Post on 06-Jul-2015
Seu pequeno
sapatinho vermelho
A xícara de café estava na mesa. O aroma tomava
conta da sala. Mesmo com a porta escancarada, a
fumaça quente e aconchegante formava um belo
dueto com a luz. Em cima de minha mesa eu
deixava uma foto do meu pai. Getulio. O herói dos
quadrinhos de minha vida. Um herói que deixou
como herança para seu filho sua pequena loja de
sapatos. Ele concertava, fazia e seus pisantes
enfeitavam a maioria dos bailes de gala da cidade.
Meu sonho era ser alfaiate, mas a vida apenas me
permitiu um pouco abaixo. Segui o rumo de meu
pai, que veio a falecer quando eu ainda nem tinha
dado a minha primeira costurada em um sapato
qualquer.
Foi um dia de chuva. Ele havia saído para comprar
pão. Fiquei em casa cuidando de minha mãe que
havia operado o baço. Senti-me entre a cruz e a
espada pois a padaria ficava longe e meu pai
estava ruim das cadeiras, lento como um cágado.
A noite se esvaiu e a vermelhidão da madrugada
tomou conta dos céus. Ele não havia chegado. A
chuva torrencial como nunca. O telefone tocou.
Era da policia. Meu pai havia sido encontrado
estirado ao chão com o pescoço deslocado após
um motoqueiro o atropelar e não dar socorro. Foi
um tiro no meu coração de nuvem. Mas como
havia prometido à ele: segui sua profissão e tentei
manter a fama do seu Bazar.
Doze anos depois um primo que morava na capital
fez uma visita. Ricardo era o filho mais rico da
família. Sua humildade era tão de ouro quanto sua
herança. Ainda bem. Ele acabou por patrocinar
minha pequena loja e fez a marca crescer como
um feijão no algodão. Passamos a ter clientes mais
assíduos. As vendas eram tão constantes que mal
entregávamos um pedido e outros três já estavam
em nossa bancada. Tive de contratar empregados.
Antes era apenas um pequeno cubículo
enturmado em todos os cantos pelos sapatos.
Precisaríamos de ao menos um prédio de dois
andares. Providenciamos. Precisávamos também
de uma modelo para nossos produtos. Pedi a um
amigo editor gráfico para fazer um cartaz
chamativo para colar na porta do estabelecimento.
Queria que minha sala ficasse na entrada. Adorava
a receptividade e entregar meu sorriso aos
clientes. Não me desfiz da mesa que meu pai
arquitetou junto de meu avô. Era madeira cara.
Nunca me falou de onde. Quando perguntava ele
resmungava e mandava eu parar com frescuras.
Montei tudo como antigamente. A foto do meu
velhinho na quina, principalmente. Abrimos a nova
loja em Março. Em Abril já éramos estouro de
vendas. Incrivelmente. Mas nada de encontrarmos
a modelo.
Um dia fiquei até mais tarde para terminar o
serviço de uma madame da Vila Berline. Ela
pagaria caro, o que fez com que engordasse meus
olhos com os zeros no cheque que ela deixou. Já
era tarde da noite. As nuvens já estavam rosadas e
o céu azul poluía-se em negro. Estava de cabeça
baixa. Namorava o vai e vem da linha preta de
costura. Meu silêncio apaixonante foi
interrompido por uma mulher. Ela já chegou
despejando um par de sapatos vermelhos em
minha mesa. Nem se deu a honraria de se
apresentar. Ela tinha um rosto inexpressivo. Seu
olhar parecia descolorido, os sentimentos
pareciam ter saído a passeio. Suas roupas eram
largadas. Assim como seu cabelo, que diga-se de
passagem parecia uma cachoeira de lisos e negros
fios que faziam ponte para olhos cor de jabuticaba.
Mas eram jabuticabas sem brilho. Sem contar um
pingente estacionado entre as montanhas dos
seus seios. A moça interrompeu o meu devaneio.
- Quanto fica para arrumar esses sapatos?
- O que está acontecendo com eles?
- Ele descosturou em boas partes e queria dar uma
refinada no seu brilho e na tonalidade.
- A uma primeira analise eu apenas te cobraria que
se assentasse.
- Obrigada, odeio ficar em pé. – disse assentando-
se de uma forma não muito elegante.
- Que mal lhe pergunte, moça que não sei o nome,
você trabalha com o quê?
- Atualmente eu só estudo, alias, finjo, está tudo
muito chato. Os livros são meu travesseiro. E a
propósito: meu nome é Renata, moço que não sei
o nome.
- Daniel, prazer. – disse esticando a mão para
cumprimentá-la. – Você chegou a ler o anuncio
que estava ali na porta?
- Sobre vocês estarem procurando por uma
modelo?
- Esse mesmo.
- Sim. Por acaso você está achando que eu tenho
capacidade para isso? Eu acho que não.
- Quando você entrou eu imaginei que era para se
candidatar. Por mim o cargo é seu. Estamos há
quase dois meses procurando e sem sucesso.
Precisamos agilizar o serviço. A agência de moda
que fechou conosco quer ver logo nossos sapatos
em suas estampas e nas próximas revistas.
- Estou muito indecisa ultimamente. Não sei se
aceito esse trabalho. Porém por outro lado eu
acho que seria uma boa. Não tenho saído com
minhas amigas, a minha vida está um porre.
- Garanto que se aceitar nossa oferta o que não vai
faltar é agitação em sua vida.
- Mas vai ser assim? Eu chego e já ganho o cargo?
E se outras mulheres mais lindas que eu
aparecerem?
- Se te escolhi, é porque valorizei sua beleza.
Mesmo com esse olhar sem vibração. Precisamos
de alguém o quanto antes. Estamos fechados
então, Renata?
- Fechados. – disse apertando minha mão e sem
nem ter piscado um segundo durante a entrevista.
Imaginei que ela pudesse estar acesa demais ou
então muito atenta ao que dizia.
Preferi entregar a caneta e o contrato para que ela
assinasse. Ela teria que vir diariamente à loja para
que fizéssemos as medidas e analisássemos qual
seria o tom de sapato que mesclasse com seu
corpo cor de chocolate.
O que mais me entristecia era o cheiro de
desanimo que Renata exalava. Ela parecia não ter
conhecimento da sua má vontade, mesmo isso
soando como um paradoxo. Aliás, ela era um
paradoxo. Não conseguia decifrá-la em nossa
convivência. Mas o que me chamava atenção era
sua simplicidade e sorriso fácil. Aquela parede
branca que refletia luz entre seus lábios carnudos
estremecia minhas pernas. Como chefe, tinha de
me manter autêntico e ético. Não poderia flertar
com aquele pequeno bombom dentro das nossas
condições de trabalho, mesmo tendo ciência do
longo tempo sem ser apertado por um abraço
feito uma camisa de força. Minha boca parecia
uma caverna dominada por teias de aranha. Sentia
saudades de ter alguém para mim. Ter lábios para
vasculhar e degustar nos momentos que sentisse
fome de amor.
Renata salientou sobre seus sapatos vermelhos
que enrolava para concertar. Me cobrava direto
por eles pois de alguma forma eles representavam
muito para ela. O fiz em pouco tempo para
satisfazer a Cinderela. Mas cobrei que algum dia
sentássemos para tomar um café e ela me
contasse a história daquele sapato.
Com o passar dos dias Renata se mostrava mais
presa a idéia de ser nossa modelo, entretanto eu
observava que ela não saía. Ela se isolava do
mundo. A beleza dela ficava escondida nos
escombros dos sapatos. Talvez o plano dela me
contar sua história seria tão complicado quanto
um Cubo de Rubik. Houve uma sexta-feira em que
ela ficou na loja até mais tarde escorada num
canto abraçada aos joelhos e balançando seu
sapato vermelho. Os olhos pareciam em outra
dimensão, em outro mundo que ela parecia querer
visitar sem sair do lugar. Mas sem sucesso. Evitei
retirá-la do seu momento e apenas encostei minha
cabeça na parede e a apreciei de longe. Havia
alguma história tão forte quanto suas pálpebras
que custavam se fechar. Eu precisava saber sobre
aquilo. Pensei em pedi-la para chegar mais cedo
sem avisar que seria para conversarmos. Qualquer
presença dos outros funcionários poderia acanhá-
la e as verdades ficariam presas naquele
reservatório misterioso.
Na manhã de uma quinta-feira, onde o dia estava
tão cinza quanto os olhos de Renata, cheguei mais
cedo e aguardei por ela. Ela demorou chegar,
assim como fez em toda semana abusando dos
atrasos. Relevei.
- Que estranho, a loja está abandonada hoje. Bom
dia, Daniel.
- Bom dia, Renata. Sim, está abandonada porque
eu pedi aos rapazes para chegarem mais tarde e
queria que você chegasse mais cedo. Precisamos
conversar. Assente-se.
- Já sei, estou demitida? Eu já imaginava. – disse se
levantando e praticamente não dando a mínima e
não demonstrando ressentimento qualquer.
- Não, de maneira alguma. Eu fiquei curioso para
saber a história desse sapato vermelho que você
não larga de jeito nenhum.
- Que história? Ah, sim, a história. Olha, não sei.
Talvez seja tediosa demais. Você não vai querer
saber. Deixa para lá.
- Se esquematizei essa manhã só para isso, eu
imagino que meu interesse seja enorme. Conte-
me. Estou a ouvidos.
- Ajeite-se porque a história é um pouco longa.
“Em minha casa moram eu, minhas duas irmãs e
meu pai. Minha mãe faleceu quando esteve
prestes a ter minha 3ª irmã. Não suportou o parto
dias após a difícil cirurgia. Idem para o pequeno
anjo que nem conheceu as cores do mundo.
Crescemos sendo donas de nossas
responsabilidades. Minha irmã mais velha diz que
o coração de meu pai era tão macio quanto uma
maria-mole, mas depois da morte de minha mãe
aquele pequeno doce se petrificou. Era difícil vê-lo
sorrir. Ele tinha minha mãe como um abajur para
iluminar em horas escuras. Nos momentos em que
ele fugia de si e deixava a raiva imperar por ter de
espantar os namoricos de minha irmã, minha mãe
se responsabilizava por ser o amaciante daquele
velho ciumento. Acabou que crescemos em meio a
depressão de meu pai e sem termos o pedestal de
força para guiarmos nossas vidas.“
“Por sorte minhas irmãs mais velhas eram sóbrias
com o mundo e souberam lidar com o fato de que
a morte de minha mãe não significava o
extermínio de nossos futuros. Betânia, a mais
velha, completou o ensino médio e tentou um
concurso público na prefeitura da cidade.
Conseguiu. Mas era pouco tanto para sustentá-la
quanto para sustentar a todos nós. Principalmente
meu pai que já adormecia nos braços da
depressão. Betânia felizmente nasceu com uma
voz maravilhosa e foi convidada para fazer parte
de um grupo de cantores que se apresentavam às
terças e quintas por toda a cidade e retiravam um
bom dinheiro com os espetáculos. Ela
praticamente não vivia em casa, mas era um
sacrifício ponderável. Poliana, a irmã do meio, era
tão preguiçosa quanto um pingo de chuva
escorrendo da ponta até a raiz de uma sequoia. A
única coisa que se importava era em cuidar do
meu pai, praticar seu boliche e vender produtos
cosméticos na porta de nossa casa. Por ainda ser
nova ela não podia concorrer no mercado de
trabalho. Mas o pouco que retirava mensalmente
já era suficiente para bons sacos de arroz.”
“Mas o problema que persistiu em minha família
foi de minhas irmãs terem encontrado o outro
pedaço de suas laranjas e de certa forma terem
me abandonado inexperiente em minha vida. Eu
acabei crescendo isolada e sem ninguém para
dizer no canto de meus ouvidos o que era certo e
o que era errado. Passei a ser uma espectadora do
meu pai deitado em sua cama o dia todo
encarando o infinito branco do teto com os olhos
paralisados. A escuridão do quarto lambia meus
pesadelos e fazia eu me sentir mais presa à
vontade de não viver. Isso se intensificou ainda
mais quando Betânia agarrou as malas e se mudou
para Joinville com seu marido sem deixar nenhum
cartão postal. Porém Poliana encontrou seu pote
de ouro no fim do arco-íris. Por ser uma ótima
jogadora de boliche, ela encantou os olhos de
treinadores da cidade e foi convidada para um
evento internacional. Lá ela foi bronze, mas voltou
com o ouro que se chama George. Dono de um
parque aquático e de uma creche que atende
apenas a crianças portadoras de necessidades
especiais. Ele era o seu parceiro de time e
acabaram se apaixonando quando George deixou
o ultimo pino para Poliana realizar o strike, tudo
isso numa visão mais romântica da coisa. Mas
felizmente ela ficou na cidade. Não abandonou sua
irmã e seu pai. Sabia que precisávamos uns dos
outros. George passou a nos ajudar
financeiramente.”
“Com o passar dos anos Poliana teve sua primeira
filha e eu ainda nem havia estreado meu primeiro
namoro. Convivi durante muitos anos com a
solidão e não consegui desatar nossa aliança.
Busquei refúgio no meu esporte favorito: tirar
fotos. Meus olhos detalhistas me fizeram ser das
coisas que o mundo ignora. Não saía e nem me
entregava aos braços de ninguém. Me isolava no
aconchego de meus flashs. Minha rotina era
estudar de manhã, ajudar minha irmã no almoço e
alimentar meu pai que já respirava com ajuda de
aparelhos e tinha o corpo sucumbido pelo
derrame. À tarde eu dava uma escapulida e ia
visitar meu lugar favorito na cidade. Fica num
bairro isolado num morro inclinado e desgastante
aos pés. Lá fica um vasto campo povoado por uma
belíssima vista que acampava minha alma solitária.
Às vezes apareciam alguns bichinhos para colorir o
espaço e eu não perdia tempo e os eternizava em
minhas fotos. Mas minhas visitas se tornaram tão
rotineiras, que num dia percebi o que parecia ser
uma pequena corda brilhante indo em direção ao
mato. Decidi pegá-la.”
“A corda estava agarrada a alguma coisa um pouco
pesada. Puxei mais forte. Para minha surpresa,
veio junto dela uma caixa. Abri. Lá dentro havia
um par de sapatos vermelhos. Dentro de um deles
havia um bilhete. “Aceita sair comigo e usar esses
lindos sapatos?”, dizia. Na hora me assustei. Olhei
ao redor. Não havia ninguém. Quando fiz o
movimento para colocar a caixa no chão, uma voz
bem calma sussurrou em minhas costas.
- O que achou do meu presente?
- Me desculpa, mas quem é você?
- Digamos que sou o cara que lhe deu um
sapatinho vermelho.
- Você está me assustando.
- Calma, princesa. Para falar a verdade eu trabalho
ali ao lado. Sou jardineiro e amigo dessas
florzinhas e desse gramado. Vi que a senhorita
frequenta esse lugar diariamente. Queria conhecer
a mais nova amiga de minhas amigas.
- Pra falar a verdade aqui é meu santuário de paz.
Mas eu nunca o vi por aqui.
- Eu sempre estive aqui. Talvez seja porque você
ama o que faz e se isola do mundo ao redor.
- É mais ou menos isso. – disse olhando para o
horizonte.
- Mas você não respondeu a pergunta do meu
bilhete, querida fotógrafa.
- Talvez num outro dia eu te responda. E no dia
que responder eu talvez leve essa caixa, gostei
desses sapatos e parecem caros. – disse saindo e
entregando para o rapaz que nem procurei saber o
nome.
Fiquei intrigada e ao mesmo tempo assustada.
Parecia que ele era algum tipo de perseguidor e
estava esperando alguma oportunidade para dar o
bote. Surgiu do nada oferecendo sapatos
vermelhos e ainda de quebra me chamou para
sair. Bizarro. Mas para minha surpresa não havia
nada de bizarro ali. Depois daquele dia ele passou
a conversar mais comigo. Colhia algumas plantas e
flores e me entregava. Citava músicas com letras
de agarrar na mente. Sem contar que transmitia a
ótima imagem de ser um cara bem romântico, só
que não muito clichê. Acabou que num dia eu
perguntei pela caixa e a levei para casa. Aceitei o
convite.”
“Não sentia vontade de sair, mas Juliano prometeu
me levar a um lugar surpreendente e eu não podia
recusar. Combinamos de nos encontrar num
domingo à tarde. Ele me pediu para que esperasse
na estação de trem que dali iríamos até onde havia
prometido. Ele não remediou em se vestir bem.
Nem parecia aquele Juliano todo abarrotado de
terra e com cheirinho de grama molhada. Disse
que amava camisa xadrez e nesse dia usava uma
com azul, preto e branco embaralhados. Quem o
visse pensaria que ele me acompanhava até uma
quadrilha. Juliano pediu permissão para pegar em
minha mão e me guiar até o lugar até então
misterioso. Para minha surpresa era ali onde
combinamos de nos encontrar. Juliano deu três
batidas na porta da estação de trem e um senhor a
abriu. Lá dentro parecíamos estar visitando
alguma estação de Londres. Cores mais cinzas, o
trem estacionado e bem encerado em suas
camadas pintadas de vermelho. No saguão um
jovem rapaz nos esperava. Ele se vestia mais ou
menos como Charles Chaplin, mas sem a
maquiagem no rosto e ele falava. E como falava.
Pediu para que assentássemos num pequeno
banco e acompanhássemos sua apresentação. Foi
uma das coisas mais lindas que pude acompanhar.
Ele e mais duas moças que surgiram de trás dos
vagões apresentaram uma peça romântica e leram
algumas poesias para nós. Há tempos não ria e
sentia tanta felicidade em minha vida. Até sugeri a
Juliano que congelasse aquele momento para toda
eternidade. Depois que se apresentaram, saímos
da estação e Juliano me levou até meu santuário
de paz. Ainda não entendia o motivo, mas quando
chegamos lá ele novamente retirou uma caixa do
meio dos arbustos. Pediu para que eu a abrisse. Lá
dentro havia um coração feito de cartolina
vermelha mas cortado exatamente no centro o
dividindo em duas partes. Juliano pegou uma e
disse:
- Renata, aceita ser minha outra parte?
Engoli em seco e esbocei pequenas lágrimas, mas
não fraquejei na resposta.
- Sim, eu aceito. – disse pegando a outra parte,
colando junto à dele e lhe dando um beijo.
Depois daquela noite iniciamos um romance
intenso. Juliano passou a ser o reflexo de luz na
escuridão de minha alma. Nosso amor vencia a
intensidade da difícil rotina e amassava como se
fosse uma folha de papel qualquer tipo de
decepção. Foram longos três anos seguindo essa
maré que nos guiava até os céus. Eu vivia num
planeta da felicidade e queria que destruíssem a
nave que pudesse me levar de volta àquela terra
que vivia. Mas nunca na minha vida eu imaginaria
que um ditado pudesse fazer tanto sentido: “nem
tudo na vida são flores”. Juliano desapareceu sem
informar para a família, os amigos e
principalmente para mim. Acabei me perdendo de
mim mesma e qualquer navalha que aparecesse
eu já queria espetá-la em meu coração de balão.
As minhas lágrimas salgavam meu rosto e os
cantos de minha casa eram minha moradia. A
única coisa que me importava era saber quando e
como Juliano reapareceria. Eu frequentava todos
os dias meu santuário de paz para ver se ele
aparecia. Mas nunca o fazia. Sete meses depois eu
me rendi ao golpe massacrante da vida e já não
aguentava olhar mais para aqueles sapatos
vermelhos. Numa histeria os peguei e lancei forte
contra a parede. Chutei como se fosse uma bola
de futebol americano. Arremessei contra o fogão
aceso e o mordi feito um osso. Quando me
controlei, vi que nada daquilo valia a pena. Nada
daquilo traria Juliano de volta. E aquele pequeno
sapato era a única parte dele que ainda restava
comigo.
“Por isso vim até aqui para concertá-lo. Concertar
um pedaço do meu coração. Concertar a pequena
memória e pequena parte que ainda resta de
Juliano em mim.”
Uma história que criou uma barragem no rio das
minhas palavras. A partir daquele momento eu
comecei a entender um pouquinho daquele lindo
vaso vazio que era Renata. Mas por incrível que
pareça, depois de toda uma forte história ela não
chorou e não mostrou sentimento. Fechou um
pouco as pálpebras e perguntou se poderia ir para
seu recinto experimentar alguns modelitos novos.
Ainda que me faltasse alguma reação ou algo para
confortá-la, decidi que era melhor deixá-la ir.
Todavia eu precisava reanimar aquele coração
murcho. Escolhi sugerir que a levasse em casa. No
caminho poderíamos conversar e quem sabe eu
ver de perto todo esse cenário fúnebre que ela
contou.
A casa de Renata não ficava muito longe. Segundo
me descreveu, ela tinha uma bela fachada na porta
de entrada. Flores lindas plantadas por Juliano.
Dois pequenos pés de coqueiros davam o ar de
praia na entrada. E também havia uma escada
infestada de cristais brancos e brilhantes. Não
seria difícil reconhecê-la. Durante boa parte do
caminho Renata encarava o chão e preferia o
silêncio. Eu também. Mas decidi iniciar a conversa.
- Eu queria mesmo era saber algo que pudesse
preencher esse vazio que há em você, Renata.
- Não adianta, esse vazio já tomou conta de mim.
- Imagino então que você precise de outra coisa
para tomar conta de você.
- Que outra coisa?
- Um alguém. Sei que nessa vida é difícil
esquecermos quem já amamos, mas só
conseguimos seguir em frente substituindo o
passado.
- Que nada. Não tenho capacidade para isso.
- Se teve capacidade para enfrentar toda essa
dificuldade, encontrar um novo amor será a coisa
mais fácil desse mundo.
- Aos olhos dos homens sim, aos meus não.
- Desde quando começamos a trabalhar eu já te
entendia como um grande desafio, sabia, Renata?
- Eu? Um desafio? Como assim?
- Você parece uma colcha de retalhos de
decepções que nunca encontrou alguém para
tentar recosturá-la.
- Para falar a verdade eu acho que convivi demais
com o meu pai e absorvi o medo da perda. Poderia
encontrar um amor, mas perdê-lo e ficar como ele
não é lá o melhor plano de vida.
- O medo da perda só nos tira as chances de ser
felizes. Você deveria tentar ser mais feliz. Procurar
uma razão para levantar e sentir o prazer de ver a
vida pelos olhos do seu amor.
- Eu já me cansei. Eu não quero saber de mais
nada. Eu sou isso: uma confusão de pensamentos
e sentimentos. - disse enquanto parava para
apontar sua casa. – É ali, ó.
Quando chegamos vi que ela errou bruscamente
na descrição. Não tinha nada a ver com a casa que
ela havia me detalhado. Era um casebre simples.
Telhas de amianto e sem jardim na entrada.
Parecia ter no máximo dois cômodos.
- Tem certeza que é essa, Renata?
- Tenho. Vamos.
Ao chegar à porta, Renata subiu no passeio e me
encarou com aqueles olhos sem brio. Minhas
espinhas se congelaram pois ela parecia preceder
alguma ação desvairada, sem pensamento ou
razão do que estava fazendo. Ela me abraçou
forte. Disse no canto de meus ouvidos que
adorava o jeito que eu a fazia bem e dizia palavras
que a confortavam. Logo depois ela segurou forte
no meu rosto e me deu um beijo prolongado. Mas
atrás de mim ouvi fortes passos na rua e
movimentos bruscos que pareciam uma calça em
movimento furioso. Um rapaz com os olhos tão
negros quanto o céu à noite e um semblante
assustador de fúria partiu para cima de mim.
Tentou me acertar com um soco e felizmente eu
consegui desviar.
- O que você está fazendo com a minha
namorada? – disse ele.
Era Juliano. Até então sumido e que por pura
ironia e safadeza do destino apareceu bem no
ímpeto de uma ação impensada de Renata.
Minhas pernas tremiam. Minha pele ficou branca
como neve. Meus lábios se secaram e eu me
engasgava com palavras que não saiam. Por sorte
algumas conseguiram pular de minha boca
estarrecida.
- Mas você não havia sumido? Por que apareceu
assim do nada? Aqui? E agora?
- Eu? Sumido? Do que você está falando, seu
babaca?
- Renata me contou sobre o romance de vocês e
sobre como você havia sumido sem dar notícias e
desapareceu há mais de um ano.
- Eu nunca sumi. Sempre estive aqui. Essas
desculpas não vão me fazer não encher sua cara
de porrada. – disse vindo em minha direção
babando como um cão enraivecido.
Sem entender nada e vítima de uma grande cilada,
pensei em sair correndo e entregar meu destino à
Deus. Mas no início da rua apareceu uma mulher
bufando. Havia subido correndo até onde
estávamos. Ela gritou o nome de Renata. Era
Poliana. Ela interrompeu nossa discussão.
- Calma, rapazes. Eu sei o que está acontecendo
aqui. Não precisa brigar. O que todo mundo não
sabe é que na verdade minha irmã sofre de uma
doença. Ela é esquizofrênica.
Boquiabertos, eu e Juliano dividimos a incrível
descoberta com um diálogo silencioso entre
nossos olhares.
- Há tempos eu já desconfiava disso, só não tinha
muita certeza. Tive de contratar um psicólogo e
também detetive para analisar o comportamento
de minha irmã. Recomendei que ele tentasse um
emprego em sua loja e começasse a análise.
- Como ele se chama? – disse com os olhos
arregalados.
- Rogério.
- Sim, o Rogério. O rapaz que trabalhava como
alfaiate de Renata. Por isso ele nunca desgrudava
de perto dela. – disse em tom de Sherlock Holmes,
mas nem tanto.
- Uma hora o estágio dela iria piorar. A gente só
estava esperando que ela tomasse uma atitude
grave provida pela doença. Ainda bem que cheguei
a tempo aqui.
- Então quer dizer que toda a história que ela me
contou do romance com Juliano não existiu? –
disse tentando livrar minha barra com ele.
- Não sei o que ela contou, mas imagino que não.
Essa casa aqui era onde morávamos antes de meu
pai morrer. Nos mudamos há alguns anos. E
Renata conheceu Juliano quando nos mudamos
para nossa nova casa e ele era um de nossos
vizinhos.
Imaginei que essa poderia ser a casa que Renata
me descreveu no início. Mas precisava saber de
quem era aquela que estávamos perto.
- De quem é essa casa então, Poliana?
- De minha mãe. Deve estar deitada pois ela sofreu
de um derrame gravíssimo há alguns meses.
Torcendo para ela não ter acordado com todo esse
nosso falatório.
Depois dessa informação parecia que haviam
pregado uma bomba-relógio em minha mente e
ela estivesse prestes a explodir. Mas o que mais
me chamou atenção foi como que Renata
desconectou todos os fatos que vivia em sua vida.
O quadro dela era realmente preocupante. Não
obstante a história do romance entre Juliano e ela
ainda era um mistério. Ele, ainda em fúria, saiu em
disparada e não quis ouvir nossas conversas.
Evitando a fadiga, deixei para investigar os fatos
restantes no outro dia. Antes de ir para casa tomei
um copo de água com açúcar gentilmente
oferecido por Poliana. Minhas mãos ainda estavam
trêmulas e agitavam o copo sem necessidade de
colher. Me despedi das meninas. Pedi a Poliana
que cuidasse bem de Renata e entreguei meu
cartão a ela para que me ligasse dando notícias
quando ela melhorasse. Renata estava totalmente
entregue ao mundo em seu subconsciente. Nem
respondia a nossas perguntas direito. Dei tchau
mesmo assim.
No outro dia procurei pelo número de Rogério em
minha agenda. Queria pedir a ele o endereço da
casa de Renata. Por sorte ele atendeu e me
concedeu sem problemas, mesmo ainda estando
em divida comigo pois teria de arrumar um novo
alfaiate. Terminei meus afazeres e fechei a loja.
Tomei rumo à casa de Renata.
Ela era exatamente como Renata havia me
descrevido. Linda aos olhos de quem via de fora. E
para minha surpresa, bem em frente à casa ficava
o gramado que ela citava com bastante ênfase.
Mas ainda sim faltava algo que deixasse bem
esclarecido o romance entre os dois. A paz
daquele lugar era tão contagiante que acabei me
assentando no gramado verde e encarei a tarde se
rendendo ao poder da noite. Quando desviei meu
olhar para alguns arbustos, vi o que parecia ser
uma pequena caixa jogada. Não pensei em outra
coisa a não ser ir até lá e ver o que também
poderia ser mais uma evidência da história de
Renata. Peguei. Abri. Dentro dela havia um
bilhete: “Aceita sair comigo e usar esse lindo
pingente?”.
Pingente? Me perguntei na hora. Mas não eram os
sapatos vermelhos? Abaixo do bilhete encontrei o
coração de cartolina vermelha. Não estava cortado
ao meio como ela havia me dito. O virei e nele
havia um recado escrito: “É da cor de meus
sapatos, mas pelo menos com esse você pode ficar.
Beijos de sua maior admiradora. Renata. Daniel
<3”. Minha boca se congelou aberta. O pulso no
meu coração seguiu o ritmo de uma escola de
samba. Mas sabia que aquilo apenas era meu
passaporte para a zona da amizade. Escutei
alguém bater à porta da casa de Renata. Era
Juliano. Poliana atendeu. Me escondi e observei.
Juliano retirou algo da mochila que carregava. Era
uma caixa. A abriu. O objeto estava dentro de um
plástico. Eram os sapatos vermelhos. As únicas
palavras que consegui ouvir de Juliano eram:
- Está aqui os sapatos. Peguei na loja que Renata
estava trabalhando, – provavelmente ele foi em
uma hora que eu não estava –, esconda. Não deixe
que a Renata o use. E não deixe que ela tente
novamente fingir e assumir ser a antiga dona
deles. A esquizofrenia poderá não servir mais de
desculpa.”
Quando ele se retirou andei em direção à rua de
trevas. Por pouco um amor platônico não me
cegou ao que parecia ser a prova de um trágico
acontecimento do passado e nem me fez parte
daquilo tudo.
Tiago Peçanha.