Post on 07-Jul-2015
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
Maria Lucidalva de Oliveira Almeida
SER MULHER NO SERTÃO: OS DIVERSOS ESTEREÓTIPOS E
PRECONCEITOS QUE ESTGMATIZAM A MULHER
SERTANEJA
Conceição do Coité
Fevereiro de 2010
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SER MULHER NO SERTÃO: OS DIVERSOS ESTEREÓTIPOS E
PRECONCEITOS QUE ESTIGMATIZAM A MULHER SERTANEJA
Maria Lucidalva de Oliveira Almeida1
Resumo
O presente texto discute a questão da mulher sertaneja no tocante aos preconceitos que
corriqueiramente são construídos sobre sua imagem. Objetivou-se com essa análise discutir os
estereótipos e as diversas representações existentes acerca do papel da mulher que reside no
Sertão Nordestino. O trabalho foi desenvolvido a partir de diversas leituras, análise de filmes,
letras de músicas, realização de oficinas, e outras circunstâncias que possibilitaram a
discussão aqui apresentada. Durante esse trabalho procurou-se demonstrar a importância em
conhecer sistematicamente as diferentes realidades das mulheres sertanejas, seus valores, os
conceitos pré-concebidos que giram em seu entorno. Os resultados apontam que o preconceito
contra a mulher do Sertão e conseqüentemente a nordestina de fato existe e está presente em
diversas formas e em diferentes lugares.
Palavras-chave: Mulher, Representação, Preconceito, Sertão.
Abstract
The present text discusses the country woman's subject concerning the prejudices that is
always built on her image. It was aimed at with that analysis to discuss the stereotypes and the
several existent representations concerning the woman's paper that lives in the Northeastern
Interior. This resume was developed starting from several readings, analysis of films, letters
of music, accomplishment of workshops, and other circumstances that made possible the
discussion here presented. During that evaluation it tried to demonstrate the importance in
knowing the country women's different realities systematically, their values, the concepts pré-
conceived that rotate in yours spill. The results appear that the prejudice against the woman of
the Interior and consequently the Northeasterner in fact exists and is present in several forms
and in different places.
Key words: Woman. Representation. Prejudice. Interior.
¹Aluna da graduação de Licenciatura em História da UNEB, Campus XIV e professora de História do
Ensino Fundamental II. E-mail: ma.lucidalva@hotmail.com
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1. A mulher sertaneja e suas representações
Analisar e entender a atuação da mulher nordestina, e, sobretudo a sertaneja no espaço
da família e da sociedade, e a conseqüente produção do discurso que dualiza a sua imagem no
espaço que corresponde ao sertão nordestino é a finalidade da discussão aqui proposta.
Apresento uma reflexão sobre os estereótipos, as falas e conteúdos veiculados nas narrativas
acerca da mulher sertaneja; presentes especialmente nos meios de comunicação social, na
literatura, nas letras de música, filmes ou até mesmo na visão do senso comum que outras
regiões geográficas do país como sul e sudeste tem sobre a mulher do sertão.
Há de se observar a trajetória de vida dessas mulheres e as suas diversas relações dentro
das polêmicas existente quanto a sua feminilidade, quase sempre consagrada como objeto
masculinizado e arraigados de outras caricaturas e mitos a seu respeito.
Sabe-se que os métodos de estudo e pesquisa empregado por diversos estudiosos
voltados para uma análise dos diferentes papéis da mulher na sociedade, e o seu
reconhecimento enquanto ser mulher, só foi possível graças as novas abordagens da história
vigente no século XX. E, sobretudo o esforço constante dessas mulheres que ativamente
participaram do processo de construção identitária e também discordaram dos diversos
estigmas que foram construídos ao seu redor, ao longo da história.
Um olhar mais aprofundado sobre a história da mulher no mundo e especificamente na
Grécia Antiga, bem como em toda antiguidade a mulher estava destinada ao espaço privado
do seu lar, enquanto o lugar público sempre foi reservado ao homem. Durante a Idade Média
na Europa com muitas transformações na economia, na cultura, na religião e na política uma
nova realidade social foi inventada para o desempenho das funções da mulher. No convento,
por exemplo, seu tempo era dividido em três atividades fundamentais: a oração, o estudo e o
trabalho. Segundo Bauer (2001), a mulher camponesa na Idade Média teve um papel social e
econômico nas zonas rurais imprescindível, tanto no trato diário com a terra, como nas tarefas
domésticas; independente do seu estado civil. A mulher medieval desde o século V esteve
sempre ao lado do homem, no desenvolvimento das mais diversificadas atividades
econômicas produzidas no cotidiano do mundo rural, estando sempre atrelada ao homem, não
sendo vista como sujeito transformador da sociedade em que estava inserida.
Já a mulher da cidade no período acima citado, como se tratava de uma época de
expansão e crescimento das cidades, teve acesso ao mundo do trabalho, porém sua mão de
obra era considerada subsidiária; contratada por salários inferiores, o que se observa até na
atualidade. Essa mesma mulher não conseguia se desprender do trabalho doméstico, até
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mesmo nos períodos de crise onde o trabalho era controlado quase que exclusivamente pelos
homens. E neste contexto as mulheres passaram a ser marginalizadas. Mas o que se pode
observar é que as mulheres foram também protagonistas de numerosas revoltas camponesas e
urbanas ocorridas na Europa durante a Idade Moderna.
Observando a sociedade contemporânea, juntamente com as revoluções burguesas
verifica-se que as mulheres através de incentivos de algumas precursoras dos movimentos
feministas, começaram publicamente a intensificar suas atividades políticas e passaram a
reivindicar alguns direitos sociais. Entretanto, o que se pode analisar é que a mulher desde a
idade patriarcal foi dominada pelas idéias em que prevalece um sistema quase exclusivamente
masculino, que constantemente negou a mulher os meios de produções intelectuais.
No que se refere á história da mulher no Brasil, perpassando por algumas sociedades
indígenas percebe-se que a presença da mulher foi fundamental na educação de diferentes
povos; na organização do trabalho doméstico, e principalmente na agricultura. Quanto ao seu
papel no desenvolvimento do sistema colonial brasileiro, sua condição era de submissão ao
pai e depois ao marido. Isso não quer dizer que todas as mulheres aceitavam passivamente
tamanho opressão. Já a mulher branca habitante da colônia se encontrava completamente
submetida no interior de uma família patriarcal, em que o poder da chefia era totalmente
concentrado na figura paterna, no senhor de engenho, detentor de uma autoridade absoluta
sobre a esposa e os filhos.
Com relação a mulher negra, dentro do processo histórico do Brasil, era um indivíduo
que realizava quase todo tipo de função, considerado um objeto de compra e venda, em razão
da sua condição escrava, muitas vezes era vista como um objeto sexual, ama-de-leite, saco de
pancadas das sinhazinhas, porque além de ser escrava era mulher. Contudo, não se pode negar
que esta mulher participou ainda diretamente de várias formas de resistência durante o
período colonial. De pouca visibilidade, porém essencial como resposta as agruras produzidas
pela a escravidão. Entre as mais variadas formas de dizer não ao sistema destacam-se: a
sedução ao seu senhor, sabotando o trabalho, fingindo se doente, causando malefícios ás
crianças brancas, praticando infanticídios e em alguns casos cometendo suicídio2.
De acordo com Carlos Bauer, e outros estudos sobre a mulher na sociedade
contemporânea, houve várias transformações no campo ideológico, algumas acompanhadas
de várias mudanças.
2 Idéias discutidas por Carlos Bauer no seu livro Breve História da Mulher no mundo ocidental (2001).
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A partir da Revolução Francesa as mulheres começaram publicamente a intensificar
sua atividade política e passaram a reivindicar direitos sociais e legais tais como: o
divórcio, o direito de receber uma educação completa e adequada aos novos desejos
da mulher moderna (2001, p.64).
A sua inserção na sociedade e as conseqüentes atitudes quebraram vários paradigmas
acerca do seu papel social, o que possibilitou novos avanços em uma luta inacabável que
demandará ainda na atualidade muito esforço e conquista, para uma similar existência da
igualdade entre os sexos.
O que interessa analisar neste artigo é como a mulher do sertão nordestino é vista e
representada nos diversos meios sociais, perante o olhar das outras regiões do país ou até
mesmo no seu próprio espaço físico do sertão.
Sendo este lugar uma área que compreende a parte mais interior de praticamente todos
os estados da região Nordeste do Brasil, constituem-se de uma denominação dada as regiões
interioranas, independentes do nível de desenvolvimento social ou econômico. A expressão
“Sertão” pode ser usada ainda para nomear mais especificamente, as regiões do interior da
Bahia, Pernambuco e Piauí, onde se concentram algumas das cidades com maiores índices de
desigualdades sociais do país além de baixíssimos indicadores de desenvolvimento sócio-
econômico.
Dialogando com Caio Prado Júnior, um importante intelectual ligado ao partido
comunista, verifica-se que ele tenta dar sua contribuição em relação ao Sertão. Para ele este
espaço representa:
[...] uma válvula de escapamento para todos os elementos inadaptáveis ou
inadaptados que procuram fugir à vida organizada dos grandes centros de
povoamento da colônia. É deles, os mais numerosos são naturalmente os que
suportam o maior ônus de tal organização, os que trazem estampados na pele o
estigma de uma raça bastarda e oprimida. (2004, p.114).
Geograficamente, o Sertão Nordestino caracteriza-se pela presença de clima semi-árido,
vegetação de caatinga, irregularidades nas distribuições das chuvas, solos secos e com
temperaturas elevadas. De acordo com Claudia Vasconcelos:
A idéia de Sertão tem estado presente no acervo de referencias sobre o Brasil desde
os tempos coloniais. De diversas formas e através de diferentes leituras, este item se
configura como essencial para a construção de uma identidade nacional, aparecendo
de forma ambígua e conflituosa nos discursos dos intelectuais e de outros agentes
que tomam parte nesse processo. (2007, p.105)
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Este paradoxo se nota em diversas situações e espaços quando o assunto é o Sertão
nordestino. Bem como aparece na representação da figura da mulher, por exemplo, para a
maioria a mulher sempre foi sinônimo de “sexo frágil”, dócil, delicada, meiga, porém quando
essa mulher é do Nordeste ou do Sertão uma série de adjetivos opostos são trazidos à cena,
esta é quase sempre apresentada como uma mulher masculinizada, capaz de assumir qualquer
tipo de trabalho, por mais duro que seja. Mulher esta associada a valores morais rígidos e
tradicionais, mulheres sérias, trabalhadoras ou companheiras de homens trabalhadores.
Além dessas representações que aparecem como idéias elogiosas acerca da mulher
nordestina/sertaneja, outras tantas imagens são veiculadas no sentido de desqualificá-las e
estigmatizá-las, colocando-as num lugar fixo e determinado que geram conseqüências ainda
não avaliadas ou estudadas, essas imagens a que me refiro estão ligadas a adjetivos como:
matuta, caipira, tabaroa, agreste, beata, cafona, e outras qualidades vinculadas a idéia de
incivilização que lhes são frequentemente impostas.
É preciso questionar o preconceito que ainda persiste contra a “mulher do sertão” em
relação a outras regiões do país, e até mesmo o preconceito existente entre as classes sociais
do Nordeste. Pois, sabe-se que a nordestina de classe média elevada no Nordeste não sofre o
mesmo tipo de preconceito, que a mulher sertaneja, nordestina e pobre. Entretanto, há de se
ressaltar que a mulher de classe média e mesmo média alta, quando se desloca especialmente
para o centro sul e sudeste do país é também vista como a diferente, com rótulos e estigmas
pejorativos, por serem oriundas do sertão.
O que se pode observar também é que há um déficit da produção literária, e de estudos
históricos com relação a trajetória da mulher sertaneja do interior nordestino. A história e o
cotidiano dessas mulheres pouco são vistos ou estudados, geralmente as mesmas entram nos
livros para compor estatísticas ou índices relacionados ao emprego, economia, raramente para
se pensar a sua cultura e sua identidade.
Conforme Peter Burke, “a história vista de baixo ajuda a convencer aqueles de nós
nascidos sem colheres de prata em nossas bocas, de que temos um passado, de que viemos de
algum lugar” (1992, p.62). Daí a importância de analisar a vida da mulher sertaneja, sua
imagem, seus silêncios e a suas histórias.
O interesse em refletir essa realidade preconceituosa pode-se mostrar um campo fértil de
discussões e análises em torno da realidade social e das construções dos papéis, dos discursos
e comportamentos encravados nos diversos lugares do sertão, bem como questionar sua
pretensa realidade, e suas conseqüências nas condições diversas na vida dessas mulheres, a
que esta pesquisa se propõe.
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Como afirma E.P. Thompson “o objetivo do historiador é o conhecimento histórico’’
(1981, p.58). Entretanto, a idéia de que se busca compreender e a de que o conhecimento
histórico parte do real, portanto seletivo, provisório e incompleto, mas nem por isso deixa de
ser verdadeiro. Ao registrar e repensar o papel da mulher na sociedade busca-se a construção
de um conhecimento novo e diversificado, bem como as diversas mudanças ocorridas em seu
entorno, visto que as imagens fixas geram um olhar estigmatizado sobre tal figura. Já que a
identidade é quase sempre construída em virtude de uma diferenciação. É preciso também
discutir as falas da mulher sertaneja, pois a partir do momento que pensamos os tipos de
linguagem, somos o que a linguagem nos faz pensar, ser, e expressar. A fala dos sertanejos
muitas vezes vista como “cantada”, com vocábulos próprios, diferentes de outras regiões do
país, não é um processo transparente, é a representação da sua identidade cultural, não
constitui uma mera questão gramatical, ao contrário, é um processo ideológico, cuja
relevância deve ser considerada. E para Durval Muniz Albuquerque Jr.,
No Nordeste existe diferentes falares, que não podem ser reduzidos a um rol de
expressões bizarras, folclóricas, retiradas do português arcaico, como aparece nos
famosos dicionários de nordestinês publicados na própria região a pretexto de
reafirmar a identidade regional. (2007, p.119)
Com esta análise, pretende-se mostrar que a mulher sertaneja não é aquela quase sempre
mostrada pelos meios de comunicação, pelas fotos dos livros didáticos, revistas, pelas letras
de músicas, e outras construções estereotipadas e preconceituosas, que persistem em apontar
essa mulher com características de quem é sempre sofrível, pouco agradável, como um ser
masculinizado. E o que se observa, é que há certa concordância da opinião pública com essa
visão transmitida ao longo dos tempos. Quando na verdade essas realidades existem, porém
não é só isso que se vê no sertão. Observam-se mulheres neste mesmo espaço físico com
outros atributos e características de beleza, de inteligência e de perspectivas diversas, com
diferentes modos de vida que raramente são vistos e apresentados.
Para a realização desse artigo foram feitos estudos informativos, leituras diversas para
melhor compreensão do tema proposto, pesquisa nos meios eletrônicos formais e outras
discussões que possibilitaram uma análise de como a mulher nordestina e, sobretudo, a
sertaneja convive com os diversos papéis, funções, e outras construções que lhe são impostas
diariamente. Contudo, um dos passos mais importante para a construção desse trabalho foi a
realização de cinco oficinas realizadas durante o V semestre, com a participação de mais ou
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menos trinta e cinco mulheres onde se discutiu o tema Mulheres quem somos nós? E daí
surgiram várias inquietações relacionadas a imagem da mulher nordestina3.
Sabe-se que as fronteiras existentes nas regiões e sub-regiões do país foram uma
invenção do homem para melhor demarcar e administrar; claro levando-se em conta alguns
aspectos comuns. Portanto, a discriminação que existe sobre o “ser” sertanejo ou nordestino é
essencialmente um conjunto de significados, é a construção de inúmeros símbolos que faz
deste lugar “sertão”, um local do bárbaro, do selvagem, do exótico para o homem branco já
que os recortes políticos administrativos nem sempre existiram, tudo foi construído a partir de
uma imagem de valores e preconceitos de uma elite coronelista que perspicazmente viu nessa
região uma forma “benevolente” para com esta população4.
Para manter seus privilégios construiu-se uma narrativa de significação simbólica
através da homogeneização dos discursos, para assim construir uma imagem do sertão como
sendo um lugar do não civilizado.
Trazendo está reflexão para a figura da mulher, percebe-se que esta sempre foi
apresentada como uma mulher séria, forte, trabalhadora, centrada na vida da família, um ser
apegada a terra as condições duras de trabalho, a acompanhar seus maridos, quando não são
chefes de famílias. Enfim, tudo é mostrado no sentido de afirmar uma sertaneja com imagens
de forte, eternamente injustiçada, pouca romântica.
O mundo feminino para essas mulheres sempre foi sinônimo de trabalho árduo, como as
demais regiões do país, mas tudo que é mostrado sobre a mulher sertaneja quase sempre, ou
3 Oficina elaborada pelas alunas Lucidalva, Aline e Ângela, como requisito avaliativo da disciplina Estágio
Supervisionado II, no 5º semestre de História - UNEB, realizada na Escola João Paulo Fragoso, sob a
coordenação da professora Cláudia Vasconcelos, em 2008. 4 Idéias sugeridas pelo historiador Durval Muniz de Albuquerque durante a palestra de abertura do Seminário
Diálogos Possíveis realizado pela UNEB - Campus XIV, no Centro Cultura Ana Rios de Araújo em 2009, em
Conceição do Coité.
Foto da oficina “Mulheres quem
somos nós?” 2008.
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sempre, é visto como sofredor, penoso, outras realidades como mulheres sertanejas sendo
gerentes de grandes empresas, universitárias, doutoras, mulheres que saíram do interior para a
capital e conseguiram importantes cargos administrativos, nunca são mostrados, visualizados
por alguns setores da sociedade. Insiste sempre em mostrar o lado sofredor dessas mulheres.
Constrói-se um lugar para mulher sertaneja que é similar a eterna luta, e de trabalho duro.
“A mulher macho” é a forma como alguns discursos ainda vê a mulher do Sertão e
consequentemente a nordestina. Fazendo uma crítica a essa idéia, o historiador Durval Muniz
Albuquerque Jr. afirma no seu livro Nordestino: uma invenção do falo como a mulher do
sertão ainda é vista:
Lutadora, resistente, honesta, é a mulher sertaneja, seja abastada, seja pobre; cheia de filhos; deles cuida com amor e carinho; provê as
necessidades domésticas, trabalha nas pequenas indústrias caseiras, e
é poderosa auxiliar nos serviços do marido, compatíveis com o sexo,
substituindo-o em caso de necessidade, na direção dos negócios e nos
trabalhos reclamados. (2003, p.247).
Percebe-se em várias falas e imagens existentes no país, a explícita idéia do discurso
generalizado regionalistas, que foi construindo a imagem da nordestina e da sertaneja como
aquela que sempre exerceu profissões veiculadas ao meio rural, ligadas ao sexo masculino,
atividades realizadas sem grande destaque social, como o trabalho na roça. Hierarquizando-a
ou submetendo-a a uma exigência da natureza hostil, perante uma sociedade marcada pela
necessidade da coragem, e do destemor constante.
O que se pode analisar também, é que atualmente essas mulheres já fazem um rigoroso
controle da natalidade, o número de nascimentos raramente ultrapassa a três filhos por casal.
Segundo a IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) a estrutura familiar brasileira
sofreu grandes modificações entre 1992 a 2008. Um estudo realizado em 1992, a mulher da
região nordeste tinha em média 1,2 filhos a mais que a mulher residente na região sudeste do
país. Este diferencial caiu para 0,5 filhos em estudos realizados em 2007. Contudo, lutadoras
realmente são, mais nada de anormal se comparadas às mulheres dos grandes centros urbanos.
Pois estas últimas também acordam cedo, utiliza-se de vários transportes para chegar ao
trabalho, ao retornar para suas casas, ainda realizam os trabalhos domésticos, cuida dos filhos
e outras atividades diárias que a vida moderna impõe. Porém, não são vistas
preconceituosamente como alguém masculinizado, menos atraente, e outros adjetivos que
durante décadas qualificaram a imagem da mulher do sertão nordestino.
Ao observar a mulher do Sul e do Sudeste se comparadas as do Nordeste, percebe que a
primeira é sempre aquela que configura, nos grandes desfiles de moda, nos contratos
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nacionais e internacionais, seja como modelo ou outras atividades consideradas sinônimo de
beleza. Já as do Nordeste quase nunca conseguem um destaque a nível mundial. O que não
significa que aqui não existam mulheres bonitas, tão quanto as do sul e demais regiões do
país.
Discorrendo ainda sobre o texto de Albuquerque Jr (citação anterior), verifica que se
constrói um lugar para a mulher que é o do trabalho duro, e da ajuda ao marido, ou seja, ela
parece trabalhar quando este está ausente, mas apenas o ajuda quando está em sua companhia.
O texto remete para elementos que explicaria a masculinização da mulher do Nordeste, a seca
e a ausência dos maridos que migram nessa ocasião, obrigando as mulheres a assumirem suas
tarefas e o seu lugar na família. As chamadas viúvas da seca, teria que saber andar pelo
universo masculino, se quisessem sobreviver na ausência de seu companheiro, ausência as
vezes muito prolongada e até definitiva. O embrutecimento dessas mulheres durante os
períodos da seca e a necessidade de se masculinizarem é um tema que está presente na
literatura regionalista, desde pelo menos o final do século XX.
2. Mitos e Símbolos que Estigmatizam as Sertanejas
A sertaneja parece ser cada vez mais uma mulher “diferente”, fora dos padrões
considerados normais, impostos por uma elite branca de algumas regiões do país que se
arrogam ao direito de se achar superior. Constrói-se uma identidade fixa para essas mulheres,
como se fossem todas iguais, com os mesmos costumes, com a mesma maneira de se vestir,
com a mesma aparência física, carregando sempre o estigma de uma vida dura, sem nenhuma
perspectiva digna de sobrevivência. Do ponto de vista de Vânia P. Vasconcelos a diversidade
de comportamentos e atitudes de homens e mulheres do sertão (estudados por ela) revela que
as imagens fixas em torno dos mesmos não condizem necessariamente com o vivido no
cotidiano, no seu artigo “Mulher séria e cabra macho”, ela conclui que:
Quando nos referimos ao Nordeste/Sertão ao mesmo tempo em que podemos nos reportar ás imagens cristalizadas que o associa à seca, fome e calor podemos
desconstruir essas representações a partir das práticas dos sujeitos que de certa
forma subvertem essas imagens. (2009, p.02)
Entre várias obras literárias clássicas, surgidas a partir da década de 30, que enfatizam
tipos brasileiros que representam especialmente o sertão, podemos citar o famoso Vidas Secas
de Graciliano Ramos. Nesta obra a mulher nordestina/sertaneja é representada na figura de
Sinhá Vitória, uma típica sertaneja sofredora e calada, que logo no início do capítulo referente
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ao seu personagem o autor a apresenta acocorada junto as pedras num contexto de pura
pobreza, onde a mesma não consegue realizar nem os seus mais míseros sonhos: ter uma
cama de couro e sucupira. Assim como esta personagem se apresenta tudo o mais que se foi e
ainda é pensado com relação a mulher sertaneja, constitui de algo onde não existe espaço para
mostrar a diversificação, para se enxergar outros pontos de vistas, ou até mesmo as diferentes
realidades de mulheres que com suas ações se orgulham de ser sertanejas e nordestinas. E é
essa visão unilateral que persiste nas amostragens sobre a mulher nordestina, é o que se pode
observar nessas imagens a seguir.
Analisando as fotos acima, bem como outros acontecimentos que diariamente ou por
ocasiões onde o Nordeste precisa ser mostrado na televisão e em demais espaços de
comunicação, a mulher sertaneja é sempre aquela de pele bastante enrugada, com aparência
velha, cabelos amarrados, com roupa fora dos padrões da moda, desdentadas, pés espalhados,
descalças, etc. A imagem de fundo dessas fotos sempre é um lugar seco, sofrido, inóspito,
onde aí se constrói um discurso do atraso, da falta de recurso, do analfabetismo, e outros
estereótipos que estão impregnados na região desde o final dos anos vinte do século passado.
Onde a figura do coronel construiu o discurso da seca, uma arma poderosa das elites
sertanejas para exigir recursos financeiros, empregos, investimentos e privilégios da
instituição federal, estadual etc. Práticas que perpetuaram durante o século XX, e até hoje
observa atitudes como estas por parte de alguns seguimentos da sociedade. E fatos como esses
se tornam comuns neste espaço físico do sertão, isto devido a falta de investimento social que
venha contribuir com o desenvolvimento sustentável da região. Talvez por isso quando
determinados grupos de pessoas pensam em Nordeste, as imagens que se produz são sempre
no contexto das fotos abaixo:
Fotos referentes a personagem Sinhá Vitória do livro Vidas Secas que foi adaptado para o cinema em 1963, sob a direção de Nelson Pereira dos Santos.
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Um olhar minucioso sobre as imagens disponíveis na internet, referente a mulher
nordestina, pode se perceber que além de não possuir material suficiente e de boa qualidade, o
mínimo que aparece está explicitamente recheado de atitudes preconceituosas, única,
obsoletas que não condiz com as diversas realidades que se tem no Nordeste hoje.
Dentro deste discurso preconceituoso vão-se naturalizando os papéis de gênero,
afirmando a sertaneja como mulher feia, muito trabalhadora, seguidora de valores morais
rígidos, sendo consideradas mulheres “boa para trabalhar e casar e nunca para exercer
profissões importantes, para ocupação de altos cargos administrativas, pouco atrativas para
romance ou aventuras.” Segundo Durval Muniz,
O estereótipo lê o outro sempre de uma única maneira, de uma forma
simplificadora e acrítica, levando a uma imagem e uma verdade do outro que não é
passível de discussão ou problematização. O estereótipo constitui e institui uma forma de ver e dizer o outro, que dá origem justamente a práticas que o confirmam,
ou que o vincula, tornando-o realidade, á medida que é incorporado, e subjetivado.
(2007, p. 13).
E desta forma, se observa que ainda hoje pessoas até mesmo com um grau de instrução
elevado insistem nas mais diversas concepções preconceituosas acerca das populações
sertanejas. Os discursos construídos desde os anos 20 pouco mudaram principalmente, no que
se refere ao papel da mulher. Há um processo identitário já previamente construído no
imaginário das pessoas, de que a mulher sertaneja sempre foi desqualificada
profissionalmente, sendo comumente capacitada para realizar trabalhos manuais e não
atividades intelectuais. E o mais sério disso, é que este preconceito foi ao longo da história
Foto retirada do Diário do
Nordeste, retratando a vida da
mulher pernambucana. 2004.
Foto retirada da Revista Veja, retratando a
mulher do sertão baiano. 1998.
Foto retirada do site
http://farm1.static.flickr.com.
2010.
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introduzido, não só pelas pessoas menos esclarecidas, mais por alguns indivíduos de nível
educacional superior. Para Pierre Bourdieu:
[...] o poder da eficácia do olhar do outro só se exerce na medida em que o “olhado”
se reconhece, interioriza a percepção e a apreciação: o corpo socialmente
objetivado é um produto social que deve suas propriedades distintas a suas
condições sociais de produção, e o olhar social não é um simples poder universal e
abstrata de objetivação (…) mas um poder social, cuja eficácia se deve e sempre,
em parte ao fato de que encontra naquele ao qual se aplica o reconhecimento das
categorias de percepção e de apreciação por ele aplicado. (1995, p. 52).
O preconceito que a mulher sertaneja enfrenta representa o reconhecimento da
desvalorização, transmitido pelo olhar daqueles que pode ou não ser das áreas geográficas do
sertão, que pode ser tanto opressoras quanto outros oprimidos, o que leva a produzir uma
espécie de consciência social. Onde tudo é construído a partir de um olhar limitado daqueles
que não conhece verdadeiramente a história do lugar.
Assim, a desvalorização simbólica da mulher sertaneja reflete no comportamento de
várias delas, desde a diminuição da sua auto-estima, quanto na sua afirmação social perante
outras mulheres de diferentes regiões do país. Até porque a mulher que sai do Nordeste em
especial do interior, para as grandes capitais do Sul e Sudeste podendo ser em busca de
melhores condições financeiras, a passeio ou até mesmo para freqüentar os grandes centros
universitários, seja através de pesquisas, fazer doutorado e outras situações sofrem o mesmo
tipo de preconceito por serem oriundas do Nordeste. Talvez em menor grau, de forma mais
camuflada, porém são também estigmatizadas. Sejam no modo de falar, no jeito de se vestir
ou até mesmo nas relações sociais presentes no seu dia-a-dia.
Essa situação leva a compreender que o preconceito de fato existe independente da
posição social que a mulher sertaneja se encontra. O que importa nesse jogo de relações pré-
concebidas é o lugar de onde as mulheres sertanejas provêm, é a sua procedência como sendo
de um lugar marcado pelo desprezo das elites coronelistas, e pela falta de investimento social
que beneficie a mulher sertaneja das classes menos favorecidas economicamente.
Um exemplo de crescimento econômico que atualmente se vê no Sertão, e que está
possibilitando a mulher a ter seus recursos financeiros próprios, e não ser vista como
“retirante, flageladas”, obrigadas a migrar sazonalmente em busca de trabalho em outros
estados brasileiros, são os investimentos em irrigação em algumas áreas do sertão, onde estão
sendo criados espaços de modernização, e tem sido bastante valorizados nos últimos anos,
como solução para muitos problemas que durante muito tempo afetou as nordestinas e
sertanejas.
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Dentre esse foco de modernização no interior nordestino, apoiados no processo de
irrigação, destaca-se o Complexo agroindustrial de Petrolina e Juazeiro, que desde 1970 vem
aparecendo como grande produtor de frutas e hortaliças. Neste local mais de 50 mil hectares
de terras semi-áridas, está gerando empregos e atraindo para região empresas nacionais e
estrangeiras de diversos ramos industriais. E fatos como esse, vão de encontro com a idéia
comum de que a seca, que a vida dura, que atinge as mulheres da região nordeste é um grande
mal, é fruto de origem divina, porque sempre foi assim. Com a irrigação é possível criar
empregos, modernizar a economia e consequentemente melhorar a renda das mulheres
daquela localidade.
Contudo, vale ressaltar que a maioria desses projetos estão restritos a grandes e médios
proprietários, que podem investir capital nos cultivos de exportação. A produção ali obtida
está destinada aos consumidores de alto poder aquisitivo, e não para a subsistência da grande
maioria da população sertaneja. Verifica-se também que existem várias críticas de alguns
setores da sociedade, relacionadas a esses projetos de irrigação que está sendo implantado no
sertão. Uma delas é que essas empresas nacionais ou estrangeiras estão suprimindo a pequena
propriedade rural, tornando insignificante a produção do produtor local. Já que esse não
dispõe dos mesmos recursos financeiros e tecnológicos para investir na região. Apesar de
todos esses aspectos, pode se destacar alguns pontos positivos nesses empreendimentos tais
como: a geração de emprego e renda para as famílias; estímulo para a criação de pequenas e
médias empresas; e o cumprimento de algumas leis trabalhistas que tem contribuído para o
registro em carteira profissional de milhões de trabalhadoras sertanejas que reside na região.
A idéia de que somos mulheres atrasadas, subdesenvolvidas, cafonas foi construída, por
um discurso elitista, onde coloca-nos numa situação de miséria inacabável, com o objetivo de
manter sempre a superioridade, homogeneiza-se os discursos, criando imagens relativas ao
sertão, onde poucas pessoas conseguem visualizar este espaço como algo deferente,
produtivo. O que sempre faltou no sertão, foi vontade política, que gerasse recursos que
pudesse de fato beneficiar a sua população.
No tocante as diversas identidades da mulher sertaneja e, sobretudo as nordestinas
verifica-se que elas não são fixas são construídas e desconstruídas no decorrer do tempo. As
diversas identidades regionais que existem no interior da Bahia, por exemplo, não constitui
um elemento estático, único. E de acordo com Stuart Hall:
A identidade é realmente algo formado ao longo do tempo, através de processos
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento.
15
Existe sempre algo imaginário ou fantasiado sobre a sua unidade. Ela permanece
sempre incompleta desde sempre, em processo, sempre sendo formada. (2006, p.38).
A identidade é construída a partir das diferenças. Assim, pensar identidade como
unidade é querer um processo totalmente heterogêneo, já que ela se constitui de um processo
dinâmico, e de uma construção social. A imagem das mulheres sertanejas com todos esses
adjetivos desqualificadores, foi algo socialmente arquitetado, onde utilizou-se desses
preconceitos, e criou os argumentos necessários para corroborar as diversas situações
existentes.
A cultura, o jeito de ser dessas mulheres estão associadas a partir de diferentes contextos
sociais. O homem e a mulher são portadores de cultura, de conjuntos de significados que lhes
são próprios. E na concepção de Geertz:
[...] a cultura é melhor vista, não como complexo de padrões concretos, de
comportamentos, costumes, usos, tradições, feches de hábitos, mais como um
conjunto de mecanismo de controle, planos, receitas, regras instruções para governar
o comportamento (1978, p.24).
Esta concepção permite fazer uma reflexão sobre a cultura de cada povo, como uma
grande teia de significados que lhes são peculiares. Portanto, a mulher sertaneja tem sim seus
costumes, seu modo de vida que lhe é próprio, e algumas sentem-se plenamente realizadas
pelas formas nas quais convivem. O preconceito, o estereotipo na maioria das vezes é algo de
vem de fora de suas realidades é externalizado por um olhar do outro que se julga superior a
essas realidades.
3. A mulher sertaneja e sua relação com o cangaço, alguns filmes e músicas.
Diversos são os símbolos representacionais e os discursos que definiram e ainda
definem o que é ser mulher. Partindo-se, entretanto do pressuposto geral de que as
construções de estereótipos se estabelecem num lugar de oposição, percebe-se que um modelo
conflituoso de ser mulher sertaneja estabeleceu-se: em primeira instância têm-se que as
mulheres são totalmente diferentes dos homens em geral (construções sociais baseadas no
sexo) que são pertinentes em diversas sociedades, configurando-se, entretanto em cada uma
destas de forma diferenciadas. Em segunda, que as mulheres do sertão e, sobretudo as que
pertenceram ao cangaço são diferentes das mulheres das grandes cidades ou talvez até mesmo
opostas.
16
Roger Bastide em sua definição do “Outro Nordeste” ao colocar as claras oposições
entre o sertão e o litoral desta região5, acentua as diferenças entre as mulheres da parte
litorânea e as mulheres da parte sertaneja. Assim Bastide define estas últimas:
Raças de mulheres silenciosas e um pouco selvagens, resistentes ao trabalho (...)
Mulheres que se alimentam de mandioca e de carne seca e não como as do litoral, de
doces, de geléias, de sobremesas açucaradas. (1959, p.78)
Paralelo a essa concepção de mulher ocorre uma série de outros modelos de mulher
ligada a uma certa fragilidade feminina, pela qual se atribui à mulher trabalhos “leves” e
próprios de sua natureza ligado ao lar, o doméstico e o da maternidade, e por sua vez
submissa ao marido.
Apesar de estar no século XXI a naturalização de diversas construções sociais ainda se
faz bastante presente. Basta lembrar a educação religiosa, familiar, escolar, o senso-comum
para perceber que as imagens e os discursos diversos que justificam esta ou aquela atribuição
das diferenças regionais ainda são bastante presentes.
Diante de toda essa problemática em que o diferente é sempre o outro, e o
reconhecimento dessa diferença constitui-se um processo da alteridade, qual é a imagem que
se tem da mulher que pertenceu ao cangaço? Verifica-se que a trajetória de vida das mulheres
cangaceiras, requer uma importante análise quanto as suas especificidades, e de como a sua
presença neste espaço, modificou as relações sociais ali existentes.
Durante a República Velha (1889 a 1930) no Brasil vivia-se um período em que as
mulheres não eram vistas como cidadãs. Além de ser destituídas dos seus direitos sociais
como: direito ao voto, de andar sozinha, de ficar exposta nas janelas de suas casas, algumas
eram perseguidas por seguir a vida no cangaço. Este caracterizado pela ação de bandos
armados, sertanejos que tinham o objetivo de promover algum tipo de justiça de forma
violenta ou vingança pessoal. O cangacerismo era mais um indício da crise da sociedade
patriarcal. A valentia desses homens do cangaço impressionava e despertava curiosidade para
as mulheres. O cangaceiro para elas era o protótipo de macho, constituía-se um mito, um
herói para as mocinhas que habitavam a região. A maioria das sertanejas que viveram na
década de 1930 desejavam a figura de um homem forte, valente, homens que provassem a sua
masculinidade.
5 Bastide define sertão e litoral com todas as suas instituições, cultura e populações de forma bastante opostas.
Segundo ele “Não se pode imaginar contraste mais violento do que o existente entre as duas regiões” (idem,
p.78).
17
É Sila6 uma mulher que viveu intensamente o cangaço que através de seus depoimentos
encurta a distancia temporal que nos separa do período analisado. Ela é parte da memória e da
história das mulheres que tiveram várias experiências com os cangaceiros. É dela a seguinte
declaração da forte presença da mulher no cangaço:
[...] As mocinhas da época tinham um desejo curioso de conhecer aqueles homens
valentes, cuja história se espalhava por todo território brasileiro. Na verdade, era uma ousadia a ação daqueles desbravadores das caatingas e ao mesmo tempo
desafiadores das autoridades constituídas. Todo mundo queria, apesar do medo, ver
um cangaceiro, conversar com alguém que tivesse visto algum deles no mato, uma
pessoa que tivesse encontrado com o bando, outra que tivesse levado comida no
coito. Tudo com relação ao cangaço despertava muita curiosidade em toda
população da época. (FERNANDES, 2005, p.13)
Percebe-se nesse contexto que a valentia e a ousadia dos cangaceiros impressionavam e
despertavam a curiosidade da maioria das mulheres do período, porque os homens do
cangaço, para elas eram sinônimo de força, de proteção, eram os homens mais “homens” que
existiam.
Dentro do bando, as mulheres eram vistas como dotadas de uma forte intuição, até
mesmo os sonhos que tinham durante a noite constituía para elas possíveis avisos do que
porventura podia acontecer com seus homens no dia seguinte.
No que se refere a Maria Bonita, essa era vista com muito respeito, naquele espaço
considerado como o lugar de dureza e de luta. Apesar da maioria das vezes ou quase sempre a
mulher sertaneja ser considerada como alguém que não fascina, que não encanta, como um
ser masculinizado, uma das raras exceções é a figura de Maria Bonita que, mesmo em meio
ao cangaço, constituía uma representação de beleza presente naquelas áreas do sertão. Ela era
representada como a “rainha”, a heroína, “a mulher forte”, tanto fisicamente quanto nas
atividades diárias que exercia durante todo o tempo que esteve ao lado do bando ou até
mesmo fora dele. Esta não demonstrava qualquer sinal de contrariedade ou medo. Era
considerada a deusa do cangaço. Por vários cordelistas, Maria Bonita era reconhecida como
sinônimo da beleza, da coragem e da admiração de muitos. Vejamos um cordel do poeta
Antonio Teodoro dos Santos (1997) com relação a ela:
“Vênus Sertaneja”
Essa elegante baiana Era a “miss” do sertão;
6 Ilda Ribeiro de Souza, nasceu em 26 de outubro de 1924 em Poço Redondo- SE, e faleceu no ano de 2005. Era
uma das mulheres que participou ativamente da trajetória do cangaço.
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E por Maria Bonita
Batizou-a Lampião,
A natureza os uniu
Os dois num só coração.
Maria Bonita é
Um nome que radiou
Igual a Estrela Vênus
Que no espaço brilhou
Quase todo brasileiro
Sabe o nome cangaceiro Que o desespero criou.
Maria Bonita era
Nos doze anos de idade
O tipo da sertaneja
Que o vate chama beldade
Desde o tempo juvenil
Seria uma “miss” Brasil.
Se morasse na cidade.
(LINS, 1997: 62).
Porém Maria Bonita
Tinha duro coração
Tanto tinha de beleza
Como tinha disposição
Montava burro e cavalo
Só se ouvia o estalo no chão.
(LINS, 1997: 62)
O que se pode observar é que a beleza dessas mulheres tornou-se sublime numa vida de
tanta dureza, porém, de mulheres belas, onde o poder feminino conquista e aos poucos seduz
um espaço considerado tipicamente masculino, onde as regras e determinados comportamento
do bando de cangaceiros são modificados a partir da presença, do jeito dócil e sábio de várias
mulheres que penetraram no cangaço. A este espaço, e nas relações de poder ali presente, as
mulheres re-significaram e resistiram, porque ocuparam lugares de poder, principalmente
como transformadoras de atitudes e ações de dominação masculina.
Pretende-se analisar nesta relação entre a mulher do sertão e o cangaço, se neste
contexto, a mulher cangaceira sofria algum tipo de preconceito e estereótipo, por pertencer a
um grupo considerado revolucionário, por algumas pessoas do período. Através das leituras
realizadas, da análise minuciosa de alguns filmes referentes ao cangaço e de fontes diversas
acerca dessa discussão, nota-se que essas mulheres eram respeitadas por seus companheiros,
havia no grupo, uma forte relação de cumplicidade e o fato de ser mulher não atrapalhava as
suas andanças. O que pudesse talvez incomodá-las era a presença de algum filho pequeno,
que porventura elas estivessem. Por isso, quando elas engravidavam eram obrigadas a dar o
recém-nascido para pessoas de sua confiança e seguir suas viagens. Observa-se também que
Foto e poema retirado do livro
Mulheres no Cangaço. 2005
19
essas mulheres tiveram a coragem de desafiar o rigoroso comportamento ético, imposto numa
sociedade onde era negado a mulher sertaneja a simples exposição em suas casas, quando esta
ainda não pertencia ao cangaço.
A mulher sertaneja sofre de preconceito em diversas situações e em diferentes
contextos, no filme Luzia Homem de Fábio Barreto, por exemplo, é preciso que a mulher
obtenha características masculinas para tomar atitudes fortes e conviver com as divergências
que lhes são estabelecidas. Tudo é rotulado, e detalhadamente planejado para que a mulher
sertaneja apareça sempre do mesmo jeito, com as mesmas qualidades, sempre sofredora,
valente e etc. Nessa mesma perspectiva, o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber
Rocha, inicia-se com imagens clichê sobre a vida no sertão, sendo possível visualizar a seca, o
vaqueiro, o beato acompanhado por homem e mulheres sofredores que rezam constantemente
pedindo chuvas. A vida camponesa é marcada por uma produção primitiva dominadora nas
relações das pessoas do sertão; os espaços que Glauber constrói através dos seus filmes,
principalmente acerca do papel da mulher remete mais ao mito do que à história.
O sertão como lugar da seca constante, da injustiça sempre é exaltado no cinema, o
contrário quase nunca é mostrado. De forma generalizada, Durval Muniz Albuquerque Jr. no
seu livro Preconceito contra a origem geográfica e de lugar, afirma que:
[...] Isto é fundamental para entendermos porque hoje sofremos preconceitos ao
sermos vistos como pessoas atrasadas, incapazes de acompanhar a vida moderna, a
vida na grande cidade; imagem que será reforçada quando, nos anos 40, intensifica-
se a migração de nordestino para as grandes metrópoles do Sul, em busca de vagas
abertas na indústria em expansão. A maior parte destes migrantes vem da zona rural,
a maioria não tem o mínimo domínio dos códigos que rege a vida numa grande
cidade ( 2007, p.102).
Grande parte da produção discursiva e dos estereótipos criados sobre a imagem da
mulher sertaneja surgiu a partir, do declínio econômico, da ausência do desenvolvimento
social na região e outros fatores que foram determinantes para o surgimento dessa
estereotipia. E o que se observa constantemente é que a população das grandes metrópoles
tem a visão de que, a mulher nordestina só é capaz de produzir artesanato, realizar trabalhos
exclusivamente manuais, enquanto as mulheres do Sul e do Sudeste produzem a última moda
e os eletrônicos mais sofisticados. Ou seja, mais uma vez tem-se a idéia de que as mulheres do
Sertão são boas rendeiras (e como realmente são), fazedoras de belos bordados, de pinturas
peculiares, além de serem possuidoras de uma culinária picante e outras atividades manuais.
O problema é que sua capacidade produtiva é restringida apenas a essas atividades,
praticamente isso é mostrado pelos meios de comunicação e pela indústria turística da região.
20
O fato de o Nordeste ter sido a região onde primeiro se deu o encontro de raças e a
consequente mestiçagem tendo como resultado a formação da população brasileira, aqui no
Sertão projetou-se a idéia de um lugar preso ao passado, de relações sociais marcadas pelo
apadrinhamento, pelo compadrio e outros adjetivos atribuídos a mulher sertaneja e nordestina
que perpetuam até os dias atuais.
No que se refere a isenção da mulher sertaneja na música nordestina, observa-se numa
das composições de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, Paraíba, onde a mesma serviu de
tema na campanha política de José Américo ao governo da Paraíba por volta de 1950, quando
este se referia ao Estado e buscava fazer um elogio por sua participação no movimento de 30,
do qual Américo havia sido um participante. Gonzaga vai surgir no Rádio Nacional, como um
representante da identidade musical nordestina, e com fortes lembranças e saudades acerca do
Sertão. Tanto é, que irá também se caracterizar com roupas tipicamente sertanejas como o
chapéu de cangaceiro, sandália de couro, representando assim, certa sertanidade muitas vezes
vistas como contraditória e arragaidos de preconceitos com relação ao sertão nordestino. Por
outro lado, ele consegue demonstrar que apesar de está inserido em outro contexto sócio-
cultural, propositalmente ou não, através das letras de suas músicas retoma a sua história, os
seus costumes e valores relacionados ao seu local de origem.
As sertanejas representadas em algumas letras de músicas de Luiz Gonzaga passam a ser
vistas também como um ser masculinizado, como aquela mulher que exerce qualquer
atividade independente das circunstâncias que lhes são estabelecidas. Algumas das suas
músicas também foram responsáveis por fazer do Sertão, o lugar das lembranças,
contribuindo, em alguma medida, para reforçar o preconceito existente na região, deixando
transparecer a figura da mulher como um ser desconectado com as transformações do mundo
moderno, como se percebe no trecho da música a seguir:
[...]
Paraíba masculina,
Muié macho, sim sinhô
Eita pau pereira
Que em princesa já roncou
Eita Paraíba
Muié macho sim sinhô
Eita pau pereira
Meu bodoque não quebrou
Hoje eu mando
Um abraço pra ti pequenina [...]
21
Nessa perspectiva, para admirar uma mulher, seus afazeres e determinados
comportamentos, dizia-se na letra da música, e em outros comentários de populares, que ela é
“macho”, já que a feminilidade em uma sociedade marcada pelo machismo, não parece ser
um atributo de muito valor. Ainda de acordo com Albuquerque Jr:
Esta imagem terminou por ser generalizada para todas as nordestinas, até porque, no
Rio de Janeiro, “Paraíba” veio a se tornar um nome genérico para designar todos os
nordestinos, desde que, a partir dos anos 30 passou a predominar notadamente na
corrente migratória que se dirigia para aquele Estado não mais os baianos, mas as
populações vindas dos estados mais do norte, como pernambucanos, cearenses,
potiguaras e paraibanos. (2007, p. 114)
Estes e outros estereótipos ainda persistem contra a mulher do sertão, o impacto causado
pela divulgação de imagens onde as mulheres sertanejas são sempre desprovidas de beleza,
realizadoras de trabalhos árduos e com outras características afins, não constitui uma verdade
absoluta. É algo generalizado que pode e deve ser repensado e desconstruído a partir do
momento que houver uma análise crítica e sistemática das diferentes realidades da mulher
sertaneja e nordestina. Para Michelle Perrot (2005, p. 26), “a história das mulheres também
não mudou muito o lugar ou a condição destas mulheres. No entanto, permite compreendê-la
melhor.” E dentro da perspectiva da micro-história, e da abordagem de Perrot, faz-se
necessário reconstruir as várias representações e imagens que ao longo de décadas
caracterizaram a mulher sertaneja.
Considerações Finais
O que se observa ao longo do texto, é que ainda é necessário questionar a forma como a
mulher sertaneja e nordestina vem sendo representada, construída por essa produção social e
cultural, desde o início do século XX. Isso é fundamental para entendermos muitos dos
preconceitos que circulam regional e nacionalmente em torno da mulher do Sertão. É
necessário que fique esclarecido que esta pesquisa, não nega fatos concretos sobre algumas
das realidades que efetivamente se observa corriqueiramente no Sertão. Não se recusa a
aceitar aqui, que no Sertão ocorreram e ainda existam retirantes, estiagens prolongadas,
mulheres que sabiamente participaram da vida do cangaço, dos beatos, dos jagunços, que
sofreram com a ação dos coronéis. Que não exista: miséria, fome, sofrimento, violência,
falta de perspectiva dignas de sobrevivência. Porém, o que se pretende discutir neste artigo
é se esses fatos socialmente vistos só existam exclusivamente no Sertão. Será que existe nesse
22
espaço apenas isso? Os fatos, as situações e os acontecimentos acima descritos, não são
suficientes para explicar as diversas e complexas realidades preconceituosas, do que foi a
história desse lugar e como seria o povo que ai reside.
Faz-se necessário discutir, justamente, a lógica do discurso, do preconceito e da
estereotipia que é o de tornar o complexo, o diverso em conceitos fixos e estreitamente
ligados entre si.
Ignora-se que neste mesmo espaço existem outras realidades, desde os aspectos físicos
naturais, paisagísticos, climáticos, até muitas outras realidades sociais, étnicos, culturais,
econômicas ou políticas. É preciso analisar o olhar simplificador e, na maioria das vezes, mal
intencionado, preconcebido que só consegue visualizar as mesmas formas, o repetitivo, o
caricatural, o lugar comum quando se trata de dizer e de fazer ver a mulher do Nordeste e
consequentemente a do sertão.
Por outro lado, não se pode mais aceitar os diversos discursos de que o Sertão constitui-
se de um lugar parasitário, de mulheres que sofrem passivelmente, sem nenhuma forma de
resistência, de que são pobres porque não estudaram, e que vivem ás custas de benefícios
sociais do governo. O Sertão não é o único lugar do Brasil onde o analfabetismo, a indigência,
a fome, a falta de acesso aos bens mais primários existe. Estas realidades também estão
presentes nas grandes metrópoles brasileiras, e não somente no espaço físico, na paisagem do
sertão nordestino. O preconceito que existe na região, é uma maneira de desqualificar o
oponente, de tentar vencê-lo através do rebaixamento social, da estigmatização e dos demais
rótulos ali presentes.
Vale ressaltar que a mulher sertaneja rica, quando sofre algum tipo de preconceito, este
é oriundo quase que exclusivamente da origem geográfica do lugar. Embora o discurso
presente tente fazer acreditar que todas elas são descriminadas igualmente, que toda sertaneja
é vítima das mesmas condições adversas da vida. É a necessidade de afirmação de uma
representação, onde a mulher do sertão é aquela que sempre precisa de complacência, da
altitude de piedade, da coitadinha, da sofredora, da mulher eximiamente rural.
A mulher nordestina e sertaneja de hoje possui ações diversificadas do ponto de vista
econômico, político, cultural, social e outras múltiplas realidades que não podem ser
explicadas, lançando mão desses vários estereótipos construídos desde o princípio do século
passado. A mulher sertaneja nunca teve e não tem o monopólio da miséria e da exclusão
social, isso é marco de toda a sociedade brasileira e não somente do Nordeste. O que a história
afirma é que quase tudo que nos rodeia foi socialmente construído e inventado historicamente
23
pelos próprios homens, e se é assim, pode-se também desconstruir, abandonar, desinventar
todas as representações preconceituosas que permeia a mulher sertaneja e nordestina.
24
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Cortez, 2001.
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Música
GONZAGA, Luiz Gonzaga; TEIXEIRA, Humberto. Paraíba. RCA, Victor, 1966.
25
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Sites
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Acessado em 10/02/2010
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Acessado em 10/02/2010
http://www.projetodomhelder.gov.br:8080/notitia/servlet/newstorm.notitia.presentation.Image
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Acessado em 10/02/2010