõem uma clara distinção
entre o culto público e o todo da vida. Por exemplo, as mulheres podem falar num
churrasco e podem ensinar as tarefas de casa aos seus filhos, mas estão totalmente proibidas
de falar ou ensinar durante o culto público (cf. 1Co. 14:34; 1Tm. 2:12-14). Quanto à Santa
Ceia, Paulo diz aos crentes que devem se portar de modo adequado à mesa do Senhor.
Devem examinar a si mesmos e certificarem-se de têm especial consideração por seus
irmãos (1Co. 11:17-34). Os regulamentos aplicáveis aos sacramentos não se referem,
obviamente, ao piquenique local ou à partida de voleibol. Há também um decoro especial
para o culto público que é ordenado por Paulo. Os homens não devem cobrir a cabeça, mas
as mulheres sim (1Co. 11:2-16). Os homens, entretanto, podem usar bonés de beisebol no
centro esportivo. Se o todo da vida fosse culto (como afirmam alguns), e por isso o culto
não devesse ser rigidamente regulamentado pela Escritura, então as instruções inspiradas do
apóstolo Paulo quanto ao culto público seriam supérfluas.
Em quarto lugar, o termo para igreja (ekklesia) denota freqüentemente uma
sociedade de cristãos professos que constituem uma igreja local que se reúne para o culto
público num local específico (At. 5:1; 11:26; 1Co. 11:18; 16:19; Rm. 16:23; Gl. 1:2; 1Ts.
2:14; Cl. 4:15; Fm. 2; Ap. 1:11;20. etc.). Hodge escreve:
Deus ordenou que seu povo se organizasse em comunidades eclesiásticas distintas
e visíveis, com constituições, leis e oficiais, emblemas, ordenanças e disciplina,
com o grande propósito de imprimir visibilidade a Seu reino, de fazer conhecido o
evangelho desse reino e de reunir em todos os seus súditos eleitos.74
A igreja neotestamentária reunia-se para o culto público no dia do Senhor (At. 2:1;
20:7; 1Co. 14:23, 26, 34, 35; 16:1, 2). O culto público no dia do Senhor foi ordenando por
Deus (Lv. 23:3; Hb. 10:24-45). É um período de tempo separado da vida quotidiana. O
culto público consiste de certos elementos que são autorizados pelas Escrituras (Dt. 31:9-
13; Nm. 8:7-8; 13:1; 1Ts. 5:27; Cl. 4:16; 1Tm. 4:13); oração (At. 4:31; 1Co. 11:13-15);
pregação a partir da Bíblia (At. 17:13; 20:8; 1Co. 14:28; 1Tm. 4:13; 2Tm. 4:2); a
administração dos sacramentos (Mt. 28:19; 1Co. 11:18-34) e o cântico de salmos (1Cr.
16:9; Sl. 95:1-2; 105:2; 1Co. 14:26; Ef. 5:19; Cl. 3:16). Seria obviamente inadequado tratar
o culto público prestado pela igreja da mesma maneira que as áreas da vida que são
indiferentes ou adiafóricas.
Em quinto lugar a Bíblia ensina que há uma presença especial de Deus no culto
público. Num sentido especial Cristo está falando ao povo da Sua aliança através da palavra
74
A. A. Hodge, The Confession of Faith (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1958 [1869]), 312.
pregada. O povo como comunidade da aliança responde à Palavra de Deus com oração e
louvor. A confissão de pecados a Deus inclui tanto os pecados individuais quanto os
corporativos. Quando a congregação participa da Ceia do Senhor (o pão e o vinho) como
um único corpo, uma bênção especial é recebida de nosso Senhor. Entretanto o participar
indignamente da Ceia (e.g., quando se despreza a assembléia da congregação reunida, etc.)
envolve sanções pactuais e até mesmo a morte (1Co. 11:27-34). Os casos de sérios pecados
públicos e excomunhões devem ser anunciados durante o culto público onde Cristo está
presente em Sua corte (Mt. 18:20), onde o excomungado é entregue a Satanás pelo poder de
Cristo (1Co. 5:4). A congregação não apenas recebe uma bênção especial pelos meios
públicos de graça e presença única de Deus, mas Deus é mais glorificado quando é louvado
pela assembléia do corpo de Cristo. Clarkson escreve:
O Senhor comprometeu-se em estar com cada um dos santos individualmente, mas
quando eles estão reunidos em culto público, todos esses compromissos
individuais estão conjuntamente unidos. O Senhor compromete-se em deixar fluir,
por assim dizer, um fio da sua presença confortadora, revigorante, para cada um
dos que o temem, mas quando muitos desses indivíduos ajuntam-se para adorar a
Deus esses diversos fios, então, combinam-se numa única torrente. Assim,
portanto, a presença de Deus, que, desfrutada em particular, é um mero regato, em
público torna-se num rio que alegra a cidade de Deus. O Senhor tem um prato para
cada alma que individualmente O serve em verdade; mas quando muitos
indivíduos se congregam, há uma grande variedade, uma confluência, uma
multidão de pratos. A presença do Senhor no culto público torna-o um banquete
espiritual. Assim expressa-se Isaías 25:6. Vê-se que há mais da presença de Deus
no culto público, logo, deve-se preferir o culto público ao particular.75
Não deve surpreender que Deus esteja, de modo especial, presente no culto
público, porque na terra nada se parece mais com a sala do trono de Deus no céu do que o
culto público. O céu é descrito na Escritura como um lugar de culto público contínuo onde
uma hoste inumerável de anjos e santos contemplam a face de Deus e do Cordeiro (Ap. 1:9-
12). ―As incontáveis hostes de anjos, e a igreja dos primogênitos, perfazem uma única
assembléia universal na Jerusalém celeste, Hb. 12:22, 23. São uma congregação gloriosa, e
assim juntamente cantam louvores ao que está assentado no trono, e os louvores do
Cordeiro, e continuam nesse culto público eternamente‖.76
Dizer que tudo na vida é culto e que o culto público, portanto, não está
estritamente regulamentado pela Palavra de Deus é o mesmo que comparar a Ceia do
Senhor com o que é comum ou profano.
A assembléia pública é um ajuntamento, um momento e um lugar para que Deus
se encontre diretamente com o Seu povo. Ele dá a conhecer a lei, e eles, em
retorno, o bendizem (...) O culto é algo especial e de natureza dialogal. É também
explicitamente ordenado. O fato de estar na presença de Deus significa que existe
não apenas princípios gerais a serem obedecidos, mas que os próprios elementos
do ato de culto foram escritos de antemão.77
75
David Clarkson, 3. 76
Ibid., 6. 77
Frank Smith, ―What is Worship?‖ in Worship in the Presence of God, 14-15. David C. Lachman, ao refutar
o argumento do ―dom espiritual‖, faz uma importante observação que é relevante à nossa discussão: ―Muita
ingenuidade é exercida na tentativa de se justificar várias práticas de culto. Muitos têm até argumentado que a
música é um dom espiritual, pretextando que a lista dos dons espirituais na Escritura não é exaustiva, mas
3. Argumento de que “O Princípio Regulador do Culto Aplica-se apenas ao Templo”.
Um outro argumento popular contra o princípio regulador do culto baseia-se na
idéia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao culto no tabernáculo e no templo.
Esta idéia baseia-se no contexto da citação clássica do princípio regulador, Dt. 12:32, e na
noção de que Deus era muito exigente com o culto do tabernáculo/templo apenas porque o
serviço do templo tipificava a pessoa e a obra de Jesus Cristo. Se este argumento for aceito,
pode-se concluir que: (1) O culto descentralizado em Israel que ocorria na sinagoga não era
estritamente regulado. Em outras palavras, os israelitas podiam fazer o que bem desejassem
no culto desde que não violasse o ensinamento expresso da Escritura (esta é essencialmente
a concepção episcopal-luterana do culto aceitável); (2) O princípio regulador foi ab-rogado
com a morte de Cristo quando o Seu sacrifício perfeito tornou desnecessário o culto do
templo; (3) Portanto, a igreja da nova aliança não tem nada a ver com o princípio regulador
e tem a liberdade para criar ritos, cerimônias e dias santos conforme desejar, desde que as
invenções humanas não violem ou contradigam a Palavra de Deus.
A idéia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao serviço do santuário
central deve ser rejeitada por várias razões. Primeira, a noção de que Dt. 12:32, pelo fato de
ser dado numa seção que trata primariamente do tabernáculo, aplica-se apenas ao
tabernáculo é simplesmente adotada sem comprovação exegética. É-nos dito em alguma
parte do capítulo 12, ou em qualquer outro lugar em todo Velho ou Novo Testamentos, que
o princípio de acrescentar ou subtrair está limitado ao tabernáculo ou templo? Não, não nos
é dito. Mas, será que não podemos inferir do contexto que este princípio extremamente
explícito aplicava-se apenas ao tabernáculo/templo? Não. Na verdade, o contexto prova
exatamente o oposto. Conquanto é verdade que o capítulo 12 contém uma extensa
discussão sobre o santuário central (em particular sobre a necessidade de se oferecer
sacrifícios e oferendas no santuário central) o contexto de Dt. 12:32 fala também da
repressão à idolatria e ao sincretismo com o culto pagão que podem ocorrer não apenas no
tabernáculo, mas em toda a terra de Israel. Observe o contexto imediato da passagem:
Quando o SENHOR, teu Deus, eliminar de diante de ti as nações, para as quais vais
para possuí-las, e as desapossares e habitares na sua terra, guarda-te, não te enlaces
com imitá-las, após terem sido destruídas diante de ti; e que não indagues acerca
dos seus deuses, dizendo: Assim como serviram estas nações aos seus deuses, do
mesmo modo também farei eu. Não farás assim ao SENHOR, teu Deus, porque tudo
o que é abominável ao SENHOR e que ele odeia fizeram eles a seus deuses, pois até
seus filhos e suas filhas queimaram aos seus deuses. Tudo o que eu te ordeno
observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás (Dt. 12:29-32)
A passagem aplica-se não apenas ao comportamento no tabernáculo, mas às
praticas de culto em toda a terra de Israel. Se Dt. 12:32 aplicava-se apenas ao santuário
ilustrativa. Mas, geralmente, tais argumentos defendem apenas uns poucos supostos dons, incluindo
normalmente realizações como dança, teatro e até mesmo mágica. Além destas e de outras formas similares
de entretenimento, jamais alguém sugeriu que o fato de um cirurgião efetuar uma operação particularmente
difícil ou de um bombeiro hidráulico desentupir um cano seja parte do culto, por mais talentosos que sejam.
Conquanto todas essas coisas possam ser partes legítimas de nossas vidas, a Escritura não sugere em parte
alguma que Deus se agrada de qualquer uma delas quando são incluídas como parte do nosso culto. Aquilo
que em geral podemos fazer bem em nossa vida para a glória de Deus não tem, por esse motivo, qualquer
autorização oficial para que possa ser intrometido no culto a Deus‖ (―Christian Liberty and Worship‖ in ibid.,
99).
central, por que razão seria ele usado como texto fundamental para suprimir a idolatria pagã
em todo o país? O culto pagão cananeu era descentralizado, com ídolos do lar, sítios
pagãos, lugares altos e bosques sagrados. Será que devemos crer que Dt. 12:32 preocupa-se
apenas com o sincretismo dentro do tabernáculo? O versículo 31 preocupa-se apenas em
suprimir o sacrifício de crianças dentro do tabernáculo? É claro que não! O contexto de Dt.
12:32 prova que ele não está restrito apenas ao tabernáculo/templo.
A segunda razão é que Dt. 12:32 não pode ser interpretado à parte de passagens
virtualmente idênticas, que afirmam sola scriptura, que se aplicam não apenas ao
tabernáculo/templo, mas à vida como um todo. As passagens de sola scriptura ensinam que
a igreja não tem autonomia ou autoridade legislativa quanto a ordenanças de doutrina, ética
ou culto. Observe as seguintes passagens: ―Nada acrescentareis à palavra que vos mando,
nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu
vos mando‖ (Dt. 4:2). ―Toda palavra de Deus é pura... Nada acrescentes às suas palavras,
para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso‖ (Pv. 30:5-6).
Já chamamos a atenção, na nossa discussão de Dt. 4:2, que é pecaminoso para o
homem criar as suas próprias regras éticas. Os membros da igreja ficariam justamente
irados e ultrajados se seu pastor ou conselho decretasse que comer carne às sextas-feiras, ou
usar jeans, ou andar de bicicleta era agora pecaminoso e merecedor de censura eclesiástica.
Deuteronômio 4:2 também proíbe as autoridades da igreja de fazerem subtrações ou
acréscimos ao culto prescrito na Escritura. A única forma de Dt. 4:2 ser contornado pelos
opositores do princípio regulador é pretextar que o culto a Deus não é assunto prescrito da
lei, mas que pertence à esfera das coisas indiferentes (adiaforia). A idéia de que o culto a
Jeová (o dever mais sagrado e importante da igreja) é adiafórico é impossível por dois
motivos. Primeiro, a adiaforia refere-se apenas aos assuntos indiferentes que não são
ordenados nem proibidos, que não são diretamente regulados pela Escritura. O culto,
entretanto, é ordenado por Deus. Segundo, as áreas da adiaforia são opcionais. O culto não
é opcional. Deuteronômio 12:32, que é virtualmente idêntico a 4:2, é dado no contexto do
culto para enfatizar: (1) a autoridade exclusiva da Escritura sobre o culto, (2) a falta de
autoridade legislativa do povo da aliança para determinar ou criar o seu próprio culto e (3) a
necessidade de ater-se estritamente ao que diz a Palavra de Deus para evitar os acréscimos
humanos que, por causa da depravação humana herdada, levam ao sincretismo e ao pecado.
O princípio regulador é simplesmente o sola scriptura aplicado à esfera do culto. Aqueles
que aplicam Dt. 12:32 apenas ao templo, fazem-no somente porque não entendem Dt. 4:2 e
a completa aplicação da sola scriptura.
Terceira razão, a idéia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao templo
ignora o fato de que o culto no tabernáculo/templo continha ordenanças cerimoniais e não-
cerimoniais. O sacrifício de animais, a queima de incenso e o uso sacerdotal e levítico de
instrumentos durante o sacrifício eram cerimoniais. Mas a leitura da Escritura (1Ts. 5:27;
Cl. 4:16; 1Tm. 4:13), a oração (Mt. 6:9; 1Ts. 5:17; At. 4:31; 1Co. 11:13-15; Fp. 4:7; Tg.
1:5) e o cântico de louvor (Mt. 26:30; At. 16:25; 1Co. 14:26; Ef. 5:19; Cl. 3:16; Hb. 13:15;
Tg. 5:13) não eram cerimoniais. Tal afirmação prova-se pelo fato de que a leitura da
Escritura, a oração e o cântico de louvor são, todos eles, aspectos integrais do culto cristão
após a dissolução do templo e a ab-rogação das ordenanças cerimoniais. Por isso, é
extremamente simplista e exegeticamente falaz argumentar que o princípio regulador foi
anulado juntamente com a ordem cerimonial. Se o princípio regulador aplicava-se ao culto
do templo, então, ele regulava o culto não-cerimonial que lá ocorria.
Aqueles que argumentam que o princípio regulador aplicava-se somente ao templo
e que foi, portanto, ab-rogado com a lei cerimonial, são culpados de fazerem uma antítese
total entre o culto no templo e o culto público na sinagoga/culto público cristão. Não se
pode negar que o culto no templo tipificava Cristo e Sua obra. Não se deve, entretanto,
subestimar o fato de que o templo era também um lugar de culto (Jo. 4:21) e oração (Mt.
21:13). Alguns dos elementos cruciais do culto público cristão foram praticados
primeiramente no templo. Bushell escreve:
Para o judeu do Velho Testamento o ritual do templo era a imagem viva da
adoração e todos os exercícios de piedade estavam, de uma forma ou de outra,
atrelados àquela fonte. As práticas litúrgicas na sinagoga correspondiam, em
muitos casos, diretamente às do templo. A oração, por exemplo, era oferecida na
sinagoga no mesmo momento das oferendas do templo. Fora deste lugar de culto,
a oração era sempre feita com a face voltada para o Templo, ou Jerusalém. As
sinagogas eram consideradas santuários em miniatura, a ponto de sua mobília (tais
como a arca e o candelabro de sete braços) ser calcada na do templo. Por isso,
considerando a importância do templo até mesmo para o culto fora de Jerusalém,
seria razoável postular um grau maior de continuidade entre a prática do culto
cristão e certos aspectos da liturgia do templo; uma continuidade maior do que
grande parte das autoridades está disposta a admitir. A escassez de referências na
literatura quanto à influência da liturgia do templo no culto cristão é uma situação
desequilibrada que precisa muito ser corrigida. É nossa opinião que o templo, e
não a sinagoga, é a referência final para certos aspectos mais importantes no culto
cristão. O fato de que muitos desses aspectos podem ter sido intermediados pela
sinagoga está além da questão, pelo menos até onde vai a nossa preocupação com
o assunto.78
Apesar de serem feitas certas tentativas de se limitar o princípio regulador ao templo, elas
não têm absolutamente qualquer fundamento na Escritura. O culto do templo prova em si
mesmo que o princípio regulador não pode estar restrito às ordenanças cerimoniais.
Quarta razão, há algumas passagens que aplicam o princípio regulador fora da
esfera do culto do tabernáculo/templo. Se existir na Escritura pelo menos uma palavra que
aplique o princípio regulador fora do culto do tabernáculo/templo, então a afirmativa de que
o princípio regulador aplica-se apenas ao templo cai por terra. Vamos examinar três
passagens.
1. Em Mt. 15:1-3 Jesus condenou os fariseus por acrescentarem a lavagem
ritualística, que ocorria em casa e não no templo, à lei. ―Então, vieram de Jerusalém a
Jesus alguns fariseus e escribas e perguntaram: Por que transgridem os teus discípulos a
tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos, quando comem. Ele, porém, lhes
respondeu: Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa
tradição?‖. Esta passagem constitui um sério problema para aqueles que ensinam que o
princípio regulador aplicava-se apenas ao templo, e que as tradições criadas pelos homens
são permitidas desde que não violem o claro ensinamento da Escritura. Onde, na Palavra de
Deus, condena-se a lavagem das mãos? Se os acréscimos humanos são permitidos na esfera
religiosa, o que poderia ser mais inocente, útil e prático do que um simples lavar de mãos?
Entretanto o nosso Senhor não apenas recusou submeter-se a esse ritual religioso criado
pelo homem como também repreendeu vigorosamente os fariseus por adicionarem uma
regra humana à Palavra de Deus. ―Lavar as mãos é algo bem apropriado; pode-se desejar
78
Michael Bushell, The Songs of Zion, 71-72.
que fosse sempre praticado; mas elevá-lo à condição de ritual religioso é estultícia e
pecado‖.79
Os discípulos de Cristo foram bem treinados, pois sabiam que qualquer tradição
humana, não importa quão boa e inocente, não deve ser observada quando recebe do
homem, sem a sanção divina, status e significado religioso. ―Observe, as imposições ilegais
[tradições humanas no culto] ficarão sob a responsabilidade dos que as sustentam,
defendem, e as fazem vigorar, tanto quanto dos que primeiramente as inventaram e delas
gozaram‖.80
―A antiguidade e os Pais [da Igreja] sem a Escritura são a velha cartilha dos
supersticiosos formalistas... Daqui aprende-se que Deus em sabedoria põe em discussão as
cerimônias dos homens para que sejam refutadas e condenadas...‖81
Jesus é um ardente defensor do princípio regulador. Ele rejeita a mais inofensiva
das tradições religiosas e mostra-nos também como as tradições e leis humanas desviam e,
portanto, invalidam a sentença sobre aquilo que Deus condenou. Rutherford escreve:
Os fariseus criticaram quando viram alguns dos discípulos comendo pão com as
mãos sem lavar. Exigia-se a justificativa para a omissão de um ritual exterior,
visível aos olhos. Essas tradições, entretanto, não são condenadas por Cristo por
serem contrárias à Palavra de Deus ou por serem ímpias, mas por não serem
ordenadas. Eles não acusavam os discípulos de Cristo da impiedade de qualquer
sentimento perverso quanto a essas tradições, ou de crítica íntima ao ritual
religioso de lavar as mãos, nem disputavam com eles sobre se as tradições dos
anciãos deveriam, ou não, ser estimadas como a essência e a totalidade de todas as
religiões, como disse Vasquez*, mas altercavam tão somente sobre a concordância
externa em seguir, ou não seguir, a tradição dos anciãos, como está mais do que
claro no texto. Cristo, na verdade, desaprovou o fato de terem maior consideração
às tradições dos homens do que aos mandamentos de Deus, como os papistas e os
formalistas o fazem; mas não era esse o ponto em questão entre os discípulos de
Cristo e os fariseus. Cristo rejeita tais tradições com o argumento da falta de um
Autor legal, quando as chama de preceitos de homens em oposição aos
mandamentos de Deus.82
As pessoas que se opõem ao princípio regulador tentam, freqüentemente,
contornar a importância óbvia dessas passagens apelando para o contexto. Dizem que o
exemplo apresentado por Cristo nos versículos 4 e 5 (de alguém que segue a tradição para
esquivar-se de sustentar seus pais na velhice) nos informa que Cristo tinha na mente apenas
as tradições negativas, isto é, as tradições que anulavam, abandonavam ou contradiziam à
Palavra de Deus. O problema dessa interpretação é que ela ignora completamente o
versículo 2, o confronto original que resultou na respostas de Jesus nos versículos de 3 a 9.
Jesus exemplifica por que é errado acrescentar exigências humanas à Palavra de Deus. Elas
terminam por suplantar a Palavra de Deus. (Quem conhece o judaísmo ou a história da
igreja sabe que o ensinamento de nosso Senhor é verdadeiro). O fato de Cristo dar tal
exemplo não minimiza jamais o verso 2, onde a mais inocente e aparentemente inofensiva
das tradições humanas (lavar as mãos) é considerada totalmente imprópria. Como é que o
79
Charles Haddon Spurgeon, The Gospel of Matthew (Grand Rapids: Revell, 1987), 201. 80
Matthew Henry, Commentary (McLean, VA: MacDonald, s.d.), 5:210-211. 81
David Dickson, Mathew (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1987 [1647]), 207. * Gabriel Vasquez (1549-1604). Filósofo e teólogo jesuíta, também conhecido como ―Bellomontanus‖. Sua
obra mais importante é Commentari ac Disputationes sobre a Summa Theologica de Tomás de Aquino. 82
Samuel Rutherford, The Divine Right of Church Government and Excommunication (London: John Field,
1647), 138.
fato de alguém lavar as mãos pode contradizer, violar, ou pôr de lado a Palavra de Deus?
Jesus condena os fariseus por presumirem (ao contrário da Palavra de Deus) que os líderes
religiosos têm autoridade legislativa na igreja. Quando tais líderes atribuem a si mesmos a
autoridade de inventarem doutrinas ou mandamentos, o resultado final é decadência e
mesmo apostasia. Observe que nos versículo 9 Jesus condena claramente todas as doutrinas
e mandamentos humanos na religião. ―E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são
preceitos de homens‖ (Mt. 15:9; cf. Is. 29:13).
Além disso, a passagem paralela de Marcos 7 põe termo ao assunto definindo-o,
porque nessa narrativa Jesus identifica explicitamente as tradições que Ele condena, como
inclusive as lavagens religiosas.83
―Respondeu-lhes: Bem profetizou Isaías a respeito de
vós, hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração
está longe de mim. Em vão, porém, me honram, ensinando doutrinas que são mandamentos
de homens. Porque, deixando o mandamento de Deus, retendes a tradição dos homens,
como o lavar dos jarros e dos copos, e fazeis muitas outras coisas semelhantes a estas. E
dizia-lhes: Bem invalidais o mandamento de Deus para guardardes a vossa tradição‖ (Mc.
7:6-9). ―É tão fácil destruir a autoridade da Palavra de Deus pelo acréscimo quanto o é pela
subtração, tanto soterrando-a sob as invenções humanas quanto negando a sua verdade. A
Bíblia toda, e nada a não ser a Bíblia, tem de ser a nossa regra de fé — sem acréscimos ou
amputações‖.84
O nosso Senhor não só condena as tradições humanas negativas, más ou
contraditórias, mas a todas elas sem exceção. Spurgeon escreve:
A religião baseada na autoridade humana é inútil; devemos adorar ao verdadeiro
Deus da maneira que Ele mesmo determina, ou não estaremos adorando-O jamais.
Doutrinas e mandamentos só devem ser aceitos quando têm a sustentação da
Palavra, e só por esta razão é que serão aceitos. A forma mais meticulosa de
devoção será vã adoração, se for regulamentada por ordenanças humanas à parte
dos próprios mandamentos de Deus.85
83
A segunda metade do versículo 8, que começa com ―o lavar dos‖, não foi incluída nas edições críticas
modernas do Novo Testamento grego (e.g., 3a. edição do Novo Testamento Grego das Sociedades Bíblicas
Unidas; 26a. edição do Novo Testamento Grego Nestle-Aland). A maioria das traduções modernas em inglês
(ASV, RSV, NASB, NEB, JB, NIV) refletem a crítica textual moderna deixando fora a segunda metade do
versículo 8 [Em português o mesmo ocorre com ARA2, NVI e BLH]. A versão ampliada do versículo 8
encontra-se no Textus Receptus (ou Texto Recebido) e no Texto Majoritário (ou bizantino/texto tradicional).
As versões KJV (Versão do Rei Tiago) e NKJV (Nova Versão do Rei Tiago) têm por base o Textus Receptus.
Em síntese, as edições críticas do Novo Testamento grego (em que estão baseadas virtualmente todas as
traduções modernas) dependem primariamente de uns poucos manuscritos mais antigos que foram
descobertos principalmente entre o final do século XIX e começo do século XX (e.g., o Codex Vaticanus e o
Codex Sinaiticus). Os textos majoritários não são tão antigos quanto os utilizados nas edições críticas, mas
são bem mais numerosos e são usados pela igreja de Cristo aproximadamente desde os primórdios do quinto
século, no mínimo. O conhecimento erudito moderno dos textos majoritários (i.é, a arqueologia, a verificação
de várias versões de papiros mais antigos, versões e citações dos primitivos pais da igreja [e.g., por exemplo,
o polêmico texto final de Marcos foi aceito como canônico lá pelo segundo século d.C.]), sérios problemas
com as pressuposições e metodologia dos primeiros mestres da crítica, como Wescott e Hort, e as grandes
diferenças entre os manuscritos Vaticanus e Sinaiticus, fizeram muitos cristãos apontarem de volta o Texto
Majoritário como superior ao texto da crítica moderna. Este autor considera que as versões da KJV e da
NKJV para Marcos 7:8 refletem as verdadeiras palavras de Jesus. Entretanto, a aceitação do princípio
regulador não depende da aceitação da versão do Texto Majoritário para Marcos 7:8. 84
J. C. Ryle, Expository Thoughts on the Gospels: Mark (Wheaton, IL: Crossway Books, 1993), 101-102.
Não obstante sejam verdadeiros seus comentários sobre Marcos, citados acima, Ryle (1816-1900) foi ministro
anglicano e bispo (de Liverpool) e, portanto, não adotava o princípio regulador. 85
Spurgeon, Matthew, 203.
Após um breve exame do ensinamento de Cristo no contexto só se pode concluir
que o argumento de que nosso Senhor está condenando apenas certas tradições religiosas
perniciosas, e não a toda e qualquer tradição humana, é eisegesis da pior qualidade.
A tentativa de se burlar passagens que provam o princípio regulador, como Mateus
15:2-9, não são novas, mas são (de forma geral) reedições de antigos argumentos papistas e
de lideranças eclesiásticas há muito rejeitados pelas igrejas reformadas. Observe as palavras
de Zacarias Ursinus (escritas na década de 1570 e publicadas pela primeira vez na década
de 1580):
Alguns há que se opõem ao que dissemos aqui, afirmando, como apoio à pretensa
religiosidade, que as passagens que citamos condenando-a referem-se apenas às
cerimônias instituídas por Moisés e aos mandamentos humanos ilegítimos que não
fazem parte do culto a Deus, e não aos preceitos sancionados pela igreja, e bispos
que nada ordenam contrário à Palavra de Deus. Mas a falsidade deste argumento
pode ser provada por certas declarações, análogas às passagens da Escritura que
citamos, que também rejeitam àquelas leis humanas, que, em sua própria
autoridade, nada prescrevem com referência ao culto divino que Deus não tenha
ordenado, embora, em si mesma, a coisa não seja pecaminosa nem proibida por
Deus. Embora não fosse pecaminosa em si mesma, Cristo rejeita a tradição dos
judeus quanto ao lavar as mãos, pois associavam a ela a idéia de culto divino,
dizendo assim: ―Não é o que entra pela boca o que contamina o homem, mas o
que sai da boca, isto, sim, contamina o homem‖ e ―Ai de vós, escribas e fariseus,
hipócritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, mas estes, por dentro,
estão cheios de rapina e intemperança!‖ (Mt. 15:11; 23:25). O mesmo se aplica ao
celibato e à discriminação entre dias e tipos de carnes, ao que Ele chama de
―doutrinas de demônios‖, embora sejam intrinsecamente legítimas ao piedoso,
como Ele ensina noutra parte. Por isso, aquelas coisas que são em si mesmas
indiferentes, que não são ordenadas nem proibidas por Deus, se forem prescritas e
realizadas como culto a Deus, ou se delas se supor que Deus seja honrado quando
as executamos e desonrado quando as negligenciamos, é claramente manifesto que
a Escritura as condena, nestas e em outras referências.86
2. Outra passagem da Escritura que desaprova a teoria do ―apenas ao templo‖ é Cl.
2:20-23: ―Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se
vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não
toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas
coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como
culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum
contra a sensualidade‖. O apóstolo Paulo, escrevendo sob a inspiração do Espírito Santo,
vários anos após o princípio regulador ter sido supostamente abolido, impôs rigorosamente
o princípio regulador.
Paulo diz que qualquer adição ao que Deus ordenou ou autorizou é religião auto-
imposta, ou como diz a versão do rei Tiago, ―culto da vontade‖ [ou ―culto de si mesmo‖,
ARA2
ou ―pretensa religiosidade‖, NVI]. A palavra grega usada por Paulo (ethelothreskeia)
significa culto que se origina da própria vontade do homem. ―Este não é o culto ordenado
por Deus, mas que brota da própria ingenuidade do homem — devoção não autorizada... O
86
Zacarias Ursinus, Commentary on the Heidelberg Catechism (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed,
s.d. [de uma edição de 1852]), 518-519.
referido culto não é solicitado nem aceito. É superstição...‖87
O essencial é que essas ordenanças são formas de culto ou de ato religioso
escolhidos pelo homem, conforme a vontade do homem, não significa escolhidos
por Deus. Este é o cerne do culto corrupto: quando os homens procuram
estabelecer as suas próprias formas de culto. Podemos chamá-lo de culto tipo
livre-escolha, pois os advogados do culto feito pelo homem alegam que o homem
tem o direito (ou a liberdade) de instituir meios aceitáveis para adorar a Deus.88
Paulo diz que fazer acréscimos à Palavra de Deus é uma demonstração de falsa
humildade. Será que o homem é capaz de melhorar a adoração e o ato de culto que Deus
instituiu? É o ápice da arrogância e da estupidez pensar que o homem pecador pode
melhorar as ordenanças de Deus. ―É provocar a Deus, pois isso recai sobre a Sua honra,
como se Ele não fosse sábio o suficiente para determinar o modo do Seu próprio culto. Ele
odeia todo fogo estranho oferecido em Seu templo. Lv. 10:11. Uma cerimônia [qualquer]
pode a um tempo [qualquer] levar a um crucifixo. Aqueles que defendem o uso do sinal da
cruz no batismo, por que não defendem também o óleo, o sal e o creme?‖89
Como diz
Paulo: a regras e regulamentos feitos pelo homem ―não têm valor algum‖ para o que crer
(Cl. 2:23).
Os oponentes do princípio regulador tentam contornar o ensinamento de
Colossenses de modo semelhante à passagem de Mt. 15:2ss. Eles pretendem que Paulo não
está condenando a todas as tradições humanas, mas que só está preocupado com a
eliminação de certos tipos de ascetismo. Em outras palavras, é errado criar regras que
proíbam comer carne e outros alimentos, mas é inteiramente aceitável inventar práticas de
culto, dias santos e rituais.
Há uma série de razões pelas quais a condenação de Paulo aos preceitos humanos
não pode estar limitada a certas práticas ascéticas. Primeira, o amplo contexto da passagem
indica que Paulo rejeita enfaticamente todas as tradições humanas na esfera religiosa, e não
meramente leis dietéticas ascéticas. O provável problema na igreja de Colossos era a
influência de uma forma primitiva de ascetismo gnóstico. Paulo, no capítulo 2, condena
enfaticamente o legalismo gnóstico. Entretanto, ao condenar esta filosofia em particular, e
ao falso sistema ético que dela deriva, Paulo condena todas as formas de filosofia não-cristã
e todo culto e ética fundamentados na filosofia e tradição de homens. Nesta epístola, Paulo
primeiro aponta Jesus Cristo aos colossenses. Os crentes colossenses precisam trazer à
memória que Cristo é preeminente (1:18); que em Cristo, que é o Cabeça de todos, eles
estão completos (2:10); que alguns não têm se mantido fiéis à Cabeça (2:19); que em Cristo
estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (2:3). Cristo, sozinho, é
Rei e Cabeça da igreja. Somente Ele é a nossa santificação. Somente através de Cristo e da
Sua palavra-lei procede justa doutrina, propósito e ética. Por isso Paulo escreve: ―Cuidado
que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição
dos homens, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo‖ (Cl. 2:8). Calvino
escreve:
Conforme a tradição dos homens. Ele [Paulo] aponta mais precisamente qual é o
tipo de filosofia que reprova, e ao mesmo tempo condena-a duplamente como
87
John Eadie, Commentary on the Greek Text of the Epistle of Paul to the Colossians (Grand Rapids: Baker,
1979 [1884]), 199-200. 88
Kevin Reed, Biblical Worship (Dallas: Presbyterian Heritage, 1995), 56. 89
Thomas Watson, The Ten Commandments (Edinburgh: Banner of Truth, 1986 [1692]), 63.
inútil: porque não é segundo Cristo, mas conforme as inclinações dos homens; e
porque consiste dos rudimentos do mundo. Note, entretanto, que ele opõe Cristo
aos rudimentos do mundo, e igualmente, às tradições dos homens; com isso, o que
ele quer dizer realmente é que, qualquer coisa produzida pela imaginação do
homem não está de acordo com Cristo, a quem o Pai designou como nosso único
mestre, para que Ele nos guarde na simplicidade do Seu evangelho, que se
corrompe até mesmo pela menor partícula do fermento das tradições humanas. Ele
também quer dizer que são estranhas a Cristo todas as doutrinas que tornam o
culto a Deus — que, segundo a lei de Cristo, sabemos ser espiritual — em
rudimentos do mundo, e que, como tais, escravizam as mentes dos homens com
ninharias e frivolidades, ao passo que Cristo chama-nos diretamente para Ele.90
É universal, a condenação de Paulo à filosofia conforme as tradições dos homens.
Não se pode argumentar que, nessa passagem, Paulo condena apenas o ascetismo gnóstico
e não condene as filosofias de Kant, Hegel, Schleiermacher, Marx e Dewey. Para Paulo não
existe neutralidade filosófica ou ética. Uma doutrina ou prática ou está, ou não está, em
concordância com Cristo. E se não estiver, ela procede, então, da imaginação autônoma do
homem e é (segundo Paulo) uma tradição de homens. Por isso, quando em 2:20-23 Paulo
condena os preceitos humanos, ele usa a mesma linguagem universal. No versículo 20
Paulo pergunta àqueles que estão em erro em Colossos o seguinte (numa paráfrase): ―Por
que é que vocês agem como pessoas perdidas que continuam a viver sob uma visão pagã e
sujeitando-se assim a preceitos humanos?‖. E então, no versículo 21, Paulo dá exemplos
específicos. Seriam os preceitos humanos, mencionados no versículo 21, as únicas tradições
humanas que Paulo proíbe? Não. Por causa da condenação universal da filosofia e tradição
humanas, que tanto precedem quanto sucedem o versículo 21, os preceitos humanos desse
versículo devem ser vistos como uns poucos exemplos tirados da categoria universal das
filosofias e tradições humanas. Não há como limitar a assertiva de Paulo no versículo 22 —
―segundo os preceitos e doutrinas dos homens‖ — apenas aos preceitos do ascetismo
gnóstico, tanto quanto a condenação da filosofia humana no versículo 8 não pode ser
restrita a uma única comunidade grega. Além disso, a declaração do versículo 22, ―segundo
os preceitos e doutrinas dos homens‖, espelha a condenação às tradições judaicas quanto a
doutrina e a ética encontradas em Is. 19:13 e Mt. 15:2-9. A Bíblia condena os acréscimos e
os preceitos criados pelo homem, na doutrina, na ética e no culto, sejam eles judaicos,
gregos, persas, romanos, alemães, ingleses ou americanos.
Segundo, a interpretação que diz que Paulo proíbe o acréscimo de algumas
filosofias e tradições humanas à doutrina, ética e culto da igreja, mas permite outras
tradições humanas, viola o padrão ortodoxo dos métodos de interpretação protestante. Um
estudo tanto do Velho quanto do Novo Testamentos prova, sem qualquer sombra de dúvida,
que Deus proíbe acréscimos ou subtrações à doutrina, ética e culto estabelecidos na divina
revelação (Dt. 4:2; 12:32; Pv. 30:6; Gn. 4:3-5; Lv. 10:1-2; 2Sm. 6:3-7; 1Cr. 15:13-15; Jr.
7:24,31; 19:5; Is. 29:13; Nm. 15:39-40; Mt. 15:2-9; Jo. 4:24; Ap. 2:18, 19; etc.). Essa
afirmação é simplesmente o entendimento confessional reformado de sola scriptura que
tem sido discutido nas partes anteriores desse estudo. A tentativa de fazer de Paulo um bom
episcopal, luterano, ou católico, quanto às tradições humanas, envolve a ignorância
proposital de todo o ensinamento da Escritura. O coração do homem é tão enganoso que,
pelo auto-engano e sutilezas da razão humana, ele cria onde não existe brecha para a
90
John Calvin, Commentary on the Epistle to the Colossians (Grand Rapids: Baker, 1981), 181.
autonomia humana. Por isso, a nossa única esperança em manter a pureza na doutrina, na
ética e no culto está em adotar e obedecer estritamente aos mandamentos de Deus sem se
desviar para direita ou esquerda.
3. Uma outra passagem que desaprova a teoria do ―apenas ao templo‖ é Jo. 4:21-
24: ―Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte,
nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que
conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora e já chegou, em que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai
procura para seus adoradores. Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem
em espírito e em verdade‖. Quando Jesus discutiu sobre adoração com a mulher samaritana
e contrastou o culto da velha aliança com o da nova, Ele ensinou que em ambas as
dispensações o culto deveria ser realizado sob os mesmos princípios. Observe a frase: ―mas
vem a hora e já chegou‖ (v. 23). Embora a morte de Cristo tenha eliminado todos os
aspectos e cerimônias típicas do culto da velha aliança, a necessidade de adorar a Deus ―em
espírito e em verdade‖ não era um princípio novo, pois já vigorava quando Jesus disse essas
palavras. Segundo Jesus, Deus deve ser adorado em espírito e em verdade, não porque o
templo represente a Cristo e ao evangelho, mas devido à natureza e ao caráter de Deus.
Bushell escreve:
O Espírito, que é a fonte da vida eterna, precisa ser também a fonte da verdadeira
adoração. Se admitirmos que o Espírito apenas opera em e através da Sua Palavra,
tal princípio tem por justa inferência que todo o culto verdadeiro deve estar
fundamentado nas Sagradas Escrituras... O culto aceitável precisa ser conforme o
caráter de Deus, como nos está revelado nas Escrituras, e em conformidade com
tal e suficiente regra, em todos os seus aspectos. Somente o culto que procede em
última instância do Espírito através da Sua Palavra é agradável a Deus.91
Essa passagem da Escritura refuta por si mesma a idéia de que o princípio
regulador aplicava-se apenas ao templo, porque quando Jesus começa essa discussão, fica
claro que Ele falava do culto no templo em Jerusalém (v. 21). Portanto, quando Ele diz que
o mesmo princípio de adoração ―em espírito e em verdade‖, que está em vigor agora na era
da velha aliança, estará também em vigor na era da nova aliança, Ele está ligando à igreja
da nova aliança o rígido princípio de adoração que regulamentava o templo. Se os crentes
tanto da velha quanto da nova aliança querem adorar adequadamente a Deus, eles só podem
fazê-lo em conformidade com a Sua natureza e caráter. E a única forma de aproximar-se de
Deus num modo que O agrade é achegar-se a Ele nos Seus próprios termos conforme as
Sua próprias regras. Isso significa que o culto tem de ser prescrito pela Escritura e não por
homens pecadores. Deus que é em si mesmo a verdade tem de ser adorado conforme a
verdade e não segundo a imaginação do homem. O Catecismo Maior de Westminster diz:
―Os pecados proibidos no segundo mandamento são: o estabelecer, aconselhar, mandar,
usar e aprovar de qualquer maneira qualquer culto religioso não instituído por Deus
mesmo...‖ (Catecismo Maior de Westminster, resposta 109). A idéia de que o princípio
regulador aplicava-se apenas ao culto do tabernáculo/templo não tem respaldo bíblico,
contradiz o óbvio ensino da Escritura e, portanto, tem de ser rejeitado.
4. O Argumento das “Circunstâncias do Culto”
Um método comum de se evitar a implicação total do sola scriptura na esfera do
91
Michael Bushell, The Songs of Zion, 149, 151-152.
culto é confundir e turvar a distinção entre as ordenanças e as circunstâncias do culto. A
declaração da Confissão de Westminster quanto às circunstâncias do culto (i.vi) é sempre
utilizada como justificativa para se introduzir inovações e tradições humanas no culto
público a Deus. Escreve um oponente do princípio regulador:
Estamos aqui insistindo simplesmente que a admissão da Confissão de
Westminster quanto às ―circunstâncias‖ do culto (de que ―há algumas
circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns a ações e
sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela
prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que sempre devem ser
observadas‖) é, na verdade, uma declaração muito, mas muito, mais compreensiva
da vontade de Deus para o culto da Nova Ordem do que se reconhece em alguns
redutos.91
É comum aos oponentes do princípio regulador (e aos que dizem adotá-lo, mas que
recusam-se a aplicá-lo a certas áreas do culto por amarem as tradições humanas)
acrescentarem inovações e tradições humanas no culto a Deus, e então declarar
arbitrariamente que são circunstâncias do culto. Essa tática, que conduz à corrupção do
culto, é simplesmente uma versão mais sofisticada e atualizada da noção luterana de que os
seus acréscimos pertencem todos à esfera da adiaforia. Este método de burlar o princípio
regulador não é um ataque frontal ao sola scriptura no que concerne ao culto, antes, pelo
contrário, é uma saída pela tangente ou pela porta dos fundos no que se refere ao princípio
regulador. Nas denominações que adotam as confissões reformadas (adotando assim
oficialmente o princípio regulador), que, entretanto, desviaram-se e apartaram-se do culto
bíblico, os apologistas da decadência e do status quo desenvolveram alguns astutos
argumentos não-bíblicos. Alguns exemplos populares de tais argumentos são os seguintes:
1. Alguns dizem que cantar não é um elemento separado do culto, mas meramente
uma circunstância do culto. Bahnsen escreve: ―Cantar é um ‗elemento‘ separado do culto
ou uma ‗circunstância‘ do culto? Se for este último, não necessita de sanção bíblica,
segundo o princípio regulador. Tenho defendido que cantar é simplesmente um meio para
(uma circunstância através da qual) orar, louvar, exortar, ou ensinar — e não um elemento
de culto em si mesmo‖.92
O que Bahnsen está dizendo é que o mandamento geral para
91
Steven Schlissel, ―All I Need to Know About Worship I Don‘t Learn From the Regulative Principle‖ (Part
IV) in Messiah’s Mandate. 92
Greg Bahnsen, ―Exclusive Psalmody‖ in Antithesis 1:2 (Março-Abril, 1990), 51. O argumento de que cantar
não é um elemento separado do culto foi popularizado por Vern S. Poythress, professor do Seminário
Teológico Westminster e ministro da PCA (Igreja Presbiteriana na América). Em 1974 ele escreve:
―Consideramos ensinar-pelo-cântico e ensinar-em-sentido-restrito, como simplesmente duas maneiras de
ensinar, cada uma particularmente eficaz em atender certas necessidades e em expressar certos aspectos da
doutrina cristã. Ambas têm suas vantagens e limitações, devido à natureza do meio de expressão. Desafiamos
[os defensores] da salmodia exclusiva a provarem pela Escritura, e não pela suposição, que ensinar pelo
cântico e proclamar são ‗dois elementos separados de culto‘. A nós, eles nos parecem tão mais ‗separados‘ do
que pregar a uma audiência visível em contraste com pregar pelo rádio‖ (―Ezra 3, Union with Christ and
Exclusive Psalmody‖, Westminster Theological Journal 37 (1974/1975), 225-226). A expressão mais recente
desse argumento vem da pena de John M. Frame: ―Mesmo se aceitarmos a divisão do culto em elementos,
não é plausível argumentar que o cântico é um elemento de culto independente de todos os outros. Como
dissemos no capítulo precedente, o cântico não é um elemento independente, mas, ao contrário, uma maneira
de fazer outras coisas. É um modo de orar, de ensinar, de confessar, etc. Por isso, quando aplicamos o
princípio regulador nos assuntos do cântico, não devemos perguntar especificamente que palavras a Escritura
nos ordena cantar, mas, que palavras a Escritura nos ordena utilizar no ensino, na oração, na confissão, etc‖.
louvar a Deus é um elemento de culto, mas o modo como esta ordem para louvar é
executada é uma mera circunstância do culto. Assim, alguém pode louvar a Deus cantando,
ou meditando em silêncio, ou falando, ou mesmo através da arte dramática ou dança, pois
as circunstâncias de culto não estão regulamentadas rigidamente pela Palavra de Deus.
2. Muitos argumentam que o acompanhamento musical do louvor no culto público
é uma circunstância do culto. O teólogo John Frame dá um exemplo típico desse
argumento. Ele escreve:
As igrejas da tradição pactuante, como a Igreja Presbiteriana Reformada da
América do Norte, justificam muitas vezes o uso do diapasão de sopro como
―circunstância‖, não obstante rejeitam o uso de órgãos e pianos como ―elementos‖
não autorizados. A lógica para tal diferença me escapa. Se é legítimo usar um
diapasão de sopro para dar à congregação a primeira nota de um cântico, por que
não deveríamos ajudar à congregação dando-lhe a segunda nota, a terceira, e o
ritmo?93
Outros indicam que o uso de instrumentos musicais no culto é ―comum às ações e
sociedades humanas‖. Portanto (argumentam eles) isso deve ser uma circunstância de culto.
3. Muitos pastores e Conselhos em denominações reformadas ou presbiterianas
que têm cultos especiais de Natal e Páscoa, embora compreendam que tais atos de culto não
têm respaldo na Palavra de Deus, argumentam que a escolha de um texto para sermão é
uma circunstância de culto. Portanto, é totalmente permissível (como circunstância de
culto) que o pastor pregue sobre a encarnação em ou perto de 25 de dezembro. Assim,
portanto, podem-se encontrar muitas igrejas presbiterianas seguindo um calendário
eclesiástico católico ou anglicano com a desculpa de que fazer isso é uma mera
circunstância de culto.94
Para se combater os argumentos que tentam lograr a autoridade exclusiva da
Escritura em autorizar os elementos do culto, faz-se necessário considerar brevemente as
diferenças que há entre as circunstâncias e as ordenanças do culto. A primeira diferença é
que as ordenanças do culto são prescritas ou determinadas pela Escritura. Cada parte ou
elemento de culto tem de se basear ou numa ordenança bíblica explícita (e.g., ―fazei isto em
memória de mim‖ — Lc. 22:19); ou num comprovado exemplo histórico da Escritura (e.g.,
(Worship in Spirit and Truth: A Refreshing Study of Principle and Practice of Biblical Worship (Phillipsburg,
NJ: Presbyterian and Reformed, 1996), 124. 93
John Frame, Worship in Spirit and Truth, 62, nota de rodapé 1. 94
Se um pastor estiver pregando em determinado livro da Bíblia e no curso natural da sua exposição chegar a
uma passagem sobre o nascimento ou a encarnação de Cristo em ou próximo a 25 de dezembro, então a
escolha do texto é uma circunstância de culto, ao mudar deliberadamente o tema para a encarnação ou
nascimento de Cristo em ou próximo a 25 de dezembro, ele, então, levou em consideração um dia santo extra-
bíblico e está usando a circunstância da seleção de um texto como desculpa. Algumas das razões que os
crentes reformados dão para não celebrarem o Natal são: (1) A Bíblia só autorizou o Dia do Senhor, ou
sábado cristão, como dia santificado especial. Os crentes devem celebrar nele a obra completa da redenção.
(2) Jesus Cristo não nasceu em 25 de dezembro e por isso o Natal é uma mentira. O nosso Senhor nasceu no
término do ano. (3) É imoral para os cristãos sincretizarem o culto bíblico com paganismo e catolicismo. Os
crentes não devem ter qualquer participação com os resquícios do paganismo ou com as quinquilharias do
Anticristo. (4) A Bíblia diz ao povo de Deus: ―Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo‖ (1Jo.
2:15). O Natal foi uma invenção de pagãos consumados e romanistas apóstatas. É amado e admirado pelos
pagãos (sodomitas, assassinos, pedófilos, Hollywood, etc.) em todo o mundo como um ―dia santo‖ especial.
Portanto, é anticristão e deveria ser deliberadamente evitado por todos os crentes.
a mudança do culto corporativo do sétimo para o primeiro dia da semana);95
ou pela
inferência lógica retirada da Bíblia (i.é, pode não haver um mandamento explícito mas
quando diversas passagens são comparadas elas ensinam ou inferem uma prática bíblica).96
Como esses elementos precisam ser comprovados pela Bíblia, eles são, portanto, de número
finito; e como o cânon da Escritura está fechado, esses elementos são fixos e imutáveis. As
circunstâncias do culto não são determinadas a partir da Bíblia. Embora se requeira o culto
público no dia do Senhor (o sábado cristão), a hora da reunião não está prescrita. Outras
circunstâncias de culto são: o tipo do edifício onde ocorre da reunião; o tipo de assento; a
localização da casa de reunião; a seleção de salmos específicos; a escolha do texto da
pregação; a escolha do texto de leitura, etc. As circunstâncias do culto são determinadas
pela prudência cristã (i.é, o senso comum santificado) conforme as regras gerais da
Escritura (e.g., a que horas a reunião pode ser mais conveniente e edificante para a
congregação? Que seleção de salmos é mais adequada ao texto do sermão? Como o projeto
do edifício ajudaria à congregação a concentrar-se na Palavra? etc.). Algumas
circunstâncias são determinadas pelo pastor (e.g., o texto do sermão); outras pelo Conselho
(e.g., a hora da reunião) e outras pelos líderes das famílias e pelos indivíduos (e.g., na igreja
devo usar um terno azul, preto, cinza ou marrom? etc.). Diferentemente dos elementos do
culto, as circunstâncias do culto são praticamente de número infinito e mudam
freqüentemente. Lembre-se, se alguma coisa no culto público é determinada pela Escritura,
então não pode ser uma circunstância de culto. Além disso, considere que somente Deus
tem autoridade para tornar uma circunstância em ordenança de culto. Por exemplo, não
existe nada especialmente intrínseco quanto a qualquer dia da semana específico. Deus,
entretanto, tem a autoridade de separar um dia em particular e de torná-lo religiosamente
significativo. Nada há significativamente de religioso ou especial quanto a uma
determinada faixa de terra no planeta. Mas, na era da Velha Aliança, Deus fez de Jerusalém
e do templo um local religiosos especial. Portanto, quando os homens acrescentam os seus
próprios dias santos, ou criam um lugar ou objeto sagrados, ou introduzem no culto a Jeová
instrumentos musicais ou hinos não-inspirados, eles estão usurpando a autoridade de Deus.
Uma vez entendido que as ordenanças de culto são comandadas ou prescritas pela
95
Um exemplo histórico é o culto público no dia do Senhor. Não há na Escritura registro de mandamento
explícito ou imperativo divino modificando o culto público do sétimo dia (sábado) para o primeiro dia
(domingo) da semana. Mas, no Novo Testamento, a mudança do sétimo para o primeiro dia está registrada
como um fato concretizado (At. 20:7, 1Co. 16:2, Ap. 1:10). Nem todo mandamento divino ou palavra
profética foram consignados na Escritura (i.é, incluídos na Bíblia). A prática universal da igreja apostólica, tal
como o culto público no dia do Senhor, é obrigatória somente por causa da autoridade dada aos apóstolos, i.é,
pela revelação direta. Quando os apóstolos morreram, a revelação cessou e o cânon foi fechado; agora, a
nossa doutrina, culto, e todos os exemplos históricos estão limitados pela Bíblia, a Palavra de Deus. Aqueles
que buscam autoridade nas tradições da igreja para estabelecerem ordenanças de culto, inventadas depois do
fechamento do cânon, não são, em princípio, melhores que Jeroboão, o filho de Nebate (1Rs. 12:26-33). 96
―É preciso, é claro, distinguir cuidadosamente entre a Palavra de Deus e as inferências retiradas dela.
Podemos contestar a validade das inferências da Escritura e tentar determinar se elas são ou não bíblicas de
fato, mas jamais podemos contestar assim a validade das declarações explícitas da Escritura. As palavras e
declarações da Escritura têm autoridade absoluta, original e indiscutível. A autoridade das inferências bíblicas
válidas, por outro lado, não é de natureza original, mas não se pode argumentar que tais inferências tenham
menos autoridade do que as expressas declarações da Escritura‖. (Michael Bushell, The Songs of Zion, 124).
Algumas das doutrinas basilares e mais importantes do cristianismo são colhidas das inferências bíblicas, tais
como a união hipostática de duas naturezas em Jesus Cristo e a doutrina da Trindade. Que o uso das
inferências, que podem ser ―lógica e claramente‖ deduzidas da Escritura, para formular doutrinas é bíblico
pode-se ver nas passagens seguintes: Lc. 20:37ss., Mt. 19:4-6; 22:31ss., Mc. 12:26, 1Co. 11:8-10.
Escritura não haverá mais o desvio causado pelos que tentam confundir a distinção entre os
elementos ou partes do culto e as circunstâncias do culto. Por exemplo (como observado
anteriormente), muitos pastores hoje argumentam que o uso de instrumentos musicais no
culto público seja uma circunstância do culto. Para alguém não familiarizado com a Bíblia
esse argumento parece plausível. Afinal de contas, os instrumentos musicais não são usados
em todas as culturas e nações? Não são comumente usados em cerimônias religiosas? O
problema com esse argumento é que o uso de instrumentos musicais foi ordenado por Deus,
e apenas sacerdotes e levitas eram autorizados a tocá-los quando associados com o culto no
templo (Nm. 10:8, 10; 1Cr. 15:14-24, 23:5, 28:11-13, 19; 2Cr. 5:11-14, 29:26; Ed. 3:10;
Nm. 12:27, etc.). Se os instrumentos musicais fossem apenas uma circunstância do culto, e
se qualquer israelita pudesse tocar instrumentos musicais no culto, então tais mandamentos
seriam totalmente desnecessários e fora de lugar. Algo que por natureza seja incidental ao
culto é incidental e arbitrário em todas as circunstâncias.
Segundo, tudo que no culto possuir significado religioso ou moral é elemento ou
parte dele e, portanto, carece de aprovação divina. As circunstâncias do culto são ―comuns
às ações humanas e sociedades‖. Observe, para esclarecer, a seguinte ilustração. Se uma
igreja no primeiro século na Palestina tivesse um balde de água à porta que os crentes
usavam para lavar os pés antes de se sentarem, então essa lavação de pés não teria
significado religioso. Mas se os presbíteros daquela igreja instruíssem os seus membros
para mergulharem a mão na água e fazerem o sinal da cruz, ou para pegarem um pouco dela
e salpicarem no ar dizendo uma certa prece, eles então seriam culpados de acrescentarem
uma tradição humana no culto a Deus. Muitos pastores têm um copo d‘água no ou perto do
púlpito para beberem durante o sermão. Não há qualquer significado religioso em um copo
d‘água. Entretanto, se o pastor abençoar o copo d‘água, mergulhar nele um chocalho de
bebê e começar a salpicar com ele os membros da igreja enquanto murmura em latim, ele
então acrescentou uma tradição humana ao culto. Há hoje muitos acréscimos humanos no
culto que obviamente ultrapassaram a linha e que são considerados possuidores de
significado especial, sagrado ou religioso (e.g., sinal da cruz, água benta, vestes sacerdotais,
velas para rezar, ajoelhar-se à comunhão, apelos para ir à frente, teatro religioso, dança
litúrgica, calendário ―cristão‖, santo do dia, dias santos — além do dia do descanso, etc.).
Terceiro, as ordenanças do culto são práticas exigidas pela Escritura e por isso não
são voluntárias ou opcionais. Isto é, elas são necessariamente bíblicas. Os membros da
igreja não têm a opção de eliminar o sermão, a leitura da Escritura, ou os sacramentos, etc.
(na verdade, os evangélicos consideram com freqüência os grupos que omitem tais coisas
como seitas). As circunstâncias não são exigidas nem biblicamente necessárias. Os serviços
de culto não dependem de edifícios, assentos e púlpitos. As circunstâncias do culto são
itens que podem ser modificados, eliminados ou adicionados sem qualquer conseqüência
para o culto público. Nenhum cristão defenderia que a Ceia do Senhor era opcional.
Entretanto, será que alguém seria levado a sério se defendesse que solo musical, esquete
teatral, espetáculo de marionetes, banda de rock, apelo para ir ao altar, incenso
processional, ou gritarias e giros de corpo fossem aspectos necessários ao culto? Quando as
igrejas adicionam tradições humanas opcionais e desnecessárias no culto a Deus, elas
subtraem daquilo que Deus prescreveu; misturam o que é profano com o que é
verdadeiramente religioso e significativo; e ofendem a Deus que não ordenou tais coisas.
A tentativa de ampliar a definição de circunstâncias de culto, ou de tornar
indistinta a diferença entre elementos e circunstâncias de culto, ou de mesclar elementos
distintos em amplas categorias, é antibíblica e anticonfessional.97
Jamais se deve tratar os
elementos de culto como abstrações ajustáveis às concepções prévias daquilo que é
permitido na adoração. O procedimento interpretativo bíblico apropriado deixa que a Bíblia
nos diga quais são os elementos distintos de culto e que a Escritura estabeleça as regras
para cada elemento. Embora seja verdadeiro que os elementos de cântico de louvor,
pregação ou ensino e oração possam ter certos aspectos comuns (e.g., muitos salmos
97
A Confissão de Fé de Westminster não particulariza os elementos de culto em categorias maiores, antes,
define-os todos bem distintamente como partes ordinárias do culto religioso. A Confissão fala
especificamente de ―oração com ações de graças‖ (xxi:iii), de ―leitura das Escrituras, com santo temor; a sã
pregação da Palavra e a consciente atenção a ela, em obediência a Deus, com entendimento, fé e reverência; o
cântico de salmos, com gratidão no coração; bem como a devida administração e digna recepção dos
sacramentos instituídos por Cristo — são partes do culto comum oferecidos a Deus, além dos juramentos
religiosos, votos, jejuns solenes e ações de graças em ocasiões especiais, os quais em seus vários tempos e
ocasiões próprias, devem ser usados de um modo santo e religioso‖ (xxi:v). Os autores da Confissão de Fé
criam claramente que cada parte individual do culto necessitava de autorização ou comprovação bíblica. É por
isso que cada elemento distinto de culto tem, na Confissão, comprovação textual bíblica. A perspectiva
confessional das circunstâncias e elementos de culto é apoiada e refletida nos textos dos maiores teólogos
daquela época. George Gillespie (1613-1648) escreve: ―Além disso, não há nada do culto a Deus, que tenha
sido deixado sob o critério dos homens, exceto as meras circunstâncias de culto, que não são em si mesmas
santas, pois não têm no sagrado mais utilidade e valor que no secular, e que, por serem incontáveis, não foram
sequer parcialmente determinadas na Escritura; se não, por exemplo, cerimônias carregadas de significado
sagrado — como fazer o sinal da cruz, ajoelhar-se ante os elementos da Santa Ceia, o uso da sobrepeliz, a
guarda de dias santos, o episcopalianismo, etc. — que não têm utilidade e valor exceto na religião, seriam,
também, mui facilmente identificáveis (contudo não ordenadas) dentro dos limites que a sabedoria de Deus
estabeleceu em Sua Palavra escrita. Deus jamais deixou tais coisas sob a determinação de quaisquer leis
humanas‖ (A Dispute Against the English Popish Ceremonies Obtruded upon the Church of England
Christopher Coldwell, ed. [Dallas, TX: Naphtali, 1993 (1637, 60)], xli). Samuel Rutheford (1600-1661)
escreve: ―em atos ou meios de culto religiosos, ou circunstâncias físicas, não morais, não religiosas, quanto a
se o púlpito é de pedra ou de madeira, o sino deste ou daquele metal, ou se o prédio da igreja é assim ou
assado‖ (The Divine Right of Church-Government and Excommunication [London: John Field for Christopher
Meredith, 1646], 109). William Ames (1576-1633) escreve: ―as circunstâncias externas são pertinentes à
ordem e decência, 1Co. 14:40. Que tudo seja feito decentemente e em ordem. A regra geral, entretanto, é que
essas coisas sejam ordenadas da maneira mais apropriada à edificação, 1Co. 14:26. Dessa natureza são as
circunstâncias de lugar, tempo, e similares, que são acessórios comuns aos atos civis e religiosos. Embora
costuma-se denominar tais circunstâncias de ritos e cerimônias religiosas ou eclesiásticas, elas nada têm em
suas naturezas que sejam próprios à religião, e portanto o culto religioso na verdade não consiste delas‖ (The
Morrow of Sacred Divinity [London: Edward Griffen for Henry Overton, 1642], 318). John Owen (1616-
1683) escreve: ―diz-se que aos homens nada é permitido acrescentar à substância do culto a Deus, mas lhes é
autorizado ordenar, organizar, e apontar as coisas que pertençam ao seu modo e circunstância, isto é, tudo
aquilo que se realiza conforme está nas liturgias. Já falamos antes das circunstâncias em e sobre o culto a
Deus, e eliminamos aquelas suposições. É arriscado fazer distinção nas coisas de Deus onde Ele mesmo não
fez. Na verdade, em toda a natureza do culto não há nada de tão circunstancial, no âmbito das coisas comuns,
que sendo designado por Deus não se torne parte da sua substância; nem nada assim, apontado por quem quer
que seja, pode jamais tornar-se uma circunstância do Seu culto‖ (―A Discourse Concerning Liturgies and
Their Imposition‖ in Works [Carlisle, PA: Banner of Truth, 1965 (1850-53)], 15:40). Thomas Ridgely (1667-
1734) escreve: ―A primeira idéia contida nelas [nas ordenanças de culto] é que são deveres religiosos,
prescritos por Deus, como um método determinado pelo qual Ele será adorado por Suas criaturas... Agora, as
ordenanças assim descritas têm que estar associadas e em conformidade com uma prescrição divina. Criatura
alguma está autorizada a impor quaisquer modos de culto, alegando que serão aceitáveis ou agradáveis a
Deus, porque somente Deus, que é o objeto da adoração, tem o direito de prescrever a forma pela qual será
adorado. Seria, da parte da criatura, um exemplo de profanação e presunção insolente estabelecer modos de
culto, e o ato de adoração seria ‗em vão‘, como afirma o nosso Salvador quanto sobre ao que não possui
sanção maior que mandamentos de homens‖ (A Body of Divinity [New York: 1855], 2:433).
contêm oração, oração pode conter louvor e sermões podem conter louvor e súplica, etc.), a
idéia de que esses elementos distintos possam ser concatenados numa única categoria (e.g.,
ensino) ou de que as regras específicas dadas pela Escritura para um único elemento sejam
aplicáveis às outras partes do culto, desmorona completamente quando se examinam as
regras específicas e o contexto que a Bíblia dá para cada ordenança em separado. Observe
os seguintes exemplos:
1. Um dos elementos é a pregação da Bíblia (Mt. 26:13; Mc. 16:15; At. 9:20;
17:10; 20:8; 1Co. 14:28; 2Tm. 4:2). A pregação envolve o arrazoamento da Escritura (cf.
At. 17:2-3; 18:4, 19; 24:25) e a explicação e exposição da obra de Deus (cf. Mc. 4:34; Lc.
24:27; At. 2:14-40; 17:3; 18:36; 28:23). Os mestres da Nova Aliança não falaram por
divina interpretação, mas interpretaram a Escritura divinamente inspirada. Da mesma
maneira os mestres levitas do Velho Testamento explicaram e interpretaram a lei escrita
para o povo da aliança (cf. Nm. 8:7-8; Lv. 10:8-11; Dt. 17:8-13; 24:8; 31:9-13; 33:8; 2Cr.
15:3; 17:7-9; 19:8-10; 30:22; 35:3; Ed. 7:1-11; Ez. 44:15, 23-24; Os. 4:6; Ml. 2:1,5-8). Há
regras bíblicas específicas aplicáveis à pregação que a distingue de outros elementos tais
como louvor e oração. Conquanto homens e mulheres possam orar (At. 1:13-14, 1Co. 11:5;
Tg. 5:13) e cantar louvores (Ef. 5:19; Cl. 3:16) somente os homens (1Co. 14:34-35; 1Tm.
2:11-14) que são chamados e separados por Deus para o ministério do evangelho podem
pregar (Mt. 28:18-20; At. 9:15; 13:1-5; Rm. 10:14-15; Ef. 4:11-12; 2Tm. 4:2, etc.).
Portanto, é claramente antibíblica a idéia de que cantar louvores não seja um elemento de
culto, mas apenas uma maneira de ensinar ou uma circunstância de ensino. Se cantar
louvores fosse simplesmente um método de ensino, então as mulheres seriam proibidas de
cantar na igreja, pois elas são proibidas de ensinar nas assembléias públicas. Além disso, se
o cântico fosse uma circunstância de culto, então seria opcional e poderia ser
completamente excluído do culto público.
2. Uma outra parte do culto é o cântico de Salmos (1Cr. 16:9; Sl. 95:1-2; 105:2;
1Co. 14:26; Ef. 5:19; Cl. 3:16). Diferentemente da pregação, onde os ministros usam as
suas próprias e palavras não-inspiradas para exporem a Escritura, o cântico de louvor
envolve apenas o uso de canções inspiradas pelo Espírito. Na Bíblia a inspiração profética
era uma exigência para se escrever cânticos de adoração para a igreja (cf. Ex. 15:20-21; Jz.
5; Is. 5:1; 26:1ss; 2Sm. 23:1,2; 1Cr. 25:5; 2Cr. 29:30; 35:15; Mt. 22:43-44; Mc. 12:36; At.
1:16-17; 2:29-31; 4:24-25). No Velho Testamento escrever cânticos de adoração era tão
intimamente ligado à inspiração profética que 2Rs. 23:2 e 2Cr. 34:30 usam
intercambiavelmente os termos levita e profeta.
3. A leitura da Bíblia é também uma das partes do culto público (Mc. 4:16-20; At.
1:13; 13:15; 16:13; 1Co. 11:20; 1Tm. 4:13; Ap. 1:13). Obviamente, a leitura das Escrituras
exige que só a Bíblia seja lida. A leitura de apócrifos, Shakespeare, ou poesia cristã não
inspirada, ou livros de teologia não podem substituir esse elemento. A leitura da Escritura,
do mesmo modo que a pregação, mas ao contrário do cântico de louvores, está restrita aos
ministros do evangelho (Ex. 24:7; Js. 8:34-35; Dt. 31:9-13; Nm. 8:7-8; 13:1; 1Ts. 5:27; Cl.
4:16; 1Tm. 4:3).
4. Outro elemento de culto é orar a Deus (Dt. 22:5; Mt. 6:9; 1Co. 11:13-15; 1Tm.
5:17; Fp. 4:6; Hb. 13:18; Tg. 1:5). Ao contrário dos elementos de cântico, de louvor e de
leitura da Escritura, a Bíblia autoriza o uso de nossas próprias palavras na oração, desde
que sigamos o padrão ou modelo que nos foi dado por Cristo (cf. Mt. 6:9). Deus promete ao
Seu povo que o Espírito Santo os assistirá quando fizerem as suas orações (cf. Zc. 12:10;
Rm. 8:26-27).
Essa breve consideração quanto aos elementos do culto, acima observados, prova que as
regras que se aplicam a um elemento (e.g., oração) não pode ser aplicada a outro elemento
(e.g., cântico de louvor ou leitura da Bíblia) sem que a Escritura seja transgredida. A nossa
consideração provou que agrupar vários elementos de culto em categorias maiores também
violenta a Palavra de Deus. A única razão pela qual as pessoas constroem artificialmente
essas categorias mais amplas é para evitar as regras específicas que Deus instituiu para cada
elemento particular de culto. As feministas fazem isso para permitir às mulheres que façam
a leitura da Escritura no culto público e preguem na igreja. Outros o fazem para permitir
que grupos de teatro substituam o sermão. Há ainda muitos que fazem assim para poderem
substituir os Salmos inspirados de Deus, pelos cânticos não-inspirados dos homens.
5. Argumento de que “Jesus Aceitou e Participou de Tradições Humanas”.
Um argumento popular contra o princípio regulador é que o próprio Jesus não cria
nele, porque ele aceitou e até mesmo participou de tradições religiosas criadas pelo homem.
Argumenta-se que Jesus celebrou a Páscoa conforme a tradição rabínica não autorizada.
Isso é, do séder* judaico com todas as suas adições humanas. Quanto ao séder judaico
(termo hebraico para ―ordem‖) não há o que discutir, exceto que os fariseus acrescentaram
os seus próprios rituais à refeição. Escreve Wilson:
A refeição incluía vários elementos simbólicos, cada um deles consumido em
pontos específicos no decorrer do anoitecer. Isso incluía cordeiro assado, ervas
amargas, pão ázimo, harōset (massa misturada com amêndoas, frutas, e vinho), e
uma hortaliça mergulhada em um líquido picante. Quatro taças de vinho eram
consumidas em vários intervalos, como símbolo da alegria. O vinho era
provavelmente misturado com água e aquecido (cf. Pesahim vii.13). Lavagem
ritual das mãos, orações, e porções do Hallel**
(Sl. 113-119) também marcavam a
observância.98
Qual é a prova textual que se oferece para afirmar que Jesus participou de vários
acréscimos rabínicos? A única ―prova‖ que apresentam é o fato de Jesus ter bebido vinho.
Por que Cristo e os apóstolos tinham vinho na sua refeição, supõe-se que eles também
tinham participado de um séder com os seus ritos adicionais. Observação: Nenhum dos
acréscimos judaicos — os rituais do séder — é mencionado em quaisquer das diversas
narrativas da última ceia. Quando beber vinho às refeições era a prática virtualmente
universal nos dias de Jesus, a teoria do séder judaico é uma inferência necessária do texto
ou pura especulação? Seria teológica e pastoralmente responsável desenvolver-se uma
teologia de culto tendo por base pura especulação e adivinhação?
E quanto ao uso do vinho? Alguns argumentam quem desde que o uso do vinho
não está ordenado na instituição original da Páscoa, é, portanto, uma inovação humana num
ritual religioso. Seria o uso de vinho violação do princípio regulador? Não, porque a Páscoa
era uma refeição, e a bebida é uma circunstância ordinária, necessária ao comer
(especialmente ao se comer cordeiro assado, pão sem levedo e ervas amargas). Durante a
Festa dos Pães Asmos era ordenado aos israelitas não comer pão levedado durante sete dias
* ou Seider. Do hebraico: ordem; arranjo. Festividade da primeira noite da Páscoa – na Diáspora: das duas
primeiras noites (N.E.). **
Do hebraico: exaltar (N.E.). 98
M. R. Wilson, “Passover” in Geoffrey W. Bromiley, ed., International Standard Bible Encyclopedia
(Grand Rapids: Eerdmans, 1986), 3:677.
(Ex. 12:15ss.). Contudo nada se menciona quanto às bebidas a serem consumidas. É óbvio
que Deus não estava exigindo que os judeus morressem de sede no clima calorento do
Egito. O fato de que Jesus e os discípulos beberam vinho nas (ou após as) suas refeições
não tinha qualquer significado até que Jesus tornou-o uma ordenança evangélica na Ceia do
Senhor. A argumentação a partir de uma narrativa histórica tem que se basear no que está
nela consignado por escrito, não em suposições quanto ao que ocorreu.
A teoria do ―séder judaico‖ não é apenas totalmente especulativa, mas também
violenta os métodos padrões de interpretação protestante (i.é, a analogia da Escritura).
Sempre que algum intérprete se depara com passagem difíceis ou obscuras, ele tem que
usar as porções mais claras da Escritura para interpretar as menos claras. Será que faz
sentido interpretar as atitudes de Jesus na última ceia de modo a contrariar o claro
ensinamento, tanto do Velho quanto do Novo Testamento? As passagens do sola scriptura
ou do princípio regulador são obscuras ou difíceis de entender? Jesus condenou os fariseus
por adicionarem tradições humanas à Palavra de Deus, inclusive a lavagem das mãos (Mt.
15:2ss.). Participaria o nosso Senhor do séder judaico, que incluía a lavagem ritual das
mãos,99
após ter Ele condenado os fariseus com os termos mais fortes pela mesma atitude?
Observe também que o fundamento da ―teoria séder‖ não é a Escritura inspirada,
mas a Mishnah judaica. A Mishnah é uma compilação das tradições rabínicas orais que
datam de cerca de 200 a.C. até cerca de 200 d.C. Foi compilado inicialmente pelo Rabi
Judá (―Ha Nasi‖, ou O Príncipe) com outros eruditos judeus por volta de 189 d.C. Como a
maior parte do que foi registrado àquela época veio da tradição oral, ninguém tem certeza
de quanto da Mishnah reflete fielmente as tradições dos judeus. Edersheim escreve: ―já foi
sugerido mais de uma vez que a lei registrada na Mishnah representa freqüentemente as
teorias e especulações dos doutores judeus do segundo século d.C., e não a prática real de
um dado período. Várias das suas normas tratam conseguintemente de costumes obsoletos,
e dão pouca atenção às reais circunstâncias do tempo‖.100
Conquanto seja compreensível
que um estudioso cristão examine a Mishnah em busca de entendimento quanto a esfera
social da Palestina do primeiro século, é inacreditável que pastores e doutores de
99
Alfred Edersheim escreve: ―a ‗taça da bênção‘, era a terceira, e integrava a nova instituição da Ceia do
Senhor, sendo mencionada no versículo 20. Ao lavarem as mãos, repetiam essa oração usual: ‗Bendito és Tu,
Jeová nosso Deus, que nos tens santificado com os Teus mandamentos, e nos tens alegrado quanto ao lavar de
nossas mãos‘. A tradição prescrevia dois tipos diferentes de ‗lavagem‘ — ‗mergulhando‘ e ‗derramando‘. Na
ceia pascal as mãos deveriam ser ‗mergulhadas‘ em água‖ (The Temple: Its Ministry and Services as They
Were at the Time of Christ, 239 [Grand Rapids: Eerdmans, 1950]). Observe a nota de rodapé inserida por
Edersheim à citação acima: ―A distinção [entre os dois tipos de rituais de lavagem de mãos] é também
interessante, como explica Mc. 7:3. Porque quando a água era derramada sobre as mãos, elas precisavam ser
levantadas, de modo que a água não se devesse molhar acima do pulso, nem voltar novamente sobre a mão;
melhor, portanto, cerrar os punhos. Daí (como comenta, acertadamente, Lightfoot) Marcos 7:3, deveria ser
traduzido, ‗porque os fariseus (...) a menos que lavem as mãos com o pulso, não comem, observando a
tradição dos anciãos‘‖ (ibid., nota de rodapé 4). Observe, Mc. 7:2ss é uma narrativa paralela à Mt. 15:2ss. O
que tudo isso significa é que se Jesus e o discípulos celebram o séder conforme a Mishnah (como muitos
asseveram) então Cristo seria culpado de participar do mesmíssimo ritual que anteriormente, nos relatos do
evangelho, eles e seus discípulos se recusaram a submeter e que causou a amarga condenação dos fariseus,
por nosso Senhor. Consideramos tal cenário como exegética e teologicamente impossível. Há outros
problemas com a idéia de que Jesus seguiu o séder conforme a Mishnah. Por exemplo, as narrativas do
evangelho não se referem a quatro taças mas meramente à uma única que foi compartilhada por todos os
discípulos. 100
Alfred Edersheim, History of the Jewish Nation after the Destruction of Jerusalem under Titus (Grand
Rapids: Baker, 1975 [1865]), 381.
denominações ―reformadas‖ procurem em documentos tão indignos de confiança e
blasfemos101
algo para minar os alicerces da sola scriptura.
Outro argumento popular é que Jesus comemorou o Chanukah porque Ele estava
presente em sua celebração, conforme João 10:22-23. ―Celebrava-se em Jerusalém a Festa
da Dedicação. Era inverno. Jesus passeava no templo, no Pórtico de Salomão‖. Esta
passagem da Escritura prova ou mesmo implica que Jesus aceitou e participou de tradições
humanas no culto. Não. Há muitas razões pelas quais tal visão deva ser rejeitada. Primeiro,
pelo texto não se pode afirmar sequer que Jesus celebrou a Festa da Dedicação. O texto não
diz que Jesus foi para Jerusalém para celebrar a Festa da Dedicação, diz apenas que Ele
estava em Jerusalém àquele tempo. Muitos excelentes comentaristas (e.g., Hengstenburg,
Meyer, Weiss e outros) argumentam que Jesus estava em Jerusalém desde a festa dos
tabernáculos. Segundo, nada há de importante no fato de nosso Senhor estar em Jerusalém
nos dias da festa, pois ela não só ocorria em Jerusalém. O Chanukah era comemorado em
todo o país.
João nada declara quanto a atitude de Jesus sobre o Chanukah, mas está, no
decorrer do discurso, relatando apenas uma ocorrência histórica. Terceiro, mesmo se Cristo
fosse a Jerusalém para estar lá durante a festa, o capítulo como um todo indica que Ele foi
lá para ensinar. Gillespie escreve:
Devemos lembrar que o evangelista cita apenas as circunstâncias de hora e lugar,
para provar a história, e não para [criar] qualquer mistério. Cristo havia subido
para a festa dos tabernáculos (Jo. 7) e demorou-se todo aquele tempo porque havia
uma grande confluência de pessoas em Jerusalém. Pelo que, aproveitou a ocasião
para lançar a rede do evangelho para apanhar muitas almas. E quando João diz,
―Celebrava-se em Jerusalém a Festa da Dedicação‖, ele dá apenas uma razão para
a vinda de tanto povo a Jerusalém, e mostra como foi que Cristo teve
oportunidades de pregar a tal multidão; e quando ele acrescenta, ―era inverno‖, dá
o motivo pelo qual Cristo caminha no pórtico de Salomão, lugar para onde afluíam
os judeus. Não se achava decoroso caminhar pelo templo propriamente, mas os
homens costumavam ajuntar-se no pórtico para conversar ou caminhar, porque no
verão o pórtico fazia sombra protegendo-os do calor. Outros pensam que quando
ele diz que era inverno, isso denota que Cristo estava mais freqüentemente no
templo, sabendo que dispunha de pouco tempo para a Sua pregação; pois Ele iria
sofrer no início da próxima primavera.102
Não há a prova, mínima sequer, de que o nosso Senhor participou de quaisquer
rituais criados por homem. (Observe: Paulo pregou no areópago [At. 17:22ss.] não porque
fosse favorável à filosofia grega, mas porque isso lhe dera uma excelente oportunidade de
101
Observe como a Mishnah perverte o sentido de Lv. 18:21 e endossa a idolatria: ―MISHNAH. AQUELE
QUE DÁ DA SUA DESCENDÊNCIA A MOLOQUE NÃO INCORRE EM PUNIÇÃO A MENOS QUE A
DÊ E A FAÇA PASSAR PELO FOGO. SE A DEU A MOLOQUE MAS, NÃO A FEZ PASSAR PELO
FOGO, OU, O CONTRÁRIO, ELE NÃO INCORRE EM PUNIÇÃO, A MENOS QUE FAÇA OS DOIS.
GEMARA. R. Abin disse: A nossa Mishnah concorda com a visão de que a adoração a Moloque não é
idolatria... R. Simeon disse: se a Moloque, ele é confiável; se a outro ídolo, não é (Sanhedrin 64a). R. Aha, o
filho de Raba, disse: se alguém fez toda a sua descendência passar [pelo fogo] a Moloque, ele está livre de
punição, porque está escrito, da tua descendência implicando que não é toda a tua descendência (Sanhedrin
64b)‖ (The Babylonian Talmud citado em Gary North, Tools of Dominion: The Case Laws of Exodus [Tyler,
TX: Institute of Christian Economics, 1990], 1019). (No Talmude, a Mishnah é sempre escrita com todas as
letras maiúsculas). 102
George Gillespie, English Popish Ceremonies, 269-270.
evangelização).
Em quarto lugar, a presença de Jesus não prova que Ele celebrou a Festa da
Dedicação, pois a celebração do Chanukah não envolve quaisquer santas convocações.
Além disso, não era um sábado religioso, no qual exigia-se que o povo interrompesse seus
trabalhos.
Quinto, a maioria dos comentaristas que especulam sobre a menção que o apóstolo
faz da festa afirmam que nessa ocasião Jesus dedicou-se para morrer (cf. Pink, Lightfoot,
Stachen, etc.). Noutras palavras, a menção da festa aponta para Cristo e não para as
tradições humanas.
Sexto (como já referido), nunca se deve escolher uma interpretação que transgrida
a analogia da Escritura. É exegeticamente irresponsável impor ao texto aquilo que ele não
diz (eisegese) e depois usar essa interpretação especulativa para destruir outras tantas
passagens claras da Escritura que condenam inequivocamente as tradições humanas na
esfera religiosa. Proceder assim nada mais é que auto-engano, inventar desculpa e segurar-
se a uma corda podre.
Há mais um argumento (de que Jesus aprovou tradições humanas no culto)
fundamentado na idéia de que o nosso Senhor abençoou duas cerimônias judaicas que
foram provavelmente adicionadas após o fechamento do cânon do Velho Testamento. Esses
rituais estavam associados à festa dos tabernáculos. Afirma-se que as declarações feitas
estrategicamente por Jesus (que confrontavam essas cerimônias) provam que Ele não
condena tais tradições humanas. Um rápido exame dessas passagens provará que tal
conclusão é infundada.
A primeira passagem é Jo. 7:37-39. ―No último dia, o grande dia da festa,
levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em
mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele disse com
respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até aquele
momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado‖. F. F. Bruce dá
uma explicação de como o festival teria sido celebrado nos dias de Jesus.
O festival estendia-se por oito dias, e no oitavo havia uma ―santa convocação‖ e
―reunião solene‖ (Lv. 23:36; cf. Nm. 29:35ss.; Nm. 8:18), quando o povo, na
celebração dos Tabernáculos, agradecia a Deus por todos os frutos do ano anterior
— a videira e a oliveira, também a cevada e o trigo — sem esquecer da Sua chuva
dadivosa, sem a qual nenhuma dessas safras haveriam de crescer. Em Zc. 14:16ss.
está implícita a associação dessa festa com as chuvas propícias, embora a
cerimônia de derramamento de água, comprovadamente associada aos
Tabernáculos nos dois séculos antecedentes a 70 d.C., não seja mencionada no
Velho Testamento (exceto na duvidosa exceção de 1Sm. 7:6), fosse,
provavelmente, de uma bem considerável antiguidade. Esta cerimônia, que tinha o
propósito de reconhecer a bondade de Deus por ter enviado a chuva, e de garantir a
abundância de suprimentos na estação seguinte, era realizada no alvorecer nos
primeiros sete dias do festival. Uma procissão conduzida por um sacerdote descia
ao poço de Siloé, onde um cântaro de ouro era enchido de água, e retornava ao
templo à hora que o holocausto da manhã estava sendo oferecido. A água era então
derramada, com um funil, no lado ocidental do altar, e o coro do templo começava
a cantar o Grande Hallel (Sl. 113-118).103
103
F. F. Bruce, The Gospel of John (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), 181.
Jesus fez a Sua declaração ao oitavo dia, quando os sacerdotes não mais derramavam a
água. Muitos comentaristas crêem que o nosso Senhor escolheu propositalmente a hora
para fazer a Sua declaração, para dramatizar e enfatizar a necessidade da verdadeira água
espiritual doadora da vida.
A segunda passagem é Jo. 8:12. ―De novo, lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz
do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida‖.
Alguns comentaristas crêem que a declaração de Jesus quanto à ―luz da vida‖ era uma
comparação proposital d‘Ele mesmo com as grandes e brilhantes lâmpadas que eram
colocadas no Pátio das Mulheres e acesas no início da Festa dos Tabernáculos.
Há uma série de razões pelas quais deve-se rejeitar a idéia de que essas passagens
provam que Jesus aceitou e aprovou as tradições humanas no culto. Primeiro, nenhuma das
passagens em questão dizem que o nosso Senhor ratificou as tradições criadas pelos
homens. A idéia de que Cristo aprovou o acréscimo das tradições dos homens é
simplesmente adotada sem qualquer prova textual. Não seria sábio seguir o que a Bíblia
diz, ao invés de rejeitá-la em favor daquilo que ela não diz? Em segundo lugar, uma teoria,
hipótese ou interpretação especulativa jamais deveria ser usada para subverter o claro
ensinamento da Escritura. Toda idéia de que Jesus estava dando Sua aprovação às tradições
humanas é um argumento improcedente. Não se fundamenta no texto bíblico, mas na não-
inspirada Mishnah que foi composta por judeus incrédulos em 189 d.C. (Os comentaristas
não são concordes quanto a essas passagens. Na verdade a maioria deles não crê que o
nosso Senhor estava comparando-se a certos rituais, mas, ao contrário, comparava-se aos
eventos do livro de Êxodo: a água que brota da rocha — Êx. 17:6; Nm. 20:7-11 — e a
coluna de fogo — Êx. 13:21-22).104
Talvez devêssemos dar ouvidos ao comentário de
Hengstenberg. Ele escreve: ―é desnecessário desperdiçar tempo criando hipóteses,
buscando justificativas externamente no nascer do sol, no acender das lâmpadas do templo,
etc. Se alguma coisa significativa assim tivesse ocorrido o apóstolo não nos deixaria ficar
especulando sobre ela‖.105
Terceiro, mesmo se Jesus fizesse as suas declarações
coincidirem com certos rituais judaicos, isso não significa que Ele sancionou as adições
criadas pelos homens. Se um certo pastor (que não concorda com o Natal) distribui folhetos
evangélicos no shopping em dezembro, e prega lá sobre a obra redentora de Cristo como
104
Leon Morris escreve: ―Contudo, exatamente como a alusão à água no capítulo 7 aponta-nos a rocha no
deserto e não ao derramar da água do cântaro de ouro, assim também a alusão à luz refere-nos à coluna de
fogo no deserto. Vimos a referência ao maná no capítulo 6, de modo que em três capítulos sucessivos as
metáforas do deserto aparecem consistentemente usadas para ilustrar aspectos da obra e da pessoa de Jesus.
Deve ter-se em mente que a luz é um tema comum tanto no Velho quanto no Novo Testamento, portanto não
nos é necessário buscar a fonte do grande dito de Jesus em qualquer lugar não-bíblico (The Gospel According
to John [Grand Rapids: Eerdmans, 1971], 437. R. C. H. Lenski escreve: ―Maimônides afirma que esta
cerimônia ocorria ao anoitecer de todos os dias da festa, outros têm certeza de que ela ocorria apenas na
primeira noite. A dificuldade maior em associar a palavra de Jesus a esta cerimônia é que ela deixa de fora
uma parte essencial da figura. Aqueles candelabros eram fixos, e os homens dançavam nos pátios, ao passo
que Jesus fala de uma luz móvel: ‗aquele que me segue‘. Podemos dizer mais. Em 7:37, quando Jesus chama
todo o que ‗tem sede‘ e insta-o a que venha a Ele e ‗beba‘, Ele não pára na cerimônia de retirar água de Siloé
e de a derramar no altar, onde não existe metáfora que represente o saciar da sede pelo ato de beber; ele
retrocede à bênção original recebida em Meribá onde o sedento verdadeiramente recebeu água para beber.
Aqui Ele faz o mesmo. Uma das grandes bênçãos durante a peregrinação de Israel no deserto era a coluna de
nuvem e de fogo, prova da presença de Jeová com o Seu povo‖ (St. John’s Gospel [Minneapolis: Augsburg,
1961], 593-594). 105
E. W. Hengstenberg, Commentary on The Gospel of John (Minneapolis: Klock and Klock, 1980 [1865]),
1:429.
um presente de Deus, isso não significa que ele concorde com o Natal. Ao se ler uma
passagem deve-se ter o cuidado de não introduzir nela coisa alguma que nela não esteja.
Quarto, uma inferência mais lógica e bíblica dessas passagens não era que Ele aprovava as
adições deles, mas que Ele ensinava que a lei e os profetas não apontavam para rituais
tolos, mas para Ele mesmo.106
Ao contrário da moderna opinião popular, Jesus não era
fariseu nem papista.
Mas, e o argumento que diz que ―se Jesus fosse um regulativista rigoroso não
haveria Ele de atacar os sacerdotes e levitas do templo que faziam acréscimos à Palavra de
Deus, como antes Ele o fizera aos cambistas?‖. O argumento de que Cristo teria atacado os
sacerdotes e levitas se Ele cresse no princípio regulador baseia-se na ignorância da
Escritura. Jesus não veio à terra como um magistrado civil (cf. Lc. 12:13-14; Jo. 8:1-11).
Sua opinião sobre os acréscimos farisaicos à Lei de Deus era bem conhecida através de Seu
ensinamento (e.g., Mt. 5:17-6:8; 15:2-9; 23:1-36; etc.). Se Jesus, a cada vez que se
confrontasse com o pecado, se irasse e recorresse a azorragues Ele disporia de pouco tempo
para pregar o evangelho, que era a Sua missão didática primária. Além disso, os sacerdotes
e levitas não eram meros mercadores ou cambistas, mas detinham posição de autoridade. Se
nosso Senhor os houvesse atacado ele teria: (1) cometido um ato revolucionário;
(2) precipitado um motim no templo; (3) colocado Sua vida e a de Seus discípulos
prematuramente em perigo; e (4) possivelmente teria sido preso pelas autoridades romanas.
Em 70 d.C. Jesus tratou de sacerdotes e levitas apóstatas, mas, enquanto na terra, Ele
respeitou as legítimas autoridades governantes (cf. Mt. 23:2-3; At. 23:1-5). Os oponentes
do princípio regulador estão mais uma vez segurando-se numa corda podre.
6. Argumento da “Festa de Purim”.
Talvez o argumento mais popular que apóia as tradições humanas no culto baseia-
se na Festa de Purim. Afirma-se que se os judeus, sem qualquer ordenança ou revelação
especial de Deus, criaram seu próprio dia santo, então a igreja pode fabricar seus próprios
dias santificados tais como Natal e Páscoa.
Há muitos problemas com esse argumento. Ele aceita, sem qualquer prova, que
Purim era um dia santificado especial assim como o Natal. O texto bíblico deixa
extremamente claro que Purim não era um dia santo especial, mas uma ocasião de ação de
graças. Os eventos de Purim são: ―havia entre os judeus alegria e regozijo, banquetes e
festas... e de mandarem porções dos banquetes uns aos outros, e dádivas aos pobres‖ (Et.
8:17, 9:22). ―Não há menção de qualquer observância religiosa associada ao dia‖.107
Não
havia atos especiais de adoração, não havia cerimônias, não havia atividades levíticas ou
106
Hengstenberg escreve: ―A festa não era apenas de ação de graças, mas também de esperança. E o texto
apropriado a este seu último aspecto era Is. 12:3. Jesus afirma ser Ele mesmo a água da salvação anunciada
pelo profeta Isaías, e no próprio Isaías está a razão para o fazer. A associação entre as fontes da salvação e a
pessoa do Messias fica evidente pela relação do capítulo 12 com o 11, onde toda a salvação futura está
totalmente ligada à pessoa do Messias. E aquilo que Isaías disse no capítulo 12 quanto às águas da salvação,
tem o seu cumprimento também no capítulo 4:14, a que as palavras ‗ean tis dipsa pineto‘ (quem tem sede
beba) aludem definitivamente: cf. 6:45, 4:14‖ (Commentary on the Gospel of John, 1:405). Brook Foss
Westcott escreve: ―Nada comprova mais claramente a íntima relação que há entre o ensinamento registrado
por S. João e o Velho Testamento do que o modo em que Cristo é mostrado ao transferir para si mesmo as
figuras do Êxodo (a serpente de bronze, o maná, a água, a coluna de fogo)‖ (The Gospel According to St. John
[Grand Rapids: Baker, 1980], 277). 107
J. P. Lewis, ―Feasts‖ in Merrill C. Tenney, ed., The Zondervan Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids:
Zondervan, 1975, 1976), 2:525.
sacerdotais. Purim, também — diferentemente do Natal e da Páscoa — não era uma
mistura de monumentos e parafernálias pagãs e papais com a religião de Jeová. Não se
deveria comparar Purim a dias santos papais, como o Natal, mas a dias especiais de
regozijo como o Dia de Ações de Graças. Os teólogos de Westminster (que eram ardentes
defensores do princípio regulador) utilizaram Purim como texto que comprova (Ester 4:16;
9:22) a autorização de dias ocasionais de ação de graças (cf. Confissão de Fé xxi:v, um
prova textual).
Segundo, Purim não surgiu porque os oficiais da igreja se juntaram e decidiram
criar um dia santo. Ele surgiu devido a um evento histórico único na história da salvação de
Israel. O festival foi decretado pelo magistrado civil (o primeiro ministro Mordecai e a
rainha Ester). Os líderes religiosos não tiveram nada a ver com isso. O povo concordou
unanimemente com o decreto civil. Thomas M‘Crie escreve:
Ao propô-lo, agiu Mordecai levado pela noção particular da sua própria mente, e,
em conformidade com ela, prosseguiu com o inteiro consentimento do povo? Ou,
em ambos os casos, foi ele guiado por conselho divino e extraordinário, a ele
mesmo revelado, ou por algum profeta que vivesse naquele tempo? Que visão e
profecia ainda eram desfrutadas pelos judeus que habitam a Pérsia não se pode
negar pelos que crêem na autoridade canônica desse livro, e pelo que está contido
em Esdras. Já vimos as razões por que achamos que Mordecai, no momento em
que propôs a sua sobrinha Ester como candidata à sucessão da rainha Vasti, agiu
sob a influência da fé dos pais de Moisés. Não pode haver dúvida de que ele foi
levantado extraordinariamente como um salvador de Israel, e no decorrer dessa
lição vimos razões para crer que, além de seus outros méritos, ele foi usado como
o escriba dessa porção da Escritura inspirada. Por todas essas considerações é
razoável concluir que a festa de Purim não foi instituída sem o conselho e a
aprovação divina. Acrescente-se que o decreto de Ester confirmando [Purim], é
citado no final desse capítulo, tendo sido incluído no livro pelo que o escreveu,
seja quem for.108
Observe que a ocasião e a sanção de Purim estão consignadas na Palavra de Deus
e aprovadas pelo Espírito Santo. Por isso, Purim satisfez propriamente a exigência do
princípio regulador como definido biblicamente.
Terceiro, a noção de que Purim prova que aos homens é permitido criar dias
santificados sempre que desejarem não pode ser verdadeira, porque se fosse, a Escritura
conteria uma gritante contradição. Ela não apenas contradiria as passagens que ensinam que
não nos é permitido fazer acréscimos ao que Deus autorizou (e.g., Dt. 4:2; 12:32; Pv. 30:5;
etc.), mas também ao Livro dos Reis onde Deus condenou o rei Jeroboão por estabelecer
um dia de festa ―escolhido a seu bel-prazer‖ (1Rs. 12:33). Nem mesmo reis têm autoridade
para criarem seus próprios dias santos. M‘Crie escreve:
Procurar por uma justificativa para dias de comemoração religiosa nos festivais
judaicos do evangelho, não é apenas ignorar as distinções entre a velha e a nova
dispensação, mas se esquecer de que jamais foi permitido aos judeus instituírem
por si mesmos tal memorial, mas simplesmente a obedecer àqueles cuja Sabedoria
infinita tinha expresso e nominalmente separado e santificado. A sanção
proibitória é igualmente rigorosa em ambos os Testamentos: ―Tudo o que eu te
ordeno observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás‖.
108
Thomas M‘Crie, Lectures on the Book of Esther (New York: Robert Carter, 1838), 287-288.
Quando Deus chama, há, por um lado, momentos para jejum religioso, ou,
por outro lado, para ações de graças e exultação religiosa, e é nosso dever atender
a esses chamados reservando tempo para os respectivos exercícios. Mas há uma
diferença substancial entre um dia santo recorrente e um anual. No primeiro caso o
dia é escolhido para o exercício do dever, no segundo o exercício é realizado em
função do dia. No primeiro não há santidade no dia, mas no que nele procede do
ato de culto que é nele realizado e, na sua ocorrência seguinte, ele continuará a ser
um dia tão ordinário quanto qualquer outro. No último caso o dia é separado em
todas as suas ocorrências seguintes, e não pode ser utilizado com propósitos
comuns ou seculares. Os festivais instituídos e recorrentes favorecem o falso
princípio de que alguns dias têm uma santidade peculiar, tanto inerente quanto
infundida pelas obras ocorridas neles; eles seguem adiante sob a falsa suposição da
autoridade humana; interferem com o livre uso do tempo que o Criador tem
concedido ao homem; detratam a honra devida ao dia de descanso sagrado que Ele
determinou; levam à imposições sobre a consciência; têm sido a nascente fecunda
de superstição e idolatria; e têm produzido os piores efeitos sobre a moral, em
todas as idades, entre todas as gentes, bárbaros e civilizados, papistas e
protestantes, daqueles que os têm obedecido. Por essas razões foram rejeitados
desde o princípio, entre outras corrupções do anticristo, pela Igreja Reformada da
Escócia que não permitiu a instituição de dias religiosos, exceto do Sábado
Cristão.109
7. Argumento da “Distorção do Princípio Regulador”
Um método extremamente comum para invalidar o princípio regulador hoje é
atribuir-lhe uma definição falsa, que é bíblica e racionalmente indefensável. Depois de
defini-la assim, os adversários de sola scriptura na adoração seguem em frente fazendo a
sua caricatura do princípio regulador parecer totalmente absurda. A falsa versão do
princípio regulador que é usada é: ―Se não está ordenado, está proibido‖. Noutras palavras,
deve existir um imperativo divino explicito para cada ordenança de culto na igreja. É dessa
forma que os Batistas fundamentalistas argumentam quando dizem: ―Onde somos
ordenados na Bíblia a batizar crianças?‖. Os Adventistas do Sétimo Dia seguem esta prática
quando dizem: ―Mostre-nos onde foi que Deus ordenou a igreja apostólica descansar e
adorar no domingo e não no sábado!‖. Os anti-regulativistas usam argumentos como: (a) o
culto da sinagoga nunca foi ordenado por Deus; (b) Cristo e os apóstolos participaram e
aprovaram o culto na sinagoga, portanto, (c) Cristo e os apóstolos rejeitaram o princípio
regulador.110
109
Ibid., 298-300. 110
Examinemos brevemente o que escreve um ministro calvinista independente, que se opõe ao culto
reformado: ―a própria existência da sinagoga, entretanto, desmantela a posição do regulativista! Porque ele
sabe que as sinagogas existiram. E ele sabe que Cristo e os apóstolos adoravam regularmente nas sinagogas,
sem que houvesse a mínima sugestão de que eram institucional ou liturgicamente ilegítimas. Ele sabe que não
pode encontrar o menor resquício de mandamento divino quanto ao que deveria ser feito na sinagoga. E, de
acordo com o seu princípio, se Deus nada ordenou quanto ao que devia ser feito, então tudo era proibido. E se
tudo era proibido, então tudo o que nele havia — instituição e liturgia — era uma abominação pecaminosa.
Mas isso o leva de volta para Cristo lá participando do culto a Deus e seguindo à sua liturgia: pecou Ele ao
participar numa inteira ordem de culto que não tinha a expressa sanção divina? O pensamento é blasfêmia!‖
(Steve Schlissel, ―All I Really Need to Know About Worship I Don‘t Learn From the Regulative Principle‖,
Part I, Messiah’s Mandate, 7).
Uma vez compreendida a verdadeira definição do princípio regulador reconhece-
se de imediato que as objeções ao culto reformado apresentadas por batistas, adventistas do
sétimo dia e anti-regulativistas não se fundamentam na Escritura, mas na ignorância do
próprio princípio regulador. Embora não seja raro ver um regulativista dizer coisas como
―se não está ordenado, está proibido‖ como uma declaração superficial ou resumida do
princípio, a Confissão de Westminster e virtualmente todos os autores reformados definem
o princípio regulador de maneira muito mais ampla. O princípio regulador refere-se não
apenas às ordenanças expressamente declaradas na Escritura, mas também aos exemplos
históricos aprovados na Bíblia e às ordenanças lógica e claramente deduzidas dela, isto é,
uma ordenança ou prática de culto particular é inferida a partir de muitas passagens da
Escritura.
A Confissão e vários autores reformados irão provar que o genuíno, histórico e
confessional entendimento do princípio regulador é amplo e facilmente defensável pela
Escritura. A Confissão de Fé de Westminster (i.vi) diz:
Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória
dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na
Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se
acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por
tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima
iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas
na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo
da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas
pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra,
que sempre devem ser observadas.
Assim como o manancial está para a torrente de água, para os teólogos de
Westminster sola scriptura é o ponto de partida do princípio regulador, Não pode haver a
menor dúvida de que a frase ―lógica e claramente deduzidas dela‖ aplica-se ao culto e ao
governo da igreja. Afirmar outra coisa deslocaria totalmente a seção ―circunstâncias quanto
ao culto de Deus e ao governo da Igreja‖.
Em seu ensaio The Word of God the Sole Rule of Worship John Owen contende
com Samuel Parker, um opositor do puritanismo. Owen diz que Parker considera que ―o
fundamento de todo o puritanismo‖ esteja no princípio ―de que nada deve ser estabelecido
no culto a Deus exceto o que está sancionado por algum preceito ou exemplo da Palavra de
Deus, que é a completa e suficiente regra de culto‖.111
Parker formulou esta precisa
definição ao ler a literatura puritana de seus dias (no século XVII).
Robert Shaw escreve:
Ao defendermos a perfeição das Escrituras, não estamos insistindo que cada artigo
da religião esteja contido nas Escrituras em palavras explícitas, mas sustentamos
que as conclusões claramente deduzidas das declarações da Palavra de Deus são
partes tão verdadeiras da divina revelação quanto se fossem ensinadas
expressamente pelo Volume Sagrado. O exemplo de nosso Salvador, ao combater
e provar a doutrina da ressurreição contra os Saduceus (Mt. 22:31, 32), e o de
Paulo, ao provar que Jesus de Nazaré é o Cristo quando arrazoava com os judeus
acerca das Escrituras do Velho Testamento (At. 17:2, 3), comprovam que as
111
Samuel Parker citado por John Owen, ―The Word of God the Sole Rule of Worship‖ in Works (Carlisle,
PA: Banner of Truth, 1967 [1644]), 13:462.
lógicas e claras inferências da Escritura devem ser recebidas como partes da regra
de nossa fé e prática. Está escrito que ―toda a Escritura‖ é ―útil para o ensino,
para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça‖, mas todos esses
fins não podem ser alcançados exceto pela dedução deles. As inferências
legítimas, na verdade, apenas revelam claramente o completo significado das
palavras da Escritura, e por sermos dotados de raciocínio e ordenados a buscar as
Escrituras, fica manifesta a intenção de que deveríamos tirar conclusões daquilo
que lá está posto em palavras expressas.112
Hetherington escreve: ―Eles [os reformadores escoceses] ousaram, portanto,
concluir que se pode reivindicar a legítima autoridade divina, não apenas para as
declarações expressas contidas nas Escrituras, mas também para aquilo que delas poderia
ser concluído pela clara inferência lógica‖.113
Francis Petticrew escreve:
A prática que referente ao detalhe de um mero item, a uma mera circunstância, a
algo que a igreja defenda ser indiferente, imaterial, e deixada em aberto, não
constitui lei geral. Entretanto a prática fundamentada num princípio faz com que
todas as intenções e propósitos se constituam lei universal. E esta é a natureza e a
prática dessa igreja ao excluir o uso de instrumentos musicais do culto a Deus. O
princípio foi substancialmente este, de que exige-se, para tudo aquilo que constitui
o culto, a sanção positiva da autoridade divina na forma de uma ordenança direta,
ou de uma clara inferência lógica, ou de um exemplo aprovado; e de que não há
liberdade para introduzir-se qualquer coisa associada ao culto a Deus que não traga
o legitimo rótulo apostólico de ―decência e ordem‖.114
James H. Thorwell escreve: ―Não fomos capazes de por as mãos numa única
Confissão de Fé puritana que não ensine explicitamente que as inferências lógicas da
Escritura têm a mesma autoridade das expressas declarações dela, nem encontramos sequer
um escritor puritano que, tendo ocasião de aludir ao tema, não tenha ensinado
explicitamente as mesmas coisas. O princípio de inferência que eles têm unanimemente
defendido. A nossa própria Confissão de Fé — com certeza um documento puritano —
defende-o, numa passagem já citada‖.115
John L. Giradeau escreve: ―é necessária a sanção divina para qualquer elemento de
doutrina, governo e culto da igreja, tudo que nessas esferas não estiver ordenado pela
Escritura, seja pela sua declaração expressa ou pela clara inferência lógica das suas
declarações, é proibido‖.116
A. A. Hodge escreve:
112
Robert Shaw, Exposition of the Confession of Faith (Edmond, AB, Canada: Still Waters Revival, s.d.
[1845]), 16. 113
W. M. Hetherington, History of the Church of Scotland (Edinburgh, Scotland, 1848), 1:15. 114
Francis Petticrew, ―Speech of the mover of the report to the General Assembly, 1873‖ in James Glasgow,
Heart and Voice: Instrumental Music in Christian Worship Not Divinely Authorized (Belfast: C. Aitchinson;
J. Cleeland, s.d.), 4-5. Glasgow adiciona a seguinte nota de rodapé: ―Não as circunstâncias religiosas
introduzidas e amalgamadas com o culto, mas as meras circunstâncias sociais dos homens, como as de tempo,
lugar, pessoas, etc.‖ (ibid., 5). 115
James H. Thornwell, ―Boards and Presbyterianism‖ in Collected Writings (Carlisle, PA: Banner of Truth,
1974 [1875]), 4:225. 116
John L. Girardeau, Instrumental Music in the Public Worship of the Church (Havertown, PA: New
Covenant Publication Society, 1980 [1888]), 9.
Conquanto a Escritura seja a única e completa regra de fé e de prática — e
que nada deve ser crido ou imposto à consciência como artigo de fé ou dever
religioso que não esteja explícita ou implicitamente nela ensinado — ela,
entretanto, não se aprofunda nos detalhes práticos das questões, mas estabelece
princípios gerais deixando aos homens (guiados pelas influências santificadoras do
Espírito Santo) no exercício de seu discernimento natural, aplicá-los, à luz da
experiência, na adaptação dessas questões às circunstâncias mutáveis.
Essa liberdade, é claro, só é permitida dentro dos limites da rígida
interpretação dos princípios ensinados na Palavra, e na legítima aplicação desses
princípios no detalhamento das adaptações às circunstancias mutáveis, e à
regulamentação da vida prática do indivíduo e da igreja.117
B. B. Warfield escreve:
Deve-se observar, entretanto, que os ensinamentos e prescrições da Escritura
não estão confinados pela Confissão àquilo que ―é expressamente declarado na
Escritura‖. Exige-se que o homem creia e obedeça não apenas àquilo que ―é
expressamente declarado na Escritura‖, mas também ao que ―pode ser lógica e
claramente deduzido dela‖. Esta é a intensa e universal contenda da teologia
reformada contra os socinianos e os arminianos, que desejavam limitar a
autoridade da Escritura às sua asserções literais; e envolve uma característica
valorização da razão como instrumento de demonstração da verdade. Temos que
depender das nossas faculdades humanas para descobrir o que a Escritura diz; não
podemos renunciá-las abruptamente e rejeitar a sua orientação ao determinar o que
a Escritura significa. Evidentemente isso não objetiva fazer da razão a base da
autoridade das doutrinas e deveres inferidos. A razão é o instrumento usado para
descobrir todas as doutrinas e deveres, sejam eles ―expressamente declarados na
Escritura‖, ou ―lógica e claramente deduzidos dela‖: mas a autoridade deles, uma
vez descobertos, deriva de Deus, que os revela e os prescreve na Escritura, seja por
asserção literal ou por clara inferência. A Confissão é única em zelo, quando
declara que somente a Escritura é a regra autoritativa de fé e de prática, querendo
assim dizer que a Escritura como um todo é autoritativa na extensão total do seu
significado. Na Confissão está refletida a questão reformada de que o significado
da Escritura é Escritura, e que os homens estão moralmente obrigados ao
significado total de todas as suas implicações. O ressurgimento, nas recentes
controvérsias, da alegação de que a autoridade da Escritura deve se limitar às suas
declarações expressas, e que não se deve confiar na lógica humana para as coisas
divinas, é, portanto, uma negação direta de uma das posições fundamentais da
teologia reformada, explicitamente afirmada na Confissão, como é também uma
negação fundamental, que tornaria não apenas o uso da mente em um sistema
impossível, mas desacreditaria de uma só vez muitos dos fundamentos da fé —
tais como, por exemplo, a doutrina da Trindade — e envolveria logicamente a
negação da autoridade de toda e qualquer doutrina, pois nenhuma doutrina,
simples que seja, pode ser averiguada na Escritura exceto pelo uso do processo do
entendimento. Não é, portanto, um acidente sem importância que a recente
alegação contra o uso da lógica humana na determinação da doutrina tem sido
contundentemente apresentada com o objetivo de rejeitar uma doutrina que é
117
A. A. Hodge, The Confession of Faith (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1961 [1869]), 39.
explicitamente ensinada — e repetidamente — na própria letra da Escritura; se a
alegação tiver qualquer validade, destrói de imediato a nossa confiança em todas
as doutrinas, nenhuma das quais é descoberta ou formulada sem o auxílio da lógica
humana.118
William S. McClure escreve: ―Os mandamentos de Deus são tanto explícitos,
claramente decretados, quanto implícitos, resultado lógico, inferência clara tirada de
exemplo autoritativo, tal como o de Cristo e seus apóstolos‖.119
William Young escreve: ―Não é necessário que o modo de prescrição seja
explicitar um mandamento num único texto da Escritura. Os exemplos aprovados
sancionam um elemento de culto tão certamente quanto um preceito direto. Além do que,
uma lógica e clara inferência pode sancionar a aceitação do culto. Sem entrar em questões
controversas, como os meios apropriados de batismo, todos concordariam que a Escritura
autoriza a admissão de mulheres à mesa do Senhor, embora não se possa aduzir qualquer
mandamento expresso ou exemplo aprovado‖.120
Michael Bushell escreve:
Quando dizemos que qualquer elemento de culto requer sanção divina, não
queremos dizer que exige-se, para cada caso, um mandamento explícito em um
texto isolado. Não é necessário um mandamento, no sentido restrito do termo, para
estabelecer uma prescrição divina. Um exemplo aprovado ou a inferência de
relevantes dados bíblicos é suficiente para determinar a maneira apropriada de
culto. A Confissão de Fé opera distintamente assumindo que os princípios ―lógica
e claramente‖ derivados da Palavra nos obrigam moralmente, em seus mínimos
aspectos, tanto quanto aqueles ―expressamente declarados na Escritura‖. É notável
que haja tanta confusão nos círculos reformados quanto à validade desse princípio
essencial... A adoção da validade e caráter obrigatório do argumento da inferência
da Escritura é parte essencial da vida de cada cristão e está na base de cada
mandamento de doutrina ou fé que vai além das expressas palavras da Escritura.
Certamente podemos desejar, de tempos em tempos, questionar a validade das
inferências a que algumas pessoas chegam, mas esta é uma questão completamente
diferente da que se a igreja pode ou não obrigar a consciência de um crente tendo
por base uma inferência da Escritura.121
É importante que se entenda a ampla e apropriada interpretação do princípio
regulador, porque os anti-regulativistas apontam freqüentemente exemplos históricos na
Bíblia como textos de prova contra o sola scriptura no culto. Quando um anti-regulativista
encontra na Bíblia uma prática de culto que não tenha antes um divino imperativo por
escrito por trás dela, eles assumem que tais práticas devem ter se originado da tradição
118
B. B. Warfield, ―The Westminster Doctrine of Holy Scripture‖ in Works (Grand Rapids: Baker, 1981
[1931]), 6:226-227. Publicado originalmente em The Presbyterian and Reformed Review IV (1893), 582-655. 119
William S. McClure, ―The Scriptural Law of Worship‖ in John McNaugher, ed., The Psalms in Worship
(Edmonton, AB, Canada: Still Waters Revival Books, 1992 [1907]), 33. 120
William Young, The Puritan Principle of Worship (Vienna, Va: Publication Committee of the Presbyterian
Reformded Church, s.d.), 10. 121
Michael Bushell, The Songs of Zion (Pittsburgh, PA: Crown and Covenant, 1993 [1980]), 122-123.
Observe também: ―Tudo aquilo que não está ordenando na Escritura é proibido. Tudo o que a igreja faz no
culto deve estar sancionado por um explícito mandamento de Deus, ou ser deduzido de uma clara inferência,
ou derivar de um exemplo histórico aprovado (e.g., a mudança do dia de culto corporativo ao Senhor do
sétimo para o primeiro dia)‖ (Brian M. Schwertley, The Regulative Principle of Worship and Christmas
[Southfield, MI: Reformed Witness, 1996], 4).
humana. Quando um regulativista puritano ou reformado encontra uma prática de culto que
é aprovada por Deus, contudo não acompanhada de mandamento explícito, assume-se (com
base na analogia da Escritura) que tal prática baseia-se em alguma revelação anterior que
não foi introduzida no cânon. Por exemplo, John Owen escreve:
Por um longo período de tempo aprouve a Deus guiar a Sua igreja em muitos
aspectos de Seu culto com novas revelações ocasionais, precisamente desde que
foi feita a primeira promessa a Adão até a entrega solene da lei de Moisés; pois
embora os homens tivessem, no decorrer dos tempos, muitas revelações
estabelecidas, que eram preservadas pela tradição entre eles, como a primeira
promessa, a instituição de sacrifícios, e coisas semelhantes, Deus, entretanto, os
guiou com novas revelações ocasionais quanto às urgentes e diversas necessidades
de Seu culto, e partes dele. Agora, não sendo essas revelações registradas na
Escritura, por serem apenas para o uso do momento ou da necessidade emergente,
não temos como conhecê-las a não ser por meio daqueles a quem aprouve a Deus
revelar-se, e que, ao praticá-las acharam nEle aceitação em bom testemunho. Seja
o que for que fizeram, eles tinha a sanção especial de Deus para isso; como no
próprio caso da grande instituição de sacrifícios, que é argumento suficiente [para
provar] que foram divinamente instituídos, pois eram graciosamente aceitos.122
Os oponentes do princípio regulador argumentam que o entendimento reformado
ou puritano de ―exemplos históricos aprovados‖ é uma alegação que incorre em petição de
princípio (i.é, que pressupõe o que se quer demonstrar); ou que é um argumento de
silêncio; ou que os regulativistas são culpados de forçar a prova ajustando-a ao seu próprio
ponto de partida deficiente. Todas essas objeções são, entretanto, fáceis de serem refutadas
quando se entende a convincente inferência da Escritura e se obedece aos procedimentos
padrão de interpretação protestante.
Um dos princípios mais fundamentais da interpretação bíblica é que a Escritura
não pode contradizer a si mesma. Um outro importante princípio é que quando duas ou
mais passagens parecem contradizer uma à outra, as porções mais claras da Escritura
devem ser utilizadas para interpretar a menos clara. Se essas regras de interpretação forem
seguidas, será simples determinar que o entendimento de um exemplo histórico aprovado é
bíblico.
Observe as muitas razões por que a abordagem relativista deve ser aceita: (1) Há
na Bíblia muitas passagens que condenam, inequivocamente, fazer acréscimos à palavra da
lei de Deus (e.g., Dt. 4:2; 12:32; Pv. 30:5); (2) O homem não tem permissão para
determinar autonomamente a sua própria ética, teologia, ou culto; (3) Há também passagens
em que tanto Cristo (e.g., Mt. 15:2-9; Mc. 7:1-13) quanto Paulo (e.g., Cl. 2:20-23)
condenam as tradições humanas no culto. Essas passagens não são difíceis de entender, se
houver disposição para aceitar o que dizem. Dado o claro ensinamento da Escritura quanto
ao acréscimo de tradições humanas à ética ou ao culto, qual interpretação deve-se escolher
ao se deparar com Jesus ou com os apóstolos envolvidos num culto que não está discutido
especificamente nas Escrituras do Velho Testamento?
Ao se argumentar que Jesus, por ir à sinagoga, estava aprovando as tradições
humanas no culto, é porque se optou por uma interpretação que contradiz as claras porções
da Escritura. Ao se defender que as passagens de sola scriptura e do princípio regulador
122
John Owen, ―The Word of God the Sole Rule of Worship‖ in Works (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1967
[1644]), 13:467.
devem ser reinterpretadas à luz de textos tais como a participação de Jesus no culto da
sinagoga, ou como a mudança do culto público para o domingo, então se é culpado de usar
passagens que nem mesmo falam diretamente da questão da tradição humana no culto (que
por isso não são passagens claras) para se derrubar as passagens claras que, de fato, tratam
diretamente da questão dos acréscimos humanos. Quando os regulativistas tratam de
passagens onde Deus aceita o culto oferecido, conquanto não estejam acompanhados de
imperativos divinos, eles não estão simplesmente usando o argumento do silêncio ou
impondo um ponto de partida ou pressuposição arbitrárias ao texto. Em vez disso, mantêm-
se apoiados no claro ensinamento geral quanto ao culto e por isso inferem legitimamente
que aquilo que Deus aceita não pode ser ―doutrinas e mandamentos de homens‖.
A posição regulativista não se sustenta apenas nos procedimentos padrões da
hermenêutica bíblica, mas também numa inspirada interpretação neotestamentária de uma
prática de culto do Velho Testamento que não se acompanha de quaisquer mandamentos
divinos escritos. Gênesis 4:3-5 diz: ―Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do
fruto da terra uma oferta ao SENHOR. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu
rebanho e da gordura deste. Agradou-se o SENHOR.de Abel e de sua oferta; ao passo que
de Caim e de sua oferta não se agradou. Irou-se, pois, sobremaneira, Caim, e descaiu-lhe
o semblante‖. Nessa passagem o sacrifício de sangue de Abel foi aceito, ao passo que a
oferta de Caim, do fruto da terra e sem sangue, não foi. Observe que não há, no livro de
Gênesis, registros prévios de imperativos divinos quanto ao sacrifício de sangue. Ao se
aplicar nessa passagem a mesma interpretação não-regulativista que tem sido utilizada para
Jesus e o culto na sinagoga, poder-se-ia concluir, então, que Deus preferiu a tradição
humana de Abel, e não a de Caim. O autor da carta aos Hebreus rejeita implicitamente a
interpretação não-regulativista quando diz que ―Pela fé, Abel ofereceu a Deus mais
excelente sacrifício do que Caim‖ (Hb. 11:4). A fé bíblica pressupõe a revelação divina. Ao
longo de todo capítulo 11 de Hebreus a fé é tratada como a crença na Palavra de Deus que
resulta em obediência à Sua vontade revelada. Qualquer idéia de que a oferta de Abel
baseava-se apenas na razão, ou de que a sua aceitação, pela parte de Deus, foi arbitrária ou
baseou-se apenas no estado subjetivo do coração de Abel, deve ser rejeitada como não
bíblica. John Brown concorda:
Embora não tenhamos qualquer registro particular da instituição do sacrifício, a
teoria de que se originou de uma divina determinação expressa, é a única
plausível. A idéia de se expressar sentimentos religiosos, ou de se expiar o pecado,
pelo derramar do sangue de animais, jamais poderia ter surgido na mente do
homem. Lemos que Deus cobriu os nossos primeiros pais com pele de animais, e a
explicação mais provável dessa questão é que essas eram as peles dos animais que
Ele lhes ordenou oferecer em sacrifício. Já vimos, nas nossas ilustrações do nono
capítulo, versículo 16, que todas as alianças divinas, que todas as misericordiosas
medidas quanto ao homem caído, têm sido ratificadas pelo sacrifício. A declaração
de misericórdia contida na primeira promessa parece ter sido acompanhada da
instituição do sacrifício expiatório. E o sacrifício expiatório, quando oferecido pela
fé na revelação divina referente a ele, era aceitável a Deus, tanto como a forma
determinada de expressar a consciência de culpa e castigo, e de esperança de
misericórdia, e quanto como um ato de obediência à vontade de Deus. Ao que
parece, Caim não cria nesta revelação e não via nem sentia a necessidade do
sacrifício expiatório, e que a sua religião consistia meramente no reconhecimento
da Divindade como a autora dos benefícios que ele gozava. Abel, por sua vez, creu
na revelação. Reconhece-se prontamente como um pecador, e expressa o seu
arrependimento e a sua esperança de perdão na forma determinada por Deus. Ao
crer no que Deus disse, fez o que Ele ordenou.123
A passagem de Hebreus 11:4 oferece inquestionável prova bíblica de que o culto
aceitável não pode ser apoiado pela tradição, ou baseado na sabedoria e imaginação do
homem, mas sim na fé em Deus e em Sua infalível Palavra. O culto aceitável fundamenta-
se apenas na fé na revelação divina. Portanto, ao se considerar que Noé ofereceu animais
limpos, ou que os apóstolos guardaram o sábado no primeiro dia da semana, ou que Jesus e
Paulo leram e expuseram as Escrituras na sinagoga (tudo isso sem estar acompanhado de
explícitos imperativos divinos), não se deveria imaginar jamais que essas práticas aceitáveis
de culto se fundamentassem na tradição humana. Elas baseavam-se na fé na Palavra falada
de Deus.124
123
John Brown, Hebrews (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1963 [1862]), 493-494. 124
Uma objeção ao conceito puritano e reformado de exemplos históricos aprovados da Escritura é dizer que
ele é farisaico e católico romano. Argumenta-se que os teólogos reformados, ao assumirem que os exemplos
históricos baseiam-se numa revelação anterior que não foi registrada por escrito, estão defendendo uma forma
de sujeição e tradição oral normativa. Esta comparação com os fariseus e católicos romanos é um ataque ad
hominem [argumento com que se procura confundir o adversário, opondo-lhe seus próprios atos ou palavras,
N.E.] inteligente, contudo injustificado. Os fariseus e os católicos romanos foram e são culpados de
acrescentarem suas próprias doutrinas e mandamentos àquilo que a Bíblia ensina. Eles justificam suas adições
às Escritura advogando uma fonte de revelação divina que é independente da Bíblia. Os judeus têm o
Talmude (que na versão inglesa chega a 34 grandes volumes) e os católicos romanos têm os pais da igreja, os
concílios, os decretos e as declarações papais. Os pastores e teólogos puritanos e reformados nada
acrescentam de si mesmos à doutrina ou mandamento da Escritura. Eles não crêem em quaisquer fontes
independentes de revelação fora da Bíblia. Eles simplesmente inferem da própria Bíblia que nas poucas
ocorrências em que Deus é descrito com aceitando práticas de culto que não se acompanham de instruções
[bíblicas] explícitas, as pessoas envolvidas (tais como Abel, Gn. 4:3, ou Noé, Gn. 8:20) fundamentaram as
suas práticas numa prévia comunicação de Deus. Conforme observado acima, a interpretação reformada é
uma convincente inferência da Escritura. Os exemplos históricos aprovados procedem apenas do texto da
Escritura, e não de algum tipo independente de tradição oral farisaica ou romana. Uma coisa é inferir uma
comunicação tendo por base um texto particular da Escritura, e outra bem diferente é postular que Deus falou
todo o Talmude a Moisés no monte Sinai. Os oponentes do princípio regulador estão comparando maçãs com
laranjas, e eles sabem disso. Quem é que tem mais coisa em comum com os fariseus ou romanistas? Aquele
que acrescenta as suas próprias tradições humanas àquilo que Deus autorizou? Ou aquele que se recusa a fazer
acréscimos à Palavra de Deus?
Resumo e Conclusões
Este estudo do sola scriptura e da sua relação com o princípio regulador do culto
comprovou uma série de importantes afirmativas. Primeiro, demonstrou que as regras do
culto formulados pelos reformadores calvinistas e registrada em todos os credos e
confissões reformadas é totalmente bíblica. O culto reformado deveria ser adotado por
todos os que se professam cristãos. Aqueles que zombam do princípio regulador, e instam
aos crentes reformados que abandonem esse sustentáculo crucial da Reforma não deveriam
receber a menor atenção (Na verdade eles deveriam ser intelectualmente honestos e se
filiarem à igreja episcopal).
Em segundo lugar, a análise dos pontos de vista não-reformados do culto trouxe à
tona vários problemas insolúveis de ordem teológica, exegética, lógica e ética que são
intrínsecos a essas teorias:
1. A idéia de que ao homem é permitido fazer acréscimos no culto autorizado por
Deus em Sua Palavra contradiz o expresso ensinamento da Escritura. Simplesmente não há
qualquer maneira pela qual os homens possam burlar o claro sentido das passagens de sola
scriptura sem que alterem o seu contexto e sentido histórico óbvio. Jeová diz: ―Nada
acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela‖. Nada há de complexo ou
difícil ou esotérico quanto às passagens regulativistas. Uma acusação que sempre se faz diz
que o princípio regulador é em si mesmo um acréscimo humano à Escritura. Isso não tem o
menor fundamento. Deus diz-nos: ―nada acrescentareis... nem diminuireis‖, e os
regulativistas se recusam a fazer acréscimos ou subtrações. O princípio regulador é
simplesmente uma reafirmação teológica do evidente ensinamento da Palavra de Deus. Aos
que consideram o princípio regulador como um acréscimo não-bíblico, perguntamos: Como
pode ser errado obedecer rigorosamente ao que a Bíblia ensina? Quando foi que a Igreja se
prejudicou por seguir ao que a Bíblia ensina, sem se desviar para a direita ou para a
esquerda? Acaso estão errados os regulativistas ao se recusarem a obedecer às tradições dos
homens que não possuem qualquer ratificação da Palavra de Deus? Pode um membro ser
disciplinado por recusar-se a participar de ritual inventado por homens? Se a resposta a esta
questão for ―sim‖, então que se explique como é possível disciplinar um cristão que nada
violou da Escritura. Os católicos e as lideranças eclesiásticas têm uma resposta à essa
questão. Nós, entretanto, não damos ouvidos às palavras do Anticristo.
2. A idéia de que aos homens é permitido acrescentar suas próprias inovações ao
culto autorizado é também uma negação da suficiência e perfeição da Palavra de Deus. As
ordenanças que Deus deu à igreja são suficientes ou são inadequadas? Se se acredita que
não são suficientes, então é favor identificar o que está faltando. Se se acredita que são
suficientes, então por que acrescentar ordenanças desnecessárias? Faça-se também o favor
de explicar como é que as doutrinas e mandamentos de homens podem aperfeiçoar a
Palavra de Deus e conduzir à edificação? Não advertiu o apóstolo Paulo à igreja que as
ordenanças humanas não são sabedoria verdadeira e nem santificam? (Cl. 3:23). O que
haveria de pensar um grande pintor como Claude Monet (1840-1926) se dessem tintas a
pessoas totalmente incapacitadas ou inexperientes na área artística e lhes permitissem
alterar e ―aperfeiçoar‖ as suas pinturas como achassem melhor? Tais atos seriam o cúmulo
da estupidez e arrogância. Entretanto, os homens fazem muito pior quando fazem
acréscimos à santa, suficiente e perfeita Escritura de Deus.
3. As teorias não-reformadas não consideram apropriadamente a natureza e o
caráter de Deus (e.g., Sua infinita santidade, majestade, justiça, etc.) e a natureza
pecaminosa do homem. A idéia de que após a queda os homens (mesmo regenerados)
possam oferecer, conforme seus próprios termos e regras, um culto aceitável ao Deus trino
é contrária à Escritura e ao senso comum santificado. James Begg escreve:
Todo verdadeiro cristão há de concordar que o homem pecador não tem
absolutamente qualquer direito de vir à presença de Deus. A amizade outrora
existente no Éden foi espedaçada pela queda. Foi Deus que ―o lançou fora‖, e
somente Deus poderá dizer se e em que condições, será permitido ou não ao
homem aproximar-se novamente do Seu trono. É clara presunção da parte de
criaturas caídas determinarem a Deus que não haverá nenhum culto ou que forma
ele terá. Ao adentrar-se nas cortes dos reis terrenos, mesmo naquelas onde se
concede tal direito, todo o seu protocolo deve ser obedecido à risca; e quão mais
importante é entrar, por graciosa permissão, na presença imediata do Rei dos reis e
Senhor dos senhores.125
O culto de Jeová deve ser sincero, através de Jesus Cristo, e precisa ser
divinamente designado. A razão humana decaída jamais deveria ter um papel criativo
independente ao fixar doutrina, ética, ou ordenanças de culto. Ela tem que depender
totalmente da Escritura.
4. É impossível aos homens impor inovações humanas no culto público sem que se
violente a liberdade cristã de seus congregados. Todos os rituais e cerimônias no culto
público que são fabricados pelos homens envolvem invariavelmente algum tipo de
imposição humana. Deus ordena que os crentes participem de um culto público sabático.
Quando bispos, pastores ou assembléias introduzem no ato de culto público rituais ou
cerimônias criados pelos homens, eles forçam seus congregados: (a) a participarem em
culto indevido não-autorizado ou, (b) a não se apartarem de corrupções bíblicas. A idéia
não-regulativista de que as tradições humanas são permissíveis no culto público (do ponto
de vista da liberdade cristã) só pode ser defendida de duas formas, que são antibíblicas e
arbitrárias.
Um desses métodos de defesa argumenta que Deus deu à igreja um poder
independente da Escritura. Noutras palavras, bispos, pastores e Conselhos não apenas
podem acrescentar as suas próprias invenções ao culto público, como também têm
autoridade para obrigar os membros da igreja (sob a ameaça de disciplina e excomunhão, se
necessário) a se submeterem às novas ordenanças humanas. Essas posições não são nada
menos que papismo e monarquismo eclesiástico da pior espécie (Este autor desconhece que
haja algum escritor anti-regulativista ―reformado‖ ou ―presbiteriano‖ que tenha usado
argumento romanista tão gritante).
A defesa mais comum é que os ritos e cerimônias humanamente inventados estão
dentro da esfera da adiaforia, ou questões indiferentes. O problema desta perspectiva é que
ela se apóia numa falsa e arbitrária definição de adiaforia. O que são questões indiferentes?
Para alguma coisa ser indiferente é preciso: (1) que não seja determinada nem exigida pela
Escritura; (2) que seja verdadeiramente circunstancial ao culto, e não um elemento ou parte
essencial dele; (3) que seja opcional ou voluntário; (4) que não seja algo necessário (i.é, que
pode ser eliminado a qualquer momento, diferentemente de oração, pregação, Ceia do
Senhor, etc.). Quando uma congregação adiciona qualquer tradição humana ao ato de culto
público, tal prática não pode ser honestamente considerada como adiafórica porque:
125
James Begg, Anarchy in Worship, 4-5.
(1) como parte do ato de culto ela não é mais opcional ou voluntária, a menos que alguém
se retire ou se recuse a participar; (2) é colocada lado a lado, e recebendo o mesmo
tratamento que, os elementos ordenados; (3) é parte essencial da adoração ou (4) como
parte do culto público ela é explicita ou implicitamente imposta obrigatoriamente. Embora
as igrejas possam se referir às tradições humanas como adiafóricas, para justificar-lhes o
uso no culto público, elas, na prática, nunca agem como se tais adições fossem indiferentes.
Quando as palavras são definidas de modo arbitrário, pode-se significar com elas o que
bem se quiser. O argumento da adiaforia é uma desculpa fundamentada numa mentira.126
Terceiro, a análise das objeções mais comuns ao princípio regulador mostrou que
elas não se fundamentam numa cuidadosa exegese da Escritura, mas em mal-entendidos,
distorções e pura especulação. Alguns se baseiam no entendimento distorcido das
passagens de sola scriptura e adiaforia. Outros têm por base uma falsa definição do
princípio regulador. Outros, igualmente, dependem de um falso entendimento sobre as
circunstâncias de culto. A maioria dos argumentos, entretanto, alicerçam-se em pura
especulação. Criam-se teorias com material extra-bíblico (com a Mishnah, por exemplo) e
então forçam-nas sobre a passagem da Escritura em questão.
A doutrina do sola scriptura e do princípio regulador do culto precisa ser ensinada,
enfatizada, e rigorosamente defendida nesses dias de declínio, ignorância e apatia. A luta
heróica de Calvino, Knox, Melville, os puritanos ingleses e os pactuantes escoceses pela
reforma do culto precisa continuar. Nunca será demais enfatizar este ponto nos dias de hoje,
quando o culto bíblico tem sido atacado por todos os lados; quando os maiores oponentes
do culto reformado procedem do campo supostamente reformado e teonômico. Tais
pessoas, desafiando as Escrituras, procuram ―melhorar‖ o culto a Deus através de suas
próprias invenções; procuram anular a liberdade que Cristo nos concedeu das doutrinas,
mandamentos e tradições dos homens; zombam arrogantemente das conquistas de nossos
pais espirituais. Esses assim chamados mestres da lei oferecem-nos autonomia humana e a
126
A posição não-regulativista tem outros problemas sérios que precisam ser abordados. Um problema muito
sério, que todo cristão deveria observar pela Escritura e pela história da igreja, é que os acréscimos humanos à
ética, ao culto, à doutrina ou governo eclesiásticos, como estabelecidos na Bíblia, descartam, invariavelmente,
aquilo que Deus sancionou em favor das tradições criadas pelos homens. O que ocorre é que os homens
simplesmente não se contentam em limitar cuidadosamente as suas próprias tradições. As inovações são
acrescentadas aqui e acolá e essas novas adições tornam-se, por fim, amadas e ―indispensáveis‖ aos
governantes da igreja e às suas congregações. Umas poucas tradições criadas pelos homens podem, à primeira
vista, não parecer um problema, mas deve-se ter em mente que a igreja é uma instituição muito antiga. Ao
longo do tempo as inovações criadas pelos homens acumulam-se até que a doutrina e o culto da igreja ficam
radicalmente modificados. No decorrer das muitas gerações tantas doutrinas, mandamentos e inovações de
culto criadas pelo homem são acrescentados à igreja, que o puro culto evangélico, e mesmo o próprio
evangelho, fica obscurecido e até mesmo perdido. Isso ocorreu em diferentes graus ao judaísmo, ao
catolicismo romano, à ortodoxia oriental, ao evangelicalismo e mesmo a muitas igrejas reformadas. As
pessoas que rejeitam o princípio regulador não possuem qualquer sólido fator de limitação que restrinja os
seus próprios acréscimos. Quantas inovações são aceitáveis? Quando deveremos parar de acrescentar mais?
Os pastores que atacam o princípio regulador dizem que não há motivos de preocupação, ―o Conselho
manterá os acréscimos sob controle‖. A verdade, entretanto, é que sem o princípio regulador é quase
impossível se livrar das tradições humanas. Uma vez que a tradição seja amada e aceita pela congregação
(e.g., o Natal), ai do pastor que tentar livrar a igreja desses elementos não-ordenados! O único método seguro
pelo qual pode-se depender para evitar-se as corrupções criadas pelo homem é demarcar o limite do conteúdo
e cerimônia do culto onde Deus fixou. Permitir que homens pecadores façam e refaçam essas fronteiras, como
lhes aprouver, tem sido um desastre total para a igreja. A repreensão de Jesus aos fariseus tem uma aplicação
muito ampla: ―assim, invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição‖ (Mt. 15:6).
tirania dos oficiais da igreja, tudo em nome da liberdade cristã. Qual é a ―grande‖ prova que
se nos oferece para que abandonemos os nossos credos e confissões em favor das tradições
humanas acrescentadas ao culto? São basicamente especulações estribadas na Mishnah. O
amor pelas tradições humanas tem feito muitos mestres e doutores, normalmente
competentes, recorrerem a acrobacias exegéticas e a lucubrações distorcidas da pior
espécie. A nossa melhor defesa contra tais argumentos romanizantes é uma ofensiva
vigorosa. A grande verdade do sola scriptura, ensinada e acompanhada pelo Espírito de
Deus, invadirá a cortina de fumaça da confusão e da ignorância e destroçará as colunas do
papismo e da ditadura de uma liderança eclesiástica. Para garantir este grandioso final,
trabalhemos e oremos com fervor.
Apêndice A
João Calvino e o princípio regulador
João Calvino (1509-1564) foi o maior teólogo e expositor bíblico da Reforma
Protestante. Através da academia teológica em Genebra e de seus muitos escritos, Calvino
fez mais do que qualquer um para moldar a doutrina e o culto das igrejas presbiterianas,
reformadas e puritanas. O ensinamento de Calvino quanto ao culto reflete-se claramente em
todos os diversos credos e confissões reformados: A Confissão Francesa (1559), a
Confissão Escocesa (1560), a Confissão Belga (1561), o Catecismo de Heidelberg (1536), a
Segunda Confissão Helvética (1566), e os Padrões de Westminster (1643-1648).
É importante que os crentes que se autodenominam de reformados ou
presbiterianos tenham, por várias razões, um certo conhecimento da perspectiva de Calvino
sobre o culto (em particular do princípio regulador). Em primeiro lugar, porque vivemos
dias de sério declínio no que concerne ao culto em muitas das denominações que são
consideradas como reformadas. Muitos pastores, mestres e presbíteros das igrejas
―reformadas‖ rejeitam, tanto diretamente quanto por subterfúgios, o culto reformado em
favor de uma concepção luterana ou episcopal. Segundo, por conta dessa decadência e
ignorância tem havido um reducionismo do que significa ser reformado. Tanto para
Calvino quanto para Knox, reformado significava mais do que uma soteriologia bíblica,
significando também uma concepção bíblica de adoração (i.é, o princípio regulador). Hoje
o termo reformado é usado para alguém que aceita meramente os cinco pontos do
calvinismo. Assim, temos hoje pastores e organizações que se vangloriam de ser
―verdadeiramente reformados‖ ou ―neo-puritanos‖ que, há alguns séculos, atrás teriam sido
considerados anti-puritanos e não-reformados. Terceiro, hoje muitos têm a opinião de que a
pureza do culto não deveria ser uma das maiores preocupações da igreja. As pessoas que se
preocupam com tais questões são freqüentemente desdenhadas. Contudo, Calvino (no que
respeita à religião cristã) considerava que o verdadeiro culto a Deus não era superado por
nada em ordem de importância. Em ―A Necessidade de Reformar a Igreja‖ ele escreve: ―Se
for questionado, então, quais são os principais motivos pelos quais a religião cristã tem uma
duradoura existência entre nós, saber-se-á que os dois a seguir não apenas ocupam o lugar
principal, mas compreendem neles todas as outras partes, e conseqüentemente toda a
substância do cristianismo, a saber, o conhecimento, primeiro, do modo pelo qual Deus é
devidamente adorado; e, segundo, de que fonte deve-se obter a salvação. Quando essas
duas são mantidas fora de perspectiva, embora possamos nos gloriar no nome de cristão, as
nossas profissões serão vazias e vãs‖.127
Segue-se uma série de citações de João Calvino que revelam a sua doutrina sobre o
culto. Calvino foi o defensor e principal expositor do que viria a se chamar de princípio
regulador do culto.
Levítico 10:1
Nadabe e Abiú, filhos de Arão. Registra-se aqui uma notável circunstância, através
da qual se evidencia quão grandemente Deus abomina todo pecado que corrompe a pureza
da religião. Era aparentemente uma transgressão leve usar fogo estranho para queimar
incenso; por outro lado, a atitude impensada deles pareceria inescusável, pois Nadabe e
127
John Calvin, ―The Necessity of Reforming the Church‖ in Selected Works: Tracts and Letters, Henry
Beveridge, ed. (Grand Rapids: Baker, 1983 [1844]), 1:126.
Abiú certamente não desejaram insubordinada e intencionalmente contaminar as coisas
sagradas, mas, como é na maioria das vezes em questão de novidade, ao se aplicarem tão
avidamente a elas, a precipitação deles os induziu ao erro. A severidade da punição,
entretanto, não agradaria àqueles arrogantes que não hesitam em criticar desdenhosamente
dos juízos de Deus; mas se ponderarmos em quão sagrado é o culto a Deus, a enormidade
da punição não nos escandalizará de modo alguma. Além disso, era necessário que a
religião deles fosse aprovada bem no seu começo, porque se Deus tivesse suportado a
transgressão dos filhos de Aarão sem os ter punido, eles haveriam de negligenciar toda a
Lei posteriormente. Esta foi, portanto, a razão de tão grande severidade: os sacerdotes
deveriam zelar fervorosamente contra toda profanação. O crime deles foi especificado, a
saber, que eles ofereceram incenso numa forma diferente da qual Deus havia designado, e
conseqüentemente, embora tenham errado por ignorância, foram ainda assim declarados
culpados pelos mandamentos de Deus, por terem se aplicado negligentemente àquilo que
era digno da maior atenção. O ―fogo estranho‖ distinguia-se do fogo sagrado que estava
sempre queimando sobre o altar, não miraculosamente, como o querem alguns, mas pela
constante vigilância dos sacerdotes. Agora, Deus havia proibido que se utilizasse qualquer
outro fogo nas ordenanças, para excluir todos os rituais estranhos, e para mostrar o Seu
ódio por tudo que poderia ser proveniente de outra parte qualquer. Aprendamos, portanto, a
dar ouvidos aos mandamentos de Deus para não corrompermos o Seu culto com qualquer
invenção estranha. Mas se Ele vingou severamente esse erro, quão horrível condenação
aguarda os papistas, que não se envergonham de defender obstinadamente tantas
corrupções grotescas?128
Levítico 22:32
Não profanareis. Ao proibir a profanação de Seu nome, Ele confirma com outras
palavras o sentimento anterior, preservando, por elas, o Seu culto de todo tipo de
corrupção; para que seja conservado em pureza e integridade. A cláusula que vem
imediatamente aposta tem o mesmo objetivo, porque os que não se desviam do culto
legítimo e sincero santificam o nome de Deus. Que se observe isso cuidadosamente, sejam
quantas forem as invenções dos homens, tantas serão as profanações do nome de Deus; pois
embora os supersticiosos possam, pela própria imaginação agradar a si mesmos, toda a
religião deles está ainda assim cheia de sacrilégios, pelo que Deus se queixa que a Sua
santidade é profanada.129
Números 15:39
E, primeiro que tudo, ao contrastar o ―coração‖ e os ―olhos‖ dos homens com a
Sua Lei, Ele mostra que o Seu povo deverá estar satisfeito com o preceito que Ele
prescreve, sem misturar com nada da imaginação deles; e, portanto, condena abertamente a
futilidade de qualquer coisa que o homem invente para si mesmo, e conquanto lhes pareça
agradável qualquer plano humano, Ele continua a repudiá-lo e a condená-lo. E isso está
mais claramente explicitado na última palavra, quando Ele diz que os homens andam
―adulterando‖ sempre que são governados por seus próprios conselhos. Tal declaração é
digna da nossa especial atenção, porque enquanto os que cultuam Deus segundo sua própria
vontade têm grande auto-satisfação, e enquanto consideram seu próprio zelo como muito
128
John Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses (Grand Rapids: Baker, 1981), 3:431-432. 129
Ibid., 1:344.
bom e legítimo, eles nada mais fazem que se contaminar pelo adultério espiritual. Pois
aquilo que o mundo considera ser a mais santa devoção, Deus com a Sua própria boca
condena como fornicação. Pela palavra ―olhos‖ Ele quer significar inquestionavelmente a
capacidade de discernimento do homem.130
Deuteronômio 4:1
Agora, pois, ó Israel, ouve. Ele requer que o povo se disponha a aprender, para que
aprendam a servir a Deus, pois o princípio de uma vida boa e justa está em conhecer o que
é agradável a Deus. A partir daí, então, Moisés começa a ordenar-lhes que procurem
atentamente a orientação da Lei, e os admoesta a provarem pela inteireza das suas vida que
eles lograram apropriadamente da Lei. A promessa aqui introduzida, apenas os convida à
obediência irrestrita pela esperança da promessa. O ponto central é que eles nada poderiam
acrescentar nem diminuir da pura doutrina da Lei, o que não será possível a menos que o
homem renuncie primeiramente aos seus sentimentos particulares, e feche os ouvidos a
todas as imaginações dos outros. Ninguém, pois, será tido como (verdadeiro) discípulo da
Lei, a não ser os que dela obtêm a sua sabedoria. É como se Deus os ordenasse a estarem
contentes com os Seus preceitos, pois não há outro modo de guardarem a Lei, exceto
entregando-se totalmente ao ensinamento dela. Segue-se daí que só obedecem a Deus os
que dependem unicamente da Sua autoridade, e só honram legitimamente à Lei os que não
aceitam nada que se oponha ao seu sentido natural. É uma passagem notável, condenando
abertamente tudo aquilo que a ingenuidade humana possa inventar para o culto a Deus.131
Deuteronômio 12:32
Tudo o que eu te ordeno. Nessa breve cláusula ele [Moisés] ensina que nenhum
outro ato de culto a Deus é legítimo, exceto o que tem o testemunho da Sua aprovação em
Sua Palavra, e que a obediência é, por assim dizer, a mãe de toda piedade; [é] como se ele
tivesse dito que todos os modos de devoção, não dirigidos por esse preceito, são absurdos e
contaminados pela superstição. Daí deduzimos que a guarda do primeiro mandamento
exige o conhecimento do verdadeiro Deus, derivado da Sua Palavra, e associado à fé. Ao
proibir o acréscimo ou diminuição de qualquer coisa, ele claramente condena como
ilegítimo tudo o que os homens inventam pela sua própria imaginação.132
2Samuel 6:6-12
Ademais, devemos por isso concluir que nenhuma de nossas devoções serão
aceitáveis a Deus a menos que estejam conformadas à Sua vontade. Tal preceito lança por
terra todas as invenções humanas do assim chamado culto a Deus do papado, que é tão
cheio de pompa e tolice. Diante de Deus tudo isso nada mais é que puro lixo e verdadeira
abominação. Tenhamos em mente, portanto, essa inequívoca regra: querer adorar a Deus
segundo as nossas próprias idéias é simplesmente abuso e corrupção. Antes, pelo contrário,
precisamos ter o testemunho da Sua vontade para seguirmos e submetermo-nos àquilo que
nos tem ordenado. É assim que a adoração que prestamos a Deus será aprovada.133
130
Ibid., 1:365. 131
Ibid., 1:344-345. 132
Ibid., 1:353. 133
John Calvin, Sermons on 2 Samuel (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1992), 246.
Isaías 29:13
No segundo ponto, Deus, ao ser adorado por meio de invenções humanas, condena
esse ―temor‖ como supersticioso, embora os homens se esforcem em disfarçá-lo de
pretensa religião, devoção, ou reverência plausíveis. Ele aponta a razão, que é,
―mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu‖. Eu considero que melummadah
tem um sentido de passividade, pois Ele quer dizer que fazer dos ―mandamentos de
homens‖, e não da Palavra de Deus, a regra para adorá-lO, é uma subversão de ordem. A
vontade do nosso Deus, entretanto, é que o ―temor‖ e a reverência com que O adoramos
devam ser regulados pela Sua Palavra, e Ele não exige mais que uma mera obediência, pela
qual devamos nos conformar, e todas as nossas atitudes, à Palavra, sem nos desviarmos
para direita ou para a esquerda.
Isso prova suficientemente que todos os que aprendem, por meio das ―invenções
dos homens‖, como deveriam adorar a Deus, não são apenas néscios incontestes, mas
desgastam-se em destrutivo labor, pois não fazem mais que provocar a ira de Deus. Ele,
portanto, não poderia demonstrar mais claramente quão grande abominação sente pelo falso
culto, do que pela tremenda severidade dessa punição.134
Jeremias 7:21-24
Ele acrescenta adiante que ―andaram nos seus próprios conselhos‖, e também, ―na
dureza do seu coração maligno‖. Essa comparação agrava o pecado deles — os judeus
preferiram seguir os seus próprios caprichos a obedecerem a Deus e aos Seus
mandamentos. Se algo tivesse sido colocado diante deles que os houvesse enganado e
obscurecido a autoridade da lei, ainda haveria uma desculpa, mas como nada havia que os
impedisse de obedecer ao mandamento de Deus, exceto o seguirem à sua tola imaginação,
eles ficaram totalmente inescusáveis. Pois que desculpa poderiam inventar? Que quiseram
ser mais sábios que Deus! Que grande loucura foi essa, e quão diabólica? Mas o profeta não
lhes deixa escapatória a não ser essa vã escusa, o que duplicou-lhes a culpa. Não há dúvida
que pensaram ter seus corações bem ajustados ao propósito, mas ele aqui não lhes permite
que julguem, antes os condena clara e merecidamente.
Devemos prestar especial atenção a essa passagem, pois a maioria dos homens de
hoje opõem as suas próprias fantasias à Palavra de Deus. Na verdade os papistas pretextam
a antiguidade; dizem que foram ensinados por seus antecessores, e ao mesmo tempo
patrocinam os concílios e as ordenanças dos pais [da igreja], contudo não há um deles
sequer que não seja apegado às suas próprias invenções, e que não tome a liberdade, ou
melhor, a desenfreada libertinagem, de rejeitar o que bem lhe apraz. Além disso, se se levar
em conta a origem de todo o culto papal, ficará evidente que os primeiros a criarem tantas
superstições estranhas foram movidos somente pela audácia e presunção, para que
pudessem calcar aos pés a Palavra de Deus. Por isso é que tudo se tornou corrupto, pois
introduziram todas as estranhas fantasias de suas mentes. E vemos que os papistas hoje
estão tão perversamente arraigados nos próprios erros que preferem a si mesmos, e às suas
quinquilharias, a Deus. A situação é a mesma com todos os heréticos. Então, que deve ser
feito? Como já disse, deve-se defender a obediência como a base de toda verdadeira
religião. Se, então, por outro lado, desejarmos apresentar a Deus o nosso culto por Ele
aprovado, aprendamos a lançar fora tudo que for de nós mesmos, de modo que a Sua
134
John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah (Grand Rapids: Baker, 1981), 1:397-398.
autoridade prevaleça acima de todas as nossas razões.135
Jeremias 7:31
O que nunca ordenei, nem me passou pela mente. Esse motivo deveria receber
cuidadosa atenção, porque nele Deus corta do homem toda a possibilidade de inventar
subterfúgios, pois, com uma única frase, Ele condena tudo aquilo que os judeus inventaram:
―O que nunca ordenei‖. Portanto, não é necessário, além desse, qualquer argumento para se
condenar as superstições — que elas não são ordenadas por Deus — pois quando os
homens dão a si mesmos o direito de adorarem a Deus segundo as suas próprias concepções
fantasiosas, e não obedecem aos Seus mandamentos, eles pervertem a verdadeira religião. E
se esse princípio fosse adotado pelos papistas, todos aqueles fantasiosos modos de culto, a
que absurdamente se aplicam, ruiriam por terra. É verdadeiramente algo horrível que os
papistas procurarem se desincumbir de seus deveres para com Deus exercitando as suas
próprias superstições. Há um enorme número delas, como bem se sabe, e como claramente
se manifestam. Se admitissem esse princípio, que não podemos adorar a Deus corretamente
exceto obedecendo a Sua Palavra, eles seriam salvos desse seu tão grande abismo de erros.
Então, as palavras do profeta são de grande importância, quando ele diz que Deus não
ordenou tal coisa, nem jamais passou pela Sua mente. É como se tivesse dito que os
homens se arrogam muita sabedoria quando inventam o que Ele jamais exigiu, ou melhor, o
que Ele jamais soube.136
Jeremias 19:4-5
Deus, primeiramente, queixa-se que fora esquecido por eles, porque modificaram
o culto que havia sido prescrito em Sua Lei. E isso é o que deve ser cuidadosamente
considerado, pois nenhum deles estaria disposto a confessar aquilo do que Jeremias acusava
a todos; eles haveriam dito: ―Não temos nos esquecido de Deus, porque somos os filhos de
Abraão. Mas o que queremos fazer é incrementar o Seu culto, e por que isso nos haveria de
ser censurado se não estamos satisfeitos com a nossa própria forma simples de adorar a
Deus e acrescentamos várias outras formas? E adoramos a Deus não apenas no templo, mas
também nesse lugar. Além disso, não poupamos nossos próprios filhos‖. Mas Deus, com
uma única expressão, mostra que essas eram frívolas evasivas, pois Ele só reconhece aquilo
que é recebido em obediência ao que Ele determina e ordena. Saibamos que Deus é
esquecido tão-logo os homens se desviem da Sua pura Palavra, e que apostatam todos os
que se desviam para cá e para lá, e não seguem ao que Deus aprova...
Os judeus devem ter objetado, tal qual os papistas fazem hoje, que os seus modos
de adoração não foram criados em seus dias, mas que os derivaram de seus ancestrais.
Deus, porém, considerava como nada os reis e patriarcas que há muito tempo atrás se
apartaram degeneradamente da verdadeira e genuína religião. Deve-se observar aqui que o
conhecimento real está associado à verdade: pois os que primeiramente inventaram novas
formas de culto, seguiram sem dúvida às suas próprias e tolas imaginações; como quando
se pergunta hoje aos papistas por que se fatigam tanto com suas superstições, o escudo
deles sempre é a boa intenção: ―Oh, achamos que isso seja agradável a Deus‖. Deus,
portanto, repudia as invenções deles como totalmente inúteis, pois nada possuem de sólido
135
John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations (Grand Rapids: Baker, 1981),
1:397-398. (itálicos no original). 136
Ibid., 1:413-414.
ou permanente.137
Mateus 15:1
Fariseus e escribas. Como o erro aqui corrigido não é muito comum, mas
altamente perigoso, a passagem merece nossa particular atenção. Vemos a extraordinária
insolência que os homens demonstram quanto à forma e à maneira de adorar a Deus; pois
estão perpetuamente criando novos modos de culto, e quando alguém quer ser considerado
mais sábio que os outros, demonstra a sua capacidade inventiva nesse assunto. Não falo de
estranhos, mas dos próprios domésticos da Igreja, daqueles a quem Deus conferiu a honra
particular de declararem com seus lábios a lei da piedade. Deus declarou o modo pelo qual
deseja que devamos adorá-Lo, e incluiu na Sua lei a perfeição de santidade. Contudo, um
grande número de homens, como se obedecer a Deus e guardar o que Ele ordena fosse uma
questão leve e trivial, colecionam para si mesmos muitos acréscimos advindos de todo
lugar. Os que ocupam posição de autoridade apresentam as suas invenções com esse
propósito, como se possuíssem alguma coisa mais perfeita que a Palavra do Senhor. A isso,
segue-se o lento crescimento da tirania, pois ao imputarem as si mesmos o direto de exarar
mandamentos, eles exigem rígida aderência às suas leis e não permitem que seja posto de
lado um til sequer, seja por desobediência ou por esquecimento. O mundo não suporta a
legítima autoridade, e rebela-se mais violentamente contra o jugo do Senhor, não obstante é
facilmente e de boa-vontade que se embaraça nas ciladas das tradições inúteis; ou melhor,
tal escravidão parecer ser, no caso de muitos, um objeto de desejo, ao passo que o culto a
Deus, do qual o primeiro e supremo princípio é a obediência, é corrompido. Prefere-se a
autoridade de homens aos mandamentos de Deus. As pessoas comuns são forçadas, com
severidade e, portanto, tiranicamente, a darem total atenção a ninharias. Essa passagem nos
ensina, primeiro, que todos os modos de culto inventados pelos homens não agradam a
Deus, porque Ele determina que Ele apenas é que deve ser ouvido, para nos treinar e
instruir na verdadeira piedade conforme o Seu agrado; segundo, os que não estão satisfeitos
com a única lei de Deus, e se exaurem por obedecer às tradições dos homens, são
inutilmente utilizados; terceiro, comete-se um ultrage contra Deus, quando as invenções
dos homens são tão altamente exaltadas que a majestade da Sua glória fica quase rebaixada,
ou pelo menos a reverência a ela, diminuída.138
Mateus 15:9
E em vão me adoram. As palavras do profeta ocorrem, portanto, literalmente: ―seu
temor para comigo consiste só em mandamentos de homens‖. Mas Cristo deu, fiel e
exatamente, o sentido de em vão é Deus adorado, quando a doutrina é substituída pela
vontade do homem. Por essas palavras, todos os tipos de pretensa religiosidade, como
Paulo a denomina (Cl. 2:23 - NVI) são claramente condenadas. Pois, conforme dissemos,
como é Deus que determina que não será adorado de nenhum outro modo exceto conforme
à Sua própria determinação, Ele não pode tolerar a invenção de outros novos modos de
culto. Tão logo os homens permitam a si mesmos vaguearem para além dos limites da
Palavra de Deus, quanto mais labor e ansiedade demonstrem a adorá-Lo, tanto mais pesada
é a condenação que trazem sobre si mesmos, porque, por tais invenções, é que a religião é
137
Ibid., 2:438-439. 138
John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists: Matthew, Mark, and Luke (Grand Rapids:
Baker, 1981), 2:245-246.
desonrada.
Ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Nessas palavras há o que se
chama de aposição, pois Cristo lhes declara que erra aquele que apresenta, em lugar da
doutrina, os preceitos de homens, ou que procuram achar neles a regra para adorar a Deus.
Que se considere, portanto, como princípio estabelecido, visto que Deus tem maior estima
pela obediência do que pelos sacrifícios (1Sm. 15:22, 23), que todos os tipos de culto
inventados pelos homens não têm, a Seus olhos, a menor valia; mais ainda, que, assim
como declara o profeta, eles são malditos e detestáveis.139
Colossenses 2:22-23
A síntese é — que o culto a Deus, a verdadeira piedade, e a santidade dos cristãos
não consistem de bebida, comida e vestes, que são coisas transitórias, passíveis de
corrupção e perecem pelo abuso. Porque o abuso se aplica apropriadamente às coisas que se
destroem pelo seu uso. É por isso que as ordenanças não têm qualquer valor para as coisas
que tendem a suscitar inquietação de consciência. Mas no papado dificilmente encontrar-se-
ia qualquer [outro tipo] de santidade, exceto a que consiste das pequenas observâncias de
coisas perecíveis.
Uma segunda contestação é acrescida — que a origem delas [das ordenanças] está
no homem, e não têm Deus como seu Autor; e com esse avassalador argumento ele derruba
e aniquila todas as tradições dos homens. Por quê? Este é o raciocínio de Paulo: ―Aqueles
que trazem as consciências em cativeiro agravam a Cristo e esvaziam a Sua morte. Pois o
que é de humana invenção não compromete a consciência...‖
Observe, entretanto, quais são as cores que, segundo Paulo, compõem essa
aparência de sabedoria. Ele menciona três: culto de si mesmo, falsa humildade, e rigor
ascético. Entre os gregos a palavra superstição recebe o nome de ethelothreskeia — termo
que Paulo usa aqui. Ele, entretanto, está de olho na etimologia do termo, pois
ethelothreskeia denota literalmente um ato de culto voluntário, que os homens
determinaram por si mesmos por sua própria opção sem a autorização de Deus. As
tradições humanas, portanto, nos são agradáveis nesse aspecto, que elas são conforme o
nosso entendimento, pois qualquer um encontrará na sua própria mente os seus primeiros
esboços... Deveria ser ponto pacífico entre todos os piedosos que o culto a Deus não
deveria ser avaliado segundo a nossa visão, e que, conseqüentemente, nenhum tipo de culto
seria legítimo, tendo por base apenas o que nos é agradável. Também isso deveria ser um
ponto pacífico comum — que devemos nos render humildemente a Deus, entregando-nos
simplesmente à obediência de Seus mandamentos, sem nos estribarmos em nosso próprio
entendimento, etc. (Pv. 3:5)...
Assim, nos dias de hoje, os papistas não têm falta de pretextos especiosos, através
dos quais estabeleçam as suas próprias leis, embora sejam alguns delas ímpias e tirânicas, e
outras tolas e levianas. Se, todavia, lhes concedermos tudo, ainda resta, não obstante, esta
contestação de Paulo, que é em si mesma mais que suficiente para dispersar todas as suas
nuvens de fumaça.140
As Institutas da Religião Cristã
139
Ibid., 2:253-254. 140
John Calvin, Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians and
Thessalonians (Grand Rapids: Baker, 1981), 201-203.
Imagens e figuras são contrárias à Escritura.
Agora devemos ter mente que a Escritura descreve repetidamente as superstições
com essa linguagem: elas são ―obras de mãos de homens‖, sem a autoridade de Deus (Is.
2:8; 31:7; 37:19; Os. 14:3; Mq. 5:13); isso é para estabelecer o fato de que todos os atos de
culto que os homens inventam por conta própria são detestáveis.141
A Verdadeira religião nos une a Deus como o único e uno Deus.
Mas a piedade, para permanecer num firme pedestal, mantém-se dentro de seus
próprios limites. De modo semelhante, a mim me parece que a superstição é assim
denominada porque, não satisfeita com o modo e a ordem descritas, empilha uma massa
inútil de coisas sem sentido.142
Honrar imagens é desonrar a Deus.
Por meio dessa lei agrada-Lhe prescrever aos homens o que é bom e justo, e assim
obrigá-los a um padrão de certeza do qual ninguém pode licenciar-se para inventar qualquer
tipo de culto que lhe agradar.143
A suficiência da lei.
Por outro lado, o Senhor, ao dar a lei da perfeita justiça, vinculou todas as suas
partes à Sua vontade, mostrando assim que nada Lhe é mais aceitável do que a obediência.
Quanto mais inclinada for a engenhosidade enganosa da mente humana para imaginar os
mais variados rituais pelos quais possa dEle merecer o bem, tanto mas diligentemente
devemos denunciar esse fato. O melhor remédio para curar tal erro será ter firmemente
fixado na mente o seguinte pensamento: a lei foi-nos divinamente entregue para nos ensinar
a perfeita justiça; nenhuma outra justiça é nela ensinada além da que é conforme as
exigências da vontade de Deus; é inútil, portanto, tentarmos novas formas de obras para
obter o favor de Deus, cujo culto legítimo consiste unicamente em obedecer; mais
exatamente, todo zelo por boas obras que vagueia do lado de fora da lei de Deus é uma
profanação intolerável da divina e verdadeira justiça.144
O culto espiritual do Deus invisível.
No mandamento anterior, Ele se declarou o único Deus fora do qual não se pode
ter ou imaginar outros deuses. Agora Ele declara mais abertamente que tipo de Deus Ele é,
e com que classe de culto deve ser honrado, para que não ousemos atribuir-Lhe qualquer
coisa de carnal. Portanto, o propósito desse mandamento é que Ele não quer que o Seu culto
legítimo seja profanado por rituais supersticiosos. Em síntese, Ele nos quer apartar
totalmente das mínimas observância carnais, que a nossa mente estúpida inventa, após
imaginarmos rudemente a Deus. E, então, nos faz conformar ao culto legítimo que Lhe é
devido, a saber, um culto espiritual por Ele mesmo estabelecido. Ademais, Ele põe em
relevo o mais palpável erro dessa transgressão, que é a idolatria exterior.145
141
John Calvin, Institutes of the Christian Religion I.XI.4, Ford Lewis Battles (trad.) (Philadelphia:
Westminster Press, 1961), 1:104. 142
I.XII.I, 1:117. 143
I.XII.3, 1:120. 144
II.VII.5, 1:371-371. 145
II.VIII.17, 1:383.
(As tradições e invenções humanas no culto, condenadas pela Escritura e pelo próprio
Cristo, 23-26)
Apelar à autoridade da igreja contradiz as provas da Escritura.
Mas quão importantes achamos que seja para o Senhor ser privado do reino que
reivindica tão firmemente por Seu? Do qual é privado sempre que é adorado por leis
humanamente criadas, posto que quer ser o único legislador de Seu próprio culto. E para
que ninguém considere a isso como de pouca monta, ouçamos em quão alta estima o
Senhor o tem. ―O Senhor disse: Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua boca
e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu temor para
comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu, continuarei
a fazer obra maravilhosa no meio deste povo; sim, obra maravilhosa e um portento; de
maneira que a sabedoria dos seus sábios perecerá, e a prudência dos seus prudentes se
esconderá‖ [Is. 29:13-14]. Outra passagem: ―em vão me adoram, ensinando doutrinas que
são preceitos de homens‖ [Mt.15:9]. E verdadeiramente a causa dos filhos de Israel se
corromperam com tantas idolatrias é atribuída a esta mistura impura pela qual eles
transgrediram os mandamentos de Deus e fabricaram novos cultos...
Em decorrência disso, é dito posteriormente que eles, atemorizados por esse
castigo, adotaram os ritos prescritos na lei; mas como não estavam adorando com pureza o
verdadeiro Deus, diz-se duas vezes que eles o temeram e que eles não o temeram [2Rs.
17:24-25, 32-33, 41]. Pelo que concluímos que uma parte da reverência que Lhe é devida
consiste simplesmente em adorá-Lo da forma que Ele ordena, sem misturar as nossas
próprias invenções. E os reis piedosos sempre são louvados pois agiram em conformidade
com todos os Seus preceitos, e não se desviaram nem para direita nem para a esquerda
[2Rs. 22:1-2; cf. 1Rs. 15:11; 22:43; 2Rs. 12:2; 14:3; 15:3; 15:34; 18:3]. Digo mais, não
obstante muitas vezes no culto inventado pelos homens a impiedade não seja claramente
vista, ainda assim ela é condenada severamente pelo Espírito, porque desvia-se do preceito
de Deus. O altar de Acaz, cujo modelo fora trazido de Samaria [2Rs. 16:10], poderia à
primeira vista parecer aumentar a dignidade do templo, porque a intenção de Acaz era
oferecer nele sacrifícios ao único Deus, o que parecia fazer-se com mais esplendor do que
no altar original. Contudo vemos como o Espírito abomina esse atrevimento pela única e
exclusiva razão de que as invenções humanas no culto a Deus são outras tantas corrupções
[2Rs. 16:10-18]. E quanto mais a vontade de Deus nos é revelada, tanto menos inescusável
é a nossa ousadia ao tentar alguma coisa.146
O culto maligno é abominação a Deus.
Muitos se maravilham de que o Senhor ameace severamente com tão horríveis
castigos o povo que O adorava com mandamentos de homens [Is. 29:13-14], e declare que
em vão é adorado por preceitos humanos [Mt. 15:9]. Mas se eles levassem em conta o que é
depender exclusivamente das determinações de Deus em questões de religião (que é
prerrogativa da sabedoria divina), compreenderiam de uma vez as razões pelas quais o
Senhor abomina tais rituais perversos, que Lhe são oferecidos segundo a vontade da
natureza humana. Pois, ainda que neles haja alguma aparência de humildade na obediência
às leis desse culto a Deus, eles, não obstante, em nada são humildes aos olhos de Deus, pois
impõem a si mesmos essas mesmas leis a que obedecem. E esta é a razão pela qual Paulo
146
IV.X.23, 2:1201-1202.
nos admoesta tão diligentemente para não sermos enganados por meio de filosofias e vãs
sutilezas, segundo as tradições dos homens [Cl. 2:4ss.], nem por aquilo que ele chama de
ethelothreskeia, que é ―culto de si mesmo‖, inventado pelo homem à parte do ensinamento
de Deus [Cl. 2:23,22]. Assim é certamente. E é necessário que a nossa sabedoria, bem
como a de todos os homens, seja tida por loucura, para que Ele seja reconhecido como o
único sábio. Este, sem dúvida, não é o caminho adotado pelos que, com as suas tradições
inventadas pelos caprichos dos homens, querem forçar uma fingida obediência a Deus, que
é, na verdade, unicamente prestada aos homens.147
Réplica à contraprova romanista.
Enfim, qualquer nova invenção com que os homens procuram honrar a Deus, nada
mais é que uma contaminação da verdadeira santidade.148
(As leis e tradições da igreja, e a consciência cristã diante de Deus).
A questão básica.
É esta a questão a ser discutida: se a igreja tem ou não o legítimo direito de obrigar
as consciências com as suas leis. Tal discussão não se refere à ordem política, mas
preocupa-se apenas com o modo pelo qual Ele ordenou como deve ser devidamente
adorado, e pelo modo como se deve preservar a liberdade espiritual que se refere a Deus.
Tem-se tornado costume chamar de ―tradições humanas‖ a todos as disposições
relativas ao culto a Deus criadas pelos homens, à parte da Sua Palavra. O nosso argumento
é contra essas coisas, não contra as santas e úteis determinações da igreja que servem para a
preservação da disciplina, da honestidade ou da paz.149
Orientações para determinar que constituições humanas são inadmissíveis.
Paulo emprega a primeira razão quando contende, na carta aos colossenses, contra
os falsos apóstolos que procuravam oprimir as igrejas com novas cargas [Cl. 2:8]. Ele usa a
segunda razão na carta aos gálatas, num caso semelhante [Gl. 5:1-12]. Coerentemente, ele
argumenta na carta aos colossenses que não devemos buscar no homem a verdadeira
doutrina do culto a Deus, porque Deus tem fiel e plenamente nos instruído de que modo
devemos adorá-Lo. Para provar isso, ele diz no primeiro capítulo que o Evangelho contém
toda a sabedoria pela qual o homem de Deus é aperfeiçoado em Cristo [Cl. 1:28]. No
começo do segundo capítulo ele declara que todos os tesouros da sabedoria e do
entendimento estão ocultos em Cristo [Cl. 2:3]. Disso logo conclui que os fieis devem estar
vigilantes para não se apartarem do aprisco de Cristo por causa da sedução da vã filosofia,
conforme as ordenanças de homens [Cl. 2:8]. Mas, no final do capítulo, ele condena mais
vigorosamente toda religião auto-imposta, isso é, a todo culto fingido, que os homens
criaram por si mesmos ou receberam de outros, e a todos os preceitos que se atrevem a
promulgar no que respeita ao culto a Deus [Cl. 2:16-23].150
(Constituições eclesiásticas que autorizam cerimônias no culto são tirânicas, frívola e
contrárias à Escritura)
147
IV.X.24, 2:1204. 148
IV.X.26, 2:1204. 149
IV.X.1, 2:1179. 150
IV.X.8, 2:1186-1187.
Segundo esse princípio, as constituições romanas devem ser rejeitadas.
Ainda não falei nas graves abominações com que eles têm se esforçado para
destroçar toda a piedade. Com certeza não considerariam como crime tão atroz a falta de
obediência, até mesmo à menor das tradições, se não cressem que o culto divino consiste
dessas suas ficções. Portanto, que pecado cometemos se não queremos aceitar que a
maneira legítima de servir a Deus seja ordenada pelo capricho dos homens, o que Paulo
ensinou ser intolerável? Principalmente quando nos ordenam a adorar a Deus segundo ―os
rudimentos do mundo‖ [Cl. 2:20], dos quais, testifica Paulo, são contra Cristo. Ademais, é
bem sabido com que rigor extremo obrigam as consciências à obedecerem a tudo quanto
ordenam. Quando nos opomos a isso, fazemos causa comum com Paulo, que não queria
permitir de forma alguma que as consciências dos fieis se submetessem aos caprichos dos
homens [Gl. 5:1].151
As constituições papais negam a lei de Deus.
Mas há ainda algo pior. Uma vez que se tenha começado a definir a religião com
essas tão vãs ficções, tal iniqüidade é sempre acompanhada de uma outra odiosa impiedade,
razão por que Cristo repreendeu os fariseus. É que eles tornavam nulos os mandamentos de
Deus por causa das tradições dos homens [Mt. 15:3]. Não quero contender com os nossos
presentes legisladores usando as minhas próprias palavras; que prevaleçam, digo eu, se
puderem de qualquer forma ficar limpos da acusação de Cristo.152
As constituições papais são vazias e inúteis.
Eu sei que a minha descrição delas como tolas e inúteis não serão críveis à
sabedoria da carne, que tem tanto deleite nelas que veria a igreja como totalmente
desfigurada se dela fossem retiradas. Mas isso é o que Paulo escreve: ―Tais coisas, com
efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de
rigor ascético‖, e por isso, por causa do seu rigor, parecem ser capazes de dominar a carne
[Cl. 2:23]. Jamais deveríamos nos esquecer dessa salutar advertência! As tradições
humanas, diz ele, ocultam o engano sob a aparência de sabedoria. De onde procede essa
aparência enganosa? Do fato de terem sido inventadas por homens. O espírito humano
reconhece nelas o que é propriamente seu e, uma vez reconhecido, abraça-o com mais
prazer do que a qualquer outra coisa verdadeiramente excelente, mas não tão de acordo
com a sua vaidade... Além disso, por se afigurarem capazes de refrear os deleites da carne,
e a sujeitá-la a rigorosa abstinência, parecem ter sido sabiamente criadas. Mas, que diz
Paulo quanto a isso? Rasga ele as suas máscaras, para que os ingênuos não sejam iludidos
pela falsa aparência delas? Ao contrário, como pensava que era bastante contestá-las como
invenções humanas, passou de largo sem nem as mencionar, como se as considerasse de
nenhum valor [Cl. 2:22]. Paulo sabia, de fato, que todas as maneiras de servir a Deus
inventadas pelos homens estavam condenadas, e que, quanto mais deleite propiciasse à
natureza humana, mais tidas por suspeita seria aos fiéis; ele sabia que a falsa aparência de
humildade exterior está tão distante da verdadeira humildade quanto é facilmente
reconhecida como tal; ele, por fim, sabia que a disciplina elementar não deve ser mais
estimada do que o sacrifício corporal. Ele queria que essas mesmas coisas — razão pela
qual as tradições humanas eram tão estimadas pelos homens — servissem aos fieis para
151
IV.X.9, 2:1187-1188. 152
IV.X.10, 2:1188.
contestá-las.153
Aplicações gerais das percepções comuns.
Porque sempre que entra no coração dos homens a superstição de querer adorar a
Deus com as suas próprias invenções, todas as leis decretadas com esse propósito
degeneram imediatamente nesses graves abusos. Porque Deus não ameaça apenas a uma ou
outra era, mas a todos os séculos e eras com essa maldição: perecerá a sabedoria e
desvanecerá a inteligência de todos os que O adorarem com doutrinas de homens [Is. 29:
13-14]. Essa cegueira é a causa daqueles que menosprezam as tantas advertências de Deus,
e espontaneamente se enredam nessas armadilhas mortíferas, abraçarem todo tipo de
absurdo. Mas se, deixarmos de lado as circunstâncias atuais, queiramos apenas
compreender quais são as tradições de todas as épocas que deveriam ser repudiadas pela
igreja e por todos os homens piedosos, veremos que é certa e clara a definição de que são
leis à parte da Palavra de Deus, leis feitas pelos homens, tanto para prescrever o modo de
adorar a Deus quanto para subjugar as consciências, como se fossem coisas necessárias à
salvação.154
Mas, no presente caso, suponha-se que, deixando de lado todas as máscaras e
disfarces, atentássemos verdadeiramente para aquilo que deveria ser a nossa primeira
preocupação e que é de grande importância para nós, isso é, o tipo de igreja que Cristo
queria para que pudéssemos nos moldar e ajustar ao padrão dela. Veríamos, então,
facilmente que não é igreja a que, ultrapassando os limites da Palavra de Deus, formula, a
seu irresponsável capricho, novas leis. Não foi a lei, uma vez dada à igreja, instituída
perpetuamente como boa? ―Tudo o que eu te ordeno observarás; nada lhe acrescentarás,
nem diminuirás‖ [Dt. 12:32]. E em outra passagem: ―Nada acrescentes às suas palavras,
para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso‖ [Pv. 30:6]. Como não podem negar
que isso foi dito à igreja, que outra coisa fazem senão apregoar a sua rebeldia, da qual
vangloriam-se a ponto de que, mesmo depois dessas proibições, atrevem-se a acrescentar e
misturar sua própria fantasia à doutrina de Deus? Longe de nós esteja assentir com a
falsidade deles, pelas quais trazem tamanho insulto à igreja! Compreendamos o quão
falsamente se pretende o nome de ―igreja‖ sempre que se trata desse apetite e desejo dos
homens — que não conseguem conservar-se dentro dos limites determinados por Deus,
sem que, insolentemente, corram após as suas próprias invenções. Nada há envolto, obscuro
ou ambíguo nas palavras que proíbem à igreja universal acrescentar ou subtrair qualquer
coisa da Palavra de Deus, quando estão envolvidos o culto ao Senhor e os preceitos de
salvação... O Senhor, que há muito tempo atrás declarou que nada o ofendia mais do que
ser adorado por rituais humanamente inventados, não se tornou falso a Si mesmo.155
As constituições romanas não remontam aos apóstolos, tampouco à “tradição apostólica”.
Mas remontar a origem dessas tradições (com as quais a igreja tem sido desde
então oprimida) aos apóstolos é pura falsidade e engano. Porque toda a doutrina dos
apóstolos tem esse objetivo: não sobrecarregar as consciências com novas observâncias,
nem contaminar o culto a Deus com as nossas próprias invenções. Portanto, se houver na
história e nos antigos registros algo digno de crédito, os apóstolos não somente ignoravam
153
IV.X.11, 2:1189-1190. 154
IV.X.16, 2:1194. 155
IV.X.17, 2:1195-1196.
aquilo que os romanistas atribuem a eles, como sequer o ouviram. 156
Confissão de Fé em Nome das Igrejas Reformadas de França (1662)
Do culto de Deus
Agora — em conformidade com a Sua declaração de que obedecer é melhor que
sacrificar (1Sm. 15:22), associada à Sua imutável injunção para darmos ouvido ao que Ele
ordena — se tivéssemos que oferecer da nossa parte um sacrifício designado e aceitável,
argumentaríamos que não nos cabe inventar o que nos parecer bom, nem obedecer ao que
pode ter sido inventado pela mente de outra pessoa, mas limitar-nos-íamos simplesmente à
pureza da Escritura. Porquanto cremos que nada que dela proceda, mas que tenha sido
apenas ordenado por autoridade de homem, não é digno de ser considerado como culto a
Deus...
O segundo axioma é que, quando supomos poder servir a Deus ao nosso próprio
modo, Ele o repudia como corrupção. É essa a razão por que Ele exclama através do profeta
Isaías que toda a verdadeira religião tem sido pervertida ao se obedecer aos mandamentos
de homens (Is. 29:13). E nosso Senhor Jesus Cristo confirma o mesmo ao dizer que em vão
haveríamos de conhecer a Deus por meio das tradições humanas (Mt. 15:9). É, portanto,
com boa razão, que a Sua supremacia espiritual sobre as nossas almas permanece
inviolável, e que nas mínimas coisas a Sua vontade, assim como um cabresto, conduzirá
nossas devoções.157
Da tradição humana.
Temos nesta questão advertências tão notáveis da experiência comum, que
estamos cada vez mais convencidos a não traspassar os limites da Escritura. Pois desde que
os homens começaram a criar leis para regularem o ato de culto a Deus e subjugarem a
consciência, não há mais fim nem conta delas, ao passo que, por outro lado, Deus tem
punido tal temeridade, cegando-os com ilusões tais que podem fazê-los estremecer. Quando
nos prestamos a examinar de perto o que são realmente as tradições humanas, descobrimos
que são um abismo, e que o numero delas é infindável. E há, contudo, abusos tão absurdos
e enormes, que é espantoso o quanto os homens são estúpidos — não fosse Deus ter levado
a efeito a vingança que anunciou pelo Seu profeta Isaías, cegando e enfatuando o sábio que
pretendesse adorá-lO observando mandamentos de homens (Is. 29:14).158
Das intenções idólatras.
Desde que os homens se apartaram da pura e santa obediência a Deus, descobriram
que as boas intenções eram suficientes para aprovar qualquer coisa. Isso foi o escancarar da
porta para todo tipo de superstições. Tem sido a origem do culto às imagens, da compra de
missas, do encher da igreja de pompa e ostentação, de correr daqui para lá em
peregrinações, de fazer promessas por tudo que está ao alcance. Mas o abismo aqui é tão
profundo que nos basta apenas citar alguns exemplos. Honrar a Deus por meio de humanas
invenções está tão longe de ser legítimo que não haveria firmeza, nem certeza, terra firme
ou ancoradouro na religião: tudo haveria de soçobrar, e o cristianismo em nada seria
156
IV.X.18, 2:1197. 157
John Calvin, ―Confession of Faith‖ in Selected Works: Tracts and Letters (Grand Rapids: Baker, 1983
[1844]), 2:147-148. 158
Ibid.
diferente das idolatrias dos pagãos.159
A Necessidade de Reformar a Igreja (1544)
Além do mais, a regra que faz a distinção entre o culto puro e o corrompido é de
universal aplicação, para que não possamos adotar qualquer recurso que pareça adequar-se
a nós mesmos, mas para atentarmos às injunções d‘Aquele que é o único apto a prescreve-
las. Portanto, se pretendemos ter a Sua aprovação à nossa adoração, esse estatuto, que Ele
em todo lugar reitera com o maior rigor, tem que ser cuidadosamente obedecido. Há uma
dupla razão pela qual o Senhor, ao condenar e proibir todo culto fictício, exige que
obedeçamos apenas à Sua voz. A primeira tende grandemente a estabelecer a Sua
autoridade de modo que não sigamos nosso próprio arbítrio, mas dependamos inteiramente
da Sua soberania; e, em segundo lugar, a nossa insensatez é tanta que, ao sermos deixados
livres, tudo de que somos capazes de fazer é desviarmo-nos. E uma vez que tenhamos nos
apartado da reta vereda, não terá fim a nossa peregrinação, até que estejamos soterrados sob
uma multidão de superstições. Portanto — para fazer valer o Seu direito de domínio
absoluto — é merecidamente que o Senhor impõe com rigor aquilo que Ele quer que
façamos e rejeita, de pronto, todos os meios humanos em desacordo com Seu mandamento.
É também com justiça que define expressamente quais sejam os nossos limites, para que
não nos seja permitido — ao inventarmos perversos modos de culto — provocar a Sua ira
contra nós.
Bem sei quão difícil é persuadir o mundo de que Deus desaprova todos os modos
de culto não sancionados expressamente pela Sua Palavra. A persuasão oposta, que se lhes
entranha, por assim dizer, nas suas próprias juntas e medulas, é de que tudo aquilo que
fazem — desde que apresente algum tipo de zelo pela honra de Deus — tem em si mesmo
aprovação suficiente. Mas Deus não apenas considera infrutífero, como também abomina
totalmente, tudo o que por nossa própria conta consideramos ser zelo pelo Seu culto. E se
estiver em oposição ao Seu mandamento, o que ganhamos indo contra ele? As palavras de
Deus são claras e distintas: ―o obedecer é melhor do que o sacrificar‖ (1Sm. 15:22), ―em
vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens‖ (Mt. 15:9). Qualquer
acréscimo à Sua Palavra, especialmente nessa questão, é uma mentira. O mero ―culto de si
mesmo‖ (ethelothreskeia) é vaidade. É esse o veredicto, e uma vez que o juiz haja decidido,
não há mais o que debater...160
Havendo notado que a Palavra de Deus é o teste que distingue entre o Seu culto
verdadeiro e aquilo que é falso e corrompido, prontamente inferimos que a forma total do
culto divino dos dias presentes, de modo geral, nada mais é que pura corrupção. Pois os
homens não atentam ao que Deus ordenou, ou ao que Ele aprova, para poder servi-lO de
modo apropriado, mas dão a si mesmos o direito de inventar modos de culto, e depois os
impõem a Ele como substituto à obediência. Se pareço exagerar o que digo, que sejam
examinados todos os atos pelos quais geralmente supõe-se adorar a Deus. Atrevo-me a
deixar de fora a décima parte deles, como se não fosse o fruto à toa das suas próprias
mentes. Que mais haveríamos de considerar? Deus rejeita, condena, abomina toda adoração
fictícia, e usa a sua Palavra como cabresto para nos manter em absoluta obediência. Quando
sacudimos de nós esse jugo, andamos erráticos após as nossas próprias fantasias e Lhe
oferecemos um culto, obra da precipitação humana, que, por mais que nos possa deleitar, é,
159
Ibid., 148-149. 160
―The Necessity of Reforming the Church‖ in Selected Works, 1:128-129.
à Sua vista, frivolidade, ou antes, vileza e corrupção. Os advogados das tradições humanas
descrevem-nas com belas e aparatosas cores, e Paulo certamente admite que eles portam
uma certa aparência de sabedoria; mas como Deus valoriza a obediência mais que a todos
os sacrifícios, o fato de não ser sancionado pelo mandamento de Deus deveria ser razão
suficiente para a rejeição de qualquer modo de culto...161
Por havermos, com respeito ao culto, eliminado as observâncias vazias e infantis e
adorado a Deus mais simplesmente, nossos adversários logo nos acusam de tendermos tão-
somente à hipocrisia. Os fatos atestam que nada detratamos do culto espiritual a Deus. Pelo
contrário, quando [algo] havia grandemente caído em desuso, nós o restabelecemos às suas
antigas prerrogativas...162
O pior de tudo, entretanto, é que, não obstante tenha Deus com tanta freqüência e
rigor interditado todos os modos de culto prescritos pelo homem, a única forma de
adoração que lhe foi prestada consistiu de invenções humanas. Que base têm, então, nossos
inimigos para vociferarem que quanto a isso nós abandonamos a religião? Primeiro, não
participamos minimamente em nada daquilo que Cristo condena como sem valor, quando
declara ser inútil adorar a Deus com as tradições humanas. A coisa, talvez, teria sido mais
fácil de suportar se a única conseqüência dela fosse apenas a perda dos esforços humanos
em prol de um culto inútil; mas como, segundo tenho chamado a atenção, Deus em muitas
passagens proíbe qualquer novo culto desprovido da sanção da Sua Palavra, e declara-Se
gravemente ofendido pela presunção de tal culto inventado, ameaçando-o de severa
punição, fica claro que a reforma que temos introduzido foi exigida por uma forte
necessidade.
Não estou inadvertido de quão difícil é persuadir o mundo de que Deus rejeita e
até mesmo abomina tudo que, relativamente a Seu culto, é inventando pela razão humana.
O erro desse item deve-se a várias razões: ―todo mundo tem-se em alta conta‖, diz o antigo
provérbio. Por essa causa é que o fruto da nossa própria mente nos delicia, e, além disso,
como admite Paulo, esse pretenso culto tem aparência de sabedoria. Portanto, como tem ele
em grande parte um esplendor exterior agradável à vista, é mais aprazível à nossa natureza
carnal do que somente aquele que Deus requer e aprova, mas que é menos ostentoso.
Entretanto, no julgamento dessa questão, nada há mais cegante e enganoso ao entendimento
dos homens do que a hipocrisia. Embora demande-se dos verdadeiros adoradores a entrega
do coração e da mente, os homens estão sempre querendo inventar um modo de servir a
Deus com característica totalmente diferentes, sendo o objetivo deles cumprirem em Seu
favor alguma observância física, mantendo a mente em si mesmos. Além disso, imaginam
que por terem Lhe forçado essa pompa exterior, ficaram, através desse artifício, livres se
darem a si mesmos. Esta é a razão pela qual submetem-se a inumeráveis observâncias que
os fatigam miseravelmente, sem medida e sem fim, e por que preferem andar erráticos num
labirinto perpétuo, em vez de simplesmente adorarem a Deus em espírito e em verdade...163
Como poderíamos, sem que pecássemos, deixar de repreender a zombaria que é
adorar a Deus com nada mais que gesticulações exteriores e fantasias humanas? Sabemos o
quanto Ele odeia a hipocrisia, contudo ela imperava no culto fictício que se praticava em
toda parte. Ouvimos os tão amargos termos com os quais o profeta protesta veementemente
contra todo tipo de culto fabricado pela precipitação humana. Todavia uma boa intenção —
161
Ibid., 1:132-133. 162
Ibid., 1:151. 163
Ibid., 1:152-153.
isto é, uma insana licença para o homem ousar o que bem lhe aprouver — era considerada a
perfeição da adoração. Pois é certo que no todo do culto que se havia firmado, dificilmente
existia uma única observância que possuísse sansão autoritativa da Palavra de Deus. Não
devemos, quanto a essa questão, apoiar-nos em nosso próprio juízo, ou no de outros
homens. Precisamos escutar a voz de Deus, e ouvir a sua consideração quanto a profanação
do culto que se dá quando os homens, ultrapassando os limites da Sua Palavra, atiram-se à
larga em suas próprias invenções. As razões que Ele dá para punir os israelitas com
cegueira, após terem perdido a pia e santa disciplina da Igreja, são duas, a saber, o
predomínio da hipocrisia, e o ―culto de si mesmo‖ (ethelothreskeia) significando assim uma
forma de culto planejada pelos homens.164
O Verdadeiro Método de se Conceder Paz à Cristandade e Reformar a Igreja (1548)
Devemos acrescentar que o conhecimento dessa questão demanda a sua própria
explicação. Há dois aspectos principais. Primeiro, temos que assumir que o culto espiritual
a Deus não consiste de cerimônias exteriores nem de quaisquer outros tipos de obras, sejam
quais forem; e segundo, nenhum culto é legítimo a menos que seja formulado de tal
maneira que tenha por sua única regra a vontade d‘Aquele a quem é celebrado. Ambas
essas proposições são absolutamente necessárias. Como nossos sentidos não vão além de
nós mesmos e do mundo material, assim também avaliamos Deus por nós mesmos. É por
essa razão que sempre nos deleitamos mais na aparência exterior, que não tem qualquer
valor à vista de Deus, do que no íntimo culto do coração, que somente Ele aprova e exige.
Por outro lado, é notória a libertinagem das nossas mentes, que prolifera, especialmente
nessa época, onde nada tem sido suficientemente atrevido. Os homens se dão o direito de
imaginar todos os tipos de culto, e de moldá-los e remodelá-los ao seu bel-prazer. Não é
pecado exclusivo à nossa era, pois desde o princípio que o mundo porta-se licenciosamente
assim para com Deus. Ele mesmo proclama que não há nada que valorize mais do que à
obediência (1Sm. 15:22). Por essa razão, a todos os modos de culto ideados contrariamente
ao Seu mandamento, Ele não apenas os reputa por vazios, mas condena claramente. Que
necessidade tenho eu de aduzir provas numa questão tão óbvia? Passagens com esse sentido
deveriam ser proverbiais entre os cristãos.165
Breve Formulação de uma Confissão de Fé
Eu confesso que toda a regra do justo viver, como também da instrução em fé,
estão majoritariamente consignadas nas Sagradas Escrituras, às quais, sem criminalidade,
nada pode ser acrescentado nem subtraído. Por essa razão aborreço tudo que, da
imaginação dos homens, poderia ser-nos imposto como artigos de fé, e nos obrigar a
consciência por meio de leis e estatutos. E, portanto, repudio em geral tudo que tem sido
introduzido no culto a Deus sem a autoridade da Palavra de Deus. Dessa sorte são todas as
cerimônias papistas. Em resumo, abomino o jugo tirânico pelo qual as consciências
miseráveis têm sido opressas — como a lei das confissões auriculares, celibato, e outras da
mesma espécie.166
164
Ibid., 1:189. 165
John Calvin, ―The True Method of Giving Peace to Christendom and Reforming the Church‖ in Selected
Works: Tracts and Letters (Grand Rapids: Baker, 1983), 3:260-261. 166
John Calvin, ―Brief Form of a Confession of Faith‖ in Selected Works: Tracts and Letters (Grand Rapids:
Baker, 1983), 2:133.
Carta a Edward Seymour, Conde de Hertford, Duque de Somerset, Regente da Inglaterra
durante e Menoridade de Edward VI (1548)
Glorificado seja Deus, que não necessitais aprender qual seja a verdadeira fé dos
cristãos, e a doutrina que devem defender, parecendo que pelo vosso meio a verdadeira
pureza da fé tem sido restaurada. Isso é, que consideramos a Deus como o único governante
das nossas almas; que consideramos a Sua lei como a única regra e diretório para as nossas
consciências, não O servindo segundo as tolas invenções de homens; que também segundo
a Sua natureza deve ser adorado em espírito e pureza de coração. Por outro lado,
reconhecendo que nada há em nós mesmos exceto toda miséria, e que somos corruptos em
todos os nossos sentimentos e afeições, de forma que as nossas almas são um vero abismo
de iniqüidade, totalmente sem esperança em nós mesmos; e que, havendo exaurido toda a
presunção da nossa própria sabedoria, valor, ou poder em fazer o bem, devemos recorrer à
fonte de toda a bênção, que está em Jesus Cristo.167
167
John Calvin, ―To the Protector Somerset‖ in Selected Works: Tracts and Letters, 5:189.
Foto de João Calvino
... é Deus que estatui que não será adorado de nenhum outro modo
exceto conforme à Sua própria determinação, Ele não pode tolerar a
invenção de outros novos modos de culto. Tão logo os homens
permitam a si mesmos andarem errantes para além dos limites da
Palavra de Deus, quanto mais labor e ansiedade demonstrem em
adorá-Lo, tanto mais pesada é a condenação que trazem sobre si
mesmos, porque, por tais invenções, é que a religião é desonrada.
João Calvino
Apêndice B
O desafio neopresbiteriano à ortodoxia presbiteriana confessional: Uma
análise bíblica do livro de John Frame ―Adoração em espírito e verdade‖
Introdução
John Frame, ministro ordenado da Igreja Presbiteriana na América (PCA), ―líder
do louvor‖ e professor de Apologética e Teologia Sistemática no Seminário Teológico
Reformado, Orlando,168
escreveu um livro que tanto defende quanto estabelece o
paradigma de culto da maior parte do presbiterianismo ―conservador‖ moderno (por
presbiterianismo conservador referimo-nos ao grupos presbiterianos que aderem
firmemente à inerrância bíblica, nascimento virginal, milagres literais, expiação vicária,
ressurreição literal e os cinco pontos do calvinismo). Antes de analisar muitos dos aspectos
fundamentais do livro de Frame, este autor gostaria de recomendar Frame por vários
motivos. Primeiro, o livro Worship in Spirit and in Truth [Adoração em Espírito e Verdade]
é bem escrito e organizado. Segundo, Frame tocou num tema que é muito importante e
dificilmente abordado neste século. Terceiro, Frame é fortemente comprometido com a
inerrância bíblica e com a autoridade absoluta da Bíblia. Embora o livro de Frame possua
alguns aspectos recomendáveis, ele deve ser totalmente condenado como um sério
abandono do entendimento histórico padrão do culto reformado. O que é particularmente
perturbador quanto ao livro de Frame é que ele abandona os padrões de Westminster,
embora apresente a si mesmo como um campeão do princípio regulador ensinado naqueles
padrões. Ou Frame é culpado de grave auto-engano, ou é incrivelmente desonesto. Nesta
breve análise do seu livro consideraremos: (1) o livro de Frame como uma justificação do
status quo (i.é, culto neopresbiteriano); (2) a deturpação que faz da posição referente ao
culto dos antigos presbiterianos e dos Padrões de Westminster; (3) a redefinição de Frame
para o princípio regulador; (4) a metodologia exegética bizarra, arbitrária e heterodoxa que
usa para justificar muitas inovações humanas no culto; e (5) o caso de Frame com o
moderno culto ―celebrativo‖.
Defendendo o Status Quo
Um dos propósitos do livro de Frame é justificar o tipo de culto praticado pela sua
igreja, e por tantas outras. Ele escreve: ―parte da minha motivação foi a preocupação de
garantir à minha congregação local, e outras semelhantes, a liberdade de adorar a Deus em
seu estilo costumeiro — não-tradicional, mas em meu discernimento, totalmente
espiritual‖.169
Ao longo de todo o livro, Frame refere-se ao culto tradicional versus o não-
tradicional. Embora nunca defina o que vem a ser o culto tradicional, é claro que não é a
seu favor. Ele diz: ―Historicamente os livros-texto [sobre o culto cristão] tipicamente
tentam nos fazer sentir culpados se não seguirmos os modelos tradicionais. Os
tradicionalistas teológicos também querem tipicamente minimizar a liberdade e a
flexibilidade. Até mesmo os que dão sugestões para um ‗culto com sentido‘ são muitas
vezes restritivos, pois tendem a ser muito negativos para com as igrejas que não seguem as
168
Frame ensinou por muitos anos no Seminário Teológico Westminster em Filadélfia, e no Westminster
West em Escondido, na Califórnia. 169
John Frame, Worship in Spirit and in Truth: A Refreshing Study of the Principles and Practice of Biblical
Worship (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1996), xii.
suas sugestões‖.170
Essa afirmativa, que ocorre no prefácio do livro, é um caso clássico
daquilo que os debatedores chamam de ―envenenar o poço‖. Segundo sugere Frame, há o
culto tradicional que se fundamenta na tradição humana, e há o seu tipo de culto, que é
verdadeiramente livre de tradições humanas, e bíblico. Entretanto veremos que ele propõe
todo tipo de coisas no culto que não possui qualquer garantia da Palavra de Deus. Se Frame
condenasse por tradicional os hinos não-inspirados, os instrumentos musicais (e.g., o piano
e o órgão) e os dias santificados extra-bíblicos (e.g., Natal e Páscoa), então ele estaria na
trilha certa.171
Contudo, à medida que se lê o livro, nota-se que o seu problema com o típico
culto ―presbiteriano‖, fora de moda e corrompido, é que ele não possui inovações humanas
suficientes. Frame é realmente a favor de uma maior, não menor, autonomia humana.
Na medida que este estudo progride veremos que há duas escolas básicas de
pensamento quanto ao culto nos círculos presbiterianos ―conservadores‖. Há regulativistas
coerentes e estritos que seguem o objetivo original dos padrões de Westminster. Essas
pessoas cultuam da forma exata que os presbiterianos cultuaram por mais de duzentos anos
(i.é, cantando os salmos exclusivamente à capela, sem dias santos extra-bíblicos). Há
outros (a grande maioria) que descobriram formas de burlar o princípio regulador e
introduzir as mais diversas inovações humanas. Frame, como integrante deste último grupo,
está simplesmente sendo mais consistente. Essa é basicamente a razão por que o estilo
arminiano-carismático de culto está sendo adotado por todas as denominações
presbiterianas ―conservadoras‖ que já abandonaram o culto bíblico. O principal desacordo
de Frame com o culto ―presbiteriano‖ ultrapassado e corrupto (e.g., Trinity Hymnal e piano)
é realmente único em estilo e tom (embora ainda persista algumas diferenças filosóficas
maiores quanto ao papel da mente no culto e no misticismo). A discordância de Frame com
os Padrões de Westminster e com os regulativistas estritos é essencial e basilar. Assim, a
maior parte de seu livro é diretamente contra os Padrões de Westminster e o culto resultante
deles (cântico exclusivo dos salmos à capela, sem dias santificados extra-bíblicos, etc.).
Num certo sentido, Frame prestou um grande serviço à igreja de Cristo ao colocar
por escrito uma defesa do culto neopresbiteriano, para que todos leiam e analisem. O que é
o culto neopresbiteriano? É um culto no estilo arminiano-carismático levado a efeito por
presbiterianos que fingem adotar os Padrões de Westminster na esfera do culto. Pode-se
entender donde procede Frame, pelo seguinte declaração: ―De uma certa maneira, o livro
procura resumir o pensamento subjacente ao culto das igrejas presbiterianas New Life [Vida
170
Ibid., xvi. 171
Com o objetivo de manter essa resenha razoavelmente abreviada, este autor não refutará os argumentos de
Frame contra as históricas posições reformadas sobre o cântico exclusivo de salmos, uso de instrumentos
musicais no culto e a celebração de dias santificados extra-bíblicos (e.g., Natal e Páscoa). Este autor já refutou
os argumentos de Frame (que são típicos do moderno status quo presbiteriano) em outros trabalhos: The
Regulative Principle of Worship and Christmas; Musical Instruments in the Public Worship of God e A Brief
Examination of Exclusive Psalmody. Todos estes livros estão gratuitamente disponíveis em
www.reformed.com. Outras obras recomendadas são: John L Girardeau, Instrumental Music in the Public
Worship of the Church (Havertown, PA: New Covenant Publication Society, 1983 [1888]); Kevin Reed,
Christmas: An Historical Survey Regarding Its Origins and Opposition to It (Dallas, TX: Presbyterian
Heritage Publications, 1983) e Biblical Worship (Dallas, TX: Presbyterian Heritage, 1995); Michael Bushell,
The Songs of Zion: A Contemporary Case for Exclusive Psalmody (Pittsburgh: Crown and Covenant
Publications, 1977); G. I. Williamson, On the Observance of Sacred Days (Havertown, PA: New Covenant
Publication Society, s.d.) e Instrumental Music in the Public Worship of God: Commanded or Not
Commanded? e D. W. Collins, Musical Instruments in Divine Worship Condemned by the Word of God
(Pittsburgh: Stevenson and Foster, 1881).
Nova]: A Igreja Presbiteriana Vida Nova [New Life Presbyterian Church], em Escondido,
na Califórnia, onde cultuo, nossa ―igreja-mãe‖ de mesmo nome em Glenside, Pensilvânia, e
outras‖.172
A ―igreja mãe‖ a que se refere Frame foi fundada na década de 1970 pelo pastor
presbiteriano ortodoxo Jack Miller. A ―igreja mãe‖ em Glenside adotou as práticas de culto
das igrejas arminiano-carismáticas e descobriu que as novas práticas de culto eram
divertidas, atraíam os jovens e faziam a igreja crescer. É importante observar que o novo
culto ―não-tradicional‖ adotado pela igreja Nova Vida original, em Glemside, que é agora
praticado em muitas congregações da PCA (Igreja Presbiteriana na América) e em diversas
igrejas presbiterianas ortodoxas, não surgiu de uma cuidadosa exegese da Escritura
realizada por pastores e teólogos reformados. O pacote completo foi simplesmente tomado
emprestado dos carismáticos arminianos, que nem sequer teriam condição de dar a mínima
atenção a algo como o princípio regulador. Frame, um ―líder do louvor‖ de uma igreja
assim, tenta harmonizar em seu livro esse tipo de culto com a fé reformada, vinte anos
depois que essa forma de culto foi adotada. Ele trouxe para si a tarefa de harmonizar um
paradigma de culto não-reformado e arminiano-carismático com o rigoroso paradigma
regulativista dos Padrões de Westminster. Num dado momento veremos que isso envolve
uma tão ampla redefinição do conceito reformado de ―sanção divina‖ que quase tudo é
permitido no culto. Frame tem a tarefa de tentar encaixar um grande pino retangular (o
culto arminiano-carismático) numa pequena cavidade circular (a doutrina reformada
confessional do culto). Por isso ele gasta tanto tempo com o martelo e a talhadeira, fazendo
da pequena e circular cavidade, um grande buraco quadrado. É preciso que se seja dado o
crédito a Frame por ele ter redefinido completamente, com muita perícia, suavidade, astúcia
e habilidade, o princípio regulador, ao mesmo tempo em que alega ser totalmente leal aos
Padrões de Westminster.
Um outro propósito declarado do livro de Frame é aliviar as consciências culpadas
de pastores reformados que sabem o suficiente de teologia e de história da igreja para
reconhecerem, até certo ponto, que se desviaram do culto reformado e confessional. Ele
escreve:
O culto presbiteriano — baseado no ―princípio regulador‖ bíblico, que
descrevo nessas páginas — foi nos primórdios muito limitador, severo e
―minimalista‖. Excluía órgãos, conjuntos corais, letras de hinos que não fossem os
salmos, simbolismos em assuntos de culto, e dias santificados com exceção do
sábado cristão. Presbiterianos da tradição ―pactuante‖, tais como os da Igreja
Presbiteriana Reformada da América do Norte [Reformed Presbyterian Church of
North América], e outras poucas denominações, ainda cultuam desse modo, mas
são hoje, quanto a isso, uma minoria de presbiterianos conservadores.
Apesar disso a teologia puritana do culto, que produziu tal minimalismo, é
ainda ensinada nas igrejas presbiterianas e seminários conservadoras como sendo a
autêntica visão de culto presbiteriano e reformado. Isso acontece em parte porque
essa teologia se reflete na Confissão de Fé de Westminster e nos Catecismos,
adotadas por essas denominações. Entretanto os Padrões de Westminster contêm,
na verdade, muito pouco da teologia de culto puritana. Os teólogos puritanos e
escoceses que escreveram os Padrões de Westminster foram sábios o bastante para
172
Worship in Spirit and in Truth, xvi. Este autor freqüentou a ―igreja mãe‖ na década de 70, conheceu e
conversou com o Dr. Miller, que era homem muito sincero, religioso e piedoso (foi chamado à Glória em
1995). Na área de culto, entretanto, os seus esforços muito contribuíram para corromper a igreja de Cristo.
não incluírem neles todas as suas idéias sobre o culto. Os princípios responsáveis
pelo minimalismo litúrgico são provenientes de outros textos puritanos e
reformados que extrapolavam os documentos confessionais. Esses textos extra-
confessionais, entretanto, tinham em si mesmos considerável autoridade informal
nas igrejas presbiterianas conservadoras.
O resultado é que embora poucas igrejas presbiterianas conservadoras
cultuem de fato da forma puritana, a teologia puritana do culto permanece entre
eles como padrão de ortodoxia. Essa discrepância resulta algumas vezes em
consciências culpadas. Tenho, por exemplo, conversado com pastores que estão
dispostos a retornar ao uso exclusivo de salmos no cântico congregacional, mas
que se sentem desconfortáveis para cantar hinos. Eles parecem pensar que
deveriam cultuar como faziam os puritanos, mesmo que não tenham essa intenção.
Temem que esse tipo de indecisão seja incoerente com os seus compromissos com
a fé reformada e com a ortodoxia presbiteriana.
Eu creio que os presbiterianos necessitem repensar um pouco esse assunto.
Na minha opinião, a Confissão de Westminster está totalmente correta no seu
princípio regulador — que o verdadeiro culto limita-se àquilo que Deus ordena.
Entretanto os métodos usados pelos puritanos para descobrir e aplicar esses
mandamentos necessitam de uma minuciosa revisão teológica. A maior parte do
que disseram não pode ser justificada pela Escritura. Espero que o resultado do
nosso repensar seja algum tipo de paradigma revisado para o culto presbiteriano;
completamente reformado em suas suposições, afirmando o princípio regulador e
as declarações da Confissão de Westminster e dos Catecismos, mas permitindo
uma flexibilidade muito maior que a dos puritanos, ao aplicarem os mandamentos
de Deus ao culto. Esse paradigma revisado aliviará os sentimentos de culpa
mencionados anteriormente, não porque nos permitirá ignorar os mandamentos
de Deus, mas porque nos ajudará a entender mais exatamente aquilo que o Senhor
espera de nós.173
O livro de Frame deveria ser visto por aquilo que realmente é. Em primeiro lugar,
e antes de tudo, é uma defesa da apostasia e da decadência no âmbito do culto que vem
ocorrendo nesses últimos duzentos anos na maioria das denominações presbiterianas.
Frame admite abertamente, na citação acima, que há uma ―discrepância‖ entre aquilo que
os presbiterianos modernos professam e aquilo que eles realmente praticam. Essa
discrepância faz com que alguns ministros presbiterianos se sintam culpados. Entretanto
(segundo Frame) o que esses ministros precisam é de um novo ―paradigma revisado‖ que
lhes permita uma ―flexibilidade muito maior‖ (que resulte numa ―autonomia humana muito
maior‖), de modo que as igrejas possam adorar na moda corrompida e apóstata a que estão
acostumados sem que tenham ―sentimentos de culpa‖. Para aliviar as consciências culpadas
Frame declara guerra contra o culto reformado e ataca o princípio regulador redefinindo-o
completamente e esvaziando-o de sentido. Ele então investe contra os padrões e posições
bíblicas e históricas defendidas pelos presbiterianos, até quando começou a decadência
(e.g., o cântico exclusivo de salmos, a não utilização de instrumentos no culto público, a
não celebração de dias santificados pagãos e papais, etc.). O segundo propósito do livro de
Frame é justificar à sua audiência já apóstata (Trinity Hymnal, piano e órgão) a
superioridade do culto arminiano-carismático contemporâneo. Veremos que o que a
173
Ibid., xii-xiii, ênfase acrescentada.
maioria dos presbiterianos modernos precisam não é de uma apologética para a apostasia,
mas, pelo contrário, de uma chamada ao arrependimento sincero. É preciso haver um
retorno à sabedoria bíblica alcançada por nossos ancestrais presbiterianos.
Reescrevendo a História.
Antes de concentrarmos a nossa atenção no tratamento que Frame dá ao princípio
regulador, é preciso considerar a versão deturpada da história da igreja que ele apresenta, e
que o faz parecer favorável aos Padrões de Westminster. Ele escreve: ―[O]s Padrões de
Westminster contêm, na verdade, muito pouco da teologia de culto puritana. Os teólogos
puritanos e escoceses que escreveram os Padrões de Westminster foram sábios o bastante
para não incluírem neles todas as suas idéias sobre o culto. Os princípios responsáveis pelo
minimalismo litúrgico são provenientes de outros textos puritanos e reformados que
extrapolavam os documentos confessionais. Esses textos extra-confessionais, entretanto,
tinham em si mesmos considerável autoridade informal nas igrejas presbiterianas
conservadoras‖.174
O propósito dessa afirmativa é fazer uma separação entre o ensinamento dos
Padrões de Westminster e os ―textos extra-confessionais‖ (i.é, livros, folhetos, panfletos, e
sermões) escritos por puritanos e outros reformados ―que extrapolavam os documentos
confessionais‖. Segundo Frame, não foi a Confissão que produziu o ―minimalismo
litúrgico‖175
mas antes os extremistas puritanos que foram longe demais. Qual é a razão
para que Frame distinga os ensinamentos dos Padrões de Westminster dos escritos sobre o
174
Ibid., ênfase acrescentada. 175
Frame pegou o termo ―minimalista‖ emprestado do livro de James Jordan Liturgical Nestorianism
(Niceville, FL: Transfiguration Press, 1994). Neste livro Jordan acusa os regulativistas rigorosos de serem
como os nestorianos que denegriram a natureza humana ―dizendo que Deus e o homem não se poderiam
conjugar [numa única pessoa]‖. À parte do fato de que eram os monofisistas que — por meio de um modo de
fundir as duas naturezas — negavam e assim denegriam a verdadeira humanidade de Cristo, o argumento de
Jordan nada tem a ver com o debate sobre o princípio regulador. Isso pode parecer criativo e intelectual, o que
é bastante para muitos dos seguidores de Jordan. Não é de surpreender que Frame cite, aprovando, o livro de
Jordan. Há anos que Jordan vem deturpando e ridicularizando o princípio regulador. Ele é conhecido também
por seu ―maximalismo interpretativo‖. Através de sua hermenêutica alucinógena ele descobre sentidos
obscuros ocultos no texto. Os dois homens, entretanto, atacam o princípio regulador por motivos diferentes.
Frame quer um culto no estilo carismático, ao passo que Jordan prefere um estilo de culto liturgicamente
anglo-católico. Observe as seguintes citações do seu livro Sociology of the Church (Tyler, TX: Geneva
Ministries, 1986): ―O ensinamento bíblico, como um todo, é bastante favorável à comemoração do Natal
como um festival eclesiástico anual... Ao estudar as Escrituras, tenho descoberto que as igrejas luteranas e
anglicanas são mais bíblicas em seu culto [do que as batistas e as reformadas], apesar de alguns problemas‖
(210). ―O que estou dizendo é que o costume [de se persignar] não é antibíblico, e que a igreja conservadora
deveria pensar amplamente a respeito disso‖ (212). ―Isso tudo [a leitura bíblica e o sermão] está designado
para nos conduzir ao segundo ato do sacrifício: o ofertório. O ofertório não é uma mera ‗coleta‘, mas ato de
auto-imolação... Assim, as bandejas do ofertório são trazidas diante do ministro, que as eleva diante de Deus
(‗oferta alçada‘) e as dá a Ele‖ (27). ―O sacerdócio pessoal e integral de todos os crentes não significa apenas
a participação congregacional (exigida nos livros de orações), mas também um ‗fazer‘ holístico. Significa
cantar, lançar-se ao chão, ajoelhar-se, dançar, bater de palmas, procissões, e assim por diante‖ (32). ―Ao
exigir consciência diante da comunhão, a igreja exclui as suas crianças da Mesa... Se precisamos ter uma
Reforma, temos que rejeitar este resíduo de gnosticismo e retornarmos ao entendimento de que o ato da
Eucaristia antecede à interpretação dele mesmo‖ (38). Jordan, assim como Frame, argumenta baseado em
―princípios de culto amplos e abrangentes‖ (209) e, portanto, envolve-se numa aplicação criativa e
especulativa. Se alguém discordar da visão ―anglo-católica‖ de Jordan será arbitrariamente rotulado (sem uma
mínima comprovação qualquer) de neoplatônico, nestoriano, gnóstico, nominalista, estóico, etc.
culto daqueles puritanos e presbiterianos que escreveram os Padrões de Westminster? A
simples razão pela qual Frame e outros advogados do culto neopresbiteriano deturpam
reiteradamente a doutrina dos Padrões de Westminster é que eles não querem admitir que o
seu posicionamento é anticonfessional. Os advogados do culto neopresbiteriano (e.g., hinos
não inspirados, instrumentos musicais no culto e dias santificados extra-bíblicos [e.g., Natal
e Páscoa]) ignoram ou deturpam a história da igreja.
Para provar que a distinção que Frame faz entre os Padrões de Westminster e os
outros textos puritanos e reformados — que supostamente extrapolam a Confissão e
produzem ―minimalismo litúrgico‖ — é falso, e que o ataque de Frame a esse alegado culto
minimalista é anticonfessional, vamos considerar brevemente três posições a que ele se
opõe, e que eram, contudo, defendidas pela Assembléia de Westminster: o cântico
exclusivo de salmos, a rejeição do uso de instrumentos musicais no culto e a rejeição de
dias santificados extra-bíblicos.
Lemos, na Confissão de Fé, quanto ao culto religioso: ―A leitura das Escrituras,
com santo temor; a sã pregação da Palavra e a consciente atenção a ela, em obediência a
Deus, com entendimento, fé e reverência; o cântico de salmos, com gratidão no coração;
bem como a devida administração e digna recepção dos sacramentos instituídos por Cristo
— são partes do culto comum oferecidos a Deus‖ (xxi.v). Segundo a Confissão, o que é que
os crentes devem cantar durante o culto comum oferecido a Deus? Eles devem cantar
salmos. A pergunta que sempre surge quanto a essa seção da Confissão é: o termo ―salmos‖
refere-se ao Livro dos Salmos, canções religiosas em geral, inclusive hinos criados pelos
homens, ou a todos os cânticos inspirados da Escritura? Os defensores do culto
neopresbiteriano gostam de apontar o fato de que a palavra salmos não possui inicial
maiúscula, como se isso provasse que ela é usada num sentido um tanto vago e genérico. O
problema desse argumento é o simples fato de que os autores dos Padrões de Westminster
apenas usavam a inicial maiúscula com a palavra salmos quando era utilizada como o título
de todo o livro. Observe a seguinte citação do Diretório para o Culto Público a Deus:
Também recomendamos a leitura mais freqüente dessa Escritura, de modo
que aquele que a lê deve decidir o que é melhor para a edificação de seus ouvintes,
como por exemplo, o livro dos Salmos e semelhantes. Quando o ministro que
estiver lendo julgar necessário expor alguma parte daquilo que é lido, que não seja
feito até que se conclua [a leitura] de todo o capítulo ou salmo... Após a leitura da
palavra (e o cântico do salmo), o ministro que irá pregar... É dever dos cristãos
louvar a Deus publicamente, com o cântico de salmos em conjunto com a
congregação, e também particularmente em família.
Ao cantar salmos, a voz deve ser harmônica e solenemente impostada; mas a
preocupação maior deve ser cantar com entendimento e com graça no coração,
louvando ao Senhor.
Para que toda a congregação possa participar conjuntamente, todo aquele
que sabe ler deve ter um livro de salmos; e todos os demais, não impedidos pela
idade ou por outro motivo, devem ser exortados a aprenderem a ler. Mas
presentemente, quando muitos na congregação não sabem ler, é conveniente que o
ministro, ou outra pessoa apropriadamente indicada por ele ou outro oficial
regente, leia o salmo, linha após linha, antes do seu cântico. 176
A citação acima prova que a palavra salmo ou salmos não se refere a cânticos de
176
Westminster Confession of Faith, 376, 393.
louvor de um modo geral, inspirados ou não, mas ao Livro dos Salmos em particular.
Um exame adicional às Atas da Assembléia de Westminster [Minutes of the
Westminster Assembly] prova que o único livro de cânticos aprovado pela assembléia para
o culto público era a versão do livro de Salmos do Sr. Rouse.
O Sr. Reynolds fez um relatório quanto a uma resposta aos Lordes sobre os
Salmos do Sr. Barton. Ela foi lida e debatida... Esta [é] a resposta à Câmara dos
Comuns.
À ordem — Considerando que a Nobre Câmara dos Comuns havendo, por
ordem datada de 20 de novembro de 1643, apresentado os Salmos organizados
pelo Sr. Rouse à consideração da Assembléia de Teólogos, esta Assembléia fê-los
serem cuidadosamente analisados, e como estão agora modificados e corrigidos, os
tem aprovado de fato, e humildemente considera que é útil e proveitoso para a
Igreja que sejam autorizadas para o canto público.(1)
À ordem — Que a comissão que analisou cuidadosamente os Salmos deve
levar esta [resposta] à Nobre Câmara dos Comuns.
[E que] Dr. Temple, Dr. Smith, Dr. Winconp levem a resposta à Câmara dos
Lordes.177
Uma nota de rodapé nos informa qual foi a resposta da Câmara dos Lordes. (1)
A Câmara resolveu em conclusão ―que este Livro de Salmos organizado
pelo Sr. Rouse, e cuidadosamente analisado pela Assembléia de Teólogos, seja
imediatamente impresso‖ — Journals of House of Commons [Diários da Câmara
dos Comuns], vol. iv, pág. 342.178
Os únicos debates que ocorreram na Assembléia de Westminster referentes ao
cântico de louvor foram sobre se outras traduções do livro dos Salmos deveriam ou não ser
cantadas nas igrejas. A Assembléia somente autorizou a versão de Rouse porque ―ajustava-
se exatamente ao texto original‖ e por causa da uniformidade e da edificação.
A Comissão elaborou uma resposta a Câmara dos Lordes sobre os Salmos do
Sr. Barton. Foi lida e posta em discussão.
Resolve sobre a questão. Que seja transcrita e enviada aos Lordes como a
resposta da Assembléia à sua ordem. O Sr. Carter Jr. registra seu dissentimento ao
voto de enviar esta resposta aos Lordes.(1)
(1)
Esta resposta não foi inserida nas Atas, mas foi preservada nos Diários da
Câmara dos Comuns, como segue:
À EXCELENTÍSSIMA CÂMARA DOS LORDES REUNIDA NO
PARLAMENTO.
Esta Assembléia de Teólogos recebeu, em 9 de abril desta Nobre Câmara
uma Notificação datada de 20 de março de 1646 — para lhes responder
formalmente por que não se deve autorizar nas igrejas, e aos que desejarem, o uso
e o cântico da tradução dos Salmos do Sr. Barton, bem como de qualquer outra
tradução — à qual respeitosamente responde o seguinte: Considerando que em 14
de novembro de 1645, em obediência a uma ordem dessa Nobre Câmara referente
177
Alex F. Mitchell e John Struthers, eds., Minutes if the Sessions of the Westminster Assembly of Divines
While Engaged in Preparing Their Directory of Church Government, Confession of Faith, and Catechisms
(November 1644 to March 1649) from Transcripts of the Originals Procured by a Committee of General
Assembly of the Church of Scotland (Edmonton, AB, Canada: Still Waters Revival Books, 1991 [1874]), 163. 178
Ibid..
aos Salmos do sobredito Sr. Barton, já havíamos lhes recomendado uma tradução
dos Salmos em versos produzida pelo Sr. Rouse, e detidamente analisada e
corrigida pelos mesmos doutos cavalheiros; a Comissão da Assembléia
entendendo que [esta] seria muito útil à edificação da Igreja por ajustar-se tão
exatamente ao texto original, e considerando que já existem diversas outras
traduções dos Salmos; entendeu despretensiosamente que se fosse concedida às
pessoas a liberdade de cantar na igreja cada uma das traduções que desejassem,
pois, de fato, diversas traduções poderiam vir a ser utilizadas ao mesmo tempo em
uma única congregação, isso poderia vir a ser uma grande desordem e obstáculo à
edificação — Diários da Câmara dos Comuns, vol. viii, págs. 283, 284.179
O último debate relativo ao uso ou não da tradução dos Salmos do Sr. Barton (ou
de qualquer outra versão exceto a de Rouse) ocorreu na manhã da quarta-feira de 22 de
abril de 1646.180
Conforme se observa na citação acima, ficou resolvido que seria permitida
nas igrejas somente a versão do Sr. Rouse. Apenas seis meses depois, na manhã da sexta-
feira de 30 de outubro de 1646, o capítulo xxi, ―Do Culto Religioso‖, foi votado e aprovado
pela Assembléia.181
A idéia (que é muito comum hoje) de que a palavra ―salmos‖ no
capítulo relativo ao culto religioso inclui hinos não-inspirados é claramente falsa. Será que
os puritanos e presbiterianos, na sua insistência quanto ao cântico exclusivo de salmos,
extrapolaram os Padrões de Westminster, conforme afirma Frame? Não, absolutamente
não! Se os neopresbiterianos quiserem incluir hinos e corinhos de acampamento em seus
atos de culto, os seus Concílios apóstatas certamente o aprovarão. Eles, entretanto,
deveriam ser abertos e honestos em admitir que, nesse assunto, são anticonfessionais.
Em sua Exposição da Confissão de Fé (1845) Robert Shaw ensina que ―o cântico
de salmos‖ na Confissão de Fé significa salmos bíblicos.
3. O cântico de salmos. Isso foi ordenado, no Velho Testamento, como uma
das partes do culto ordinário a Deus, e é diferenciado do culto cerimonial (Sl.
69:30, 31). Não foi revogado no Novo Testamento, antes pelo contrário, foi
confirmado (Ef. 5:19; Cl. 3:16). É sancionado pelo exemplo de Cristo e Seus
apóstolos (Mt. 26:30; At. 16:25). Os salmos de Davi foram, segundo o propósito
de Deus, criados especialmente para o uso da Igreja no exercício do público
louvor, na dispensação anterior, e são igualmente apropriados ao uso da Igreja na
presente dispensação. Embora os apóstolos insistam na abolição das práticas
rituais, eles jamais insinuam que os salmos de Davi não sejam apropriados para o
culto evangélico; se tivessem a intenção de exclui-los da era do Novo Testamento,
é de se imaginar que um outro saltério fosse providenciado em seu lugar. No Livro
dos Salmos há várias passagens que parecem indicar que o Espírito tencionava que
fossem utilizados pela Igreja em todas as épocas. Diz Davi: ―Exaltar-te-ei, ó Deus
meu e Rei; bendirei o teu nome para todo o sempre‖ (Sl. 145:1).182
179
Ibid., 221-222. 180
Ibid., 221. 181
Ibid., 298. 182
Robert Shaw, An Exposition of the Confession of Faith (Edmonton, AB, Canada: Still Waters Revival
Books, 1845), 224, 225. O pastor presbiteriano ortodoxo G. I. Williamson concorda: ―Um outro elemento do
culto verdadeiro é ‗o cântico de salmos, com gratidão no coração‘. Será observado que a Confissão não
reconhece a legitimidade do uso de hinos modernos no culto a Deus, mas apenas os salmos do Velho
Testamento. De modo geral não se compreende hoje que as igrejas presbiterianas e reformadas usavam
originalmente apenas os salmos inspirados, hinos, e cânticos do Saltério Bíblico no culto divino, mas este é o
Esta questão não está apenas clara no ensinamento da Confissão de Fé e do
Diretório do Culto Público, mas é fato histórico que os presbiterianos da Escócia, Irlanda e
América do Norte adotavam cântico exclusivo de salmos até a última parte do século
dezoito. O que é particularmente interessante, ao considerarmos o abandono do cântico
exclusivo do saltério pelas maiores denominações presbiterianas no século dezoito, é que
ela não foi posta de lado como o resultado de um minucioso estudo e contestação da parte
de pastores, doutores e teólogos. O afastamento de diversas denominações presbiterianas do
cântico exclusivo dos salmos (i.é, do culto bíblico) deveu-se basicamente a três razões.
(1) Diversas igrejas presbiterianas perderam o entendimento bíblico do princípio
regulador do culto e por isso só o aplicavam ao ato de culto público. Reuniões
―particulares‖, culto familiar e particular eram consideradas áreas da vida que estavam fora
alcance do rígido parâmetro da aprovação divina. Praticamente todas as inovações dos
séculos dezoito e dezenove penetraram nas igrejas através de práticas que foram
arbitrariamente colocadas para fora da ―sola scriptura‖ (e.g., culto familiar, Escola
Dominical, reuniões de avivamento, etc.).
(2) Muitos presbiterianos foram influenciados pelo sentimentalismo do
reavivamento pietista que varreu as colônias durante o século dezoito. Ao longo desse
período várias famílias e pastores começaram a usar a ―Imitação dos Salmos de Davi‖
[Psalms of David Imitated, 1719] de Isaac Watts, em lugar do saltério (1650)
cuidadosamente traduzido e empregado pelos presbiterianos daqueles dias. A versão dos
salmos de Watts era um afastamento radical do cântico exclusivo de salmos, sendo muito
mais que uma paráfrase dos salmos. Em muitas ocorrências equivalia a hinos não-
inspirados vagamente baseado nos Salmos. Não se deve esquecer jamais que Isaac Watts,
no prefácio de seu Hymns and Spiritual Songs [Hinos e Canções Espirituais, 1707], admitia
abertamente que considerava os Salmos de Davi como falhos, ―contrários ao evangelho‖ e
capazes de fazer os crentes ―falarem falsamente a Deus‖. A versão dos Salmos de Watts foi
aceita por muitas famílias e diversos ministros, e foi uma pedra de passagem para a
clamorosa hinologia do hinário de Watts.*
(3) As inovações do século dezoito não teriam se enraizado se os presbitérios das
colônias tivessem feito seu trabalho e disciplinado os ministros que haviam corrompido o
culto a Deus e se apartado da Escritura e dos Padrões de Westminster. Havia uma certa
indisposição em fazer da pureza do culto uma questão de disciplina. Ocorreram várias
disputas a respeito da versão de Watts de 1752 até 1780. O resultado, entretanto, era sempre
o mesmo. O presbitério ou sínodo envolvido recusava tomar atitudes decisivas, permitindo,
dessa forma, que as imitações de Watts permanecessem. Como resultado, os que não
desejavam se contaminar separaram-se em grupos presbiterianos bíblicos menores. O
caso. A Assembléia de Westminster não apenas expressou a convicção de que apenas os salmos deveriam ser
cantados no culto divino, mas a colocou em prática ao preparar uma versão metrificada do Saltério para ser
usada nas igrejas. Este não é o lugar para tecer considerações sobre esta questão, mas devemos lembrar a
nossa convicção de que a Confissão está correta nesse ponto. Cremos que ela está certa porque jamais ficou
provado que Deus ordenou à Sua Igreja que cantasse as composições não-inspiradas em vez de, ou juntamente
com os cânticos inspirados, hinos e salmos do Saltério no culto divino‖ (The Confession of Faith for Study
Classes [Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1964], 167). * Isaac Watts (1647-1748), hinólogo inglês, foi ministro congregacional em Londres, e era um calvinista não
muito convicto. Não se sentia satisfeito com as doutrinas da depravação total e da reprovação, e alguns tem
visto tendências arianas em suas obra publicadas. Foi noticiado que Watts tornou-se unitário nos seus anos
finais, mas nunca houve provas disso (N.E.).
declínio foi codificado em 1788 quando se adotou um novo diretório para o culto que
modificava a declaração de ―cântico de salmos‖ do diretório de 1644 para ―por cântico de
salmos e hinos‖.
Michael Bushell nos chama a atenção para que aprendamos com os erros e os
pecados da PCUSA (Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América). Ele escreve:
Debaixo das influências pietistas e humanistas que integravam e acompanhavam o
Grande Despertamento, a igreja presbiteriana americana chegou, por fim, à
conclusão de que a paz da igreja seria melhor alcançada se se permitisse uma
considerável diversidade nas práticas de culto das igrejas sob o seu cuidado. A
prática de culto da igreja presbiteriana foi, com efeito, desatrelada dos laços da
Escritura e deixada à vontade para seguir o seu próprio rumo. Foi essa situação,
mais que qualquer outra, que conduziu a igreja presbiteriana finalmente a apostasia
modernista. Se uma igreja não mantiver o seu culto puro e bíblico, se não
preservar zelosamente pela sua prática, quando o seu povo se apresenta diante de
Deus em louvor e adoração conscientes, então não se deve esperar que ela preserve
por muito tempo a sua pureza doutrinária. Não é de causar o menor espanto que os
homens tenham tão pouco respeito intelectual pelas Escrituras, quando, dia após
dia, desprezam os seus claros mandamentos quanto à maneira que o seu Autor
deve ser adorado. O culto da igreja presbiteriana nesse país é determinado agora
pelos ditames das conveniências, e não pelas demandas das Escrituras, e, nesse
campo, não há basicamente qualquer diferença entre as igrejas liberais e as
evangélicas, não pelo menos quanto à forma exterior. Aos nossos irmãos das
várias comunhões reformadas que discordam disso, gostaríamos de fazer esta
simples pergunta: ―Se o princípio regulador não fosse ensinado na Escritura que
diferença ele faria no seu culto?‖ A resposta, na maior parte dos casos, seria,
―muito pouco‖. Também perguntaríamos a esses nossos irmãos se têm procurado
aplicar conscientemente o princípio regulador à sua prática de culto. Desconfiamos
que a maioria das pessoas em nossas igrejas reformadas jamais ouviram falar do
princípio regulador, e muito menos em procurar aplicá-lo. As nossas igrejas
reformadas herdaram um padrão de pensamento que encoraja virtualmente
qualquer prática de culto desde que não ofenda as pessoas erradas. Estas são
palavras ásperas, mas estamos totalmente convictos de que são exatas.183
Uma outra suposta prática ―minimalista‖ que Frame alega extrapolar os Padrões de
Westminster é a rejeição do uso de instrumentos musicais no culto. Será que a rejeição
desses instrumentos no culto era apenas a opinião de alguns puritanos que extrapolaram o
consenso da Assembléia? Não, absolutamente não! Uma carta dos ministros e presbíteros
escoceses que eram delegados na Assembléia [de Westminster] à Assembléia Geral da
Escócia (1644) prova o contrário. Nela se lê: ―Só podemos nos maravilhar com a boa mão
de Deus nas grandes coisas já realizadas até aqui, particularmente: que o Pacto (a base de
toda a obra) foi aceito; que a liderança eclesiástica e todo o [seu] séquito foi, por causa
disso, extirpado; o Livro de Oração, esquecido em muitas localidades, a pregação plena e
183
Michael Bushell, The Songs of Zion, 210-211. Para uma discussão mais completa sobre o abandono da
salmodia exclusiva pela PCUSA, vide Bushell, 198-212. O abandono do cântico exclusivo de salmos por
outras denominações presbiterianas e pelas igrejas reformadas holandesas é discutido nas páginas 212-220.
Para o aprofundamento da leitura sobre a PCUSA e os salmos de Watts, vide Charles Hodge, The
Constitutional History of the Presbyterian Church in the United States of America (Philadelphia: Presbyterian
Board of Publications), parte 2, 244-306.
poderosa estabelecida; muitas faculdades de Cambridge supridas com ministros zelosos da
melhor Reforma; altares removidos; os grande órgãos de Paulos e Pedros em Westminster
foram derrubados; imagens e muitos outros monumentos de idolatria destruídos e
abolidos‖.184
A Assembléia Geral escocesa respondeu à correspondência dos comissionados
com uma carta oficial à Igreja da Inglaterra, onde se lê: ―Fomos grandemente reconfortados
ao tomar conhecimento pelas cartas dos nossos comissários que estão convosco... das
grandes e boas coisas que o Senhor tem operado entre vós e em vosso favor... a remoção de
muitas corrupções como altares, imagens, e outros monumentos de idolatria e superstição...
a derrubada dos grandes órgãos em Paulos e Pedros‖.185
O não uso de instrumentos
musicais no culto era a norma entre puritanos e presbiterianos e a posição principal dos
teólogos de Westminster. Os presbiterianos começaram a abandona essa posição na década
de 1880.
Uma terceira prática que Frame consideraria ―minimalista‖ e exagerada é a não
celebração de dias santificados (e.g., Natal e Páscoa) excetuando-se o domingo, que é o
sábado cristão. Há nessa posição alguma coisa que exceda a Assembléia de Westminster?
Não. A Assembléia demonstrou muito claramente a sua posição nessa matéria. O seu
Diretório do Culto Público a Deus diz: ―não há, sob o evangelho, outro dia ordenando pela
Escritura a ser santificado exceto o dia do Senhor, que é o sábado cristão. Dias festivais,
vulgarmente chamados de dias santos, por não terem o aval da Palavra de Deus, devem ser
descontinuados‖.186
Frame aparentemente quer nos fazer crer que além dos Padrões de Westminster,
com os quais ele diz estar em concordância, há outros textos puritanos e reformados que
extrapolam a Confissão e que precisam ser corrigidos. Dado o fato de que a Assembléia
endossou o uso exclusivo dos salmos, a supressão dos instrumentos musicais no culto e dos
dias santos, pedimos a Frame que nos mostre quais são os aspectos ―minimalistas‖ que
extrapolam a Confissão aos quais ele se refere. Puritanos havia que reivindicavam que as
igrejas parassem de recitar o Credo, a oração dominical, a confissão e a doxologia.
Também houve discordâncias sobre assuntos tais como conventículos. Não houve, contudo,
divisões além desses temas periféricos. Se esses são os itens aos quais se refere Frame, não
dá para ser dito pela leitura do seu livro. As questões que realmente o aborrecem, com as
quais despende tempo contestando, foram todas corroboradas pela Assembléia de
Westminster. Portanto, é justo concluir-se que o livro de Frame é, em muitos aspectos, um
ataque aos Padrões de Westminster, em particular, e ao culto reformado, em geral.187
184
John Maitland, Alexander Henderson, Samuel Rutherford, Robert Baillie e George Gillespie (os delegados
escoceses da Assembléia de Westminster, 1644). 185
A Resposta das Assembléias Gerais à Excelentíssima Reverenda Assembléia de Teólogos na Igreja da
Inglaterra (1644). Samuel Gibson escreve: ―Mas tem-se dito freqüentemente: Tirar o Livro de Oração
Comum é tirar a nossa Religião. Não, de maneira alguma, [pois] a nossa Religião está na Bíblia, nela está o
nosso Deus, e o nosso Cristo, e a nossa fé, e o nosso Credo em todos os pontos. A Bíblia em sua totalidade foi
a crença de Paulo; nela estão os salmos de Davi, e as suas orações, e a oração dominical, e outras orações
pelas quais podemos aprender a orar. Temos ainda os Cânticos do Senhor, os Cânticos de Sião, cantados por
muitos com graça em seus corações, louvando ao Senhor, contudo sem os órgãos. Nela temos todos os
mandamentos‖ (Samuel Gibson [ministro, Igreja da Inglaterra, teólogo em Westminster], The Ruin of the
Authors and Fomentors of Civil Wars [1645]). 186
Confession of Faith, 394. 187
O que é particularmente bizarro no livro de Frame, é que no parágrafo imediatamente anterior ao que ele
falsamente afirma que o culto minimalista não foi um produto dos Padrões de Westminster, mas que veio de
outras obras puritanas e reformadas que excedem aos Padrões, ele escreve: ―O culto presbiteriano — baseado
A Redefinição de Frame para o Princípio Regulador
Nessa seção provaremos que Frame redefine completamente o princípio regulador
do culto. É muito importante que os crentes Reformados que aderem aos símbolos
Reformados entendam que o conceito de sanção divina de Frame não tem virtualmente
nada a ver com os Padrões de Westminster. Na verdade, aquilo que Frame apresenta como
uma exposição do princípio regulador é totalmente inusitado. Este autor (que tem estudado
amplamente esta questão) desconhece quaisquer outros teólogos Reformados, expositores
ou autores que têm advogado aspectos do princípio regulador ou da sanção divina que
sejam, nem remotamente, semelhantes à visão de Frame. (Talvez a mais aproximada seja o
―princípio de culto informado‖, de Steven Schlissel, que se fundamenta na rejeição aberta
do princípio regulador).188
Frame deveria ter seguido o seu próprio conselho sobre como
escrever um artigo teológico. Ele escreve: ―no mínimo, no mínimo, envolverá pesquisa
exegética e inteligente interação com os textos bíblicos. De outro modo, o trabalho
teológico mui pouco poderá recorrer à validade bíblica de seus argumentos; e se não for
bíblico, não terá, simplesmente, o menor valor‖.189
Nós veremos que o modo como Frame
usa os textos bíblicos para assegurar a sanção divina, para coisas como representação
teatral, não é inteligente nem bíblico e completamente sem valor. Frame continua: ―além
disso, deve haver normalmente alguma interação com outros teólogos ortodoxos para
resguarda-se de alguma aberração individualista‖.190
A maneira como Frame compreende o
princípio regulador é claramente uma aberração individualista. Este resenhista desafia a
Frame, e aos professores de seminário que endossam seu livro anti-confessional, a
apresentarem um único autor Reformado que concorde com o conceito de sanção divina
produzido por Frame.
Frame lança o fundamento da sua singular versão do princípio regulador nos
capítulos 4 e 5 de seu livro. No capítulo 4 (―Normas Para o Culto‖) ele discute o princípio
regulador. No capítulo 5 (―O Que Fazer no Culto‖) trata dos elementos do culto. O que
Frame faz nesses capítulos é muito enganoso. Primeiro, dá uma honesta definição padrão e
ortodoxa do princípio regulador (nessa seção, entretanto, ele ignora totalmente como os
puritanos e presbiterianos definiram métodos de sanção divina). Após apresentar-se como
presbiteriano confessional aderente do princípio regulador, ele prossegue,
sistematicamente, redefinindo e destruindo o entendimento confessional histórico do
mesmo princípio. Uma leitura atenta do livro de Frame revela que ele crê que o
entendimento confessional histórico do princípio regulador não é bíblico nem exeqüível. E
por acreditar que o entendimento confessional histórico do princípio regulador não é bíblico
no ‗princípio regulador‘ bíblico, que descrevo nessas páginas — foi nos primórdios muito limitador, severo e
‗minimalista‘. Excluía órgãos, conjuntos corais, e letras de hinos que não fossem os salmos, simbolismos em
assuntos de culto, e dias santificados com exceção do sábado cristão‖ (p. xii). O princípio regulador que
produziu o culto presbiteriano e reformado que Frame descreve e diz que em seu começo era limitador, severo
e minimalista, está assentado muito mais rigorosamente nos Padrões (e.g., CFW: i.vi-vii; xx.ii; xxi.i-v; CM:
108, 109, 110; BC: 50, 51, 52). A versão histórica de Frame não tem o menor sentido, seja qual for. Dizer que
os puritanos e os presbiterianos ensinavam e praticavam um rígido tipo de culto regulativista, embora em seus
Padrões adotassem algo supostamente diferente, é uma versão totalmente absurda. 188
Veja, por Brian Schwertley, A Brief Critique of Steven Schlissel Article Against the Regulative Principle of
Worship (www.iserv.net/~graceopc/pub/schwertley/schlissel.html). 189
John M. Frame, The Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed,
1987), 371. 190
Ibid.
nem exeqüível, Frame o põe de lado e apresenta a sua inusitada versão dele.
Como é que Frame substitui o princípio regulador confessional pela sua versão
particular? Há uma série de coisas que precisam ser examinadas na nossa análise da
definição de Frame. Primeiro, ele adota a posição de que a Bíblia nada apresenta de
específico quanto ao culto, mas apenas generalidades. Esse tipo de argumento era comum
entre os teólogos anglicanos (e.g., Hooker) ao tentarem refutar os puritanos. De acordo com
Frame, essas coisas específicas foram deixadas ao arbítrio dos homens. Segundo, Frame
cria uma falsa imagem da posição puritano-presbiteriana a respeito das reuniões formais em
oposição às reuniões informais. Ele também não distingue entre culto público, familiar ou
particular e ignora as diferenças entre eventos extraordinários e momentos especificados
para a adoração. Frame é capaz de chegar ao ponto de escarafunchar as Escrituras
procurando provas em referências que, claramente, nada têm a ver com o culto público.
Terceiro, Frame rejeita a perspectiva confessional sobre as circunstâncias do culto em favor
do que denomina de ―aplicações‖. Tal divorciamento da Confissão lhe permite abandonar
uma aprovação específica em favor de uma sanção que depende de regras ou princípios
genéricos. Frame adota as regras que os teólogos de Westminster aplicaram apenas às
circunstância ou incidentes do culto e as usa como garantia divina para as ordenanças de
culto. Quarto, Frame rejeita a perspectiva da Confissão de Fé quanto aos elementos do
culto. Ele substitui a visão confessional de elementos separados, que dependem
individualmente de aprovação divina específica, em favor de umas poucas categorias gerais
que os homens podem aplicar cabalmente como lhes aprouver. À medida que consideramos
a redefinição de Frame para o princípio regulador não podemos perder de vista o fato de
que o seu livro é uma defesa do culto neopresbiteriano (i.é, no estilo arminiano-
carismático). As suas ladinas redefinições visam a um único alvo, qual seja: a remoção do
rígido e ―minimalista‖ conceito confessional da sanção divina em prol de um conceito mais
amplo, genérico e frouxo.
A Falsidade Ideológica de Frame Quanto aos Padrões de Westminster
Ao se ler a subscrição de Frame aos Padrões de Westminster e a sua definição
inicial do princípio regulador, à parte do restante de seu livro, tem-se a impressão de que
ele é um presbiteriano confessional ou ortodoxo. Frame escreve: ―Meu próprio
compromisso teológico é presbiteriano; eu endosso entusiasticamente a Confissão de Fé de
Westminster e os Catecismos, e tenho certeza de que tal compromisso ficará bem
evidenciado neste livro‖.191
Observe que Frame defende o entendimento de culto reformado contra as visões
não-reformadas. Ele escreve: ―Católicos romanos, episcopais, e luteranos adotam a posição
de que podemos fazer tudo no culto, exceto aquilo que a Escritura proíbe. Aqui as
Escrituras regulam o culto de maneira negativa — pelo exercício do poder de veto. As
igrejas presbiterianas e reformadas têm, entretanto, empregado um princípio mais vigoroso:
tudo aquilo que as Escrituras não ordenam é proibido. A Escritura tem aqui um maior poder
de veto; a sua função é essencialmente positiva. Nessa perspectiva a Escritura deve
positivamente exigir uma prática, se tal prática for apropriada para o culto a Deus‖.192
Frame, então, cita a clássica declaração regulativista da Confissão de Fé de Westminster
(xxi.i) e diz: ―A palavra chave é ‗prescrito‘. Posteriormente essa restrição de culto tornou-
191
Frame, Adoração em Espírito e Verdade, xiv-xv. 192
Ibid., 38.
se conhecida como ‗princípio regulador‘‖.193
Frame continua: ―podemos, confiados em nós
mesmos, determinar à parte da Escritura, aquilo que Deus gosta ou não gosta no culto?
Nossa limitação e pecado nos desqualificam para exercermos tal juízo... A própria Escritura
condena o culto que se baseia apenas nas idéias humanas... A Escritura, a Palavra de Deus,
é suficiente para tudo do culto, como para tudo da vida‖.194
Frame faz referência a uma
série de passagens regulativistas padrão como Lv. 10:1-2, Is. 29:13, Mt. 15:8-9, Mc. 7:6-7 e
Cl. 2:23.195
Frame Tira a Fantasia
Após ler a declaração de Frame quanto ao seu compromisso com os Padrões de
Westminster e o princípio regulador, pode-se pensar, naturalmente, que Frame seja um
ardente defensor do princípio regulador e do culto reformado de Calvino, Knox, os
puritanos e dos presbiterianos primitivos. A verdade sobre o assunto, entretanto, é que o
conceito de Frame para o princípio regulador e sanção divina, como delineado no restante
do seu livro, é uma rejeição explícita dos Padrões de Westminster e do culto confessional
reformado.
Pode-se começar a ver a verdadeira opinião de Frame sobre o princípio regulador
quando ele escreve: ―Diferentemente de alguns escritores presbiterianos, eu creio que
compreendo, e sinto simpatia, por que alguns cristãos preferem não cultuar da forma
presbiteriana. Eu reconheço que há problemas reais com a visão presbiteriana tradicional
que precisam ser abordados pelas Escrituras, e pretendo tratar desses problemas
seriamente‖.196
Será que não lemos o suficiente sobre o vigoroso compromisso de Frame
193
Ibid., 39. 194
Ibid. 195
Frame, 39. Embora Frame nos apresente uma lista de textos de abonação tradicionais do princípio
regulador, observe que ele, na verdade, não acredita que essas passagens o confirmem, e nos diz que ampara-
se em princípios mais gerais; embora não nos diga onde ou como esses princípios são derivados da Escritura.
Ele escreve: ―Alguns leitores irão notar que embora haja citado anteriormente uma lista de passagens, como
Lv. 10:1-3, para demonstrar o desagrado de Deus para com o culto ilegítimo, eu não usei esta lista para provar
o princípio regulador, mas tenho em vez disso me amparado em considerações mais gerais. A mim não parece
que essa lista de passagens comprove a exatidão da questão de que ‗tudo aquilo que as Escrituras não
ordenam é proibido‘. As práticas condenadas nessas passagens não são meramente não ordenadas, elas são
explicitamente proibidas. Por exemplo, aquilo que Nadabe e Abiú fizeram em Lv. 10:1 não era apenas ‗não-
ordenado‘, como nos informa o texto, mas também ‗contrário ao mandamento [de Deus]‘. O fogo deveria ser
tirado do altar de Deus (Nm. 16:46) e não de uma fonte particular (compare Ex. 35:3)‖ — [pág. 47, nota final
2]. É errônea a análise de Frame do episódio de Nadabe e Abiú. A razão por que o fogo deles é chamado de
―estranho‖ (Versão do Rei Tiago), ―profano‖ (Nova Versão do Rei Tiago) ou ―não-autorizado‖ (Nova Versão
Internacional) não é porque é expressamente proibido, mas pelo que o texto diz explicitamente: porque jamais
fora ordenado. As passagens oferecidas por Frame para contrariar o entendimento regulativista tradicional não
confirmam, de modo algum, o seu ponto de vista. O texto de Nm. 16:46 apenas diz que o fogo deve ser tirado
do altar e posto no incensário. Nem nessa nem em outra passagem qualquer se diz expressamente às pessoas
para não usar fogo de outra origem. A questão do princípio regulador é que quando Deus diz, ―tira fogo do
altar‖, os homens devem obedecer-Lhe a determinação sem acrescentar as suas próprias regras ou tradições
humanas. A passagem que Frame oferece como prova de que o fogo de uma outra origem é expressamente
proibido (Ex. 35:3) apenas ensina que o povo não deve acender fogo em suas moradas no dia de sábado. Nada
tem a ver com a passagem de Lv. 10: 1. É estranho que Frame cite — numa seção sobre o princípio regulador
— uma série de passagens nas quais não acredita realmente que ensine o princípio regulador; não deveríamos,
entretanto, nos surpreender com tais contradições, uma vez que ele, no mesmo livro, endossa com fervor os
ensinamentos dos Padrões de Westminster quanto ao culto para logo em seguida os rejeitar explicitamente. 196
Ibid., xv.
com os Padrões de Westminster e o princípio regulador? Se Frame adere à Confissão de Fé
e aos Catecismos Maior e Breve, como alega, não deveria ele, então, crer que o modo
presbiteriano é o modo bíblico? Não está ele aqui admitindo que pensa haver problemas
com os Padrões de Westminster que precisam ser tratados pelas Escrituras? Noutras
palavras, os Padrões de Westminster não são bíblicos e precisam ser alterados para
concordarem com o ensinamento bíblico. É possível que Frame não esteja se referindo
propriamente aos Padrões, mas à corrupção que vem ocorrendo no culto presbiteriano
desde a segunda metade do século dezoito? Não. Desde que Frame gasta uma boa parcela
de tempo defendendo o declínio que tem ocorrido, só se pode concluir que ele acredita que
há ―problemas reais‖ com os Padrões de Westminster.
Frame também admite que o seu conceito de princípio regulador deixa bastante
espaço para autonomia humana. Ele escreve: ―O primeiro elemento para a adoração
significativa é fazer como Deus ordena. Além disso, é claro, há a questão de como melhor
concretizar esses mandamentos em nosso tempo e lugar presentes. Essa é a questão da
―linguagem‖ com a qual deveríamos expressar nossa adoração a Deus, e com a qual
deveríamos buscar a mútua edificação. Mas temos que saber quais foram os limites que
Deus nos impôs antes que possamos determinar as áreas em que somos livres para buscar
formas mais significativas. Uma das minhas principais preocupações nesse livro é definir
duplamente tanto as áreas em que estamos cativos pelas normas de Deus, quanto as que
fomos postos em liberdade (por aquelas mesmas normas!) para desenvolvermos aplicações
criativas daquelas normas‖.197
A chave para se entender a redefinição de Frame do
entendimento histórico do princípio regulador é a expressão ―aplicações criativas‖ (a sua
perspectiva singular quanto as ―aplicações criativas‖ será tratada abaixo).
Frame acredita que o princípio regulador não conduz o povo de Deus a nenhum
―estilo de culto‖ particular. Ele escreve: ―no restante deste livro, portanto, não vou instar
com ninguém para conformar-se ao estilo de culto Puritano, nem a qualquer outro estilo.
Quanto a isso, comparado à maioria dos outros livros sobre adoração, esse livro será
bastante incomum! Antes apresentarei o princípio regulador como aquele que nos liberta,
dentro de limites, para adorar a Deus na linguagem de nossos dias; que nos liberta para
buscar por aquelas aplicações dos mandamentos de Deus que mais edificam os adoradores
em nossas culturas contemporâneas. Temos que ser tanto mais conservadores quanto mais
liberais do que a maior parte dos estudiosos do culto cristão: conservadores em apegarmo-
nos exclusivamente aos mandamentos de Deus na Escritura, como nossa regra de culto, e
liberais, ao defender a liberdade daqueles que aplicam esses mandamentos de modos
legítimos, embora não tradicionalmente‖.198
Segundo Frame a Bíblia não oferece quaisquer
esboços na esfera do culto. Antes pelo contrário, ela é vaga e genérica e deixa, portanto, os
detalhes para o homem (i.é, autonomia humana).199
197
Ibid., xv. 198
Ibid., 46. 199
Frame também tem assumido posições antibíblicas quanto à participação da mulher no culto. Ele absorveu
os ensinamentos de James Hurley sobre este assunto, os quais foram criados para driblar o claro ensinamento
da Escritura e acomodar a infiltração do feminismo na igreja. Frame escreve: ―em geral, eu concordo com
James Hurley, Man and Woman in Biblical Perspective (Grand Rapids: Zondervan, 1981), e outros, que
argumentam que a única limitação bíblica à função das mulheres é que não podem exercer o presbiterato.
Hurley afirma que a proibição de falarem, em 1Co. 14:34 e 35, não se aplica durante a congregação, mas ao
juízo autoritativo dos profetas descrito nos versículos 29-33, ―julguem cuidadosamente o que foi dito‖ (NVI),
e que a proibição de ensinarem, de 1Tm. 2:12, refere-se ao ensinar autoritativo do ofício presbiteral. Seja qual
Segundo os Padrões de Westminster e o pensamento Puritano, o princípio
regulador liberta o homem das tradições e inovações no culto. Frame define o princípio
regulador de tal maneira que dá autonomia para fazer inovações, estabelece alguns
princípios gerais a serem seguidos e denomina essas inovações de ―aplicação criativa‖. Ele
escreve: ―No meu ponto de vista, uma vez que tenhamos compreendido o que a Escritura de
fato ordena quanto ao culto, veremos que ela deixa verdadeiramente um grande número de
coisas ao nosso arbítrio, e por isso permite uma considerável flexibilidade. Eu acredito que
a maioria dos livros sobre culto, presbiterianos ou outros, não avaliam corretamente o nível
da liberdade que a Escritura nos permite no culto... Este livro, no entanto, enfatizará que a
Escritura deixa muitas questões em aberto — questões às quais igrejas diferentes, em
for o modo de interpretarmos essas difíceis passagens, está claro que sob algumas circunstâncias as mulheres,
de fato, falaram legitimamente no culto (1Co. 11:5), e que não estavam totalmente impedidas de ensinar (At.
18:26; Tt. 2:4) (pág. 75, nota de fim 6)‖. São várias as razões por que o ensinamento de Frame e de Hurley
deve ser rejeitado. Primeiro, em lugar nenhum da Bíblia encontramos um contraste entre o ensinar autoritativo
com o ensinar não-autoritativo no culto público. Esse tipo de distinção arbitrária, sem fundamentação textual,
teria enchido de orgulho os escolásticos medievais. Segundo, Hurley ignora o fato de que embora não fosse
permitido às mulheres fazer perguntas, falar ou ensinar nas sinagogas judaicas na Velha Aliança e na era
apostólica, aos homens — os cabeças da casa — era permitido perguntar e tecer comentários sobre a leitura e
exposição da Escritura. As mulheres tinham que perguntar a seus maridos em casa. Por que ignorar o contexto
histórico (e o ambiente cultural) e forçar no texto uma leitura da cultura feminista moderna? A resposta é
simples. Os argumentos de Hurley são mais a justificação de uma prática existente (i.é, o declínio corrente) do
que uma exegese objetiva. Terceiro, em ponto algum da passagem ou do contexto se diz que o silêncio das
mulheres aplicava-se apenas ao juízo de profetas. A conclusão de Hurley é especulativa — especulação não
levantada por praticamente nenhum comentarista, teólogo ou pregador até a ascensão e popularidade do
feminismo na década de 70. Quarto, a conclusão especulativa de Hurley contradiz o ensinamento explícito de
1Tm. 2:12 onde não há a possibilidade de que Paulo esteja falando sobre a avaliação de profetas. Quinto, as
razões dadas pela Escritura para que as mulheres não falem, ensinem ou façam perguntas na igreja — e.g., (1)
a escala de autoridade ordenada por Deus, 1Co. 11:3; (2) Adão foi criado primeiro, 1Tm. 2:13; (3) a mulher
(Eva) foi originada do homem (Adão), Gn. 2:21-22, 1Co. 11:8; (4) a mulher-esposa foi criada como uma
auxiliadora para o homem-Adão, Gn. 2:18, 1Co. 11:9; (5) Eva foi enganada e caiu em transgressão, 1Tm.
2:14; (6) a autoridade do marido segundo o pacto, 1Co. 14:34-35 — aplicam-se obviamente a toda forma de
ensinar ou de falar no culto público. Tais razões não podem ser aplicadas arbitrariamente apenas a um tipo de
falar ou de ensinar. Esta posição tem o forte apoio das declarações de Paulo sobre as mulheres serem
submissas e argüirem aos seus maridos em casa. Paulo está claramente expondo e dando sustentação ao
ensinamento bíblico quanto à autoridade segundo o pacto. Hurley aplica artificialmente esses princípios
amplos e abrangentes a um mínimo fragmento do culto público (ao juízo de profetas) que nem mesmo se
aplica mais à igreja moderna, pois a profecia cessou. Sexto, a alegada grande dificuldade de conciliar 1Co.
11:5 (onde se diz que a mulher ora e profetiza) com 1Co. 14:34-35 (onde se proíbe às mulheres que falem na
igreja) têm sido solucionada de modo a não violentarem a analogia da Escritura, e são muito mais
responsáveis exegeticamente do que a especulação de Hurley. São três as possíveis interpretações: (1) Quando
Paulo diz que a mulher ora e profetiza, em 1Co. 11:5, o termo profecia refere-se ao cântico de Salmos, que
são Escritura profética; (2) A discussão de Paulo quanto sobre a mulher orar e profetizar no culto público é
meramente hipotética, pois mais adiante, em 1Co. 14:34-35, ele proíbe totalmente tal prática (cf. o comentário
de Calvino sobre essa passagem); (3) Paulo, sob inspiração, considera que a exposição da revelação direta da
parte de Deus, pelas mulheres, seja uma exceção ao normal ato de falar (e.g., fazendo comentários ou
perguntas) e ensinar (e.g., a exposição não-inspirada das Escrituras). Em outras palavras, como na profecia é o
próprio Deus que fala sem usar a explanação humana, quando uma mulher profetiza não é ela própria que está
exercendo autoridade sobre o homem. As passagens utilizadas por Frame (At. 18:26; 1Tm. 2:12) sobre o
ensino das mulheres nada tem a ver com o culto público. A primeira passagem refere-se ao ensinamento
particular de Priscila e de seu marido a Apolo. A segunda passagem refere-se às mulheres mais velhas que,
através de seu relacionamento interpessoal com as mais jovens, devem ensiná-las serem boas esposas e donas
de casa.
situações diferentes, podem responder diferentemente com legitimidade‖.200
Se o princípio
regulador limita os homens apenas àquelas práticas que dependem de sanção divina ou
prova bíblica, como pode alguém dizer que tal princípio concede grande liberdade ao
homem? Se, por liberdade, Frame quer dar a entender a liberdade da doutrina,
mandamentos e inovações de homem, ou refere-se a uma certa liberdade nas áreas que são
circunstanciais ao culto (e.g., organização da bancada, iluminação, tipo de púlpito, etc.),
então haveríamos de concordar. Entretanto a sua definição para liberdade extrapola os
Padrões de Westminster. Ele define a liberdade como uma ―aplicação criativa‖ de
princípios gerais que podem conduzir a tipos de culto completamente diferentes. Observe
as expressões tais como: ―nosso arbítrio‖, ―considerável flexibilidade‖, ―aplicação criativa‖,
―muitas questões em aberto‖, ―somos livres para buscar formas mais significativas‖, etc.
Frame quer um culto fundamentado na autonomia humana e cheio de inovações, mas que
esteja entrelaçado mui frouxamente, de alguma maneira, com o ensino geral da Escritura.
O Princípio Regulador ―Não-específico‖ de Frame
A singular definição do princípio regulador de Frame fundamenta-se em parte no
seu modo de entender reuniões realizadas na sinagoga e no cristianismo (apostólico). Ele
escreve: ―Jesus freqüentava e ensinava regularmente na sinagoga (Lc. 4:15-16), portanto
não pode haver qualquer dúvida da aprovação de Deus à instituição. Entretanto, é
interessante observar que a sinagoga e o templo tinham bases bíblicas bem diferentes: Deus
regulamentava detalhadamente o culto sacrificial do tabernáculo e do templo, ordenando o
povo a fazer tudo estritamente conforme o modelo revelado. Contudo, quanto à sinagoga
(ou à questão sobre os ministérios de ensino e oração realizados na mesma condição do
templo), Ele quase nada dissera a Israel, deixando largamente sob o arbítrio do povo a
organização dos atos de culto dela. É claro, eles sabiam em geral o que Deus queria: Ele
queria que a Sua Palavra fosse ensinada, e que se fizessem orações. Mas Deus deixou os
específicos em aberto‖.201
Frame argumenta que a permissão divina aplica-se apenas de um
modo ―geral‖. Os específicos estão ―em aberto‖. Quer dizer, os específicos são
determinados pelo homem.
Frame afirma que a reunião cristã ocorria como na sinagoga, em que a aprovação
bíblica não descia ao nível dos detalhes específicos do culto. Portanto, varias atividades que
fazem parte do culto religioso da Nova Aliança não exigem ―autorização bíblica
específica‖. Ele escreve: ―infelizmente é praticamente impossível provar que algo seja
exigido divina e especificamente para os atos de culto oficiais‖.202
Ele acrescenta: ―O Novo
Testamento nos fala um pouco mais acerca das reuniões cristãs (que se pareciam mais com
as da sinagoga do que com o culto sacrificial do templo), mas não nos apresenta uma
relação sistemática ou exaustiva dos eventos que eram autorizados para esses atos de culto.
Ele certamente não nos dá uma lista de elementos, no sentido técnico da teologia Puritana:
atividades que exigem autorização bíblica específica, ao contrário das circunstâncias ou
aplicações que não o exigem‖.203
Depois de afirmar que o princípio regulador não se aplica a específicos (no seu
entender não-confessional do princípio regulador), Frame define a sua versão ímpar da
200
Ibid., xvi. 201
Ibid., 2, ênfase acrescentada. 202
Ibid., 44, ênfase acrescentada. 203
Ibid., 54.
aprovação divina. Ele escreve: ―Na falta de específicos, temos que, por instrumentalidade
da nossa sabedoria santificada, aplicar generalidades, dentro dos princípios gerais da
Palavra... O Novo Testamento não nos apresenta uma lista exaustiva do que se fazia ou não
nas reuniões cristãs primitivas. Entretanto, como no caso da sinagoga do Velho
Testamento, nós, ao apelarmos a amplos princípios teológicos, podemos obter a certeza
daquilo que Deus quer que façamos quando nos reunimos em Seu nome‖.204
Frame crê que
a Bíblia não é específica na esfera do culto. Ela é incompleta, vaga e genérica. É como um
mapa defeituoso que mostra grandes rotas, mas que faltam os detalhes. Para que o mapa
seja útil (ou funcional) os homens devem usar a sua ―sabedoria santificada‖ para preencher
os vazios dos específicos e completar os detalhes e as partes que faltam. Frame tem
assumido uma posição que é muito mais próxima do episcopalismo do que da rígida
posição regulativista dos Padrões de Westminster. Embora não diga que ao homem tudo é
permitido, desde que as suas inovações não sejam contrárias à Escritura, ele lhe permite
uma autonomia de âmbito muito amplo, desde que a prática esteja frouxamente embasada
nos ―princípios gerais da palavra‖.
Algumas idéias nas declarações de Frame precisam de comentários adicionais.
Primeiro, ele adotou a interpretação anti-regulativista da sinagoga judaica, e assume que
por não existir por escrito um conjunto de imperativos divinos quanto às reuniões na
sinagoga, o que nela ocorria, portanto, havia sido deixado ―ao arbítrio do povo‖. Antes
mesmo de começar o seu capítulo sobre o princípio regulador (i.é, ―As Regras do Culto
Público‖) Frame argumenta que ele, do modo como está historicamente definido, aplica-se,
no máximo, apenas ―ao culto sacrificial do tabernáculo e do templo‖.205
Frame acredita que
seja errado e não-bíblico o ensinamento dos Padrões de Westminster de que seja necessária
uma autorização específica para cada ordenança ou elemento de culto. Se o pensamento de
Frame estiver correto, então não existe princípio regulador. Toda a conversa de Frame
sobre o seu tenaz comprometimento com os Padrões de Westminster é pura tapeação.
As análises de Frame sobre as sinagogas judaicas levantam algumas questões
importantes. Será que o fato de não existir na Escritura um conjunto de mandamentos
específicos que regulem as sinagogas prova que o conceito puritano-presbiteriano da
sanção divina (que se aplica a partes e elementos específicos do culto) é antibíblico? Será
que os teólogos de Westminster e nossos antepassados puritanos e presbiterianos
cometeram uma tamanha asneira ao adotarem e incorporarem em suas confissões e
catecismos a rígida posição regulativista? Seria Frame um herói por ousadamente levantar-
se e declarar: ―o rei está nu‖? A resposta a todas essas perguntas é um enfático ―Não‖!
Qualquer um pode assumir (assim como Frame e outros mais) que as sinagogas não
estavam debaixo do princípio regulador (como historicamente definido) e que os judeus
estavam criando os seus específicos de culto à medida que prosseguiam. O único problema
com tal suposição, entretanto, é que ela contradiz o claro ensinamento da Escritura.
Há muitas passagens na Bíblia que condenam inequivocamente os
acrescentamentos à Palavra-Lei de Deus (e.g., Dt. 4:2; 12:32; Pv. 30:5). Ao homem não é
permitido definir a sua própria ética, teologia ou culto. Há também passagens em que tanto
Cristo (e.g., Mt. 15:2-9; Mc. 7:1-13) quanto Paulo (e.g., Cl. 2:20-23) condenam as tradições
humanas no culto. A Bíblia não apenas condena os acréscimos ou inovações de uma modo
geral, mas trata de adições específicas (e.g., oferecimento do fruto da terra em vez do
204
Ibid., 54-55, ênfase acrescentada. 205
Ibid., 23.
sangue: Gn. 4:3-5; uso de fogo estranho: Lv. 10:1-2; lavagem ritual das mãos: Mt. 15:2-9;
práticas alimentares ascéticas: Cl. 2:21). Observe que o princípio regulador (como
biblicamente definido, i.é, a versão Puritana) não se restringe ao tabernáculo ou ao templo,
mas aplica-se aos indivíduos no lar e na igreja. Devido ao fato de que a Escritura não
contradiz a Escritura, e que as porções mais claras da Escritura devem ser usadas para
interpretar as menos claras, será que faz sentido (hemeneuticamente) assumir que as
reuniões das sinagogas não eram reguladas por algum tipo de revelação divina? Tomando
as Escrituras como um todo, os Puritanos acreditavam que seria contraditório Cristo e Paulo
condenarem os acréscimos religiosos específicos do lar e da igreja e aprovarem os das
sinagogas. Um dos aspectos do que ―pode ser lógica e claramente deduzido‖ da Escritura
(CFW i.vi — i.é, a inferência lógica da Escritura) é aquilo a que os Puritanos se referiam
como exemplos históricos aprovados. Quando se observa na Escritura que Abel (Gn. 4:4) e
Noé (Gn. 8:20-21) ofereceram sacrifícios aceitáveis a Jeová sem que houvesse imperativos
divinos por escrito, ou que a prática universal da igreja da Nova Aliança não era o culto
público no sétimo, mas no primeiro dia, sem haver quaisquer instruções por escrito para
trocar de dia, pode-se então inferir logicamente que tais práticas firmavam-se em algum
tipo de revelação divina que não estava escrita.
A compreensão Puritana dos exemplos históricos aprovados tem o respaldo de Hb.
11:4 que diz: ―Pela fé, Abel ofereceu a Deus mais excelente sacrifício do que Caim‖. A fé
bíblica pressupõe revelação divina. Por todo o capítulo 11 de Hebreu a verdadeira fé é
tratada como a crença na Palavra de Deus que resulta na obediência à Sua vontade revelada.
Qualquer idéia de que a oferta de Abel apoiava-se apenas na razão, ou que a aceitação por
Deus da oferta de sangue foi arbitrária ou calcada apenas no estado subjetivo do coração de
Abel, tem que ser rejeitada como não bíblica. Devido à analogia da Escritura, a necessidade
de fé em atos religiosos e a aceitação, da parte de Deus, de certas práticas que aparecem na
Escritura sem instruções detalhadas, a idéia de que as reuniões da sinagoga não eram
reguladas, mas determinadas pelo ―arbítrio do povo‖ não se sustenta. Assumir (como faz
Frame) que os judeus da sinagoga estavam criando à medida que prosseguiam
(―improvisando‖) é adotar algo que contradiz claramente o ensinamento da Escritura.
Segundo, Frame argumenta que assim como as sinagogas judaicas, as reuniões
cristãs eram basicamente não-reguladas quanto aos específicos (e.g., ―O Novo
Testamento... não nos apresenta uma relação sistemática ou exaustiva dos eventos que eram
autorizados para esses atos de culto‖206
). Embora seja verdadeiro que em parte alguma do
Novo Testamento encontramos uma lista sistemática daquilo que deve ocorrer no culto
público, isso não significa que o Novo Testamento nada tem a dizer sobre a questão ou que
os vários elementos do culto não possam ser determinados por um estudo da Escritura. Não
é relevante que o Novo Testamento nos dê, ou não, uma lista sistemática de ordenanças
para os atos de culto da Nova Aliança. Muitos assuntos e doutrinas importantes estão
consignados na Escritura de modo extremamente não-sistemático. Frame está tentando
convencer os leitores de seu livro de que um princípio regulador que trata com específicos
precisa ser rejeitado. Uma vez que tenha demolido a concepção histórica e tradicional do
princípio regulador, ele precisa, então, colocar a versão generalizada ou ―vale-tudo‖ em seu
lugar. Entretanto, desde que a Bíblia ensina claramente que tudo o que o homem faz no
culto (até mesmo os específicos) precisa ter a aprovação divina; não precisamos ser
enganados pelo subterfúgio de Frame. E quanto à sua afirmativa de que o Novo Testamento
206
Ibid., 55.
não nos dá ―uma relação sistemática ou exaustiva dos eventos que eram autorizados para
esses atos de culto‖? O Novo Testamento não precisa nos dar uma lista exaustiva, porque se
uma certa prática não for encontrada nele (ou ensinada ou inferida do Velho Testamento)
então já está proibida. A idéia de não existir uma ―lista exaustiva‖ pressupõe um conceito
de liderança eclesiástica de culto, e é uma negação implícita da suficiência da Escritura na
esfera do culto.
Terceiro, Frame ensina que a sanção divina não é específica, mas geral.
Argumenta que como a Bíblia não contém específicos acerca das reuniões da sinagoga ou
dos cristãos neotestamentários, os homens devem buscar a aprovação divina em ―amplas
generalidades teológicas‖. Devem usar a sua sabedoria santificada para ―aplicarem as
generalidades‖. As pessoas devem seguir os ―princípios gerais da Palavra‖. Ao falar da
sanção divina em termos de ―amplos princípios teológicos‖, ―generalidades‖ e ―princípios
gerais da Palavra‖, Frame rejeita os Padrões de Westminster para este assunto e redefine
completamente o princípio regulador. Há uma grande diferença entre uma sanção específica
da Escritura para uma determinada prática e em fundamentar uma prática na ―generalidade‖
ou em um ―amplo princípio teológico‖. Desde que uma prática qualquer esteja associada de
leve a uma ―generalidade‖ ou a um ―amplo princípio teológico‖, o uso da definição de
Frame para o princípio regulador possibilita que se obtenha uma variedade infinita de
opções de culto. A versão rígida e estreita do princípio regulador defendida pelas confissões
reformadas produziu uma uniformidade geral de culto por muitas gerações. A visão de
Frame conduz ao caos e a uma multiplicidade de práticas de culto exatamente porque
concede ao homem uma extensa área de autonomia. É claro que Frame não a chama de
autonomia. Ele usa expressões como ―aplicação criativa‖ e ―considerável flexibilidade‖.
Com o objetivo de revelar como é que esse seu conceito de sanção divina pode
confirmar tudo o que se queira, examinemos como ele próprio justifica certas práticas no
culto público. Na página 56 ele diz que as saudações devem ser uma parte do serviço do
culto. Com é que ele prova que as saudações são prescritas por Deus? Frame escreve: ―elas
[a saudações e as bênçãos] eram claramente partes da vida da igreja, desde que eram partes
regulares das cartas de Paulo (vide Rm. 1:7; 1Co. 1:3; Rm. 15:33; 1Co. 16:23-24; 2Co.
13:14). Como as suas cartas eram muito provavelmente lidas nas reuniões da igreja (Cl.
4:16; 1Tm. 5:27; Fm. 2), essas saudações e bênçãos compreendiam também uma parte do
culto público‖.207
Normalmente se alguém reformado quisesse argumentar a favor de um
momento especial de saudações (i.é, um momento para apertar as mãos ou se abraçar)
durante o culto ele procuraria por um mandamento específico ou tentaria inferir de algum
exemplo histórico da Escritura. Frame, entretanto, mostra simplesmente que Paulo saudava
as igrejas em suas epístola e que as suas cartas eram lidas na igreja. Ignora-se o fato de que
todas as cartas contêm saudações e de que é duvidoso que livros inteiros da Bíblia fossem
lidos a cada culto. Seguindo essa sua lógica alguém poderia argumentar: a Escritura
freqüentemente menciona barcos (e.g., 2Sm. 19:18; Pv. 30:19; Is. 33:21; Ez. 27:5; Jn. 1:3-
5; Mt. 4:21-22; Mc. 1:19; Lc. 5:3; Jo. 6:22; At. 17:16, 30, 32; etc.); como as escrituras são
lidas nas reuniões da igreja, os barcos também deveriam fazer parte do culto público.
O melhor exemplo do conceito de ―aplicação criativa‖ de Frame é a aprovação
divina que ele apresenta para usar a representação teatral (i.é, esquetes e peças) no culto
público. A sua defesa da teatralização dá-nos uma compreensão explícita da sua definição
ímpar da sanção divina. Ele até mesmo apresenta a sua justificativa como exemplo de uma
207
Ibid., 56.
aplicação de um princípio geral. Ele escreve:
Muitas igrejas hoje estão utilizando-se da representação teatral numa tentativa de
comunicar de modo mais claro a Palavra de Deus, do que poderia ser feito através
das formas mais tradicionais de pregação. Alguns presbiterianos opõem-se a isso
porque não há, na Bíblia, mandamento específico para se usar o teatro desse o
modo. Mas nós já vimos que nem sempre são necessários mandamentos
específicos. Quando Deus nos dá um mandamento geral (nesse caso, a ordem para
pregar a Palavra), e silencia em alguns aspectos da sua aplicação específica, nós
mesmos, dentro das regras gerais da Escritura, podemos fazer apropriadamente
aquelas aplicações. As questões com que nos defrontamos são, portanto, se a
representação teatral é uma forma legítima de pregação ou ensino, e se existem
quaisquer ensinamentos bíblicos que poderiam ser usados para exclui-la como um
meio de comunicar a Palavra. Eu responderia que sim, para a primeira pergunta, e
não, para a segunda.208
Observe uma vez mais que para Frame não é necessário uma aprovação específica.
Quando a Escritura silencia sobre uma ―aplicação‖ (i.é, quando ele é insuficiente ou
incompleta), o homem deve fazer uso do seu pensamento autônomo para remover o silêncio
de Deus. Noutras palavra, o homem deve pegar aquilo que é insuficiente e geral e fazê-lo
suficiente e específico.
Qual é a sanção que Frame apresenta para representação teatral no culto? Ele
argumenta que ―pregar e ensinar contém muitos elementos dramáticos‖;209
Jesus ―ensinou
parábolas, em que é freqüente a ocorrência de diálogos entre diferentes personagens‖;210
as
cartas de Paulo ―são sempre dramáticas‖211
e ―o livro de Apocalipse é um banquete
dramático‖;212
―os profetas algumas vezes representaram ações simbólicas‖;213
e, ―os
sacrifícios e festivais do Velho Testamento, e os sacramentos neotestamentários são
encenações das grandes obras da redenção de Deus‖.214
Quando lemos as aplicações que Frame faz da sua própria versão do princípio
regulador nos espantamos que este seu livro tenha sido endossado por quatro mestres de
dois seminários ―reformados e conservadores‖.215
Por quê? Porque o conceito de Frame
para a sanção divina é tão genérico, amplo e arbitrário que poder-se-ia provar qualquer
coisa com ele. O seu conceito de ―prova‖ faria feliz o líder de qualquer seita.
Se se pensa que isso é exagero, apliquemos o seu conceito de sanção divina a
outras práticas que algumas pessoas achariam ―renovadoras‖ no culto público. Na Bíblia
defrontamo-nos assiduamente com profetas que estejam deprimidos. Há na Bíblia muitos
livros que contêm grande quantidade de elementos tristes e deprimentes. Estamos, por isso,
autorizados por Deus a ter bandas de blues (com as letras apropriadas, é claro) como parte
do culto público. Por que não? Conforme diz Frame, cantar não é apenas uma maneira de
ensinar ou pregar?
208
Ibid., 92-93. 209
Ibid., 93. 210
Ibid.. 211
Ibid. 212
Ibid. 213
Ibid. 214
Ibid. 215
Richard L. Pratt Jr. e Steve Brown do Seminário Teológico Reformado, em Orlando; Richard B. Gaffin Jr.
e D. Clair Davis do Seminário Teológico Westminster, em Filadélfia.
Na Bíblia lemos sempre sobre batalhas militares. O apóstolo Paulo descreve com
freqüência a vida cristã como uma guerra. Não temos no livro de Apocalipse o quadro de
uma grande guerra entre o povo de Deus e os seguidores da besta? Portanto, como uma
aplicação criativa desses princípios teológicos genéricos podemos introduzir lutas com
espadas no culto público. Ninguém, obviamente, seria ferido. Elas seriam simplesmente
uma encenação dramática da vida cristã. As crianças adorariam.
São absurdos os métodos ―exegéticos‖ que Frame usa para provar ou justificar
certas práticas de culto. Ele retira da Bíblia coisas que nada têm a ver com o culto público
e, então, faz uma aplicação arbitrária na inovação humana que desejar. Será que o fato de
Deus ordenar a certos profetas que fizessem algumas coisas extraordinárias e dramáticas
nos dizem algo acerca de como devemos conduzir um ato de culto público? Não, claro que
não; não há qualquer tipo de vínculo entre eles. Será que o fato de pregar na Escritura poder
ser de algum modo dramático implica que Deus autoriza apresentações dramáticas no culto
público? Não, de maneira nenhuma. A associação é totalmente arbitrária. Na verdade,
nenhuma pessoa ao longo de toda a história da Igreja enxergou tal conexão até Frame a
perceber. Será que o fato de Jesus ter falado por parábolas — em que ocorriam mais de um
personagem — prova que representações dramáticas são bíblicas? Não. Ouça atentamente.
Não perca isso. Os tipos nas parábolas de Jesus não eram personagens de uma peça, nem
mesmo pessoas reais. Jesus estava ilustrando o Seu ensinamento. Dizer que o nosso Senhor
estava autorizando a representação dramática no culto público é pura fantasia. Se Jesus
estava aprovando os grupos de teatro, os apóstolos inspirados pelo Espírito não o
perceberam, porque a representação dramática não fazia parte do culto apostólico. Uma
legitima aplicação da metodologia da pregação de Jesus poderia ser o uso de ilustrações e
estórias na pregação. O fato de Apocalipse ser (segundo Frame) um banquete dramático nos
diz alguma coisa sobre o culto público? Não. Conquanto o livro possua algumas cenas de
culto metaforicamente descritas, não há, de modo nenhum, mandamentos, exemplos
históricos ou inferências lógicas que apontem nele representações dramáticas.
As argumentações de Frame para ―provar‖ as práticas de culto que ele deseja,
sempre lembram a este autor da argumentação usada por Vern Poythress (professor do
Seminário Teológico Westminster na Pensilvânia) em seu livro The Shadow of Christ in the
Law of Moses [A Sombra de Cristo na Lei de Moisés].216
Dadas às muitas e notáveis
similaridades, é oportuna a citação da análise de Greg L. Bahnsen da obra de Poythress, que
aplica-se como uma luva à argumentação de Frame. Ao ler a análise de Bahnsen, apenas
substitua o nome de Poythress pelo de Frame. Bahnsen escreve:
Poythress tem uma certa predileção por apelar a ―temas‖ vagos nas passagens
bíblicas, e de nos dizer, então, (sem base exegética) que eles nos sugerem algumas
―conexões‖ ou ―relações‖ (sem as definir). Tratar com alusões amplas e ambíguas
não é exato o bastante para demonstrar qualquer conclusão específica; por não
haver quaisquer princípios de controle ou de previsibilidade do modo que tais
noções indefinidas serão entendidas, a porta fica escancarada à criatividade
subjetiva do intérprete. E afirmar simplesmente que X está (de alguma maneira)
―relacionado‖ com ou ―conectado‖ a Y, é trivial — não muito informativo (No fim
das contas, tudo está, de um certo modo, relacionado com tudo). Essas vagas
conexões têm um papel determinante onde Poythress quer tirar conclusões
teológicas significativas... A chave para se tirar ardilosas ―conexões‖ de qualquer
216
Brentwood, TN: Wolgemuth and Hyatt, 1991.
parte da Bíblia, é claro, é fazer com que as suas categorias sejam amplas e vagas o
bastante para incluírem qualquer tipo de coisa... Que se supõe que o teólogo deve
fazer com tais discussões? Na verdade, elas nem são argumentos. Estão mais para
ansiolíticos (―tome alguns comprimidos de Valium e curta a experiência‖).
Olhando-as pelo seu lado menos danoso, acho que tais discussões possam ter valor
homilético ou pedagógico — como auxílios que aduzem ou ilustram conclusões
assentadas em fundamentos exegéticos mais confiáveis. Podem até mesmo
reforçar subjetivamente práticas teológicas pré-concebidas, mas dificilmente
funcionam como prova objetiva num debate teológico, sujeito às regras comuns de
racionalização, eliminação de pressupostos, e exame público. Poythress não é hoje
o único autor que se deleita em escrever nesse estilo: alinhavando conjuntamente
um monte de ―conexões‖ frouxas num estilo ―fluxo de consciência‖, muitas vezes
com categorizações grandes o suficiente para incluírem quase qualquer coisa de
qualquer maneira, até que uma delas estipule que ele chegou a uma ―conclusão‖ —
que é em geral tão vaga e ambígua quanto carecem de apoio textual. Gostaria de
dizer que Poythress o faz ―melhor‖ que os outros, mas, realmente, não há muito
como julgar (poucos que são os critérios objetivos).217
Se os cristãos professos querem usar o conceito de sanção divina de Frame para
―provar‖ varias práticas no culto público, eles têm liberdade para isso. Deveriam,
entretanto, ser honestos, e admitir que a versão deles do princípio regulador nada tem a ver
com os Padrões de Westminster ou com a teologia reformada sobre esse assunto. A maneira
arbitrária e frouxa de Frame ―provar‖ pela Escritura várias práticas, deixa as igrejas
presbiterianas e reformadas sem limites reais para o culto, exceto o princípio da liderança
eclesiástica (i.é, episcopal-luterano) de que vale tudo, desde que não seja expressamente
proibido na Bíblia.
Quarto, Frame rejeita a doutrina da Confissão de Fé de Westminster sobre os
elementos ou as partes constituintes do culto. Ele escreve:
Em resposta a esse tipo de pergunta [i.é, o problema da generalidade e da
especificidade], os Puritanos desenvolveram a doutrina dos ―elementos‖ ou
―partes‖ do culto. Eles acreditavam que o culto é composto por certos elementos
claramente distinguíveis: oração, leitura da Escritura, pregação, e assim por diante.
O princípio regulador que eles defendiam exige de nós que encontremos
aprovação bíblica para cada um desses elementos. Para eles, isso respondia a
questão sobre o nível de especificidade. Precisamos encontrar um mandamento
bíblico para fazer esta ou aquela oração particular (assumindo que as orações em
questão sejam todas bíblicas em seu conteúdo e apropriadas à ocasião), mas
precisamos mesmo é de uma sanção bíblica para incluir a oração como um
elemento de culto.
Mas há sérios problemas com essa abordagem. O mais sério deles é que não
há confirmação bíblica para ela! A Escritura, em nenhum lugar, divide o culto
numa série de ―elementos‖ independentes, cada um deles exigindo uma
justificativa bíblica à parte. A Escritura não nos diz, em lugar algum, que o
217
Greg L. Bahnsen, No Other Standard: Theonomy and its Critics (Tyler, TX: Institute for Christian
Economics, 1991), 299-300.
princípio regulador demanda tal nível particular de especificidade, mais que
qualquer outro.218
Observe (uma vez mais) que Frame prefere argumentar contra os Puritanos, não
contra a Confissão de Fé. Ele diz que a posição Puritana não possui sanção bíblica, quer
dizer, é antibíblica. Ele ignora os fatos de que: (1) os autores dos Padrões de Westminster e
os primeiros presbiterianos eram puritanos 219
e (2) a Confissão de Westminster (xxi.iii-v)
ensina claramente a posição Puritana que ele rejeita. Devido ao fato de dizer, à página xiv
do seu livro, que subscreve entusiasticamente a Confissão de Fé e os Catecismos, não é de
se admirar a sua indisposição para reconhecer como falsa a entusiástica subscrição, que ele
endossou com os dedos cruzados. É claro que Frame tem a liberdade de rejeitar o
ensinamento dos Padrões de Westminster; mas, em vez de trabalhar deliberada e
enganosamente para solapar um aspecto essencial da fé reformada, ele deveria ser honesto e
coerente e juntar-se a uma igreja episcopal.
À medida que examinarmos o ataque de Frame ao conceito confessional dos
elementos ou partes do culto, tenha sempre em mente que a sua estratégia, ao longo de toda
a análise que faz das regras de culto, é tornar a sanção divina dilatada o suficiente para
permitir inovações, sob o disfarce das aplicações criativas. Para isso, precisa eliminar a
doutrina confessional sobre os elementos de culto, onde cada um deles exige sanção divina
específica. Há vários argumentos a serem considerados na sua rejeição dos elementos de
culto. Primeiro, Frame diz que a Escritura não ensina em parte alguma ―que o princípio
regulador demanda tal nível particular de especificidade‖,220
e acrescenta que ―o problema
é que a Escritura não nos dá uma lista dos elementos exigidos para os cultos cristãos‖.221
Observe seu método dissimulado e contraditório de argumentar. Enquanto discorda da
visão confessional Puritana, requer uma prova crível. Ele quer um mandamento, uma
declaração explícita ou mesmo uma lista detalhada. Entretanto, quando se dispõe a provar
as suas próprias idéias sobre a sanção divina, não oferece qualquer argumentação exegética
sólida, apenas frouxas conexões bizarras e aplicações arbitrárias. Desce o princípio
regulador ao nível dos elementos de culto? É específico? Embora não haja uma lista
detalhada definida no Novo Testamento para os elementos de culto religioso, os seus vários
elementos ou partes são facilmente comprovados pelos imperativos divinos e pelas
descrições de atos de culto, ou por exemplos históricos aprovados encontrados na Escritura.
À medida em que considerarmos a sua próxima objeção à idéia de elementos específicos de
culto, os testemunhos bíblicos provarão que Frame está errado. Além disso, as passagens
bíblicas que ensinam o próprio princípio regulador requerem especificidade. Se os crentes
do Velho Testamento usassem a versão flexível genérica de Frame para o princípio
regulador, teria sido extremamente fácil para os judeus justificarem a lavagem ritual das
218
Worship in Spirit and in Truth, 52-53. 219
John Coffey escreve: ―Ao descrever escoceses como Rutherford como puritanos, estamos seguindo o
exemplo de seus contemporâneos. Quando Tiago VI visitou novamente a Escócia em 1617 ele lembrou-se
que muitos puritanos ingleses haviam se submetido à pressão real, e declarou, ‗vamos adotar o mesmo
procedimento com os puritanos aqui‘. Peter Heylyn também, não titubeou em falar da ‗facção presbiteriana ou
puritana na Escócia‘. O próprio Rutherford comentou que ‗somos apelidados de puritanos‘ e se queixou de
que ‗um rigoroso e preciso andar com Deus em tudo‘ era desdenhado como ‗puritano‘. O apelido foi dado, em
todo o mundo de fala inglesa, a pessoas cujo intenso desejo de obedecer à Escritura as colocou em conflito
com a política eclesiástica real repetidas vezes‖ (Politics, Religion and the British Revolutions: The Mind of
Samuel Rutherford [Cambridge, England: Cambridge University Press, 1997], 18). 220
Worship in Spirit and in Truth, 53. 221
Ibid.
mãos, as práticas alimentares ascéticas (e.g., considere as justificativas dos Adventistas do
Sétimo Dia para várias práticas alimentares), o fogo estranho, etc.
Segundo, quer misturar os vários elementos de culto em categorias gerais. Ele
escreve: ―um outro problema com o conceito de elementos de culto é que as coisas que
fazemos no culto nem sempre são claramente distintas entre si. Cantar e ensinar, por
exemplo, não se diferenciam um do outro (Cl. 3:16). E muitos hinos são também orações e
credos. Orações de conteúdo bíblico contém ensino. Todo o serviço de culto é uma oração,
desde que articulado na presença de Deus, em Seu louvor. Todo o serviço de culto é ensino,
pois se baseia todo na Escritura. Talvez fosse melhor falar em ‗aspectos‘ de culto, em
preferência a ‗elementos‘ ou ‗partes‘‖.222
Frame acrescenta, ―como não podemos identificar
elementos, não podemos dizer que o cântico é um elemento, e que por isso exige
mandamentos divinos específicos governando o seu conteúdo. Mesmo se aceitarmos a
divisão do culto em elementos, não é plausível argumentar que o cântico é um elemento do
culto, independente de todos os outros. Conforme já vimos no capítulo precedente, o
cântico não é um elemento independente, mas, ao contrário, é uma maneira de se fazer
outras coisas. É um modo de orar, confessar, etc. Portanto, ao aplicarmos o princípio
regulador à questão do cântico, não deveríamos perguntar especificamente que palavras a
Escritura nos ordena cantar, mas que palavras a Escritura nos ordena usar no ensino, na
oração, na confissão, etc‖.223
Para Frame não existem elementos específicos de culto, mas
apenas grandes categorias que possuem aspectos diferentes. Por que é que Frame ataca a
doutrina confessional dos elementos de culto? O motivo principal é que isso lhe permite
aplicar as regras da Bíblia de um elemento em outro. Este é um dos argumentos comuns
contra o cântico exclusivo de salmos. Se alguém pode usar as suas próprias palavras para
orar e pregar, então (segundo o conceito de aspectos de Frame) pode usar as suas próprias
palavras para cantar louvores.
Embora seja verdadeiro que os elementos de cântico de louvor, pregação ou ensino
e oração possam ter certos aspectos comuns (e.g., muitos salmos contêm oração, oração
pode conter louvor e sermões podem conter louvor e súplica, etc.), a idéia de que esses
elementos distintos possam ser concatenados numa única categoria (e.g., ensino) ou de que
as regras específicas dadas pela Escritura para um único elemento sejam aplicáveis às
outras partes do culto, desmorona completamente quando se examinam as regras
específicas e o contexto que a Bíblia dá para cada ordenança em separado. Observe os
seguintes exemplos:
(1) Um dos elementos é a pregação da Bíblia (Mt. 26:13; Mc. 16:15; At. 9:20;
17:10; 20:8; 1Co. 14:28; 2Tm. 4:2). A pregação envolve o uso da razão para tirar
conclusões da Escritura (cf. At. 17:2-3; 18:4, 19; 24:25) e a explicação ou a exposição da
Palavra de Deus (cf. Mc. 4:34; Lc. 24:27; At. 2:14-40; 17:3; 18:36; 28:23). Os mestres da
Nova Aliança não falavam por divina interpretação, mas interpretavam a Escritura
divinamente inspirada. Do mesmo modo os mestres levíticos do Velho Testamento
explicavam e interpretavam a lei escrita ao povo da aliança (cf. Ne. 8:7-8; Lv. 10:811; Dt.
17:8-13; 24:8; 31:9-13; 33:8; 2Cr. 15:3; 17:7-9; 19:8-10; 30:22; 35:3; Ed. 7:1-11; Ez.
44:15, 23-24; Os. 4:6; Ml. 2:1, 5-8). Há regras bíblicas específicas que se aplicam à
pregação e que a diferenciam de outros elementos tais como louvor e oração. Conquanto
homens e mulheres possam ambos orar (At. 1:13-14, 1Co. 11:5) e cantar louvores (Ef.
222
Ibid., 54. 223
Ibid., 123-124.
5:19; Cl. 3:16; Tg. 5:13), apenas os homens que foram chamados por Deus e separados para
o ministério do evangelho podem pregar (Mt. 28:18-20; At. 9:15; 13:1-5; Rm. 10:14-15; Ef.
4:11-12; 2Tm. 4:2, etc). Portanto, a idéia de que cantar louvores não é um elemento de
culto, mas um modo de ensinar, ou uma circunstância do ensino, é claramente antibíblica.
Se cantar louvores fosse apenas um dado método de ensino, então as mulheres seriam
proibidas de cantar louvores na igreja, pois são proibidas de ensinar nas assembléias
públicas. Além do mais, se cantar louvores fosse uma circunstância de culto, então seria
opcional e poderia ser também excluída completamente do culto público. Permite, o
presbiteriano conservador mediano, que as mulheres preguem nas assembléias públicas?
Não, ele não permite. Mas isso não é porque a Bíblia proíbe explicitamente às mulheres de
ensinarem ou mesmo de falarem na igreja? Na verdade, sim. O que isso prova é que aqueles
que aderem às teorias heterodoxas de Frame acerca do culto têm, na prática, que seguir a
distinção entre elementos de culto para realizarem um serviço de culto. A rejeição de Frame
à distinção de elementos ou partes do culto é simplesmente uma maneira astuta de eliminar
a especificidade do princípio regulador.
(2) Uma outra parte do culto é o cântico de Salmos (1Cr. 16:9; Sl. 95:1-2; 105:2;
1Co. 14:26; Ef. 5:19; Cl. 3:16). Diferentemente da pregação, onde os ministros usam as
suas próprias e não inspiradas palavras para exporem a Escritura, o cântico de louvor
envolve apenas o uso de canções inspiradas pelo Espírito. Na Bíblia a inspiração profética
era uma exigência para se escrever cânticos de adoração para a igreja (cf. Ex. 15:20-21; Jz.
5; Is.5:1; 26:1ss; 2Sm. 23:1, 2; 1Cr. 25:5; 2Cr. 29:30; 35:15; Mt. 22:43-44; Mc. 12:36; At.
1:16-17; 2:29-31; 4:24-25). No Velho Testamento escrever cânticos de adoração era tão
intimamente ligado à inspiração profética que 2Rs. 23:2 e 2Cr. 34:30 usam
intercambiavelmente os termos ―levita‖ e ―profeta‖.
(3) A leitura da Bíblia é também uma das partes do culto público (Mc. 4:16-20; At.
1:13; 13:15; 16:13; 1Co. 11:20; 1Tm. 4:13; Ap. 1:13). Obviamente, a leitura das Escrituras
exige que só a Bíblia seja lida. A leitura de apócrifos, Shakespeare, ou poesia cristã não
inspirada, ou livros de teologia não podem substituir esse elemento. A leitura da Escritura,
do mesmo modo que a pregação mas, ao contrário do cântico de louvores, está restrita aos
ministros do evangelho (Ex. 24:7; Js. 8:34-35; Dt. 31:9-13; Ne. 8:7-8; 13:1; 1Ts. 5:27; Cl.
4:16; 1Tm. 4:3).
(4) Outro elemento de culto é orar a Deus (Dt. 22:5; Mt. 6:9; 1Co. 11:13-15; 1Tm.
5:17; Fp. 4:6; Hb. 13:18; Tg. 1:5). Ao contrário dos elementos de cântico de louvor e de
leitura da Escritura, a Bíblia autoriza o uso de nossas próprias palavras na oração, desde
que sigamos o padrão ou modelo que nos foi dado por Cristo (cf. Mt. 6:9). Deus promete ao
Seu povo que o Espírito Santo os assistirá quando fizerem as suas orações (cf. Zc. 12:10;
Rm. 8:26-27).
Essa breve consideração quanto aos elementos do culto, acima observados, prova
que as regras que se aplicam a um elemento (e.g., oração) não podem ser aplicadas a outros
elementos (e.g., cântico de louvor ou leitura da Bíblia) sem que a Escritura seja
transgredida. A nossa consideração também provou que agrupar vários elementos em
categorias maiores também violenta a Palavra de Deus. A única razão pela qual as pessoas
constroem artificialmente essas categorias mais amplas é para evitar as regras específicas
que Deus instituiu para cada elemento particular de culto. As feministas o fazem para
permitir às mulheres que façam a leitura da Escritura [no culto público] e que preguem na
igreja. Outros o fazem para permitir que a representação teatral substitua o sermão. Há
ainda muitos que fazem assim para poderem substituir os salmos inspirados de Deus, pelos
cânticos não inspirados dos homens.
Uma vez apresentado abundante testemunho bíblico para o conceito puritano de
elementos ou partes do culto, compreende-se por que os autores da Confissão de Fé de
Westminster não apenas nos deram categorias genéricas, mas definiram elementos distintos
de culto. Os nomes dados pela Confissão, ―oração com ação de graça‖ (xxi.iii), ―A leitura
das Escrituras, com santo temor; a sã pregação da Palavra e a consciente atenção a ela, em
obediência a Deus, com entendimento, fé e reverência; o cântico de salmos, com gratidão
no coração; bem como a devida administração e digna recepção dos sacramentos instituídos
por Cristo — são partes do culto comum oferecido a Deus, além dos juramentos religiosos,
votos, jejuns solenes e ações de graça em ocasiões especiais, os quais, em seus vários
tempos e ocasiões próprias, devem ser usados de um modo santo e religioso‖ (xxi.v). O
trabalho dos teólogos de Westminster sobre o culto foi a culminância de mais de uma
centena de anos de exegese reformada, debates e análise da questão. As suas declarações
eram simplesmente refinadas pelo acréscimo de alguns detalhes dos escritos dos
reformadores e dos símbolos reformados que precederam à sua autoria. O arrogante e
frívolo desprezo de Frame pelos reformadores e pelas confissões reformadas, sem mostras
reais disso, é perturbador. E ser um estimado ministro numa denominação que afirma
aderência aos Padrões de Westminster, além de ensinar num seminário reformado, é ainda
mais perturbador.
Terceiro, depois de rejeitar os Padrões de Westminster sobre os elementos e partes
do culto, Frame nos empurra o seu conceito de ―aspectos‖ do culto. O que é exatamente um
―aspecto‖ de culto? Embora não defina o seu significado para aspectos, ele parece querer
dizer ―coisas a serem feitas‖ que estão relacionadas às suas categorias gerais. Como o
dicionário inglês nos dá como uma das principais acepções de aspecto a palavra ―parte‖,
ficamos imaginando qual seja realmente a diferença entre ―elemento‖, ―parte‖, ―coisas a
serem feitas‖ e ―aspecto‖.224
―Talvez com a argúcia de um escolástico medieval, o Sr.
Frame possa nos explicar as sutis diferenças entre ‗coisas‘, ‗aspectos‘, e ‗partes‘ no
culto‖.225
224
Frame oferece mais alguns poucos argumentos contra o conceito confessional de elementos ou partes do
culto. Um é o que ele chama de ―argumento prático dos troncos submersos‖. Ele assinala que ao longo dos
anos não tem havido concordância sobre o que são ou não elementos (p. 53), mas deixa de apontar, entretanto,
que as discordâncias a que se refere são todas de origem recente e foram, a princípio, trazidas à tona para
driblar o cântico exclusivo de salmos. Em seguida levanta a questão de que os puritanos discordavam quanto
a assuntos como a leitura de orações e a recitação do Credo Apostólico, sem, contudo, considerar que essas
discordâncias eram individuais. Os puritanos e os presbiterianos concordavam unanimemente sobre as
declarações quanto ao culto dos Padrões de Westminster. O fato de cristãos professos discordarem a respeito
da vigência dos dez mandamentos significa que deveríamos descartá-los e substitui-los por alguma coisa
diferente? É claro que não. O fato de pessoas discordarem acerca de alguns artigos é irrelevante quanto a uma
posição teológica ser ou não correta. Esse artigo precisa ser determinado por uma sólida comprovação
exegética e não por uma hermenêutica alucinógena. Frame também levanta a questão do serviço de culto em
um casamento. Desde que, na Escritura, não há tal tipo de coisa como serviço de culto em casamento, as suas
declarações não são pertinentes nem se encaixam na discussão. Se Frame quer que rejeitemos os Padrões de
Westminster e mais de 400 anos de pensamento reformado sobre o assunto do culto, ele terá que nos oferecer
alguma coisa bem mais substancial. Um bom ponto de partida seria uma boa é velha exegese bíblica.
Continuamos esperando. 225
Kevin Reed, ―Presbyterian Worship: Old and New‖ in Brian M. Schwertley, Musical Instruments in the
Public Worship of God (Southfield, MI: Reformed Witness, 1999), 139.
A Rejeição de Frame às Circunstâncias de Culto
Frame rejeita o conceito confessional de circunstâncias de culto em favor daquilo
que denomina de ―aplicações‖. Novamente o assistimos descartar os Padrões de
Westminster e mais de quatrocentos anos de pensamento reformado em troca de seu
próprio e ímpar conceito. Observe que, assim como antes, a meta de Frame é alargar
extensamente o conceito da sanção divina. Após citar a Confissão de Fé (―há algumas
circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às ações e
sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência
cristã, segundo as regras gerais da Palavra, que sempre devem ser observadas‖ — i.vi) ele
escreve:
Eles acreditavam que a Escritura era suficiente para nos informar das coisas
básicas que deveríamos fazer no culto. Mas ela não nos indica detalhadamente a
direção no âmbito das ―circunstâncias‖.
O que são essas ―circunstâncias‖? A Confissão não define o termo, exceto
para dizer que são ―comuns às ações e sociedades humanas‖. Alguns dos puritanos
e presbiterianos escoceses, na tentativa de aprofundarem a explicação dessa idéia,
ensinavam que as circunstâncias eram coisas seculares, sem nenhum significado
religioso verdadeiro. Mas, certamente, no mundo de Deus, nada é puramente
secular, nada é completamente isento de significado religioso. Isso decorre do fato
de que, em um certo sentido, tudo na vida é culto. A hora e o local da reunião, por
exemplo, não são religiosamente neutros. Decisões quanto a tais assuntos precisam
ser tomadas visando a glória de Deus. Os presbíteros de uma certa igreja não
estariam exercendo governo piedoso se tentassem forçar todos os membros a se
acordarem às 3h da manhã! As decisões sobre a hora e o local do culto podem
afetar grandemente a qualidade da edificação (1Co. 14:26). Embora seja ―comum
às ações e sociedades humanas‖ decidir quanto ao momento e ao local das
reuniões, tal decisão tem, contudo, significado religioso no contexto da igreja. Os
teólogos compreenderam isso, e portanto insistiram que todas essas decisões
fossem tomadas ―segundo as regras gerais da Palavra‖. Mas, então, como
poderemos diferenciar entre as circunstâncias e os elementos substantivos do
culto?
Além disso, parece haver algumas coisas no culto que não são ―comuns às
ações e sociedades humanas‖, a respeito das quais temos que exercer o nosso juízo
humano. Por exemplo, a Escritura nos manda orar, mas não nos diz que palavras
exatas usar em cada ocasião. Precisamos decidir que palavras usar, dentro dos
limites do ensinamento bíblico sobre a oração. Esta é uma decisão de grande
importância espiritual. Não parece correto descrever tal questão como uma mera
―circunstância‖. A oração não é ―comum às ações e sociedades humanas‖. Mas na
oração precisamos usar o nosso próprio juízo dentro das fronteiras bíblicas, senão
não estaremos orando de maneira nenhuma.
Concordo com a Confissão de que há um espaço para o juízo humano em
assuntos que são ―comuns às ações e sociedades humanas‖. Mas não creio que esta
seja a única esfera legítima do juízo humano. Na minha percepção, o termo mais
bem talhado para descrever a esfera do juízo humano não é circunstância, mas
aplicação. A Escritura tipicamente nos diz o que devemos fazer em geral, e nos
deixa determinar os específicos pela nossa própria sabedoria santificada, segundo
as regras gerais da Palavra. A determinação de específicos é aquilo que chamo de
―aplicação‖.
Diferentemente do termo circunstância, o termo aplicação abrange ambos
os tipos de exemplos que mencionei. As aplicações incluem assuntos tais como
hora e local do culto: a Escritura diz para nos reunirmos, mas não quando nem
onde — portanto precisamos usar o nosso próprio discernimento.
Semelhantemente a Escritura nos manda orar, mas não nos dita todas as palavras
específicas que deveríamos usar — portanto precisamos decidir. Como se pode
ver, a esfera da aplicação inclui algumas coisas que são ―comuns às ações e
sociedades humanas‖ e algumas outras que não são.226
Há várias coisas, quanto a discussão de Frame sobre as circunstâncias de culto,
que precisam ser observadas. Primeiro, a alegação de Frame de que alguns puritanos e
presbiterianos escoceses (não mencionados) consideravam as circunstâncias como
seculares, é errada e enganosa. Eles não tinham as circunstâncias de culto como seculares
ou religiosamente neutras, mas como matérias que não eram especificamente determináveis
pela Escritura e que tinham aspectos comuns com os assuntos civis ou seculares. Por
exemplo, uma reunião civil teria um começo e um fim, cadeiras, luz, uma tribuna, um
edifício e um palestrante. Essas circunstâncias de culto deveriam, todavia, ser elaboradas ou
conduzidas ―segundo as regras gerais da Palavra‖. Frame (uma vez mais) estabelece uma
falsa bifurcação de pensamento entre certos puritanos e/ou presbiterianos (não nomeados) e
os teólogos de Westminster.
Segundo, Frame apresenta um conceito demasiadamente simplificado das
circunstâncias com a intenção de fazer o entendimento confessional parecer incompetente e
inexeqüível. Ele nos diz que como as palavras que usamos na oração são de ―grande
importância espiritual‖ e como a oração não é ―comum às ações e sociedades humanas‖,
precisamos, portanto, usar um conceito melhor e mais viável do que o termo
―circunstâncias de culto‖. A sua alternativa é ―aplicações‖.
O argumento de Frame suscita várias interrogações. Aquilo que os crentes fazem
ao orar é uma mera circunstância de culto? A oração é regulada somente pelas regras gerais
da Escritura? Conquanto seja verdade que os crentes têm a liberdade de utilizar as suas
próprias palavras para poderem atender às diversas circunstâncias e contingências da vida
diária, a oração é em si mesma regulada especificamente pela Escritura. Jesus mandou que
os discípulos orassem de uma certa maneira (Mt. 6:9). Ele lhes disse para não usarem de
―vãs repetições, como os gentios‖ (Mt. 6:7). Além disso, nos é assegurado que o Espírito
Santo nos assistirá ao orarmos (cf. Zc. 12:10; Rm. 8:26-27). A oração, estritamente falando,
não é uma circunstância de culto. Os teólogos de Westminster não consideravam o
conteúdo da oração do mesmo modo que um tipo de bancada, iluminação, estilo de púlpito,
assoalho, etc. Portanto, a idéia de que ao se escolher as próprias palavras ao orar no culto
torna o conceito das circunstâncias do culto algo inviável, não é verdade.
Ao se abraçar o entendimento confessional do princípio regulador, de que todas as
partes ou elementos do culto requerem aprovação divina, faz-se necessário explicar aquelas
coisas que são necessárias ao andamento do culto e que não são tratadas especificamente na
Escritura. Diz-nos a Bíblia em que tipo de edifício nos reunir, ou o tipo das cadeiras e
modelo de púlpito que devem ser usados? Será que não existem áreas relacionadas com o
serviço de culto público que não afetem diretamente o conteúdo ou as partes do culto
226
Worship in Spirit and Truth, 40-41.
religioso? A resposta confessional de que existem algumas circunstâncias relativas ao culto,
que não são propriamente partes ou ordenanças do culto, é óbvia e inevitável. Se Frame
observa que em certas áreas ou aplicações o conceito de circunstâncias precisa ser
esclarecido, isso é uma coisa. Mas, por que insiste ele em jogá-lo fora em troca do seu
próprio conceito de aplicações? A razão principal está relacionada à rejeição de Frame da
doutrina confessional de elementos ou partes do culto religioso, onde cada um deles requer
sanção divina. Uma vez que se rejeite o conceito de elementos de culto, fica-se apenas com
as amplas categorias. Os crentes devem tirar do meio dessas amplas categorias as várias
―coisas a serem feitas‖ no culto. Segundo Frame, as ―coisas a serem feitas‖ podem ser
determinadas por mandamentos específicos ou de acordo com ―amplos princípios
teológicos‖. O sentido disso é que Frame pegou o conceito de ―segundo as regras gerais da
Palavra‖ que os teólogos de Westminster aplicavam apenas às circunstâncias de culto e
tem-no aplicado ao próprio culto. Essa incrível ampliação do conceito da sanção divina
torna a seção da Confissão que trata das circunstâncias do culto totalmente supérflua. Se
Frame já pegou ―as regras gerais da Palavra‖ da Confissão e a aplicou ao culto em si
mesmo, ele tem que redefinir as circunstâncias em aplicações. Por quê? Porque o termo
―aplicações‖ é amplo o suficiente para abranger tudo que está relacionado ao culto, sejam
as ordenanças do culto ou as áreas circunstanciais. De fato, tudo que fazemos na vida como
cristãos é, em um certo sentido, uma aplicação da Escritura. Frame prossegue em seu
caminho arrancando as distinções claras e cuidadosamente pensadas encontradas nos
Padrões de Westminster e substituindo-as por conceitos amplamente genéricos. Lembre-se
de que a meta do jogo é a autonomia humana no culto.
A Corrupção de Frame da Posição Puritana/Presbiteriana Relativa às Reuniões Formais
versus as Reuniões Informais
Frame acusa ―alguns teólogos‖ e os puritanos de aplicarem o princípio regulador
apenas aos serviços de culto ―formais‖ ou ―oficiais‖. Ele escreve:
Esta posição acerca do poder da igreja, entretanto, levou alguns teólogos a
distinguirem argutamente entre os serviços de culto que são ―formais‖ ou
―oficiais‖ (i.é, sancionados pelo corpo governante da igreja), e outras reuniões em
que ocorre um culto, tais como devoções familiares, cântico de hinos em casa, etc.,
que não são oficialmente sancionados. Alguns têm dito que o princípio regulador
aplica-se apenas apropriadamente ao serviço de culto formal ou oficial, não às
outras formas de cultuar.
Mas essa distinção é claramente anti-bíblica. Quando a Escritura nos proíbe
de cultuar segundo a nossa própria imaginação, não o está proibindo apenas
durante os serviços dos cultos oficiais. O Deus da Escritura certamente não
aprovaria as pessoas que O adorassem nos cultos formais, mas que, na privacidade
de seus lares, adorassem ídolos!
Na visão puritana, o princípio regulador pertence primariamente ao culto que
é oficialmente sancionado pela igreja. Nessa perspectiva, com o objetivo de
mostrar que, digamos, a pregação é apropriada para o culto, nós temos que mostrar
através de mandamentos bíblicos e exemplos o que Deus requer que seja pregado
nos serviços de culto sancionados oficialmente. Não basta mostrar que Deus se
satisfaz quando a Palavra é pregada nas multidões ou nas reuniões informais do
lar. Ao contrário, temos que mostrar que a pregação é ordenada precisamente para
o serviço de culto formal ou oficial. Infelizmente, é praticamente impossível
provar que alguma coisa é divinamente exigida especificamente para os serviços
de culto oficiais.227
Esta é uma corrupção total da posição puritana. A verdade quanto a isso é que a
idéia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao culto público não foi amplamente
aceita senão até o final do século dezenove. Como as inovações de culto e a decadência
ocorreu ao longo de todo o século dezenove, e algumas práticas como o uso de
instrumentos musicais no culto familiar, a celebração do Natal nos lares e vários programas
de Escola Dominical onde se permitia às mulheres falarem, fazerem perguntas e até mesmo
ensinar aos homens tornou-se popular, houve uma concentração de esforços para se manter
tais inovações, pelo menos, fora do ―serviço de culto oficial‖. Na verdade, hoje um
presbiteriano ―ultraconservador‖ é definido quase sempre como alguém que deseja manter
fora do culto público a celebração papal-pagã dos dias santos, mas que acha que é
perfeitamente aceitável celebrar esses dias em casa decorando-a com as quinquilharias do
Anticristo e as parafernálias pagãs. Os puritanos e os presbiterianos nunca permitiram que
seus membros violassem o princípio regulador em casa. Quem celebrava o Natal ou a
Páscoa era disciplinado.
Embora os puritanos, presbiterianos e teólogos de Westminster aplicassem
estritamente o princípio regulador a todo culto — fosse público, familiar ou particular —
isso não significa que cada esfera tinha exatamente as mesmas regras. Por exemplo, no
culto familiar o pai deve conduzir o ensinamento e a leitura da Escritura (Dt. 6:7-9). Mas
não lhe é permitido dispensar ou participar das ordenanças públicas (i.é, batismo e Santa
Ceia) ou exercer disciplina eclesiástica. É muito importante que ao buscarmos a sanção
divina para uma prática no culto público, saibamos fazer a distinção entre mandamentos ou
exemplos históricos da Escritura que são aplicáveis a um indivíduo, ou família, ou reunião
pública, ou mesmo a um evento extraordinário. Frame adultera a posição puritana não
porque queira abolir as inovações no lar, mas para garimpar a Bíblia em busca de sanção
divina em passagens que claramente nada têm a ver com o culto público. Qual é a maior
justificativa que Frame apresenta para a representação teatral no culto público? Que os
profetas alguma vezes fizeram coisas dramáticas. Como é que ele justifica a dança litúrgica
no culto público? Apontando várias passagens que se referem a extraordinárias celebrações
de vitórias nacionais e locais (i.é, passeatas exteriores).228
A caricatura de Frame da posição
puritana monta o palco para a sua redefinição do princípio regulador e para seus textos de
abonação — piegas e sem conexão real — de várias inovações modernas.229
227
Ibid. 228
Veja Worship in Spirit and Truth, 131. 229
Do mesmo modo que desfigura o entendimento puritano quanto à meta do princípio regulador, Frame
também deturpa a Confissão de Westminster. Ele escreve: ―Estou consciente de que as declarações
presbiterianas tradicionais do princípio regulador traçam tipicamente uma distinção mais incisória do que a
que tenho definido, entre os serviços de culto e as demais coisas da vida. A Confissão de Fé, por exemplo,
declara que, na vida como um todo, estamos livres de quaisquer ‗doutrinas e mandamentos humanos‘ que são
‗contrários‘ à Palavra de Deus, mas declara ainda que em ‗matéria de fé ou de culto‘ também estamos livres
das doutrinas e mandamentos que ‗estão fora‘ da Palavra (xx.ii)‖ (43). Nesta seção sobre a liberdade da
consciência as frases ―contrários à Sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou culto, estejam fora dela‖ vêm
juntas e são conectadas a ―doutrinas e mandamentos humanos‖ pelo verbo ―ser‖ (sejam). A Confissão não
está fazendo duas declarações estanques — uma que trata da vida como um todo e outra que considera apenas
assuntos de fé. Qualquer coisa contrária ou fora da Palavra de Deus, em matéria de fé ou de culto, não possui
autorização de Deus. Shaw escreve: ―Nesta seção, a doutrina da liberdade de consciência é apresentada nos
mais explícitos termos. A consciência, em todos as questões de fé e dever, está sujeita apenas à autoridade de
O Caso de Frame Para a Contemporaneidade no Culto
À medida que consideramos o livro de Frame não podemos jamais perder de vista
o fato de que ele é uma apologia do estilo de culto carismático-arminiano em uso nas
igrejas ―Nova Vida‖. Esse tipo de culto é comumente denominado de culto
―contemporâneo‖ ou ―celebrativo‖. Como é que Frame justifica esse novo tipo de culto
com a Escritura? Seu argumento baseia-se no fato de que as línguas precisam ser traduzidas
numa linguagem inteligível. Ele escreve:
Por outro lado, a Escritura também nos diz, mais explícita e enfaticamente,
que o culto deve ser inteligível. Ele deve ser compreensível aos adoradores, e até
mesmo aos visitantes não-cristãos (1Co. 14 especialmente os vv. 24-25). E
inteligibilidade exige contemporaneidade. Quando as igrejas usam uma linguagem
arcaica e seguem a práticas que são pouco conhecidas hoje, elas comprometem
esse princípio bíblico... Outra consideração importante é que o estilo escolhido
precisa promover a inteligibilidade da comunicação. Temos visto que é esta a
ênfase principal de 1Coríntios 14, que é o tratamento mais abrangente de uma
reunião de culto cristão no Novo Testamento. A inteligibilidade da comunicação é
crucial para a Grande Comissão e para a demanda do amor, porque o amor procura
promover, não impedir, o entendimento mútuo.
A inteligibilidade requer de nós, primeiro, que falemos a língua do povo, não
latim, como enfatizaram os reformadores. Mas a comunicação é mais do língua,
em seu sentido estrito. O conteúdo é comunicado através da linguagem corporal,
estilo, a escolha de termos populares em vez de termos técnicos, estilos musicais
bem conhecidos, etc.230
O argumento de Frame para o culto contemporâneo é outro exemplo daquilo que
ele chama de ―aplicação criativa‖. Uma designação mais precisa seria ―aplicação
arbitrária‖. Quando o apóstolo Paulo tratou de um problema específico em Corinto (línguas
não interpretadas ou não traduzidas), fez também alguma declaração sobre os estilos
musicais, linguagem corporal ou estilos contemporâneos de culto? Não. Nem Paulo nem os
irmãos de Corinto nem qualquer outro comentarista do passado ou do presente (com a
exceção de Frame) crê ou ensina que Paulo estava dizendo à igreja para se assegurar de ter
a linguagem corporal apropriada. Frame está, mais uma vez, pendurando-se numa corda
podre. Esse seu conceito de inteligibilidade pode ser aplicado também à arquitetura da
igreja, ao vestuário cristão, ao carro e mobiliário do pastor, etc., porque é uma aplicação
arbitrária. Não está fundamentada na exegese protestante padrão.
Como foi que se iniciou o culto ―celebrativo‖ ou ―contemporâneo‖? Será que
houve um grupo de cristãos que pelo estudo sério da Escritura (e.g., 1Co. 14:24-25) chegou
à conclusão de que Deus exigia que o culto fosse modernizado para melhor falar à nossa
cultura infantil e degenerada? Não. Falando de modo geral, o aumento da sua popularidade
Deus, e é totalmente livre de toda e qualquer sujeição às tradições e mandamentos humanos. Acreditar em, ou
obedecer a qualquer mandamento, contrário à Palavra de Deus, em submissão à autoridade humana, é trair a
verdadeira liberdade de consciência‖ Exposition of the Confession of Faith, 205. A. A. Hodge escreve:
―Autoritativamente, Deus se dirigiu à consciência humana somente em Sua lei, a única revelação perfeita que,
nesse mundo, é a Escritura inspirada. Por isso o próprio Deus desobrigou a consciência humana de crer ou
obedecer a quaisquer de tais doutrinas ou mandamentos humanos, sendo eles contrários ou fora dos
ensinamentos dessa Palavra‖ The Confession of Faith, 265. 230
Worship in Spirit and Truth, 67, 83.
deve-se à combinação de três desenvolvimentos históricos. Primeiro, o culto
contemporâneo tem as suas raízes no reavivalismo pragmático arminiano. Os reavivalistas
arminianos aprenderam que canções feminis, emotivas e chorosas ajudavam as pessoas a
fazerem uma ―decisão por Cristo‖. Aprenderam também que entretenimento, dramatizações
e interlúdios ao órgão traziam mais pessoas às tendas. Segundo, no final da década de 60 e
primórdios da década de 70 muitos maconheiros e hippies tornaram-se cristãos professos.
Muitos desses hippies convertidos (―o povo de Jesus‖) trouxeram para seus cultos o estilo
comunal, simplista e emotivo de cantar a que estavam acostumados. Esse novo estilo de
culto consistia muitas vezes de corinhos de um único verso que era cantado repetidamente
até as pessoas atingirem um frenesi emocional ou entrarem num tipo de transe meditativo.
Tristemente, esse emocionalismo e estado semelhante a transe eram e ainda são
equiparados com a presença especial do Espírito Santo ou com uma mística comunhão com
Deus. Os crentes precisam entender que esse novo tipo de culto, emocional e sem base
doutrinal, tem as suas raízes não na Bíblia, mas na contracultura do paganismo místico.
Peter Masters escreve: ―foi uma forma de culto moldada e concebida no ventre da
meditação mística hippie, em que eles, às centenas e aos milhares, sentavam-se nas
encostas das montanhas da Califórnia balançado-se para cá e para lá, com os olhos
fechados, em busca de uma experiência extática. Os ex-hippies trouxeram para a sua nova
causa o método de procurar alívio emocional ou sensações às quais estavam acostumados, e
ninguém lhes mostrou um caminho melhor‖.231
Terceiro, houve a ascensão do movimento de crescimento de igrejas que oferecia
uma justificativa de aparência piedosa, para o culto orientado ao entretenimento e centrado
no homem, mas que era totalmente pragmática. O fato da música ―celebrativa‖ ser
superficial, mundana e imatura não importa, pois o culto precisa ser ajustado à clientela;
precisa apelar às pessoas superficiais, mundanas e imaturas que estão à procura de algo.
Quer dizer, precisa ser atrativo à carne. Nesse paradigma não se considera primariamente
que o culto deve ser voltado para Deus, mas para o homem. O culto é tratado como mais
uma ferramenta de evangelização do movimento de crescimento de igrejas. Frame não
colocaria a questão de modo tão grosseiro. Mas o seu conceito de que ―inteligibilidade
requer contemporaneidade‖, mesmo para visitantes não-cristãos, diz exatamente a mesma
coisa. Assim, as igrejas hoje têm canções repetitivas e infantilóides associadas a bandas de
rock, grupos de teatro, pastores comediantes, dança litúrgica, vídeos e filmes.
Em um outro livro sobre o culto, Contemporary Worship Music: A Biblical
Defense [Música de louvor contemporânea: uma defesa bíblica], Frame argumenta em
favor de hinos super-simplificados (i.é, reescritos para uma audiência menos inteligente)
baseados nos santos do Velho Testamento, tais como Jó, Moisés e Isaías. Os longos e
detalhados pronunciamentos de Jó são comparados ao culto tradicional. Quando Jó,
finalmente, defrontou-se com Deus falou somente umas poucas e simples palavras.
Semelhantemente, quando Moisés e Isaías estiveram na presença de Deus foram tomados
de espanto e pouco tiveram a dizer.232
A análise que Peter Master faz desse livro de Frame
231
Peter Master, ―Worship in the Melting Pot: Is The New Worship Compatible with Traditional Worship?‖
in Sword and Trowel no. 3, 13 (London, England, 1998). O autor está em débito com Masters por suas muitas
percepções do ―novo culto‖. 232
Quando lemos as passagens em que um profeta entra na presença de Deus e, estarrecido, fala poucas
palavras, será que isso significa que Deus está nos dizendo por meio da ―aplicação criativa‖ que Ele gostaria
de que as letras dos cânticos de louvor consistissem de uma única linha? Não, de maneira nenhuma. A
aplicação legítima de tais textos seria a de que adoramos um Deus infinitamente santo e tremendo. Por isso,
acerta o alvo em cheio. Ele escreve: ―Umas das muitas queixas de Frame acerca do culto
tradicional é que ele é muito complexo. É demasiadamente verboso, inteligente e erudito.
Não é para pessoas comuns. Para dar sustentação a essa queixa, o autor se diz favorável a
um mínimo de palavras. Ele quer suplantar a racionalidade, e fazer dos sentimentos o fio
condutor do culto. Também insiste que há uma dimensão física no culto, validando a dança
e outras atividades. Ele quer fazer vibrar as cordas dos sentidos e das sensações com o
objetivo de tocar a Deus. O motivo de mencionar o seu livro até aqui é mostrar como os
‗tradicionalistas‘ que adotam o novo louvor capitularão por fim à filosofia do culto
emocional-místico-estético‖.233
As origens e os argumentos em favor do moderno culto ―celebrativo‖ suscita
algumas perguntas muito importantes. Por que razão o culto moderno tem que servir de
instrumento e rebaixar-se à imaturidade e degeneração da cultura moderna? Se o rap vem a
ser a forma predominante de expressão musical na sociedade, será que os advogados da
―contemporaneidade‖ usarão a música rap no culto público? (Algumas igrejas já usam
grupos de rap ―cristãos‖ nos momentos de entretenimento dos seus serviços de culto).
Também, quando Frame e outros procuram na Escritura por comprovação e direção quanto
ao culto, por que apontam passagens que nada têm a ver com o cântico de louvor quando
Deus já nos tem dito exatamente o que quer? Deus já escreveu o seu próprio hinário — o
Livro dos Salmos — e colocou-o no meio de nossas Bíblias, e nos ordenou que o
cantássemos. A única razão possível para que os advogados do culto ―celebrativo‖ ignorem
o óbvio e se apóiem na ―aplicação criativa‖ é uma espantosa falta de conhecimento da
Escritura ou uma gritante desconsideração por ela em favor da autonomia humana no culto.
O fato de o próprio Deus ter escrito e dado à igreja um hinário (o Livro dos
Salmos) diz-nos uma série de coisas sobre o louvor que contradizem, todas, o paradigma do
culto ―celebrativo‖. Primeiro, observe que os Salmos são saturados de profunda teologia e
são doutrinariamente equilibrados, complexos, não-repetitivos, e freqüentemente longos.234
Davi e os demais profetas inspirados que escreveram os salmos não consideravam a
doutrina pesada e a complexidade de sentido como impedimentos aos cultos bíblicos. Isso é
porque o louvor bíblico não tenta desconsiderar o intelecto em favor de uma experiência
extática. A nossa fé em Jesus Cristo é fortalecida pelo aprendizado e entendimento da
doutrina bíblica, não pelo experimentar de um fenômeno emocional vazio de provimento
cognitivo. Nada há de errado, com certeza, em experimentar emoções. Os Salmos, muito
melhor que qualquer hinário não-inspirado, refletem todo o leque das emoções humanas:
ao aproximarmo-nos dele em adoração precisamos ser mui cuidadosos em fazer conforme Ele determina. O
nosso Deus é um fogo consumidor (Hb. 12:29). Portanto, o culto de um Deus assim (Jeová) precisa ser
prestado de maneira séria e solene. As igrejas que praticam o novo culto ―celebrativo‖ com piadas, esquetes,
entretenimento, cânticos infantilóides vãos e repetitivos, bandas de rock e trejeitos burlescos não são sérias,
nem respeitosas, nem solenes. ―Mas, irmão, essas pessoas são sinceras‖. De fato, muitos deles o são;
entretanto, a sinceridade que não se fundamenta na verdade não tem o menor valor. 233
Masters, 15. 234
As pessoas que argumentam em favor dos corinhos repetitivos apontarão algumas vezes para os Salmos
para justificar as frases curtas e repetidas nas canções de louvor. A verdade sobre a questão é que os Salmos
em nada se parecem com os corinhos modernos. Em lugar de corinhos que são repetidos incessantemente, os
Salmos possuem o que se chama de refrão. No Salmo 136 encontramos no final de cada verso o refrão
―porque a sua misericórdia dura para sempre‖. Diferente dos corinhos modernos, o refrão é repetido ao final
de cada pensamento diferente. Cada verso desse salmo é diferente um do outro. Desse modo a mente
concentra-se na ação de graças pelos atributos e atos redentivos de Deus, em vez das vãs repetições dos
corinhos modernos onde a mesmíssima coisa é repetida ininterruptamente, como um mantra hindu.
das profundezas do desespero às alturas do gozo e da felicidade. Entretanto, as nossas
emoções precisam estar alicerçadas na verdade bíblica. O Espírito Santo usa a Palavra de
Deus para convencer do pecado e para santificar, não para incitar a algum tipo de
experiência mística e emocional.
Lembre-se de que o paradigma do culto ―celebrativo‖ é uma conseqüência do
movimento carismático, e que está filosoficamente enraizado numa espécie de cristianismo
existencialista. O que as igrejas carismáticas fazem reiteradamente é induzir as pessoas ao
frenesi emocional pelo uso de músicas estimulantes, programas visualmente apelativos,
líderes de torcida denominados de ―líderes de louvor‖ (cuja função primária é encorajar as
pessoas à excitação emocional), cânticos excessivamente repetitivos, etc. Então, quando as
pessoas estão tendo uma experiência maravilhosa lhe é dito: ―Agora, não estão sentindo a
presença do Espírito? Sentem o poder? Este local está em chamas!‖. Ensina-se a essas
pobres e iludidas almas a igualarem uma experiência emocional e ―cabeça-oca‖ induzida
pela música, à presença de Deus. Tal técnica irracional, sensória e emocional de
experimentar (o que eles pensam ser) a presença especial de Deus, é misticismo. É de se
admirar, então, que muitas igrejas carismáticas consideram a doutrina e a pregação
exegeticamente sólida como sem importância, e que o movimento carismático está
conduzindo muitos protestantes de volta a Roma? ―O culto místico, conduzido pela
emoção, é uma ilusão que produz adoradores intensamente emocionais e subjetivos, para
quem o prazer pessoal é a meta maior‖.235
Segundo, o fato de que Deus entregou os Salmos a uma sociedade primitiva,
agrícola e analfabeta em sua maioria, desaprova completamente a idéia de que precisamos
estupidificar o culto usando corinhos repetitivos, representação teatral e apresentação
musical. Se o argumento da ―inteligibilidade‖ de Frame tivesse sido aplicado aos israelitas,
o culto deles não haveria de ser ainda mais simples e menos complexo do que o dos
programadores de computador, engenheiros, pilotos e cientistas da computação de hoje?
Afinal, a grande maioria dos israelitas eram meros fazendeiros e criadores de gado.
Contudo, Deus lhes deu o complexo, altamente teológico, denso, e intelectualmente
desafiador Livro dos Salmos. Deus não esperava que os israelitas desligassem as suas
mentes, fechassem os olhos e repetissem as mesmas palavras sempre, e sempre, e sempre
como um hippie dopado ou um místico hindu. O culto bíblico exige uma mente atenta, que
pense, que compreenda e não seja dispersa. Uma filosofia de culto que (se consistentemente
aplicada) exija do povo de Deus que abandone o perfeito, suficiente e inspirado Livro dos
Salmos, não pode ser verdadeira.236
235
Ibid., 14. 236
Uma acusação freqüente contra o culto puritano ou verdadeiramente reformado levantada pelas igrejas que
seguem uma liturgia episcopal e os celebrantes do estilo carismático é que os puritanos viam o culto como um
exercício puramente intelectual. Argumentam que os puritanos negligenciavam o homem como um todo
(alma e corpo) no culto, e que precisamos é de uma ―visão cerimonial‖ de culto. Por isso, defende-se amiúde
que a visão holística exige, como acompanhamento e conseqüência necessários, gestos, dança, e que
cerimônia e ritual — com a eucaristia — seja o elemento central do culto cristão, não o sermão. Diz-se que
deve haver ação e também pensamento. Uma outra acusação é a de que o culto puritano é na verdade uma
conseqüência da filosofia grega, e não uma cuidadosa exegese da Escritura. Tais acusações correspondem
exatamente aos fatos? Não. Elas são uma pretensa e flagrantemente corrupta caricatura do culto Reformado.
Os puritanos viam o culto como um assunto puramente intelectual e mental? Não. Essa acusação
simplesmente não é verdade. Por exemplo, os puritanos criam e praticavam os sacramentos do batismo e da
Ceia do Senhor, onde os atos e os elementos específicos são sinais e selos de realidades espirituais. Na Ceia
do Senhor (por exemplo) todos os sentidos estão em operação. Ouve-se a Palavra, prova-se e toca-se no pão e
Terceiro, o argumento da ―contemporaneidade‖ também é desaprovado pelo
princípio regulador. Para se certificarem de que o seu culto era culturalmente relevante,
foram os judeus da era da Velha Aliança atrás dos cananeus, filisteus, egípcios, ou assírios?
A igreja da Nova Aliança foi em busca da ―contemporaneidade‖ da cultura grega ou
romana? Não. Eles só podiam fazer precisamente aquilo que Deus ordenara, i.é, evitar o
sincretismo com a cultura pagã. ―Guarda-te, não te enlaces com imitá-las, após terem sido
destruídas diante de ti; e que não indagues acerca dos seus deuses, dizendo: Assim como
serviram estas nações aos seus deuses, do mesmo modo também farei eu. Não farás assim
ao SENHOR, teu Deus, porque tudo o que é abominável ao SENHOR e que ele odeia fizeram
eles a seus deuses, pois até seus filhos e suas filhas queimaram aos seus deuses. Tudo o que
eu te ordeno observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás‖ (Dt. 12:30-32). Embora
os americanos não estejam hoje sacrificando seus filhos a Moloque, muitos estão de fato
servindo no altar do hedonismo. A nossa cultura não se atem aos profetas de Baal, mas aos
esportes, Hollywood e Las Vegas. Essa atitude hedonista, auto-centrada e orientada para o
entretenimento penetrou completamente em muitas igrejas evangélicas modernas. A
moderna música celebrativa não é um modo melhor e mais bíblico de adorar a Deus. É um
culto sincrético. É a mistura dos elementos de culto com a cosmovisão hedonista
americana. O repúdio de Frame ao entendimento puritano/presbiteriano/confessional do
princípio regulador, juntamente com a sua alternativa de ―aplicação criativa‖ tem um
objetivo maior: a justificação do moderno culto sincretista.237
no vinho. Há a experiência sensório-visual de se olhar para os elementos. A questão entre os regulativistas
estritos e as igrejas que seguem uma liturgia episcopal não é a do culto puramente mental versus o culto do
homem-como-um-todo. Os pontos verdadeiros são: (a) os puritanos querem limitar o culto a apenas aquilo
que está autorizado pela Escritura, ao passo que os liturgistas querem os acréscimos humanos (e.g., pompa e
ritual); (b) Os regulativistas compreendem a centralidade da pregação da Palavra. Não é que os puritanos
tenham descartado as emoções e o ―homem-como-um-todo‖. Seguindo a Paulo e a outros eles reconhecem
que as emoções apropriadas e as ordenanças visíveis precisam fundamentar-se na fé e no entendimento; caso
contrário fica-se com ritualismo e misticismo vazios. Paulo diz que orar e cantar sem entendimento é inútil e
não leva à edificação (cf. 1Co. 14:12-19). O apóstolo pressupõe que, para poder ocorrer a santificação, a
mente precisa, antes de tudo, compreender.
E quanto à acusação comum de que os puritanos seguem à filosofia grega em sua concepção de culto?
Qualquer um familiarizado com a literatura de João Calvino, John Knox, John Owen, George Gillespie,
Samuel Rutherford e outros, sabe que tal acusação é totalmente falsa. Esses homens derivaram sua filosofia
do culto a partir de uma direta e cuidadosa exegese da Escritura. Observe também que os acusadores fazem as
suas denuncias sem que tenham a mínima prova. É irônico que a aplicação estrita do princípio regulador seja
a única filosofia que proíbe a intrusão da filosofia humana na esfera do culto. Pedimos a nossos irmãos, que
estão insatisfeitos com a simplicidade do puro culto evangélico (aquilo que eles denigrem como culto
minimalista), para que nos mostrem, baseados numa real exegese da Escritura (sem aplicações criativas e
hermenêutica alucinógena), onde foi que Calvino, Knox e os teólogos de Westminster erraram. Não seremos
persuadidos com truques de mágica. 237
As pessoas favoráveis ao culto ―celebrativo‖ descrevem algumas vezes os regulativistas estritos como
esnobes teológicos, desprovidos de amor e que são até mesmo influenciados pelo neoplatonismo ou pelo
nominalismo. A verdade sobre a questão é que os regulativistas estritos querem preservar o culto bíblico (i.é,
reformado) do culto que é idólatra, pelagiano e arminiano. Quando as pessoas ignoram ou descartam aquilo
que Deus ordenou em favor da autonomia no culto, elas estão dizendo implicitamente que, na adoração,
podemos nos aproximar de Deus nas condições humanos. Que o homem através da sua própria criatividade,
esforço, e experiência mística pode elevar-se até Deus. Tal tipo de pensamento é a essência do paganismo e
do catolicismo. A Bíblia, entretanto, ensina que somente Deus é que inicia a mediação e estabelece o culto
entre Ele próprio e o Seu povo. Jeová é quem define as regras e controla o culto. Para o homem pecaminoso,
aproximar-se de Deus em seus próprios termos, é o cúmulo da arrogância. Tais homens podem ser amigáveis
Conclusão
Um dos debates mais importantes que ocorre hoje entre os presbiterianos
―conservadores‖ é sobre o princípio regulador e a sua aplicação no culto. Esse debate
teológico é crucial, pois a sua conseqüência afetará grandemente o futuro rumo do
presbiterianismo. A principal batalha que está ocorrendo, não é entre os tradicionalistas
defensores do status quo e os celebrantes do estilo carismático, mas entre confessionais
estritos (i.é, aqueles que permanecem firmes a um entendimento estrito, consistentemente
aplicado e histórico do princípio regulador) e todos os demais que rejeitaram ou
reinterpretaram o princípio regulador de modo não-confessional. Não há a menor dúvida de
que Frame é o principal apologista dos que rejeitaram a posição confessional e
estabeleceram um novo rumo consistente com aquilo que é popular no seio dos evangélicos
arminianos não-regulativistas. Embora vejamos em nossos dias um renovado interesse no
culto bíblico (e.g., o cântico dos Salmos à capela), atualmente, nas denominações
presbiterianas conservadoras, a principal tendência de culto parece voltar-se para novo
culto ―celebrativo‖ defendido por Frame. É de se esperar por tal tendência. Quando as
denominações afastam-se, na prática, do princípio regulador pelo uso de hinos não-
inspirados, instrumentos musicais e dias santificados extra-bíblicos, a tendência é ser
consistente. Noutras palavras: um pouco de fermento leveda toda a massa.
O propósito desta resenha é alertar a todos os que se consideram reformados ou
presbiterianos de que Frame está guerreando contra o culto bíblico e os Padrões de
Westminster. Ele é subversivo; usa de falsidade, ambigüidade e engano para persuadir os
outros a abraçarem a autonomia humana no culto. Observe que a sua subversão é
deliberada e bem planejada. Não é nenhum calouro ou teólogo amador que cometeu alguns
erros simplesmente por imaturidade e falta de conhecimento. Ele ensina teologia e
apologética, em seminários, há mais de 27 anos, e sabe muito bem que aquilo que propõe
em seu livro é um afastamento radical dos Padrões de Westminster. É um ministro
ordenado e professor de seminário que adota a Confissão de Fé com os dedos cruzados.
Frame e todos aqueles que em seus votos de ordenação juraram fidelidade aos Padrões de
Westminster, mas que agora os rejeitam, têm três opções: (1) podem honesta e
coerentemente resignar às suas posições como pastores, professores de seminário ou
presbíteros regentes e juntar-se a alguma denominação que seja calvinista em sua
soteriologia, mas que rejeite abertamente o culto reformado (i.é, o princípio regulador); (2)
podem ser desonestos, redefinir o princípio regulador de uma maneira não-confessional e
trabalhar para subverter um dos principais distintivos presbiterianos e corromper outros; ou
(3) podem arrepender-se, obedecer aos seus votos de ordenação e retornar ao culto bíblico
dos seus antepassados espirituais.
A subversão de Frame aos Padrões de Westminster, o endosso a seu livro por
professores de dois seminários reformados ―conservadores‖, bem como a sua publicação
por uma suposta editora ―Presbiteriana e Reformada‖ revelam duas coisas acerca dos dias
em que estamos vivendo. Primeiro, vivemos em dias de grande decadência. A maior parte
daquilo que hoje passa por presbiteriano conservador está verdadeiramente mais próximo
do evangelicalismo arminiano com tendências episcopais do que da proposta original da
Confissão de Fé. Na verdade é duvidoso que alguém como John Knox, George Gillespie ou
e parecerem muito piedosos, humildes e amorosos. Mas a sua falsa doutrina e atitudes revelam serem (pelo
menos na área do culto) falsos mestres e profetas da decadência.
Samuel Rutherford conseguisse um emprego para ensinar em quaisquer dos seminários
presbiterianos ―conservadores‖ de hoje; e é praticamente certo que nenhum dos principais
editores presbiterianos jamais publicariam quaisquer de seus escritos sobre o culto. Por
quê? Porque os seminários presbiterianos ―conservadores‖, os principais editores
reformados e a maior parte das pessoas nas denominações presbiterianas não crêem
realmente no culto confessional. ―Coisa espantosa e horrenda se anda fazendo na terra: os
profetas profetizam falsamente, e os sacerdotes dominam de mãos dadas com eles; e é o
que deseja o meu povo‖ (Jr. 5:30-31).
Segundo, vivemos numa época em que a subscrição confessional é muito frouxa,
onde ministros e presbíteros podem repudiar e quebrar os votos da sua ordenação sem
praticamente qualquer conseqüência disciplinar. Esta situação suscita algumas perguntas
importantes: (1) Se um homem quebra abertamente os votos da sua ordenação e ensina
publicamente uma doutrina anti-bíblica de culto, podem, a denominação e o seminário que
se recusam a disciplinar tal homem, ser chamados de reformados? Não estariam, em sua
recusa, forçando seus próprios padrões à cumplicidade com a falsidade desse homem e com
o seu falso e corrosivo ensino? Não seria a sua falta de atitude a aceitação implícita de
pontos de vista heterodoxos? ―Se os presbiterianos levassem a sério os seus credos, o Sr.
Frame haveria de ser removido do seminário e do pastorado, e proibido de ensinar‖.238
(2)
Além disso, a recusa em se infligir uma sanção a uma tão gritante violação de nossos
padrões não seria também uma recusa pastoral de proteger os membros da igreja contra os
falsos mestres? Não seria uma rejeição implícita de um dos motivos principais de se adotar
um credo bíblico cuidadosamente elaborado? A análise de Gary North quanto ao conflito
presbiteriano dentro da PCUSA (c. 1880-1936) aplica-se aos nossos dias de laxa subscrição
e de impunes transgressores de alianças. Ele escreve:
Boa parte do conflito presbiteriano consistia do antiqüíssimo debate entre as
interpretações, uma rigorosa e outra frouxa, de um padrão. Para entender o que
estava envolvido, considere uma placa de limite de velocidade que diz ―35‖
(milhas ou quilômetros por hora). O que acontece se alguém dirige a 36? Será
multado pelo policial? É provável que não. O policial dispõe de pouco tempo para
perseguir os corredores, multá-los, e talvez ir à corte para defender as suas
autuações. Em um mundo de recursos limitados alguém que dirija à velocidade de
36 numa zona de 35 provavelmente seguirá impune; a segurança das pessoas
depende da interrupção da atividade dos corredores que ameaçam à vida. Mas a
comunidade só terá condições de multar os que correm a 36, se estiver disposta a
contratar muito mais policiais e juízes.
Considere agora alguém que dirige a uma velocidade de 55 numa zona
escolar para criancinhas com velocidade limitada a ―25‖. Será perseguido por um
policial? Sem dúvida. O corredor está colocando em jogo a vida das criancinhas.
Esse motorista é um sério infrator da lei. Ao se recusar a persegui-lo, o policial
estaria desprezando a própria essência da lei. Seu próprio emprego estaria em risco
por deixar de cumprir o dever. Uma cidade que não pune o emprego de um policial
que se recusa irredutivelmente a perseguir esses corredores está, na verdade,
afirmando: ―Nossas placas de trânsito não significam nada. Dirija tão rápido
quanto quiser, dia ou noite‖. Noutras palavras: ―É melhor que as suas crianças
cuidem de si mesmas; nós é que não cuidaremos delas‖.
238
Kevin Reed, ―Presbyterian Worship‖ in Musical Instruments in the Public Worship of God, 139-144.
A subscrição estrita, do mesmo modo que os limites de velocidade, tem o
objetivo proteger as pessoas vulneráveis que estão sob a proteção da lei. Tão
certamente quanto uma criança de sete anos está protegida por uma placa de limite
de velocidade e um sistema legal preparado para fazê-la ser obedecida, assim
também o morador de um certo país está protegido pela estrita interpretação de
uma constituição civil escrita e um sistema legal preparado para fazê-la ser
obedecida, como também está protegido um membro de igreja pela subscrição
estrita a uma confissão de fé e um sistema legal preparado para fazê-la ser
obedecida.
Decorrem duas conclusões: (1) leis sem penalidade não protegem ninguém;
(2) leis interpretadas por meio de construções frouxas não protegem ninguém, com
toda certeza. Isso é tão verdadeiro para as questões eclesiásticas quanto o é para as
questões de segurança nas rodovias.
A criança está sob a proteção da lei, da placa que limita a velocidade, do
policial, da corte de justiça, mesmo que não tenha feito publicamente um
juramento para obedecer fielmente à lei. A placa indicadora do limite de
velocidade existe para a proteção dela: a pessoa que corre o maior risco por causa
dos corredores. Quando ela se tornar motorista, esperar-se que obedeça a lei.
Na Bíblia, a viúva, o órfão, e o estrangeiro são identificados como as pessoas
mais vulneráveis da comunidade. A lei civil deverá protegê-los. O menor de idade
ou o estrangeiro residente é protegido hoje pela constituição nacional, mesmo que
não tenha jurado publicamente fidelidade a ela, são elas as pessoas mais
vulneráveis em caso de tirania do governo.
O congregado e o membro não-votante da igreja estão protegidos pela
confissão de fé, mesmo que não tenham jurado publicamente fidelidade a ela. Ela
protege a sua alma dos lobos em pele de ovelha: falsos pastores. Mas caso algum
dia ele se torne um oficial da igreja, deverá fazer o juramento de defender e
sustentar a Confissão de Fé.239
Ademais, que sentido há em se aderir oficialmente a um credo, ou em se exigir nos
votos de ordenação que seus ensinamentos sejam defendidos e sustentados, quando homens
ordenados, que juraram ser fiéis a esse credo, podem negá-lo abertamente e subverter
algumas de suas doutrinas mais importantes? ―Todo o propósito do credo é ‗ancorar‘ um
ponto de vista teológico particular, protegendo-o da erosão das instáveis marés do
modismo. Conseqüentemente, um credo precisa ser entendido nos termos da sua intenção
original, caso contrário ele fracassará em seu propósito...‖240
Os homens são livres para
discordar da intenção original dos Padrões de Westminster. Entretanto, se juraram
fidelidade aos Padrões, têm o dever moral de fazer conhecidas as suas discordâncias,
renunciar as suas posições como pastores, presbíteros, mestres ou diáconos e mudar de
igreja. Do mesmo modo, as denominações e seminários que alegam ser fiéis aos Padrões, e,
contudo, ensinam em oposição a eles, têm a obrigação moral de (no mínimo) modificar os
Padrões conformando-os àquilo que realmente ensinam e praticam. Homens ordenados,
seminários e denominações que fingem aderência aos Padrões, o que verdadeiramente
239
Gary North, Crossed Fingers: How the Liberals Captured the Presbyterian Church (Tyler, TX: Institute
for Christian Economics), 10-11. 240
Ken Gentry Jr., ―In the Space of Six Days: On Breaking the Confession with the Rod of Irons‖ (Vallecito,
CA: Chalcedon Report, Abril 2000), 17.
fazem, são culpados de quebrar o nono mandamento. São culpados de pregação enganosa.
O que ocorre hoje é fraude em grande escala. Como é que se pode estancar a decadência
quando a intenção original dos Padrões de Westminster é ignorada ou descartada para se
acolher pontos de vista heterodoxos sobre o culto, criação e ofício feminino? Gentry
escreve: ―Quando testemunhamos, diante de nós, a tentativa de se reinterpretar uma
linguagem clara, profundas e sérias preocupações vêm a tona. Que rumo tomará essa
metodologia? Que elementos da Confissão de Fé estão a salvo dessa hermenêutica re-
interpretativa? E por quanto tempo estarão seguros, uma vez que esse modo interpretativo
está à solta?‖.241
Por último, se seções cruciais dos Padrões de Westminster são ignoradas ou
totalmente redefinidas, a ponto de contradizerem o claro sentido histórico dos Padrões, isso,
por fim, não resultará na transferência da autoridade da intenção original dos Padrões para
um padrão arbitrário, não escrito, e historicamente relativo? Sim, com toda certeza. Todas
as organizações sofrerão algum tipo de sanção. Não é, portanto, uma questão de sofrer ou
não sanções (a longo prazo). O que ocorre, depois de um certo tempo, é que a interpretação
anticonfessional não-histórica torna-se o padrão dominante. Logo, discretas sanções são
aplicadas contra confessionalistas estritos (e.g., negam-lhes púlpitos, cursos, empregos,
lideranças em comissões, esquivam-se deles e indicam razões malignas para suas posições
teológicas — e.g., fulano só se preocupa com a teologia, não com as pessoas; ou, ele não é
amoroso; ou, ele é divisionista; ou, ele não se preocupa com o crescimento da igreja, etc.).
Depois de algum tempo, os confessionalistas estritos são até mesmo admoestados e
disciplinados abertamente. Observe que, quando sanções negativas não são impostas aos
oficiais da igreja que abandonaram os Padrões de Westminster, então virá um tempo em
que as ―sanções serão impostas nos termos de um outro padrão, e não segundo a Confissão
de Fé de Westminster e seus dois catecismos‖.242
Sem a rígida aderência aos Padrões de
Westminster a pergunta institucional será: Por Qual Outro Padrão?243
Virá o dia em que
aqueles que aderem ao culto bíblico da Confissão serão marginalizados e expulsos. Para
aqueles que acham que este cenário está muito longe, lembre-se que esse modelo tem se
repetido ao longo da história da igreja.
Nossa esperança e oração é que Frame — juntamente com todos os que se
chamam de presbiterianos e alegam aderência aos Padrões de Westminster, mas que atacam
o princípio regulador (i.é, o culto reformado) e promovem inovações no culto a Deus —
cessem os seus ataques contra o culto bíblico, e arrependam-se publicamente de mentirem,
quebrarem os seus votos, participarem da perversão do culto, e de fazerem outros
corromperem o culto a Deus.
241
Ibid. 242
North, Crossed Fingers, 9. 243
Ibid.